revista linguística, 5(2), da pós-graduação em linguística da universidade federal do rio de...
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Apresentação
A Revista LinguíStica, da Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal do
Rio de Janeiro, neste V. 5 N. 2, oferece a oportunidade à comunidade científica da área de
Ciência da Linguagem Humana de conhecer o que há de mais recente sobre o tema Estudos
Linguísticos, Inovação e Tecnologia. Seguindo a tradição, este número privilegia a linha de
pesquisa do Programa Tecnologias linguísticas e materiais pedagógicos, que não havia sido
ainda contemplada nos volumes já publicados do periódico.
Com o rigor de excelência que caracteriza seu perfil, a Revista LinguíStica tem o
prazer de editar textos que apresentam os modos pelos quais vêm avançando os recursos
tecnológicos inovadores como suporte a tradutores, à pedagogia de línguas, a critérios de
proficiência em leitura, a métodos pedagógicos de correção de textos e de ensino da leitura e
da escrita presencial ou não presencial, virtual ou não virtual. Num mundo em que a web é
indispensável, não há como negar os instrumentos de navegação ao alcance de especialistas,
docentes, alunos e usuários da internet.
Os articulistas que nos honram com sua contribuição dão a conhecer tecnologias
disponíveis de que se pode lançar mão atualmente em diferentes campos. Com orientações
teóricas distintas, os trabalhos apontam para os avanços da Ciência no que afeta aos estudos
da linguagem humana e sua diversificada aplicação.
Assim, o conjunto de estudos abre um leque variado de inovação em campos como
Terminologia, Tradução, Ciência da Informação, Semiótica e suas abordagens de análise dos
sentidos e interpretação de textos em diferentes linguagens, Aprendizagem e Ensino de L1 e
LE, Avaliação e Proficiência em Leitura e Escrita, Tecnologias em Educação, Polidez no
espaço cibernético. A compilação das pesquisas e discussões vem preencher lacuna evidente
na área, que se mostra ainda tímida no que diz respeito à inovação e à tecnologia. Inaugura
desse modo uma frente de questões em direção a qual os Estudos da Linguagem Humana
devem e podem caminhar ao estabelecer parcerias com outras áreas nas quais os aspectos
inovadores e tecnológicos mostram-se mais explicitados.
Maria Cecilia Mollica
FERRAMENTAS DE AUXÍLIO E TERMINOLOGIA: ALGUMAS
CONSIDERAÇÕES PARA APRENDIZES DE TRADUÇÃO E SEUS
CURSOS
Auxiliary Tools and Terminography: some considerations for translation students and
their courses.
Guilherme Fromm (ILEEL/UFU)
RESUMO
O artigo pretende fazer uma breve revisão de ferramentas (dicionários, obras de referência,
memórias de tradução) disponíveis para os aprendizes de tradução e a associação dos mesmos com a
Terminologia. Apresenta também a importância do ensino dessas ferramentas para a formação de um
bom tradutor e a necessidade de se considerar o ensino de Terminologia como parte dessa formação.
Palavras-chave: Tradução. Ensino. Terminologia. Dicionário.
ABSTRACT
This article intends to show a brief review of available tools (dictionaries, reference books and
translation memories) for translation learners and their association with Terminology. It also shows
the importance of learning how to use these tools for a good translator’s apprenticeship and the
necessity of considering Terminology as part of this learning.
Keywords: Translation. Teaching. Terminology. Dictionary.
Traduzir, cada vez mais, está associado ao ato de usar instrumentos que auxiliem na
tarefa de tradução, incluindo aí os já tradicionais dicionários. O objetivo deste artigo é o de
traçar um panorama sobre essas obras de referência e programas que possam ajudar os alunos
de cursos de Tradução em seu ofício e indicar a importância, inevitável, da Terminologia no
processo.
Muitos consideram que os alunos de Língua e Tradução sabem, naturalmente,
trabalhar com obras de referência e dicionários. Nem sempre isso é verdade. Schmitz (2000),
por exemplo, discutindo o uso de dicionários por parte de aprendizes de língua estrangeira,
questiona não só a utilidade dessas obras, mas também a vontade desses alunos em decifrar
códigos gramaticais impostos pelas editoras em seus dicionários.
Transitando entre o enfoque de aprendizado de língua (vernácula ou estrangeira) e o
aprendizado de tradução, Darin (1997, p. 118), comenta sobre a competência linguística que
deveria ser inerente ao aluno de Tradução que já teve contato prévio com essas ferramentas:
[...] o trabalho [de tradução] pode ser bem feito se houver uma
pesquisa adequada. Entretanto, surpreendeu-nos a dificuldade às vezes
apresentada na utilização do dicionário, principalmente tendo em vista que
disciplinas do primeiro ano estão incumbidas de preparar os alunos para esta
atividade tão vital ao estudante de Letras.
Alves (1997, p. 25-26), ao comentar o apoio externo que os tradutores devem buscar,
destaca a ênfase dada às ferramentas a serem utilizadas por aqueles que estão desenvolvendo
a competência tradutória:
[...] sem conseguir solucionar, através de conhecimentos prévios, o
problema gerado no decorrer do processo tradutório, o tradutor passa a
utilizar-se de mecanismos de apoio externo para tomar sua decisão de
tradução. [...] Em outras palavras, o tradutor deve adquirir a capacidade de
operar instrumentos que lhe auxiliem na tarefa de traduzir. Tanto dicionários
quanto obras de consulta e referência desempenham um papel fundamental
nessa fase. Além desses recursos, cabe ao tradutor saber buscar fontes de
consulta alternativas através do contato com informantes e agências de
informação. Enfim, desenvolve-se aqui, junto ao tradutor em formação, um
trabalho de conscientização de como implementar estratégias e técnicas de
tradução discutidas na literatura da área.
Seguindo a linha de raciocínio de Darin e Schmitz, Pagano (2003) aponta que,
“embora seja o recurso mais comumente associado à tradução e ao tradutor, o dicionário está
longe de ser o recurso mais bem utilizado” (p. 41). A autora critica a crença, bastante
difundida entre os aprendizes, de que basta um dicionário bilingue para dar conta de qualquer
tradução. Para ela, um dicionário bilingue “é apenas um dos recursos existentes, cuja
utilização requer a verificação ou checagem das informações em outros tipos de dicionários,
como é o caso dos dicionários monolingues, que oferecem uma descrição ou explicação do
termo procurado” (p. 41).
Segundo Pagano, os dicionários usados pelos tradutores devem ser atualizados
constantemente ou esses tradutores devem usar versões mais modernas dos mesmos,
construídas por meio de recursos computacionais e bancos de dados calcados em diversos
tipos de texto. As definições seriam básicas para o profissional da tradução, mas, além delas, a
autora destaca a necessidade de a obra dispor de sinônimos, antônimos, hipônimos e palavras
afins. Defende, ainda, que o tradutor, para poder trabalhar com expressões de uma área
técnica, deve: consultar os especialistas na área; pesquisar em glossários e dicionários
especializados; ler textos paralelos e buscar por palavras chave na Internet (colocados nessa
ordem pela autora).
Percebe-se, com as opiniões dos vários autores apresentados, que o ensino da
ferramenta “dicionário”, constantemente negligenciada, é de vital importância para aqueles
que estudam uma língua estrangeira e, especialmente, para o aprendiz de Tradução. É
importante, também, que o aluno tenha um conhecimento das estruturas que compõem essas
obras para poder melhor escolher os vários tipos de obras de referência quando da
necessidade de consulta.
OBRAS TRADICIONAIS
Além dos grandes dicionários gerais de língua, uma vasta quantidade de vocabulários1
de áreas de especialidade conta cada dia mais com publicações em papel. Há, no caso, dois
tipos de público para essas obras: o público alvo representado pelos profissionais de cada
área, que necessita dominar a terminologia para um melhor desempenho profissional, e os
tradutores, que consultam esses tipos de obra como fonte terminológica em várias áreas. Já há
trabalhos que analisam essas obras terminológicas. Fromm (2002), por exemplo, realizou uma
análise contrastando cinco vocabulários técnicos na área de computação e apresentou as
diferentes construções para a microestrutura e as incongruências internas presentes em todas
as obras, especialmente aquelas referentes à inconsistência na construção dessa
microestrutura.
Existem vários modelos possíveis de formatação das macro e microestruturas dessas
obras. A título de ilustração, apresentamos, a seguir, um exemplo retirado da coleção Mil e
Um Termos, da SBS (Perroti-Garcia, 2003). Veja-se, por exemplo, o verbete band (figura 1):
o termo base é seguido pela classe gramatical (quando da entrada em inglês) ou classe
gramatical/gênero (quando da entrada em português) e a tradução para a outra língua. Há um
caráter enciclopédico presente na obra com a inclusão de inúmeras ilustrações e tabelas. Os
exemplos apresentados, identificados por uma figura com a letra “E”, não são baseados em
textos reais, são apenas um indicativo de uso. A figura com o dedo apontando indica
comentários ou sinônimos e uma figura com a letra “P” indica uma forma popular
1 Vocabulário tomado aqui no sentido de dicionário de especialidade, dicionário técnico.
(banalizada) para o termo, enquanto as remissivas são indicadas por uma seta para a direita.
Novas acepções, com palavras à direita do termo em questão, entram como novos verbetes
(band adapter, band driver). Já as novas acepções, formadas por uma palavra acrescentada à
esquerda do termo, são colocadas como diferentes acepções na microestrutura do mesmo e
são dispostas em diferentes linhas com indicação de marcadores ([abutment] band;
[adjustable] band); o colocado do termo base é indicado por colchetes ([ ]).
Figura 1. Termo band.
NOVAS TECNOLOGIAS EM CONSULTA
Gil e Pym (2006, p. 17) já pontuaram que a Tecnologia não é uma opção no mundo
profissional hoje em dia; é uma necessidade. Anos atrás, falava-se de Tradução Assistida por
Computador (CAT). Isso, agora, parece redundante. Virtualmente todas as traduções são assistidas por
computador (minha tradução).2
Analisando obras brasileiras, no entanto, pode-se dizer que apenas os dicionários
gerais de língua em versão eletrônica como o Houaiss (2002) aproveitam as vantagens do
computador. Algumas funcionalidades, antes impensáveis, passam a existir: os vínculos em
hipertexto, por exemplo, ligam todos os semas que compõem uma definição às respectivas
entradas. As obras dispõem, também, de mais de um modo de exibição para a microestrutura
dos verbetes.
Cada vez mais, obras já disponíveis há muito tempo estão sendo passadas da mídia
tradicional (em papel) para uma mídia eletrônica (CDROM, Internet). Parece haver uma clara
tendência, também para os vocabulários técnicos, em seguir a digitalização de suas obras.
Muitos, no entanto, perdem a oportunidade de acrescentar novas funcionalidades e, com um
visual bastante pobre, tentam apenas reproduzir a versão em papel. O Dicionário Jurídico
Noronha (Goyos Jr., 2000 – figura 2) representa tal tendência. Para o termo “abrogação”, o
dicionário fornece apenas equivalentes em inglês (abrogation, repeal, defeasance,
annulment). O Dicionário Eletrônico Michaelis Técnico (2007) apresenta (figura 3), em seis
línguas, a equivalência para termos da área industrial. Como no caso do Noronha, não
apresenta a definição do termo e tampouco faz uso de funcionalidades disponibilizadas pelas
ferramentas eletrônicas; possui, por outro lado, um esquema gráfico colorido e com vários
ícones que facilitam a consulta.
2 Technology is not an option in today’s professional world; it is a necessity. Years ago one talked about
Computer-Aided Translation (CAT). That now seems a redundancy. Virtually all translating is aided by computers.
Figura 2. Tela do Dicionário Jurídico Noronha, verbete ab-rogação e os equivalentes
em inglês.
Figura 3. Tela do Dicionário Eletrônico Michaelis Técnico, verbete abelito (em
português).
Os dicionários e vocabulários não só se modernizaram, mas também seguiram para a
Internet e lá foram desenvolvidas novas ferramentas, como programas de tradução automática
e enciclopédias online que, cada vez mais, auxiliam os profissionais da tradução a realizar o
seu trabalho. O site Answers.com (disponível em www.answers.com), uma combinação de
dicionário e enciclopédia, é um bom exemplo da convergência de obras num mesmo espaço
(Figura 4).
Figura 4a) Answers.com. Definição do verbete computer. Informações lexicográficas e
enciclopédicas.
Na visualização do verbete computer (o site é todo em inglês e só apresenta essa
língua como ponto de partida), por exemplo, a página mostra, em primeiro lugar, a definição
do mesmo (característica de dicionário monolingue), retirado do dicionário The American
Heritage. Na sequência, informações, gráficos, fotos são apresentados para complementar o
entendimento (característica de enciclopédia). Por fim, podem-se visualizar as formas
equivalentes do verbete em várias línguas, português inclusive (característica de glossário de
formas equivalentes – Figura 4b).
Figura 4b. Answers.com. Definição do verbete computer. Informações de equivalentes
em outras línguas.
FERRAMENTAS DE TRADUÇÃO
Muitos dos tradutores profissionais, conforme menciona Araújo (2001, p. 49), já
desenvolvem, por iniciativa própria e para consumo individual, glossários e vocabulários para
suas traduções, porém trabalham de forma precária com programas de processamento de texto
ou planilhas para organizá-los. Tendo em vista essa problemática, além de dicionários e
vocabulários, de uso do público em geral ou de especialistas, novas ferramentas foram e
continuam sendo desenvolvidas especialmente para os tradutores. Zerfass (2002) destaca,
entre várias ferramentas, os utilitários de conversão para gerenciamento de terminologia,
memórias de tradução, tradução por máquina e sistemas de gerenciamento de projeto e fluxo
de trabalho. Bowker e Barlow (2000) fazem uma interessante análise comparativa entre a
memória de tradução e os concordanceadores bilingues (os autores indicam que esses são
muito mais conhecidos entre acadêmicos do que entre tradutores profissionais), também
indicados para o ensino de tradução. Mas a memória de tradução é, com larga vantagem, a
ferramenta que mais se destaca (entre as acima apresentadas). Ela armazena trechos inteiros
de traduções já realizadas (por meio de um processo de segmentação do texto) pelo tradutor
ou por outro tradutor/firma de tradução e os disponibiliza para comparação e/ou simples cópia
do trecho. Um exemplo é o programa WordFast, que funciona como uma macro para o
Microsoft Office (figura 5). Outros programas, além de conter um módulo de memória de
tradução, disponibilizam para o tradutor além disso uma série de ferramentas para o
gerenciamento de terminologias; o Trados é o melhor exemplo entre esses programas (a ele
são acopladas diversas ferramentas, entre elas, o Translator’s Workbench, o Multiterm e o
SDLX).
Figura 5. Exemplo de uma tradução na área de computação com recursos do
WordFast.
Na primeira parte (primeiro quadro), são apresentados o original e a tradução já
realizada e armazenadas pelo programa. Na segunda parte, o tradutor pode copiar pedaços já
disponibilizados ou usá-los como parâmetro para o segmento a ser traduzido.
Esses programas estão na vanguarda das tecnologias que auxiliam o tradutor,
pressupõem, porém, que o usuário seja um tradutor com alguma ou muita experiência na área.
Alguns programas mais avançados estariam ligados, portanto, a uma segunda fase de
aprendizado de ferramentas eletrônicas de ajuda ao profissional. Dicionários, em qualquer
formato, ainda fazem parte do aprendizado básico para quem trabalha com tradução.
TRADUÇÃO E TERMINOLOGIA: A NECESSIDADE DA INTERFACE
Além das obras de consulta externa, alguns autores sustentam o uso de outras fontes
de pesquisa. Aubert (2001) advoga que a terminologia e a terminografia são ferramentas
essenciais aos tradutores (p. 42). Uma situação ideal de busca por um termo, por parte dos
tradutores, consistiria na consulta a:
a. uma fonte monolingue na língua fonte;
b. varios materiais terminográficos bilingues (bidirecionais);
c. materiais monolingues (dicionário de especialidade) na língua alvo, para efeito de
verificação.
O ensino da Terminologia, uma das competências que deve estar associadas ao
tradutor, conforme Gonçalves e Machado (2006), está intimamente ligado à Tradução. Araújo
(2002), partindo dos problemas relacionados à tradução do livro A brief history of time (Uma
breve história do tempo), do físico inglês Stephen Hawking, questiona a ligação da Tradução
com a Terminologia. No caso do livro de Hawking, os físicos, um dos públicos alvo,
mencionaram vários erros de tradução de acordo com a terminologia vigente para as áreas de
Física e Astronomia: não houve, pelo lado da tradutora, uma preocupação em usar a
terminologia adequada (em parte porque o livro também era destinado ao público leigo) e isso
resultou em lacunas de entendimento por parte dos profissionais que estão acostumados com
essa terminologia.
A necessidade de tradução adequada de termos técnicocientíficos é apontada por
Krieger (2006, p. 190), ao defender o aprendizado de Terminologia para tradutores:
Os tradutores compreendem que os termos técnico-científicos,
objetos centrais da disciplina terminológica, são componentes linguísticos e
cognitivos nucleares dos textos especializados; constituindo-se,
consequentemente, em peças chave de representação e de divulgação do
saber científico e tecnológico. Daí a importância de identificá-los e traduzi-
los adequadamente, embora os termos não sejam os únicos elementos que
permitem que a comunicação profissional cumpra suas finalidades.
A necessidade da associação entre as duas áreas – Tradução e Terminologia - é
bastante clara e já foi levantada por Araújo (2002). Embora as estatísticas de Gonçalves e
Machado (2006, p. 57) indiquem que 41,3% dos estabelecimentos de ensino que ministram o
curso de Tradução já trabalhem com Terminologia, seja através de disciplinas, laboratórios e
centros de pesquisa, muito, ainda, pode ser desenvolvido para que essa união se torne mais
profícua.
Essa união já foi levantada por Araújo (2002, p. 177), com certa preocupação, pois,
para a autora,
[...] o que podemos constatar na prática é uma falta generalizada de
produtos terminológicos no mercado nacional voltados para o auxílio à
tradução, quer na forma de dicionários especializados ou, numa abordagem
informatizada, bancos de dados terminológicos (BDTs), que contemplem o
português brasileiro e possam ser utilizados como fontes de consulta
confiáveis [...]
UMA NOVA PROPOSTA
Fromm (2007) propôs uma ferramenta para o treino dos futuros tradutores: o VoTec
(disponível em www.guifromm.trd.br). A página disponibilizada na Internet (figura 6)
apresenta, dentro das áreas técnicas ali apresentadas, uma diversidade na visualização e
construção dos verbetes por parte do consulente. Através da opção consulta modular, o
aprendiz pode inserir ou excluir campos da microestrutura de um verbete, aprendendo, assim,
a trabalhar com a mesma. A proposta é também inovadora no sentido de usar somente
corpora de especialidade como fonte para a construção dos verbetes, apresentando exemplos
e definições conectadas aos textos reais escritos na língua.
Figura 6. Verbete computador, exibição normal e consulta modular.
No caso, os campos categoria gramatical, gênero e número foram excluídos da
microestrutura.
CONCLUINDO
O ensino de Tradução, portanto, não pode tomar como certo que o aprendiz já tenha
um contato prévio com dicionários, obras de referência e obras terminológicas. Um bom
curso na área deve levar em conta o aprofundamento do uso de dicionários (em papel ou em
suportes eletrônicos), o contato com outras obras de referência (em papel ou meios
eletrônicas), o ensino das novas ferramentas de auxílio à Tradução (com destaque para as
memórias de Tradução) e uma maior ligação com as disciplinas voltadas à Terminologia e à
Terminografia, já que o aluno, além de tradutor, é também um criador de novas terminologias
na sua área de atuação.
Nesse sentido, muitos cursos de Tradução oferecidos pelo país afora apresentam uma
lacuna no rol de disciplinas. Deve ficar claro, para seus gestores, que Tradução, na atualidade,
está intimamente ligada ao computador e às diversas ferramentas a ele associadas.
Treinamento em Tradução, portanto, também é treinamento de como usar o computador e as
ferramentas especializadas nele disponíveis.
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VOCABULÁRIO E COMPETÊNCIA EXPRESSIONAL À LUZ DA
ICONICIDADE: UMA NOVA TECNOLOGIA
Vocabulary and Expressive Competence according to iconicity: a new technology
Darcilia Simões (UERJ)
Maria do Socorro Silva de Aragão (UFC)
RESUMO
Aborda-se neste artigo a relação direta entre domínio vocabular e competência para a
expressão verbal. Inicia-se com constatações acerca da situação do ensino de língua no Brasil.
Em seguida, apresentam-se os fundamentos teóricos que, partindo da noção de competência,
passa-se pela noção de script e parte-se para o cruzamento entre a Teoria da Iconicidade
Verbal, a Teoria dos Espaços Mentais e a Pragmática. Traz-se à cena a faculdade humana da
simbolização e a noção de léxico. Com esse diálogo teórico, busca-se discutir o domínio e o
uso do léxico como demonstradores da competência expressional dos sujeitos.
Palavras-chave: Vocabulário individual. Competência expressional. Estratégias semióticas.
ABSTRACT
In this article, the direct relationship between word knowledge and competence to
verbal expression will be discussed. It begins with observations about the situation of
language teaching in Brazil. Then, we present the theoretical foundations which, starting from
the notion of competence, passing through the concept of script and moving on to the
intersection between the Theory of Verbal iconicity, the Theory of Mental Spaces and
Pragmatics. The human ability of symbolization and the notion of lexicon are brought onto
stage. With this theoretical dialogue, we seek to discuss the domain and use of the lexicon as
demonstrators of the expressional competence of the subjects.
Keywords: Individual vocabulary. Expressional competence. Semiotic strategies
SITUANDO O PROBLEMA
A introdução de obra de Aragão (1989) sobre a obra de José Lins do Rêgo fala de
críticas sofridas pelo ensino e a aprendizagem da língua portuguesa no Brasil. A autora
declara a existência de críticas severas sobre a “decadência” [aspas da autora] a que o ensino
chegou. Observe-se que o texto em foco é de 1989. No entanto, seu parágrafo inicial
representa o que é constante nos artigos que focalizam hodiernamente a questão do ensino e
da aprendizagem do vernáculo.
Crê-se possível uma reflexão sobre esse grave quadro. Vinte anos se passaram entre a
publicação do texto de Aragão e a escrita do presente artigo, e a situação da língua portuguesa
na escola continua a mesma (se não pior!).
O que teria acontecido? Será que a evolução da ciência e dos meios de comunicação
(em especial, da tecnologia da informação – TI) não vem favorecendo a melhoria da
qualidade do ensino e da aprendizagem da língua nacional? Em caso positivo, o que estaria
sendo óbice na produção de uma prática de ensino proficiente? Estaria havendo algum
descompasso entre a formação docente e as exigências de sua prática? Estaria o currículo da
licenciatura em Letras afastado da realidade social do aluno e da escola?
Essas são apenas algumas das indagações que emergem nas discussões acerca das
aulas de português e sua produtividade. Por que em vinte anos não se conseguiu minimizar a
“decadência” do ensino de língua portuguesa apontado por Aragão em 1989?
