revista mes dezembro de 2015

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Edição especial para o V Congresso do PSOL, dez/2015.

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SUMÁRIO

nacionalA crise atual e o fim de um ciclo político: preparar uma disputa pela esquerda, nas

ruas e nas urnas.Secretariado Nacional do MES/PSOL p.3

Sobre fracassos e recomeços: por uma nova alternativa política de esquerda

Luciana Genro p.18

Luta e ocupações de escolas em São Paulo: os desafios de dar forma e

conteúdo a uma política novaMaurício Costa e Pedro Serrano p.21

Ocupando as escolas, invadindo a história entrevista com Vanessa Lafayette

e Cibele Lima p.25

O Cunha vai cair pelas mãos das mulheres!Giovanna Marcelino, Paula Kauffman e Sâmia

Bomfim p.28

internacionalMacri ganhou: é a volta do neoliberalismo

na Argentina e na América Latina?Pedro Fuentes p.30

O terror do Estado Islâmico, o

estado de exceção na França, nossas responsabilidades

Pierre Rousset e François Sabado p.32

teoriaO que é ser trotskista no século XXI

Pedro Fuentes p.38

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A crise atual e o fim de um ciclo político:preparar uma disputa pela esquerda, nas ruas e nas urnas

Os desafios do MES como parte dos desafios da esquerda no país

Desde a fundação do MES, no radar dos diversos desafios, atravessamos três grandes acontecimentos. Eles estabeleceram novas coordenadas para o sentido da ação política da esquerda, com suas proporções.

a) A Fundação do PSOL; b) As jornadas de Junho de 2013; c) A campanha eleitoral presidencial de Luciana

Genro. 1) Temos orgulho de termos sido uma das correntes

que propôs a existência do PSOL e deu os passos teóricos e práticos para a fundação do partido. Acompanhamos durante anos o processo de construção do PT, apostando na necessidade da classe trabalhadora fazer sua experiência própria e tratando de nos apresentar internamente como um polo consciente à esquerda. A experiência com a estratégia do PT se realizou finalmente com a conquista do governo petista em 2002. O governo Lula serviu como uma espécie de “votação dos créditos de guerra” do partido, numa alusão à traição que levou a social-democracia à sua falência como alternativa para a classe trabalhadora. Nossa posição decisiva, votada em nossa II Conferência Nacional, durante o ano de 2003, serviu como base para, junto aos “Radicais do PT”, abrir o caminho para uma ruptura com o petismo e a construção do PSOL como partido amplo, anticapitalista, de novo tipo.

Em documento de Abril de 2003 afirmávamos: “Uma ruptura de massas com o PT vai ser um

processo longo. Não podemos esperar por toda a classe trabalhadora e as grandes mobilizações contra o governo que decorreriam desta ruptura de massas. Já

há, entretanto, amplos setores que fazem a experiência e começam a romper. Se esperarmos, aceitando tudo o que o governo nos exige para evitar uma expulsão, estaremos jogando na desmoralização estes setores que estão começando a romper. Setores de massas no funcionalismo e uma vanguarda lutadora e importante na juventude, no movimento sindical e popular.

Em geral, o que podemos perceber é a necessidade de uma alternativa por uma parcela cada vez maior da base histórica do PT e da ampla vanguarda que está enfrentando as políticas do governo e do PT. Assim, no próximo período, o desafio é começar a organizar esta vontade coletiva. Embora os desafios da ruptura já estejam na ordem do dia, não se pode tampouco perder de vista que a ruptura está longe de ser encerrada. Trata-se de um processo inacabado.”

Em 2005, encabeçados por Plínio de Arruda Sampaio, setores do PT e deputados estaduais e federais como Chico Alencar, Ivan Valente, Carlos Giannazi, entre outros tantos, se somariam ao PSOL.

O PSOL surgiu como um partido, com contornos de movimento, para servir como ponto de apoio fundamental para a reorganização da esquerda. Sempre afirmamos que o caráter do PSOL estaria determinado por sua relação com a situação objetiva do país, com os fatos marcantes da luta de classe. Chegamos a afirmar que o destino do PSOL estaria selado aos desdobramentos da ação independente da classe trabalhadora no Brasil. Na década de existência do PSOL, marcada por um período de relativa estabilidade econômica e política, sob o pacto social do lulismo, atuamos para desenvolver e consolidar um espaço à esquerda, com todas as dificuldades da realidade.

2) Nossa corrente esteve desde os primeiros momentos nas mobilizações que deram origem ao levante de junho de 2013.

Secretariado Nacional do MES/PSOL

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A entrada em cena de setores da classe trabalhadora, ainda em 2011, com as rebeliões operárias nas obras do PAC, como Jirau e Santo Antônio, incrementada pela luta vitoriosa dos bombeiros do Rio contra Sérgio Cabral naquele mesmo ano, começaria a virar a conjuntura.

A expressão eleitoral nas prefeituras em 2012, com ponto alto da “primavera carioca”, indicou que estávamos começando a capitalizar parte de uma nova situação política.

Junho foi o acontecimento que possibilitou um salto de qualidade na situação política, fraturando o regime democrático burguês surgido na queda da ditadura militar em 1984 e materializado na Constituição de 1988. Estivemos desde o inicio de 2013, em nossas minutas, documentos e circulares, alentando a hipótese de que o Brasil entraria na rota dos indignados. A reversão do aumento da tarifa em Porto Alegre, com a ação judicial impetrada pela bancada do PSOL na Câmara Municipal, deu forma jurídica para o extraordinário movimento da juventude gaúcha em abril. Estivemos atentos e atuando nas lutas em Goiânia, onde, durante o congresso da UNE, levantamos junto aos estudantes vinculados à Oposição de Esquerda a necessidade de nacionalizarmos essa luta.

Embora o início do final do ciclo petista tenha se dado com a posse de Lula como presidente, foi junho de 2013 o levante juvenil e popular que marcou o encerramento de tal ciclo. Pela primeira vez, depois de 30 anos, um movimento de massas surgiu no Brasil por fora e muitas vezes até contra o PT e contra os demais partidos burgueses. Nós do MES fomos partícipes e bebemos das Jornadas de Junho.

3) A campanha de Luciana Genro foi determinante para colocar o PSOL como um polo nacional de pautas que nos permitem disputar a influencia de massas. Foi uma importante tradução política, ainda minoritária, das demandas colocadas pelos setores que foram às ruas durante e depois das Jornadas de Junho. As atividades que seguiram a campanha - palestras em universidades, debates, eventos da comunidade LGBT - sempre concorridas, juntando centenas em cada evento (às vezes milhares) com Luciana, indicam o espaço existente.

A partir destes três processos ao longo dos últimos 11 anos, temos acumulado forças que nos exigem enormes responsabilidades no processo em curso marcado pelo esgotamento – e, já podemos dizer, de término – do ciclo do movimento de massas dirigido pelo petismo e o lulismo. Este fim do ciclo de direção do PT se combina e

explica em parte o esgotamento do regime democrático burguês surgido nas mobilizações democráticas de 1984. Com este esquema político queremos traçar algumas marcas de como vemos a situação política e indicar alguns dos próximos desafios políticos que estão postos para o MES e para o PSOL, partido ao qual temos dedicado nossos maiores esforços.

Para além de apontar as tendências fundamentais da situação política, queremos discutir nossa orientação baseada em dois pilares: a construção do Juntos como movimento juvenil anticapitalista e a construção do PSOL como projeto amplo e democrático com uma ala ligada a junho e à tradição marxista revolucionária aberta. Nesta batalha, a eleição de 2016 é um vetor determinante. Na combinação de luta direta com a disputa pelo poder local, o desafio é avançar na construção de uma alternativa a este regime burguês esgotado e corrupto. Nossos dois eixos de orientação e nosso objetivo estratégico de luta por um novo regime político que supere esta democracia burguesa, marcada pela corrupção e a violência contra o povo, estão ligados por um acontecimento que mudou o Brasil e abriu a possibilidade da construção de uma alternativa de massas anticapitalista. O acontecimento que liga nossa orientação é o próprio Junho de 2013. Este acontecimento nos informa um método de construção das lutas, a própria ideia de ação direta, e nos informa como construir uma campanha eleitoral e realizar um governo voltado para os interesses da maioria da população.

É junho de 2013 também que permitiu e segue permitindo à nossa corrente adquirir força para desenvolver o PSOL como um partido que lute contra o regime político atual. Como fundadores do PSOL, sempre afirmamos que seu futuro estava condicionado pelos avanços políticos da luta de classes, como um Partido amplo. Na construção deste projeto podemos dizer que o partido atravessou três períodos: o primeiro, quando decidimos fundar o partido. Tal decisão foi produto de uma ideia de que o PT havia se esgotado como partido capaz de promover mudanças democráticas e/ou revolucionárias. Foi o momento da necessidade da construção do novo e da aposta de que surgiriam forças sociais que dariam força material para esta ideia. O segundo momento, depois da legalização, quando o PSOL pôde se afirmar como polo eleitoral mas que, ao mesmo tempo, teve que se inserir numa situação em que a estabilidade capitalista dificultava a inserção social do partido e pressionava para que seus

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horizontes não superassem o regime vigente. E agora, o terceiro momento, depois de junho de 2013, onde o levante juvenil e popular empurrou o PSOL para responder à necessidade de construir uma alternativa política fiel aos ideais deste levante e a dar consistência para suas demandas. Agora estamos num momento em que é preciso lutar contra as tendências conservadoras do partido, que foram se desenvolvendo no segundo período, para mergulhar o partido e sua sorte no calor das lutas do povo.

Às vésperas de seu V Congresso, nosso Partido se encontra numa contradição: ou se desenvolve como um polo agregador das forças anticapitalistas como forma de superar pela esquerda o desastre do governo do PT, ou sucumbe às pressões do regime para tornar-se uma legenda que pouco ou quase nada incorpora de Junho. Esta é a disputa.

2015: uma conjuntura de crise generalizada

O ano de 2015 foi marcado pela imprevisibilidade sobre os rumos políticos do país. Durante todo o ano pairou a dúvida se a presidente Dilma terminaria ou não seu mandato. Ainda hoje não está certo o que pode ocorrer. Mas há questões postas de modo claro: a crise econômica grave – certamente a maior dos últimos vinte anos, pelo menos –, o início da crise social e uma pesada crise política – comparada apenas com as crises anteriores ao golpe de 64 –, que incide nas anteriores, as agravando e dificultando a solução das mesmas. A crise política se expressa de várias formas: a) na crise do governo, sua semiparalisia (quando não está paralisado totalmente); b) pela queda livre do PT devido aos escândalos da corrupção; c) o descrédito dos demais partidos burgueses; d) pela prisão, sendo a primeira vez na história do país, de grandes nomes das maiores empreiteiras do país (grandes

nomes capitalistas, o que inclui, quando fechávamos este texto, um dos maiores banqueiros, André Esteves, do maior banco de investimento da América Latina). Assim, os partidos burgueses tradicionais não logram aproveitar e capitalizar o fim do ciclo petista, mantendo o descrédito amplo e geral dos partidos e políticos do regime. Um regime que desnuda a existência, diante do povo, de uma casta política alheia aos problemas do país.

Por sua vez, também como elemento componente da crise política, não há uma alternativa democrática ou de esquerda de massas. Esta ausência de alternativa está relacionada também com a crise ideológica que se vive, a partir da queda livre do PT e da ausência de um modelo alternativo, que é um fenômeno mundial, sem que isto signifique um fortalecimento qualitativo da direita e, sim, mais um vácuo político. Por tudo isso não há no horizonte a solução para a crise política, e muito menos para a estabilização do regime burguês.

A crise econômica se expressa na maior recessão desde a década de 30 no Brasil, que continuará pelo menos até o final do ano que vem. Tal crise tem sido enfrentada com a lógica capitalista do ajuste fiscal, com a redução da massa salarial, do emprego, dos gastos e dos investimentos públicos. Assim, a crise econômica também alimenta a crise política, já que os capitalistas exigem e fazem com que os partidos burgueses e o governo rezem sua cartilha antipopular. A burguesia tem coincidência na saída econômica (ajuste), mas as dificuldades de implementação aumentam também as divergências inter-burguesas. Por isso também não se sabe até quando se mantém o governo, se termina o mandato, ou se o impeachment se impõe. A burguesia está mais sólida (em sentido geral como classe) que sua representação política em crise. Por isso a imprevisibilidade é relativa.

De qualquer forma, a dinâmica é de que as lutas sociais não somente se mantenham, mas tendam a se aprofundar. Embora seja uma resistência parcial, tal ação de massas trabalha a favor da construção de uma alternativa política. Poderíamos citar inúmeras lutas, mas as mobilizações secundaristas destes dias no estado de SP são reveladoras do presente e do futuro. São as maiores mobilizações desde os anos 80, indicativas da continuidade do espírito das jornadas de junho de 2013 junto a esta juventude.

A ocupação das escolas se generalizou, ganhando o centro da cena política em SP, irradiando para a juventude em todo o país. Quando escrevemos esse texto chegamos a mais de 150 escolas ocupadas, com a vanguarda secundarista ganhando apoio de pais e professores.

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Outro elemento importante da conjuntura atual é a emergência da luta das mulheres contra Cunha e pelos seus direitos, que também carrega as latências das lutas por liberdade que se expressaram em Junho de 2013. Numa combinação entre as redes sociais e as ruas, contra o PL 5069, as mulheres têm sido a vanguarda da luta pelo Fora Cunha, protagonizando mobilizações por todo o país.

A debilidade do movimento de massas é que a recessão golpeou o movimento operário industrial. A redução do peso relativo da indústria, combinada com a grave recessão, tem feito o movimento fabril perder força. Do início até meados do ano vivemos importantes greves operárias, sobretudo nas montadoras, mas a persistência e o aumento do desemprego acabaram pesando mais e inibindo a capacidade de ação da classe. A ausência de centrais sindicais que impulsionem a unificação da luta agrava as dificuldades. A CUT, a Força e a CTB, por imobilismo e por diretamente aceitarem a linha de conciliação com o governo federal e/ou com a patronal. A CSP Conlutas, por fraqueza e falta de iniciativa.

Apesar disso, a tendência do imprevisível na conjuntura nacional deve se desenvolver, com conflitos latentes por salário, educação, moradia, onde os trabalhadores e a juventude vão seguir lutando por seus direitos. A possibilidade de explosões sociais nas cidades aumenta. A luta pelo direito às cidades deu um salto no Brasil também em junho de 2013 (a luta contra os megaeventos), a partir da qual o movimento pela moradia cresceu. Foi nesta esteira que o MTST deu um salto. Este crescimento abre oportunidades novas de construção de direções independentes no movimento de massas, mas devemos assinalar igualmente as dificuldades de organização de base nas favelas e bairros pobres do Brasil devido ao peso do narcotráfico e das Igrejas mais reacionárias e, sobretudo, da ação violenta por parte do Estado, através da ação policial nas periferias, das máfias e milícias que controlam territórios.

Em suma, teremos lutas do povo de todo o tipo, apesar das dificuldades de se construir uma direção alternativa e organizações de massas. As dificuldades não anulam a tendência geral favorável para ir se construindo novas direções e novos organismos que vão refletindo o novo ciclo aberto de reorganização do movimento de massas no Brasil depois da falência do PT.

A burguesia atua para evitar que esse descontentamento tenha uma tradução política; por isso votaram a lei da mordaça, sob medida para tirar o PSOL dos debates.

Na etapa que vivemos, de fim de ciclo, queremos extrair

os elementos mais dinâmicos da situação nacional para situar nossos eixos de intervenção. Mas para isso é importante termos um marco mundial.

A situação internacional ajuda a compreender o Brasil

Nos parece preferível fazer a discussão do imperialismo, no meio destas mudanças ocorridas no mundo, dentro e como parte do que todos nós denominamos de novo período histórico, aberto com a crise econômica de 2007/08, que não tem ainda mostras de alteração e se mantém em seus traços mais gerais. É um período de mais crise para o capitalismo, onde se soma também a crise ecológica. Porém, ao mesmo tempo, vivenciamos grandes lutas contra este estado de coisas, rebeliões essencialmente democráticas, revoluções como as que vivemos no mundo árabe, processos independentistas em curso como os da Escócia e da Catalunha, surgimento dos indignados.

Este novo período tem como característica que a crise econômica e também política se prolonga no tempo, com a contradição ou uma grande desigualdade que continua e que se tem feito mais aguda:

a) de um lado não é visível uma saída rápida para a crise econômica que se agrava, como estamos vendo agora a entrada da crise na China e a débâcle do Brasil, assim como de outros países latino-americanos que se consideravam emergentes, desmentindo a ideia de que os emergentes tivessem passado a desempenhar um papel econômico muito mais determinante, mudando a configuração da dominação mundial.

b) Por outro lado, não aparece uma alternativa que seja uma saída anticapitalista, que tenha peso de massas. É esta situação o que causa muitos elementos de imprevisibilidade, incertezas e o que assegura também que essa dominação imperialista, ainda mais caótica, atue avançando com o que, de alguma

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maneira, podemos definir como uma contrarrevolução econômica permanente contra povos e trabalhadores, como forma de enfrentar a crise econômica mundial. É visível a debilidade de alternativas anticapitalistas, que é dificultada pela falta de um modelo alternativo, questão que está relacionada à crise ideológica, por sua vez vinculada à crise de modelos: o “socialismo real” é o único que as massas conheceram.

c) Os atentados de Paris colocam ainda mais em questão o problema da consciência e da falta de alternativas. O EI/ISIS já tinha promovido um ataque contra a esquerda e as organizações democráticas curdas dias antes em Ancara. O horror da ação do EI/ISIS apenas fortalece as posições mais reacionárias da sociedade, onde Hollande e os chefes de estado dos países centrais usam a comoção para defender uma saída mais repressiva, de unidade nacional, fazendo questão de esconder que sua política imperialista também é responsável pelo massacre do EI/ISIS.

d) Contudo, a isso é preciso se agregar um elemento que é cada vez mais nítido e que torna a crise de dominação relativa, já que as classes dominantes encontram saídas à medida que não exista uma alternativa anticapitalista capaz de disputar o poder. Isso explica que graças a essa contrarrevolução econômica se consiga agora um relativíssimo crescimento em países como EUA, Espanha ou Inglaterra e a maior aprofundamento da crise nos países emergentes.

Apesar desta crise de alternativa, não há uma direitização da situação mundial. Existem novos protofascismos e direitas ultrarreacionárias (o Estado Islâmico é um caso particular e mais agudo entre eles), mas nos parece que o que se tornou mais visível é a crise dos regimes e um vazio de alternativas.

Claro que fenômenos como o Estado Islâmico mostram que o vazio pode ser ocupado por direções que, ao invés de ajudar na mudança revolucionária, podem atuar para atrasar as mudanças e canalizar as massas para saídas reacionárias e obscurantistas. O peso da religião, de modo geral, acaba ganhando relevância diante da ausência de alternativas democráticas e revolucionárias.

Neste sentido, é muito importante resgatar nossa elaboração de dezembro de 2014: apoio ao novo, Podemos e Syriza, como expressões políticas do processo social de luta anti-austeridade. Trata-se de apoiar processos intermediários, que não são diretamente socialistas, revolucionários, mas

que podem representar passos progressistas na construção de uma alternativa, podem ajudar a que os trabalhadores confiem mais em si mesmos e na sua capacidade de construção de projetos novos.

Fazemos um balanço positivo deste apoio dado pelo MES, quando no Brasil nenhuma corrente falava de Podemos e de Syriza. Luciana Genro já em 2012 esteve em Atenas expressando nossa política. As inconsistências de uma ou de outra destas direções não reduz a importância de um apoio claro ao processo. Nossa orientação central era, e segue sendo, a defesa do processo, do movimento de massas, do combate contra a austeridade, pela ação direta do movimento de massas, razão pela qual não paramos no Syriza e apoiamos os que quiseram ir além e construíram a UP.

A derrota do Syriza, entretanto, não se explica apenas pela traição da direção do processo e não significa o fim dos processos novos que combinam a mobilização e a política anti-austeridade. Demonstra de forma nítida as dificuldades de enfrentar o capitalismo financeirizado e a Troika em um só país. A política da Troika para a Grécia, como assinalou o ex-ministro das finanças gregas, Yanis Varoufakis, foi de “humilhar um governo que ousou romper o jogo consensuado entre a grande coalizo europeia e dar um exemplo para dissuadir a outros possíveis sabotadores”.

