revista memorias da floresta

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Uma pUblicação da biblioteca da Floresta - rio branco - acre - 2010

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Page 1: Revista Memorias Da Floresta

Uma pUblicação da biblioteca da Floresta - rio branco - acre - 2010

Page 2: Revista Memorias Da Floresta

Governo do Estado do AcreFundação de Cultura e Comunicação

Elias Mansour – FEMDepartamento Estadual da Diversidade Socioambiental/Biblioteca da Floresta

Governo FederalMinistério da Cultura

Arnóbio Marques de Almeida JúniorGovernador

Carlos César Correia de MessiasVice-Governador

Daniel Queiroz de Sant’anaDiretor Presidente da FEM

Carlos Edegard de DeusChefe do Deptº Estadual da Diversidade

Socioambiental/Coord. da Biblioteca da Floresta

Equipe Técnica da Biblioteca da FlorestaElaine Alves de Souza, Elzira Maria Rodrigues Reis, Francisco Hipólito do Vale Araújo, Fernanda Birolo,

Iara Guedes Bezerra, Kátia Monteiro Matheus, Lucas Mortari, Luciana Vieira de Souza, Maria de

Fátima Ferreira da Silva, Maria do Socorro Cordeiro, Maria Sebastiana de Medeiros, Maurício de Lara

Galvão, Maria Rodrigues da Silva, Marisa Fontana, Paula Suellen S. Brandão, Rafael Barros Sales,

Valéria Pereira da Silva, Carlos Gomes da Costa Souza, Myully dos Santos Sousa

ColaboradoresAntonio Alves, Elson Martins,

Marcos Afonso Pontes

EstagiáriosÁdria Ernesto Tavares, Adriano Costa de Freitas, Allana Khristie de Souza Roque, Amanda Batista da Silva de Oliveira, Ana Cristina Jesus de Souza,

Anderson Claiton Camelo Bodanese, Antônia Cyn-tia Freitas Medeiros, Brenna de Araújo Amâncio,

Eliane Luiza Alves Yawanawá, Emmanoelly Aguiar Ferreira, Fernanda de Araújo Añez, Fernanda Escó-cio Maia Faria, Francirglei Rocha França, Flaviana

Silva Coimbra, Israel Braga do Nascimento, Isadora Farias Pereira, Shayenna P. L. Galvão Sabóia, James de Souza Oliveira, Jéssica Assis Lima, Jerrison Con-

ceição Farias, Joelmir Almeida de Melo, Karoline Albuquerque da Silva, Macileudo da Costa Lima,

Márcio Oliveira Wanderley, Marcos Pereira da Silva, Mariêta Cristina Fonseca Campos, Neiva Nara de Araújo Silva, Ravenna Nogueira Carvalho, Ricardo da Silva Souza, Rodrigo Frota da Silva, Rosimeire

Campos dos Santos

Projeto Memória dos Movimentos Socioambientais do Acre

Equipe TécnicaCarlos Edegard de Deus, Diana da Silva Dantas,

Gustavo Henrique M. Souza, Ivanete Rodrigues da Silva, Luana Shely N. de Souza, Maria Rodrigues da Silva, Maria de Fátima Ferreira da Silva, Myully dos

Santos Sousa, Valéria Pereira da Silva

Revista Memórias da FlorestaEntrevistadores

Tereza Almeida Cruz, Maria Rodrigues da Silva, Elson Martins da Silveira, Valéria Pereira da Silva,

Marcos Fábio Freyre Montyzuma, Carlos Edegard de Deus, Fernanda Muniz Bez Birolo

TextosVássia Silveira, Eduardo Di Deus, Elson Martins,

Fernanda Birolo, Maria Rodrigues da Silva, Cezar Karpinski, Tereza Almeida Cruz, Marcos Fábio

Freyre Montyzuma, Rachel Moreira

RevisãoElson Martins, Fernanda Birolo, Maria Rodrigues

da Silva, Tereza Almeida Cruz

ParceriasCentro dos Trabalhadores da Amazônia – CTA

Comissão Pró-Índio do Acre – CPI/ACDepartamento Estadual de Patrimônio Histórico e

Cultural – DPHC/FEM

Arte e DiagramaçãoMárcio Oliveira

ImpressãoA N BRILHANTE - ME

Page 3: Revista Memorias Da Floresta

Departamento da Diversidade Socioambiental do Acre/Biblioteca da Floresta encerra o ano de 2010 com um valioso leque de realizações. Foram inúmeras publicações, palestras, debates, lançamentos de livros e exposições realizadas envolvendo públicos

variados e objetivos diversos. A implementação do projeto Memória dos Movimentos Socioambientais do Acre faz parte desse desafio, que mobilizou toda a equipe da Biblioteca nas pesquisas em arquivos de instituições parceiras e colaboradores, com o objetivo de preservar a memória de um difícil e conflituoso episódio da história acreana. Os movimentos socioambientais no Acre projetaram este pequeno Estado da Amazônia Ocidental Brasileira ao mundo, tornando-o referência na luta pela proteção do meio ambiente. O registro dessa história guarda uma relevância que não é somente local, mas de interesse mundial. Nesse sentido, os processos de demarcação das Terras Indígenas, a luta contra a expropriação promovida por fazendeiros vindos do sul do país e os empates contra as derrubadas da floresta foram alvo de pesquisa e levantamento documental. Os homens e mulheres que viveram esse período guardam em suas lembranças fatos e acontecimentos de uma memória coletiva que foi selecionada pela equipe do Projeto como fonte documental. O trabalho com a memória não é algo simples. Requer preparo, metodologia e sensibilidade, sobretudo quando o tema envolve violência e perda de pessoas queridas. Tudo isso foi levado em consideração nas mais de oitenta entrevistas realizadas com personagens que consideramos “sábios da floresta”. Nesse sentido, os artigos aqui publicados nada mais são do que alguns aspectos do que foi lembrado nas várias horas de conversa com os sujeitos dessa história. Os detalhes das trajetórias de vida de cada depoente, as experiências do cotidiano de luta pela preservação de seus modos de vida, os relatos de histórias em defesa da causa indígena, ambiental e social fazem parte de uma coleção de DVDs temáticos com esse rico trabalho desenvolvido a partir da oralidade. A guarda desse material está sob responsabilidade da Biblioteca da Floresta e estará disponibilizado para estudos e pesquisas.

Page 4: Revista Memorias Da Floresta

MovIMEnToS SoCIoAMBIEnTAIS no ACRE: A DEFESA DoS

MoDoS DE vIDA E DA FloRESTA 08

A nova fase de exploração dos seringueiros 09

Nascem as organizações dos trabalhadores da floresta 10

A visibilidade do movimento de seringueiros 13

O movimento indígena e a Aliança dos Povos da Floresta 14

A Reserva Extrativista: a reforma agrária dos seringueiros 15

Projeto Seringueiro – Cooperativa, educação e saúde 16

Socioambientalismo 19

DEPoIMEnToS

I. Seringueiros - Vale do Acre 21

II. Seringueiros - Vale do Juruá 61

II. Indígenas 76

III. Indigenistas 92

IV. Assessores e outros Protagonistas 104

ConSIDERAÇÕES FInAIS 130

Page 5: Revista Memorias Da Floresta

8 movimentos socioambientais no acre: a defesa dos modos de vida e da floresta 9movimentos socioambientais no acre: a defesa dos modos de vida e da floresta

MoviMentos socioaMbientais do acre:A defesA dos modos de vidA e dA florestA

que se constitui hoje como o Estado do Acre era ocupado por dezenas de povos indígenas desde tempos imemoriáveis.

Uma região cheia de encantos e mistérios, tendo atraído exploradores desde meados do século XIX. Por outro lado, é famosa a resistência da tribo guerreira dos Náuas, habitantes das margens do Juruá, que dominavam a selva no trecho onde está localizada a cidade de Cruzeiro do Sul até o atual Estirão dos Náuas. Eles chegaram a deter a expedição exploradora do inglês William Chandless em 1867. A partir da década de 1880, apesar da heróica resistência dos Náuas e de outros povos indígenas dos vales do Juruá, do Purus e do Acre, o território começou a ser explorado, sendo formado os primeiros seringais, sangrando os territórios indígenas, dizimando grande parte das populações autóctones através das “correrias”. Em 1899 as cabeceiras do rio Tejo já haviam sido exploradas e ocupadas pelos migrantes nordestinos que se transformaram em seringueiros, explorados pelos “coronéis de barrancos”. Os índios que sobraram também foram “integrados” à empresa seringalista como forma de sobrevivência.

Este novo grupo social, os seringueiros, teve que se adaptar ao novo ambiente. Aprenderam com os povos indígenas as “manhas” e os segredos da floresta, utilizando os recursos naturais de forma sustentável. Nesse contexto, o sistema de aviamento estabeleceu uma relação de exploração do trabalho no seringal, onde o homem “trabalhava para escravizar-se”, nos dizeres de Euclides de Cunha. Tanto seringueiros quanto índios teceram múltiplas formas de resistências ao sistema de exploração seringalista: o plantio escondido de roçados, o acréscimo de pequenos objetos nas pélas de borracha, a venda de seu produto para o regatão, as fugas, etc. Não podemos deixar de citar a contribuição das mulheres nesse processo, embora a historiografia regional tenha tornado “invisível” a sua participação, sendo lembradas apenas como mercadoria, objeto de disputa entre os seringueiros, como vítimas. Ao contrário, sempre solidárias aos homens e participantes ativas de todas as tarefas produtivas, inclusive da extração do látex, elas também resistiram e contribuíram para a formação social e econômica da sociedade acreana.

Na década de 1970, o Governo Federal lançou um programa de modernização da borracha, gerenciado pela Superintendência da Borracha - SUDHEVEA, incentivando o plantio de seringueiras por parte dos patrões. Entretanto, nenhuma forma de incentivo foi destinada para os seringueiros, que continuavam sendo explorados pelos seringalistas. Os seringalistas que receberam financiamento, no final da década de 1970, encheram os barracões de mercadorias, atraindo os seringueiros com relógios, rádios, motores a gasolina e outros bens de consumo. Por outro lado, reforçaram-se os mecanismos de coerção dos patrões aos seringueiros através da cobrança de rendas, monopólio comercial, proibição de plantio de roçados, de caça e pesca e até mesmo a expulsão de famílias de seringueiros que não se enquadravam nesse sistema de espoliação. No contexto de políticas desenvolvimentistas do Governo Militar, na década de 1970, os seringalistas acreanos endividados no Banco da Amazônia - BASA, venderam os seringais a preços irrisórios para empresários do centro-sul do país, que vieram para o Acre com a intenção de implantar a

agropecuária na região. É interessante destacar que os vales do Juruá e Acre guardam aspectos que se diferenciam, nesse momento histórico vivido pelos acreanos. Como no vale do Juruá não havia estradas, os seringais da bacia hidrográfica do Tejo haviam sido comprados desde 1976 pela Consulmar Emprendimentos Industriais e Comerciais Ltda., extinta um ano depois pelos sócios majoritários que formaram outra sociedade denominada Santana Empreendimentos Agropastoris S.A. Por sua vez, essa empresa arrendava os seringais a comerciantes de Cruzeiro do Sul, que cobravam renda das estradas de seringa e cometiam atrocidades contra os seringueiros. Esta situação é analisada por Antônio Luiz Batista de Macedo:

Essa questão da renda era um serviço que antigamente era prestado pelo patrão, que colocava um comboio de animais para transportar mercadoria do barracão pra a colocação do seringueiro e trazia borracha da colocação do seringueiro pro barracão; oferecia varadouros empontilhados, o mateiro florestal. E por este serviço era cobrado uma taxa da produção para cobrir esse tipo de benefício. E os patrões depois da venda dos seringais, aqueles arrendatários, quiseram transformar

A novA fAse de explorAção dos seringueiros

Page 6: Revista Memorias Da Floresta

10 movimentos socioambientais no acre: a defesa dos modos de vida e da floresta 11movimentos socioambientais no acre: a defesa dos modos de vida e da floresta

essa renda numa coisa sobre a moradia e a ocupação das estradas de seringas como se as estradas de seringa fossem plantadas e não fossem um bem natural. Então tinha esse problema que os trabalhadores lutaram muito para abolir.

Por outro lado, no vale do Acre, ligado ao restante do país pela BR 364, os empresários que compraram os seringais começaram a expulsar os seringueiros e os índios, com o apoio dos governantes,

e a derrubar a floresta para desenvolver a agropecuária, provocando desastres ambientais, sociais e econômicos, colocando em risco a sobrevivência física e cultural desses povos da floresta. Neste processo, muitos índios, seringueiros e ribeirinhos foram despejados de suas terras. Outros se organizaram, resistiram, criando mecanismos de defesa de seus direitos, apoiados pela Igreja Católica, através das Comunidades Eclesiais de Base.

nAscem As orgAnizAções dos trAbAlhAdores dA florestA

Neste contexto de espoliação dos direitos de cidadania, os seringueiros criaram os Sindicatos dos Trabalhadores Rurais (STRs) para defender os seus direitos, respaldados pelo Estatuto da Terra. Inicialmente em Sena Madureira e Brasiléia, em 1975, seguidos por Rio Branco, Tarauacá e Cruzeiro do Sul em 1976 e o de Feijó e Xapuri em 1977. Logo brotaram várias Delegacias Sindicais pelos seringais e rios acreanos, enfrentando os patrões e os novos “donos das terras”. A partir daí, as bandeiras de luta se configuraram: No vale do Acre, a principal luta do movimento sindical era pela permanência nos seringais, e no vale do Juruá era contra o pagamento de renda, orientando os trabalhadores sobre os seus direitos. Desta forma, muitas famílias de seringueiros se tornaram “libertas” tanto dos patrões quanto dos

marreteiros. Esta luta gerou muitos conflitos no interior dos seringais, pois contrariava os interesses dos “patrões”. Muitos líderes sindicais foram perseguidos, presos; alguns foram cooptados. Outros “tombaram” na luta, como Wilson Pinheiro, Ivair Higino e Chico Mendes. Também as mulheres tiveram um papel importante na formação de Sindicatos de Trabalhadores Rurais. Merece destaque a atuação de Valdízia Alencar de Souza, mulher de “rocha”, que residia, em 1975, no Seringal Sacado, município de Brasiléia. A área em que ela morava com sua família foi vendida para os “paulistas”, que logo começaram a derrubar e proibir as famílias de plantar. Ela não aceitou a proposta de indenização. Queria ficar na sua colocação para criar, educar seus filhos. A “seringueirada” ficou revoltada com a

situação, procurava os seus direitos e não encontrava. Mas Valdízia não se conformava. Convocou os seringueiros para vir procurar os seus direitos em Rio Branco, mas “esmoreceram”. Como ela era impelida por uma força interior muito grande, decidiu vir sozinha. No Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA, como sempre, não encontrou nenhum apoio. Por outro lado, nesse período, foi instalada em Rio Branco a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura - CONTAG. Valdízia procurou o delegado desta entidade de defesa dos trabalhadores rurais, colocou a situação e ele prometeu ir à sua colocação reunir

com os posseiros. Ao retornar ao seringal, Valdízia convidou os companheiros para a reunião que, de fato aconteceu. E, numa reportagem ao Varadouro, de julho/1978, ela mesma relata o resultado da famosa reunião:

A seringueirada reunida, foi aquela animação. Uns ainda tinham dúvidas de que alguém vinha fazer algo por eles. A não ser o padre, nunca ninguém tinha entrado naquelas brenhas pra falar com seringueiro. Diziam que de conversa fiada e promessa estavam de barriga cheia. Quando a Contag chegou foi aquele burburim. Fiquei tão emocionada e chorei. A reunião aconteceu e ficou marcado o dia 21 de dezembro para a fundação do Sindicato Rural de Brasiléia.

Page 7: Revista Memorias Da Floresta

12 movimentos socioambientais no acre: a defesa dos modos de vida e da floresta 13movimentos socioambientais no acre: a defesa dos modos de vida e da floresta

Assim, com a atuação decidida de uma mulher que sabe lutar pelos direitos e arregimentar pessoas, foram criadas as condições para a fundação do sindicato. E, na reportagem citada anteriormente do Varadouro, o jornalista descreve:

Três mil seringueiros, posseiros e agricultores compareceram à fundação do Sindicato, do qual Valdízia foi a principal articuladora. Apesar das limitações que tem dentro da atual estrutura fundiária brasileira, o órgão conseguiu fazer valer alguns direitos dos posseiros. Muitos deles garantiram o seu lote com a intervenção do sindicato. Valdízia, contudo, por ironia do destino, trilharia por conta própria o caminho daqueles que, expulsos do campo, vinham formar o cinturão de miséria da capital. Deixou o marido e, com dois filhos pequenos, veio morar no bairro Aeroporto Velho, em Rio Branco.

Mas, a “mulher do sindicato” soube abrir caminhos de organização e defesa dos direitos de tantos trabalhadores. Inclusive, na fundação do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Brasiléia estavam presentes Elias Rosendo, Wilson Pinheiro e Chico Mendes, que assumiram a liderança do movimento. Os dois últimos pagaram com a própria vida o preço de ousar sonhar, de lutar pelos direitos, de lutar pelos seus modos de vida, defendendo a floresta. Tornaram-se símbolos da resistência da luta dos seringueiros. A luta continua! O assassinato de Chico Mendes repercutiu internacionalmente devido

à sua articulação com o movimento ambientalista a nível nacional e internacional. Ele, Wilson Pinheiro e seus companheiros criaram os empates, uma forma singular de organização para defender a floresta e os modos de vida das famílias dos seringueiros, empatando que os peões (contratados pelos fazendeiros) derrubassem a mata. E, nos empates, as mulheres e as crianças desempenharam um papel fundamental, pois elas é que iam à frente, enfrentando corajosamente os peões com as motosserras e os capangas e policiais armados, arriscando as suas vidas. Assim, os seringueiros ficaram conhecidos internacionalmente, sobretudo por causa de Chico Mendes, como defensores da floresta, conquistando a simpatia dos movimentos ambientalistas e de vários setores da sociedade. Esta situação de implantação de grandes projetos agropecuários não acontecia só no Acre. Por isso se fazia necessário uma articulação dos seringueiros da Amazônia para defenderem os seus direitos. Assim, em 1985, os Sindicatos de Trabalhadores Rurais do Acre, Amazonas e Pará promoveram o I Encontro Nacional dos Seringueiros da Amazônia, em Brasília. Lá descobriram que havia o Conselho Nacional da Borracha, representado pelos seringalistas. Então se inspiraram para criar o Conselho Nacional dos Seringueiros - CNS, para mobilizar as lutas específicas destes trabalhadores, dando visibilidade para a sua existência e lutas.

Ao retornarem de Brasília, as lideranças de seringueiros do Acre articularam a formação de Regionais do CNS. Em 1986, o Conselho já realizava as primeiras reuniões em Cruzeiro do Sul, tendo uma atuação significativa de Chico Ginu no rio Alto Tejo. Em 1988, Chico Mendes e outras lideranças do CNS convidaram Antônio Macedo - que já vinha fazendo um bom trabalho com os povos indígenas do Juruá, através da Comissão Pró-Índio - para coordenar a Regional do CNS em Cruzeiro do Sul. Ainda neste mesmo ano realizaram o I Encontro de Seringueiros de Cruzeiro do Sul, contando com a participação de mais de 700 seringueiros de 4 municípios acreanos e do Amazonas. Participaram ainda 200 índios de diversos povos, como um primeiro momento da articulação coletiva da Aliança dos Povos da Floresta. Este significativo evento marcou a história de Cruzeiro do Sul, pois seringueiros e índios fizeram uma passeata pela cidade, chamando a atenção de todos para as suas lutas, dando visibilidade ao movimento, tornando-se novas personagens na

A visibilidAde do movimento de seringueiroscena histórica acreana, criando uma identidade própria e defendendo seus modos de vida na floresta. Forjaram uma identidade coletiva criada pelo próprio movimento dos povos da floresta. Desta forma, as classes consideradas como “inferiores” se tornaram protagonistas da própria história, idealizando um modelo de desenvolvimento sustentável. De forma muito interessante, as lutas do CNS, juntamente com o STR de Cruzeiro do Sul, a partir da experiência de dominação do cotidiano (pagamento de renda, exploração dos comerciantes) cria uma nova mentalidade nas populações da floresta, no sentido de que elas não devem pagar renda pelas estradas de seringa, pois são um bem natural, mantidas pelos próprios seringueiros, e que devem também quebrar o jugo dos patrões que os obrigavam a negociar apenas no barracão, pagando um baixo preço pela borracha e cobrando preços exorbitantes pelas mercadorias. Para isto era necessário regularizar a situação da terra, a fim de criarem experiências de liberdade mais consistentes. Daí a idéia da criação de Reservas Extrativistas.

Page 8: Revista Memorias Da Floresta

14 movimentos socioambientais no acre: a defesa dos modos de vida e da floresta 15movimentos socioambientais no acre: a defesa dos modos de vida e da floresta

Os povos indígenas, que sempre tiveram os seus direitos negados, além de serem vítimas de preconceito, também passaram a se articular com o apoio de entidades como a Comissão Pró-Índio - CPI e o Conselho Indigenista Missionário - CIMI. Em 1983, realizaram a I Assembléia Indígena no rio Gregório. A grande luta era pela demarcação das Terras Indígenas e pelo reconhecimento do direito à diferença. Para fortalecer esta luta criaram, em 1986, a União das Nações Indígenas do Acre e Sul do Amazonas - UNI. As suas reivindicações básicas, a partir de muita mobilização, foram incorporadas à nova Constituição de 1988, contemplando também o direito à educação escolar diferenciada. O resultado do intenso trabalho de indigenistas e entidades da sociedade civil envolvidos com as populações indígenas locais é a forte presença de uma diversidade sociocultural marcada pelos dezoito povos indígenas que habitam o Estado. Esse dado leva em consideração a recente “emergência” dos Kuntanawa e a presença de três povos isolados que habitam a região do alto rio Envira e Tarauacá. São 35 Terras Indígenas reconhecidas pelo Governo Federal no Acre. Essas Terras Indígenas se somam às demais modalidades de Unidades de

Conservação do Estado, contribuindo para a conservação dos recursos naturais das nossas florestas. É interessante destacar um movimento marcante que envolveu índios e seringueiros dessa região: A Aliança dos Povos da Floresta. No vale do Juruá, a Aliança já acontecia informalmente nas lutas e conquistas. Assim, os benefícios do “Projeto de Desenvolvimento Comunitário – Reserva Extrativista do Rio Tejo”, segundo Macedo, também foram estendidos para as populações indígenas da região. Quando havia reuniões do Conselho na região, as lideranças indígenas também estavam presentes. Formalmente, a Aliança dos Povos da Floresta aconteceu em 1989, durante a realização do II Encontro Nacional dos Seringueiros, em Rio Branco. Criada por lideranças indígenas e não indígenas, esse movimento surgiu para unir os principais movimentos sociais da Amazônia em sua luta pelo desenvolvimento sustentável da região. A partir daí, índios e seringueiros que antes se confrontaram nas chamadas “correrias” se uniram em um movimento em prol de políticas que garantissem sua sobrevivência e sua cultura. A luta pela demarcação de Terras Indígenas e a criação das Reservas Extrativistas ganhou cada vez mais força.

o movimento indígenA e A AliAnçA dos povos dA florestA

As Reservas Extrativistas são consideradas como a “reforma agrária” dos seringueiros, inspiradas nas lutas do movimento indígena pela demarcação das Terras Indígenas. Todas essas lutas levam em consideração as experiências cotidianas, a defesa dos modos de vidas na floresta, de temporalidades diferenciadas de seringueiros, ribeirinhos e indígenas. É preciso construir um modelo de desenvolvimento a partir das aspirações e dos sonhos das populações da floresta. Por isto, a idéia de Reservas Extrativistas é original, tendo sido gestada pelas necessidades dos próprios seringueiros, que não lutavam por um pedaço de terra, como outros trabalhadores do país, mas lutavam por um território, por um modo de se apropriar da floresta que vai muito além do modelo de assentamento desenvolvido pelo INCRA, pois as estradas de seringas nativas ocupam áreas de 300 a 500 hectares, não

reservA extrAtivistA: A reformA AgráriA dos seringueiros

se encaixando no “quadrado” deste órgão governamental. Por isto, Carlos Walter Gonçalves analisa que os seringueiros traçaram uma nova geografia, novas territorialidades, redesenhando o próprio sentido de territorialidade brasileira, com novos significados dos lugares. Neste sentido, afirma que,

A Reserva Extrativista expressa a

territorialidade seringueira com os recursos

materiais, políticos e simbólicos que o

movimento dos seringueiros dispunha no

momento que vai de 1985, quando a idéia

é, pela primeira vez formulada como tal, a

1990, quando é consagrada e sancionada

formalmente, tendo grafado a terra,

construídos novos varadouros não só com

os memoriais com suas descrições e seus

mapas necessários para a sua decretação

legal, mas também deixando rastros de

sangue pela floresta .

Page 9: Revista Memorias Da Floresta

16 movimentos socioambientais no acre: a defesa dos modos de vida e da floresta 17movimentos socioambientais no acre: a defesa dos modos de vida e da floresta

Assim, depois de muita luta, em 1990, foi criada a Reserva Extrativista do Alto Juruá, a primeira reserva extrativista do país. Surgiram novas organizações de trabalhadores da floresta, como a Associação de Seringueiros e Agricultores da Reserva Extrativista do Alto Juruá - ASAREAJ e a Cooperativa Agroextrativista de Xapuri - CAEX, bem como novas atividades na área da educação, da saúde, na busca de melhoria da qualidade de vida dos povos da floresta. Os moradores da Reserva construíram coletivamente um plano de utilização viável da mesma, fazendo a “lei da reserva”. Dentro das Reservas Extrativistas o uso comum dos recursos naturais é um componente decisivo desse modo de

trabalho que deveria favorecer a melhoria das condições de vida das famílias de seringueiros. Muitas pesquisas foram realizadas no sentido de mostrar que a floresta em pé é mais viável que tombada para a formação de pastos. Embora a idéia das Reservas Extrativistas seja original e ecologicamente correta, na prática, nesses vinte anos, ainda persiste o desafio de torná-la mais viável economicamente. Para isto se faz necessário mais investimentos em pesquisas e políticas públicas para continuar melhorando as condições de vida dessas famílias que, muitas vezes, se vêem “obrigadas” a desenvolver a pecuária e o manejo madeireiro (in)sustentável por falta de viabilidade econômica dos produtos extrativistas.

Segundo Carlos Walter Porto Gonçalves, a iniciativa do Projeto Seringueiro partiu de Chico Mendes, que solicitara a Antropóloga Mary Allegretti que escrevesse um projeto de criação de escolas nos seringais - o que foi feito por meio do Centro de Documentação e Pesquisa da Amazônia – CEDOP. Aliás, foi através do CEDOP que o Projeto Seringueiro recebeu os recursos, via financiamento, para sua implementação. Surgido em 1981 nos seringais do município de Xapuri, o Projeto Seringueiro

objetivou: possibilitar a independência econômica dos seringueiros, libertando-os dos intermediários na comercialização da borracha e da castanha, através da organização de uma cooperativa de produção e consumo; possibilitar o acesso dos seringueiros às informações relativas à legislação trabalhista que definem os seus direitos enquanto trabalhadores rurais, assim como o controle dos termos em que se dava a comercialização da borracha e da castanha através da educação; e possibilitar melhores condições de saúde

projeto seringueiro – cooperAtivA, educAção e sAúde pArA seringueiros de xApuri - Acre

através do treinamento de agentes de saúde locais para o atendimento primário nessa área, isto porque a inexistência desses serviços, a não ser por parte dos agentes tradicionais (parteiras, benzedeiras, etc) e o alto índice de mortalidade infantil por família demandou medidas a serem tomadas pelos próprios envolvidos pela problemática. O Projeto Cooperativa, a princípio coordenado por Ronaldo Lima de Oliveira, veio da necessidade de realizar a venda da borracha produzida e da castanha coletada pelos associados a preço de mercado, feita diretamente aos comerciantes, eliminando dessa forma os intermediários. Por outro lado, havia também a necessidade de aquisição de produtos industrializados (alimentos e instrumentos de trabalho) em volume maior e a preço de mercado para serem revendidos, sem lucro, aos associados. Como resultado disso se obteria um aumento do nível de renda de cada seringueiro e consequentemente das condições gerais de vida. Todo o planejamento foi detalhado: o período da comercialização da borracha, da castanha, quais os meios de transporte (comboio de burros) e a construção de um armazém para estocar as mercadorias. O Projeto Educação, inicialmente coordenado por Mary Helena Allegretti Zanoni e Marlete de Oliveira, foi pensado de forma a atender a uma série de especificidades que o regime de trabalho no seringal impunha: a realização do curso no período do inverno e aos finais

de semana, assegurando o cuidado das atividades econômicas de cada família; a construção da escola se deu através de um adjunto em colocação de fácil acesso para todas as famílias; o material utilizado pelos monitores foi desenvolvido respeitando as especificidades da vida na floresta. A idéia era que, com a educação, os seringueiros assumissem responsabilidades relativas à organização da cooperativa, ou qualquer outro trabalho, como a compra de mercadorias em Rio Branco. O Projeto Saúde, sob a coordenação de Pascoal Muniz, previu uma pesquisa preliminar para identificar as doenças mais freqüentes entre os seringueiros da área de abrangência do projeto; avaliar as condições de saneamento nas colocações; avaliar as condições de nutrição das crianças; levantar as formas existentes de tratamento das doenças e conhecer os serviços formais e informais de saúde predominantes entre os seringueiros. Após esse diagnóstico é que seria possível uma atuação na área. Nos primeiros anos de implementação do Projeto, as cooperativas enfrentaram inúmeras dificuldades na sua implantação, o que também foi vivenciado pela área da saúde. Mas as escolas, além de perderem o caráter provisório, tornaram-se permanentes e essenciais para a vida dos habitantes dessas localidades. A forma como foi pensado e executado o tema da educação nos ajuda a compreender as razões do êxito do projeto. Inicialmente, os adultos iam para as recém criadas escolas

Page 10: Revista Memorias Da Floresta

18 movimentos socioambientais no acre: a defesa dos modos de vida e da floresta 19movimentos socioambientais no acre: a defesa dos modos de vida e da floresta

a fim de serem alfabetizados levando suas crianças, pois não tinham com quem deixá-las. Estas passaram a se apropriar do lápis e materiais educativos, demandando uma nova necessidade, ou seja, a alfabetização das crianças e dos jovens também. A forma como foi pensada a educação, através do Projeto Seringueiro, se fez altamente inovadora, pois as aulas aconteciam principalmente aos finais de semana (de sexta a domingo) devido à grande distância e a dificuldade de acesso à escola por parte dos alunos, assegurando os dias que os mesmos necessitavam para produzir o produto de seu sustento (a borracha). Aliás, o calendário letivo foi pensado respeitando os períodos de produção, ou seja, as secas e o inverno;

o material didático, a cartilha Poronga (instrumento utilizado para iluminar os caminhos do seringueiro na escuridão do varadouro), baseada nos ensinamentos de Paulo Freire, foi adaptada para a realidade de quem morava na floresta. A partir daí, o desenvolvimento da leitura e da escrita era iniciado a partir de termos e palavras como paca, tatu, samaúma e tudo o que era familiar aos seringueiros; as primeiras escolas foram construídas através de mutirões, em locais estratégicos para diminuir a caminhada; os professores, ou seja, os monitores, foram selecionados e formados a partir da própria comunidade, sendo capacitados através de treinamentos do Projeto Seringueiro.

Nesse contexto de lutas pelos seus modos de vida, os povos da floresta emergem no cenário nacional como novos sujeitos sociais, questionando as políticas desenvolvimentistas do Governo Militar, sobretudo a partir da década de 1980, propondo outro modelo de desenvolvimento regional e se articulando com o movimento ambientalista. Juliana Santilli entende que estas articulações políticas entre os movimentos sociais e o movimento ambientalista fazem nascer o socioambientalismo brasileiro na segunda metade dos anos 80. Fortaleceu-se, como o ambientalismo em geral nos anos 90, principalmente depois da realização da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, no Rio de Janeiro, em 1992 (Eco 92), quando os conceitos socioambientais passaram a influenciar a edição de normas legais . Ela ainda considera que:

SocioambientaliSmo

O socioambientalismo foi construído com base na idéia de que as políticas públicas ambientais devem incluir e envolver as comunidades locais. Mais do que isso, desenvolveu-se com base na concepção de que, em um país pobre e com tantas desigualdades sociais, um novo paradigma de desenvolvimento deve promover não só a sustentabilidade estritamente ambiental [...] como também a sustentabilidade social – ou seja, deve contribuir também para a redução da pobreza e das desigualdades sociais e promover valores como justiça social e equidade . Além disso, o novo paradigma de desenvolvimento preconizado pelo socioambientalismo deve promover e valorizar a diversidade cultural e a consolidação do processo democrático no país, com ampla participação social na gestão ambiental.

Essa concepção do socioambienta-lismo entrava em sintonia com as propostas das organizações dos povos da floresta, como do Conselho Nacional dos Seringueiros - CNS, da Aliança dos Povos

socioAmbientAlismo

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20 movimentos socioambientais no acre: a defesa dos modos de vida e da floresta 21

da Floresta, do Movimento dos Atingidos por Barragens - MAB, das organizações indígenas e quilombolas, dentre outras. Dessa forma, de acordo com Santilli, o socioambientalismo passou a representar uma alternativa ao conservadorismo do movimento ambientalista tradicional, mais distante dos movimentos sociais e das lutas políticas por justiça social e cético quanto à possibilidade de envolvimento das populações tradicionais na conservação da biodiversidade . Desta forma, o socioambientalismo sustenta-se no reconhecimento e na valorização da biodiversidade e da sociodiversidade, de forma articulada e sistêmica influenciado pelas idéias do multiculturalismo, do humanismo e do pluralismo jurídico . Por isso, defende os bens e os direitos socioambientais, como os direitos territoriais especiais a minorias étnicas (povos indígenas e quilombolas) e a populações tradicionais. “A síntese socioambiental se revela justamente pela concretização de dois valores em um único bem jurídico: a biodiversidade e a sociodiversidade, e é sobre tais bens que incidem os direitos coletivos”. Por tudo isso, as organizações dos povos da floresta do Acre são consideradas como movimentos socioambientais que lutam pela construção de um desenvolvimento sustentável. Este conceito foi utilizado e defendido no relatório das Nações Unidas intitulado Nosso Futuro Comum, que compreende o desenvolvimento sustentável como

“aquele que satisfaz as necessidades das gerações atuais sem comprometer a capacidade das gerações futuras de satisfazer as suas próprias necessidades”. A luta de índios e seringueiros no Acre na defesa de seus modos de vida contempla os três componentes fundamentais do novo modelo de desenvolvimento sustentável: proteção ambiental, crescimento econômico e eqüidade social, enfatizados pelo relatório referido acima. Assim, os povos da floresta, através de suas práticas cotidianas, de seus costumes, nas terras indígenas, nas reservas extrativistas, nos seringais e margens de rios acreanos promovem o desenvolvimento sustentável, contribuindo para a continuidade da vida no planeta e criando uma nova mentalidade relativa ao cuidado com o meio ambiente, preocupando-se com o futuro das novas gerações. Inclusive, a educação ambiental passa a ser um tema transversal dos Parâmetros Curriculares Nacionais. Outro legado desse movimento todo é o processo de revitalização das culturas indígenas, que foram esmagadas pelos “coronéis de barrancos” que os proibiam até de falar na própria língua materna, considerada como “língua de bicho”. Assim, as tradições e os costumes tradicionais indígenas tiveram que se esconder, se ocultar. Por sorte, os mais velhos guardaram os segredos milenares de seus povos e com a reconquista dos territórios indígenas passam a retomar as suas tradições nesse novo espaço de

liberdade. E, a partir do ano de 2000, os Encontros de Culturas Indígenas passam a ser um marco nesse processo de revitalização cultural e visibilidade da existência e resistência cultural dos povos indígenas do Acre e sul do Amazonas. Acabou o tempo da vergonha de ser índio, de ser seringueiro. Hoje, ser povo da floresta é sinônimo de orgulho. Ainda temos como marco desses novos tempos na história dos povos da floresta do Juruá o ressurgimento recente dos povos Náuas, que durante tanto

tempo esconderam a sua identidade como forma de sobrevivência, e agora exigem o reconhecimento de seu povo guerreiro e a conseqüente demarcação de sua terra indígena que já está em processo. Hoje estas populações da floresta do Estado do Acre, residentes nas Reservas Extrativistas, em seringais não regularizados e nas Terras Indígenas continuam lutando pela consolidação de seus territórios, de suas organizações de base e por políticas públicas que garantam os seus direitos à florestania.

Anália Damasceno nasceu e cresceu em seringal. E como a maioria das mulheres de sua época, casou-se cedo: aos 15 anos. O casamento durou oito

anos e acabou graças a desavenças com a família. “Eu não me dei com eles, aí deixei o marido”. Hoje, aos 80 anos, 57 deles vividos ao lado do segundo companheiro, seu Chico Pacheco, com quem criou 15 filhos, dona Anália lembra a vida de menina no meio da mata e diz rindo: “Cortei seringa,

AnáliA SoAreS DAmASceno

catei castanha, cacei. Matava mais veado que os homens”. Depois de casada vieram os filhos. E o trabalho nas estradas de seringa foi substituído pelas tarefas domésticas: “Cuidava de menino, pilava arroz, lavava roupa, pisava café e torrava, cuidava de porco, galinha”. Mas dona Anália acabou descobrindo também o dom de apanhar menino e tornou-se parteira. “Peguei uns 40 meninos ou mais. Fazia isso tanto de dia como de noite”, diz. Dona Anália, que teve todos os filhos em casa, com a ajuda de parteiras,

depoimentos

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fala com orgulho da profissão: “Nunca morreu um menino na minha mão, nem uma mulher, graças a Deus. Só teve um caso, depois que eu cheguei no Carmem [Seringal], que eu peguei ele e vim andando. Aí com sete dias ele adoeceu. Porque de primeiro tinha uma doença de criança, que o menino chorava, chorava até morrer. Passava três, quatro dias chorando... Aí com sete dias ele pegou essa doença e aí morreu. Foi o único que morreu. O resto se criou tudinho”. Foi na colocação em que morava dona Anália, no Seringal Carmem, no município de Brasiléia, que os seringueiros acreanos organizaram o primeiro empate contra a derrubada da floresta por fazendeiros. Antes disso, dona Anália se lembra da tensão que era a presença do fazendeiro que tinha comprado as terras onde ela vivia: “Um dia ele chegou lá em casa e, quando vi ele vindo, peguei uma espingarda e botei bem no cantinho da casa, com um cartucho, né?”. A presença da arma, segundo ela, era justificada: “Ele era acostumado a chegar e botar o pessoal pra fora, arrastava que nem animal”.

Uma experiência que dona Anália estava disposta a evitar. “Na hora eu pensei logo: se vier com besteira eu lanço fogo. Era acostumada a matar veado, porque eu não acertava num bicho assim – ele a cavalo e eu no chão?”, diz sorrindo e emendando logo em seguida: “Deus me perdoe, que isso é pecado. Mas tive essa intenção”. Apesar da coragem, dona Anália não acompanhou o marido na hora do empate. Ela ficou em casa, junto com outras duas mulheres, cozinhando, rezando e cuidando das crianças. “Eles passaram a noite no mundo convidando o povo para participar do empate. Eu sei que ainda juntaram 40 pessoas. No outro dia, se aprontaram e saíram tudo pra mata, ao encontro dos peões. Chegaram lá, conversaram com os peões e empataram. Depois passaram oito dias lá em casa: comendo e vigiando, de dia e de noite. E nós cozinhando pra esses homens”. Hoje, relembrando toda a história, ela diz com orgulho: “Nós ganhamos a questão. E a gente tava no meio também, não deixemos os homens só”.