A CIÊNCIA LINGUÍSTICA E O RECURSO TECNOLÓGICO
É indiscutível o avanço da ciência linguística e do desdobramento de suas subáreas de
pesquisa. A linguística, a semiótica e a pragmática vêm produzindo e re-produzindo teorias e
métodos que parecem poder auxiliar a prática didático pedagógica de língua portuguesa,
minimizando-lhe os problemas. Contudo, estes não decorrem exclusivamente das ciências e
técnicas, senão de um cenário sócio político cultural que manda à escola um imenso
contingente de sujeitos emoldurados por severas desigualdades. Estes manifestam sua
diferença nas classes e aquela se transforma em problema técnico pedagógico grave, uma vez
que os docentes, em número significativo, não foram apetrechados com cabedal teórico
prático para a produção de aulas que atendessem a diversidade de sujeitos sem constrangê-los
ou ignorá-los.
O constrangimento surge de certa incomunicabilidade constatada durante as conversas
em classe: o professor de hoje, apesar de não mais se expressar na língua culta como antes,
mostra-se quase sempre tão deficitário linguisticamente quanto o aluno; e a reação à
dificuldade de comunicação didática é o desentendimento, a indisciplina e que tais. O ato de
ignorar a diversidade linguístico cultural do alunado tem as mesmas raízes já declaradas,
todavia, acaba por gerar um pacto silencioso que resulta na aprovação em massa, a despeito
do despreparo da maioria para o uso da variedade padrão da língua, que é a exigida nas
práticas sociais que “diplomam” os sujeitos como cidadãos de direito e de fato.
É necessário repetir trecho importante da fala de Aragão no texto em referência, dada
a atualidade do mesmo:
Para se entender uma língua, é necessário conhecer o povo que a fala: seus
costumes, crenças, tradições, suas histórias de vida enfim. Um estudo de
língua feito sem apoio nessa realidade não poderá atingir seus objetivos, por
ser artificial, ser imposto e consequentemente, ineficaz. (ARAGÃO, 1989, p.
19)
Esse excerto reflete uma perspectiva historicamente construída e cientificamente
comprovada acerca de que ensino se precisa para atingir a eficiência verbal esperada como
consequência da escolarização. No entanto, a despeito de toda a ciência e tecnologia
produzidas, a prática de ensinagem da língua portuguesa (salvo exceções) continua
inoperante, desorientada.
LINGUÍSTICA E TECNOLOGIA DA INFORMAÇÃO (TI): A AUTOMAÇÃO DE DADOS
A utilização de programas de computador para análise e descrição linguística não se
deu de modo tão simples. Originalmente, desconfiava-se da possibilidade de submeter um
objeto complexo e mutante como o sistema linguístico e seu uso ao processamento de dados.
As grandes invenções — pólvora, papel, imprensa, tipos móveis, telefone etc. –
desestabilizaram as sociedades com a mesma forma que a viagem à lua (“No dia 20 de julho
de 1969, há exatamente 40 anos, o homem pisou na Lua pela primeira vez – foi o astronauta
Neil Armstrong3”) e a invenção do computador4. Assim sendo não fogem à regra os espantos
3 http://pe360graus.globo.com/noticias/cidades/ciencia/2009/07/20/NWS,494678,4,250,NOTICIAS,766-PRIMEIRA-VIAGEM-LUA-COMPLETOU-ANOS-QUEM-ACREDITE.aspx4 Embora a invenção do computador pessoal date do fim dos anos 70, ele está prestes a completar 60 anos. O primeiro, o Eniac, pesava 30 toneladas, usava cartões perfurados e tinha, entre outras funções, a de fazer cálculos de balística para o Exército americano. O desenvolvimento de microprocessadores permitiu a criação de computadores pessoais de mesa e
ou as resistências iniciais quando do surgimento da Linguística Computacional e o
Processamento de Línguas Naturais.
Segundo Carlos Ceia, Linguística Computacional é termo português
para Computational Linguistics, área que é vista como um domínio científico convergente
entre a Linguística, a Ciência da Informação, a Psicologia, a Filosofia e a Informática. O
surgimento das ciências da computação e a força adquirida pela inteligência artificial
alteraram o paradigma das ciências humanas, sobretudo no âmbito das linguagens.
A inteligência artificial expandiu-se tanto no âmbito prático, através do
armazenamento e processamento de grandes bases de dados linguísticos que possibilitam
trabalho mais analítico e apurado em linguística descritiva, quanto no plano teórico, através da
necessária elaboração de modelos teóricos sofisticados que permitissem, da forma mais eficaz
e real possível, discutir e descrever os processos cognitivos e linguísticos (aprender, conhecer
e memorizar) que ocorrem na mente humana. A despeito disso, há avanços significativos que
propõem uma variada tipologia de aplicações.
No âmbito do Processamento da Linguagem Natural (PLN), tem-se a construção de
interpretadores, analisadores ou geradores gramaticais necessários, tais como os programas de
tradução automática. Há, ainda, o plano da elaboração de bases de dados lexicais (léxico geral
e especializado), as bases de conhecimento lexical (lexical knowledge base) e as bases de
dados lexicais (lexical database). Desse segundo tipo, emergiram os corpora linguísticos que
hoje prestam relevante serviço quando se busca um exemplário mais abrangente, da mesma
forma que têm permitido a discussão e a classificação de dados que identificam variantes e
variáveis linguísticas de grande relevância para a pesquisa e para o ensino.
Os pesquisadores que atuam na Linguística Computacional intentam desenvolver, por
meio de uma matriz lógico formal de línguas naturais, sistemas com capacidade de reconhecer
portáteis.
e produzir informação apresentada em linguagem natural. Portanto, hoje já contamos com
contribuições prestimosas no âmbito da Linguística Computacional.
OUTRAS TECNOLOGIAS
Mas o avanço tecnológico não se restringe à evolução da tecnologia da informação –
TI. Nos tradicionais ambientes de sala de aula, anteriores à era cibernética, muitos docentes
pesquisadores já experimentavam a construção de novas metodologias. Nossos estudos e
pesquisas há muito já vêm delineando trajetória diferenciada, uma vez que a exploração de
técnicas em que a linguagem verbal se associasse às não verbais teve início nos anos 80 do
século passado. E foi justamente a partir das experiências realizadas com a combinação de
semióticas distintas (a verbal e a não verbal) que conseguimos, pouco a pouco, ir tecendo a
Teoria da Iconicidade, hoje marco diferencial e orientador de nossos estudos e pesquisas.
Entendemos que o cruzamento de teorias científicas resulta em novos processos tecnológicos
independentemente da utilização ou não dos recursos de TI.
Assim sendo, já de posse dos mecanismos semióticos da Teoria da Iconicidade, fomos
buscar ferramentas na TI para nossa pesquisa, com a intenção não só de ganhar velocidade
com a automação dos dados, mas principalmente construir uma ilusão de objetividade mais
convincente. Isso porque, em geral, quem opera com ciências não exatas está sempre “no fio
da navalha” entre o crédito e a dúvida, uma vez que opera com objeto lábil.
Nosso primeiro estágio pós-doutoral (PUC-SP, 2006-2007), foi o momento em que
nos defrontamos com dificuldades no levantamento e na catalogação dos dados do corpus e
acabamos capturados por uma das ferramentas da Linguística de Corpus: o WordSmith Tools
4.0. Hoje, já estamos ousando propor a condução de projetos que orientamos segundo a trilha
da linguística informatizada.
Cumpre, no entanto, esclarecer que a inovação não rejeita o preexistente, senão soma-
se a ele para aperfeiçoar os processos. É isso que vimos tentando fazer no desenrolar de
nossas pesquisas.
Há mais ou menos 21 anos (a referência é o início de nosso curso de doutorado),
passou-se a contar com as instruções semióticas como objeto de investigação. Constatou-se a
eficiência da imagem visual na aprendizagem da escrita (SIMÕES [19945, 2003, 2006], 2009)
e partiu-se para experimentar a categoria da iconicidade na aquisição do léxico. Realizou-se
pesquisa (2002-2006) em que se confrontou a ocorrência vocabular de textos técnicos
consagrados (textos fonte) lidos em classe, com a ocorrência vocabular dos textos produzidos
pelos discentes leitores (textos corpus). Conclui-se da influência positiva do vocabulário dos
textos fonte projetado nos textos corpus: a iconicidade entendida como força ou qualidade
plástica do signo deflagradora da cognição e subsequente produção de interpretantes para os
signos lidos foi demonstrada no levantamento do vocabulário dos textos em confronto, com
auxílio da ferramenta digital WordSmithTools 4.0.
Atualmente já se pode contar com eficientes processadores de texto que fornecem
respostas de vários tipos, segundo os interesses da pesquisa. A partir da pesquisa com a
informatização de dados, foi reforçada a hipótese do potencial icônico do signo verbal (apesar
de sua arbitrariedade original), uma vez que este passa a representar modelos socioculturais, a
partir dos quais os sujeitos traduzem suas ideias acerca de dois mundos: o interior e o
envolvente.
Vale ressaltar que nosso estudo não propõe o trabalho computacional em sala de aula,
senão a preparação docente para um melhor entendimento dos mecanismos linguísticos e de
sua realização nas práticas interacionais.
5 SIMÕES, Darcilia. O livro-sem-legenda e a redação. Tese de Doutorado orientada por Maria Helena Duarte Marques. UFRJ, 1994. / _____. Semiótica & ensino: reflexões teórico-metodológicas. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2003 [200p.]./ _____. Semiótica & Ensino. Edição em CD. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2006.
O APORTE TEÓRICO
Retomando a noção chomskiana de competência linguística6, o conhecimento que o
falante tem da língua (cf. Fonseca & Fonseca, 1990, p. 53), vale salientar que sujeito e objeto
desse saber devem estar bem claros para o docente quando de sua prática efetiva: sujeito
idealizado e falante/ouvinte como papéis interlocutórios precisam ser considerados durante a
avaliação do desempenho dos sujeitos. Assim, nas pesquisas aqui referenciadas vêm sendo
observadas as relações entre competência e desempenho, tendo em conta a variação
linguística original dos sujeitos.
A competência linguística possui duas características fundamentais a serem
consideradas, seja como uma capacidade mental, seja como um conhecimento sistemático.
Fora os componentes mentalistas da ótica gerativa, cumpre perceber que as capacidades
animais – independentemente de sua natureza – podem e devem ser desenvolvidas. No âmbito
humano, a competência para a expressão verbal demanda o treinamento sistemático de uso do
sistema verbal, para que o desempenho expressional seja aperfeiçoado. Diferentemente das
investigações chomskyanas que tratam de questões da língua (evocando terminologia
saussuriana), as pesquisas a que se refere este artigo debruçam-se sobre eventos
comunicativos materializados em textos escritos, portanto, ocupam-se de fenômenos da fala,
ou do desempenho (Chomsky, 1980).
Tem-se buscado a relação do signo atualizado na superfície textual com potenciais
imagens criadas na mente do intérprete para a produção de significado para o texto lido ou
redigido. Aprecia-se, pela observação das estruturas frasais, que o signo participa da
qualidade (ou potencial icônico) que lhe é predominante, a partir da qual são engendradas as
semioses. Para tal, recorre-se à teoria dos espaços mentais (representações mentais de
6 Na ótica de Chomsky, competência linguística é a capacidade que o falante tem de, a partir de um número finito de regras, produzir um número infinito de frases.
eventos) de Faccounier (1997), por acreditar-se que o princípio nuclear da cognição humana
corresponde à projeção entre domínios, bases de conhecimento requeridas pelos processos de
significação (ou processos semióticos).
Os domínios se desdobram em estáveis – estruturas de memória pessoal ou social, ou
scripts (VAN DIJK & KINTSCH, 1983) e locais, que promovem o processamento cognitivo e
respondem pelo fluxo discursivo na memória de curto prazo. São domínios estáveis, noções
sobre jogos, viagens, solenidades. Salomão (1999) propõe uma subcategorização desses
domínios, dividindo-os em modelos cognitivos idealizados – MCI (que organizam nosso
conhecimento), molduras comunicativas – MC (que identificam a natureza da interação) e
esquemas genéricos – EG (que são conceitos configurados de forma mais abstrata).
Os domínios locais advêm das marcas linguísticas e contextuais enquanto pensamos e
falamos e são denominados espaços mentais. Estes “são os domínios que o discurso constroi
para prover substrato cognitivo ao raciocínio e à interface com o mundo” (FAUCONNIER,
1997, p.34). As projeções ou integrações cognitivas são distribuídas segundo seus domínios
(locais ou estáveis), dando-lhes relevo especial. Segundo tal perspectiva, o processamento
cognitivo implica, obrigatoriamente, projeções multidirecionais assim como intra e
interdomínios; essa operação é responsável não só pela integração e dinamicidade de nosso
conhecimento, como ainda pela renovação e criatividade do pensamento e da linguagem. É
com base na construção de significados pela integração de domínios que vimos propondo a
aplicação da teoria da iconicidade no entendimento das capacidades projetiva e imaginativa
da mente humana.
Nesse enquadre, entende-se que o texto é uma rede de itens léxicos que se estruturam
segundo as formas e regras disponíveis no sistema linguístico. Nessa rede, os itens léxicos
desenvolvem o seguinte percurso: de portadores de qualidades (ícones) passam a indicadores
(índices) de itinerário e, por último, a generalizadores (símbolos). No entanto, a expressão
verbal cotidiana opera em sentido contrário: atualiza símbolos extraídos dos esquemas
genéricos do sistema sociocultural envolvente, organizados como modelos cognitivos
idealizados, dos quais tenta extrair ou produzir molduras comunicativas reaplicáveis. Assim
se tem investigado competência lexical dos sujeitos a partir dos textos por eles produzidos.
UMA ANÁLISE MULTIDIMENSIONAL
Para substanciar a organização da análise que se propõe, veja-se o que diz Benveniste:
A faculdade simbolizante permite de fato a formação do conceito como
distinto do objeto concreto, que não é senão um exemplar dele. Aí está o
fundamento da abstração ao mesmo tempo o princípio da imaginação
criadora. Ora, essa capacidade representativa de essência simbólica que está
na base das funções conceptuais só aparece no homem. Desperta muito cedo
na criança, antes da linguagem, na aurora da sua vida consciente. Mas falta
no animal. (BENVENISTE [19667], 1995, pp. 27-8)
As palavras do linguista francês servem de corolário para o que foi afirmado na seção
anterior sobre a ordem da produção de signos. Ou seja, a constituição de um signo nasce no
plano simbólico pela natureza convencional, e a expressão e a compreensão verbal demandam
a produção e a interpretação de signos que, apesar de aparentemente iniciarem-se no
particular, nascem exatamente no geral, no simbólico. Isto porque o animal humano é
progressivamente impregnado pelos valores, pelos conceitos circulantes em seu cenário
sociocultural. Assim sendo, a avaliação da iconicidade de um signo demanda a consideração
de seu cotexto (enunciado em que figura o signo em observação) e de seu contexto (cenário
em que se dá a interação).
7 Ano de publicação da obra na França pela Gallimard.
A teoria da iconicidade verbal, no nível lexical, onde se analisa o potencial de ativação
de imagens mentais, pode articular-se com a teoria dos espaços mentais e com a pragmática
(MORRIS, 1938) simultaneamente. Para o estudioso norteamericano, pragmática é o “estudo
da relação dos signos com seus intérpretes”. Logo, isso permite uma articulação imediata com
a teoria dos espaços mentais (EM) e a teoria da iconicidade verbal (TIV). Nos EM, tem-se que
a cognição é mecanismo operativo derivado de influxos nervosos originados do ciclo entre
MCI → MC → EG e vice-versa. Na TIV, o que deflagra o raciocínio é uma sensação causada
por um sinal que ativa uma reação mental que provoca o surgimento de um vetor ou de um
conceito. Estes, por sua vez, são produções condicionadas ao cenário que envolve a semiose,
portanto demandam o acionamento de conhecimentos prévios e de articulações entre saberes,
de modo a subsidiar a imaginação — produção de uma imagem mental — que será
materializada num signo (independentemente de sua natureza oral ou escrita).
Busca-se, portanto, no raciocínio pautado na TIV, a compreensão da semiose, a
produção do significado — para que o utente se torne capaz de melhor eleger sua
interpretação, da mesma forma o faria com sua expressão. A seleção de signos com maior
força icônica seria um garantidor da interpretabilidade do texto. E isso já se fez demonstrar na
conclusão da pesquisa “Projeto de texto e iconicidade: uma reflexão sobre a eficácia
comunicativa” (em estágio pós-doutoral supervisionado por Lucia Santaella, PUC-SP, 2006-
2007), quando da operação de listagem de palavras (wordlist) e da identificação da frequência
de ocorrências de estruturas (concordance) em que ocorre determinado signo por meio da
ferramenta WordSmithTools 4.0 (WST4). Esses expedientes digitais permitem levantar e
confrontar os signos mais frequentes em textos fonte e em textos corpus (derivados dos
primeiros), mostrando até a identidade na seleção e na ordem de aparecimento, quando não
substituídos por sinônimos lexicais ou locucionais.
APLICAÇÕES DA TEORIA DA ICONICIDADE VERBAL
Atualmente, pesquisa-se a iconicidade em contos consagrados. Investigam-se contos
de Eça de Queiroz8 (autor eleito por simples preferência da pesquisadora), nos quais se está
produzindo tabelas (ainda com auxílio do WST4), com vista não apenas a identificar
frequência e ocorrências de itens léxicos, mas, sobretudo, produzir um levantamento dos
temas (ou isotopias) emergentes dos signos ativados nos textos explorados. Pretende-se com
isso demonstrar não apenas a força icônica dos itens lexicais apurados, mas também oferecer
estratégias de identificação de isotopias possíveis para a discussão dos contos em foco.
8 SIMÕES, Darcilia. “Iconicidade em Eça de Queiroz: um estudo do léxico”, projeto de pesquisa em estágio pós-doutoral supervisionado por Maria do Socorro Aragão, no Programa de Pós-graduação Stricto Sensu em Linguística da UFC.
Vamos ao exemplo de análise.
ITEM LÉXICO
OCORRÊN
CIAS
INFORMAÇÃO
SUBJACENTE
SIGNIFICAÇÃO FUNÇÃO SEMIÓTICA ISOTOPIAS
SUGERIDAS
PELO TEXTO
1. GENEBRO 25Co
rrobo
ra a
esc
olha
do
títul
o do
cont
o.
O item genebra
também designa
certo tipo de
aguardente, ou
gim.
Signo desorientador;
índice da crítica à
Reforma de Calvino
(que se instalou em
Genebra) e que
pregava a salvação da
alma pelo trabalho
justo e honesto...
Ideologia
Religião
Política
Ironia
2. FREI 17
Reite
ram
a n
oção
da
irman
dade
relig
iosa
ent
re
Gen
ebro
e E
gídi
o.
Frei, irmão e
Egídio instauram
relação
sinonímica.
Frei – (1) F.
proclítica,
apocopada, de
freire, quando
precede o nome
ou apelido.
[Aurélio, s.u.]
Ícones da fraternidade
religiosa.
Fraternidade
Religiosidade
3. IRMÃO 14 Irmão – (3.1)
amigo íntimo e
dedicado;
companheiro
inseparável
(Derivação:
sentido figurado);
(4)
correligionário,
sectário das
mesmas
doutrinas
(Derivação: por
extensão de
sentido); (5)
membro de
confraria ou
irmandade;
confrade
(Derivação: por
extensão de
sentido.
[Houaiss, s.u.].
Ícone da fraternidade. Fraternidade
Religiosidade
4. EGÍDIO 13
De origem grega,
pertencia a uma
rica família da
nobreza de
Atenas. Depois
da morte de seus
pais, decidiu ser
um ermitão, para
viver na pobreza
e totalmente
dedicado a Deus.
Para isso
distribuiu todos
os bens que
herdou entre os
pobres e doentes
e viveu isolado
na oração e
penitência,
sendo agraciado
pelo Espírito
Santo com os
dons especiais
da cura, da
sabedoria e dos
milagres.
Um dos
primeiros
milagres a ele
atribuídos diz
que, certo dia,
encontrou na
porta de uma
igreja um
Ícone da imagem
santificada buscada
por Frei Genebro.
Alterego da
personagem principal
do conto, Frei Egídio
retirou-se a viver no
ermo, numa cabana
rudimentar plantando
alfaces, para se
aproximar de Deus
pela vida simples.
Fraternidade
Religiosidade
Humildade
Penitência
Milagre
Inveja
Esse fragmento de análise do conto “Frei Genebro” consiste em breve demonstração
do que se está realizando com os contos de Eça de Queiroz. Tem-se o objetivo de produzir um
vocabulário das narrativas curtas queirozianas, ao mesmo em tempo que se orienta o
estudioso a penetrar nos itens léxicos e levantarem-se-lhes recortes temáticos (isotopias)
possíveis para a interpretação dos contos.
Parte-se do léxico para a construção de projetos de leitura, porque, seguindo Vilela,
vemos o léxico numa perspectiva cognitivo representativa, sendo ele então “a codificação da
realidade extralinguística interiorizada no saber de uma dada comunidade linguística” (1995,
p. 13). Pretende-se, com a abordagem cognitivo-icônica, traçar rotas de orientação técnico
didática que promovam o entendimento e a distinção (por parte do usuário/estudante) do que
seja língua e discurso. Quer-se que o utente seja capaz de perceber que existem valores e
funções potenciais (latentes) nos signos enquanto componentes de um sistema abstrato e
disponível a todos os falantes além de indiferente às condições específicas de sua utilização –
o sistema linguístico ou língua. Deseja-se que se torne evidente uma instância atualizadora
desses signos – a fala ou discurso, que então se submete ao reduto do repertório individual e
aos condicionamentos da situação comunicativa – o ato de fala. Sendo assim, a escolha lexical
demanda domínio do sistema e de suas possibilidades (ainda que minimamente), tanto quanto
de sensibilidade para a percepção do cenário enunciativo e de suas implicações na seleção e
na combinação dos signos de modo a produzir uma fala objetiva e eficiente. Vejamos, a
seguir, ilustrações com usos do WordSmith Tools (WSM):
AMOSTRA DO LEVANTAMENTO LEXICOGRÁFICO AUTOMATIZADO (função Word List)
AMOSTRA DO LEVANTAMENTO DOS CONTEXTOS DA PALAVRA MOINHO (função Concordance)
Nos exemplos, mostra-se a contextualização do vocábulo moinho (que dá nome ao
conto em análise “No Moinho”, de Eça de Queiroz.
A partir dessa amostra, torna-se possível, quando comparada com as outras palavras
chave levantadas, a identificação do percurso temático do conto, bem como de isotopias
outras para novas leituras: (a) o moinho promove uma reviravolta na vida da protagonista
Maria da Piedade; (b) o moinho visto como um lugar sensual, erótico; (c) o moinho visto
como um lugar mágico.
AMOSTRA DO LEVANTAMENTO DOS CONTEXTOS DA PALAVRA ADRIÃO (função
Concordance)
A nova amostra focaliza a personagem que entra na estória e modifica a vida de Maria
da Piedade. Adrião, primo do marido, escritor de sucesso, emoldurado pelo moinho, enreda
Maria da Piedade nas teias da paixão, despertando-a da condição de enfermeira de uma
família doente.
ORDEM DE APARECIMENTO DO ITEM LEXICAL ITEM LEXICAL NÚMERO DE APARIÇÕES
N WORD FREQ.
