revista lugar comum 23-24

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Nº 23-24

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Revista Lugar Comum 23-24

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  • N 23-24

  • LUGAR COMUM Estudos de mdia, cultura e democracia uma publicao vinculada a professores e pesquisadores do Laboratrio Territrio e Co-municao LABTeC/UFRJ e Rede Universidade Nmade. Av. Pasteur, 250 Campus da Praia Vermelha Escola de Servio Social, sala 33 22290-240 Rio de Janeiro, RJ

    EQUIPE EDITORIALAlexandre do NascimentoAlexandre MendesBarbara SzanieckiFbio MaliniGerardo SilvaGilvan VilarimGiuseppe CoccoLeonora Corsini

    DESIGN Barbara Szaniecki REVISO DE TEXTOS Leonora CorsiniDIAGRAMAO Vinicius BastosAPOIO: Este volume foi realizado em parceria com o LABIC/Universidade Federal do Esprito Santo

    CONSELHO EDITORIAL Alexander Patez Galvo - Rio de Janeiro, Brasil Ana Kiffer - Rio de Janeiro, Brasil Antonio Negri - Roma, Itlia Beppe Caccia - Veneza Itlia Bruno Cava - Rio de Janeiro, Brasil Caia Fittipaldi - So Paulo, Brasil Carlos Alberto Messeder - Rio de Janeiro, Brasil Carlos Augusto Peixoto Jr. - Rio de Janeiro, Brasil Christian Marazzi - Genebra Sua Elisabeth Rondelli - Rio de Janeiro, Brasil Henrique Antoun - Rio de Janeiro, Brasil Ivana Bentes - Rio de Janeiro, Brasil Karl Erik Scholhammer - Rio de Janeiro, Brasil Maria Ali-ce Carvalho - Rio de Janeiro, Brasil Maria Jos Barbosa - Belm, Brasil Maurizio Lazza-rato - Paris, Frana Micael Herschmann - Rio de Janeiro, Brasil Michael Hardt - Durham, Estados Unidos Michle Colin - Paris Frana Patrcia Daros - Rio de Janeiro, Brasil Paulo Henrique de Almeida - Salvador, Brasil Paulo Vaz - Rio de Janeiro, Brasil Peter Pal Pelbart - So Paulo, Brasil Rodrigo Guron - Rio de Janeiro, Brasil Suely Rolnik - So Paulo, Brasil Tatiana Roque - Rio de Janeiro, Brasil Thierry Baudouin - Paris, Frana Yann Moulier Boutang - Paris, Frana

    Lugar Comum Estudos de Mdia, Cultura e DemocraciaUniversidade Federal do Rio de Janeiro. Laboratrio Territrio e Comunicao LABTeC/ESS/UFRJ Vol 1, n. 1, (1997) Rio de Janeiro: UFRJ, n. 23-24 jan 2006-abr 2008

    QuadrimestralIrregular (2002/2007)

    ISSN 1415-86041. Meios de Comunicao Brasil Peridicos. 2. Poltica e Cultura Peridicos. I Universidade Federal do Rio de Janeiro. Laboratrio Territrio e Comunicao.LABTeC/ESS. CDD 302.23 306.2

  • EDITORIAL 7

    UNIVERSIDADE NMADE

    Os manifestos, o debate pblico e a proposta de cotas 11 Alexandre do Nascimento

    Mensagem aos senadores 1 7 Alexandre do Nascimento

    Polticas da restaurao. Novas direitas e velhas esquerdas, ou como reciclar o fundo raspado do tacho* 19 Judith Revel

    Classe e multido 25 Sandro Mezzadra

    MDIA E CULTURA

    Por uma Genealogia da Blogosfera: consideraes histricas (1997 a 2001) 33 Fbio Malini

    Uma fala inconclusa: espera da retomada da crtica de cinema no Brasil* 49 Alexandre Curtis

    Governo eletrnico e crise dos cartes corporativos: a necessria conexo irrealizada 67 Jos Antonio Martinuzzo

    Cultura da convergncia, rdios inteligentes e o avano do comum 85 Srgio Amadeu da Silveira

    DELEUZE-GUATTARI: AGENCIAMENTOS, REDES, NOMADOLOGIA

    Sobre Mil Plats 95 Antonio Negri

    Entre o migrante e o nmade Intermezzo 1 13 Leonora Corsini

    V de Viagem (do Abecedrio Deleuze) 1 29 Gerardo Silva

  • Sobre a noo de problema 1 35 Tatiana Roque

    A Nomadologia de Deleuze-Guattari 1 47 Paulo Domenech Oneto

    DELEUZE E A CULTURA CONTEMPORNEA

    O agenciamento Foucault/Deleuze 1 67 Antonio Cavalcanti Maia

    Gilles Deleuze em combate contra a impostura 1 85 Guilherme Castelo Branco

    Beckett-Berkeley: percepo e cinema segundo Deleuze 191 Jorge Vasconcellos

    Deleuze e a Arte: o caso da literatura 1 99 Ovdio Abreu

    O tempo que j no rima: Deleuze e Hlderlin 211 Claudia Castro

    ECONOMIA POLTICA DA GLOBALIZAO

    Economia poltica das multides: mobilidade do capital, movimentos sociais e movimento do capitalismo 227 Yann Moulier Boutang

    Trabalho e Servio Social na era ps fordista 2 39 Marina Bueno e Thais Mazzeo

    A feminilizao do trabalho no capitalismo cognitivo 2 47 Cristina Morini

    As contradies do sistema capitalstico e as novas contradies sociais 267 Andra Fumagalli

    Do controle de endemias luta contra a misria: a agenda global das polticas de sade pblica aps a Batalha de Seattle 283 Francis Sodr

  • NAVEGAES

    Antropofagias, racismo e aes afi rmativas 3 05 Giuseppe Cocco

    Crtica do humanismo penal moderno no pensamento de Michel Foucault 331 Alexandre Mendes

    RESENHAS

    Virtuosismo e Revoluo 348 Gilvan Vilarim

    J, a fora do escravo 350 Wanessa Canellas

    RESUMOS 355

  • Editorial

    Esta edio da Revista LUGAR COMUM revigora a proposta iniciada no nmero anterior de costurar os artigos em eixos temticos defi nidos pelos mem-bros do comit editorial e/ou convidados. Alm das sees fi xas da Universidade Nmade, Navegaes e Resenhas, quatro eixos temticos dispostos em diversos artigos justifi caram material sufi ciente para o lanamento de um nmero duplo da revista. Os temas escolhidos para esta edio foram: Mdia e Cultura; Deleuze-Guattari: Agenciamentos, Redes, Nomadologia; Deleuze e a Cultura Contempo-rnea; e Economia Poltica da Globalizao.

    A tnica central adotada o papel do pensamento de Gilles Deleuze na contemporaneidade por vezes indissocivel da intensa co-laborao com Flix Guattari e seus refl exos em campos, aqui abordados, que vo da arte s migra-es. Deleuze joga por terra qualquer tentativa de se supor um fi m da fi losofi a ao provocar questes que permitem enfrentar a sociedade de controle e da indstria cultural por meio de um renovado vocabulrio fi losfi co. A diversidade de algu-mas problematizaes levantadas pelos autores demonstra que as mil faces de Deleuze trazem tona o renascimento da fi losofi a, uma fi losofi a de combate que estimula uma resistncia ao que est a. O primeiro eixo apresenta artigos sele-cionados que tanto articulam como exercitam vocbulos diversos da terminologia deleuziana sob diferentes campos; o segundo rene comunicaes apresentadas no evento Deleuze e a Cultura Contempornea, promovido pelo Departamento de Filosofi a da PUC-Rio em maio de 2006 e coordenado pelo professor Antonio Maia, que organiza a segunda parte deste Eixo Deleuze.

    A leitura deste nmero da LUGAR COMUM refora o frescor e a resis-tncia necessrios como combate aos dispositivos miditicos e globalizao em curso.

    OS EDITORES

  • Universidade Nmade

  • Os manifestos, o debate pblico e a proposta de cotas

    Alexandre do Nascimento

    No dia 30 de junho de 2006, por ocasio da entrega de um Manifesto contrrio s cotas1, com 114 assinaturas, ao Congresso Nacional, o Jornal Folha de So Paulo noticiou o fato com o seguinte ttulo: Movimento Negro contra cotas no ensino. O texto da reportagem dizia que Representantes do Movimento Negro Socialista entregaram ontem no Congresso um manifesto contra a votao dos projetos que estabelecem cotas para negros em universidade federais e que criam o Estatuto de Igualdade Racial (Folha de So Paulo, 30/06/2006). Trata-se apenas de uma reportagem, que alm de noticiar o fato ocorrido, atribui insinua que o movimento negro contrrio proposta de poltica de cotas.

    J em 5 de julho de 2006, um dia aps a entrega aos presidentes da C-mara de Deputados e do Senado Federal, por ativistas do movimento negro e professores universitrios, de um Manifesto, com 582 assinaturas, em favor da aprovao do projeto que cria cotas nas universidades e do projeto do estatuto da igualdade racial2, o mesmo jornal, em seu editorial, escreveu: A Lei de Cotas, ao tornar obrigatria a reserva de vagas para negros e indgenas nas instituies fe-derais de ensino superior, ameaa a educao universitria. O mrito acadmico perde espao, e a duplicidade de critrios estimula o recrudescimento do racismo nos bancos escolares (Folha de So Paulo, 05/07/2006, grifo meu).

    Segundo dAdesky3, a defi nio de Movimento Negro cunhada no I Encontro Nacional de Entidades Negras, realizado em 1991 na cidade de So Pau-lo, signifi ca o conjunto de entidades e grupos, de maioria negra, que tm o obje-tivo especfi co de combater o racismo e/ou expressar valores culturais de matrizes africanas. De fato, o movimento negro uma multiplicidade de organizaes e no uma nica organizao. Em relao s cotas, a maioria dessas organizaes, grupos e militantes favorvel, o que se expressa nas vrias intervenes polti-cas da militncia negra. Como na II Marcha contra o Racismo, Pela Igualdade e

    1 Manifesto Todos tm direitos iguais na Repblica Democrtica. Braslia, 29/06/06.2 Manifesto Em favor da Lei de Cotas e do Estatuto da Igualdade Racial. Braslia, 04/07/06.3 dAdesky, Jacques. Plurarismo tnico e multiculturalismo: racismos e anti-racismos no Bra-sil. Rio de Janeiro, Pallas, 2001.

    LUGAR COMUM N23-24, pp.11-16

  • 12 OS MANIFESTOS, O DEBATE PBLICO E A PROPOSTA DE COTAS

    a Vida, realizada em Braslia no dia 22 de novembro de 2005, que em seu Mani-festo, assinado por 21 organizaes nacionais e militantes de todos os Estados da Federao, apresenta-se como uma Marcha que vai exigir do Governo Lula e do Congresso Nacional, a aprovao do Estatuto da Igualdade Racial e do Projeto de Cotas nas Universidades4.

