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revista de crítica e fotografia edição única DEZ2019 RECIFE WWW.MATUTEREVISTA.COM matute

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revista decrítica efotografia

edição únicadez2019

recife

www.matuterevista.com

matute

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A matute teve sua semente em 2016, quando, por carência de espaço para a discussão teórica da fotografia, me inspirei no livro Words not spent today buy smaller images tomorrow, de David Levi Strauss, e criei o grupo de estudos de crítica fotográfica no Museu de Arte Moderna Aluísio Magalhães.

Lá me juntei a Mila Souza e Pedro Neves, os participantes mais assíduos desse grupo que durou um ano. Com a vontade de dar continuidade ao processo, criamos juntos o projeto FotoCrítica, onde conseguimos o incentivo do Funcultura e apoio da Fundaj e tivemos 6 meses de aulas e palestras. Trouxemos conteúdos teóricos, discutimos temas diversos em torno da imagem e recebemos três convidados responsáveis por aulas abertas: Moacir dos Anjos, Fabiana Moraes e Maurício Lissovsky. O fio condutor não intencional de todos os encontros, possivelmente pelo tempo e espaço contemporâneo, foi a política. Em um momento onde seu próprio conceito tem sido revisto, questionado e colocado à prova, a reflexão sobre a imagem política (aqui no sentido mais amplo do termo) fez-se urgente.

Como forma de ampliação do alcance desse conteúdo, publicamos aqui alguns dos assuntos tratados nesse processo. Na estreia dessa revista, esse tema chega por diversos ângulos e por diversas vozes. Olhando por perspectivas históricas ou tratando diretamente dessa imagem contemporânea, trazemos alguns pontos de inquietação dentro do afogamento imagético que vivemos.

nota editorial da fotografia como convite ao matutepor Cecília Urioste

matutemosentão...pelas melhores imagensde amanhã

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06no horizonte da vadiagempor Mila Targino

10no sertão tambémexiste “ETC“por Fabiana Moraes

17disputando a imagem do brasil: fotografia e política na era vargaspor Maurício Lissovsky

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a representaçãodas sobras

por Moacir dos Anjos

30a história do ouropor Priscila Nascimento

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38Arlak Fagundes

40Rennan Peixe

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Kalor Pacheco

32três perguntas para

cristiana diaspor Pedro Neves

OU

TRA

FOTO

-GR

AFIA

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Abiniel João

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No horizonteda vadiagem:como observarespectadoresem dia de anarquia

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Escrevi esse texto no final do mês de maio, em 2016. Três meses depois, Dilma Rousseff foi deposta do cargo de presidenta do Brasil, e Michel Temer, o vice abominável, assumiu a cadeira. Tudo aconteceu de-baixo de um panelaço verde e amarelo padrão FIFA. Foi estranho, para dizer o mínimo. Num átimo de segundo, desconheci o país.

Em 2018, Luiz Inácio Lula da Silva, líder histórico da esquerda brasileira, tornou-se preso político, enquan-to Sergio Moro, o jurista predestinado a nos livrar da corrupção, virou herói nacional. Um homem comum, que não gosta de feministas, nem de homossexuais, nem de ecologia, muito menos de educação e ciên-cia, se tornou presidente do país, carregando com ele todo o conservadorismo do mundo. Por conta de um jornalista internacional, a lava-jato virou um escândalo nacional, explicitando os motivos do golpe parlamentar.

Nesse ínterim eu cresci com o movimento feminis-ta. Vivi e continuo vivendo suas contradições, seus limites, por vezes sofridos, mas também seus mo-mentos de clareza impagáveis. 28 de maio de 2016, por exemplo, foi um dia elucidativo aos mais atentos à condição vulnerável das mulheres no país. Infeliz-mente, para que alguns discursos da luta feminista se fortalecessem, uma garota teve que sofrer maus bocados. Fato triste demais. Seu nome foi sabia-mente preservado, não deveria ser dito, sobretudo, nas redes sociais. Sem apelo, isso seria demais para qualquer mulher.

texto Mila Targino foto Bárbara Cunha

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8no horizonte da vadiagem por Mila Targino

Após a frase bizarra, seguiu-se a pergunta mais espúria dos últimos tempos. Foram 30 ou 33? Abre os olhos menina! Por favor, diz para toda uma sociedade doente se foram trinta ou trinta e três homens. A dúvida persistiu por horas que mais pareciam uma eternidade. Difícil acreditar nesse interesse mórbido. O apego aos números revela a parca miséria de um país bastante peculiar.

Sofrimento de mulher pode ser medido! Então, vamos lá, chegaremos à mais crua realidade. Se cada homem pesar em torno de 70 quilos, a garota suportou, ao longo da tortura, 2.310,00 quilos. Só assim, as pessoas se comovem. Para uma mulher, sofrimento de 100 gramas não é propriamente um sofrimento, ela sempre pode suportar qualquer coisa (já não posso dizer o mesmo da masculini-dade corriqueira).

O estupro é puro exercício de poder sobre os corpos femininos ou afeminados. Por essa e outras é que um dos anseios feministas seja o empode-ramento das mulheres. Fato é que a equidade de gênero instaurada por tal empoderamento, direta ou indiretamente, traz perdas simbólicas e mate-riais para todos os homens. Portanto, resistir ao exercício do poder feminino é uma práxis coletiva, dispersa e sutil. Toda uma sociedade machista, em suas várias facetas, nega a já parca possibilidade.

A Marcha das Vadias, como parte do movimento feminista, sempre mais amplo e complexo, expli-cita esse desespero. Mas, para a inquietação de alguns, a desobediência civil tem sido um marco deste fenômeno político. A estratégia histórica foi incrível. O termo vadia, louvado pela jogatina mas-

culina, adquiriu valores anárquicos expressos numa estética desapegada. Cabelos raspados, sovacos cabeludos, peitos despudorados, corpos pintados com símbolos afirmativos, expressões de força na face, beijos lésbicos, tudo que a castidade colonial não suporta. Uma catarse de difícil compreensão, posso concordar. O conservadorismo espraiado nos recantos nacionais não sabe o que fazer da va-diagem, porque, na realidade, nunca soube o que fazer da anarquia.

Uma das imagens da marcha, captada pelas lentes da fotógrafa pernambucana Bárbara Cunha, ex-plicita a situação de maneira curiosa. A fotografia tem approach estético sutil, quase banal, não fosse o desconforto social posto em cena. Uma com-posição muito simples, dessas que nossa cartilha da exuberância já não nos permite realizar. Uma pena, pois na minha percepção, essa simplicidade só ampliou a força discursiva da imagem. O clique foi construído criando uma horizontalidade assi-métrica. Duas mulheres e um homem formam uma linha tão reta quanto possível. Onde se encontra o desnível? Eis a minha questão. A observação do instável nas personagens da cena talvez colabore com uma resposta mínima.

O equilíbrio da mulher de blusa preta está por um fio. Sem firmeza alguma, colocando pé ante pé, parece que, sem muita coragem, dará o próximo passo. Com uma das mãos, se apoia num cabide de roupas à venda. Faz que vai, no entanto, fica! A estagnação é um alívio. Trabalhadora do comércio - será? Com o corpo frontal, vira o rosto altivo para a esquerda. Sua distinção pouco me convence. Um dia, vai se aproximar.

No extracampo da fotografia (ponto de inflexão da análise), no meio da Avenida Conde da Boa Vista, reduto do centro do Recife, o som ecoa, entre cen-tenas de vozes. “Vem, vem! Vem pra rua vem, con-tra o machismo!”. Talvez seja mesmo difícil. Não dá

Quando eu acordei, dopada e nua, tinham homens sobre mim.

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para naturalizar a militância, ela é muito forte, tem a capacidade de assustar. É também uma questão de identificação com a política. Ela está para algu-mas mulheres, mas não está para todas. A escolha, nesse sentido, é totalmente legítima, enquanto a cidadania se torna um aprendizado.

Subsequentemente, temos a mulher de blusa listrada. Escorando, com a ponta dos dedos, o pé direito sobre a sandália, ela mostra a enfadonha expressão corporal das mãos apoiadas na cintura. Mantemos viva a memória desse gesto; ele surge, sobretudo, nos momentos de repreensão. A felici-dade não surge com as mãos na cintura, mostran-do franco cansaço nas pernas. Nesse estado de coisas, ou a paciência sumiu ou a raiva já transbor-dou. Olhos desviados demonstram o quão descon-fortável pode ser o momento. “Êta, êta, êta, êta, Eduardo Cunha quer comandar minha buceta”. Na velha avenida, continua o som em fúria.

No meio de uma marcha de vadias, a saia no joelho contrasta. Ela significa o recato no campo da religião e a consequente falta de liberdade de expressão na política. Há de se compreender. Em certo sentido, ainda que não em todos, a doutrina de fé encarcera a percepção: só olhamos o que é permitido moralmente. Paciência, estamos diante de uma práxis social. Totalmente alijadas do Esta-do, mulheres também se “defendem” nos limites impostos pelas paredes das igrejas.