Urge a construção de um plano B, que evite o isolacionismo, conforme o manifesto assinado pelo próprio Varaufakis, juntamente com Jean-Luc Mélenchon, deputado europeu do Parti de Gauche (França), Stefano Fassina, deputado, ex-Vice-Ministro da Economia e Finanças (Itália), Zoe Konstantopoulou, ex-presidente do Parlamento Grego (Grécia) e Oskar Lafontaine, ex-ministro das Finanças, co-fundador do Die Linke (Alemanha): “Nenhuma nação europeia pode avançar para a sua libertação isoladamente. A nossa visão é internacionalista. Prevendo o que pode acontecer em Espanha, na Irlanda, e porque

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um papel de contenção dos processos bolivarianos. A diferença entre Macri e Cristina, como a de Lula e Aécio, é que tinham, pela boa situação econômica e o ascenso do bolivarianismo, uma relação política mais independente do imperialismo.

d) Mas talvez o ponto mais importante (e nossa aposta é que se desenvolva) é que, independentemente do recuo do bolivarianismo, e sem nenhuma conexão com o que foi este recuo, há uma grande expressão de descontentamento popular com todos os partidos políticos e regimes marcados por uma corrupção orgânica. Isso vai afetar rapidamente a Macri, como a qualquer outro político burguês em qualquer país do Continente, demonstrando as debilidades das novas alternativas da chamada direita.

Por outro lado, existem lutas. Desde a heróica luta estudantil chilena, passando pelas Jornadas de Junho de 2013 e agora com a ocupação das escolas no Brasil, na resistência à mineração extrativista no Peru e na Argentina, na mobilização que derrubou o governo da Guatemala e os indignados de Honduras, apenas para citar alguns casos.

Elas acontecem em uma realidade na qual o processo de surgimento de alternativas com peso de massas no Brasil e em todo o Continente (como no mundo) frente à crise do capitalismo é frágil. Mas é possível que esta contradição gere o fortalecimento de alternativas já existentes, como é o caso do PSOL no Brasil, assim como o surgimento de novos processos, talvez mais intermediários, não puramente anticapitalistas, mas que expressem a necessidade de uma democracia real, radicalmente diferente dos regimes que vivemos e reivindicando uma política econômica mais igualitária.

Crise política: O regime está podre e a casta política segue num impasse

No Brasil há um enorme impasse entre a casta política

e as classes dominantes. Os três principais partidos que sustentam o regime (PT, PMDB, PSDB) estão envoltos estruturalmente na crise de corrupção que golpeia a república. A personificação da corrupção na figura do presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, expõe o conjunto da crise das instituições. Depois de se alçar como chefe do conservadorismo, aliando-se aos setores mais fisiológicos para edificar um projeto de poder a partir do Legislativo, Cunha aprovou uma série de medidas reacionárias como a lei da mordaça, a redução da maioridade penal, abriu as portas para

não novamente na Grécia face à evolução da situação política, e na França em 2017, temos de trabalhar juntos num plano B levando em conta as características de cada país”.

Assim, nossa orientação é o incentivo aos projetos intermediários quando o movimento não vai além deles. E apostamos nos seus setores mais avançados, mais ligados ao anticapitalismo, desde que sejam por dentro dos processos. O domínio do capital financeiro é tal (na Europa e no mundo) que isto vai estourar novamente e surgirão alternativas. A eleição de Corbin ao comando dos trabalhistas na Inglaterra, a nova situação portuguesa, com a derrota da direita financista pró troika, coloca novamente o tema. Também nos EUA, a mobilização em torno da candidatura de Bernie Sanders reforça o que aqui apontamos como tendência.

Ainda temos como pano de fundo o drama dos imigrantes. Tal drama, que expõe as fraturas do atual modelo da União Europeia, com centenas de milhares de refugiados marchando sem rumo, também tem suas correspondências aqui, onde temos milhares de africanos e haitianos vivendo em condições subumanas, sem falar no caso do imigrante morto em Santa Catarina, onde a suspeita é de ação de grupos fascistas.

A América Latina também enfrenta uma nova situação. Após a divulgação da vitória apertada de Macri na Argentina, a burguesia se apressou em dizer que isto significava uma “mudança histórica”. Na aparência, o triunfo de um burguesinho que havia sido até agora prefeito de Buenos Aires deu um ar à nostálgica direita neoliberal na América Latina. Inclusive no Brasil, onde os tucanos e a centro-direita querem apresentá-lo como a vingança frente à suposta relação entre Dilma, Cristina e Maduro. Entretanto, o triunfo de Macri na Argentina explica-se por uma série de mudanças que ocorreram na América Latina neste último período. Para sair do campo das aparências enumeramo-los sinteticamente:

a) a entrada da crise econômica em nosso continente, após uma década de relativo crescimento graças ao preço elevado das matérias-primas exportadas especialmente à China;

b) estancamento e retrocesso do bolivarianismo (especialmente na Venezuela, pela dilapidação que fez a nomenclatura no poder, particularmente após a morte de Chávez)

c) débâcle do governo do PT que, diferentemente dos comentaristas vulgares dos jornais burgueses, teve (e tem) estreita relação com a alta da burguesia brasileira e suas multinacionais, como Odebrecht, e que cumpriu

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legalização das terceirizações, além de seguir com a proposta de revisão do Estatuto da Família e de restrições ao uso da pílula do dia seguinte.

A operação Lava-Jato desnudou os principais esquemas de corrupção na associação ilícita entre grandes empresas/construtoras e o Estado brasileiro. A OLJ desnudou as relações promiscuas entre dirigentes de estatais, operadores de partidos e candidatos, lobbystas e empresários do ramo de logística. A prisão dos donos das maiores empreiteiras do país, que atuam no ramo da construção civil pesada, como o caso da Odebrecht, OAS, foi um evento inédito. O escândalo que significou a prisão do líder do governo no Senado, Delcídio Amaral (PT-MS) e do banqueiro do BTG Pactual, que foi em 2012 o 13º brasileiro mais rico, assim como o vazamento dos áudios, demonstram de forma obscena a correspondência entre o conteúdo de classe da traição petista e a forma corrupta que lhe corresponde. Tais cenas das prisões de vários dos maiores empresários do país foram acompanhadas por milhões. Apesar de tais relações serem oriundas à época do regime militar, apenas agora, com a ação independente do poder judiciário e da pressão da opinião pública, as máfias e suas relações com as instituições fundamentais foram desbaratadas.

Passamos pela principal crise desde a Nova República, inaugurada em 1988. Ela é também um acúmulo de sucessivas crises que foram sendo “resolvidas” por meio da fuga, para frente, do capital, em um modelo liberal-periférico que deixou marcas econômicas profundas no que se refere ao endividamento do Estado, à pressão inflacionária, à commoditização e reprimarização da economia, recorrência da prática de juros altos, baixos salários, marcante desigualdade social, miséria, etc. A falência das superestruturas fundadas na Nova República em resolver tais contradições e a situação global analisada anteriormente produziram imensa

desconfiança com as estruturas e direções tradicionais do movimento de massas. As denúncias contra dezenas de deputados e senadores que comandam as duas câmaras legislativas do país atingiu com força o PT, PMDB e PSDB, mas também aos diferentes partidos da “casta”, como o PP que teve dois terços de sua bancada imputados na Lava Jato.

A nova fase da Operação Zelotes termina de acuar todos os atores do andar de cima. Fecha o cerco contra o filho de Lula e expõe o próprio Augusto Nardes, ministro do TCU, vanguarda na defesa do Impeachment. O envolvimento de Nardes demonstra a existência de uma luta interburguesa e comprova que a questão da corrupção fragiliza a todos, não apenas ao PT e Dilma, como asseguram as pesquisas de opinião. Várias figuras da direita, como Agripino Maia, estão com seus nomes nas listas de corruptos.

A direita cresceu. Temos mais direita nas ruas. A hipótese mais forte de um próximo governo onde o PSDB possa ganhar, sendo mais privatista, mais pró-imperialista. Se soma ao cenário a crise dos governos estaduais: crise financeira que gera revolta política. Beto Richa (PR), Sartori (RS), Rollemberg e outros. Neste quadro a burguesia busca consolidar uma ideia de saída econômica, de plano econômico geral. A burguesia começa a consolidar um plano no horizonte, sedimentado nas resoluções do encontro do PMDB que votou o texto “Uma ponte para o Futuro”, um mapa de rota de como fazer avançar o receituário neoliberal em tempos de crise.

Se aprofunda o ajuste recessivo

O plano do PMDB é a rota de saída burguesa para

a crise. Para o povo, tal plano trata de passar a fatura. O governo não tem unidade ideológica nem força para implementar na integra o plano defendido pela burguesia. Mas que não o aplique na íntegra não quer dizer que sua ação esteja por fora das coordenadas do plano do PMDB, tradução dos interesses hegemônicos da burguesia. A linha do ajuste burguês levado adiante pelo governo e também defendida pela oposição de direita é de aumento da extração de mais valia da classe trabalhadora. Querem cortar os salários diretos e indiretos do povo trabalhador e, por esta via, em primeiro lugar, aumentar a produtividade do trabalho. Para tanto provocam um desemprego enorme e jogam a economia numa recessão profunda. Além do desemprego como fator de redução da massa salarial, o governo adota a

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política da redução do salário nominal, via a redução da jornada com redução dos salários.

Todos estes ajustes, ao invés de promover o crescimento, estão ainda aprofundando a recessão. O Fundo Monetário Internacional já fez o prognóstico de que o PIB brasileiro vai cair mais 3% este ano. Esse prognóstico reforça a responsabilidade da opção de política adotada pelo governo, que insistiu em aumentar ainda mais as taxas de juros, matando a atividade econômica, e depois “descobre” que a crise era maior do que se esperava... Agora, o próprio Banco Central estima que o Produto Interno Bruto deva cair 2,7% em 2015. E para 2016 as previsões são de mais queda do PIB. Talvez a crise seja ainda mais forte do que este ano.

A triste novidade é que a crise social começa. Conforme mostra o último dado do DIEESE, de agosto de 2015, existem na Região Metropolitana de São Paulo 1,537 milhão de desempregados, o que significa uma taxa de desemprego de 13,9%. Considerando-se todas as regiões onde há medição do DIEESE (Distrito Federal, Fortaleza, Porto Alegre, Recife, Salvador e São Paulo), a taxa média de desemprego já chega a 13,5%, sendo que se aplicarmos tal taxa à População Economicamente Ativa do Brasil (de cerca de 100 milhões de pessoas), chegamos a uma estimativa de 13,5 milhões de desempregados. Atualmente o Brasil está perdendo cerca de 6 mil empregos formais por dia. A taxa pode ser até maior em algumas cidades, chegando a 14,2% no DF, 13,9% no Recife e 19% em Salvador, segundo o DIEESE. A juventude é ainda mais atingida. Conforme mostra o IBGE, a renda média dos trabalhadores caiu 4,5% em termos reais nos últimos 12 meses terminados em agosto de 2015.

Por outro lado, os bancos ostentam lucros absurdos em meio à crise. Se a crise atinge duramente o povo, as classes dominantes, em particular os bancos, continuam ganhando. Conforme mostra o DIEESE, no primeiro semestre de 2015 o lucro líquido dos cinco maiores bancos somou R$ 33,6 bilhões, o que significa um crescimento de 17,9% em relação ao mesmo período de 2014. Os bancos são o único setor que ganha com juros altos, recebendo do governo os vultosos pagamentos de juros e amortizações da dívida pública, e cobrando taxas altíssimas das pessoas e empresas que tomam empréstimos. Tal situação mostra a força do capital financeiro no Brasil, cuja expressão é um funcionário do Bradesco assumindo o Ministério da Fazenda.

Tais aumentos nas taxas de juros são justificadas pelo governo e a grande mídia pela necessidade de controlar

a demanda e, assim, a inflação. Porém, na realidade, a alta de preços não decorre de uma suposta demanda aquecida, mas sim do escandaloso aumento dos preços administrados pelo próprio governo, como energia (em mais de 50%, para manter os históricos lucros das empresas de energia), combustíveis (devido ao aumento de tributos, para fazer o ajuste fiscal), planos de saúde, remédios, educação privada e outros, que deveriam ser efetivamente controlados pelo governo.

Outra causa da inflação é o aumento no preço dos alimentos, devido a fatores climáticos e ao modelo primário-exportador que destina a menor parte das terras para a agricultura familiar (principal produtora de alimentos para o mercado interno), não realiza a reforma agrária e não mexe na atual estrutura de comercialização, dominado pelos oligopólios do varejo (grandes supermercados).

Diante da redução drástica na atividade econômica, a arrecadação tributária cai ainda mais, levando o governo a cortar mais gastos sociais e propor mais tributos injustos, como a CPMF, que é automaticamente embutida no preço dos produtos, onerando principalmente os mais pobres. Prosseguem os cortes de gastos sociais e, como sempre, o governo e a grande mídia – financiada pelos bancos – continuam atacando a Previdência Social, jogando sobre os trabalhadores e aposentados a fatura da crise.

A crise ainda é usada como justificativa para diversas medidas que atacam frontalmente o direito dos trabalhadores, tais como as Medidas Provisórias 664 e 665 – que cortaram direitos relacionados ao seguro-desemprego, pensões, auxílio doença, dentre outros – e a MP 680, que permite a redução em até 30% nos salários dos trabalhadores.

O governo continua aceitando a chantagem do mercado financeiro e suas “agências de risco”, que punem com a alta do dólar e a fuga de capitais qualquer possibilidade de reposição salarial de servidores públicos ou outra medida que possa amenizar as perdas para os trabalhadores.

Os financistas estão apostando agora na desvalorização do dólar e de um certo aumento de exportações, mas em um cenário de crise mundial, que não é de uma crise qualquer, reduzir o mercado interno e derivar a produção para o mercado externo não está fácil e, além do mais, as empresas do Brasil estão muito endividadas em dólar.

Para a burguesia, a forma para que o ajuste recessivo seja eficaz é apostar nos setores rentistas, escudados

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pelos economistas ortodoxos em reduzir o “custo Brasil”, ou seja, aumentar a produtividade a partir da redução do custo geral da força de trabalho, combinando também um incremento das inovações das técnicas e da superexploração do trabalho.

Junho como alicerce da nossa formulação

A tarefa mais importante da esquerda nos dias de hoje é ser fiel a Junho. As mobilizações que ficaram conhecidas como “Jornadas de Junho” de 2013 são, do nosso ponto de vista, as principais referências para pensar a política no Brasil dos dias de hoje. É a ideia expressa em nossa tese para o V Congresso do PSOL, construída pelo MES, por Vladimir Safatle e Carlos Giannazi: 2013 como o “ano zero” para pensar a situação nacional.

A irrupção de milhões nas ruas, onde o levante juvenil e popular ganhou suas formas mais destacadas, colocou os políticos, a grande mídia e a polícia na defensiva. Anos de luta represada pelo pacto de governo do PT foram descomprimidos de forma violenta e desordenada nas ruas. A disputa entre os diferentes projetos que ali se expressavam tornaram os choques inevitáveis.

A ação de um setor da direita para tentar ocupar as ruas, dando voz às pautas apenas contra aspectos do governo, buscou disputar Junho para um projeto mais conservador e integrado ao regime. A ação de setores da ultra-esquerda, muitas vezes com a presença de elementos infiltrados e provocadores, representaram também uma tentativa vanguardista de desmontar o caráter massivo, sobretudo com ações dos Black Blocks. O governo, através de José Eduardo Cardozo, utilizou seu aparato para desmontar as manifestações, tanto no ano de 2013 quanto na etapa da Copa do Mundo.

Mas as disputas pela direita ou pela ultra-esquerda não anulam o que foi fundamental em junho: um

movimento de massas de contestação ao regime burguês, uma irrupção de centenas de milhares de jovens no domínio da política que marcou uma mudança qualitativa na relação de forças entre as classes a favor da mobilização social do povo. Para os que diziam que o povo brasileiro não tinha mais vontade e capacidade de mobilização, o levante de junho foi um desmentido. Junho de 2013 fraturou o regime. Por isso nós vamos ter que voltar a debater Junho, porque foi o momento que fraturou o regime, que se provou o esgotamento do regime surgido do fim da ditadura militar e que só não se desenvolveu mais à esquerda pela ausência de uma alternativa de esquerda de massas.

Resgatamos aqui o documento de balanço da campanha eleitoral de 2014, onde sistematizamos algumas daquelas que consideramos as principais lições de Junho:

“Queremos apontar mais do que nada que a construção de um sujeito político tem relação direta com a capacidade de atuar e aprender com os acontecimentos do seu tempo. Quanto melhor se ligar com as melhores tradições do passado, mais terá força para aprender no presente, atuar no presente e preparar o futuro. Mas o determinante é como atua nos acontecimentos cujas marcas são mais recentes e se busca ligar e descobrir os vínculos entre estas marcas e as experiências da história do movimento operário, e consiga traçar o que deve ser defendido e o que deve ser feito para que as limitações de cada acontecimento sejam superadas. Neste sentido, levando em conta a história recente do Brasil, temos que saber que o acontecimento mais importante da luta de classes nacional foi o levante juvenil e popular de junho de 2013. É claro que não tem o peso de uma revolução, mas sendo o processo mais recente da luta de classes no país deve nos guiar.

É a experiência, o acontecimento revolucionário mais recente da história da luta dos oprimidos e explorados, dos jovens e trabalhadores mais conscientes na defesa de seus interesses. Temos que marcar as características positivas e os limites. Mas as características positivas devem nos orientar para que sejamos parte da formação do sujeito político do processo de transformação que o levante de junho demandou. Vejamos algumas destas lições de junho:

- Ação direta: nada se conquista sozinho. As vitórias importantes são produto da ação coletiva.

- Não se pode manipular, por exemplo, tentando passar a ideia de que a organização e ou o partido ‘x’ comanda quando isso não ocorre. Por isso as bandeiras

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podem ser usadas, mas deve haver cuidado para não passar esta ideia e acabar indo contra o espírito de junho. A luta para que a base decida é fundamental, no movimento estudantil, nos sindicatos, e devemos nos apoiar sempre nos processos de assembleias, de convenções democráticas para formar chapas, etc.

- Pode-se, e deve-se, usar a ação parlamentar, como ficou claro pela ação dos parlamentares do PSOL, mas deve-se saber que os parlamentares são mais um, não são donos do movimento nem seus líderes são reconhecidos como autores das conquistas que são de todos.

- Tudo deve ser discutido amplamente, com muita paciência. Sempre é importante o chamado à mobilização, a aposta nela, a audácia da luta, a coragem, a capacidade de enfrentamento.

- Não se pode ter como centro as ações isoladas. Excepcionalmente podem servir de estopim, mas reiteradas levam o movimento ao enfraquecimento e facilitam a repressão.

Nem todas estas conclusões são tiradas por todos obviamente. Mas são lições claras de junho que devemos obedecer. Há por sua vez limites em junho. O primeiro é a falta de comando. Nesse sentido, a negação dos partidos de esquerda foi um limite. Relacionado a este limite, a ausência de um programa global, de uma saída estratégica, tanto do ponto de vista econômico quanto político. Negava-se com força sem saber que alternativa global afirmar. O positivo se limitava a algumas bandeiras fundamentais, já que indicavam a defesa do público, particularmente da saúde, da educação e do transporte.”

Junho deixou inúmeras latências do ponto de vista das tarefas e consequências imediatas notáveis do ponto de vista das lutas. Um aumento significativo no número de greves, algumas inclusive por fora das direções tradicionais dos sindicatos, aumento do número de ocupações urbanas, o destravar de vários conflitos e pautas democráticas

Fim de Ciclo: desdobramentos da etapa que recém começa

Estamos vivendo um fim de ciclo com o esgotamento

do modelo que organizou o espaço político e social nos últimos trinta anos.

O PT, como um dos principais carros-chefes do regime político – e o principal junto aos setores populares

mais organizados –, está derretendo, perdendo bases e espaços, tanto social quanto eleitoralmente. A votação já diminuta em vários centros operários como São Bernardo e Contagem demonstrou a perda de espaço político entre os setores mais dinâmicos do proletariado industrial. Outro dado foi a desfiliação de milhares de petistas, a saída de parlamentares e de 11% dos prefeitos eleitos pelo partido no ano de 2012.

O PCdoB também começa a ter rupturas. Alguns sinais são a perda de parte da bancada federal, rupturas no campo sindical como o surgimento de oposição metalúrgica em Caxias do Sul.