    De 2001, quando no Brasil o debate sobre aes afi rmativas e polticas de cotas ampliou-se na sociedade, at os dias de hoje, o jornal Folha de So Paulo, um dos maiores e mais infl uentes no pas, publicou diversos artigos e reportagens. Porm, opinies e informaes contrrias s polticas de cotas tiveram maior es-pao do que as opinies e informaes favorveis. do prprio ombudsman5 do Jornal Folha de So Paulo, Marcelo Beraba, a crtica de que o jornal

    Publicou, ao longo do ano (de 2006), dez artigos sobre o estatuto e sobre as cotas. Na seo Tendncias e Debates, publicou trs contra os projetos de aes afi rmativas e trs a favor. O jogo desequilibra com os quatro textos do colunista semanal Demtrio Magnoli, um dos signatrios do manifesto contra o estatuto e as cotas. O jornal pode alegar que o espao que edita, Tendncias e Debates, manteve o equilbrio e que o colunista tem todo o direito de expressar opinio. certo. Assim como certo tambm que o resultado fi nal para o leitor que o jornal deu mais visibilidade para uma das posies... No ltimo dia 29 (de junho), o jornal publicou um artigo de Magnoli... e a ntegra do manifesto 12 Todos tm direitos iguais na Repblica , assinado pelos que so contra as cotas e o estatuto. Na segunda-feira, foi divulgado o manifesto 12 Em favor da Lei de Cotas e do Estatuto da Igualdade Racial . O novo documento recebeu, na tera-feira, por parte do jornal, um tratamento equivocado, que afetou os princpios jornalsticos do equilbrio e do pluralismo...no publicou a ntegra do manifesto pr-cotas, como tinha feito com o texto que coincidia com a opinio do jornal (Folha de So Paulo, 08/07/06).

    Tanto os editoriais, quanto o maior espao dado s opinies contrrias s polticas de cotas para negros, expressam posicionamentos dos principais jornais e de um determinado pensamento social sobre o legado cultural africano, a popu-lao negra e as polticas de ao afi rmativa de combate s desigualdades raciais: violao do princpio da igualdade e do mrito acadmico, ameaa, etc.

    4 Manifesto Zumbi + 10 - II Marcha contra o Racismo, Pela Igualdade e a Vida.5 O ombudsman o profi ssional que, segundo o prprio jornal, tem como atribuies criticar o jornal sob a perspectiva dos leitores, recebendo e verifi cando suas reclamaes, e comentar, aos domingos, o noticirio dos meios de comunicao.

  • Alexandre do Nascimento 13

    A questo que destacamos aqui no so os posicionamentos, mas os dis-cursos. Fale-se em violaes de princpios democrticos e ameaa ao ensino su-perior, como se a entrada de negros nas universidades signifi casse um mal, um retrocesso ou algo do gnero. Considerando que o projeto de cotas nas univer-sidades que tramita na Cmara dos Deputados estabelece cotas para estudantes oriundos de escolas pblicas e, dentro dessa, cotas para negros e indgenas, uma das leituras possveis que tais posicionamentos passam que o problema parece estar na cor da cota, ou seja, no fato de serem cotas para negros, e no exatamente na proposio de cota em si. Em relao s cotas para defi cientes fsicos, mulheres e funcionrios pblicos, que existem na legislao e em diversas instituies, no so expressas preocupaes semelhantes.

    Entre 1986 e 2006 muito se avanou na constituio material da demo-cracia no Brasil (fi m do regime militar, constituio de 1988, eleies diretas, a criao do sistema nico de sade, a quase universalizao da educao funda-mental e da previdncia social, constituio de um sistema de proteo social, etc.), inclusive com Lei Ca6, a criao de instituies estatais de promoo da igualdade racial e polticas pblicas de aes afi rmativas. Nesse avano, os movi-mentos sociais foram fundamentais. Na luta contra o racismo e na transformao de algumas propostas em agenda poltica e debate pblico, podemos citar impor-tantes eventos, como as grandes passeatas em So Paulo e no Rio de Janeiro, em 1988, e as Marchas Zumbi dos Palmares Contra o Racismo, Pela Cidadania e a Vida, de 1995 e 2005, ambas organizadas pela militncia negra, como marcos fundamentais de um novo ciclo de lutas, agora marcadas pela afi rmao de di-reitos, alm da denncia do racismo. Tais eventos, sobretudo a Marcha de 1995, signifi caram uma guinada do Movimento Social Negro da denncia do chamado mito da democracia racial proposio de polticas de combate ao racismo e promoo da igualdade racial, com uma grande presso sobre as Instituies do Estado Brasileiro.

    Esse novo ciclo de lutas anti-racistas no Brasil levou ao conjunto da so-ciedade e s instituies do governo, do legislativo e do judicirio, o debate sobre as polticas pblicas de ao afi rmativa para a populao negra e, dentro desse, a proposio das cotas. A base material desse processo, alm da existncia e das reivindicaes histricas do movimento social negro e da grande quantidade de cursos pr-vestibulares para estudantes pobres e negros(as), que do nosso ponto de vista j se constituem como a demonstrao da necessidade de recomposio

    6 Lei 7.716, de 5 de janeiro de 1989, que defi ne os crimes resultantes de preconceitos de raa

    e de cor.

  • 14 OS MANIFESTOS, O DEBATE PBLICO E A PROPOSTA DE COTAS

    social e racial das nossas instituies, apresentada pelas pesquisas e anlises que, nos de 1990 e 2000, passaram a demonstrar as desigualdades raciais relacionadas a uma histria e a uma dinmica social marcadas pela presena de preconceitos e discriminaes nas relaes e instituies. Ou seja, como diz Ricardo Henriques, no Brasil a pobreza tem cor.

    Concretamente, as polticas de cotas para negros no Brasil so recentes, apesar da histrica e conhecida desigualdade racial oriunda, entre outras coisas, do racismo e de preconceitos e discriminaes conseqentes, que estabeleceram barreiras que ainda difi cultam o acesso de negros e negras educao, empregos e boas remuneraes e a igualdades de oportunidades em geral. A Conferncia Mundial contra o Racismo, Discriminao Racial, Xenofobia e Intolerncias Cor-relatas, realizada em setembro de 2001, foi muito importante para o estabeleci-mento das primeiras aes, sendo a mais importante e polmico a implantao da reserva de vagas para estudantes pretos e pardos nas Universidades Estaduais do Estado do Rio de Janeiro, primeiro programa de cotas no pas no mbito do ensino superior. Muito mais que aos resultados da Conferncia, este fato se deve grande mobilizao promovida pelas organizaes do movimento negro, que colocou o debate na agenda poltica, submeteu o Estado Brasileiro a um constrangimento internacional denunciando a ausncia de polticas pblicas de reduo da desi-gualdade racial e, ao mesmo tempo, convenceu governos, legisladores e empresas a adotarem medidas de ao afi rmativa.

    Hoje, j so mais de 40 as instituies de ensino superior que possuem polticas de cotas para estudantes negros, indgenas, oriundos de escolas pblicas e de baixa renda familiar. H, inclusive, experincias de cota para professores e cota na ps-graduao. Em que pese o fato de que os dois projetos de lei que esta-belecem cotas nas universidades e outros setores da economia (o PL 73/1999, que estabelece cotas nas universidades federais e o PL 3198/2000, o chamado de Esta-tuto da Igualdade Racial, que cria cotas em vrios setores da economia) enfrentem muitas resistncias no Congresso Nacional e na sociedade, desde 2002 as cotas para no ensino superior j so realidade. Segundo Ferreira7, hoje 51 instituies de ensino superior adotam cotas, das quais 33 adotam cotas para negros.

    Desde a Conferncia Mundial, a proposio de cotas tem sido uma das principais aes das organizaes do movimento negro e tem mobilizado pesqui-sadores, polticos, universidades e sociedade em geral, na produo de conheci-mentos, anlises e opinies. No debate sobre as polticas de cotas h posiciona-mentos, interesses divergentes e, do nosso ponto de vista, uma resistncia contra

    7 Ferreira, Renato. Mapa das Aes Afi rmativas. Rio de Janeiro: UERJ/LPP/PPCOR, 2008.

  • Alexandre do Nascimento 15

    essas polticas que, levando em considerao os argumentos que mobiliza, enten-demos como conservadora, pois alm das denunciais do movimento social negro e existncia de cursos pr-vestibulares para negros e carentes, os indicadores sociais mostram as imensas desigualdades raciais e muitos estudos, com base nesses indicadores, concluem que h uma correlao dessas desigualdades com a discriminao racial.

    A ameaa qualidade acadmica e os perigos de uma ciso racial que aparecem nos discursos daqueles que posicionam-se contrariamente s polticas de cotas, sobretudo os articuladores do manifesto contrrio s cotas, ainda no se realizaram e, ao que indicam os fatos e dados disponveis, no se realizaro. O princpio (formal) da igualdade que esse pensamento social e posicionamento poltico faz, per se, no capaz de instituir nenhum processo material de combate s desigualdades, s relaes assimtricas e ao racismo, caractersticas desta so-ciedade. (Fry et al., 2007; Nascimento, 2006)

    Do nosso ponto de vista, o que importante observar que, certo ou errado, a poltica de cotas uma proposio do movimento social negro j em funcionamento em diversas instituies e com relativo sucesso no que diz respeito promoo da diversidade e da distribuio do que fruto do trabalho comum (e que deve retornar ao comum), do combate ao racismo e da democratizao das instituies. Escola pblica laica e de qualidade para todos um dos fundamentos materiais da democracia e bandeira da luta anti-racista desde a abolio do insti-tuto da escravido, mas no ser alcanada sem o desmonte dos mecanismos de produo de desigualdade presentes nas nossas instituies. As polticas de ao afi rmativa so instrumentos de um processo de democratizao, pois na democra-cia a poltica consiste na criao daquilo a que, necessariamente, todos devem ter acesso, criando os meios que assegurem esse acesso.

  • 16 OS MANIFESTOS, O DEBATE PBLICO E A PROPOSTA DE COTAS

    Referncias

    CARVALHO, Jos Jorge. Incluso tnica e Racial no Brasil: a questo das cotas no ensino superior. So Paulo: Attar, 2005.DADESKY, Jacques. Plurarismo tnico e multiculturalismo: racismos e anti-racis-mos no Brasil. Rio de Janeiro, Pallas, 2001.FERREIRA, Renato. Mapa das Aes Afi rmativas no Ensino Superior. Rio de Janei-ro: UERJ/LPP/PPCOR, 2008.FRY, Peter; MAGGIEe, Yvonne; MAIO, Marcos Chor; MONTEIRO, Simone; SAN-TOS, Ricardo Ventura (orgs.). Divises Perigosas: Polticas Raciais no Brasil Con-temporneo. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2007.MANIFESTO ZUMBI. Documento da II Marcha Zumbi+10 contra o racismo, pela igualdade e a vida. Braslia, 22/11/2006.NASCIMENTO, Alexandre do. Movimentos Sociais, Ao Afi rmativa e Universali-zao dos Direitos. Revista Lugar Comum, n. 19/20, Rio de Janeiro, 2004. NASCIMENTO, Alexandre do. Aes Afi rmativas: da luta do Movimento Social Ne-gro s polticas concretas. Rio de Janeiro: CEAP, 2006.NEGRI, Antonio e COCCO, Giuseppe. Global: biopoder e luta em uma Amrica Latina globalizada. Rio de Janeiro: Record, 2005.

    Alexandre do Nascimento, educador, professor do Movimento Pr-Vestibular para Negros e Carentes e professor da Fundao de Apoio Escola Tcnica do Estado do Rio de Ja-neiro (FAETEC), onde integra o Ncleo de Estudos tnico-Raciais e Aes Afi rmativas. um dos articuladores do Manifesto em Favor da Lei de Cotas e do Estatuto da Igualdade Racial.