18 ELA 34
26 ELE 24
32 ADRIÃO 17
34 VILA 16
35 CASA 15
37 MARIDO 14
39 MARIA 13
42 MOINHO 12
47 PIEDADE 11
48 AR 10
60 FACE 8
62 JANELA 8
65 OLHOS 8
68 VIDA 8
70 ALMA 7
71 COUTINHO 7
73 DIA 7
75 HOMEM 7
90 FAZENDA 6
94 JOÃO 6
95 NOITE 6
97 PÉ 6
101 PRIMO 6
104 ÁGUA 5
105 AMOR 5
108 BRAÇOS 5
109 CAMA 5
110 COSTURA 5
112 DESEJO 5
113 EXISTÊNCI
A
5
114 FILHOS 5
116 GRANDE 5
117 HORAS 5
120 MÃE 5
121 MOMENTO 5
127 RESTO 5
132 VOZ 5
Para demonstrar o uso da lista de palavras (wordlist), produzida pelo WSM, então
filtrada apresentando apenas os substantivos, basta que se atente para os primeiros dez itens
para que se verifique a prevalência da relação de Maria da Piedade com Adrião em detrimento
de sua conexão com o marido (João Coutinho), com a casa e com a família. Vejamos:
1. ELA
2. ELE
3. ADRIÃO
4. VILA
5. CASA
6. MARIDO
7. MARIA
8. MOINHO
9. PIEDADE
10. AR
A ordem de aparecimento dos itens léxicos destaca o par ELA/ELE, então
identificados como Maria (7º lugar) e Adrião (3º lugar), relegando a casa, a família e o marido
a um segundo plano. Isso nos parece demonstrar materialmente uma ordenação temática
inerente ao texto, a partir da qual se torna possível inferirem-se outras isotopias (ou matrizes
temáticas) para a interpretação do conto.
Ilustrando a busca de isotopias emergentes, pode-se trabalhar apenas com as dez
palavras do quadro anterior:
ORDEM ITEM
LÉXICO
SIGDO DO DICIONÁRIO ou SIMILAR ISOTOPIAS INFERÍVEIS
1. ELA Pronome pessoal referente à 3ª. pessoa do
singular no feminino Índice da possível
generalização temática2. ELE Pronome pessoal referente à 3ª. pessoa do
singular no masculino
3. ADRIÃO Substantivo masculino no grau aumentativo Ícone da dimensão atingida
pela personagem no conto
4. VILA Substantivo feminino
1 povoação de categoria inferior a uma
cidade, mas superior a uma aldeia
2 Derivação: por metonímia.
a população da vila [Houaiss, s.u.]
Ícone de um cenário que
controla o comportamento
dos que ali vivem ou que
por ali passam.
5. CASA Substantivo feminino
3 conjunto dos membros de uma família
4 conjunto dos bens de uma família ou
dos negócios e assuntos domésticos
Índice de lugar pequeno
família; lar
[Houaiss, s.u.]
6. MARIDO Substantivo masculino
homem unido a uma mulher pelo casamento;
esposo
Índice de proteção
Ícone de sofrimento
Índice de “escravidão”
7. MARIA Substantivo feminino
Nome da mãe de Jesus, a Santa
Índice da abnegação
Ícone de bondade
8. MOINHO substantivo masculino
1 engenho que se destina à moagem, esp.
de cereais, composto de duas mós
postas uma sobre a outra, movidas pelo
vento, água ou motor
Ex.: m. de vento
2 Derivação: por metonímia.
Construção em que se acha instalado
esse engenho
3 Derivação: por extensão de sentido.
Qualquer máquina que se destina à
trituração de algo; moenda [Houaiss,
s.u.]
Ícone de transformação
9. PIEDADE substantivo feminino
1 Devoção, amor pelas coisas religiosas;
religiosidade
1.1 Rubrica: religião.
Virtude que permite render a Deus o
culto que lhe é devido
2 compaixão pelo sofrimento alheio;
comiseração, dó, misericórdia[Houaiss,
Índice da generosidade
Índice de fuga de si mesmo
Índice da compaixão
s.u.]
10. AR substantivo masculino
1 Rubrica: química.
Fluido gasoso que forma a atmosfera
(...)
5 Derivação: sentido figurado.
Razão, motivo que impulsiona uma ação
(mais us. no pl.)
Ex.: não sabia que ares o trouxeram de
volta para casa
6 Derivação: sentido figurado.
Aparência, modo de ser, de apresentar-
se (tb. us. no pl.) [Houaiss, s.u.]
Índice de sedução
Índice de conduta
O quadro foi cortado por pretender-se apenas dar mostras do que se tem praticado nas
análises em que se combinam TI e TIV. Nas práticas didáticas, o docente deve programar
sessões de trabalho linguístico em que o estudante leia e discuta enunciados construídos em
diferentes instâncias comunicativas, para extrair, além dos itens léxicos e respectivos
significados propostos pelos textos, as regras do sistema que interferem na produção desses
significados, assim como possibilitam a criação de novos significados.
A exploração de uma análise da iconicidade lexical corresponde a uma estratégia de
exame do potencial representativo dos signos tanto quando em situação dicionária quanto em
situação contextual. Almeja-se com isso colaborar com a ampliação do repertório dos sujeitos
de modo a propiciar-lhes expressão e comunicação mais amplas. Ademais, o cruzamento da
Teoria da Iconicidade Verbal com a Teoria dos Espaços Mentais e pressupostos da
Pragmática é uma forma de enquadrar o domínio lexical em uma abordagem não mais
estruturalista, senão funcional. E no âmbito dessa funcionalidade, tem-se como objetivo final
da pesquisa ora em desenvolvimento (no léxico dos contos querozianos) a produção de um
vocabulário dessa parte da obra do escritor português que tão bem representa o ideário
lusitano do Século XIX.
Do ponto de vista de uma contribuição mais abrangente, pretende-se, com a pesquisa,
aperfeiçoar a teoria da iconicidade verbal como uma forma ampla e multidisciplinar de
discutir o conhecimento de mundo em relação ao conhecimento do sistema verbal. Também
dessa forma, tem-se como meta discutir a produção de vocabulário e a adequada aplicação de
seus elementos na produção e compreensão do discurso.
REFERÊNCIAS
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PESSOA - PB: FUNESC, 1990.
CEIA, Carlos. E-Dicionário de Termos Literários. Edição em linha. Disponível em
http://www2.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/L/linguistica_computacional.htm
CHOMSKY, Noam. Estruturas sintácticas. Colecção Signos. Lisboa: Edições 70, 1980.
FAUCONNIER, G. Mappings in thought and language. Cambridge: University Press, 1997.
FONSECA, Irene & FONSECA, Joaquim. Pragmática linguística e ensino do português.
Coimbra: Almedina, 1990.
MORRIS, Charles. Foundations of the Theory of Signs. In International Encyclopedia of
Unified Science, ed. Otto Neurath, vol. 1 no. 2. Chicago: University of Chicago Press, 1938.
SALOMÃO, M. M. M. O Processo Cognitivo de Mesclagem na Análise Linguística do
Discurso. Projeto Integrado de Pesquisa (CNPq), 1999.
SIMÕES, Darcilia. Semiótica & ensino: uma proposta. Alfabetização pela imagem. Edição
online. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2009.
VAN DIJK, Teun A. & KINTSCH, W. Strategies of discourse comprehension. New York:
Academic Press, 1983.
VILELA, Mário. Léxico e gramática. Coimbra: Almedina, 1995
MULTILETRAMENTO DIGITAL: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA
NO SÉCULO XXI
Denise Gomes Pacheco (Universidade de Macau)
RESUMO
O presente texto discute o conceito de multiletramento digital no processo de ensino-
aprendizagem de línguas estrangeiras. Analisa algumas das mudanças metodológicas e de
estratégias de leitura e escrita observadas desde a invenção da escrita, da imprensa e da
democratização do uso da internet. No mundo tecnológico1, os processos de fala, leitura e
escrita de uma língua estrangeira devem levar em consideração a importância de uso de
metodologia atualizada, calcada no interesse e nas necessidades e demandas específicas dos
estudantes.
Palavras-chave: Multiletramento digital. Ensino-Aprendizagem de Língua Estrangeira.
Materiais e metodologias de ensino.
1 Cabe esclarecer o conceito de tecnologia: ‘tudo aquilo que o ser humano inventou, tanto em termos de artefatos, como de
métodos e técnicas para estender sua capacidade física, sensorial, motora ou mental, assim facilitando e simplificando o seu
trabalho, enriquecendo suas relações interpessoais ou dando prazer’ (Chaves, 1999). As Information and Communication
Technologies são as tecnologias de infocomunicação e englobam computadores, telecomunicações, componentes
microeletrônicos, fibras ópticas, satélites, internet e redes de todos os tipos. A grande sinergia de nossos dias decorre da
atuação em conjunto dessas tecnologias, no processo denominado convergência digital. O conceito de e-learning inclui uma
ampla gama de aplicações e processos, tais como aprendizagem baseada na Internet, no computador, aulas virtuais,
colaboração digital. Inclui a entrega de conteúdos através da Internet, extranet, intranet, (LAN / WAN), áudio e vídeo,
transmissão via satélite, televisão interativa e CD-ROM. O início do uso do e-learning se deu na década de 80, quando as
empresas passaram a utilizar CD-ROMs para treinar seus funcionários.
ABSTRACT
The present paper discusses the concept of digital multiliteracy2 in the teaching-
learning process of foreign languages. It analyses some of the methodological changes and the
reading/writing strategies evolution since the "creation" of the writing and printing press and
of the democratization of the usage of the internet. In a technological world, the teaching of
speaking, reading and writing a foreign language must consider the importance of updated
methodology, which must be based on the students’ interest and specific needs and requests.
Keywords: Digital Multiliteracy. Foreign Language Teaching/Learning. Materials and
Methodology for Teaching.
CONFIGURANDO A REFLEXÃO
A aprendizagem de línguas estrangeiras e o uso de ferramentas digitais, antes um
“must”, hoje são requisito para ingresso no mercado de trabalho. No mundo globalizado, ser
poliglota e saber navegar na internet não são mais um diferencial. Dentro do atual contexto de
exigência de plurilinguismo e multiculturalismo, a aprendizagem de línguas e de culturas
estrangeiras (LE3) e o domínio de estratégias de leitura e escrita de textos digitais são
habilidades indispensáveis.
Vivemos em um mundo globalizado, em que os meios digitais se colocam a serviço da
eliminação das barreiras de tempo e de espaço, trazendo, como consequência, novas
2 Inspiro-me em Dionísio (2005) na escolha da terminologia: Dionísio, Ângela Paiva. Gêneros multimodais e
multiletramento. In: Karwoski, Acir; Gaydeczka, Beatriz & Brito, Karim S. (Orgs.). Gêneros textuais: Reflexões e ensino.
União da Vitória: PR, Kaygangue, p. 159-178
3 No presente texto, o uso da sigla LE refere-se à(s) língua(s) estrangeira(s), ou seja, a língua-cultura alvo que está sendo
estudada como língua estrangeira.
exigências de letramento e diferentes práticas de leitura. Sabemos que, para aprender LE, é
necessário aprender também formas específicas de nomeação e de uso da linguagem para
realização de atividades cotidianas que exijam o uso da língua-cultura alvo.
O ler e o escrever em LE devem extrapolar a esfera acadêmica e se inserir nas
atividades cotidianas da vida cidadã, da qual o computador já é parte indispensável: a
pesquisa online, o uso de serviços variados (e-commerce), a leitura e a interpretação de
informações disponibilizadas nos hipertextos veiculados na internet. Esses são exemplos de
algumas das exigências do processo de (multi)letramento digital de que os materiais didáticos
não podem mais prescindir, apesar de se mostrarem ainda bastante limitados, na realidade
brasileira, como salienta Pacheco (2006a).
Se retomarmos a história do ensino-aprendizagem de LE, vamos perceber como o
advento da escrita alfabética, da imprensa, das tecnologias eletrônicas como telefone,
fotografia, cinema, rádio, televisão, vídeo e computador foram influenciando direta ou
indiretamente os métodos de ensino de LE. Assim, foram utilizados os métodos Tradução e
Gramática, Direto, Audiolingual, Silencioso, ‘Suggestopedia’, ‘Community Learning’, ‘Total
Physical Response’. A partir de Widdowson (1978) e sua proposta de abordagem
comunicativa, passou-se a considerar relevante a inserção de materiais autênticos4, que, por
sua vez, foram exigindo novas práticas de leitura e a diversificação de materiais didáticos.
Hoje estão à disposição dos professores e alunos equipamentos que congregam,
simultanemante e em um único e cada vez mais ‘micro’ aparelho, arquivos de imagens, sons 5,
movimentos, formas, cores. Estamos na era dos palms, dos Ipods, dos IPhones, dos celulares
que desempenham múltiplas funções e são ao mesmo tempo minicomputadores wireless,
telefone, máquina fotográfica, GPS, através dos quais processamos arquivos de texto, de som,
4 Cf a interessante reflexão em Pacheco( 2006a) sobre o conceito de autenticidade, no que se refere a materiais didáticos.
5 Geralmente os arquivos de imagem incorporam os sons. Mas é possível enviar somente arquivos de sons, como os de
extensão .wav, por exemplo.
de imagem; enviamos e recebemos mensagens; compartilhamos fotos, músicas, filmes;
realizamos e participamos de videoconferências.
Ironicamente, porém, mesmo diante de tantos recursos tecnológicos disponíveis na
vida cotidiana, os materiais de ensino-aprendizagem de LE têm se comportado de forma
bastante tímida, ante essa rapidíssima avalanche tecnológica. Questiona-se de que forma os
cursos têm ou não atendido às exigências de multiletramento digital impostas ao mundo
globalizado e ‘virtual’. O presente trabalho apresenta algumas reflexões sobre o impacto
dessas tecnologias nas práticas de ensino-aprendizagem da leitura /escrita em LE, segundo as
exigências do (multi)letramento digital em um mundo pluriculturalista e multicultural.
AS METODOLOGIAS DE ENSINO DE LE: SUCINTO HISTÓRICO
Tomamos como ponto de partida para nossa reflexão a década de 70 (séc. XX),
quando era exigida do professor competência técnica, para formular objetivos operacionais,
elaborar exercícios de instrução programada, testes de múltipla escolha. Isso porque os
conteúdos dos cursos que deveriam ser ‘planejados’ já estavam definidos no/pelo livro
didático (LD). Reitere-se: os únicos possíveis, os únicos pensáveis.
Usando máquinas de escrever, quadro de giz, cartões de papel, gravuras de revistas e
gravadores, os professores desenvolviam as atividades para suas aulas de LE. Àquela época,
as fitas cassetes e de vídeo eram muito usadas em atividades implementadas com o método
áudio-lingual. Os laboratórios de línguas eram equipados com microfones, fones de ouvido,
gravadores, pois fitas cassete e de vídeo eram recursos auxiliares importantes no
desenvolvimento do trabalho do professor. Havia inclusive laboratórios que dispunham de
cabine, na qual os alunos aprimoravam a produção oral. Essas mesmas cabines eram
‘controladas’ pelo professor de LE, que assim trabalhava com cada discente, sendo esse
processo caracterizado pela individualidade, pois era bastante esporádica a comunicação entre
os aprendizes.
Com o advento da abordagem comunicativa e da divulgação dos ‘avanços’ da pesquisa
de dimensão cognitivista da aprendizagem, o ensino passou por uma etapa ainda mais
individualizadora. Assim, em ritmo descompassado, não foram automaticamente sendo
incorporados, às atividades docentes e discentes, os recursos tecnológicos em que a sociedade
foi sendo rápida e avassaladoramente imersa.
Não se pode negar que, no que se refere a materiais de ensino, sempre foi primordial o
uso do livro didático. Os professores, na década de 70, usaram mimeógrafos a álcool para
produzir o material de leitura com que iriam trabalhar, adotaram as impressoras matriciais. Na
década de 90, das caixas de matrizes de carbono, os docentes passaram a armazenar
inicialmente seus trabalhos em disquetes flexíveis e, posteriormente, em disquete de 3.5”
(com capacidade de armazenamento de 1,44 MB), deste ao CDR que armazena o equivalente
a 300 livros de 200 páginas). Atualmente, são usados o CDRW (CD regravável como os
antigos disquetes) e os memory sticks ou flash drives, de dimensões cada vez mais reduzidas e
de capacidade de armazenamento de dados cada vez maior. O uso desses dispositivos foi
facilitado pela disponibilização de USB6 - Universal Serial Bus - nos computadores. As aulas
podem ser dadas usando o Smart Board7, sendo totalmente gravados os textos e a interação
ocorrida entre professores e alunos para serem posteriormente disponibilizados em
6 USB é a sigla de Universal Serial Bus. Trata-se de uma tecnologia que tornou mais simples e fácil a conexão de diversos
tipos de aparelhos (câmeras digitais, drives externos, modems, mouse, teclado) ao computador, evitando o uso de um tipo
específico de conector para cada dispositivo.
7 O Smart Board é um quadro computadorizado onde o professor pode escrever e ir abrindo novos ‘quadros’ – ou seja, novas
telas. Tudo o que escreve fica armazenado e ele pode ir retomando o que foi escrito e vários ‘quadros’ podem ser abertos ao
mesmo tempo. Toda a aula em áudio e vídeo pode ser registrada (esses arquivos ficam disponibilizados para os alunos ou
para consulta posterior). Durante o uso do Smart Board, o professor tem ainda acesso à internet para ilustrar os conteúdos
que estiver ensinando. O uso desse equipamento permite o encaminhamento diferenciado das atividades de fixação dos
conteúdos estudados e é bastante eficaz nas atividades de educação a distância.
plataformas digitais de aprendizagem. Tal tem sido a rapidez do processo de atualização de
equipamentos eletrônicos de informática que não se pode sequer imaginar os recursos
tecnológicos de que os professores vão dispor daqui a alguns poucos anos.
Sabe-se hoje que o ensino-aprendizagem de LE deve ser desenvolvido em bases
diversificadas, face às atuais práticas de leitura de que os aprendentes precisam no uso
corrente da LE. A primeira delas é o reconhecimento da marca identitária constitutiva do
aprendiz a quem se dirige o ensino da LE, uma vez que ele vive as exigências do mundo
globalizado, multiletrado, multicultural, plurilingue. Desse modo, no processo de ensino-
aprendizagem de uma LE, o aprendente precisa ser exposto à leitura e à escrita de textos
apresentados em diferentes suportes8, notadamente os digitais.
Os avanços da pesquisa aplicada vividos nas últimas décadas do século XX e dos
primeiros anos do século XXI - Coracini (1995, 1999) e Coracini & Bertoldo (2003) - já
impõem como não passível de discussão o fato de que, durante o processo ensino-
aprendizagem de uma LE, o foco do trabalho deva ser deslocado para uma dimensão
discursiva. Isso pressupõe que a leitura e a escrita em LE são processos que envolvem a
produção e a recepção de textos como indissociáveis e intercomplementares, sendo
inadequado e desaconselhável, portanto, o estudo de palavras isoladas, de frases soltas e a
leitura linear e descontextualizada de textos impressos, conforme salienta Pacheco (2005). A
esse conjunto devemos agora agregar o domínio das estratégias de leitura e escrita de
hipertextos.
A análise da materialidade linguística dos textos trabalhados nas aulas de LE deve ser
deslocada para um posicionamento discursivamente reflexivo, no qual são analisados os
elementos que compõem a relação entre as instâncias subjetivas e a situação discursiva em
8 Segundo Marcuschi (2003, p.1), os suportes são os habitats dos gêneros textuais: “desde a antiguidade os suportes textuais
variaram, indo das paredes interiores de cavernas à pedrinha, à tabuleta, ao pergaminho, ao papel, ao outdoor, para finalmente
entrar no ambiente virtual da Internet”.
que se desenrola o evento comunicativo. Os professores de LE precisam, também, se deslocar
do lugar de conhecedores do processo histórico de transição da sociedade de produção para
assumirem-se membros de uma ordem semiúrgica, caracterizada pela proliferação de signos,
simulacro de imagens nos mais inimagináveis suportes9.
Testemunhamos hoje o uso de notebooks e até mesmo de celulares10 para registro de
apontamentos de aula, de tarefas de casa, de fichamentos para pesquisas. Nas bibliotecas e nas
salas de aula, os computadores estão ocupando o lugar dos cadernos e das fichas de cartolina.
Os alunos de hoje imprimem, produzem e enviam arquivos digitais, gravam sons e imagens e
os enviam pela internet para o seu próprio e-mail ou para outras pessoas via e-mail, skype ou
messenger11; ensinam e aprendem comunicando-se de modo síncrono (em tempo real) ou
assíncrono. Seu uso atiça a reflexão acerca do inexorável estado em que nos encontramos
hoje, ‘imersos num oceano de imagens [...] espécies que a teoria cultural contemporânea
apenas começou a classificar [...] a Era do Entretenimento, centrada na cultura da imagem, a
do discurso da mídia eletrônica, irracional, incoerente e fragmentado’ (Baudrillard, 1981: p.
185).
Os aprendentes atualmente lêem e escrevem em perspectiva de multiletramento, ou
seja, consideram que as imagens e o paratexto12 deixaram de ser acessórios, mas constitutivos,
9 Como exemplos de suportes, podemos mencionar os outdoors, o pára-choque de caminhão, o encosto de cabeça dos aviões,
os sites de bate-papo na internet, as toalhas de mesa dos restaurantes.
10 Cite-se o que tem ocorrido atualmente em conferências ou mesmo em aulas: o celular é usado para tirar fotos das anotações
feitas no quadro e registrar a fala do apresentador ou do professor. Esse uso em estabelecimentos de ensino já gerou questões
judiciais e constitui um tópico bastante interessante para se discutir a temática da disciplina no ambiente escolar, mas seu
aprofundamento foge aos objetivos do presente texto.
11 Esses são programas que permitem a comunicação falada via computador. Para tal, os dois usuários que desejam se
comunicar de qualquer parte do mundo precisam estar conectados à internet, além de disporem de microfone e/ou câmera. O
serviço permite ligações locais, nacionais e internacionais.
12 A materialidade linguística do paratexto é identificada através de indicações do autor, do tipo de texto, da forma, época e
do veículo de divulgação, como ocorre no e-mail, por exemplo. É curioso se observar o modo como se tem estruturada a
produtores de efeitos de sentido, de visões de mundo, de estilos de vida e de um sistema de
valores congruentes com os imperativos do capitalismo de consumo (Kellner: 1995), daí a
exigência de ler/escrever criticamente, inclusive as imagens veiculadas nos textos,
especialmente nos hipertextos.
Embora seja esse o contexto cotidiano dos aprendentes de LE, como já afirmamos, o
ensino tem ainda no LD impresso o seu pilar. E, mesmo em face da avassaladora evolução
tecnológica que testemunhamos hoje, nem sempre ele tem acompanhado as novas exigências.
Os textos ainda são sequenciais e predominantemente verbais. As ilustrações, quando há,
muitas vezes persistem com função representacional. Esse papel tão importante foi assumido
pelos desenhos, gravuras e até mesmo fotos nos primeiros LDs de LE publicados, mas por
razões que certamente fogem ao âmbito pedagógico, resistem à renovação tão indispensável,
ficando distante, portanto, da função discursiva que deveriam ocupar.
A título de exemplificação, como mostra Pacheco (2006b), no que se refere ao ensino
de Português Língua Estrangeira (PLE), no Brasil, até 2007, havia apenas um LD que oferecia
recursos disponíveis na internet aos docentes e discentes, ainda de forma limitada, mantendo
fortes semelhanças com os LDs produzidos em épocas anteriores. Essa realidade não é muito
diferente da de outros países. Nos Estados Unidos da América, país que se destaca em setores
de ponta da pesquisa em várias áreas, somente em 2007 foi lançado um LD de PLE com
recursos acessíveis via internet13.