Diante da crise de representação podem surgir fenômenos novos. O Surgimento da Rede é um deles. Mas seu surgimento já carregou expressões claras do velho regime ainda vigente. Como a Rede aceitou compor com o PSB, tivemos a chance, via Luciana Genro, de mostrar na campanha eleitoral as inconsistências da Marina, apontadas também pelo PT, que ao criticar Marina pela esquerda foi obrigado a ir mais à esquerda em sua campanha, aumentando ainda mais o choque entre a campanha e a realidade de seu próprio governo em seguida. O apoio de Marina a Aécio fragilizou Marina aos olhos dos setores sociais progressistas, ainda que a tenha cacifado para ser agente dos interesses burgueses no futuro. Mas apesar disso o surgimento da Rede é uma busca para ocupar o espaço de centro-esquerda. Esse espaço, que a crise do PT está deixando, é um vazio de centro-esquerda e a Rede está entrando aí. A dinâmica da Rede é crescer, em particular no período eleitoral. No terreno eleitoral ela tende a ter força e não se pode desconhecer que ela apresenta heterogeneidade e provocará expectativa ainda em setores democráticos.

A Rede tem melhores possibilidades do que nós no plano nacional eleitoral, mas não tem inserção na luta de classes, não tem inserção na juventude e, sobretudo, não tem consistência programática, razão pela qual não é uma situação fácil para eles estabilizarem o projeto. Mas, de qualquer forma, o surgimento da Rede é uma expressão de que o processo está aberto no Brasil. Finalmente, a Rede também é uma renovação no sentido de construir uma força política que queira arejar, dar um pouco mais de capacidade para o sistema político, dar vasão, dar canal para forças políticas, para setores populares, e ao mesmo tempo não são muito consolidados, de forma que facilita também para que tenhamos política para que a gente possa crescer.

Tratando da questão eleitoral, temos que ter presente

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que este é um terreno em que o PSOL acumulou durante muito tempo e nós vamos ter que lutar para seguir acumulando. Não é uma questão fácil. A recente pesquisa divulgada pelo Datafolha, na qual Luciana Genro aparece com 3% e até 4% em um cenário, demonstra o espaço para o crescimento do PSOL.

Então a definição é que o nosso espaço aumentou muito. Em primeiro lugar por Junho, porque apesar de estar em disputa o balanço final, somos o partido que mais reivindica Junho. Para nós Junho foi muito importante porque foi um movimento de massas e é o setor de massas que nós temos que buscar, que traduzir para a política, que representar e dar força orgânica para o nosso projeto.

Para isso temos que apresentar um programa alternativo. Na campanha eleitoral levantamos alguns destes pontos: a regulamentação do Imposto sobre Grandes Fortunas, ou o fim dos privilégios tributários dos rentistas internacionais da dívida pública (isentos de Imposto de Renda), dos exportadores de commodities agrícolas e minerais (isentos de ICMS e outros tributos), dos empresários (isentos de Imposto de Renda – Pessoa Física), dos latifundiários (que pagam apenas R$ 986 milhões de ITR por ano em um país continental como o Brasil), dentre muitos outros ricos privilegiados.

O desafio do PSOL será se enraizar nas lutas em defesa dos salários, do emprego, contra as privatizações e terceirizações, pela moradia, por saúde e educação públicas. Defender, portanto, as demandas que já são do movimento de massas no dia a dia das lutas e também durante as eleições, para as quais temos que ter capacidade de nos apresentar com força e com programas de medidas emergências. No terreno eleitoral, é preciso ser dito, vale defendermos medidas que possam ser viabilizadas no âmbito do poder em disputa, sem deixar de apresentar a estratégia geral de poder para o país enquanto um todo.

Outras bandeiras democráticas que erguemos envolvem a luta contra a corrupção e os privilégios. Neste sentido apoiamos a plataforma do MPF, que é uma acumulação de forças para o debate da transparência e para a necessidade de controle democrático sobre os eleitos. O que temos visto em muitas cidades, a saber, mobilizações contra o privilégio dos políticos, a exemplos dos cercos às Câmaras de Vereadores, é também nossa luta.

As tarefas democráticas que dizem respeito às lutas por liberdades civis – LGBTS, movimento negro, quilombolas, indígenas, movimento de mulheres - são sempre fundamentais. Estamos, por exemplo, num novo auge dessas lutas no país, numa verdadeira primavera das mulheres. Assim, as pautas de opressões e o surgimento de novas direções é desdobramento de Junho de 2013, pautas que junho universalizou e Luciana Genro vocalizou parte dessas pautas. A defesa dos bens públicos, uma agenda contra a privatização.

A combinação das tarefas democráticas e uma nova agenda

Além das medidas econômicas e sociais, da luta por direitos, devemos defender a construção de um novo regime político. Com este governo federal de plantão e este Congresso Nacional, com o atual sistema judiciário e o monopólio privado da mídia, instituições que se articulam para reproduzir o domínio da burguesia, não há como melhorar a vida do povo. Neste sentido a crise dos partidos que sustentam tal regime é uma notícia alvissareira. Já temos dito e repetido: nem PT, nem PSDB. É preciso construir um terceiro campo. Mas este terceiro campo político precisa apresentar uma saída política global, não apenas propostas de medidas econômicas e sociais e a luta por direitos específicos. As alternativas partidárias da burguesia – e nisso a direção do PT faz eco - querem recompor um regime burguês corrupto. Até o PMDB é citado como uma possível alternativa, o que parece ser um escárnio contra os que querem um país livre da corrupção.

Na formulação de uma saída política para a crise do país partimos da definição de que qualquer reforma deste regime político não serve ao povo. O regime precisa ser destruído. Para a construção de novas instituições e de uma articulação entre elas que satisfaça aos interesses populares é preciso uma imensa mobilização de massas e a construção de novos organismos de luta do povo, seja renovando e democratizando os

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sindicatos, derrotando as burocracias aí instaladas, seja avançando na construção de entidades do movimento popular, camponês e estudantil. Trata-se de um processo longo. Sabemos que este não é o quadro atual, nem de mobilização, nem de organização. Ao mesmo tempo a burguesia tem seus partidos e instituições em descrédito. Por tudo isso a crise se arrasta.

A ausência de organismos de massas capazes de se apresentarem como alternativa de poder e a falta de perspectiva de que tal problema seja equacionado num prazo médio (não é fácil visualizar tais organismos com força de massas num horizonte de dois ou três anos, por exemplo, embora a imprevisibilidade seja uma marca da situação nacional) não podem fazer com que a política revolucionária se limite a propaganda da necessidade desta alternativa. É preciso buscar as mediações democráticas que colaborem para desenvolver a confiança dos trabalhadores e da juventude em sua luta, em sua força, em sua capacidade de organização. Neste sentido ter no programa deste período a defesa de novas eleições gerais com regras democráticas, com as quais o conjunto do povo possa decidir, é fundamental. Em nossa posição novas eleições livres e democráticas deveriam realizar-se também para a instauração de uma Assembleia Constituinte soberana e exclusiva, isto é, onde os representantes eleitos estarão mandatados exclusivamente para exercer o poder soberano de definir politicamente as mudanças que o país necessita, e eleita com novas regras, sem a interferência do poder econômico, com a possibilidade de candidatados que representem movimentos sociais e não apenas partidos, e uma disputa eleitoral com democracia real tanto no tempo de televisão como na cobertura da mídia. Nesta Assembleia defenderemos medidas concretas para que o povo e os trabalhadores controlem a política e a economia.

É claro que um processo como este só pode se realizar como resultado de uma grande mobilização, algo como “um novo junho” que apresente esta proposta como saída política para construir um novo regime. Por isso não se trata de adotar como eixo de agitação política a bandeira de novas eleições e de Constituinte, já que nosso centro deve ser agora as bandeiras que estão mobilizando os setores de massas que estão em ação por seus interesses concretos, sejam econômicos, sociais ou de direitos. Mas não podemos simplesmente desconhecer que o governo Dilma perdeu toda credibilidade e a capacidade de governar. Para o bem do povo, alias, nunca teve. E claro que não vamos conferir a este Congresso e ao

judiciário a legitimidade de derrubar o governo atual e se colocarem como alternativa. Nem tampouco aceitar o difícil conserto entre eles para que tudo continue como está. Não podemos ficar sem dizer nada e esperar as soluções da classe dominante, ou melhor, as não soluções, pelo menos do ponto de vista dos interesses do povo. Precisamos ter uma posição sobre o poder. E nos limitar a defender que os trabalhadores devem governar o Brasil, ou que o povo deve ter o poder, é nos limitar a um propósito correto mas que não tem a concretização mínima para ser apresentado como uma proposta viável. Encontrar uma proposta de poder que questione a ordem atual e tenha alguma capacidade de ser visualizada por amplas massas cansadas deste regime corrupto é uma obrigação.

Aqueles que acreditam que uma nova Assembleia Constituinte poderia promover uma Constituição reacionária, que a correlação de forças de uma nova eleição Constituinte seria favorável aos setores mais reacionários, não percebem que a burguesia brasileira não está disposta a permitir um canal democrático de participação popular. Não há interesse da burguesia em fazer uma nova Constituição e muito menos ter uma eleição geral para uma Constituinte. Por isso, mesmo em junho de 2013, apesar de que a própria Presidente Dilma tenha levantado a proposta de uma Constituinte exclusiva, a burguesia rapidamente pressionou o governo e sepultou a proposta.

A burguesia já tem a estrutura legal que lhe permite aumentar a exploração dos trabalhadores. Reformas, ou melhor, contrarreformas, são suficientes para seus objetivos. A abertura de um canal democrático pode significar uma politização maior da sociedade de conjunto que não interessa às forças burguesas. Nem mesmo novas eleições gerais interessam à classe dominante. A burguesia quer manter o calendário eleitoral e no máximo realizar o impeachment de Dilma, mas garantindo a posse do vice e mantendo as eleições presidências para 2018. Não querem novas eleições, nem muito menos a Constituinte. Na medida em que a burguesia quer manter o calendário eleitoral e a ordem constitucional, qualquer séria mobilização de massas por demandas populares que force o caminho de uma nova eleição democrática e abra um canal de participação Constituinte poderia representar a quebra deste regime, um crescimento das forças de esquerda e uma incerteza que banqueiros, empreiteiras, mineradoras, empresários do agronegócio e a grande mídia burguesa querem afastar. Na atual situação, novas

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eleições e Constituinte exclusiva seriam desdobramento de crises e lutas sociais mais fortes. Assim, medir o resultado da eleição e da Constituinte antecipadamente é não levar em conta as mudanças que se operam na consciência das massas e na relação de forças entre as classes sociais para que tal realidade, a saber, que uma eleição geral e uma Constituinte, se imponha. O movimento de massas se sentiria conquistando espaço e força.

É claro, finalmente, que não se pode descartar que a própria palavra de ordem da Constituinte seja uma forma da burguesia canalizar uma situação explosiva para os marcos de um processo constitucional que não questione o poder e a propriedade privada dos grandes bancos, empreiteiras e mineradoras, por exemplo, fontes da corrupção no Brasil. Uma válvula de escape. Quando Dilma fez sua proposta de Constituinte esta foi sua intenção desesperada. A burguesia não acreditou que precisava usar esta cartada arriscada. Junho de 2013 não chegou a abrir uma situação revolucionária no Brasil. Uma situação pré-revolucionária pelo menos se insinuou e por momentos, por dois ou três dias, a situação poderia evoluir para revolucionária rapidamente, já que o poder foi posto em xeque de tal forma que por um triz o Exército não teve que atuar e se mostrar como o que é: a principal instituição do Estado burguês e em última instancia a salvaguarda também do regime burguês democrático. Esta possibilidade não se confirmou. Em junho não tivemos também organismos do movimento de massas.

Foi a ausência desta evolução para uma situação revolucionária que levou a burguesia rapidamente a descartar a proposta de Dilma e desautoriza-la, via seu vice Temer, em 24 horas. E foi sobretudo a ausência de organismos democráticos do movimento de massas em junho que faria da realização de uma Assembleia Constituinte exclusiva, caso se concretizasse, apesar de não ter sido uma bandeira do movimento, uma vitória política do levante de junho. Afinal, num cenário de susto e desorganização das classes dominantes, de efervescência das massas e de profundo desejo de mudanças, uma Constituinte arrancada poderia virar um foco para as demandas que irromperam naqueles dias. Como se sabe não ocorreu Constituinte alguma. O levante não perdeu, mas também não se apresentou algo material como expressão de uma vitória do movimento de massas. Afinal, não foi apenas por 20 centavos. Consideramos que a irrupção da juventude mudou a situação e tal mudança foi favorável para o

movimento de massas, abrindo uma fratura no regime burguês. Esta foi a vitória maior. Mas junho também não resolveu nenhum problema. Nem apontou para um canal político alternativo, como uma Assembleia Constituinte surgida no calor daquelas lutas poderia representar. A situação voltou para um novo “normal”, um normal incorporando muitas questões que seriam consideradas “anormalidades” no período anterior, como a multiplicação no número de conflitos sociais. Ao fim e ao cabo, porém, as rédeas da situação foram novamente tomadas pela burguesia.

Retomando o controle relativo da situação, a burguesia ganhou tempo para fazer a eleição no tempo planejado, centrando a cobertura nos seus candidatos e prometendo ouvir a voz das ruas. No RS até o candidato do PMDB, que terminou ganhando a eleição para governador, reivindicava o levante. Isso ocorreu em várias eleições estaduais. Todos sabem que Marina também quis capitalizar um movimento no qual ela não esteve em nenhuma passeata. Enfim, aqui não cabe o balanço da eleição, mas apenas indicar que com seu calendário preservado a burguesia ganhou tempo e espaço. Vimos em seguida, cerca de meio ano depois, a reação ao levante de junho, mais concretamente durante o ano de 2015, sobretudo em março e abril, não apenas com os simulacros de junho, expresso nas mobilizações da direita – na qual, embora as massas de classes media e setores assalariados tenham se movido por um impulso correto, isto é, a indignação contra Dilma –, seu direcionamento foi pela direita, mas sobretudo no Congresso Nacional, com a aprovação de reformas reacionárias, de contrarreformas, cuja lei da mordaça contra o PSOL foi apenas uma grave amostra, embora não a única.

No caminho para mobilização do movimento de massas é necessário defender as demandas imediatas, econômicas e sociais e a luta por mais direitos e conquistas. Conjuntamente apresentamos para o debate público que estamos entre aqueles que defendem uma nova ordem, uma ordem radicalmente democrática, na qual o povo tenha canal de participação direta e possa votar em eleições gerais e constituintes, eleições para as quais exigiremos o máximo de controle público e o menor poder possível – de preferência nenhum poder – das grandes empresas. Esta proposta se articula com a nossa estratégia geral de poder dos trabalhadores, razão pela qual se as mobilizações de massas adquirirem uma dinâmica de auto-organização capaz de se constituir como possibilidade de um poder alternativo, significará

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que a questão do poder estará sendo resolvida no curso da própria ação direta.

Se a hipótese supracitada se verifica é nela que apostamos. E defendemos desde já a auto-organização do movimento de massas como centro da orientação para lutar por esta hipótese, ainda que seja apenas uma possibilidade, ainda que seja incerto o triunfo, mas será este o terreno privilegiado para que a questão do poder seja resolvida a serviço do povo, a via do próprio povo em luta. Nesse cenário hipotético chamar às urnas nada teria de revolucionário, podendo servir inclusive para a manutenção do poder burguês. Mas aqui estamos tratando de uma hipótese, e no atual cenário, uma hipótese improvável. O certo é que não ter uma proposta de poder alternativo que seja o mais concreta possível significa se omitir e correr o risco de transmitir uma aparência falsa do que somos, como se pudéssemos aceitar que o calendário eleitoral burguês se mantenha, com sua ordem constitucional, seu governo, seu Congresso e suas instituições corruptas. A bandeira da Assembleia Constituinte e eleições gerais, combinada com nossas políticas de mobilização, nos posiciona com uma armação mais global para enfrentar a crise política

PSOL: desafios, limites e contradições

Queremos concluir, mesmo que seja de modo telegráfico, apontando algumas contradições e desafios do partido. Os 11 anos de construção e 10 de registro legal levaram o PSOL a se afirmar como um projeto. A campanha de Luciana Genro expressou novos êxitos do PSOL. Atualmente a bancada do PSOL tem mostrado que temos os melhores parlamentares no Congresso Nacional. Isso vale em geral para as Assembleias Legislativas e nas Câmaras Municipais. A burguesia sabe que a tendência do PSOL é crescer e por isso ataca o partido, ataque cuja lei da mordaça tem sido a maior expressão. Apesar disso o PSOL ganha novas adesões, como o caso do vereador do Rio de Janeiro, Brizola Neto, vereador de Natal, Mauricio Gurgel, e grupos organizados como a Esquerda Marxista pedem ingresso.

Sabemos, porém, que teremos um período duro para afirmar o PSOL diante dos ataques da burguesia. A classe dominante, sabendo que não tem conseguido nos controlar, tenta nos calar. Por isso a Lei da Mordaça. Superar este desafio nos exigirá capacidade de atrair novos setores. Por isso o partido não pode se fechar. Sem a Lei da Mordaça já seria um erro não defender com

energia o ingresso do vereador Brizola, por exemplo, assim como recusar o ingresso da Esquerda Marxista, corrente que rompeu com o PT recentemente. Com a Lei da mordaça tais posturas são liquidacionistas do PSOL. Teremos uma luta dura para ampliar o partido.

Ao mesmo tempo a burguesia não para nunca de tentar acomodar o PSOL. No Parlamento suas tentativas não são bem sucedidas. O PSOL se coloca ai como contraponto, contra ordem. O teste maior, claro, como foi no caso do PT, será nas experiências do Executivo. As possíveis vitórias do PSOL nas eleições de prefeituras de 2016, caso ocorram, começarão nossa hora da verdade. Não será um desafio menor. O aumento da democracia e o controle dos militantes sobre as lideranças deve ser redobrado. O caso de Edmilson Rodrigues em Belém, que depois de duas administrações locais, segue sendo o principal líder da esquerda local, com chances reais de vitória, com um reconhecimento que vai desde as bases do PCdoB ao PSTU, mostra que podemos passar nestes desafios.

Para aumentar o controle militante do partido temos que reconhecer que já há uma contradição entre a riqueza social e militante do partido e o conservadorismo da intervenção de uma parte de sua direção, além dos elementos de burocratismo no regime partidário. Para sacudir o conservadorismo é preciso ligar o PSOL aos processos de luta. Infelizmente, temos visto que uma parte importante da direção do partido, uma parte do bloco vinculado com a Unidade Socialista, não tem apostado numa estratégia de mobilização e de construção do partido ligado aos processos de luta. Sua fraca expressão no movimento de juventude é apenas um sintoma deste problema. Sua dificuldade acaba atingindo o PSOL de conjunto porque, apesar desta ausência de estratégia, insiste em ter um peso na direção maior do que seu peso real na militância do PSOL.

O maior desarme deste bloco político é que ele não percebeu que o partido deve estar ligado indissoluvelmente às jornadas de junho de 2013. Quando boa parte dos dirigentes da US se referem às jornadas de junho é para apontar suas limitações, sua falta de direção, sua incapacidade de oferecer uma alternativa ao país, as ações de direita que ali apareceram em alguns momentos, ao ânimo hostil contra os partidos em geral. A expressão de que a US não se esforçou para ligar o partido ao espirito de Junho foi a defesa do nome de Randolfe como candidato presidencial em dezembro de 2013, apesar de Randolfe ter ido a uma audiência com Dilma, posando sorridente com a

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presidente quando centenas de milhares estavam ainda querendo dizer “Fora todos”, mesmo contra a posição da Executiva Nacional e contra a própria decisão da APS. A opção que então a US levantava, a de forçar a candidatura de Randolfe Rodrigues, ia no sentido contrário à vontade da base social e do perfil exigido pela conjuntura para encarnar o PSOL. A renúncia, coerente, por parte de Randolfe, demonstrou o quanto a direção da US atuou para impor um candidato a contragosto das bases militantes, da própria disposição de Randolfe, desnudando a fragilidade da saída da US para o país. Além disso, durante os últimos três anos a US apresentou o modelo de Macapá como um exemplo para o PSOL. A saída de Clécio, sem qualquer balanço político do papel do PSOL na prefeitura, completa a inconsistência desta orientação.