  • Mensagem aos senadores na audincia pblica conjunta das Comisses de Direitos Humanos, Educao e Assuntos Sociais sobre Igualdade Racial e Cotas, realizada em 03/08/2006

    Alexandre do Nascimento

    Sras. e Srs. Parlamentares, o debate sobre as cotas ganhou a sociedade e esta Casa tem a responsabilidade de tomar uma deciso, que talvez seja uma das mais importantes desde a Constituio de 1988. Apesar da importncia do debate pblico sobre o tema, as Audincias Pblicas no conseguem traduzir a dimenso do debate na sociedade e oferecem poucos elementos para que V.Exs. tomem uma deciso. Este debate um debate poltico, um debate de opinio, onde at os chamados especialistas argumentam a partir do seu lugar de classe, de raa ou dos interesses que os mobilizam. V.Ex. esto frente a uma deciso poltica, em que o importante a escuta do que vem da sociedade e dos movimentos sociais, em es-pecial dos jovens que estudam nas escolas pblicas e dos cursos pr-vestibulares populares em todo o Pas.

    Como membro do Movimento Pr-Vestibular para Negros e Carentes e integrante do grupo que organizou o manifesto em favor da Lei de Cotas nas uni-versidades e do Estatuto da Igualdade Racial, afi rmo que as polticas de cotas so fundamentais no apenas para a populao negra, mas para o Brasil. Pois, em face do racismo que estrutura nossas instituies, as cotas representam a igualdade contra o privilgio, a multiplicidade contra a uniformidade e a participao contra a partilha. E afi rmo isso a partir do crescimento da opinio pblica favorvel s cotas.

    Em 2000, o Centro de Articulao de Populaes Marginalizadas enco-mendou uma pesquisa, feita pelo instituto DATA-UFF, que apontou que 51% da populao era favorvel s cotas. Em 2003, pesquisa da Fundao Perseu Abramo apontou que 59% era favorvel. E neste ms de julho, pesquisa do instituto Da-tafolha, encomendada pela Rede Globo e pela Folha de So Paulo, apontou que 65% favorvel.

    Alm disso, o manifesto em favor das cotas, entregue aos Presidentes da Cmara e do Senado, no dia 4 de julho de 2006, com 582 assinaturas, hoje tem

    LUGAR COMUM N23-24, pp.17-18

  • 18 MENSAGEM AOS SENADORES NA AUDINCIA PBLICA...

    2350 assinaturas, que so mais que assinaturas individuais, so assinaturas repre-sentativas de vrios setores. Professores de 72 universidades pblicas e privadas deste Pas, sendo 44 Professores da UFRJ, Universidade em que os Professores Yvonne Maggi e Peter Fry so membros, nomes representativos da mdia, do cinema, da msica, do teatro e do campo empresarial, do movimento negro, sindi-cal, estudantil, dos grupos pr-vestibulares para negros e carentes. Este manifesto muito mais que uma resposta aos novos apologetas da democracia racial. expresso de um desejo social que o Congresso Nacional no pode fi car alheio. E para aqueles que insistem em se pautar na opinio dos especialistas, bom que se saibam que a maioria das pessoas que assinam o manifesto em favor das cotas so pesquisadores, ativistas e, portanto, especialistas sobre a questo racial no Brasil. No manifesto em favor das cotas do Estatuto da Igualdade Racial h muito mais especialistas que qualquer outro manifesto j escrito sobre esse tema at hoje na histria do Brasil. Por isso esse manifesto apresenta argumentos e propostas ba-seados em dados e anlises. E no apenas uma defesa da hipcrita declarao for-mal de que somos todos iguais. A UERJ, neste ano, formar os primeiros alunos cotistas e isso acontecer sem que tenham ocorrido os confl itos raciais previstos pelos benefi cirios do racismo acadmico. Esses confl itos j existem, e as cotas so medidas que ajudaro a super-los.

    Martin Luther King sonhava com uma sociedade em que as pessoas no sejam julgadas pela cor de sua pele, mas, para isso, achava que os negros deve-riam ter direitos a tratamentos especfi cos. As pessoas que, desonestamente, usam Martin Luther King contra as cotas deturpam seu sonho e seu legado. A sociedade concorda com as cotas e aos Parlamentares cabe, muito mais que uma deciso com base e convico individuais, a traduo desse desejo coletivo em polticas concretas. A democracia um processo de construo permanente de condies objetivas de igualdade. E por isso o Brasil precisa da aprovao do Estatuto da Igualdade Racial e das cotas nas universidades.

  • Polticas da restaurao. Novas direitas e velhas esquerdas, ou como reciclar o fundo raspado do tacho*8

    Judith Revel

    Costuma-se dizer que a Itlia tem sido o laboratrio de experimentao dos movimentos e da resistncia biopoltica, mas tambm da corrupo ps-mo-derna do berlusconismo rastejante, da especulao poltica e da represso, das grandes eleies de televiso e do devir-realidade das estruturas partidrias atu-almente reduzidas a mera crnica de interesses pessoais, de traies e alianas de circunstncia. Quem quer que observe de fora a Itlia sente o mesmo gosto, tanto lendo a imprensa diria quanto assistindo a um espetculo de commedia dellarte: muitos efeitos especiais e nenhuma surpresa as mscaras so conhecidas e todos sabemos como a coisa acaba. A Frana, por outro lado, parece exasperantemente clssica.

    Praticamente no h escndalos, na Frana: uma poltica que, direita e esquerda, nasce nas mesmas escolas de administrao e gesto, em tudo se-melhante ao que sobrou de um sistema de Welfare que foi excepcional e que hoje j est no osso; uma poltica que navega em sonhos de grandeur j um pouco ridculos e sem novidades (a oposio guerra, ateno aos problemas do Oriente Mdio, a vocao europia do fi nal dos anos 50). Em resumo, a Frana, apesar de tudo, ainda o pas em que Igreja e Estado foram separados em 1905, cujo siste-ma de sade funciona e gratuito, que adotou o PACS (Pacte civil de solidarit), pelo qual a homossexualidade, embora tenha de ser declarada prefeitura de Pa-ris, de fato no preocupa ningum. E mais: auxlio a estudantes; bolsas de estudo; subsdios garantidos aos recm-nascidos (e assistncia mdica procriao em muitssimos hospitais pblicos, em caso de infertilidade); tima rede de transpor-tes pblicos; sistema escolar e universitrio pensado do comeo ao fi m, para faci-litar a ascenso social; permisso aos solteiros de adotarem fi lhos (a ser estendida, espera-se, em breve, aos homossexuais); antiga tradio de acolher migrantes e

    8 Politiche della restaurazione. Nuove destre e vecchie sinistre, o come riciclare il fondo del barattolo, publicado originalmente na revista Posse, em novembro de 2007. Disponvel em: http://www.posseweb.net/spip.php?article16. Traduo de Caia Fittipaldi [Copyleft]. Correes e comentrios so bem-vindos para caia.fi [email protected].

    LUGAR COMUM N23-24, pp.19-23

  • 20 POLTICAS DA RESTAURAO. NOVAS DIREITAS...

    refugiados, discusso pblica sobre a eutansia& Pas dos sonhos, ento? No, nada disto. preciso rasgar a fantasia, ver o verso do quadro.

    Se a Itlia foi o laboratrio da contestao social nos anos 70 e tambm, sem dvida, da mais extraordinria represso nos vinte anos seguintes, a golpes de cadeia e pay-TV, encenaes judicirias e piadas de televiso, Milo bbada e Roma ladra , a Frana est se convertendo em laboratrio de um cenrio poltico indito. De um lado, um pas que muda num mundo que muda, e que, seja porque quer ou porque se deixa levar, no escapa a uma dinmica imperial que o levou, pelo menos em parte, a opor-se ao golpe de Estado bushiano contra o Imprio. Um pas que sempre resistiu a fazer movimento mas no qual a luta, da metade dos anos 80 em diante, prosseguiu com fora at hoje das primeiras coordenaes de enfermeiros at as repetidas manifestaes de estudantes, de ferrovirios e me-trovirios, e, mais recentemente, desobedincia civil generalizada para proteger os sans-papiers, revolta dos jovens dos banlieues e luta contra o projeto CPE (Contrato Primeiro Emprego). De outro lado, uma esquerda social-democrata incapaz de produzir outra coisa alm de disputas partidrias e, em sua afasia de projetos, desesperadamente caa de votos tambm em territrios da direita: imigrao controlada; luta contra a delinqncia juvenil a golpes de campos de alistamento militar; exaltao da famlia moda antiga como base da socieda-de; reafi rmao do orgulho nacional com bandeiras francesas nas sacadas (idia de Sgolne Royal de que at a extrema direita riu); tolerncia zero e ideal de segurana; caa aos falsos desocupados (sic); e discurso entusiasmado sobre o rseo futuro do pleno emprego a ser alcanado em breve e das fbricas fordistas a serem miraculosamente reabertas. Nem uma palavra sobre o descaso com os mais jovens, sobre a precarizao geral da vida, sobre os aposentados que no tm como sobreviver at o fi m do ms, sobre os quase trs milhes de franceses que vivem abaixo da linha da pobreza, ou sobre os inacreditveis 29% de sem-teto parisienses que dormem na rua, mesmo sendo regularmente empregados por-que o salrio e as garantias fi nanceiras no so sufi cientes para pagar um teto. Em resumo: uma esquerda desgastada, no apenas reacionria mas velha e gasta, fechada em sua auto-referencialidade e em total rendio ao personalismo. Uma esquerda cujo nico objetivo pr a mo em pequenos poderes, demaggica at o inverossmil, enredada num sistema poltico sob a ditadura das pesquisas de opinio, que continua a querer se defi nir como sistema de representao polti-ca democrtica, que traz para o palco os velhos lees irados e os jovens lees do cinismo ostentado como virtude. Uma esquerda ultra dilacerada na mar dos grupelhos da ultra-esquerda que, por sua vez, no sabe fazer outra coisa alm de

  • Judith Revel 21

    repropor o hiper-protecionismo nacional como defesa contra o grande capital das multinacionais, os queijos locais contra o reino da Coca Cola, e um no Europa que soou como absoluta negao existncia de um movimento de resis-tncia no Imprio. Acrescentemos, por fi m, um partido comunista que chegava a 15% dos votos quando ainda era stalinista e que, depois de ter feito autocrtica mas pouca, porque continuou nacionalista, trabalhista e antieuropesta hoje nem chega aos 4%; assim se poder ter idia da farsa em curso. Novas caras, velhos discursos, idntica cegueira.