Em seguida, temos um homem que se apoia em muletas. No campo das formações imaginárias, ele também segue na corda bamba, cuidando do an-dar. Apoia o peso do corpo no quadril, dispõe um olhar diretivo; no entanto, assim como as mulhe-res na calçada, não sai do lugar estável. Homens costumam ser criados para erguer a cabeça o todo tempo. O espectro do machismo é amplo. Também faz sofrer masculinidades. Não deve ser fácil! “Se cuida, se cuida, se cuida seu machista, América

Latina vai ser toda feminista!”, continuam as mu-lheres, vociferando no oco do mundo.

As três personagens formam uma horizontalidade que só funciona para elas mesmas; independem da existência alheia, sobretudo a que se espalha-va na longa marcha das vadias. Vivem em bolhas fechadas que já determinaram, de antemão e por todo vínculo ideológico, seus caminhos. Não se contaminam. A pichação vertical “Temer golpista” atravessa essa horizontalidade como lança, mas os conformados não saem feridos. Ao menos, não conscientemente. O primeiro plano da fotografia, preenchido pela extensão da calçada, insinua essa distância dos propósitos sociais.

Abismado com a cena dos acuados no passeio, o garoto, no canto da imagem, funciona como um ponto de fuga. Olhar para ele é também bater em retirada. Com sorte, talvez ele traga uma nova geração apartada do medo da força. Da força das mulheres, é claro! Na contabilidade matemática final, tão ao gosto da perversidade brasileira, a res-posta é cultural: para o anarquismo, toda liberdade é plenitude; para o conservadorismo, todo controle é escassez.

> Mila Souza é doutora em Comunicaçãopela UFPE, artista visual e escritora.

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texto Fabiana Moraesframes Dia de Pagamento

No Sertãotambémexiste“etc”

Nossos bancos de imagens só reiteram clichês sobre um sertão mítico congelado num passado remoto.Que outros sertões emergem quando olhamos para além das representações cristalizadas?

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Entre, se possível agora, em um serviço popular de busca de imagens na internet e digite “sertão”. Mire, veja. Volte a este texto depois. Fiz isso, ao lado de dezenas de estudantes, algumas vezes nos últimos anos, durante as aulas de Comu-nicação e Culturas Populares que ministro na UFPE. Nas buscas, uso serviços como Google e Yahoo.

Seja neste exercício rápido, seja nas pesquisas em sala de aula, as imagens nos dizem que Sertão é sinônimo de Nordeste, também de pobreza e seca; que suas casas são de taipa, são frágeis, quase à beira do desmoronamento; que lá vestem-se de gibão, trapo (às vezes, roupa de motoqueiro); que anda-se muito de cavalo e às vezes de motocicle-ta. Os serviços de busca usados para representar uma ordem discursiva ampla e potente conhecem de fato o sertão, mas, infelizmente, apenas partes muito específicas dele, que, no entanto, são usa-das para contá-lo como um todo. Assim, desco-nhecem – e pior, fazem desconhecer - que nas suas terras caminham, além dos vaqueiros (e mo-toqueiros), quilombolas, cientistas, travestis, pes-quisadoras, indígenas, bailarinos etc. Desconhe-cem ainda que a maioria das casas do semiárido não é feita de taipa. Para a grande parte de nosso sistema de representações, no Sertão não existe “etc”. Ele é dotado de um menu tão magro quanto as crianças maltrapilhas que achamos quando o buscamos na internet.

Há uma pista que pode nos ajudar a entender essas imagéticas repetições. Trazer o plural de uma região heterogênea oferecida continuamente como homogênea pode desconstruir parte de um impor-tante mito fundador da região: o da falta, da insu-ficiência, da dependência. É essa perspectiva que garante a manutenção de uma desigualdade de imagens, algo que se traduz também nos lugares de poder. É exatamente por isso que cambiar as fo-tografias dos bancos de imagens é também realizar – e não apenas no plano simbólico – uma mudança radical na própria sociedade. Estas alterações dis-cursivas e sociais são, na verdade, simultâneas.

Essa terra rachada e a noção de um “Brasil profundo”, é claro, está para além das imagens virtuais: foram gestadas em fogo lento durante décadas em nossa literatura, pintura, dramaturgia, imprensa. No livro Viagem ao Sertão Brasileiro, Vernaide Wanderley e Eugênia Menezes escrevem:

“As definições de sertão fazem referência a traços geográficos, demográficos e culturais: região agreste, semiárida, longe do litoral, distante de povoações ou de terras cultivadas, pouco povoada, e onde predominam tradições e costumes antigos. Lugar inóspito, desconhecido, que proporciona uma vida difícil, mas habitado por pessoas fortes.”

É assim que, quando buscam o Sertão e não en-contram ali os “costumes antigos”, e sim paredões de som e mensagens de pêsames em LED chinês colocados em funerais, os incautos terminam pri-meiro se decepcionando e depois refutando toda uma região. Ela precisa se manter amarrada a uma lógica de tradição e/ou subserviência (inclusive visual) para permanecer no espaço da estima. Ou é assim ou não é o “verdadeiro” sertão.

Nas tentativas de furar essas representações, é comum também vermos a simples justaposição de elementos que à primeira vista parecem se negar - as cabras e a modernidade, o carcará e a carí-

O Sertão precisa se manter amarrado a uma lógica de tradição e/ou subserviência (inclusive visual) para permanecer no espaço da estima. Ou é assim ou não é o “verdadeiro” sertão.

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cia, a seca e o desfile de moda. Mas a oposição, como nos lembra Durval Albuquerque Júnior, nos leva a lugares perigosos e preguiçosos, e geral-mente opera para realçar o poder de quem ocupa o espaço do visto como moderno e civilizado. O tal civilizado que geralmente surge para fazer contras-te ao Sertão.

Foram muitos os meios de formação, produção e reprodução de uma imagética sobre esse Sertão que é fetiche, o Sertão que surge, periodicamen-te, mal condensado nas imagens de candidatos vestindo gibões e chapéus de couro, a paisagem árida servindo como cenário, na tentativa de bus-car votos nordestinos.

São homens que tentam se acoplar ao citado “Bra-sil profundo”, aquele no qual não há sinal de celu-lar, que está distante dos centros onde o mundo civilizado está deteriorado, mas abrigando a santa industrialização, o micróbio das máquinas e da tec-nologia. Recorrem, mais uma vez, à oposição que acentua: são eles os iluministas e iluminados que, com sua graça e sotaques universais, nos visitam de quando em vez. Com roupas de “nordestinos” – afinal, no fetiche o Nordeste é sinônimo de Sertão –, eles apenas seguem o fluxo. Repetem imagens, mantêm a camisa de força, colocam-se como guardiões dos “resgates culturais”, tentam mistu-rar-se ao sol quente, ao chão rachado, ao couro, ao homem brabo e ao boi morto de sede, enquan-to os entendem como suficientes para representar um lugar.

Produzem, assim, conteúdo para uma plateia parecida com aquela vista em 1918 no Carnegie Hall, em Nova Iorque. Ali, o capitão e cineasta Luiz Thomaz Reis, patrocinado pela National Geographic Society, exibiu para o presidente Theodore Roosevelt a película Wilderness (intitulado, no Brasil, Santa Cruz). O sucesso foi enorme, e todas aquelas pessoas que já gozavam do conforto da modernidade puderam ir tranquilas

no sertão também existe etc por Fabiana Moraes

para suas casas com luz elétrica, sabendo que em alguns lugares distantes do Brasil a “verdadeira natureza” e a vida de curiosos povos de pele escura (os índios coroados ou Kaingang) seguiam intocadas. Seria possível até, assim como fizera Roosevelt, visitá-los oportunamente para ver de perto os modos mais exóticos de permanecer na terra. Esse interesse atravessado não é uma propriedade dos EUA, bem sabemos – como nos diz Glauber Rocha em seu texto Ezthetyka da Fome (1965):

“para o observador europeu, os processos de produção artística do mundo subdesenvolvido só o interessam na medida que satisfazem sua nostalgia do primitivismo”.

