revista orácula nº 14 o modus vivendi helênico e a revolta dos macabeus

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o racula Revista de estudos de apocalíptica misticismo e fenômenos visionários Revista do Grupo Oracula de Pesquisa Universidade Metodista de São Paulo São Bernardo do Campo, ano 9, n. 14, p. 1-97, mar. 2013 ISSN: 1807-8222

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Neste número oferecemos artigos que abordam, de maneira interdisciplinar, o contexto de resistência ao helenismo da apocalíptica judaica, no caso, no livro de Daniel e na revolta dos macabeus. Também há artigos que exploram expressões de pensamento apocalíptico na relação com o mundo helenístico, ao invés de em oposição a ele. Este é o caso dos estudos que se debruçam sobre crenças e textos sobre o além-mundo, como no caso do Apocalipse de Pedro e do Diálogo dos Mortos de Luciano. Também merece destaque o fato de que ideias apocalípticas continuam a exercer um papel na cultura religiosa no mundo ibérico, como no caso das obras de Padre Vieira e de sua releitura do profeta Daniel e do Apocalipse de João. "Prof. Dr. Paulo Augusto de Souza Nogueira

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Page 1: Revista  orácula nº 14 O Modus Vivendi Helênico e a revolta dos Macabeus

oraculaRevista de estudos de apocalípticamisticismo e fenômenos visionários

Revista do Grupo Oracula de PesquisaUniversidade Metodista de São Paulo

São Bernardo do Campo, ano 9, n. 14, p. 1-97, mar. 2013ISSN: 1807-8222

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OraculaRevista do Grupo Oracula de PesquisaUniversidade Metodista de São Paulo

São Bernardo do Campo, ano 9, n. 14, p. 1-97, mar. 2013ISSN: 1807-8222

Coordenação do projeto Paulo Augusto de Souza Nogueira

Corpo editorial Elizangela A. SoaresValtair A. Miranda

Conselho editorial André Leonardo Chevitarese (UFRJ)Christopher Charles Rowland (Queen's College, Oxford)Johann Konnings (CES)Pedro Paulo Abreu Funari (UNICAMP)Vicente Dobroruka (UnB)

Edição, revisão e editoração Elizangela A. Soares

Revista online www.oracula.com.br

Contatos [email protected]

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SUMÁRIO

EditorialPaulo Augusto de Souza Nogueira 4

Making of a Revelation: Daniel, Revelation and the Portuguese Restoration of 1640Maria Ana T. Valdez 6

Crítica social e imaginário no "Diálogo dos Mortos", de LucianoRafael de Campos 22

O modus videndi helênico e a revolta dos macabeus no séc. II aEC.Thiago Borges de Santana 32

Apresentação dos contos de corte no livro de Daniel: análise de sua estruturaAlmir Lima Andrade 47

O movimento apocalíptico e macabeu como protesto ao domínio helênicoBruna Jéssica Cabral Silva 65

Os herdeiros do movimento apocalíptico em IsraelEzequiel da Silveira de Souza 74

O Apocalipse de Pedro: a narrativa da viagem de Pedro na perspectiva da psicologia histórica de Klaus BergerÂngela Maria Pereira Aleixo 85

Malbon's Jesus: A Review of. E. S. Malbon's “Mark's Jesus”Marcus Throup 96

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EDITORIAL

A Revista Oracula chega ao seu 14º número e no seu 9º ano como um espaço acadêmico de divulga-ção de pesquisa em estudos de profecia, apocalíptica, e fenômenos visionários no mundo bíblico e na história da recepção.

Neste número oferecemos artigos que abordam, de maneira interdisciplinar, o contexto de resistência ao helenismo da apocalíptica judaica, no caso, no livro de Daniel e na revolta dos macabeus. Também há artigos que exploram expressões de pensamento apocalíptico na relação com o mundo helenístico, ao invés de em oposição a ele. Este é o caso dos estudos que se debruçam sobre crenças e textos sobre o além-mundo, como no caso do Apocalipse de Pedro e do Diálogo dos Mortos de Luciano. Também merece destaque o fato de que ideias apocalípticas continuam a exercer um papel na cultura religiosa no mundo ibérico, como no caso das obras de Padre Vieira e de sua releitura do profeta Daniel e do Apo-calipse de João.

Essa amostragem dos artigos deste número e de seus respectivos temas mostra a vitalidade dos textos apocalípticos na história, na qualidade de textos da cultura, em permanente processo de releitura e re-criação. Mergulhar no universo dos apocalipses antigos e de suas releituras nos oferece uma visão com-plexa do mundo e da sociedade, em tempos de crises, diferentes entre si e na forma de sua abordagem. Nestes tempos de crises redescobrimos o que nos constitui humanos, nossos medos, nossos desejos e nossas construções simbólicas de alternativas.

Prof. Dr. Paulo Augusto de Souza NogueiraMarço de 2013

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MAKING OF A REVELATION: DANIEL, REVELATION AND THE PORTUGUESE RESTORATION OF 1640

Maria Ana T. [email protected]

Postdoctoral Fellow. Yale University__________________________________________________________________________

You are probably thinking what Daniel, Revelation, and the Portuguese Revolution of 1640 may have in common. My first answer would be: apparently, nothing. A more elaborate answer would, however, stress how they are much more alike than one could imagine. On one side, all reflect real and even similar historical events. Most importantly, however, religious expectations of the described peoples are mostly the same: the belief that the kingdom of God is finally at hand. Thus, political and social tribulation, as it takes place during these three moments in history, is not arbitrary: it is necessary. It is part of God’s divine plan.

The year of 1640, more precisely, December 1, 1640, marked the end of the socalled Iberian Union. Normally described by historiography as a bloodless and non-violent episode, the actions taken by some Portuguese men in this particular moment constitute, nonetheless, a revolution that would dramatically change the broader European status quo. Portugal resumes its independence and a new king from the House of Braganza is chosen and sworn. The Duke of Braganza, the highest member of Portuguese no-

ABSTRACT

The Portuguese Restoration of 1640 put an end to the union of the Iberian Crowns. Historians normally explain it as the result of a mix of historical, eco-nomic, and social conditions. Religious beliefs, however, were one of the strongest motifs used to catapult the “revolution” against Spain, while explaining how such a small kingdom as Portugal was God’s chosen nation to lead humankind towards the end of time. This eschatological ideal is particularly important among members of the Society of Jesus.

In this paper, it is our goal to further explore sixteenth-century theoretical con-ceptualizations regarding the establishment of tahe “Fifth Empire” as forecast in Daniel and in Revelation. For this, we will analyze the work of a Portuguese Jesuit, António Vieira: the History of the Future and the Clavis Prophetarum. Vieira, in his two books concerning this concept of the end of time, first follows a panegyric approach of the Portuguese people; and later, in light of biblical texts, explains Por-tuguese supremacy and the role to be played by the Portuguese monarch.

It is our aim to demonstrate how texts such as Daniel and Revelation, given their timeless character, can be used in other historical moments of distress similar to those of the turn of the Era.

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bility, decides to take the pledge after years of non-commitment to the revolutionary cause. From this moment onwards, Portugal engages in a war with Spain and Europe to restore its borders and obtain international acknowledgment of its independence.

During this interlude of sixty-years – 1580-1640 – the Portuguese empire was under Spanish do-minion. Simply put, this happened because of an old and dangerous Portuguese royal policy of Iberian intermarriages,1 conjugated with the acts of a reckless young king. In the past, similar hazardous cir-cumstances had threatened Portuguese and/or Castilian independencies.2 The events of 1578, however, originated the real circumstances in which such union had to take place.

Young king D. Sebastião influenced, perhaps has some have written, by his Jesuit education, had since the beginning of his reign shown the desire to engage on a crusade against the Moors. His wishes were partially fulfilled in 1578 when one of the pretenders to the Moroccan throne requested his help to beat his opponent. Sebastião, against the will and advice of his Council and of his uncle Philip II,3 decided to take the pledge. With him went to Morocco the majority of the male members of Portuguese nobility. When the king disappeared in the battle of Ksar el-Kibir, he left no heir. Furthermore, Portuguese nobi-lity was seriously hit, as most of its members had also lost their lives in the battlefield.

Sebastião was succeeded in the Portuguese throne by his uncle D. Henrique, a cardinal. The cardi-nal-king, as he became known, was already of old age. Moreover, as a catholic cardinal, Henrique had no children.4 When he died in January 31, 1580, he left neither a Council of Regency to choose an heir nor did he appoint on his will. This was the beginning of a battle – legal and armed – for the Portu-guese throne that involved three grandsons of king D. Manuel: Catherine of Braganza, Philip II, and António, prior of Crato.5 The latter, although gathering popular support (peasantry and merchants), was an illegitimate grandson of King Manuel. Thus, he was the one whose claims had less legal value. Ultimately, the troops of Philip II led by the Duke of Alba beaten those of António in August1580. Philip II was then accepted by the Portuguese cortes of Tomar – the Portuguese council where the th-ree states (nobility, clergy, and peasantry) seated together – and crowned King of Portugal in 1581. It was the beginning of the Iberian Union, a union of two crowns under one single monarch. This was, in practice, the result of King Manuel’s Ordinances of 1521. As he had himself envisaged an Iberian Union, he had passed laws that reaffirmed Portugal’s independency.6 Manuel dreamt about extending his power over the entire Iberian world, but he was quite decided to make sure that no Spanish mo-narch would do the same to Portugal.

1 The Castilian also engaged in a similar policy. They would, however, search now and then for marriages outside the Peninsula, which made them avoid more crisis like this one. For further bibliography, see {Elliott, 2002 #43}2 For further examples, see the Portuguese crisis of 1483-5 or observe the marriage of D. Manuel with the daughter of the Ca-tholic Monarchs. See, {Disney, 2009 #21}3 Philip II was at the time trying to negotiate truce with the Turks. Thus, such enterprise would definitely compromise his objectives of peace.4 Papal dispensation was requested from his vows so that he could try to beget an heir.5 See {Disney, 2009 #21}6 For further Information on this subject, see Ordenações Manuelinas.

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Philip II – I of Portugal – enjoyed an initial period of grace in Portugal. At first, he followed Portugue-se Ordinances and a Council of Portugal was formed to manage all businesses regarding the Portuguese Empire in an independent way from those of the Spanish Empire. Philip II also set his court for some months in Lisbon before moving it to Madrid.7 Things would change, however, as Philip got more and more involved in the sixteenth-century European religious wars. Thus, his, and later his heirs, relation-ship with the Council of Portugal, changed over the years. This is particularly true whenever he needed to gather money and men to fight Protestants in Northern Europe, a fight strange to Portugal and in which there could be found no reason to participate by members of the Council of Portugal. Another good example of this policy of integration of Portugal as if it were another Spanish province, is the Invincible Armada sent in 1588 against England and Elizabeth, for which Portuguese resources had been requested although, again, this was not a Portuguese cause.8

During the sixty years of Iberian Union policies regarding Portugal, especially those concerning the individuality and independence of the Council of Portugal, changed dramatically. Whenever more taxes were demanded from the Portuguese, or when the Council of Portugal lost most of its power within the Spanish court, sebastianismo spread and gained influence. This movement assumed that late king Sebas-tião would return at any moment to save Portugal from the Spanish yoke. Although originally a popular movement, its echoes soon can be found among the best educated people and spreading in the midst of Portuguese nobility and clergy. Sebastianism became yet another early modern expression of the Iberian quest for the encobierto. As its popularity grew, several persons at different moments and places were identified as the dead king, and thus, supported by members of Portuguese nobility.9 Somehow, bibli-cal prophecies concerning the coming of the Messiah and the end of the danielic “tribulation” strongly echoed in the Portuguese empire during this period. Consequently, several persons were eager trying to identify the desired king while making sure to underline his divine character. António Vieira, the famous Portuguese Jesuit, was probably one of the most accomplished and complex biblical interpreters of his time. Nevertheless, he was not a follower of sebastianism, but a supporter of the new Portuguese dynasty – the House of Braganza.

Before moving forward, let us just remember how this kind of expectation on the coming of a savior--type figure is not strange to Iberian history. This theme is found often in the Peninsula: the figure of El Cid is certainly one of its major examples. Another example is that of with King John I who succeeded to ascend to the Portuguese throne in 1385 when Portugal’s independency was at stake.

In the sixteenth century, Bandarra,10 the Portuguese popular prophet from Trancoso who could read

7 At this time in history, Spain had not yet a defined geographical court. As many others in Europe, it was still an itinerant court that followed the king on his travels across his realm.8 See, {Elliott, 2002 #43} Furthermore, it is necessary to underline how this Portuguese participation in the Armada jeopardized all the businesses conducted between England and Portugal. One cannot forget how these two kingdoms are Europe’s oldest allies.9 Probably the best example is the one of described in: {Olsen, 2003 #44}10 António Gonçalo Annes Bandarra (1500-56) was a shoemaker from Trancoso (northern Portugal) who read the Bible, espe-cially the prophetic books, and published a book of messianic verses. His work was widely known despite the Inquisition efforts

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and knew passages of the Bible by heart wrote a book of poems that became well known given its pro-phetical style. In Trovas, Bandarra interpreted biblical prophecies concerning the end of time, especially those of Daniel, Isaiah, and Jeremiah, always in accordance with Portuguese history, which reminds us of the ability of using timeless biblical prophecy within the scope of the temporal world as needed. His poems were so widespread and its content read and believed by so many, that at some point, 1660-61, he was accused of heresy by the Portuguese Inquisition. Considered a “foul,” he was set free after publicly abjuring. His book of Trovas, forbidden by the Inquisition later in 1665, circulated abundantly in print and manuscript forms. The verses were as well known in popular environments as in the more educated ones. They were read and kept at several Jesuit colleges of the time because their content agreed with some of the mysticism in vogue among Jesuits. It is curious to note, however, how this work was de-dicated to the pope and to D. João III: it announced the fulfillment of biblical messianic hopes and the king’s future successes. This book, the Trovas, played a very important role in maintaining alive the hope of Portuguese independence from Spain during the Iberian Union. In his verses, Bandarra forecast the birth of the desejado (the wished one). When he did it, king D. João III was not succeeding in producing a living male heir. Later, when D. Sebastião was finally born, which occurred after his father’s death, he was immediately identified with the figure of the Iberian desejado. Thus, the mystical character of the figure of Sebastião. Later, when he disappeared in the battle of Ksar-el-Kebir in 1578, the myth of the re-turn of the king was translated in to a strong popular believe in the return of the encoberto. Bandarra was also found as a “true prophet” by António Vieira later on, that being one of the reasons behind Vieira’s accusation by the Inquisition.

As mentioned, followers of sebastianism are found among all ranks of Portuguese society. The move-ment was never put to an end by the Spaniards in power, who apparently did not take seriously the pos-sibility that such “mythology” could endanger Spanish dominion. Therefore, sebastianism took the form of a movement of “nationalist” character, used by its followers to promote the superiority of Portugal in relation to Spain.11 A good example can be found in the work of António de Sousa Macedo, who wrote that Europe was a woman, Spain its head, and Portugal its crown in his book titled “Flores de España excelências de Portugal,” published in Lisbon in 1631, i.e., during the Iberian Union.12

Within this highly mystical and prophetical environment, particular attention should be given to the role of the Society of Jesus in Portugal. As Portugal’s main educators, the Jesuits were able to influence not only their current pupils, but also previous ones. At this moment, the Jesuits played an influential role: they disseminated in the public domain prophecies regarding the coming of a savior-king, many of them laying upon biblical prophecies such as Daniel and Revelation. The idea that the end of the world was at hand was more and more appealing in the Portuguese empire. The conjugation of such belief with the specific historical circumstances explain in part why the Jesuits supported the revolt of 1637 in Évora, the first against Spain.

to forbid its circulation.11 For further information about this movement, we recommend reading {Azevedo, 1984 #67}12 {Sousa de Macedo, 2003 #117}

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The political, economic, and even social situation of the Portuguese realm was unbearable to the eyes of the Portuguese. Thus, one can easily comprehend how movements of national character combined with the content of biblical prophecies spread easily and were quickly embraced. One of the most im-portant examples of such attitude is found in the description of the Portuguese foundational myth: the miracle of Ourique. The Cistercian monk, Fr Bernardo de Brito, published a series of works supporting the myth that Christ had appeared to Afonso Henriques, the first Portuguese king, on the eve of the battle of Ourique to reassure him of his victory. The timeframe of the Iberian Union is a key moment for the implementation of theories regarding Portuguese divine kingship. In a certain measure, the Iberian Union was compared to what happened to the Israelites when they were taken into captivity to Babylon. The biblical return to Jerusalem was thus to be understood as a sign of the forthcoming Portuguese res-toration. In a word, the king would return to Lisbon.

All of the above mentioned concepts – chosen nation, divine predestination, and tribulation – were common subjects in early modern Portugal. Furthermore, it is necessary to not forget, how Portuguese kings had used the excuse of “crusade against the gentiles and the infidels” to support and explain their maritime enterprise. Not only were they engaged in fighting the infidels and the gentiles, but they were also searching for the Christian kingdom of Prester John while engaging in a worldwide effort of evange-lization following papal instructions.

All of this together, weighted in the course of Portuguese history. The most important facts to retain concern how this people of sailors understood itself, as a divinely chosen nation forecast to universally spread the Gospel and lead Christendom to the time of the end. Such attitude surely influenced the cons-truction of Portuguese identity as it was used to explain and fight for their supremacy in the sea before the papacy and remaining European crowns of the time. Accordingly, Portugal was the new Israel, the new chosen nation, and therefore it had a divine destiny to fulfill. No other earthly prince, not even the pope, could interfere with such fate.

It is exactly the question of a divine predestined role to be played by Portugal that lays at the center of Vieira’s eschatological work. Scholars discus when was that Vieira first engaged in eschatological discour-se. This is, however, a question for which we have no clear answer, although we can find eschatological traces in sermons preached after his arrival to Lisbon in 1641. Nevertheless, there are three major works that should be accounted for as Vieira’s main eschatological pieces of thought. The first was a letter writ-ten to Queen D. Luisa after the king’s death in 1655. The second is an unfinished book titled History of the Future. The third, and the one considered by Vieira as his opus magnum, was the Clavis Prophetarum yet another unfinished book.

The initial use of eschatological references in António Vieira’s work resulted from his need to please the king by promoting the solidification of his fragile kingship. Notwithstanding, it appears possible to affirm that his work represents a much more elaborate construction than one could initially expect. It can be considered as a systematic construction, probably the result of many years of personal questioning on the reasons why the promised divine kingdom had not yet happened. The apparent imminence of the end of time that every commentator seems to have emphasized over the centuries has been, if we go back

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as far as the time of the edition of Daniel, delayed for about 1800 years. There had to be a reason for that. Consequently, the search for signs confirming the authenticity of biblical prophecies represents natural human behavior. The fact that the world was not yet completely evangelized, together with the existen-ce of several religions/sects rather than one global union under Christianity – necessary to be attained according to Revelation – plays an important role in Vieira’s work. Hence, it is clear that his personal convictions influenced in part his systematization since the beginning of his eschatological career. Ad-ditionally, it is necessary to remember how intertwined were the interests of the Portuguese crown with those of the Society of Jesus. Thus, Vieira’s theorization regarding the Fifth Empire represents necessarily more than simple political theory.

The epoch in which the Jesuit lived, 1608-1697, was also a particular one: it saw daily events as part of a divine eschatological plan. The world was getting ready for the imminent advent of the Kingdom of God and for the Last Judgment. Furthermore, the world was understood in accordance with the sequen-ce of empires described in the book of Daniel. This probably explains Vieira’s mention of a Fifth Empire to come, a concept that he fully analyses in his eschatological works. The content of the book of Daniel becomes to Vieira, what S. Peloso describes as an “exemplar image of a ‘mundi historia,’ and in particular, of political history, generating philosophies and systems of interpretation of historical events.” 13 This is important to understand Vieira’s thought regarding his explanation of events of the history of Portugal in light of the biblical prophecies, especially those concerning the future of the realm.

Esperanças de Portugal, the first complete example of eschatological work by António Vieira, is the name of the famous letter he wrote while navigating the waters of the Amazon River. The letter was sent to the elected bishop of Japan and the Queen’s confessor, his friend Fr André Fernandes,14 with the pur-pose of providing some comforting words to Queen D. Luísa of Gusmão after the death of D. João IV. In fact, the death of the king marks the rebirth of sebastiamism.15 Once again, attempts to demonstrate that D. João IV could not be the much-anticipated encoberto become common.16 Political circumstances sur-rounding the events after the death of D. João IV appeared everything but favourable to his identification as the encoberto. Thus, the polemic that follows.

It is clear that a document written by Vieira cannot be a simple letter, but most probably, a treatise in which he describes his theory concerning the Fifth Empire while forecasting the resurrection of the Portuguese monarch. This means that we have in front of us what was called in Portugal at the time a

13 {Peloso, 1997 #118@177}14 Born in Viana do Alentejo in 1607, he entered the Company of Jesus in 1622. He studied humanities and philosophy at Coimbra between 1625 and 1629, and then theology at Évora between 1633 and 1639. He was elected bishop of Japan in 1649 by D. João IV, but he was never confirmed by Rome because the Holy See did not recognize Portuguese independence until much later. Meanwhile, he was the confessor of the prince D. Teodósio, and later he also became the confessor of the kings. He was charged with the task of presiding over the “Junta das Missões,” created in 1655. Therefore, it is possible to assume that he and Vieira exchanged several letters during this period because of the Missions in Brazil. He died in Lisbon on 27 October 1660, six months after delivering a copy of Vieira’s letter to the Inquisition and 13 months before Vieira’s return from Brazil.15 Group that supported the hope for the return of the late king D. Sebastião.16 Encoberto in Portuguese and encobierto in Spanish are synonyms for the covert royal figures supposed to come back at times of distress. From this point onward we will keep with the Portuguese nomenclature of this phenomenon.

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“papel.”17 This form of treatise may also explain why the letter’s frontispiece as we have it today is very similar to the one that a later publication of the letter would contain:18

Esperanças de PortugalQuinto Império do MundoPrimeira e Segunda Vida del-Rei d. João o QuartoEscritas por Gonçaleanes Bandarra

Hopes of PortugalFifth World EmpireFirst and Second Life of H.R.M. D. João IVWritten by Gonçaleanes Bandarra

Above all, it is necessary to note how Vieira describes his “prophecies” as “written by Bandarra.” As J.J. van den Besselaar writes, “we know with certainty that António Vieira took seriously the prophecies he collected, studied, and interpreted.”19 Therefore, it is not strange that the Jesuit had in mind something else that went beyond the simple “comforting” of the Queen, D. Luísa. It is easier for the historian familiar with Vieira to believe that the diplomat and the visionary shared a common theory concerning the future of the realm. If not, why was he wasting his time building such an elaborate system as the one described in this “simple” letter?

Three years earlier, he preached the Sermon of Salvaterra when the king was ill, and he said that the monarch could not die because he had not yet realized everything that had been prophesied by Bandarra. If we continue to explore this line of thinking, it is possible to accept that the letter was a continuation of such thoughts and beliefs. The content of the letter and the agitation around it were enough to call the attention of the Inquisition, which had long waited for an opportunity to publicly treat Vieira as an enemy.20

The content of the letter leaves no room for doubt regarding Vieira’s intentions: “fight against the resume of sebastianism after the death of D. João IV.”21 However, is this political purpose as descri-bed by R. Cantel the only reason behind Vieira’s actions? Are we not also presented with some sort of personal profound belief in the biblical prophets and in the interpretation that Vieira made of the verses of Bandarra? In fact, what appears to have been considered more compromising by the Portuguese Inquisition was the syllogism that Vieira used in the letter to prove the veracity of the prophecies:22

17 “papel” is a document or a treatise in which someone or a group of people would describe to the king a certain subject sup-porting their opinion and in which they would suggest how to deal with this subject.18 Vieira, “Esperanças de Portugal Quinto Império do mundo: Primeira e segunda vida del-rei D. João o quarto escritas por Gonçaleanes Bandarra,” p. 49.19 “sabemos com certeza que Antônio Vieira levava a sério as profecias, que colecionava, estudava e interpretava,” in van den Besselaar, Antônio Vieira, profecia e polêmica, p. 35.20 To this, is it not strange the role that the Jesuit played in favor of the Jews and against the methods used by the Holy Office?21 Cantel, Prophétisme et messianisme dans l’oeuvre d’Antonio Vieira, p. 182.22 Vieira, “Esperanças de Portugal Quinto Império do mundo: Primeira e segunda vida del-rei D. João o quarto escritas por Gonçaleanes Bandarra,” p. 49.

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O Bandarra é verdadeiro profeta;O Bandarra profetizou que el-Rei D. João o 4.º há-de obrar muitas cousas que aindanão obrou, nem pode obrar senão ressuscitando;Logo, el-Rei D. João o 4.º há-de ressuscitar.

Bandarra is a true prophet:Bandarra prophesized that H.R.M. D. JoãoIV will do many things that he has not yetdone; nor can he do them unless he resurrects;Therefore, H.R.M. D. João IV will resurrect.

The use of this kind of syllogism is not novelty. Many others had used this resource before to explain the difference between true and false biblical prophets. Vieira begins by saying that “the true proof of the prophetical spirit in men is the success of the prophesized things,”23 and he continues by listing biblical examples. Among these, Vieira underlines the passage of Deuteronomy 18:21-22, where we read:

You may say to yourself, “How can we recognize a word that the LORD has not spo-ken?” If a prophet speaks in the name of the LORD but the thing does not take place or prove true, it is a word that the LORD has not spoken. The prophet has spoken it presumptuously; do not be frightened by it.

In the text of the Esperanças de Portugal, referring to Bandarra’s Trovas, Vieira underlines the impor-tance of the subject of the war against the Turk, prophesized by Bandarra as an event that would take pla-ce only later, with the following words: “not be afraid of the Turk, not during this season.”24 This type of commentary was only useful in supporting Vieira’s thesis regarding the veracity of Bandarra’s prophecies on the main character’s identity. In fact, in all of these events the king of Portugal would star, either in the present or in the future. Vieira also underlines how Bandarra had forecast that the pope was not going to accept the restoration of Portuguese independence. He stresses how that was so true that it happened not only with one pope, but with three. As he says, only the defeat of the Turk by the king of Portugal would force the pope to recognize the Portuguese sovereignity and its independence from Spain. For that, Viei-ra uses the verse where Bandarra says, concerning the pope’s acknowledgement, that “The bishops would not be given by the pope, but the Turk will.”25

Another remarkable detail to be found in Vieira’s description is that the elected nation, the Hebrews, would be subjected “to the unbeaten “Quinas” of Portugal.”26 Thus, demonstrating the supremacy of the king of Portugal in relation to the remaining nations at the time of the end. Then, during that moment of peace, when the knowledge of Christ would be universal, there would be only one pastor, the pope, and one monarch, the king of Portugal, and the two were God’s instruments.27

When accused of predicting the resurrection of the king, Vieira makes an ironic commentary regar-ding how unthinkable it was that the king might be resurrected. He concludes by saying that this was

23 “a verdadeira prova do spírito profético nos homens é o sucesso das couzas profetizadas,” in ibid., p. 51.24 “Não tema o Turco, não, nesta sezão,” in ibid.25 “os bispos não no-los havia de dar o Papa, senão o Turco,” in ibid., p. 59.26 “às invictas Quinas de Portugal,” in ibid., p. 79.27 Ibid., p. 81.

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what Bandarra said, and since his prophecies had proved truthful until then, there was no reason to question the other prophecies regarding the future. Therefore, he writes, “In truth, after H.R.M. was dead and buried, his saying that he would still go to Jerusalem to conquer the Turk, appears excessive stubbor-nness, but that is the stubbornness of Bandarra.”28 Is Vieira hiding behind a popular prophet to confirm his own forecasts? Apparently, he is.

By describing what he calls a “tragicomedy,” Vieira appears certain that all of the events supposed to happen in the future are part of God’s divine plan, so that humanity would finally reach the desired kingdom of God. In this way, Vieira launches the fundamentals of his theory of the Fifth Empire, one that would be continuously refuted by the authorities and time, bringing him many problems in the days to follow. Not even all of the vicissitudes he has to undertake, however, will make him change his opinion or retract before the Inquisition regarding the content of this letter.

For many scholars, the book History of the Future represents a further elaboration of the theory first exposed in the letter Esperanças de Portugal. As M.L. Buescu states, the similarities in content as well in the title, are reason enough to support this theory. Even if we account for the fact that the structure of the work is clearly different: the first is a letter, while the second is a treatise, or a manifesto.29

Regarding the dating of this work, we shall assume that it was started – or at least conceived – before 1649, and that the theorization’s climax took place during the years that Vieira spent in Brazil, i.e., so-mewhere between 1653 and 1661. Nevertheless, 1664, the year he recorded in the manuscript and the one during which he answered before the Inquisition Court (the investigation took place between 1663 and 1667), appears to represent the beginning of a continuous process of writing of this book.

The História do futuro, esperanças de Portugal & quinto império do mundo (“History of the Future, Hopes of Portugal & Fifth World Empire”), envisions the description of the Fifth Empire during the consummation of the kingdom of Christ on earth. In accordance with Vieira, the prophets had already announced this consummation several centuries before, providing the reason why he exhorts his readers to read Daniel and Enoch. Vieira assumes that attempting to know the future is permissible to the human being, even if St Augustine said otherwise. At the same time, he wonders “if there were in the world a prophet of the past, why should there not be a historian of the future?”30 This is a curious question: is this Vieira who “prophesies” the future the same one who affirms being only a historian? Is this modesty, or diplomacy?