A estruturação dos textos encontrados nos LDs de LE dificulta processos discursivos
de interpretação. Os textos verbais e os desenhos apresentados nesses materiais muitas vezes
superfície textual dos e-mails. Em comunicação mais informal, têm sido evitadas as saudações, despedidas e a assinatura,
para “se ganhar tempo”. O aprofundamento deste tópico foge aos objetivos do presente texto.
13 A obra a que nos referimos é a seguinte: Klobucka, Anna M.; Jouët-Pastré, Clémence M. C.; Sobral, Patrícia Isabel;
Moreira, Mari Luci De B & Hutchinson, Amélia P. Ponto de Encontro: Portuguese as a world language. Pearson Education,
Inc. Upper Saddle River, NJ, 2007. No acesso feito à página da internet indicada na obra, em 01 de março de 2007, os dados
relativos aos recursos on-line intitulados “Basic Companion Website Coming Soon” – (cf. http://www.prenhall.com/ponto/ ).
sequer estabelecem relação de coerência interna (Pacheco, 2006a), não apresentam também
adequação à realidade que circunda os aprendizes. Estes, como produtores/intérpretes, muitas
vezes não conseguem interpretar as cenas com que se deparam nos livros didáticos, a partir da
ativação de mecanismos intertextuais. Fica, assim, extremamente prejudicado o
estabelecimento de relações de estranhamento ou de intimidade, superioridade ou
subordinação, credibilidade ou questionamento, importância ou desinteresse, constituintes do
processo de interpretação por que passa cada aprendente como leitor/produtor de textos em
perspectiva discursiva.
Como realizações semióticas de práticas sociais, nos textos com que lidamos no
cotidiano, as imagens vêm competindo com o texto verbal pela posição de centralidade na
superfície hipertextual. A importância de sua presença nos hipertextos e os efeitos de sentido
que elas estabelecem passam a ser, portanto, elementos centrais do processo de
multiletramento em língua materna e muito mais em LE. Assim, como leitores e produtores
de textos, devemos desenvolver a 'sintonia fina’ no olhar, ou seja, devemos implementar
estratégias diferenciadas de leitura, nas quais o escrito/verbal seja lido/jogado, e suas cores,
formas, linhas, ângulos, focos, luz e sombra favoreçam a descoberta de visões de mundo
complexas e sutis, conforme nos mostra Oliveira (2006, pp. 21-33).
Esses pressupostos configuram um contexto de leitura/escrita que impõe práticas de
leitura diferenciadas, para as quais um trabalho de (multi)letramento digital vai poder
colaborar de forma bastante significativa, como vamos mostrar a seguir.
O (MULTI)LETRAMENTO DIGITAL
O conceito de multiletramento digital pressupõe a concepção de ensino da leitura e da
escrita englobando aspectos que considerem as estratégias de leitura e produção de
hipertextos, cujas marcas constitutivas são a incompletude, a fragmentação, a (co)laboração
(Marcuschi, 2000, p. 89). Assim, para a leitura e produção de um hipertexto, exige-se do
leitor a capacidade de reconhecimento de:
Duas dimensões dos hyperlinks: a navegacional (associada às diversas
conexões que um texto pode fazer com outros textos e outros
contextos) e a semântica (relacionada às ligações semânticas que
podem se tornar realidade, dependendo do caminho escolhido pelo
leitor) (cf. BURBULES, 2002).
Para compreender o que isso significa, vamos comparar as práticas de leitura
desenvolvidas no tempo dos rolos de pergaminho e as de agora, quando lemos um hipertexto.
Se quiséssemos voltar a um ponto inicial da leitura de um texto escrito no pergaminho, ele
teria que ser totalmente desenrolado, pois a leitura era vertical e contínua. Havia uma
superfície textual.
Apesar de também necessitar da rolagem vertical do texto, a leitura do hipertexto
permite ágeis, contínuas e ilimitadas idas e vindas, bem como o acionamento de hyperlinks14 e
a abertura simultânea de novas telas, o que pressupõe o contato com múltiplas superfícies
textuais. Com base nessas características constitutivas, a trajetória do leitor do hipertexto no
percurso por cada uma das telas do computador se dá através do acionamento de um ícone ou
de uma tecla ou da barra de rolagem de cada tela, o que vai possibilitar a abertura de novas
telas, conforme vão sendo acionados novos links, os quais podem ser inúmeros em uma única
tela.
14 Hyperlink é uma ferramenta que os hipertextos disponibilizam para acesso a outros textos, ou seja, é chave para o acesso a
novas telas, consequentemente, a outros textos. Geralmente os hyperlinks são facilmente reconhecidos no texto, com a
simples movimentação do mouse pela superfície textual.
Observemos o exemplo a seguir, em que é feita a reprodução de como se deu a
navegação de um internauta pela página do Ministério da Educação e Cultura em 15/10/2009.
Observemos os tipos de “leituras” a que ele esteve exposto e as estratégias de que
precisa/precisaria ter adotado durante esse processo, para exemplificar como se dão as
práticas de “leitura” e de “escrita” no suporte digital.
Figura 1 (Horário de Navegação: 16h 30min)
Figura 2 (Horário de Navegação: 16h 30min)
Podemos constatar, de início, uma das características da produção hipertextual: ela é
colaborativa, seja na forma de produção ou de recepção. Isso significa leitura em ‘cascata ou
arborescente’, conforme classifica Coracini (2005, p. 36). As práticas de leitura são, portanto,
diversas das experimentadas antes do surgimento da internet como suporte de veiculação
digital de textos, imagens, sons e hipertextos.
Nas figuras 1 e 2, no quadro superior, podemos observar a mudança de “temas” (e há
cinco mudanças previstas, como se pode verificar pela numeração no lado inferior direito do
retângulo). Ao clicar sobre cada uma delas, o internauta é automaticamente direcionado ao
aprofundamento do tema específico selecionado (cf. Fig.3).
É interessante observar ainda que a mudança de temática transcorre muito
rapidamente, em menos de um minuto (observe-se o horário na barra inferior das telas
reproduzidas nas figuras). O acompanhamento desse ritmo exige agilidade do
internauta/leitor, para que consiga acompanhar o ritmo imposto pela/na página por que
navega.
Figura 3 (Horário de navegação: 16h 32min)
Figura 4 (Horário de navegação: 16h 35min)
Figura 5 (Horário de navegação: 16h 35min)
Durante todo o tempo de navegação (cinco minutos), o internauta foi exposto a
diferentes textos escritos, através dos quais foram sendo direcionadas as notícias veiculadas
em textos escritos (Fig. 3), textos de áudio (Fig. 4) ou em vídeos (Fig.5). Considerando-se os
aspectos descritos, constata-se a necessidade de adoção de estratégias diversificadas durante o
trabalho de interpretação dos elementos que compõem a materialidade linguística dos
hipertextos com que o internauta foi travando contato, em função das escolhas de hyperlinks
realizadas. E quais seriam as implicações que essas constatações trazem para o ensino de LE?
Nos hipertextos trabalhados como suporte para atividades de ensino-aprendizagem de
LE, as ‘imagens’ que compõem a superfície textual (nestas incluídas o texto verbal) passam a
ter uma importância fundamental na constituição de sentidos. O processo desse tipo de leitura
muda o eixo com que se desenvolve o ensino do ler, escrever e falar em LE e de como se
concebe o conceito de textualidade. Assim, ler (e cada leitura individualmente) é também
produzir texto, que tem uma característica específica de textualização como fundamento
constitutivo (Costa Val, 2000), como verificamos a seguir.
O REDIMENSIONAMENTO DAS PRÁTICAS DE LEITURA
A ‘nova’ textualidade da estrutura do hipertexto pressupõe algumas determinadas e
específicas características. A primeira delas, conforme já afirmamos, é a possibilidade de
realização de uma leitura multilinear e multisequencial: entrando no mesmo site, cada pessoa
pode ler textos diferentes, conforme o caminho escolhido para a ‘sua’ leitura. Isso significa
que, para ler um hipertexto midiático, é preciso ter não só competência linguística, mas
também semiótica, no que se refere à produção e consumo de imagens que apresentam
movimento e que pipocam na tela, surgindo, se transformando e desaparecendo, enfim,
exigindo do leitor estratégias variadas de leitura e de interpretação de sentidos, dentro de
determinada superfície textual do hipertexto que está lendo.
Assim, a textualidade no hipertexto refere-se não somente à organização do discurso
em nível interno (coerência, coesão, entre outros fatores de textualidade já estudados no texto
impresso em papel), mas também à superfície textual (layout da página), que vai se
modificando constantemente, conforme são feitas as escolhas e vai se processando a leitura.
Já se sabe, portanto, que a construção de sentidos se dá levando-se em consideração também a
ordem de disposição das informações, além do ordenamento sintático das estruturas, fatores
constitutivos do texto, cuja alteração provoca diferenciados efeitos de sentidos.
Quando em um diálogo, alguém pergunta: “Você vai à praia conosco?” e a resposta é
“Eu não vou, infelizmente”, a inserção do advérbio infelizmente conota um pedido de
desculpas, uma estratégia de amenização da negativa. Mas, se o advérbio é empregado no
início da fala, “Infelizmente, eu não vou”, ele tem a função de preparação do interlocutor
para a negativa, que vai ser proferida a seguir15.
Processo sintático semelhante ocorre em relação ao hipertexto. A definição da posição
de determinado link, de determinada foto, de determinado texto verbal é definida pelas
condições de produção do texto e do veículo (suporte) em que ele está sendo divulgado. Cada
um desses elementos provoca efeitos de sentido específicos, que vão sendo instaurados
conforme haja a conjugação entre esses elementos hipertextuais e a história pessoal de leitura
que cada leitor/produtor traz para a interação entre o linguístico e o discursivo.
Para se ter uma ideia da complexidade dos fenômenos de textualização e de
interpretação em meios digitais, o próprio texto é mais uma das imagens que compõem a
superfície textual de cada página. O espaço que o texto ocupa (que pode situar-se em mais de
uma tela), a fonte, a cor e a forma com que seja escrito, seu posicionamento na página
15 Isso é muito importante para o desenvolvimento da conversação em PLE, pois é sabido que o brasileiro tem dificuldade de
negar diretamente. Esse é um traço da cultura do Brasil.
(diagramação) são fatores que interferem nos efeitos de sentido que a leitura/interpretação do
texto verbal, como parte de um hipertexto, pode produzir.
Essa constatação traz em seu bojo algumas exigências para o trabalho do professor no
que se refere à seleção de textos para o desenvolvimento das atividades de ensino, que
ensejem a leitura e a produção de hipertextos em LE. A primeira delas é o conhecimento das
características dos leitores desse tipo de texto. Sabemos que o leitor busca dinamismo de
leitura, logo os hipertextos devem congregar como características estruturais elementares a
criatividade e a concisão.
Outro aspecto relevante a ser considerado é o entendimento da presença e da função
dos hyperlinks no hipertexto. Não se pode negar como fascinantes e instigantes eles são. O
leitor, diante deles, pode ficar curioso, não resistir e acessá-los, abrindo novas superfícies
textuais e, consequentemente, correr o risco de abandonar a leitura inicial. Por isso, ao iniciar
um trabalho com hipertextos, o professor deve deixar bem explícito o objetivo final da tarefa
(para si mesmo e para os alunos), a fim de evitar que os aprendizes fiquem viajando pelas
páginas da internet, sem chegar a conclusão alguma. Aliás, a explicitação de todas as etapas
da atividade, em um plano de pesquisa, é indispensável.
Os leitores de hipertexto também anseiam por credibilidade e agilidade, o que vai
exigir que o trabalho de escolha dos sites passe por uma seleção criteriosa, para evitar a oferta
de opções com informações desatualizadas, ou mesmo com arquivos muito pesados, que
tornem lento o seu descarregamento – download.
Além desses aspectos, segundo a natureza enunciativa da linguagem, percebemos nos
hipertextos a integração de várias semioses, característica presente em gêneros textuais
híbridos emergentes, como os blogs e os e-mails. Se tomarmos a mensagem veiculada por e-
mail, com exemplo, podemos identificar que, além de texto escrito, podem ser incluídas
imagens (fotos, imagens escaneadas, emoticons), hyperlinks direcionando o leitor a páginas na
internet, como, por exemplo, para um álbum digital de fotografias que o autor do e-mail
deseja socializar com o destinatário-leitor; sons, que podem ser ouvidos pelo receptor assim
que abrir o e-mail ou quando fizer download do arquivo digital anexado à mensagem, dentre
inúmeras outras opções.
A pesquisa aplicada em CALL (Computer Assisted Language Learning) tem
apresentado resultados em relação à popularização dos chats síncronos, desenvolvidos em
páginas específicas – associadas geralmente aos provedores de e-mails. Nestes a interação se
dá em tempo real, através da troca de arquivos de textos, de voz, de sons, de imagens, de
vídeos.
Além desses espaços de desenvolvimento da escrita, denominada por muitos de
‘internetês’16, cabe registrar a ‘oficialização’ do e-mail e das mensagens instantâneas como
instrumento de comunicação muitíssimo usado para todos os fins: dos mais informais (na
comunicação entre amigos para transmissão de recados, pedidos, avisos, convites) à
comunicação com objetivos empresariais e comerciais. Através do e-mail, é feita a divulgação
de seus produtos, a comunicação entre empresas e seus clientes, a formalização de compra,
venda, encomenda, reclamações, sugestões.17 A exploração desse tipo de gênero textual, por
16 Internetês é a denominação que se dá ao uso específico da linguagem na internet, na qual, sob o ponto de vista dos usos da
linguagem. destacam-se aspectos linguísticos específicos, tais como a pontuação minimalista, a ortografia bizarra, a abundância
de siglas e de abreviaturas nada convencionais, além de estruturas frasais pouco ortodoxas. O trabalho do professor deve se
concentrar na orientação dos alunos para a importância de adequação do registro linguístico aos gêneros textuais usados em
suportes digitais, notadamente porque, para acesso aos portais, a digitação dos endereços deve estar rigorosamente correta. Esse
é o caso em que um simples ponto faz uma enorme diferença.
17 É interessante observar ainda como esse fenômeno de popularização do e-mail se dá em outras esferas de comunicação.
Eles estão paulatinamente substituindo as cartas escritas na comunicação entre as pessoas. Já é nítida a redução do número de
cartões (de natal, de aniversário) enviados, já que os internautas têm à sua disposição cartões virtuais que podem inclusive ter
sua entrega programada, sem custo adicional, sem desperdício de tempo em filas. Hoje só manda cartão de natal um público
específico com objetivos definidos.
integrar o dia a dia dos estudantes, torna-se eficaz também no processo de aprendizagem de
LE.
OS GÊNEROS DIGITAIS E O MULTILETRAMENTO
Sabemos que os gêneros sempre variaram historicamente. Hoje não temos mais
epopéias como a Ilíada. Temos blogs, que primam pela atualidade, dinamicidade e
interatividade. Nos primórdios da humanidade, a comunicação se dava por batidas de tambor.
Hoje falamos com pessoas do outro lado do mundo, via computador, através do Messenger,
do Skype. Um aspecto parece resistir a essa tão rápida evolução de suportes disponíveis: para
cada gênero, há alguns protocolos sociais, que são seguidos à risca, enquanto outros são
quebrados todos os dias.
Muitos pesquisadores têm se dedicado à investigação dos gêneros textuais, procurando
associar as duas formas fundamentais de expressão usadas pelo homem (a escrita e a fala),
distribuindo-as conforme sua aproximação ou distanciamento da oralidade e da escrita.
Podemos visualizar essa tipologização na figura 7, reproduzida a seguir:
Figura 7: Gêneros textuais (In: Marcuschi, 2003, p. 41).
Com a evolução rapidíssima dos meios virtuais de comunicação, tem sido também
extremamente rápido o aparecimento do que Marcuschi (2004, pp. 28-9) denomina ‘gêneros
emergentes’, uma espécie de transformação de alguns gêneros anteriormente utilizados. E,
com ela, a democratização do acesso aos meios digitais foi provocando dois processos de
mudança. O primeiro foi o fim das fábricas de máquinas de escrever, reservando a elas espaço
apenas em museus (ou escritórios de alguns persistentes escritores). O segundo, a extinção da
profissão de datilógrafo e o surgimento da função de digitador, também extinta após uma
brevíssima existência. O computador popularizou-se e, hoje, todos os que o usam
desenvolvem as habilidades exigidas para o exercício das extintas profissões anteriormente
citadas.
Atualmente, gêneros emergentes como o e-mail, o bate-papo virtual em aberto, bate
papo virtual reservado, bate papo agendado, bate papo virtual em salas privadas, entrevista
com convidado, aula virtual, chat educacional, video conferência, lista de discussão, weblogs
estão popularizados exigindo o domínio de competências específicas. Vejamos como
Marcuschi (Id., p. 31) sistematiza essa transformação:
Figura 8: Gêneros emergentes na midia virtual
GÊNEROS EMERGENTES GÊNEROS JÁ EXISTENTES
1E-mail Carta pessoal// bilhete
2Chat em aberto Conversações em grupos abertos
3Chat reservado Conversações duais (casuais)
4Chat ICQ (agendado) Encontros pessoais (agendados)
5Chat em salas privadas Conversações fechadas
6Entrevista com convidado Entrevistas com pessoa convidada
7E-mail educacional (aula por e-mail) Aulas por correspondência
8Aula Chat (aulas virtuais) Aulas presenciais
9Videoconferência interativa Reunião de grupo/conferência
1
0
Lista de discussão Circulares
1
1
Blog Diário pessoal, anotações, agendas
Apesar das mudanças estruturais provocadas pela adoção de “novos” gêneros, outras
reflexões podem ainda ser feitas. A concepção da grande maioria dos textos produzidos em
suporte digital continua a ser grafocêntrica. Essa característica peculiar a esse tipo de texto
deve ser preocupação central mas não exclusiva dos docentes de LE. Não se pode negar que
nesse grafocentrismo têm sido ancoradas as práticas pedagógicas de ensino-aprendizagem de
LE nos materiais didáticos, especialmente no livro didático, que não perdeu sua hegemonia,
conforme ressalta Pacheco (2006a). Se tomarmos como exemplo a listagem citada na figura 8,
vamos perceber que, dos 11 “gêneros” citados, 10 têm centralidade na escrita, embora durante
uma videoconferência (item 9 da figura 8), podem ser trocadas entre os participantes
mensagens escritas simultâneas à fala. É importante registrar ainda que, na comunicação
síncrona via internet, existe uma “fala escrita”, que geralmente prima pela informalidade e
pelo descompromisso em relação ao paradigma gramatical, característica fundamental do
denominado internetês.
O modelo interativo, que na era pré-internet era monolocutivo ou interlocutivo, passa
a ser interlocutivo e multi ou plurilocutivo18. O que ficava centrado na dicotomia fala/escrita
passa a ter o componente tempo (sincronia ou assincronia), o que de certa forma redimensiona
a distinção entre os gêneros propostos. A categoria espaço passa a ser irrelevante e é superada
pela sincronia ou assincronia. Podemos visualizar esse ‘novo’ paradigma, através da
observação de como se dá o funcionamento dos gêneros digitais (Fig. 9).
Figura 9: Contínuo dos gêneros de comunicação digital
(Marcuschi, 2004, p.37)
18 Referimo-nos às conversas entre várias pessoas através de programas como Skype, que já integram o nosso cotidiano. Já
estão se popularizando na comunicação simultânea entre filiais de lojas comerciais e até mesmo entre pesquisadores que
trabalham juntos, ainda que fisicamente estejam em espaços bastante distantes. Cite-se ainda o uso acadêmico, como é o caso
do Projeto Teletandem Brasil, desenvolvido pela UNESP, São Paulo (http://www.teletandembrasil.org/home.asp).
A figura 9 mostra que a comunicação pode ser multilateral, bilateral ou multilateral –
interindividual ou não. A comunicação digital permite ainda o que Marcuschi (Ibid.) chama
de “entrecruzamento que permite uma enorme variedade de realizações em termos de
formalidade, informalidade, relações comunicativas e relações síncronas ou não”19.
Na mesma obra, Marcuschi (Id, p. 26) comenta ainda o processo de generacidade:
“trata-se de um deslocamento epistêmico do encadeamento para um artefato linguístico
dinâmico e holístico”. Segundo o autor, os gêneros textuais emergentes ensejam o pensar em
gênero como um conjunto de “formações interativas, multimodalizadas e flexíveis de
organização social e de produção de sentidos” (MARCUSCHI, 2003, p. 19).
19 É interessante registrar que o processo é constituído de tal forma, que muitas pessoas, usando meios digitais, podem até
chegar, nessa interação virtual, ao nível mais profundo de intimidade e de informalidade, sem sequer se conhecerem
pessoalmente (como por exemplo, nos sites de relacionamento). A interlocução bilateral digital tem provocado
desdobramentos para os quais estamos ainda despreparados. A análise desse fato, porém foge aos objetivos do presente texto.
Hoje, postula-se que a mobilidade dos gêneros vai exigindo sua inevitável ‘hibridação’
ou ‘mesclagem’. Esse processo é ‘de tal ordem que podemos chegar a uma situação em que
não mais haja categorização de gêneros puros, dada a interinfluência entre eles.
Saímos de um modelo de estruturação monomodal (escrita ou fala; veiculação através
da voz ou do papel) para o modelo multimodal (hipertexto e utilização simultânea síncrona a
assíncrona de cores, sons, formas e imagens em movimento). Dentro desse contexto, todos
(inclusive os aprendizes de LE, independentemente de estarem em contexto de imersão ou
não), estão se deparando com a multimodalidade, que passa a ser traço constitutivo do
discurso oral e escrito. Nesse novo enquadre sócio histórico, o tipo implementado de
letramento vai permitir que professores e aprendizes, no gozo do seu direito linguístico,
respondam satisfatoriamente ou não, em alguns casos experimentando até mesmo o
revezamento de papéis discursivos.
IMPLICAÇÕES PARA O ENSINO
Infelizmente, o advento de novas tecnologias não veio acompanhado de uma revisão
na concepção de ensino desenvolvida. Apesar de ser inegável a imersão dos estudantes no
mundo digital20 em sua vida cotidiana, no que tange a metodologias de ensino-aprendizagem e
à produção de materiais didáticos nos meios institucionais, a situação parece não ter se
alterado, como nos mostra Coracini (2005, pp. 40-41):
Temos a impressão de que o acesso às novas tecnologias supre não só as
deficiências do ensino, as dificuldades de reflexão dos alunos, como a
20 No que tange à realidade brasileira, podemos mencionar o investimento governamental para equipar as escolas públicas
com computadores, embora os dados da realidade comprovem que essa iniciativa ainda é timida e engloba aspectos
metodológicos e de gestão operacional, cuja análise foge ao objetivo do presente texto.
desmotivação que mina nossos cursos e os torna maçantes: só porque
nossas aulas se utilizam do computador, por exemplo, elas parecem atuais
e interessantes. Ora, é preciso considerar que nos encontramos, hoje, em
situação semelhante àquela dos anos 80, em que foi abolido o livro
didático (sobretudo no ensino de línguas estrangeiras), em prol do uso de
textos autênticos: imaginava-se – e ainda se imagina – que trabalhar um
texto de jornal ou de revista é suficiente para inserir-me nossas aulas no
ensino comunicativo de línguas. Ora, o que se tem observado, na maioria
dos casos e não apenas no Brasil, é a inserção de metodologias clássicas
em cd-rom: as questões de compreensão, por exemplo, são as mesmas, os
tipos de exercícios são semelhantes aos usados no livro didático e no
chamado ensino instrumental de línguas: questões de múltipla escolha,
preenchimento de lacunas, verdadeiro ou falso [...].