Na certidão de nascimento o nome que consta é Antonia Soares Lopes, mas quem a conhece de verdade só a chama de Marina. Ela foi

AntoniA SoAreS LopeS

uma das fundadoras do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Brasiléia – “A reunião de fundação foi na Igreja Católica, veio quase todo mundo da zona rural” – de onde saiu depois para se filiar ao Sindicato dos Trabalhadores em Educação (SINTEAC).

A vida de professora começou ainda na colônia, lugar onde ela e o marido, seu Emiliano, foram refazer a vida após o primeiro empate do Seringal Carmem. Lá, dona Marina brigou para fundar uma escola e só sossegou quando conseguiu o documento de autorização. “Eu dava aula na colônia e vinha pra cidade estudar, quando era nas férias. Trabalhei 15 anos lá, de professora. Aí terminei o 2º grau e pedi minha transferência pra cá [cidade de Brasiléia], porque meus meninos estavam estudando aqui”. Na cidade, ela lecionou por mais 11 anos, antes de se aposentar. Do começo da luta, dona Marina guarda a imagem de um “livrinho que se chamava Lei da Terra”, diz ela, antes de explicar: “Eu li o livro todinho e disse: Olha, com esse livrinho aqui a gente vai arrumar os nossos direitos”. Decidida a dividir com os companheiros as informações recém descobertas, dona Marina começou a reunir os vizinhos para leituras em grupo. Ela conta que foi nessa época que surgiu a ideia dos empates: “Eles vinham armado, derrubando tudo. Aí quando chegou na colocação do Chico Pacheco, mandaram avisar a gente”, lembra. Foi nessa colocação que os seringueiros fizeram, em 1976, o primeiro empate. As pessoas envolvidas foram avisadas durante a noite e, segundo dona Marina, quando amanheceu o dia estavam reunidos mais de 40 homens: “Eles primeiro falaram com os peões, tentaram parar a derrubada, mas como os peões diziam que o fazendeiro é quem mandava,

eles passaram oito dias acampados lá”. Segundo ela, a confusão aumentou quando levaram os seringueiros para a 4ª Companhia do Exército. “Era pra resolver na delegacia, mas viram que tava muito quente o problema, aí levaram pro quartel”, explica dona Marina. A questão não foi resolvida rapidamente, mas “com muita luta”, diz referindo-se aos lotes de colônia, com 30 hectares cada, aos quais tiveram direito. Com o acordo feito, faltava o tempo necessário para a família se arrumar na nova terra. Como a antiga colocação havia sido queimada pelo fazendeiro, eles resolveram procurar uma casa perto da futura morada – “pra nós ficar até o meu marido brocar, queimar” – mas “quando foi um dia, eles chegaram dizendo: tira, tira, tira tudo de dentro! Meteram fogo no barraco, e foi obrigado a gente sair com a trouxa na cabeça”, lembra dona Marina. A família conseguiu abrigo na casa de um vizinho. “Ali nós ficamos, mais ou menos um mês, trabalhando dia e noite pra construir um barraco”, diz ela, contando os desafios da mudança: “Tinha dia que a gente não sabia o que fizesse pra dar de comer às crianças”. Apesar das dificuldades, dona Marina avalia que o assentamento foi uma das conquistas dos empates. E acredita que o sangue derramado por companheiros de luta não foi em vão. “Houve as demarcações de terra, não deu mais aqueles problemas de fazendeiro ficar judiando com os seringueiros, né?

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Hoje em dia você vê: seringueiro tem energia, você vê seringueiro com antena

parabólica, com estrada pra ir e voltar”.

Em 1942 os pais de Cícero Galdino de Araújo saíram do Rio Grande do Norte para a Amazônia. Incentivados pelo governo de Getúlio Vargas, carregavam

nas malas a esperança de uma vida melhor com a produção de borracha na região. A decisão, a mesma tomada por outras centenas de nordestinos, definiu o destino de Cícero Galdino, na época com apenas oito anos. “Comecei a cortar seringa com oito anos e oito meses”, lembra seu Cícero. Foram 35 anos no corte da seringa, uma atividade que ele iniciou no Seringal Filipinas, passou pelo São Francisco, em Assis Brasil, alcançou a Bolívia e depois criou raízes no Seringal Carmem, no município de Brasiléia. Seu Cícero Galdino foi um dos seringueiros envolvidos no primeiro empate realizado no Acre, no Seringal Carmem. “Nós estávamos 47 homens, ficamos oito dias lá e depois quiseram me levar preso por causa da espingarda”, lembra contando em seguida que para reunir o povo, ele e Chico Pacheco andaram “numas bocas perigosas”. Para ele, que foi um dos fundadores

CíCero Galdino de araújo

do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Brasiléia, o movimento contra a derrubada das matas foi fundamental para o Acre e explica: “Hoje nós temos a floresta graças sabe a quem? Ao seringueiro”. Ele mesmo participou de diversos empates organizados na época do conflito com os fazendeiros – “Eu gostava dessas coisas, de tá no meio” –, entre os quais na Fazenda Bordon e no Seringal Porongaba. Sobre a participação das mulheres, seu Cícero lembra que muitas ficavam “ansiosas porque não podia ir pros cantos, por causa das crianças”, mas destaca a participação delas – “A Anália e minha ex-mulher ficavam cozinhando. E a Valdíza foi uma das primeiras da fundação do sindicato, fez os empates dela também” – e diz que “todas eram a favor de nós, sofriam, ficavam sem dormir”. No sindicato, ele diz que “nunca quis ser delegado”, mas participou de reuniões e momentos importantes para o movimento, como o processo de criação do Conselho Nacional de Seringueiros e das reservas extrativistas. Foi também um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores em Brasiléia e chegou a se candidatar pelo partido. “Ninguém queria ser candidato do PT, mangavam demais da gente, mas a gente deu continuidade e hoje o PT tá aí”.

De companheiros como Wilson Pinheiro e Chico Mendes, ele fala com saudade e uma ponta de indignação. “O que levou a morte de Wilson Pinheiro é que os fazendeiros tinham apoio. Matavam e se escapuliam”, desabafa, e diz: “Eu chorei muito”. Hoje, aos 76 anos, seu Cícero acha que o Acre tem que se desenvolver com a castanheira, a seringa e outras árvores da floresta. “Nós temos o açaí, a pupunheira,

tem um monte de coisa que a gente tem aí e pode produzir doce. Ao invés de tá derrubando mata, pra acabar com tudo”. E lê um dos muitos versos que vem escrevendo nos últimos cinco anos: “Meio ambiente, o homem agora é mesmo o culpado/ Que mata a fauna e a flora/ e acaba com o meio ambiente/ A população tem que botar um pouco na memória/ pra ver essa história, do nosso Brasil, diferente”.

Elias Rozendo, 87 anos, nasceu no Piauí e veio para o Acre na década de 50, após viajar por várias cidades do Brasil. Ele foi o primeiro presidente do Sindicato dos

Trabalhadores Rurais de Brasiléia, em 1975, mas antes disso cortou muita seringa, acompanhou a decadência dos seringais, a chegada dos fazendeiros e o início dos conflitos na região. Apesar de ser casado, ele conta que veio sozinho e passou cinco anos trabalhando na floresta para depois trazer a família: a primeira esposa e a filha mais velha, Marina. “A gente via muita onça e macaco. Quando batia a friagem, a gente tava pra esmorecer e voltar pra terra da gente, todo bichinho tremia de frio”, diz lembrando os primeiros anos. Ele lembra que foi no governo de Wanderlei Dantas que os fazendeiros

Elias RozEndo

começaram a chegar: “Compraram seringal e pai de família com quatro, cinco filhos não tinha para onde ir. Nós sofremos muito nesse tempo”, diz explicando que os empates surgiram da necessidade de “não deixar fazer derrubada, porque a borracha e a castanha era o que tinha”. Apesar de nunca ter participado diretamente de um empate, seu Elias Rozendo conta que chegou a ser preso, junto com outros companheiros, graças à briga entre fazendeiros e seringueiros. E lembra que foi apontado por Chico Mendes para concorrer, pelo Partido dos Trabalhadores (PT), ao governo do Acre junto a Nilson Mourão. “Ele [Chico Mendes] era presidente regional do partido e me apontou como vice-governador e o governo era o Nilson Mourão. Mas nós não ganhamos nada não, o partido era novo, não ganhava nada. Quem ganhou foi o Nabor Junior – enquanto nos tivemos 4 mil e poucos votos ele teve 36 mil votos”, conta.

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Ele fala com orgulho do atual presidente do Brasil, Luis Inácio Lula da Silva – “O Lula já veio na minha casa” – e lamenta a morte dos companheiros de luta Wilson Pinheiro e Chico Mendes: “Depois deles, acabou-se”. Há cinco anos morando longe de Brasiléia, seu Elias Rozendo diz que depois dos empates e da luta sindical, ele passou a trabalhar como ambulante – “vendendo mercadoria, marretando né?” – e descobriu

o gosto pela escrita: “Achei bonito escrever literatura”, diz referindo-se às histórias em cordéis que produz. Apesar de uma das mãos comprometidas por conta de um derrame, seu Rozendo conta que tem várias histórias sobre o que viu e viveu. E quando lhe perguntam como aprendeu a escrever assim, ele fala: “Aprendi o ABC no Piauí, mas não tenho diploma nenhum, aprendi vendo os outros falar”.

Francisco Alves Pereira, 62 anos, nasceu na zona rural de Brasiléia. Chicão, como é conhecido, participou da fundação do

Sindicato dos Trabalhadores Rurais em seu município, onde foi delegado e um dos presidentes, ajudou na organização de diversos empates e esteve ao lado de lideranças como Wilson Pinheiro e Chico Mendes. Filho de seringueiro, ele seguiu os passos do pai e com oito anos de idade já andava em estrada de seringa. Essa época ficou gravada como um tempo de sofrimento. “A gente vivia nas rédeas do patrão. Não podia tirar borracha pra vender fora porque se o patrão soubesse, mandava buscar o seringueiro, e ele apanhava, ia preso”, lembra. Com a

Francisco alves Pereira – “chicão”

obrigação de produzir 30 kg de borracha ao ano, por cada estrada de seringa, o trabalho começava cedo. “Tinha que trabalhar de noite pra dar conta do recado, saía 1 hora da manhã, 2 horas da manhã pra mata, onde tinha onça, cobra. Não era muito bom, só que a gente acostuma”. Ele e os irmãos aprenderam a assinar o nome numa época onde as famílias seringueiras eram proibidas pelo patrão de frequentar escolas. “Meu pai pagou um homem de Brasiléia pra dar aula pra nós e todo mundo conseguiu assinar o nome. Isso foi muito importante, porque o filho dos outros, ninguém sabia, entendeu?” Em 1969, aos 21 anos, Chicão casou. Em 1972, ele e a mulher foram para o Peru, lugar onde ele lembra ter ouvido falar, pela primeira vez, em sindicato. Em 1973, a família voltou para o Brasil e foi viver em uma comunidade na estrada de Assis Brasil. “Um ano depois, a Igreja

Católica deu início à formação de grupo de evangelização e eu era o ajudante do monitor. Aí quando foi em 75, apareceu a história do sindicato aqui”. Chicão lembra que no dia da fundação do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Brasiléia, 21 de dezembro de 1975, “tinha 890 trabalhadores na Igreja Nossa Senhora das Dores. Até aí, a organização que dava força pro trabalhado era a Igreja Católica. O Dom Moacyr [Bispo Dom Moacyr Grechi, que apoiava a Teologia da Libertação], em Rio Branco, foi um herói. Ele ajudou muito e depois chegou o Padre Luis, que é outro herói”. Fundado o sindicato – “O Elias Rozendo foi eleito presidente” –, os seringueiros começaram a formar delegacias no município. “Na minha casa foi logo formada uma”, diz ele explicando que as delegacias eram criadas nos locais onde já funcionavam núcleos de evangelização da Igreja Católica. Ele conta que no ano seguinte, em 1976, “com o pedido de afastamento de Elias Rozendo, assumiu o Wilson [Pinheiro] e aí começou os empates mesmo. Tinha dia de ter empate no Km 26, no 84 [Km] e outro no 68 [Km]”, diz Chicão. Dos empates que participou, o mais perigoso foi um

no Km 26: “Lá eram 23 homens armados de foice, facão, motosserra, e nós não levava um canivete”, diz ele se referindo ao grupo de quinze seringueiros. Hoje, ao falar das ameaças sofridas por lideranças como Wilson Pinheiro, Chicão desabafa: “tenho pra mim que se a gente tivesse o conhecimento que tem hoje, eles não tinham assassinado o Wilson, não”. Em 1994, Chicão assumiu a presidência do Sindicato: “Os empates tinham acabado, aí passamos a brigar por empréstimo no banco”. Dez anos depois, Chicão foi candidato a vereador pela Frente Popular (PT/ PC do B) em Brasiléia, e em 2006 participou das discussões promovidas pelo Consórcio de Desenvolvimento Intermunicipal do Alto Acre e Capixaba (CONDIAC) para a definição da Agenda 21 do município. Para ele, que acompanhou toda a luta do movimento, as conquistas valeram o esforço, o sofrimento e os riscos enfrentados. “Pra começar, a terra saiu da mão do patrão e passou pra mão do seringueiro; depois foi uma forma de nós se organizar; todo mundo que não tinha documento, fez documento e os filhos passaram a estudar”, avalia.

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Seu Francisco Pacheco da Silva conhece bem o começo da história dos empates, pois foi na colocação dele, na Diamantina, no Seringal Carmem, que o primeiro grupo

de seringueiros acreanos se reuniu para impedir a derrubada das matas. Nascido em Sena Madureira, no ano de 1930, seu Chico Pacheco, como é conhecido por todos, conta que saiu da cidade natal em 1940 e foi para Manaus, onde passou dois anos, antes de voltar, em 1943, para o Acre, “pro Seringal Guanabara, no Rio Iaco”. Casado com dona Anália, ele lembra que resolveu mudar com a família para o Seringal Carmem em 1967 e diz que o principal motivo era a preocupação com a educação dos filhos, “pra não se criar analfabeto que nem eu”. Dos dez anos que viveram no Seringal Carmem, antes da chegada dos fazendeiros, seu Chico Pacheco fala da rotina de trabalho – “Eu me levantava 3 hora da madrugada, fazia o fogo, o café, a farofa pra comer e saía às 4 horas da manhã pro mato, vinha chegar 5 horas da tarde. Todo o tempo andando, só me sentava pra comer a farofa. Quando chegava em casa ia aquecer o leite [da borracha], bater cuia até 10 horas da noite.” – e afirma que o único perigo enfrentado, nessa época, na mata, foi um gato maracajá.

Francisco Pacheco da silva

A vida, segundo ele, não era fácil. “Nós não tinha direito a botar preço num bolão de sernambi* , num bolão de borracha, num bolão de couro de veado, de porquinho, de queixada, de nada! Tudo era do patrão”. Apesar de não caçar muito, seu Chico Pacheco lembra que tentou fazer negócio com a mãe da seringueira – “Dizem que é uma mulher muito bonita, vestidão comprido, eu saí altas noite pra ver se encontrava essa mulher. Fazer um negócio com ela pra eu tirar muito leite da seringa” – e com o caboclinho da Mata: “Era pra matar caça, mas não deu certo. Nunca encontrei com ele”, diz rindo. O sentimento de revolta viria com a venda das terras do seringal para a instalação de fazendas. “Eu não era invasor, comprei o lugar [a colocação], morei dez anos lá. Eu cheguei, tinha uma casinha que fazia cortar o coração. A mulher, quando viu, pegou a chorar e não voltou pra trás por causa dos meninos”, lembra. Decidido a não sair da colocação, seu Chico Pacheco começou a reunir o povo e empataram a derrubada. A briga “foi danada, uma coisa medonha”, lembra ao contar que os homens acabaram levados para a 4ª Companhia da Polícia Militar. As negociações – “O Dr. João Maia, que era delegado da Contag, do sindicato, acompanhou nós” – garantiram um pedaço de terra para as famílias, mas longe das seringueiras. Sócio fundador do Sindicato dos

Trabalhadores Rurais de Brasiléia, seu Chico Pacheco foi delegado sindical e acompanhou de perto o trabalho de Wilson Pinheiro. “O Wilson Pinheiro foi um presidente 99%. Morreu por nós”, diz. E quando perguntado por que não 100%, responde rindo: “Pra eu não dizer cem por cento e a senhora achar que eu tô puxando saco”. Para ele, o sindicato perdeu o rumo após as mortes de Wilson Pinheiro e Chico

Mendes. “Não funciona mais como era pra ser. Não tem um delegado do sindicato orientando o seringueiro”. E, aos 80 anos, diz que a conquista que o movimento do qual participou alcançou foi “que agora nós temos lei pra procurar nossos direitos”.

*O sernambi é o leite que, na hora do corte, escorre e cai no chão. Depois de coalhado, é usado na fabricação de uma borracha de menor qualidade, não defumada.

Helena Rodrigues da Conceição Araújo, 66 anos, nasceu e viveu em seringal. O pai, Pedro Rodrigues da Silva, era nordestino e a mãe, Maria

Rodrigues de Souza, acreana. Da infância no seringal Paraguaçu, lugar onde nasceu, dona Helena guarda lembranças que são comuns à vida de quem mora na floresta: o corte da seringa, a caça, a pesca, o respeito às entidades protetoras como a mãe da mata e o caboclinho. “Eu nunca cheguei a ver nada não, graças a Deus. Mas se a pessoa fica desfazendo dessas histórias, a mata mostra”. Mãe de oito filhos, todos nascidos com a ajuda de parteiras, Dona Helena foi uma das dezenas de mulheres que acompanhou o declínio dos seringais

Helena RodRigues da ConCeição

acreanos e a chegada da frente pecuarista no Acre. Ela conta que quando casou, morou no Seringal Icuriã, em Xapuri. Depois o marido resolveu mudar-se com a família para Brasiléia, onde comprou uma colocação no Seringal Carmem, palco do primeiro empate organizado pelos seringueiros na década de 1970, em defesa da floresta, seu meio de sobrevivência. “Nos primeiros anos, a gente plantou de tudo, mas depois o fazendeiro não deixou mais, já era dele. Ele ameaçava de botar nós fora e ninguém queria sair, pois uns eram antigos, tinham nascido lá, e nós tinha dado dinheiro, tinha comprado a colocação”, explica dona Helena resumindo em seguida a angústia das famílias ameaçadas: “Nós ia pra onde?”. Apesar da decisão de que os empates fossem pacíficos, dona Helena diz que as mulheres que chegaram a participar

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do movimento estavam dispostas a tudo. “Ah, se fosse preciso pegar nas armas, a gente pegava”, confessa. A família de dona Helena foi uma das que se viram obrigadas a mudar para o assentamento criado, após o empate no Seringal Carmem, para abrigar os seringueiros que moravam nas colocações. Uma mudança que para dona Helena não foi fácil. “Sair pra viver só de colônia é muita diferença, porque lá no seringal ninguém vivia só de colônia, era de castanha, de seringa. Quando mudamos tivemos que viver só de colônia, criar gado, criar porco, plantar. A gente sofreu muito”, desabafa. Dessa época, ela lembra o apoio dado pela Igreja Católica e conta que antes de começar um empate, “o padre Luis ia visitando as casas e dizendo como a gente devia se organizar. Ele pegava uma corda e ficava puxando um de um lado, outros de outro. E assim mostrava que a união faz a força”. O apoio, no entanto, representava sempre um risco. “Naquele tempo matavam muito padre, muita freira”, explica dona Helena.

Apesar da tristeza que demonstra ao falar do assassinato de companheiros como Wilson Pinheiro, em Brasiléia – “Foi um ótimo presidente, me lembro quando chegou a notícia que tinham matado ele. Meu marido veio, com os vizinhos, eu não pude vir não, estava grávida, pra ganhar neném” – e Chico Mendes, em Xapuri, dona Helena acha que a luta valeu a pena. “Se não tivessem matado o Chico, não tinham proibido de queimar, de derrubar a floresta”, argumenta. Mesmo reconhecendo que a luta da qual participou não foi em vão, dona Helena fala do movimento como uma ponta de saudade, e não disfarça a tristeza ao afirmar que “o sindicato teve uns tempos bom, mas agora não tem mais nada”. E como para resgatar a força da imagem gravada na memória, ela canta: “Sindicato, sindicato / com vontade e consideração /nós era todos escravos e hoje nós somos cidadãos / Esses órgãos competentes, que vem a nós no dramão / é através do sindicato que saímos da presa do leão”.

Aos 45 anos de idade, a professora Hiamar Pinheiro carrega o sangue guerreiro dos pais. Nascida em seringal, ela diz que tudo o que aprendeu

Hiamar PinHeiro

foi acompanhando-os no corte da seringa, no roçado, na quebra da castanha. Fala que sempre gostou do trabalho, agradece à mãe por tê-la feito estudar e lembra, rindo, uma história contada pelo pai, Wilson Pinheiro: “Quando eu nasci, ele perguntou pra parteira: ‘Homem ou mulher?’ Aí a

parteira: ‘Mulher’. E ele disse: ‘Mas vai ser uma menina que vai valer por três, quatro, cinco homens de verdade’”. Dos primeiros anos de vida escolar, Hiamar guarda lembranças fortes, entre elas a imagem de sua professora Valdiza [Alencar de Souza], que mais tarde ajudaria na criação do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Brasiléia e nos empates. “Aquela mulher não passou pela história. Ela fez a história no movimento sindical junto com o Wilson [Pinheiro], com o João Maia e tantos companheiros que foram importantes e tiveram seu significado no movimento”. Hiamar ressalta um lado pouco conhecido do líder seringueiro Wilson Pinheiro: “Lá no seringal, onde a gente morava, tinha um campinho na frente da casa, aí o papai fazia as bolas de seringa e dava o primeiro chute... Já pensou? Um pai mais de dois metros de altura com um monte de filha mulher?” Ela lembra que antes mesmo de vir para o Acre, Wilson Pinheiro já era envolvido na luta por justiça, atuando em associações na cidade de Porto Velho. E fala sobre o início do movimento, o dia em que o pai “chegou feliz, dizendo pra minha mãe: ‘Nós vamos criar um sindicato’”, contando ainda das reuniões que culminaram com a criação do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Brasiléia, do qual o próprio Wilson seria depois presidente. Para ela, o verdadeiro autor dos empates foi Wilson Pinheiro. “O Acre não pode ser injusto de dar esse título

a outro líder, porque o precursor do movimento sindical é o Wilson Pinheiro. Os historiadores não podem mudar essa história”, desabafa. Hiamar conta que no auge dos empates, ela morava em Rio Branco, estudando e trabalhando como babá. “Eu lembro no dia que eles foram pro último empate, que foi o de Boca do Acre. Eu vi o caminhão saindo cheio de gente e fiquei acenando... Eu nem imaginava que meu pai tivesse assinando a sua sentença de morte naquele momento”, diz referindo-se ao assassinato de Wilson Pinheiro. Hiamar tinha 15 anos quando o pai foi assassinado. “Vai fazer 30 anos e eu não consigo falar de Wilson como pai. Prefiro falar como líder, porque me emociono menos”, diz. Apesar da dor, Hiamar seguiu em frente e hoje luta por reconhecimento. “Porque quantas viúvas [do movimento] têm aí que nunca foram reconhecidas, quantos filhos deixaram de estudar?” Sobre a ação que move contra a Warner Bros, responsável pela produção do filme Amazônia em Chamas [1994], ela diz que é uma questão de respeito à memória de Wilson Pinheiro porque “pra se falar de Chico Mendes, primeiro tem que falar de Wilson”. E explica que a família, apesar de estar “toda viva”, não foi procurada. Mesmo se sentindo injustiçada com o tratamento que recebem as famílias dos líderes Wilson Pinheiro e Chico Mendes, Hiamar reconhece que ambos eram companheiros de luta e diz que o

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movimento é quem “foi injusto, o sistema foi injusto”. E desabafa: “Há momentos que eu penso que assassinaram o Wilson

mais de uma vez – quando tiraram a sua vida, mas também quando abafaram a sua história”.

Foi no antigo Seringal Paraguaçu, onde hoje é a cidade de Assis Brasil, que nasceu Imiliano Rodrigues da Silva. Ele foi uma das lideranças

que participou do primeiro empate no Seringal Carmem. Seu Imiliano cresceu no corte da seringa e acompanhou de perto as mudanças que na década de 1970 ameaçaram o modo de vida dos moradores da floresta. Hoje, aos 70 anos, com seis filhos e oito netos, ele fala do passado com uma ponta de tristeza: “Foi sofrimento, toda a vida”. Em 1973, casado e já com três filhos, seu Imiliano resolveu mudar com a família para Brasiléia. Pouco tempo depois de ter comprado uma colocação no Seringal Carmem, os problemas começaram. “Fomos botar um roçadinho e o fazendeiro queria empatar. Eles chegavam com chicote, diziam pra gente ir embora”. Seu Imiliano diz que foi nessa época que começou a organização do movimento: “O João Maia, mandado por Deus, ou não sei por quem – pelos governantes não era – veio criar o sindicato dos trabalhadores aqui”. Do primeiro empate, realizado

ImIlIano RodRIgues da sIlva

na Colocação Diamantina, onde morava Chico Pacheco, seu Imiliano lembra o cuidado que tiveram para avisar as famílias: “Eu, mais o Cícero e o Chico Pacheco, que é casado com a minha tia, andamos no Seringal Carmem a noite todinha pra juntar os companheiros, antes que o fazendeiro soubesse, a polícia fosse avisada”. Apesar de não ter ido nenhuma mulher nesse primeiro empate – “nós não queríamos que elas fossem porque era lugar perigoso” –, a participação feminina é reconhecida por seu Imiliano: “A dona Anália, que é minha tia, a Helena, a Antônia, a Severina, essas quatro mulheres participaram. Participaram chorando, fazendo a comida pra nós e rezando pra que nós voltasse vivo pra casa”. Além do Seringal Carmem, seu Imiliano participou de empates no Pólo 20 e no Seringal Porongaba. “No Porongaba nós passamos seis dias empatando. O fazendeiro chamava Jarbas, isso era valente. Ele tinha feito já uns 10 km de ramal pra botar o trator lá dentro”, diz ele antes de explicar: “Naquele tempo nós já tinha companheiro bom: o Osmarino, Antônio Manoel, Luis Melo, tinha mais gente junto pra ajudar nós. Já tinha jornalista, e no Carmem não tinha”. Ele lembra o papel que o Sindicato

dos Trabalhadores Rurais teve na fundação do Partido dos Trabalhadores, em Brasiléia. E ao falar das primeiras eleições, quando concorreram pelo partido nomes como João Maia e Osmarino Amâncio, diz: “Nós não ganhamos a eleição, mas resistimos”, avaliando em seguida: “Diziam que o Lula era analfabeto, o Osmarino também. E taí, o Lula hoje é presidente”. De companheiros de luta como Wilson Pinheiro e Chico Mendes, ele fala com saudade. Porque além da tristeza deixada – “Na morte do Wilson foi um chororô, que nem filho quando morre o pai” –, acha que a morte dos líderes seringueiros mudou os rumos do sindicato,

“com a morte do Wilson não teve mais presidente. A mesma coisa com o Chico”, e confessa: “Nós preferia perder um de nós”. Apesar de viver hoje na cidade e de ter recebido, da Câmara Municipal de Brasiléia, em 2009, o Diploma de Honra ao Mérito por sua contribuição no desenvolvimento do município, seu Imiliano diz que está no lugar errado, e desabafa: “Meu lugar era lá, na floresta. E se eu fosse pra um seringal, pra uma colocação, morrer lá, eu não ia deixar nem matar aquela inhambu, que apita redondo. Como é legal né? Amanhecer o dia ela cantando...”.

João Gomes Filho, 64 anos, nasceu e cresceu no Seringal Sacado, na região de Assis Brasil, de onde só saiu aos 24 anos quando resolveu se mudar, em 1970,

para o município de Brasiléia. “Fiquei uma parte no Seringal Porvir, aí já foi o início da luta”, diz ele ao lembrar que chegou a ver, nesse seringal, casas serem derrubadas e queimadas a mando do fazendeiro. Sua participação na luta do sindicato começou após o casamento, em 1979. “Porque até aqui eu só sabia o que acontecia, eu não era um daqueles companheiros, né? Depois acompanhei.

João Gomes Filho

Me colocaram como delegado sindical, trabalhei nove anos como delegado. Assumi também a presidência do sindicato, na época do Costa Campos, depois da morte do Wilson Pinheiro. Assumi o sindicato por um mês e 14 dias, como interino”, lembra. Apesar de não ter participado diretamente, seu João lembra alguns dos empates feitos por Wilson Pinheiro, em seringais de Assis Brasil, Sena Madureira, Brasiléia e Boca do Acre. “Na Boca do Acre o pessoal tava tomando terra de um povo que estava ali, diz que derrubando a casa dos seringueiros, tocando fogo, açoitando o povo. Aí reuniu o povo que tava aqui, mais ou menos umas 500 pessoas. E o

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povo não foi armado. Eles levavam foice nas costas, alguns levavam pedra e com isso eles conseguiram prender aquele patrão e os pistoleiros”, conta. Para ele, as mortes de Wilson Pinheiro e Chico Mendes foram perdas, até agora, insubstituíveis: “Depois do Wilson Pinheiro nunca mais teve outra pessoa pra assumir o trabalho do sindicato como ele. Era o Wilson Pinheiro em Brasiléia, e pouco depois o Chico Mendes, em Xapuri”. Ele fala da seriedade e da inteligência de ambos os líderes seringueiros, e lembra que na época em que foi assassinado, Chico Mendes, chegou a pedir proteção ao governo. “Ele pediu segurança pro Flaviano [Melo], mas ele disse que não prometia”, e resume: “O Chico não era enxergado pela sociedade”. Uma situação que seu João reconhece ter sido diferente fora do Brasil. “Ele [Chico Mendes] foi nos Estados Unidos, e foi bem aventurado lá, porque foi reconhecido como ecologista. E Chico Mendes não era ecologista porque se formou em banco de escola, ele era ecologista por natureza”, diz.

O sindicato, para seu João, não é mais o mesmo que ele conheceu. “As pessoas estão muito acomodadas”, diz antes de avaliar também o desempenho do PT, partido do qual ele diz ter participado de comícios nas primeiras campanhas em Brasiléia. “Infelizmente, nem todo mundo que está na administração dos municípios, dos estados, tem o desejo do Lula”, diz lembrando que abraçou o atual Presidente da República após o assassinato de Wilson Pinheiro. Das conquistas do movimento, seu João ressalta a desapropriação de seringais para projetos de colonização. E finaliza com uma ponta de saudade: “Já ouviu falar do jornal com nome de Varadouro? A gente leu muito aquele jornal. Falava de pessoas que estavam debaixo daquela ponte, quatro pessoas, cinco pessoas com uma coberta só. Pessoas que tinham colocação e tinham deixado pro fazendeiro. Porque ou saía ou tinha morrido. Era triste. Um jornal daquele, seria bom demais se a gente tivesse um jornal daquele hoje”.

José Henrique Pereira, 79 anos, começou a cortar seringa aos dez anos de idade, ajudando o pai. Em Brasiléia, seu José participou da

José Henrique Pereira

fundação do Sindicato e do Partido dos Trabalhadores. Ele trabalhou 31 anos como seringueiro e outros 19 como agricultor. Há oito anos, quando separou da mulher, Matilde, com quem teve dez filhos, resolveu viver na cidade e hoje é vigilante da Prefeitura de Brasiléia.

Nascido na colocação Museu, na Reserva Santa Quitéria, antigo seringal São Pedro, seu José diz que quando era pequeno não estudava, e só aprendeu a ler “um pouquinho” porque o pai pagou um professor para ensinar os filhos em casa. O corte da seringa obrigava-o a levantar de madrugada, e quando saía pra mata ainda estava escuro. “Eu andava 22 estradas de seringa”, diz. A vida que ele conhecia começou a mudar a partir de 1973, com a falência dos seringais e a venda das terras para os fazendeiros. “Eles [os fazendeiros] vieram derrubar, como se não tivesse uma pessoa lá dentro”, lembra seu José. Para ele, a preocupação era a mesma das outras famílias: “A gente fica desesperado, porque o cara fazer um pique no meio da estrada de seringa, a gente com dez filhos pra dar de comer!” A primeira vez que enfrentou o perigo de perto foi quando resolver ir, sozinho, conversar com os cinco peões que estavam na sua área pra derrubar. “Fui falar com eles, dizer que se eu tinha um pedaço de terra era aquele, de onde eu tirava o sustento”. Dessa vez, os peões foram embora, mas voltariam depois a mando do fazendeiro. “Ele veio negociar comigo e passou duas horas lá dentro conversando: queria derrubar 100 hectares, o equivalente a 40 alqueires, em frente à minha mata, meu igarapé, minha estrada de seringa. Aí eu disse que não”, conta. A determinação de seu José foi a

mesma que levou os seringueiros a se reunir nos empates: “Era arriscado mesmo, mas graças a Deus não morreu ninguém nesses empates”. Sobre a participação das mulheres nos primeiros empates, ele diz que “algumas iam, mas a maioria ficava em casa, cheias de filho, rezando e chorando porque o marido dizia: ‘Eu vou e não sei se volto’”. Seu José participou do primeiro empate, no Seringal Carmem, e de outros três, no seringal Santa Quitéria. “Mataram o Wilson [Pinheiro] por causa dos empates”, diz ele ao falar da importância do movimento criado pelos moradores da floresta para manter a mata em pé. E continua: “Os fazendeiros e até alguns políticos acharam que o sindicato ia se acabar com a morte do Wilson. Mas devido à necessidade que o povo tinha pelo seu pedacinho de terra, a precisão por sua seringa, a família que tinha pra criar, ninguém deixou cair no chão”, diz. Segundo seu José, na época do assassinato de Wilson Pinheiro, o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Brasiléia “tinha 4.400 sócios”. Hoje, porém, ele acha que o sindicato está enfraquecido, e argumenta: “No tempo do Wilson, o sindicato não era atrelado a nenhum partido”. Sobre as conquistas do movimento, ele diz que o seringueiro “se sente mais seguro e tem mais argumento para exigir as coisas”. Sem esconder a saudade da mata, fala sobre o significado da floresta: “Eu nasci, me criei e fiquei pessoa de idade

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morando nela. É muito valorosa. Fora o leite da seringa, que a gente fazia a borracha, tinha as árvores como o patuá, açaí e o buriti – que a gente tira, se alimenta

e a árvore continua lá”, explica antes de perguntar: “Isso não é importante? Espero que seja”.

Dizem que por trás de um grande homem existe sempre uma grande mulher. Se isso é certo, quem pode dizer? Mas foi verdade com o seringueiro e

sindicalista Wilson Pinheiro. Maria Terezinha de Paiva Pinheiro. Esse é o nome de sua companheira. Não participou das reuniões do sindicato, nem tampouco dos empates nos seringais. Mas travou uma dura e particular luta dentro de sua própria casa. Era a base para que o marido pudesse sair em busca dos direitos dos seringueiros. Cuidou de tudo que pertencia aos dois e criou quase sozinha os oito filhos que tiveram. Era uma exímia caçadora, de matar duas pacas com um tiro. Corajosa, ela enfrentava as esperas na mata com a mesma bravura com que desafiara os fazendeiros. E graças à sua firmeza a família não foi simplesmente expulsa da terra. Receberam em troca uma colônia na BR-317, onde Dona Terezinha vive até hoje. Ela nasceu no seringal Porto, município de Manoel Urbano em 26 de outubro de 1940. Não sabe ler nem

Maria Terezinha Pinheiro

escrever, mas guarda consigo importante tesouro: uma grande sabedoria, que vem do convívio com a mata e com um dos seus mais bravos filhos. Em entrevista, Dona Terezinha conta, num bom tom de humor, que foi resistente ao casamento com Wilson. Além de encarar uma mulher valente, ele teve que enfrentar também o padrasto que, segundo ela, colocava ainda mais dificuldade: “Pra casar foi quase às balas”.Na primeira tentativa, Wilson foi até a casa de Terezinha para “roubá-la” – ato comum naquela época. Sempre firme, decidiu não ir, pois sua mãe estava doente. Mas ele não desistiu, e afinal uma hora deu certo. Wilson pegou os documentos da noiva e foi sozinho para a cidade – o tal do casório teve que ser por procuração. Terezinha era o ponto de apoio de Wilson Pinheiro. Mas eles viviam praticamente separados – ele trabalhando nas atividades do sindicato e ela, na colônia, cuidando do que era dos dois: casa, filhos, entre outras coisas. O orgulho de ter sido uma boa companheira transparece em suas palavras. “Ele mesmo dizia pro pessoal do sindicato: ‘Eu tenho muita fé de quando saio de casa entregar as coisas praquela mulher’. E tudo quem

cuidava era eu mesma. Ele dizia que tinha fé que tando nas minhas mãos as coisas iam. Os pés e as mãos dele era eu porque eu não deixava por conta do filho nem nada”, conta Dona Terezinha. Além de cuidar de tudo na casa, Terezinha tinha ainda que enfrentar a angústia da espera, de quem sabe os perigos da luta do companheiro. “Me sentia assim numa tragédia. Aquela coisa que havia uma guerra, um parente da gente que tá no meio da guerra. Você sabe que ele vai sair, mas não sabe se ele

vai voltar”, lembra. No fundo ela sabia que uma hora Wilson não voltaria mais. Quando ele foi assassinado, Terezinha estava em casa, no escurecer do dia 21 de junho de 1980, descascando mandioca para uma farinhada. Só mais tarde recebeu a notícia: “Quando foi de madrugadinha chegou o mensageiro lá contando pro meu filho que tinham atirado no Wilson Pinheiro. Mas não falou que tinha matado não. Aí falei assim: - Pode ficar tranqüilo porque mataram”.

Severina da Silva nasceu no seringal São Vicente, no lado que pertence à Bolívia, e hoje, aos 72 anos, é uma das moradoras mais antigas do seringal Carmem, em

Brasiléia. Filha de pai nordestino e mãe acreana, ela começou a trabalhar cedo – “Com nove anos já tomava conta da cozinha da minha mãe” – e diz que na infância passou “vida boa e vida ruim”. A explicação, em parte, deve-se às diversas mudanças empregadas pelo pai, Francisco Alexandrino das Chagas, paraibano que saiu da Bolívia e voltou para o lado brasileiro à procura de um bom lugar para o corte da seringa. “Viemos pro Seringal Porto Carlos, e meu pai andou

Severina da Silva

trabalhando em cinco colocações”. Dona Severina conta que só quando completou 14 anos e o irmão mais velho, 16, foi que conseguiram convencer o pai a parar numa colocação, no mesmo seringal Porto Carlos. “Ele já tinha se assanhado pra mudar, aí nós chegamos pra ele e falamos: Daqui, mais nunca pra outro canto!”, lembra. Nessa colocação a família viveu 19 anos e só depois mudaram para o Seringal Carmem. Dona Severina, nessa época já casada, foi a única que continuou mais um tempo na colocação em Porto Carlos. Mas a saudade da família acabou definindo, em outubro de 1965, aquele que até hoje é o seu lugar de moradia: “Eu não queria ficar lá sem eles, aí viemos [ela e o marido] pra cá”. Ela conta que quando era mais

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nova ajudava até na caça: “Meu marido ia pra estrada e quando vinha almoçar, dizia: ‘fica aí com a espingarda e presta atenção’. Quando eu dava fé, o veado caía no campo aí eu, tome! Matava mesmo”. A caçada mais perigosa foi também a mais engraçada. Ela conta que o marido tinha saído só com os cachorros, quando ouviu os gritos dele pedindo que ela levasse a espingarda. “Quando cheguei lá, eu disse: o que é? E ele respondeu que era um gatinho. Aí entreguei a espingarda, só com um cartucho e subi num pau. Quando dei fé, ouvi o grito dele: sai daí que é onça! E eu: como é que tu disse que era um gato?”, lembra rindo. A lembrança do conflito com os fazendeiros é resumida por ela em uma frase: “Sem a floresta ninguém vive”. Mãe de 18 filhos, dez deles ainda vivos, dona Severina chegou a participar de um empate no Seringal Porangaba. “A gente ia tudo em cima da Toyota do Sindicato, e quando nós cheguemos no Igarapé Balanço, era escopeta e o diabo a quatro pra não deixar a gente passar pra lá”, diz, ela.