This so long-announced kingdom was finally ready to be established on earth, and Vieira’s mission was to announce it to his contemporaries while making them aware of the preponderant role that Portu-gal and the Portuguese were going to have. Because Portugal was the chosen nation, Vieira explains some

28 “Verdadeiramente, depois del-Rei estar morto e sepultado, dizer ainda que há-de ir a Jerusalém conquistar oTurco, parece demasiado teimar, mas essa é a teima do Bandarra,” in ibid., p. 84.29 Vieira, História Do futuro, p. 13.30 “se já no mundo houve um profeta do passado, porque não haverá um historiador do futuro?” in Vieira, História do futuro, p. 53.

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of the problems that they would have to overcome, similar to what the prophets of the Old Testament had done. As Vieira writes in chapter II, when speaking directly to the Portuguese: “Not all futures are to be wished, because there are many futures to be feared.”31

Furthermore, Vieira describes his particular mission as “The greatest service that a subject can do for his king is to reveal him the futures.”32 It is because of such sentences found in his book that we should agree with J.J. van den Besselaar’s opinion that this book was “more a prophetical interpretation, than a scientific thesis.”33 In it, we also find a clear statement concerning Vieira’s faith, although it appears influenced by a clear use of Church authorities supporting his interpretation. J.J. van den Besselaar resu-mes the História do futuro as “A warm profession of faith, and the faith, in the non secularized world in which Vieira lived, hold not just religious dimensions, but also social and political ones,”34 allowing us to understand the splendor, and at the same time the complexity of such work.

Like Daniel, Vieira offers his readers a universal overview of history, while underlining the importan-ce of the Jews – who were the chosen ones of the Old Testament – and the fundamental role to be played by Portugal, thus generating what we can call a “lusocentric” theory, as J.J. van den Besselaar defines it.35

By praising the future role of the Portuguese nation, Vieira creates an etymological confusion regar-ding the title of this document: he calls it Esperanças de Portugal (“Hopes of Portugal”), while saying that it contains the meaning of his História do futuro (“History of the Future”). Vieira is an artist of words and of the Portuguese language, and while he discusses how the “hopes” could be a “torment” because the forecast events would never happen, he underlines that even those events should not be taken for granted. This “torment” was therefore part of a broader process. Hence, it is easily explained how Vieira had in mind a difficult period that would anticipate the glory of the end, comparable to the tribulation described in the biblical books. For that reason, he commands the Portuguese to have hope on their glo-rious future. Therefore, he says, the reason why he wrote this book in Portuguese is so that they can read and understand that the future holds for them yet more glorious times than the Age of Discoveries. Thus, sacrifices and pain were necessary.

In this book, Vieira describes the four empires that anticipate the fifth. It is however, curious to note that he does not apply the imperial chronology used in the biblical books. Vieira makes clear references to the present and to the different world regions in a way that allows him to reaffirm the diversity of the existing empires: in Asia and China, the Tartars, Persians, and Mongols; in Africa, Ethiopia; in Europe, Germany and Spain; and in the three regions, the Turk, although the latter was not important enough

31 “Nem todos os futuros são para desejar, porque há muitos futuros para temer.” in ibid., p. 55.32 “O maior serviço que pode fazer um vassalo ao rei, é revelar-lhe os futuros.” in ibid.33 “mais uma visão profética do que uma tese científica” in Idem, História do futuro, p. 2.34 “calorosa profissão de fé, e a fé, no mundo ainda não secularizado em que Vieira vivia, tinha dimensões não só religiosas, mas também sociais e políticas” in ibid.35 Ibid., p. 17.

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to be mentioned by the prophets.36 Therefore, it is not strange that the Fifth Empire may take place and succeed to the four empires described by Daniel. While describing the succession of empires, Vieira takes his time to explain the reasons behind the length of the Roman Empire37 and how it had been transfor-med over the centuries, experiencing presently a moment of decadence and division into several smaller kingdoms, and how Portugal was one of those smaller kingdoms.

At this moment of his exegetical exposition, Vieira recalls Nebuchadnezzar’s dream statue and its feet of clay and iron. This mixture represents, according to him, a forecast on how the Roman Empire would later be divided into smaller pieces, and which history had proven to be right. Consequently, the cen-tral power of the empire was condemned since the beginning to vanish due to successive and sustained fragility. But Vieira says that “the lack of union of the metals of which the feet were made of, meant the kingdoms of the Spaniards, Polish, English, French and the remaining, which, although before subjec-ted to the Roman Emperors, had later refused being their subjects and disunited from them.”38 Of these kingdoms, Vieira detaches and highlights the Spanish and the Portuguese because of the Maritime Dis-coveries, fundamental for the enlargement of the world’s limits. He underlines particularly the bravery of the Portuguese, who had departed toward the unknown Far East.

Since he had already demonstrated how biblical prophets had forecast this future empire, Vieira can now explain how this is the empire of Christ and of the Christians, in opposition to that of the Jews and Muslims. Continuing to demonstrate the veracity of his words through the authority of the prophets, Vieira writes that “it is a correct and faithful conclusion that this Fifth Empire of which we speak, an-nounced and promised by the Prophets, is the Empire of Christ and of the Christians.”39 Hence, Vieira identifies the stone described in Nebuchadnezzar’s dream in Daniel 2, which starts the final process of destruction, with the figure of Christ. However, as if this demonstration of divine will is not enough to confirm his interpretation, he uses the texts of Daniel 7 and Zechariah 5 to further prove his interpreta-tion. From the first text mentioned, Vieira uses the image of the “Ancient of Days” as representing Christ. He applies a similar process when in the text of Zechariah he reads “Jesus, son of Jehozadak,” although some of our current versions of the text refer to Joshua and not to Jesus.40 For Vieira, all of these referen-ces represented foggy allusions to the fact that the kingdom of Christ was still to come. In addition, the image he uses from Daniel 7:18, where the kingship of the Holy Ones of the Most High was described, was for him another clear reference to a future yet to come.

Vieira’s opus magnum, the Clavis prophetarum or De regno Christi in terris consummato is a much more elaborated example of his eschatological belief. It is, however, of a different type, as he no longer

36 Vieira, História do futuro, p. 247.37 cf. part I, chapter 1 regarding the interpretation of the “four empires.”38 “a desunião dos metais dos pés da estátua significava os reinos dos Espanhóis, Polacos, Ingleses, Franceses e os demais, que, sendo antes sujeitos aos Imperadores romanos, lhes negaram a sujeição e se desuniram deles.” In ibid., p. 272.39 “É conclusão certa e de fé que este Quinto Império de que falamos, anunciado e prometido pelos Profetas, é o Império de Cristo e dos Cristãos.” In ibid., p. 277.40 cf. Zach. 6, 11.

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uses examples from Bandarra’s Trovas, but supports his entire argumentation on examples from the Bible or from the Church’s authorities.

António Vieira’s major biographer, J.L. de Azevedo, described the Clavis prophetarum as part of the last period of Vieira’s life, one during which Vieira is normally described as “beaten.” But, on the other hand, this same period represents his intellectual climax.41 Eventual questions aside, Azevedo reaffirms how Vieira contemplated the content of this work throughout his entire life. Therefore, one should con-sider it to represent the corollary of his intellectual life. This consequently obliges the reader to consider it as a product written in places such as the Brazilian jungle, the Inquisitional Court, Rome, Lisbon, and later once again in Brazil. On the other hand, such interpretation offers the reader a very large chronolo-gical span regarding the creation of this work.

Fr Casnedi who was requested by the Inquisition to examine the book, writes in his sententia that Vieira’s treatise consisted of three books, “as the Author says at the beginning of his work.”42 According to Casnedi, Book I was devoted to the nature and quality of the Kingdom of God consummated on earth; book II was dedicated to the earthly consummation; and book III was about the time when these events should take place and for how long they would last. Casnedi denies that any moral imperfection could be found in this book. Nevertheless, while describing the physical imperfection of the manuscript he mentions that it was not clear whether it had been caused by the author, who did not finish his work, as “has guaranteed by some people that lived the last months before his death and the first days after it;”43 or if it had been caused by the copying process.

The size and complexity of António Vieira’s last work are almost impossible to describe. Therefore, and for matters of practicality, we are limiting our current analysis to the last book, the one that has been published in a critical edition (Latin and Portuguese) in 2000 and therefore available.44

Vieira did not think it was problematic to attempt to define the time of a given event, even in the absence of information that would allow him to do it accurately. This was what he called “undetermi-ned” knowledge, in opposition to “determined” knowledge regarding future events and/or their dates. Moreover, he mentions that it was Christ who wanted humankind to search for the date of the end of the world to determine whether it was close to the present. Good examples of this can be found, once again, in Daniel and Revelation. Although his main purpose was to justify his affirmations, Vieira cites names of those such as Justin Martyr, Irenaeus, Jerome, Isidore of Seville, the Cardinal of Cuse, Pico della Mirandola, and Cornelius, who in the past followed interpretational paths similar to the one that Vieira was undertaking.45 Consequently, ancient Church authorities and their works became Vieira’s models

41 The biography of António Vieira as it was written by J.L. de Azevedo divides the life of the Jesuit into six main periods: the religious, the political, the missionary, the seer, the rebel, and the beaten.42 “como o declara o seu mesmo Author no principio da sua obra” in Azevedo, História de António Vieira, vol. II, p. 375.43 “certificão algumas pessoas que viverão nos últimos mezes antes da sua morte e nos primeiros dias depois” in ibid.44 {Vieira, 2000 #409}45 Each time Vieira uses authorities, we can question whether he does so only with the purpose of showing how others have

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for this particular book. Besides, by doing that, Vieira was protecting himself from further Inquisitional censorship.

Regarding the problem of whether it was legitimate to question the future, he says, there are warnings on how people should be aware of the signs of times so as to be ready at the right moment. In addition, he recalls the names of several commentators who had noticed that the world was aging, i.e., about to collapse. In addition, these signs, in which the decadence of both the world and the Church are reflected, can also be understood as signs of the presence of the antichrist, as Bernard of Clairvaux said. However, Vieira’s most important argument is expressed when he says that as close to the end as one can be, as precise his interpretation of biblical prophecy will be.46

The value of any knowledge regarding the future is arguable, surely. Whenever that same knowledge is necessary, however, humankind’s quest is automatically validated, even if it concerns divine secrets. Therefore, the path Vieira suggests to be pursued is contrary to the one normally followed, i.e., he sear-ches for a line of explanation based on an interpretation of the present toward the future, and not the common interpretation of the present based in the past. This interpretational shift was necessary, accor-ding to Vieira, to define with precision the time of the kingdom of Christ and of universal conversion to Christianity. Contrary to the apostles, who had been given, at least partially, the knowledge about the end of time when they received the Holy Spirit, those who followed them could legitimately question them-selves about this subject, given its importance.47 Consequently, Vieira builds a harmonized theory that allows him to justify the quest of the time of the final events without going against any sort of teaching or the orthodoxy of the Church, namely the principles set by Augustine.

Vieira discusses the universal preaching of the gospel and the period that would mediate between that event and the time of the consummation on earth of the kingdom of Christ.

Assuming that the apostles had been sent to preach the gospel to the entire world, Vieira asks with his customary acuteness of spirit about the extension, the need, the means, and which were the results of the Apostles’ evangelization.48 Vieira was getting ready to demonstrate how evangelization was intimately connected with the knowledge of the size of the world and with the resources available to preachers to reach such goals in those lost corners of the world. Based on this distinction, he demonstrates the key role of the Portuguese and the missionaries taken on board the discovery ships. This –the definition of the limits of the known world with which Vieira begins his exposition – was, in the words of the author, the only possible way to solve the problem concerning how incorrect ancient common knowledge re-garding the apostles’ universal preaching of the gospel was. In fact, this piece of information represented

already used the same arguments, or whether he really is attempting to protect himself from an eventual condemnation by the Inquisition.46 “et future quasi e vicino intueri vel clarius vel certe minus obscure possumus, sufraggante et facem praeferente tempore, hoc est, optimo prophetiarum interprete” in Vieira, Clavis prophetarum -- chave dos profetas, p. 66.47 See the Apostles’ example, ibid., pp. 84-88.48 “quanta id extensione? Dubium quali necessitate? Dubium quibus mediis? Dubium per quae instrumenta? Dubium quo de-mum effectu, et fructu operis?” In ibid., p. 94.

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such a mistake that several authors mentioned that faith had reached neither the barbarians on the bor-ders of the Roman Empire nor those at the center of the Empire during the first centuries. In the latter case, they mention that after Constantine’s search for his son’s atonement from death in all sects, reli-gions, and creeds, he was finally illuminated by Christian faith. Thus, he opened the doors of the Empire to Christianity. Only as the official religion of the Empire did Christianity reach many peoples, which in a certain measure proves how it was impossible to accept that universal evangelization was the work of the apostles in the 1st century.

Another point in Vieira’s arguments deals with the concept of sin, especially when connected with the knowledge of God. Contrary to what Jerome and Ambrose stated, Vieira claims it does not appear possible to admit that all human beings knew God. Therefore, it is impossible to accuse those peoples of any sort of idolatry. To stress the arguments used, Vieira warns his readers that it is better not to make any quick judgments. Consequently, the ignorance of those people who had not yet listened to the gospel excuses them from sin. This is why he writes that the barbarians who had not previously listened to the gospel were immune to all mortal guilt, as they were to all immortal penance.49 Vieira will use this to support his theory concerning the possibility of existence among the Bárbaros (“barbarians”) an invin-cible ignorance of God, contradicting what had been said before by Suárez and Granado. Vieira applies his own opinion regarding the rusticity of the intelligence of these peoples and of their corrupt customs. This was confirmed, for example, in works such as that of Jose Acosta, titled Procuranda Indorum salute, in which the author purported to prove that the Indians were of a sordid nature, destitute of innocence, and therefore lived in an environment of continuous corruption, where there was no space for reaso-ning. It would be the impossibility of getting to know God through their own means that confirmed his opinion.50 Thus, the emphasis had to be put on the lack of knowledge of God instead of on his denial. Vieira continues by saying that the savages of that corner of the world could not deny what they did not know. This becomes Vieira’s main argument concerning the nonexistence of natural sin among them. In addition, such affirmation can be used to distinguish between these peoples and those individuals who had chosen the path of heresy, since they had previous knowledge of God. The first, unlike the latter, had no judgment ability and therefore could not be convicted for that.

Vieira shows his awareness regarding the existing concept of the ages of the world – especially concer-ning the fact that the world of his time was living in its old age – to explain how the Fifth Empire was still to come. At the same time he says, “So the Empire promised by Daniel is not an Empire from the past, but one still to come.”51 Thus, he was not yet living it.

In view of the above statements, it is possible to consider that António Vieira was following Daniel’s scheme à la lettre. In fact, the narrative of Daniel introduced a scheme of 4 + 1 empires, according to

49 “Vnde concluditur, Barbaros illos in sylvis nutritos, qui Evangelium non audierunt aut ex alio fonte ab innata Dei ignorantia purgati non fuerunt, sicut immunes sunt ab omni culpa mortali, ita ab omni immortali poena, hoc est aeternum duratura, libe-ros esse, neque ulla alia ratione obnóxios,” in ibid., p. 326.50 “ignorantiam ipsam non videat ineptitudinem suam ad Dei cognitionem per se ascendendi aperte confitentem?” In ibid., pp. 352-54.51 “Assim que o Império que promete Daniel não é Império já passado, senão que ainda está por vir.” In ibid., p. 266.

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which the Fifth Empire would happen after the defeat of the last horn of the fourth beast. Vieira appa-rently does the same, although he introduces two existing distinctive moments of conversion. Hence, it is impossible to confirm that Vieira was thinking exclusively about Daniel’s narrative of the end of time when composing his theory. The need for conversion is directly implied with Christianity, not with Ju-daism, and Daniel was a product of the latter. Therefore, it is urgent to reconsider Vieira’s theorization in light of the scheme proposed by the editor of Revelation. This text is in fact a result of Christianity and is directly affected by the life of Christ on earth, the role of the apostles, and the hope for a second coming of Christ that would anticipate the beginning of the eschatological kingdom.

António Vieira, the famous Jesuit of the Amazon River, while writing these three works created a complete and thorough eschatological system in which he combined the content of the books of Daniel and Revelation with the later interpretation done by authors such as Augustine and Fiore. His goal was to explain how the Portuguese revolution of 1640 was just another step toward the establishment of the divine kingdom of God on earth. According to him, the despicable Iberian Union was a necessary tribu-lation. Likewise the Israelites, the Portuguese needed to endure and live through by faith. The Portuguese were God’s chosen nation, thus they had nothing to fear. Likewise, the Israelites during Antioch IV king-dom or Christians during the first century of our Era.

While identifying Portugal as the heir of the Roman Empire, he engages in thorough description of the nature of the kingdom to be established. According to the Jesuit, the pope and the Portuguese king, later the emperor after his conquest of Jerusalem that follows his defeat of the Ottomans, are the vicar’s of Christ on earth. It was their responsibility to lead Christianity toward the promised kingdom, and to make sure that world evangelization and conversion to Christianity would be undertaken. Vieira, a man of his time, although a faithful Jesuit, underlined in a clear and unmistakable fashion the role to be played by the Portuguese monarch. By doing it, once again the concept of political apocalypticism became alive. Further, this underlining of the importance of the role of the Last Emperor, is a clear challenge of the authority of Rome. Let us not forget that Rome took almost sixty years to recognize the new Portuguese independence and was far too dependent of the Spanish monarchs. Again, Vieira engaged in a political position while undertaking his biblical exegesis.

In this short description of the content of António Vieira’s eschatological systematization it is possible to obverse in part the complexity of his work. Vieira was a man of faith, a statesman, and above all, a man of his time. His work translates a close relationship between the orthodoxy of the Church and the needs and goals of the Portuguese Empire. Most importantly, his work demonstrates how the content of books like Daniel and Revelation were present in the life of seventeenth-century European minds, and how their content had also impacted in the enterprise of Portuguese overseas discoveries.

Returning to our initial question of how can we compare Daniel, Revelation, and the Portuguese Revolution of 1640, we shall say without hesitation that not only the belief in a better time to follow, on divine intervention and predestination, and especially, in a quick coming of the promised kingdom of God are common to the three narratives. Furthermore, the timeless character of Daniel and Revelation, especially regarding the succession of empires and the establishment of the divine kingdom of God, is

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used to explain why the Portuguese population was such a good replacement for the Israelites and Chris-tians of such texts. Like them, they were God’s chosen nation and they were enduring one of the harshest tribulations ever in the sense that they were being persecuted and their political independence questio-ned. But, once again, they would be delivered by God if they endured. Thus, not only the Portuguese independence would be recognized, as the Portuguese monarch was to play one of the most important roles of Christendom: lead it toward the establishment of the divine kingdom of God on earth. Therefore, as the Israelites described in Daniel or the Christians of Revelation, the Portuguese would be delivered from their pain, and be rewarded by God with the most distinguished role ever.

It is, however, necessary to make one last remark. Neither of the texts calls directly for action, i.e., for war. They all say how their listeners should endure the hardship sent to them by God. Furthermore, they all accentuate how the so-called “tribulation” was nothing else than part of God’s divine plan, describing thus the existence of a predestined history.

Vieira appears to have followed the footsteps of the authors of Daniel and Revelation as he forecasts that the kingdom of God is at hand and identifies the major characters. The main difference, would be that Vieira was not describing an ex eventu prophecy: he was writing at the same time that the events he described were taking place and his forecasts regarded the future. Notwithstanding, and although Vieira may be described in terms of a prophetic seer and his work as an example of eschatological prophecy, it is necessary to remember that he never at any point of his work, or life, assumed to be doing so. He was, in his own words, an interpreter of biblical texts and therefore, a historian of the future.

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CRÍTICA SOCIAL E IMAGINÁRIO NO “DIÁLOGO DOS MORTOS”,DE LUCIANO

Rafael de Campos [email protected]

Mestrando em Ciências da Religião. Universidade Metodista de São Paulo__________________________________________________________________________

Introdução à biografia de LucianoComo objetivo introdutório, apresentaremos um pequeno resumo sobre o autor da obra “Diálogo dos

Mortos1” (gr. Nekrikoi; diavlogoi), de Luciano, no intuito de conhecermos melhoro narrador desta que chamo “de o exemplo mais acabado do gênero literário conhecido por sátira menipéia”2. Um pouco de sua biografia e bibliografia pode ser lida na própria obra, na versão bilíngue grego/português, organizada e traduzida por Henrique G. Murachco.3

Não se sabe ao certo a data em que Luciano nasceu. Portanto, fixar uma data precisa não é possível. Tan-to Enylton de Sá Rego4 como Murachco, ambos baseados nos vastos escritos biográficos do autor, datam

1 LUCIANO, Diálogo dos mortos. Organização e tradução de Henrique G. Murachco. São Paulo: Palas Athena, 1996, p. 214.2 Cf. http://greciantiga.org/arquivo.asp?num=0602. Acessado em 29/10/2012.3 LUCIANO, Diálogo dos mortos, p. 9-40.4 REGO, Enylton José de Sá. O calundu e a panaceia: Machado de Assis, a sátira menipéia e a tradição luciânica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989, p. 234.

RESUMO

O presente artigo se propõe a apresentar um ensaio biográfico de Luciano de Samósata visando uma apresentação de uma de suas obras, Diálogo dos Mortos, e uma análise de leitura pessoal do Hades luciânico e dos mortos.

Palavras-chave: Luciano – Diálogo dos Mortos – Hades – Riso – Cínicos

ABSTRACTThis article intends to present a biographical essay of Lucian of Samosata aim-

ing a presentation of one of his works, Dialogue of the Dead, and an analysis of personal reading luciânico of Hades and the dead.

Keywords: Luciano – Dialogue of the Dead – Hades – Laughter - Cynics

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seu nascimento “na primeira metade do segundo século de nossa era”5, entre 115 d.C. e 140 d.C., divergindo de biógrafo para biógrafo. Da mesma forma como sua data de nascimento é incerta, assim é a sua morte, sendo datada depois de 180 d.C.

Luciano é muito conhecido como Luciano de Samósata, que indica o local de seu nascimento. Samósata ficava no “norte da Síria, à margem direita do Eufrates (hoje Samsât), capital do então reino de Comagena”6. Tudo indica que não faleceu em Samósata, mas sim em Athenas.

Pouco se sabe sobre sua vida cronológica, no entanto, “algumas informações, ainda que indiretas, o próprio Luciano nos dá em O Sonho, A dupla acusação, O Pescador e Apologia”7. Tais obras descrevem pequenos trechos que nos instruem sobre sua jornada. Tudo o que se sabe de Luciano, dados obtidos de tais obras, são meras probabilidades na tentativa de se chegar ao individuo Luciano. Há quem diga que, mediante análise de seus escritos, nem tudo o que ele escreveu sobre si mesmo pode ser levado tão a sério.

Por intermédio de tais probabilidades, podemos perguntar: Quem foi Luciano de Samósata? Assim, proporei uma pequena biografia.

De acordo com Rego, “Luciano era uma mestiço de origem humilde, originário de um país periférico ao sistema imperial da época”8. Nascido em uma família de artistas, de profissão artesanal e escultores, foi aprendiz de seu tio, quando menino, da arte de esculpir estátuas. Por causa de uma estátua quebrada e su-postamente uma briga entre tio e aprendiz, Luciano decidiu não prosseguir com a profissão familiar, inves-tindo em novos estudos. Foi então que, ao sair de casa apoiado por sua mãe, foi para o oeste da Ásia Menor, em cujas cidades ele adquiriu uma educação grega literária. Ele tornou-se particularmente familiarizado com as obras de Homero, Platão e os poetas cômicos.

É nesse primeiro momento que Luciano se dedica aos estudos de retórica, vindo a exercer a profissão de advogado. Ao se aborrecer dos ambientes e atividades da profissão, deixou a advocacia e se voltou apenas à retórica. Tendo como língua de criação o aramaico, não é por meio dela que se tornou conhecido. Foi a língua grega que ele usou em suas declamações e escritos, e da qual obteve familiarização na relação com as grandes obras clássicas de seu tempo.

Tal familiarização se dá, principalmente, por causa de suas viagens. Após passear pela Grécia, ele foi para a Itália e depois para a Gália (atual França). É desse período de sua vida que pertencem muitas de suas declamações em temas mitológicos que sobreviveram e outras ações e prólogos retóricos. Porém, foi em Atenas que Luciano, ao deixar a vida errante de retórico e lá fixar residência, se lançou em um profundo estudo do conhecimento da literatura grega, correntes filosóficas, como os cínicos, os estoicos e os céticos.

5 REGO, O calundu e a panaceia, p. 44.6 LUCIANO, Diálogo dos mortos, p. 9.7 LUCIANO, Diálogo dos mortos, p. 9.8 REGO, O calundu e a panaceia, p. 43.

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Mais tarde, Luciano tornou-se alto funcionário do Império Romano, apesar de suas origens étnicas; tal fato não era incomum no Império, durante o segundo século. Como alto funcionário, conhecido e aclamado como homem de letras, Luciano veio a falecer em idade avançada. Em geral, seus biógrafos concordam em situar a grande mudança ocorrida em sua vida intelectual ao se aproximarem seus quarenta anos [...] Abandonando a retórica e a oratória típicas dos sofistas de sua época, Luciano iniciou então uma fase de produção literária caracterizada por sua inovação, produzindo em sua maturidade a maior parte dos diálogos que o tornaram tão famoso.9

Nas bibliografias pesquisadas e na tinta do escrito de Koester, Luciano de Samósata “representa tanto o nível geral da educação superior como o crescente desencanto com os valores da herança grega clássica, tão exaltados no passado”10. Partindo de tal desencanto, suas obras descrevem o ponto de partida de suas manifestações literárias.

Obras

“Luciano marcou a história não por sua biografia, mas por sua obra”11. E muitas são suas obras, umas mais conhecidas outras nem tanto. Boa parte delas consideradas autógrafos, isso é, como manuscritos ori-ginais de sua autoria. Outras, pseudônimas.

Sua obra compreende as mais variadas formas literárias, compondo-se de cerca de oi-tenta títulos: diálogos, ensaios, narrativas, textos autobiográficos, críticas, epigramas, exercícios de retórica e encômios – entre os quais alguns pseudo-encômios. A sim-ples variedade dessa obra já explica a dificuldade encontrada através dos tempos em classificá-la em termos de gênero literário.12

Em meio à variedade dessa obra e a dificuldade de classifica-la, o diálogo se torna para Luciano o gênero de sua obra literária. “Porém, enquanto o diálogo em sua forma clássica fora o gênero adequado da reflexão filosófica, com Luciano ele passou a ser um meio para apresentar os absurdos da filosofia, da retórica, da religião e da moralidade”13. É assim que, no escrito Diálogo dos Mortos, em meio à comédia satírica e diá-logo filosófico – mas não como considerações filosóficas – Luciano cria uma ficção com tom espirituoso, cheio de graça, onde tais artifícios, sátira e paródia, tornam reais as críticas tão vivas aos valores vigentes da sociedade grega clássica.

9 REGO, O calundu e a panaceia, p. 45.10 KOESTER, Helmut. Introdução ao Novo Testamento 1. História, cultura e religião do período helenístico. São Paulo: Paulus, 2005, p. 364.11 REGO, O calundu e a panaceia, p. 43.12 REGO, O calundu e a panaceia, p. 43, 45.13 KOESTER, Introdução ao Novo Testamento 1, p. 365.

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A paródia pode ser entendida como:

...a recriação de um texto, geralmente célebre, conhecido, uma reescritura de caráter contestador, irônico, zombeteiro, crítico, satírico, humorístico, jocoso, constrói, assim, um percurso de desvio em relação ao texto parodiado, numa espécie de insubordina-ção critica, cômica.14

Luciano usufrui e se apodera dos escritos clássicos parodiando-os, principalmente escritos de Homero (Ilíada e Odisséia). Ao utilizar os personagens da mitologia e da história, parece validar a obra Diálogo dos Mortos, pelo menos como fonte de recepção, como uma ferramenta crítica á maneira de ser da época, cos-tumes e vida intelectual. É assim que, então, chegamos ao Hades luciânico.

O Hades luciânico e os mortos

É a partir da ideia de transposição da realidade para o panfleto que, em o Diálogo dos Mortos, é elabo-rado o inferno luciânico. O ambiente infernal e sua construção se dá a partir da união entre a comicidade e o diálogo filosófico, utilizando da memória dos feitos em vida dos mortos (interlocutores) para criar uma ficção crítica atual da realidade. Num crescente, todos os diálogos apresentam detalhes – maiores ou me-nores – do Hades da mitologia grega, formando assim o ambiente onde Luciano, o locutor oculto da obra, compõe os diálogos.

Outro modo de enxergarmos o Hades luciânico parte de uma leitura visando à obra como não análoga à sociedade da época, mas compreendendo a obra como a própria sociedade em movimento no escrito, porém de forma invertida. O mundo do além se torna a sociedade modelo para se viver.

Tendo em vista tais proposições, as personagens começam a ganhar vida no submundo luciânico. Em meio às metáforas e alegorias, os diálogos impactam e ao mesmo tempo provocam risos. O riso fica por conta do emprego da filosofia cínica, impregnada na obra, e por causa dos protagonistas: Menipo, Dióge-nes, Crates e outros filósofos do movimento cínico.

Para compreendermos melhor o sentido do riso nesse Hades luciânico, com seus personagens cínicos, podemos nos recorrer ao que Vladímir Propp propôs sobre o significado do riso cínico. Diferente do riso maldoso, ele afirma que “o riso cínico prende-se ao prazer pela desgraça alheia”15. Assim,

O limite entre as pequenas desgraças, que fazem rir quem as presencia, e as gran-des, que já não provocam o riso, não pode ser estabelecido sobre bases lógicas. Ele só é percebido pelo sentido moral. A desgraça dos outros, não importa se pequena ou grande, e a infelicidade alheia podem levar um ser humano árido, incapaz de entender

14 Cf. http://www.pucrs.br/gpt/parodia.php. Acessado em 29/10/2012.15 PROPP, Vladímir. Comicidade e riso. São Paulo: Ática, 1992, p. 160.