Eram olhos maravilhados aqueles saídos após a exibição do filme. Tão maravilhados quanto os de Mário de Andrade (e Luís Saia, Martin Braunwieser, Benedicto Pacheco e Antônio Ladeira) em suas expedições por cidades de Pernambuco, Paraíba, Ceará, Piauí, Maranhão e Pará no calar dos anos 1930. Voltaram para São Paulo, mais especifica-mente aos escritórios do Departamento de Cultura, com objetos de culto, anotações, instrumentos e registros musicais, documentos fílmicos e fotográfi-cos. Nos materiais estavam as celebrações a orixás como Xangô (BA), os rituais dos índios Pankararu (PE), o batuque religioso do tambor de Mina e do tambor de Crioula (MA), o colorido do coco e dos reis do Congo (PB). Eram exemplos de uma “verda-deira” identidade nacional, mais verdadeira ainda quando contraposta àquela cidade sudestina cuja urbanização seguia a galope - assim como a sua riqueza, em parte sustentada pela falência econô-mica do Nordeste de tipos folclóricos e adoráveis. Seguia ali a plena construção, até hoje poderosa, do mito do universal versus regional, do moderno versus tradicional (uma tradição ficcionalizada em boa parte pela elite nordestina, outro presente su-blinhado por Durval). Não era algo novo, como nos

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lembra Lúcia Lippi Oliveira no artigo A Conquista do Espaço: Sertão e Fronteira no Pensamento Bra-sileiro (1998):

“O sertão, para o habitante da cidade, aparece como espaço desconhecido, habitado por índios, feras e seres indomáveis. Para o bandeirante, era interior perigoso, mas fonte de riquezas. Para os governantes lusos das capitanias, era exílio temporário. Para os expulsos da sociedade colonial significava liberdade e esperança de uma vida melhor. Como nos diz Janaína Amado (1995a), ‘desde o início da História do Brasil, portanto, sertão configurou uma perspectiva dual, contendo, em seu interior, uma virtualidade: a da inversão. Inferno ou paraíso, tudo dependeria do lugar de quem falava’”.

Não trata-se apenas de uma crítica a um modo de olhar e traduzir: é uma inflexão acompanhada do entendimento de sucessivos períodos históricos e contextos nos quais fomentar a ideia de um Outro exótico era ação natural – ou melhor, quase divina. No bojo dessa crítica, percebam, precisa haver uma tesoura, uma bomba, qualquer ferramenta necessária para a produção da desestabilização, para a luta por discursos e representações mais integrais. A representação é uma efetiva arma de combate – por isso, que refundemos nossos ban-cos de imagens.

Essas tentativas de fissurar engessadas represen-tações não estão restritas a um ambiente de aca-dêmicos ou iniciados, mas espraiadas no cotidiano de pessoas e grupos que se sabem Sertão; aqui peço licença para acionar dois episódios ouvidos e vividos há algum tempo, experiências que, admito, possuem certo borrado da memória. Na primeira, trago uma visita a uma igreja no Harlem, na mes-ma Nova Iorque que viu os índios Kaingang em 1918. Era 2011, e eu e outros turistas olhávamos,

Nem toda visibilidade é positivamente transformadora: na verdade, boa parte dela vestiu a nós, sertanejas e sertanejos, com rígidas camisas de força.também maravilhados, uma celebração religio-sa na qual a música, as roupas e os gestos eram arrebatadores. Sentados, fotografávamos. Até que uma mulher, uma das responsáveis pela organiza-ção do coral, foi ao microfone e falou: “Por favor, desliguem suas câmeras. Nós não estamos aqui para o entretenimento de vocês”. Ela sublinhava nossa imensa falta de educação e cuidado com o espaço e as pessoas – e nossas fotos eram ape-nas a confirmação disso. O segundo episódio foi contado por uma colega pesquisadora: ao receber novamente a incumbência de falar para um gru-po de estudiosos em seu terreiro de candomblé, uma ialorixá devolveu: “não, não vou mais permitir. Quantas vezes vocês viram o povo do terreiro en-trando para filmar e fotografar suas igrejas?”

Essa matemática simples demorou a ser feita. Podemos seguir: quantas expedições culturais, como aquela feita por Mário de Andrade, os sudes-tinos continuam a realizar nas terras do Nordeste (= Sertão)? Porque não é comum saber de grupos de nordestinos que seguem até as terras do Sudeste ou Sul para filmar os hábitos de comunidades “típi-cas”, tradicionais, de um “Brasil profundo”?

Nossos olhos devem continuar maravilhados – e mantê-los em tal estado tem sido um ato extrema-mente difícil no Brasil atualmente transformado no

matute revista de crítica e fotografia

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maior país minúsculo do mundo. Mas a maravilha só se efetiva quando partimos em busca daquilo que nos aproxima, do que entre nós e o outro há de semelhança, e não a busca pela diferença (“Eu não sou discriminada porque eu sou diferente, eu me torno diferente através da discriminação”, nos diz a artista e pesquisadora Grada Kilomba, que conhece sertões diversos). E a produção da dife-rença é especialmente perigosa quando estamos armados de boa vontade, sem perceber a repetição nem sempre sutil dos mecanismos dessa produção – como quando eu clicava quase sem respirar o coral lá no Harlem.

Nem toda visibilidade é positivamente transforma-dora: na verdade, boa parte dela vestiu a nós, ser-tanejas e sertanejos das periferias, das favelas, dos interiores, da cor preta, do ser bicha, do ser mulher, com rígidas camisas de força. O povo de NY que se maravilhou com o filme (feito com boa vontade) de Luiz Thomaz Reis consumiu imagens apazigua-doras da pesca, dos cocares e costumes daqueles exóticos indígenas. Elas não mudaram o rumo de uma história de genocídio: 97 anos após aquela as-sombrosa exibição, um bebê Kaingang, Vítor, mor-reria nos braços da mãe Sônia em frente à estação rodoviária de Imbituba, no litoral de Santa Catarina. Ela vendia artesanato durante o Carnaval; eles es-tavam dormindo na rua quando um desconhecido se aproximou, afagou os cabelos da criança e de-pois a feriu na garganta com uma navalha. Nossos olhos maravilhados não conseguiram evitar que, em 2019, um pastor chamado Ailton publicasse em seu canal no YouTube um ritual de “unção e poder de Deus” sobre este mesmo ainda exposto povo. Nossas imagens, livros, filmes e tantos “resgates”, enfim, não conseguiram impedir que cerca de 80 povos indígenas desaparecessem, nem que eles sejam apenas 896.917 pessoas (Censo de 2010) em um país de mais de 208 milhões.

Os indígenas, esses sertões.

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as ca-brase a mo-derni-dade, o carcaráe acarícia

Frames do filme “Dia de Pagamento“de Fabiana Moraes

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16no sertão também existe etc por Fabiana Moraes

Os sertões que na retina e na história já se firma-ram bem mais como o espaço da natureza, da família, do poder e do sobrenatural (como escre-veram Vernaide Wanderley e Eugênia Menezes). Sertões de campos de caatinga cobertos com o plástico de embalagens de biscoitos, macarrão instantâneo, refrigerante. Sertões de carcaças de carros largadas em borracharias à beira da estrada. Sertões de casas de colorido insistente que dispu-tam espaço, numa briga ferrenha, com as cerâmi-cas e os portões de alumínio.

Sertões com mais caixas de som instaladas nas traseiras dos carros do que Riobaldos. Com tan-tas “mulheres macho”, tantos “machos mulheres”. Onde o trator cego do geralmente falso desen-volvimento passa sem avisar – como em todas as regiões do planeta. “Acabou-se essa história de sangue. Os velhos não aguentam e os novos têm medo”, me disse uma vez, ali por 2009, o senhor Severino Rocha, Primeiro Decurião da Ordem dos Penitentes da Irmandade da Cruz, em Barbalha, Ceará. Olhava, resignado mas não triste, seu cacho de penitência, repleto de lâminas cortantes, pendu-rado na parede, sem trabalhar. Perto, no Juazeiro do Norte, um beato de barba longa não escondia sua decepção: naquele mesmo 2009, José Alves de Jesus, líder dos pedintes e penitentes Borbo-letas Azuis, reclamava: “Desde que ela nasceu, eu batalho. Tentei segurar, mas o demônio não dei-xa”. Referia-se a Amanda, sua neta, então com 12 anos. Sim, ela gostava de Cristo e do Padre Cícero. Tanto quanto de televisão e música pop.

Nos abracemos a esse sertão sempre grávido de sentidos. Com seu Padre Cícero, que nunca pre-cisou de um reconhecimento católico oficial para tornar-se poderoso santo popular. Sertões de cisternas que interrompem a repetição das histó-rias de secas que a mídia aprendeu historicamente a valorar (rendem, afinal, polpudos dramas). Hoje, a mulher e o homem não morrem de sede – mas

seus bois e vacas, nas estiagens mais prolon-gadas, sim). Isso não se conta: é preciso manter o imaginário de um povo fadado à incivilização. Transmutou-se sem alarde essa seca tão pós-mo-derna e célebre quanto o padre de batina preta, gesso-oco por dentro e prenhe de disputas simbó-licas. Estamparam as capas de jornais e cartes de visite destinados às senhoras dos elegantes salões. Também assombravam os olhos maravilhados. Mas agora, na justa guerra das representações, quem vamos observar quando esses olhos, afiadas tesouras, se voltam diretamente para nós?