A proposta de multiletramento digital, contudo, reafirma que o uso de novas
tecnologias pode/deve contribuir para o desenvolvimento do processo ensino-aprendizagem
de LE. A meta é estimular o letramento crítico dos aprendizes, através de uma abordagem
discursiva, ou seja, aquela em que o sentido se dá em cada leitura de imagens, de textos, de
sons ou da reunião desses três elementos.
Outro aspecto a se destacar refere-se o uso de ferramentas digitais permite que sejam
simultâneos os processos de produção e de recepção, o que confere ao texto veiculado neste
suporte uma dinamicidade ímpar, visto que ocorre um incessante processo de trabalho com
textos ‘[...] de rasgar, de amarrotar, de torcer, de recosturar o texto para abrir um meio vivo no
qual possa se desdobrar o sentido. `[...] É ao percorrê-lo, ao cartografá-lo, que o fabricamos,
que o atualizamos’, como sugere Lévy (1998, pp. 35-36).
Como projeto da pós-modernidade, que parte da perspectiva de pluralidade, ou seja,
do princípio de problematizar o homogêneo e o aparentemente simples e uno, a fragmentação
de tudo e de todos, o multiletramento digital postula a revisão do conceito de textualidade
dada a nova materialidade com que os textos são constituídos; o desenvolvimento do trabalho
educativo em LE se dando de forma colaborativa, através de projetos em temas transversais,
tentando buscar a intercompreensão entre as línguas/culturas maternas e a língua/cultura alvo
para a identificação de aspectos linguísticos, comuns e distintos entre essas línguas21. O
ensino tem que ser estruturado em perspectiva interdisciplinar via intertextualidade, quando
são considerados aspectos como a história de leitura do aprendiz em LM e em outras LEs. O
texto deixa de ser somente monomodal e passa a ser também multimodal, no qual imagens,
formas, movimentos produzem também efeitos de sentido, refletem ou apagam aspectos
histórico-ideológicos.
É importante destacar também que já existe à disposição dos docentes em portais
como Moodle (http://moodle.org/)22 e Wimba (http://www.wimba.com/) exemplos de
ambientes virtuais de aprendizagem, nos quais os professores podem centralizar, online, seus
cursos e disponibilizar arquivos de som (gravando inclusive sua voz para sistematizar e fixar
o vocabulário estudado a cada aula). Além de planejar cursos (e atualizar rápida e facilmente
o planejamento sempre que necessário), podem montar e atualizar constantemente o
calendário de atividades do curso, assim como propor e aplicar testes escritos e orais, receber
trabalhos de alunos (escritos e orais), devolvendo-os em formato digital devidamente
corrigido, com comentários e notas explicativas.
21 Cite-se o Eurocom4, projeto desenvolvido na Europa para ensino de quatro línguas românicas: italiano, espanhol, francês e
português (cf. http://sites.univ-provence.fr/delic/Eurom4/.
22 Plataforma Moodle - Modular Object-Oriented Dynamic Learning Environment, assim como o WEBCT, Wiki entre
outros, são programas muito usados como apoio à aprendizagem desenvolvido em um ambiente virtual. Para
aprofundamento, ver (http://moodle.org). Consultar também http://www.blackboard.com/us/index.bbb e
http://pbworks.com/ .
Essas plataformas digitais oferecem também webnares (seminários online), onde são
promovidos debates sobre temas de interesse na área de CALL. Há ainda a possibilidade de
comunicação escrita entre todos – professores, pais e alunos, que pode ser síncrona (chats) ou
assíncrona (fóruns virtuais, e-mails e blogs).
Os docentes que utilizam essas plataformas têm ainda à sua disposição controle de
frequência e de notas, além de acesso a vários tipos de relatórios, através dos quais pode ir
observando desde a visita de cada aluno à página (dia, hora e número de vezes) até a listagem
de notas em cada uma das avaliações realizadas. Através desses instrumentos, o docente
acompanha o rendimento de cada um dos alunos (individual e coletivamente), o que pode
tanto facilitar quanto agilizar sua intervenção e a dos pais, durante o processo de planejamento
e acompanhamento de atividades de recuperação.
Por suas características específicas, esses ambientes oferecem ainda a possibilidade de
desenvolvimento de atividades somente possíveis em meios digitais, que são muito
importantes e eficazes no ensino de LE: a comunicação síncrona online entre todos os
membros do curso. Essa atividade pode ser desenvolvida em laboratório de informática ou por
meio de ensino a distância, com os alunos situados em espaços diferentes. Essa pode ser uma
forma interessante de o professor propor trabalhos de casa em grupo. Caso seja de seu
interesse, ele pode acompanhar bem de perto e em tempo real a produção dos alunos,
coordenando o trabalho e a participação de todos. Como exemplo desse tipo de atividade,
podemos citar um debate sobre tema polêmico. Em ambiente virtual, como a fala é escrita,
não existe a necessidade de se aguardar o turno de fala. Isso facilita sobremaneira a
participação dos alunos mais tímidos e a intervenção do professor, não só corrigindo possíveis
erros, mas orientando a rota de trabalho adotada por cada membro do grupo23.
23 É importante registrar, porém, que antes de propor esse tipo de atividade o professor deve verificar a viabilidade de
execução: se todos os alunos têm computador com acesso à internet, para se certificar de que todos podem participar a
contento. Outros fatores externos devem ser levados em consideração, por poderem também interferir no processo de
O multiletramento digital, como o concebemos, enfatiza bastante também o letramento
visual. A proposta de multiletramento digital problematiza a função e o papel do LD e propõe
estratégias diversificadas de sua utilização. Ela o reposiciona, demovendo-o do lugar de
centralidade que tem ocupado durante tantos séculos. Reconhece ainda o fato de que, mesmo
no mundo digital, em que se imagina a proliferação de imagens e a leitura de textos
plurissemióticos, ainda vivemos o império da escrita, já que todos os gêneros emergentes
(híbridos e mesclados veiculados por meios digitais) são fundamentalmente baseados na
escrita. Conforme afirma Crystal (2001), “o impacto da Internet é menor como revolução
tecnológica do que como revolução dos modos sociais de interagir linguisticamente”.
Como já destacamos anteriormente, no trabalho de produção de textos em meios digitais
(troca de e-mails, fóruns virtuais síncronos e assíncronos, salas de bate-papo, pager digital), a
observação sobre a produção escrita discente deve ser enfatizada. Desse modo, na perspectiva
de multiletramento digital, o trabalho e o papel do professor são ainda mais destacados, além de
redimensionados. Ele definitivamente deixa de ocupar o papel de mero transmissor de
conhecimentos, uma vez que já são disponibilizados em tempo real e jorram “aos borbotões”
nas incontáveis páginas a que os estudantes têm acesso. Ele passa a assumir de fato o papel de
orientador da aprendizagem dos alunos, ensinando-lhes a usar critérios de qualidade e de
relevância no trato com a “avalanche” de dados colhidos online durante a navegação, a fim de
conhecer melhor e saber lidar com as especificidades dos textos veiculados em suportes digitais.
De acordo com Pacheco (2005), os professores podem partir da produção discente,
“despreocupada”, como a dos bilhetinhos que circulam durante as aulas24, com a finalidade de
execução, como a queda de energia ou mesmo problemas no serviço de conexão, que fogem ao controle dos participantes.
24 Registre-se o fato de que os estudantes cada vez mais desenvolvem a capacidade de realizar simultaneamente várias
atividades. Em aulas dadas em laboratório de informática, os bilhetinhos analisados por Pacheco (2005) foram sendo
rapidamente substituídos por mensagens instantâneas, trocadas com os amigos no Messenger, enquanto os estudantes
pesquisam online e escutam música. A análise desse fato, embora extremamente motivadora, extrapola também os objetivos
do presente trabalho.
estabelecer adequação de registros, de adquirir domínio de estruturas características de gêneros
mais “formais”. Afinal, os alunos podem querer fazer um abaixo-assinado contra a mudança do
uniforme em um blog e, para tal, devem saber escrever correta e adequadamente esse tipo de
texto. Para que essa meta seja alcançada, faz-se imperioso o investimento na capacitação de
professores no que tange ao uso de ferramentas digitais, a fim de que eles reconheçam seu papel
fundamental não só como docentes, mas também como pesquisadores, no processo de
desenvolvimento do multiletramento digital dos seus alunos.
ANTES DO PONTO FINAL
Como vimos, ao contrário da ‘escrita pré-internet’, que tinha sua recepção sempre
defasada no tempo (os textos geralmente eram lidos muito depois de escritos). Em tempos de
e-learning e de multiletramento digital, a recepção da escrita pode ser tanto assíncrona quanto
simultânea à sua produção. É claro que a forma de temporalidade interfere nas práticas de
leitura e nos processos de recepção e de produção de textos. A pesquisa aplicada e os
procedimentos de e-learning precisam avançar rapidamente no estudo dos processos de
textualização dos gêneros digitais, pois eles cada vez mais rapidamente se tornam híbridos e
se interinfluenciam.
As instituições educacionais, portanto, devem aprender a lidar com essas novas
práticas de leitura e de produção de textos no desenvolvimento das atividades de
multiletramento digital de seus alunos, apresentando-lhes o ambiente virtual como espaço de
grande plasticidade, embora não se possa ainda fugir da centralidade da escrita, nas mais
diversas formas de interação.
No que tange à produção de materiais didáticos, podemos considerar que estamos
ainda dando os primeiros passos. As estratégias de e-learning, o uso de suportes e de
ferramentas digitais para o ensino e a aprendizagem de línguas com o desenvolvimento de
atividades online interativas, é ainda, sem dúvida, um campo bastante fértil, clamando por
intensa pesquisa na área da Linguística e da Linguística Aplicada.
Cabe finalmente registrar que o uso de ferramentas digitais ajuda a dar um tom de
‘realidade’ ao ensino de LE, remediando, de certa forma, o apagamento das imagens ‘reais’
dos países, cujas línguas nativas estão sendo estudadas através de livros didáticos. Sabemos
que nem tudo são flores nos países que enfrentam hoje desafios comuns como a luta contra o
aquecimento global, a poluição das águas pluviais e do ar, as florestas devastadas, a
proliferação indiscriminada de armas nucleares. Estamos todos, alunos e professores, expostos
aos acontecimentos e fenômenos, muitas vezes em tempo real. Um debate pode perfeitamente
ser desenvolvido a partir de uma imagem, uma notícia ou mesmo um vídeo a que professor
e/ou alunos tenha(m) tido acesso na internet, antes do início da aula. Isso vai proporcionar
maior dinamicidade e atualidade às discussões e gerar, com certeza, maior interesse e
participação tanto dos alunos como do professor.
Os aprendizes de LE são cidadãos do mundo vivendo na aldeia global, conhecedores
dos processos políticos e econômicos que determinam a hegemonia ou a pobreza de
determinados países no mundo globalizado. Debater as ações que colaboram para a
construção de uma nova ordem internacional e implementá-las sob a ótica do multiletramento
são também tarefa do professor de LE, que não deve se limitar a mostrar e a elogiar as belezas
naturais e turísticas dos países, como parece ter sido a tendência adotada nos livros didáticos
de LE de décadas atrás.
Sem dúvida, a reflexão acerca do emprego de tecnologias digitais traz novamente à
tona um questionamento sobre sua eficácia no desenvolvimento de atividades sistematizadas
de ensino, ainda que as instituições em que a prática didática se desenvolva não
disponibilizem metodologias de e-learning. Com bastante segurança, já se pode afirmar que o
uso de ferramentas digitais é também eficiente estratégia de ensino-aprendizagem de LE. Os
alunos estão familiarizados tanto com a macroestrutura de variados gêneros textuais digitais
quanto com o uso linguístico que neles se fazem, já que os iniciantes lêem e escrevem textos
em suportes digitais em sua LM. Podem, assim, ousar também a ler/escrever na
língua/cultura-alvo, com grande probabilidade de sucesso. Ignorar esse fato é desconhecer o
conhecimento prévio do aluno e de suas características identitárias e apostar no
desenvolvimento de atividades artificiais e descontextualizadas, que certamente não são as
mais eficazes no ensino.
O ensino de LE, concebido nesses moldes, vai permitir que os aprendentes possam
estruturar suas vivências na LE, de modo a refletir com mais naturalidade e consistência sobre
a verdadeira realidade social e cultural vivida nos países, nos quais as LEs aprendidas são
autenticamente faladas.
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Paes de Almeida Filho. Campinas: SP, Pontes, 1978/1991.
O LIVRO DIDÁTICO: UMA CAPA DE CONVENCIMENTO E SEDUÇÃO – UM
OLHAR SOB A PERSPECTIVA DA SEMIÓTICA FRANCESA
The coursebook: a convincing and seductive cover – one look through the French
Semiotics
Ivete Aparecida da Silva Ota (FFPP/UPE)
Eliana Meneses de Melo (UBC )
RESUMO
Considerando que todo objeto sócio-historicamente constituído é um texto,
independente da(s) linguagem(ns) que mobiliza em sua constituição, este artigo discutirá, a
partir do referencial teórico-metodológico da semiótica francesa, como determinado livro
didático constitui um texto, o que diz e como faz para dizer o que diz. Dado o espaço de que
dispomos, analisaremos apenas a capa, levando em conta tanto a linguagem verbal quanto a
imagem que, juntas, constituem um todo de sentido.
Palavras-chave: Texto. Semiótica Francesa. Livro didático. Linguagem verbal. Imagens.
ABSTRACT
Considering that every socially and historically constituted object is a text,
independently of the language(s) which it mobilizes in its constitution, this article will
discuss, starting from the theoretical-methodological reference of the French semiotics, how a
specific course book constitutes itself as a text, what it says and what is done to say it. Due to
the space we have got, we will analyze only the cover, taking into account the verbal
language, as well as the images that, together, constitute a whole meaning.
Keywords: Text. French Semiotics. Course book. Verbal language. Images
INTRODUÇÃO
Dentre as teorias que tratam do texto, está a Semiótica francesa (ou greimasiana), cujo
objeto é o texto, procurando explicar o que ele diz e como faz para dizer o que diz. Por texto
entende-se, segundo Barros (1990): (a) organização e estruturação de “todo de sentido”, um
objeto de significação; (b) objeto de comunicação entre dois sujeitos, culturalmente
construído numa sociedade de classes e determinado por formações ideológicas.
Compreendendo o texto nessa dualidade – objeto de comunicação e de significação – a
análise semiótica busca compreender-lhe a estrutura interna, bem como sua relação com o
contexto. Por texto pode-se compreender o linguístico – oral ou escrito – bem como o visual,
gestual, sonoro ou ainda plástico, abrangendo, ao mesmo tempo, textos verbais e
visuais/imagéticos, concebendo-os a partir de:
“Um sistema de regras capaz de explicar, com os mesmos princípios
epistemo-metodológicos, tanto as estruturas narrativas quanto as
discursivas, a semiótica deu já os primeiros passos para a construção
de um modelo que, sem abandonar a análise do texto, examina
também sua inserção no contexto” (BARROS, 1988, p. 13).
A partir dessa compreensão, tomaremos determinado livro didático de língua
portuguesa, considerando-o como um texto, dotado de sentido, de intencionalidade, de um
querer dizer, com o objetivo de discutir, a partir do referencial teórico e metodológico da
Semiótica francesa e sua aplicabilidade. A meta é entender como esse texto se constitui
enquanto tal, o que diz e que mecanismos de dizer mobiliza nas diferentes linguagens, como
essas linguagens se articulam na construção da “verdade” ou de um efeito de sentido.
Como destaca Greimas, a Semiótica traz em seus objetivos a “exploração dos
sentidos” de tal forma que vai além da formulação da descrição da comunicação. Juntando a
descrição da comunicação, a Semiótica tem por finalidade dar “conta de um processo mais
amplo no qual se insere a significação (p. 41)”. Nesses termos, vai além das intencionalidades
comunicacionais. Ao se preocupar com o sentido semelhantemente a qualquer estudo voltado
à significação, “só pode ser a transposição de um nível de linguagem numa outra diferente”
(COURTES, 1979, p. 41- 43).
A opção da análise a partir do livro didático se justifica em duas razões: uma, prende-
se à presença massiva na sala de aula; a outra razão deve-se ao fato de o livro didático,
especialmente o de língua portuguesa, mobilizar, em grande parte dos textos, as linguagens
verbal e visual, na articulação do sentido. Introduz a imagem, na sociedade contemporânea e
nos impõe, através de diferentes midias, cada vez com mais frequência e de forma mais
elaborada, a presença sozinha ou associada da linguagem verbal para dizer, persuadir,
emocionar, envolver, explicitar, ocultar informação.
UM POUCO DE TEORIA
A Semiótica, ao tratar do plano do conteúdo, buscando compreender o que o texto diz
e o que faz para dizer o que diz, parte do percurso gerativo de sentido, compreendido em
três níveis: fundamental, narrativo e discursivo, sendo que em cada um desses níveis há o
componente sintático e o semântico – elementos sobre os quais se manifestam os diferentes
níveis de produção e circulação do sentido em função de “instâncias intermediárias” por onde
atuam os sujeitos.
Em termos gerais, o percurso gerativo do sentido revela a disposição dos componentes
e as relações estabelecidas entre os mesmos, de tal sorte que podemos definir o objeto
semiótico em conformidade com a produção. Implícito, portanto, encontra-se um processo de
produção do sentido constituído pela articulação de ações, de pequenos percursos auxiliares,
que revelam o caminho da edificação do sentido em diferentes níveis (GREIMAS &
COURTÉS, 1989).
No nível fundamental, as relações são abstratas e residem em oposições semânticas a
partir das quais se constroi o sentido do texto, ou seja, os “termos opostos de uma categoria
semântica que mantêm entre si uma relação de contrariedade” (FIORIN, 1990, p.19). Esses
valores podem ser eufóricos (valor positivo) ou disfóricos (valor negativo).
O caráter de valor positivo ou negativo é dado não como juízo de valor pelo
enunciatário, mas são postos no próprio texto e no contexto em que foi produzido. Contudo,
mesmo sabendo que o texto é produto de seu tempo, sabe-se também que uma sociedade não
produz uma única maneira de ver a “realidade” e de analisar os problemas, pois é dividida por
grupos sociais com idéias antagônicas.
A mesma sociedade que gera a idéia de a única maneira de ficar rico depressa é
assaltando um banco produz a idéia da riqueza rápida pelo jogo, pelas loterias. A um
indivíduo que pertença ao primeiro grupo, o sucesso no assalto de um banco é eufórico, ou
seja, é tido como positivo, na performance do texto, embora outros grupos, por seus valores,
possam tê-lo como negativo.
Nas dimensões da complexidade contemporânea, observamos a presença de percursos
geradores de sentidos, revestidos por signos em múltiplas significações. São as linguagens em
criação e recriação a percorrer os espaços do contraditório. É o verbo e as imagens que se
associam em torno do cotidiano, em suas variadas formas de consumo cultural e
entretenimento. Ao mesmo tempo em que integram diferentes sujeitos do corpo social,
espelham a pluralidade discursiva, quando os elementos de oposição semântica que se
manifestam no nível fundamental são “assumidos como valores por um sujeito e circulam
entre sujeitos, graças também à ação de sujeitos” (BARROS, 1990, p. 11), temos o nível
narrativo.
Vale destacar que, por ser o lugar dos atos comunicativos, os enunciados permitem
que os agentes e atores sejam identificados em primeiro nível, qual seja, quem enuncia, o que
é enunciado e para quem. Trata-se de um primeiro reconhecimento que remete às questões
mais profundas da enunciação. Em termos greimasianos, a enunciação é a instância de
mediação que dá consistência às virtualidades da língua manifestadas em enunciados
discursos. Nesse sentido, implícita à leitura dos níveis apontados pela Semiótica, está a
enunciação (GREIMAS & COURTÉS, 1989).
No nível narrativo, o sujeito age em busca dos valores investidos nos objetos – que se
transformam em objetos-valor, para mantê-los, adquiri-los ou expropriá-los de outrem. Assim,
tem-se um estado inicial, uma transformação, e um estado final. A sintaxe narrativa constitui-
se de dois tipos de enunciados elementares de estado, que estabelecem relação de junção
(conjunção ou disjunção) entre um sujeito e um objeto-valor, e de um enunciado de fazer,
quando ocorre a transformação de um sujeito de um estado conjuntivo, a um disjuntivo, ou
vice-versa.
Assim, na narrativa, as mudanças de estado realizam-se por meio de uma sequência
canônica que compreende as fases de manipulação, competência, performance e sanção.
Mesmo que elas não apareçam nos textos, são pressupostas. A manipulação consiste em um
sujeito persuadir o outro a querer ou a dever fazer alguma coisa. Essa manipulação pode ser
por tentação, quando se propõe uma recompensa; por intimidação, quando ocorre uma
ameaça; por sedução, quando há a emissão de um juízo positivo ao qual o manipulado deve
corresponder; ou por provocação, quando ocorre a emissão de um juízo negativo com a
intenção de provocar reação.
A manipulação só surtirá efeito se os valores forem compartilhados pelo manipulador
e pelo manipulado. Na competência, o sujeito sabe ou pode fazer alguma coisa; na
performance, ocorre a transformação: o sujeito passa de um estado para outro. A sanção,
como última etapa, é aquela em que o destinador interpreta as ações do destinatário e julga-o
conforme certos valores. O percurso narrativo deverá contribuir para compreender, em
primeira instância, o próprio livro em si como objeto de significação e de comunicação pelo
processo de narratividade nele investido, uma vez que “as estruturas narrativas simulam a
história da busca de valores, da procura de sentido” (BARROS, 1988, p.28).
O esquema narrativo realizado pelo sujeito em busca de um objeto-valor não é linear.
Trata-se de uma estrutura dinâmica por onde podem passar vários atores, em diferentes papéis
actanciais. As ações que se desenrolam podem facilitar a trajetória ou dificultá-la, uma vez
que, presentes nos percursos narrativos, estão os adjuvantes e os oponentes.
Justamente na presença desses actantes, residem a dinâmica das ações e as
transformações necessárias para a obtenção do objeto-valor. Toda ação é variável em
decorrência do próprio valor a ser atingido e da forma pela qual se manifestam os sujeitos e
anti-sujeitos. Em decorrência, na superfície textual, deparamo-nos com o “investimento
semântico”: diferenças na superfície, semelhanças no percurso gerador do sentido.
Em consonância com o Dicionário de Semiótica de Greimás & Courtés (1989), a
virtualidade corresponde ao estabelecimento de sujeitos e objetos, anteriormente a qualquer
função. Investimento semântico é definido como o procedimento através do qual são
atribuídos valores semânticos em uma estrutura sintáxica. Segundo Greimás & Courtés,
Na medida em que a análise de um enunciado (frase ou discurso)
permite reconhecer, determinar e organizar as unidades semânticas de
quaisquer dimensões (semas, sememas, temas etc.), autorizando assim
a se falar de um componente autônomo, relativamente independente
do componente sintáxico, um procedimento inverso pode ser
visualizado na perspectiva gerativa: partindo das estruturas profundas
e abstratas (...) como contendo, a cada instância ou nível de
profundidade, estruturas sintáticas e investimentos semânticos que
lhes são paralelos e conformes (1989, pp. 243-4)
Há um sujeito que age em busca de certos valores investidos nos objetos; no caso, há
um destinatário em busca do objeto-valor saber/conhecer representado pelo livro e oferecido
por um destinador. Ocorre, então, o estabelecimento de um contrato entre o destinador e
destinatário entre os quais circula esse objeto-valor. Esses conceitos contribuem para
compreender como esse objeto-valor se manifesta enquanto tal, como ocorre a manipulação, a
competência, a performance e a sanção e como se processa a narratividade nele investida.