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o sofrimento dos outros, a um riso que tem as características do cinismo. Mesmo o simples riso que zomba não está desprovido de um matiz de maldade, mas não passa de matiz. Aqui trata-se de coisa bem diferente: ri-se dos doentes ou dos velhos que não conseguem levantar-se ou fazem-no com dificuldade; ri-se quando um cego vai bater contra um poste de luz, quando alguém se machuca, ou quando é vítima de uma grande sofrimento (a perda de um ser amado); ri-se pelo repentino aparecimento de uma dor física, e assim por diante.16

Seguindo a linha proposta por Propp sobre o riso, encontramos no Diálogo dos Mortos um Hades reple-to de riso cínico, cômico, escarnecedor que ridiculariza principalmente a memória dos mortos. Propp afir-ma que “todo o vasto campo da sátira baseia-se no riso de zombaria e é exatamente este tipo de riso o que mais se encontra na vida”17. No caso do Diálogo, esse riso se encontra na morte. Menipo deixa bem claro a verdade de que “o riso é uma arma de destruição: ele destrói a falsa autoridade e a falsa grandeza daqueles que são submetidos ao escárnio”18. O Hades luciânico se torna o local perfeito para zombar das lembranças que os mortos têm da vida. Eles, ao lembrarem, se tornam reféns de suas emoções, pois a mesma provoca o riso irônico de Menipo. “A ironia revela assim alegoricamente os defeitos daqueles (ou daquilo) de que se fala. Ela constitui um dos aspectos da zombaria e nisto está sua comicidade”19. Desse modo, “o riso não tem maior inimigo do que a emoção”20, como supõe Bergson.

Os personagens Diógenes, Crates e Menipo, ao mesmo tempo em que são protagonistas no Diálogo dos Mortos, são também personalidades reais da Antiguidade, adeptos do cinismo e discípulos de Antístenes, o suposto fundador da filosofia cínica como doutrina. Mas é com Diógenes que “o Cinismo encontrou uma espécie de refundação”21. Usando como base fundamental dos diálogos “as virtudes básicas da moral dos cínicos”22, “sabedoria, autodomínio, verdade, franqueza, liberdade”23, Luciano articula, de forma a amarrar tais virtudes, um Hades onde a cobiça, a luxuria, a licenciosidade e a intemperança são ridicularizadas e punidas.

Uma característica particular da obra é a inversão de valores. Parece-nos que Luciano aplica em cada diálogo o jogo da inversão, como por exemplo, o rico que em vida ajuntava muitas riquezas é contrastado satiricamente como àquele que precisa apenas de um óbolo (moeda grega de pouco valor, tipo de esmola) como ingresso de entrada no Hades; ou o belo e o forte que se aplicaram em manter a beleza em vida, no Hades não passam de cinzas e crânios.24

16 PROPP, Comicidade e riso, p. 160-161.17 PROPP, Comicidade e riso, p. 28.18 PROPP, Comicidade e riso, p. 46.19 PROPP, Comicidade e riso, p. 123.20 BERGSON, Henri. O riso. Lisboa: Guimarães Editores, 1993, p. 18.21 ANTISERI, Dario; GIOVANNI. Reale. História da filosofia: filosofia pagã antiga. São Paulo: Paulus, 2006, p. 253.22 LUCIANO, Diálogo dos mortos, p. 162.23 LUCIANO, Diálogo dos mortos, p. 161; Diálogo XXI.24 LUCIANO, Diálogo dos mortos, p. 53-56; Diálogos II e V.

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Podemos supor que diante de cada conversação entre os mortos, pautados e moderados por algum dos satíricos personagens, Luciano explana o perfil de uma sociedade em conflito. Querendo ou não apenas diver-tir com seus diálogos ficcionais, ele aborda em seu Hades de muitos dos conflitos existentes em seu contexto. Porém, sem proclamar um novo valor como ideal. Luciano parece sempre questionar nos diálogos, na roupa-gem dos cínicos, como se deve viver (?). Daí se dá sua proximidade com as proposições cínicas de felicidade.25

Parece-nos que é diante desta pergunta que Luciano formula as bases de seu ambiente infernal. Trans-pondo ou não para o papel a realidade de sua sociedade ou, tendo como objetivo “revelar através do diá-logo, uma verdade única, absoluta e pré-existente”26, descobrimos que a inversão se dá quando no mundo subterrâneo, todos se igualam perante sua condição e estado de morte. O estado de pós vida torna os mor-tos do diálogo reféns de suas memórias da vida. São dessas memórias que os personagens cínicos se munem para rirem, zombarem e, sarcasticamente exporem a todos os mortos a realidade de como deveriam ter vivido na terra e a nova realidade igualitária do Hades.

Uma breve apresentação do Hades mediante os diálogos27

À medida que os “diálogos” se desenvolvem, uma estrutura pode ser feita em torno de personagens, geografia, espaço/tempo, identidade, poder, causa e efeito. Com alguns extratos característicos, proporei um pequeno ensaio da minha leitura de algumas características, usando alguns diálogos apenas.

No diálogo I (Diógenes e Pólux) encontramos: “... assim que subires de novo à Terra...”. Nesse diálogo, Diógenes pede a Pólux para levar uma mensagem a Menipo de Gadara, o cão. A expressão “subires” ca-racteriza o Hades – inframundo – como tendo sua localização geográfica abaixo da Terra; também pode significar que a morte é uma condição inferior à vida por estar abaixo dela, em oposição ao lugar geográfico do Olimpo, que fica acima da Terra.

O diálogo II (Caronte, Menipo e Hermes), nos mostra “... paga a passagem... pela travessia”. Luciano, nos remetendo a mitologia, apresenta Caronte, uma divindade infernal que tem a função de barqueiro. É Caronte que, no Hades, está encarregado de fazer as almas atravessarem o rio Aqueronte. O Hades é cer-cado por esse rio, como uma ilha, onde o acesso só pode acontecer mediante travessia a barco. Esse rio é apresentado como uma “espécie de rio estagnado”, que só conhece o movimento de suas águas por causa do barco que carrega as almas dos mortos ao seu destino.

Já o diálogo III (Creso, Midas, Sardanápalo, Plutão e Menipo), nos apresenta algo inusitado: “... aguentar como vizinho... transferes para outro lugar ou nós mudaremos para outra casa”. Deparamo-nos aqui com

25 GOULET-CAZÉ, Marie-O.; BRANHAM, R. Bracht (orgs). Os cínicos: o movimento cínico na antiguidade e o seu legado. São Paulo: Edições Loyola, 2007, p. 41.26 REGO, O calundu e a panaceia, p. 50.27 Algumas informações foram tiradas do corpo de notas de rodapé do próprio livro Diálogo dos Mortos e estarão referenciadas por aspas.

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uma comunidade dos mortos, onde nos é descrito o Hades como um lugar de vizinhança, cada tal com sua casa ou seu lugar. Menipo está perturbando os outros mortos, que recorrem a Plutão. Para tentar apaziguar a situação de zombaria que Menipo anda causando, Plutão, em favor da boa vizinhança, diz a Menipo que “não devias (zombar e cantarolar)... eles estão sofrendo por terem sido privados de coisas não pequenas...”; e faz isso porque “eu não gostaria que houvesse discórdia entre vós”. No Hades luciânico, a discórdia é freada por Plutão, o próprio deus dono do Hades.

Diálogo IV (Menipo e Cérbero), “... dize-me pela Stix... parados na entrada do Hades... olhou para dentro do abismo e percebeu a escuridão... que iria sofrer o que é absolutamente necessário sofrer”. Outros aspectos do Hades é informado neste diálogo. Primeiramente, Menipo questionando Cérbero jura pela Stix ou “Es-tige, um rio do Hades, filho da noite e do Érebo (Trevas)... as águas do Stix serviam para os juramentos dos deuses, no qual o perjúrio trazia muitos dissabores”.

Cérbero (“famoso cão que guardava a entrada do Hades, onde ficava acorrentado, com três cabeças e uma cauda, que era uma serpente”) era o receptor dos mortos. No diálogo, Cérbero narra a entrada de Só-crates, o filósofo, no Hades e o descreve como um abismo de escuridão. Faz, pela primeira vez, referência ao lugar como um local de sofrimento, onde se sofre o que é “necessário sofrer”.

No diálogo V (Menipo e Hermes), temos: “Não tenho tempo... não tenho tempo de ficar filosofando con-tigo”. No inferno há afazeres a ponto de não se ter tempo. Menipo, que deseja ir à procura de mortos para zombar, propõe um passeio a Hermes (um dos guias do Hades e também àquele que conduz os mortos do portão para dentro do Hades), que logo o rechaça, resistindo leva-lo aos lugares que ele pede. O lugar que Hermes mostra a ele é o lugar onde os belos e as belas, as beldades antigas, ficavam (Jacinto, Narciso, Nireu, Aquiles, Tiró, Helena, Leda).

O diálogo VIII (Menipo e Quiron), diz: “... estar... nas trevas”. Quiron, “o mais justo e sábio dos centau-ros”, iguala o Hades e a Terra ao dizer que estar na luz ou nas trevas “não faz nenhuma diferença”. Em seu diálogo com Menipo, nos é fornecido que o Hades luciânico é um lugar de trevas. Porém, mesmo sendo um lugar de trevas, pode-se enxergar.

No diálogo XIII (Diógenes e Alexandre), “... De fato, não é permitido que nenhum dos que atravessaram o lago uma vez e chegaram dentro da boca do Hades façam caminho de volta”. Diógenes, ao rir de Alexandre por delirar ser como Osíris ou Anúbis, deuses do Egito, nos informa que uma vez dentro da “boca do Ha-des”, não se volta atrás. No Hades, um caminho apenas é conhecido, a via sacra dos mortos.

O diálogo XX (Caronte, Hermes, Menipo e Vários Mortos) faz menção à punição: “... vós ai dirigi-vos ao tribunal, descendo direto por essa reta... é preciso passar em julgado. E as sentenças, pelo que dizem, são pesa-das! São rodas (de fogo que giram continuamente), são abutres (que devoram o fígado, que se refaz segundo as fases da lua), são rochedos (empurrar um rochedo colina acima). A vida de cada um será passada a limpo”. O Hades é mostrado como tendo um lugar próprio para julgar os mortos, de onde as punições são dadas a cada morto conforme a avaliação feita de sua vida.

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Um pouco de como os mortos são descritosCorpo, memória, identidade são apresentados como parte que compõe os personagens desse diálogo

infernal. Os mortos são relatados por Luciano assim:

Menipo é identificado como: “velho, careca, tem um pequeno manto todo esburacado esvoaçando a qual-quer vento; e multicolorido, por causa da superposição dos remendos. Ele está sempre rindo e na maior parte do tempo zombando daqueles filósofos charlatões” (Diálogo I). É com esse corpo que Menipo transita entre o Hades e a Terra (corporeidade sem fronteiras). A experiência do riso em Menipo resulta de algo exterior, ou seja, daquilo que ele, agora morto, vê e ouve dos seus companheiros do submundo. Pólux também exibe uma corporeidade que transita as fronteiras do Hades, da Terra e do Olimpo, pois é ele quem leva a mensa-gem a Menipo, que no caso se encontra na Terra. Nesse trânsito entre o Hades e a Terra, mensagens podem ser enviadas, fazendo do Hades uma espécie de correio, com alguns indivíduos que atuam nesse serviço.28

Menipo é convidado para ir ao Hades no intuito de zombar, porque “tu vês os ricos, os sátrapas, os tira-nos, agora tão rebaixados e insignificantes, reconhecidos apenas pela lamentação; isto é, que são uns poltrões e ignóbeis, enquanto ficam recordando das coisas lá de cima” (Diálogo I). Os mortos vivenciam a experiência de lamentação, causada pela recordação. Os mortos recordam em morte da vida. Uma observação interes-sante que foi feita por Pedro Ipiranga Junior em um artigo que analisa “Dialogo dos Mortos” como um todo, e propõe ter nela dois gêneros de lembrança: um eufórico e outro disfórico:

Os que se sentem assim aprisionados à vida sofrem de memória, isto é, os seus víncu-los com o reino de cima, o espaço dos vivos, os fazem sofrer, e as lembranças, que lhe são correlatas, são sempre dolorosas (e aflitivas) e indicam, pela sensação de desvin-culação, o signo de uma falta, a perda de tudo aquilo que parece fornecer a identidade daqueles enquanto vivos. Lembrar é perder, é estar morto em relação ao que narra algo já passado, é desvincular-se do gênero de vida ao qual se está acostumado. Lamenta-mos e choramos pela inevitabilidade de sermos o outro ou porque já não somos mais os mesmos.29

A euforia é evidenciada pela personagem de Menipo que, sendo um cínico, reproduz claramente sua in-dependência, sua liberdade de falar, a despreocupação, a desvinculação do cotidiano, a alma nobre e o riso. Tais qualidades são o motivo dele estar no Hades e as mesmas não são tidas como um fardo à memória. Elas não externalizam o sofrimento pelo que foi perdido. Ao contrário dos cínicos, os outros mortos desempe-nham a função de uma eterna disforia, pois a lembrança os coloca em um estado de lamentação e punição.

A mensagem de Diógenes aos filósofos, aos ricos, aos belos e aos fortes, e aos pobres que vivem, descrevem questões de identidade desses grupos. Eles recebem do olhar cínico de Diógenes tais identida-des. Porém, ao chegarem ao Hades, reina a igualdade.

28 LUCIANO, Diálogo dos mortos, p. 49. Ver nota de rodapé 2 do Diálogo I.29 Cf. http://www.scriptaclassica.hpg.com.br. Acessado em 29/10/2012.

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Partindo para uma conclusão deste resumo e desta pequena tentativa de analisar e instigar a leitura da obra Diálogo dos Mortos, não poderia faltar uma pequena demonstração do diálogo que julguei ser mais interessante e mais engraçado, o de número XX.

Os personagens são muitos: Caronte, Hermes, Menipo, Charmoso de Megara, Lâmpicos, Damásio, Crá-ton, Militar, o Filósofo, o Orador. Cada um desses personagens se contrasta com sua própria bagagem, ou seja, com aquilo que estão vestidos. O enquadramento temporal do diálogo se dá no momento da morte, na chegada dos mortos ao Hades. Muitos estão chegando para travessia à barco no Aqueronte. O barco não pode levar todos. Penetrados pela pergunta: “o que faremos para atravessar?”, Caronte responde a eles: “vós deveis entrar no barco nus”.

A nudez, o que iguala todos no Hades e é a lei da morte, despiu cada um desses de sua identidade, da-quilo que são. Desde um objeto como uma sacola e uma bengala até atributos conquistados, atribuídos e elegidos aos mortos (que diz quem são), é obrigatório despir. O engraçado é que depois de se despirem, o barco os atravessa e, do outro lado, todos devem passar “... em julgado. E as sentenças, pelo que dizem, são pesadas! São rodas, são abutres, são rochedos. A vida de cada um será passada a limpo”.

Sendo assim, de modo irreverente, sarcástico, irônico, em meio a um Hades provido de risos e zombaria, a obra Diálogo dos Mortos, de Luciano, nos intriga assim como intrigou a muitos. Abarrotada de criticas, ela nos relata informações importantes por meio da reflexão própria e cética de seu autor, de modo a contribuir com dados históricos e culturais da sociedade grego clássica, informações valiosas sobre a religião de seu tempo: antigos cultos, crenças no Hades e julgamento dos mortos, o lugar de castigo para os praticantes do mal e a recompensa das boas ações.

Referências bibliográficas

ANTISERI, Dario; GIOVANNI. Reale. História da filosofia: filosofia pagã antiga. São Paulo: Paulus, 2006.

BERGSON, Henri. O riso. Lisboa: Guimarães Editores, 1993.

GOULET-CAZÉ, Marie-O.; BRANHAM, R. Bracht (orgs). Os cínicos: o movimento cínico na antiguidade e o seu legado. São Paulo: Edições Loyola, 2007.

KOESTER, Helmut. Introdução ao Novo Testamento 1. História, cultura e religião do período helenístico. São Paulo: Paulus, 2005.

LUCIANO, Diálogo dos mortos. Organização e tradução de Henrique G. Murachco. São Paulo: Palas Athe-na, 1996.

PROPP, Vladímir. Comicidade e riso. São Paulo: Ática, 1992.

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REGO, Enylton José de Sá. O calundu e a panaceia: Machado de Assis, a sátira menipéia e a tradição luciâ-nica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989.

Outras referências

http://greciantiga.org/arquivo.asp?num=0602. Acessado em 29/10/2012.

http://www.pucrs.br/gpt/parodia.php. Acessado em 29/10/2012.

http://www.scriptaclassica.hpg.com.br. Acessado em 29/10/2012.

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O MODUS VIVENDI HELÊNICO E A REVOLTA DOS MACABEUSNO SÉC.II aEC

Thiago Borges de [email protected]

Graduando em Licenciatura Plena em História. Universidade Estadual de Feira de Santana__________________________________________________________________________

Introdução1

O pensamento e algumas práticas culturais da Grécia clássica, ainda hoje, são reproduzidos de diver-sas maneiras na sociedade pós-moderna. Segundo Jaeger, “por mais elevadas que julguemos as realiza-ções artísticas, religiosas e políticas dos povos anteriores, a história daquilo que podemos chamar com

1 Artigo apresentado no seminário “O helenismo no Médio Crescente e o pensamento ocidental, na Universidade Estadual de Feira de Santana, sob orientação do professor Dr. Ágabo Borges de Sousa.

RESUMO

Ao longo da história da humanidade, as várias sociedades que se formaram e se consolidaram como povos, partilhando laços consanguíneos e culturais, desen-volveram modos de vida com especificidades próprias. No entanto algumas culturas influenciaram e, até mesmo, impuseram seus preceitos a outros povos, de modo implícito e/ou explícito. Neste sentido esta apresentação se propõe a uma análise histórico-social dos gregos no período helenístico e como a imposição cultural ex-plícita ocasionou a revolta dos macabeus, uma ruptura em seu elemento dinâmico.

Palavras-chave: Gregos – Macabeus – Judeus – Helenismo – Revolta

ABSTRACTAlong the humanity’s history the several societies that were formed and they

consolidated as people sharing consanguineous and cultural bows, they developed life manners with own specific. However some cultures influenced and even they imposed your precepts the other people, in way implicit explicit end. In this sense this presentation intends to a historical-social analysis of the Greeks in the Hel-lenistic period and as the explicit cultural imposition it caused the revolt of the Maccabees, a rupture in your dynamic element.

Keywords: Greeks – Maccabees – Jews – Hellenistic – Revolt

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plena consciência de cultura só começa com os gregos.”2

Nessa perspectiva, este trabalho pretende expor o modus vivendi helênico, entendido como práti-cas culturais universalizantes, as quais eram características da identidade dos povos que compunham a Grécia. Então, a partir de uma análise histórico-social procuro evidenciar a revolta do povo judeu no II séc. aEC à imposição cultural exercida pelo reino selêucida, um dos herdeiros do império alexandrino, narrada nos livros deuterocanônicos de 1Macabeus e 2Macabeus.

Para uma melhor compreensão do modo de vida grego helenizante, faz-se necessária uma breve aná-lise das praticas culturais especificas, as quais se tornaram universais para uma pequena parte do mundo oriental e todo o mundo ocidental antigo.

A religião grega será o primeiro aspecto a ser abordado, pois daí se sucede boa parte dos hábitos peculiares dos helenos. Estes eram politeístas e estavam fortemente ligados a tradições orais, embora se tenha uma grande produção literária da mitologia por eles criada, a qual despertou grande interesse nas ciências humanas dos séculos XIX e XX, pela sua multifacetada aplicação literária.3 Essa literatura não tinha como objetivo sistematizar uma religião grega, mas educar e entreter a população, como é o caso da poesia homérica e das comédias e tragédias apresentadas nos grandes festivais religiosos. Neste sentido Mario Vegeti aponta alguns aspectos da religião grega:

Em primeiro lugar, essa religião não se baseia em nenhuma revelação “positiva” dada diretamente pela divindade aos homens; por conseguinte não tem profeta fundador, ao contrário das grandes religiões monoteístas do mediterrâneo, e não possui nenhum livro sagrado que enucie as verdades reveladas e constitua um princípio de um sistema teológico.4

A experiência religiosa dos gregos sempre esteve muito próxima à vida cotidiana; essa presença era tão forte que Mario Vegeti argumenta que:

[...] é tão frequente encontrá-la, em imagens, em praticas culturais especificas, na nar-ração familiar e pública onde se esboçam as tramas densas de uma simbolização sig-nificativa da existência, que parece não ser de perguntar como seria possível que eles não acreditassem, visto que implicaria a negação de uma grande parte da experiência quotidiana de vida.5

Neste sentido, encontramos um paradoxo no qual podemos considerar que a filosofia, outra caracte-rística essencialmente desenvolvida pelos gregos de forma universalizante, negava o pensamento mítico.

2 JAEGER, Werner (Wilhelm). Paideia: a formação do homem grego. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 5.3 PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Estudos de historia da cultura clássica. 6. ed. 2v. Lisboa: C. Gulbenkian, 1987, p. 281.4 VEGETI, Mario. O homem e os deuses. In: BORGEAUD, F. O homem grego. Lisboa: Presença, 1993, p. 232.5 VEGETI, O homem e os deuses, p. 231.

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A negação das explicações mitológicas, talvez por provocarem mais questionamentos que respostas, junto com a sistematização da escrita no séc. VII aEC deliberam um processo de construção do pensa-mento filosófico, o qual se consolidou, aproximadamente, no séc. VI aEC.6

Entretanto é necessário entender que o surgimento da racionalidade filosófica não acabou com o pensamento mítico, e caminharam juntos durante um bom tempo, pois, segundo Mario Vegeti, uma das “explicações instrumentais do mito reside na alegórica, que também se orgulha de uma longa tradição, desde sábios pré-socráticos até os filósofos estoicos e neoplatônicos”7, os quais percebiam no mito ver-dades filosóficas ocultas. O autor citado acima também aponta outra corrente de pensamento a qual se esforçava para imbuir nos homens o absurdo que era temer os castigos divinos. Ainda vale destacar que o número de intelectuais gregos e as pessoas que detinham contato com as reflexões filosóficas era uma pequena parcela da população.8 A polis não se manteve neutra, os seus dirigentes habilmente souberam balancear os embates entre o pensamento mítico e a reflexão filosófica.

Outra grande façanha dos gregos foi a estruturação e a urbanização das cidades-estado (polis), com uma esplêndida organização institucional, sempre era devotadas à adoração de uma divindade protetora. De maneira geral, segundo Pereira, as cidades-estado estavam organizadas da seguinte forma:

Uma certa extensão territorial, nunca muito grande, continha uma cidade, onde havia o lar como fogo sagrado, os templos, as repartições dos magistrados principais, a ágora, onde se efetuavam as transações; e, habilmente, a cidadela na acrópole. A cidade vivia do seu território e a sua economia era essencialmente agrária. Competiam-lhe três espécies de atividade: Legislativa, Judiciaria e administrativa. Não menores eram os deveres para com os deuses pois a polis assentava em bases religiosas, e as cerimónias do culto eram ao mesmo tempo obrigações cívicas desempenhadas pelos magistrados.9

Como o já exposto, o caráter religioso está presente em tudo, até mesmo devotaram à cidade-estado, que é a expressão maior da cultura grega no período clássico à deusa Atena. Esta polis está repleta do brilhantismo artístico do homem grego, basta olhar para o que restou do pártenon (templo em honra de Atena) para verificarmos tal brilhantismo. Os helenos se expressaram artisticamente nas suas mais variadas formas desde gênios moldadores de mármore e bronze, até os pintores dos vasos cerâmicos com figuras retratando a vida cotidiana. Contudo o teatro, com seus gêneros literários; a tragédia, a comédia e o drama, fez dos grandes e pequenos festivais religiosos um espetáculo à parte.

O teatro grego, segundo Pedro Paulo Funari, “desenvolveu-se a partir de canções e danças usadas nas festas em honra ao deus Dioniso”10. Tais festas religiosas eram frequentes e as várias cidades gregas cons-

6 PEREIRA, Estudos de historia da cultura clássica, p. 252.7 VEGETI, O homem e os deuses, p. 250.8 VEGETI, O homem e os deuses, p. 251.9 PEREIRA, Estudos de historia da cultura clássica, p. 177.10 FUNARI, Pedro Paulo A. Grécia e Roma. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2002 (Repensando a História), p. 72.

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truíram teatros, acusticamente desenvolvidos ao ar livre, para verem os inventores dos gêneros trágicos e cômicos representarem seus escritos em honra das divindades e para apreciação dos espectadores.

Havia, também, o festival devotado a Zeus, o deus do Olimpo. Este festival, conhecido como pan--helênicos, era dividido em duas partes: Oferenda e competições. Pedro Paulo Funari descreve resumi-damente como as competições eram realizadas:

No início, a disputa era uma simples corrida em um estádio, mas, a partir de 724 a.C., foi acrescentada uma corrida de ida e volta e em 708 a.C., foi introduzido o pentatlo, com cinco modalidades: salto, corrida, arremesso de disco e lançamento de dardo. Em 680 a.C. começaram as corridas de carros. Com o tempo outras modalidades, como diversos tipos de corrida, foram sendo incluídas. [...] Ao final da competição, todos os vencedores, com suas coroas de louros, ofereciam sacrifícios a Zeus, ao que se seguia um banquete, ao som de um canto especialmente composto para a ocasião por algum poeta renomado e interpretado por um coro.11

A realização dos jogos pan-helênicos revela uma prática cultural que incidia na valorização da boa forma corporal, e todas as polis queriam mostrar nos jogos seus cidadãos guerreiros e sua superioridade em relação às outras. Então, era necessário que cada cidade disponibilizasse um espaço específico para o treinamento e pequenas exibições atléticas; assim eles criaram o ginásio.

A religião grega, a linguagem e a escrita, a filosofia, as cidades-estado, os festivais religiosos, com o seu teatro e os jogos pan-helênicos, foram práticas culturais universalizantes desenvolvidas pelos gregos antigos. Os macedônios perceberam a supremacia cultural grega e, através de Alexandre “O Grande”, herdeiro do reino macedônico, o qual tinha o desejo de criar uma monarquia universal sob a sua égide, adotou, em grande medida o modus vivendi helênico, que passou a ser usado pelos seus sucessores como estratégia de dominação.

De Felipe II à divisão do Império Alexandrino pelos diadocos

O pai de Alexandre, o Grande, Felipe II da Macedônia, foi, de certa forma, o precursor do uso do fazer helênico ao adotar a língua grega, após dominá-los, devido ao enfraquecimento das Polis causado pela guerra do Peloponeso. Tal monarca, reconhecendo sobremaneira a racionalidade filosófica dos gregos, educou o herdeiro do seu império ao modo grego. Uma das figuras mais eminentes da filosofia grega da era clássica, Aristóteles, foi professor de Alexandre. É interessante notar que para Aristóteles, o não grego, o “bárbaro”, era, por natureza um escravo.12 No ano de 336 aEC o rei Felipe II é assassinado, e Ale-xandre torna-se rei da Macedônia. Então, com um poderoso exército e com uma mente estrategicamente filosófica, parte para a conquista do mundo e da glória. Entre 336 e 323 aEC, esse dominador conquistou

11 FUNARI, Grécia e Roma, p. 60.12 FERGUSON, John. A herança do helenismo. Lisboa: Verbo, 1973, p. 35.

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uma vasta área que se estendia do mar Mediterrâneo oriental à Ásia central.13

Por onde passava a comitiva alexandrina, fundavam, estrategicamente, cidades e reformavam outras, nos parâmetros helênicos, as quais eram batizadas e rebatizadas com o nome de Alexandria. A maior e mais importante dessas cidades foi a Alexandria do Egito. Nessas cidades, Alexandre, O Grande promo-via casamentos interétnicos, inclusive ele próprio casou-se com uma princesa Bactriana em uma ceri-mônia bactriniana tradicional,14 dispensou macedônios do seu exército e adicionou soldados persas nos lugares dos dispensados, difundindo e infundindo sobremaneira a cultura grega aos povos sob sua égide.

O período histórico que vai das conquistas de Alexandre até a conquista de Roma é denominado, histori-camente de helenístico, termo esse sobre o qual Pedro Paulo Funari faz algumas considerações importantes:

Alguns nomes usados no estudo da história são criados para simplificar, mas podem confundir: Este é o caso do “helenismo”. Os gregos chamavam-se de “Helenos” e os estudiosos modernos utilizaram o termo “Helenístico” para referir-se à civilização que utilizava do Grego como língua oficial, a partir das conquistas de Alexandre, o Grande (336 a.C.), até o domínio romano da Grécia, em 146 a.C.15

Depois da morte de Alexandre, em 323 aEC, há a partilha do império entre os seus generais. É defla-grada a guerra dos Diadocos (321-301 aEC), e o império alexandrino dividiu-se em três reinos, centra-dos na Macedônia, no Egito e na Mesopotâmia.16 Neste sentido, Rainer Kessler considera que:

No ocidente se estabeleceriam dois reinos, que determinam fortemente a história pos-terior do judaísmo. No Egito, na cidade construída pelo próprio Alexandre, isto é Ale-xandria, os Ptolomeus chegam ao poder, passando a exercitar o domínio ao longo de todo o século III a. C. na Síria e na mesopotâmia surge o reino dos Selêucidas com sua nova capital, Antioquia. No século II, os selêucidas sucedem os ptolomeus no domínio sobre a parte sul do levante.17

Algumas considerações sobre a cultura judaica

Na abordagem histórico-social da história do antigo Israel, é necessário considerarem-se os fatores históricos e geográficos determinantes, ou seja, compreender a moldura na qual o elemento dinâmico

13 FUNARI, Grécia e Roma, p. 75.14 WEPMAN, Dennis. Alexandre, o Grande. São Paulo: Nova Cultural, 1988, p. 70.15 FUNARI, Grécia e Roma, p. 75.16 BURNS, Edward McNall. Historia da civilização ocidental: do homem das cavernas ate a bomba atômica, o drama da raça humana. 2. ed. revisada e atualizada. Porto Alegre: Globo, 1970, p. 243. 17 KESSLER, Rainer. História social do antigo Israel. Tradução Haroldo Reimer. São Paulo: Paulinas, 2009 (Coleção Cultura Bíblica), p. 215.