A campanha de Luciana Genro permitiu ao partido se apresentar como a esquerda coerente no país. Felizmente, a US como bloco político, diante da renuncia de Randolfe, deu aval ao nome que defendemos e Luciana foi a candidata unitária. Mas o triunfo da campanha nos colocou numa responsabilidade nova para o qual acreditamos que todo o partido deveria se somar. Agora o PSOL tem o desafio de seguir neste caminho. Queremos o máximo de unidade neste sentido. Mas defendemos que o partido esteja disposto a ser um partido fiel às mobilizações e seja uma instituição controlada pelos seus militantes. Este é o caminho para não se acomodar dentro do regime com elementos burocráticos e se firmar como um partido

de esquerda social amplo, com tendências e posições anticapitalistas expressas em seu seio.

As pressões da burguesia e os riscos não nos impedirão de mergulhar nas tarefas que a realidade impõe. Todo o partido terá uma prioridade no próximo ano: nos preparar para as eleições de 2016. Será um momento que pode evidenciar um canal político para o descontentamento social. Já estamos vendo este movimento iniciar no Rio de Janeiro, em Porto Alegre e em Belém. Nos jogaremos para que este movimento se concretize.

Como corrente política própria, nossa orientação é também desenvolver a construção de um polo político e social diante das novas lutas que acontecem. A experiência do JUNTOS tem sido impulsionada e apoiada pelo MES e seguiremos neste curso, intervindo nas lutas da juventude brasileira, desde a primavera feminista, passando pela jornada de ocupações das escolas dos secundaristas. Estamos também começando uma experiência no movimento sindical, não apenas atuando na Conlutas, mas impulsionando o jornal Lute. Seguimos, coerentes com nossa tradição, aprofundando nossas relações internacionais, militando pelo reagrupamento dos revolucionários, apoiando movimentos anticapitalistas e militando nas fileiras da IV Internacional.

Secretariado Nacional do MES/PSOL, 1º de dezembro de 2015.

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SOBRE FRACASSOS E RECOMEÇOS: por uma nova alternativa política de esquerda

Por Luciana Genro, publicado no NEXO Jornal

Nestes tempos de “trollagem” e “haters” nas redes sociais, nós da esquerda temos sempre que dar explicações sobre o fracasso do “socialismo”. Associar a esquerda à ditadura da Coréia do Norte, China ou Cuba é uma constante, fruto da ignorância a respeito do fato de que não existe apenas uma vertente política que se reivindica de esquerda e que para uma parcela significativa da esquerda, desvinculada dos partidos comunistas tradicionais (na qual me incluo), estas experiências não resultaram no comunismo e acabaram se tornando uma degeneração burocrática e autoritária.

Mas antes de falar do fracasso do suposto socialismo, seria bom avaliar o suposto sucesso do capitalismo. A superação do sistema feudal significou avanços extraordinários em termos de desenvolvimento das forças produtivas e da tecnologia. Mas os ideais da primeira revolução burguesa, a francesa, não se realizaram: liberdade, igualdade e fraternidade não são exatamente as características do sistema capitalista.

A concentração de riqueza é cada vez maior. Chegamos a tal ponto que 80 multibilionários detém o equivalente da riqueza compartilhada pelos 50% mais pobres da humanidade. 1% da população mundial, aqueles que têm um patrimônio avaliado em 760.000 dólares (2,96 milhões de reais), possuem tanto dinheiro líquido e investido quanto o 99% restante da população mundial.

O capitalismo é um sistema inviável do ponto de vista dos interesses da maioria. É um modelo econômico cuja essência consiste em extrair o máximo de lucro possível,

isto é, só produzir para quem pode comprar. Nesta lógica, as decisões e os interesses privados predominam sobre as necessidades sociais. A eficácia é medida pelo lucro. A lógica é a acumulação privada, a busca incessante de melhorias na produtividade às custas da superexploração, a luta fratricida por ganhar partes do mercado, a rotação cada vez mais acelerada do capital e a obsolescência programada dos bens produzidos. A busca pelo lucro é o fundamento desta dinâmica, traduzida na necessidade de produzir sempre mais. É “como se não houvesse amanhã”, no sentido de que o meio ambiente é colocado a serviço desta lógica, assim como o ser humano.

Este modelo significa privações de direitos básicos para milhões de seres humanos. O exemplo dos medicamentos é um dos mais eloquentes: não importa quantos doentes são tratados, mas sim a garantia de que a indústria farmacêutica tenha rentabilidade. O mesmo vale para outras demandas sociais, como as casas, que são construídas para quem pode pagar e não para quem precisa de moradia.

Mas mesmo assim vemos um crescimento da direita no Brasil e no mundo. É forçoso reconhecer que este crescimento tem uma relação direta – embora não exclusiva- com o fracasso de uma certa esquerda. A queda do muro de Berlim, simbolicamente, abriu uma nova fase, na qual entre tantas outras coisas se debateu abertamente o fracasso do “socialismo realmente existente” – ou seja, o stalinismo e suas variantes.

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No Brasil, a crise econômica e política que vivemos escancarou a falência do projeto petista, o qual pode ser identificado com os partidos da socialdemocracia e socialistas “da ordem” no mundo todo. É verdade, portanto, que o socialismo real e a socialdemocracia fracassaram como projetos de emancipação humana. Estes fracassos estão na raiz da crise da esquerda.

As experiências concretas de sociedades de transição, ditas socialistas, não conduziram ao comunismo, isto é, à emancipação humana de toda a exploração e opressão. Ao contrário, a maioria destas sociedades já não está mais sequer em transição, já são países capitalistas “normais”, como a Rússia, ou capitalismos de Estado, nas quais uma burocracia estatal cumpre o papel de burguesia, como a China. A exceção talvez seja Cuba, que ainda vive em um tipo de transição, mas certamente não para o comunismo. Não pretendo aqui discutir as razões destes fracassos. Mas eles marcam o problema da falta de um modelo que possa hoje inspirar as novas gerações a seguir lutando por uma sociedade livre da exploração e da opressão. Este é um dos principais problemas que enfrentamos na luta anticapitalista.

Se o stalinismo e suas variantes são um “anti-modelo”, a social democracia também é. A ideia de que seria possível, e suficiente, construir um capitalismo com rosto humano, democrático e generoso, é um fracasso evidente. Se não antes, a crise econômica de 2008/2009 na Europa revelou os partidos da social democracia como aplicadores dos planos de ajuste mais cruéis contra o povo, idênticos ao aplicados pelos partidos mais conservadores. A tentativa da velha esquerda de “domar” o capitalismo acabou tendo o efeito inverso. Esta esquerda é que foi domada pelo capital. No Brasil o mesmo processo ocorre com o PT desde que chegou ao poder e se evidenciou de forma mais aguda no ano de 2015, com a chegada aqui da crise mundial.

Mas é preciso afirmar que novos fenômenos surgiram neste processo de crise e ausência de referenciais consagrados. Neste sentido, a queda do muro de Berlim, como símbolo da falência do stalinismo, cumpriu um papel progressivo, pois colocou na ordem do dia a necessidade e a possiblidade de superarmos aquele paradigma de sociedades autoritárias, que em nada

mais contribuíam para a construção de uma referência livre de exploração e opressão.

O bolivarianismo na América Latina, o Syriza na Grécia, o Podemos na Espanha e até mesmo reações internas nas velhas estruturas partidárias como Jeremy Corbyn no Partido Trabalhista inglês e Bernie Sanders no Partido Democrata dos EUA são tentativas de encontrar um outro caminho que fuja do modelo stalinista e também da social democracia tradicional, rendida ao social liberalismo. Mais recentemente, a experiência de cidades espanholas como Madri e Barcelona, governadas por prefeitas recém eleitas a partir de uma plataforma de esquerda radical, também tem nos demonstrado que é possível, até mesmo no âmbito das cidades, buscar uma democracia real e

apresentar à população uma nova alternativa política de esquerda. Também não temos espaço aqui para analisar estes fenômenos e suas limitações, mas é importante ressalta-los como exemplos de uma vívida busca dos povos por novos caminhos. Uma busca que tem, inevitavelmente, acertos e erros. O PSOL faz parte desta tentativa de construir uma

alternativa nova. Nascemos negando tanto o stalinismo (a palavra liberdade junto ao socialismo no nome do nosso partido pretendeu deixar isto claro) como a socialdemocracia, aqui no Brasil representada pelo PT. Foi no processo de traição do PT às suas próprias bandeiras que nascemos. E isto não ocorreu agora. Vem de muito tempo e se expressou claramente já no início do governo Lula.

O fato é que independente do nome que possamos dar ao novo (há quem defenda que se abandone a palavra socialismo, o que não é o meu caso), é certo que segue viva a necessidade de derrotar o velho modelo capitalista de sociedade, que tanta miséria e desigualdade tem provocado no mundo.

Para se garantir condições de trabalho e existência decentes ou para assegurar a sobrevivência do planeta, urge tirar o poder dos capitalistas, que impõem suas decisões privadas à toda sociedade. É preciso construir um modelo cujo objetivo seja assegurar o bem estar da humanidade e não o lucro, assegurar o máximo bem estar social possível com os recursos disponíveis, considerando-se como recursos tanto o trabalho humano (e o seu produto), como também a natureza.

Um modelo cuja eficácia seja medida pelo bem estar social, respeito aos direitos humanos e às necessidades ambientais. (...) livre da exploração do ser humano e das opressões de

todo tipo.

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Um modelo cuja eficácia seja medida pelo bem estar social, respeito aos direitos humanos e às necessidades ambientais. Um modelo livre da exploração do ser humano e das opressões de todo tipo.

Não é, obviamente, fácil este caminho. Mas eu estou entre os que estão convictos que temos que continuar tentando realizar a hipótese comunista. Alain Badiou ressalta que “o aparente fracasso, às vezes sangrento, de acontecimentos profundamente ligados à hipótese comunista foram e ainda são etapas de sua história”. E diz ainda que “o fracasso, desde que não provoque o abandono da hipótese, é apenas a história da justificação dessa hipótese.”

A mais recente evidência, no Brasil, de que a hipótese emancipatória segue viva e atual foram os acontecimentos de Junho de 2013, o levante juvenil e popular cujos ecos escutamos novamente na São Paulo de 2015, nas ocupações das escolas pelos estudantes secundaristas. Junho de 2013, com suas características positivas e seus limites, nos impõe o desafio de ajudar a formação do sujeito político do processo de transformação que o levante de junho mostrou ser necessário. A capacidade de atuar e aprender com os acontecimentos do nosso tempo é fundamental na construção deste novo sujeito político. As tradições do passado nos iluminam para compreender os fenômenos do presente, nos desafiando a lutar para descobrir o que deve ser feito para que as limitações de cada acontecimento sejam superadas.

A “tentativa e erro” é a única forma de acertar. E a análise teórica de alguns problemas estratégicos pode contribuir neste processo. Os fracassos são lições que se incorporam no processo de verdade da emancipação humana - um processo que está em curso. É preciso localizar os erros, entende-los, tirar suas lições. Não podemos nos conformar com a ideia de que a única hipótese possível é o modelo capitalista – e sua lógica que põe o lucro acima da vida – e que a nossa hipótese – a emancipação humana da exploração e da opressão- é uma quimera irrealizável. Aceitar isto seria aceitar como dado o fracasso da humanidade. Então, recorrendo a Badiou mais uma vez, finalizo dizendo que “é no espaço dos fracassos que somos convidados a procurar e pensar o ponto em que daqui para frente seremos proibidos de falhar”.

Luciana Genro foi candidata à presidência da República pelo PSOL em 2014

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Luta e ocupações de escolas em São Paulo: os desafios de dar forma e conteúdo a uma política nova

Maurício Costa e Pedro Serrano

1 – Ecos de Junho de 2013

A luta que acontece em São Paulo contra o plano de reorganização da rede estadual de educação do governo Geraldo Alckmin do PSDB é, sem dúvida, uma das maiores mobilizações estudantis de escolas dos últimos 30 anos. A ameaça de implantação de um plano que, além de mexer com milhares de estudantes em função da divisão da educação por ciclos únicos, prevê o fechamento de quase 100 escolas e de períodos inteiros, gerou uma reação de grandes proporções de pais de alunos, professores, mas principalmente dos estudantes secundaristas, os protagonistas dessa luta.

Esse processo não se explica senão como mais uma expressão nítida do levante popular e juvenil que irrompeu em junho de 2013 contra o aumento das tarifas de ônibus. Aqui estão presentes muitos dos elementos que marcaram aquelas mobilizações. A

motivação de defesa de um serviço público como pauta concreta de reivindicação e elemento mobililzador de amplos setores sociais é uma referência importante. Além disso, há um incremento de radicalidade, com ocupações de ruas e escolas. Novamente vemos o protagonismo jovem; a rejeição às formas tradicionais de organização, às entidades estudantis e à velha política; o rechaço tanto ao PT quanto ao PSDB e seus governos; e o uso fundamental das redes sociais e novas formas de comunicação, como o WhatsApp, para organização e convocação das ações.

Apesar desses elementos, o movimento de São Paulo também traz outras referências e características que não param em junho de 2013. Diferentemente da universalidade do aumento das tarifas, o projeto de reorganização escolar é diretamente identificado com o PSDB, o que tem colocado os tucanos numa posição ofensiva de acusar o movimento de ser “político,

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partidário” e ligado ao petismo. Ao mesmo tempo, a grande mídia e a direita se afastam das ruas, sem possibilidade de sequestrar para si a pauta.

Outro elemento a se destacar é que o perfil dos jovens, que são o centro dessa luta, difere dos de junho de 2013. Naquele movimento o peso de universitários de regiões mais centrais era maior do que agora, embora as manifestações de 2013 tenham se espalhado pelas periferias e cidades do interior e alcançado todo Brasil. Agora, com o peso da mobilização de adolescentes de escolas públicas, o caráter periférico está mais acentuado. Seja no início das mobilizações, quando havia atos regionais nas diretorias de ensino, seja nas ocupações, o peso das escolas periféricas tem sido o mais determinante, ao mesmo tempo em que as escolas centrais atraem a atenção dos holofotes da mídia e ganham destaque na condução do processo, como no caso da E. E. Fernão Dias. As escolas periféricas em geral estão sendo polos de organização das comunidades, contam com apoio ativo de uma boa parcela de pais e professores, ainda que seu centro sejam os estudantes. Importante destacar que essas escolas são mais permeáveis ao apoio de organizações políticas que têm trabalho na periferia como a Rede Emancipa e o MTST, mas tal qual nas escolas centrais, estão rechaçando as entidades governistas do movimento secundarista.

2 - A versão do PSDB do ajuste

O projeto de reorganização do ensino é apresentado por Alckmin como um projeto novo, que tem a ver com a redução da demanda por escola pública em São Paulo por conta do envelhecimento demográfico e por perder alunos para a rede particular. Assim, para o bem da educação, a saída seria fechar escolas, eliminar turnos, diminuir o número de professores e dividir as escolas em ciclos únicos, removendo milhares de alunos das escolas onde construíram suas identidades.

Os argumentos do governo do PSDB são extremamente frágeis e expõem com nitidez que a suposta reorganização é na verdade um meio de fazer sua versão de ajuste fiscal, demitindo milhares de professores, colocando prédios das escolas à disposição do mercado, caminhando para seu projeto histórico de municipalização do ensino fundamental e abrindo caminho à privatização do ensino médio, tal qual foi feito em outros países do mundo. A experiência chilena de privatização da educação pública, que gerou a revolta secundarista de 2011, é uma das referências desse governo.

O fato é que as condições que permitiriam essa política de ajuste foram criadas pelo próprio governo como projeto de educação neoliberal do PSDB, há mais de 20 anos no poder do estado. A evasão da rede pública estadual é fruto direto de uma política que conta com superlotação de salas de aula, precarização dos equipamentos escolares, arrocho salarial dos professores e desvalorização completa do magistério. Nenhum estudo coerente foi apresentado para justificar a divisão entre os ciclos. As próprias notas da prova de avaliação do ensino básico das escolas que já têm ciclo único, defendidas como um dos motivos para as mudanças, estão sendo contestadas por escolas que seriam fechadas e têm alto desempenho. A “reorganização”, entendida como política de ajuste capitalista à crise é, na verdade, um projeto de restituição do poder de classe às elites paulistas, realizado pelos dirigentes burocráticos de ensino através do controle externo das escolas.

Ainda que hoje, em função do desenvolvimento da crise no país, haja urgência por parte das elites de enxugar os gastos na educação, aumentando a produtividade do trabalho com a superlotação ainda maior das salas, demissão de professores e disponibillização de edifícios das escolas fechadas para o mercado imobiliário, esta não é a primeira vez que o PSDB põe em prática tal política. Em 1995 Mario Covas impôs uma reorganização numa escala ampla, e com características muito semelhantes. Foram fechadas 148 escolas nos primeiros anos da reorganização e demitidos mais de 20 mil professores. Escolas fechadas foram destinadas aos mais deversos fins, inclusive uma delas virou delegacia de polícia. Como aponta o estudo de Gilberto Cunha Franca, para superar a crise dos anos 80, que não se resolvia mesmo nos primeiros anos da década de 90, a elite paulista não mediu esforços para cortar gatos, mesmo que isto tenha significado, como é notório, a degradação da vida escolar, onde predomina na maioria dos casos a população pobre, periférica e negra. O caldeirão que ora explode em São Paulo é fruto direto da reação às condições de arrocho impostas pela burguesia paulista.

3 - A luta contra a reorganização

O anúncio do projeto de reorganização de Alckmin ocorreu num contexto claro: após uma dura derrota da mais longa greve docente da história da rede estadual. Nesse cenário, Alckmin se viu em condições de desferir um ataque de enorme proporção à educação paulista.

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Seu plano inicial (mais ambicioso do que agora está em jogo) seria fechar quase 200 escolas e transferir mais de 1 milhão de estudantes.

O que os tucanos não contavam é que uma poderosa reação a este ataque surgiria de outro setor: os estudantes. Não atrelados à derrota sofrida na greve, e imersos num contexto recente, desde junho de 2013, de enorme protagonismo juvenil e radicalidade, a luta estudantil rapidamente veio à tona, com enorme força e surpreendendo o governo.

As primeiras manifestações contra a reorganização ocorreram há mais de 2 meses e chegaram a obstruir vias importantes da cidade, como a Marginal Pinheiros, na marcha de 15/10 até o Palácio dos Bandeirantes, reunindo cerca de 5000 manifestantes. Ao mesmo tempo, a mobilização das comunidades se fortalecia, com inúmeros e ininterruptos atos regionais e ocupações de diretorias de ensino.

Essa primeira onda de mobilização surtiu efeito: no anúncio oficial dos números da reorganização, ainda em outubro, Alckmin retrocedeu: reduziu em mais da metade o montante de escolas a serem fechadas e reorganizadas. Ainda assim, evidentemente, o absurdo do projeto permanecia.

Sucedeu uma ampla ofensiva ideológica do governo, com propagandas na televisão explicando a reorganização e uma expectativa de estabilizar o cenário. Entretanto, um novo ciclo de luta, ainda mais radicalizado, irromperia. Na noite de 10/11, terça-feira, a E. E. Diadema foi ocupada pelos estudantes. No dia seguinte, pela manhã, foi a vez da E. E. Fernão Dias. A reação desproporcional da Polícia, que sitiou as escolas (ocupado por crianças e jovens manifestantes) com centenas de homens, rapidamente criou um fato

político. No dia seguinte, mais escolas foram ocupadas. No domingo (15/11), já eram quase 20. Uma semana depois, o número chegou a 100 e, poucos dias depois, pulou para mais de 200! Um extraordinário ascenso, dentro do qual houve aspectos qualitativos, como a ocupação da maior escola da rede estadual paulista, a E. E. Brigadeiro Gavião Peixoto, ocupação que tem tido espaço na mídia e na qual o Juntos nas Escolas jogou papel estratégico.

Independentemente do desfecho da luta, já está claro um cenário de amplo desgaste de Alckmin e de uma experiência irreversível dos estudantes e setores em mobilização, que permanecerá e se reproduzirá pelos próximos anos. Além disso, o governador teve outra derrota marcante em sua estratégia de derrotar o movimento: as negações, pela Justiça, dos pedidos de reintegração de posse. Ainda assim, Alckmin tem permanecido intransigente, numa postura inadmissível, retratada particularmente no vazamento de áudio de um seu mandatado da Secretaria de Educação, em que se desnudou a estratégia orquestrada do governo e diretorias de ensino para desmoralizar, enfraquecer e derrotar estudantes que lutam.