As estruturas narrativas ganham concretude quando assumidas por um sujeito da
enunciação e convertem-se em discurso. No nível discursivo, o sujeito da enunciação
desdobra-se em enunciador e enunciatário e
o sujeito que enuncia, ao mesmo tempo em que se projeta no discurso,
aí instala aquele para quem enuncia, construindo as duas instâncias de
poder entre as quais circula não só uma fala, mas também um contexto
em que se definem papéis e uma estratégia argumentativa que marca a
finalidade do discurso (TEIXEIRA, 1996, p. 93).
Os sujeitos e suas atitudes diante do enunciado estão presentes na enunciação. O
enunciador e os mecanismos pelos quais ele se instaura no discurso são percebidos mesmo
quando se procura evidenciar o enunciatário e os possíveis efeitos de sentido e de realidade. O
olhar sobre a enunciação permite ao pesquisador observar o sujeito nas dimensões da
subjetividade, na dinâmica da elaboração discursiva que revela suas intencionalidades ao
mesmo tempo em que expõe a própria construção do sujeito (MELO, 2008).
Com os mecanismos da persuasão e da ação interpretativa, o enunciador e o
enunciatário se expõem em seu ato de comunicação. As projeções actorial, temporal e
espacial instalam na cena o “eu” que enuncia o tempo e o espaço da enunciação,
respectivamente, através da escolha do eu/ele – agora/então – aqui/lá. Essas escolhas simulam
o distanciamento da cena, num processo de desembreagem enunciva, que projeta a
objetividade pelo tempo do “então”, pelo espaço do “lá” e pela terceira pessoa; enquanto a
desembreagem enunciativa projeta no discurso a subjetividade, através do tempo do “agora”,
do espaço do “aqui” e pelo uso da primeira pessoa.
Nos postulados apresentados por Greimas, encontramos ação oposta: debreagem. Nela
o sujeito se omite, elaborando através desse mecanismo o efeito de neutralidade discursiva
nos termos da superfície textual:
Pode-se definir debreagem como a operação pela qual a instância de
enunciação disjunge e projeta fora de si, no ato de linguagem e com
vistas à manifestação (...) A debreagem actancial constituirá, então,
num primeiro momento em disjungir do sujeito da enunicação e em
projetar o enunciado do não-eu (GREIMAS & COUTÉS, op.cit, p.93).
O estudo da enunciação e das opções do sujeito da enunciação projetadas no discurso
possibilitará verificar os procedimentos utilizados para constituir o discurso e os efeitos de
sentido produzidos pelos mecanismos empregados. Na sintaxe do discurso, parte-se de um
princípio persuasivo que tem como finalidade a ilusão da verdade. O sujeito procura persuadir
o destinatário, através dos mecanismos discursivos de proximidade ou de distanciamento da
enunciação e de realidade ou de referente de que o seu discurso é verdadeiro (ou falso).
Através dos mecanismos discursivos de proximidade ou de distanciamento da
enunciação – denominado desembreagem - o sujeito pode assumir explicitamente a
subjetividade ou forjar objetividade, pois “existem, como bem se sabe, recursos que permitem
‘fingir’ essa objetividade, que permitem fabricar a ilusão de distanciamento, pois a
enunciação, de todo modo, está lá, filtrando por seus valores e fins tudo o que é dito no
discurso” (BARROS, 1990, p.55).
O efeito de realidade (ou de referente) faz as ilusões discursivas parecerem
verdadeiras, pelo uso de mecanismos argumentativos bem construídos, criando uma ilusão de
verdade; a verdade não está fora do texto, mas é construída por ele. Não existe a verdade, mas
existe o parecer verdadeiro, que é construído pelo discurso, ou, em outros termos, “o ser e o
parecer ser”.
Um mesmo esquema narrativo pode estar revestido das categorias semânticas tema –
constituído por elementos abstratos – e figura – elementos concretos, pertencentes ao mundo
natural. Assim, um texto pode ser predominantemente – e não exclusivamente – temático ou
figurativo. O encadeamento dessas figuras, em relação a um tema, faz surgir a significação, o
sentido. A recorrência desses traços semânticos forma uma rede de significação que conduz a
uma isotopia. Por isotopia entende-se possibilidade de leitura. A manutenção ou ruptura
intencional da isotopia produz a coerência do texto.
Para ilustrar as reflexões teóricas aqui colocadas, tomaremos o livro didático de
Língua Portuguesa Texto e interação – uma proposta de produção de textual a partir de
gêneros e projetos, de William Roberto Cereja e Thereza Cochar Magalhães, São Paulo:
Editora Atual, 2000, 344 p., compreendendo-o como um texto. Nessa análise, levaremos em
conta apenas sua capa. Consideremos que, no plano da expressão do texto visual, as unidades
mínimas são denominadas formantes, divididos em eidéticos (forma), cromáticos (cor) e
topológicos (disposição espacial).
O livro didático exerce um forte apelo ao consumo, pelo aspecto pelo visual, através
da exploração de imagens, cores, tipos gráficos, disposição gráfica, por exemplo. Assim,
dentre as estratégias de divulgação desse material, a batalha pelo mercado arma-se de
mecanismos de apresentação como recursos visuais coloridos, cheios de imagens e com
projetos gráficos arrojados, buscando chamar a atenção de alunos e alunas, de professores e
de professoras, na tentativa de atrair-lhes o olhar e angariar-lhes o interesse. Afinal, a imagem
ilustra, amplia, aprofunda, facilita, atrai, diverte, conta e reconta, cria e recria. Inclusive, a
palavra escrita vai ganhando características visuais e adquirindo aspectos formais estetizantes:
é colorida, com caracteres planejados de acordo com a intencionalidade, em diferentes
tamanhos e ocupando espaços estratégicos na folha.
Poderia ser uma razão muito forte o fato de o livro trabalhar com textos, mas no curto
espaço de um artigo não nos é possível uma abordagem mais ampla. Por isso nosso recorte
levará em conta apenas a capa (como já dissemos), descrevendo e analisando sua organização
e estratégias persuasivas utilizadas tanto pelo texto visual como pelo verbal na construção de
um texto sincrético.
Os elementos persuasivos encontrados na capa do livro em análise, como em demais
livros, permitem associar, em termos de universos de discursos, a produção no nível de uma
poética de propagada e publicidade. Como sabemos, o discurso publicitário se fundamenta no
enunciador. A ele cabe o papel de ser capaz de levar o outro a um querer. Esse discurso atua
de forma a garantir que a mensagem chegue diretamente ao receptor, dissolvendo as
interposições midiáticas. Sua intencionalidade se centraliza no convencimento. Para atingir
seu objeto-valor, desenvolve percursos para que os mecanismos de sedução sejam alcançados:
atua no nível da persuasão e tem na Estética um sujeito adjuvante.
Consideremos em nossa análise, a partir do nível narrativo, que há um sujeito
destinador, dotado de um saber, e um sujeito destinatário em busca desse saber, sendo o
conhecimento o objeto-valor, pois “[...] a narrativa de um texto é a história de um sujeito em
busca de valores. Para que o sujeito tenha acesso aos valores, são eles inseridos nos objetos”.
(BARROS, 2003, p.191)
Por deter esse saber, o destinador é capaz de manipular o destinatário, persuadindo-o a
aceitar suas estratégias e, assim, fazer com que o destinatário realize a ação proposta.
Aceitando o contrato, o destinatário torna-se sujeito, agindo sobre os objetos e seus valores e,
na sanção, torna-se competente para a “ação”. A inserção do educador/educadora deverá
sancionar positivamente ou negativamente os valores “adquiridos”. Portanto, analisaremos
como se dão as fases canônicas da narrativa (competência, manipulação, performance e
sanção), caracterizando o destinador, o destinatário e, especialmente, investigando os
mecanismos de persuasão usados pelo destinador para que o destinatário acredite nos valores
postos e “aceite” o contrato proposto.
APLICANDO A TEORIA
Passemos à análise. A capa do livro divide-se em dois blocos. No primeiro, constituído
predominantemente pelo verbal, encontram-se os nomes dos autores, o título e o subtítulo,
divididos em blocos: Texto e interação – uma proposta de produção textual a partir de
gêneros e projetos. O ínfimo espaço de 1mm que separa o negro do retângulo do título do
negro da faixa que contém o subtítulo faz parecer, ao primeiro olhar, um só bloco, sendo
esteticamente mais vantajosa a ruptura, por quebrar o bloco negro que toma cerca de um terço
da capa, proporcionando leveza estética, resultado de um cuidadoso projeto de construção do
discurso gráfico. Estrategicamente pensado para chamar a atenção já a partir do título, são
utilizados no aspecto visual recursos como a cor – letras brancas sobrepostas a um fundo
negro –, a localização, o tamanho e o formato das letras.
No trabalho de composição gráfica, o branco sobre o preto, pouco convencional, é
“usado apenas como adorno nos arranjos gráficos, serve para atrair a atenção da leitura, de
forma a destacar e a realçar a mensagem impressa” (SILVA, 1985, p.32). Dessa forma,
observa-se que, colocado como adorno, o arranjo gráfico do jogo de cores é um recurso
calculadamente empregado no sentido de se fazer mostrar. Ao contrário da suavidade do preto
sobre o branco, o convencional, por causar conforto ótico, o branco sobre o preto manipula o
olhar pela relação de contraste, provocando um estímulo visual pela experiência estética que
configura. Rompendo o poder do previsível, a estratégia provoca surpresa e estranhamento.
Na cultura ocidental, o olhar encaminha-se da esquerda para a direita e de cima para
baixo, o que faz da área superior uma zona privilegiada, uma área de tensão, que, por isso,
adquire maior peso visual. Esta é a razão pela qual os títulos em geral, e este em particular, aí
se localizam: é para lá que o olhar se encaminha primeiro. Portanto, a localização do título
nesta área naturalmente é chamativa. E, neste caso, o peso visual é intensificado pelo tamanho
das letras – muito maior que as demais. A divisão do título em duas linhas é o meio termo
entre a leitura vertical e horizontal, o que imprime maior rapidez à leitura e ao mesmo tempo
proporciona conforto ao movimento do olhar que, sem muito exercício, consegue captá-lo.
O formato arredondado das letras, no título, prenuncia a intenção de um envolvimento
emocional pela docilidade que sugere o que, como se verá mais adiante, será reiterado por
outros aspectos. Prenuncia também um discurso de pessoalização de um enunciador que se
mostra e dialoga. A pessoalização desse discurso é reiterada com o recurso de sombreamento
à esquerda e abaixo desse fundo, fazendo-o avançar e se colocar em primeiro plano. Nesse
movimento de avançar, um efeito de proximidade com o leitor que interage com esse objeto-
livro.
“A legibilidade de um texto depende da forma das letras, do branco anterior às
mesmas, do corpo usado, do comprimento das linhas, do entrelinhamento, do espacejamento e
das margens” (Id., p.31). Portanto, a força interativa do discurso constroi um poderoso jogo
de se mostrar, de se apresentar para o enunciatário, chamando-lhe a atenção, angariando seu
olhar, através da legibilidade impressa nas formas arredondadas das letras, do espaçamento
que sobra nas laterais, da distribuição do texto no espaço, do jogo de cores e do tamanho das
letras. Encadeados, esses elementos formam uma rede de significação que constitui um
discurso. Esse discurso reitera o título através da isotopia da interação, posta explicitamente
no título e implicitamente através do diálogo entre as linguagens.
O livro é direcionado para o aluno, mas é o professor que tem de ser convencido
primeiro porque é através do professor que o livro chega ao aluno. Esse processo de
convencimento se inicia no primeiro contato, por meio do título. Se o aluno é envolvido por
um visual que chama atenção, para envolver o professor é preciso mais: por isso, o enunciador
precisa provar também para o professor que é competente para o que se propõe.
Para isso, apresenta um discurso que se mostra atualizado. Procurando agradar,
editoras e autores, partem em busca de “novas teorias” que tratam do ensino e da
aprendizagem, já que o discurso do “novo” seduz, sugere estar conectado com a ebulição do
mundo e do conhecimento e, embora muitas vezes caia no modismo vazio, esse “novo”
sugere distanciamento do que está posto.
A preocupação em mostrar o “novo” fica explícita a partir do campo semântico
selecionado: no próprio título, as palavras “texto” e “interação” e, no subtítulo, “produção
textual”, “gêneros” e “projetos”. E o livro se coloca, nesse sentido, como “um grande
achado”, uma vez que se situa exatamente na brecha cavada pela necessidade metodológica:
primeiro, porque trata exclusivamente de textos; segundo, porque esses textos são trabalhados
na perspectiva de gêneros, ou seja, através de concepções muito atuais de ensino de línguas.
A palavra “interação” retoma a concepção vigotskiana segundo a qual o conhecimento
não se constroi sozinho, mas mediado por outras pessoas (ou objetos), podendo ser neste caso
o diálogo do aluno com as obras e o diálogo das obras entre si, nas suas diferentes linguagens
e especificidades. O emprego dessa palavra sugere também o dialogismo bakthiniano,
intrinsecamente ligado ao conceito de interação e reforçado pelos diálogos possíveis entre as
diferentes linguagens e entre o enunciador e o enunciatário. Por enunciador entende-se o
desdobramento do sujeito da enunciação, o enunciador cumpre os
papéis de destinador e está implícito no texto, nunca nele manifestado;
enquanto que o enunciatário (é) uma das posições do sujeito da
enunciação, o enunciatário, implícito, cumpre os papéis de
destinatário do discurso. (BARROS, 1990, p. 86)
Na segunda parte da capa, maior que a primeira, estão dispostas algumas imagens. Os
espaços vazios entre uma imagem e outra contribuem para valorizá-las, porque as destaca e
provoca um rápido entendimento por parte do leitor, exercendo grande força de atração visual.
A presença dessas imagens na capa reitera o título, porque sugere interação entre essas
diferentes linguagens e entre os diferentes gêneros. A harmonia do equilíbrio simétrico, de
inspiração clássica, suscita confiança no enunciatário. O equilíbrio da página se dá pelos
pesos visuais distribuídos e balanceados. A força visual da primeira parte, maior que a da
segunda, é compensada pela sequência das imagens cujas simetria e continuidade constroem
uma regularidade.
Há uma sugestão de interação também entre o livro – objeto da enunciação – e o
enunciatário, a partir da disposição das figuras em primeiro plano. Todas as imagens,
inclusive o quadro com o título, mostram-se e apresentam-se para o enunciatário, num tom de
pessoalidade, sugerido pelo sombreado que há à direita e abaixo de todas as imagens e que as
coloca em primeiro plano, fazendo-as se destacar do fundo que as sustenta. Esse sombreado
traz, faz emergir a figura posta. É a construção da pessoalidade do enunciador-livro: há um
“eu”, através da imagem, que se coloca no tempo do aqui e do agora para dialogar com o
enunciatário, convocando-o a participar, a se envolver. Aqui abrimos um parêntese: o
processo de pessoalização/impessoalização não é específico da linguagem verbal.
Essa construção da interação entre as diferentes linguagens e entre o enunciador e o
enunciatário se estende através das imagens selecionadas para compor o discurso de
instalação do enunciatário no texto, ao mesmo tempo presentificar o enunciador. A instalação
do leitor na cena enunciativa se dá pelos olhos das imagens da capa.
OLHOS NOS OLHOS
Os olhos da capa, ao olhar o enunciatário, convocam-no a assumir uma postura, já vez
que, segundo Landowski,
Pouco importa se o modelo nos olha de frente ou se parece olhar o
Outro (seu parceiro no enunciado, ou o objeto, praticamente qualquer
um, que pode ser o seu substituto), pois aquilo que ele olha é
precisamente o simulacro daquele ou daquela que o olha – logo, uma
figura nos designa. Portanto, basta que olhemos o modelo olhando
‘alguma coisa’ [...], para que saibamos que também somos olhados,
isto é, ‘desejados’ (1992, p. 22, grifos do autor).
Dentre as imagens postas na capa, que parecem saltar do papel ao encontro do
enunciatário pelo recurso do sombreado, estrategicamente colocada está a foto do palhaço
Arrelia, cujos olhos arregalados, ao contrário do que naturalmente se espera de um palhaço,
revelam um olhar que, em conjunto com os traços do rosto, parece denunciar uma dor, uma
triste surpresa, em meio a uma maquiagem que se desfaz, como que a figurativizar a
desmistificação de papéis: do palhaço e do livro didático.
Colocada ao centro do segundo bloco de imagens – a maior foto da capa. Os olhos do
enunciatário não conseguem fugir ao olhar do Arrelia que, numa expectativa de resposta,
coloca em xeque o enunciador, uma vez que, quando se fala, provoca-se uma resposta.
A Mona Lisa, de Botero, na coluna de cima, figurativizando o enigma da personagem,
como que a se esconder, procura o lugar mais discreto; ocupa um espaço menos privilegiado
pelo olhar. É a personagem que não se mostra por inteiro, que oculta o que está na alma. Com
olhar e sorriso misteriosos, tal qual a obra de Da Vinci, com a qual dialoga, também olha o
enunciatário, convocando-o e instalando-o na cena.
Ambos, Arrelia e Mona Lisa, instigam o leitor. O primeiro, embora com o corpo de
lado, vira a cabeça e olha o enunciatário nos olhos. Indignado, mostra-se e quer dizer. Quando
o livro está deitado sobre uma superfície – a mesa de estudo – é ele, o Arrelia que está mais
próximo do interlocutor, ao passo que a Mona Lisa está mais distante, pela topologia e pelo
tamanho da foto. A distância reitera o clima de mistério da personagem que o leitor, seduzido,
deverá tentar desvendar da personagem e do texto-livro.
Em outra imagem, a última da capa, um livro aparece aberto sobre um pedestal e o sol
lança sobre ele seus raios. São raios de sol que iluminam. Pedestal que engrandece. Nesta
imagem, a cartada final no jogo argumentativo do discurso de convencimento: a
figurativização do espaço e importância dada ao livro na cultura ocidental e, por extensão, a
este livro.
E o sol, que em tudo lança luz, se vê fascinado diante do livro. Seus olhos, que
também podem ser os do leitor, contemplam como um voyeur e gozam o prazer daí advindo.
Seus raios tornam-se mãos a possibilitar o folhear e a continuação do prazer da leitura. As
estrelas testemunham o brilho da estrela maior, o livro.
“Tal qual a moldura de um quadro, a apresentação das páginas de um órgão da midia
impressa poderá ter a função relevante e específica de atrair a atenção de quem observa”
(TEIXEIRA, 1996, p.95). A moldura enunciativa em que se apresenta o livro em análise é o
simulacro do discurso que tenta convencer, envolver e seduzir o enunciatário, mostrando-se
atualizado logo no primeiro contato, não só pela capa, mas também no folhear rápido em que
as cores e as imagens se mostram, sendo que as cores não advêm somente das imagens, mas
muitas vezes servem de fundo para os textos, rompendo com o massacre do preto sobre o
branco, tornando-se chamativo para quem vê. Assim, esse simular do discurso de
convencimento pela capa se dá pela linguagem verbal e pela linguagem imagética.
Ao apresentar os textos imagéticos de diferentes gêneros, que ocupam os dois terços
inferiores do espaço da capa, há a sugestão da apropriação por parte do enunciador de um
conhecimento de mundo ou, mais precisamente, de diferentes linguagens, o que respalda o
enunciador para dizer o que vai dizer: quadro, cartaz de campanha comunitária, postal,
ilustração, cartaz de filme, cartum, foto de palhaço (inusitada!) e outra imagem que
(sugestiva!) coloca o livro no centro, sobre um pedestal, em que os raios solares, coloridos,
voltam-se concentrados para sua leitura.
Assim, o livro faz-se imediatamente atrativo aos olhos de quem o vê: no aspecto
visual, o jogo de cores contrastantes, juntamente com as imagens coloridas e o tamanho do
livro – maior do que os demais – e pelo projeto pedagógico que simula o ‘novo’, encontrando,
assim, respaldo no imaginário do professor e da professora. A partir de concepções arrojadas
– de projeto visual e pedagógico –, o livro tenta construir, já no primeiro contato, uma
imagem sedutora.
Tudo isso tem o papel argumentativo de respaldar o enunciatário para dizer o que vai
dizer, conferindo-lhe confiabilidade. O enunciador, conhecendo a expectativa do enunciatário
e, a partir do padrão gráfico (do livro) e semântico (da capa), pretende, “sendo atraente,
tornar-se confiável” (Id., p. 35), o que é sugerido pela linguagem verbal. O discurso ali
colocado representa a concepção defendida por grandes teóricos e filósofos da linguagem,
bem como pelo MEC – Ministério da Educação – nos PCNs – Parâmetros Curriculares
Nacionais.
Ao apresentar o livro, há um sujeito que tenta manipular outro para levá-lo a querer
e/ou dever fazer – dominar o conhecimento de que o livro trata e assim adquirir o objeto-valor
saber. Essa manipulação se dá implicitamente por tentação, uma vez que o enunciatário terá
como recompensa, se aceitar o jogo, dominar as habilidades de leitura e produção textuais,
muito exigidas na sociedade, seja na escola ou no trabalho.
Para estabelecer a relação fiduciária, “sobre a qual se assenta o contrato entre um
sujeito que deve fazer crer e outro que deve crer” (Ibid.), é preciso montar mecanismos de
fazer crer. É preciso provar para o enunciatário que o enunciador é competente para dotá-lo
do saber fazer, objeto-valor que circula entre os sujeitos através do texto-livro para mostrar
que tem competência para dotar o enunciatário desse saber fazer.
O enunciador precisa provar que é dotado de um saber e/ou poder fazer, mostrando-se
atualizado e “conectado” com a efervescência do mundo contemporâneo, inspirando, assim,
confiança no enunciatário, que precisa acreditar para aceitar o material que se lhe está sendo
apresentado. O enunciador precisa convencer o enunciatário da verdade do que diz,
envolvendo-o e seduzindo para referendar o objeto que apresenta e que precisa ser aceito para
estabelecer o contrato fiduciário, ou seja, para simular assim a produção do discurso. Esse é o
pressuposto que sustenta os mecanismos de poder.
A performance se realiza na medida em que vai se dando a transformação do não-
saber/não conhecer para o saber/conhecer. A partir daí, o sujeito que estava em disjunção,
apartado do objeto-valor conhecimento, entra em conjunção com ele.
A sanção, ou seja, a constatação de que a performance se realizou, vai se dando ao fim
de cada unidade com a realização dos projetos sugeridos, uma vez que, ao realizar as
atividades propostas nesses projetos, vai ficando explícita, pelo menos teoricamente, a
concretização desse saber/conhecer.
EM SÍNTESE
Enunciador e enunciatário vão se revelando na medida em que o objeto livro vai se
constituindo. Autor, autora e editora estão explícitos na capa, mas o livro é uma obra coletiva
que envolve muitas outras pessoas identificadas na ficha catalográfica: pessoas envolvidas
com o processo editorial, preparação de textos, pesquisa iconográfica, revisão, gerência e
edição de arte, projeto gráfico, projeto da capa, diagramação.