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está inserido.18 O contexto histórico foi brevemente exposto, o geográfico será abordado em análises futuras. Porém, antes de começar a narrativa sobre a revolta, é necessário considerarem-se algumas prá-ticas culturais específicas do povo Judeu, as quais tinham um caráter individualizante e parcialmente fechado a interações com outras culturas. Contrapondo essa parcialidade, Reale observa:

Vários estudiosos observaram que a civilização espiritual grega era uma civilização da ‘visão’ e, portanto, da ‘forma’ que é objeto de visão; e como, sob diversos aspectos tal civilização seja antitética, por exemplo, à civilização hebraica, cujo traço predomi-nante foi o ‘auscultar’ e o ‘ouvir’ (auscultar a ‘voz’ e a ‘palavra de Deus e dos profetas) [negrito nosso].19

A civilização hebraica não foi predominantemente antitética ao helenismo, ela se opôs parcialmente como verificaremos mais adiante. Agora, convém destacar que ao longo da historia do povo judeu, o qual segundo Rainer Kessler, é importante ter-se consciência de que se trata de um povo misto.20 Entende-se como “povo misto”, aquele que se constituiu a partir de interações étnicas e culturais múltiplas. Podemos verificar também, através da literatura bíblica veterotestamentária, que o povo Judeu, que se compreen-dia como o povo escolhido por Deus, nem sempre foi totalmente fiel ao monoteísmo que a lei exigia; tais fatos são visíveis em vários livros veterotestamentários, como o de Juízes:21

Os israelitas fizeram o que é mau aos olhos de Iahweh. Esqueceram Iahweh seu Deus para servir aos baais e às aserás (Jz 3. 7).

É muito difícil mensurar, em dados quantificáveis, quantos judeus seguiam a lei à risca. Contudo parcelas da população desenvolveram e foram fiéis às peculiaridades da cultura judaica. Neste sentido, vejamos três práticas culturais, as quais são características da identidade judaica no mundo antigo.

No capitulo 17 do livro de Gênesis, encontra-se a narrativa ritualística sobre a circuncisão:

E eis a minha aliança, que será observada entre mim e vós, isto é, tua raça depois de ti: todos os vossos machos sejam circuncidados. Fareis circuncidar a carne de vosso prepúcio, e este será o sinal da aliança entre mim e vós (Gn 17. 10-11).

A respeito da circuncisão, Morris Kertzer considera que:

A circuncisão da criança do sexo masculino uma semana após seu nascimento, é o

18 KESSLER, História social do antigo Israel, p. 25.19 REALE, Giovanni. História da filosofia antiga. Vol. II. São Paulo: Loyola, 1994, p. 62 apud SOUSA, Ágabo Borges de. O diálogo das escolas filosóficas do II século e as influências dos movimentos helenizantes no Médio crescente, a partir da literatura apocalíp-tica veterotestamentária. Projeto de Pesquisa. CNPq. UEFS, DCHF. CONSEP 192/2011, p. 2.20 KESSLER, História social do antigo Israel, p. 27.21 Para as referências bíblicas foi utilizada a Bíblia de Jerusalém. 7ª impressão. São Paulo: Paulus, 2011.

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mais antigo rito da religião judaica. Era praticado pelos patriarcas desde antes da exis-tência das leis de Moisés e se acha tão indelevelmente gravado na tradição que nenhu-ma transferência é permitida, nem por causa do sábado nem pelo Dia da Expiação. A cerimônia só pode ser postergada quando a saúde da criança não a permite. O Judaís-mo, porém, considera o rito da circuncisão um símbolo exterior que liga o menino à sua fé. Não é um sacramento que o introduz no Judaísmo; essa introdução é operada pelo nascimento. A circuncisão confirma a condição da criança e representa um em-blema de lealdade à fé israelita.22

No capitulo 11 do livro veterotestamentário de Levítico, o Deus Iahweh estabelece regras alimentares bem especificas, segundo as quais o povo só podia comer o que era considerado puro para Deus.

Para tentar compreender melhor as motivações da revolta dos macabeus, é necessário entender qual era a função do Santuário e sua importância para os Judeus. No livro de Êxodo, o Deus Iahweh ordena: “Faz-me um santuário, para que eu possa habitar no meio deles” (Êx 25. 8), onde eram feitos sacrifícios para a expiação dos pecados. Em livros subsequentes, orienta-se como deveria ser a organização do santuário, como os utensílios sagrados deveriam ser feitos, o local onde colocá-los, bem como os rituais expiatórios e como os sacerdotes deveriam lidar com os protocolos de entrada nas divisões do templo. Este possuía duas divisões: o lugar santo, onde o sacerdote realizava o trabalho diário e o lugar santíssi-mo, onde o sumo sacerdote entrava uma vez por ano (Hb 9. 1-7; Êx 40. 22-38). Era um grande sacrilégio não obedecer aos procedimentos estabelecidos por Deus.

A Revolta dos Macabeus

O primeiro livro dos Macabeus, segundo a introdução do mesmo na Bíblia, versão de Jerusalém, descreve que ele foi escrito por um judeu palestinense, que começou a obra, aproximadamente, em 134 aEC, terminando-a pouco depois da morte de João Hircano em 100 aEC. O livro foi escrito em hebraico, mas só foi conservado numa tradução grega. A narrativa imita as antigas crônicas de Israel e abrange um período de quarenta anos.23

O livro dois dos Macabeus segundo a mesma introdução Bíblica, relata que o segundo não é a con-tinuação do primeiro, mas, paralelo a ele, não representando mais do que quinze anos “e corresponde somente ao conteúdo dos caps. 1-7 do primeiro livro”.24 Sobre o gênero e o estilo do segundo livro dos Macabeus, a introdução bíblica do livro aponta:

O gênero literário é muito diferente. O livro, escrito originariamente em grego, apre-

22 KERTZER, Morris. Por quê praticam os judeus a circuncisão? Coleção Judaísmo. Disponível em http://colecao.judaismo.tryte.com.br/livro1/l1cap21.php. Acesso em 21/10/2012.23 BÍBLIA de Jerusalém, p. 716.24 BÍBLIA de Jerusalém, p. 717.

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senta-se como compêndio da obra de certo Jasão de Cirene (2, 19-32) e se inicia com duas cartas dos judeus de Jerusalém (1,1-2,18). O estilo, que é dos escritores helenísti-cos, mas não dos melhores é às vezes empolado. É menos o estilo de historiador que de pregador, embora o conhecimento das instituições gregas e das personagens da época que nosso autor demostra seja muito superior ao que aparenta o autor de 1Mc.25

A guerra dos diádocos, que durou cerca de vinte anos, consolidou na Síria a dinastia dos Selêucidas e, no Egito, a dinastia Ptolomaica. Aproximadamente em 170 aEC, Antíoco IV Epífanes é legitimado como rei selêucida, e seu reinado é marcado por instabilidades, tanto no Médio Crescente, quanto na Pérsia e no Egito ptolomaico. Então, como forma de consolidar seu poder, toma medidas helenizantes, conceden-do o status de polis a várias cidades, promove a adoração de Zeus e reivindicando, para si, prerrogativas divinas.26

O irmão do até então sumo sacerdote Onias III, Jasão, oferece, ao rei, alta soma em dinheiro e um rápido programa de helenização dos judeus em troca do cargo de Sumo sacerdote e ele aceita.27 Em 2Mc, essa situação é relatada do seguinte modo:

Entrementes, tendo passado Selêuco à outra vida e assumindo o reino Antíoco, cog-nominado Epífanes, Jasão, irmão de Onias, começou a manobrar para obter o cargo de sumo sacerdote. Durante uma audiência, ele prometeu ao rei trezentos e sessenta talentos de prata e ainda, a serem deduzidos de uma renda não discriminada, mais oi-tenta talentos. Além disso, empenhava-se em subscrever-lhe outros cento e cinqüenta talentos, se lhe fosse dada a permissão, pela autoridade real, de construir uma praça de esportes e uma efebia, bem como de fazer o levantamento dos antioquenos de Jeru-salém. Obtido, assim, o consentimento do rei, ele, tão logo assumiu o poder, começou a fazer passar os seus irmãos de raça para o estilo de vida dos gregos (2Mc 4. 7-10).

Enquanto que, em 1Mc, narra-se esse episódio de outra maneira, que convém ser transcrita:

Por esses dias apareceu em Israel uma geração de perversos que seduziram a muitos com estas palavras: ‘Vamos, façamos aliança com as nações circunvizinhas, pois mui-tos males caíram sobre nós desde que delas nos separamos’. Agradou-lhes tal modo de falar. E alguns de entre o povo apressaram-se em ir ter com o rei, o qual lhes deu autorização para observarem os preceitos dos gentios (1Mc 1. 11-13).

Como primeiro resultado dessa aliança, foi construído um ginásio grego em Jerusalém, para a

25 BÍBLIA de Jerusalém, p. 717.26 SILVA. Airton José da. Antíoco IV e a proibição do judaísmo. História de Israel. Disponível em http://www.airtonjo.com/historia36.htm#_ftnref35. Acesso em 21/10/2012. 27 CHEVITARESE. André L. Fronteiras culturais no Mediterrâneo antigo: gregos e judeus nos períodos arcaico, clássico e he-lenístico. Politeia: História e Sociedade 4.1 (2004): 77-78. Disponível em: http://periodicos.uesb.br.

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insatisfação de alguns judeus (2Mc 4. 12-14).

Em fins de 172 aEC e início de 171 aEC, Menelau, apoiado pela família dos Tobíadas, consegue o car-go de Sumo Sacerdote, e Jasão foge para a Transjordânia. Na sexta Guerra Síria (170-168 aEC), Antíoco IV Epífanes toma Jerusalém, profana e saqueia os objetos sagrados do santuário. 1Mc 1. 21-24 narra esse saque ao Templo:

Entrando com arrogância no Santuário, apoderou-se do altar de ouro, do candelabro com todos os seus acessórios, da mesa da proposição, das vasilhas para as libações, das taças, dos incensórios de ouro, do véu, das coroas, da decoração de ouro sobre a fa-chada do Templo: tudo ele despojou. Tomou, além disso, a prata, o ouro, os utensílios preciosos e os tesouros secretos que conseguiu descobrir (1Mc 1. 21-23).

Antíoco IV envia a Jerusalém Apolônio, o misarca, com a missão de construir uma fortaleza militar, conhecida em grego, como Acra. 2Mc assim fala da intervenção de Apolônio:

Nutrindo para com os súditos judeus uma disposição de ânimo profundamente hostil, o rei enviou o misarca Apolônio à frente de um exército de vinte e dois mil homens, com a ordem de trucidar todos os que estavam na força da idade e de vender as mu-lheres e os mais jovens (2Mc 5. 23b-24).

Em 1Mc, é descrita a construção da fortaleza militar (Acra), em Jerusalém:

Então reconstruíram a cidade de Davi, dotando-a de grande e sólida muralha e torres fortificadas, e dela fizeram a sua Cidadela. Povoaram-na de gente ímpia, homens per-versos, e nela se fortificaram. Abasteceram-na de armas e víveres e nela depositaram os despojos tomados em Jerusalém, tornando-se eles assim uma armadilha enorme (1Mc 1. 33-35).

Nesse sentido, é importante ressaltar que, se a revolta tinha como objetivo conter a helenização, neste momento já teriam motivos razoáveis para uma reação, pois o ginásio e a Acra foram construídos, e o templo fora profanado.

No ano de 168 aEC é decretada a proibição da religião judaica e ordenada a introdução de ações cul-tuais não Judaicas, como podemos observar na citação um pouco longa, mas de crucial importância para entendermos as motivações da revolta.

O rei prescreveu, em seguida, a todo o seu reino, que todos formassem um só povo, renunciando cada qual a seus costumes particulares. E todos os pagãos conformaram--se ao decreto do rei. Também muitos de Israel [Médio Crescente] comprazeram-se no culto dele, sacrificando aos ídolos e profanando o sábado. Além disso, o rei enviou, por emissários, a Jerusalém e às cidades de Judá, ordens escritas para que todos adotassem

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os costumes estranhos a seu país e impedissem os holocaustos, o sacrifício e as libações no Santuário, profanassem sábados e festas, contaminassem o Santuário e tudo o que é santo, construíssem altares, recintos e oratórios para os ídolos e imolassem porcos e animais impuros. Que deixassem, também, incircuncisos seus filhos e se tornassem abomináveis por toda sorte de impurezas e profanações, de tal modo olvidassem a Lei e subvertessem todas as observâncias. Quanto a quem não agisse conforme a ordem do rei, esse incorreria em pena de morte. Nesses termos ele escreveu a todo o seu reino, nomeou inspetores para todo o povo e ordenou às cidades de Judá que oferecessem sacrifícios em cada cidade. Muitos dentre o povo aderiram a eles, todos os que eram desertores da Lei. E praticam o mal no país, reduzindo Israel a ter de se ocultar onde quer que encontrasse refúgio (1Mc 1. 41-53).

Logo em seguida, em 167 aEC, o templo de YHWH é dedicado ao Zeus do Olimpo, narrado em 1Mc.

No décimo quinto dia do mês de Casleu do ano de cento e quarenta e cinco, o rei fez construir, sobre o altar dos holocaustos, a Abominação da desolação. Também nas outras cidades de Judá erigiram-se altares e às portas das casas e sobre as praças quei-mava-se incenso. Quanto aos livros da Lei, os que lhes caíam nas mãos eram rasgados e lançados ao fogo. Onde quer se encontrasse em casa de alguém um livro da Aliança ou se alguém se conformasse à Lei, o decreto real o condenava à morte (1Mc 1. 54-57).

A respeito da dedicação do templo de YHWH a Zeus, Christiane Saulnier observa que:

deus iminente dos gregos, Zeus representava os valores do poder e da autoridade; o epíteto Olímpico recordava suas prerrogativas sobre as outras divindades e seu aspecto uraniano (isto é, de deus do céu); na Síria ele fora assimilado a Baal Shâmin, deus sobe-rano, senhor das tempestades e da fecundidade. Tais aspectos podiam aparentemente aproximá-lo de Iahweh que, desde a época persa, era designado nos textos judaicos como “o Deus dos céus”. Nestas condições, podemos admitir que Antíoco IV quisesse introduzir em Jerusalém uma divindade sincrética, que permitisse a judeus, sírios e gregos reconhecer nela a emanação de um deus soberano.28

Há uma forte repressão às praticas religiosas judaicas, no livro de 2Mc 6. 7 é relatado como os judeus eram obrigados a participar da festa de Dionísio e do sacrifício mensal em honra do aniversário do rei. Muitos Judeus morrem por desobedecerem aos decretos de Antíoco Epífanes como o exposto 1Mc 1. 56-64.

Para Airton José da Silva, a elite “aristocrática força a helenização e entra em choque com o direito sagrado tradicional do povo judeu”. Nesse sentido ele atribui que a revolta não tem motivos religiosos.

28 SAULINER, A revolta dos macabeus, p. 23 apud SILVA, Antíoco IV e a proibição do judaísmo. Disponível em http://www.airtonjo.com/historia36.htm#_ftnref35. Acesso em 21/10/2012.

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“Mas será a simbologia religiosa que exprimirá os interesses igualitários de sacerdotes e camponeses”.29

Podemos verificar até aqui que parte da população rompeu a aliança com o deus dos seus antepassa-dos, contudo existiram aqueles que de certa forma resistiram ideologicamente às práticas helenizantes, e os que se revoltaram abertamente como é o caso de Matatias e os seus cinco filhos (1Mc 2. 2-5). São enviados a Modin emissários do rei “encarregados de forçar a apostasia”, pediram que Matatias fosse o primeiro a atender as ordens do rei, porém ele se nega e, ao ver outro judeu se oferecer, mata-o e, tam-bém, ao emissário do rei: está declarada a revolta dos Macabeus (1Mc 2. 15-28). Matatias convoca o povo fiel à aliança e foge para as montanhas; muitos se juntaram a ele (1Mc 2. 28). Alguns judeus fogem para o deserto e, devido ao ocorrido com Matatias, a guarnição que se encontrava na Acra sai em sua busca e ao serem encontradas no deserto, essas pessoas se recusam a lutar, por ser o Sábado do Senhor, e são massacradas pelos soldados Selêucidas (1Mc 2. 29-38).

Quando Matatias soube da morte dos seus, “chorou amargamente” e resolve revidar porque, se não, logo todos os judeus fiéis seriam exterminados (1Mc 2. 39-41). Depois, saem pelo território recuperando a lei das mãos dos gentios, destruindo altares e circuncidando à força os meninos incircuncisos (1Mc 2. 45-48). Na sequência dos acontecimentos, Matatias morre e é delegado a Judas Macabeus o comando do exército (1Mc 2. 65-49).

Judas Macabeus conseguiu vencer várias vezes as tropas selêucidas, cujo primeiro comandante, é Apolônio, governador da Samaria, que perde, facilmente, a batalha. 2Mc 8. 1-7 nos informa como eram as estratégias militares utilizadas pelos Macabeus. Judas ia colocando seus homens nas comunidades, às escondidas chamando outros para a luta. Eles atacavam, preferencialmente, à noite, pegando os habitan-tes e soldados, nas aldeias, de surpresa, provocando incêndios, tomando pontos estratégicos e causando muitas perdas aos inimigos. Podemos verificar, também, que, antes de cada batalha, Judas inflamava o coração dos seus companheiros, recorrendo a discursos carregados de religiosidade como podemos ve-rificar em 1Mc 3. 18-23, e em 1Mc 4. 8-11, citados a seguir:

Por isso disse Judas aos seus: “Não tenhais medo do seu número, nem vos desenco-rajes ante seu ímpeto. Lembrai-vos de como vossos pais foram salvos no mar verme-lho, quando o Faraó os perseguia com o seu exército. Clamemos, pois agora, ao Céu, suplicando-lhe que se mostre benigno para conosco: que se recorde da Aliança com os nossos pais e esmague, hoje, este exército que está diante de nós. Então saberão todos os povos que existe Alguém que resgata e salva Israel”.

Utilizando-se dessas estratégias relacionadas acima e, às vezes, não podendo fugir do combate corpo--a-corpo, como podemos verificar em 1Mc 3. 23-26, Judas consegue várias vitórias. Primeiro, venceu Apolônio, governador da Samaria (1Mc 3. 10-12), depois o General Seron, comandante do exército da Síria (1Mc 13-26). Na sequência de grandes vitórias, vencendo exércitos cada vez maiores, os Macabeus

29 SILVA, Antíoco IV e a proibição do judaísmo. Disponível em http://www.airtonjo.com/historia36.htm#_ftnref35. Acesso em 21/10/2012.

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derrotam os Generais Nicanor e Górgias, estes enviados pelo regente Lísias, o qual ocupava o lugar do Rei Antíoco, pois este estava em campanha militar na Pérsia (1Mc 3. 31-32, 38). Então, em vista da der-rota dos seus generais, o próprio Lísias foi combater os judeus revoltosos e também sucumbiu perante as forças dos macabeus (1Mc 4. 28-35).

Depois dessa decisiva vitória, é estabelecida uma relativa trégua, Judas reconquista Jerusalém e o tem-plo é purificado e novamente dedicado a YHWH (1Mc 4. 36-55). Um tempo depois, no ano de 164 aEC, Antíoco Epífanes morre na Pérsia e antes de morrer, declara que Felipe deveria ser o tutor de seu filho e preparando-o para ser rei (1Mc 6. 1-17). Lísias, por sua vez, assim que soube da morte do rei Antíoco Epifanes proclamou rei o jovem Antíoco e deu-lhe o nome de Eupátor (1Mc 6. 17).

Os macabeus, no ano 163/162, resolvem tomar a Acra, depois de terem construído plataformas e máquinas e fortificado o Santuário e Betsur, sendo que alguns dos sitiados fugiram e foram pedir ajuda a Antíoco V (1Mc 6. 18-27). Este, certamente orientado por Lísias reúne um grande exército e parte em campanha militar contra os judeus. Na Batalha de Bet-Zacarias Judas sofre a primeira derrota e é sitiado no monte Sião (1Mc 6. 28-54). No entanto, para a sorte dos Judeus sitiados, Felipe o conselheiro de An-tíoco IV, que fora nomeado pelo rei, no leito de morte, como tutor de Antíoco V, volta disposto a lutar pelo poder com a parte do exército que acompanhava o finado rei em sua campanha na Pérsia (1Mc 6. 55-56). Então Lísias que estava com Antíoco V na Judeia, percebendo as intenções de Felipe argumenta com o rei e os seus generais da seguinte forma:

[...] “Estamos enfraquecendo-nos dia por dia. Nossas provisões diminuem e o lugar é fortificado. Além disso, os cuidados do reino aguardam-nos. Estendamos, pois, a mão direita e esta gente, fazendo as pazes com eles e com toda a sua nação. Vamos reconhecer-lhes o direito de viverem segundo as suas leis, como antes, já que é por causa dessas leis, que nós quisemos abolir, que eles se exasperaram e fizeram tudo isto” (1Mc 6. 57-59).

O rei acata as recomendações de Lísias, e revoga a lei que seu pai tinha outorgado, voltando para a Síria. 2Mc 13. 23 narra esses acontecimentos da seguinte maneira:

Soube então que Felipe, deixado a frente dos negócios do reino, havia-se rebelado em Antioquia. Consternado, entrou em negociações com os judeus, condescendeu com eles e prestou juramento sobre todas as condições que fossem justas. Reconciliado, chegou a oferecer um sacrifício e deu mostras de respeito para com o templo e de be-nevolência para com o Lugar Santo.

Um acordo de paz foi estabelecido, porém durou pouco tempo, pois Demétrio, um primo de Antíoco V, que vivia como refém em Roma, consegue escapar, volta para a Síria e mata Lísias e Antíoco V, chegando ao poder em, aproximadamente, 161 aEC (1Mc 7. 1-4). Alcimo, descendente de uma linha-gem de sacerdotes junto com outros judeus helenizados, foram até o rei Demétrio e fizeram um acordo com ele. Alcimo é declarado Sumo-Sacerdote e tem autorização para se vingar de todos os revoltosos. Os

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assideus, que, outrora, tinham lutado juntamente com os Macabeus acreditam no novo Sumo-Sacerdote e são todos massacrados (1Mc 7. 5-17) Então, mais uma vez Judas se revolta “E saiu a percorrer todos os confins da Judéia, exercendo a vingança contra os desertores e impedindo-os de fazer incursões pelo país” (1Mc 7. 24). São travadas novas batalhas, contudo a descrição já feita basta para ilustrar como parte dos judeus resistiram às ações helenizantes dos governantes selêucidas. Porém, é importante considerar três importantes conquistas dos Macabeus, as quais curiosamente se deram em intervalos de dez anos que foram: em 162 aEC, Judas conquistou a liberdade religiosa; em 153 aEC, Jônatas torna-se sumo sa-cerdote; e, em 142 aEC, Simão consegue a isenção de impostos. Da revolta dos macabeus, originou-se a dinastia dos asmoneus.

Existem, no meio acadêmico, divergentes abordagens acerca dos livros de Macabeus, Ágabo B. de Sousa considera que:

O século II a.C. foi marcado pela presença grega no oriente cujo domínio não foi apenas político, mas também cultural e religioso. Mas além do conhecido movimento Macabeu houve outros movimentos, como por exemplo o movimento Apocalíptico, que pretendia também proteger o patrimônio religioso e cultural do povo de Judá.30

Para John Collins, a revolta dos Macabeus não pretendia proteger o patrimônio religioso e cultural de Judá, “Em todo caso, a introdução do ginásio, ainda que possa ter sido ofensiva para muitos judeus, não foi a causa da revolta dos macabeus”.31 Nem a profanação e o saque do Santuário, nem a dedicação do santuário a outra divindade, nem a proibição da religião judaica, desencadearam a revolta. Nesse sentido, entendo que eles já tinham motivos suficientes para declararem guerra. Há ainda, outro fator a considerar. Para André Leonardo Chevitarese, a revolta teria sido motivada por interesses políticos, pois poderosas famílias judaicas buscavam o apoio de soberanos estrangeiros para que estes lhes concedes-sem o cargo de Sumo Sacerdote a fim de, consequentemente, controlarem “o tesouro do Templo, a coleta de impostos, além de garantir privilégios palpáveis da sociedade tanto interna quanto externamente.”32

Pode-se verificar, a partir das abordagens dos autores citados acima, que na divergências quanto às motivação do movimento. Enquanto Ágabo Borges de Sousa considera que o movimento teve um caráter religioso de resistência à dominação política e cultural helênica,33 John J. Collins afirma ter sido motiva-do por razões puramente políticas, e que os principais participantes dessa revolta utilizaram-se de uma ideologia religiosa para dar legitimidade às suas pretensões políticas.34

30 SOUSA, O diálogo das escolas filosóficas do II século..., p. 3.31 COLLINS, John J. Culto e cultura: os limites da helenização na Judéia. In: NOGUEIRA, Paulo de Souza; FUNARI, Pedro Paulo A.; COLLINS, John J., (Orgs.). Identidades fluídas no judaísmo antigo e no cristianismo primitivo. São Paulo: ANNABLU-ME/FAPESP, 2010, p. 42.32 CHEVITARESE, Fronteiras culturais no Mediterrâneo antigo, p. 77.33 SOUSA, O diálogo das escolas filosóficas do II século..., p. 3.34 COLLINS, Culto e cultura, p. 41.

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Collins pode estar equivocado quando ele faz a distinção entre política e religião, pois o sistema po-lítico dos judeus era teocrático, ou seja, era um sistema politico caracterizado pelo poder de uma casta sacerdotal. Nesse sentido, não há como fazer uma clara distinção entre o politico e o religioso, as duas instituições são indissociáveis. No entanto o que é complicado entender é: Por que eles demoraram tanto para irem à luta e declararem guerra ao governo selêucida?

No entanto pode-se concluir que o contato entre essas duas culturas distintas, segundo John Fergu-son, deu origem a um novo credo universal “o Cristianismo”.35 Nesse sentido, Arnold Joseph Toynbee36 argumenta que “para os Judeus, a revolucionária doutrina cristã da encarnação era a importação blasfe-ma de um mito que constituía o mais terrível de todos os erros do paganismo helênico”. Então, podemos perceber que, apesar da revolta, as interações culturais entre helênicos e judeus continuaram, e o resul-tado sistemático dessa união possibilitou uma nova forma de pensar e agir no mundo. E tais modos de pensar e agir até hoje influenciam o homem ocidental pós-moderno.

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35 FERGUSON, A herança do helenismo, p. 36.36 TOYNBEE, Arnold Joseph. Helenismo: história de uma civilização. Tradução Waltensir Dutra. Introdução de Antônio Olinto. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1969, p. 25.

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APRESENTAÇÃO DOS CONTOS DE CORTE NO LIVRO DE DANIEL: ANÁLISE DE SUA ESTRUTURA

Almir Lima AndradePós-graduando em Filosofia Contemporânea. Universidade Estadual de Feira de Santana

__________________________________________________________________________

Introdução1

O livro de Daniel é o único representante da literatura apocalíptica presente na Bíblia Hebraica e, frequentemente, é conhecido como “modelo de apocalíptica”, sendo este um dos motivos que têm levado muitos a escrever sobre este instigante material. O livro de Daniel deve ter tido, desde o começo, um lugar de honra nos círculos para o qual foi escrito, além de ter exercido profunda influência no desen-volvimento do pensamento judaico. Tal influência pode ser constatada nas referências feitas aos textos

1 Artigo apresentado no seminário “O helenismo no Médio Crescente e o pensamento ocidental", na Universidade Estadual de Feira de Santana, sob orientação do professor Dr. Ágabo Borges de Sousa.

RESUMO

Os capítulos iniciais do livro de Daniel apresentam, de modo geral, diversas di-ficuldades interpretativas. A questão persiste, pois o texto nem sempre é analisado levando-se em conta o contexto sócio-histórico no qual estava inserido quando es-crito. Este trabalho busca apresentar os contos de corte do livro de Daniel, identifi-cando os elementos estruturais do texto, tornando clara a mensagem de resistência cultural e religiosa ao “modus vivendi” helênico, utilizados para isso tanto o livro dos Macabeus como os escritos do historiador Flávio Josefo como referências.

Palavras-chave: Antigo Testamento – Apocalipse – Daniel – Contos de corte

ABSTRACTThe initial chapters of the book of Daniel have (presented), in general, several

interpretative difficulties. The question persists, because the text is not always ana-lyzed taking into account the socio-historical context in which it was inserted when writing. This paper seeks to present the tales of court the book of Daniel, identify-ing the structural elements of the text, making clear the message of religious and cultural resistance to hellenistic “modus vivendi”, used to it the book of Maccabees as the writings of the historian Flavius Josephus as references.

Keywords: Old Testament – Revelation – Daniel – Tales of court

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de Daniel em outras obras como o livro dos Macabeus, os Oráculos Sibilinos, a obra de Flávio Josefo e os textos da comunidade de Qumran.