A este absurdo, o movimento inaugura respostas que podem configurar uma nova etapa da luta em curso, com obstrução de grandes ruas da cidade. O fato objetivo é que a mobilização só será distendida caso haja um recuo concreto no projeto de conjunto da reorganização. A bandeira erguida é contra o fechamento das escolas, contra a divisão das mesmas, contra a superlotação das salas de aula, contra a demissão de professores e, evidentemente, contra a repressão ao movimento. Em síntese, contra o governo e sua política para a educação.

4 - Os atuais desafios do movimento

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Como demonstrado no áudio vazado do chefe de gabinete da Secretaria de Educação, Fernando Padula Novaes, a estratégia do governo é clara: de um lado, consolidar a reorganização por meio de decreto, instituindo o fato consumado; por outro, desgastar, denunciar, cansar e por fim criminalizar o movimento. Agora, mais do que não retroceder no fechamento de escolas e na reorganização, o que Alckmin não quer é dar o exemplo de que a luta secundarista em curso pode vencer. Tal fato, num contexto generalizado de ajuste no Brasil, pode atuar (e atuará de qualquer maneira) como um exemplo em nível nacional, na luta contra qualquer governo, federal, estaduais ou municipais.

Na vitória dos secundaristas, tanto imediata contra a reorganização, quanto em perspectiva, do legado que ficará dessa luta, é que devemos apostar. Mover o pêndulo da opinião pública, com apoio massivo às ocupações, é central, pois Alckmin calcula a possibilidade de recuo a partir do desgaste eleitoral que pode sofrer. Do mesmo modo, dentro do movimento, saber como atuar diante do cenário mais indefinido que é trazido pelas férias, ameaças de punição e pressões a partir das comunidades escolares.

Nacionalizar esta mobilização ou ao menos o apoio a ela é central. Esperamos que os secundaristas de São Paulo possam lograr a vitória pela qual tanto estão lutando e que, até mesmo independentemente disso, extraiam lições para as lutas futuras, que inevitavelmente serão muitas. Um salto na consciência já está se efetivando, ao qual se pode seguir também avanços na organização do movimento.

Se o ano de 2015 começou com um protagonismo da direita (como MBL e outros) nas ruas, como em 15/03 e outras marchas, já podemos dizer que ele se encerra de outra forma: com uma luta progressiva por direitos, tributária de junho de 2013, questionadora do ajuste fiscal, e sem espaço para a direita. Viva a luta dos estudantes secundaristas!

Maurício Costa é professor e dirigente do MES/PSOL/SP e Pedro Serrano é estudante e militante

do JUNTOS!

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entrevista

OCUPANDO as escolas,invadindo

A HISTÓRIAEsquerda Socialista entrevistou Vanessa Lafayette, presidenta do Grêmio da Escola Gavião Peixoto, e Cibele Lima, professora da rede de cursinhos populares Emancipa de São Paulo. Elas estão na linha de frente das ocupações de escolas e nos apresentam, por ângulos distintos e ópticas complementares, uma avaliação da situação da educação pública e da luta por sua transformação. Uma visão de dentro desta que é uma das maiores demonstrações de luta estudantil

dos últimos tempos.

Vanessa Lafayette

Cibele Lima

Como vocês veem o futuro da educação paulista com a política de reorganização do governo Alckmin?

Cibele - A reorganização anuncia um futuro fragmentado para a educação paulista. É um desmonte do ponto de vista administrativo e pedagógico mas também simbólico, humano.Já a muito tempo sabemos que o PSDB pretende municipalizar o ensino fundamental (1º a 9º ano) e passar para administração privada o Ensino Médio. As

poucas escolas de tempo integral já são um teste para esse modelo da parceria publico privada. Nesse movimento, em alguns anos o estado não terá mais nenhuma obrigação institucional com a educação.Segundo o governo, as escolas com ciclos únicos teriam melhor qualidade, mas aí nos deparamos com a questão: O que significa qualidade de ensino para o PSDB, que a mais de 20 anos no governo de São Paulo tem precarizado cada vez mais a educação? E outra, a quem coube essa conclusão? A comunidade escolar não foi ouvida, e como é comum dos governos, os professores não são ouvidos. E quem entende melhor da sua escola que a própria

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comunidade? Mas o governo gastou milhões contratando uma empresa de consultoria para escrever o projeto. Não sabemos que profissionais são esses que.Ninguém da comunidade escolar foi ouvido sobre o que considera qualidade da educação. O fato de haver escolas com 50, 60 alunos matriculados em sala de aula por exemplo é um claro indicador da má qualidade da rede de ensino. No entanto este problema é tratado como inexistente pelo governo.

O fato de que mais de 100 escolas foram fechadas nos últimos 15 anos também é um assunto ignorado.Outro problema é que toda a comunidade escolar está sendo tratada apenas como números! As pessoas estão sendo completamente ignoradas neste processo. Sabemos que a escola é antes de tudo um espaço de socialização, de construção de relações humanas, amizades, afetividade, de aprendizados subjetivos fundamentais para a formação do indivíduo. Nesse sentido, remanejar milhares de alunos e professores sem lhes dar sequer opção de escolha é uma tentativa de desfazer laços, incidir diretamente sobre a identidade destes estudantes, é apagar memórias, especialmente nas escolas onde há maior tradição de luta, de greve. Sabemos que a dominação cultural é um fator determinante em uma guerra. É isso que o governo quer fazer, para que no futuro haja menos enfrentamento com novas mudanças, como a privatização das escolas.Muitas destas escolas que ficarão apenas com Ensino Médio estão a um passo de serem fechadas. Não recebendo novas turmas, em um prazo de 3 anos é muito mais fácil fechar várias escolas, especialmente as que ficam em regiões mais valorizadas pelo mercado imobiliário, como a EE Fernão Dias e a EE Plínio Negrão.

Vanessa -A situação atual já nos mostra que a educação paulista está à beira do caos. Quando olhamos para frente, a perspectiva é de retrocesso. A reorganização significa menos escolas, mais superlotação de salas, mais dificuldades para as famílias e apenas uma economia de dinheiro do governo em cima de um direto nosso, que é a educação.

O que as ocupações de escolas representam nesse contexto?

(Vanessa) Elas mostram, na prática, como pode ser nossa educação. Uma educação emancipadora, que una o povo e combata os que destroem dia a dia a educação. As ocupações são nossa resistência.

(Cibele) Representam o maior levante secundarista da História do Brasil. Durante muito tempo ouvimos inclusive por educadores que essa geração não quer saber de nada, é despolitizada, não valoriza a escola, é uma geração perdida. E que estamos vendo agora é justamente o contrário. Uma juventude herdeira das jornadas de 2011 e de junho de 2013, sem direitos, sem voz, sem representação, e por isso mesmo não tem medo de lutar. São adolescentes das periferias na capital e no interior, são os primeiros a serem atingidos pelos cortes de gasto dos governos. E estão dando um recado. Essa luta é só o começo. Estas crianças e adolescentes estão se formando para enfrentar os ataques que ainda virão por aí.

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O que essas mobilizações significam para Emancipa (Cibele) e Vanessa (Juntos)?

(Vanessa) Para o Juntos nas Escolas, ser parte dessa reinvenção do movimento estudantil é incrível. Temos orgulho de estar em diversas escolas, como na E. E. Gavião Peixoto, onde sou presidenta do grêmio estudantil. Nós representamos uma juventude indignada que não vai se cansar de defender os direitos do povo e e de lutar contra a velha política.

(Cibele) Significam em certa medida a concretização da proposta do Emancipa que é ocupar as escolas públicas com uma proposta de educação emancipadora. É isso que temos visto nas ocupações, uma escola organizada pelos estudantes, a partir das suas necessidades e inquietações. Durante muito tempo pensamos em como entrar na escola, como estar mais presente nas escolas dos nossos estudantes, pra além do cursinho. Agora estamos dentro de todas as escolas.Em todas as ocupações por ondem passamos encontramos estudantes do Emancipa na luta, o que mostra o papel importante dos cursinhos na formação destes jovens. O trabalho construído pelo Emancipa é conhecido e respeitado em todos os lugares por onde passamos, e agora queremos expandir os cursinhos pra todas as escolas, como uma forma permanente de ocupação, de reflexão sobre a educação, um espaço de organização dos estudantes. Queremos toda essa juventude estudando

e construindo o Emancipa ano que vem. Vamos abrir novos cursinhos e organizar essa juventude na luta em defesa da educação.

Como vocês enxergam os próximos passos desse movimento?

(Vanessa) O momento é de resistência e de diálogo com a população e a opinião pública. É muito revoltante a intransigência do Alckmin. Nós queremos o fim da reorganização, mas ele só nos ignora. Nos resta então resistir, ampliar a mobilização e o apoio a ela, junto com pais, comunidade, todos. Temos aprendido muito com essa luta, que com certeza se repetirá nos próximos anos. Os governantes não vão ter sossego.

(Cibele) O movimento segue firme, fazendo enfrentamento contra os capangas do Alckimin, tanto gestoras autoritárias quanto a PM que tem agido com ilegalidade e violência.Pra cada escola desocupada, duas são ocupadas, e agora o movimento parte pra ações de rua como uma nova tentativa de pressionar o diálogo. O apoio da opinião pública também é muito grande, embora seja camuflado pela mídia. O fato é que as tentativas de intimidação não fazem os estudantes retrocederem e esta lição de coragem é o mais importante hoje pra nos. Independente do resultado dessa disputa, os estudantes ocuparam os livros de História e mudaram o rumo das próximas gerações em São Paulo.

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O Cunha vai cair pelas mãos das mulheres!

Giovanna Marcelino, Paula Kauffman e Sâmia Bomfim , publicado no El País

Uma Primavera Feminista toma conta do país. Ver as ruas sendo tomadas pela força e revolta das mulheres é muito emocionante. O Brasil é o quinto país que mais mata mulheres no mundo e onde uma mulher morre a cada dois dias em decorrência do aborto clandestino. Um projeto de lei que visa fazer as mulheres que sofreram violência sexual perderem direitos seria o cúmulo do absurdo, a sentença final da condenação das brasileiras à realidade perturbadora de viver num país que violenta e mata mulheres e que ainda as obriga a sofrerem caladas com essa crueldade. Porém, vivemos um momento no qual as mulheres aprenderam a gritar e a lutar. “Não levante o dedo pra mim!”, “Não mereço ser estuprada!”. Um projeto como esse não passaria batido.Já há alguns anos é perceptível o crescimento e ampliação do debate feminista no Brasil, especialmente entre as mais jovens. Se Eduardo Cunha cogitou em algum momento que conseguiria aprovar um projeto tão descabido como esse com tranquilidade,

ele foi no mínimo ingênuo. O PL foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara numa semana bastante efervescente do ponto de vista da visibilidade dos direitos das mulheres, que contou com o tema “A persistência da violência contra a mulher” na prova do ENEM e com uma explosão de relatos no Facebook com a hashtag #MeuPrimeiroAssédio logo após o escândalo das mensagens pedófilas no Twitter a respeito de uma participante do programa MasterChef Junior. As redes sociais em poucos dias foram tomadas pela euforia das feministas, dando uma mostra do espaço que o feminismo ocupa hoje entre os internautas e a juventude. Mas o feminismo é um fenômeno não só no mundo virtual: há centenas de coletivos nas escolas, bairros, Universidades, nas Marchas das Vadias, nas lutas sindicais, ocupando a política.

Cunha: de herói a inimigo da população

Não é de hoje que Eduardo Cunha atua como inimigo da população, especialmente das mulheres, LGBTs,

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negras e negros. Porém, a verdade é que ele estava conseguindo construir uma imagem de si mesmo como herói para boa parte dos brasileiros. Ancorando-se em um discurso conservador, que historicamente se fortalece em períodos de crise como o que vivemos hoje, ele começou seu mandato como presidente da Câmara dos Deputados se postulando como o defensor da moral e dos bons costumes, alguém que queria “botar ordem na Casa”, que faria o que fosse necessário para enfrentar os imorais (dentre os imorais, como bem se sabe, as mulheres estavam no topo da lista). De maneira bastante oportunista, deu uma rápida guinada da base do governo para se tornar o principal nome de oposição, como forma de se construir diante do desgaste da presidenta.No entanto, essa sua máscara não pode esconder que ele seguiu e aplicou à risca a política econômica de ajustes proposta pelo governo Dilma. Os cortes nas áreas sociais e o projeto de Lei de terceirização, por exemplo, foram aprovados com franco apoio, articulação e entusiasmo por parte de Cunha, revelando que o discurso inflamado e a pose de opositor não passavam de jogo de cena para troca de favores, busca pelo poder e jogo de interesses.Projetos de lei como o Dia de Orgulho Hétero, Lei da Heterofobia e mesmo Estatuto do Nascituro – todos de autoria de Cunha – são propostas que enfrentam os setores que se fortaleceram nos últimos anos no Brasil, os que primeiro começaram a dar respostas diante do cenário de crise, que são aqueles que se organizam em torno das liberdades democráticas. Para os conservadores, é muito importante tentar conter este setor para fazer avançar um projeto que salve os interesses dos ricos neste momento de crise econômica. A defesa de pautas relacionadas à esfera das liberdades democráticas foi provavelmente a primeira evidência da inquietação frente à crise por parte da juventude no Brasil.Junho de 2013 foi o epicentro desse processo. De lá para cá, as lutas pelas liberdades democráticas, com peso especial para a luta feminista, têm ganhado cada vez mais força nas novas gerações. Para eles, contê-las é fundamental. Mas as ruas estão mostrando que ele não

irá conseguir. Com isso, Cunha também coloca uma cortina de fumaça sobre um dos maiores escândalos de corrupção dos últimos tempos, a chamada Operação Lava Jato. Coloca-se como paladino da moral mas é, na verdade, o verdadeiro rei da imoralidade. Suas contas na Suíça revelam quais são os seus propósitos como deputado e presidente da Câmara: fazer da política um meio para enriquecer e fortalecer seus privilégios, às custas do sofrimento e da pobreza do povo e da retirada de direitos das mulheres.O pedido de cassação de Eduardo Cunha por parte do PSOL na Câmara dos Deputados, bem como a atuação

de alguns movimentos sociais para denunciá-lo fez Cunha sair de uma posição de conforto e poder para a condição de réu e de um enorme desgaste diante da população. A aprovação do PL5069 na CCJ foi um grande tiro no pé! O feminismo está em ascensão e agora está polarizando um dos elementos mais importantes da conjuntura nacional que é a tensão em torno da queda de Eduardo Cunha. Prova de que as mulheres estão mostrando que seus direitos não são negociáveis, e mais, que somos imprescindíveis na luta política por uma sociedade mais justa e igualitária. Este processo é perceptível em todo o mundo: as mulheres têm sido protagonistas dos principais movimentos de luta

social. Nós fomos parte expressiva e determinante das mobilizações do movimento dos indignados na Espanha, na derrubada de ditaduras no Egito e na Tunísia, nos levantes contra violência na Índia, nas manifestações de junho no Brasil.O próprio nascimento do Juntas! já em 2011, espelhado pelo protagonismo das mulheres nas mobilização internacionais e na Marcha das Vadias, tem relação com esse processo. O avanço das mobilizações em torno dessas pautas possibilitou, inclusive, que tivéssemos em 2014 a campanha da Luciana Genro como a primeira presidenciável feminista que falou sobre aborto, homofobia, transfobia e violência contra a mulher em rede nacional, dando voz às pautas democráticas que haviam dado o tom das mobilizações no Brasil. Apenas começamos.

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Macri ganhou: é a volta do neoliberalismo na Argentina e na

América Latina?

Pedro Fuentes

Os jornais brasileiros e de todo o mundo, após a divulgação da vitória apertada de Macri na Argentina, se apressaram em dizer que isto significava uma “mudança histórica”. Na aparência, o triunfo de um burguesinho que havia sido até agora prefeito de Buenos Aires, que se apresenta como de centro-direita (ainda que tenha se cuidado muito em dizê-lo durante as eleições), confrontado a Scioli, um candidato light do peronismo, que não era exatamente do estafe kirchnerista, deu um ar à nostálgica direita neoliberal na América Latina. Inclusive no Brasil, onde os tucanos e a centro-direita querem apresentá-lo como a vingança frente à suposta relação carnal entre a petista Dilma, Cristina e Maduro.

As “verdades” aparentes são meias verdades. Sempre são muito exploradas pelos meios de comunicação para confundir a opinião pública, mas, no entanto, estão bem distantes da realidade; da essência da situação argentina e, inclusive, do que pode ocorrer na América Latina nos próximos anos. Como marxistas, sabemos que um triunfo eleitora não significa mecanicamente uma mudança na correlação de forças. Há muitos outros fatores e elementos que fazem parte da realidade e determinam o que podem fazer os governantes, dependendo do que façam as massas e, portanto, o que vai acontecer a partir de agora no país.

Uma anedota do que aconteceu ontem, segunda-feira (23), na Argentina é suficiente para ilustrar o que estamos dizendo. “La Nación”, o jornal de maior expressão burguesa do país, se apressou em publicar no mesmo dia um editorial com o título “Não mais vingança”, no qual diz que é preciso acabar com as mentiras dos anos 70, que é preciso deixar em liberdade os velhos militares que estão presos, igualando ações guerrilheiras ao terrorismo de Estado e misturando também com o terrorismo do Estado Islâmico. A

reação de repúdio desatada, não deixou dúvidas do que pensa o povo argentino.

A mais importante foi instantânea, para que se tenha uma idéia da magnitude dos protestos, foi a manifestação dos próprios jornalistas e trabalhadores do jornal (que, evidentemente, a direção do jornal assegura que não sejam de esquerda). Seu repúdio ficou claro na foto que publicamos e que o próprio jornal, após a exigência de seus trabalhadores teve que publicar.

A legisladora Victoria Donda (filha de um desaparecido da ditadura) resumiu assim: “La Nación afirma que a eleição de um novo governo é momento propício para acabar com as mentiras dos anos 70. Os donos do centenário jornal, irresponsavelmente, falam em vinganças, comparam o acontecido em nosso país com o terrorismo internacional que assola a Europa atualmente, para justificar de maneira elementar o terrorismo de Estado”.

Este editorial não foi um deslize de “La Nación”, mas um sinal para a reivindicação dos militares e para tratar de alterar o pensamento formado sobre eles nas classes médias.

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Voltar aos anos 90 é impossível

Para os jovens que não conhecem tanto a história, os anos 90 na Argentina – como também em escala mundial – foi o triunfo do neoliberalismo. Na Argentina, Menem dolarizou o peso e privatizou até as praias públicas de Mar Del Plata.

Mas não é casualidade que tenha sido um escândalo o editorial de La Nación, que terminou sendo um tiro no pé. Acontece que a consciência das massas argentinas assumiu e assimilou o papel nefasto da ditadura, em grande medida graças às Mães da Praça de Maio, como também assimilou negativamente a etapa do neoliberalismo. A história foi que logo após Menem ganhou um governo do Partido Radical de De La Rua (que tem similaridades com o de Macri que se apóia bastante nos Radicais) e que quando quis apertar mais o ajuste contra o povo, teve que fujir de helicóptero da Casa Rosada, pela grande mobilização popular que foi o “Argentinazo” em 2001.

Foi como conseqüência desta grande mobilização revolucionária que o kirchnerismo tece que tomar as medidas democráticas, julgar os militares genocidas e fazer, graças à situação econômica favorável que se viveu no continente pela alta das exportações, concessões como os abonos familiares por filho e a aposentadoria para todos os maiores de 65 anos, tendo contribuído ou não.

As verdadeiras mudanças na América Latina

O episódio do jornal La Nación mostra o quão difícil será para o novo governo conseguir as condições de aplicar o plano de ajuste que pede toda a burguesia argentina (e que Scioli também teria que fazer), da mesma forma que está fazendo Dilma no Brasil. Contraditoriamente, talvez fosse mais fácil para Scioli fazê-lo, já que contava com o aparato peronista. Para Macri não vai ser fácil e não podemos descartar que termine como De La Rua. O povo já tirou presidentes com sua mobilização e pode voltar a fazê-lo.