Além disso, esteve presente na época em que um grupo de seringueiros foi acampar por três dias em Epitaciolândia, garantindo a vida de Osmarino Amâncio. E também no dia em que ameaçaram entrar no STR de Brasiléia: “Ficamos lá pra guardar a sede porque os caras estavam querendo agarrar os papéis”, explica. Ela diz que o apoio da Igreja foi importante e fala da figura do Padre Luís, que estava sempre junto. “Diziam até que ele era comunista, que tinha que cuidar era da igreja dele, não de movimento”. O marido de dona Severina participou da fundação do sindicato – “Quando ele morreu, a ficha dele [sócio fundador] foi passada pra mim” – e ela foi uma das fundadoras do Partido dos Trabalhadores em Brasiléia. Viúva há trinta anos, ela diz que gosta de morar na floresta e que não pensa em sair dos 30 hectares de terra [fruto do assentamento criado após o empate no Seringal Carmem] onde vive com parte dos filhos e netos: “Ninguém me tira daqui, que eu tenho a escritura pública”.

Albertina de Souza, 57 anos, nasceu no Seringal Boa Vista, em Xapuri. Morou lá até os sete anos de idade, quando o pai, José Henrique de Souza, resolveu levar

a família para o seringal Nazaré. “Ali, vivi 30 anos”, diz dona Albertina. Desde 2009 ela trocou a floresta pela cidade, e hoje mora em uma casa no bairro Sibéria, no mesmo município em que nasceu. Sobre a mudança e a nova vida, ela desabafa: “Não é muito bom não, muita quentura. Por mim eu tava é na mata”. A saudade da floresta se mistura às lembranças de histórias ouvidas desde o tempo de menina. Como a do São João do Guarani, alma considerada milagrosa pelos moradores da mata e festejada sempre no mês de junho. “Meu pai conhecia ele e a história que eu sei é que era um seringueiro que morava sozinho e aí pegou malária. Ele veio falar com o patrão, mas fazia dois meses que não fazia borracha, não tinha saldo e por isso o patrão não deu dinheiro pra ele. Aí ele voltou pra casa, morreu dentro da rede, à míngua”, conta dona Albertina. Dona Albertina casou-se aos 17 anos. Além de cuidar da casa e ajudar no roçado, ela conta que quando o marido adoeceu foi obrigada a vender farinha, ovos, galinha, limão. E assumiu, junto com

AlbertinA de SouzA

os filhos, o corte da seringa. O sofrimento, segundo ela, ensinou-a também a caçar. “Quando meu marido foi se tratar em Goiânia, tive que caçar porque não tinha dinheiro pra comprar carne. Aí fui aprendendo, fui perdendo o medo”, diz. Além de garantir a comida em casa – “matava veado, porquinho e capelão, que é um macaco amarelinho que a gente come” –, as caçadas lhe ensinaram segredos da grande floresta. “Na mata é assim: um dia é do caçador, outro é do dono da mata, quando a gente anda, anda e não encontra caça nenhuma”, explica dona Albertina. Desde 1978 ela faz parte do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri. “No tempo que os fazendeiros entraram aqui pro Acre, os seringueiros tinham que sair das suas colocações porque os fazendeiros iam botar fazenda”, diz ela ao lembrar o início dos conflitos entre seringueiros e pecuaristas. Apesar de não ter ido a nenhum empate, dona Albertina estava sempre presente às reuniões do sindicato. Lembranças que, para ela, se confundem com a imagem de Chico Mendes. “Fui a muita reunião com ele. Ele era um companheiro legal. Hoje, nós só temos essa matinha por causa dele”, diz, completando em seguida: “Quando ele foi assassinado, acho que até os bichos sofreram”. Quando questionada se valeu a pena a morte de companheiros como

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Cecília Teixeira do Nascimento, 84 anos, nunca cortou seringa, mas ajudou muito o marido a raspar estrada, coletar e a defumar o látex. Na época dos empates,

a casa de dona Cecília servia como lugar de reunião. Casada com Joaquim Alves Mendes [já falecido], tio de Chico Mendes, ela chegou a cozinhar para mais de cem homens – todos, companheiros de luta. Nascida na zona rural de Xapuri, dona Cecília conta que se mudou para o seringal Porto Rico aos 11 anos de idade. Aos 15 ela casou, e em 1969 chegou ao Seringal Cachoeira, onde vive até hoje. Para ela, os perigos da floresta “toda a vida foi cobra, ouriço de castanha cair na cabeça”. Quando vieram os filhos, dona

CeCília Teixeira do NasCimeNTo

Chico Mendes, dona Albertina responde com uma ponta de tristeza: “Se não tivesse conquistas, não tinha mais mata, não”. Apesar de reconhecer as reservas extrativistas como uma vitória do movimento, ela vê com desconfiança a proposta de manejo madeireiro: “Lá na nossa colocação a gente nunca aceitou. Se a gente for vender a madeira da colocação, acaba com o resto porque cada pau que a gente derruba mata outros: quebra madeira, quebra castanheira, tudo o que tiver pela frente. E assim vai”, explica.

Sobre a criação de gado nas reservas, ela diz que “é bom por uns pontos, mas ruim por outros”, justificando em seguida: “porque se a gente comprar uma vaca, a gente não vai querer só uma. E todo bicho tem que comer, né? Se a gente criar só duas cabeças, pode até ter elas presas. Mas se tiver mais que 30 cabeças, tem que ter uma área grande”. Para dona Albertina, “a única bondade do gado é que se a gente adoece, é dinheiro na hora. É só vender”.

Cecília passou a ficar em casa. “Da mata eu não fazia nada, tive muito filho, mais de 19”. Em casa, era preciso dar conta das crianças, das tarefas domésticas e do roçado, onde plantava e colhia. “O arroz era pilado no pilão, a comida feita em fogão a lenha, tudo era manual”, diz. Ela fala com saudade da época em que o povo se juntava em mutirão para fazer roçado: “Antigamente tudo era amigo, hoje o pessoal não é assim não”. E diz que a floresta é muito rica porque além das frutas – “o açaí, o patoá, a bacaba, abiu, bacuri, castanha” –, oferece a caça e os remédios: “Criei meus filhos tudo sem médico. Fazia chá, defumação, banho, xarope, tinha que arrumar remédio pra tudo”. Para ela, a vida que conhecia mudou a partir de 1975, quando “começou a

ameaça, aí não prestou mais”. A chegada dos fazendeiros na região é bem viva na memória de dona Cecília. “Eles começaram a expulsar o povo das colocações, pra tomar conta. Pintava e bordava: tomavam as colocações, metiam fogo na casa, dirrubavam a mata”, conta. Apesar de não ter participado diretamente de nenhum empate, dona Cecília estava ciente da luta e da importância de seu papel. “A luta era a de não deixar o fazendeiro entrar. O Chico fazia muita reunião na minha casa, mas eu ficava o tempo inteiro na minha cozinha”, explica antes de contar que nessa época reuniam-se, todos os domingos, mais de 100 homens: “Eu e a Clarice era quem fazia comida pra esse povo, depois fiquei só eu viúva”.

O rancho, como ela chama, era garantido por Chico Mendes, com a ajuda de amigos que apoiavam o movimento. “O Chico conseguia a comida na cidade, de três em três dias ele trazia 50 quilos de carne”, diz. Para dona Cecília, a luta da qual fez parte, valeu à pena. “Antes você morava numa colocação, todo o seu produto era do patrão. Hoje não é assim”, diz apontando como outros benefícios os investimentos do governo petista – “a chegada das escolas, as estradas, a saúde, o transporte. Mudou muito”. Sentada em sua casa, na colocação Fazendinha, no seringal Cachoeira, ela ri ao ouvir a pergunta – A senhora gosta de morar aqui? – e responde: “Gosto, vixe! E nem quero sair, só pra morrer mesmo”.

Ela conhece bem os remédios da mata e como parteira, perdeu as contas do número de meninos que pegou. Nascida em Santa Rosa, no Alto

Purus, Clarice Ferreira de Lima, chegou a morar uma parte da infância na cidade, mas foi na floresta que construiu sua vida e sua história – há mais de 50 anos ela vive no Seringal Cachoeira, em Xapuri. Filha de pai nordestino e mãe

ClariCe Fereira lima

peruana, dona Clarice conta que a família saiu de Santa Rosa quando ela tinha seis anos. Primeiro moraram em Sena Madureira, depois viveram em Rio Branco e em 1940 mudaram-se definitivamente para Xapuri. A mãe de dona Clarice morreu quando ela tinha 13 anos, deixando oito filhos: “Eu tomei conta da casa do meu pai e dos meus irmãos”. Aos 18 anos, dona Clarice casou-se e mudou-se para o seringal Cachoeira. Ela reconhece que na mata há trabalhos que são mais próprios ao homem. Mas

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argumenta que não é nada que uma mulher com vontade não possa fazer também. “Depende da mulher, né?” Ela conta que chegou a cortar a seringa e lembra rindo que o marido, seu Manduca [falecido], era quem comprava a produção. “Eu me levantava, ia mais minha sobrinha. Ela levava uma escadinha, porque tinha bandeira que eu não alcançava, aí eu trepava, cortava. Depois voltava pra casa, e quando as tigelas tavam tudo cheia, a gente ia coletar”, diz. A atividade de parteira começou também aos 18 anos. Ela diz que nunca errou um palpite – “se é homem ou mulher” – e arrisca uma explicação: “Parece que eu já nasci pra ser parteira”. Dos remédios que conhece e chegou a usar nas parturientes, há um que ela diz ser infalível em casos de demora: “Manda o marido urinar dois dedos de urina dele e dá pra ela beber: é bater dentro, bateu fora”. Além de raízes e plantas medicinais que usa para diferentes enfermidades, dona Clarice sabe fazer remédios com a gordura de animais da floresta. Ela guarda, em vidrinhos, várias delas e explica o uso de algumas: “Banha da onça fede, mas uma colher de chá dela é bom pra cansaço. A banha de anta com a folha da capeba, pra irizipela; de traíra, pra dor de ouvido e a da guariba [uma espécie de macaco], pras varizes”. Para dona Clarice, a floresta, os rios

e igarapés têm dono. E explica que nas águas “tem a mãe d’água, o espírito da água e o batedor [que fica batendo na água]”. Mas apesar do respeito que tem a essas entidades, ela desconfia que alguma coisa mudou: “Antes, quando jogava uma criança na água, a mãe d’água encantava essa criança transformando ela numa cobra, num jacaré...”. A época dos empates é lembrada com orgulho. Além de cozinhar para dezenas de homens que participavam da luta – “Às vezes eu me deitava 11h da noite e chegava mais gente, tudinho com fome. Aí eu me levantava e ia fazer comida pro povo” – dona Clarice chegou a empatar derrubada em terras compradas por Darly Alves. Ela lembra que nesse dia, depois de ouvir o tenente dizer que não podia parar a derrubada porque “é ordem do Flaviano [Melo]”, uma comitiva foi para a cidade. “Fomos lá falar com o juiz, mas não teve acordo. Aí o Chico Mendes disse: Eu vou fazer greve de fome, vou tomar só água. Era o Manduca [marido de dona Clarice], o Chico Mendes e o Gomercindo, [Rodrigues] fazendo a greve de fome”. Hoje, aos 74 anos, dona Clarice continua achando que a vida na floresta é melhor que a da cidade. E quando questionada se o sangue derramado por lideranças como Wilson Pinheiro e Chico Mendes valeu a pena, ela devolve a pergunta: “Será?”

A atual presidente do Sindicato de Trabalhadores Rurais (STR) de Xapuri, Dercy Teles de Carvalho, 56 anos, começou a militância no movimento social a

partir das Comunidades Eclesiais de Base. Antes de alcançar a presidência do STR, ela trabalhou como delegada sindical, fez parte da equipe do Projeto Seringueiro e assessorou sindicatos de ribeirinhos e seringueiros no interior do Amazonas. Nascida no Seringal Boa Vista, na Colocação Limoeiro, em Xapuri – “18 horas de viagem, a pé, da cidade” – ela diz que sua infância não foi diferente das demais crianças do seringal. “Brincava de boneca e com seis anos começava a ajudar os pais a fazerem o que eles fazem”, explica. Dos tempos de juventude, ela fala com saudades das festas no seringal e lamenta que hoje o espírito de companheirismo não seja mais o mesmo. “As mulheres se reuniam pra fazer a alimentação: tinha a famosa galinha cheia, a costeleta [de porco, frita à milanesa], o croquet [bolinho de macaxeira, parecida com o quibe], tudo gratuitamente”, lembra explicando que os festejos coincidiam com a época de fazer o roçado: “Todos na base de mutirão, que a gente chamava de adjunto”. Dercy conta que em 1978, quando

Dercy Teles De carvalho

entrou para a luta sindical, enfrentou um espaço extremamente masculino. “A participação das mulheres só se dava quando elas eram viúvas”. E apesar de não ter participado diretamente de nenhum empate – “porque existia a prática de matar os líderes, as pessoas que eles achavam que se tirassem do meio, resolvia a situação” –, diz que trabalhava na logística deles. Em 1982, quando encerrou o mandato de uma das diretorias do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, da qual fazia parte, Dercy Teles entrou para a primeira equipe do Projeto Seringueiro, idealizado pelo Centro dos Trabalhadores da Amazônia (CTA). Desse trabalho, ela destaca a entrada das escolas nos seringais e a metodologia que unia a alfabetização ao conhecimento crítico. “A gente não estava preocupado apenas a ensinar a ler e nem a escrever; a gente tinha a preocupação de que as pessoas compreendessem porque que as coisas acontecem; porque que o seringal faliu”. Nos anos de 1990, Dercy voltou para o seringal, vivendo na colocação de sua família. Quase dez anos depois, apesar de afirmar não ter interesse em participar da direção do sindicato, acabou cedendo ao convite de companheiros e, em 2006, formou uma chapa, e ganhou a eleição para a presidência do STR de Xapuri. Hoje, em seu segundo mandato, ela diz que está tentando resgatar o movimento sindical.

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Dercy aponta a criação das Reservas Extrativistas como uma das maiores conquistas do movimento, mas acha que a realidade atual não contempla a ideia original do projeto: “Faltou cuidar pra que essa população sobreviva realmente do extrativismo”. Ela diz que faltam estradas para escoar a produção de quem vive na floresta e critica a atual preocupação preservacionista. “Se o extrativismo não está sendo viável, e não pode fazer roçado, então o que essas pessoas vão ficar fazendo na zona rural?”, diz,

argumentando em seguida: “Isso não quer dizer que eu seja contra a preservação, ou ache desnecessária”. Para Dercy, o produto hoje “mais valioso da zona rural é o boi”. Ela diz que recebe críticas quando toca no assunto, mas afirma: “Eu não defendo a pecuária, mas defendo a vida”. E afirma que em Xapuri há exemplos de pessoas que estão criando gado em áreas pequenas de pasto, sem comprometer a floresta – “A gente sabe que é possível”.

Francisco Ramalho de Souza nasceu no ano de 1942, no Seringal Filipinas, colocação Retiro, em Xapuri. Apesar de ter passado pouco tempo da infância em seringal

– “Saí de lá com seis anos. Meu pai era doente, saiu porque não aguentava mais cortar seringa” –, foi na mata que ele resolveu viver a vida adulta se envolvendo, no final dos anos 60, com o movimento social em defesa da floresta. Seu Chico Ganor, como é conhecido, conta que a doença do pai obrigou-o a trabalhar cedo, mesmo longe do seringal: “Com sete ou oito anos, tive que enfrentar o trabalho braçal: bater terra, plantar feijão, brocar mato pra fazer o roçado e plantar”.

Francisco ramalho de souza - “chico Ganor”

Ele lembra que o pai não queria criar os filhos no corte da seringa, desejando que na cidade eles pudessem estudar, “porque ele não sabia nem assinar o nome”, explica. Apesar das dificuldades enfrentadas pela família, o sonho paterno foi realizado: “Todos aprenderam, só quem ficou com estudo mais baixo fui eu, que fiquei com a 4ª série primária, os outros todos terminaram o 1º Grau”. Antes de servir o Exército, no início da década de 60, ele pediu autorização ao pai para ir cortar seringa. “Aí fui pra casa do meu tio, numa colocação no Seringal Filipinas. Lá eu trabalhei um ano e meio, fiz muita borracha e ganhei um dinheirinho”, diz. Quando voltou do Exército, passou um tempo solteiro, depois casou e foi constituir família. A militância no movimento iniciou

em 1968, com o apoio da Igreja Católica e a criação das Comunidades Eclesiais de Base. “Na minha colônia foi criado o primeiro grupo de evangelização e eu fui o monitor”, diz seu Chico Ganor lembrando que lia os boletins da Pastoral da Terra, “que falavam da vida camponesa, do pessoal que era morto pelos latifundiários”. Em Xapuri, ele acompanhou o declínio dos seringais, a chegada dos fazendeiros, na década de 1970, e o começo dos conflitos: “90% dos seringais da região foram vendidos aos sulistas que compravam a terra sem saber que tinha seringueiro lá dentro”. Além de ser um dos sócios fundadores do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Brasiléia, do qual foi tesoureiro na primeira diretoria, seu Chico Ganor participou de empates nos seringais Filipinas, Cachoeira, Nova Esperança e Independência. “Nosso conceito era defender a nossa sobrevivência, as seringas, nossas casas, a água, as frutas”,

afirma. Aos 68 anos de idade, ele afirma que não há lugar melhor do que a floresta para viver. “Muita gente gosta de viver no povoado. Mas eu mesmo, toda a vida gostei de viver na floresta. É melhor do que a da cidade”. Das conquistas alcançadas pelo movimento, ele ressalta a criação do Conselho Nacional de Seringueiros e do Partido dos Trabalhadores, as escolas fundadas pelo Projeto Seringueiro, o apoio de entidades da sociedade civil organizada, e, mais recentemente, a instalação da fábrica de preservativos no município. E diz: “Fomos vitoriosos, mas também tivemos muita perda. Tivemos a morte do nosso companheiro Wilson Pinheiro, companheiro Chico Mendes, que morreu na liderança do sindicato, a morte do Ivair Higino [sindicalista e uma das lideranças do movimento] e quantos outros que trabalhavam no movimento e amanhecia morto no meio das estradas”.

Josefa Ferreira de Moraes, 65 anos, é filha de acreanos e nasceu em Xapuri. A infância e a maior parte da vida adulta, ela passou na floresta. Hoje, vivendo

na cidade, dona Josefa fala com saudade dos tempos em que morava em seringal:

Josefa ferreira de Moraes

“A vida era boa, a gente pescava, caçava, pilava arroz – o divertimento meu era pilar arroz!”, conta, explicando em seguida que “o pilão tem muita serventia”. Entre as lembranças boas que guarda estão as festas juninas, em comemoração a Santo Antônio, São João, São Pedro. “Era um forrozão, dançava até de manhã. Tinha muita gente, muita

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comida. Festa no seringal era ótima”, diz rindo. Caçar, ela diz que não gostava muito, mas ainda assim, uma vez acertou uma paca. “Acertei mesmo na cabecinha. Mas foi só essa vez, e a paca é um bicho rápido”, conta explicando que depois de tirado o coro do animal, preparava a carne “com pouco caldo, guisadinha. Passava na banha, fazia frita. É gostosa a paca”, diz. Dona Josefa conta que trabalhou muito em roçado, mas diz que gostava mesmo era de defumar a seringa: “Muito boa aquela vida de defumar, eu gostava. A gente colocava o leite na bacia, mexia, colocava na fornalha. Defumei bastante! Ficava com a mão meio queimada, mas não tinha problema não”. Além do trabalho, outra coisa que ela conhece bem da floresta é a fartura. “Tem tanta coisa do mato que dá pra gente comer! Muita fruta que a gente pensa que é braba, mas não é. Tem cacau, ingá, abiu, pupunha, açaí, patoá, bacaba, tudo isso é bom e tá dentro do mato”, diz. A mudança ocorreu depois, “quando começaram a comprar os seringais”. Foi nesse período que ela e o marido, João Monteiro Moraes [já falecido], entraram no movimento. Ele, participando dos empates; ela, na colocação, rezando e cuidando das crianças – “era tudo pequeno”. Ela lembra que quando o marido saía pra empatar uma derrubada, se “sentia péssima, com medo de qualquer hora chegar uma notícia ruim, lá

dos empates. Só ficava tranquila quando ele chegava em casa”, diz explicando em seguida que a preocupação era a mesma na vizinhança: “Assim também ficavam todas as mulheres que moravam ali”. Para dona Josefa, a luta no movimento continuou até o assassinato de Chico Mendes. “Aí foi o tempo que meu marido morreu, e eu fiquei só com meus meninos na colocação”, explica. Amiga de infância de Chico Mendes – “Nós crescemos bem dizer juntos, morava no seringal Equador, ele na colocação Pote Seco e eu mais perto do barracão. Ele era como um irmão” –, ela diz que ficou abalada quando soube a notícia da morte do líder seringueiro, “Só não senti o que era bom. Passei dias chorando. E eu não pude vir no velório dele porque tava com uma filha minha de resguardo, três dias”. E desabafa: “Até hoje eu penso nele, a gente sente a morte dele. Não só eu, muita gente até hoje sente a morte do Chico Mendes. Ele era um filho, um irmão, um pai pra gente”. Dos tempos de luta e trabalho na floresta, dona Josefa guarda hoje o hábito de usar plantas medicinais: “Besteirinhas mesmo como chazinho de hortelã, de cidreira. Às vezes eu faço casca do jatobá, do cumaru”. Quanto à opinião de que a morte de Chico Mendes foi em vão: “Pode até algum seringueiro achar que adiantou, mas pra mim não. Muita gente parou de cortar, se envolveu com plantio”.

O nordestino Luis Targino de Oliveira trabalhou para os antigos senhores de engenho antes de vir para o Acre e tornar-se seringueiro.

De origem humilde, ele conta que o pai morreu deixando, além da viúva, dez filhos – “eu tinha seis anos” – que se uniram para sustentar a mãe e a família. Em 1953, aos 19 anos e impulsionado pelo sonho de ganhar a vida com a borracha na Amazônia, ele deixou a terra natal. O corte da seringa acabou fazendo com que seu Luis Targino adotasse a floresta como lar, onde formou família e educou os filhos. A viagem de navio até o Acre foi custeada por um tio dele que, desde 1942, trazia nordestinos para trabalhar em seringais da região. “Ele quem pagou as passagens de navio, e quando passou em Belém comprou pra cada um de nós uma espingarda pra gente trabalhar na mata, cortando seringa”, lembra. Antes de resolver trabalhar em seringais acreanos, seu Luís Targino passou cinco anos na Bolívia: dois no Seringal Pavilhão e três no Seringal São João do Paraná. E aos 23 anos voltou para o Brasil, indo direto para o Seringal Cachoeira, em Xapuri. “Lá eu trabalhei 27 anos. O patrão era um turco, era um dos

Luiz Targino de oLiveira

melhores patrões que tinha aqui, pagava o saldo dos seringueiros direitinho”, conta. Apesar de reconhecer que nessa época havia patrão que “pagava em dia, e não judiava”, ele lembra histórias que mostram a violência da qual eram vítimas muitos seringueiros. “Tem uma história de dois irmãos aqui, no seringal Bagaço. O Zé Ferreira pegava o criado dele, o seringueiro, e amarrava um saco de cernambi nas costas, amarrava uma corrente na mão e na outra, no pé e no outro e matava ele queimado. E o Daniel, irmão dele, que morava aqui pro lado do Peru, matava os empregados deles amarrando uma corrente numa mão e na outra, uma no pé e no outro e esticava até rasgar”, diz. Seu Luis Targino participou do movimento desde a criação do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Brasiléia, em 1976. Um ano depois, eles fundaram o sindicato em Xapuri. “O doutor João Maia veio dar curso pra nós e criar o sindicato, Chico Mendes, seu Luis Damião, Manezinho Monteiro, Manduca Custódio, João Clóvis, Alberto Amorim, o Chico Ganor, eu, Raimundo Felipe e o Mirandinha. Nós passemos oito dias e oito noites trancados no colégio, fazendo curso. Aí foi eleita uma direção, 12 pessoas, e o primeiro presidente do sindicato aqui foi o seu Luis Damião”.

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Delegado sindical, Luis Targino fez parte da organização dos empates em Xapuri –“Eu era da linha de frente, eu e Chico Mendes” – e chegou a ser preso e indiciado na Lei de Segurança Nacional por um deles, no Seringal Nova Esperança. E lembra que apesar do clima ameaçador que enfrentavam, “nunca houve um crime que seringueiro atirasse em um peão quando tava na derrubada”. Além da luta no sindicato, Targino

acompanhou a fundação do Partido dos Trabalhadores e foi o primeiro candidato a vereador de Xapuri pelo PT. Hoje, aos 77 anos, quarenta deles vividos na floresta, ele faz questão de afirmar que “quem veio destruir as matas aqui não foi seringueiro não. Eu nunca derrubei uma seringueira, uma castanheira, nunca derrubei madeira pra vender. E eduquei meus nove filhos, quatro deles formados e nenhum é analfabeto, vivendo assim, na mata”.

Maria Araujo de Aquino, mais conhecida como Leide Aquino, nasceu em 1966, em Xapuri, no antigo Seringal Fortaleza. Ela fez

parte da militância de base eclesiástica, participou de empates, da luta sindical, ajudou na alfabetização de moradores da floresta e acompanhou o início da luta do movimento de mulheres no Acre. Hoje, aos 44 anos, é Assessora da Mulher do Governo do Estado do Acre. Da infância, toda ela passada em seringais localizados na beira de rio, ela guarda boas lembranças e conta que foi alfabetizada, juntamente com os irmãos, em uma escola do Mobral, no Seringal Palmari. Leide Aquino fez o Ensino Fundamental em Rio Branco, enquanto morava na casa da madrinha. Aos 15 anos

Maria araújo de aquino – “Leide aquino”

voltou para o seringal e aos 18 casou-se. Ela lembra que foi nesta época que começou o Projeto Seringueiro: “Eu fui escolhida pela comunidade, eu e a Raimunda Conde, para sermos educadoras. A gente foi trabalhar com alfabetização de todas aquelas crianças da região”, diz, explicando depois que só deixou a escola na época do assassinato de Chico Mendes. “O Júlio [marido de Leide] era vice-presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri e tinha que assumir, já que o Chico tinha morrido”. Leide Aquino tinha pouco mais de 20 anos quando entrou no movimento sindical. “Antes disso, além de professora, minha militância tinha sido mais na Igreja, através das Comunidades Eclesiais de Base”. A luta no movimento de mulheres começou quando Chico Mendes ainda era vivo. “Algumas pessoas que fundaram depois a Rede Acreana [de Mulheres

e Homens], apoiaram o sindicato e a iniciativa do Chico de realizar o 1º Encontro Municipal de Mulheres. E a partir desse encontro foi que a gente começou toda uma discussão de envolver as mulheres no sindicato, porque até então eram só os homens”. Em Xapuri, ela foi diretora do sindicato e vice-presidente, ajudando também na reorganização da Federação dos Trabalhadores Rurais do Acre (FETACRE). “O período que eu passei na federação (primeiro como membro do conselho deliberativo e depois como vice-presidente), a gente fez toda uma discussão e conseguiu criar a Secretaria de Mulheres nos principais sindicatos”. Sua atuação na FETACRE ocorreu após os empates, em um período marcado pela conquista da criação das Reservas Extrativistas e a luta por crédito para a produção. O reconhecimento do trabalho de Leide Aquino levou-a à presidência do GTA (Grupo de Trabalhadores da Amazônia): “Foi um desafio muito grande”, lembra contando que passou cinco anos à frente da instituição. “Quando fui para o GTA, percebi que essa forma da gente lutar pela questão ambiental aqui no Acre era muito diferente e muito na frente do que é os outros estados”. Ela conta que o maior desafio no GTA foi fazer a articulação em toda a Amazônia, para garantir a participação das comunidades no projeto de implementação do PPG7. E diz que foi uma grande surpresa o convite que recebeu, em 2006, do governador eleito

Arnóbio Marques, para assumir o cargo que ocupa atualmente. “Eu tinha militância no movimento de mulheres, mas não era a minha principal militância, nunca foi. A minha principal militância sempre foi no movimento ambiental, no movimento dos seringueiros, mas foi um novo desafio”, diz a respeito da experiência. Apesar de reconhecer a importância do trabalho junto ao movimento de mulheres, Leide Aquino confessa que a luta mais marcante de que participou foi a dos seringueiros, no início dos anos 70 e parte dos anos 80. Ela lembra que nessa época não havia a consciência de luta feminina, apesar da participação das mulheres nos empates. “A importância da mulher e das crianças era dizer que a luta era pacifica. Esse era o entendimento”. Prova disso é que quando a participação de Leide Aquino junto ao movimento sindical cresceu, ela enfrentou a resistência da família. “Meu pai e a minha mãe achavam um absurdo eu abandonar a casa pra ir para coisas que na cabeça deles eram os homens que tinham que ir. Meu pai demorou muito para entender essa coisa de eu viajar sozinha e o Júlio ficar em casa com minha filha pequena, isso era um absurdo para ele”. Hoje, ela diz que fica “muito brava quando ouço alguma pessoa falar que não mudou nada, que está tudo a mesma coisa. Não tem como comparar, né? Hoje você tem uma realidade no estado que todas as pessoas são consideradas, fazem parte da sociedade, e naquela época não”.

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Nilson Mendes, 47 anos, vem de uma família com 18 irmãos – quase todos seringueiros em Xapuri. Casado e pai de três filhos, ele aprendeu na prática

o potencial das plantas e árvores da floresta, experiência que o faz defender o manejo florestal como uma alternativa de sobrevivência para os moradores das Reservas Extrativistas. Filho e neto de seringueiros, Nilson Mendes aprendeu a cortar seringa aos seis anos de idade. Ele diz que desde que o avô deixou o Nordeste e veio para o Acre, em 1913, o manejo faz parte da vida da família. “Os sete anos que eu passei fora do seringal a minha vida não foi boa, eu era comerciário, era gerente de uma loja, ganhava dois salários e larguei. Vim parar aqui e só saio daqui porque nós somos obrigados a contribuir: aquele que aprende um pouco tem que ajudar os outros a entender o processo e garantir a sua vida com dignidade, então a gente sai pra contribuir”, diz referindo-se ao Seringal Cachoeira, lugar onde vive há 20 anos. Para ele, as reservas extrativistas guardam riquezas que não estão sendo aproveitadas. Ele dá o exemplo da reserva Chico Mendes que “tem um potencial muito grande, tanto na questão do açaí, patuá, copaíba, castanha, seringa e muitos

NilsoN MeNdes

outros bancos de produções que estão lá”, e critica a não utilização desses recursos. “A reserva foi pensada como uma reserva biológica. Era pro homem ficar lá e se virar, então muitos deles só tira a seringa e vive esperando que Deus do céu mande alguma coisa”. Nilson lembra que até os anos 70, os seringueiros se alimentavam basicamente com a carne de caça e produtos da floresta. “O enlatado que vinha pra cá era banha e a farinha, que vinha do Pará, que a gente chamava de encapado de farinha”, diz. E explica a relação existente entre o plantio de espécies comestíveis e a cultura das populações tradicionais. “Se você dá uma andada aqui em volta, vai ver abacaxi comido por paca, manga comida por paca, por cutia. Você vai ver que quando eu planto, não é só pra alimentar a minha pessoa, mas os animais, que se multiplicam muito rápido e me dá um banco de alimento que eu gosto”, diz referindo-se à carne de caça. Para ele, é preciso encontrar alternativas para uma produção variada nas reservas extrativistas, que garanta condições melhores de sobrevivência às famílias. Nilson acredita no manejo madeireiro e diz que “quem abusa do poder da madeira são exatamente aqueles que compram madeira clandestina, que não fazem manejo e que não controlam: quando acaba a floresta, transforma aquilo em pastagem”. Desde 1999, ele trabalha

com manejo madeireiro – “Nós começamos com 10 comunitários aqui e hoje estamos com quarenta e poucos envolvidos” – e explica que o segredo para o sucesso da experiência passa pela diversidade na produção. “Porque nós temos a seringa, a castanha e tudo que está aí garantindo a nossa sustentabilidade”, diz. Além de dar palestras e cursos sobre as experiências de manejo na reserva, Nilson Mendes costuma brindar os

visitantes da Pousada Ecológica do Seringal Cachoeira com verdadeiras aulas sobre as riquezas da floresta e o modo de vida de suas populações. Ele observa a juventude com otimismo e diz que percebe, nos jovens que buscam a cidade, o desejo de voltar para a floresta. “Pra quem tá na cidade é melhor a cidade, mas pra quem tá na mata é melhor a floresta. Eles [os jovens] estão entendendo isso”.

Raimundo Mendes de Barros já esteve em várias cidades brasileiras e em países como Alemanha, Itália e Estados Unidos, mas não troca a floresta por nenhum outro

lugar. Forte liderança do movimento de seringueiros, ele conta que começou a trabalhar cedo – aos 10 anos cortava seringa junto com os pais e os irmãos – e diz que sua grande sabedoria foi a de ter conseguido sobreviver aos conflitos com os fazendeiros. A primeira vez que sentou num banco de escola, Raimundo Barros tinha 11 anos. Ele lembra que na época, a mãe tinha levado ele e mais dois irmãos para viver na cidade e frequentar a escola, mas a experiência acabou não dando certo. “As crianças do seringal eram muito discriminadas, nós começamos a ser

Raimundo mendes de BaRRos

hostilizado, e aí minha mãe resolver voltar com a gente pro seringal”, explica. A falta de estudo formal, no entanto, não impediu que Raimundo aprendesse com a experiência e herdasse, do pai, o gosto pela leitura. Depois de servir o exército, ele conta que voltou pro corte da seringa – “fui trabalhar numa colocação onde hoje é a Vila Acre” – e lembra que era guarda da Sucan quando começaram os conflitos na região. Foi nessa época que ele frequentou as primeiras reuniões do movimento. Desse período, ele fala do sofrimento das famílias expulsas do seringal e diz que a violência com que agiam os fazendeiros era maior do que a vida dura da floresta e a malária. Em 1975 ele mudou com a família para Brasiléia. E depois de reencontrar Chico Mendes – de quem era primo legítimo e amigo de infância –, se aproximou mais da luta: “O primeiro empate que eu participei

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foi no seringal Filipinas. A gente reuniu cerca de 40 companheiros lá na Colocação São José. Eu lembro que acendi duas porongas, fizemos uns cantos bonitos [pra luta] e eles disseram pra mim: ‘você não pode ir com a gente, porque é funcionário do governo, mas você vai vigiar nossas faquinhas, nossas espingardas. E eu fiquei”. Quatro anos depois, Raimundo Barros decidiu sair da Sucan e entrar de vez no movimento em defesa da floresta, chegando a ser preso pela participação em empates na Bordon. Para ele, as autoridades não estavam preocupadas com o destino dos seringueiros e a participação da força policial mostrava isso. “Eles estavam todos comprometidos com o latifúndio e a maior prova disso é que a polícia estava ajudando para expulsar os trabalhadores: junto com jagunço, botando fogo em casa de seringueiro, matando seringueiro como aconteceu com o Raimundo Calado”, lembra. Sobre o assassinato de Chico Mendes, ele diz não acreditar que tenha sido Darcy Alves quem disparou o tiro. “O

Darcy foi usado como vaca de presépio”, diz, explicando depois: “A informação que a gente tem é que tinha gente da polícia também na tocaia. Na hora que o Chico recebeu o tiro, no lugar de correr pra acudir o Chico, [os seguranças] fizeram foi pular a janela e correr pro quartel, diz que pra pegar as armas, e chegaram depois atirando”. Apesar das perdas que tiveram com a morte de companheiros, Raimundo Barros acredita que o movimento saiu vitorioso. “Conquistamos o direito de estar na nossa colocação de seringa, sem as ameaças do latifúndio”, diz, apontando também a educação, a valorização dos produtos extrativistas e a criação do PT como conquistas da luta. Há trinta anos morando na mesma colocação, ele fala com orgulho da vida na mata: “Viver aqui na floresta é um divertimento. Às vezes, na hora de deitar, você olha e parece que tem uma instalação elétrica ao redor de casa: a lua brilhando, que faz gosto! você olha e vê os ouriços da castanha, clareados pela lua... Isso é coisa muito rica”.

Sebastião Gomes de Araújo, 74 anos, foi monitor no auge das Comunidades Eclesiais de Base e participou da criação do Sindicato dos

SebaStião GomeS de araújo

Trabalhadores Rurais de Xapuri, em 1977. Ele nasceu em Altamira, no Pará, mas foi no Acre que constituiu família e percorreu caminhos que o levaram à atuação no movimento em defesa da floresta e dos seringueiros. Da vinda para o Acre, ele diz: “Foi

destino”. E explica que morava em Belém quando o padrasto foi abordado por um seringalista que falou ser fácil ganhar dinheiro no estado. Seu Sabá, como é conhecido, conta que cinco anos depois da família estar morando em um seringal acreano, o padrasto morreu. Aos 22 anos de idade, perdeu também a mãe, e ficou na colocação com os irmãos, todos mais novos. Foram 36 anos morando na floresta. Ele lembra que não tinha medo de andar de noite pelos varadouros, e a única vez que experimentou essa sensação não foi por causa de bicho. “Tava riscando uma árvore e ouvi uma zoada, pensei que fosse mucura. Peguei o cartucho, armei a espingarda, atirei pro rumo e fui lá ver. Quando eu me viro, tinha uma mulher. Aí eu corri”, diz contando que depois desse dia chegou a passar muito mal, teve que ser benzido e nunca mais voltou a cortar seringa de noite. Além do corte da seringa, da caça e do roçado, seu Sabá também fazia canoa. “Se a lua é nova, você tira madeira, ela racha. Pra tirar madeira tem que ser na lua cheia”, explica dizendo que todo o serviço era no machado e que quando a embarcação estava pronta era necessária a ajuda de vários homens para arrastá-la até o rio. “Hoje não, tem boi pra puxar, tem motosserra, tudo é mais fácil”.Ele conta que era tesoureiro do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri quando conheceu Chico Mendes. “Teve uma assembléia geral, ele foi eleito

presidente, depois disso saiu candidato a deputado estadual”, diz comentando que o sindicato nessa época tinha mais de 3 mil sócios quites, o suficiente para eleger Chico Mendes, o que não aconteceu. “Muitas pessoas não votaram, porque se ele ganhasse, ia ter que ir pra Rio Branco. Não sabendo eles, o quanto perderam”, diz. Seu Sabá trabalhou mais de uma década como tesoureiro do Sindicato de Xapuri e diz que nunca foi para um empate porque era “o cristo que precisava ficar na sede”. Ele fala da união das pessoas e conta que a antiga sede do sindicato foi construída graças aos seringueiros e a ajuda de Abrahim Farhat [o Lhé], que deu todo o material hidráulico: “Era uma sede grande, o seringueiro chegava, tava em casa. Só não tinha cama, mas seringueiro não é acostumado com essas regalias”. Também participou da criação da Cooperativa Agroextrativista de Xapuri (CAEX) – “Foram 18 dias de pés, com o estatuto na mão, dizendo pro seringueiro como é que ia funcionar” – e da fundação do Partido dos Trabalhadores no município. Atualmente, ele acha que a CAEX não está fazendo seu trabalho, mas diz que com o PT, as coisas melhoraram: “Primeiro, com a luz; segundo, muitas escolas, muitos ramais. Xapuri não tinha ramal: Esses ramais que tem aqui, tudinho foi o PT que fez. E se agora não tá indo carro, agradeça ao prefeito que não sabe trabalhar”. Hoje, seu Sabá mora na cidade com a

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mulher e diz que há cinco anos começou a escrever sua história. Poeta, ele lembra que escreveu uma poesia para a seringueira por conta de um padre e declama, de memória, os versos: “Seringueira, seringueira, como dói meu coração/

nas tuas veias corre o leite que me dá a alimentação/ o pouco que tiro de ti, ¾ é do patrão/ O patrão rouba demais, não tem dó nem compaixão/ ou te maltrata o ano todo e falta a alimentação/termino e fico sem nada, é triste a situação (...)”