Todos esses sujeitos fazem parte do processo de enunciação, constituindo-se nesse
enunciador que dialoga com o enunciatário. É para este destinatário que a obra se dirige,
deixando claro que o leitor do livro não é um leitor qualquer, mas o estudante. Mais: não um
estudante qualquer, é um estudante do Ensino Médio que precisa entender a proposta do livro
para estar afetivamente predisposto a aceitá-lo, motivando-o assim para a leitura e uso. Se os
textos organizam-se de formas diferentes, a depender do interlocutor, do produtor, do assunto
e da intenção, o livro “pretende ajudá-lo a se apropriar de diferentes tipos de textos que
circulam socialmente e são usados nas mais variadas situações de interação verbal” (texto de
apresentação do livro, p. 3).
Dessa forma, delineia-se o perfil de enunciador – que detém o conhecimento – e de um
enunciatário – que precisa conhecer. Se esse enunciador detém o conhecimento e pode passá-
lo ao enunciatário, cabe-lhe se submeter àquele, estabelecendo uma relação de poder
permeada pela afetividade, o que faz suavizar a relação e reforçar a confiança. Quem detém o
poder (saber) está ali para “ajudar” o estudante, tornando-se seu aliado no processo de
aquisição do conhecimento.
Num discurso construído para convencer, o enunciador precisa, antes de tudo, chamar
a atenção para si, fazer-se visto, fazer-se notado. Cuidadosamente, o enunciador vai
construindo através da moldura enunciativa – projeto gráfico que busca destacar o objeto pelo
tamanho, pelo jogo de cores, topologia e diálogo entre as linguagens – mecanismos de se
mostrar, envolver e persuadir o enunciatário, efetivando-se, assim, através do parecer
verdadeiro, o contrato de veridicção. Por veridicção entende-se o dizer verdadeiro, já que um
texto será verdadeiro quando for interpretado como verdadeiro.
O discurso constrói a sua verdade. Em outras palavras, o enunciador
não produz discursos verdadeiros ou falsos, mas fabrica discursos que
criam efeitos de verdade ou de falsidade, que parecem verdadeiros ou
falsos e como tais são interpretados (BARROS, 1990, p.64).
O contrato de veridicção se estabelece entre os sujeitos, através do dizer do
enunciador, fazendo o discurso parecer verdadeiro e ser interpretado como tal, através dos
mecanismos discursivos empregados, denominados dispositivos veridictórios, espalhando
marcas – ou efeitos de realidade – que devem ser encontradas e interpretadas pelo
enunciatário. Todo texto, independente do gênero a que pertence, é dotado de
argumentatividade, pretende convencer, por isso, precisa fazer crer que é verdadeiro.
Ao fazer crer que seu dizer é verdadeiro, o enunciador constroi, junto ao enunciatário,
o contrato de fidúcia ou contrato fiduciário, que diz respeito à confiança que o enunciatário
deposita no discurso. Quando se produz um enunciado, estabelece-se uma convenção ou
contrato fiduciário que determina o caráter veridictório do texto. Segundo Fiorin (2001), o
acordo fiduciário pode apresentar dois aspectos: (a) a maneira como o texto deve ser
considerado do ponto de vista da verdade; (b) as condições para que os enunciados sejam
compreendidos; (c) a maneira como foram ditos ao contrário, como é o caso de alguns textos
de humor ou irônicos, por exemplo.
Que enunciatário está inscrito no texto? É um enunciatário que precisa estar em junção
com o objeto-valor saber conhecer/saber fazer para ser aceito socialmente. O livro se propõe a
dotar esse enunciatário do objeto-valor, mas antes precisa provar que está apto a isso, para que
o enunciatário acredite e aceite a manipulação. Eis que se estabelece o contrato fiduciário.
REFERÊNCIAS
BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria Semiótica do Texto. São Paulo: Ática, 1990, 96 p.
________. Teoria do Discurso: Fundamentos Semióticos. São Paulo: Atual, 1988, 172 p.
________. Estudos do discurso. In: FIORIN, José Luiz. Introdução à Linguística – Princípios
de Análise. São Paulo: Contexto, 2003, p. 161 a 185.
CEREJA, William Roberto e MAGALHÃES, Tereza Cochar. Texto e interação – uma
proposta de produção textual a partir de gêneros e projetos: São Paulo: Atual, 2000, 344 p.
COURTÉS, J. Introdução à Semiótica Narrativa e Discursiva. Coimbra: Almedina,1979, 41,
43, ps.
FIORIN, José Luiz. Elementos de análise do discurso. 13 ed. São Paulo: Contexto, 1990.
GREIMAS, J. & COURTÉS. Dicionário de Semiótica. São Paulo: Cultrix, 1989, 93,
243,243,150, 207 ps
LANDOWSKI, Eric. A sociedade refletida. Tradução: Eduardo Brandão. São Paulo: EDUC/
Pontes, 1992, 216 p.
MELO, E. M. Discurso midiático, valores em circulação e identidade. In: MELO, E. M.;
PRADOS, R. M. N.; GARCIA, W. Linguagens, tecnologias, culturas: discursos
contemporâneos. São Paulo: Factash, 2008, 17 p.
SILVA, Rafael Souza. Diagramação – O planejamento visual gráfico na comunicação
impressa. São Paulo: Summus, 1985, 147 p.
TEIXEIRA, Lucia. As cores do discurso. Niterói – RJ: EDUFF, 1996, p. 242.
CRITÉRIOS DE AVALIAÇÃO EM TESTES DE PROFICIÊNCIA
A DISTÂNCIA
Evaluation criteria in distance proficiency tests
Simone Correia Tostes (CEP)
RESUMO
Avaliar a fluência oral numa língua estrangeira é reconhecidamente uma tarefa
extremamente difícil (cf. LUOMA, 2004). A inserção de descritores linguísticos no modelo
de verificação e a adoção de situações que visem ao uso da língua para realizar funções
comunicativas possibilitam a avaliação mais ponderada da fluência do falante de LE. Este
trabalho pretende relatar uma experiência positiva de implementação desse método.
Palavras-chave: Avaliação. Proficiência. Descritores. Comunicativo. Oral.
ABSTRACT
To evaluate oral proficiency in a foreign language is acknowledged as an extremely
difficult task (cf. LUOMA, 2004). The insertion of language descriptors in the verification
model and the adoption of situations that lead to the use of language for communicative
purpose enable a more balanced evaluation of a FL speaker’s fluency. This work aims at
reporting a successful experience with this method.
Keywords: Evaluation. Proficiency. Descriptors. Communicative. Oral.
INTRODUÇÃO
Em sua vida cotidiana, o indivíduo é constantemente testado. Desde testes médicos a
testes para verificar a capacidade profissional ou para uma promoção, esses recursos são
sempre critérios valiosos a serem utilizados para assessorar uma decisão sobre a vida ou a
carreira das pessoas. Dentro desse esquema, é espantoso que tão pouco se saiba a respeito do
processo de avaliação concebido de maneira geral (cf. Macnamara, 2000, p. 3). Normalmente,
esse conhecimento é confiado a um grupo seleto de especialistas especificamente designados
para a elaboração e a aplicação de testes.
A complexidade do processo de avaliação da fluência num idioma estrangeiro advém
da própria natureza da tarefa. Trata-se de estabelecer padrões de competência mínimos de
acordo com tarefas e funções comunicativas pré-estabelecidas conforme um dado parâmetro
considerado. Várias tentativas foram feitas para se estabelecerem parâmetros ideais que dêem
conta de toda a gama de habilidades linguísticas do aprendiz de uma língua estrangeira.
Definir o que seja dominar um idioma estrangeiro configura-se como tarefa
extremamente complexa. Por sua vez, essa concepção não pode ser desvinculada dos usos da
linguagem para comunicação em situações cotidianas. O conceito de domínio de uma língua
estrangeira varia de acordo com a natureza das interações que se vislumbra. Num restaurante
ou num balcão de atendimento de passageiros, a amplitude do domínio pode ser bem mais
restrita e simplificada do que a estabelecida para funções diplomáticas, por exemplo. Para esta
última, habilidades como analisar, negociar e convencer vão bem além do simples
fornecimento de informações de escopo restrito que as funções de atendentes de restaurante
ou balcão de passageiros requerem.
No âmbito do Exército Brasileiro, existem algumas tentativas de se estabelecerem
padrões aceitos internacionalmente para descrever os diferentes estágios de fluência num
idioma estrangeiro. Atualmente, tem-se adotado como critérios de avaliação os descritores
linguísticos. Esses permitem que, de acordo com a produção oral evidenciada em interações
comunicativas, o avaliado seja classificado num nível que retrate seu perfil linguístico. Os
descritores foram implementados em avaliações reconhecidas internacionalmente, como os
exames de Cambridge, por exemplo, que se valem dos parâmetros de descritores lingüísticos,
preconizados na Common European Framework of Reference for Languages, publicada pelo
Council of Europe.
No Exército Brasileiro, exames de proficiência oral são realizados pelo Centro de
Estudos de Pessoal (CEP, daqui em diante). Esses exames são, em última instância, os
instrumentos que separam um militar bem sucedido na carreira de missões e cursos no
exterior. Essas oportunidades de aperfeiçoamento profissional coroam uma carreira de
dedicação e competência profissional. Por esse motivo, dominar um idioma estrangeiro tem
sido, há quase duas décadas, a diretriz dos comandantes da Força Terrestre. Ênfase especial é
dada aos idiomas inglês e espanhol: o inglês configura-se como a língua franca
internacionalmente reconhecida, e o espanhol favorece a integração do Brasil com os demais
países do Mercosul.
A experiência com testes de proficiência oral do CEP é pioneira e digna de destaque
por possibilitar verificar aspectos da conversação em língua estrangeira a distância em tempo
real. Apesar de ser uma ferramenta conhecida na área de educação a distância, não existem
registros de uso da videoconferência para a realização de exames de proficiência em língua
estrangeira.
A aprovação no Exame de Proficiência Oral (EPO, daqui em diante) habilita o
profissional no mais alto nível de proficiência linguística reconhecido no Exército. Isso
significa que o aprovado nesse teste possui as habilidades profissionais básicas de utilização
do idioma estrangeiro, sendo capaz de responder a perguntas sobre assuntos variados e
negociar significados, bem como de expor sua opinião sobre diversos temas relacionados ou
não à profissão militar.
JUSTIFICATIVA
Criado em 1965, o CEP possui uma vasta experiência na área do ensino de idiomas a
distância, dentre várias outras especialidades, como os cursos de pós-graduação, realizados
em convênio com várias universidades do Rio de Janeiro. O CEP é o único estabelecimento
de ensino que atende aos militares brasileiros de todas as regiões do Brasil. Realizar o EPO
presencialmente exigiria que o candidato se deslocasse de sua organização militar para o Rio
de Janeiro a fim de realizar a prova. Devido a custos operacionais importantes com
deslocamentos de pessoal, a videoconferência colocou-se como solução mais viável
encontrada. Dessa forma, o candidato necessita tão somente de se inscrever no exame e se
encaminhar para o Comando Militar de Área, sede do exame na sua região. na data e hora
marcadas para a entrevista.
Esse sistema completou cinco anos e provou ter sido uma experiência inovadora na
utilização das tecnologias de informação para avaliação de proficiência oral. Entretanto,
alguns problemas foram detectados com relação ao modo de condução desses exames. Por
esse motivo, no último ano foram introduzidas modificações que possibilitam condições mais
favoráveis de realizar os exames, bem como a aplicação de parâmetros de avaliação mais
adequados.
Esta pesquisa vem atender à necessidade de avaliação e validação do sistema adotado,
indicada em Carvalho et al. (2007). Conforme aponta Macnamara (2000, p. 48), o foco da
investigação sobre validação deve ser sobre os procedimentos adotados. Se esses forem
falhos, as conclusões tendem a ser infundadas. Da mesma forma, a validação de testes
envolve refletir sobre a lógica, particularmente sobre seu formato e intenção, bem como inclui
lidar com dados empíricos, colhidos em situações de administração do teste. Caso contrário,
“sem procedimentos de validação dos testes, existe grande potencial para injustiças” (Ibid.).
Assim, foi realizada uma pesquisa com os indivíduos avaliados neste ano, a fim de
verificar-se o nível de adequação desse novo formato de avaliação após serem introduzidas
modificações com base em observações dos próprios examinadores sobre exames realizados
anteriormente. Os comentários dos profissionais recaíam sobre dois aspectos principais: (1)
insegurança em relação aos critérios de avaliação; (2) sensação de injustiça ao adotar
procedimentos inadequados que refletiam negativamente no desempenho do candidato.
NATUREZA DA AVALIAÇÃO
Para caracterizar a natureza da avaliação, será utilizada a distinção apresentada por
Macnamara (2000), que oferece dois tipos básicos de testes: os do tipo papel-e-caneta e os
testes de desempenho. O autor refere-se ao primeiro como um teste tradicional de perguntas e
respostas, que se destina a avaliar componentes estanques da língua estrangeira, tais como
aspectos de gramática e coesão textual. Por seguirem um padrão que verifica o domínio de
pontos isolados da língua estrangeira, normalmente são os testes que se enquadram no
formato “múltipla escolha” (p. 5). Por serem de fácil administração e controle, são, com
frequência, os mais adotados e não se prestam, portanto, a verificar aspectos produtivos da
competência comunicativa, como a capacidade de persuasão ou negociação, por exemplo.
Os testes de desempenho, dentre os quais se inclui o EPO, são bem mais complexos e
vão ao encontro da definição de competência linguística (cf. Chomsky, 1965, p. 4), que
engloba não apenas a capacidade de dominar aspectos isolados da gramática, mas também de
empregá-los competentemente de acordo com a situação comunicativa que se apresenta. Foi
então que o autor fez a distinção clássica entre competência e desempenho, sendo o primeiro
utilizado para designar a capacidade de aplicar regras internalizadas na gramática universal
dos indivíduos, e a segunda configura-se como a habilidade de utilizar produtivamente esse
conjunto finito de regras linguísticas em um número infinito de possibilidades em situações
comunicativas.
Os testes de desempenho permitem, portanto, a verificação de nuances de linguagem,
não verificáveis em testes de respostas fechadas. Macnamara (op. cit.) estabelece uma
distinção crucial dos testes de desempenho comparados a outras modalidades de testes de
língua – eles avaliam a capacidade de o indivíduo comunicar-se (p. 6). Por esse motivo, são
mais adequados para verificar habilidades produtivas de escrever e falar. Nessa categoria de
testagem, ressalta o autor, “um excerto de discurso mais ou menos longo é elicitado do
examinado e julgado por um ou mais avaliadores treinados usando um procedimento de
avaliação acordado” (Ibid.). Para se atingir a esse objetivo, normalmente utilizam-se tarefas
que o avaliado tenha que desempenhar utilizando a linguagem como ferramenta.
Outro tipo de categorização relevante apresentada por Macnamara (op. cit.) refere-se
ao propósito a que se destinam os testes, fazendo, portanto, a distinção entre testes de nível e
testes de proficiência. O primeiro tipo está diretamente relacionado à atividade de instrução e
normalmente é realizado em momentos pontuais do processo ensino-aprendizagem. Enquanto
testes de nível relacionam atividades passadas e tentativas de mensurar um trabalho
desenvolvido num período de tempo definido, os testes de proficiência tentam realizar um
prognóstico sobre o potencial de uso da língua estrangeira em diversas situações
comunicativas. O critério definido passa a ser, nesse caso, o uso real da língua em situações
futuras (p. 7). Entretanto, esse tipo de avaliação é inevitavelmente influenciado pelo
fenômeno Observer’s Paradox (cf. Labov, 1972), isto é, o fato de ter seu comportamento
observado modifica o comportamento em si de qualquer indivíduo avaliado.
O EPO se assemelha em alguns aspectos ao Oral Proficiency Interview (OPI), que
verifica progressivamente as habilidades de comunicação no idioma estrangeiro tomando-se
por base a caracterização dos níveis de proficiência nas quatro habilidades linguísticas. O
OPI, entretanto, configura-se como um exame que pode ser realizado sem a presença do
examinador, que é, necessariamente, um falante nativo da língua-alvo. Essa flexibilidade
diminui o custo de aplicação de testes presenciais, pois o entrevistador pode, por exemplo,
utilizar-se do recurso de gravação em áudio de perguntas que ensejem uma resposta ou uma
argumentação sobre um ponto de vista. Nesse caso, não se verifica uma efetiva interação entre
o entrevistador e o entrevistado, uma vez que a “conversa” é elicitada através de recursos
artificiais, além de não oferecer a naturalidade de uma conversa real. Por se tratar de um
modelo de exame com mais de um avaliador, o EPO se utiliza do padrão de conceituação
analítica, segundo o qual todos os examinadores avaliam variados aspectos da comunicação
que são, então, enquadrados em escalas de comunicação estabelecidas para cada um dos
aspectos isoladamente.
BASE TEÓRICA
A opção por um ou outro modelo de teste de proficiência está relacionada ao tipo de
verificação que se pretende. As abordagens de ensino e avaliação atualmente mais utilizadas
baseiam-se no modelo de Hymes (1972) de competência comunicativa. Esse conceito foi
introduzido na Linguística Aplicada em contraposição às teorias altamente focadas nas
estruturas gramaticais. Assim, a noção de competência comunicativa enfoca os usuários da
linguagem e os usos linguísticos adequados ao contexto.
Hymes (op. cit.) sugeriu quatro níveis de análise que permitem compreender
regularidades nos usos da linguagem: (1) o nível gramatical, que dá conta de explicar o
sistema de regras da língua; o nível da possibilidade, que inclui restrições de tempo e
processamento; (3) o nível da adequação, que trata do que é apropriado em diversas situações
de uso; (4) o nível do uso, que explica por que determinadas estruturas são mais usuais do que
outras.
Embora tenha sido elaborado para analisar o desenvolvimento da língua materna, esse
modelo tem sido cada vez mais utilizado em contextos de aprendizagem de língua estrangeira.
Essa teoria vem sendo adaptada para dar conta de situações mais concretas como a avaliação,
sendo o padrão de Bachman & Palmer (1996) o mais utilizado nos dias de hoje.
Bachman & Palmer (op. cit.) entendem o uso da linguagem como interação entre
participantes num determinado contexto. Sua concepção de linguagem é constituída de duas
partes: o conhecimento linguístico e a competência estratégica. Dos componentes do
conhecimento linguístico, destacam-se duas categorias principais – o conhecimento
organizacional e o pragmático. Este envolve o relacionamento entre a forma, a intenção do
falante e o contexto; aquele tem a ver com o modo como as falas e textos são organizados.
A competência estratégica, por sua vez, envolve as funções que as pessoas realizam
através da linguagem. Esse conceito passa pelas ideias de Halliday (1976), que identifica as
seguintes funções de uso da linguagem: (a) ideacionais – expressam experiências sobre o
mundo real; (b) manipulativas – visam a ter um efeito sobre o mundo; (c) heurísticas –
estendem o conhecimento das pessoas para o mundo; (d) imaginativas – incluem o uso
criativo da linguagem para fins estéticos ou humorísticos.
Esse entendimento sobre capacidade linguística é altamente favorável como pano de
fundo de avaliações orais em línguas estrangeiras, especialmente para auxiliar com definições
sobre o que se pretende avaliar ou não em determinado procedimento. A limitação do modelo,
entretanto, está relacionada ao seu foco nos aspectos linguísticos da situação de uso da língua,
bem como de sua concepção estática da comunicação, restringindo-se a comportamentos
verificáveis de uso da língua. Por esse motivo, outros aspectos importantes passam a receber
menos ênfase, uma vez que ocorrem na mente do falante.
MODIFICAÇÕES INTRODUZIDAS
Nos 4 primeiros anos de utilização do EPO, os critérios de avaliação foram aplicados
de acordo com parâmetros que mediam, prioritariamente, a quantidade de erros verificados
pela banca examinadora durante a execução da avaliação. De maneira geral, pode-se afirmar
que os examinadores não possuíam em mente a imagem do falante competente em inglês.
Assim, o foco da avaliação recaía sobre o que o candidato era incapaz de realizar, em
detrimento dos aspectos que caracterizavam a capacidade de expressar e realizar funções
comunicativas na língua estrangeira.
Os critérios de avaliação eram distribuídos em cinco: pronúncia/entonação, gramática,
fluência, coerência, vocabulário e compreensão auditiva. Dentro desse esquema, os
professores marcavam em suas planilhas a quantidade de erros que eram evidenciados durante
a entrevista. O resultado desse tipo de avaliação refletia uma disparidade aparente entre a
performance e o resultado final do avaliado. Por vezes, este era totalmente limitado na sua
produção oral, emitindo frases curtas e desconexas, com longas pausas durante sua produção
oral, com limitações de ordem pragmática para realizar o que lhe era solicitado. Entretanto,
devido ao baixo índice de erros gramaticais, de pronúncia ou de coerência, era favorecido no
resultado final e aprovado no exame.
Por outro lado, houve candidatos reprovados no exame que, apesar de demonstrar
visível desenvoltura para se expressar na língua inglesa, exibiam controle mediano de regras
gramaticais, assim como emitiam palavras com pronúncia incorreta. Apesar da frequente
incorreção gramatical, muitas vezes o desempenho desses candidatos superava a do perfil do
candidato descrito anteriormente. Entretanto, como a soma total de pontos concedidos não era
suficiente para atingir a média mínima para aprovação, eles eram reprovados.
Preocupados com tal disparidade de resultados, os professores resolveram fazer
adaptações em função do formato preconizado para a prova. Assim, em vez de fazer
perguntas de nível de produção altamente estruturada desde o início da avaliação, foi inserido
o icebreaker, uma conversa bastante breve que serve para ambientar o aluno ao que será
realizado durante a entrevista, assim como se presta a acalmar aqueles candidatos mais
ansiosos, fazendo com que se sintam mais à vontade durante o tenso momento da avaliação.
Além do icebreaker, foi elaborado um conjunto de questões sobre os possíveis temas
de discussão da prova. Dessa forma, mesmo antes de se iniciar a conversa, o professor
entrevistador dispunha de um rol de perguntas, que evoluíam das mais simples e objetivas
para as mais complexas e subjetivas. Assim, tornou-se possível observar uma progressão no
nível de dificuldade da prova, permitindo aos candidatos de níveis mais incipientes
interagirem com os examinadores, ainda que em nível básico. Consequentemente,
dependendo da evolução do candidato, a entrevista poderia ser interrompida após o primeiro
nível de perguntas, sem causar constrangimentos ao candidato.
Outra modificação introduzida foi o trabalho com descritores linguísticos. Ao invés de
contar a quantidade de erros de cada candidato, os examinadores atribuíram pontos de acordo
com o perfil linguístico demonstrado pelo examinado. Outra modificação introduzida foi a de
designar apenas um entrevistador para interagir todo o tempo com o candidato. Esse
examinador não se encarregaria de atribuir pontos ou avaliar o desempenho do candidato, mas
limitar-se-ia a conduzir a conversa da maneira mais natural e descontraída possível. Com isso,
evitou-se o constrangimento do candidato ao constatar que o examinador toma notas sobre sua
performance ao mesmo tempo em que conversa.
Em síntese, em vez de priorizar-se o tratamento quantitativo dos erros cometidos, os
examinadores buscaram encontrar o perfil que caracterizasse o desmpenho do candidato. Em
vez de quantificar erros, em detrimento da verificação das habilidades linguísticas dos sujeitos
examinados, o foco de atenção deslocou-se para os “acertos”, ou para a competência
comunicativa demonstrada em determinadas funções linguísticas. Com isso, o formulário de
avaliação também mudou, e o resultado disso foi uma interação mais próxima do que seria
uma conversa natural.