Inferno e paraíso, centro e periferia, o Sertão é distinto lugar e é como todos os outros. Guar-da, em alguns recantos – nas malas de papelão de Seu Dedé em Apodi (RN), nas anáguas bordadas vendidas nas feiras de Parnamirim (PE) –, alguma resistência ao cego trator. Essa resistência é tam-bém aviso que diz: é de fato moderno aquele que sabe guardar algo da história de si. Uma história tantas vezes mal contada através de uma media-ção que há muito precisa se reinventar. Por fim, volta a pergunta de Tom Zé, saído do Irará, sertão da Bahia, o mais universal dos seres e dono de maravilhosas tesouras:

Oh, Senhor Cidadão, eu quero saber,eu quero sabercom quantos quilos de medo,com quantos quilos de medo,se faz uma tradição?

> Fabiana Moraes é jornalista e professora de Comunicação Social no Centro Acadêmico doAgreste, campus da Universidade Federal de Pernambuco situado em Caruaru.

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Disputando a Imagem do Brasil: fotografia e política na Era Vargas

Em meio à Segunda Guerra Mundial, dois projetos fotográficos radicalmente distintos tentam forjar em imagens a identidade brasileira.

texto Maurício Lissovskyimagens Acervo FGV

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Quando a Segunda Guerra começa, em 1939, o Brasil, sob a ditadura de Vargas, é uma peça importante que ainda não decidiu de que lado irá alinhar-se. Mesmo no âmbito do governo, são grandes as divergências. O Ministério da Educa-ção promovia grandes manifestações cívicas nos estádios de futebol, inspiradas na estética dos comícios fascistas, mas logo os estudantes univer-sitários irão às ruas para reivindicar a entrada do Brasil no conflito ao lado das “nações democráti-cas”. Tudo isso em meio a um processo de intensa urbanização e modernização do comportamento e da cultura que tornará o Brasil e os brasileiros do pós-guerra muito diferentes do que eram antes dela.

Esse conflito ideológico e político também ocorre na imagem. As fotografias produzidas no Brasil na década de 1930 e nos primeiros anos da guerra propõem visões divergentes a respeito do caráter e da vocação do país. De um lado, as fotografias de um Brasil ordeiro, trabalhador, educado, domi-nantemente branco e governado por um Estado muito bem organizado. É o Brasil dos fotógrafos do poderoso Departamento de Imprensa e Propa-ganda e, principalmente, o Brasil da Obra Getuliana – um monumental álbum de propaganda política que reuniu fotografias produzidas, quase todas, por alemães. Refugiados de guerra, esses fotógrafos usaram aqui as melhores técnicas da fotografia modernista europeia - a mesma utilizada pelos go-vernos fascistas da Itália, da Alemanha, mas igual-mente pela comunista União Soviética.

Em contraponto a esse, temos um outro Brasil: carnavalesco, turístico, religioso e mestiço, ale-gremente desorganizado, musical e hospitaleiro. É o Brasil fotografado pelas lentes dos repórteres norte-americanos da revista Life e por Genevieve Naylor, fotógrafa documental a serviço do Escri-tório de Coordenação dos Negócios Interameri-

canos, órgão diplomático encarregado de garantir a aliança entre os Estados Unidos e as demais repúblicas do continente. Entre seus objetivos estava convencer o público norte-americano que essa imensa nação do Sul, apesar de seu governo autoritário, era constituída por um povo humilde, porém alegre e de alma democrática, que vivia em cidades modernas e movimentadas, e que o modo de vida dos brasileiros estava mais próximo do liberal American-way-of-life do que da rigidez fascista. Ao confrontarmos esses dois conjuntos de imagens, nos aproximamos da experiência de ser brasileiro em um mundo dividido pela guerra e pelo conflito ideológico.

Comecemos pela Obra Getuliana. A ideia surgiu nos últimos anos da década de 1930. Concebida como um livro comemorativo do governo Vargas, as fotografias remanescentes deste projeto cons-tituem um impressionante acervo de mais de 600 imagens, produzidas por profissionais brasileiros e europeus (particularmente imigrantes alemães). Influenciados pelas vanguardas fotográficas euro-peias, realizaram um empreendimento estético radi-calmente novo na fotografia brasileira que a queda de Vargas, em 1945, impediu que viesse a público.

Enquanto os textos da Obra Getuliana têm um ca-ráter eminentemente burocrático, suas fotografias conformam um gigantesco empreendimento peda-gógico e propagandístico autônomo, que faz uso de várias soluções modernistas para representar a invenção do futuro no presente. No intuito de tor-nar visível o progresso do Brasil após a revolução de 1930, o livro foi implicitamente concebido como uma “pedagogia do olhar” que, simultaneamente, mostrava e ensinava a ver. Entre os fotógrafos que participaram desta empreitada, destacam-se os alemães Peter Lange (cujo extremo rigor formal im-prime sua marca por toda a obra), Erich Hess, Paul

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Stille e Arno Kikoler, além do teuto-chileno Erwin Von Dessauer, o francês Jean Manzon e os brasilei-ros Jorge de Castro e Epaminondas Macedo.¹

O Brasil representado na Getuliana é bastante diferente daquele que se via nas ruas do país. Mestiços, negros, pobres, marginalizados, índios, boêmios ou quaisquer outros sujeitos que não tra-duzissem a ação modernizadora do Estado estão ausentes dessa representação do futuro nacional. Festejos populares, carnaval e manifestações reli-giosas – com exceção de uma única foto, em que a missa em honra à bandeira nacional celebra-se no altar da pátria – também estão invisíveis. Na Getuliana, não há povo, depositário de uma alma, de uma tradição, ou de qualquer manifestação nativista, mas brasileiros, cada um deles ocupando um lugar específico na ordem social, cumprindo zelosamente suas responsabilidades. Do mesmo modo, não há natureza em estado bruto, selvagem. Nós a vemos sempre domesticada, agriculturada, produtiva; ou então, disposta ao turismo, ao lazer civilizado e organizado – natureza desembrutecida.

Em fins de 1940, quando os olhos modernos da Getuliana começam a percorrer o país, uma outra missão fotográfica, a norte-americana, desembar-ca no Rio de Janeiro. Entre os primeiros emissá-rios culturais do Departamento de Estado, está a fotógrafa Genevieve Naylor. Não existem evidên-cias de instruções específicas que tenha recebido previamente do Office. As únicas recomendações de pauta conhecidas vieram do próprio DIP, em papel timbrado de sua Divisão de Turismo, listando cenários relacionados à vida moderna das elites no Rio de Janeiro: apartamentos luxuosos, as praias de Copacabana e Ipanema, iates, o Jóquei Clube, as lojas de moda da Rua do Ouvidor. A essa lista que associa modernidade e sensualidade à capital federal acrescentava-se apenas uma dimensão relativa aos menos favorecidos: “as obras de as-sistência social da Sra. Darcy Vargas” e a festa de Natal no Palácio do Catete.

Por conta própria, talvez, Naylor ampliou sua pau-ta: fotografou o carnaval negro do Rio, na Praça XI e nas favelas; seguiu as procissões nas cidades históricas mineiras; desceu o rio São Francisco, de Pirapora a Juazeiro; pegou um navio em Belém e visitou Recife, Maceió, Aracaju e Salvador. É bas-tante provável que tenha selecionado algumas de suas imagens para compor um livro com as foto-grafias de sua viagem, que pretendia expor no Bra-sil e, eventualmente, publicá-lo, aqui ou nos Esta-dos Unidos. Um pequeno ensaio inédito de Aníbal Machado foi claramente escrito como introdução a essa obra. A fotógrafa fora advertida por seus superiores no Office para evitar fotografar tantos “negros, mulatos, barracos de negros, negros no carnaval”. Em seu texto, o crítico brasileiro procu-ra justificar a desobediência: o álbum conteria a “imagem de um país”, na “espontaneidade de seus costumes, na sua atividade cotidiana, nalguns dos gestos mais expressivos de seu povo”, assinalando que a fotógrafa desprezou os “temas facilmente brilhantes” e preferiu os “assuntos mais humildes”. Mas o fez com “sentido sociológico”, em que tipos “marcados por um caráter racial tão forte” parecem “o resumo etnográfico de uma determinada clas-se social”. Se nas fotografias de Naylor não são visíveis “o dinamismo do nosso trabalho e a nossa vontade de ir para a frente”, isso não as desme-rece, pois “todo mundo sabe que o Brasil progri-de”. Como se respondesse a eventuais críticas de funcionários da diplomacia norte-americana e autoridades brasileiras, Aníbal Machado reconhece que o livro não contém “uma imagem completa do Brasil”, porém exibe “a mais rara, a menos conhe-cida, de um país que deseja e necessita entender--se com seus irmãos da América para uma mais íntima e cordial solidariedade.” ²

Genevieve Naylor não pôde expor suas fotos no Brasil, pois o principal dirigente do Office no país as considerou inadequadas: “Há muito mais no Brasil que sacolejos de negros, negros no Car-

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Em 1942, quando as tensões da guerra estavam mais acirradas no Brasil, ambos os projetos sucumbiram: a Getuliana, por ser demasiado ariana, e o álbum de Naylor, demasiado negro.