O triunfo de Macri na Argentina explica-se por uma série de mudanças que ocorreram na América Latina neste último período. Para enumerá-los sinteticamente:

a) a entrada da crise econômica em nosso continente, após uma década de relativo crescimento graças

ao preço elevado das matérias-primas exportadas especialmente à China;

b) estancamento e retrocesso do bolivarianismo (especialmente na Venezuela, pela dilapidação que fez a nomenclatura no poder, particularmente após a morte de Chávez)

c) débâcle do governo do PT que, diferentemente do comentarismo vulgar dos jornais burgueses, teve (e tem) estreita relação com a alta da burguesia brasileira e suas multinacionais, como Odebrecht, e que cumpriu um papel de contenção dos processos bolivarianos. A diferença entre Macri e Cristina, como a de Lula e Aécio é que tinham, pela boa situação econômica e o ascenso do bolivarianismo, uma relação política mais independente do imperialismo.

d) Mas talvez o ponto mais importante (e nossa aposta é que se desenvolva), é que independentemente do recúo do bolivarianismo, e sem nenhuma conexão com o que foi este recuo, há uma grande expressão de descontentamento popular com todos os partidos políticos e regimes marcados por uma corrupção orgânica. Isso vai afetar rapidamente a Macri como a qualquer outro político burguês em qualquer país do Continente, demonstrando as debilidades das novas alternativas da chamada direita.

E existem lutas. Desde a heróica luta estudantil chilena, passando pelas Jornadas de Junho de 2013 e agora com a ocupação das escolas no Brasil, na resistência à mineração extrativista no Peru e na Argentina, na mobilização que derrubou o governo da Guatemala e os indignados de Honduras, apenas para citar alguns casos.

Elas acontecem em uma realidade na qual o processo de surgimento de alternativas com peso de massas no Brasil e em todo o Continente (como no mundo), frente à crise do capitalismo é frágil. Mas é possível que esta contradição gere o fortalecimento de alternativas já existentes como é o caso do PSOL no Brasil, assim como o surgimento de novos processos, talvez mais intermediários, não puramente anticapitalistas, mas que expressem a necessidade de uma democracia real, radicalmente diferente dos regimes que vivemos e reivindicando uma política econômica mais igualitária.

É verdade então que se abriu no Continente um período de mudanças. Mas o mais provável é que seja bem diferente do que espera a burguesia e seus comentaristas. Haverá lutas, novos processos e disputas nas quais estaremos.

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O terror do Estado Islâmico, o estado de exceção na França, nossas responsabilidades

Por PIERRE ROUSSET, FRANÇOIS SABADO, publicado em VientoSur

O 13 de novembro constitui uma mudança na situação política nacional e internacional. O Estado Islâmico (EI, Daesh) atacou novamente e, também, com mais força. Em janeiro, os alvos foram os jornalistas de Charlie Hebdo, a polícia e os judeus. Dessa vez, quem esteve na mira foi a juventude. Não mataram a qualquer um em qualquer lugar: dispararam contra a gente jovem, contra a juventude, sem distinção alguma, nem de suas origens, nem de religião (ou de ausência de religião), nem de suas opiniões políticas. Ao menos 130 mortos e mais de 350 feridos; segundo testemunhas diretas da matança, como mínimo, mil pessoas. Muitos de nós temos vítimas conhecidas ou, então, amigos que as têm. A onda de choque, a emoção, é profunda.

Solidariedade com as vítimas

O objetivo perseguido pelos comandos do EI não constitui um mistério: destroçar a sociedade através do terror. Criar uma situação na qual se imponha a guerra de uns contra outros; na qual o medo levante barreiras incontornáveis entre os cidadãos e cidadãs em função de suas origens, religião, modo de vida e identidade; cavar um fosso de sangue no seio da religião muçulmana,

forçando os fiéis a elegerem um caminho: quem não está conosco incondicionalmente, está contra nós e se converte em um alvo “legítimo”.

Os atentados de Paris se encontram entre os mais sangrentos perpetrados no mundo pelo EI e outros movimentos similares que respondem à mesma lógica destruidora. Nossa solidariedade é internacional e se dirige, em particular, a quem os combatem em outros países, pondo suas vidas em risco: na Síria, e no Iraque, no Líbano e em Bamako, no Paquistão e na Turquia… Sobretudo, temos que proclamar nossa compaixão, nossa identificação, nossa fraternidade com as vítimas e com as pessoas próximas a elas.

Evidentemente, nesses momentos continuamos impulsionando a luta de classes, apoiando a luta de toda gente oprimida; mas, além disso, defendemos a humanidade frente à barbárie. Para nós, a dimensão humanista do compromisso revolucionário segue sendo uma bússola. Qualquer política progressista começa com a indignação, a emoção. E, ainda que não se reduza a isto, constitui seu ponto de partida. Não oponhamos a reflexão à aflição. Abandonemos os estereótipos; deixemos de escrever sem sentimentos. Aqui e agora, ajudemos as vítimas e as pessoas próximas

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a elas, soframos sua dor, participemos nos minutos de silêncio, nas manifestações de solidariedade. Formemos parte desse movimento e é a partir dele que poderemos explicar nossas razões.

Seja qual for o papel do imperialismo, o Estado Islâmico é responsável por seus atos

Os revolucionários devem rechaçar de forma clara a barbárie fundamentalista. Há que combatê-la, com nossos métodos, com nossa orientação; não com a dos nossos governantes; mas esta barbárie deve ser derrotada ativamente.

Sob o impacto dos acontecimentos, algumas organizações de esquerda e sindicatos se atrelaram à convocação de unidade nacional; outras, em reação, denunciaram tão fortemente as responsabilidades políticas e históricas do imperialismo ocidental, que sua denúncia do EI era quase inaudível. Em geral, com o passar dos dias, essas tomadas de posição foram se tornando mais claras. Tanto melhor. Mas ainda lemos muitos artigos julgando que, se bem que os atentados “não possam ser desculpados”, é necessário, sobretudo, ter em conta o “contexto”; reduzindo, no essencial, a análise do contexto à enumeração dos estragos imperialistas, se poderia concluir que os movimentos fundamentalistas não fazem mais que reagir à ação das grandes potências e que, em certa medida, deveríamos considerar tais circunstâncias como atenuantes. É necessário eliminar toda ambigüidade a esse respeito.

Curiosamente, muitas vozes da esquerda denunciam com vigor os atentados fundamentalistas, mas rechaçam condenar, nomeando-os de forma explícita, os movimentos que os cometem. Mais curioso ainda, muitas das organizações que não duvidam em fazê-lo (nomear os culpados, explicitar seu caráter reacionário) não tiram nenhuma conseqüência prática disso. Quando se chega às tarefas, já não se menciona o combate contra o terrorismo e contra esses fundamentalismos; o que, digamos de passagem, deixa aos nossos governantes o monopólio das respostas concretas.

Em geral, nos pomos de acordo para fazer frente aos imperialismos e a suas guerras, a uma globalização capitalista destruidora, às desigualdades e às discriminações, à ideologia do choque de civilizações, aos racismos – entre eles, a islamofobia -, às heranças do passado colonial, às políticas de segurança e aos Estados de exceção, aos chamamentos à unidade nacional e à paz social… a determinadas causas e às conseqüências dos dramas que vivemos. Mas também devemos combater a influência do Estado Islâmico (entre outros) nas nossas

próprias sociedades e solidarizarmo-nos de forma concreta com as resistências populares nos países do Sul, transtornados pelo fanatismo religioso. Esse é um dever internacionalista. Em uma boa parte da esquerda radical, incluindo a que não se vincula ao nocivo “campismo”, existe tal “ponto cego”. Por isso damos importância a essa questão em nossa contribuição.

O EI, ou outro movimento similar, não se contenta em reagir: atua segundo sua própria agenda. São agentes políticos que perseguem objetivos. Efetivamente, não há nenhuma dúvida de que o EI seja o responsável pelos atentados de Paris. Esta organização construiu um proto-Estado em um território equivalente ao da Grã-Bretanha. Gere uma administração, acumula imensas riquezas (avaliadas em cerca de 1,8 bilhão de dólares), organiza contrabando de petróleo e de algodão. Desenvolve operações de guerra em múltiplas frentes de batalha, recrutaram especialistas de informática de alto nível… não se trata de uma marionete! É responsável por seus atos; totalmente responsável por todos os atentados que comete em tantos lugares.

Esta responsabilidade própria não se dilui nas responsabilidades do imperialismo, por muito profundas que sejam essas últimas e ainda que o sejam desde há muito tempo: desde os acordos Sykes-Picot do começo do século XX até as intervenções atuais das grandes potências. Na verdade, se ouve dizer que sem a intervenção dos EUA em 2003 no Iraque (que desestabilizou a região e desintegrou Estados), EI não existiria. Isto não é verdade além do que diz respeito ao encadeamento específico que conduziu à fundação do Estado Islâmico, tal como o conhecemos. Em tudo o mais, é falso. A emergência das forças jihadistas não deriva mecanicamente da dominação imperialista; é o produto combinado de numerosos fatores, que vão desde a derrota das esquerdas árabes (e européias) até a vontade das burguesias da região de contar com novas forças contrarrevolucionárias para dar impulso a suas ambições regionais, ou combater o ascenso revolucionário no seio do mundo árabe. Isto também é certo no que diz respeito ao ascenso dos fundamentalismos religiosos em outras partes do mundo; inclusive em países que não conheceram nada comparável à guerra de 2003, tais como a Índia (extrema-direita hindu), Birmânia (extrema-direita budista) ou Estados Unidos (exrema-direita cristã, poderosa antes do 11 de setembro de 2001 e muito próxima a Bush).

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Às voltas com o “choque de barbáries”

Existe uma responsabilidade imperialista ocidental, como houve no dia seguinte da guerra de 14-18 (o tratado de Versalhes) em relação ao ascenso do nazismo na Alemanha. Naquela época, não faltaram antifascistas que o recordavam de forma sistemática. No entanto, uma vez que o nazismo se desenvolveu, denunciaram o partido nazista e o combateram. O Estado Islâmico já se desenvolveu…

Temos que continuar explicando o contexto, mas há que compreender o Estado Islâmico naquilo que é, não como uma mera sombra do Ocidente. O imperialismo contemporâneo, as políticas neoliberais, a globalização capitalista, as empresas de recolonização, as guerras sem fim, esgarçam o tecido social de um número crescente de países, dando espaço a todas as barbáries. Mas os fundamentalismos religiosos também são agentes temíveis da desintegração de sociedades inteiras. Neste caso, não existe uma “barbárie principal” (do Ocidente) que haveria que combater hoje e uma “barbárie secundária” (EI e seus consortes) com a qual não deveríamos nos preocupar, a não ser em um futuro indefinido. O contrário também é verdade: não se deve fechar os olhos para a barbárie imperialista e das ditaduras “aliadas” sob o pretexto de combater a barbárie fundamentalista. No horror não existe hierarquia. É preciso defender ativamente e sem demora todas as vítimas destas barbáries gêmeas, que se alimentam umas às outras, sob pena de fracassar em nossas obrigações políticas e humanitárias.

Muitas vezes, os fundamentalismos religiosos estiveram apoiados por Washington em nome da luta contra a URSS (no Afeganistão, Paquistão…) antes que afirmassem sua autonomia ou, inclusive, se voltassem contra seus padrinhos. Estes movimentos não têm nada de progressistas, são profundamente reacionários.

O antiimperialismo reacionário não existe. Querem impor um modelo de sociedade, ao mesmo tempo, capitalista e que nos devolva ao passado: totalitário no sentido forte do termo. Certamente, a França foi atacada em função de sua política no Oriente Médio ou de sua história colonial e pós-colonial. Mas, quando o EI massacra os Yazidis porque são Yazidis, reduz as populações ao escravismo, vende as mulheres, desestabiliza o Líbano, leva ao extremo as violências interconfessionais (sobretudo contra os xiitas), que tem a ver isso com um suposto antiimperialismo?

Os movimentos fundamentalistas, como um todo, não têm as mesmas bases nem a mesma estratégia. Alguns, como o Estado Islâmico, são fascistas? Não mantém as mesmas relações (complexas) com setores das burguesias imperialistas como na Europa dos anos 30, mas as reproduzem com setores das burguesias das “potências regionais” como no Oriente Médio, Irã, Arábia Saudita, Qatar, Turquia… Atraem a “decomposição da humanidade” nas sociedades que se desintegram, assim como elementos das “classes médias”, da “pequena burguesia”, de uma assalariado culto. Para impor sua ordem, utilizam o terror “por baixo”. Desumanizam o Outro e o convertem em “bode espiatório”, como antes fizeram os nazistas com a população judia, cigana ou com os homossexuais. Erradicam toda forma de democracia e de organização popular progressista. A exaltação religiosa cumpre o mesmo papel que a exaltação nacional durante o período entre-guerras e, além do mais, permite que se desloque internacionalmente. Seria estranho que as convulsões provocadas pela globalização capitalista não dessem origem a novos fascismos, da mesma forma que seria estranho que estes fossem idênticos aos do século passado. Existe uma diferença em relação aos fascismos europeus; é a superposição dessa reação integrista totalitária, com o desmantelamento dos Estados e a crise das relações de dominação imperialistas, econômicas e militares que contextualizam a região. A luta anti-terrorista deve ser impulsionada pelos povos da região e não por uma coalizão de potências ocidentais. Uma nova intervenção militar das potências imperialistas e da Rússia, apoiada em cada um de seus flancos pelos países do Golfo e pela ditadura síria, pode debilitar o EI no terreno militar mas não pode provocar mais que uma reação de rechaço de todos os povos sunitas da região.

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A crise da sociedade francesa

Os atentados de 13 de novembro foram cometidos, sobretudo, por franceses ou franco-belgas; a França, junto com a Bélgica são dois dos países de onde mais partiu gente para a Síria. Não existe um perfil único das pessoas que se unem ao Estado Islâmico. Podem vir de famílias religiosas, de famílias muçulmanas laicas ou não muçulmanas: são bastante numerosos os não-árabes recém-convertidos. Também podem provir de meios muito precarizados ou estáveis, ter um passado delinqüente ou não. Em determinados casos, a “radicalização” de um indivíduo é o ponto de chegada de um processo largo; para outros, se trata de uma transformação repentina. Como era de esperar, a maior parte dos homens, mas não todos, que cometeram os atentados na França provêm de áreas particularmente desfavorecidas, conheceram a prisão e foram membros de gangues. Frente a essa pluralidade de perfis, não podemos nos contentar com explicações simplistas, unicamente sociológicas (precarização, racialização das relações sociais…) ou históricas (o rastro pós-colonial).

Diferentemente de outras radicalizações anteriores da juventude, esta é muito minoritária e não reivindica aspirações humanistas. O Estado Islâmico mostra a si mesmo da forma mais crua: “venha cortar cabeças conosco”. O exército francês torturou massivamente, sobretudo durante a guerra da Argélia, mas o governo e o Estado-Maior negavam de forma encarniçada seus crimes: jamais fizeram um chamamento proclamando: “Venham aderir ao vosso grande exército, venha torturar conosco”. O Estado Islâmico explicita publicamente um discurso de ódio e de exclusão do Outro (como a mais extrema das extremas-direitas). Não há analogia possível entre as atuais partidas para a Síria e a constituição das Brigadas Internacionais durante a guerra civil espanhola ou a radicalização dos anos 60.

Não existe nada de banal em tudo isso, nem no recurso ao terror de massas. Pretender que o terrorismo seria a arma “natural” dos oprimidos nas guerras “assimétricas” é ignorar as lições dos grandes combates de libertação nacional do século passado, das guerras revolucionárias. Nas lutas a favor de sua independência ou contra o imperialismo, na Indochina ou na América Latina, os atentados terroristas da época foram raros e os movimentos implicados compreenderam rapidamente que o custo político de tais operações era demasiadamente elevado e que geravam muitos

problemas éticos. Na Argélia, a FLN, que se aventurou nesse terreno, deu marcha atrás rapidamente sob a pressão de alguns de seus setores ou dos movimentos de solidariedade com a independência argelina.

Sofremos as conseqüências profundas da “crise política”, da perda de socialização inerente a nossas sociedades neoliberais e de sua crescente injustiça, da derrota sofrida por nossas gerações (os radicais dos anos 60-70), da incapacidade das esquerdas em nossos países em oferecer uma perspectiva radical e desenvolver uma atividade no seio das comunidades precarizadas. Nos enfrentamos com questões que a maioria de nós não domina: a psicossociologia, a relação entre as fragilidades identitárias individuais e o esgarçamento do tecido social, as buscas adolescentes… O Estado Islâmico oferece uma armadura identitária e de poder: poder de representação, poder das armas, poder sobre as mulheres, poder sobre a vida e a morte… Nisso se baseia seu poder de atração, muito mais que um suposto antiimperialismo.

Trata-se de questões que devemos integrar mais do que fizemos até agora e das quais podemos extrair algumas conseqüências. A luta anti-racista, por muito importante que seja, não é suficiente. Frente ao individualismo neoliberal e seu anonimato (quem conhece a seus vizinhos e vizinhas?) é preciso favorecer, reconstruir, os espaços de socialização, de “convivência”, a mistura étnico-cultural, e reintroduzir uma reflexão de fundo sobre a ética do compromisso e a luta.

Nesta situação, todos os racismos constituem um perigo mortal; entre eles o racismo de Estado, por suposto, mas não apenas. Lutemos contra o que pode alimentar as tensões intercomunitárias, fazer com que uns oprimidos enfrentem a outros, seja através do racismo anti-árabe, ou da negrofobia, do anti-semitismo ou da islamofobia, ou da discriminação dos ciganos; e para isso, nutramo-nos de uma cultura de convivência, de respeito aos direitos de todos e todas.

Nossas tarefas internacionalistas

Os últimos acontecimentos (13 de novembro, atentados no Sinai contra o avião de linha russo…) precipitaram uma evolução das alianças, que já se percebia desde antes, com a formação de uma grande coalizão: integração da Rússia, abandono das pretensões de autonomia da França, preocupação manifesta, inclusive pela Arábia Saudita, em torno ao avanço do Estado Islâmico… Em contrapartida, se apóia o regime

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de Assad, ainda que esteja na origem da crise síria e seja culpado dos crimes que conhecemos. Basta isto para favorecer um acordo temporário entre as potências regionais pertencentes aos chamados “blocos” sunita e xiita?

Ainda é muito cedo para medir todas as implicações desse giro na situação internacional. Por ora, assinalemos os seguintes pontos.

Os acordos entre os ocidentais e a Turquia ou com o regime de Assad se farão em detrimento das forças que mais merecem nosso apoio na região: curdos, yazidis, componentes progressistas e não-confessionais de resistência ao regime sírio. É preciso levar a eles nossa solidariedade política e material e, sobretudo, exigir que recebam armas adequadas, essas que os componentes progressistas do ELS (Exército Livre da Síria) jamais tiveram (e, ainda assim, resistem!) e das quais os curdos poderiam se ver privados, em particular na frente síria. É obrigatório reconhecer que, no que nos diz respeito, na França nunca fizemos o que era necessário.

A intensificação dos bombardeios da coalizão, com o exorbitante preço pago pela população civil, corre o risco de reforçar o apoio ao EI dentre outros componentes islamistas que operam na Síria. O resultado desta política seria então reforçar tanto o regime de Assad como as organizações fundamentalistas (começando pelo Estado Islâmico). Para evitar essa armadilha, é preciso romper com a lógica das grandes potências: ajudemos as forças populares na Síria e no Iraque a continuar sua luta, em lugar de querer substituí-las ou, inclusive, marginalizá-las ainda mais.

Lutemos pois contra a política de guerra de nossos governantes, mas compreendamos também a especificidade deste conflito, muito diferente das guerras da Indochina ou da Argélia: nelas, a retirada das tropas francesas ou americanas significou o fim das principais ingerências estrangeiras e criou as condições para uma vitória. Não é o caso, nesse momento, no Oriente Médio, ainda estariam lá: Turquia, Irã (e Hezbollah), Arábia Saudita, Qatar, Argélia, Egito… Em uma geopolítica tão complexa, é necessário prestar atenção aos movimentos que apoiamos para saber o que necessitam, material e politicamente. São os povos que têm que decidir, não as coalizões imperialistas. Mas, e isso constitui uma dimensão específica nessa guerra, tanto os curdos como os democratas sírios têm pedido, e seguem pedindo, ajuda médco-sanitária e militar, inclusive aos governos ocidentais. É preciso garanti-la. Não à substituição da capacidade de decisão

e auto-determinação das forças democráticas sírias e curdas; mas, ao mesmo tempo, nenhuma dúvida na hora de ajudá-las e fazer pressão sobre nossos governos para que respondam às reivindicações que fazem e aos apelos que lançam.