A datação do apocalipse de Daniel desde muito cedo tem sido alvo de discussões. O filósofo neopla-tônico Porfírio já discordava da datação tardia do livro de Daniel. Collins, a respeito deste assunto, diz:

Porfírio argumentava que Daniel não havia sido escrito no decurso do exílio babilônico, mas na época de Antíoco Epífanes. Seu argumento básico era que Daniel “predizia” o curso de eventos de forma acurada até a época de Antíoco Epífanes, mas não além dela. Esse ar-gumento suportou o teste do tempo. A questão não é “uma rejeição dogmática da profecia preditiva”, como os conservadores gostam de asseverar, mas um cálculo da probabilidade.2

Desde o final do século XIX, há um embate argumentativo entre duas teorias distintas a respeito da datação do único apocalipse veterotestamentário. São elas a teoria macabéia e a teoria do exílio.

A teoria do exílio, segundo Sousa3, pensa que Daniel seria o autor do livro apocalíptico canônico com o mesmo nome. O livro teria sido produzido durante o período do exílio babilônico no século VI a.C., datação esta que, para os seus defensores, é fundamentada nas passagens Dn 1. 5 – 5. 29; 7. 1; 8. 1; 9 .1; 10. 1 e no estilo-EU dos capítulos de 7 a 12. As possíveis incongruências encontradas no texto seriam, para os seus defensores, consequência de modificações posteriores do texto dito original.

Em direção diametralmente oposta, a teoria macabéia localiza o livro de Daniel no II século a.C. A argumentação desta teoria baseia-se nos textos de Dn 7. 8 e Dn 7. 25 nos quais “o chifre” é identificado com a figura de Antíoco IV, e a sua tentativa de “mudar os tempos” estaria se referindo ao decreto reli-gioso expedido por este mesmo rei em 168/7 a.C. helenizando o culto no santuário Jerusalêmico (Dn 8. 9; 11. 13; compare 9. 27; 11. 21, 31). Segundo Sousa, esta teoria pode ainda ser fortalecida com os seguintes argumentos:

Há ainda fatores formais que fortalecem esta teoria: - o conhecimento do grego, como o grego usado no período macabeu, haja vista que na antiga história babilônica e persa o grego não era tão conhecido; - a língua bem como sua linguagem são de uma época bem mais tardia ao período exílico. Grande parte do Livro de Daniel está escrito em aramaico (Dan 2,4b - 7), ou seja uma língua que só aproximadamente em 400 a.C. co-meçou a surgir e que no período dos Macabeus era a língua de comunicação comum. Além do aramaico temos um hebraico no livro de Daniel cujas expressões e estrutura pertencem a um período bem mais tardio ao período exílico.4

2 COLLINS, J. Imaginação apocalíptica: uma introdução à literatura apocalíptica judaica. Trad. Carlos Guilherme da Silva Ma-gajewski. São Paulo: Paulus, 2010, p. 136.3 SOUSA, Ágabo Borges de. Daniel: um apocalipse anticuo-testamentário. Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Filosofia. Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS, 2012, p. 6.4 SOUSA, Daniel, p. 7.

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Segundo Friedrich Dingermann5, com Daniel começa a apocalíptica propriamente dita. Composto no período da insurreição macabéia, entre 164 e 165 a.C., o livro pretende contar a vida e as visões de um personagem chamado Daniel que chega à Babilônia por volta de 605 a.C., sob o governo de Nabu-codonosor e, por sua retidão e sabedoria, consegue posição influente entre os reinos babilônicos, persas e até Ciro.

Os momentos históricos do passado são abordados por meio do “vaticinium ex eventum” (profecia fora do evento, que leva em conta o que já aconteceu sem preocupar-se com exatidões históricas), no qual é transmitida a mensagem apocalíptica de que Deus é o Senhor da história e que somente ele con-duzirá os acontecimentos ao fim por Ele mesmo fixado.

Influências literárias

Muitos têm tentado traçar as origens literárias dos escritos apocalípticos. Para Gerhard Von Rad6, embora não se possa definir claramente o conceito de apocalíptica, esse fenômeno literário, que surge no judaísmo tardio, tem influência única e exclusiva do movimento de sabedoria. Já para Rowley, a apoca-líptica tem influência exclusiva dos movimentos proféticos, chegando a firmar que: “A profecia é a mãe da apocalíptica”.7

Werner H. Schmidt expressa a opinião mais amplamente aceita na pesquisa apocalíptica atual ao afir-mar que: “O livro de Daniel continua tradições proféticas associadas a concepções sapienciais, [...] e está ao mesmo tempo, no princípio da literatura apocalíptica no sentido mais estrito do termo”.8

Para Schmidt, essa congruência entre gêneros distintos encontra-se expressa nos contos de corte como, por exemplo:

A estes quatro jovens Deus concedeu a ciência e a instrução nos domínios da literatura e da sabedoria. Além disso, Daniel era capaz de interpretar qualquer sonho e visão (Dn 1. 17).9

Ora, em todas questões de sabedoria e discernimento sobre as quais os consultava, o rei os achava dez vezes superiores a todos os magos e adivinhos do seu reino inteiro (Dn 1. 20).

5 DINGERMANN, Friedrich. Anúncio da caducidade deste mundo e dos mistérios do fim. Os inícios da apocalíptica no Antigo Testamento. In: SCHREINER, Josef. Palavra e mensagem do Antigo Testamento. Trad. Benôni Lemos. 2. ed. São Paulo: Teoló-gica, 2004, p. 425-430.6 VON RAD, Gerhard. Teologia do Antigo Testamento. Trad. Francisco Catão. 2.ed. São Paulo: Aste/Targumim, 2006, p. 723.7 ROWLEY, H. H. A importância da literatura apocalíptica: um estudo da literatura apocalíptica judaica e cristã de Daniel ao Apocalipse. Trad. Rui Gutierres. São Paulo: Paulinas, 1980, p. 15.8 SCHMIDT, Werner H. Introdução ao Antigo Testamento. Trad. Annemarie Höhn. São Leopoldo: Sinodal, 1994, p. 277.9 BÍBLIA. Português. Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2008. Nova edição, revista e ampliada. Todas as citações bíblicas neste artigo utilizarão esta mesma tradução.

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Tomando a palavra nestes termos: Que o nome de Deus seja bendito de eternidade em eternidade, pois são dele a sabedoria e a força (Dn 2. 20).

Para John J. Collins, os contos de corte pretendem descrever a continuidade de uma tradição.

A unidade de Daniel, então, é uma unidade secundária, atingida através de contos anteriores. Não devemos pensar, porém, que a conexão entre os contos e visões é pu-ramente externa. Em vez disso, eles representam a continuidade da tradição.10

2. Gêneros literários

Von Rad11, em citação sobre o livro de Daniel, argumenta que a apocalíptica não representaria um “gênero” específico do ponto de vista literário. Pela história das formas ela é, na verdade, um mixtum compositum que levaria a uma pré-história muito complexa do ponto de vista da história das tradições. Von Rad aceita que a literatura apocalíptica em Israel recebeu influências estrangeiras, especialmente a iraniana; mas assevera que essa influência já estaria presente na sabedoria israelita desde a época de Salomão, sendo mais acentuada no Império Persa, principalmente, em relação às ideias cosmológicas de caráter claramente escatológico.

A existência de gêneros distintos na mesma obra não tira o valor apocalíptico do livro de Daniel. Gottwald destaca ressaltar que

Para uma visão completa de livros apocalípticos faz-se necessário olhar para a forma resultante da combinação de matérias de outros gêneros com apocalipses segundo de-finidos estritamente. Significa igualmente que um apocalipse pode incluir ele mesmo outras espécies de material que não são estritamente parte do gênero (e.g., a oração em Daniel 1, como também poder-se-ia arguir que Daniel, como um todo, é apocalipse que subtende as narrativas dos caps. 1-6 como precursores e realces necessários às visões da apocalíptica de gêneros específicos de caps. 7-12).12

O livro de Daniel apresenta uma divisão natural em dois gêneros básicos: ‘contos de corte’ e ‘visões apocalípticas’. Os capítulos iniciais Dn 1-6 são considerados por muitos estudiosos como narrativas ou lendas, conhecido também como gênero hagádico. Segundo Loouis F. Hartman e Alexander A. Di Lella:

O gênero hagádico, usado nos capítulos 1-6 e 13-14, recebe seu nome do hebraico mishinaico, haggadâ, literalmente “narrativa” ou “composição”, mas usado frequente-mente com o sentido de relato que não tem quase que nenhuma base na história real,

10 COLLINS, Imaginação apocalíptica, p. 139.11 VON RAD, Teologia do Antigo Testamento, p. 738.12 GOTTWALD, Norman K. Introdução socioliterária à Bíblia Hebraica. Trad. Anacleto Alvarez. 2 ed. São Paulo: Paulus, 1988, p. 540.

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mas é contada para inculcar uma lição moral. [...] Os relatos sobre Daniel são clara-mente hagáticos; em sua totalidade não podem ser considerados história no sentido estrito. Visto que seu autor não os entende como históricos, não pode ser acusado de erro se faz afirmações incorretas sobre a história.13

Para Donald E. Gowan, a crítica da forma bem como o estudo do folclore, possibilitaram a identifica-ção de padrões de discurso, padrões estes que permitem a melhor compreensão das relações existentes entre as histórias iniciais do livro de Daniel e as literaturas antigas. Gowan, citando Humphreys, afirma que os contos de corte podem ser divididos e distinguidos “... em dois grupos de três cada (cap. 1, 3, 6 e 2, 4, 5). [...] os termos “contos de conflitos de corte” (Dn 3 e 6) e “contos de disputa na corte” (Dn 4 e 5) [...] . No primeiro, uma facção procura a ruína da outra; e na última, o êxito do herói onde todos falharam.”14

A classificação do primeiro capítulo de Daniel no primeiro grupo de três, leva em conta a decisão de Daniel e seus amigos em não comer os alimentos da corte caldaica, no entanto nenhuma ameaça aparece no texto tendo em vista que só o eunuco realmente correu perigo de vida nesse caso.

Outra postura defendida por Gowan destaca dois gêneros distintos presentes nos contos de corte: as “Relatos de Sabedoria” e “Lendas de fidelidade sob ameaça”

Os textos de Dn 2, 4 e 5 teriam seus matizes nos “Relatos de Sabedoria” que compõem a narrativa de José no Egito em Gn 41. Em ambas as narrativas o personagem judeu, a quem Deus havia dado uma superior sabedoria, é promovido a uma alta posição, enquanto que a superioridade do seu Deus é reco-nhecida pelo rei pagão. Também o livro de Jó apresenta semelhante padrão: um personagem abastado, grande entre todos os homens sofre a perda de tudo inclusive de sua saúde. Surge, a partir daí, a questão fundamental: “Onde a sabedoria deve ser encontrada?”, Somente na superior sabedoria de Deus.

Os “Relatos de Sabedoria” aparecem com frequência na tradição literária do Oriente Médio. Exemplo disso é a narrativa sobre Ahiqar, um homem sábio que foi envolvido em uma disputa entre os reis. A crise foi provocada pelo pedido impossível feito pelo rei do Egito ao rei da Assíria, solicitando que lhe fosse en-viado alguém que construísse um castelo no ar. Um pedido impossível também aparece em Dn 2, quando Nabucodonosor exige que os sábios lhe dessem não só a interpretação, mas que adivinhassem o sonho que havia sonhado. Os “Relatos” são, na verdade, disputas de inteligência, nas quais se procura conhecer quem é o mais sábio. Cada uma dessas histórias, na qual os dilemas não podem ser resolvidos por aqueles cuja sabedoria normalmente é suficiente, atribui àquele que resolve o problema uma sabedoria superior.

As “Lendas de fidelidade sob ameaça”, presentes nos capítulos 3 e 6 de Daniel, diferente das demais lendas de martírio do antigo Oriente, não expõem apenas a perseguição, a desgraça do martírio e a reabi-litação; antes fazem da religião judaica a questão principal. A crítica da forma define essas histórias como

13 HARTMAN, Loouis F.; DI LELLA, Alexander A. In: Novo comentário bíblico São Jerônimo: Antigo Testamento. Trad. Celso Eronides Fernandes. Santo André: Academia Cristã/São Paulo: Paulus, 2011, p. 809-810.14 GOWAN, Donald E. Abingdon Old Testament Commentaries: Daniel. Nashville: Abingdon Press, 2001, p. 24-26.

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lendas, ou seja, uma narrativa sobre maravilhas que tem como objetivo a edificação.

O termo ameaça é empregado, pois o herói insiste em permanecer fiel aos aspectos essenciais da fé judaica, ainda que sua postura lhe ponha em perigo. No texto de Daniel 3, os três amigos de Daniel esco-lhem o martírio a abandonar seus princípios suas convicções religiosas, martírio este que não acontece, antes o livramento e o posterior reconhecimento e exaltação à fidelidade por parte dos seus algozes.

3. Conteúdo

Os chamados contos de corte Dn 1-6 formam uma unidade por terem em comum o lugar, tempo e pessoas. No terceiro ano do governo de Joaquim, Jerusalém é sitiada e espoliada, a nobreza é levada cati-va para a Babilônia e começa o terceiro exílio judaico. O interesse do texto recai então sobre Daniel e seus três companheiros. Alguns já pensaram que as narrativas, originalmente, fossem narrações independen-tes, sem nexo entre si, mas com vaga recordação do período babilônico e persa. No entanto a estrutura-ção do texto, bem como a mudança de estilo e de linguagem sugerem uma unidade textual e temática.

Para Sousa, há uma unidade que perpassa os contos de corte, que trazem ao leitor a percepção de que, mais importante do que a exatidão histórica do relato, é a mensagem por ele passada:

Há, nos contos de corte (Dan 1-6), a apresentação de alguns monarcas, que marcam a datação de cada conto, que se caracteriza por uma narrativa completa, com início, meio e fim, no qual há algum tipo de embate de nosso protagonista, Daniel. Os monar-cas são Nabucodonozor, Belsazar e Dário.15

Hartman e Di Lella16 apresentam uma classificação temática dos contos de corte, classificação esta que será seguida neste trabalho. Os contos são divididos da seguinte forma:

(a) A prova do alimento (1. 1-21)

Esse relato é contado em Hebraico e, provavelmente, composto para servir de introdução. O contexto inicial lembra o exílio, no qual jovens que pertenciam às classes sociais mais altas eram levados cativos e usados como força intelectual do poder Babilônico. Tendo como imperador Nabucodonosor, os jovens são levados à corte do rei e preparados para servir de acordo com o costume caldeu.

O processo de aculturação17 começa pela mudança de nomes, Daniel recebe o nome Beltesasar, em

15 SOUSA, Ágabo Borges de. Daniel: uma panorâmica do apocalipse anticuo-testamentário. Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Filosofia. Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS, 2012, p. 6.16 HARTMAN; DI LELLA, Novo comentário bíblico São Jerônimo, p. 812.17 Aculturação - processo de modificação cultural de indivíduo, grupo ou povo que se adapta a outra cultura ou dela retira

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referência ao deus babilônico Bel, e significa “protege sua vida”. As palavras Sedraque e Mesaque são de derivação incerta, mas, ao que tudo indica, seriam referencias aos deuses caldeus, da mesma o nome Abedenego ou abed-nebu, significa “servo do deus Nabu”.

Toda a imposição cultural caldeia suscita uma situação problema, exposta no verso 8:

Ora, Daniel havia resolvido em seu coração não se contaminar com as iguarias do rei nem com o vinho de sua mesa. Por isso pediu ao chefe dos eunucos para deles se abster (Dn 1. 8).

Opondo-se diretamente aos costumes que lhe foram impostos, Daniel e seus amigos recusam-se a partilhar o modus vivendi da nova cultura que agora lhe era imposta. O texto de Daniel faz aqui, a meu ver, referência clara aos desmandos implementados pelo governador Selêucida Antíoco IV Epífanes, pelos quais os judeus seriam obrigados a comer a carne de porco, um animal considerado impuro para religião judaicas. O livro de Macabeus relata situação semelhante enfrentada pelos israelitas:

Apesar de tudo, muitos em Israel ficaram firmes e se mostraram irredutíveis em não comerem nada de impuro. Aceitaram antes morrer que contaminar-se com os alimen-tos e profanar a Aliança sagrada, como de fato morreram (1Mc 1. 62-63).

Nos escritos do historiador Flávio Josefo, encontramos indicações desta atitude de Antíoco IV Epífanes, filho de Selêuco, um príncipe cruel que, ao suceder seu pai implanta medidas extremas obrigando o povo judeu a renunciar seus preceitos religiosos. As medidas extremadas surgem como resposta a um levante judaico contra a helenização da cidade de Jerusalém, bem como o domínio do império selêucida.

Para executar esse desígnio tão tirânico, o cruel príncipe subiu a um lugar elevado, acompanhado pelos mais importantes da sua corte e por todos os soldados, com ar-mas. Em seguida, mandou reunir os judeus e ordenou-lhes que comessem a carne dos porcos que ele tinha imolado aos seus ídolos, em sacrifícios abomináveis, sob pena de morte nas rodas, caso recusassem a obedecer-lhe.18

Josefo, depois de relatar o martírio do sumo sacerdote Eleazar, por sua recusa em comer da carne de porco, continua sua exposição sobre sete jovens que, com sua mãe, negaram-se a comer a carne de porco e por isso foram martirizados.

Mas, para melhor ainda demonstrar como é verdade, que a razão, cheia de piedade, domina as paixões, eu referirei também o exemplo de alguns jovens, que a razão fez

traços significativos. Neste processo o contato continuado de imposição cultural tende a sublimar os traços da cultura dominada em face da dominante. Cf. Dicionário eletrônico Houasiss da língua portuguesa. Versão 2.0a – Abril de 2007.18 JOSEFO, Flávio. História dos hebreus. Trad. Vicente Pedroso. Rio de Janeiro: CPAD, 1990, p. 748.

THIAGO
Realce
Os Macabeus e a resistência alimentar!
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vitoriosos sobre os maiores tormentos que o mais bárbaro furor poderia inventar [...] Aqueles fiéis servidores de Deus, porém, em vez de se deixarem persuadir por essas palavras, e se acovardarem pelo terror de tantos tormentos, não somente não se sen-tiram abatidos pelo temor, mas reafirmaram ainda mais a sua resolução de resistir; só assim venceram a crueldade desse príncipe.19

Nesse contexto, o texto de Daniel sugere o enfrentamento ideológico ante a ameaça. Da mesma forma que Daniel e seus amigos, os judeus são convocados a permanecer fieis a seus preceitos religiosos mesmo diante dos apelos helenizantes

(b) O sonho de Nabucodonosor (2.1-49)

Este capítulo está intimamente relacionado com o capítulo 7. Segundo Hartman e Di Lella: “Esta narrativa contém um apocalipse dentro do relato”.20 O Sonho de Nabucodonosor com uma estátua for-mada por distintos materiais serve como moldura para as visões apocalípticas posteriores. Esta visão dos quatro metais diferentes, representando os quatro reinos pagãos que governam sucessivamente o mundo conhecido, e que seriam eventualmente suplantados pelo reino do povo escolhido de Deus, é essencial-mente a mesma que a visão apocalíptica das quatro feras no capítulo 7, um fato que aponta a ligação essencial que conecta a primeira à ultima seção do livro em aramaico em uma unidade literária distinta.

A situação problema é expressa no verso 9:

Se não me dais a conhecer o sonho, uma só sentença vos espera. Estais, pois, combi-nados para inventar explicações falsas e funestas diante de mim, enquanto o tempo vai passando. Portanto, relatai-me o sonho, e saberei que podeis dar-me também a sua interpretação (Dn 2. 9).

Diante da ameaça feita aos sábios da Babilônia, somente Daniel dirige-se ao rei para buscar a inter-pretação do sonho, interpretação essa que não viria dele mesmo, como relata o texto:

Tomando a palavra nestes termos: ‘Que o nome de Deus seja bendito de eternidade a eternidade, pois são dele a sabedoria e a força. É ele quem muda os tempos e estações, quem depõe reis e entroniza reis, quem dá aos sábios a sabedoria e a ciência aos que sabem discernir. Ele revela as profundezas e os segredos, ele conhece o que está nas trevas e junto dele habita a luz’ (Dn 2. 20-23).

A intenção do relato é demonstrar que a sabedoria dada por Deus a seu povo sempre seria superior, ainda que estes estivessem cativos e imersos em outra cultura. Só Daniel, com ajuda de Deus, era capaz

19 JOSEFO, História dos hebreus, p. 749-750.20 HARTMAN; DI LELLA, Novo comentário bíblico São Jerônimo, p. 814.

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de adivinhar e interpretar o sonho do rei. Há nesta passagem uma crítica aos saberes helênicos e ao do-mínio helenizante, pois o conhecimento único e verdadeiro só poderia vir de Deus que tudo domina.

Gowan, argumentando sobre a intenção principal, tanto do capítulo 2, bem como as visões presentes nos capítulos 7-12 diz:

Eles sempre demonstram a superioridade do forasteiro. Aqui não é ele mesmo o foras-teiro, mas o Deus do forasteiro que é mostrado para ser supremo, e em duas maneiras. Apenas o Deus de Daniel pode revelar o sonho e seu significado, e deveria ser levado a sério o significado – que o mesmo Deus pretende um dia substituir reinos terrenos com um reino que permanecerá para sempre.21

Tanto o capítulo 2, como o capítulo 7, têm como finalidade precípua o fortalecimento da fé dos con-temporâneos do autor no estabelecimento final do reino escatológico de Deus, bem como combater ideologicamente o domínio cultural helênico que lhes era imposto até então. O conhecimento verdadeiro só poderia vir de Deus e, não, das correntes filosóficas propagadas pelas escolas helênicas de então.

(c) Os companheiros de Daniel na fornalha (3. 1-97)

Em todo o capítulo 3, o personagem Daniel não é mencionado, somente seus amigos, chamados, ini-cialmente, pelos nomes caldaicos Sedraque, Mesaque e Abdnego. Essa omissão sugere que o relato existia antes do livro de Daniel e foi, posteriormente, conectado às narrativas do livro.

Segundo Gowan22, esse relato é um exemplo clássico das “lendas de fidelidade sob ameaça”, nas quais o herói que, antes, se encontrava em prosperidade, põe-se em risco por causa da sua fidelidade religiosa. O aspecto religioso é característica única e distinta dos relatos judaicos. Depois de ser colocado em pri-são, o herói tem a oportunidade de testemunhar a respeito de suas crenças recusando-se a desobedecê--las. Por meio de um surpreendente milagre, o herói é libertado e posto em lugar de honra por sua sabe-doria. A finalidade precípua deste relato é mostrar que Deus protege seu povo desde que permaneçam fiéis aos preceitos divinos.

A situação problema encontra-se em Dn 3. 15-18, na qual os três amigos são postos diante do risco de morte iminente, mas, mesmo assim, escolhem o martírio.

Pois bem. Estais prontos, ao ouvirdes o som da trombeta, da flauta, da cítara, da sam-buca, do saltério, da cornamusa e de toda espécie de instrumento de música, a vos prostrar e a prestar culto de adoração a estátua que fiz? Se não a adorardes, sereis imediatamente precipitados na fornalha acesa. E qual é o deus que poderá livrar-vos

21 GOWAN, Abingdon Old Testament Commentaries: Daniel, p. 61.22 GOWAN, Abingdon Old Testament Commentaries: Daniel, p. 62-63.

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das minhas mãos? Em resposta disseram Sidrac, Misac e Abdênago ao rei Nabucodo-nosor: Não há necessidade alguma de replicar-te neste assunto. Se assim for, o nosso Deus, a quem servimos, tem o poder de nos livrar da fornalha acesa e nos livrará tam-bém, ó rei, da tua mão. Mas se ele não o fizer, fica sabendo, ó rei, que não serviremos ao teu deus, nem adoraremos a estátua de ouro que levantaste.

Depois do livramento do martírio, o rei não só reabilita os mártires como também reconhece a supe-rioridade do Deus dos judeus.

Exclamou então Nabucodonosor: ‘Bendito seja o Deus de Sidrac, Misac e Abdênago, que enviou o seu anjo e libertou os seus servos, os quais confiando nele, desobedece-ram à ordem do rei, e preferiram expor os seus corpos, a servir ou adorar qualquer outro deus, senão o seu Deus (Dn 3. 95 [28]).

Segundo Hartman e Di Lella: “[...] a repetição de determinados grupos de palavras, tais como os nomes de instrumentos musicais (vv.5,7,10,15), dos títulos oficiais de governo (vv. 2-3, 94), e de 'nações e de povos de todas as línguas'(lit. todas nações e povos e línguas' [vv. 4,7,96]”23, seria um artifício literário que atesta a datação do relato no período anterior ao período helenista. Apesar disto o texto tornou-se elemento importante no enfrentamento ideológico judaico contra os desmandos de Antíoco IV Epífanes

Os judeus são conclamados a não se dobrar diante do ídolo pagão colocado pelo imperador no tem-plo, ainda que a morte pelo fogo fosse o castigo para tal desobediência. O autor de 2Macabeus assim relata tais tormentos:

Outros, que tinham acorrido junto às cavernas vizinhas, a fim de aí celebrarem ocul-tamente o sétimo dia, sendo denunciados a Filipe, foram juntos entregues a chamas: tiveram escrúpulo em esboçar qualquer defesa, por respeito ao veneradíssimo dia (2 Mc 6. 11)

Ainda em 2Mc, o martírio de uma mãe com seus filhos é assim relatado:

Um dentre eles, fazendo-se porta-voz dos outros assim falou: ‘Que pretendes inter-rogar e saber de nós? Estamos prontos a morrer, antes que transgredir as leis de nos-sos pais’. O rei, enfurecido, ordenou que se pusessem ao fogo assadeiras e cadeirões. Tornados estes logo incandescentes, ordenou que se cortasse a língua ao que se havia feito porta-voz dos outros, e lhe arrancassem o couro cabeludo e lhe decepassem as extremidades, tudo isso à vista de seus irmãos e de sua mãe. Já mutilado em todos os seus membros, mandou que o levassem ao fogo e o fizessem assar, enquanto ainda res-pirava. Difundindo-se abundantemente o vapor da assadeira, os outros exortavam-se entre si e com sua mãe, a morrer com valentia (2Mc 7. 2-5).

23 HARTMAN; DI LELLA, Novo comentário bíblico São Jerônimo, p. 812.

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Flávio Josefo relata uma fala de Antíoco IV a uma venerável mulher que é ameaçada pelo rei a abdicar a sua fidelidade aos preceitos da lei judaica e aceitar o modus vivendi grego, sob ameaça de morte.

Assim, não somente eu vos aconselho, mas rogo-vos a não imitar a loucura daqueles que se perdem por sua imprudência. Procurai ser da minha mesma opinião e senti-mentos e tornai-vos dignos de meu afeto. Eu não estou menos disposto a fazer o bem aos que me obedecem, como resolvido a castigar severamente os que ousam resistir às minhas ordens. Confiai na minha palavra e sentir-lhe-eis o efeito. Renunciai às su-perstições dos vossos antepassados, comei da carne que os gregos comem e conservai assim vossa vida e vossa juventude, por um sábio proceder. Do contrário, se não aban-donardes àqueles dos quais eu me declarei inimigo, mandarei matar a todos, ainda que sinta compaixão da vossa idade e da vossa beleza.24

(d) O sonho de Nabucodonosor a grande árvore (3. 98 [31] – 4. 34)

Esse relato é uma carta enclítica ou proclamação pública do rei Nabucodonosor, um padrão usado para cartas no Antigo Oriente Próximo, “começando com o nome do remetente e o endereço(s) seguido por uma saudação”.25 A narrativa é iniciada em primeira pessoa, mas, no meio do relato, a narrativa fala do rei na terceira pessoa, descrevendo a interpretação do sonho feita por Daniel, relatando, posterior-mente, a insanidade soberano. Somente ao final, há um retorno da narrativa à primeira pessoa, quando o rei Nabucodonosor é restabelecido de sua loucura, contando sua experiência e exaltando a Deus. Nesse relato, a situação problema é descrita no v. 5.

Tive, porém, um sonho que me aterrou. E as angústias, sobre o meu leito, e as visões da minha cabeça me atormentaram (Dn 4. 2).

O rei tem um sonho que o perturba de tal maneira a ponto de expedir um decreto a todos os sábios do seu reino solicitando a interpretação do sonho. Diferentemente do capítulo 2, o rei não coloca seus sábios sob o risco de morte, mas como estes não foram capazes de lhe dar a interpretação, Daniel é chamado. Para Gowan26, o fato de Daniel ter sido chamado por último expressa o estilo do relato. Como nos outros “Relatos de Sabedoria” a questão é saber: Quem é o mais sábio?

Um novo elemento aparece nesse relato, quando o cumprimento do sonho é descrito. Desta manei-ra o foco do relato não é o homem sábio, mas sim o rei que ao gloriar-se de todas as suas conquistas e poder, passa pela experiência da desumanização. A causa da desumanização real foi o orgulho. O relato faz referência ao texto de Is 14, 4-21, porém a figura central do texto aponta para outro rei, Antíoco IV Epífanes, cujo nome indica a manifestação de deus na terra. Segundo Airton José da Silva, citando F. Abel

24 JOSEFO, História dos hebreus, p. 748.25 GOWAN, Abingdon Old Testament Commentaries: Daniel. p. 77.26 GOWAN, Abingdon Old Testament Commentaries: Daniel. p. 72.

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em Histoire de la Palestine I:

Antíoco IV que, de 175 a 169 a.C., aparece nas moedas cunhadas em Antioquia apenas com a inscrição "Rei Antíoco", a partir desta época começa a ter sobre sua cabeça uma estrela, símbolo da divindade. E a partir de sua vitória sobre o Egito, a inscrição das moedas selêucidas é "Rei Antíoco Theos Epífanes".