Aos 66 anos, Sebastião Marinho do Nascimento conserva o mesmo espírito que o levou, no início da década de 1970, a entrar na luta em

favor da floresta e do modo de vida dos seringueiros. Seu Sabá Marinho, como é chamado por todos, atuou como monitor em Comunidades Eclesiais de Base, foi delegado sindical, participou de diversos empates e hoje faz parte da direção da Cooperativa Agroextrativista de Xapuri. Nascido no Seringal Filipinas, ele conta que a infância foi pobre e que o pai, por mais que cortasse seringa e quebrasse castanha, não se libertava do patrão: “A gente não vestia bem, dormia mal, cansei de me cobrir com saco de estopa que vinha do Pará, porque meu pai não tinha dinheiro pra comprar coberta pra todos os filhos (dez no total)”. Depois do Filipinas, a família foi trabalhar no Seringal Porto Franco, de Jorge Kalume, onde passaram 16 anos. Respeitador dos mistérios, seu Sabá

SebaStião Marinho do naSciMento - “Sabá Marinho”

Marinho diz que há tantos segredos na floresta que mesmo quem nasce e se cria no meio dela “nunca descobre”. Bom caçador, ele afirma que o caboclinho da mata é quem protege os animais. Confessa que não acreditava em história de panema , mas chegou a ficar dois meses sem conseguir apanhar caça. Quando isso acontecia, a mulher preparava uma defumação com penas de nambu azul, rabo do quatipuru, rabo de veado, pimenta malagueta, folha de pinhão roxo e alho. “Outras vezes, em dia de sexta-feira, eu me levantava sem falar com ela, aí ela pegava três galhos de pinhão roxo e pá pá pá na espingarda e em mim”, explica dizendo que saía com as costas ardendo, mas dificilmente voltava sem caça. Dos tempos antigos, ele lembra com alegria das festas no seringal, quando o povo se reunia para fazer adjunto (mutirão pra brocar roçado). “Eu era um dos tocadores”, diz. E, rindo, cede ao convite para pegar o cavaquinho. Os primeiros acordes são tímidos, como se acariciasse o velho instrumento – “Faz 38 anos que eu deixei de tocar” –, mas logo

ele arrisca um xote e em seguida canta um samba: “Que triste madrugada foi aquela/ Perdi meu violão/ Não fiz serenata pra ela/ Não cantei minha linda canção/ Essa canção é pra quem se ama/ Choro coração dizendo assim/ Abre a janela, amor, abre a janela amor/ Abre a janela e dê um sorriso pra mim”. Foram as ameaças ao modo de vida que seu Sabá Marinho conhecia que o levou à militância no movimento. Entre as conquistas pelas quais lutou, ele ressalta as reservas extrativistas. Fala com orgulho do partido que ajudou a fundar, o PT, e lembra que chegou a ser candidato a vereador “numa época que a gente era eleito com 70 votos. Mas parece que a minha liderança era pouca: Só fiz 38 votos”, diz rindo. Casado há mais de 40 anos e pai de

oito filhos (seis deles morando ainda na colocação da família, no Seringal Nazaré), seu Sabá Marinho foi um dos vencedores do Prêmio Chico Mendes de Florestania, em 2008. Hoje, vice-presidente da Cooperativa Agroextrativista de Xapuri (CAEX), ele enfrenta um novo desafio: sanar dívidas antigas da entidade que ajudou a criar em 1988. Dos bons tempos do movimento, assim como do amigo e companheiro de luta, Chico Mendes, ficou a saudade: “Se o Chico tivesse vivo, o movimento seria diferente. Depois que ele morreu o sindicato foi lá pra baixo, ninguém quis mais pegar no peito aquelas 50 balas de chumbo. Hoje até fazendeiro, pessoa que não tem nada a ver com extrativismo ou com a floresta, é sócio no sindicato dos trabalhadores”.

Na pequena cidade de Xapuri é difícil encontrar alguém que não conheça o restaurante de Tia Vicença, lugar que ganhou fama graças

à fartura da comida boa, servida a preços convidativos. Sua dona, Vicença Bezerra da Costa, é uma nordestina de fibra que chegou ao Acre, trazida pelos pais, em 1943, na época em que o governo brasileiro recrutava os soldados da borracha.

Vicença Bezerra da costa

Nascida em Alto Santo, cidade no interior do Nordeste, dona Vicença não esqueceu a viagem empreendida pela família, ainda no ano de 1942. “Quantas mil pessoas vieram no navio com nós, tudo chorando e cantando!”, diz antes de cantarolar – “Adeus terra da infância querida/ Adeus terra onde eu me criei / Adeus pai, adeus mãe, adeus tudo/ Eu não sei quando é que voltarei” – e explicar que ao contrário dela e dos seis irmãos, muitos vinham sem os pais. Quando chegaram ao Acre

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–“Chamavam a gente de brabo, flagelado, arigó, a gente não tinha nome” –, dona Vicença tinha 14 anos. Ela conta que antes de partirem rumo ao seringal, a família enfrentou dificuldades na cidade, esperando pelo patrão. “Um dia, eu vi uns meninos de uma família que estava lá, antes da gente, chegar com um saco. Eu fui perguntar o que era e era fato [bucho] de boi”. A descoberta foi de grande ajuda para a família, pois Vicença resolveu ir junto com os meninos ao açougue. “Cheguei lá, eu disse: Meu senhor, queria que o senhor me desse uma cabeça de boi, ou um fato de boi, que nós tamos passando necessidade. E ele disse: Leve, você quer levar, leve. E quando precisar venha”, lembra emocionada. Nesse período, ela diz que ajudou a mãe a lavar roupa para ganhar um trocado: “Eu sei que quando o patrão chegou, a mãe tinha 50 mil réis e comprou quatro galinhas e um galo. Foi como nós comecemos a vida”. A família foi viver no Seringal São Francisco e apesar do sofrimento da primeira noite, na colocação – “Nós fomos chorar [ela e as irmãs] e o pai disse: Minha filha, não chore não. Eu trouxe vocês pra um lugar onde se vocês chupar uma cana, onde cair nasce. Não é como no Ceará, que a gente planta até o derradeiro grão e vê morrer tudo” –, dona Vicença diz que a vida no seringal, 34 anos ao todo, “foi só felicidade”. Ela lembra que a família

trabalhava muito – “fazia 3 mil quilos de borracha por ano” – e que cresceu acostumada a ajudar em tudo. Com o marido, já falecido, ela diz que viveu 33 anos sem briga, apesar da diferença de idade. “Dizem que ele é de 1912, eu não sei. Sei que eu casei com ele e vivemos bem. Talvez melhor do que se fosse um bem novinho”, fala lembrando a época em que se conheceram: “Só em olhar, pronto. Ele pediu em casamento e eu disse que queria”. O casal uniu-se em 1945. Eles tiveram cinco filhos, todos criados no seringal. Dos tempos em que viveu na floresta, dona Vicença diz que comeu de tudo – “Só não comi cobra, mas o resto...” –, foi criada com os remédios da mata e apanhou muito menino: “Se a mulher tava sofrendo, porque não ir lá ajudar?”. Da mata, ela diz que só tinha medo “dos castigos de Deus” e conta que só deixou o seringal após a morte do marido, no final da década de 1970. Hoje, aos 81 anos, ela comanda a cozinha do restaurante que criou há 16 anos. A saudade do seringal continua, assim como a lembrança da época em que chegaram ao Acre, que dona Vicença guarda viva nos versos do Hino ao Soldado da Borracha: “Destemido soldado da borracha/Deste exército modesto varonil/ Não esqueça de cumprir o seu dever/Trabalhando em defesa do Brasil (...)”.

Luis Vasconcelos da Silva, o Luís Doido, é conhecido também como Luizão em Porto Acre, como “Poeta” em Boca do Acre e como “Farofa” em

Manaus: “tudo faz parte do show”. Ganhou o apelido de Luis Doido na época em que, liderando um grupo de 72 trabalhadores rurais da estrada de Boca do Acre, não teve medo de enfrentar o gerente do banco que se mostrava insensível à situação dos produtores que tinham perdido toda a produção, e os chamava de “malandros”. Nascido em Sena Madureira, na colocação Cuidado, do seringal São Bento, rio Macauã, por volta de 1960 sua família se deslocou para a sede municipal, onde Luís estudou até a 4ª série. Para concluir seus estudos, mudou-se para Rio Branco, onde também teve uma primeira experiência artística: montou um conjunto musical. De lá, rodou o país: estudou em escola técnica em Manaus, e trabalhou na construção civil no sul do país. Em sua volta ao Acre, no ano de 1979, continuou na militância de esquerda que iniciara no sul. Em 1982 participou do grupo que, insatisfeito com a polarização entre ARENA e MDB, fundou o Partido dos Trabalhadores e, em 1986, o Partido Verde em Porto Acre, no qual atua até hoje. Fez parte da gestação de um tipo de ambientalismo profundamente ligado à vida dos povos da floresta, às lutas sociais de seringueiros, ribeirinhos e

Luis vasconceLos da siLva

trabalhadores rurais. Sua experiência no meio rural e florestal acreano é diversificada: em 1982 “tirou” uma “colônia” na estrada de Boca do Acre, onde trabalhou como pequeno agricultor. Em seguida trabalhou como ribeirinho na colocação Boste, na beira do rio Acre. “Melhorou de vida”, e pôde comprar uma colocação no Seringal Caquetá, onde trabalhou no corte da seringa por 3 anos. “Eu tinha vontade [de cortar seringa], sabe por quê? Eu nunca tinha cortado, só meu pai. Eu fiquei com aquela coisa: “tenho que experimentar”. Num tô dizendo que eu sou aventureiro? Eu gosto de ver e sentir. […] O Acre tem uma das atividades mais ricas da Amazônia. Você tem um sistema de produção que é muito diversificado. Tem a parte agrícola, produção de grãos, de banana, de frutas, sabe? Você tem a praia, você tem pequenos animais, você tem pesca. E, além disso, o convívio onde você depende não de estrada; você depende do rio! Então eu sou apaixonado pela parte do ribeirinho”. Atuou em algumas lutas dos trabalhadores rurais como delegado sindical, época em que morou na estrada de Boca do Acre, e fez parte de um empate, do Cabeça Branca. Avalia, no entanto, que a luta do seringueiro é uma luta “diferenciada”. Recorda de um protesto realizado em frente ao Palácio Rio Branco, para garantir o preço da borracha, em que cerca de 600 seringueiros queimaram

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pneus. Ao mesmo tempo, em Brasília, 300 seringueiros fechavam o “Ministério da Economia”. Quando policiais e bombeiros tentaram conter o protesto em Rio Branco, “o povo ali da praça entrou em prol do seringueiro”, e impediu que o ato fosse interrompido: “o seringueiro tinha uma causa cultural, é uma categoria muito aceita, sabe?”. A poesia e a música sempre estiveram presentes em suas “aventuras”. Com letras que retratavam a luta e a vida do seringueiro, Luís Doido chegou a participar do Festival Acreano de Música Popular – FAMP. Uma de suas canções está também registrada num CD do Conselho Nacional dos Seringueiros – CNS, no qual atuou durante muitos anos, assim diz: “Aqui no Acre no tempo de fevereiro, nossas ruas ficam cheias de patrões e seringueiros. E neste tempo tudo aqui é festança, cada bar de esquina tem mulher bonita e dança. Eita seringueiro, eita cabra do norte, eita da cabra valente, eita cabra bem forte. Passa o ano nas brenha sem vir à cidade, enfrentando perigo e dificuldade. É menosprezado e oprimido pela sociedade. E, no entanto, é quem da lucro ao patrão, e a riqueza do Acre sai toda de sua mão”. Da mesma forma como a arte, a história e a memória também são aspectos importantes da forma como encarou a

luta socioambiental. Exemplar disso foi seu empenho para que o Seringal Caquetá não ficasse de fora da criação de um Projeto de Assentamento Extrativista em Porto Acre, pois aquele tinha sido palco de vários episódios importantes na luta pela incorporação do Acre ao território brasileiro, no início do século passado, a chamada Revolução Acreana . Mobilizou a comunidade universitária, órgãos de governo, e conseguiu sucesso. Essa preocupação com o resgate da memória e do patrimônio histórico o fez, juntamente com pessoas como Abrahim Farhat, o Lhé, criar a Confraria da Revolução Acreana, um grupo da sociedade civil que tem o objetivo de resgatar e avivar a memória deste período da história do Acre. Desconfiado dos impactos que alguns usos da floresta podem trazer, como o manejo florestal madeireiro, Luís avalia que o melhor caminho seria desenvolver o uso da floresta que chama de “exportação”: “exportação, vamos dizer, é que você usa a floresta, você tira o galho, você tira a folha, você tira a fruta, a própria raiz, mas a árvore se mantém viva!”. No entanto, constata que falta maior prioridade para este setor: “pra gente segurar essa floresta tem que ter valorização para os produtos da floresta. Quanto o nosso Governo gastou pra erradicação da febre aftosa no Estado?”

A professora Ivanilde Lopes da Silva, 59 anos, nasceu e cresceu no seringal. Ela entrou para o movimento através das Comunidades

Eclesiais de Base, trabalhou no MOVA e enfrentou a violência dos fazendeiros, na época dos conflitos, para garantir o direito de moradores da floresta a um pedaço de terra para viver. Filha de seringueiro, Ivanilde cresceu como única mulher no meio dos irmãos. Da infância pobre, ela guarda duras lembranças, mas também recordações que até hoje a fazem sentir saudades: “A felicidade que eu tinha quando criança era tomar banho no rio, aprender a pescar, pilotar canoa. A gente ficava na expectativa, eu e meus irmãos, de ver meu pai chegar. Quando a gente olhava, que via aquela estopa, porque seringueiro tem aquela estopa que sempre vinha caça e um restinho da farofa: meu pai tinha um cuidado especial de comer a farofa na beira do igarapé e guardar pros filhos aquele pouquinho, até hoje, quando eu faço, eu sinto o gosto dela – porque eu sabia que ele deixava por amor a gente, né? Ele nunca comia tudo”. Quando chegou ao Seringal Catuaba, Ivanilde tinha apenas seis meses de nascida. Ali ela morou até

iVANiLDE LOPES DA SiLVA

os 40 anos e só saiu porque os filhos precisaram fazer o segundo grau. Ela conta que até os oito anos o único calçado que conhecia era o feito de borracha. A primeira sandália ela ganhou quando entrou na escola e para comprá-la o pai precisou esconder, por um mês, parte de sua produção de seringa. “Quando a sandália quebrou, eu fui descalça”, diz lembrando a humilhação que sofria junto aos filhos do patrão: “A gente passava por essa discriminação por ser pobre. Por não ter uma capa pra usar no dia de frio, por não ter uma sandália. Peguei muito frio, eu e meus irmãos, e a gente ficava com a pele dormente”. Ela aprendeu a contar pisando arroz no pilão. E diz que foi um sofrimento os primeiros anos de escola. “Eu tinha medo da palmatória”, explica. Quando começaram a vender os seringais, na década de 1970, Ivanilde atuava nas Comunidades Eclesiais de Base, com o apoio de Dom Moacyr Grechi, trabalhando com a evangelização e a educação. “A gente nem sabia, quando ficamos sabendo o pessoal já tava chegando, ocupando o lugar”, lembra. A militância direta no conflito de terra começou em 1975, com a desapropriação do Seringal Catuaba e a expulsão das famílias seringueiras. Ela conta o episódio em que Dom Moacyr esteve no local e batizou 40 crianças da comunidade: “Quando terminou a

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celebração ele disse: ‘A semente está plantada na beira do rio. Eu espero, Ivanilde, que essa semente nunca mais acabe, seja qual for o desafio, você vai estar nas mãos de Deus e você vai superar’”, diz, lembrando que depois disso ela formou 12 grupos de evangelização e conseguiu, a partir das discussões conjuntas, criar a associação de produtores rurais no local. “A gente foi se organizando e depois de cinco anos, que não tinha mais ninguém naquela área, a gente resolveu retomar a terra”, diz referindo-se aos empates e à ocupação do seringal pelas famílias. “A gente entrou na terra e com três dias os jagunços do fazendeiro cercaram a gente”. Ela diz que a luta do Seringal Catuaba marcou sua vida e a de outras mulheres – “Se nós, as mulheres, as crianças, não estivéssemos na frente, muita gente poderia ter morrido” –, citando, depois, o nome de algumas

companheiras: “A Marina entrou pra fazer reunião, entrou também a Concita Maia que ajudou a carregar barro, entrou a Selma Neves, a Dora, a Crizelda”. Apesar dos riscos – “Tive que cortar meu cabelo era bem curtinho, porque o pessoal dizia: tu tá na mira” –, Ivanilde conta que nunca pensou em desistir. “Se nessa luta eu tivesse que entregar meu marido eu entregaria e entregaria muito feliz porque eu tava na luta por justiça, por terra e os meus filhos iam ter muito orgulho de mim futuramente”, lembra falando do apoio que recebia do marido, do pai e da família. Hoje, recém-formada em Peda-gogia, ela fala sobre o desejo de escrever um livro contando essa história e diz com orgulho que a luta valeu a pena: “Valeu tanto que hoje o Catuaba é pra gente de assentamento, tem ramal, tem escola que atende até o segundo grau”.

Antônio Francisco de Paula nasceu em 1928 no município de Nova Russas, no Ceará, e aos oito anos de idade se mudou com a família para Fortaleza. Filho

mais velho de uma família de dez irmãos, aos catorze anos teve de abandonar os estudos para ajudar no sustento da casa, pois seu pai, que trabalhava como pintor, tinha ficado doente. Não parou mais de trabalhar, exercendo várias atividades: no porto em Fortaleza, nas embarcações, em construção civil, em almoxarifado. Até que, aos 22 anos, animado com as notícias trazidas por parentes que voltavam do Acre, e também seduzido pela propaganda que recrutava os nordestinos para o trabalho nos seringais, decidiu embarcar rumo à floresta amazônica. Foi uma viagem dura, em condições não muito saudáveis. Após trocas de barcos em Eurinepé-AM e em Tarauacá-AC, chegou ao seringal Alagoas, no alto rio Tarauacá, onde iniciou o trabalho de seringueiro. Uma nova vida se iniciava, com uma necessária adaptação ao novo ambiente e a novas tarefas, como ele narra: “Chegar aqui foi como ter que nascer de

Antonio FrAncisco de PAulA*

novo. Eu nunca tinha carregado carga, eu nunca tinha trabalhado de machado nem de enxada. Eu nunca tinha andado na mata, não sabia o que era mata. Eu nunca tinha remado, nunca tinha pescado, nunca tinha caçado, eu nunca tinha é visto uma seringueira. Tudo eu tive que aprender a fazer por que eu não sabia nada certo”. Após um ano no rio Tarauacá, mudou-se para o rio Bagé, onde viveria 12 anos e encontraria sua atual esposa, com quem teve 12 filhos. A partir de 1966, e até o final da década de 1970, passou por diferentes seringais nos rios Tejo, Paraná dos Mouras, Moa e Azul, em alguns dos quais exerceu a função de gerente: “Com o pouco que eu sabia e um pouco de inteligência aprendi a fazer uma demonstração de conta, fazer lançamento e cheguei a ser guarda-livro na Restauração do Rio Tejo”. Os períodos em que trabalhou em funções de gerência se alternaram com outros em que voltava ao corte da seringa. Seu envolvimento com os movimentos sociais se daria a partir de 1978, quando passou a buscar seus direitos e de seus companheiros. Com os esclarecimentos obtidos junto ao

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Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Cruzeiro do Sul, fundado dois anos antes, passou a não mais pagar renda ao patrão, e a conscientizar outros seringueiros a fazer o mesmo. O final da década de 1970 e início da década de 1980 foram de intensa mobilização no movimento dos seringueiros no vale do Juruá. Além do sindicalismo rural, outro marco importante foi a organização do Conselho Nacional dos Seringueiros na região, com a chegada do indigenista Antônio Macedo. “Nessa época os seringueiros começaram a se mobilizar, não só os seringueiros como todo trabalhador rural, os ribeirinhos, os seringueiros, os agricultores. Em 1976 surgiu o primeiro sindicato em Cruzeiro do Sul, inspirado nos outros sindicatos criados no vale do Acre com o Wilson Pinheiro, o Chico Mendes. O movimento em Xapuri e Brasiléia era conhecido através de imprensa. Mais adiante, o Chico Mendes mandou o Antônio Macedo, que era indigenista e membro do Conselho Nacional dos Seringueiros: “Vai lá e organiza esse povo”. Eles eram amigos, trabalhavam juntos nessa guerra contra os latifundiários, os chamados paulistas”.Essa organização culminou, em 1989, na criação da Reserva Extrativista do Alto Juruá, a primeira do Brasil. Seu Antônio de Paula, que desde 1982 já atuava como agente de saúde, teve papel importante no processo de consolidação desta RESEX, coordenando por dez anos, de 1992 a 2002, programas de saúde. Neste

meio tempo, em parceria com Chico Ginú, atuou como secretário e presidente da Associação dos Seringueiros e Agricultores da Reserva Extrativista do Alto Juruá (ASAREAJ). Foi uma grande luta pela consolidação da reserva, que contou com muitas parcerias, entre elas a do professor Mauro Almeida, que coordenou projetos de monitoramento ambiental envolvendo os moradores locais como pesquisadores. Seu Antônio avalia que houve um grande “desmantelo, um desarranjo” da organização iniciada nos anos 1990, sobretudo por falta de organização de gestões da associação na década seguinte. Sua avaliação das conquistas destes mais de 30 anos de luta é positiva, destacando que não há mais a escravidão que ocorria antes, e muitos avanços em áreas nas quais chegaram políticas públicas, como saúde e educação. Por outro lado, a produção de borracha diminuiu muito, mesmo com os subsídios, e outros produtos florestais, como óleos, não tiveram sua produção viabilizada: “O seringueiro deixou de cortar seringa e planta feijão, fumo, arroz, milho, mandioca, […] a gente tá esperando o dia que o seringueiro seja remunerado pelo serviço [ambiental], de preservar a floresta”. Em 2002, quando sua família já morava em Cruzeiro do Sul, Seu Antônio também se mudou para esta cidade. Lá vive até hoje, e continua participando dos movimentos socioambientais, agora como um dos membros da Associação Amigos

das Águas do Juruá: “Isso deu-se por conta de uma necessidade das comunidades de se interessar pela proteção dos nossos rios e pelo meio ambiente”.

*Texto elaborado a partir da entrevista

Carmélia Nery San-tiago, 85 anos, é mulher seringueira, parteira, conhecedora de remédios e curas da mata. Nasceu e cresceu no seringal

Alto Paraná, no vale do rio Juruá. Casou-se “donzelinha, de véu e grinalda”, e seu esposo, já falecido, foi o único homem que teve em toda sua vida. Viveram a maior parte da vida no seringal, onde Dona Carmélia chegou a trabalhar junto ao marido no corte da seringa. A mudança para a cidade de Cruzeiro do Sul já em idade avançada a impôs um forte sentimento de perda e nostalgia. A vida na cidade nos dias de hoje – tanto os comportamentos quanto as condições de saúde – é sempre comparada com a vida de antigamente na floresta, com um certo pesar. Segundo dona Carmélia, as mulheres se oferecem aos homens e se enfeitam demais; os jovens estão entregues às drogas; e, mesmo com hospitais e médicos, as pessoas adoecem mais. Ela continua analisando comparativamente:

Carmélia Nery SaNtiago

realizada em 2010 no projeto Memória dos Movimentos Socioambientais do Acre, e também consultando entrevista concedida por Antônio de Paula à Biblioteca da Floresta em 2007.

“Antigamente era tudo diferente. […] Antigamente você não via mulher no pé de médico. Minha mãe teve 12 filhos, eu tive 8 filhos e nunca tomei remédio pra nada. […] Neste tempo não existia doutor como existe hoje, nem enfermeiro nem nada. E todas as mulheres tinham seus filhos, e todas as mulheres de antigamente eram sadias, hoje em dia as mulheres é toda escorrenta, as mulher é cortada, as mulher é defeituosa. […] Hoje em dia se não tiver uma caixa de leite os menino não se criam. E os menino são todos buchudão. Cheio de coceira. [Lá no seringal] açúcar não era desse branco, não. Era gramixó! Ou então garapão”.Foi ela mesma quem fez o parto de seu primeiro filho. Seu marido viajava, e ela se viu diante da necessidade de dar conta da tarefa sozinha. Achou que morreria, mas foi forte e, apesar de sua inexperiência, com o amparo de sua fé, conseguiu realizar o parto. Dali em diante passou a fazer partos de outras mulheres no seringal, e nunca mais parou. Já são mais de 3000 partos, incluindo o de todos os seus 8 filhos. Alguns foram muito marcantes. Num deles, de gêmeos, os meninos

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nasceram com as pernas emendadas. Carmélia conseguiu separar as perninhas utilizando uma lâmina de barbear, e parte da placenta para recompor as peles. Foi um sucesso. Cosme e Damião, como foram batizados, estão bem até hoje. Um deles, que vive em Manaus, há cerca de 5 anos visitou sua “mãezinha”. Esse tratamento lhe é dispensado por muitas pessoas que vieram ao mundo através de suas mãos. Em todos estes anos, Dona Carmélia adquiriu e desenvolveu muitos conhecimentos sobre tratamentos de saúde. Conhece inúmeros procedimentos de cura, para limpar a mulher depois do parto, e também para tratamento de outras doenças. Sabe fazer remédios a partir de plantas e animais da floresta, para tratar hemorragia, “dor de mulher”, dor de barriga, para tirar veneno de cobra*. Além disso, tem conhecimentos sobre fisiologia, sobretudo da reprodução. Sabe a diferença da gestação de meninos e meninas: “o homem com 3 mês tá todo formadinho. A mulher não tá muito formada. O homem é bonito, a mulher é mais ridica. O que o senhor vê na formação da mulher é os olhos”. Sobre a percepção feminina dos processos da gestação, diz que “a mulher experiente, quando pega o feto, sente uma gasturinha na base da barriga; pode contar 9 meses que nasce, nasce na mesma hora que foi feito. Olha, é uma ciência muito grande, é uma máquina muito bem feita”. Em vários momentos esta

sabedoria desenvolvida empiricamente se cruzou com o conhecimento e o sistema médico-hospitalar. Isso é um aspecto forte em seu depoimento. Certa vez, Carmélia machucou a perna e foi procurar o hospital. Lá o médico lhe informou que teria que “cortar a perna”, o que recusou veementemente. Curou-se em casa, sozinha. Outro caso marcante foi numa ocasião em que uma filha sua estava internada. Ela estava grávida, perdendo o bebê. Falaram que ela estava com malária e a amarraram na cama, argumentando que ela estava doida. Dona Carmélia entrou no hospital escondida, pulando a janela, e ajudou sua filha a parir. O bebê nasceu morto, e sua filha também não conseguiu se salvar. Depois disso, a médica que a desafiava – “se você sabe mais do que eu, pega meu diploma” – calou-se e sumiu. Estas experiências levaram-na a desenvolver um sentimento de desconfiança e ceticismo com relação à medicina oficial, ao ponto de não ter aceitado convite para auxiliar partos no hospital. “É uma judiação o que fazem com as mulheres, elas ficam sem andar, eles escangalham as mulheres, eu disse um dia desse pra enfermeira. Os vários partos que fiz aqui [em casa], faço melhor que dentro do hospital. [...] Deu meia hora que o menino nasceu já vai embora”. Com muita fé, Dona Carmélia segue prestando atendimento a inúmeras pessoas da cidade de Cruzeiro do Sul que cotidianamente procuram o auxílio da

“mãezinha” em sua movimentada casa.

* Esses conhecimentos foram desenvolvidos

Creuza Varela dos Santos nasceu no seringal Juruá Mirim, colocação Extrema, há 73 anos. Filha de seringueiros, aos 8 anos passou a tomar

conta dos irmãos enquanto a mãe ajudava o pai no roçado. Casou aos 16 anos, e após 3 anos “na vida boa” começou a trabalhar, “plantando um tabacozinho, indo pro roçado”. Quando a filha mais velha completou 8 anos e passou a cuidar da casa, Creuza passou a ir mais para o roçado. Fazia de tudo: derrubava pau, botava roçado. Só não fazia cortar seringa e atirar. Assim mesmo, ainda caçava junto de uma companheira e mariscava. Criou seus 14 filhos junto do marido. Desde cedo Dona Creuza aprendeu com sua mãe, de origem cearense, o ofício de rezadeira e parteira, mas considera esta habilidade um dom dado por Deus. Em toda sua vida sempre atendeu com muita presteza a todos que lhe chamavam para auxiliar uma mulher prestes a parir ou alguém doente, largando muitas vezes o trabalho no roçado pela metade. Seu marido em nenhum momento reclamou

Creuza Varela dos santos

destas atividades, que na maioria das vezes não eram remuneradas ou recompensadas, pois em geral as pessoas atendidas não tinham condições. “O medo que eu tinha era do menino morrer e eles me culparem. Então eu dizia assim: ‘se o menino morrer, vocês vão me culpar?’. Se dissesse que não, então eu ia”. Determinadas curas são realizadas principalmente – ou exclusivamente – com o recurso da reza. Foi o caso de um homem que se encontrava há 7 dias sem falar, comer ou abrir os olhos num hospital, vítima de picada de cobra. Com orações, aprendidas também com seu pai, um “acreano de sangue caboclo, filho da cabocla Madalena”, logrou curar o homem. Assim também fez em outras ocasiões ainda no tempo de seringal. Perguntada se se considerava uma rezadeira ou benzedeira, ela refletiu sobre sua espiritualidade, e mencionou também o “apóstolo” católico Irmão José*, com quem teria aprendido algumas curas: “Eu considerava assim como uma rezadeira, mas eu deixei. Agora eu rezo assim no último recurso. Porque eu peguei, eu aceitei a igreja crente. Aí eu vou pros crente porque é mais perto de que os

também por Dona Creuza Varela dos Santos, parteira e rezadeira da mesma região. Para conhecer um pouco de sua trajetória, ver relato na pg. 65 (entrevista com Creuza Varela dos Santos)

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católico [...] Mas eu aprendi muito com o Irmão José, que foi um apóstolo de Jesus que veio, tá com vinte oito anos que ele passou [por Cruzeiro do Sul]. Ele curava muito, batizava. […] Aí eu sou assim, nem sou crente e sou mais católica”. A exemplo da trajetória de muitas famílias de seringueiros, a sua deixou o seringal para se assentar em um ramal** nas proximidades de Cruzeiro do Sul. Recentemente, com sua saúde e de seu marido fragilizadas, decidiram viver na cidade, onde teriam mais acesso aos remédios e tratamentos. No entanto, conta que nunca parou de prestar assistência às pessoas que a procuravam. Ao chegar na cidade, chegou a realizar partos na Santa Casa***. Somente de uma vizinha sua, realizou cerca de 19 partos: “Eu tirei menino já deste tamanhinho. As mulher faz aborto e vem aqui pra eu tirar. Só de uma mulher eu peguei 19. Tá viva até hoje, mora aqui perto”. Hoje continua atendendo seus netos, mas se preocupa com o fato de que seus filhos e filhas não se interessam em aprender o ofício: “Quando os filhos deles ficam doente eles jogam aqui; eles acham que eu vou virar estátua, mas eu digo que vou morrer”. Dentre as muitas sabedorias e histórias que lembra da vida na floresta – como as histórias dos “donos da mata”; seu medo de alma que tinha ao casar, curado por sua mãe com um “remédio”; e seus conhecimentos de tecelagem com fio de tucum – diverte-se ao recordar das festas de seringal, ao som da “harmônica”, e do

namoro escondido: “Só podia namorar depois que as vela queimasse, então a gente jogava elas na fogueira”. Orgulhosa do seu trabalho, Dona Creuza considera que a melhor vida é na floresta, uma vida de fartura, e diz que, se pudesse, preferia viver no lote que a família ainda dispõe em um assentamento próximo a Cruzeiro do Sul: “Na floresta tem aquela frieza da mata pra gente andar. Eu lembro muito daqueles caminhos tão fresquinhos de andar. A fartura. Aquelas 3 ou 4 caças, aquele horror de carne seca. As galinhas de criação, pato, eu gostava de criar. […] Se você vai pra mata com vontade de comer aí você já vê uma fruta, já come, já pega um peixe. Tem já traz aquela fartura, buriti. Você chega na minha casa, é aquela fartura. Aqui [na cidade] não. Aqui eu passo esses dia porque meu velho é muito doente. Se ele não fosse doente, e eu também, a gente estaria lá no lote”.

*Irmão José foi figura marcante no catolicismo da região de Cruzeiro do Sul, que foi citado também na entrevista de Dona Carmélia Nery Santiago, outra parteira da mesma região.** Uma estrada vicinal, comum nos projetos de assentamento.*** Assim como Dona Carmélia Nery, também entrevistada no presente projeto, Dona Creuza também teve experiências de conflitos no ambiente hospitalar. Numa época em que estava com o braço doente, sem poder atender, Dona Creuza viu sua filha em apuros no hospital, tentando dar a luz. Mesmo com o problema no braço, a parteira foi até lá e conseguiu ajeitar o bebê na barriga, em posição correta para o nascimento.

João Claudino dos Santos nasceu no seringal Porto Alegre, no rio Campinas, filho de uma família de cinco irmãos, todos criados no corte da seringa.

Uma vida difícil, na qual os seringueiros pagavam renda ao patrão pelo uso das estradas de seringa, e na qual sempre havia a insegurança de poder, a qualquer momento, ser expulso pelo patrão da colocação onde construía a vida. Viveu por 30 anos essa vida na mata, de seringueiro. É neto de uma índia do estado do Pará, com a qual seu avô, nordestino que vinha para trabalhar nos seringais do Acre, se casou ainda na viagem de vinda para o Acre. Fala com orgulho desta raiz indígena, e considera-se, de fato, “meio índio”. De sua avó, parteira e conhecedora das curas da mata, e de seu pai, recebeu muitos conhecimentos importantes para a vida na floresta. Sempre teve confiança nos remédios da floresta aprendidos com eles: “a gente não tinha doutor, nossos doutores eram nossos pais”. Ainda hoje, vivendo na cidade, confia mais na “medicina florestal”. Seu pai, que morreu com 94 anos, e seu avô, que morreu com cem anos, sempre a ela recorreram. João Claudino participou da fundação do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Cruzeiro do Sul, em 1976. Iniciou sua jornada como delegado sindical

João Claudino dos santos

no rio Campinas, onde vivenciou a luta pela desapropriação do seringal Belo Horizonte, posteriormente transformado no Projeto de Assentamento Santa Luzia. Em seguida, mudou-se para o Alto Juruá, para o rio Tejo, onde realizou trabalho de organização da base, lutando pelos direitos dos seringueiros, contra a cobrança abusiva de renda por parte dos patrões. Este trabalho em vários momentos lhe rendeu perseguições. No ano de 1986 desenvolvia seus trabalhos na base sindical quando outro momento importante da luta ocorreu: a fundação do Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS). No rio Tejo, onde mobilizava os seringueiros, esclarecia sobre seus direitos, entre outras atividades, conviveu com o antropólogo Mauro Almeida, que deu grande contribuição na formulação da proposta das Reservas Extrativistas (RESEX). Segundo João Claudino, as RESEXs teriam um duplo papel: de contribuir com a “preservação da nossa Amazônia”, mas também de liberar o seringueiro da exploração econômica que vivia trabalhando para o patrão. Foram 12 anos nesta luta, até quando, em 1988, “os políticos me tiraram do sindicato”, contratando-o como policial. Exerce essa profissão até hoje, mas diz: “Eu era muito feliz trabalhando no sindicato, lutando pelos colegas, porque eu era sofrido também”. Outra motivação para ter aceitado este emprego, conta, foi a vontade de mudar para a cidade,

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onde os filhos poderiam estudar. Muito saudoso da vida na floresta e próximo de sua aposentadoria, João Claudino tem orgulho de sua trajetória de lutas:

“Já estou esperando uma aposentadoria, mas ainda tenho um sonho de voltar pro sindicato pra continuar minha vida, voltar pra aquela minha vida da zona rural”.

João Xavier Correia, conhecido também como João Branco, nasceu em 1940 no seringal Alagoinha, no rio Juruá, filho de um amazonense com

uma descendente de cearenses. Durante a infância, conta que sua família teve muitos revezes na agricultura por conta de alagações. Aos 13 anos já ajudava seu pai e seu irmão mais velho no corte da seringa, e aos 19 começou a trabalhar por conta própria, primeiro no seringal Trombeta, depois nos seringais Montreal e Alegria, período no qual se casou com a mulher que é sua esposa há 46 anos. Conta que pagava um alto valor como “renda” pelo uso das estradas de seringa, um valor fixo, independente da produção que conseguisse alcançar: “Trabalhei nove anos no seringal Alegria, e paguei novecentos quilos de borracha de renda. Cada ano eram cem quilos. E nos outros anos, com outros patrões, eram cem quilos, não tinha por onde. Paguei muita renda. Se o cara fizesse mil quilos de borracha eram cem quilos de renda; se fizesse duzentos quilos, eram cem quilos; se adoece e não fizesse nada, aqueles

João Xavier Correia - “João BranCo”

cem quilos eram seguros, aí eles vendiam a mercadoria pra gente pelo preço que eles queriam, não tinha tabela”. Seu João Branco conta que sua lida de seringueiro começava muito cedo. Uma hora da madrugada o relógio despertava, “aí era só mudar a roupinha, pegar o balde, a faca e já tinha um peixeinho assado. Ia pra mata com uma poronga, que era pra clarear na mata”. Enfrentava perigos como o de picada de cobra e de queda quando cortava “trepado” em uma escada feita com pedaço de pau, para alcançar na parte superior da seringueira. Lá pelas sete horas já havia cortado o suficiente, e podia comer o peixe assado. Era hora de retornar recolhendo o leite das tigelas, despejando no balde. Por volta de uma hora da tarde estava de volta à sua casa, e já seguia para defumar a borracha. Essa era a rotina em não mais do que quatro dias na semana, para não esgotar o leite das seringueiras. Nesta lida, conta que foi picado apenas uma vez, por uma cobra papagaio. Mesmo tendo sido somente uma “furadinha” leve no joelho, seu braço ficou extremamente inchado, e foi curado por sua mãe: “Ela fazia a reza dela lá, e eu não aprendi, não. Era rezando com um ramo de mato oração que ela

tinha lá. Rapaz,... não é que serviu, e eu fiquei bonzinho?” A partir de 1978, com a queda nos preços da borracha, passou a se dedicar à pesca, já que não tinha muita afeição ao trabalho na agricultura. Trabalhou como pescador profissional durante alguns anos, e em 1985 se mudou para Cruzeiro do Sul, e passou a trabalhar também no comércio de peixe, com uma banca no mercado. Lá vive até hoje, não sem sentir saudade da vida na mata: “Eu conheço muitas riquezas na floresta que eu amo,

eu adoro. Pena que eu não posso ir lá visitar, mas ainda tenho vontade de ir lá na mata assim, tenho muita vontade. Às vezes eu estou deitado e me lembro, como se tivesse assim uma hora dessa, bem de noite no alto Boa Fé, no igarapé chamado São Miguel. É na terra firme aqui pro rumo do Peru. Tem muita caça e outros igarapés que eu conheço assim longe, assim que tem muita caça, terra firme. Tudo isso eu penso de noite, uma saudade da mata”.