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progresso

imagem

povo

identidade

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Arquivo Gustavo Capanema / FGV CPDOC

O conjunto das imagens está disponível no site do CPDOC/FGV, como parte do acervo do Arquivo Gustavo Capanema.

Texto datilogafado, com correções manus-critas, mantido pela família de Naylor. Cópia gentilmente cedida por Ana Maria Mauad.

2.1.

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naval, instituições religiosas e bricabraque”. Os agentes norte-americanos receavam que toda essa espontaneidade e simpatia pudesse ofender algu-mas autoridades brasileiras. Uma exposição com pouco mais de 5 dezenas de imagens, no entanto, foi realizada no MoMA, de Nova York, em 1943, tendo sido a edição original proposta pela fotógrafa revista pelo curador do museu para atender melhor as premissas da política visual da boa vizinhança. Nenhum catálogo foi publicado na ocasião.

Com a entrada oficial do Brasil na guerra, em agosto de 1942, a modernidade almejada pela Obra Getuliana tornou-se inviável. Nada poderia estar mais distante do Brasil sonhado por ela que a versão “carnavalizada” da cultura nacional que, nos anos subsequentes, veio a ser eventualmente reconhecida como um componente essencial da identidade brasileira. As melhores imagens desse Brasil sério e disciplinado foram engavetadas e só reapareceram mais de 4 décadas depois. O destino do álbum de Naylor não foi diferente. Depois de re-tornar aos EUA, abandona a fotografia documental e se torna retratista e fotógrafa de moda. Também tivemos que esperar quase meio século para que algumas de suas imagens brasileiras fossem final-mente publicadas. Em 1942, no entanto, quando as tensões da guerra estavam mais acirradas no Brasil, ambos os projetos sucumbiram: a Getuliana, por ser demasiado ariana, e o álbum de Naylor, dema-siado negro.

O Brasil havia sido tema de uma das principais matérias da primeira edição da revista Life, em 23 de novembro de 1936. O Rio de Janeiro é desta-que, com as calçadas de pedras portuguesas, a baía da Guanabara – dita a mais bonita do mundo – e a festa da Penha. Treze anos depois, o público norte-americano pôde constatar, nas páginas da mesma revista, que os investimentos em coopera-ção e propaganda no tempo da guerra haviam sido plenamente recompensados. Em 27 de junho de

1949, a Life publica uma matéria sobre a inaugu-ração da loja da Sears na cidade. O evento atraiu multidões. A revista destacou que “nunca hou-ve uma inauguração como a do Rio de Janeiro”. Os eletrodomésticos, assim como as cortinas de plástico para box de chuveiro, representavam as ideias de modernidade, praticidade e conforto que atraíam os consumidores brasileiros do pós-guerra. As geladeiras foram vendidas 35% mais barato que em qualquer outra loja da cidade e esgotaram-se em menos de 24 horas. As escadas rolantes, raras na época, foram uma atração à parte. Chegaram a transportar 16 mil pessoas por hora nesse primeiro dia. Os brasileiros haviam dado um passo em sua evolução: não eram mais os trabalhadores cívicos a serviço da pátria, nem os alegres foliões de um car-naval permanente. Haviam finalmente se tornado os cidadãos modernos com que haviam sonhado. Eram, finalmente, consumidores.

> Mauricio Lissovsky é historiador e professor de Comunicação na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atualmente é professor visitante na UFPE.

Ao confrontarmos esses dois conjuntos de imagens, nos aproximamos da experiência de ser brasileiro em um mundo dividido pela guerra e pelo conflito ideológico.

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Ao longo de quatro décadas, o artista chileno Alfredo Jaar investiga a construção de formas de controle social por meio de signos visuais, e não somente através da força bruta. Sugere, todavia, que modos de vida mais inclusivos do que aqueles cuja lógica regressiva desvenda são também possí-veis de serem criados valendo-se de tais signos. Afirma, assim, a importância da imagem e de seus usos na emergência e manutenção de hegemonias políticas. Seus trabalhos não obrigam ninguém, contudo, a tomar posições e atitudes, tão somente oferecendo entendimentos do mundo diferentes dos que refletem e alimentam os consensos e con-venções que fazem a vida ser o que ela é em cada momento. São trabalhos que interpelam e afetam o outro, mesmo que não seja possível saber os efeitos dos afetos que produzem.

Um dos trabalhos do artista em que essas caracte-rísticas melhor se oferecem é Untitled (Newsweek), realizado em 1994 e formado por duas linhas do tempo, ambas referentes a um mesmo período: os cerca de 100 dias em que se deu o assassinato de um milhão de habitantes de Ruanda, país situado no centro-leste da África, e que teve início em 6 de abril daquele ano. A primeira dessas linhas do tempo é formada por 17 capas de uma das mais

Pondo em atrito o mundo da revista americana Newsweek e o genocídio de Ruanda, o artista chileno Alfredo Jaar revela a ligação entre necropolítica, racismo e (in)visibilidade midiática.

texto Moacir dos Anjosimagens Divulgação

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importantes revistas semanais de notícia do mun-do (a Newsweek, editada nos Estados Unidos), espaço de visibilidade para pessoas ou assuntos que, quando ali colocados, são legitimados como hierarquicamente mais relevantes, naquele momen-to, que qualquer outro.

A segunda linha do tempo presente no trabalho– disposta logo abaixo das capas da revista – é constituída, por sua vez, por textos curtos que es-tabelecem a cronologia daquele extermínio. Textos que narram o começo, a intensificação, o agiganta-mento e, finalmente, o aparente controle da ma-tança de um milhão de ruandeses e da fuga deses-perada do país de cerca de dois milhões deles. É a narrativa daquilo que, a despeito de seu caráter inédito e brutal, não foi merecedor da visibilidade que a Newsweek concedeu a tantos outros acon-tecimentos do mundo também ocorridos naqueles dias, destacados em suas capas a cada semana. São duas narrativas justapostas que evocam, dife-rentemente, o transcurso de um mesmo período.

O texto que marca o início do tempo descrito no trabalho informa que o presidente de Ruanda, per-tencente à etnia Hutu, foi morto ao ter o avião em que viajava abatido um pouco antes de aterrissar em Kigali, capital de seu país. Foi este o fato que deflagrou o início dos ataques, comandados por extremistas Hutus, a qualquer pessoa que perten-cesse a etnia Tutsi, acusados de provocar a morte do presidente. Moderados Hutus que se opuses-sem a participar ativamente do massacre também foram eliminados. Somente nos primeiros dias de conflito, dezenas de milhares são mortos. Na se-

mana que tal fato ocorre, a capa da Newsweek dá destaque a uma reportagem sobre como sobreviver em um mercado financeiro instável.

Os textos continuam narrando a acelerada evolu-ção dos assassinatos nos dias seguintes. Em duas semanas, já são 50.000 mortos. Em três semanas, 100.000. Simultaneamente, a presença das for-ças de paz da ONU no país é diminuída de 2.500 homens para um efetivo de apenas 270 pessoas. Em uma das capas da Newsweek contemporâneas a esses fatos, é noticiado com destaque o suicídio do cantor Kurt Cobain, com a chamada involunta-riamente irônica da reportagem: “Why do people kill themselves?” (Por que as pessoas se matam?)

O descompasso entre a tragédia em Ruanda e o que a revista dá destaque em suas capas continua nas semanas que se seguem. Pelo menos 100.000 pessoas são assassinadas a cada poucos dias e seus corpos abandonados nas ruas ou jogados nos rios que cortam o país. Mesmo aqueles que se refugiam em igrejas são mortos a machadadas. Outras centenas de milhares de ruandeses se re-fugiam nas fronteiras de países vizinhos. Enquanto isso, a Newsweek continua ignorando a matan-ça. Nem mesmo quando dá destaque a um tema relacionado à África (o retorno de Nelson Mandela à cena política sul-africana), é capaz de fazer uma associação com o genocídio que se desenrolava, naquele momento, em Ruanda. Na semana em que a contagem de mortos no país alcançava 400.000 pessoas, a capa da revista é dedicada à morte de Jacqueline Kennedy Onassis.

Nas três semanas seguintes, enquanto o conflito eleva o número de mortos para 700.000 pessoas, a Newsweek dá destaque a reportagens sobre comportamento ou amenidades. E é curioso que uma dessas reportagens de capa traga o título “Virtue. The crusade against America’s moral decli-ne” (Virtude. A cruzada contra o declínio moral da América). Mas é nas três semanas posteriores a

Para a revista, Marte está mais próximo dos Estados Unidos do que a África jamais vai estar.

a representação das sobras por Moacir dos Anjos

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essa edição que a invisibilidade midiática da tragé-dia de Ruanda ganha contornos mais dramáticos nas capas da revista. Enquanto já existiam mais de meio milhão de refugiados e cerca de 900.000 mortos, a Newsweek dedica três capas consecu-tivas ao julgamento de O.J. Simpson, ator famoso que matou sua esposa. O fato de Simpson ser uma celebridade e ser negro estabelece um contraste ainda maior entre a visibilidade de seu caso e a invisibilidade a que, naquele momento, estavam relegados os mais de um milhão e meio de negros anônimos africanos, mortos ou vivendo em condi-ções sub-humanas em campos de refugiados.