‘Ele pensa, definitivamente, que sua vitória o manifestou como deus, ou que é um deus que se manifestou na sua carne. Ele é o praesens divus, e, segundo sua intenção, o epíteto epifanés, 'manifesto', é relacionado com Theós, ou seja, com sua apoteose’.27

O relato de Dn 3. 98 [31] – 4. 34 traz aos judeus da época a mensagem de conforto de que aquele que quer tornar-se como um deus tornar-se-á um animal, quem se diviniza, consequentemente, se animaliza. Certamente, o trono lhe será tirado, pois Deus dá o domínio dos reinos a quem quer.

Serás expulso da convivência dos homens e com as feras do campo será tua morada. De erva, como os bois, te nutrirás, e sete tempos passarão sobre ti até que reconheças que o Altíssimo domina sobre o reino dos homens e ele o dá a quem lhe apraz (Dn 4. 29).

Outros elementos indicam que o texto foi escrito tendo por base o período do II séc. a.C., ainda que os relatos sejam anteriores a esta data. O texto de Dn 4 relata que Nabucodonosor, por não dar glória a Deus, sofre um transtorno mental e passa a comportar-se como animal, porém este relato não é encon-trado em documentos babilônicos referindo-se a Nabucodonosor. No entanto outros relatos babilônicos falam de um episódio onde Nebonide enfrenta um transtorno, mas não pelos mesmos motivos relatados no livro de Daniel. Sousa afirma que:

É relevante destacar que outros documentos nos revelam que Nebonide teve a ideia, por influência de sua mãe, de fazer uma reforma religiosa trocando o deus Markuk, hegemônico na Babilônia, pelo deus Sin, senhor da cidade de Ur e venerado em ou-tras cidades. Obviamente, este decreto desagradou boa parte da população, inclusive alguns da corte, sofrendo uma oposição ferrenha. Há notícias de que ele, em função desta "mística religiosa", teria desaparecido da corte por oito anos, dedicando-se a construir santuários para seu deus no deserto da Arábia, resaltando que ele teria en-trado em uma profunda "neurose", uma espécie de surto psicológico, deixando em seu lugar Bel-shar-usur (Belsazar), seu filho.28

27 ABEL, F.-M. apud SILVA, Airton José da. Antíoco IV e a proibição do judaísmo. Disponível em: http://www.airtonjo.com/historia36.htm. Acessado em 03/08/2012.28 SOUSA, Daniel: uma panorâmica do apocalipse anticuo-testamentário, p. 6-7.

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(e) A escrita na parede no festim de Baltazar (5. 1 – 6. 1)

Este Relato de sabedoria segue o mesmo modelo dos demais, não sendo tão complexo como os do capítulo 2 e 4. Porém aqui surgem os dois maiores problemas de datação do livro de Daniel: primeiro, o nome Baltazar, conforme tradução da LXX, ou Belsazar conforme o Talmude, não é encontrado nos registros Babilônicos e Persas; além disso, também não existem registros do governo de Dário, o Medo.

Para Hartman e Di Lella29, é implícito que Baltazar seja, na verdade, Bel-shar-usur, filho do último rei caldeu da história, Nebonido, filho de Nabucodonosor, ao qual o relato de Dn 3. 98 [31] – 4. 34 se refere. Também no capítulo 5 de Daniel, o texto apresenta Baltazar como filho de Nabucodonosor, no entanto, nas crônicas babilônicas, nunca se achou referência a este governante. Logo, Baltazar seria na verdade o Bel-shar-usur da história. O real nome do filho de Nabucodonosor era Amel-Marduk, mencionado tanto em II Rs 25. 27, como por Flávio Josefo30 pelo nome Evil-Merodaque.

Em sua obra “Crônicas dos Reis Caldeus no Museu Britânico” (Chronicles of Chaldaean Kings in the British Museum), Wiseman31 baseado em documentos caldeus antigos, expõe uma cronologia do império Caldeu ou Neo-Babilônico. É possível observar na tabela 01, que Amêl-Marduk aparece como o sucessor de Nabucodonosor II e não Belsazar como é indicado em Dn 5.

Nesse relato, o enigma não aparece por meio de um sonho, mas de um escrito na parede. Em um ban-quete oferecido por Baltazar a mil amigos, os utensílios da casa do Senhor foram utilizados para servir as bebidas e depois de cultuarem os deuses caldeus, um acontecimento traz pavor ao rei. Os dedos de uma mão aparecem e escrevem uma mensagem. Surge a situação problema:

De repente, apareceram dedos de mão humana que se puseram a escrever, por detrás do lampadário, sobre o estuque da parede do palácio real, e o rei viu a palma da mão que es-crevia. Então o rei mudou de cor, seus pensamentos se turbaram, as juntas dos seus mem-bros se relaxaram, e os seus joelhos puseram-se a bater um contra o outro (Dn 5. 5-6).

Como nos outros relatos de sabedoria, busca-se, entre os sábios, quem é o mais sábio e de onde provém sua sabedoria. Todos os sábios do rei são desconsiderados e apenas Daniel é capaz de interpretar os escritos, pois o seu Deus é o único de onde provem a verdadeira sabedoria, esta é a mensagem central do texto. No-vamente a sabedoria helênica é questionada, pois nem mesmo ela poderia livrar o homem de seus temores.

Depois de falar sobre a experiência de desumanização vivida pelo antigo rei, Daniel aponta a falha de Baltazar, ele não havia aprendido com os erros de seu pai Nabucodonosor, já que desprezara a Deus utilizando os utensílios do templo para banquetear-se e oferecer culto aos seus deuses, por isso seu reino lhe seria tirado e entregue aos medos e aos persas. Aqui, novamente, há uma referência ao rei Antíoco IV Epífanes quando este profana os vasos sagrados do templo.

29 HARTMAN; DI LELLA, Novo comentário bíblico São Jerônimo, p. 821.30 JOSEFO, História dos bebreus, p. 254.31 WISEMAN, Chronicles of Chaldaean Kings (626 – 556 BC) in the British Museum. Trustees of the British Museum, 1956, p. 2.

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Com as suas mãos imundas tocou nos vasos sagrados; e as oferendas dos outros reis, ali depositadas para incremento, glória e honra do santo Lugar, arrebatou-as com suas mãos profanas (2Mc 5. 16).

Os judeus são lembrados, por meio deste relato, que a verdadeira sabedoria vem de Deus e, como Senhor de tudo, ele estabelece e derruba os reinos humanos, da mesma maneira que o império Babilôni-co caiu. Todo reinado tirânico que se levante contra os desígnios de Deus, certamente, cairá, inclusive o reino de Antíoco IV Epífanes.

(f) Daniel na cova dos leões (6. 2-9)

Este é o último relato hagádico do livro de Daniel. Como nas demais “Lendas de fidelidade sob amea-ça”, o herói prefere sofreu o martírio a abandonar suas convicções religiosas. Deus provê o milagre àque-les que lhe são fiéis, e todos que permanecem fiéis tem sua convicção reconhecida.

Nessa narrativa, em especial não é especificamente o rei que se volta contra a religião judaica, mas seus oficiais que, por ciúme da posição política assumida por um estrangeiro, buscam ocasião para matar Daniel.

No texto, a situação problema é assim expressa:

Os ministros do reino e os magistrados, sátrapas, conselheiros e governadores,reuniram--se em conselho para estabelecer um decreto real e da força de lei ao interdito seguinte: Todo aquele que, no decurso de trinta dias, dirigir uma prece a quem quer que seja, deus ou homem, exceto a ti, ó rei, seja lançado na cova dos leões (Dn 6. 7).

Como em todas as “Lendas de fidelidade sob ameaça”, o personagem recusa-se a abandonar suas con-vicções de fé, ainda que esta postura o coloque em perigo.

Ao saber que o documento havia sido assinado, Daniel subiu para sua casa. As janelas do seu aposento superior estavam orientadas para Jerusalém, e três vezes por dia ele se punha de joelhos, orando e confessando se Deus: justamente como havia feito até então (Dn 6. 11).

Porém, quando o rei Dário ficou sabendo da condenação de Daniel, ficou muito perturbado, tentando de todas as maneiras livrar o sábio judeu. Como não conseguiu mudar o seu decreto por causa da lei dos medos e persas, passa a noite em claro. Esse texto faz alusão aos momentos finais do rei Antíoco IV, bem como seu arrependimento por tantos males feitos a Israel:

Ao ouvir tais notícias, o rei ficou aturdido e fortemente agitado. Lançou-se ao leito e caiu doente, acabrunhado por não lhe terem sucedido as coisas segundo o seu desejo. Permaneceu ali muitos dias, enquanto uma profunda tristeza se renovava continua-mente nele. Chegou mesmo a pensar que estava a ponto de morrer. Chamou todos os

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seus amigos e disse-lhes: ‘Sumiu o sono dos meus olhos e meu coração está abatido pela inquietação. E disse a mim mesmo: A que grau de aflição me vejo reduzido e em que imenso vagalhão agora me debato! Eu, que era tão bondoso e amado nos tempos do meu poder! Agora, porém, assalta-me a lembrança dos meus males que cometi em Jerusalém, quando me apoderei de todos os objetos de prata e ouro que lá se encon-travam e mandei exterminar os habitantes de Judá sem motivo. Reconheço agora que é por causa disto que estes males se abateram sobre mim. Vede com quanta amargura eu morro em terra estrangeira!’ (1Mc 6. 8-13).

Ao final, o herói, que se manteve fiel ao seu Deus é recompensado com o livramento. Além de ter o pleno reconhecimento do rei, Daniel ainda presencia a derrota de seus inimigos. Essa mensagem torna--se fundamental para os judeus que embora perseguidos e levados à morte, poderiam ter plena certeza de que Deus os livraria. Hartman e Di Lella ainda dizem:

Embora nada sugira uma data de composição após o período final persa ou final he-lenístico, os judeus na época de Antíoco IV Epífanes poderiam encontrar no capítulo 6 de consolo e incentivo em suas próprias provações religiosas. Deus protegê-los-ia até mesmo por meios miraculosos, porque tinha protegido Daniel na cova dos leões. Como Daniel eles também sentiram os efeitos do decreto de um rei pagão que fez da adoração pública de seu Deus, um crime punível pela morte.32

Nesse relato, aparece outra evidência de que o livro não propõe uma sequencia histórica bem orde-nada, antes procura transmitir uma mensagem de resistência a fim de exortar e consolar o judeu fiel. No inicio do sexto capítulo: “Pareceu bem a Dario constituir sobre o reino a cento e vinte sátrapas, que esti-vessem por todo o reino” (Dn 6. 1). O rei Dário, que, erroneamente, é chamado de medo, foi o sucessor e, não, antecessor de Ciro.33 Entre os documentos babilônicos antigos, especificamente, nas “Crônicas de Nebonido”, o relato da queda do império caldeu subjulgado pelo rei Ciro é assim transcrito:

[Décimo sétimo ano:] . . . No mês de Tashritu, quando Ciro atacou o exército de Aca-de, em Ópis sobre o Tigre, os habitantes de Acade se revoltaram, mas ele (Nabonido) massacrou os habitantes confusos. No 14.° dia, Sipar foi capturada sem batalha. Nabo-nido fugiu. No 16.° dia, Gobrias (Ugbaru), governador de Gutium, e o exército de Ciro entraram em Babilônia sem batalha. Depois, Nabonido foi preso em Babilônia quando ele voltou ( lá). . . . No mês de Arahshamnu, no 3.° dia, Ciro entrou em Babilônia, galhos verdes foram espalhados diante dele — o estado de ‘Paz’ (lulmu) foi imposto sobre à cidade.34

32 HARTMAN, DI LELLA, Novo comentário bíblico São Jerônimo, p. 823.33 SELLIN, E; FOHRER, G. Introdução ao Antigo Testamento. Trad. D. Mateus Rocha. São Paulo: Academia Cristã/Paulus, 2012, p. 668.34 PRITCHARD, James B. Ancient Near Eastern Texts Relating to the Old Testament. 3. ed. Trad. A. Leo Oppenheim. Princeton: Princeton University Press, 1969, p. 306.

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Dobroruka ainda destaca as dificuldades do autor na reconstituição histórica do período do exílio judaico na Babilônia:

As dificuldades da sequência daniélica (Babilônia - Média, que na realidade existiram em ordem inversa) desaparecem quando pensamos que na lenda original o primeiro império era o assírio: o autor de Daniel adapta o tema à Babilônia, onde aparentemen-te vive e profetiza. A ignorância do autor quanto à história do séc.VI a.C. fica patente quando ele fala de “Dario, o Medo”, que nunca existiu.35

As evidências históricas apontam para o fato de que o texto de Daniel não propõe uma sequência his-tórica, o texto tem, antes, um propósito a ser cumprido, e serve como ensinamento para o tempo no qual foi escrito. Sousa, referindo-se a fixação e datação do texto e do seu propósito não historiográfico diz:

Trata-se, sim, de várias tradições que parecem estar fixadas na consciência popular, mesmo sem o conhecimento claro da localização dos personagens em seu momento histórico. Podemos compreender isso com o fato de que os textos teriam sido escritos bem depois dos períodos estabelecidos nas narrativas. Assim a data da narrativa não é idêntica a data de sua fixação escrita. Em outras palavras, tratam-se de histórias que já vinham sendo contadas há muito tempo, que foram consolidadas na tradição do povo, mas só muito tempo depois foram fixadas por escrito, com interesse de servir de lição para o momento em que estavam sendo registradas.36

Vale ressaltar que é necessário ao leitor contemporâneo, ao identificar o texto como “desajeitado” ou, até mesmo, pressupor certa “ignorância” histórica, perceber que o problema se dá pela falta de en-tendimento da perspectiva do autor, tendo em vista que este tem como intenção primária mostrar aos portadores do apocalipse canônico de Daniel que a história se processa de forma gradual, o mal estaria em continua evolução até atingir sua plenitude no tempo em que o livro foi escrito.

A mensagem final que perpassa todos os contos de corte presentes no livro de Daniel é que, ao o final, todos que se opõem ao povo escolhido perceberão suas atitudes errôneas. Por mais caótica que a história pareça, ao final, chegará a almejada solução, pois tudo está sob o controle de Deus.

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35 DOBRORUKA, Vicente. Apocalipse e história. Brasília: Universidade de Brasília, 2011, p. 10.36 SOUSA, Daniel: uma panorâmica do apocalipse anticuo-testamentário, p. 7-8.

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O MOVIMENTO APOCALÍPTICO E MACABEUCOMO PROTESTO AO DOMÍNIO HELÊNICO

Bruna Jéssica Cabral [email protected]

Graduanda em Licenciatura em História. Universidade Estadual de Feira de Santana__________________________________________________________________________

Introdução1

Este artigo dedica-se às relações entre o movimento apocalíptico, no livro de Daniel (Dn), e o Movi-mento Macabeu (Mc). Segundo Kessler, tanto o livro de Daniel, quanto os livros de Macabeus se esten-

1 Artigo apresentado no seminário “O helenismo no Médio Crescente e o pensamento ocidental", na Universidade Estadual de Feira de Santana, sob orientação do professor Dr. Ágabo Borges de Sousa.

RESUMO

A partir de situações duras e sofridas da população que vivia sob o domínio dos poderosos, pouco a pouco, vão surgindo movimentos que irão lutar contra o modo de viver Helênico, através do Deus protetor. O artigo procura apresentar o Movimen-to apocalíptico e Macabeu como forma de resistência ao modus vivendi Helênico. Nesse sentido, é necessário compreender a forte presença helênica, não somente do ponto de vista do movimento político, mas também o que representava para o cotidi-ano e prática religiosa do povo. Nessa conjuntura, é imprescindível pensar nas visões apocalípticas do Livro de Daniel e na resistência armada da era macabaica.

Palavras-chave: Apocalipse – Daniel – Macabeus – Helenismo – Judaismo

ABSTRACTFrom tough situations and suffered the population living under the rule of the

powerful, little by little, are emerging movements that will fight against the Hellenic way of life through God guard. The article presents the apocalyptic Movement and Maccabee as a form of resistance modus vivendi Hellenic. Therefore, it is necessary to understand the strong Hellenic presence, not only from the standpoint of the political movement, but also what accounted for the daily life and religious practice of the people. At this juncture, it is imperative to think in apocalyptic visions of the Book of Daniel and the armed resistance was Maccabean.

Keywords: Apocalypse – Daniel – Maccabees – Hellenism – Judaism

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dem para dentro do século II a.C.2

Com a ajuda dos textos de Macabeus e Dn, além da documentação escrita pelo autor judeu Flávio Josefo, é de grande importância enfatizar-se as opressões ocorridas no Médio Crescente. Além disso, para melhor compreensão desses movimentos, é preciso lembrar-se das causas que os constituíram, des-tacando-se o Período Helenístico da época de Alexandre. A política de helenização empreendida por ele se intensificou durante o período de dominação ptolomaica.

Esse período se propôs a tarefa de conduzir a uma só civilização as civilizações do ocidente e do oriente tendo como base a cultura grega que ele próprio herdara. Dessa maneira, a compreensão do con-texto sócio-histórico que provocou o surgimento do movimento apocalíptico e Macabeu,vai estar mais clara para que se compreenda a penetração da cultura helenística e o confronto entre essas civilizações.

1. Período helenista

Segundo Soares3, o termo Helenismo é comumente aplicado à cultura e à civilização gregas, ao con-junto de idéias e costumes que caracterizaram o mundo habitado, desde Alexandre até os tempos do Império Romano, ou seja, a partir do IV século a.C. até a Era Cristã. A intenção de Alexandre era ensinar gregos e asiáticos, a se aceitarem como parceiros no seio de sua cultura, estabelecendo cidades gregas e colônias por todo o seu império. Um fator que facilitou a helenização foi a rápida difusão da língua grega.

O posicionamento de Kessler aponta que a história dos eventos do período helenístico está bem es-truturada, embora alguns detalhes possam parecer confusos. Alexandre Magno dominou a revolta grega iniciada após a morte de seu pai, Filipe II, e colocou em prática o plano de conquistar o Oriente, aliado aos gregos.4

As conquistas de Alexandre, rei da Macedônia, levaram a civilização grega a todo o oriente.5 Mas já no ano de 323, Alexandre morre na Babilônia. Seu império foi dividido entre os chefes de seu exército: Antígono recebeu a Ásia; Seleuco, a Babilônia e as nações vizinhas; Lisímaco, o Helesponto; Cassandro, a Macedônia, e Tolomeu, filho de Lago, o Egito. Houve divergências entre eles com relação ao governo, as quais causaram sangrentas e longas guerras, desolação em várias cidades e a morte.6

No ocidente, estabeleceram-se dois reinos que determinaram posteriormente a história do judaísmo.

2 KESSLER, Rainer. História social do antigo Israel. São Paulo: Paulinas, 2009, p. 214.3 SOARES, Dionísio Oliveira. As influências persas no chamado judaísmo pós-exílico. Revista Theos 5.2 (2009): 7.4 KESSLER, História social do antigo Israel, p. 214.5 JARDÉ, Auguste. A Grécia antiga e a vida grega. Trad. Gilda Maria Reale Starzynsky. São Paulo: Editora Pedagógica e Uni-versitária, 1977, p. 95.6 JOSEFO, Flávio. História dos hebreus: de Abraão à queda de Jerusalém. Trad. Vicente Pedroso. 8. ed. Rio de Janeiro: CPAD, 2004, p. 519.

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Após a morte de Alexandre, seus sucessores não conseguiram manter unido o vasto império, que se dividiu em três, dos quais, dois foram mais importantes: o Egito, do general Ptolomeu e a Ásia, do general Seleuco.

Antíoco III garantiu, aos judeus, o livre exercício de sua religião, e o estatuto do território judaico não foi alterado, mas sofreu em 190 ou 189 uma profunda derrota contra Roma, que o levou a uma gradativa exploração dos povos a ele submetido. Segundo Droboruka, logo depois, em 188, começam os proble-mas com os novos senhores: a derrota selêucida para Roma e a paz de Apaméia obrigaram Antíoco IV Epífanes a pagar enorme indenização de guerra aos romanos, prejuízo que ele repassou a seus súditos.

As mudanças a partir do poder seleucida foram importantes, no que diz respeito à situação político social, religioso e cultural do povo de Judá.

Depois de saquear toda a cidade, mandou matar uma parte dos habitantes e levou dez mil escravos com suas mulheres e filhos. Mandou queimar os mais belos edifícios, destruiu as muralhas e construiu, na Cidade Baixa, uma fortaleza com grandes torres, as quais dominavam o Templo, e lá colocou uma guarnição de macedônios, entre os quais estavam vários judeus,tão maus e ímpios que não havia males que não infligis-sem aos habitantes.7

Além disso, mandou que construíssem um altar no Templo e ordenou que sacrificassem porcos, o que contraria a religião judaica. As liberdades civis e religiosas foram suspensas, os sacrifícios diários forma proibidos e um altar a Júpiter foi erigido sobre o altar do holocausto. A construção de lugares de culto “pagãos” no resto do território contribuiu para a exasperação da comunidade

Toynbee8, aponta que o espetáculo de sacerdotes de Iahweh fazendo ginásticas inteiramente nus, ou trazendo apenas um capacete grego de proteção contra o sol, constituiu uma ofensa para os judeus, e a política de Jasão provocou a resistência armada.

Antíoco IV revidou, em 167 a.C., dedicando o templo de Iahweh, em Jerusalém, ao Zeus Olímpico, e colocando uma estátua desse deus helênico no Supremo Santuário. A partir desses exemplos, percebe-se que a cultura Helênica influenciou o modus vivendi helênico, e as ideias defendidas pelos próprios chefes de Jerusalém não correspondiam mais aos princípios de vivência judaica.

A helenização incluía a frequência aos teatros gregos, vestes ao estilo grego, a cirurgia que removia as marcas da circuncisão e a mudança de nomes hebreus para gregos. Além disso, é colocado sobre o altar de sacrifício um objeto que, aos olhos dos judeus, é abominável.

A sociedade do antigo Israel passa de propriedade provincial persa para o mundo judaico da época helenística. Isso tornou a situação do Médio crescente ainda mais crítica. Em suma, foi uma idade mar-

7 JOSEFO, História dos hebreus, p. 548.8 TOYNBEE, Arnold Joseph. Helenismo: história de uma civilização. Rio de Janiero: Zahar, 1969.

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cada por sincretismo, não só cultural, mas também religioso, que causou grande ansiedade no meio de, pelo menos, algumas das comunidades judaicas.9

2. O movimento macabeu

A imposição de medidas vexatórias em relação à autonomia dos judeus e a exigência de praticar a religião estrangeira, em um contexto social e religioso tão degradado, levarão à revolta macabaica. Em meio à opressão, havia muitos judeus abertamente helenizados e os contrários, com contatos estreitos ao helenismo. O que se pretende demonstrar com o Período Helenístico, é frisar que todos esses fatos mencionados provocaram a explosão da revolta armada dos Macabeus no ano 166, iniciada por Matatias (1Mc 2. 15-28).

O movimento foi liderado pelos seus três filhos: primeiro, por Judas Macabeu (166-160); em seguida, por Jônatas (160-143) e por Simão (143-134). Infelizmente, esse movimento, tão bem iniciado, foi des-falcado pelos seus próprios dirigentes. A vontade de domínio desviou Jônatas e, sobretudo, Simão, do ideal do Matatias.

Kessler afirma que no ano de 168 é decretada a proibição da religião judaica e a introdução de ações cultuais que não fossem judaicas. Isso levou a um levante sob a liderança de Judas Macabeu.10 Logo em seguida, há uma mudança de governo entre os selêucidas, e o movimento de resistência dos Macabeus volta a lutar. Para uma melhor explicitação do que é dito, Flávio Josefo aponta: Judas, após obter tão grandes vitórias sobre os generais do exército de Antíoco, persuadiu os judeus a ir a Jerusalém dar graças a Deus, como lhe eram devidas, purificar o Templo e oferecer sacrifícios.11

É possível se perceber como o helenismo penetrou em Israel e no modus vivendi de Judá. Além disso, para alguns Judeus a helenização era bem vinda, para outros, representava uma ameaça aos costumes judaicos, como se pode ver em 1Mc 1. 11-15:

Por esses dias apareceu em Israel uma geração de perversos, que seduziram a mui-tos com essas palavras: “ Vamos, façamos alianças com as nações circunvizinhas, pois muitos males caíram sobre nós desde que delas nos separamos. Agradou-lhes tal modo de falar. E alguns dentre o povo apressaram-se em ir com o rei, o qual lhes deu autorização para observarem os costumes pagãos. Construíram, então, uma praça de esportes, segundo os costumes das nações, restabeleceram seus prepúcios e renegaram a aliança sagrada. Assim associaram-se aos pagãos e se venderam para fazer o mal.12

9 RUSSEL, D. S. Desvelamento divino: uma introdução à apocalíptica judaica. Trad.João Rezende Costa. São Paulo: Paulus, 1997, p. 36-37.10 KESSLER, História social do antigo Israel, p. 217.11 JOSEFO, Flávio. História dos hebreus, p. 554.12 BÍBLIA. Português. Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002.

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Antíoco IV, em 167 a.C, apoiado pelo sumo sacerdote Menelau, nomeado por ele, invade o templo de Jerusalém, impede o sacri¬fício perpétuo, e introduz a estátua da divindade grega, a abominação da desolação (Dn 11. 31), e começa a perseguir aos que querem continuar fieis à tradição dos pais (2Mc 6. 1-7, 42).

Por intermédio de mensageiros, o rei enviou a Jerusalém e às cidades de Judá, cartas prescrevendo que aceitassem os costumes dos outros povos da terra, suspendendo os holocaustos, os sacrifícios e as libações no templo, violassem os sábados e as festas, e fossem obrigados a sacrificar porcos e animais imundos.

3. A literatura apocalíptica no livro de Daniel

O livro de Daniel é mais que uma literatura isolada, é reflexo de um movimento maior. Esse movi-mento será como a ação conflitante de grupos sociais distintos que lutam pelo controle do sistema de realização histórica. Em Dn 7 fala-se dos “santos do Altíssimo”, ou “povo dos santos do Altíssimo”, per-seguidos pelo tirano. Dn 7–12 é um apocalipse histórico, expressão da opressão dos judeus entre os anos 170 e 164 a.C., no qual a esperança em um final iminente do sofrimento por vontade do Deus de Israel, Dono e Senhor da História, é garantida pela revelação excepcional feita a Daniel, personagem lendário e do passado. Pois bem, diante da dor intensa da qual nasce o apocalipse, surge também a questão da responsabilidade do sofrimento.

Ainda, segundo a concepção de Sousa,13 podemos dizer que o movimento apocalíptico de Daniel chama os seus fiéis à sua religiosidade pela promessa de liberdade e vida eterna, “mesmo que isso signi-fique ameaça de morte - fornalha, cova de leões, prisão etc. - pois, há um fim, enquanto finalidade, para onde eles se dirigem.” A partir de 167 a.C, no calor do conflito entre judeus e gregos, foram produzidas as revelações, especificamente entre os capítulos 7-12 (Daniel é apresentado como “chefe dos magos”, dos encantadores... e dos adivinhadores” (magos; feiticeiros; astrólogos, adivinhos), com a intenção de conduzir os judeus à lealdade e de consolá-los frente à atribulação vivida no processo de aculturação.

Para um melhor entendimento do que vem a ser apocalipse, Nogueira descreve que a maioria dos apocalipses no livro de Daniel parece ser obscura. O resultado disso serão interpretações e imagens es-tranhas.14

Ainda na perspectiva de Nogueira, a linguagem da crise apocalíptica se repete: há o pessimismo histó-rico, perspectiva religiosa e o determinismo. O movimento apocalíptico no Livro de Daniel, envolvendo o processo da aculturação helenística, mostra a complexidade dos conflitos culturais e religiosos.

13 SOUSA, Ágabo Borges de. O diálogo das escolas filosóficas do II século e a influência dos movimentos helenizantes no médio crescente, a partir da literatura apocalíptica veterotestamentária. UEFS. 23/11/2011. CONSEP 192/2011.14 NOGUEIRA, Paulo Augusto. O que é apocalipse. São Paulo: Brasiliense, 2008

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Collins também traz a sua definição do que vem a ser apocalipse:

Um gênero de literatura inserido numa moldura narrativa, na qual uma revelação é mediada por um ser do outro mundo para um receptor humano, revelando uma realidade transcendente a qual é, tanto temporal, na medida em que visa à salvação escatológica, quanto espacial, na medida em que envolve outro mundo, um mundo sobrenatural.15

Soares, através dos estudos sobre a literatura apocalíptica, descreve que os apocalipses históricos po-dem ter, como meio de revelação, a visão de um sonho simbólico (como em Daniel 2 e 7), a epifania, um discurso angelical, um diálogo de revelação.16

Percebemos, então, uma literatura com características de revelação e um provável futuro de libertação. Nas palavras de Collins, “estas visões são comumente vivenciadas por heróis judeus e interpretadas para eles por anjos.” John Collins afirma que a maioria desses apocalipses aparece de forma silenciosa, no sentido das pessoas esperarem que o mundo seja mudado por meio da intervenção divina e não da ação humana.

Muitos movimentos religiosos são influenciados pela literatura apocalíptica, já que suas doutrinas se fundamentam nesse livro, especialmente na tradição judaico-cristã. Para Collins, um apocalipse não é constituído por um ou mais temas distintivos, mas por uma combinação de elementos, os quais são encontrados em outros lugares. Dn representa seu tempo, na mais profunda percepção de um momento de crise, vivido na terra dos judeus em conflito contra o helenismo.