    E h os outros. Uma direita que se modifi cou e soube metabolizar as trans-formaes em curso. Livre das rdeas que lhe aplicava a esquerda-que-s-sonha com ser-igual--direita-que-avana, a direita no se contentou em bombardear a ambulncia. Inventou a poltica do discurso duplo, triplo, qudruplo: uma esp-cie de pquer multi-interativo jogado em casa. Simultaneamente, desenvolveu os discursos hiper-liberais (o que a direita gaullista no chegara a fazer, agarrada que era fi gura do Estado-providncia), americanfi los (quando boa parte do ideal de grandeur da Frana do ps-guerra estivera ancorado independncia em relao ao Pacto Atlntico), catlicos moda Ratzinger, intolerantes, xenfobos, populistas; e sempre de olhos postos na esquerda dispersa ento abandonada em alto mar por todos os Louis-Philippe mirins do partido socialista. A direita, alm de pr em campo um governo 50% feminino, nomeou para o Ministrio da Jus-tia uma mulher de origem maghrebina para empunhar em tailleur e salto alto o krcher que Sarkozy prometeu aos banlieues, criou um indito Ministrio da Identidade Nacional e da Imigrao de ar completamente fascista, e deu ao mesmo tempo carta branca, em outro ministrio, presidenta (ela tambm maghrebina) do movimento de mulheres dos banlieues Ni putes ni soumises Nem putas, nem submissas. Usou o laicicismo como um machado contra a liberdade de cul-to, criminalizando indistintamente o Isl dos subrbios e o desespero social; por todos os cantos reintroduziu o mrito, em vez da igualdade, a segurana em vez da liberdade, a repblica em vez da construo do comum. Derrotou o legtimo desejo de novidade e de reencontrar a esperana, transformando-o em operao publicitria na qual conta mais o vestidinho Prada da senhora S. que o desejo de poltica; reciclou o imaginrio dos adolescentes (mas j quase cinqentes) do sonho kennediano em novelo cheio de iates de luxo e de celebridades. E, quando fi cou tudo pronto, afundou a faca.

    A direita sarkozyana, no satisfeita com haver raspado o fundo do tacho da extrema direita no por acaso, o neopresidente francs vangloria-se de haver esmagado Le Pen: saqueou-lhe os votos, a golpes de hiper-nacionalismo e de pro-

  • 22 POLTICAS DA RESTAURAO. NOVAS DIREITAS...

    vocaes demaggicas , lanou uma campanha de aquisio das personalidades mais mediticas daquilo que, h algum tempo, ainda se podia (vagamente) cha-mar de a esquerda. Na Itlia, agosto ms de compras no grande mercado fute-bolstico. Na Frana, junho-julho foram os meses das compras polticas. Nicolas Sarkozy, novo Napoleo III ps-moderno, h poucas semanas comprou uma dzia de elefantes socialistas e uma leva de ex-68s, h muito rendidos ao pragmatis-mo da direita, com o objetivo de apagar passados (quase sempre maostas) s raramente vividos com glria. E a esto os Kouchner (no Ministrio do Exterior), os Lang (na reforma das instituies), os Strauss-Kahn (no FMI) s para citar os mais conhecidos: os velhos mitterandianos, todos candidatos nas primrias da esquerda h apenas seis meses, a nadar nas novas guas da direita que avana. Para no falar dos intelectuais j mais escolados em virar casaca: Glucksmann, Bruckner, Gallo, Finkielkraut...

    Ento, o que fazer? Infelizmente, as sedues do poder no so novas. Denunciar as sereias sarkozyanas no far nascer um novo Ulisses. Em vez disto, indagar o que signifi ca hoje ser de esquerda parece no s obrigatrio, mas tam-bm absolutamente necessrio.

    Uma esquerda que seja capaz de impor a Europa dos movimentos contra o simulacro da representao poltica, de combater a insegurana biopoltica e a precarizao da vida, em vez de combater o choque de civilizaes, de lutar pelo direito felicidade, em vez de pregar a tolerncia zero, de buscar as diferenas no comum, em vez de a Repblica do cidado ordinrio, conformista, mdio, sem cara.9

    Uma esquerda capaz de retomar para si o acesso aos saberes e formao (atualmente entregue de presente empresa privada, em cenrio incrivelmente orwelliano), a renda mnima universal (e no o assistencialismo alm do mais sempre insufi ciente das novas leis para os pobres), de redefi nir uma cidadania plena, desterritorializada e sem restries, em vez da xenofobia e dos naciona-lismos. Uma esquerda capaz de pensar de outro modo o trabalho de afi rmar a potncia da cooperao social e da inteligncia comum.

    9 No original cittadino qualunquista. Qualunquista vem de qualunquismo, movimento italiano dos anos-50 que, imitao do poujadisme francs, queria representar o homem comum, ordinrio (qualunque). Foi uma das frestas remanescentes do neo-fascismo, sempre latente na Itlia e j vencedor, com Berlusconi. Faltou-lhe apoios dos capitalistas e da DC. Hoje, o neocapitalismo tomou conta de tudo. o novo fascismo. (Nota de traduo.)

  • Judith Revel 23

    Ento, o que fazer? Toda a esquerda, contra os fantasmas daquela res-taurao ps-mitterandiana devorada pelo novo imperadorzinho! Depois de Na-poleo III vem a Comuna de Paris. Faamos comunas, organizemos uma nova Comuna.

    Judith Revel fi lsofa, professora na Universit Paris I Panthon Sorbonne, e espe-cialista no pensamento contemporneo francs, sendo autora de vrios artigos e livros sobre a obra de Michel Foucault. No Brasil, foi publicado Foucault. Conceitos essenciais (So Carlos, Ed. Claraluz, 2005), de sua autoria.

  • Classe e multido10

    Sandro Mezzadra

    1.Um lugar qualquer na Europa. Neste caso, Sevilha, na Andaluzia. Che-go cedo, num dia de abril. Vou Universidade, Faculdade de Direito, onde participarei de um seminrio de professores. Entro no campus, e noto latas pelo cho, papis espalhados. O que se v, de fato, que faz tempo que ningum d uma varrida ali. Olhe em volta e vejo uma manifestao de mulheres, com faixas e panfl etos. Aproximo-me, falo com elas. Explicam-me que esto em greve. Fao algumas perguntas. So 54, encarregadas da limpeza da Faculdade, todas espa-nholas de vrias localidades. E dizem-me que h ali 17 diferentes tipos de contrato de trabalho: muitas delas tm de renovar semanalmente os contratos.

    Continuamos a conversar. So as histrias de sempre do trabalho prec-rio, o labirinto de agncias, contratadores, sub-contratadores, sub-sub-contratado-res. Uma me conta sobre a irm, que trabalha num call center: a mesma histria. Outra me conta sobre o marido: operrio, mecnico-metalrgico; por causa da fl exibilidade, mudam seu turno, seus ritmos e seus horrios, com tudo o que isto implica para a vida do casal. Para a vida, em geral. Mas, at nas fbricas o trabalho cada dia menos garantido.

    Enquanto isto, chegam os que me haviam convidado para vir a Sevilha: uns estudam, outros trabalham em teses de doutoramento sobre migraes. Fao a minha palestra no seminrio e depois comea a discusso. A histria do trabalho migrante na agricultura, no sul da Espanha bem conhecida. Todos lembram do El Ejido, o completo e completo pogrom contra os marroquinos, em dezembro de 2000. Alguns dos alunos que assistem ao seminrio so tambm ativistas e tm mil histrias para contar: histrias terrveis de racismo e explorao mais uma vez, que acabam para sempre o meu prazer de comer morangos; histrias de perseguio a marroquinos, subsaarianos, poloneses. Mas ouo tambm histrias extraordinrias de solidariedade e de luta. Contam sobre o SOC (o Sindicato Operrio do Campo), das relaes com militantes dos centros sociais que orga-

    10 Artigo publicado em nov. 2007, Classe e moltitudine, apresentao da revista Posse. O ar-tigo pode ser lido, em italiano, em: http://www.posseweb.net/spip.php?article6. Traduo Caia Fittipaldi caia.fi [email protected].

    LUGAR COMUM N23-24, pp.25-29

  • 26 CLASSE E MULTIDO

    nizam, h dois anos, o movimento Mayday Sur11 (ver Os precrios do sul se rebelam, em http://maydaysur.org/).

    Encontrei o pessoal do Mayday Sur noite. Muitos estudantes, vrios so programadores de computao: o trabalho deles desenrola-se, diariamente, combinando altssima competncia tcnica, capacidade para se comunicar bem, para trabalhar em rede, e total incerteza quanto ao dia de amanh. Alguns traba-lham no campo do design, um arquiteto: as histrias se repetem, defi nitivamente todas muito parecidas. Mas no h resignao ou conformismo nas vozes que ouo: o que h naquelas vozes a conscincia do quanto uma vida pode ser rica, quando se liberta da necessidade de consumir os dias caa de salrio. Eles falam de seus mil projetos, mediante os quais tratam de prefi gurar, e de tornar pelo me-nos parcialmente possvel, desde j, aquela nova vida de liberdade.

    2. Sei que este um quadro ainda muito impressionista. Mas d uma idia do que seja hoje a organizao do trabalho vivo (para retomar uma categoria marxiana) na Europa. Um labirinto de fi guras laborativas, de relaes contratuais, de competncias, de lnguas e de linguagens. Um acervo partilhado de corpos e de crebros em trabalho. Uma multiplicidade de diferenas, ora impostas como fatores de hierarquizao e de diviso, ora reivindicadas, afi rmadas e vistas como fatores de riqueza; um impressionante campo de tenses, no qual reivindicaes prticas e reivindicaes de mobilidade se encontram todos os dias com disposi-tivos de confi namento, no qual os confl itos e lutas esto sempre na ordem-do-dia mas raramente se comunicam entre si, raramente fazem massa , do liga .

    Nos ltimos anos, temos usado o conceito de multido para descrever este tipo de trabalho. Usamos este conceito, embora de outro modo, para capturar a combinao ambivalente dos dois signifi cados das diferenas de que falei aci-ma. Para indicar a multiplicidade constitutiva e a heterogeneidade da composio contempornea do trabalho vivo, sem que isto signifi que que nos resignamos a oferecer uma descrio melanclica, que s repita os lamentos sobre a atomizao do trabalho, com seu corolrio inevitvel: a nostalgia pelo movimento operrio, por uma poca quando a classe estava a, exposta aos olhos de todos.

    No h dvidas de que a esto as hierarquias salariais, e outras , linhas que dividem o trabalho ao longo de eixos de gnero, de nacionalidades,

    11 Mayday a chamada radiotelefnica de emergncia ou socorro, verso anglicizada do fran-cs maidez (ajude-me!). Utilizada principalmente nas navegaes martimas e aeronuticas, faz parte do Cdigo Internacional de Sinais e do Cdigo Fontico Internacional (de http://pt.wikipedia.org/wiki/Mayday). A expresso Mayday Sur equivale, no signifi cado, a o sul pede socorro.

  • Sandro Mezzadra 27

    de raas (digamos assim, com uma variao num argumento marxiano: no a mesma coisa, hoje, na Europa, levar ao mercado de trabalho uma pele branca ou uma pele negra). Mas eis a tambm uma dimenso social do trabalho, que uma realidade, a 27 fi sicidade da cooperao produtiva, sob a qual as hierarquias e as linhas de diviso esto inscritas, e que contudo constitui o fundo comum a partir do qual os corpos e os crebros dos explorados produzem riqueza. muito sutil a linha que separa o indivduo, tomo isolado de singularidade, vida que se afi rma em sua irrepetibilidade, do enraizamento naquele fundo comum: ao falar de mul-tido interessava-nos reforar esta linha, imaginar a singularidade enraizada no trabalho capaz de reapropriar-se daquele fundo comum, fazer o trabalho viver na luta e na prefi gurao de um outro modo de produzir e reproduzir a vida. Cuida-mos de mapear os confl itos, os movimentos, as lutas, destacando este problema fundamental: um novo projeto poltico, altura dos que continuamos a considerar a maturidade e a riqueza da composio do trabalho vivo contemporneo.