O horror continua avançando em Ruanda nas semanas seguintes. O cólera mata muitos dos que não foram assassinados. Para o semanário, contudo, o destaque na capa de uma das edições desse momento foi mais uma morte individual – desta vez, a do líder norte-coreano Kim Il Sung e as implicações disso para a paz mundial, o que nos faz pensar sobre o que a Newsweek entende por mundo. Na 16a semana após o início do massacre,

Imagens Divulgação Artista

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a chamada principal de capa é uma reportagem sobre a possibilidade de vida humana no planeta Marte, sugerindo que, para a revista, Marte está mais próximo dos Estados Unidos do que a África jamais vai estar.

Finalmente, quando mais de um milhão de seres humanos já haviam morrido brutalmente (e quando um número ainda maior estava vivendo em cam-pos de refugiados em condições de alto risco), a Newsweek resolve conceder uma capa ao tema. “Hell on Earth” (Inferno na Terra), afirma a revista, se referindo mais aos campos de refugiados do que ao próprio massacre que os gerou. Naquele momento, e depois de muita hesitação e aberta re-cusa por parte de alguns países, as Nações Unidas resolvem enviar uma força de paz a Ruanda. Muito do que poderia ter sido feito para evitar centenas de milhares de mortes não foi efetuado. E não o foi, em parte, porque eram mortes quase invisíveis na mídia ocidental.

A mera descrição do trabalho de Alfredo Jaar sugere a necessidade de indagar as razões que fazem com que a morte violenta de tantos habitan-tes de um país do continente africano – ocorridas, ademais, em período tão curto – não seja assunto suficientemente importante para ser matéria de capa de um dos principais veículos de notícias do mundo. Em verdade, tanto o assassinato em massa dos ruandeses quanto os motivos de sua inexpres-sividade midiática podem ser melhor entendidos – embora nunca justificados, é evidente – quando se leva em conta a existência do que o sociólo-go Boaventura de Souza Santos chama de “linha abissal”, fronteira invisível que “separa o domínio do direito do domínio do não-direito”, para além da qual existe uma indistinção entre o legal e o ilegal, entre a verdade e a mentira, ou mesmo entre a vida e a morte. Para além dessa linha abissal, a humani-dade é subtraída. E foi justo para lá que a coloniza-ção de parte da África por países europeus lançou

países como Ruanda, expondo suas populações a formas extremas (internas e externas) de controle social, incluindo a aniquilação física.

Reconhecer o extermínio como prática de domínio implica admitir a existência daquilo que o filósofo Achille Mbembe nomeia de “necropolítica”, regime no qual a vida é submetida à morte e populações específicas são levados à extinção. Ao relacionar a emergência de uma política que regula a distribui-ção da morte com a história da violência colonial (incluindo suas aparições contemporâneas), o filó-sofo aponta ser o racismo o que torna possível ao Estado exercer funções mortíferas. O racismo, diz Mbembe, é “a condição de aceitação da matança”; e é ele que explica o massacre de Tutsis por Hutus, ainda que as diferenças entre os dois grupos étni-cos sejam mais construídas que naturais. É tam-bém o racismo que permite entender a ausência de qualquer referência a esse um milhão de homens, mulheres e crianças negros nas capas da revista Newsweek, ao longo dos 100 dias em que eram as-sassinados. A necropolítica une a aniquilação física e a invisibilidade simbólica dos mortos.

O trabalho de Alfredo Jaar lança luz, ainda, sobre o que está em jogo quando algo é representado; quando se cria – através de imagens, escrita, sons ou gestos – equivalentes sensíveis de uma dada

Na morte de cada ruandês se afirmava uma perfeita coincidência entre o desaparecimento físico de uma vida e a quase insignificância simbólica desse fato.

por Moacir dos Anjosa representação das sobras

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realidade. Untitled (Newsweek) torna evidente que essa equivalência inventada nunca coincide com a realidade a que se refere, sendo resultado da inclusão e exclusão de sujeitos e fatos tidos como relevantes ou desprezíveis por quem tem o poder de representá-la. Mostra que toda equivalência criada entre representação e realidade é informa-da por maneiras particulares, e no mais das vezes conflitantes com quaisquer outras, de recortar e compreender o mundo. A representação é, por isso, campo aberto de negociações e disputas para tornar visíveis e inteligíveis pessoas e acontecimen-tos, lançando outros, ao mesmo tempo, no campo do que não se enxerga e não se entende. Dinâmica que produz lembrança e também esquecimento.

E o que não coube ou foi excluído da represen-tação do mundo que a Newsweek fez naquele período foram justamente os indícios da exclu-são radical a que estava submetida grande parte da população de Ruanda. Não couberam o mais de um milhão de Tutsis e, em menor medida, de Hutus que morreram naqueles 100 dias, vítimas da necropolítica. Eles não contavam no mundo repre-sentado pela revista. Ou ao menos não contavam o bastante para que seu extermínio fosse merecedor de ser assunto de capa da publicação. Na morte de cada ruandês se afirmava uma perfeita coinci-dência entre o desaparecimento físico de uma vida e a quase insignificância simbólica desse fato. Nes-se sentido, esse conjunto de capas da Newsweek agrupadas produz uma representação perver-samente adequada de uma realidade que gera, ativamente, a invisibilidade e o olvido de quem vive

e de quem morre em Ruanda. E de quem vive e morre em tantos outros lugares situados além da “linha abissal”. São imagens que, juntas, produzem uma representação ao mesmo tempo hegemônica e racista do mundo.

Por meio da aproximação de duas linhas do tem-po que se contradizem e se chocam, Alfredo Jaar contribui para a criação de uma representação alternativa desse mesmo mundo, contrapondo-se àquelas que ignoram os já excluídos de outras esferas da vida, como a feita pela revista. Contri-bui, em tarefa partilhada com vários outros artistas, para a criação de uma representação das sobras. Representação contra-hegemônica que aponta e rememora os radicalmente excluídos dos espaços de visibilidade social pela dinâmica política que move o mundo, reclamando para estes a condição de parte. Representação que questiona a ausência dos ruandeses nas capas da Newsweek quando o massacre ainda estava em seu início, momento em que sua visibilidade poderia contribuir, no âmbito de uma política das imagens, para a tomada de ações efetivas capazes de controlá-lo. Um tipo de representação, portanto, que reclama a condição de alguém para quem é ninguém. “Ninguéns” que naquele momento foram os ruandeses, mas que já foram armênios, que já foram judeus, que são palestinos e que são e serão ainda outros povos ou grupos sociais despossuídos de sua condição de humanidade. Povos e grupos sociais que foram e serão colocados em uma zona de abandono social e feitos vítimas de uma política ativa da morte.

> Moacir dos Anjos é pesquisador daFundação Joaquim Nabuco.

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Reflexões sobre o extrativismo a partir da série Estrela Brilhante,de Bárbara Wagner

A história do ourotexto Priscila Nascimentoimagem Bárbara Wagner

Em Bogotá, na Colômbia, há um museu do ouro, com esse nome mesmo: Museo del Oro. A intenção é preservar a cultura e a história pré-co-lombianas do país. Os indígenas usavam o ouro como matéria bruta para as suas obras. Há, nesse museu, altares, piteiras, estátuas – peças diver-sas feitas em ouro, obras religiosas para o povo indígena com caráter completamente distinto daquele buscado pela Espanha. Esta saqueava o ouro e o tratava como moeda, de forma parecida à que o tratamos hoje. A história não acaba aqui, mas o parágrafo sim - já voltamos a ela.

Para realizar a série fotográfica Estrela Brilhante, Bárbara Wagner acompanhou, entre os anos de 2008 e 2010, três grupos de maracatu de Nazaré da Mata: Águia Dourada, Cambinda Brasileira e Estrela Brilhante. Desprovidos de seus ornamentos,

os caboclos – segundo a artista, bêbados – usa-vam enxadas para simular as lanças. Considerado um fracasso pela artista, o ensaio, composto por 22 fotos, foi publicado na revista americana Apertu-re e na revista brasileira Zum.

As fotografias gravadas em minha mente mostram corpos esmagados pela lente. Corpos embria-gados, de olhos sem foco, aparentando não ter controle dos movimentos. Há um domínio incrível da narrativa fotográfica, uma amostra do poder da captura de imagens. A altura da câmera e o flash aceso característico da artista, que ilumina as cores vibrantes do barro, dá um tom saturado à imagem, acende a cor da pele. Mas aonde isso leva?