Maria Sebastiana Oliveira de Miranda, 47 anos, nasceu na Colocação Novo Acre, no Riozinho da Liberdade, um lindo recanto do Juruá. Desde cedo, seus

pais Pedro Benício Oliveira de Miranda e Maria Isabel Oliveira de Miranda lhes transmitiram os valores do trabalho, do amor, do respeito, da liberdade. Esses valores marcaram profundamente a sua vida, que se tornou comprometida com a causa de ribeirinhos e colonos do vale do Juruá. A vida no seio da mata foi uma experiência bem significativa. Sebastiana lembra, com sorriso no rosto, dos banhos no rio, do trabalho de colheita no roçado, da farinhada, das pescarias, das festas,

Maria SebaStiana Oliveira de Miranda

das brincadeiras noturnas nos terreiros, das rezas de terços em sua casa, dos festejos de São Sebastião, da alimentação saudável, dos remédios naturais que sua mãe preparava. Aos 13 anos mudou-se para Cruzeiro do Sul, com a sua família, que logo comprou um terreno do outro lado do rio, em um seringal. No período de 1985/86, seu pai conseguiu um lote no Projeto de Assentamento Santa Luzia, para onde mudou com a família, enfrentando as dificuldades de acesso, a malária, a falta de assistência pública. Sebastiana continuou na cidade, encarando o desafio de estudar. Foi a “descoberta de um outro mundo”, declara. Ela foi morar com sua família, em 1989, neste Projeto de Assentamento. Passou a ter um maior envolvimento com a Comunidade São José, participando

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das lutas, junto com o delegado sindical, por educação, saúde, melhoria do ramal. Descobriu o sindicato como um “espaço para poder falar, pra buscar apoio contra as injustiças que sofria”. O Manoel Nunes convidou-a para participar da Comissão de Mulheres do Sindicato, em 1994. Este trabalho lhe proporcionou a oportunidade de andar nos Projetos de Assentamentos e rios do Juruá, de viajar para participar de eventos fora do município e do Estado. Em 1997 foi eleita presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Cruzeiro do Sul, tornando-se a primeira mulher a assumir tal função, enfrentando o preconceito e a discriminação por ser mulher, com coragem e habilidade: “E depois eu fui revertendo isso na relação de respeito, de ir assumir compromissos com as pessoas. A partir do compromisso e ir resolvendo algumas coisas junto com eles você vai gerando uma relação de confiança”. A sua atuação foi dinâmica e participativa, com o apoio da Comissão Pastoral da Terra (CPT), “agregando em torno do sindicato as associações, criando associações, refundando associações, organizando delegacia sindical. Então nós criemo uma base participativa, ativa, o sindicato tinha vida, reivindicava dos poderes públicos os direitos dos trabalhadores”, analisa. Esta mulher audaciosa executou com êxitos o serviço de presidência do sindicato, alcançando muitas vitórias: a inserção de homens

e mulheres trabalhadoras no crédito, aposentadoria e auxilio maternidade para as mulheres; a melhoria de ramais e a aquisição de barcos para as comunidades ribeirinhas, escolas e postos de saúde nas comunidades. Este excelente trabalho fez com que Sebastiana fosse reeleita presidente do STR de Cruzeiro do Sul. Quando ela terminou sua gestão o sindicato passou de “650 sócios quites para 8.000 sócios quites”, afirma. Não chegou a assumir o segundo mandato. A sua vida de doação ao movimento sindical fez com que fosse convidada pelos Sindicatos do vale do Juruá para concorrer à eleição da Federação dos Trabalhadores da Agricultura do Acre (FETACRE), em 2005, sendo eleita. Com sua fibra conseguiu reorganizar a Federação. Por isto, se candidatou à reeleição, em 2009, e, mais uma vez, saiu vitoriosa. Sebastiana está como presidente da FETACRE e avalia esta sua missão: “Hoje essa minha tarefa na Federação está quase cumprida, que era o resgate da instituição, de sanar os débitos da Federação, de trazer a credibilidade da instituição”. Com esta rica experiência de vida dedicada à causa sindical, Sebastiana pode afirmar: “A minha participação no movimento sindical é muito de doação, ela é de amor, é amor, porque não é necessidade, graças a Deus... Ela é de amor e nós ainda temos muitas injustiças sociais”.

Pedro Correia da Silva, hoje com 64 anos, nasceu e cresceu no Seringal Belo Horizonte, no Rio Ouro Preto. Viúvo, casado pela segunda vez, teve 11 filhos. A

partir dos oito anos começou a ajudar seu pai no corte da seringa. Seu pai foi um seringueiro que se manteve trabalhando até quando pôde, e morreu aos 88 anos aposentado como soldado da borracha. A injusta relação trabalhista estabelecida com os patrões sempre incomodou Seu Pedro. Foi assim quando, após uma “teima com um patrão”, decidiu se mudar do seringal que vivia por conta da exploração. E foi por isso também que decidiu deixar o trabalho no corte da seringa. “Quem carrega leite nas costa é cururu”, disse, ao decidir deixar este ofício no qual “quem dá o preço é o patrão”. Passou a se dedicar então a atividades que lhe oferecessem maior autonomia, em que pudesse “dar o seu preço”: tirar e serrar a madeira com serra manual, fabricação de farinha, criação de porco e galinha, e também caçando e trazendo carne pro mercado, “na época que não era proibido”. Nestas idas e vindas, garante, conhece todos os igarapés desta região do vale do Juruá. E sente muita saudade da vida na mata: “Às vezes dá saudade, vai ficando velho, vai lembrando

Pedro Correia da Silva

da mata, um peixe assado na beira do rio. Às vezes a gente sonha também. De agricultura e serviço pesado eu conheço tudo. Desde a ferrada da caba no rosto até a dentada da cobra no mocotó que eu levei... a esporada da arraia. Eu sou um cara caboclo. Vim de meio do mato”. Dos perigos da mata afirma nunca ter tido medo, nem deixado de andar por nenhum canto por conta deles: “a mata é muito boa, cansei de dormir no mato”. No entanto, ao contar um episódio de morte por choque de poraqué *, confessa ter certo receio no ambiente aquático: “É por isso que na água eu não sou muito positivo não. Só pra beber quando tá friinha [risos]”. Bisneto de uma índia, Seu Pedro diz que “aprendeu com os índios” uma técnica para capturar o tatu, entre outras técnicas de caça, agricultura e culinária. Conta que tem muitos conhecimentos da mata como, por exemplo, o de identificar o cheiro, o pixé de muitos bichos e árvores: “Costumo dizer que dentro do meu trabalho eu sou doutor. Lá no interior a gente vivia como índio”. Outra habilidade que descreve é a de localização dentro da mata, “contando as voltas” durante a caminhada: “O senhor entra aqui e tem que saber se andou tanto pra esse lado, tanto pra aquele, pra depois o senhor retornar, não perder o rumo. É como que o senhor esteja andando e no seu sentimento [aponta pra cabeça] fazendo um pique, por onde o senhor vai, por onde o senhor vem, pra depois

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retornar. Eu andava assim”. Em 1972, casou-se e se mudou para a cidade de Cruzeiro do Sul, em busca de estudo para os filhos. Algum tempo depois se envolveria no processo de fundação do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Cruzeiro do Sul, onde teve uma atuação ligada aos momentos de embate: “Sempre fui o espinha na garganta”, referindo-se a seu papel de negociador junto aos órgãos públicos. Fundado em 1976, após a passagem de João Maia pelo município, este sindicato foi atuante no vale do Juruá e até mesmo em território amazonense. Pedro foi escolhido como delegado de base, e trabalhou também como secretário. Atuou na luta pelos direitos dos seringueiros e trabalhadores rurais até o ano de 1988, quando se desentendeu – e quase chegou às vias de fato – com um companheiro que, segundo ele, não tinha respeito na convivência cotidiana, “tinha mania de falar meio aborrecido, de gritar”. Mas, diz orgulhoso de seu trabalho: “Seringueiro e agricultor eu nunca deixei morar no xadrez”. Hoje avalia que a atuação do sindicato se modificou: “Hoje não tem mais borracha por aqui, acabou a briga sindical. Hoje tem o fazendeiro, mas tem a terra dele lá, o pequeno produtor tem a dele... se ninguém invadir a terra do outro ninguém briga. Ficou melhor de trabalhar... mas acabou o movimento

sindical com isso. Hoje o movimento sindical faz mais, assim, tipo socialismo. Brigando por um produtor que tá lá, a filha ou esposa dele que tem direito a um auxilio maternidade. Tornou-se mais isso. As briga que tínhamos naquele tempo [...] Cabou aquelas brigas; ninguém briga por pedaço de chão. Às vezes só pra desapropriar. Desapropriou, acaba a briga naquele canto. Mas o movimento sindical aqui fedeu mesmo a cão, o negócio foi sério”. Hoje Seu Pedro trabalha minis-trando cursos pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (SENAR): “Vou nas colônias, convido o pessoal, e faço aqueles cursos. Eu me dou muito bem com eles, e eles se dão muito comigo, somos da mesma área. Aonde eu chego, pronto, tenho paz e amizade com todo mundo”. No entanto, considera que a alimentação produzida no campo atualmente é muito menos saudável do que a de antigamente na mata: “Hoje em dia é cheio de hormônio; a orientação que damos nos cursos é pra abater um frango com 40 dias; passou disso tá perdendo dinheiro. Um frango criado lá no meio mato às vezes com seis meses ainda diziam: ‘ah, esse frango ainda tá um pinto’”.

* Peixe que realiza descargas elétricas, comum nos igarapés e igapós da região.

Raimundo Soares de Araújo, também conhecido na cidade de Tarauacá como Raimundo Lino, nasceu em 25 de maio de 1938 no seringal Santa Emiliana, no alto rio

Muru, no meio de uma viagem de seus pais descendo este rio. Aos oito anos se mudou para a sede municipal, onde cursou até o quarto ano. Um dia Raimundo e seus irmãos foram interpelados por seu pai: “ele perguntou se a gente queria a cela ou a cangalha” – os estudos ou o trabalho no corte da seringa. “Eu fui o primeiro que gritei que queria a cangalha, que queria cortar seringa”. E por 32 anos este foi seu ofício. No ano de 1976 representantes da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura – CONTAG, entre os quais estava João Maia, chegaram a Tarauacá para estimular a formação de um Sindicato dos Trabalhadores Rurais no município. Já havia uma grande insatisfação “naquele tempo em que os proprietários mandavam nos pobres dos seringueiros”. Raimundo foi uma das pessoas que receberam treinamento para se tornarem dirigentes sindicais. Por sete anos e meio, conta, foi presidente do STR de Tarauacá, um período de luta, uma “briga estrondosa” pelos direitos dos seringueiros e trabalhadores rurais. Foi já na luta sindical que recebeu um novo apelido. “Em todo o Brasil, desde 1982, sou conhecido como Raimundo

Raimundo SoaReS de aRaújo - “Raimundo TRovoada”

Trovoada, o Trovoada do Lula”. Luis Inácio Lula da Silva, com quem compartilhara a militância, assim lhe apelidou “porque só falo aos gritos mesmo”. Foi da mesma maneira, enfática e em voz alta, como se discursasse para uma platéia, que Trovoada lembrou da importância de uma liderança de movimento social ter um bom conhecimento dos direitos garantidos nas leis. Foi assim com a luta contra o pagamento de rendas aos patrões seringalistas sobre a produção do seringueiro, alicerçada no Estatuto da Terra. E também com a luta pelo direito do posseiro de permanecer em sua posse, “independente de todo aperreio”, luta esta embasada no Código Civil. Foi uma luta pela conquista e afirmação de direitos. E os principais episódios descritos por Raimundo Trovoada dizem respeito ao direito à terra, e à luta por desapropriações que beneficiassem seringueiros e trabalhadores rurais. Entre as áreas que logrou desapropriar durante o período à frente do sindicato, destaca o antigo seringal Novo Destino. Raimundo viajou muito, em visitas a outras experiências de trabalho sindical em diversos estados, e esteve em Brasília e Rio Branco para negociações junto ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA e outros órgãos públicos. Sem falar das manifestações públicas em Tarauacá, apoiadas por autoridades estaduais, que demonstravam localmente a força do

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movimento. “Corri o Brasil inteiro, mas a terra foi desapropriada”. Há 53 anos Trovoada é casado com Jacira Brasilino de Araújo, com quem criou 12 filhos. Hoje reside no Corcovado, bairro que fica na entrada da cidade, cortado pela rodovia BR-364. Mesmo “com a idade avançada”, Trovoada conta que não abandonou sua história de lutas, e hoje é presidente da Associação dos Idosos de seu bairro. Recentemente, diante da inércia da associação de moradores, “comprou a

briga” de moradores que estavam sendo desalojados, e passou a defender o direito de permanecerem em suas casas. “Às vezes tem até uns cabra grande desses por aí que dizem: ‘o Raimundo Lino é doido pra comprar uma briga’. Eu não sou doido pra arrumar uma briga; eu sou doido pra ajeitar o que tá torto! Se chegou direitinho comigo, tá tudo direitinho. Mas se chegou torto eu quero aprumar. Em todo lugar que eu moro o povo me procura, porque sabe que aonde eu vou, ou vai ou quebra!”

José Sildenir das Chagas nasceu no ano de 1955 em um seringal do município de Tarauacá chamado Santo Amaro. Foi iniciado no corte da seringa aos dez anos

por seu pai. Aos treze perdeu sua mãe, episódio que o levou a desde pequeno compartilhar com o pai a responsabilidade pela sobrevivência da família de oito irmãos. Por 22 anos trabalhou em diversos seringais do rio Muru, até se mudar para a cidade de Tarauacá em busca de oportunidades de estudo para seus filhos. Na cidade tentou sem sucesso trabalhar em uma olaria e em uma serraria, mas não conseguiu se adaptar a estas tarefas. Optou por retornar ao corte da seringa em uma colocação próxima a uma escola, no seringal Transvaal, onde poderia oferecer

José sildenir das Chagas os estudos aos filhos. Sildenir diz nunca ter tido “uma relação ruim com os patrões ou com os gerentes de seringais”, mas afirma, assim como seus colegas de profissão, ter passado por muitas dificuldades: o pagamento de “renda” da borracha produzida (espécie de imposto cobrado pelos antigos patrões); a obrigatoriedade de comprar mercadorias e vender a produção diretamente para o barracão do patrão; a quase exaustão das estradas de seringa da época, que levavam o seringueiro a ter que escalar as árvores para extrair o látex mais para o alto. Tudo isso lhe impusera uma “marca”, e um sonho “de dar uma resposta a tudo aquilo que meu pai, eu e meus irmãos e os seringueiros passaram”. “Esse período de seringueiro me deixou uma marca. Ver meu pai carregando, “roubando” seu próprio produto, pro patrão não ver, pois se soubesse mandava a polícia tomar a borracha, bater, raspar a

cabeça dos seringueiros. Essa era a prática na época. Não achava isso certo. E não fazia isso, mas era subjugado pelos gerentes. Essa marca ainda hoje vive em mim e em muitos companheiros”. Pouco tempo após iniciar na militância no movimento social como delegado sindical, no ano de 1991, Sildenir foi eleito o quinto presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Tarauacá, cargo que exerceu por 15 anos. Assumiu em um período de queda na mobilização dos trabalhadores, e buscou recuperar a luta que Raimundo Lino* e outros haviam iniciado. Conta com orgulho que uma das suas primeiras ações foi a de soltar, com o apoio de mais de 300 trabalhadores mobilizados, um seringueiro e seus 300 kg de borracha que se encontravam presos na delegacia, por conta de uma denúncia de falta de pagamento de renda. Conquistando a confiança da base, além de continuar a batalha pela desapropriação de áreas de antigos seringais, Sildenir trabalhou também por melhores condições de vida e de produção. O seringal Boa Esperança é um exemplo desta luta: após sua desapropriação e transformação em Projeto de Assentamento Tarauacá, a luta

foi para garantir apoio de políticas públicas para mais de 300 famílias assentadas. Hoje, afirma, a situação não é a ideal, mas muito já foi conquistado. Além de dirigente sindical, Sildenir atuou em outras frentes: como membro do Conselho Deliberativo do CNS, e como diretor de políticas agrícolas da FETACRE. Ainda no STR, ajudou na criação da RESEX do Alto Tarauacá. Avalia positivamente o aumento de políticas públicas para apoio ao seringueiro, como o subsídio da borracha e o apoio para a produção do FDL** , mas relata que grande parte dos antigos seringueiros de Tarauacá migraram para o trabalho com a agricultura familiar. Ele próprio se dedica atualmente a esta atividade, em lote regularizado na Floresta Pública do Rio Gregório, nas margens da BR-364. No entanto, mesmo fora da diretoria do sindicato, segue apoiando as atividades desta entidade e assessorando 33 associações rurais e uma cooperativa do município.

* Ver resumo da entrevista com Raimundo Soares de Araújo – “Trovoada” na página 73. ** Folha de Defumação Líquida, produto que agrega valor ao trabalho do seringueiro.

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Afonso Manduca Mateus, o Afonsinho, é pajé dos Huni Kuin que vivem atualmente na Terra Indígena Kaxinawá da Colônia 27, localizada nas proximidades da

cidade de Tarauacá. Kupi InuBake, como é conhecido na língua de seu povo, vive nesta localidade desde 1979. Nasceu e se criou nas cabeceiras do rio Jordão, no antigo seringal Fortaleza, filho de Maria Madalena e Manduca Mateus. Desde pequeno acompanhou seu pai nos trabalhos no roçado e no corte da seringa, numa época em que os Huni Kuin ainda não tinham conquistado o direito à terra, e trabalhavam para os patrões seringalistas. Era o tempo do cativeiro.Ainda jovem, deixou de trabalhar para o pai e passou a trabalhar “por conta própria” no corte da seringa e agricultura, mudando “de colocação em colocação, de seringal em seringal”. Conta que fez isso durante uma década, entre 1969 e sua chegada à Colônia 27. A motivação maior para deixar a sua região de origem foi a busca por recursos para comprar roupas, pois desde que passaram a estar “misturados com os brancos” os

Afonso MAnducA MAteus - “Afonsinho” (Kupi inu BAKe)

indígenas não poderiam mais andar nus. Num dado momento, por estar longe da cidade, chegou a perder produções de seu roçado. Foi quando tomou a decisão de se mudar para as proximidades da sede municipal, chegando até a Colônia 27, onde um primo seu já vivia. Seus conhecimentos de pajé foram adquiridos com o pai, um grande sábio, um “doutor”. Afonsinho se ressente de quando jovem não ter se dedicado mais ao aprendizado destes conhecimentos, mas afirma estar se esforçando muito nos últimos anos para passar tudo aquilo que sabe para seus parentes mais jovens. “Meu pai era como doutor, sabia cantar, sabia nosso remédio mesmo, sabia tudo, história de antigamente, tudo. Fui batalhando pra aprender. Fui começando desde quando andava junto com ele. Depois que ele separou da minha mãe fiquei só. De toda forma o que eu aprendi vou passando pra frente. Fui estudando com os outros também, estudando, estudando...” Hoje, aos 71 anos, tendo “vivido muito e comido muita macaxeira cozida”, fica feliz pelo interesse que hoje seus netos e filhas têm em aprender aquilo que é da cultura Huni Kuin, pois assim ela permanecerá viva por muito tempo.

Bruno Brandão Shanenawa é o filho mais velho de Inácio Brandão, falecido líder Shanenawa. Atualmente vive na aldeia Morada Nova,

na Terra Indígena Katukina-Kaxinawá, situada à frente da sede municipal de Feijó, na margem oposta do rio Envira. Essa terra indígena leva esse nome pelo fato de que, à época da demarcação, acreditava-se que os Shanenawa eram, na verdade, um grupo Katukina. Até se fixar nesta localidade, a trajetória deste povo foi marcada por sucessivas migrações. Vindos da região do rio Gregório, trabalhando para os patrões seringalistas no corte da seringa, extração de madeira e outras atividades, foram “varando”entre os rios próximos, subindo e descendo por eles. Quando do nascimento de Bruno, em 1910, os Shanenawa viviam no Seringal Tamandaré, rio Muru, nas proximidades de Tarauacá. Amaral Brandão e Militão Brandão, também filhos do “Velho Inácio” com suas outras duas esposas, já nasceram em outras localidades, revelando parte desta história de migrações: Amaral nasceu em 1920 no alto rio Envira, “na extrema com o Peru”; Militão nasceu 10 anos mais tarde, no Seringal Simpatia, mais abaixo no mesmo rio. Foram várias as

Bruno Brandão Sanenawa

razões para as mudanças. Por vezes, conflitos com outros povos indígenas, que reduziram a população Shanenawa. Em outros momentos, foi a busca pelo acesso a mercadorias como o sal e tecidos que os fizeram mudar, como ocorreu na decisão por deixar o alto Envira. Bruno conta que seu povo trabalhou, sob a liderança do Velho Inácio, tirando madeira, “ajuntando couro pros patrões”, e também no corte da seringa. Em alguns momentos atuaram amansando os “caboclos brabos”, índios em condição de isolamento. Após se estabelecerem nas proximidades de Feijó, uma epidemia de sarampo tirou a vida de muitos Shanenawa. Trabalharam por algum tempo no local para um patrão com quem tinham uma boa relação. No entanto, quando este faleceu, tiveram problemas com os herdeiros, que queriam lhes expulsar da terra. A situação se resolveu quando o governo estadual desapropriou a área, e esta posteriormente foi demarcada como terra indígena pela FUNAI. Aos 100 anos, Bruno recebeu os entrevistadores em sua aldeia cantando e dançando uma música tradicional de seu povo. Durante a entrevista cantou duas músicas mais. Uma delas, contou, é uma música “pra mulher pegar neném; mulher que escuta pega neném”. Revelou também como funcionava,

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antes do contato mais intenso com a sociedade regional, as relações entre homens e mulheres: “no tempo antigo [o rapaz] pedia a menina na barriga da mãe. Se fosse menina, aí ele já gostava. Trabalhava no roçado pro pai, cuidava quando pequena, até formar, até ficar

no ponto de ser mulher. Nossa história é assim”. Com a experiência de quem já viveu um século, Bruno Brandão é um dos velhos sábios da floresta acreana, levando aos mais jovens de seu povo uma história de resistência.

Carlos Brandão é indígena Shanenawa, nascido no ano de 1970, na aldeia Morada Nova, localizada próxima da cidade de Feijó. Filho

de Bruno Brandão, e neto do velho Inácio Brandão, Carlos desde cedo acompanhou a trajetória de seus parentes e “começou a entender o processo do povo Shanenawa”, da exploração vivida trabalhando pros patrões, e também como estivadores. Ainda jovem, com 16 anos, se tornou liderança de seu povo, trabalho que ocorre em conjunto com seu tio, Militão, que é o cacique. Iniciou um trabalho para que seu povo olhasse menos pra cidade, e mais pras aldeias, pros roçados. Aos poucos a produção de alimentos foi aumentando: “depois de um ano começamos a colher o que nós plantamos. Plantamos muita banana, muita macaxeira, muito milho, batata. Até onde o pessoal começou a acreditar que, para nós, plantar era mais importante que trabalhar pra patrões e

Carlos FranCisCo Brandão shanenawa

fazendeiros”. Neste trabalho de fortalecimento da comunidade e da cultura Shanenawa, destaca a parceria com o governo do Estado em várias áreas. Na educação, viabilizando a educação diferenciada, que valoriza a cultura local, com a construção de escolas nas aldeias e o apoio aos professores indígenas, evitando que os indígenas tenham que estudar na cidade de Feijó: “naquela época a gente tinha dificuldade de aluno estudar na cidade. Se chovia hoje aluno não ia. Acabava os indígenas sendo desistentes e não passava”. Destaca também que, com o plano de mitigação dos impactos do asfaltamento da BR-364, que corta a terra indígena, houve um processo de diálogo entre governo e a comunidade indígena, com a participação do Ministério Público Estadual e Federal. Isso resultou em ações nas aldeias, como incentivos à produção, plano de gestão e vigilância territorial, mas se dizem preocupados: “nós tamos pensando no futuro, não nos dias de hoje. No futuro

vai vim muita coisa boa, mas muita coisa ruim. Por isso estamos pensando um plano de longo prazo pras nossas comunidades indígenas”. Momento marcante em sua trajetória foi a indicação que recebeu, em 1999, para representar seu povo no movimento indígena, na União das Nações Indígenas do Acre e Sul do Amazonas, a UNI. “Passei 4 anos como representante, morando em Rio Branco. Aprendi muita coisa, com outras lideranças, com assessores”. A UNI acabou sendo fechada, relata, por conta de dívidas surgidas com processos trabalhistas: “A UNI tava sendo muito organizada, reconhecida internacionalmente. Mas depois que pegou um recurso grande, que não soube administrar, que deu um problema muito grande. […] Mas pra mim o movimento não acabou. Vai só acabar o movimento quando os povos indígenas do Acre

acabarem. O movimento existe”. Atuando hoje também na Organização dos Povos Indígenas do Rio Envira – OPIRE, da qual fazem parte também os povos Kaxinawá [Huni Kuin], Kampa [Ashaninka] e Kulina, Carlos integra uma luta para fortalecer a cultura, ao mesmo tempo por melhores condições de comercialização de seus produtos: “o pessoal tá começando a produzir, mas onde nós vamos comercializar? Nós temos a mesma dificuldade do povo Kampa, que traz feijão e não consegue vender porque nós somos discriminados, não tem mercado, querem pagar menos, porque somos indígenas... Eu digo, negativo!”. Assim, Carlos segue na luta, de olho no futuro, quando vislumbra no turismo uma alternativa econômica para a comunidade, mas sempre com o esteio da sua cultura, valorizando o saber dos mais velhos, e suas tradições culturais.

Francisco Pianko, nascido em 1968, é o filho mais velho de um casamento interétnico entre Antônio Pianko e Francisca Oliveira, a Piti. Seu avô paterno,

um importante líder Ashaninka, “com um olhar pro futuro” propôs a união de seu filho Antônio com uma “branca de família

Francisco PiyÃko ashaninka

importante” na região do Alto Juruá, especificamente no rio Amônia, na fronteira com o Peru, onde seu povo hoje vive. Os filhos desta união passaram a assumir importantes papéis em um processo de transformação na relação com a sociedade envolvente: “já nascemos dentro de uma responsabilidade; cada um dos filhos que ia nascendo já ia presenciando, convivendo com o projeto”. O “projeto” dos Ashaninka

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do Amônia é uma luta de vários anos, que passou pela conquista da terra, da melhoria nas condições de vida e, sobretudo, pela valorização de seu modo de vida e identidade. Desde a “chegada da Fundação Nacional do Índio (FUNAI)”, em 1980, a prioridade passou a ser garantir a demarcação do território exclusivo para os indígenas. O processo de retirada dos “não-índios” não foi fácil. Houve resistências e mal entendidos. “Passamos a ser tratados como problema, um povo que tava desafiando a eles que tavam ali, a autoridade deles. Não entendiam que nós tínhamos direito, ignoravam isso. E, ao mesmo tempo, achavam que nós estávamos passando por cima deles. E acho que isso foi muito ruim, porque eles tinham sempre uma visão de que eles eram brasileiros, eles que eram os donos da terra, eles que podiam, não aceitavam que nós tivéssemos direito”. Neste processo, Francisco conta que ficou evidente a diferença entre a “lógica” econômica de seu povo e dos seringalistas, e também dos seringueiros. Os não-índios, patrões ou fregueses, estavam em geral muito preocupados em trabalhar sempre mais e mais. A “cultura Ashaninka”, por outro lado, coloca outras preocupações, como a de ter tempo para vivenciar as caças e pescarias, e também para a “formação das crianças pra seguir com os conhecimentos, com uma vida independente, sem se preocupar com essa visão de fora”.Mesmo com o processo de demarcação já iniciado, na década de 1980 enfrentaram

a invasão de empresas madeireiras de propriedade de políticos importantes do vale do Juruá, que estão sendo processadas na justiça até os dias de hoje, pelos danos causados ao território Ashaninka. Mesmo após a conquista da terra, em meados dos anos 1990, seu povo seguiu lutando para conter as invasões tanto de caçadores brasileiros quanto de madeireiros peruanos. Paralelamente, intensificaram um trabalho de recuperação das áreas desmatadas e de recuperação dos estoques de caça e pesca, por meio do manejo, estabelecimento de áreas de refúgio pras caças e repovoamento de espécies mais sensíveis, como alguns quelônios. Esse trabalho hoje é referência, e vem sendo repassado para outros povos da região, indígenas e não-indígenas. A atuação de Francisco no projeto de seu povo começou cedo. Aos 15 anos, passou a dividir seu tempo entre as pescarias e andanças habituais de um jovem Ashaninka, com atividades de representante, acompanhando seu pai. Inicialmente, sua função era a de tradutor, e a de “ajudar nas coisas do barco”. Aos poucos, somando-se aí o trabalho na comunidade que muito lhe agradava, de “estruturar uma base interna para crescer politicamente”, Francisco foi ganhando uma grande experiência. Este trabalho interno rendeu um sistema de cooperativa estruturado, com uma consequente quebra da dependência dos patrões para abastecer a comunidade com mercadorias, e uma valorização da identidade de seu povo.

Em 2003, ano em que decidira partir pela primeira vez para morar fora de sua comunidade e dar continuidade ao trabalho de liderança, recebeu o convite para ocupar a direção da recém-criada Secretaria Especial dos Povos Indígenas – SEPI* do Estado do Acre. Francisco se orgulha de, após oito anos neste trabalho, ter conseguido “estruturar uma política e se relacionar com as comunidades indígenas, dizendo sim e não pra essas comunidades”. Afirma que gerou um certo descontentamento a opção pelo trabalho direto e em parceria com as comunidades, e também a prioridade por ações estruturantes em vez de atendimento indiscriminado a demandas pontuais. Hoje se prepara para, com mais este aprendizado, retornar ao trabalho junto a sua comunidade: “Eu viver

essa experiência toda, pra mim foi como se fosse ter acertado na loteria. A faculdade mais difícil que tinha que fazer eu consegui fazer aqui nestes 8 anos [no governo]. E consegui sair da comunidade pra vir viver, conviver com essas forças, com esses interesses, com essas estruturas, eu acho que eu vou sentir falta disso quando eu chegar na minha comunidade. Eu trabalhei muito pra honrar, pra orgulhar minha família, meu povo, esse estado. Eu fiz tudo pra que pudesse mostrar que os indígenas, do mesmo jeito que podem fazer errado, mal feito, tem indígenas que podem fazer certo. Trabalhei muito pra isso”.

Era o ano de 1963, num seringal chamado Xapuri, à beira do rio Tarauacá, quando nasceu, em meio aos “brancos”, uma criança indígena especial – porque viria

a se tornar símbolo de esperança para seu povo. Esperança de recuperar valores que se perderam no contato com o “outro”, e de fortalecer os laços culturais que unem o povo Huni Kuin (Kaxinawá).Joaquim Maná é seu nome. Importante

Joaquim maná

liderança da Terra Indígena Praia do Carapanã, ele dedica sua vida à educação, reconhecendo-a como ferramenta essencial para a resistência e auto-valorização dos povos indígenas. Lembrando a história do seu povo, Maná conta que, após o contato com o homem “branco”, alguns Huni Kuin – como foi o caso dos seus pais – permaneceram na região do rio Tarauacá, enquanto outros se dispersaram pelo Jordão, Humaitá, Envira e Purus. Por volta de 1975, o antropólogo Terri Valle de Aquino andou por esses rios trazendo a notícia da demarcação de uma

* Transformada, quando da mudança de governo em 2007, em Assessoria Especial dos Povos Indígenas, cargo que Francisco ocupa até hoje.

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terra na cabeceira do rio Jordão. Algumas famílias – como a de Maná – abandonaram os seringais onde viviam e foram para lá. No Jordão, Maná trabalhou durante anos no corte da seringa, e aprendeu outras profissões da floresta – como caçar, pescar e trabalhar no roçado. Seu primeiro contato com a escrita foi na própria aldeia, no final dos anos 1970, através de duas professoras enviadas pela Funai. Ficou cerca de duas semanas estudando, mas teve que abandonar as aulas para voltar ao corte da seringa, pois precisava ajudar seu pai a pagar uma dívida. Quando conseguiu voltar a estudar, a equipe já não estava lá. O período com as professoras foi curto, mas suficiente para provocar o povo e suas lideranças a pensar na importância dessa educação. Nestes anos, entre as décadas de 1970 e 1980, os indígenas viviam uma situação de lutas e conquistas pela demarcação de suas terras. Livrando-se dos patrões seringalistas, eles passariam a ser seus próprios gerentes, e então precisariam do conhecimento da escrita, especialmente para lidar com a compra e venda dos produtos que comercializavam.Da Comissão Pró-Índio (CPI) veio a proposta de uma formação de professores indígenas, em parceria com a Funai e a Secretaria de Educação. E foi nesse curso que Joaquim Maná tornou-se professor. Já envolvido com a área, Maná ingressou na licenciatura em Educação Indígena, no Mato Grosso, onde se formou em 2008. Depois, foi selecionado para cursar o Mestrado em Lingüística, na Universidade

de Brasília, atualmente em fase de finalização. Baseado nos estudos já existentes da teoria lingüística, e sem se desvincular da sua história e do seu povo, o projeto de Joaquim Maná consiste em analisar a língua do povo Huni Kuin – o Hatxa Kuin, ou “língua verdadeira”. Maná percebeu a necessidade de estudar e registrar essa língua, que aos poucos está se perdendo. Quando criança, ele observava que seu pai, em casa, falava sempre em Hatxa Kuin, mas quando estava com seringueiros ou outras pessoas que não entendiam, falava somente em português. Hoje este se constitui em um grande problema – como aponta Maná –, pois somente os mais velhos falam o Hatxa Kuin, enquanto os mais jovens falam português. “Se a gente não cria um espaço, a tendência da criança é aprender cada vez mais a língua portuguesa, e a nossa vai ficando pros velhos. E quando os velhos morrem não vai ter mais”, observa o professor. Mesmo diante dessa situação, Joaquim Maná não se dá por vencido, e acredita que ainda se pode recuperar a língua como identidade do seu povo. Por isso, com o trabalho que vem desenvolvendo, ele se propõe pensar em uma política para manter o Hatxa Kuin oral – talvez criando um curso específico, sem intervenção de outra cultura – e futuramente, quem sabe, elaborar ainda uma gramática, e até mesmo um dicionário. “Precisamos escrever, precisamos ler, precisamos pesquisar e precisamos produzir material para a gente continuar ensinando”, reflete Maná. Para ele, a educação indígena

ainda vai além, provocando a reflexão sobre importantes questões: “O que é a educação, não apenas de leitura e escrita? O que é educação para nós lidando com o conhecimento do povo? Como que a gente vivia? Como a gente está vivendo hoje? É possível construir alguma coisa que nosso povo fazia antes do contato, mesmo tendo esse contato?” Essas preocupações e a ligação

que Joaquim Maná tem com seu povo são tão fortes que, mesmo tendo vivido anos na cidade, ele tem a convicção de que é para os “parentes” que quer continuar se dedicando: “Eu só vou me sentir bem se eu estiver trabalhando com o meu povo. Que eu esteja na aldeia ou que esteja na cidade, mas eu vou me sentir bem trabalhando com o meu povo, porque é para fortalecer isso que eu estou batalhando”.

Joel Cordeiro de Lima, ou Joel Poyanawa, é cacique Puyanawa. Nasceu e cresceu no antigo seringal do Coronel Mâncio Lima, e recebeu a

mesma educação “totalmente do branco, não diferenciada” que seu pai, Mário Poyanawa*, recebera na escola criada pelos patrões. Joel viveu a infância no tempo em que os Puyanawa ainda viviam “a mercê dos patrões, e sem o direito à terra garantido”. Mas testemunhou também a geração de seu pai começar a mudar esta situação, com a luta pela terra, por autonomia, educação diferenciada e melhores condições de vida. Sua atuação na vida política da comunidade começou cedo. Filho do primeiro cacique dos Puyanawa, Joel aos 19 anos já assumia uma função de responsabilidade: presidente da

Joel Cordeiro de lima - “Joel Poyanawa”

Associação**. Esta surgira, nos anos 1990, num momento em que, além de reforçar a luta pela demarcação da terra, tornava-se necessário melhorar as condições de vida e de produção. Por meio da Associação foi possível implementar diferentes projetos, como o de demarcação participativa e o de mecanização dos roçado s***. Esta experiência de liderança foi acompanhada de duas outras: cacique e vereador. Recebeu de seu pai a “patente de cacique”, e foi escolhido pela comunidade para se candidatar a vereador nas eleições de 2000, no município que leva o nome do antigo patrão dos Puyanawa: Mâncio Lima. Já em terceiro mandato como vereador, tendo votações mais expressivas a cada eleição, e continuando à frente da Associação, Joel avalia que estas são atuações complementares, que contribuem para as conquistas materiais e simbólicas que os Puyanawa vêm conseguindo. “Eu fui colocado na

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Associação e na liderança. A cada 4 anos a gente presta contas do mandato, e a comunidade sempre tem me reelegido como presidente da Associação. E essas provas têm sido dadas, porque eu estou no terceiro mandato de vereador, a cada 4 anos tenho sido eleito. Então eu tenho feito um esforço pra defender meu povo, seu direito de estar ali bem, na comunidade. Isso pra mim é um desafio, aprendi toda essa experiência pelo meu pai, que acompanhei de perto seu trabalho, sempre tive perto em todos os momentos da sua vida, e ganhei com ele essa experiência. Ele tinha o sonho que era ver essa comunidade desenvolver o que tá desenvolvendo hoje”. Esse processo de organização política se vincula diretamente com uma dinâmica cultural, de valorização e resgate de suas raízes culturais. A conquista definitiva da terra, acompanhada da educação voltada para a língua e a cultura Puyanawa, levou este povo, após cerca de 90 anos sob o domínio do sistema seringalista que lhe negava a identidade indígena, a “botar a cultura pra fora”. “Aqui graças a deus a gente tem conseguido trabalhar bastante no termo conjunto e dar tranquilidade pro nosso povo, pra cada qual ter a sua liberdade, a sua autonomia e preservando as nossas matas, e garantindo nesse corredor a nossa cultura. Uma coisa forte, que tamo retomando ela. Por ter um pouco descaracterizado ela, não foi culpa nossa, foi a história, o que fez nascer assim não foi nós. Mas hoje nós temos uma cultura

viva, forte, renascida e transformada que nós podemos apresentar pra todos. Uma prova disso foi a capacidade de receber aqui os jogos olímpicos”. Os “jogos olímpicos” aos quais Joel se refere foram os I Jogos da Celebração, realizado conjuntamente com o V Encontro de Culturas Indígenas do Estado do Acre, que no ano de 2008 reuniu, no território Puyanawa, representantes de quase todas as etnias do Estado em uma celebração esportiva e cultural, e de afirmação do movimento indígena. Uma das formas pelas quais seu povo busca valorizar sua cultura é revivendo a espiritualidade por meio da Ayahuasca. Joel conta que atualmente já há muitos jovens e adultos da comunidades dedicados a esta prática, por meio da qual atualmente pesquisam e vivenciam o ser Puyanawa, fortalecendo o orgulho de serem indígenas e o sentimento de pertencimento a um povo. Espiritualidade e cultura conectadas em um povo que olha pro futuro com otimismo no fortalecimento de sua gente.

* Ver página 90 (entrevista com Mário Poyanawa) ** Associação Agro Extrativista Poyanawa Barão e Ipiranga – AAPBI *** O primeiro foi apoiado pelo PPTAL, subprograma do Programa Piloto para a Proteção das Florestas Tropicais do Brasil-PPG7, e capacitou os próprios Puyanawa a realizarem várias etapas do processo de demarcação de sua terra. O segundo projeto foi apoiado por outro subprograma do PPG7, o PDA e, com a compra de um trator, possibilitou a mecanização da produção e o fim das queimadas de floresta para produção de alimentos.