No âmbito internacional, há que denunciar a hipocrisia das forças ocidentais: de um lado, pretendem combater o terrorismo e de outro, apóiam os regimes do Qatar, Arábia Saudita ou Turquia.

A coalizão que se constitui não tem nada que ver com uma aliança “democrática” contra uma ameaça totalitária. Além de nossos imperialismos “clássicos” esta coalizão inclui a Rússia de Putin, a Arábia Saudita, cujo regime está muito próximo do modelo de sociedade preconizado pelo EI, o Qatar, a teocracia iraniana, a Turquia de Erdogan, etc. Qualquer que seja a natureza do Estado Islâmico, toda analogia com uma “frente democrática anti-fascista” não tem nenhum sentido. Não estamos nem com a coalizão nem com o EI, nem com Assad. Estamos pelo direito à auto-determinação dos povos – entre eles o povo palestino – e contra todas as barbáries.

Um inflexão na situação nacional

Igual a janeiro passado, depois do massacre dos jornalistas de Charlie Hebdo, o assassinato dos policiais e o ataque de Hypercacher, a emoção submerge o país, o que é totalmente normal. Os atos islamofóbicos se multiplicaram, mas só correspondem a uma faixa da população. Os atos de solidariedade e de convivência também se multiplicaram: mostras de simpatia no metrô quando se cruza com uma pessoa do Magreb, a amabilidade ostensiva (inclusive, fora de moda) abrindo espaço para deixar passar uma mulher com véu, reocupação dos espaços festivos e de mistura étnico-cutural… Desgraçadamente, todos esses gestos não se registram nem formam parte das estatísticas.

Igualmente, como em janeiro, se aclamam as políticas de segurança e se aplaude as forças da ordem. Só que, mais ainda que em janeiro, o governo se aproveita da ocasião para adotar medidas liberticidas. Foi o caso da Lei de Inteligência, que outorga poderes exorbitantes aos serviços secretos. É o que ocorre hoje com a implantação do estado de exceção e seu endurecimento por parte do Parlamento, com o chamamento do governo francês a que a União Européia se comprometa, especialmente fichando a quem viaja de avião, e o anúncio de François Hollande de uma reforma constitucional.

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A França já dispõe de dois regimes de exceção forjados, fundamentalmente, motivados pela guerra da Argélia: o estado de exceção (uma pseudo-lei marcial que dá carta branca às forças da ordem, ao controle judicial e limita as liberdades) e o estado de sítio (uma lei marcial integral que outorga todo o poder ao exército). Por que isso não basta aos governantes? Porque o recurso ao estado de exceção, por exemplo, está limitado no tempo e exige um voto no parlamento; que nessa ocasião foi quase unanimemente favorável: foi apoiado pela grande maioria dos socialistas, dos verdes e dos deputados comunistas. A reforma constitucional permitirá ao governo (ou ao presidente?) adotar as medidas de exceção com mais liberdade e, finalmente, converter a exceção em regra: intervenção do exército em assuntos policiais, registros arbitrários, detenções “preventivas”, proibição de manifestações ou greves, censura da imprensa, etc. Ainda não se conhece o texto da lei que elaborará Hollande, mas suas intenções estão claras. O regime se fará cada vez mais autoritário e a militarização da sociedade dará um salto adiante.

Muitas pessoas se inquietam pelo que aconteceria se Marine Le Pen e a Frente Nacional ganhassem as eleições (um cenário que nada tem a ver com a ficção), mas não se colocam o que os Hollande, Valls, Sarkozy ou outros fariam. Por isso é muito importante recordar o que fizeram no passado os governos “republicanos”: a tortura na Argélia, a adoção de uma lei de anistia que proíbe acusar seus autores (Só se pode acusá-los de apologia da tortura se, depois de tudo, defendem sua utilização), o esquecimento midiático do massacre das argelinas e argelinos, no 17 de outubro de 1961 em Paris (que não foi outra coisa, foi terrorismo de Estado), o golpe dos generais da Argélia, os múltiplos jogos sujos dos serviços secretos, o atentado contra o Rainbow Warrior do Greenpeace (um morto; de novo, terrorismo de Estado), o assassinato dos dirigentes kanakos, etc. De fato, o conjunto de leis de segurança adotadas nesses últimos anos e os dispositivos de vigilância instituídos podem permitir ao poder, esteja quem esteja nele, desenvolver uma guerra civil latente quando o deseje. Enfim, além de seguir rumo a uma [sociedade] “totalmente securitária” existe um cálculo político: Hollande e Valls contam com o estado de exceção para utilizar, uma vez mais, o arsenal bonapartista e situar-se, de certo modo, por cima dos partidos e instituições. Uma operação cujo objetivo é neutralizar o balanço catastrófico dos governos desde 2012 e prometer, ao Partido Socialista, melhores resultados eleitorais. Uma

aposta tremendamente imprudente. Hollande e Valls, apoiados nas instituições da V República, podem jogar a cartada da segurança, mas na situação política atual, em que os maus ventos sopram na direção da direita e da extrema-direita, são essas forças que correm o risco de aproveitar-se desta manobra.

As resistências ao prolongamento do estado de exceção têm sido muito débeis na esquerda parlamentar, ainda que mais importantes ao nível das bases (no seio do PCF, por exemplo, contra o voto de seus representantes na Assembléia Nacional) ou nos movimentos sociais: declaração de Solidaires e, também, da CGT.

O atual momento político é duro e comporta grandes riscos. A democracia política já foi esvaziada de conteúdo; os parlamentos já não decidem sobre as questões principais (que estão nas mãos da União Européia, da OMC ou dos tratados intergovernamentais). Agora se trata das liberdades civis, já sob pressão, que correm o risco de converterem-se em uma casca vazia. O governo quer pôr a sociedade em prisão domiciliar, mas o povo não tomou consciência disso ainda.

O importante é estabelecer pontes entre as resistências, manifestar nossa solidariedade com as vítimas do terrorismo, oferecer aos povos que lutam por sua liberdade os meios materiais, políticos e militares para sobreviver e vencer; ajudar as forças progressistas e não-confessionais que lutam no Oriente Médio, tanto contra o obscurantismo sanguinário, terrorista, do Estado Islâmico como do regime de Assad, que tanto o favoreceu. É pôr fim à escalada de guerra e bombardeios, pôr fim ao apoio aos regimes absolutistas e à promoção de injustiças sociais e políticas, tanto no Oriente Médio como em outras partes.

A situação das forças progressistas na França é bastante desastrosa, mas neste momento chave existem pontos nos quais se apoiar para resistir: o sentimento de solidariedade presente na população, a reação da juventude, o rechaço de um bom número de organizações e sindicatos a aceitar medidas liberticidas, um regime de exceção permanente. Daí que seja necessário construir uma frente única em defesa das liberdades, da convivência e solidariedade, aqui e por toda parte.

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Aos 75 anos do assassinato de Trotsky

O que é ser trotskista no século XXI?

Pedro Fuentes - Secretário de Relações Internacionais do PSOL

Estamos no 75º aniversário da sua morte produzida pelo ataque de Mercader, um agente da  KGB, sob ordens diretas de Stalin. Muito tempo e muitas coisas ocorreram no mundo desde então. Entre as mais importantes está que seu acirrado inimigo contra quem teve que lutar, Stalin, e o aparato burocrático que ele criou e que se prolongaram muitos anos depois de sua morte, também caíram; morreu com as revoluções democráticas que derrubaram o Muro de Berlin e todos os regimes burocráticos herdeiros.

O papel de León Trotsky, a fundação da IV Internacional e do movimento trotskista merecem muito mais que uma nota. Mas não podemos deixar passar esta data porque ela também coincide com um fato notável. Se fala e se conhece muito mais de Trostsky nesta última década do que em muitas anteriores. Se comenta e se simpatiza com sua figura. Há alguns dias a TV Brasil fez um excelente documentário sobre sua vida, e um livro do cubano Leonardo Padura que toca a tragédia de sua vida em paralelo à de seu assassino, “o homem que amava os cachorros” se converteu em um dos mais comentados nos últimos tempos.

Agora que o mundo é movimentado por muitas lutas democráticas, se compreende melhor sua luta incansável e em condições totalmente desiguais que levou adiante contra Stalin e seu aparelho. Os jovens querem conhecer Trotsky e nós, mais velhos, temos que tentar ajudar para que se entenda o que é ser trotskista hoje.

É indiscutível que Trotsky foi um herói da revolução russa, junto com Lênin, seu outro grande protagonista. Preso muito jovem e logo deportado para a Sibéria fugiu de lá de trenó, deixando sua primeira companheira e duas filhas. Em 1905 foi presidente e o principal orador do Soviet de Petrogrado. Em 1917 presidiu o Comitê Militar Revolucionário que dirigiu a operação da tomada do poder. Logo, durante a guerra civil, se converteu no chefe do Exército Vermelho que teve que enfrentar 21 exércitos que invadiram a Rússia e ao exército branco. Teve a audácia de convocar generais do exército czarista para fazer parte do exército revolucionário. O trem blindado de onde comandava as tropas se converteu em uma lenda viva. Contam os historiadores que Trotsky antes de decidir as operações militares em determinada

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frente se reunia com as células do Partido Bolchevique dessas cidades.

Em 1923, com Lênin já gravemente doente e terminada a guerra civil, Trotsky pediu para ir à Alemanha para colaborar com o Partido Comunista na direção da revolução. Era sabido que este partido novo não havia passado pela forja de Lênin, nem tinha uma direção e quadros experientes, ainda mais inexperientes com a morte de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht. Nos anos de plena efervescência da revolução – de 1919 a 1923 – o partido alemão perdeu três grandes oportunidades de tomar o poder, o que teria mudado a história mundial. Mas o triunvirato que dirigia Stalin com Kamenev e Zinoviev, não aceitou; o perigo de perder o aparato que ia construindo, no caso de Stalin, e os ciúmes de prestígio de Kamenev e Zinoviev, seguramente motivavam o triunvirato. Pensar que Trotsky – que tinha se somado ao Partido Bolchevique ainda em abril de 1917 – poderia voltar à Rússia como o novo herói da revolução alemã, era o que estava por trás da negativa de todos eles.

Não podemos, em poucas linhas, deter-nos em sua história de militante apaixonado, brilhante orador e escritor. Existem historiadores como Isaac Deutscher que o fizeram muito bem, que é importante ler para conhecer Trotsky, bem como suas obras mais importantes. Fez aportes imprescindíveis para incorporar à política revolucionária e manter vivo o programa revolucionário logo depois da morte de Lênin e da degeneração da III Internacional.

“A Revolução Traída”, onde Trotsky explica a degeneração do estado operário soviético e faz o prognóstico alternativo que foi corroborado pela realidade posterior: ou uma nova revolução, desta vez política para derrotar o aparato burocrático do estado, ou a dinâmica até a restauração capitalista, muito provavelmente conduzida por esta própria burocracia. O conceito de revolução política que nasceu de Trotsky é uma ferramenta imprescindível para entender muitas das revoluções que aconteceram no século XX e XXI, e vão continuar acontecendo, ou seja, revoluções que mudam o regime político e não o estado e o sistema, ou seja, o modo de produção.

“A luta contra o fascismo na Alemanha”, obra mestra para compreender o caráter instável ou oscilante da pequena burguesia, seu desespero como base do fascismo; a própria definição do fascismo, como a política da frente única para derrotá-lo. A Alemanha foi, junto com a Rússia, o palco fundamental da polemica com Stalin e, uma vez mais, como havia acontecido na Rússia, faltou a Trotsky contar com uma grande corrente, um partido ou organização de militantes revolucionários para poder impulsionar esta linha e derrotar o nefasto ultra esquerdismo do terceiro período de Stalin. Depois da Alemanha, Trotsky compreendeu que a III estava totalmente degenerada e começou os passos para a fundação de uma nova Internacional.

“ O Programa de Transição” que foi a base para construir a IV Internacional (e seu antecessor, o Programa de urgência para a Europa), peça fundamental – sempre que não for retirado do contexto e do momento histórico em que foi escrito – antes da segunda guerra mundial. Não se trata de repetir suas caracterizações, seus prognósticos e consignas como fazem muitos grupos trotskistas, mas, como dizia Moreno, pegar sua essência: sua estrutura e seu método transitório de ligação entre as palavras de ordens mínimas e as máximas a traves de consignas de transição, que são de ruptura parcial com o regime e o sistema.

A teoria da revolução permanente  à qual o programa de transição está vinculado como método para levar adiante a mobilização permanente das massas. Têm duas formulações, a de 1905 e a de 1927, esta última de forma mais acabada coloca a utopia da doutrina stalinista do “socialismo em um só país”. É uma contribuição decisiva para compreender a combinação de tarefas democráticas com as socialistas nos países de desenvolvimento burguês atrasado. Esta teoria foi transformada em um programa por Trotsky e o trotskismo e nesse sentido tem pontos fracos, demonstrou ser muito normativo e por isso suas formulações, se forem usadas esquematicamente, não permitem compreender a realidade das revoluções do pós-guerra e a dinâmica de muitos fenômenos novos que ocorrem agora. Como dizia Moreno em seu

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texto citado, a primeira condição de um trotskista é ser crítico inclusive ao próprio Trotsky, já que a realidades sempre é mais rica que a teoria. Sem dúvida, em sua essência mais profunda, o caráter internacional da revolução (ponto em que não diferia de Lenin, nem da Rosa Luxemburgo), foi Trotsky que teve que formular em sua luta contra a nefasta teoria stalinista do “socialismo de um só país”, tragicamente corroborado pela negativa com o colapso do chamado “socialismo real”. No texto já citado, Moreno diz que “o trotskismo é o “único consequente com a realidade mundial “quando um grupo de multinacionais domina o mundo; a este fenômeno sócio econômico é necessário responder com uma política internacional” E por isso a necessidade de retomar, contra as ideias nacionalistas, a concepção internacionalista, já que o socialismo será mundial ou não será.

A lei do desenvolvimento desigual e combinado  que deveríamos também incorporar como uma contribuição fundamental da dialética marxista. Trotsky elaborou esta lei a partir da análise da Rússia, e ela foi a base da teoria da revolução permanente. A interpretação dominante até então era que os países atrasados deveriam seguir o caminho dos mais adiantados, e então passar por uma revolução burguesa para cumprir uma etapa de desenvolvimento burguês, para então se buscar uma revolução socialista. Trotsky deduziu que na etapa do imperialismo não era assim, já que o capitalismo converteu o mundo inteiro em um só organismo, pelo que os países atrasados se veem obrigados a pular etapas, e que, portanto havia uma combinação. No caso da Rússia a formação econômica social feudal do campo se combina com o desenvolvimento da grande indústria capitalista. “O privilégio dos países historicamente defasados – que realmente o são – está em poder assimilar as coisas, ou melhor, dizendo, em obrigar-se a assimilar antes do prazo previsto, saltando por cima de toda uma série de etapas intermediárias”.

Os trotskistas George Novack e Nahuel Moreno têm o mérito de ter desenvolvido esta lei de Trotsky em seus escritos sobre Lógica Marxista. Para ambos, a lei de Trotsky é a lei mais geral que explica

não apenas o desenvolvimento histórico, mas também a origem do novo. Moreno em seu ensaio “Lógica Marxista e Ciências Modernas” esboça que é a lei mais importante para compreender todos os fenômenos novos e a relação entre o gênesis (o seja o movimento) e estrutura.

É impossível compreender os processos de desenvolvimento do capitalismo nesta nova fase se não for a partir da lei do desenvolvimento desigual e combinado, como tampouco nenhum fenômeno político que ocorra no sistema-mundo e sua fase imperialista da mundialização neoliberal, onde dominam as desigualdades e suas diferentes combinações.

Perguntas difíceis, mas que devemos responderChegando a este ponto, surgem algumas perguntas,

sobretudo na juventude e na esquerda que se separa do reformismo. Por que, se o trotskismo é a corrente revolucionária em continuação ao leninismo, tem tido pouca incidência nas revoluções ocorridas depois da russa? E por que, se tem uma teoria e programa essencialmente corretos, existem tantas divisões no movimento trotskista? A verdade é que ambas são difíceis de responder.

E muito necessária esta resposta para aprender de nossos erros, porque se tem algo que temos que destacar no mundo é que, diferente de outras épocas das quais a seguir falaremos, nós trotskistas estamos atuando muito. Estivemos presentes na Grécia em Syriza e agora na Unidade Popular, na Espanha em Podemos e outras formações, nos EUA o trotskismo tem uma vereadora em uma grande cidade como Seattle e setores fazem parte da campanha de Bernie Sanders, na África do Sul, na Turquia, na Bielorrússia e muitos outros países do leste europeu e da Rússia. Aqui em Brasil somos muitos no PSOL, na Argentina é praticamente toda a esquerda, no Peru o trotskismo conta com profundas raízes e uma longa tradição histórica, na Venezuela joga um papel chave para construir uma esquerda capaz de continuar o processo bolivariano, para falar de alguns lugares.

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Leninismo e trotskismo

Uma primeira questão para tentar opinar sobre tais perguntas é dar-lhe um contexto geral, um parâmetro à afirmação de que o trotskismo é a continuidade do leninismo. Isto é algo indispensável que muitos trotskistas ou simpatizantes da causa levem em conta. É verdade que Trotsky é um continuador de Lenin, e pode ser também que em alguma das tantas polêmicas que teve com Lenin tivesse tido razão em algumas. Mas como bem explica Roberto Robaina em seu folheto “Notas à teoria de Lenin sobre a revolução de 1905”, no capítulo “trotskismo e leninismo” / tem um conceito importante que é parte da elaboração que nossa corrente MES vem fazendo desde os finais dos anos 90. Trotsky é um continuador em um contexto mundial diferente, marcado pelo triunfo da contrarrevolução na Rússia. (Ver também “O Internacionalismo e a construção de uma organização internacional”) / . Neste sentido o trotskismo foi um movimento mais defensivo e, portanto, mais parcial, menos universal que o leninismo.

Lukács em seu livro escrito quando jovem, diz que “Lenin é o formulador da teoria geral da revolução” e o via na dimensão teórica, programática e concreta da mesma. Ou seja, graças a esta compreensão foi capaz de levar a teoria ao concreto e à ação e, também por isso, construir o partido bolchevique. Trotsky também terminou vendo-o assim, e daí sua leal entrada ao partido bolchevique como mostra também Roberto no texto citado. Moreno considerava também que Lenin e todas as elaborações da III Internacional eram mais universais, e creio que o mesmo se poderia dizer de Daniel Bensaïd lendo seus trabalhos sobre Lenin.

Nahuel Moreno sempre comentava em seus cursos que o pensamento de Lenin era de uma totalização mais aberta e portanto também mais concreta. Quando se discutia em seus cursos a revolução permanente, Moreno dizia que a formula algébrica de Lenin “ditadura democrática de trabalhadores do campo” resultou historicamente mais real que a de Trotsky que subordinava (para todo momento e lugar) o campesinato à direção trabalhadora. E

que Trotsky tinha uma tendência à generalizações teóricas e formulações de leis que terminavam sendo mais esquemáticas, como foi demonstrado na revolução chinesa.

No texto citado, Roberto afirma que parte dos militantes trotskistas, ao considerar Trotsky como o continuador de Lenin, (e eu agregaria também uma superação), “dão por entendido que a formulação revolucionária se faz essencialmente estudando e seguindo o que Trotsky escreveu, esquecendo-se de Lenin e suas obras”.

Trotsky cumpriu um papel histórico como continuador de Lenin. Não haveria hoje revolucionários internacionalistas sem Trotsky, que defendeu e susteve o legado do programa revolucionário (não houve outro que o fizesse independente de seus aportes, não o fez Gramsci por exemplo), e tem o grande mérito de construir uma organização, a IV internacional, para defendê-la, uma bandeira sem máculas. Mas o fez em uma situação defensiva.