Levada à Espanha, a arte indígena pré-colom-biana, ora transformada em moeda, ora exposta em museus, explicava aos civilizados coloniza-dores como se comportam aqueles selvagens que tiveram suas terras invadidas e saqueadas. Recentemente, o governo da Colômbia solicitou que os tesouros artísticos feito pelos indígenas pré-colombianos fossem devolvidos à sua terra. A Espanha, país que colonizou grande parte da América do Sul, alega que não precisa devolver

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nada, pois o ouro foi um presente, dado de livre e espontânea vontade pelos habitantes da terra.

Nazaré da Mata é considerada o berço do mara-catu rural, local onde atualmente se concentra o maior número de maracatuzeiros de Pernambu-co. A principal personagem do maracatu rural é o caboclo de lança, essa figura mística que, com elementos da cultura negra e indígena, carrega em suas cores vivas as lutas ancestrais de um povo que resiste. Sendo seus principais representantes e grande parte dos brincantes trabalhadores da cana de açúcar, o maracatu rural é uma representação histórica do que a classe dominante sempre tentou calar. Em artigo publicado em 2017 pelo pesquisa-dor Jean Carlos Nascimento, os principais mestres de maracatu da Zona da Mata de Pernambuco falam sobre a falta de atenção das políticas públi-cas para com essa manifestação cultural, e como isso dificulta sua manutenção. O artigo reflete sobre como o incentivo de políticas públicas acaba destinado a uma classe média artística, reforçando assim uma narrativa dominante sobre o que pode ser arte e quem pode exercê-la.

Algo na série fotográfica Estrela Brilhante me inco-moda; enquanto uma mulher negra de ascendência indígena, acredito profundamente em intuições, e as minhas sempre apontaram algo que desgosto nesses corpos achatados sob um tom estourado entrando em contato com o barro, no mesmo nível do chão. Para defender essas imagens, fala-se sobre um desejo de fugir do belo, sobre uma busca pela distorção desses corpos populares, uma equi-paração da figura com o chão, que se enquadra nesse ensaio como fundo. Uma fuga da represen-tação canônica desses brincantes que se mate-rializa na vontade de representar apenas o corpo, sem as fantasias características. Esse argumento vale-se de um admirável poder retórico, já que é ausente de sentido. Questiono-me se toda uma história de representações coloniais distorcidas do

pobre, preto, indígena e favelado nunca existiu, se esses grupos sempre fizeram parte do cânone do belo, para então validar esse argumento.

Chegando na Espanha é derretido o ouro.

No site de Bárbara Wagner, de uma bela organi-zação minimalista, há fotos que dizem silencio-samente tudo o que eu tento dizer com palavras neste texto. Há um homem negro comprimido, cortado, reduzido para se enquadrar no tamanho de um livro. Em torno dele, mãos brancas posam para a foto: o registro de uma possível posse. Essa foto está na loja do site, e esse não é o único livro segurado por essas mãos com esse tom de pele: é assim com todos os outros que estão à venda.

Em entrevista para o site Limiares, Wagner comen-ta que uma de suas séries, Brasília Teimosa, foi majoritariamente vendida para o Sudeste e para o exterior. A artista fala da ausência de vendas em Recife, cidade palco da série fotográfica, que apa-rece aqui como produtora de uma beleza para ex-portação, que a própria “colônia” não sabe apreciar.

Ao final de uma visita guiada ao Museo del Oro, um dos guias perguntou: “Você achou grande esse museu, que é um dos maiores do mundo? Achou que tem muita coisa? Não tem um terço do que ele deveria ter. Todo o resto, a Espanha levou.”

Brasiliense interessada no “Corpo Popular”, Bárba-ra Wagner mora há 10 anos em Recife. Suas obras percorrem exposições nacionais e internacionais desde 2007, quando fez a série fotográfica Brasí-lia Teimosa. Desde 2011 trabalha em colaboração com Benjamin de Burca.

Este texto, escrito por um dos corpos populares de Pernambuco, é endereçado à Espanha.

> Priscila Nascimento é graduanda em cinemana Universidade Federal de Pernambucoe realizadora audiovisual.

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O fotojornalismo está situado na interseção entre dois campos em que a noção da ver-dade e da objetividade são valores centrais: a fotografia e o jornalismo. Mas sabemos como a “verdade” e a “objetividade” são conceitos complexos e emaranhados em posicionamentos ideológicos. Como lidar eticamente com essas complexidades den-tro de uma empresa jornalística?

No jornalismo nossa matéria prima é a informação, e toda imagem que publicamos, desde um flagran-

por Pedro Nevestrês perguntas para cristiana dias

3 perguntas para Cristiana Dias

Tendo trabalhado por 12 anos como repórter fotográfica e mais sete como editora de fotografia na Folha de Pernambuco, a jornalista, fotógrafa e pesquisadora Cristiana Dias viu de perto como funciona a produção, a seleção, o enquadramento e a circulação de imagens em um veículo de imprensa. Nesta entrevista à Matute, conversamos sobre o dever ético do jornalismo, a produção discursiva da realidade e os novos desafios da profissão repórter na era das redes sociais e das fake news.

por Pedro Nevesimagem Cristiana Dias

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te na rua até uma produção fotográfica com mo-delo, cenário e luz montados, advém de escolhas pessoais. Escolhemos lentes, ângulos, pontos de foco, tratamento, conceitos, recortes de realidades e criamos “ficções” ou imagens ilustrativas para representar realidades. Naturalmente, a liberdade de escolha caminha de mãos dadas com a respon-sabilidade ética por estas escolhas. Respondemos ética e legalmente pelo que é publicado.

Muitas vezes, no campo das imagens, ficções têm maior capacidade de representar a realidade e se fazer entender do que um registro objetivo de um

fato. Se tenho uma palestra sobre determinado assunto e apenas o espaço de uma imagem para representá-la, prefiro escolher uma imagem que melhor esclareça o que está sendo informado do que a foto de um palestrante oficial, por exemplo.É preciso desdobrar as camadas da notícia. Am-pliamos determinados aspectos, sim. É neste cam-po da “ficção” que podemos atuar. Mas uma ficção que entregue a realidade, e não que a esconda.

Se é honesto me posicionar ideologicamente, tenho um olhar mais à esquerda porque conheço muitos lados e sei que a manutenção da pobreza e da miséria são escolhas políticas. Enquanto jorna-listas, nos cabe dar a ver situações e realidades desconhecidas, ou que certa fatia dos poderosos busca esconder, dentro de um filtro de interesse jornalístico. Buscamos sempre outros modos de ver. Precisamos olhar e enxergar tudo aquilo que o dia a dia acaba por apagar ou nos cegar. A rua nos dá esta noção de realidade de forma muito dura. Circulei por lugares, conheci pessoas, vivenciei “realidades” que a maioria das pessoas de classe média ou alta jamais vai acessar, senão mediados por uma representação. Este é o nosso papel, ser mediadores pelo direito à informação.

Gosto de uma frase dita por Edgar Morin numa palestra: “a verdade é uma cebola.” Hoje vivemos a distopia da política brasileira. Eu me pergunto quantas camadas de “verdades” seletivas e contra-ditórias a população é capaz de enxergar. Quantas camadas de supostas verdades podem sobreviver simultaneamente? Há mentiras ou meias verdades servindo de base a condenações jurídicas. Enquan-to provas materiais concretas e indiscutíveis do ponto de vista legal são abafadas e engavetadas em nome de um projeto de poder. E a imprensa tem parte nisso. Quem decide o que é a verdade dentro de uma disputa de narrativas?

Escolhas éticas que incluam a coletividade den-tro de um campo amplo de liberdade e respeito

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é o que desejo para o jornalismo. E tento manter sempre a reflexão sobre o que de fato são “nos-sos” desejos, e como eles impactam no todo. Isso é essencial numa democracia.

Os veículos de comunicação têm investido cada vez mais em múltiplas plataformas para veicular conteúdo; as redes sociais se torna-ram especialmente importantes nos últimos anos. Como o Facebook, Twitter, Instagram e outras mídias do tipo têm transformado o trabalho do fotojornalista e do editor de fo-tografia? Como disputar a atenção do públi-co em um espaço tão saturado de imagens e vozes?Se a gente for pensar no uso das tecnologias, nossa demanda de trabalho sempre aumenta. É preciso alimentar as diversas plataformas seguindo o ritmo e o perfil de cada uma delas. Passamos por algumas dificuldades para entender o que deveria pesar mais na escolha das imagens. Temos uma matéria quente ou um flagrante: a gente segura para o impresso ou publica logo nas redes? Mui-tas vezes a redação queria jogar a informação no Instagram, que é uma plataforma de imagens, e no departamento de fotografia a gente entendia que a notícia tinha mais perfil pra Facebook.