José Nogueira da Cruz, o Anchieta, é filho de um casamento de uma indígena do povo Shawãdawa [chamado também de Arara] com um

seringueiro. A união não foi bem aceita e, quando contava cinco anos, sua família deixou a colocação Mucuripe, no rio Tejo, onde nasceu. Sua mãe deixou suas “origens, sua cultura, seus avós” para viver com seu pai e os quatro irmãos fora da aldeia. Assentaram-se no Projeto Santa Luzia, às margens da BR-364, onde tiveram uma vida difícil, com as limitações impostas pelo difícil acesso, mas onde Anchieta teve a oportunidade de iniciar os estudos. Aos 17 anos, por conta de uma doença do pai, tiveram de mudar novamente, desta vez para Cruzeiro do Sul. Foi nesta cidade, em 1994, que recebeu um convite para atuar no movimento sindical, ocupando o cargo de primeiro secretário no Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Cruzeiro do Sul, à época com abrangência em quase todos os municípios recém-criados do vale do Juruá. Enfrentou questões como a luta contra o trabalho escravo e a luta pela garantia da terra. Após um trabalho forte nas bases, foi convidado a ser candidato a vereador em Porto Walter, cargo para o qual foi

José Nogueira da Cruz - “aNChieta”

eleito. Teve um mandato difícil, como único vereador de oposição. Foi isolado pelos vereadores de situação, e não conseguia encaminhar as demandas que trazia de sua base. Realizou um trabalho de investigação de irregularidades no setor da educação, e encontrou situações de desvio de recursos da merenda escolar. Lamenta que os processos por ele encaminhados tiveram andamento vagaroso na justiça. Aos poucos sua liderança política o levaria de encontro a suas raízes. Seus parentes o convidaram para auxiliá-los na representação do povo Shawãdawa, e uma nova militância se iniciou, paralelamente à sua atuação como político. Após duas derrotas eleitorais, em disputas para os cargos de vice-prefeito de Porto Walter e deputado estadual, optou por concentrar-se na atuação junto ao movimento indígena. Após uma visita à terra de seu povo e participar de uma reunião de vários dias, que incluiu uma caçada tradicional, foi escolhido como representante de seu povo junto à União das Nações Indígenas do Acre e Sul do Amazonas (UNI), para intermediar um convênio com a FUNASA, relativo à saúde indígena. “Eu me senti um pouco na obrigação de ajudar, contribuir, porque foi aí que eu entendi que a história, a vida da gente, às vezes tem uma história um pouco assim do nada, mas que tem um objetivo. [...] Foi

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negativo pro nosso povo a minha mãe ter saído, ter acompanhado um branco. Mas naquele momento passou a ser positivo, porque eu vim de fora, adquiri conhecimento e voltei pra contribuir com eles. E aí eles disseram: ‘tu é a pessoa que vai representar nós fora da terra’. Aqui dentro da terra indígena a gente conduz tudo, mas fora precisamos de alguém que faça a interlocução”. Anchieta presenciou a decadência daquela instituição representativa do movimento indígena, em meio a dívidas trabalhistas e denúncias de desvio de recursos. Mas ajudou a construir uma nova forma de articulação do movimento indígena, focado no fortalecimento das comunidades, por meio de ações diretas na base, princípios que diz terem norteado o trabalho de Francisco Piyãko à frente da Secretaria Especial dos Povos Indígenas. Sua militância segue nos dias de hoje, batalhando por alternativas de renda a partir da floresta e que não a destruam, pela valorização e resgate da cultura de seu povo, e para que os

investimentos públicos cheguem às comunidades de base. Isso, no entanto, com o mesmo olhar crítico do início. Por um lado, para a falta de sensibilidade na rígida aplicação das leis ambientais aos moradores da floresta. Por outro, para a vista grossa às vezes feita para denúncias de irregularidades nos planos de manejo madeireiro dos grandes proprietários. Anchieta fala com orgulho de sua identidade ao mesmo tempo indígena, seringueira e rural, e de sua luta no plural: “Eu sou questionado em alguns cantos, porque quando tem uma articulação, um debate da questão indígena, eu sou convidado a estar lá discutindo; quando tem um debate da questão rural eu tô lá. Aí o cara diz: ‘rapaz, o que tu é mermo?’. Aí eu digo: ‘meu irmão, eu tenho duas bandeiras, tá no sangue, não tem como esconder’. A minha mãe é de um povo que resistiu ao preconceito, a um massacre, e somos 600 índios hoje. É filha do povo Shawãdawa. [...] E a outra luta minha é de seringueiro e agricultor. Meu pai era seringueiro e hoje agricultor, e hoje cearense, então não dá pra esconder”.

Manoel Gomes Kaxinawá nasceu em 1961 no antigo Seringal Tamandaré, que hoje faz parte da Terra Indígena Kaxinawá Igarapé do

Manoel GoMes Kaxinawá - (Maná BaKe)

Caucho, localizada a 50 minutos de barco da cidade de Tarauacá. Mana Duabake, como é chamado na língua Hãtxa Kuin, do povo Huni Kuin, conta que desde cedo acompanhou seu pai no corte da seringa. Manoel foi alfabetizado numa escola que havia no antigo Seringal Macaca, e

lembra com saudade da fartura de caça, de peixes nos igarapés, e da variedade de frutas naquela época: “foi uma infância muito rica, que muitos parentes meus nunca vão ter”. Quando jovem, na década de 1970, chegou a trabalhar no corte da seringa “na diária pro patrão”, com o objetivo de adquirir produtos como sal, sabão, e tecidos para roupas, que haviam se tornado necessidades para os Huni Kuin, povo que já há algum tempo estava em contato com o sistema seringalista. Foi também neste período que vivenciou uma grande transformação ocorrida na região, a transformação de seringais em fazendas: “Quando a borracha começou a cair o preço, os seringalistas começaram a derrubar a floresta pra botar pasto; e eu trabalhei plantando capim pro gado. Eu lembro bem da minha juventude e da maltratação da floresta. Muitas coisas me lembro e tenho saudade e muita coisa nunca mais retornam”. Em meados da década de 1980, após ter vivido em diferentes localidades, Manoel participou de um curso de monitores indígenas de educação promovido pela Comissão Pró-Índio do Acre. Os caciques começaram a demandar que os próprios indígenas pudessem se tornar os professores nas aldeias. Era um momento de grande efervescência no movimento indígena, em que os professores indígenas se tornavam protagonistas da luta por direitos, sendo o principal deles a demarcação das terras. Quando concluiu o curso, em 1986, Manoel

foi convidado a se tornar o professor na Colônia 27, uma comunidade Huni Kuin bem próxima ao município de Tarauacá, que viria a ser demarcada como a menor Terra Indígena do Acre. Quatro dias depois de sua chegada se casou com Marlene [Ayani], filha do então cacique e atual pajé da comunidade, Afonsinho Manduca Mateus*. Após quatro anos como professor nesta comunidade, uma nova etapa em sua vida se iniciaria: participar da fundação da União das Nações Indígenas do Acre – UNI, e nela atuar como secretário por cerca de 12 anos, entre 1991 e 2002. Neste período viveu em Rio Branco e participou de diversas conquistas do movimento indígena, das quais destaca a demarcação das terras. A conquista deste direito foi fundamental para todo um processo de valorização cultural ganhar força: “A conquista da terra foi a conquista da vida de volta, a volta da nossa alma. Fazia 70 anos que a gente não fazia mais nossas festas tradicionais. A conquista da terra fez a gente parar e pensar que a gente não foi mais agredido pelo patrão, nem forçado a tirar seringa, a plantar campo... Começamos a parar, pensar, tomar fôlego, e lembrar dos nossos parentes do passado. A terra fez a gente ver que a gente tinha um valor, que não tava escrito em nenhum lugar, mas tava na memória. Com a terra, voltou o plantio do algodão e urucum. Se tá parado, voltar a contar história novamente, ensinar seus filhos, começar a pescar novamente, ensinar seus filhos a caçar novamente,

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botar roçado, lembrar das comidas do passado, que chegamos até a esconder comida por um tempo”.A UNI passou por dificuldades na administração de convênios para gestão de recursos destinado à saúde indígena, e foi fechada em 2003. No entanto, Manoel avalia que mesmo com o fim da entidade, “o povo indígena continua na luta”, o movimento está vivo “nas pessoas” e “nas aldeias”. Os desafios atuais giram em torno da gestão e sustentação das terras, para os quais se faz necessária a formação dos próprios indígenas para caminharem no sentido de sua autonomia. E nesta formação, emerge o diálogo de saberes tradicionais indígenas e saberes científicos/técnicos: “A luta de hoje é a luta da conscientização; fazer com que as próprias comunidades, as lideranças indígenas – professores, agentes de saúde, os pajés – se empenhem e façam seus trabalhos nas suas comunidades no pensamento de capacitar e qualificar

recursos humanos, valorizando pessoas, no sentido de formar no modo em geral, natural de cada povo, desde os técnicos em tecelagem, cerâmica, produção, plantio, mas também formando pessoas a nível de universidade [...]. Se a gente formar os nossos técnicos das nossas aldeias eles não vão embora, são pessoas que vão estar orientando, como professor, como alfabetizador; coisas que nós não tínhamos na nossa cultura do passado, mas que hoje são necessárias […]. Minha avaliação pro futuro, pra nós segurar nossa terra, segurar a nossa tradição, precisa disso! Não dá pra dizer: vamos só estudar pra ser mestre, ser técnico, sem lembrar da nossa realidade; vamos ter a nossa realidade, da nossa história, da nossa pintura, da nossa tecelagem, da nossa festa, da nossa língua, mas também tem que ter um conhecimento científico, universitário”.

*Ver entrevista na página 76

Yawa é um dos mais antigos habitantes do rio Gregório, no vale do rio Juruá, onde nasceu, cresceu, e vivenciou quase um século da história de seu povo, os Yawanawá, desde

o início do tempo do cativeiro até o presente. Foi batizado ainda menino pelos

Manoel Vicente carioca de Souza - “Yawa” (Yawanawa)

seus patrões seringalistas com o nome de Manoel Vicente Carioca de Souza, em homenagem a um tio deles. Herdou do avô paterno o nome de Waritane, mas era chamado por sua mãe de Yawarani. Em tempo mais recente, ao buscar se aposentar, foi batizado novamente por seu cunhado, o velho Inácio Brandão, líder dos Shanenawa, com o nome de Manoel Vicente Brandão Yawanawá.

Mesmo tendo nascido num período em que seu povo já havia sido “amansado”, sua memória remonta ao tempo das malocas, vivenciada por seu pai, João Grande, que foi índio “brabo” até os 20 anos. Conta com detalhes a história de como Ângelo Ferreira, antigo patrão, amansou um grande número de índios. Segundo Yawa, “nessa época, tava tudo emendado, Brasil e Peru”. Os peruanos se estabeleceram na região para extrair o caucho, espécie florestal que produz uma qualidade de borracha diferente da seringueira. Os “brabos” então passavam a visitar os acampamentos dos caucheiros, “pegavam as coisas, derrubavam a farinha, espatifavam tudo!”. Em resposta vinham as “correrias”: “iam atrás dos índios, até topar com a aldeia, e matava os índios”. Certo dia uma “índia cabocla” do grupo de seu pai andava pela mata e encontrou uma seringueira cortada, com a tigela encaixada, tirando leite. Escondeu os dois filhos que vinham com ela dentro de um pedaço de pau, de uma sapopema, e ficou na espreita. Quando o seringueiro chegou com o balde para recolher o látex, ela o agarrou por trás. No embate, as vestimentas da índia se rasgaram, e os dois acabaram fazendo sexo: “quem é que ia dispensar, né?”. Ele a levou junto dos dois filhos para o Seringal Kaxinawá, no rio Gregório, onde o seringueiro vivia. Lá os rapazes ganharam roupas, mercadorias e cresceram: “não eram mais brabo, não”. Com o auxílio dos dois, o seringalista amansou o restante da maloca: “esse Ângelo Ferreira chegava

tocando sanfona em riba da cabeça dele, trazendo muita coisa, muita mercadoria. Nesse meio tava meu pai, que viu ele amansando eles tudinho. Aí pronto, nem os brabos mataram mais os peruanos, nem os peruanos vieram também”. O povo Yawanawá até hoje habita o rio Gregório, desde 1984, como Terra Indígena Rio Gregório, a primeira a ser demarcada no estado do Acre. No entanto, muitos são descendente de vários povos da família linguística Pano que habitavam a região, até o momento em que ocorreu uma diáspora, quando da morte de um chefe, Pukarua: “nessa época do Pucaruá tinha Iscunawa, tinha Shawanawa, tinha Rununawa, tinha Yawanawá, tinha Shanenawa. Tudo ali junto, como uma cidade. Vivia tudo junto. Depois que Pucaruá morreu se espalharam, foram tudo embora, só ficou mesmo os Yawanawá”. Seus pais, Laura e João Grande, eram legítimos Yawanawá, mas morreram quando Yawa ainda era pequeno. Ele terminou de ser criado pelo velho Antônio Luís e por sua esposa, Dona Carmina, uma Katukina que por Yawa tinha muita estima. João Grande era pajé, e repassou muitos conhecimentos ao Velho Antônio Luís, que por sua vez repassou a Yawa. Antônio Luís era também um ótimo caçador, e foi com essa habilidade que “amansou os patrões”, na época os Cariocas, levando caça pra eles, conquistando sua confiança, estabelecendo uma relação amistosa e em melhores condições: “Antônio Luís era matador de caça, matava caça pra

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ele [Carioca]. Aí que ele ficou gostando”. Relação semelhante seria estabelecida por Yawa, já no tempo de outro patrão, Mário Félix: “Eu carregava até dinheiro do [rio] Tarauacá pro [rio] Gregório; eu levava mercadoria, de canoada […] eu comboiava, carregava borracha, levava mercadoria pros freguês, seringueiro, em tudo eu trabalhei, graças a Deus. Hoje eu tô velho assim, mas a minha confiança eu acho que é a mesma”. Um dos conhecimentos recebidos por Yawa foi o do Muká Rarê. O Muká é uma batata de sabor amargo, consumida por longos períodos em resguardo e em dieta, que tem poderes espirituais muito grandes. A primeira vez que mascou o Muká, orientado por Antônio Luís, foi quando seu filho Antônio estava preso, após ter matado um homem em vingança por uma facada que Yawa havia recebido após uma confusão numa festa de São João: “Yawa, nós não podemos fazer nada. Mas tem um jeito. Ele disse que Rarê é

forte, a promessa do Rarê vale […]. No meu sonho eu vi, daqui do meu coração, eu tava deitado assim. Num tem um negócio que chama arco-íris? Pois bem, mesmo jeitinho daquele arco-íris, saindo daqui meu peito, até Tarauacá, na prisão onde meu filho estava. […] Ele disse: ‘Espera que o Muká vai te ajudar’. De fato que foi mesmo, e ele foi solto”. Yawa diz ter “pensamento de cantor; de cantoria e de contar história”. De fato, Yawa e Tata, outro velho sábio Yawanawá ainda vivo, são referências para o processo de resgate cultural que seu povo vem realizando há alguns anos. Yawa é referência por guardar a sabedoria dos cantos, das rezas, entre outros conhecimentos. Reconhece que há um esforço dos mais jovens nesse resgate cultural, mas acredita que os mais jovens poderiam incorporar estes conhecimentos de uma maneira mais plena, com maior atenção aos tempos a serem respeitados em cada tradição.

Aos 66 anos, Mário Cordeiro de Lima, o Mário Poyanawa, é uma importante liderança do povo Puyanawa. Segundo as histórias dos antigos, seu povo veio

da folha. De folhas que caíram em uma

Mário Cordeiro de LiMa

capema de paxiubão, foram apodrecendo e viraram um sapinho preto, que foi reproduzindo e se espalhando. Em sua língua, puya significa sapo. Puyanawa, povo do sapo. Mas, afirma: “Puyanawa foi imposto depois. Nosso povo chama-se Pae uwa kubu. Pae, criado de folha, dentro daquela capema. uwakubu é irmandade junto; criou-se aquilo como

uma irmandade, como tudo irmão, umas coisas que geraram tudo num canto só”. Sua infância foi vivida no final da vida do Coronel Mâncio Lima, seringalista que “amansou”* os Puyanawa, durante muitos anos foi seu patrão, e que hoje empresta seu nome ao município onde se localiza a Terra Indígena Poyanawa**. Era um tempo muito difícil, em que “viviam subjugados, tudo que fazia era pros patrões”. Eles trabalhavam no corte da seringa e ficavam com pouco ou quase nada da renda gerada, e dispondo de reduzido tempo para se dedicarem a seus roçados e outras atividades produtivas. Após a morte do Coronel Mâncio, em 1950, “as coisas já foram maneirando, os índios já podiam brocar um roçado pra eles próprios, mas a produção [de borracha] era toda pro barracão”. O “vovô” – tratamento que dispensava ao Coronel Mâncio – costumava aconselhar o então garoto Mário a seguir o exemplo de seu pai, um índio trabalhador e de confiança, que sempre tinha crédito no barracão: “eu botava isso na cabeça... mas, coitado [do meu pai], só trabalhava pra ele [patrão]”. Foi este ambiente em que cresceu. Falar na língua indígena, praticar as danças e festas tradicionais era proibido. As crianças eram educadas na escola do seringal, totalmente voltada para a cultura dos não-índios. Em meados da década de 1970, com o sentimento de reverter a situação de exploração a que eram submetidos, Mário aceitou convite para participar de

um encontro que fundaria o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Cruzeiro do Sul, tendo sido, em seguida, escolhido como delegado do sindicato na comunidade. O primeiro embate com os patrões foi para fazer valer uma lei que determinava um teto de 20% no valor cobrado como “renda” pelo uso das estradas de seringa – uma espécie de imposto cobrado pelos patrões. No final dos anos 1980, teve também uma experiência liderando o movimento indígena do Rio Juruá, o que lhe permitiu ter contato com muitas lideranças indígenas e de trabalhadores rurais que lutavam por terra e melhores condições de vida. A luta pelo reconhecimento do território Poyanawa já estava em curso desde 1983, quando Terri Aquino e Macedo chegaram até lá, como fizeram em muitas outras terras indígenas: esclarecendo aos índios seus direitos territoriais originários, apoiando tanto nos processos burocráticos de demarcação quanto na mediação com os herdeiros dos antigos patrões, e também auxiliando na organização de sua produção autônoma por meio de cooperativas. Mário, como cacique, foi uma das principais lideranças deste processo entre os Puyanawa. Foi um longo caminho até a homologação definitiva da terra no ano de 2000, momento em que era recente a criação de uma Associação de seu povo***, para organizar a produção, implementar os projetos, e seguir em frente no resgate da cultura Puyanawa, na valorização de sua

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língua, suas danças, suas festas, seu jeito de ser. Um processo, do qual é orgulhoso, e cuja liderança foi repassada a seu filho Joel Poyanawa. “Estamos buscando aquilo que tava quase perdido, e estamos achando. Estamos recapitulando, falando aquilo que a gente não falava mais. O senhor chega na sala os alunos não dão ‘bom dia’ ou ‘boa tarde’, falam na língua. É assim. Tem ajudado muito isso aí, que é a nossa identidade, nossa cultura, nossa fala, nossa dança. Isso tá se fazendo agora. Tô feliz mesmo, a gente sabe que não é fácil, sabe que ninguém é igual, existe a desigualdade. Mas aqueles que tão com a gente tão praticando o que nem no passado estavam praticando. Nós estamos no caminho”.

Antônio Luis Batista de Macedo, ou simplesmente Txai Macedo, nasceu em 1952 numa colocação de seringa chamada Bagaceira, localizada

Antonio Luis BAtistA de MAcedo

no seringal Transvaal, rio Muru, na cidade de Tarauacá. Viveu uma infância “não muito saudável” em algumas colocações deste rio. Ainda pequeno, perdeu um irmão assassinado gratuitamente. Bem cedo também “começou a andar no roçado”, e a ajudar sua mãe e irmã em

algumas tarefas, carregando água, por exemplo. Aos oito anos, começou a andar com seu pai nas estradas de seringa, para aos 10 iniciar no ofício. Num dia, quando trabalhava no defumador, começou a chover. Tomando chuva, passou embaixo de uma árvore chamada Paumari – “Que se você passa embaixo dá febre”. Com o choque térmico, sofreu uma lesão, sua perna encolheu e chegou em casa aleijado. Esse problema foi curado com uma promessa feita por sua mãe a Santa Maria da Liberdade. Para pagar a promessa, Macedo aos 11 anos se juntou a uma romaria que varou em 11 dias até a sepultura da Santa, no rio de mesmo nome. Ainda criança, teria a oportunidade de viver com sua família por alguns anos na comunidade do Caucho, junto aos Kaxinawá. Experiência marcante em sua vida, que lhe permitiu desde pequeno conhecer os mistérios do cipó, da ayahuasca, e conhecer e respeitar a cultura indígena. Quando contava por volta de 14 anos de idade, mudou-se para a cidade de Tarauacá, onde passou a trabalhar como estivador para poder ajudar nas despesas de casa e pagar seus estudos. Mais tarde, recrutado pelo exército, teve a oportunidade de aprender o ofício de mecânico, ao qual se dedicou por alguns anos, e que o levaria ao caminho do indigenismo. “Foi através da mecânica que eu entrei no indigenismo. Já tinha uma relação com os indígenas em Tarauacá.

Fui pra FUNAI, quando o [sertanista] Carvalho chegou aqui, punido pela FUNAI, isolado pra cá, vindo de uma experiência de trabalho com Waimiri Atroari, no Amazonas. Porque pensavam que aqui não tinha índio. Ele foi descobrindo índios. O Carvalho precisava de um mecânico pra consertar uns tratores que a FUNAI tinha tomado na terra do Cabeça Branca, um grileiro que tomou muita terra na região de Boca do Acre, mas teve a má sorte de tentar tomar a terra dos Apurinã. Consertei os tratores, mas antes pedi 3 índios jovens pra me ajudarem no trabalho que eu tava fazendo. Capacitei os índios pra dirigir a máquina e operá-la. Quando voltei pra Rio Branco o Carvalho perguntou se eu queria ser indigenista. Eu não sabia o que era. Ele me explicou, deu as primeiras noções, e disse que o resto eu ia aprender na aldeia. Voltei pra onde tava, nos Apurinã do 45, depois no Camicuã, na BR 317. Me tornei indigenista, hoje tenho 35 anos de profissão”. Nestes 35 anos, Txai Macedo se tornou um parceiro dos povos indígenas do Acre e sul do Amazonas. Juntamente com outras pessoas importantes nesta história, como Txai Terri, contribuiu no processo de identificação das primeiras terras indígenas, e na conscientização dos indígenas acerca de seus direitos. Mas, como ele mesmo definiu, sua “vida é feita de belezas e desastres, belezas e desastres...”. Da FUNAI, ele, Terri, Meirelles e outros indigenistas foram expulsos duas vezes, por discordarem das orientações

*** Associação Agro Extrativista Poyanawa Barão e Ipiranga – AAPBI.

* “Amansar” significava trazer os índios que viviam em suas malocas na floresta, com seus costumes tradicionais, para o trabalho junto ao sistema seringalista. Seu Mário recorda a história de Napoleão, o chefe de uma parcela dos Puyanawa mais resistente ao contato, que foi “trazido” em 1913 para o trabalho junto ao barracão. Por não ter se adaptado, em 1916 resolveu fugir com seu grupo, e retornar às malocas na floresta. O coronel ordenou que os índios fossem trazidos de volta, mas que Napolão fosse morto por lá mesmo. Para os fugitivos capturados, “foi aí que o cativeiro aumentou mesmo; trabalhava de dia e noite, com chuva e tudo; deu um castigo bom nos índios, uma coisa terrivel”. ** Antigamente grafado com a letra “o”, Poyanawa, o nome deste povo passou a ser grafado como Puyanawa a partir do momento de retomada da cultura, a ser descrito abaixo e no relato de Joel Poyanawa (pg. 83), em que se verificou que não havia a letra “o” no alfabeto Puyanawa.Associação Agro Extrativista Poyanawa Barão e Ipiranga – AAPBI.

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e rumos do órgão, que iam contra os direitos indígenas. Da primeira vez que foi expulso, pôde se dedicar ao trabalho com agricultores, auxiliando-os a “conseguir crédito nos bancos, fundar associações, caixas agrícolas”. Seria readmitido na FUNAI por solicitação dos índios, mas os conflitos com a direção do órgão continuariam. Quando houve uma tentativa de separar entre índios aculturados e índios não-aculturados, diferenciando seus direitos, “os indigenistas que tinham vergonha não aceitavam”. Havia também um decreto pra transformar as terras indígenas em colônias indígenas. Esse grupo de indigenistas realizou um ato público em frente à FUNAI, e acabou sendo expulso do órgão novamente. Foi aí que outro importante capítulo de sua história se iniciou: a militância junto ao movimento dos seringueiros. Com a experiência da luta no indigenismo, Txai Macedo contribuiu na concepção das Reservas Extrativistas como uma área de uso coletivo, a exemplo das terras indígenas, tendo participação ativa na criação da primeira Reserva Extrativista, a do Alto Juruá. “Expulso da FUNAI, eu tava de presidente da Comissão Pró-Índio do Acre, fundada em 1979, uma das primeiras organizações do gênero. O Chico Mendes começou a correr atrás de mim, pra ajudar

no Conselho [Nacional dos Seringueiros], pra ajudar a criar as Reservas Extrativistas. Nem o Chico Mendes, nem o Osmarino, sabiam muito bem o que eram as reservas. O Wilson fazia os empates, depois o Chico começou a liderar esse processo de empates, fortalecimento dos sindicatos, fortalecimento das cooperativas também”.Outra contribuição importante do Txai Macedo foi na constituição da Aliança dos Povos da Floresta: “os índios, seringueiros, babaçueiros, castanheiros, não são inimigos; vivem nos mesmos igarapés, são explorados pelos mesmos patrões, explorados pela mesma balança”. Atuou também como coordenador do Conselho Nacional dos Seringueiros - CNS no vale do Juruá, “cedendo à vontade do Chico Mendes, por ter sido seringueiro quando criança”. Ajudou na organização desta regional do CNS, e contribuiu na formação de alguns sindicatos e de inúmeras associações comunitárias na região. Anistiado pela FUNAI na década de 1990, Macedo lá trabalha até os dias de hoje. Vê seus ânimos se renovarem com a perspectiva de reestruturação do órgão. Prepara-se para, em breve, mudar-se para instalar em Cruzeiro do Sul um escritório regional, junto a uma nova turma de concursados do órgão indigenista estatal.

Djacira Maia de Oliveira, a Dedê Maia, nasceu no ano de 1945 numa colônia em Rio Branco, onde hoje se localiza o bairro Abrahão Alab. A família de sua mãe

tem origem nordestina. Já seu pai, nascido no rio Iaco, era filho de um português com uma índia, “tirada da família ainda pequena numa correria”. Sua infância foi “com o pé no chão, subindo em árvore”, e desde então já tinha um “espírito de se aventurar”. Casou-se cedo, aos 18 anos, e aos 19 teve a primeira de seus 3 filhos. Com o marido mudou-se para o Rio de Janeiro, onde ficou pouco tempo: “meu espírito inquieto não conseguia aceitar esse destino decretado, ser esposa, cuidar dos filhos e ponto!”. De volta a Rio Branco, mesmo sofrendo com a distância dos filhos, retomou seus sonhos de trabalhar com educação, bastante inspirados pelo exemplo de sua mãe, professora Ester Maia que, juntamente com Hélio Khoury, foi pioneira da educação popular em Rio Branco, nos anos 1960. Como os sonhos de alguns jovens da época, os seus encontraram um varadouro de lutas para trilhar: o indigenismo. Após uma breve passagem

Djacira De Oliveira Maia - “DeDe Maia”

por Brasília, onde redescobriu o método Paulo Freire e complementou seus estudos em educação popular, aceitou o desafio proposto por Terri Aquino e outros: desenvolver trabalho junto aos Kaxinawá do rio Humaitá, aliando a alfabetização com a formação de uma cooperativa. A educação era estratégia fundamental do processo de emancipação dos povos indígenas em relação aos patrões seringalistas, pois contribuiria para que organizassem sua produção de borracha, além de lutar pelo direito à terra. Assim foi que, em 1978, embarcou sozinha para uma viagem de 4 meses que mudaria sua vida. Ao mesmo tempo Concita Maia e Kheila Diniz seguiriam para o Jordão, para desenvolver o mesmo trabalho com os Kaxinawá habitantes daquele rio. Muitas foram as dificuldades enfrentadas por Dedê. Os boatos se espalhavam feito rastilho de pólvora, na cidade de Tarauacá e nos rios por onde passou: “os boatos tinham força, tinham braço, tinham perna, as pessoas acreditavam mesmo”. Diziam que ela seria presa durante a subida para o Humaitá, estratégia de intimidação sobre a qual Terri já havia alertado. Após ter contraído uma leishmaniose e após muita luta contra a má vontade dos barqueiros, instruídos pelos patrões para dificultar sua subida, Dedê conseguiu chegar a seu destino.

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A dificuldade agora era a de reunir os Kaxinawá que viviam nos dois seringais da região, São Luiz e Oriente. O boato era que “a professora dos índios” na verdade “estava lá pra reunir todos os Kaxinawá, pra FUNAI vir de avião e soltar uma bomba neles”. Nesta viagem, Dedê fez de tudo um pouco. Além do trabalho como alfabetizadora e na organização da cooperativa, tornou-se referência para vários assuntos no dia-a-dia. Era procurada quando havia alguma questão de saúde, como o episódio em que um sobrinho de Vicente Sabóia, importante liderança, logo em seu primeiro dia no Humaitá a procurou com um anzol enganchado na mão: “ali eu percebi que seria médico, padre, tudo!”. Tinha também um papel político importante, como mediadora. Conseguiu reunir os Kaxinawá dos dois seringais, mas também conversou com os patrões, Bayma e Lessa, realizando um papel de negociação, uma “política da boa vizinhança”, importante passo para a transição para uma situação na qual os índios teriam sua terra garantida. Todo este trabalho indigenista, no início, era realizado de forma independente, sem apoio de governo, e com apoios conseguidos junto a empresários e

outros simpatizantes da causa indígena. Foi então, no ano de 1979, que surgiu a avaliação de que era necessário alguma forma de organização que desse respaldo a estas primeiras ações, que fortalecessem essa luta. Foi quando surgiu a Comissão Pró-Índio do Acre (CPI-AC). Dedê conta que no primeiro momento, em que o foco estava na luta pela terra, a CPI ainda funcionava de modo informal, na casa das pessoas, sem sede própria: “Éramos uma família, uma organização familiar”. Dedê viveu intensamente diversos momentos da organização, participando ativamente do programa de educação e formação dos professores. Já nos anos 2000, coordenou o projeto que criou o Centro de Documentação e Pesquisa Indígena, que funciona no Centro de Formação dos Povos da Floresta, o chamado “sítio da CPI”, na estrada transacreana. Hoje nos preparativos finais para a publicação de seu livro de memórias, “Viagens pelo rio do interior”, Dedê Maia vive em uma chácara distante 15 quilômetros do centro de Rio Branco. Lá gerencia um restaurante aos finais de semana e, paralelamente às atividades indigenistas que desenvolve no Governo do Estado, dedica-se à sua atual prioridade: ser avó.

Nascido no dia de São João de 1964, este uruguaio de Montevidéo se mudou com a família para o Rio de Janeiro em 1973 e se naturalizou brasileiro em 1988.

Mesmo morando no Brasil, manteve contato com os familiares de ascendência espanhola, da região da Galícia, que continuavam a viver no Uruguai. Relembra com carinho da relação que cultivou com seus avós nas visitas anuais à casa de praia que tinham na foz do rio da Prata, e do contato com a natureza nesta região, cercada por dunas e florestas de coníferas. Guarda “sentimentos e valores” muito fortes de sua raiz uruguaia. De sua infância e juventude no Rio, uma experiência marcante foi o ambiente multicultural no qual foi educado. Em casa o espanhol era o idioma para a comunicação cotidiana. Na Escola Americana, onde estudou, conviveu com pessoas de diversas partes do mundo e aprendeu outras línguas. Ainda na adolescência, vivida no bairro de São Conrado, vivenciou intensamente as caminhadas por trilhas nas matas e o contato com o mar, com o vento: “me perguntava porque a juventude tava atrás de carros e meninas, quando tinha tanta coisa ali daquela natureza pra ser descoberta”.

Marcelo Manuel Piedrafita iglesias

Aconselhado pelo pai, ingressou no curso economia, que poderia oferecer “bagagem política, de contexto, um campo aberto de possibilidades”. “Faltava gente”, no entanto, nesta disciplina acadêmica. Após concluir o curso e ter realizado uma longa viagem conhecendo um pouco da diversidade cultural do nordeste brasileiro, optou por iniciar, no ano de 1988, o mestrado em antropologia social no Museu Nacional, vinculado à Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Nesta instituição se aproximou das discussões sobre os grandes projetos de desenvolvimento para a Amazônia e, por intermédio do orientador João Pacheco de Oliveira, conheceu e iniciou uma parceria com Terri Valle de Aquino, cuja dissertação de mestrado já havia lido. Foi a partir deste encontro que começou a se desenhar sua vinda ao estado do Acre para iniciar estudos junto aos Kaxinawá [Huni Kuin] e outros povos indígenas. Terri dividiu com Marcelo todo seu material de campo, que se encontrava abrigado em um apartamento emprestado do dramaturgo acreano João das Neves. Terri, “sem saber porque”, confiou a Marcelo a chave do apartamento para que este organizasse o material, enquanto ele viajava ao Acre acompanhado do cantor Milton Nascimento. “O Terri sumiu no mundo, pra variar, por 3 meses. E eu mergulhei no material, sobretudo na parte

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da organização das cooperativas. Quando o Terri voltou ele ficou impressionado com o diálogo que passamos a ter. Ficou impressionado com o tanto que eu tinha mergulhado no material”. Daí por diante Marcelo iniciou uma história de pesquisa e parceria com os povos indígenas no Acre, que já dura 20 anos. Durante o mestrado esteve em campo neste Estado por duas vezes: a primeira por ocasião de uma avaliação do trabalho de formação das cooperativas que foi realizado pela Comissão Pró-Índio do Acre – CPI-AC, como alternativa produtiva para os indígenas que deixavam de trabalhar para os patrões seringalistas. E em seguida, para um segundo trabalho de campo, que ele mesmo financiou com o dinheiro ganho nesta consultoria. Foi um período de imersão não só na vida dos povos indígenas, como também em Rio Branco, entreposto fundamental para as incursões de campo no interior. Logo na primeira experiência de campo pode perceber que a relação entre pesquisador e povo pesquisado seria diferente daquela idealizada pelo antropólogo em formação: “Foi uma rodada por várias terras indígenas. Junto foi uma campanha de vacinação. Estivemos quase um mês em Tarauacá, com os agentes de saúde, organizando esse trabalho. O preconceito era forte ali. Esse contexto me fez desconstruir com qualquer idealização do indígena que eu pudesse ainda ter. Me fez entender meu duplo papel: além da avaliação em si, ao mesmo tempo me vi envolto em uma série

de relações ali de ajudar aposentados... Vacinamos em 16 seringais até chegar no Jordão. Demoramos dias e dias. Os índios começavam a se organizar. Passei pelo Caucho, pelo [Praia do] Carapanã, que nem era uma terra reconhecida. Finalmente chegamos ao Jordão, fomos muito bem recebidos, já indicados pelo Terri”. Em 1993 concluiu seu mestrado e seguiu o rumo depois confirmado em uma miração do cipó, da ayahuasca. Mudou-se para o Rio Branco, onde passou a trabalhar na Comissão Pró-Índio, que “é uma pedra fundamental do indigenismo não-estatal do Acre”. Marcelo enxerga esse momento como uma continuidade do trabalho iniciado por Terri na década de 1970, e sua “inserção no trabalho que faço até hoje, que é o monitoramento da situação da terra nessa região”. De fato, Marcelo desempenhou papel relevante na demarcação de várias terras indígenas, e na assessoria dos povos indígenas, em seus projetos desenvolvidos pelas associações comunitárias, e em seus inovadores processos de gestão territorial. No final dos anos 1990, no momento em que um governo de esquerda propunha estabelecer uma parceria com os povos indígenas, contingências familiares levaram Marcelo de volta ao Rio de Janeiro. De lá, continuou seu trabalho de assessoria e, em 2003, decidiu retomar os estudos, iniciando o doutorado no mesmo Museu Nacional. A partir

de um projeto inicial que pretendia contar a história secular dos Kaxinawá, o encontro com rico material histórico acerca da vida do cearense Felizardo Cerqueira o fez mudar de planos. Sua tese, recentemente premiada pela Associação Brasileira de Antropologia com a publicação na íntegra, revela o processo de “catequização” realizada por Felizardo, trazendo à tona, para além das imagens de “escravizador” dos índios, seu papel de intermediação entre o mundo dos índios e o dos seringais. Após concluir o doutorado,

retornou a Rio Branco, onde passou a trabalhar na Assessoria Especial dos Povos Indígenas, ao lado de Francisco Piyãko. Seu trabalho atual é o desdobramento do que iniciou há pouco mais de vinte anos. Marcelo segue com um minucioso trabalho de acompanhamento da situação das terras indígenas e políticas públicas no Acre, com especial atenção para as dinâmicas fronteiriças entre Brasil e Peru, e para a implementação de experiências de gestão territorial, sempre em parceria direta com as comunidades.

Terri Valle de Aquino é antropólogo, conhecido pelos índios do Acre como Txai Terri. Nasceu no sertão do Ceará, em um sítio cujo nome é simbólico da luta de

toda a sua vida: Liberdade. Seu nascimento ocorreu em meio a uma viagem de seus pais a sua terra de origem, mas estes já haviam migrado para o Acre nesta época. Seu pai havia trabalhado como soldado da borracha; sua mãe, filha de migrantes cearenses. Sua infância, que considera “a coisa mais bonita” de sua vida, foi vivida com intensidade e liberdade nos barrancos do rio Acre e nos igarapés que hoje estão no ambiente urbano de Rio

Terri Valle de aquino

Branco: “eu virava Rio Branco inteira”. Um marco em sua vida foi a morte repentina do pai, quando Terri ainda contava 12 anos de idade. Passou a “tomar mais gosto pelo estudo”, encarado como prioridade, a partir de uma insegurança com seu futuro. Em sua casa, no bairro Cadeia Velha, habitava uma verdadeira “família extensa”: sua mãe, irmãos, tios, primos, avós e agregados. Pessoa marcante neste ambiente era seu avô, Raimundo Gomes do Valle, um oficial de justiça, “figura meio folclórica”, que eventualmente levava um mendigo para almoçar em casa. Era uma figura generosa, de quem Terri revela ter herdado uma “maneira de trabalhar com as pessoas que ninguém dava importância”. Seu avô também seria o responsável por outro momento decisivo em sua

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vida. Importante apoiador do primeiro governador eleito do recém-criado Estado do Acre, José Augusto de Araújo, em vez de aceitar o emprego oferecido para um filho, seu avô pedira ao governador que conseguisse uma bolsa de estudos para o neto estudar fora. Assim foi que Terri embarcou, no início de 1963, para fazer o segundo grau no Rio de Janeiro, em um colégio jesuíta, o Colégio Anchieta, onde também residiu por 3 anos. Nesta cidade, onde revela ter experimentado a maior solidão de sua vida, tendo vivido “como um exilado, numa verdadeira experiência antropológica”, Terri cursou também a graduação na Escola de Sociologia e Política da PUC. Lá teria como colegas e amigos os, como ele, futuros antropólogos Alfredo Wagner e João Pacheco de Oliveira, a quem considera verdadeiros professores, pelos ensinamentos recebidos na convivência que tinham. Foi momento importante em sua formação política, de efervescência do movimento estudantil frente à repressão do governo militar. Momento de muita observação e aprendizado de algo muito importante para um antropólogo: “saber ouvir”. Suas primeiras experiências de trabalho de campo foram em favelas cariocas e no Maranhão, com religiosidades populares na baixada maranhense, com o boi bumbá. Ambas experiências que sedimentaram seu caminho na antropologia, que se consolidaria quando, após trancar o mestrado no Museu

Nacional, conseguiu, por intermédio do Professor Roberto Cardoso de Oliveira, uma bolsa de estudos numa primeira leva de estudantes do recém-criado Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de Brasília (UNB). Estudando em um departamento com predomínio dos estudos indígenas, seu caminho de volta ao Acre começou a se desenhar a partir de uma demanda do então governador do Acre, Geraldo Mesquita, para que a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) realizasse levantamentos sobre a situação dos índios deste estado. A FUNAI procurou o Departamento de Antropologia da UNB e, por indicação de seu orientador, Júlio Cezar Melatti, Terri – que já havia tido experiência de trabalho de campo junto aos Ticuna do Amazonas – embarcou para o Acre em meados da década de 1970 para realizar levantamentos da presença indígena nos rios Envira, Tarauacá e Jordão. Terri conheceu uma situação em que os indígenas estavam incorporados ao sistema seringalista em decadência e, em alguns casos, trabalhando como peões em fazendas que os “paulistas” estavam abrindo. Passou a desenvolver estudos a partir do prisma da “fricção interétnica” entre as sociedades indígenas e a sociedade envolvente, “essa coisa assim de entender o índio inserido na sociedade regional, na sociedade local, sabe? É uma sociologia, exatamente aquilo que eu sociólogo gostava também, só que uma sociologia micro”.