    3. Acima, falamos dos corpos e dos crebros dos explorados. Talvez no tenhamos sido bem claros. Corrigindo: a multido defi nida pela explorao. um conceito de parte, portanto de classe. Indica o conjunto dos sujeitos que, sob diferentes modalidades e em diferentes graus de intensidade, so explorados pelo capital. Sabemos que falar de explorao levanta uma srie infi ndvel de proble-mas: antes de tudo, problemas de mensurao . No nos ocuparemos disto, aqui. Se for necessrio, falaremos disto depois. Por enquanto, cuidemos da centralidade do conceito de explorao que irredutvel s teorias da justia de origem kan-tiana que circulam nos debates poltico-fi losfi cos contemporneos, nas anlises da composio do trabalho. Que vida em ltima instncia, pode-se dizer, sim-plifi cando um pouco marcada pela obrigao, pela coao, de trabalhar para reproduzir-se, e que vida no tem esta marca? No fundo, a questo pode ser posta nestes termos bem simples. Pelo menos, por enquanto. A multido composta do conjunto de vidas que so marcadas por aquela obrigao, por aquela coao. E, claro, a multido composta tambm das mil prticas mediante as quais aquelas vidas vo-se aproximando de livrar-se daquela obrigao, daquela coao.

    Com este nmero da revista, de qualquer modo, recomeamos do come-o. Abrimos uma nova fase de pesquisa e de experimentao poltica em que nos propomos a perguntar de modo mais estrito o que conseguimos at agora, seja do ponto de vista terico seja no campo da pesquisa, sobre a relao entre multido e classe. Recomear do comeo, a velha histria, no signifi ca voltar ao zero. O capital como relao social, no como coisa: este potentssimo insight mar-xiano continua a guiar nosso trabalho. Pretendemos reconstruir os muitos modos

  • 28 CLASSE E MULTIDO

    mediante os quais aquela relao social chamada capital reproduz-se na realida-de contempornea: as vrias modalidades mediante as quais o capital 28 captura o trabalho; as prticas de resistncia e de adeso que correspondem a cada uma daquelas modalidades; as lutas mediante as quais se expressa a tenso de andar diferente em relao ao capital. Digamo-lo com elegncia: a tenso de andar para destru-lo.

    Queremos tambm propor alguns problemas absolutamente concretos, do ponto de vista poltico. O projeto poderia chamar-se A Formao da Multido Europia (como homenagem a E.P. Thompson12). Recolhemos, do grande histo-riador ingls, a idia de que o processo de formao da classe operria foi proces-so complexo e contraditrio. Aprendemos com ele que a classe jamais foi uma coisa, que a classe no existe fora do seu fazer-se classe (do seu devir classe?13). E este fazer-se (este devir?) sempre duplo: pode-se estud-lo do ponto de vista do capital e do ponto de vista do trabalho vivo. No fundo, o duplo ponto de vista ao qual se referia a distino operaista entre a composio tcnica e a composio poltica das classes. Ver, de um lado, as modalidades mediante as quais o trabalho 28 capturado e disciplinado pelo capital; de outro lado, as lutas, os compor-tamentos, as formas de organizaes mediante as quais se expressa o trabalho como subjetividade: isto o que queremos continuar a fazer.

    Partimos da idia de que queremos compreender cada vez mais claramen-te que direitos podem ter hoje a funo que tiveram os direitos polticos no Cartis-mo14, na reconstruo de Thompson, para o fazer-se da classe operria industrial

    12 Referncia a THOMPSON, E.P., A formao da classe operria inglesa (3 vol.) Rio de Ja-neiro: Paz e Terra, 1989-1997.13 No orig. che la classe stessa non esiste al di fuori del suo farsi. H a um interessante pro-blema de traduo versus teoria. Duas tradues so possveis: a prpria classe no existe fora do seu fazer-se classe; e a prpria classe no existe fora do seu devir-classe. A escolha entre as duas frmulas depende exclusivamente de escolher-se um campo terico.14 Cartismo (tambm dito A questo democrtica, em Thompson, op. cit.) movimento do fi nal da dcada de 1830; considerado o primeiro movimento independente da classe trabalha-dora britnica, exerceu forte infl uncia sobre o pensamento poltico durante os dez primeiros anos do governo da rainha Vitria, na Inglaterra. O nome do movimento teve origem na Carta do Povo, principal documento de reivindicao dos operrios que foi escrito como resposta ao Reform Act, lei eleitoral que proibiu os operrios do direito do voto, no Projeto de Reforma em 1832. A Carta do Povo, enviada ao parlamento em 1838, trazia as seguintes reivindicaes: sufrgio universal masculino, pagamento aos deputados, votao secreta, parlamentos anuais, igualdade dos distritos eleitorais e supresso do censo. A estratgia utilizada pelos cartistas gira-va em torno, principalmente, da coleta de assinaturas, realizadas nas ofi cinas, nas fbricas e em

  • Sandro Mezzadra 29

    na Inglaterra; que garantias podem e devem ser conquistadas para consolidar um terreno de convergncia para a fi gura do trabalho to heterogneo como o que se v hoje; que novas instituies podem articular aquele terreno de convergncia. Queremos, em resumo, trabalhar coletivamente e de modo aberto e problemati-zante, para uma nova teoria da organizao.

    Com relao ao espao, propomo-nos a trabalhar no espao europeu. Isto no signifi ca que s pensaremos a Europa nos prximos nmeros da revista. Estamos de olhos postos no mundo, o mundo grande e terrvel, para usar a expresso de Gramsci, o mundo cada vez mais unifi cado e sempre mais dividido no qual vivemos. O espao europeu de que falo aqui, o espao que consideramos nas anlises da composio do trabalho que oferecemos neste nmero, o espao a ser politicamente conquistado pelos movimentos, aqui e agora, para articular um projeto de transformao radical do existente, considerado o nosso presente global. Este espao no coincide com o espao da Unio Europia: um espao provincializado e ligado a outros espaos pelos movimentos migratrios, um espao cuja heterogeneidade e aleatoriedade temos de comear a avaliar. o es-pao, em todos os casos, no qual indispensvel reinventar a liberdade e a igual-dade, como condies para convergncias ainda inditas, para novas composies polticas entre multido e trabalho.

    Sandro Mezzadra pesquisador na Universidade de Cincias Polticas Bologna, na rea de estudos coloniais e ps-coloniais e fronteiras da cidadania. autor de Diritto di fuga. Migrazioni, cittadinanza, globalizzazione Verona: ombre corte 2007 (ed. atualizada; 1 ed. 2001) e um dos animadores da Universidade Nmade.

    reunies pblicas, atravs de uma srie de Peties Nacionais enviadas Cmara dos Comuns. (De: http://www.historia.uff.br/nec/CARTISMO.htm)

  • Mdia e Cultura

  • Por uma Genealogia da Blogosfera: consideraes histricas (1997 a 2001)

    Fbio Malini

    Derrick De Kerckhove (2006) caracteriza a Internet em trs grandes mo-mentos, para alm, naturalmente, da sua criao. O primeiro deles a inveno do navegador Mosaic, que fez da World Wide Web atrativa para um leque vasto de pessoas. O segundo, a chegada do Yahoo!, que introduziu uma nova gera-o de instrumentos de navegao indispensveis, depois mais desenvolvidos no Google. E o terceiro momento foi o advento dos blogs, a entidade mais madura da Web, diz o autor. Mais do que qualquer defi nio simplista que os associa a um site ntimo de um autor, os blogs representam, para Kerckhove, uma nova tecnopsicologia.

    Ponto de encontro dentre redes sociais e tecnolgicas, a blogosfera uma rede de interaes intelectuais diretas e navegveis, resultado da contribuio gra-tuita, aberta e verifi cvel das conscincias e das opinies de muitas pessoas sobre assuntos de interesse geral e em tempo quase real. O funcionamento dos blogs baseia-se inteiramente nestas conexes. Tal como a inteligncia, desenvol-vem-se e crescem com o uso. Os blogs so um espao de refl exo compartilhada (Kerckhove apud Granieri, 2006, p.11).

    Os blogs15 expressam a cultura colaborativa e o poder dos links que de-marcaro a net culture aps o estouro da bolha da nova economia. Trata-se de um

    15 At outubro de 2006, segundo a mensurao realizada pelo Technorati, os blogs mantinham uma elevada taxa de crescimento, tendo sido publicados 1,3 milhes de posts por trimestre e criados 3 milhes de blogs por ms, isto , 100 mil por dia. Contudo, destes 4% so splogs blogs criados para comunicar na blogosfera mensagens indesejadas na seo de comentrios dos blogs ou para gerar trfego de audincia para si atravs do plgio de contedo alheio. Cerca de 5,8% dos posts (os 1,3 milhes) so gerados por splogs. Ao roubar os contedos, os splogs atraem para si, atravs de sistemas como o Google, visitas que deveriam ir para o site original. Ao total o sistema Technorati contabilizou a existncia de 57 milhes de blogs em outubro de 2006, cerca de 2% so publicados em lngua portuguesa. Desses 57 milhes, somente cerca de 55% destes esto ativos, o que signifi ca que eles esto sendo atualizados ao menos uma vez nos ltimos trs meses. A estimativa do estudo de que a blogosfera duplica de tamanho a cada 230 dias.

    LUGAR COMUM N23-24, pp.33-47

  • 34 POR UMA GENEALOGIA DA BLOGOSFERA

    novo espao de resistncia que se coaduna com um fenmeno maior: o fato de que mdias com certo poder na formao da opinio pblica - passaram a ser construdas pelos prprios usurios conectados em rede algo que Dan Gilmor sintetizou um tanto que corporativamente de jornalismo cidado (civic jour-nalism).

    Eu, o weblog: contexto e genealogia (1997-2000)

    O acontecimento blog formado por mltiplos acontecimentos que ocor-rem a partir de 1997, quando o termo weblog cunhado pelo norte-americano Jorn Barger para se referir ao seu jornal online RobotWisdom (http://www.robo-twisdom.com/). O termo era um acrnimo derivado das palavras web e log (dirio ou bloco de anotaes) e expressava um site que hiperligava pginas interessantes encontradas na internet. Blog era, na prtica, uma coleo de links com coment-rios breves.16 Barger fi cava o dia inteiro garimpando notcias, informaes, casos etc, que publicava na forma de comentrios breves com disponibilizao dos links desses dados, sem a existncia de mecanismos de conversao com o usurio (particularmente, os comentrios). O modelo de Wisdom consistia em uma pro-duo que mais atualizava links do que criava contedos prprios (posts - entra-das compostas por textos, fotos, ilustraes, links). No havia at aquela data um sistema de publicao especfi co para weblogs. Para ter um blog, o autor precisa de dominar a linguagem HTML.

    Interface do primeiro weblog, o Robot Wisdom , 1997

    16 Cf. Luiz Carlos Machado, Eu blogo, tu blogas. Disponvel em: , acesso em 10/01/2007

  • Fbio Malini 35

    No fi nal de 1998, uma lista de 23 dirios virtuais publicada por Came-ron Barret, no seu blog Camworld17, a partir da compilao de Jess Garret, editor da Infosift.