Esse timing fomos descobrindo aos poucos, e percebendo que determinado tipo de imagem ga-nhava mais visualizações que outros. Nem sempre o que considerávamos a melhor fotografia ganhava a simpatia nas redes. Vamos descobrindo o que funciona, mas com o cuidado de estar sempre alimentando com novas imagens de qualidade e relevantes do ponto de vista jornalístico. Isso foi feito por nós de forma intuitiva, através de acer-tos e erros. Às vezes a fotografia vale pela notícia, outras pela imagem em si. No começo da manhã a gente buscava abrir com algo mais leve, como quem deseja “bom dia” e depois “te prepara que vem bomba”! Claro que se tivéssemos partido de

pesquisas, conhecendo o perfil dos usuários, seria um processo bem mais eficiente e eficaz. Quando você acerta este timing é mais fácil ser acompa-nhado nas redes sociais. Quando a gente mantém um nível de qualidade e credibilidade acaba se tornando um ponto de parada obrigatória. Mas não tenho receitas prontas.

Entre as muitas crises enfrentadas pelo jor-nalismo atualmente, a crise de credibilidade parece ser uma das mais sérias. Por um lado, há a constatação que empresas de mídia têm interesses a defender que interferem no conteúdo que elas produzem e disseminam. Por outro, muito vem se falando das fake news, produzidas por agentes sem nenhum compromisso ético e veiculadas fora dos espaços tradicionais do jornalismo. Você vê saídas para essa crise? Como ela afeta o fo-tojornalismo especificamente?Talvez seja lugar comum afirmar que o jornalismo nunca foi tão necessário em tempos de fake news e pós-verdade. Vão surgindo outras necessida-des para as quais não estávamos preparados. Há a necessidade de se consolidar como fonte de checagem de notícias até as leis acompanharem e os tribunais começarem a punir seriamente os (ir)responsáveis pela disseminação de notícias falsas. Também se fortalecer com matérias especiais bem construídas a partir de checagem, análise e interpre-tação de dados, utilizando-se dos mesmos meca-nismos de uso de algoritmos. É incrível o que pode ser feito se utilizarmos estas ferramentas com cri-térios éticos. Mas na medida em que encontramos soluções, novos problemas a enfrentar vão surgindo.

A última eleição presidencial brasileira foi marcada pela consolidação da indústria da mentira e da dis-seminação do ódio, com aporte financeiro pesado para bancar a gestão de perfis falsos, os “internau-tas” robôs, o que impactou e talvez tenha definido o resultado das eleições. Uma estética amadora,

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caseira dá a sensação de publicações espontâ-neas, sem planejamento, mas sabemos que em sua maioria estas postagens são milimetricamente estudadas e definidas por algoritmos.

As mídias tradicionais estão em crise, e faz parte do jogo político derrubar sua credibilidade e, con-sequentemente, seu poder de alcance. Empresas sempre terão interesses a defender. É importante que a visão da empresa seja clara. É honesto se posicionar e esclarecer a linha editorial. Mas elas têm responsabilidade e pagarão o preço das suas escolhas. A crise de credibilidade é um preço muito alto. Também é bom lembrar que boa parte dos jor-nalistas que fazem estas empresas tentam escapar

das formas de controle e têm compromisso com a notícia. Ainda que sejamos humanos e necessi-temos pagar contas, em algum momento outros valores pesarão mais. É preciso ter discernimento. Felizmente, as mídias independentes têm crescido, mas ainda estamos no meio do furacão para enten-der o que virá. Algumas começam a se consolidar. Outras vêm conquistando espaço e credibilidade através de outras formas de monetização, assina-tura a preços baixos, financiamento coletivo. Mas ainda estamos muito divididos. Precisamos de união. Precisamos identificar e apoiar o jornalismo

Empresas sempre terão interesses a defender, mas é bom lembrar que boa parte dos jornalistas que fazem estas empresas tentam escapar das formas de controle e têm compromisso com a notícia.

independente para que tenhamos um porto, “algo ou alguém” em quem confiar neste mar revolto de mentiras, jogo de poder, disputas de narrativas e muita manipulação.

Em relação ao fotojornalismo, o mercado vem mu-dando muito rápido. Há anos o flagrante não per-tence ao fotógrafo profissional, mas a quem estiver com celular a postos diante dos acontecimentos. Repórteres de texto acumulam funções. Fotógrafos também. Algumas empresas priorizam fotógrafos com formação em jornalismo. No final, todos pas-sam um flash para a rádio, fazem um live para as redes sociais, fotografam, filmam, editam, escre-vem e postam. As equipes diminuem, a qualidade cai, a crise atinge a todos. A facilidade de manipula-ção de imagens não escapa à crise de credibilidade. Mas isso vem desde a invenção da fotografia.

Para a maioria das pessoas, a fotografia de jornal parece ter prazo de validade. O fotógrafo acaba virando um especialista. E se virar especialista em algum campo da fotografia não bastar, vira e se vira com o auxílio de outras paixões, ou o que for ne-cessário à sobrevivência: assessoria, produção de vídeos, cinema, fotografia fine art, culinária, jardina-gem etc. Ou então muda de profissão e a fotografia deixa de ser ganha-pão.

Estamos saturados de tantas imagens, sim. O bom fotojornalismo acaba virando coisa rara. Mas é lindo de ver! E a gente sabe quando está diante de uma imagem icônica. Carregamos várias de-las no nosso imaginário. Se o fotojornalismo vai sobreviver a tudo isso? Penso que não. O certo é que precisamos aprender a ver imagens com desconfiança e refletir sempre sobre as estratégias de manipulação que se escondem por trás delas. É preciso estimular certa pedagogia do olhar. Preci-samos aprender a ver de forma crítica e escapar desta hipnose coletiva. > Pedro Neves é jornalista e doutorando em Comunica-ção e Cultura na UFRJ

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Com a ajuda da artista e curadora Ana Lira, selecionamos uma amostra do trabalho de quatro artistas jovens pernambucanos. Em cada obra, uma perspectiva distinta sobre a vivência negra: espiritualidade, ancestralidade, sexo, gênero, performatividade, racismo, pertencimento. O fazer artístico se entrelaça com a vida cotidiana, com as suas demandas mais urgentes, seus afetos, suas linhas de fuga, seus pontos de apoio. As abordagens estéticas são tão variadas quanto os sentimentos que as imagens evocam; em comum, uma potência política que pode assumir muitas formas, da insurgência vital à afirmação da comunidade.

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Karla Fagundes (Recife, 1993)

atuando nos campos da fotografia, do cinema, da curadoria, da produção cultural e da educação, Arlak leva sempre consigo uma perspectiva afro-indígena, a herança que ela carrega nas veias e na formação. Sobrinha da Yalorixá Sandra Juremeira do terreiro Ilê Axé Yemonjá Ossi, na Zona Norte do Recife, a artista conhece de perto

as religiões de matriz africana, cujos encontros, festas e cerimônias ela captura obliquamente, em imagens de atmosfera densa e misteriosa.

Arlak Fagundes

instagram.com/arlak_fagundes

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Rennan Peixe (Recife, 1989)

Fotógrafo, cinegrafista, artista e professor, há dez anos Rennan vem registrando a religiosidade e as manifestações culturais da diáspora africana. Seja numa cerimônia de Santeria em Cuba ou no Kipupa Malunguinho do Quilombo do

Catucá (PE), suas imagens sempre demonstram cumplicidade com as pessoas e intimidade com os espaços onde elas celebram sua espiritualidade.

Rennan Peixe

instagram.com/rennanpeixe

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Abiniel João do Nascimento (Carpina, 1996)

Marcado, ferido, ensopado de sangue, exposto aos olhos dos passantes, o corpo de Abiniel é o seu instrumento de trabalho e o seu principal suporte artístico. É a partir da própria carne que ele constrói situações performáticas que evocam a opressão histó-rica dos negros no Brasil, da escravidão ao apagamento cultural. A fotografia aparece duplamente em sua obra: como registro de ações efêmeras e como mídia em si mes-

ma valiosa pelos jogos de visibilidade e invisibilidade que permite.

Abiniel João

abinieljnascimento.com

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Kalor Pacheco (Camaragibe, 1990)

transitando entre performance, videoarte, net art e fotografia, a artista põe seu corpo em jogo para refletir sobre a experiência de ser uma jovem mulher negra hoje. Sua série

Tecnologia a serviço da orgia inventa dispositivos complexos para explorar manifestações de sexualidade mediadas pelas redes sociais e por serviços de streaming ao vivo. Encarnando e subvertendo estereótipos relacionados à mulher negra na cultura brasileira, ela investiga os lugares em que a tecnologia de ponta encontra atualizações dos velhos mitos racistas e

patriarcais de sempre.

Kalor

kalor.hotglue.me

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mat

ute

incentivo apoio

idealização e coordenação

Cecilia Urioste e Mila Souza

edição

Pedro Neves

design gráfico

A Firma

roteiro audiodescriçãoLliana Tavares

consultoria audiodescriçãoMichelle Alheiros

assessoria de imprensaSofia Lucchesi

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www.matuterevista.com