Logo seu trabalho acadêmico se entrelaçou a – e até mesmo fomentou – a luta política destes povos, primeiramente pela garantia de seus territórios. A experiência de trabalho com os Kaxinawá do Jordão, cuja liderança principal era o velho Suero Cerqueira Sales, forjou um “modelo de indigenismo” que se espalharia para outras regiões do Acre. Buscava-se a estruturação das “cooperativa indígenas”, que pudessem libertá-los da dependência econômica do sistema de aviamento praticado pelos patrões seringalistas. Buscava-se também educação e saúde nas aldeias, que respeitassem suas especificidades culturais. Esta luta esteve marcada por uma ênfase na autonomia e protagonismo dos indígenas. Fundamental neste processo foi o surgimento e consolidação da Comissão Pró-Índio do Acre, que Terri ajudou a fundar em 1979, juntamente com um grupo de ativistas “pró-índio”. Mesmo tendo ingressado em seguida na FUNAI, Terri sempre esteve presente nas ações dessa organização, esteio de um novo indigenismo que surgia. “De fato a política era não ficar assumindo o lugar do índio. Uma certa compreensão de que eu não era o protagonista dessa história. Eu era um aliado dos protagonistas dessa historia. Eu ia ajudá-los como mensageiro, como um passarinho que passa e que deixa em você coisas boas, coisas novas... Mas que não fica ali atrás do balcão, sabe? Sem nada pra resolver, que isso não é papel de passarinho, entendeu? Isso

não é papel de mensageiro. Não é papel nem de assessores, como se veio chamar depois. De certa forma, isso permeou todo o trabalho na Comissão Pró-Índio em termos de outros tipos de atividades que foram feitas. É essa coisa de dar autoria pro índio na educação indígena”. O trabalho de Txai Terri, fortemente vinculado à atuação política junto aos indígenas no Acre, acabou afastando-o da carreira acadêmica, em dois momentos. Primeiramente, ao optar por voltar ao Acre e seguir o trabalho no Jordão em parceria com Suero, deixou de lado uma oportunidade de trabalhar como professor na Universidade de Campinas. Em outra vez, ao ter as portas fechadas pelos então dirigentes da Universidade Federal do Acre, por não haver espaço naquela instituição para a “reforma agrária do índio”. Seu caminho profissional teria outros rumos. Por uma demanda do velho Suero, Terri seria contratado em 1979 pela FUNAI: “O Suero me botou dentro da FUNAI; de certa forma, eu devo a ele esse meu emprego, esse meu trabalho até hoje”. De lá pra cá muito se passou no indigenismo acreano, sempre com importante contribuição do Txai Terri. Grande parte das terras indígenas foi demarcada. O próprio movimento indígena, depois de um momento de força de organizações regionais representativas, desde a década de 1990 se transformou, e ganhou força nas aldeias, em associações locais, que organizam a vida no território. Os índios passaram a viver em um novo

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“tempo”: depois do “tempo dos direitos”, que veio com o início das primeiras conquistas políticas, veio o “tempo da cultura”, paralelamente ao surgimento do Governo da Floresta. Um tempo de afirmação dos valores culturais, da valorização das identidades indígenas, do orgulho de ser índio. O trabalho de Terri sempre contou com a importante mediação da rainha da floresta, a ayahuasca. Um importante “guia espiritual” de seu compromisso com os povos indígenas. Com essa força, hoje faz parte de uma importante missão, em parceria com o “Velho do Rio”, o sertanista Meirelles, que há vinte anos se dedica à política de proteção dos indígenas isolados, os “brabos”, que habitam a fronteira do Acre com o Peru, e nos dias de hoje resistem ao contato, vivendo no “tempo das malocas”. O trabalho que estão agora iniciando é de conversa com os povos (indígenas e não-indígenas) vizinhos dos “brabos”, incluindo-os na política de proteção desenvolvida pela FUNAI.

O próximo passo é a identificação de uma nova terra, destinada aos brabos, que conectará duas outras terras Kaxinawá, nos rios Jordão e Humaitá. “De certa forma estou fechando um ciclo da minha vida profissional. Eu comecei identificando duas terras, que hoje eu to fazendo uma identificação pra índios isolados, que vai realmente unir as duas terras que foi as primeiras que tão distantes pareciam uma da outra. Eu quero fechar isso com chave de ouro. Eu estou voltando pra trabalhar na FUNAI [em Brasília] de novo, pra fechar esse trabalho. Enfim, a gente fecha um para abrir outros, né? Do ponto de vista pessoal, eu quero mais é preparar terreno, pra quando virar espírito vagabundo, daqui há alguns anos mais. Espero que demore ainda. E também, mesmo saindo da FUNAI, aposentado, que eu possa voltar pro Acre de novo, possa continuar dando a minha contribuição. Porque o verdadeiro guerreiro é aquele que não para, que não para nunca. Que ele tá aí sempre. Claro que ele não vai estar com toda a sua fortaleza. Mas vai estar perto das pessoas”.

Vera Olinda Sena de Paiva nasceu no centro de Rio Branco, no tempo em que a vida nesta cidade era “uma extensão do seringal”. É filha

Vera Olinda Sena de PaiVa

de Odete Sena, nascida em seringal no rio Muru, e de Oscar Celestino de Paiva, saxofonista da banda da antiga Guarda Territorial do Acre. Em sua infância não “havia luz elétrica, televisão, mas muitas cantigas de roda, contação de estórias e brincadeiras tradicionais como a manja,

bandeirinha, 31 alerta, tamanquinho, comande e bom barqueiro”. A diferença para a vida no seringal era a existência de escolas e do mercado, mas este ainda com a maioria dos produtos regionais. Após ter estudado o segundo grau em Brasília, em 1983, aos 19 anos, ingressou no curso de Letras Vernáculo na Universidade Federal do Acre. Foi neste período que começou a desenvolver “um lado mais solidário” já despertado pela iniciação no movimento artístico, com a prática do teatro, que lhe revelaria a importância da valorização da “identidade própria, da essência”. No movimento estudantil consolidou seu engajamento em construir uma “sociedade melhor pra todo mundo, com base em valores de igualdade e justiça”, e a importância de abraçar uma causa, no seu caso, a “luta pró-índio”. “Quando eu entro na Comissão Pró-Índio do Acre [CPI-AC] é nesse contexto de salvar a floresta, garantir o direito dos moradores da floresta, muito ameaçados pelos seringalistas e fazendeiros. Era uma turma unida querendo mostrar pro mundo o valor da floresta, a importância de garantir direitos humanos, e com isso vem um laço social, psicológico, ambiental, que é manter a floresta em pé. Foi esse o contexto, eu era a mais novinha, me apaixonei pela história, e estou nisso até hoje”. A convite de Nieta Lindenberg Monte, no ano de 1985 passou a integrar o programa de educação da CPI-AC, que vinha desenvolvendo uma

experiência inovadora de formação de professores indígenas, fundamentada no fortalecimento do protagonismo indígena e na busca de sua autonomia, conceitos basilares do trabalho da entidade até os dias de hoje. Era a busca de uma educação que contribuísse positivamente com os indígenas nas relações com a sociedade envolvente, mas que respeitasse suas especificades culturais. Estas experiências de educação diferenciada se tornariam referência nacional. “Não dá pra trabalhar com os povos indígenas levando as bases da nossa sociedade para os povos indígenas. O trabalho teria sido um fracasso […]. Como você trabalha a alfabetização com povos que são de tradição oral e ágrafa? A delicadeza disso, de botar algo que é importante hoje, que é o letramento, que é uma ferramenta que favorece uma relação com a nossa sociedade, menos preconceituosa, de menor subordinação. Mas, ao mesmo tempo, é outra sociedade. Não é um jeito melhor ou pior. É um jeito diferente”. Apesar de considerar a sucessão das pessoas na CPI-AC como um processo dinâmico, Vera se considera parte de uma “segunda geração dos aliados dos povos indígenas”. Quando entrou, não era mais o momento do primeiro enfrentamento, das ameaças de morte. Já havia iniciado o reconhecimento das primeiras terras indígenas, e a discussão de então girava em torno de garantir “condições justas para os indígenas ocuparem estas terras”. Além do foco na educação, havia

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também o trabalho em projetos de saúde e cooperativismo, a partir dos mesmo princípios de fortalecimento das culturas indígenas. Vera vivenciou, nos anos 1990, um processo de profissionalização da atuação da CPI-AC, que transformou a qualidade e as condições do trabalho: “não dá pra varrer e fazer o cafezinho”. Diferentemente do início, em que não havia sede, e os recursos de projetos eram escassos, houve um aumento na infra-estrutura e na capacidade de gestão de novos projetos. Foi também um período com grande apoio da cooperação internacional, apoio este que diminuiu muito, na década seguinte, a partir da constatação das agências fomentadoras de que governos de origem popular teriam assumido o poder

nacional e regionalmente, instalando uma “institucionalidade”e que haveria maiores prioridades de cooperação em outras regiões do mundo. Integrando a equipe técnica há 25 anos, Vera Olinda avalia que uma grande virtude da Comissão Pró-Índio ao longo deste tempo for ter “trabalhado com recursos enxutos, com qualidade e impactos positivos na nossa sociedade e nas sociedades indígenas”. Houve grande êxito no diálogo com o Estado, e muitas ações iniciadas pela organização hoje se tornaram políticas públicas, como a formação de professores. No entanto, avalia que a cooperação entre organizações da sociedade civil e programas de governo pode se tornar mais regular.

Em 1909, o libanês Abrahim Farhat, de 25 anos, pobre e desempregado ouviu notícias sobre a borracha e rios de dinheiro

AbrAhim FArhAt – “Lhé”

que enriqueciam a todos que ousavam penetrar a Amazônia. Sem pensar duas vezes, deixou no Líbano a esposa Fátima, grávida, com Hechem na barriga, pegou um navio e três meses depois já vendia bananas em frente ao suntuoso Teatro Amazonas, de Manaus. No ano seguinte,

enfiou-se nas matas do Acre para vender panelas para os seringueiros. Transformado em arigó-libanês, carregava suas mercadorias num tabuleiro atravessando varadouros espinhentos e escorregadios abertos na mata bruta; fazia tanto barulho que o apelidaram de Abrahim Teco-Teco. Em poucos anos (1912), o tabuleiro se transformou na Casa Farhat, forte empreendimento comercial instalado no segundo distrito de Rio Branco. Abrahim passou anos sem voltar ao seu país. Acabou casando novamente, desta vez em Belém do Pará, com a portuguesa Adelina, com quem gerou três filhos: José, Alberto e Said Farhat. Os dois primeiros, quando crescidos viajaram para a terra do pai, o terceiro permaneceu no ex-Território do Acre até a década de 1940, chegando a ser nomeado prefeito de Brasiléia na fronteira com a Bolívia. Depois, foi para o Rio de Janeiro e chegou a ser ministro da ditadura militar (1964). No sentido contrário Hechem, filho de Abrahim com Fátima, veio do Líbano para tomar conta dos negócios da família em Rio Branco. Revelou-se um líder, sobretudo no meio da grande colônia árabe que se formara no Acre. Em 1941, rico e prestigiado, casou com Elza (Silvia Maluf Farhat), no Rio de Janeiro, colocando mais gente no mundo: além do Lhé (Abrahim), Nilza, Helena, Fátima, Léa, Jorge e Lúcia. Em 1952, Abrahim Teco-Teco deixou o Acre e foi viver com suas duas mulheres no Líbano, deixando a bem estruturada

Casa Farhat com Hechem, que plantaria raízes na terra de Chico Mendes. Aqui entra em cena o Abrahim Neto, braço direito do pai, fazendo diabrura ideológica. De fato, a loja humanisticamente se transformou na embaixada dos perseguidos: da Palestina, do Brasil militarizado, do Chile, de Cuba, do próprio Acre pós 1964. Sobretudo, das vítimas da bovinização a partir da década de 1970. Abrahim Neto nunca foi militante orgânico, desses de apelido clandestino, mas aprendeu com o avô e com o pai a ser solidário com as pessoas ameaçadas. Ouvia rádios de Havana, Moscou, Egito, acompanhava de perto as guerras do Oriente Médio e pregava (prega) os direitos Humanos. O pai o aconselhava: “Não se deixe levar pelo mundo do dinheiro”. Certa vez, ele indagou o significado de Lhé em árabe e o pai explicou: é a pessoa rica que não se mistura com a burguesia, prefere viver entre o povo. Ah, bem! Pois o Lhé se tornou um dos mais verdadeiros aliados dos povos da floresta. Faltavam espingardas e munição para os seringueiros? A Casa Farhat daria um jeito, mesmo sob suspeita da Polícia federal. Em 1978/79, o então vice-governador José Fernandes do Rego aceitou argumentos para autorizar empenho para compra de extintores de incêndio, provavelmente sabendo que a mercadoria era outra. E lá foram espingardas e cartuchos para a seringueirada em guerra com o grupo Bordon em Xapuri (Chico Mendes e seu primo Raimundo Barros levavam

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os paus de fogo). O governador Geraldo Mesquita (1975/1979) e seu sucessor, Joaquim Macedo, fariam vista grossa se soubessem dessas traquinagens. Afinal, saiam mais coisas da Casa Farhat: um motor Montgomery solicitado pelo cacique Alfredo Sueiro, dos kaxinawás do rio Jordão; alimentos para os hansenianos da Colônia Souza Araujo; dinheiro em espécie para o grupo musical Raízes, montado por uma garotada do colégio secundarista CERB; compra de papel e chumbo, despesas diversas com o jornal Varadouro; emergências do cineclube Aquiry e várias solicitações do Partido dos Trabalhadores que ele ajudou a criar. Hechem sabia do que o filho primogênito fazia em nome dos direitos

humanos e da democracia. Seu irmão Alberto, que era deputado do partido comunista no Líbano, fazia coisa mais arriscada por lá. Para Hechem, falecido em 1975, Lhé era um humanista, como ele próprio. Ah! O Lhé fica com os olhos vermelhos ao lembrar essas coisas. Foi o que ocorreu durante o depoimento que fez na Biblioteca da Floresta, dia 31 de maio de 2010, como parte do projeto Memória dos Velhos Sábios da Floresta. Vermelhos, mas não de saudade ou lamentação. O que bole com sua alma é a indiferença, o pouco caso ao tanto que a Casa Farhat representou e ainda representa, embora definhada, parecendo casa mal assombrada no segundo distrito de Rio Branco.

Elson MAlAZARTi DA silVEiRA

Elson Martins – como assina na imprensa – é jornalista. Foi um dos fundadores do jornal “O Varadouro”, editado em Rio Branco no período 1977/1981, tendo escrito uma das

maiores e melhores páginas da história da imprensa e do jornalismo alternativo brasileiro. Ao falar sobre o que guardava de mais remoto, em sua memória, a respeito de sua infância, começou se pronunciando

a respeito da percepção de sua consciência no mundo como sujeito, quando notou que toda sua família estava chorando a partida do irmão mais velho, que havia sido convocado pelo Exército para atuar na segunda guerra mundial. Naquela ocasião, ainda morava no seringal Nova Olinda, em Sena Madureira. Já com seis anos de idade, percebia que de certo modo não integrava aquele mundo. Ele explica porque, na labuta cotidiana na floresta, assistia diuturnamente as crianças de sua idade chegar à sede do seringal, onde seu

pai trabalhava, se comportando como se homens adultos fossem. Todos os apetrechos e comportamentos, que compunham os modos de ser seringueiro, tinham consigo. As indumentárias, o trato com os animais, o fumo precoce, o andar na mata, a condução da canoa que faziam com maestria, provocando o olhar admirado e questionador do pequeno Elson. Nestas circunstâncias se sentia um fora do ninho, por não ter o menor jeito para aquelas coisas. Mas o que não sabia naquele período era que desenvolveria outras habilidades que se escondiam noutras áreas. Compreensiva e contraditoriamente, quando foi enviado do seringal para estudar na cidade de Sena Madureira, por volta de 1949, no trajeto da viagem lenta da embarcação singrando o rio Yaco, a cada curva de rio se sentia retirado à força de seu mundo; ainda que estivesse sob a proteção de pessoas de sua confiança, sentia a mais profunda solidão e desamparo, que só a perda do espaço vital pode explicar. De Sena Madureira a Rio Branco, Belém, Macapá, Belo Horizonte, viajando e concretizando os sonhos construídos a partir das leituras de romances e obras de formação política, tudo transcorreu como num pulo. Como que da noite para o dia, vieram o despertar para o mundo junto com a consciência política, a formação intelectual, os amores, os sonhos e utopias. Em1964, como estudante em Belo Horizonte, Minas Gerais, a realidade

crua da vida, do período político pelo qual o país passava, era maior que sua capacidade de suportar, inerte, a tantas coisas acontecendo. O momento lhe exigia postura de enfrentamento. A partir daí se envolveu na militância política, mas ao mesmo tempo, preservou a independência de ações, discernindo o que era pura ideologia partidária, ação política e os princípios éticos que estavam na matriz de sua formação como ser humano. Transcorridos alguns episódios, afasta-se do perfil da militância política. Já com família constituída, aceita uma proposta promissora de trabalho em Rio Branco, para atuar como correspondente do jornal O Estado de S.Paulo. Isto ocorre na segunda metade dos anos 1970, período em que vai dedicar-se ainda à organização do jornal alternativo “Varadouro”. Sua permanência em Rio Branco perdurou até o início dos anos 1990, quando mais uma vez deslocou-se para Macapá. “Depois de longo e tenebroso inverno”, em 2003, retornou a Rio Branco, onde reside até a presente data. Elson atuou em diversas atividades, fez de tudo um pouco e como poucos, a exemplo do Pedro Malazarti [personagem da história], escapou das mais ardilosas armadilhas da vida. Domina com maestria todas as etapas da confecção de um jornal. É pessoa brilhante, inteligente, de raciocínio e caneta rápidos. É acima de tudo um apaixonado pela Amazônia e pelo seu Acre em particular.

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Paulo Klein

Natural de Bom Princípio – Rio Grande do Sul e descendente de alemães, Paulo Klein chegou à região Norte em 1978 motivado pela atuação dos movimentos sociais

ligados à Igreja Católica nesta região, como o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), que desenvolvia um projeto de afirmação das comunidades indígenas. Segundo Paulo Klein, naquele período era grande o esforço e a dedicação pela causa indígena, tanto das pessoas que moravam no Acre e região Amazônica, quanto das que vinham de outros estados ou países. Isso se devia ao fato de que muitas etnias, como Kaxinaua, Madija e outros, encontravam dificuldades para identificar-se e reconhecer as suas origens. Por isso, havia a necessidade de um trabalho direto com os povos naturais desta região a fim de que estes se percebessem como “autóctones da Amazônia” e, neste sentido, colaborou com os projetos do CIMI, principalmente no que ficou conhecido por “Operação Anchieta”. Primeiramente morou na região do rio Purus no estado do Amazonas, onde se dedicou aos trabalhos voltados ao povo Apurinã e comunidades de seringueiros. Devido a várias malárias, Paulo Klein teve

que parar com suas atividades junto a estas populações e, então, resolveu se mudar para o Acre, “isso lá por fevereiro ou março de 1980”. No estado acreano, continuou ligado ao movimento da Igreja Católica através da Prelazia do Purus e foi designado a morar em Xapuri na paróquia dirigida pelo Padre Destro, auxiliado pelos padres Luciano [Mazetti] e Cláudio [Avalone]. Neste momento de sua vida, Paulo Klein se dedicou a conhecer a Amazônia e a colaborar com a população que habitava nestes espaços de floresta. Com esta intenção, constituiu grupos de alfabetização nos seringais e foi ali que houve o encontro com Chico Mendes e o movimento dos seringueiros. Como “militante da metodologia de Paulo Freire”, Paulo Klein tinha convicção da importância das atividades dos círculos culturais e do diálogo na alfabetização. O respeito à realidade cultural, usos e costumes locais contribuíam não apenas para a educação escolar, mas, principalmente, para que houvesse um engajamento social na comunidade. Nesse contexto, o sindicato dos seringueiros foi se consolidando e líderes surgindo, como Chico Mendes, por exemplo, que na época já era vereador pelo recém formado Movimento Democrático, o MDB. Sendo assim, Paulo Klein esteve junto ao movimento dos seringueiros

desde seu início, participando de suas atividades e percebendo a geração de importantes noções norteadoras da luta social deste movimento, principalmente a noção de reserva extrativista. Num contexto de sérias ameaças e repressões policiais, os trabalhos continuaram em Xapuri até o final de 1982, quando houve a movimentação para a criação do Partido dos Trabalhadores (PT). Paulo Klein foi um dos primeiros filiados do PT no diretório municipal de Xapuri, onde participou de todo o movimento que buscava consolidar tal partido. Em 1983 mudou-se para Rio Branco, e continuou a luta política iniciada em Xapuri contribuindo com os militantes, principalmente com os líderes de quem tinha grande conhecimento e amizade. Sua casa continuou sendo freqüentada e, por vezes, local de paragem de Chico Mendes, Raimundo Barros e Pedro Rocha entre outros. Paralelamente à militância, Paulo Klein constituiu família em Rio Branco, casando-se com Raimunda Bezerra da Silva que também atuava junto aos movimentos sociais ligados à Igreja Católica. Além disso, entrou para o curso de Enfermagem na Universidade Federal do Acre (UFAC) e passou a trabalhar na saúde pública ainda estudante. Em 1989, foi aprovado em concurso para docente na UFAC e logo após, em 1993, fez, segundo ele, “algo que deveria ter feito muitos anos

antes”, o curso de Antropologia. Aliando a trajetória militante à acadêmica, Paulo Klein manteve seu compromisso com o trabalho comunitário social. Na entrevista em que Paulo Klein narrou suas experiências com os movimentos sociais da década de 1980, podemos definir a educação e a política como duas matrizes essenciais de sua luta. Em sua opinião, uma educação libertária constituiria também uma política libertadora. Se os educadores interagissem com a comunidade, conhecendo sua realidade e, a partir desse conhecimento da realidade, “cultuasse a ciência de transformação presente nos movimentos sociais”, a mudança social se concretizaria. Pelo menos assim foram concebidos vários movimentos em prol da alfabetização e da saúde no Acre, principais trabalhos em que Klein esteve envolvido. As mudanças ocorridas nestes setores contribuiriam para a luta contra o conservadorismo na política que, uma vez inovadora e libertadora, se reverteria em ações práticas para melhoria em todos os setores da sociedade, assim fechando um ciclo de transformação que poderia ser ininterrupto. Para Paulo Klein, se esse projeto libertador não se concretizou foi porque “o conservadorismo matou de cansaço algumas pessoas que tinham uma proposta inovadora”.

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Raimunda BezeRRa

Raimunda Bezerra da Silva Klein nasceu no seringal Porto Carlos no município de Brasiléia e lá viveu até os sete anos de idade, quando sua

família se mudou para Rio Branco no ano de 1949. Nesta época, conforme lembrou Raimunda, a cidade de Rio Branco “era pouco mais que uma vila” e, desta forma, ela pôde acompanhar muitas das mudanças e transformações da capital acreana: “eu vi Rio Branco virar uma cidade”. Das coisas daquela época, lembra bem a dificuldade de adaptação à cidade e as transformações ocorridas no cotidiano da família, uma vez que as diferenças entre o seringal e a urbe impunham novas experiências. Como seu pai era seringueiro, “não soube muito o que fazer na cidade” e acabou optando por morar na zona rural, espaço onde atualmente fica o Parque Zoobotânico da Universidade Federal do Acre. Para sua mãe, morar em Rio Branco foi a realização de um sonho, pois assim poderia participar das missas de natal e ver os barcos que aportavam no rio Acre. No entanto, o principal motivo da mudança da família fora a preocupação dos pais com o estudo dos filhos. Neste sentido, Raimunda valoriza muito a formação intelectual em sua história de vida e conta com orgulho as

dificuldades enfrentadas para concluir o 2º Grau na Escola Normal e a Faculdade de Letras, cursos que lhe possibilitaram a profissão de professora. “Essa foi minha profissão a vida inteira, ser professora, inicialmente ainda nas quatro primeiras séries, e no ensino fundamental, e depois, a vida inteira fui professora de português”. Paralelamente à sua vida profissional, Raimunda exercia trabalhos dentro das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) da Igreja Católica que, segundo ela, lapidaram seu censo de justiça e contribuíram para sua militância junto aos movimentos sociais e ao Centro de Defesa dos Direitos Humanos e Educação Popular do Acre (CDDHEP), fundado em 1979 pelo Arcebispo D. Moacyr Grechi. No CDDHEP atuou desde a sua fundação, exercendo várias vezes o cargo de coordenadora e vice-coordenadora. Neste espaço de luta pelos princípios de justiça social, se tornou uma referência de apoio e amparo a todos que, de alguma forma, lutavam para que uma mudança social fosse implantada. No CDDHEP, Raimunda encontrou um lugar para estudar e discutir justiça social na prática dos “princípios cristãos da Igreja Católica daquela época”, fins da década de 1970 e início da década de 1980. Naquele período, o CDDHEP se tornou um espaço de atendimento às pessoas que sofriam algum tipo

de opressão, principalmente aqueles advindos dos problemas agrários e das mudanças impostas pelos novos modelos econômicos. Sendo assim, Raimunda viveu intensamente o período de efervescência dos movimentos sociais do Acre, colaborando com a luta do movimento dos seringueiros e a defesa daqueles que tinham seus direitos violados, inclusive estrangeiros dos paises vizinhos. Esse período de militância marcou profundamente sua vida, pois ali fez os “amigos da vida inteira”. No meio dessas pessoas que lutavam, junto com ela, por melhores condições de vida e pela garantia dos direitos básicos do ser humano, conheceu Paulo Klein, com quem casou e constituiu família. A partir de então, seu lar foi muitas vezes o abrigo de líderes jurados de morte como Chico Mendes e Raimundo de

Barros, personagens célebres da luta dos seringueiros e seus amigos pessoais. Raimunda Bezerra lembra que quando os seringueiros vinham de Xapuri para Rio Branco naquele tempo, precisavam ficar dois ou três dias na capital “resolvendo os assuntos deles. Aí a gente dividia nossa casa com eles, com eles e os outros: o Raimundo, o Júlio. Um monte de gente do seringal sempre ficou muito tempo na nossa casa”. Ao dividir sua casa, Raimunda dividia também sua vida, contribuindo para uma história de luta que acabou se tornando um dos marcos da resistência popular acreana e da própria luta em defesa da Amazônia. Além disso, nunca se desligou das práticas em prol dos Direitos Humanos e é em nome desta causa que continua sua militância, lutando pelos direitos dos povos e pelo respeito à floresta Amazônica.

Julia Feitoza

A acreana Júlia Feitoza, 56 anos, historiadora e militante petista, é pessoa muito especial. Nasceu no seringal Bom Destino, na margem direita do

Rio Acre, e lá permaneceu, sem chance de estudar, até os 10 anos. Em 1964, o pai morreu de pneumonia e ela teve que se transferir com a mãe, Raimunda Feitoza, para Rio Branco, onde morava um tio que as acolheu. Sua irmã mais nova, porém, permaneceu no seringal por mais dois

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anos. A vida na cidade foi mais dura. A mãe precisou lavar e passar roupa para algumas famílias, e Júlia teve que ajudar. Mesmo assim, ela conseguiu estudar numa escola pública. Aos 13 anos, porém, saiu de casa porque a mãe casou de novo e o relacionamento com o padrasto não era nada bom. Júlia preferiu ir trabalhar como doméstica na casa de uma família que a levou para o Rio de Janeiro. A viagem aconteceu num avião da FAB utilizado para transporte de militares, com bancos metálicos laterais. Júlia teria cometido, então, seu primeiro ato clandestino: levou, numa caixa de papelão, o papagaio de estimação que trouxera do seringal. Para que a tripulação não o descobrisse, durante toda a viagem coçava a cabeça do animal para que não se revelasse. Pouco adiantou tanto cuidado: no apartamento em que ficou no Rio, o papagaio danou-se a cantarolar e falar, incomodando os vizinhos que exigiram que se desfizesse do animal. O Rio, contudo, lhe abriu um mundo novo, com pessoas que lhe ensinaram a escolher o caminho do bem. Fez o curso supletivo, aprendeu a costurar e a cozinhar, ganhou desenvoltura para atuar em movimentos sociais. Após 10 anos desse aprendizado, acompanhou a mesma família (que já chamava de sua) de volta ao Acre, onde concluiu o segundo grau e formou-se em História na UFAC. A partir daí sua vida foi intensa. Participou do movimento estudantil

e filiou-se ao clandestino PRC (Partido Revolucionário Comunista), que mais tarde trocaria pelo PT, onde é quadro expressivo. Atualmente, Júlia é assessora especial do governador Binho Marques (PT), e também ouvidora, desempenhando funções relacionadas ao atendimento de 40 mil famílias rurais que precisam ser inseridas no projeto de desenvolvimento do Acre conduzido pelo PT. Quando retornou do Rio, no início dos anos 1970, ela encontrou o Acre em ebulição social. Fazendeiros do sul e sudeste do país tinham comprado um terço das terras - antigos seringais - e tratavam de expulsar as famílias de seringueiros que viviam dentro. Os agressores tinham apoio federal para desmatar a floresta e plantar capim para criar boi, o que tornava a resistência dos seringueiros mais difícil. Ligada a movimentos da esquerda religiosa, aderiu aos grupos locais que combatiam o desmatamento e as expulsões a partir das Comunidades Eclesiais de Base, da Igreja do Acre e Purus. Fez concurso para o Ministério da Saúde e trabalhou na FUNABEN (Fundação Nacional do Menor) com adolescentes. Depois se juntou ao grupo que criou o Teatro Horta e se envolveu com a luta dos seringueiros. Conheceu o sindicalista Wilson Pinheiro, presidente dos Trabalhadores Rurais de Brasiléia assassinado em 21 de julho de 1980 (data do aniversário dela) a mando dos fazendeiros da região, e o líder Chico Mendes, de quem se tornou “companheira” nos embates em defesa da floresta.

O PRC e o PT foram os caminhos de sua luta política partidária. “A gente era do PRC e era do PT porque tínhamos o entendimento de que era possível fazer a revolução com o PRC e também transformar o PT num partido revolucionário”, diz. Mas não demorou a perceber que não havia condições objetivas no Brasil para fazer revolução. E por achar que o PT “era o que tinha de mais inovador rumo ao socialismo” rompeu com o PRC e ficou no partido que ajudou a criar no Acre, fazendo parte da primeira comissão provisória. Nessa altura da história (1979/1980) os seringueiros já estavam organizados em sindicatos e a luta com os fazendeiros tinha recrudescido. Circulou a notícia de que um grupo do qual participavam Chico Mendes, Raimundo Barros, Júlio Barbosa e Osmar Facundo, entre outros, todos do PRC, estariam organizando ações de guerrilha em Xapuri, o que Júlia desmente. Entretanto, a Polícia Federal prendeu Chico Mendes exigindo explicações. Testemunha privilegiada e protagonista de mudanças profundas ocorridas no estado nos últimos 30 anos, Júlia Feitoza acompanha, no atual governo,

quase em anonimato, os movimentos sociais e o trabalho das ONGs, e monitora a ação integrada de nove secretarias que busca a valorização da política ambiental do Governo da Floresta. Em longo depoimento ao projeto Memória dos Sábios da Floresta, disponível na íntegra na Biblioteca da Floresta, Júlia faz um alentado e histórico relato das discussões estaduais entre PRC, PT, PC do B e outras tendências de esquerda ligadas à igreja católica. Fala das dificuldades e conquistas enfrentadas pelo PT, que chegou ao poder com a eleição de Jorge Viana para a Prefeitura de Rio Branco, em 1992; depois para o Governo do Estado em 1998 e 2002; e desde então comanda uma ampla Frente Popular que acaba de ganhar (2010) mais quatro anos de governo. Ela declara com ideologia, experiência e simpatia cada vez mais raras nas diferentes escalas do poder público, que a luta do PT daquele tempo era mais ideológica e que hoje, se Chico Mendes estivesse vivo (foi assassinado em dezembro de 1988), o movimento dos seringueiros e todo o movimento popular do Acre poderia ter outro rumo.

Gomercindo Lopes Garcia rodriGues

Gomercindo Lopes Garcia Rodrigues, 51 anos, nasceu e cresceu em Mato Grosso do Sul. Formado em Agronomia pela

Universidade Federal de Dourados, ele veio para o Acre em 1983, se envolveu com a luta dos seringueiros, constituiu família e criou raízes tão fortes que nos anos 90 voltou para a universidade, e formou-se em Direito para ajudar a defender,

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também como advogado, os moradores da floresta. Filho de família humilde, ele conta que estudava e trabalhava durante o curso de Agronomia. E chegou a largar a faculdade por um ano, graças às dificuldades financeiras da família. “Recebi uma carta da minha mãe dizendo que tinha que tirar meus irmãos mais novos da escola pra poder vender salgadinhos, pra poder sobreviver. Aí eu mandei uma carta: deixa as crianças na escola”, lembra contando depois que nesse período trabalhou em uma cooperativa pela eletrificação rural e também como jornalista. O engajamento na militância começou ainda na faculdade, através do movimento estudantil. Ele foi um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT) em Mato Grosso do Sul e chegou a concorrer a deputado federal, pelo partido, em 1982. “Como eu tinha saído candidato pelo PT, não tinha emprego no governo pra mim. E aí o Gilberto Siqueira, a gente já se conhecia do movimento estudantil, disse: eu tô indo pro Acre, você não quer tentar a sorte lá?”, lembra. O primeiro trabalho no Acre foi dentro do Projeto Redenção, da Colonacre. Em pouco tempo, ele fez um concurso para a Emater, mas por questões políticas acabou desistindo e pedindo demissão. “Eu tinha juntado um dinheiro quando saí da Colonacre, aí eu comprei uma colônia dentro do Projeto de Assentamento Pedro Peixoto. Comprei a colônia e fui morar lá dentro, comecei a ser agricultor na área

que eu queria que fosse como agrônomo”. Nessa época, ele lembra que contou com a ajuda de amigos para sobreviver. Em 1986, Gomercindo Rodrigues foi convidado para uma reunião do Projeto Seringueiro, em Xapuri, para ajudar na avaliação das cooperativas. O encontro acabou com a decisão de fazer um levantamento das áreas, a partir da aplicação de um questionário. “Era a primeira vez que eu entrava na mata, levei rede pesada, muda de roupa, calça comprida, jeans. Depois eu aprendi que se leva uma muda pra caminhar, uma bermuda e uma camiseta pra dormir”, lembra. Nas matas, ele viu de perto a vida do seringueiro, aprendeu como andar na floresta e descobriu a riqueza da identidade cultural de seus moradores. Uma experiência que o levou à militância definitiva junto ao movimento – “O meu primeiro empate foi na Bordon” –, colaborando nas discussões que culminaram com a criação do Conselho Nacional dos Seringueiros, em 1985, e da Cooperativa Agroextrativista de Xapuri, a CAEX, em 1988. Gomercindo Rodrigues acompa-nhou a violência, a tensão das ameaças e a morte de companheiros de luta como Ivair Higino – “Ele tinha 26 anos quando foi assassinado e um filho com 38 dias de nascido” – e Chico Mendes, ambos assassinado em 1988. Dessa época, ele lembra que falavam da existência de uma lista com nomes de lideranças que

estavam marcadas para morrer: “Diziam que eu tava aí nela há muito tempo, mas a gente nunca viu essa lista”. E conta que chegou a ser vigiado quando morava ao lado da sede do CTA: “Eu abria a janela e tinha dois pistoleiros em frente. Se não tinham chegado, chegavam logo depois”. Para ele, a conquista mais importante do movimento foi a criação das reservas extrativistas. “Foi essa idéia que fez com que o movimento ganhasse repercussão no mundo, que fez o Chico [Mendes] ser o principal porta-voz e ter recebido os dois prêmios da Sociedade Para um Mundo Melhor e do Programa das Nações Unidas

para o Meio Ambiente. Esse é um grande legado dos seringueiros porque é uma idéia genuinamente dos seringueiros”. A vinda para o Acre, pelo visto, é definitiva. “Aqui eu estou bem, aqui eu aprendi quase tudo que eu sei, montei minha família e uma rede de amizade grande. Se não eu tivesse passado por toda aquela perseguição [política] eu não teria trabalhado com os seringueiros e talvez eu não tivesse viajado. Nunca pensei que ia aos EUA, à Itália, à Suíça, tudo isso eu fui por causa do meu trabalho com os seringueiros”.