A compreensão de Chevitaresi (2004) traz a proposta apocalíptica como uma união das facções, vi-sando a uma resistência cultural e religiosa contra a opressão helênica. A literatura apocalíptica, então, é compreendida como um protesto a essa situação. Os judeus antigos acabaram criando o seu “universo simbólico”, em resposta à experiência da alienação e opressão que viviam pelo poder dominante: as au-toridades políticas e religiosas da época. O livro de Dn 1, especialmente, é uma reação ao modus vivendi helênico, mesmo para aqueles que estão envolvidos na administração de Judá.17

Segundo Sousa, há, ainda, a questão da localização do livro, o Daniel a que nos referimos é o da apocalíptica judaica (um antigo herói), cujo nome já era conhecido dos judeus há vários séculos. A iden-tidade do protagonista é bastante diversa; isso tem trazido também muita discussão dentro da própria tradição judaico-cristã.18

15 COLLINS, John J. A imaginação apocalíptica: uma introdução à literatura apocalíptica judaica. São Paulo: Paulus, 2010, p. 416 SOARES, Dionísio Oliveira. A literatura apocalíptica: o gênero como expressão. Horizonte 7.13 (2008): 98.17 CHEVITARESE, André Leonardo. Fronteiras culturais no mediterrâneo antigo: gregos e judeus nos períodos arcaico, clássico e helenístico. Politeia 4.1 (2004): 69-82.18 SOUSA, O diálogo das escolas filosóficas do II século e a influência dos movimentos helenizantes no médio crescente...

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4. O movimento apocalíptico e macababeu como protesto ao domínio helê-nico

Como é afirmado logo na introdução, as grandes visões do livro de Daniel demonstram ser do perío-do macabaico, sendo que esses movimentos pretenderam proteger o patrimônio religioso e cultural de Judá. É certo que, para alguns judeus a helenização era bem-vinda, enquanto, para outros representava uma ameaça aos costumes judaicos.

Os livros têm em comum um forte sentimento de fidelidade aos princípios da religião judaica, haven-do uma ideia de controle divino da história e a outra de livrar os judeus que vivem a opressão da domi-nação estrangeira, existindo um mesmo ideal de resistência, de confiança, de lealdade e de temor a Deus. Daniel é um importante testemunho histórico do período e traz representações inerentes ao contexto judaico-helenístico da revolta macabaica contidas em suas revelações.

Mesters e Orofino mencionam que é, a partir de todos esses acontecimentos e movimentos, que as ideias apocalípticas se espalham e fermentam entre as camadas mais pobres e oprimidas do povo sem defesa, produzindo seus escritos. As grandes visões do livro de Daniel são desse período dos macabeus.19

Em Dn 12. 2, é possível perceber como as prescrições sagradas faziam parte do cotidiano do povo de Judá: “Muitos dos que dormem no solo poeirento acordarão, uns para a vida eterna e outros para opró-brio, para o horror eterno.”

Havia, ainda, a dificuldade de manter-se fiel às escrituras sagradas em um ambiente governado pela interação cultural com gregos e os povos de Judá de costumes distintos. Nesse capítulo, é possível se perceber que a fidelidade poderia recompensá-los em outra vida. A partir dessas evidências, pode-se concluir que Dn representa o seu tempo, onde há revelações de um futuro sem opressão, vivido na terra pelos judeus e helenos em um combate cultural, político e social. Nas visões de Daniel, há claras indi-cações de sua proveniência histórica, o que permite datá-las entre 167 a.C, quando da profanação do templo, e o fim de 164 a.C, porém antes da morte de Antíoco IV Epífanes.

A visão de Daniel, no capítulo 11, se desenrola em 1Macabeus 1. É possível se compreender a visão de Dn 11. 21 a respeito da adoração dos cultos pagãos. Daniel aparece com uma visão de um provável futuro de libertação para a população que vivia a opressão em Judá:

Dn 11-21, 24:

Em seu lugar levantar-se-à um miserável, a quem não se dariam as honras da realeza. Sorrateiramente penetrará nas regiões mais férteis da província e fará o que não ha-viam feito seus pais e nem os pais de seus pais: distribuirá despojo, lucros e riquezas entre os seus, maquinando planos contra as cidades fortificadas, mas isto até certo tempo.

19 MESTERS, Carlos; OROFINO, F. Apocalipse de São João: a teimosia da fé dos pequenos. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 31-32.

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1Mc 1. 41, 45. 50:

O rei prescreveu, em seguida, a todo o seu reino, que todos formassem um só povo, renunciando cada qual a seus costumes particulares. E todos os pagãos conformaram--se com o decreto do rei. Quanto a quem não agisse conforme a ordem do rei, esse incorreria em pena de morte.

Daniel teve uma visão em que o povo de Judá se liberta dos cultos pagãos. Apesar das dificuldades de compreensão dessa literatura, é possível identificar a relação entre esses movimentos. Estes tinham um objetivo em comum, procuravam buscar uma solução para a não-dominação estrangeira.

Flávio Josefo descreve que Judas Macabeu recupera o templo que fora destruído e queimado pelos estrangeiros helênicos e, para isso, coloca uma mesa e um altar de ouro completamente novos. Mandou colocar também, portas novas e depois destruiu o altar dos holocaustos, porque fora profanado, man-dando fazer um novo.

Isso se deu no mesmo dia em que, três anos antes, o Templo fora indignamente profa-nado por Antíoco e abandonado, no dia vinte e cinco do mês de apeleu, no ano cento e quarenta e cinco, e na Olimpíada cento e cinqüenta e três. A renovação ocorreu no mesmo dia do ano cento e quarenta e oito e da Olimpíada cento e cinqüenta e quatro, como o profeta Daniel havia predito,quatrocentos e oito anos antes, dizendo clara e distintamente que o Templo seria profanado pelos macedônios.

Através da concepção de Flávio Josefo, é possível perceber a relação existente entre os dois modelos de resistência. Mas, uma problemática deve ser colocada em questão, a localização histórica do livro de Daniel, que é bastante instável: o personagem central teria mais de II séculos de vida. O que se pode afirmar é que a redação histórica do livro Macabeus é do II século a.C., porque ele descreve a divisão do reino pós-alexandrino em quatro reinos, a morte de Alexandre, seguido dos poderes selêucidas e ptolomeus.

Esse artigo procurou analisar a ligação entre esses movimentos e as visões de Daniel que previam um futuro de libertação para o povo de Judá. Conclui-se que o helenismo influenciou o modus vivendi dos judeus, e, especialmente, no âmbito religioso e cultural.

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OS HERDEIROS DO MOVIMENTO APOCALÍPTICO EM ISRAEL

Ezequiel da Silveira de SouzaPós-graduando em Teologia do Novo Testamento. Faculdade Batista do Paraná

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IntroduçãoA influência da cultura grega é objeto de pesquisa em vários círculos acadêmicos, sua força e influên-

cia ultrapassam gerações. Poucas foram as nações que conseguiram resistir ao avanço helênico, especial-mente sob o governo de Alexandre. É nesse contexto que voltamos o nosso foco para o Médio Crescente, mais especificamente, para Israel, não quanto Estado, mas para a grandeza histórica que tem a partir da unidade das tribos no período davídico. Povo conquistado territorialmente, porém, que resiste ao modus vivendi helenizante.

Esse estudo/pesquisa nasce como reação às provocações do Prof. Dr. Ágabo Borges de Sousa ao Gru-po de pesquisa As Escolas Filosóficas do II Sec. AC. e o Movimento Apocalíptico de Daniel (UEFS), a saber:

1. Quais seriam os grupos ou escolas por trás das produções apocalípticas literárias em Israel nos, aproximadamente, três séculos que separam o livro de Daniel, composto entre o ano de 167-164 a.C., e o Apocalipse, entre 90 e 96 d.C.?

RESUMO

Neste artigo, pretendemos abordar, ainda que em linhas muito introdutórias, a importância do movimento apocalíptico para a continuidade do judaísmo frente a helenização. Apontaremos os grupos que deram continuidade a esse movimento em Israel. Dos escritos mais conhecidos(canônicos) que fazem uso da apocalíptica como literatura, dois terão grande destaque o livro de Daniel, composto no II sec aC., e O Apocalipse, I sec dC. Esses livros são separados por aproximadamente três séculos de um movimento popular ininterrupto de produção literária, criando uma conexão de interdependência contextual entre um e outro. Buscaremos, através deste trabalho, apresentar, não a produção literária, mas os herdeiros desse movimento, ou seja, os grupos ou escolas por trás dessas literaturas.

Palavras-chave: Movimento – Apocalíptico – Resistência

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2. Qual seria o ponto comum, o eixo central, entre a cultura judaica e esses grupos de resistência frente à helenização?

Neste trabalho, apresentaremos a importância do movimento apocalíptico para a continuidade do judaísmo frente à helenização e apontaremos os grupos que lhe deram prosseguimento em Israel, em meio a essa pressão como nos aponta Bank:

Logo após as tropas de Alexandre entrarem em Jerusalém, a cidade se viu cercada por um anel de cidades “gregas”, as quais surgiram através da Samaria judaica e Judá. Como a maioria dos povos vencidos pelos gregos, muitos judeus abraçaram de boa vontade o helenismo - na verdade, a cultura grega permeava inúmeros níveis da co-munidade judaica.1

Pretendemos, ainda que de forma superficial, demonstrar a importância desse período histórico e do movimento apocalíptico através dos grupos/herdeiros para a compreensão do Apocalipse de João, enten-dido, muitas vezes, de forma literal, dispensacionalista, isolado do seu contexto e origem.

Dos escritos mais conhecidos (canônicos) que fazem uso da apocalíptica como literatura, dois terão grande destaque o livro de Daniel, composto no II sec. a.C. e o Apocalipse, no I sec. d.C. Esses livros são separados por, aproximadamente, três séculos de um movimento popular ininterrupto de produção literária, criando uma conexão de interdependência contextual entre um e outro. Buscaremos, através deste trabalho (pesquisa), apresentar, não a produção literária, mas os herdeiros desse movimento, ou seja, os grupos ou escolas por trás dessas literaturas, seus costumes e influências, tão importantes para a sobrevivência de Israel e de sua cultura.

É objetivo deste estudo, também, demonstrar como o movimento apocalíptico é o eixo central dos movimentos de resistência ao helenismo no Médio Crescente, estabelecendo-se um ponto comum (fide-lidade ao único Deus e a sua Lei a Torá) a partir da literatura apocalíptica. Esse movimento se mostrará importante e relevante em momentos decisivos para o povo de Israel, como nos indica Köester:

O movimento apocalíptico foi o único fator relevante no cenário religioso de Israel no pe-ríodo helenístico. Ele também desempenharia papel decisivo na formação do cristianismo. O apocaliptismo inspirou a revolta dos Macabeus, deu origem e manteve a comunidade dos Essênios e alimentou a Guerra Romano-Judaica de 70 d.C. O movimento apocalíptico foi também o intermediário da herança de Israel e de sua tradição profética para João Batis-ta e Jesus e seus seguidores, e serviu de ponte essencial entre o Antigo e o Novo Testamento. Além disso, o apocaliptismo foi fator decisivo em movimentos de protesto, renovação e libertação em formas posteriores tanto do judaísmo como do cristianismo.2

1 BANK, Richard D; GUTIN, Julie. O livro completo sobre a história e o legado dos judeus: de Abraão ao sionismo. Trad. Julia Vidili. São Paulo: Madras, 2004, p. 134.2 KÖESTER, Helmut. Introdução ao Novo Testamento. Vol. 1: História, cultura e religião do período helenístico. São Paulo:

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1. O início do movimento apocalíptico

O povo judeu havia enfrentado o processo de dominação outras vezes, e esse movimento de resistên-cia encontra seus adeptos/herdeiros ao longo da história. O ano de 586 a.C. (queda de Jerusalém) é apon-tado por Pablo Richard como sendo o momento desencadeante de uma evolução na literatura em Israel. Após essa data, o povo teria ficado sem as referências básicas para a sua continuidade. Essas necessidades e esse novo momento fazem surgir a apocalíptica, como aponta Richard:

Antes dessa data, o povo possuía a terra, tem uma monarquia e uma classe dirigente (sacerdotes, escribas, funcionários) [...] no ano de 586, todo este mundo desmorona, e o povo da terra fica sem qualquer referência econômica, política, cultural ou religiosa. Nesse momento nasce a apocalíptica que busca reconstruir a consciência criando sím-bolos e mitos novos que tornam possível a reconstrução do povo.3

O movimento apocalíptico cria um universo simbólico próprio, contrapondo-se ao mundo imperial persa, tendo como objetivo a restauração do povo, e, para tanto, tenta restabelecer seus referenciais bási-cos, como descreve Richard: “O objetivo do movimento apocalíptico é a restauração do templo e do culto (religião4), seja através de Israel ainda que não seja fundamentalmente, a partir das estruturas, mais da reconstrução da própria identidade povo e da lei”.5

O ano de 586 aC. será importante, ainda, pelo retorno da elite israelita exilada na Babilônia. Este será um momento marcado também por vasta produção literária, a exemplo dos livros de Ezequiel, de Zacarias, entre outros. Esses serão lidos e relidos por este movimento, servindo de base para outras produções posteriores.

O movimento apocalíptico torna-se um movimento de resistência, especialmente, naquilo que tenta descaracterizá-los na própria identidade como povo, a saber: sua religião e suas leis. É exatamente o que se constata quando a historia se repete na dominação helênica de Israel. É importante salientar que, antes dos gregos, todos os impérios que dominaram Israel eram do Oriente. Com a dominação helênica, não se dá apenas uma troca de donos sobre Israel, há outra mudança significativa. Os gregos impõem outro modo de vida, outra cultura: o helenismo.

A cultura helênica trouxe profundas mudanças para a vida dos judeus. Embora haja interesses polí-ticos e econômicos envolvidos nas inquietações e resistência do povo dominado (Israel), a sua religião e lei são vistas como ponto central desta resistência e servem como estopim da revolta macabaica, como descreve Hosley:

Antíoco finalmente fez algo que não era característico dos soberanos helenisticos. De-cretou o abandono compulsório dos costumes judaicos tradicionais e da observância

Paulus, 2005 (Bíblia e Sociologia), p. 232.3 RICHARD, Pablo. Apocalipse: reconstrução da esperança. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 23-24.4 Acréscimo do pesquisador.5 RICHARD, Apocalipse, p. 24.

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da lei. Isso envolveu a cessação do culto do templo, a descaracterização de coisas sa-gradas para o judeu, a queima de rolos da Torá e propagação do paganismo pela força.6

A violência com que Antíoco Epifanes impôs a reforma helenizante causa, ainda,segundo Hosley, uma crise de fé entre os judeus e é em reposta a essa crise que o movimento apocalíptico ressurge com grande produção literária. A essa época se atribuem produções como a Assunção de Moisés, 1Enoc 85-90, o livro de Daniel, entre outros.

Aceitar a reforma significaria abandonar a sua fé em Deus e sua obediência à Torá. Mas a resistência à reforma significava enfrentar a morte no martírio. Qualquer das duas alternativas parecia levar ao fim inevitável da fé judaica.7

A literatura apocalíptica vai ser o elemento central, motivador, da revolta macabaica. A expectativa da intervenção de Deus na história não os paralisa, antes é interpretada como convocação para que eles sejam sujeitos históricos, fazendo acontecer as mudanças necessárias.

Essa resistência culminará na revolta macabaica e é, neste contexto, que conheceremos os herdeiros do movimento apocalíptico. Segundo Richard , embora a rebelião seja conhecida como revolta macabai-ca pelo nome do seu líder: Judas Macabeu (o martelo), esse não teria sido o seu instigador, ou único líder. Os assideus teriam liderado junto com ele.8

1.1. Os assideus

Para Köester, os assideus é que formaram a espinha dorsal da revolta macabéia e teriam surgido an-tes da dominação helênica. Eles estavam ligados a escolas de sacerdotes e de escribas que se dedicavam à tarefa de copiar livros proféticos antigos e, também, produzir literatura apocalíptica nova. Partes do livro de Enoc foram escritas antes da revolta dos macabeus, enquanto o livro de Daniel, escrito durante a revolta, representa as experiências dos revolucionários. Seu autor não antevê a instalação do Estado na-cional realizado pelos hasmoneus, mas espera que Deus anuncie um novo mundo em que o povo eleito se torne soberano das nações.

A nova situação política ficou muito longe da percepção ansiada. Assim, para sobreviver, o movimen-to dos assideus precisava se colocar em oposição ao culto oficial do templo, isto é, como seita. Por isso os conceitos apocalípticos só sobreviveram em correntes escatológicas, a exemplo dos essênios, fariseus e, mais tarde, os cristãos.

Eduard Lohse comunga dessa ideia, acrescentando um grupo importante, os saduceus. Ele lista, a partir do historiador Josefo, três escolas filosóficas. Segundo ele, as principais fontes para o conhecimen-

6 HORSLEY, Richard. Bandidos, profetas e messias: movimentos populares no tempo de Jesus. São Paulo: Paulos, 1995, p. 32.7 HORSLEY, Bandidos, profetas e messias, p. 32.8 HORSLEY, Bandidos, profetas e messias, p. 32.

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to dos chamados partidos religiosos, encontram-se em Flávio Josefo, onde surpreende o grande espaço dado à descrição dos Essênios.9 Josefo (Guerra Judaica II) foi o primeiro a descrever o judaísmo dividido em três grupos, e mais um quarto que representava os vários grupos rebeldes nos tempos romanos. O que Josefo tinha em mente eram os saduceus, os fariseus, os essênios.

1.2. Os saduceus

Segundo o Eduard Lohse, o termo saduceu designa as famílias sacerdotais que apoiaram e que in-dicavam o sumo sacerdote durante os períodos herodiano e romano. A palavra saduceu vem de Sadoc, sacerdote do tempo de Davi e de Salomão (2Sm 8. 17; 1Rs 1. 8; 2. 35).

Isso justificava a alegação de eles serem seus sucessores legítimos. Ezequiel e Esdras afirmaram que os sumos sacerdotes deviam sair sempre do meio dos descendentes de Sadoc, o sumo sacerdote de Davi (Ed 7. 2; Ez 40. 45-46; 43. 19, etc.). A legitimidade dessa exigência era questionada pelos que haviam se retirado para Qumran, que protestavam contra o exercício ilegítimo da função sacerdotal por Simão hasmoneu que não era sadoquita.

Existem duas dificuldades para o entendimento do grupo dos saduceus. A primeira, é que somente podemos conhecê-los por meio de seus oponentes (fariseus, rabinos, Josefo e o NT). A segunda, é o fato de que o partido tinha aspectos que, à primeira vista, parecem ser irreconciliáveis: o conservadorismo religioso e o liberalismo cultural eram uma estranha combinação na atitude dos saduceus.

De qualquer modo, os saduceus aparecem como os fiadores do estrito cumprimento da legislação do templo, do culto e da lei escrita. Sua obrigação era interpretar a lei, e insistiam em que somente sua apli-cação literal era apropriada. Os Profetas e os Escritos não eram rejeitados, mas também não eram aceitos como manifestações de autoridade. Segundo Josefo, os Saduceus rejeitam a tradição oral e não aceitam nenhuma idéia teológica que não esteja documentada na lei escrita.

Essa descrição coincide com as características que revelam no NT, onde eles aparecem se opondo ao ensinamento dos Fariseus sobre a futura ressurreição dos mortos (Mc 12. 18-27). Por isso, para eles, recompensas e castigos ocorrem apenas na esfera da vida sobre a terra, pois são as consequências ime-diatas das ações humanas; não existe nada que se possa chamar de destino. Essas idéias combinam com a afirmação feita nos Atos (At 23. 8).

Em função da sua posição social, os Saduceus tinham grande poder religioso, político e econômico. Eles controlavam o templo (o Banco Central da época) e a administração da justiça no Sinédrio. Assim, a aparente contradição de os saduceus resistirem intransigentemente a qualquer renovação religiosa vinda do helenismo, e, ainda assim, terem adotado a cultura helênica em seu modo de vida pessoal pode ser explicada pela defesa de seus privilégios. Importava para eles defender sua situação (Jo 11. 48-50). Por-tanto, os sentimentos nacionalistas dos saduceus caminharam lado a lado com sua atitude liberal para

9 LOHSE, Eduard. Contexto e ambiente do Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 2000.

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com o mundo helenista e romano por puros interesses da manutenção do poder!

Esse jogo de cintura colaboracionista com o poder imperial do momento conseguiu preservar sua posição política influente até a queda de Jerusalém em 70 d.C. Na verdade, como o partido saduceu era mais político que religioso, não é surpreendente que os saduceus tenham desaparecido completamente junto com o Estado nacional judaico em 70 d.C.

2. Os herdeiros do movimento

2.1. Os fariseus

Segundo Johann Maier, em consequência das pesadas críticas vistas no NT, os fariseus aparecem no imaginário cristão como hipócritas e arrogantes, fanáticos da lei, que colocavam a letra acima do espíri-to.10 Nos últimos anos, porém, a pesquisa trouxe novos elementos para avaliação. Ficou claro, sobretudo, que no espectro das convicções da época, os fariseus ocupavam uma posição moderada e conciliatória, e, exatamente por causa disso, foram atacados com vigor.

A designação pharisaios, comum no NT e em Josefo, não significa uma autodenominação do grupo, mas, sim, o termo usado primeiro pelos adversários dessa corrente. A literatura rabínica fala de phari-saios como certos ascetas excêntricos, daí o significado os que estão separados, ou separatistas. Já que não existem escritos farisaicos anteriores a 70 d.C., não sabemos ao certo sobre a autodenominação deste grupo.

Também a literatura de Qumran se refere aos fariseus com as mesmas críticas do NT: a de não serem confiáveis, de serem hipócritas e de procurarem ensinar doutrinas sobre a situação do fim do mundo, próximo, ou já presente, que não tinham nenhum cabimento.

(a) Origem, tendências, pensamento

Parece provável que a origem dos fariseus seja da época da decadência do movimento dos assideus, portanto, no início da era dos macabeus. Josefo menciona os fariseus como partido político no tempo de João Hircano 134-104 a.C, de Alexandre Janeu 103-76 a.C, que os perseguiu, e de sua viúva Alexandra 76-67 a.C, período em que eles teriam sido mais influentes. Parece que os fariseus, diferentemente dos essênios, não rejeitavam os governantes hasmoneus, embora sua posição política, nesse período, pareça ter dependido das circunstâncias. Sob Herodes Magno, os fariseus estiveram, primeiro, numa situação boa, mas depois se envolveram em intrigas da corte, fato que levou Herodes a executar alguns dos seus líderes, como descreve Saldarini:

10 MAIER, Johann. Entre os dois testamentos: história e religião na época do Segundo Templo. São Paulo: Loyola, 2005.

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Os fariseus permaneceram atores influentes nos mais altos níveis da sociedade, tanto na corte de Herodes quanto no sinédrio. No início do reinado de Herodes, os fariseus foram favorecidos por ele como partidários e clientes; mais tarde, porém, eles uniram--se a uma facção oposta a Herodes e sofreram sua ira. Os fariseus, como todas as clas-ses superiores, eram controlados por Herodes e não conseguiram obter nenhum poder concreto; contudo, eles não se retraíram, mas permaneceram participantes ativos na vida política.11

Na sua maioria, o grupo dos fariseus era composto por pessoas leigas. Tinham membros vindos de todas as classes sociais, sobretudo da classe média urbana. O maior número vinha dos artesãos, dos mé-dios e pequenos comerciantes e do baixo clero. Também a maior parte dos escribas, os especialistas nas Escrituras, eram fariseus. Por causa do seu saber bíblico, estes eram as maiores lideranças nas sinagogas e nas comunidades farisaicas. O forte apoio da classe média urbana levou os fariseus a ter grande influên-cia em Jerusalém, sendo, ao lado dos saduceus, a maior força na vida pública e participando do Sinédrio.

(b) Pensamento

Os fariseus eram nacionalistas. Eles eram contra os estrangeiros por serem impuros. Em 7 a.C., 6 mil fariseus se recusaram a prestar juramento a Augusto. Logo depois, porém, vendo que os romanos toleravam a religião judaica, os fariseus passaram a agir em resistência passiva. Sua esperança era de que a observação fiel da lei apressaria a vinda do Messias que expulsaria o opressor. O ideal farisaico era chegar à santidade através da observância da lei. Por isso, os fariseus assumiam as ideias levíticas a respeito da pureza. Com certeza, isso também serviu para sua valorização e popularização: como leigos que imitavam os sacerdotes ritualmente tão elevados, os fariseus provocaram uma banalização da santidade cultual (Ex 19. 6).

A dominação romana era vista pelos fariseus como um castigo de Deus pela falta de obediência á lei. Por isso, eles discriminavam e hostilizavam os grupos que não viviam a lei como eles. Na opinião deles, estes retardavam a vinda do Reino. Por isso eles tinham problemas com os zelotes, de quem eram próximos na teologia, mas distantes, politicamente, e com os cristãos, que achavam liberais quanto à lei.

Os fariseus eram muito influenciados pelo pensamento apocalíptico. Fiéis à apocalíptica, os fariseus esperavam um Messias que viesse restaurar a lei a qualquer hora e de forma instantânea. Eles valoriza-vam a tradição oral dos antepassados que era ensinada pelos escribas (Mc 7. 1-5) e criam na doutrina da ressurreição, no juízo final e na existência de anjos e de demônios (At 23. 6-10), ideias que os diferenciava muito dos saduceus.

Não é de admirar que existam muitos relatos sobre tensões de caráter político, jurídico e teológico en-tre fariseus e saduceus. Os saduceus eram da elite e tinham seu poder pela identificação com as institui-ções. Já os círculos farisaicos procuravam aumentar o número de seus partidários pela propaganda e por

11 SALDARINI, Anthony. Fariseus, escribas e saduceus na sociedade palestinense. São Paulo: Paulinas, 2005. p. 108.

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esforços educacionais. Por isso eles se interessaram tanto em estabelecer relações com todas as correntes, inclusive Jesus e os cristãos, como sugere Stegemann:

No que se refere a certas convicções religiosas dos fariseus como, por exemplo, a fé na ressurreição, no juízo e em anjos, é possível ver nelas não só a influência apocalíptica, mas também a abertura dos fariseus para correntes religiosas novas. Isso indica que os fariseus foram antes um movimento reformista do que conservador.12

É preciso registrar o pragmatismo farisaico. Por mais fiéis que fossem à lei, os fariseus se esforça-vam por manter uma situação que fosse suportável para a população. Por isso, embora distanciados de Roma, eles acabaram por se constituir na única força judaica capaz de garantir um novo começo depois do desastre de 66-70 d.C. que destruiu Jerusalém e arrasou o templo. Com isso, também sucumbiram os saduceus, que nele exerciam o poder e dele usufruíam privilégios. A partir desse momento, foram os fariseus e seus escribas que tomaram a liderança do judaísmo, rearticulando-o em torno da sinagoga, da Palavra, do livro da lei, e não mais no templo. Dessa forma, eles se tornariam os guardiões da tradição judaica, dando ao judaísmo as feições que hoje conhecemos.

2.2. Os essênios

Segundo Köester, a seita dos essênios é conhecida há muito tempo mediante os relatos de Filo de Ale-xandria, Josefo e Hipólito.13 A descoberta dos manuscritos do mar Morto e as escavações do sítio essênio em Qumran ajudaram a compreender melhor essas informações antigas. A maioria de seus membros era da linhagem dos sacerdotes sadoquitas. Eles se consideravam como o verdadeiro Israel em oposição ao restante dos israelitas que consideravam corrompidos. Os saduceus.

É bem provável que os essênios tenham surgido a partir dos hassideus. A ruptura ocorreu a partir do sumo sacerdócio do sadoquita Ônias III. A partir dele, a sucessão hereditária no cargo de sumo-sacer-dote foi quebrada.

Os Essênios tinham várias razões para se opor ao sacerdócio de Jerusalém, separando-se do culto oficial praticado no templo. Citemos as principais:

• Acusavam os sumos sacerdotes de terem se rebelado contra a lei;

• Criticavam os subornos pagos pelo cargo de sumo sacerdote;

• Condenavam a helenização promovida por esses sumos sacerdotes;

12 STEGEMANN, Ekkehard. História social do protocristianismo. Trad. de Nélio Schneider . São Leopoldo: Sinodal/ São Paulo: Paulus, 2000, p. 184.13 STEGEMANN, História social do protocristianismo, p. 184.

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• Censuravam a quebra da sucessão hereditária para a nomeação do cargo de sumo sacerdote a partir de Ônias III.

O objetivo fundamental dos essênios era preservar a fidelidade ao Judaísmo e aos sadoquitas. Os essênios esperavam por dois Messias. O Messias rei como Davi e o Messias sacerdote como Aarão. Mas eles só viriam na medida em que se purificassem a lei, o templo, o sacerdócio e a nação, que foram profa-nados pela ocupação do império. Sua vida era muito marcada pela esperança apocalíptica da intervenção extraordinária de Deus na história.

A comunidade era bem organizada e a admissão no grupo era gradual (um ano, dois anos). Caracte-rísticas: todas as normas e obrigações do grupo estavam compiladas no Manual de Disciplina.

• Viviam isolados no deserto a noroeste do Mar Morto, (150 a.C. e 70 d.C.), quando os romanos destruíram sua comunidade;

• Dedicavam-se à vida comunitária, ao trabalho e ao estudo das Escrituras, enquanto aguardavam para breve o juízo final;

• Viviam da agricultura e em comunhão de bens, sem escravos, por um ideal de desapego e de igualdade;

• Eram celibatários e adotavam meninos para a continuação do grupo;

• Viviam sob um determinismo apocalíptico absoluto;

• Obedeciam à rígida hierarquia liderada pelo Mestre da Justiça;

• Praticavam, muito acentuadamente, rituais de pureza e o uso de vestes brancas;

• Faziam ritos de purificação com vários banhos diários de imersão;

• Praticavam de refeições cultuais ao meio-dia e à noite;

• Exerciam de uma rigorosa santificação do sábado;

• Mantinham segredo sobre a doutrina da comunidade.

Porém havia também outro grupo de essênios que vivia em comunidades urbanas espalhadas na Pa-lestina. Eles viviam como adivinhos, predizendo o futuro e seguiam as regras do Documento de Damasco, que parece ter sido escrito para membros que não residiam na comunidade, eram casados e viviam como cidadãos comuns nas cidades.