    Jesse James Garret, editor do Infosift, comeou a compilar uma lista de outros sites como o dele na medida em que os encontrava em suas perambulaes pela web. Em novembro daquele ano, ele enviou sua lista para Cameron Barrett. Cameron publicou a lista no Camworld, e outras pessoas que mantinham sites similares comearam a lhe enviar suas URLs para que ele as inclusse na lista. Na pgina de apenas weblogs de Jesse esto listados os 23 ento conhecidos at o comeo de 1999. De repente, surgiu uma comunidade (Blood, online).

    Os blogs surgidos, nesse momento, se caracterizam por sempre conter linguagem hipertextualizada. Entre 97 a 99, o cdigo narrativo predominante nos blogs era uma espcie de dicas sobre o que h de interessante na internet. O post-link foi o primeiro gnero narrativo dos weblogs, ainda muito associado cultu-ra hacker (de troca de informao relevante). Os weblogs eram uma espcie de fi ltro. Seu editor preocupava-se em conduzir o usurio sempre a outros stios de informao, sem o desejo ainda de tornar o veculo em um instrumento formao de opinio. Estamos aqui no momento em que a lei blogueiro linka blogueiro inaugurada.

    No instante que sucede o esforo de Cameron em reunir weblogs, Brigitte Eaton realiza o mesmo trabalho, ao compilar uma lista de weblogs, que fi ca hos-pedada no Eatonweb Portal, um portal de blogs, divididos por gnero e nacionali-dade. O critrio para que haja submisso do blog ao portal nico: que fosse um site que disponibilizassem posts j datados (dated entries). No comeo de 99, para mostrar a popularizao dos dirios virtuais, Peter Merholz divide o termo weblog em we blog (ns blogamos), criando ao mesmo tempo a palavra (blog), o verbo (blogar) e o sujeito (blogueiro). O formato mais tradicional se estruturaria agora em contedos breves (a arte de produzir posts curtos); atualizado continuamente, uma ou at vrias vezes ao dia; apresentado numa ordem cronolgica inversa (no topo do site, nota mais recente, com dia, data e hora); e com a presena de muita hipertextualidade.

    Em 1999, os blogs eram distintos tanto em forma como contedo das publica-es peridicas que os precederam (ezines e journals). Eles eram rudimentares em design e contedo, mas aqueles que os produziam achavam que estavam

    17 A lista est publicada em: http://www.camworld.com/archives/1997/07/

  • 36 POR UMA GENEALOGIA DA BLOGOSFERA

    realizando algo interessante e decidiram ir adiante. Os blogueiros referencia-vam entradas interessantes em outros blogs, normalmente adicionando suas opinies. Crditos eram concedidos a um blogueiro individual quando outros reproduziam os links que este havia encontrado. Devido freqente interligao entre os blogs existentes na poca, os crticos chamaram os blogueiros de inces-tuosos, que por sua vez sabiam que amplifi cavam as vozes uns dos outros quando criavam links entre si. E assim a comunidade cresceu. Os blogueiros pioneiros trabalharam para se tornar fontes de links para material de qualidade, apren-dendo a escrever concisamente, utilizando os elementos que induziam os leitores a visitar outros sites (Wikipedia, verbete Weblog, online).

    O advento dos dirios

    Neste mesmo ano, algumas empresas lanavam softwares que tornavam automtica e gratuita a publicao de blogs, portanto, sem a necessidade do usu-rio dominar por completo a linguagem html. O primeiro programa desse tipo foi o Pitas, criado em julho de 1999. A estrutura tcnica era gerenciada pela empresa, que tambm oferecia a criao de blogs a custo zero, assim como os valores agre-gados: um item em um blog possui valor de produo irrisrio comparado com o de um artigo veiculado na grande mdia (idem). Um ms depois do Pitas, surgia o Blogger18, o mais popular sistema de publicao online at hoje. A partir da os blogs se proliferaram. De uma onda, se transformam em uma exploso, a ponto de seu formato tornar-se cada vez mais mltiplo. Com as interfaces trazidas pelo Blogger a publicao de contedos online bastante facilitada. Cabe ao usurio a realizao de apenas trs atividades: escrever o ttulo, o texto, e depois clicar em publicar para imediatamente o contedo estar no seu site. Sem contar que o que publicado fi ca arquivado, sendo facilmente recuperado a qualquer instante, para que possa ser modifi cado, ampliado ou mesmo revisado mesmo que tenha j subido pra rede.

    O Blogger facilita a escrita de um pensamento ou de uma observao, tanto que muitas pessoas no se sentem inclinadas a criar um link e escrever algo em torno dele. essa interface livre, combinada com a facilidade absoluta de uso que tem, em minha opinio, feito mais do que impelir a mudana de um weblog do tipo fi ltro para um blog dirio, mais do que qualquer outro fator (Blood, 2002).

    18 No ms de julho daquele ano, a empresa Pitas [ http://www.pitas.com ] criou o primeiro sof-tware grtis e em agosto o americano Evan Williams, da empresa Pyra Labs, criou ferramenta semelhante,o Blogger,que se transformaria no cone de um conceito que revolucionaria a cria-o e postagem de pginas pessoais na Internet (Oliveira, online).

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    A interface do Blogger acabou por dar vazo a emergncia de uma nova linguagem blogueira: o dirio online (Schittine, 2004). As facilidades de publica-o conjugadas ao fato de o Blogger no conter nenhum dispositivo de censura do que est sendo escrito; e a um aumento da estada do usurio (principalmente os mais jovens) na Internet possibilitou que os blogs comeassem a se caracterizar por comentrios sobre os mais variados temas da vida pessoal uma resenha de um fi lme, uma catarse, um poema, uma fofoca, um pensamento, uma recordao da infncia, uma piada, uma informao sobre o cotidiano, um delrio, a viso so-bre as aulas da faculdade, sobre os namoros, sobre estar doente, enfi m, tudo aquilo que pertencia a dimenso singular tornada pblica.

    Estes blogs, geralmente atualizados diversas vezes por dia, eram um registro dos pensamentos do blogueiro: algo que foi visto no caminho para o trabalho, observaes sobre o fi m-de-semana, uma refl exo sobre um ou outro assunto. Links levavam o leitor do site para outro blog com quem o primeiro estava tendo algum tipo de conversa ou com quem ele tivesse se encontrado na noite anterior, ou para o site de uma banda sujo show ele tivesse assistido. Dilogos inteiros eram travados entre trs ou cinco blogs, cada um fazendo referncia ao outro em seus pontos de vista ou posies pessoais (idem).

    O dirio ntimo inaugura uma fase em que blog passa a ser associado cultura do dirio pessoal. O infl uxo de blogs mudou a defi nio de weblogs, de uma lista de links com comentrios pessoais para um site atualizado perio-dicamente, com o novo material sendo postado no topo da pgina (idem). A importncia desses dirios, no terreno da linguagem blogueira, que vai nela instituir dois componentes ambos conseqentes um do outro: a escrita informal e a conversao.

    A escrita leve ocorre porque o editor discorre sobre os seus afetos e suas afeces. No uma escrita que se pauta por uma lgica interpretante. No um thoros. Mas uma lgica sensorial, em que o constante contato com o outro (o amigo usurio), faz com que a escrita seja uma resposta a um comentrio ou a uma experincia cotidiana, de forma que a escrita do dirio est entre um balano de contas, uma volta ao passado e um pensamento impulsivo confessional. O dirio s tem sentido ento se a ao existe, se houver histria. A linguagem que instrumenta o dirio precisa sentir a histria (pessoal e social) que se passa. No toa que acaba sendo mais uma descrio pessoal do dia do que uma anlise da histria social.

  • 38 POR UMA GENEALOGIA DA BLOGOSFERA

    Agora essa apreenso sensorial da histria sentida porque obtida por meio da conversao. A linguagem do dirio no um ato individual, pois que, no plano da internet, onde tudo exibido por uma audincia global, o blog-dirio fi ca defronte a uma comunidade que gira em torno dela. O sistema de comentrios inaugurado pelos sistemas automticos de publicao fez nascer comunidades de leitores girando em torno dos blogs. Com freqncia, a audincia de um blog formada por um pequeno nmero de usurios que vinculado ao editor. Trata-se de um pblico que bisbilhota para compreender que a memria do outro tam-bm est composto na sua. O inverso tambm verdadeiro: ao ser atiado pelos comentrios crticos ou elogiosos da audincia, o blogueiro ressignifi ca a prpria vida. muito comum, entre os jovens blogueiros, que um post seja apenas o instrumento do comeo de uma conversao. Comentar um ato de ddiva: se voc comenta no meu blog, eu comento no seu a lgica do reconhecimento da vinculao que funda o sentido do comentrio nos blogs-dirios. Muitas vezes, um post s um pretexto para iniciar uma conversao, a ponto de o coment-rio dos usurios acabar virando o contedo principal. Portanto, muitas vezes a conversao usada para que o usurio fi rme, revele ou altere pontos de vista j enraizados sobre determinados assuntos que esto na ordem do dia. A produo lingstica dos blogs-dirios revela-se ao mesmo tempo como auto-refl exo e uma refl exo coletiva.

    Uma comunidade de 100, 20 ou 3 pessoas pode surgir em torno de seus registros pessoais dirios. Ao se deparar com vozes amigas, ele [o blogueiro] pode ga-nhar mais confi ana de sua viso do mundo. Ele pode comear a experimentar formas mais complexas de escrita [...]. Ao enunciar suas opinies diariamente, esta nova conscincia de sua vida interior pode se tornar uma crena em sua prpria perspectiva. Suas prprias reaes a um poema, a outras pessoas, e sim, mdia ter mais peso sobre ele (Schittine, online).

    11 de setembro de 2001: blogs furam os portais da internet

    A partir de 1999, com a profuso dos dirios, a partir do uso popularizado dos sistemas de publicao (Blogger, Movable Type, Wordpress e outros dispo-nibilizados por portais de informao), os blogs formam um todo heterogneo e um agregado mltiplo de experincias criativas que se expressam como um com-plexo caleidoscpio sem lgica. Deles, h de toda espcie: blogs sobre poltica, religio, viagens, economia, vida pessoal, arte, assuntos profi ssionais, tecnologia,

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    cincia etc. Em comum a interconexo por meio de post interligados, do blogroll19 e dos comentrios postados interconexo que acaba produzindo um esprito comunal entre os blogs. Por conta disso, esse todo heterogneo com suas interaes sociais e hiperligaes foi batizado, por Willian Quick (http://www.dailypundit.com/) em 2001, como blogosfera. Enquanto os blogs isoladamente so somente um formato na web, a interconexo entre eles [a blogosfera] um fenmeno social: ao v-los como um todo pode-se determinar claramente ten-dncias, gostos, popularidade de sites, objetos, produtos, msica, fi lmes, livros, como se fosse um ente coletivo (Fonte: Wikipdia, http://es.wikipedia.org/wiki/Blogosfera, pgina acessada em 07/01/2007).