Djalcir roDrigues Ferreira – “Pingo”

Ainda antes de nascer, Djalcir Rodrigues Ferreira já ficou conhecido como “Pingo”. O apelido foi fruto de uma friagem “daquelas de matar macaco”, que marcou

sua chegada ao mundo. Segundo a história que lhe foi contada pela parteira Iaiá, seu pai ligou o rádio e ouviu uma marchinha falando de um pinguim que saía do gelo balançando as penas. Então o apelido começou como “Pinguim”, e logo foi sendo adaptado. Mas apesar do codinome que lembra um animal típico dos gelos, sua mais intensa ligação é com a floresta e os

povos que nela vivem. Ele mesmo nasceu na mata, no seringal Bom Destino, onde seu pai - Djalma Ferreira - trabalhava como guarda livros. Nas mais remotas memórias da infância se misturam imagens, como a dos comboios de burros chegando ao barracão, os cheiros, como da lama quando o rio vazava, e os sons, como o ronco do macaco zogue e do capelão. Por volta dos cinco ou seis anos, Djalcir foi morar em Manaus. Ele conta, com o encanto de uma criança, que foi lá onde viu o primeiro “carrão”. Lá também iniciou seus estudos, aprendendo a ler e escrever. Voltou para o Acre oito anos depois, e novamente saiu do estado, dessa vez com destino a São Paulo, onde cursou a faculdade de Física na Pontifícia

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Manoel estébio Cunha CavalCante

Universidade Católica (PUC). Mas Djalcir não se deslumbrou com o mundo de fora, e optou por voltar ao seu estado natal para exercer sua profissão. Assim iniciou uma valiosa trajetória em prol dos seus conterrâneos, os povos da floresta. Começando como professor de escola tradicional, também passando pela Universidade, ele logo se envolveu com idéias que iam muito além das paredes de concreto de uma sala de aula. Juntamente com Binho Marques, que então trabalhava no Centro dos Trabalhadores da Amazônia (CTA), e Jorge Viana, à época presidente da Fundação de Tecnologia do Acre (FUNTAC), Pingo passou a integrar uma equipe que deveria formular uma proposta de formação dentro das Reservas Extrativistas. A necessidade de educação no interior da mata surgia também da luta dos seringueiros, que começavam a conquistar seus espaços definitivos com a implantação das Resex. Dessa idéia se desenhou o Projeto Seringueiro, uma inovadora proposta de educação, com uma pedagógica específica para a realidade das comunidades que vivem na floresta. Esse foi um dos grandes desafios enfrentados por Djalcir e a equipe do Projeto Seringueiro: se adaptar à realidade daquele povo. Tiveram que esquecer o padrão das escolas tradicionais e criar uma nova forma de educar, ajustando as aulas ao tempo dos seringueiros e ao tempo da

natureza, com as peculiaridades de cada lugar. Também se fez necessário criar cartilhas próprias para a educação dos seringueiros. Nas aulas, utilizar ferramentas que fazem parte do dia a dia deles, aliadas aos conhecimentos adquiridos na mata e à vivência dos seringueiros facilitava a compreensão das mais diversas disciplinas, desde que bem trabalhada pelo professor.Djalcir teve a oportunidade de experimentar na prática alguns conceitos de que já ouvira falar, como a transdisciplinaridade e a contextualização. Como forma de desfragmentar as disciplinas, ele, que de início era responsável pela parte de ciências e matemática, acabou passando pelas diversas áreas do conhecimento. E como a educação não pode se desprender da realidade, Djalcir acabou vivenciando e, de certa forma, se envolvendo nos conflitos de terra que então aconteciam no estado, cruzando em seu caminho com algumas das mais importantes lideranças do movimento socioambiental do Acre, como o seringueiro e sindicalista Chico Mendes. Ele chegou até mesmo a ir para o “campo de batalha” com os seringueiros, participando de empates como do Nova Esperança e do Boa Vista. E conta que não sentia medo, mas sim uma indigestão diante daquelas tantas situações de injustiça. Lembrando o pintor espanhol Pablo Picasso, que dizia que sua pintura era sua arma, Djalcir Ferreira aponta também a educação como uma importante

ferramenta para se fazer revolução. “Tem muitos tipos de arma: tem a metralhadora, tem fuzil, e tem, por exemplo, a arma do Picasso que era o pincel dele. Então a gente dando aula é outra arma, é o giz, é a caneta, essas coisas”, reflete o educador. Ainda hoje, mesmo já tendo se desvinculado do Projeto Seringueiro, Djalcir continua apontando a arma da educação em favor dos povos da floresta. Ele hoje trabalha com educação indígena,

com forte atuação no vale do Juruá. E seu grande desafio, como parte integrante do Governo do Estado, é encontrar uma nova linguagem de valorização da cultura da floresta, afirmando os conhecimentos tradicionais, onde a solidariedade é um valor instituído, onde se afirma o local e o regional, no caminho da produção não capitalista, em que não se mercantiliza a vida.

Manoel Estébio Cunha Cavalcante é cearense de Fortaleza, onde viveu a infância e juventude. Seu primeiro contato com movimentos sociais foi em grupos

de jovens da igreja católica e na Pastoral Operária, a partir de 1976. Ao conhecer a teologia da libertação, vislumbrou um caminho no qual poderia “combinar fé e ação”, e se tornou seminarista. Após quase ter entrado para a Congregação Franciscana dos Capuchinhos do Ceará, no ano de 1977 conheceu o Frei Heitor Turrini, da então Prelazia do Acre, que visitava seu estado em trabalho de animação vocacional. Frei Heitor apresentou um pouco da história do estado do Acre e da situação vivida pelos seringueiros na época, que estavam sendo expulsos de suas colocações. Aquilo o motivou a, após

terminar seu pré-noviciado e cumprir o serviço militar obrigatório, mudar-se para o Acre em fevereiro de 1980 e se juntar aos Servos de Maria. Sua chegada se deu em momento de “grande efervescência”: havia Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) em todos os bairros, colônias e seringais. Manoel acompanhava tanto os grupos de jovens da catedral de Rio Branco, quanto o trabalho pastoral dos padres nas colônias. Em 1981, após concluir o noviciado, foi para Xapuri realizar o pós-noviciado com os padres Cláudio Avalone* e Luciano, quando se envolveu diretamente com o movimento dos seringueiros. Havia um movimento de oposição à gestão do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri na época, ligada a João Maia, por conta de relações muito próximas com o governo, que “arrefeciam os ânimos” da luta sindical. Com o apoio das CEBs, esse movimento saiu vitorioso, e elegeu

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Dercy Teles** como a primeira mulher presidente de um sindicato rural na Amazônia. A gestão de Dercy contribuiu para quebrar a hegemonia masculina do movimento dos seringueiros, na medida em que ela brigava para que as mulheres – que era maioria das monitoras das CEBs, mas era minoria dos delegados de base do sindicato – pudessem participar das deliberações e decisões políticas. Manuel se apaixonou por Dercy e com ela casou, deixando a igreja, mas continuou a atuação de base. Trabalhando diretamente nas colocações, participou do início dos trabalhos de educação popular com os seringueiros, e da constituição do Projeto Seringueiro. Conta que este projeto surgiu da experiência de educação popular trazida pelo indigenista Ronaldo Oliveira, de inspiração na obra de Roberto Freire. Com o aporte metodológico trazido pela antropóloga Mary Alegretti*** , e o trabalho de muitas outras pessoas, o projeto passou a realizar, a partir de 1981, a alfabetização e educação dos seringueiros a partir de sua realidade local, de maneira articulada com uma atenção à saúde e uma perspectiva de construção de cooperativas que pudessem oferecer uma autonomia econômica. Um passo para a institucionalização deste projeto foi a criação, em 1983, do Centro dos Trabalhadores da Amazônia (CTA)**** , do qual Manoel fez parte. O movimento seguiu em sua luta, ampliando a consciência “de que os seringueiros tinham direitos”, a partir de um forte lastro

na educação para a formação política das lideranças. Com a criação do Conselho Nacional dos Seringueiros, em 1986, progressivamente foi ganhando força um “viés ambientalista” na luta, a partir do fato de que, ao lutar contra a abertura de fazendas, que ameaçava o modo de vida e a sobrevivência do seringueiro, também se lutava pela preservação da floresta. Esse diálogo com o ambientalismo tornou possível a criação da figura jurídica da Reserva Extrativista, uma forma de reconhecimento territorial fundada em uma concepção coletiva do território, a exemplo das terras indígenas e nelas parcialmente inspiradas. Manoel analisa, no entanto, que a luta do seringueiro “era um ambientalismo, mas era muito maior, não era só isso”. Em sua avaliação, o ambientalismo “não se sedimentou nas lideranças. O que era sólido era a formação política anterior. O discurso ambientalista não foi suficiente para manter o nível de mobilização e consciência. Percebo isso hoje com certa tristeza”. Constata também, olhando para a situação atual das reservas extrativistas, que foi insuficiente o investimento para a viabilização de uma economia voltada para produtos da floresta que, juntamente com a borracha e a castanha, pudessem assegurar a sobrevivência do seringueiro e da floresta. “À mercê da economia do boi”, muitos passaram a converter seus roçados em campos. Da educação popular dos

seringueiros, há alguns anos passou a trabalhar com a educação indígena. Hoje vivendo em Cruzeiro do Sul, onde até bem pouco tempo atuava na gerência indígena da Secretaria de Educação, Manoel Estébio ressalta que há limites no processo de transformação da educação popular em política pública, sobretudo na dificuldade de incorporação dos aspectos de formação crítica, educação cidadã e criativa na educação pública.Mas não perde o otimismo na capacidade transformadora do trabalho em educação junto aos povos da floresta: “Acredito na educação não como reprodutora, mas como transformadora do status quo. Trabalhando com grupos marginalizados como os seringueiros e agora os índios, a

gente tem possibilidade de, numa relação dialógica, construir o novo, construir o diferente. É por isso que, mesmo com críticas, estou com otimismo e feliz sendo educador”.

*Segundo Manoel, padre Cláudio Avalone foi um dos principais responsáveis pela formação das lideranças do movimento, a partir da perspectiva da teologia da libertação, uma formação baseada na teologia cristã e no materialismo histórico, na sociologia marxista. **Ver texto sobre Dercy Teles na página 43.***Ver texto sobre Mary Alegretti na página 126.****Até então, o Projeto Seringueiro contava com instituições parceiras como o Centro de Documentação e Pesquisa da Amazônia (CEDOP) e até um grupo de teatro para receber os financiamentos obtidos junto a instituições como a OXFAM da Inglaterra.

Ademir PereirA rodrigues

Ademir Pereira Rodrigues nasceu em Xapuri, filho de um nordestino com uma amazonense e viveu sua primeira infância na localidade hoje conhecida como

Sibéria. Lá, viveu até os doze anos, quando seguiu com sua família para o seringal Nazaré. Foi lá que iniciou os primeiros passos no corte da seringa. Na década de 1970, retornaram para o Sibéria tendo tido a oportunidade de estudar até a 5ª série. Aprendeu o ofício de carpinteiro e, sempre que podia, ia trabalhar na construção de

casas nas colônias e seringais da região. Foi no exercício dessa profissão que Ademir ajudou a construir uma escola, que na verdade era, segundo ele, “uma casinha coberta de palha, com bancos de paxiúba”. A primeira vez que ouviu falar no Projeto Seringueiro foi quando, em uma tarde de sábado do ano de 1981, recebeu a visita de Chico Mendes e Mary Allegretti falando sobre “uma história de escola para seringueiro, educação para seringueiro”. Um ano depois, foram feitas reuniões, relações das pessoas que tinham interesse em estudar, e em 1983 aquela escola que Ademir construiu começou a

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funcionar. No primeiro treinamento para a equipe do Projeto, Ademir foi convidado a auxiliar um dos monitores, desenvolvendo as primeiras atividades junto aos alunos. Participou também do treinamento seguinte, até que foi convidado pela equipe de educação do Projeto Seringueiro para ser professor. Em uma entrevista emocionante, que traz o relato de alguém totalmente engajado com as práticas educativas no âmbito do Projeto Seringueiro, Ademir conta que iniciou sua participação no processo de educação nos seringais em Xapuri como voluntário, pois mantinha boas relações com as pessoas da comunidade. Além disso, em seu relato afirmou que “sempre gostei de seringal, gostei do mato, me sinto muito à vontade lá”. A partir daí, guarda em seu currículo um histórico de dedicação de metade de sua vida ao Projeto Seringueiro. E foram inúmeros os trabalhos desenvolvidos por este educador, que ajudou a construir escolas, trabalhou como voluntário, foi professor e após alguns anos de experiência, passou a desempenhar atividades de acompanhamento pedagógico junto aos professores. As lembranças dos primeiros trabalhos são inúmeras, mas uma aflora com o processo de rememorar muito rapidamente, e diz respeito às viagens: “A gente viajava dois dias de barco, deixava o barco, depois viajava mais um dia a pé pra chegar em uma escola. Era muito difícil mesmo. Quando nós chegava lá que via a

satisfação daquela comunidade querendo estudar, aprender, a gente esquecia todo o sofrimento e se dedicava assim de braços abertos pra tentar apoiar aquele pessoal da melhor forma possível”, relembra Ademir. Ao falar sobre o porquê desse movimento de educação nos seringais, Ademir afirma ter partido do Chico Mendes, que defendia que “a necessidade era porque os seringueiros sempre produziram borracha, castanha e outras atividades de cultura familiar, e quando eles iam vender as produções deles, eram muitos explorados, os patrões e marreteiros roubavam deles, porque eles não sabiam ler, não sabiam escrever, não sabiam contar [...]. E o que acontecia era que, ao vender a produção pro marreteiro ou pro patrão, o patrão podia muito bem enganar ele no peso, na hora que ele ia pesar a produção dele, podia roubar que ele não ia saber, ia mostrar a conta pra ele mas ele não ia saber ler pra saber o que era aquilo. Quando ia vender mercadoria da mesma forma [...]. Então, o Chico achava importante que existissem escolas e que algumas pessoas fossem alfabetizadas, que era pra eles poderem se livrar dessa situação. Por outro lado tinham a idéia da cooperativa de seringueiros, mas essa cooperativa precisava alguém gerenciar [...] e era necessário também que o seringueiro se alfabetizasse pra administrar suas próprias fontes de negociações”. Fala, com orgulho, de ter participado desse projeto que levou e ainda hoje leva educação para os seringais em Xapuri.

Padre Paulino

Ele acorda às 4h30 para orar. Entre 6 e 7 horas, reza missa na Igreja, e das 7 ao meio dia atende a 80 pessoas que o procuram como médico da floresta [ele

produziu o livrinho “Medicina da Floresta – Fonte de Vida”, já em segunda edição, com receitas para o tratamento de mais de 150 doenças através de ervas e folhas]. Após o almoço, costuma descansar até as 14 horas, mas logo sai em visita às famílias egressas dos seringais, que enfrentam vida difícil na cidade. E à noite, ainda mantém um programa de rádio com mensagens religiosas e sociais. Quem o vê assim, pequeno e franzino, aos 84 anos, cumprindo esse ritual na cidade de Sena Madureira, no Acre, não imagina de onde retira tanta energia. Ao conhecer sua história, entretanto, compreende que isso até representa um descanso, comparado à dureza que enfrenta nos seringais da região há 50 anos, como aliado preferencial dos povos da floresta. Estamos falando do padre Paolino Maria Baldassari, da Congregação Servos de Maria, vigário da Paróquia Nossa Senhora da Conceição em Sena Madureira desde 1963. Nascido a 2 de abril de 1926 em Quinzano-Loiano, Bologna, Itália, da

união do pedreiro Arturo com a agricultora Angelina Zanari, Paolino não gostava de estudar. Isso desapontava o pai, que passou a empregá-lo como auxiliar de pedreiro, enquanto a mãe o iniciava na agricultura. Um dia, quando influenciado por um amigo disse que queria ser padre, o pai reagiu: “Você vai me envergonhar. Para ser padre é preciso estudar, e você não gosta dos estudos”! Na verdade, o que Paolino não gostava era do rigor da escola que freqüentava em Quinzano-Loiano. De uma só vez, lembra, levou 70 bofetadas da professora de matemática, porque não soube responder, corretamente, a perguntas da tabuada. No Seminário da Ordem dos Servos de Maria, que apesar da descrença passou a freqüentar, aprendeu com facilidade teologia, línguas e até matemática. Durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) o jovem seminarista se viu em apuros ao procurar fugir do alistamento nas forças armadas italianas que apoiavam Adolf Hitler, preferindo juntar-se às forças aliadas contra o nazismo. Na confusão, foi considerado desertor e correu o risco de ser fuzilado por soldados alemães. Após a Segunda Guerra, surgiu em 1951 a oportunidade de vir para o Brasil. Paolino viveu quatro anos em São Paulo, freqüentando o Seminário Maior dos

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secularmente desassistidas pelo poder público; e freqüentemente ameaçadas por aventureiros que ambicionam suas terras.Os dois se conhecem desde Bolônia, na Itália, onde nasceram e estudaram no seminário da Ordem dos Servos de Maria. Após a Segunda Guerra Mundial, viajaram juntos para o Brasil e, alguns anos depois, para a Amazônia. Hoje (dezembro de 2010) ambos estão com 84 anos de idade, mas as semelhanças terminam aí: Heitor não usa batina como seu amigo, nem é tão baixo e franzino. Na verdade, tem corpo de atleta, o que sempre foi além de religioso, como piloto de avião, pára-quedista e surfista. A ele cabe, quando não entre seus amigos seringueiros, a árdua missão de percorrer gabinetes políticos e governamentais e também as redações de jornais, para levar reivindicações de seu povo ou cobrar providências que são demandadas pelas comunidades. Em outras ocasiões, caminha com os seringueiros no enfrentamento com pessoas cujas atitudes representam ameaça, para as comunidades da floresta e para o próprio meio ambiente. Em 2008, Heitor Turrini fez barulho e colocou no livro “A Amazônia que não conhecemos” uma proposta radical: quer que o governo brasileiro estabeleça uma moratória pelo tempo de 10 anos, impedindo qualquer desmatamento na Amazônia.

Servos de Maria para aprofundar seus estudos em Teologia. Também aprendeu cinco idiomas, depois foi professor em Santa Catarina. Em 1954, veio para a Amazônia. Começou como missionário em Boca do Acre, onde decidiu estudar medicina por conta própria. A profissão era proibida aos padres, mesmo assim, ele comprou livros em Manaus e contou com a ajuda de um médico amigo para tirar dúvidas. Esse aprendizado lhe valeu muito ao ser transferido para o Acre, e em 1958 iniciou a missão de padre em Brasiléia, na fronteira com a Bolívia. A viagem de Rio Branco até o município foi assustadora. Ele acabara de pegar a primeira das 84 malárias que sofreu até recentemente, e teve que seguir pela mata, montado num burro, chegando a se perder na noite e no atoleiro. Os fiéis que o aguardavam já temiam que tivesse sido comido por uma onça. Passado o susto, conquistou a comunidade com a ajuda de uma harmônica que tocava desde criança. Em pouco tempo, com desprendimento, coragem e energia ergueu uma nova igreja e se adaptou à vida na floresta. Transferido novamente, desta vez para Sena Madureira, em 1963, Paolino Baldassari se transformou numa lenda: além de padre e médico [autodidata],

atua há 47 anos como ativista político, assistente social e incansável ambientalista defendendo com unhas e dentes a floresta acreana, seus animais e seu povo. Nos anos 1970, sobretudo, colocou sua vida e a força da igreja em defesa dos índios e das famílias de seringueiros ameaçados pela frente agropecuária que comprou os seringais com planos e recursos para desmatar a floresta e criar boi. Paolino tomou partido dos ameaçados, enfrentou grileiros e jagunços, e chegou a ser afastado de sua igreja por conta de denúncias feitas à Fundação Nacional do Índio e ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária. Enquanto o desmatamento e o fogo avançavam, ele inaugurava escolas nos seringais e transformava sua igreja num quartel da resistência, com consultório médico. A Universidade Federal do Acre lhe outorgou o titulo de Doutor Honoris Causa.(2004) e o Governo do Acre o condecorou com a Ordem da Estrela do Acre, no grau de Grande Oficial(2007). Paolino recebeu também o prêmio Chico Mendes, entre muitas outras medalhas e condecorações. As homenagens, ele as dedica sempre ao povo da Amazônia que o acolheu, para quem trabalha inspirado nas palavras de Jesus Cristo: “Eu vim para que todos tenham vida e a tenham em abundância”.

Frei Heitor

Recentemente, ele idealizou e patrocinou o lançamento do extraordinário livro “A Amazônia que não conhecemos”. Por isso, ao iniciar a entrevista fizemos esta pergunta:

“O que devemos fazer para conhecer a Amazônia que o senhor defende com entusiasmo”? - ao que ele respondeu, em tom arrebatado: - A maneira de conhecer a Amazônia é estar na Amazônia, é entrar na mata, é estar com a gente, é estar com os índios, sentir os problemas deles, sentir o problema da floresta. Não é apenas ver algo bonito; é preciso ver ou sentir tudo. Lá tem uma alma, lá tem uma divindade, lá tem uma coisa tremenda que é infinita e que é quase impossível o olho humano ver. As raízes, todas as árvores uma perto da outra... Porque se encantam e se amam, fazem um divino namoro que conserva uma Amazônia sempre limpa e perfumada. É uma coisa fantástica. O Frei Heitor Turrini fala com conhecimento de causa. Ele vive há mais de 40 anos na floresta de Sena Madureira, no Acre, dividindo com o padre Paolino Baldassari as atividades e responsabilidades da Igreja Católica. Passa meses em desobriga nos seringais, nos altos rios e no adentrado da mata, socorrendo espiritual e materialmente famílias de seringueiros

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- Nós estamos pedindo com todas as energias, declarou, um jubileu para a floresta. Na Bíblia se pedia o jubileu para o povo que, depois de 50 anos, teve suas terras de volta. Hoje temos medo dessas coisas. Hoje, no lugar de voltar até o antigo dono, procuramos dobrar a terra ou triplicar a terra para uma só pessoa. Perdemos o sentido do amor à natureza e perdemos o sentido do amor ao homem. Ele lembra que um só fazendeiro expulsou 48 famílias da floresta de Sena Madureira, de um seringal localizado a 11 km da cidade. Hoje, tem apenas três famílias trabalhando lá, mas tem 14 mil cabeças de gado. “Nós amamos o gado – diz, com indisfarçada indignação - mas amamos mais os seringueiros, os índios e o povo”. Segundo ele, “o criador da terra, o conservador da terra é o homem. Acreditamos no homem porque este livrinho (a Bíblia) nos indica que Deus se fez carne humana. Mas para nós, ocidentais, para as nossas filosofias isso é conversa fiada. As pessoas vêem o discurso de Platão, que respeito como homem sábio, vêem o discurso de Cícero, vêem o

discurso de Aristóteles, mas não vêem o discurso de Jesus de Nazaré que viveu 30 anos em silêncio, lá em Nazaré”. E qual era o discurso de Jesus? Heitor cita: “Gente, vocês são todos irmãos. Gente, eu sou um de vocês e vivi com vocês e nasci no ventre de uma mãe. Gente, quando voltarmos lá em cima o meu pai vai perguntar o que é que tu fizeste para o teu irmão. O teu irmão era eu”. Polêmico em tudo que faz, e impaciente diante da intolerância que se espalha pelo mundo, padre Heitor, que atualmente passa boa parte do seu tempo cuidando de uma colônia de recuperação de jovens drogados, afirma convicto que “nós não temos fé”, referindo-se naturalmente à humanidade. E critica o que se faz, atualmente, em nome da religião: “Nós fazemos o que queremos nas religiões, dividimos religiões, multiplicamos religiões; nasce uma de dia e à noite... Cada religião completamente separada da outra”. Por fim pergunta, desolado: “Mas que negócio é esse de se separar”?

Dom moacyr Grecchi

Dom Moacyr chegou ao Acre em 1971 para cuidar da Prelazia do Acre e Purus, hoje Diocese de Rio Branco. Foi nomeado pelo Papa para substituir o

bispo Dom Giocondo, morto num desastre de avião em Sena Madureira. Natural de Santa Catarina, o novo bispo era o superior da ordem religiosa dos Servos de Maria, com sede em São Paulo, e também o provincial responsável pelo Acre. “Sorte minha - disse ele algumas

décadas depois - porque foi o povo do Acre que me ensinou a ser cristão, a ser bispo, a me comprometer com o lado justo”. Esse aprendizado começou logo. Iniciava, na época, a reação dos seringueiros e posseiros para ficar nas suas terras, cobiçadas por fazendeiros recém-chegados do Sul e Sudeste, e um grupo de mães o procurou para visitar um seringal perto de Rio Branco, onde o dono estava sendo denunciado por cometer atos de violência contra os seus filhos e os seus maridos. Dom Moacyr esperou que elas o visitassem pela terceira vez para ir ao local do conflito. Ele explica: “Eu pra não ficar de frouxo fui, e essa visita mudou muito a minha vida”. Em Rio Branco, ele tomou como missão organizar as Comunidades Eclesiais de Base por toda a Prelazia: “As CEBs eram células de evangelização, de oração e de fraternidade, mas eram também onde se formava a consciência para a organização sindical e, um pouco mais tarde, para a formação do Partido dos Trabalhadores. F is formaram o PT. Alguns me diziam: ‘mas Dom Moacyr, não pode, o senhor tem que ser um bispo de todos, o senhor não pode ser um bispo do PT’. Em resposta, eu sempre dizia e digo que apenas prestava meu apoio às pessoas generosas que exerciam sua fé cristã lutando por paz e por justiça social”. Quando a Contag (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura) começou a fundar os sindicatos no Acre, o

pessoal já estava preparado pelas CEBS. As reuniões do sindicato eram feitas sempre em ambiente de Igreja. Dom Moacyr admite que, naqueles tempos, “a polícia era corrupta até o osso, os políticos uns incapazes, e o Exército um bando de gente com medo do comunismo e da subversão, a maioria deles sem saber o que era isso, mas com medo. Era um tempo em que a violência contava com a total conivência das autoridades”. O delegado da Contag no Acre, João Maia, segundo Dom Moacyr “era um ex-seminarista alegre e brincalhão que gostava de falar em Latim comigo. Ele tinha uma marca, que era o diálogo com todos, e ele sempre me dizia: Dom Moacyr, aprende isso – o diálogo é a chave da sobrevivência nessa terra. Ele lutava por um sindicalismo independente, mas nem por isso deixava de conversar com o governador, com a polícia, com o Exército. Ele formou excelentes lideranças, fundou muitos sindicatos, era destemido e ousado”. Dom Moacyr conheceu Chico Mendes antes dele se tornar sindicalista. Chico era um participante das CEBS, “mas sem grande fervor religioso”. Começou na luta como todo seringueiro, brigando para permanecer na terra. Em Xapuri, a Prelazia mantinha três padres: o padre José, o padre Otávio e o padre Cláudio. O padre José sempre foi contra Chico e sua luta, mas os padres Otávio e Cláudio eram seus amigos. Mesmo assim, Chico falava igual com os três.

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Mary allegretti

Nascida na cidade de Erechim, no interior do Rio Grande do Sul, desde pequena Mary Allegretti se dedicou ao estudo da música. Aos 18 anos já era concertista, e seu

grande projeto era tocar piano pelo mundo. Mas logo as novas escolhas começavam a mudar o rumo de sua vida. No mesmo ano em que entrou para o curso superior de piano, ingressou também na faculdade de ciências sociais. Em pouco tempo percebeu não ser possível conciliar

as duas coisas, e fez sua opção: “Escolhi ficar com ciências sociais e nunca mais tocar piano na minha vida”. Uma mudança bastante profunda, conta Mary Allegretti. Foi no meio acadêmico que Mary deu o salto inicial para as suas maiores transformações. Ela conta que a universidade era uma verdadeira revolução, e que os alunos que ali estudavam se tornaram questionadores do país, realizando em sala de aula densas discussões sobre o modelo de desenvolvimento do Brasil. No entanto, Mary não se mostrava plenamente adepta às idéias mais radicais. Nunca se envolveu com a luta armada,

Após a morte de Chico Mendes (no dia 22 de dezembro de 1988) Dom Moacyr foi convidado para ir à Europa, e na Itália foi procurado por muita gente que queria saber mais sobre a luta dele. Em Paris, participou de uma grande conferência pela paz, onde Chico Mendes foi colocado junto com Desmond Tutu, Gandhi e Martin Luther King como um dos quatro grandes defensores da paz no mundo. “E pensar que o Chico Mendes tantas vezes foi me ver, foi na minha casa dizer que estava para morrer, que se sentia muito ameaçado, que tinha certeza que não ia viver... E eu brincava com ele, dizia: ‘morre nada, Chico, esses cabras não tem coragem de te pegar’. Mas ele começou a fuçar fundo, e acabou encontrando provas contra as pessoas que o ameaçavam”, recorda.

Hoje Dom Moacyr é Arcebispo da Diocese de Porto Velho, onde “os povos das lutas” também o estimam. “Aqui temos pela frente uma dura caminhada, porque agora vêm as usinas hidrelétricas, e a Amazônia continua sendo tratada como colônia pelo resto do Brasil, que é menor do que a Amazônia. O resto do Brasil está acostumado a tirar tudo da Amazônia, e a não deixar nada” – afirma ele. “Essa nova geração – acrescenta – vai ter que lutar muito para que a energia vinda da Amazônia ilumine pelo menos um pequeno pedaço da floresta. Só assim a energia tirada da água dos nossos grandes rios poderá evitar o triste destino da madeira, do boi e da soja, cuja exploração sempre destrói e sempre maltrata a Amazônia”.

por exemplo, pois não lhe seduzia a idéia de projetar as ações para um futuro que somente chegaria com a revolução. “Eu não consegui, não fiz esse caminho. Eu vivia uma ansiedade, uma vontade de fazer. E dizia assim: Eu quero fazer agora”, explica Mary. Ao concluir a faculdade, ela voltou para a sala de aula, dessa vez como professora, na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Pouco depois decidiu fazer o mestrado, na Universidade de Brasília (UnB). Foi quando aquela moça de classe média do sul do Brasil, nunca saída desses limites geográficos, começou a descobrir que o país era bem maior que aquilo que já conhecia. Na primeira entrevista com o orientador, o antropólogo Roberto Cardoso Oliveira, Mary explicou que já conhecia muito bem a história do Paraná, tinha todos os dados, e seu objetivo era fazer a tese de mestrado rapidamente com esse material. Mas ouviu do mestre: “Se você já conhece tão bem essa realidade, sugiro que vá conhecer outra que você nunca viu: a Amazônia!” Espantada, ela logo respondeu: “Meu negócio é urbano, é cidade. Não quero!” Mary não levou muito tempo para mudar de idéia. Quem a convenceu foi um colega que estava mais adiantado no mestrado. Terri Vale de Aquino, antropólogo acreano que já então trabalhava nas primeiras demarcações de terras indígenas no estado, começou a mostrar os materiais e falar da sua pesquisa com esses povos da floresta. Intrigada por não saber do que Terri falava, ela ponderou: “Se eu não consigo entender a língua de um colega meu, se é uma realidade assim tão diferente, é lá que

eu quero ir!” Partiu para o Acre em 1978, decidida a estudar as relações sociais na fronteira econômica e a influência da migração vinda do sul do Brasil. Mas ela de fato não sabia o que isso significava. Começou a suspeitar quando lá chegou, e só veio a conhecer de verdade quando decidiu realmente se embrenhar nas matas. Depois das experiências que vivenciou e das pessoas que conheceu, ela saiu do seringal com uma clara determinação, registrada em seu diário de campo: “Eu vou fazer uma escola de alfabetização para os seringueiros”. Daí em diante, não conseguiu mais ser a mesma pessoa. Voltou para a sala de aula, na universidade, mas já não se via ali. Começou a perceber que, para aqueles seringueiros com quem havia convivido, saber ler e escrever era uma coisa tão importante, enquanto os alunos da universidade não demonstravam interesse em aprender. Então decidiu colocar em prática seus planos: pouco tempo depois, já contando com vários parceiros, elaborou proposta do Projeto Seringueiro, para levar educação, cooperativismo e saúde aos seringais. E sem conseguir se desvincular da Amazônia, ela acabou se desligando da academia para se dedicar à luta dos povos da floresta. Neste contexto, uma valiosa aliança se estabeleceu: Mary Allegretti tornou-se amiga e parceira de Chico Mendes, à época o mais importante líder do movimento dos trabalhadores rurais no Acre. Com ele, mobilizou uma centena de trabalhadores para realizar um grande encontro em Brasília,

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do qual resultou a criação do Conselho Nacional dos Seringueiros e o início de um reconhecimento da luta desse povo. Juntamente com o cineasta americano Adrian Cowell e o antropólogo Steve Schwartzman, Mary foi responsável por projetar Chico Mendes no cenário nacional e, principalmente, internacional. Assim conseguiram fazer com que o mundo abraçasse a causa dos seringueiros, pressionando e questionando o governo brasileiro em relação ao futuro da Amazônia. A partir dessa experiência adquirida no Acre, Mary Allegretti se envolveu com a Amazônia como um todo, para a qual desde então tem voltado sua dedicação e seu trabalho. No estado do Amapá, foi secretária de Planejamento e de Meio Ambiente, depois

assumindo, em âmbito federal, a Secretaria de Coordenação da Amazônia, do Ministério do Meio Ambiente. Atualmente presta consultoria para projetos na região, e voltou à sala de aula, como professora convidada nos Estados Unidos, onde, com seu olhar apaixonado – mas crítico – conta aos alunos a história do movimento dos seringueiros na Amazônia brasileira. Para ela, é uma lição que precisa ser conhecida e divulgada, e reconhece que é esse seu trabalho: “Eu não me transformei em seringueira, eu continuei sendo antropóloga durante todos esses anos. Eu me orgulho disso por que eu registrei a história, documentei, escrevi sobre ela, dou aula sobre ela, então eu exerço o meu papel de antropóloga junto ao movimento social”.

Jorge Viana

Ao se iniciar na política, em 1990, aos 30 anos de idade, como candidato a governador do Acre pelo Partido dos Trabalhadores (PT), ninguém o conhecia pelo nome que consta

da certidão de nascimento: Jorge Ney Macedo Neves. Entretanto, todos o conheciam por Jorge Viana, filho do Dico Viana que foi verador, prefeito, deputado estadual e, à época, deputado federal pelo PDS. Jorge sempre se orgulha disso. Afinal, o pai fazia a política tradicional vinculada ao social que se traduzia numa relação de respeito com

uma centena de compadres e comadres, e os conselhos que recebia dele era, sempre, para que procurasse caminho próprio na política. Por espelhar-se no pai, foi precoce no entendimento da vida. Desde pequeno, admirava o esforço que ele e sua mãe Silvia faziam para vencer a pobreza num Acre atrasado e politicamente perverso, por isso decidiu ser comerciante: vendia garrafas que encontrava no lixo aos navios que aportavam em Rio Branco; vendia concreto para construção; bombinhas nas festas juninas; além de galinha, pato e ovos. Mantinha criação desses animais no quintal de casa e abastecia a vizinhança. Também fornecia frutas para a sorveteria do Fabiano, e sempre

tinha uma poupança guardada. Sua raiz familiar o envaidecia. Por parte da mãe, tinha um bisavô português, Raimundo Falcão, que se enfiou na Bolívia nas primeiras décadas do século 20, na época da valorização da borracha. Ele casou com uma boliviana e dessa união nasceu a avó, Teodolinda, cuja prole se espalhou pelos seringais do Alto Acre. Por parte do pai, teve bisavós que vieram da Paraíba e também se estabeleceram no Alto Acre. Desses pioneiros vieram os avós e pais acreanos, o que Jorge, hoje com 51, considera acontecimento raro. Sua árvore genealógica e sua vida de criança e de adolescente que andava de short por toda Rio Branco, à procura de novos e pequenos negócios é, entretanto, desconhecida das novas gerações. O que, presume, levaria parte dos eleitores e da imprensa a classificá-lo como ideologicamente de direita, preferindo identificá-lo com a filiação partidária do pai. Sua história, entretanto, desmente isso. Conforme relato que deixou gravado na Biblioteca da Floresta, no projeto “Memória dos Sábios da Floresta”, sua militância foi sempre de esquerda. Primeiro, num colégio agrícola no interior de São Paulo, onde despertou, pela primeira vez, interesse pela exploração sustentável da floresta acreana. Depois, na Faculdade de Engenharia Florestal da Universidade de Brasília, onde esteve na linha de frente do movimento estudantil pelas campanhas das Diretas Já. Na UNB, em 1985, o destino o colocou diante do líder seringueiro Chico Mendes. Naquele ano, a universidade cedeu seu

auditório de Ciências e Tecnologia para a reunião de criação do Conselho Nacional dos Seringueiros, e Jorge, que tinha aulas nesse auditório, participou da reunião passando a conhecer o líder seringueiro de quem se tornou amigo e parceiro de luta até o assassinato deste, em 22 de dezembro de 1988. A partir do encontro, a ascensão política do jovem engenheiro florestal foi meteórica. De volta ao Acre, em 1985, já formado, passou a trabalhar no Laboratório de Madeiras Tropicais (Latemac), criado pelo engenheiro Gilberto Siqueira, atual secretário de Planejamento do Governo, que lhe assegurou, assim, o primeiro emprego. No ano seguinte, durante o governo de Flaviano Melo, Siqueira, Sérgio Nakamura e o próprio Jorge criaram a Fundação de Tecnologia do Acre (Funtac), onde este assumiu o cargo de diretor de Estudos e Pesquisas. Os três conseguiram aprovar um projeto na ITTO, do Japão, que levou à criação da primeira unidade estadual de manejo para exploração de uso múltiplo da floresta: a Floresta do Antimari. Em 1990, o PT que tivera votação inexpressiva nas eleições de 1982 e 1986 decidiu indicar Jorge Viana como candidato a governador. Na ocasião, Luiz Inácio Lula da Silva, o Lula, que em 1989 quase se elege presidente da República, veio ao Acre e visitou vários municípios pedindo voto para Jorge Viana. Contrariando as pesquisas, Jorge foi para o segundo turno, mas perdeu a eleição para Edmundo Pinto, do PDS, que acabou assassinado num hotel de luxo em

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São tantas as memórias...

OProjetoMemóriadosMovimentosSocioambientaisdoAcrepreviainicialmentea realização de 50 entrevistas comimportantesprotagonistasdanossahistória-pessoasquetêmemcomumabuscaporjustiçasocial, respeitoàdiversidadeculturale a preservação do meio ambiente. Asexpectativasafinalforamsuperadas,eototaldeentrevistadoschegouamaisde80.Dessematerial foram extraídos alguns aspectos,sobretudodatrajetóriapessoaldevidade65depoentes,emtextosqueestãopublicadosnestarevista. Assíntesesdealgumasdasentrevistasrealizadas não constam nesta publicação,comoéo casodosdepoentes:AldenordaCosta Souza, Amaral Brandão Shanenawa,AntônioZaine,AntôniaSoaresRibeiro,AssisGomes da Silva Kaxinawá, Isaías BarbosaLacerda,JeremiasRodriguesdeCarvalho,JoãoLopesMendes Filho, Júlio Barbosa,ManoelFrancisco de Souza, Marlene Martins daSilva,MilitãoBrandãoShanenawa,SebastiãoMendes, ValdemirMateus, Valdemir BatistaGomeseZenaideCarvalho.Poroutrolado,oconjuntodessasentrevistas foi incorporado

ao acervo da Biblioteca da Floresta, onde poderá ser consultado, subsidiando estudos e reflexões sobre os temas abordados. É importante lembrar que os textos aqui destacados são apensas sínteses das longas entrevistas, e portanto não pretendem esgotar as possibilidades de abordagens e reflexões que podem surgir a partir da escuta atenta das falas dos depoentes. Da mesma forma, o conjunto dos depoentes também não esgota as personagens e abordagens do assunto. Durante o planejamento do projeto, incontáveis nomes surgiram como possíveis entrevistados, cada qual guardando sua devida importância. Entretanto, as limitações de tempo, espaço e, por vezes, de distância, não permitiram a realização de todas elas. Algumas das entrevistas que estavam planejadas, como a de Binho Marques, Concita Maia, Marina Silva, Mauro Almeida, Keila Diniz e tantos outros, por diversas razões também não foram possíveis. No entanto, entendemos que sempre haverão histórias a serem contadas, e este sabor de “quero mais” deixa o caminho aberto para que o Projeto se estenda em uma nova fase.

São Paulo. Sem mandato e sem emprego, o candidato petista foi adotado politicamente por Lula, que decidiu prepará-lo para ser prefeito de Rio Branco em 1992. Mandou que fosse fazer um curso de alta direção e planejamento estratégico na Venezula, com duração de dois meses. Com sua eleição, o PT chega ao poder pela primeira vez numa capital da Amazônia. Mas embora tenha feito ótima gestão, Jorge não conseguiu fazer seu sucessor em 1996. Adquirira, entretanto, estatura política para chegar ao Governo em 1998. Naquele ano começa a fase política que modernizaria o Acre sob seu comando, com a participação de jovens militantes recém-saídos da organização estudantil: além dele próprio, seu irmão Tião Viana, Marina Silva e Binho Marques, entre outros. Eram tão jovens e ousados que ficaram conhecidos como “os meninos do PT”. A primeira grande ação desse grupo no poder foi, juntamente com algumas instituições estaduais e federais,

vencer o crime organizado no Acre. Também a partir de 1998, Jorge Viana lançou a ideia de Governo da Floresta e instituiu o conceito de Florestania, levando adiante os ideais de Chico Mendes para implementar o desenvolvimento sustentável no Estado. Desde então, passou a planejar uma economia forte, de base florestal. Reeleito em 2002, com uma ampla aliança de pequenos partidos, consolidou essa política que também resgata a tradição histórica e cultural do Estado, e modernizou a gestão na capital e no interior. Em 2006, elegeu governador seu secretário de Educação desde os tempos de Prefeitura, Binho Marques, para avançar com a questão social. Em 2010, o PT elegeu governador o médico e senador Tião Viana, irmão de Jorge, estendendo por mais quatro anos a vitoriosa administração petista. Eleito para o Senado, Jorge Viana anunciou que vai seguir os passos do irmão e da ex-senadora e ex-ministra Marina Silva, colocando como questão central a causa da Amazônia.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

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