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Considerações finaisNeste trabalho, percebemos nos três grupos apontados, Saduceus, Fariseus e Essênios, a presença dos

escribas, o que nos possibilita dizer que eles se preocupavam possivelmente, com a tradição de repro-dução e interpretação da Torá. Porém, embora tenham a tradição da escrita, os saduceus não possuíam características escatológicas, nem, tão pouco, sectárias. Aquilo que é apontado por Koester, como im-possibilidade para a continuidade dos conceitos apocalípticos nos assideus também o é a respeito dos saduceus, ou seja, eles precisariam se reestruturar em oposição ao templo, leia-se contra si mesmos e não o fazem. Como vimos, essa oposição é feita pelos essênios, o que afasta a possibilidade de apontar os saduceus como herdeiros ou continuadores do movimento apocalíptico.

Com base nas referências apresentadas, podemos afirmar que os grupos ou escolas por trás das produ-ções apocalípticas literárias em Israel nos aproximadamente três séculos que separam o livro de Daniel, composto entre o ano de 167-164 a.C., e O Apocalipse entre 90 e 96 d.C., são os fariseus e os essênios. O ponto comum, o eixo central entre a cultura judaica é esses grupos de resistência frente à helenização, é a observância fiel da Torá. Embora haja divergências na forma de interpretá-la, esses grupos se perguntam pela compreensão correta da lei e tentam praticá-la.

Percebe-se, ainda, que o conhecimento desse período histórico, bem como do ininterrupto movimen-to apocalíptico de produção literária, são fundamentais para a compreensão do Novo Testamento, sobre-tudo do Apocalipse de João. A busca pelos herdeiros do movimento apocalíptico nos revela um período de silêncio canônico importantíssimo para a compreensão do Novo Testamento e da formação da igreja.

Referências bibliográficas

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O APOCALIPSE DE PEDRO: A NARRATIVA DA VIAGEM DE PEDRO NA PERSPECTIVA DA PSICOLOGIA HISTÓRICA DE KLAUS BERGER

Ângela Maria Pereira [email protected]

Mestranda em Ciências da Religião. Universidade Metodista de São Paulo__________________________________________________________________________

IntroduçãoO Apocalipse de Pedro é um dos textos apócrifos dos primeiros séculos da era cristã encontrados na

Biblioteca de Nag Hammadi.1 Embora considerado pela maior parte dos pesquisadores e estudiosos pe-trinos como um dos apócrifos mais antigos, ainda há poco material acerca desta obra sendo efetivamente produzido. Por isso, o presente artigo se respalda em duas referências teóricas que nos auxiliarão num conciso exercício exegético e hermenêutico desta obra apocalíptica primitiva.

O primeiro teórico a que me refiro são os textos de C. Detlef G. Muller e Andreas Werner, contidos

1 Uma coleção de manuscritos em língua copta foi encontrada por camponeses egípcios, próxima à cidade de Nag Hammadi. Esta coleção, contendo treze códices feitos de papiro e cobertos com couro, recebeu o nome de Biblioteca Copta Nag Hammadi.

RESUMO

O presente artigo tem como objetivo realizar um ensaio exegético do Apocalipse de Pedro na sua viagem ao Inferno. Sua narrativa acerca desta experiência visionária, a meu ver, é singular. Este estudo se respaldará em dois referenciais, a fim de propor-cionar uma reflexão concisa sobre seu conteúdo. O Apocalipse de Pedro será anali-sado numa abordagem literária e hermenêutica na visão da Psicologia Histórica do Novo Testamento.

Palavras-chave: Pedro – Apocalipse – Inferno – Visões – Punição

ABSTRACTThis paper aims to conduct a trial of exegetical Apocalypse of Peter on his jour-

ney into Hell. Her narrative about this visionary experience, in my view, is singular. This study will support two frames in order to provide a concise reflection on its contents. The Apocalypse of Peter will be analyzed in literary and hermeneutic ap-proach in view of Psychology History of the New Testament.

Keywords: Peter – Revelation – Inferno – Visions – Punishment

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na obra literária do New Testament Apocrypha2, traduzido do alemão por Wilhelm Schineemelcher3, que nos conduzirá na compreensão quanto ao aspecto literário desta narrativa apócrifa. Algumas questões lançadas no texto nos nortearão quanto ao exercício deste ensaio exegético.

Cientificamente, o que se sabe acerca dos alicerces documentais do Apocalipse de Pedro? Não mui-to. Pesquisas revelam que, provavelmente, os manuscritos gregos deste Apocalipse estão situados no início do II século, e que sua existência era desconhecida até este período primitivo. Alguns estudiosos atribuem à probabilidade desta descoberta as escavações realizadas por Sylvain Grébaut no período de 1886/87 numa necrópole no deserto em Akhmim, no Egito. Há também o Códice Akhmim, um frag-mento encontrado que consiste em folhas de pergaminhos de uma versão grega.4 Tal relevância deste documento levou-o a ser cuidadosamente depositado no túmulo de um monge cristão no século VIII ou IX d.C. para preservação.

Quanto aos originais deste apocalipse, um consenso entre os estudiosos e pesquisadores nos aponta para duas versões incompletas de um original grego perdido: o “grego koiné” (versão popular), conheci-do apenas pelas frequentes citações em textos cristãos mais antigos; e o “grego etíope” (versão clássica), cuja literatura se tem preservado, como salienta C. Detlef G. Muller em seu artigo: “O Apocalipse de Pedro é preservado, acima de tudo, em uma tradução Etíope”.5 Assim, a maior probabilidade idiomática para este apocalipse é de que o grego é a língua original. De acordo com Werner: “Isto é sugerido, não só pelo título, preservado em grego, mas por várias palavras gregas que são apenas em partes traduzidas para o copta, bem como por inúmeras pertículas gregas e conjunção que se traduziu em copta”.6

Entendo que para uma boa tradução de um manuscrito antigo é fundamental que o documento esteja bem conservado. Assim, com seu conteúdo nítido, pode-se extrair sua melhor redação, evitando erros literários. Neste sentido, Andrea entende que a junção das versões gregas incompletas com as decom-posições parciais dos documentos, apesar dos cuidados obtidos conduz a numerosas obscuridades, que tornam a interpretação do texto difícil.7

E quanto à canônicidade do Apocalipse de Pedro? Bem, algumas pesquisas revelam que esta obra foi considerada canônica por Clemente de Alexandria, mas, rejeitada pelas igrejas cristãs primitivas. Seu estilo literário é considerado intelectualmente simples, pois provavelmente, foi escrito para um grande

2 Publicado nos Estados Unidos. New Testament Apocrypha. Vol. 2: Writings Relating to the Apostles Apocalypses and Related Subjects. Louisville: Westminster John Knox Press, 2003, p. 620-638. Nesta obra estão contidos estudos sobre os Apocalipses: de Pedro, de Paulo e de Atos dos Apóstolos. Todos escritos por diferentes autores. Estes textos do Apocalipse de Pedro leva a autoria de C. Detlef G. Muller (O Apocalipse de Pedro) e Andreas Werner (A cópia gnóstica do Apocalipse de Pedro), editado por Wilhelm Schneemelcher e traduzido por R. Mcl. Wilson.3 Alemão, teólogo e especialista em livros apócrifos do Novo Testamento. Nos últimos trinta anos, mais ou menos, Scheemel-cher tornou-se uma ferramenta padrão para aqueles que trabalham no campo dos apócrifos do Novo Testamento.4 MULLER, C. Detlef G. In: New Testament Apocrypha. Vol 2, p. 621.5 MULLER, C. Detlef G. In: New Testament Apocrypha. Vol 2, p. 621.6 WERNER, Andreas. In: New Testament Apocrypha. Vol 2, p. 702.7 WERNER, Andreas. In: New Testament Apocrypha. Vol 2, p. 702.

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público popular. Demonstrava também em sua narrativa tons helenistas pertencentes ao mesmo gênero literário clementino, comum em Alexandria e característico do cristianismo primitivo do II século. Em relação à origem e data desta obra apocalíptica, a maior parte dos pesquisadores a situa entre o fim do II e início do III século. Mas, se tratando de um escrito antigo primitivo, quais apontamentos literários podem ser destacados nesta narativa?

Sua estrutura literária nos apresenta um discurso do Cristo ressurreto a Pedro, oferecendo-lhe primeira-mente uma visão do céu, e posteriormente, do Inferno. De acordo com Werner“É uma revelação no sentido literal, na medida em que no quadro histórico de Jesus, o Salvador revela a Pedro, o único destinatário e me-diador da revelação, a sua verdadeira natureza. E isso acontece em forma de 'visões e audições'”.8 Assim, sua experiência visionária compreende as dimensões geográficas oscilantes entre as alturas e as profundezas.

Este escrito petrino traz similaridades com outros escritos apocalípticos, tais como: O Apocalipse de Esdras, O Apocalipse de Paulo e A Paixão de Santa Perpétua. Além disso, ele nos apresenta algumas características relevantes: os notáveis paralelos com os Oráculos Sibilinos; um estreito relacionamento em ideias com II Pedro, que provavelmente foi uma das fontes do Apocalipse de Paulo; e de forma direta ou indireta, pode ser considerado como o pai de todas as visões medievais dos outros mundos. O Apo-calipse de Pedro também traz, por parte dos pesquisadores, um consenso de que este livro exerceu uma influência significativa sobre o pensamento cristão. Alguns estudiosos dão indícios de que este escrito influênciou um grande número de sucessores como, por exemplo, a Divina Comédia de Dante. Até aqui, neste suscinto ensaio discorri sobre alguns aspectos desta literatura: origem, datação, documentos e im-portância do Apocalipse de Pedro, no intuito de termos um parâmetro desta obra primitva. Neste prisma prosseguirei, observando as experiências visionárias de Pedro.

A obra petrina demonstra, claramente, em sua narrativa dois pólos: o Céu e o Inferno. Mas quais as características visionárias que este texto nos remete? Bem, visto que, este presente artigo objetiva discorrer sobre a experiência visionária inferior, relatarei brevemente algumas características acerca da experiência visionária superior.

A primeira visão a ser destacada é a do Céu. Pedro vê os prazeres dados no Céu para cada virtude. Neste contexto celestial, as pessoas possuem uma pele branca como leite, cabelos encoracolados e são geralmente bonitas; a terra está repleta de flores e especiarias; as pessoas vestem roupas brilhantes, feitas de luz como os anjos e todos cantam suas orações em coro. Este quadro descrito por Cristo a Pedro nos remete ao incentivo quanto à permanência da virtude, pois lá, haverá suas respectivas recompensas.

A segunda visão a ser destacada é a do Inferno, âmago deste artigo. Aqui abro um parêntese para ex-pressar uma particularidade desta obra literária que me chama a atenção. Refiro-me ao terror claramente expresso nesta narrativa. Na forma de Nekyia9 ele prossegue com riqueza de detalhes sobre as punições

8 WERNER, Andreas. In: New Testament Apocrypha. Vol 2, p. 702.9 Nekya é uma palavra grega antiga que significa um rito pelo qual fantasmas foram chamados e questionados sobre o futuro. Esse ato é denominado de necromancia.

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do inferno para cada tipo de crime, numa versão da noção judaica da “Lei de Talião”, ou seja, “olho por olho”. Assim, ao contrário do primeiro quadro apresentado, este nos adverte quanto aos tipos de pecados praticados, pois lá, também haverá suas respectivas condenações.

A partir deste momento, transcorrerei a narrativa grega, com sua respectiva tradução, extraída do texto de C. Detlef G. Muller (primeira referência). Porém, haverá juntamente a ele apontamentos her-menêuticos na abordagem da Psicologia Histórica do Novo Testamento, cujo segundo teórico é Klaus Berger.10

Narrativa da viagem de Pedro ao Inferno

A narrativa tem início no v. 21, descorrendo separadamente os grupos que caracterizam os tipo de pecados e seus castigos intercalando-os com os apontamentos hermênuticos de cada narrativa na pers-pectiva já mencionada acima.

Visão do mundo de castigos

[21] Então vi outro lugar em frente a este, sórdido; e era um lugar de castigo. E vi os que eram castigados e os Anjos que os castigavam, tendo as roupas escuras de acordo com a Atmosfera daquele lugar.

A experiência visionária petrina não é caracterizada pelo contato, apenas pela visão. Pedro inicia seu relato visionário do Inferno vendo o Mundo de Castigos. Ao término da visão celestial ele se depara, quase que instantaneamente, com a visão infernal. Começa a narrativa apresentando um parâmetro de localidade ao dizer “em frente” indicando um paralelo geográfico entre os dois mundos. Em seguida, tem-se a impressão que, de forma panorâmica (como quem olha o todo de um quadro) ele identifica o horror daquele lugar expressado pela palavra “sórdido”. Na frase seguinte interpreta as ações dos “Anjos e dos castigados” de forma passiva, e tenta transmitir ao leitor a recepção que teve acerca da atmosfera de trevas que cercavam aquele ambiente.

10 Teólogo alemão, especilalista no Novo Testamento e profesor de Teologia em Heidelberg. Inicialmente católico, em 1967 passou a ser protestante. Afirmava que Jesus não dissolveu a lei judaica, mas sim a interpretou de acordo com o sentido do seu tempo. Esta linha de “interpretação psicológica histórica” hoje é considerada oficial pela igreja católica.

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O primeiro grupo descrito é dos blasfemadores

[22] E alguns ali estavam pendurados pelas línguas. Ora, estes eram os que blasfemaram acerca do caminho da justiça; e de-baixo deles uma fogueira que ardia e os castigava.

Nesta narrativa a frase “e debaixo deles uma fogueira que ardia e os castigava” indica certa ordem no sentido de organização do lugar geográfico de punições no Inferno. Ele apresenta detalhes deste lugar dizendo que esta especificidade de punição ocorria “em baixo deles”.

O segundo grupo descrito é dos injustos

[23] E havia um grande lago repleto de lava ardente, no qual estavam aquelas pessoas que se haviam afastado da justiça, e sobre elas estavam os anjos verdugos.

Aqui Pedro, ao utilizar a expressão “aquelas pessoas”, indica um grupo heterogêneo de pessoas que pode ser composto por homens, mulheres, crianças e velhos. Talves a ênfase fosse exatamente esta, de-monstrar a punição para este pecado abrange todos os tipos de pessoas. Ele enfatiza que esta punição é executada pelos anjos verdugos, ou seja, anjos tiranos.

O terceiro grupo descrito é dos adúlteros

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[24] Também havia outras pessoas, mulheres, penduradas pelos cabelos sobre aquela lava incandescente. Ora, estas eram as que se haviam adornado para o adultério. E, quanto aos que se uni-ram a elas (estavam) suspensas pelos pés, e tinham as cabeças sobre a lava. E todos diziam: “Não acreditávamos que havería-mos de findar neste lugar”.

Esta última frase “Não acreditávamos que haveríamos de findar neste lugar”, denota a memória coletiva deste grupo acerca do Inferno. Inicialmente, vejo duas probabilidades quanto à expressão desta frase. A primeira é que estas palavras possam caracterizar a crença do grupo neste lugar inferior como imaginário ou fictício. A segunda é que pode indicar a crença de que este pecado não seria passivo de condenação. Em qualquer uma da dupla probabilidade, a surpresa se faz presente de modo perceptível nesta narativa.

O quarto grupo descrito é dos assassinos

[25] E vi os assassinos e os seus comparsas jogados em um lugar estreito e repleto de répteis malignos, e eram mordidos por aque-las feras, e se revolviam naquele tormento. Ora, sobre eles havia vermes, tantos que pareciam nuvens negras. E as almas dos que foram assassinados estavam observando o castigo daqueles as-sassinos, dizendo: “Ó Deus, justo é o teu juízo”.

Nesta narrativa há uma observação interessante a ser registrada. Nela subtende-se que Pedro ao nar-rar esta expressão literária “Ó Deus, justo é o teu juízo” demonstra a observação das vítimas em relação a seus assassinos e companheiros.

É como se esta visão lhe atribuísse como justiça o ato (da morte) sofrido pelo seu agressor. Outra questão implícita nestas palavras é que, esta observância, pode estar ocorrendo pela vítima, do céu, ou pode estar ocorrendo pela vítima, do próprio Inferno.

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O quinto grupo descrito é dos fornicadores

[26] Bem perto daquele lugar vi outro lugar estreito, no qual caiam os fluidos dos que eram castigados, e ali se formara como que um lago. Ali jaziam mulheres, submersas até o pescoço na-quele lamaçal; e, diante delas, muitas crianças, que haviam nas-cido precocemente, choravam. E disparavam labaredas de fogo que feriam as mulheres nos olhos. Ora, estas eram as que conce-beram fora do casamento e abortaram.

Na primeira frase descrita, Pedro começa fazendo menção de fluídos humanos, ou seja, cadáveres diluídos formando um lago caracterizado por ele como lamaçal. Esta diluição corpórea se transformava em um lago de lama na qual as castigadas (sometne mulheres) eram submersas. Nesta punição, o corpo e a visão são diretamente afetados além de contarem com o tormento da mente pelo choro eternizado das crianças.

O sexto grupo descrito é dos perseguidores

[27] E outros [homens] homens e mulheres eram queimados até a sua metade, e jogados em um lugar escuro, e flagelados por espíritos malignos, e tinham as entranhas devoradas por insa-ciáveis vermes. Ora, estes eram os que perseguiram os justos e os entregaram à morte.

Este grupo é de composição mista (homens e mulheres) e enfatiza a dor física. Evidenciam-se as quei-maduras e flagelos do corpo, além de ter partes do corpo devoradas. Faz menção também de lugares mais escuros denotando que no Inferno não há uma única tonalidde de escuridão.

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O sétimo grupo descrito é dos blasfemadores

[28] E perto daqueles havia ainda mulheres e homens mordendo os próprios lábios e sendo castigados; e eram içados por um ferro incandescente que lhes atravessava os olhos. Ora, estes eram os que blasfemaram e falaram mal acerca do caminho da justiça.

Esta frase descrita por Pedro “mordendo os próprios lábios e sendo castigados...” pode denotar sua visão quanto a dor dos castigados, ou seja, tormentos físicos eternizados.

O oitavo grupo descrito é dos mentirosos

[29] E diante destes havia ainda homens e mulheres mordendo suas línguas e tendo fogo ardente nas bocas. Ora, estes eram os que praticaram falso testemunho.

Esta espressão narrativa “diante destes...” pode denotar certa proximidade de grupos relacionados como os “blasfemadores e mentirosos” dentro das diversas áreas ou localidades existentes no extenso espaço geográfico do Inferno.

O nono grupo descrito é dos avarentos

[30] E em outro lugar havia rochedos incandescentes mais afia-dos do que espadas ou qualquer objeto pontiagudo, e mulheres e homens maltrapilhos, vestidos em trapos imundos, eram casti-

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gados rolando em volta de si mesmo. Ora, estes eram os ricos que confiaram em suas riquezas e não se compadeceram dos órfãos e das viúvas, antes negligenciaram os mandamentos de Deus.

Esta narrativa implica na probabilidade de que no Inferno ocorra a inversão de posições, ou seja, a al-teração de rico para pobre. Os ricos que viveram em trajes reais, em torno de si mesmos, sem se importar com os outros, agora têm sua punição. Suas vestes reais passaram a ser maltrapilhas, e sua eternidade é girar em torno de si mesmo eternamente.

O décimo grupo descrito é dos agiotas

[31] E, em outro grande lago, repleto de pus, sangue e lava ar-dente, havia homens e mulheres ajoelhados. Ora, estes eram os que emprestavam dinheiro e acrescentavam usura sobre usura.

Aqui Pedro faz menção de um segundo lago encontrado no Inferno e o caracteriza-o como grande e composto para a punição deste grupo específico.

O décimo primeiro grupo é dos homossexuais

[32] E outros homens e mulheres eram atirados em um gran-de precipício. Chegando ao fundo, eram puxados até o topo por aqueles que estavam sobre eles, e novamente lançados no preci-pício; e este castigo não tinha fim. Ora, estes eram os homens que profanaram os próprios corpos, comportando-se como mulheres. E havia mulheres entre eles; estas eram as que se deitaram umas com as outras, como um homem se deita com uma mulher.

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Ao mencionar este relato “E outros homens e mulheres eram atirados em um grande precipício. Che-gando ao fundo, eram puxados até o topo por aqueles que estavam sobre eles, e novamente lançados no precipício; e este castigo não tinha fim” Pedro salienta a questão dos castigos eternizados.

O décimo segundo grupo é dos idólatras e dos apóstatas

[33] E junto aquele precipício havia um lugar cheio de fogo; ali estavam homens que fizeram com as próprias mãos imagens de si mesmos, em lugar de Deus. E, junto aqueles [homens], haviam homens e mulheres segurando bastões de fogo golpeando-se uns aos outros e nunca cessavam de se castigar desta forma.

[34] E ainda outros perto deles, mulheres e homens, queimando, contorcendo-se e fritando. Ora, estes eram os que abandonaram o caminho de Deus.

Considerações finais

No findar desta narrativa apocalíptica relatada por Pedro, bem como dos apontamentos abordados na análise da Psicologia Histórica do Novo Testamento, de Klaus Berger, quero registrar algumas impres-sões hermêneuticas sobre esta obra.

Acredito que esta experiência visionária vivida por Pedro vem destacar de modo expressivo o pavor e o horror vividos pelos castigados do Inferno. A expressão “e vi” petrina demonstra, a meu ver, sua visão e interpretação pessoal quanto a experiência vivida. Vejo também que a identidade das pessoas está ligada diretamente aos seus pecados e que todos os pecados ocorrem num tempo sem fim. Assim, a correlação dos pecados praticados equivale aos níveis e graus de punições realizados no Inferno.

Referências bibliográficas

MULLER, C. Detlef G.; WERNER, Andreas. In: SCHNEEMELCHER, Wilhelm (ed.). New Testament Apocrypha. Vol. 2: Writings Relating to the Apostles, Apocalypses and Related Subjects. Louisville: West-

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minster John Knox Press. 2003. p. 620-712.

BERGER, Klaus. Psicologia histórica do Novo Testamento. São Paulo: Paulus, 2011.

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MALBON’S JESUS: A REVIEW OF E. S. MALBON’S “MARK’S JESUS”

Marcus [email protected]

St. John’s College, Nottingham, United Kingdom__________________________________________________________________________

Elizabeth Struthers Malbon is Professor of the Department of Religion and Culture in the College of Liberal Arts and Human Sciences at the Virginia Polytechnic Institute and State University, USA. This book represents the culmination of more than three decades of research in Markan studies and is a sig-nificant contribution to the field from a leading Mark scholar.

Framed by an introduction and a conclusion (“Implications”), the body of the work is subdivi-ded into five chapters which correspond to Malbon’s five-part schematisation of Mark’s christology (the author resolves to maintain ‘christology’ uncapitalized throughout the work given her reticence regar-ding the possible back projection of patristic christological formulations/creeds onto the Markan text). Malbon’s introduction succeeds where other narrative critical treatments fail insofar as it provides a fairly detailed description of the narrative critical method with reference to the literary theory of Seymour Chatman. Newcomers to this approach may find the contours of this theory somewhat complex, though much of the terminology is now standard e.g. ‘implied author’/ ‘implied audience’. On the other hand, Malbon draws some subtle, even surprising distinctions e.g. ‘Markan narrator’/‘the Markan Jesus’ (cf. p.54, 66) ‘implied author’/‘Markan narrator’, ‘Markan Jesus/ ‘Mark’s Jesus’ (cf. p. 231) and in describing Mark’s christological method introduces a neologism (‘hypertactic’ to describe Mark’s use of overarching themes as opposed to ‘hypotactic’) all of which is clearly and carefully explained in her introduction.

Chapter 1 addresses “Enacted Christology”, or as the chapter subheading has it “what Jesus does”. In an attempt to map the sweep of the action diachronically Malbon supplies multiple diagrammatic outlines of the gospel story. This is not always as helpful as it might at first sound, for instance, outlines 2 and 4 (p.34, 41) are over-convoluted such as to compromise their practical value. Outline 3 imposes on the text some unlikely parenthetical structures which to my mind misrepresent the Markan framing technique e.g. why should Mark 8.27-30 – 9.2-13 be a ‘re-view’ of chapters 1-3 only? Again, surely Mal-bon generalises by suggesting that the “healing” in Mark 9.14-29 and the teaching section in Mark 10.1-31 provide a ‘re-view’ of chapters 4-8 ‘Because healing and teaching are important aspects of chapters 4-8’? The ensuing synchronic investigation of the interrelation of Mark’s Jesus with the other characters

MALBON, Elizabeth Struthers. Mark’s Jesus: Characterization as Narrative Christo-logy. Waco, TX: Baylor University Press, 2009. 286 p. ISBN 978-1-60258-247-7

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in the gospel is fairly box standard, this is disappointing given the book’s subtitle, though in fairness Mal-bon has written at length on this subject in previous works.

Chapter 2 “Projected christology” discusses the narrator’s viewpoint of Jesus. On Mark 1.2-3 Malbon, on the basis of the handling of the OT sources, suggests that the narratee might be encouraged to think of Jesus as ‘the Lord’ (p. 71). The title ‘Holy One of God’ in Mark 1.24 recalls the ‘Holy One of Israel’ used in the OT of Yahweh (p.82). At Mark 5.19-20 the Markan Jesus apparently (?) describes God as ‘the Lord’, whereas the Markan narrator has the healed demoniac proclaim Jesus (in parallel with ‘the Lord’). Frustratingly, Malbon bypasses the potential christological significance of these details, which in my view hint that Jesus (somehow) belongs with God in the divine sphere. Malbon’s hands are tied since, following Eugene Boring, she flatly rejects the possibility that anyone other than God may be ‘divine’ in Mark. Warnings about the back-projection onto Mark of fourth century Christology are pertinent, but here there are occasional hints that patristic dogmatics are being exchanged for modern scholarly pre-suppositions! Thus, when making some fairly categorical remarks about Mark’s “first-century Gospel” (p. 62) Malbon might be read as advocating a return to Bousset, (see further note 14 on the same page). Uploading predetermined conclusions about the non-applicability to Jesus of categories such as ‘divinity’ risks closing off avenues of Mark’s narrative Christology where on the grounds of Malbon’s own findings distinctions might be blurry around the edges rather than hard and fast or cut and dried.

Chapter 3, “Deflected christology” deals with Jesus’ response to what others say about him. Here Malbon offers an original and insightful exploration of the creative tension between the direct speech of the Markan Jesus and what the Markan narrator says about this Jesus. For Malbon, whereas the Markan narrator focuses attention on Jesus, the Markan Jesus deflects attention to God (p. 144-146). While the narrator and other characters point to Jesus, the Markan Jesus continually points away from himself to God. Thus, Mark 13.32 (“But about that day or hour no one knows, neither the angels in heaven, nor the Son, but only the Father”) is “at the core” of deflected christology (p. 150). Malbon affirms that this tension has to do with the transition in the audience’s understanding, viz. the initial “Christ, the Son of God” and the Markan ending (p. 191).

Chapter 4, “Refracted christology” works on the premise that the Markan Jesus not only deflects but also refracts or bends the Christologies of other characters in the narrative. The analogy is taken from the prism which refracts white light so as to allow new colours to emerge (p. 195). In a way, Malbon thus offers her own corrective of the “corrective Christology” championed by Theodore Weeden. After a brief summary and dismissal of the work of J.D. Kingsbury and J.C. Naluparayil on the ‘Son of Man’, Malbon propounds her own thoughts on the ‘Son of Humanity’. Is Malbon’s ‘more literal’ translation ‘Son of Hu-manity’ instead of ‘Son of Man’ for ho huios tou anthrōpou (e.g. p. 57) an outcome of a feminist agenda? It is cumbersome and potentially misleading since it might appear to favour an Ezekielian, rather than a Danielic background to the epithet, (cf. p. 203). But perhaps this is what Malbon wants? At any rate, her treatment focuses more on the human and representative connotations that attach to the title (p. 201-202). The observation that at Mark 14.62 the title refracts what is being said about “Christ” and “Son of God” (p. 208) is useful, but Malbon arguably plays down the high christological implications of the implicitly reflexive claim Mark’s Jesus makes about the exalted (Danielic) “Son of Man” figure.

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Chapter 5 supplies a cursory discussion of “Reflected Christology”, being the speech and acts of cha-racters in the Markan narrative which reflects what the Markan Jesus says and does. Here Malbon draws on some of her past work on the “minor characters”, who though minor, have an important role in Mark as exemplars of suffering and service which links in to Jesus’ messiahship. Again, the brevity with which this subject is addressed suggests that Malbon is reluctant to simply repeat conclusions reached in pre-vious work.

Finally, the “Implications” section presents the conclusions of Malbon’s study and some observations concerning “Mark’s Jesus” in relation to the “Historical Jesus” movement via two of its key exponents, namely, J.D. Crossan and N.T. Wright. This, however, seems awkward and misplaced, as if it were an af-terthought needing somehow to be squeezed into the book. However, the treatment is far too cursory to be satisfactory and belongs elsewhere. On the plus side, contrary to frequent assumptions of narrative critics, Malbon has successfully demonstrated that the point of view of the Markan Jesus is not always aligned with that of the Markan narrator and that there is a distinction between the Markan narrator and the Markan implied author. Malbon’s surmise (p. 237) that the implied author has the narrator focus on Jesus as “near to God” and has Jesus focus on “God as sovereign” is representative of the work as a whole and is its strongest conclusion.

On balance, Malbon’s five-pronged approach to Mark’s narrative Christology provides a useful fra-mework for the study of the Gospel. The distinctions made between characters, implied author, Markan narrator etc. further our understanding of the internal dynamics of Mark. Nevertheless, the treatment is not wholly satisfactory, as the comments above attest.