    A classifi cao tipolgica dos blogs uma operao sempre incompleta, dado as narrativas, as interfaces e as interaes se manifestarem sempre como hbridas. A narrativa sempre um misto do pessoal com o poltico, da crena com a interpretao, da objetividade com a subjetividade, da informao com o teste-munho, da fi co com a realidade, do original com a cpia, da singularidade com a coletividade. No fi nal das contas, a blogosfera destoa da comunicao de massa exatamente porque se constri a partir de discursos que esto colados maneira de expressar de cada singularidade. uma esfera absolutamente material (porque in process), j que as frmulas prontas para uso, aprendidas como uso correto da gramtica, dos cdigos de conduta, dos cdigos jornalsticos etc, convivem e so descartadas pelas maneiras de dizer, de escrever, de criar, de estabelecer relaes e vnculos, desenvolvidas por cada uma das pessoas ou de coletivos que produzem e se reproduzem na blogosfera, a ponto de compor junto com as listas de discusso, os fruns, os wikis, as redes p2p etc - um campo de energia cuja fora se concentra em produzir curto-circuito no monoplio que a imprensa tem da opinio pblica. At o comportamento menos ativo, atribudo a multido de blogueiros que somente reproduz o sentido das informaes circulados pela imprensa, acaba por fi ltrar e selecionar aquilo que mais lhe interessa, resultando numa agenda que reconfi gura a agenda miditica.

    19 Segundo a Wikipedia (http://es.wikipedia.org/wiki/Blogroll), um blogroll uma coleo de links de blogs que normalmente aparece na parte lateral da pgina. Blogueiros podem defi nir diferentes critrios para incluir outros blogs em seu blogroll. Normalmente, a lista composta de blogs que os prprios autores visitam com assiduidade ou s vezes simplesmente de blogs de amigos, parentes ou vizinhos.Quanto procedncia da palavra, existem duas possveis de-rivaes. Os blogger dos EUA sustentam que o termo provm de logroll, que est relacionado com o intercmbio de informo entre diferentes pessoas para obter um objetivo comum. Os blogueiros do Reino Unido relacionam a palavra com bog roll (papel higinico), com base em seu extenso tamanho e na duvidosa qualidade da lista de muitos blogroll.

  • 40 POR UMA GENEALOGIA DA BLOGOSFERA

    Do ponto de vista histrico, essa potncia da blogosfera realizada, de forma intensa, pela primeira vez com a ocorrncia dos ataques terroristas em 11 de setembro de 2001.20 O primeiro acontecimento que mostrou inicialmente o poder da internet como fonte de informao. No dia do atentado, os portais de informao das agncias de noticias internacionais no conseguiram fi car est-veis por conta do excesso de trfego nos seus servidores. Na poca, a audincia do MSNBC multiplicou por 10. A da Fox News, idem. Os usurios que fi cavam nesses sites em torno de trs segundos, fi caram no dia, entre 20 e 40 segundos. No adiantou muita coisa usar o celular, as redes de telefonia tambm seguiram a mesma tendncia: congestionamento.21 O site da CNN teve que se transformar em um site light, reduzido a uma foto e a poucos links para tentar fi car no ar. O site mais acessado do mundo, o Google, alertava o usurio que no adiantava procurar notcias frescas sobre o assunto: se voc procura por notcias, voc encontrar notcias mais atuais na Tv e na rdio. Muitos servios de notcias online no esto disponveis, por causa da extremamente alta demanda.

    Figura 2 - Por causa de congestionamento, site da CNN vira site light em 11/09Fonte: Digital Collection (http://www.interactivepublishing.net/september/browse.

    php?time=2001-09-11-11)

    No outro lado do atlntico, no Reino Unido, o fato se repetia. A BBC britnica [...] viu as consultas a seu site aumentarem 47% e The Guardian [...] viu as suas aumentarem em 83% (Pisani, 2003). O resultado foi um colapso dos

    20 Essa tese bem-defendida pelo bogueiro e jornalista Juan Cervera em Una teoria general del blog. In: La blogosfera hispana, pp 10-19.21 Observatrio da Imprensa. Websites sobrecarregados. Disponvel na internet: http://observa-torio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos/ter190920019993.htm Pgina acessada em 20/07/2005.

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    grandes portais, o que empurrou os usurios para dois lugares: a TV e os blogs. S que a TV cumpria um papel de produzir a leitura da imagens ao vivo, enquanto milhares de pessoas procuravam informaes sobre familiares e amigos que esta-vam nos arredores dos atentados.22

    Sites pequenos e geis mantidos por gente comum que se contenta em descrever diariamente suas existncias comuns entraram em ao numa verdadeira cor-rente de informaes e, principalmente, numa corrente de solidariedade. Assim como os pequenos cinegrafi stas amadores buscavam a fora das grandes ima-gens numa tentativa de explicar o inexplicvel com palavras, eram as mensa-gens dos bloggers que procuravam solucionar problemas prticos e objetivos de quem precisava entender que tudo aquilo no era, pelo menos ainda, necessaria-mente o comeo do terceira guerra mundial ou o comeo do fi m do mundo 21.23

    Era uma pluralidade polissmica contidas em textos, imagens, udio e vdeo. Alm das tradicionais opinies e testemunhos contidos nos dirios, os blogs disponibilizam narrativas testemunhais numa edio em estado bruto. A blogosfera entrava na sua fase informativa. Um blog, em especial, se destacou pelo servio de informao pblica que prestou: o Slashdot.24 Ele se transformou

    22 No Brasil, o caos nos portais tambm foi instaurado. Os portais Globo Online, CNN, Terra e IG demonstraram o baixo investimento para suportar o trfego e a ansiedade por informao dos leitores. Como bem identifi cou Raphael Leal, o iG pagou um mico histrico: decidiu que o dia 11 seria dia das boas notcias, e tiraria da primeira pgina qualquer meno a ms novi-dades. Teve que abrir mo rapidinho da idia. (in Observatrio da Imprensa. Disponvel na internet: http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos/ter1909200198.htm Pgina aces-sada em 04/04/2006.23 Cf. Antonio Brasil, Boa e velha TV supera a Internet. Observatrio da Imprensa. Dispon-vel na internet: http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos/ter190920018.htm Pgina acessada em 20/07/2005. 24 Trata-se de um blog coletivo, produzido de forma colaborativo. O princpio-base do Slashdot, por exemplo, nada de censura. Todos podem comentar qualquer artigo do modo que quise-rem. A Constituio do Slashdot utiliza apenas trs mecanismos para gerir a tenso entre liber-dade individual de fazer posts de material ofensivo ou irrelevante e o desejo coletivo de poder encontrar os comentrios interessantes. O primeiro a moderao, cuja funo estabelecer um rank de qualidade para os posts. O segundo uma forma de metamoderao, que controla o trabalho dos moderadores impondo escolhas objetivas. O terceiro, por fi m, o karma, ou seja, a reputao dos comentadores. Estes trs conceitos polticos, embora, simples, permitem ao Slashdot continuar a prestar um servio til (Granieri, 2006, p.49). A quem interessa, h disponvel at hoje o post que desencadeou a solidariedade em tempo real no 11 de setembro: http://www.interactivepublishing.net/september/detail.php?id=252&singlecall=1.

  • 42 POR UMA GENEALOGIA DA BLOGOSFERA

    no espao onde diferentes usurios postavam informaes que aumentavam o n-vel de esclarecimento sobre o atentado. Tornou-se uma rede social em tempo real, onde se podia encontrar o telefone para atendimento da famlia das vtimas, trans-crever as ltimas notcias, debater as razes do atentado, mostrar a lista de quem estava nas aeronaves e as transcries de organizaes rabes contra o atentado e contra o linchamento miditico contra a sua cultura etc. Foram mais de 50 mil intervenes escritas na forma de frum de discusso. Foi um verdadeiro espao pblico que se constitui sem que todos estivessem presentes simultaneamente.

    Figura 3 - Com os portais congestionados, pgina do blog fi ltro Slashdot vira abrigo de informaes e debates sobre o atentado de 11/09. Fonte: Digital Collection

    Num texto memorvel, Jon Katz (2005), do Slashdot, um ms aps a tra-gdia contra as torres gmeas, anunciava que o 11 de setembro marcava uma nova era da informao em que a internet ocuparia cada vez mais o centro por onde se produzia as principais informaes sobre grandes acontecimentos. Os testemunhos online de sobreviventes e de testemunhas oculares se transformaram em excepcio-nais arquivos da tragdia global que, em dado momento, destoava das explicaes consensuais da grande mdia (como o que denunciou um blogueiro, quando mos-trou a farsa das imagens montada pela CNN mostrando os palestinos comemoran-do o sucesso do atentado, quando estavam a festejar outro acontecimento). Para Katz, o 11 de setembro foi o mesmo que a II Guerra Mundial e o Assassinato de Kennedy tornou, respectivamente, para o rdio e para a televiso: um evento que fundava a hegemonia de um veculo (no caso a internet) sobre os outros.

    Mas para alm de todas as fobias que o mainstream da mdia possui sobre a perigosa e irresponsvel internet, a cada semana que passa depois do ataque a

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    internet se transforma em um veculo mais srio, o nico que oferece aos con-sumidores da informao notcias atualizadas e discusses e pontos de vista alternativos. A internet um meio da expresso pessoal pessoas enviam email para amigos e parentes para dizer-lhes que estava tudo, para dot-los de infor-maes relevantes, para doar tempo e dinheiro. E, naturalmente, ao contrrio dos meios convencionais, que do ainda aos cidados ordinrios quase nenhu-ma oportunidade de participar, a rede arquitetonicamente e visceralmente in-terativa. O feedback e a opinio individual no so [...] um punhado de [...] ns-queremos-ouvir-de-voc por telefone, mas so uma parte integrante da dispersa informao da internet. So o seu ncleo (core).[...] Os ataques ao WTC remetem-nos a uma extraordinria abertura, a uma distribuio aberta da informao e a um sendo de construo de comunidade que esto no corao da promessa do mundo wired (Katz, op. cit., online).

    O 11 de setembro provocou que, na Internet, comeasse assim um mo-vimento25 que, mais frente, apontado como evento fundador da recesso da mdia26 e da crise do jornalismo, j que a ateno do usurio leitor, telespectador ou ouvinte esteve em boa parte, durante o atentado, fragmentada em veculos que no os somente da corporaes miditicas.27

    Alm dos noticirios produzidos sobre a tragdia de 11 de setembro, aqueles de ns ligados internet viram tambm uma produo muito diferente. A rede estava lotada de relatos desses mesmos eventos. No entanto, os relatos tinham um sabor muito diferente. Algumas pessoas construram pginas que agrega-vam fotos tiradas ao redor do mundo e as apresentavam como slides com texto. Alguns escreveram cartas abertas. Havia gravaes. Havia raiva e frustrao. Havia tentativa de contextualizar os fatos. Houve, em suma, uma extraordinria

    25 A biblioteca do Congresso americano e os acadmicos do Archive Online construram um inventrio dos sites e blogs na internet que narraram o 11 de setembro para disponibilizar um suntuoso arquivo online sobre o atentado. O arquivo contm, alm de cerca de 10 mil blogs, o material audiovisual, textual e fotogrfi co obtidos com os meios de comunicao de massa que narraram os acontecimentos de setembro de 2001. Ver: http://lcweb2.loc.gov/cocoon/minerva/html/sept11/sept11-about.html 26 Como as redes de TV e rdio fi caram horas sem parar no ar e a imprensa destinou quase toda a edio ao evento, estima-se que s no dia do atentado as corporaes miditica perderam cerca de 40 milhes de dlares. Anunciantes tambm deixaram de lanar novos produtos aps o aten-tado, retomando a publicidade meses depois, quando a memria do atentado foi se diluindo.27 CF. Jane Weaver, A media recession like few other. Reportagem publicada no site MS-NBC. Disponvel na internet: http://www.msnbc.msn.com/id/3073246/ Pgina acessada em 20/07/2005

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    onda mundial de mutires [...] em torno de uma notcia que capturou a ateno do mundo (Lessig, 2005).