O auge do stalinismo encurralou o trotskismo numa tarefa essencialmente de defesa do programa

Quando Trotsky criou a IV, apostava que a situação revolucionária que se abriria com a segunda guerra mundial iria permitir que a IV Internacional se transformasse em uma organização de massas como foi a terceira depois da primeira guerra mundial. (Ver O internacionalismo e a construção de uma organização internacional) Mas a realidade não foi assim. O stalinismo, que foi quem levou adiante a derrota do fascismo, saiu deste período com muito prestigio sobre os trabalhadores em todo mundo, e as revoluções que ocorreram no pós-guerra terminaram sendo controladas na política de coexistência pacífica surgida dos acordos de Yalta e Postdam e da divisão do mundo em zonas de influência entre Stalin, Churchill e Roosevelt.

Os revolucionários que seguiam Trotsky já tinham sido enfraquecidos com a perseguição encarniçada que fez o stalinismo antes da guerra. Stalin assassinou 90% do velho Comité Central Bolchevique e suas mortes alcançaram dezenas de milhares. Dez milhões morreram na Rússia sob a ditadura stalinista. A morte não chegou apenas a

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Trotsky, mas antes tinha também dizimado a sua família. Na luta contra o fascismo o trotskismo perdeu também uma grande quantidade de militantes, entre eles o brilhante Abraham León, dirigente do gueto em Varsóvia. No Vietnam, onde o trotskismo era forte, seu dirigente Ta Thu Thâu foi assassinado pelo Partido Comunista do Vietnam sob a influência de Stalin. O mesmo aconteceu na China.

A IV, como lembrava Mandel na nota enviada ao MAS, quando da morte de Moreno, dizia que “ele (Moreno) tinha defendido o programa em momentos difíceis” e isso é extensivo a esta geração dos anos 40, como a outras que seguiram e se formaram neste meio.

Daí que ante o auge stalinista, tanto a IV como as organizações e partidos trotskistas que continuaram reivindicando-a e sendo parte dela, foram essencialmente de propaganda e defensivas. Isto significou também que nos últimos anos de sua vida Trotsky contou apenas com punhados de seguidores nos diferentes países, salvo possivelmente nos EUA com o SWP.

Muitos de seus escritos deste período, onde coloca suas opiniões para fortalecer seus grupos, estão influenciados por esta realidade. Em relação à revolução espanhola por exemplo, Trotsky escreveu textos brilhantes sobre a importância das reivindicações democráticas, mas se equivocou ao desqualificar aquele que era seu principal seguidor e principal dirigente, Andrés Nin, e fazer críticas fora de contexto quando este fundou o POUM com Maurin e esteve durante um período no governo da Generalitat. Existem também outros debates exageradamente fracionários em todo este período sobre tudo que teve que remar contra a corrente e intervir ante as disputas internas como as do trotskismo francês.

Existem dois temas que merecem um estudo especial e que neste texto só poderemos enunciar e que se referem ao defeito que já citado por Roberto Robaina sobre a questão de levar em conta apenas as obras de Trotsky e, inclusive, tirá-las de seu contexto. Um deles são seus escritos sobre a França, onde Trotsky mais desenvolve a análise da política

posterior ao terceiro período de Stalin das Frentes Populares. Nestes escritos Trotsky é brilhante em sua análise do bonapartismo e o proto fascismo, das milícias armadas da direita e da polícia da autodefesa trabalhadora para combatê-las. Trotsky, corretamente oposto à Frente Popular, ou seja, ao governo dos partidos de esquerda com setores da burguesia, embora chegou a sugerir fazer os comitês de base do Frente Popular. Da leitura de seus escritos sobre a França deixam a impressão que estavam impregnados demais da mesma política dos sovietes que se desenvolveu na Rússia.

Em relação à Catalunha também é discutível a crítica a Nin, quando o POUM entrou no governo (e logo saiu) já que não levava em conta, no caso da Espanha, a guerra civil que dividia o país. Cremos modestamente que perdeu de vista a análise concreta da situação concreta.

Muitos trotskistas latino-americanos também confundiram os governos anti-imperialistas radicais com a Frente Popular que existiu nos países adiantados. Assim, caracterizaram incorretamente o governo de Allende no Chile, esquecendo então que este governo era muito mais uma frente única anti-imperialista com traços kerenkistas, e na década dos 2000 repetiram mecanicamente a caraterização de frente populismo para os governos bolivarianos. De nossa parte, adaptamos a caraterização leninista do frente único anti-imperialista o que nos permitiu ser parte desses processos sem perder por isso a nossa própria organização.

Propaganda e política

Os seguidores de Trotsky que continuaram a histórica tarefa de construir a IV Internacional viveram uma situação similar. Nos anos difíceis aos que se refere Mandel, tiveram que enfrentar uma série de pressões que terminaram dividindo a IV Internacional.

Ante a enorme pressão do reformismo e do stalinismo das décadas posteriores a Trotsky, o trotskismo se fez essencialmente na defesa do programa, foi inexperiente e cedeu a pressões na hora de fazer política. É sabido que a política

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não se faz com o programa. O programa parte das necessidades sugeridas pelas massas em determinada etapa ou período e as organiza em relação às necessidades históricas, ou seja, à luta pelo socialismo neste período. Enquanto a política tem que responder às necessidades presentes, partindo da correlação concreta de forças que há entre as classes sociais neste momento, ou seja, se faz baseada em uma análise dos elementos presentes, que leva a uma caracterização concreta e dinâmica para, a partir desta, fazer a política que mobilize as massas por suas reivindicações, tentando que neste processo mudem as condições e haja um avanço em sua consciência, para que façam a experiência com o governo e seu regime político.

Fazer política com o programa é o que leva ao propagandismo, uma tendência que herdamos os trotskistas. Daí também que quando muitos grupos trotskistas fazem política, se baseiam na busca da diferenciação programática com o centrismo ou o reformismo, e não na disputa da melhor política para mobilizar os trabalhadores.

Partido, fração ou seita: A concepção de partido de Lenin

Nenhum trotskista duvida que no terreio da construção do partido o principal mentor foi Lenin. Mas o problema é que é mal interpretado. Uma das bases para que tantas divisões ocorressem estão bem explicadas em um artigo de John Ross, um trotskista inglês, em seu trabalho: Partido ou Fração/Seita, no qual reivindica o critério de partido de Lenin frente aos “partidos facções”.

Contra a ideia bastante generalizada no trotskismo de que Lenin desde 1903 dividiu a socialdemocracia russa em dois partidos (bolcheviques e mencheviques), Ross demonstra que Lenin era uma facção da social democracia com a qual se reunificou organicamente em 1906, e se conservou como parte do partido socialdemocrata que existiu com suas diferentes alas, Trotsky inclusive era uma delas, até 1914, quando começa o novo auge revolucionário. Ou seja, que o leninismo existiu como parte da socialdemocracia e posteriormente

a partir de 1914 como partido bolchevique. Para o leninismo o partido se sustentava sobre a base do programa geral e em suas normas organizativas, estes eram e devem ser os critérios de partido e não a política. Logicamente este programa mudou no período revolucionário e sobre a base dessa nova situação se produziu a ruptura.

Este critério de partido é que permite que haja diferenças políticas em seu interior, e que estas se discutam democraticamente, inclusive de forma pública. Assim ocorreu no partido bolchevique.

Contra a ideia do hegemonizmo ou totalitarismo que as correntes luxemburguistas ou espontaneistas atribuem ao leninismo, o partido bolchevique foi um partido de disputa permanente de posições políticas, de tendências e correntes de opinião. Lembremos as diferenças públicas entre Stalin e a maioria do CC do partido com Lenin em março de 1917 sobre apoiar ou não o governo menchevique, e posteriormente com Zinoviev e Kamenev sobre a tomada do poder. O bolchevismo foi um exemplo de democracia com tendências e correntes de opinião públicas. Foi o comunismo de guerra que obrigou a um regime mais estrito e a suprimir as tendências e facções.

Estes critérios do partido – programa geral e normas de organização – somado à inserção dos trabalhadores, foram transformados em seu contrário por Stalin, dito de maneira direta em um aparelho burocrático que terminou sendo contrarrevolucionário. Mas também foram deformados por correntes revolucionárias e pelo movimento trotskista. A etapa defensiva, de propaganda, de certo isolamento das massas, fez que primassem pelo caráter e os hábitos de facção aos de partido.

Uma facção ou tendência se organiza ao redor de uma luta política determinada e, portanto, requer e tem uma alta homogeneidade política. Mas essa homogeneidade política é difícil de conservar porque a política é dinâmica, muda e sempre existem diferenças, matizes, choques de opiniões. Daí que esse critério de partido facção com o qual se construíram numerosos grupos trotskistas leves às divisões por qualquer diferença política que

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rompem a unidade estabelecida. Definitivamente ocorre porque se perderam os verdadeiros critérios de partido: suas normas de organização e seu programa.

Ao mesmo tempo, para que essa unidade política se sustente, é necessário que o mesmo regime interno seja de uma disciplina estrita, necessário para acatar essa política.

Por isso o partido facção deixa de ser um organismo vivo no qual a política se nutre da discussão sadia dos militantes em organismos, em um contato direto sadio entre a base e a direção. Falamos de organismos de base intimamente vinculados e inseridos em uma base social que seja receptiva às necessidades dela, e de organismos de direção em estreito contato com seus militantes e seus organismos para fazer uma interação que permita procurar a melhor política e a unidade de ação para aplicá-la. Ao contrário, os partidos facções terminam tendo direções com traços aparatistas. Da facção à seita há um passo; essa política se transforma em um dogma que se repete e repete. E os laços políticos sadios da militância partidária são substituídos por laços criados ao redor da fé na política transformada em dogma.

Este tem sido um problema que arrasta o trotskismo e explica também, muitas vezes, as divisões. Cremos que na corrente morenista que nós reivindicamos não temos sido alheios a isto, daí a importância de reconhecê-lo para não repeti-lo.

O que é ser trotskista hoje? (tema inconcluso)

Responder esta pregunta nos leva, em primeiro lugar, a afirmar a mesma resposta que Moreno deu em 1986, a qual é compartilhada por outros revolucionários de sua geração como Ernest Mandel.

“em primeiro lugar, ser trotskista significa ser crítico inclusive ao próprio trotskismo”.

“Ser trotskista hoje não significa estar de acordo com tudo o que foi escrito ou disse Trotsky, senão fazer-lhe as críticas para superá-lo” (…) “O marxismo pretende ser científico e a ciência ensina

que não existem verdades absolutas.”Compreender que estamos ante um novo período

histórico que nos tem colocado novas tarefas e novos desafios que só podemos compreender tendo uma visão internacionalista

A caracterização deste novo período é um tema aberto, cheio de incertezas. O século XXI nos trouxe um novo período histórico muito complexo, talvez seja o período mais difícil para ser explicado pelos leninistas trotskistas, embora tenhamos boas ferramentas para fazê-lo: a radiografia essencial do capitalismo que nos deixou Marx, a teoria revolucionária de Lenin, Trotsky e os novos marxistas que tem surgido, em particular as elaborações que tem trazido muitos trotskistas formados na década de 60.

Mais que em nenhum outro período, a nova realidade responde à lei do desenvolvimento desigual e combinado. Vivemos em um período de decadência do sistema e da maior crise do capitalismo; dizemos a maior porque é na qual se reúnem mais elementos sistêmicos, onde se apresentam diferentes crises (económica, ambiental, política, social) em meio a uma nova fase do imperialismo que podemos chamar da “mundialização neoliberal”, na qual se tem produzido a maior concentração de capital em mãos de grandes corporações, onde também se tem produzido o mais alto grau de financeirização do mesmo e a maior e mais aguda desigualdade.

Neste período ocorreu o fim do chamado “socialismo real”, que significou também o fim do stalinismo como aparato mundial, do qual já falamos sobre o papel de freio que cumpria. Foram revoluções democráticas quer terminaram com as ditaduras burocráticas, mas que não abriram o caminho até um socialismo com democracia, senão à restauração do capitalismo.

A crise do capitalismo, de seu domínio e de seus regimes tem degenerado as conquistas de liberdades democráticas das próprias revoluções burguesas. A democracia burguesa e suas instituições têm convertido os partidos políticos do regime em agentes do grande capital dominante, das grandes corporações e dos bancos. Nos partidos políticos

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do regime surgiu uma casta política que atua como classe burguesa sui-generis, unida organicamente a essa neo-oligarquia mundial participando de seus benefícios, o que tem dado lugar a um período onde a corrupção permanente dos partidos no governo (sejam burgueses, socialdemocratas o como o PT no Brasil), se transformou em uma forma de “gerenciar” o estado.

Ser internacionalista hoje é defender a bandeira sem máculas da IV Internacional e, ao mesmo tempo, lutar por uma nova internacional onde, como dizia seu criador, os trotskistas sejamos minoria. Isto significa uma nova organização internacional na qual se possam organizar todos os internacionalistas que necessitam unir-se para enfrentar o imperialismo e as grandes corporações donas do grande capital.

A grande contradição deste momento histórico é que vivemos uma grande desigualdade (mais que desigualdade, é uma contradição) entre a crise global do capitalismo e a ausência de um modelo alternativo de sociedade, uma ausência ideológica de um novo paradigma provocado pelo fracasso do “socialismo real”.

Ao mesmo tempo, esta nova fase da mundialização neoliberal terminou com a desigualdade norte/sul (não no sentido de países imperialistas e países dependentes que se aprofundou), mas no terreno social; a pobreza deixou de ser propriedade dos países atrasados para expandir-se em todo o mundo, basta ver o nível de pobreza nos EUA. Ser internacionalista hoje é confiar também na classe operária e os setores explorados dos países mais adiantados como destacamentos insubstituíveis para derrotar o capitalismo e terminar com a exploração a nível mundial.

Estar na primeira fila nas mobilizações dos trabalhadores e todos os setores explorados e oprimidos, especialmente da juventude, sem deixar de confiar nos trabalhadores como o sujeito social principal da revolução. 

Os trabalhadores e os povos não deixaram de lutar. Neste novo período ocorreram as revoluções árabes que logo evoluíram, e os grandes levantes populares e juvenis dos indignados, grandes mobilizações

democráticas populares que seguem se espalhando, reclamando democracia real, enfrentando a corrupção, lutando por mais direitos, enfrentando o capitalismo. Assim sendo, sem um programa anticapitalista acabado, as massas estão longe de ser derrotadas. É só rever o que ocorre nestes dias (Guatemala, Honduras, Índia, Indonésia…). Não somos de opinião de que haja uma ofensiva da direita em escala mundial.

É um período onde ao sujeito social revolucionário da classe trabalhadora se somam numerosos novos setores da classe média despojada dos direitos democráticos e, por sua vez, relativamente empobrecida pela minoria que domina a economia mundial. Onde também se mobilizam por seus direitos e logram conquistas setores oprimidos, em primeiro lugar as mulheres, em sua luta por liberdade e igualdade de direitos, os negros que são os setores mais explorados em numerosos países e a comunidade LGBT.

Temos que reconhecer que a mundialização do capital tem permitido ao capitalismo mundializar a produção das multinacionais, fazendo cadeia de produção em diferentes países, criando um exército mundial de reserva e, desta maneira, fragmentando também a nossa classe que não pode responder com uma organização a nível mundial. A precarização do trabalho também é um problema. Esta situação tem levado marxistas a posições pós-modernistas que negam as classes e os sujeitos sociais. Sem dúvida, a classe trabalhadora cresce em número, e seguirá representando o papel estratégico principal para a derrota do capital.

Ser parte dos novos processos políticos e construí-los lealmente sem ocultar por isso nossas ideias e nosso programa, mas construindo-os essencialmente baseado em uma política de ruptura com o capitalismo.

Da crise que não para e das mobilizações e, em particular, dos indignados, tem se nutrido também novos processos políticos que de forma intermediária, no entanto, assumem posições confrontadas com a globalização neoliberal. Syriza na Grécia, Podemos na Espanha e as plataformas de unidade com movimentos sociais em Madri

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e Catalunha, o PSOL no Brasil, à que também se tem que somar a revitalização de esquerda no trabalhismo inglês com Corbyn que ganho pelo voto popular aos dirigentes do velho aparelho, e o fenómeno de Bernie Sanders, candidato independente socialista nas primarias do Partido Democrático.

Adiantando-se a este processo tivemos o surgimento do bolivarianismo em países latino-americanos. Precisamente estes foram uma experiência e uma prova que tivemos que fazer os trotskistas latino-americanos. Contra o propagandismo que fechou a porta a este processo de nacionalismo radical progressivo, o que terminou isolando-os deles mesmos e das massas, fomos os que intervimos nos mesmos com a linha da frente única anti-imperialista. O processo de esgotamento dos mesmos por seu processo de aburguesamento e burocratização é o que nos permite agora disputar as massas para levantar suas bandeiras progressistas e construir novas alternativas. Algo similar ao que agora ocorre com Syriza e a Plataforma de Esquerda.

Ser trotskista significa ter o leninismo como a base metodológica mais consciente e provada para a formação dos quadros revolucionários.

A crise ideológica que vivem as massas tem sido campo fecundo para o desenvolvimento de ideias pós-modernistas e a teorização equivocada do horizontalismo, o neo-anarquismo em setores de vanguarda e em especial na juventude. O movimento trotskista é o que melhor resistiu e resiste a estas pressões ainda que, como já o dizíamos neste texto, tendo setores que o fazem com respostas propagandistas ou de sectarismo. Lenin sustentava que as formas de organização mudam de acordo ao período da luta de classes, mas nem por isso deixava de sustentar princípios centrais sobre os quais já falamos neste texto. Esses pilares são os que tem que nos dar a confiança para saber, como Lenin, adaptar a organização do partido aos determinados momentos da luta de classes.

Um aspecto importante da luta de Lenin e Trotsky foi o combate ao terrorismo individual, o qual consideravam uma forma negativa e distorcida

da luta de classes que favorecia definitivamente à repressão e, por outro lado, substituía o papel dos trabalhadores e seus aliados. Ambos não o faziam de uma posição pacifista, já que ambos defendiam a necessidade da luta armada como método de luta para enfrentar ao estado burguês. É importante retomar esta tradição e suas consequências já que são novamente um elemento da realidade. No Brasil apareceu de maneira incipiente através das ações de black blocks, mas no mundo árabe e islâmico são uma realidade que não apenas atua nesses países em organizações reacionárias e retrógradas como o Estado Islâmico e Al Queda, mas que estendem seus braços até a Europa, onde uma juventude de origem islâmica se soma a estas organizações. A formação no leninismo-trotskismo é o que nos permite combater politicamente estes setores e afastar os setores de vanguarda desta concepção extremamente equivocada.

Formular um programa de transição que incorpore as novas tarefas e em particular as tarefas democráticas, levando em conta a nova relação que existe entre a democracia e o anticapitalismo neste período.

Esta nova fase da mundialização neoliberal, que definitivamente colocou as contradições e a crise do capitalismo a olhos vivos, colocou também uma importante quantidade de novas reivindicações e novas tarefas que sempre tem estado presentes, mas que agora são contradições muito mais notáveis.

Uma primeira e talvez mais importante questão seja a que o movimento dos indignados tem denominado como “democracia real”, que contém uma crítica frontal aos atuais regimes políticos da “democracia” burguesa para os 1%. Por isso, hoje em dia (embora vivemos uma forte crise ideológica), há uma relação mais estreita entre democracia e socialismo, já que a democracia real coloca de uma maneira ainda sem formulação clara o tema da minoria de proprietários dos bancos e corporações cada vez mais concentrados meios de produção cada vez mais concentrados.

O tema de sustentar uma reforma política radical de participação popular e de novas assembleias constituintes soberanas que reorganizem o país

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sobre outras bases igualitárias se transformou em uma consigna relevante que surge como uma necessidade na medida em que aparecem as fortes crises políticas vinculadas também à corrupção em numerosos países. No sentido de consigna de democracia real ou democracia para todos vai tomando um caráter mais transicional, deixa de ser a bandeira com a qual a burguesia dominou o movimento de massas para começar a voltar-se contra ela neste novo período histórico.

Está também como uma tarefa presente a questão ecológica, de caráter anticapitalista já que o capitalismo não pode resolver. Frente

ao extrativismo como prático das grandes multinacionais do imperialismo há uma resistência campesina e popular em todo o altiplano e os Andes latino-americanos. O mundo vai tomando consciência dos perigos que representa para a humanidade o ataque à natureza e o aquecimento global.

O título deste capítulo diz que o tema está inconcluso e é assim que está. É uma tarefa que precisa de muitas cabeças, muitas organizações e muitas mãos para ser formulada. É um desafio a mais que colocamos nós, os revolucionários.

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