    A guerra agenda a blogosfera

    O rescaldo do 11 de setembro, lembra Blood , foi a demonstrao do po-der do relato de histrias no mediadas que os sobreviventes partilhavam com as audincias nos seus blogs. O 11 de setembro tambm desencadeou uma gerao de blogs de guerra (warblogs), sites de estilo agressivo, principalmente centra-dos na resposta dos EUA a estes ataques terroristas. Os blogs de guerra tambm trouxeram um contingente de vozes conservadoras e libertrias para o meio de uma comunidade tendencialmente de esquerda (Blood, 2004).

    Logo aps os atentados de 11 de setembro de 2001, o governo norte-americano com apoio de foras econmicas e polticas supranacionais declara guerra a um homem (Bin Laden). Comeava ali uma ofensiva de luta contra o terrorismo. ento nesse contexto que a blogosfera se torna pouco a pouco um espao dos dirios das guerras do Afeganisto (2001) e do Iraque (2003). Os warblogs28 formam um movimento que fratura a construo da narrativa nica de corporaes globais de mdia, como a CNN, famosa pelas manipulaes nas imagens da cobertura da Guerra do Golfo. Os warblogs se tornam uma das mais populares fonte de informaes na internet, principalmente por causa das opini-

    28 Em seu timo artigo War blogs: os blogs, a Guerra do Iraque e o Jornalismo Online, Raquel Recuero descreve, detalhadamente, experincias de warblogs, a saber:Um dos mais famosos warblogs no-ofi ciais o de um suposto iraquiano residente em Bag-d, que escreve atravs de um pseudnimo Salam Pax, chamado Where is Raed? 3. O we-blog, um dirio, iniciado dezembro de 2002, com oobjetivo de mostrar o dia-a-dia do autor em Bagd, tornou-se um fenmeno aps a exploso da guerra. O weblog constitudo de um relato do cotidiano, com passagens como a que se segue: Hoje, no terceiro dia da guerra, ns tivemos um grande nmero de ataques durante o dia. Alguns sem as sirenes de aviso [de perigo de bombardeio]. Eles provavelmente desistiram de conseguir soar as sirenes a tempo. Na noite passada, depois de ondas atrs de ondas de ataques, eles soavam a sirene de tudo ok [sirene que avisa que possvel sair de casa, o bombardeio j passou]apenas para comear outra [de perigo] 30 minutos depois. 4. Outro weblog que tambm procura relatar a vida no front o do jornalistaChristopher Albritton, do Back to Iraq 2.0 5. O jornalista lanou o blog com o objetivo de recolher contribuies para conseguir ir para o front e relatar a guerra de um ponto de vista independente, uma vez que est indo sem o apoio de nenhum jornal. Do dia 27 demaro at 22 de abril, Christopher escreveu um dirio de viagem, sobre a sua estadia e asvises que teve do Iraque e dos pases vizinhos. (Disponvel na internet: acesso em 01/09/2006)

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    es sobre o assunto, pelos registros vivos de blogueiros-moradores, de jornalistas (alguns pagos pelos internautas), e de soldados americanos29, que direto do front, narram as vicissitudes da guerra. Somado a eles, centenas de blogueiros repercu-tiam o noticirio, elaborando anlises favorveis (pr-Bush) ou contra (anti-Bush) a guerra, por meio de seus prprios dirios ou atravs de blogs fi ltros.30

    O crescimento31 dos warblogs forou o Departamento de Defesa dos EUA a monitorar as atividades desses dirios, como o Bagd em Chamas (http://ri-verbendblog.blogspot.com/), blog assinado por Riverbend, a Girl from Iraq, que , at hoje, uma das fontes de maior credibilidade sobre a ocupao imperial do Iraque. Nele a blogueira impe uma narrativa, em forma de crnica, sobre a vida social e poltica de Bagd, mesclando assuntos quaisquer da sua vida pessoal. O blog acabou virando livro, classifi cado como livro de memrias, e concorreu ao prmio de melhor livro do ano de 2006 na Inglaterra, alm de ter virado pea em 2006.32 Todavia, com exceo dos blogs dos civis iraquianos que escrevem direto de Bagd, os demais warblogs acabaram evoluindo para dirios com opinies e informaes polticas. A popularidade dos warblogs cai medida que o processo de ocupao do Iraque j deixa de ser assunto de guerra, para se tornar um caso de gesto policial no territrio. Isso provoca uma metamorfose no estilo dessas publicaes online, que viram blogs polticos. Alguns deles ousam, como o Back to Irak 2.0 (http://www.back-to-iraq.com/), em que o seu blogueiro, o correspondente internacional Christopher Allbritto, fi nanciado por doaes online de seus leitores, fi nca moradia no Oriente Mdio para relatar informaes para seus leitores.

    29 Os blogs de soldados (milblogs) so relatos pessoais dos militares que lutam nas guerras. So tambm veculos que blogueiro conta para manter a famlia e os amigos informados sobre sua vida nas zonas de guerra. Tornaram-se tambm manifestaes contrrias quelas anti-guerra e anti-Bush. E por isso so blogs bastante fi nanciados e estimulados pelos republicanos. At o fi nal de 2006, eles eram 40 mil na rede. 30 Meta-warblog coletivo de defesa do militarismo, h o Miliblogging (http://milblogging.com/) e o meta-warblog coletivo anti-guerra, o The Colletive Lounge (http://thecollectivelounge.blogs-pot.com/).31 Folha Online. Internautas usam blogs para relatar guerra do Iraque. Disponvel na internet: acesso em 16/05/2005.32 Observatrio da Imprensa. Blog de iraquiana disputa prmio literrio. Disponvel na inter-net: . Acesso em 10/01/2007.

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    Consideraes Finais

    As dimenses histricas da blogosfera entre os anos de 1997 e 2001 foram marcadas pelo deslocamento da identidade dos blogs, que passaram de veculos de fi ltragem de informaes da web para uma pluralidade de vozes e linguagens, criadores de regimes de conversao social, em que a opinio e as idias circulas-sem de uma forma muito mais difusas do que os velhos mecanismos irradiadores das mdias de massa. Este passa a ser o principal deslocamento no sentido histri-co desses veculos: de mdias de especialistas para mdias das massas.

    Alm disso, aberto debate sobre a relao entre blogs, jornalismo e produo de opinio. A comunicao colaborativa dos internautas institui uma realidade nova no mbito da produo da opinio pblica, pois que a opinio se manifesta atravs de uma rede distribuda de comunicao, sem a presena de qualquer intermediao. Os veculos da imprensa viram-se, a partir do 11 de setembro, ento imersos num plano em que o receptor penetrava no interior do newsmaking. Queria fazer parte do ncleo do poder miditico. Uma verdadeira transformao ps-moderna, cuja principal conseqncia a transformao das leis que regem o jornalismo contemporneo, bem como na denncia da homoge-neizao da opinio, da reduo do contraditrio, da diminuio do espao crti-co (Nassif, online) levado a cabo por alguns setores da imprensa.

    Referncias

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    Fbio Malini doutor em Comunicao e Cultura pela ECO/UFRJ. Professor no Departamento de Comunicao Social da UFES, Coordenador do Laboratrio de Estudos sobre Informao, Redes e Cibercultura (LABIC), na UFES. E-mail: [email protected].

  • Uma fala inconclusa: espera da retomada da crtica de cinema no Brasil*

    Alexandre Curtis

    Donde o entendimento retira a previso segura de, segundo as suas regras, se ocupar para todo o

    sempre do mltiplo que dado na sensibilidade?

    Immanuel Kant

    O tempo costuma marcar aquilo que toca. O cinema e a crtica de agora no so como os de dcadas atrs. Quanto ao cinema, assistiu-se nos ltimos trinta anos uma recuperao das narrativas clssicas. As reaes independentes primeiro esboaram um momentneo esgotamento, com o declnio dos cinemas novos, fragmentaram-se e se diversifi caram a tal ponto que pouco restou das in-vestidas dos cinemas nacionais (contra Hollywood), das inquietaes viscerais do cinema moderno. Em meio aos anos 80, tudo o que se queria evitar era a repetio do engajamento esttico, do compromisso artstico e da clareza poltica tentada anos antes. Durante um tempo, o refl uxo dos alternativos pareceu convincente. Mesmo assim, a dcada de 90 assistiu ao fortalecimento de um circuito de fi lmes de arte, paralelo ao cinema de feies hollywoodianas. Contudo, j era uma outra realidade, uma outra perspectiva que se delineava. At a alteridade tem seu senso de pragmatismo.

    A crtica, acompanhando de longe os sucessivos desgastes das grandes teorias explicativas, tambm oscilou, numa crise radical, sofrendo profundas transformaes. De um modo geral, perdeu muito de uma projeo que tivera na mdia popular e cotidiana. Reformas grfi cas e ideolgicas ocorridas no seio do jornalismo reduziram o espao disponvel para a prtica da crtica e modifi caram seu sentido. Cerceada em sua tradio refl exiva, a crtica migrou para o mundo acadmico, encontrando amparo dentro dos cursos de cinema que foram sendo criados nas universidades.

    A crtica ligeira no desapareceu, mas a que restou nos jornais e nas re-vistas de variedades, passou a conviver com a necessidade permanente de se dife-

    * Este artigo a Concluso da tese de doutorado, defendida na UFRJ-ECO em 2004. Foram feitas algumas mudanas superfi ciais para adequ-lo para a publicao.

    LUGAR COMUM N23-24, pp.49-66

  • 50 UMA FALA INCONCLUSA...

    renciar e se distanciar das novas estratgias comunicativas adotadas pelos meios informativos e que pouco tinham a ver com a funo da crtica. Aos poucos, um trabalho que servia de base aos processos valorativos e decisrios, estruturao das sensibilidades pela via refl exiva, foi sendo substitudo por outras modalidades produtivas. Ser informado tornou-se algo equivalente a ser formado, como se para saber fosse sufi ciente a simples exposio aos fl uxos informativos disponveis. A atividade crtica nos jornais e revistas passou por uma reconfi gurao funcional que lhe tirou parte da relevncia social, ao torn-la apndice da indstria cultural, na forma das resenhas. Assim, a passagem de um tempo em que jornais e revistas se ofereciam publicao de artigos e ensaios extensos e ousados, quando colu-nas de cinema cobriam de alto a baixo as pginas dos jornais (Filme Cultura, 1985, p.4), para um outro, onde os textos passaram a ser limitados em trinta/qua-renta linhas, regradas pela idia de clareza e conciso (in. Capuzzo, 1986, p. 92) sentido como uma perda para o jornalismo cultural (in. Stycer, 2002). No uma perda circunstancial, casual, mas sistmica, uma tendncia dos tempos. Em outros termos, a percepo dessas alteraes sugere o reconhecimento da existn-cia de uma cultura (e sua poltica) hegemnica, responsvel pela disposio da realidade como tal.

    Na sociedade ocorriam grandes mudanas nos modos de acesso s in-formaes, cada vez mais disponveis, atravs de variadas mdias e novas tecno-logias. Ao passo que se criavam condies para uma indita democratizao do acesso s informaes, surgiram tambm mitos relativos inexorvel necessidade por um saber vago que rapidamente ganhou embalagem e passou a ser oferecido maciamente. A produo d