COLETA DE DADOS: ENVIO DE QUESTIONÁRIOS
Foram enviados questionários ao total de 155 candidatos inscritos para o exame deste
ano. Destes, 54 foram preenchidos e devolvidos. Vários candidatos deixaram de responder,
pois, apesar de inscritos, explicaram que não puderam comparecer para a realização do
exame. Outro fator que contribuiu para reduzir a quantidade de questionários respondidos se
deve à inoperância de alguns endereços eletrônicos informados.
Comando Militar Cidade Candidatos
CML (Leste) Rio de Janeiro-RJ 76
CMSE (Sudeste) São Paulo-SP 14
CMS (Sul) Porto Alegre-RS 8
CMNE (Nordeste) Recife-PE 12
CMO (Oeste) Campo Grande-MS 11
COTER (Brasília) Brasília-DF 25
CMA (Amazônia) Manaus-AM 9
Total 155
TABULAÇÃO DOS QUESTIONÁRIOS: PRINCIPAIS RESULTADOS
O questionário compunha-se de 3 tipos básicos de perguntas: (a) as que pretendiam
verificar se o candidato havia se preparado para o exame; (b) as que pediam sua opinião sobre
procedimentos e (c) as que solicitavam mais comentários.
Quanto à preparação para a realização do exame oral, 6 afirmaram não ter estudado,
17 consideram que estudaram pouco e 31 declararam ter estudado o suficiente. Com relação
ao comportamento da banca, 35 entrevistados declararam que houve efeito positivo sobre seu
desempenho, 14 declararam que o comportamento da banca não surtiu efeito sobre seu
desempenho e 5 entrevistados declararam que o comportamento da banca teve efeito negativo
sobre seu desempenho.
Do total de entrevistados, 49 consideram que o EPO deste ano se assemelhou a uma
conversa natural. Apenas 5 entrevistados responderam negativamente a essa pergunta.
Dos entrevistados, 44 realizaram o exame pela primeira vez, 9 realizaram pela
segunda vez e 1 realizou pela terceira vez. Nesse universo dos que já haviam realizado o
exame, 8 examinados declararam que os procedimentos adotados na condução do exame
foram mais adequados se comparados aos de anos anteriores. Dentre os motivos apresentados
para essa melhoria, foram apontados os seguintes:
(1) A utilização do icebreaker, conversar inicial com a finalidade de ambientar o
candidato a respeito das fases do exame, bem como para tentar tranquilizá-lo. Esse
aquecimento foi apontado como um fator que faz “brotar” a fluência do candidato para
que o exame transcorra com mais tranquilidade.
(2) O desenvolvimento de um diálogo mais natural em comparação com os procedimentos
adotados em anos anteriores, em que o entrevistador fez perguntas “fechadas” e
demonstrou uma atitude mais “seca”, além de não ter buscado relacionar os tópicos da
conversa.
(3) O uso de situações reais para uso da língua dentro de um contexto. Ao se discutir o
tema, foram propostas atividades de role-play, em que o candidato deveria interagir
com o entrevistador de acordo com um papel que lhe foi atribuído na conversa.
(4) A atitude positiva do entrevistador, que deixou o candidato à vontade e possibilitou
mais desenvoltura na interação.
Apenas 1 dos entrevistados atribuiu evolução positiva do processo à melhora das
condições técnicas dos equipamentos. O nono entrevistado não observou diferenças nas
rotinas adotadas e considerou os procedimentos semelhantes à oportunidade anterior.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O EPO representa um esforço considerável com o intuito de reduzirem-se distâncias
tão grandes num país de dimensões continentais como o Brasil. Consiste numa iniciativa sem
precedentes de valorização do conhecimento e domínio de um idioma estrangeiro pelos
profissionais militares do Exército Brasileiro, com repercussão internacional.
A valorização do conhecimento de idiomas estrangeiros iniciou-se há mais de uma
década, e o reflexo dessas medidas é visível ao constatarmos a melhor preparação e domínio
dos idiomas por parte do jovem oficialato, indo ao encontro das diretrizes emanadas pelos
escalões superiores que consideram o domínio de uma língua estrangeira uma ferramenta
essencial para o exercício profissional militar. A importância que é atribuída às línguas
estrangeiras na carreira militar deve encontrar respaldo nos procedimentos e rotinas de
avaliação.
Os resultados da pesquisa contribuem para a validação de processos e para a melhoria
continuada que os procedimentos de avaliação ensejam. Ao conduzir exames mais próximos
de uma conversa natural e munidos de critérios claros e precisos, os avaliadores encontram
situações mais favoráveis para o processo de avaliação. Em consequência, podem ser mais
justos e obter resultados mais confiáveis.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CARVALHO, K. R. D., FARIAS, G. O., TOSTES, S. C. Exames de Proficiência Oral a
Distância. In: GOMES, J. C. & SCHAFFEL, Sarita Léa. (Orgs.). Formação docente:
diferentes percursos. Rio de Janeiro: Centro de Estudos de Pessoal, 2007, p. 119-131.
CHOMSKY, N. Aspects of the Theory of Syntax. Cambridge, Mass.: MIT Press, 1965.
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HALLIDAY, M. A. K. The form of a functional grammar. In: G. Kress (Ed.), Halliday:
System and function in language. Oxford, OUP, 1976.
HYMES, D. On communicative competence. In: J. B. Pride and J. Holmes (Eds.)
Sociolinguistics. Harmondsworth, Penguin, 1972, pp. 269-293.
LABOV, W. Language in the Inner City. Studies in the Black English Vernacular.
Philadelphia: University of Pennsylvania Press , 1972.
LUOMA, S. Assessing Speaking. New York, Cambridge, 2004.
MACNAMARA, T. Language Testing. New York, Oxford, 2000.
O USO DA LOUSA ELETRONICA NO ENSINO DE INGLÊS COMO
SEGUNDA LÍNGUA: EM QUE ESTÁGIO ESTAMOS?
The use of the electronic board for EFL teaching: on which stage are we?
Adelaide P. de Oliveira (UFBA)
RESUMO
Este artigo tem por objetivo apresentar uma pesquisa sobre o uso da lousa eletrônica
por professores de inglês em um instituto de línguas e a reação dos alunos do Curso de Letras
ao serem apresentados a este novo instrumento. Foram entrevistados três professores e duas
aulas de cada professor foram observadas. A pesquisa utiliza o modelo conceitual de Gibson
para demonstrar que os professores ainda não chegaram ao estágio de transformação do
processo de aprendizagem ao usar a lousa. A reação dos alunos do curso de Letras leva-nos a
refletir sobre o papel da tecnologia no curso superior.
Palavras-chave: Novas tecnologias. Lousa eletrônica. Ensino de Língua Inglesa.
Transformação.
ABSTRACT
This study investigated the use of the e-board by three English teachers at a language
school and the feedback given by university students enrolled in the Language Arts course
when introduced to the new tool. The three teachers were interviewed and each one was
observed twice. Using Gibson’s model of the learning process, it is demonstrated that teachers
have not reached the transformation stage of the learning process when using the e-board.
Language Arts students’ reaction to the new tool leads to reflections regarding the role of
technology in higher education.
Keywords: New technologies. E-board. English language teaching. Transformation.
INTRODUÇÃO
A história nos mostra que novas tecnologias tendem a reproduzir outras já existentes e
levam tempo para ser adequadamente utilizadas pela sociedade. Os primeiros carros, por
exemplo, eram tratados como se fossem puxados a cavalo. Da mesma forma, a primeira
máquina de imprimir, ao invés de tornar livros disponíveis para o público, teve o seu uso
restringido pelas autoridades da época por ser considerada um instrumento herege.
(BURDEN, 2002).
Tal história também se repete na Educação. O computador foi introduzido na sala de
língua inglesa na década de 80. Entretanto, naquela época, ele era apenas utilizado para
reproduzir os textos e tipos de exercícios (Fill in the blanks, Complete the sentences etc) que
eram utilizados em papel. O programa Power Point© ainda hoje é utilizado por muitos
professores como se fosse um retroprojetor. Apenas economiza-se nas transparências. Só
muito recentemente, com o advento dos CD-Roms e da Internet, o computador passou a ter
uma utilização mais transformadora na aprendizagem da língua.
Com a lousa eletrônica não tem sido diferente. Este artigo inclui, primeiramente, uma
breve descrição do modelo conceitual de Gibson (2001) do processo de aprendizagem. A
seguir, há a descrição da pesquisa, as respostas dos professores à entrevista e a análise das
observações das aulas destes professores. Finalmente, oferece uma descrição da reação dos
alunos de Letras, de Língua Inglesa e Literaturas, demonstrando a distância entre esses futuros
professores e a nova tecnologia.
O IMPACTO DA TECNOLOGIA NO ENSINO APRENDIZAGEM
De acordo com Credaro (2001), instituições educacionais como todo tipo de
organização buscam identificar áreas de melhoramento potencial. Entretanto, muitas dessas
reformas não são bem implementadas, resultando em desperdício financeiro, de recursos
humanos e de potencial perdido. Ainda segundo a autora, a mudança pode ser descrita como a
adoção de uma inovação cuja meta é melhorar os resultados através de mudanças de práticas.
Deste modo, não adianta incluir inovações no currículo se a prática continuará a mesma.
Gibson (2001) identifica três estágios de desenvolvimento através dos quais as escolas
passam quando adquirem novas tecnologias.
No primeiro estágio – Infusão, as escolas e o governo estão interessados
principalmente em equipar as salas de aula com hardware e, em menor extensão, com
software. Este é o estágio caracterizado pelas estatísticas e a busca de ser o melhor.
As escolas públicas vão receber 150 mil notebooks (computadores
portáteis) antes do início do ano letivo[...]. A informação foi dada hoje (26) à
Agência Brasil pelo presidente do Serviço Federal de Processamento de
Dados (Serpro), Marcos Mazoni. “Nós teremos ainda, antes deste ano letivo,
várias escolas já com sua rede de computadores disponível. O MEC tem
avançado bastante nesse projeto e nós teremos aí em torno de 150 mil
computadores sendo distribuídos para 300 escolas brasileiras nesse ano de
2009”, afirmou.
A idéia agora é que o governo federal promova parcerias com
estados e municípios para ampliar a base de computadores. “Nós precisamos
chegar a um universo muito maior”, disse Marcos Mazoni. (GRANDA,
2009)
Ou, como divulgou o governo federal em 2007 na sua página Inclusão Digital, “Até
2010, o governo pretende instalar laboratórios de informática em todas as 130 mil instituições
de ensino público do país, um investimento avaliado em R$ 650 milhões.” (INCLUSÃO
DIGITAL, 2007)
Este é um estágio necessário e inevitável para o desenvolvimento e não é negativo, a
não ser que seja visto como um fim em si próprio. A tecnologia por si só não muda a prática,
as pessoas o fazem. No caso da lousa eletrônica, não adianta as escolas comprar o
equipamento se este vai ter pouca influência no processo de aprendizagem e será apenas um
“quadro-negro glorioso” (HARRIS, 2005, p. 65).
As escolas se apressam a comprar equipamentos (ou o governo decide que devem ser
comprados) sem um plano de longo prazo que defina como essa tecnologia vai ser utilizada
para produzir um aprendizado mais eficaz. Segundo Gibson (2001), as principais
características deste estágio são:
Lousas compradas de forma isolada do uso pretendido;
Pouco ou nenhum planejamento para o seu uso através do currículo;
Geralmente colocadas em uma sala especial para reforço de tecnologia já
existente;
Uso pouco frequente;
Pouca ou nenhuma interação com os alunos;
O modo de aprendizagem é predominantemente passivo e o ensino é feito através
de apresentações pelo professor.
Este tipo de uso pode ser identificado em algumas escolas particulares de Salvador,
onde a lousa serve, principalmente, para propaganda (comunicação pessoal de professores de
uma escola particular de Salvador). Em outras escolas pelo país, o uso da lousa reflete o que
antes era feito no papel:
A recepção foi calorosa. “Acabei de entrar no colégio e fiquei
surpresa”, reconhece Gabriela Salvatore Januário, de 11 anos. “Na
aula de português, o professor escolhe um texto na internet e pede
para a gente ir à lousa grifar os substantivos e fazer círculos em torno
dos adjetivos. (VANNUCHI, 2006)
Integração, o segundo estágio, é aquele em que se encontram as duas escolas de língua
inglesa que utilizam as lousas eletrônicas em Salvador. As perguntas que os professores se
fazem no momento são: (a) como integrar o equipamento no processo de ensino e
aprendizagem? (b) como ele pode ser usado para ensinar melhor?
Essa foi uma preocupação no instituto de línguas onde esta pesquisa foi realizada. Os
professores passaram por horas de treinamento de como usar a lousa e, até o presente
momento (as lousas foram adquiridas em 2006), ainda existem professores mais experientes
no uso da lousa que dão oficinas e mini-cursos para treinamento daqueles que ainda não se
sentem confortáveis com o equipamento.
As características deste estágio são:
As lousas estão colocadas em todas as salas de aula;
São usadas para integrar softwares existentes no contexto do currículo;
São usadas para encorajar a participação dos alunos;
Vídeo e outros tipos de hardware estão integrados;
O modo de aprendizagem é interativo e os alunos participam de forma mais
independente.
As atividades preparadas pelos professores do instituto de língua pesquisado vão além
do ‘circular palavras no texto’. Há uma preocupação maior em envolver os alunos na
atividade de forma que a interação entre eles se faça de modo mais natural. Foi observado
durante uma das aulas em que, ao ler as perguntas para discussão na lousa eletrônica, ao invés
de usar o livro texto, os alunos tendem a olhar para o interlocutor enquanto falam e tendem a
falar mais. Quando os alunos utilizam o livro texto, tendem a olhar para o livro em vez de
olhar para o interlocutor, o que dá à conversa uma característica pouco natural.
O estágio que queremos atingir, entretanto, é o estágio de transformação. Este,
segundo Gibson (2001), ocorre quando o equipamento é utilizado para transformar o modo
como se ensina e como se aprende. Associada a isto está a aprendizagem construtivista,
quando os alunos se encontram envolvidos de forma ativa na criação de conhecimento.
Os traços característicos desse estágio são:
Uma maior diversidade de recursos de multimídia unidos em um só equipamento,
por exemplo, vídeo, som, texto;
Material didático produzido para uso específico do contexto do equipamento;
Interação verdadeira entre alunos e equipamento através de atividades feitas para
este propósito;
Ênfase no uso da tecnologia como um meio de construção de conhecimento onde
os alunos podem produzir material que demonstre um profundo entendimento da
matéria e com um fim interdisciplinar.
Para atingir este último estágio, entretanto, é necessário mais do que um treinamento
de como usar a lousa. É imprescindível uma transformação na maneira como o professor
entende o processo de ensino aprendizagem.
O PRESENTE ESTUDO
O contexto do presente estudo é um Instituto de Línguas em Salvador, Bahia, onde o
uso da lousa eletrônica foi introduzido no ano de 2006. Três professores se apresentaram
como voluntários para fazer parte da pesquisa, e os alunos de uma turma de cada professor
também aceitaram a tarefa.
A entrevista foi estruturada de modo a entender como os professores viam o uso da
lousa eletrônica nas suas aulas e até que ponto eles viam diferença nas mesmas. Foram feitas
apenas duas perguntas: (1) Qual o papel da lousa eletrônica nas suas aulas? (2) Que diferenças
você vê nas aulas com o uso da lousa? A pesquisa foi feita durante o primeiro semestre do
corrente ano e os três professores trabalham com a lousa desde 2007. Esses mesmos
professores também fizeram os cursos de treinamento e algumas das oficinas oferecidas pelo
instituto.
Além da entrevista, foram observadas duas aulas de cada professor, num total de seis
horas, para comparar as respostas dadas à entrevista com o que realmente acontece em sala de
aula. Após à assistência de três aulas, os professores discutiram com a pesquisadora sobre as
observações anotadas.
O QUE PENSAM OS PROFESSORES
Todos os três professores são unânimes em afirmar que o uso da lousa fez uma grande
diferença na forma com que ensinam, principalmente porque o livro didático também está
incluído na lousa. Isso faz com que o planejamento da aula se torne muito mais fácil e diminui
o tempo que perdiam antes em achar o texto no CD para as atividades de audição, ou os
vídeos que acompanham o livro didático.1 Além disso, os alunos prestam mais atenção nas
aulas e se interessam mais pelo assunto dado.
O quadro abaixo mostra outras características identificadas pelos professores sobre o
uso da lousa:
QUADRO 1 – Opinião dos professores
As respostas dos professores parecem demonstrar que estão passando pelo estágio 2 de
acordo com a classificação de Gibson (2001). Entretanto, as observações das aulas revelaram
outros aspectos que não foram identificados pelos professores.
DISCUSSÃO DAS OBSERVAÇÕES DAS AULAS
Foram observadas duas aulas de cada professor num total de seis aulas. Todas as
turmas eram do mesmo nível (Pré-Intermediário), e somente uma turma tinha uma maioria de
alunos de idade adulta. Nas demais turmas a idade média era de 14 anos. O número médio de
alunos por turma era de 13.
Em todas as seis aulas, a lousa foi usada durante todo o tempo. Os professores
substituíram o livro didático de papel pelo apresentado na lousa. Desta forma, a maioria das
atividades ficou centrada no professor, naquele que comandava o equipamento. Os alunos, por
sua vez, faziam as atividades nos seus livros.
1 O livro didático utilizado pela instituição é o English File, publicado pela Oxford. O livro vem em formato e-pack, que é específico para o uso com a lousa eletrônica. Atualmente, alguns livros didáticos de ensino de língua inglesa possuem tal recurso.
Opinião dos três professores sobre o uso da lousa eletrônica:
O aprendizado torna-se mais divertido e mais estimulante.
1. A lousa atende a diferentes tipos de estilo de aprendizagem (visual, auditiva, sinestésica).
2. A lousa é apropriada para alunos de todas as idades.3. A lousa ajuda a ganhar tempo.4. A lousa torna a aula mais interativa.
Somente em uma das aulas o professor preparou um jogo de memória que permitiu aos alunos
ir à lousa para interagir com a nova tecnologia e com os colegas.
Ao término das observações, os professores comentaram sobre as aulas e, ao ser
apontado o fato de que parecia que estava havendo uma substituição do livro de papel pelo
livro na lousa, todos se mostraram surpresos. Até aquele momento, ninguém havia se dado
conta de que a lousa estava substituindo o livro didático, ou como dissemos no início deste
artigo, a história se repete: a lousa reproduz o livro didático e a aula continua a mesma. A
conscientização sobre o fato, naquele momento, levou os professores a refletir sobre que tipo
de aula estava sendo, de fato, ministrada e até que ponto o uso da lousa estava contribuindo
para uma aprendizagem mais efetiva.
A REAÇÃO DOS ALUNOS DO CURSO DE LETRAS E ALGUMAS REFLEXÕES
A disciplina Novas Tecnologias no Ensino de Língua Inglesa tem como objetivo
“Familiarizar os alunos com as novas tecnologias aplicadas ao ensino de língua inglesa e
instrumentalizá-los para o uso destas tecnologias” (UNEB, 2005). Assim sendo, além de
apresentar o uso de equipamentos, como DVD, e os diversos recursos do computador,
inclusive a Internet, optamos por levar os alunos até o Instituto de Línguas para uma aula com
a lousa eletrônica. O relato feito aqui diz respeito à primeira turma que se matriculou na
disciplina em 2008.1.2 A turma era composta por 13 alunos.
A primeira reação dos alunos foi de total deslumbramento. Um deles levantou-se e
tocou na lousa como se não acreditasse no que via. Outros comentaram que nunca iriam ter a
oportunidade de utilizar tal equipamento se fossem ensinar em escolas públicas. Ao final da
aula, dois alunos duvidaram que a lousa pudesse fazer diferença nas aulas, mas os outros
2 Esta disciplina é oferecida nos semestres pares; porém, como o laboratório de informática não estava disponível para o curso de Letras em 2007.2, ela teve que ser transferida para o semestre seguinte.
alunos discordaram. Surgiu então uma pergunta que continua sem resposta: “Como os alunos,
que hoje têm aulas com a lousa eletrônica, vão reagir ao chegar à Universidade, onde muitas
vezes as aulas são dadas com o quadro branco e marcador?”
Para os alunos do curso de Letras que, na sua totalidade, estudaram em escolas
públicas, a lousa se apresentou como algo novo e deslumbrante. Entretanto, no futuro, quando
mais e mais escolas particulares adotarem a lousa, o ensino superior se encontrará em
desvantagem no que diz respeito ao uso de novas tecnologias em sala de aula.
Apesar do estágio docente desses alunos ser feito em escolas públicas, isso não
significa que esse é o único tipo de escola na qual eles lecionarão como profissionais. No
momento, temos uma escola que nos permite usar as suas instalações para uma aula
demonstrativa com a lousa eletrônica. Entretanto, isso pode não durar para sempre. Além
disso, quantos outros cursos de Letras com Língua Inglesa oferecem oportunidade aos seus
alunos de se familiarizar com novas tecnologias como a lousa eletrônica? Acredito que está
mais do que na hora de os cursos de formação de professores oferecerem aos seus alunos a
inclusão tecnológica que a educação do século XXI demanda.
A presente pesquisa foi realizada com um número reduzido de professores e de alunos
do curso de Letras. No futuro, o objetivo é o de observar um número maior de professores e o
de analisar, através de entrevistas com alunos, como o uso desse instrumento afeta a
aprendizagem.
A história tem mostrado que novas tecnologias reproduzem, pelo menos no início,
tecnologias já existentes. O uso do computador na educação é um bom exemplo disto. A lousa
eletrônica, que foi introduzida no Instituto de Língua onde esta pesquisa foi realizada, ainda
não atingiu o estágio de transformação proposto por Gibson (2001). Apesar de os professores
acreditarem que suas aulas estão diferentes e que os resultados obtidos têm sido favoráveis em
função do uso do equipamento, a observação das aulas revelou que eles ainda se encontram
no estágio de Integração. Ainda há muito a ser feito sobre o que é ensino e aprendizagem com
o uso da lousa para que seja atingido o nível de transformação desejado.
Quanto à reação dos alunos do curso de Letras, há muitas outras perguntas que
poderiam ser feitas em relação ao uso de tecnologia no curso superior tal como: como está
sendo usada esta tecnologia e em que estágio se encontra a maioria dos professores
universitários? Acredito ser necessária uma reflexão profunda a respeito do assunto, uma vez
que a introdução de novas tecnologias, seja o computador, seja a lousa eletrônica, implica
treinamento e capacitação de docentes, bem como modelos de aprendizagem diferentes
daqueles utilizados até o momento.
REFERÊNCIAS
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and research in the effective use of interactive whiteboards for the FE/HE sector. Centre for
Educational Studies, Institute for Learning, University of Hull, 2002. Disponível em
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learing through educational technology. In: SELINGER, M.; WINN, J. (Eds.) Educational
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GRANDA, Alana. Escolas públicas vão receber 150 mil computadores antes do ano letivo.
Agência Brasil, 26 jan. 2009. Disponível em: http://www.agenciabrasil.gov.br/ noticias/
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14, n. 2, p. 61-68, Apr. 2005.
INCLUSÃO DIGITAL. Governo pretende informatizar todas as escolas públicas até 2010. 2
maio 2007. Disponível em: http://www.inclusaodigital.gov.br/inclusao/ noticia/ governo-
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VANNUCHI, Camilo. O fim da lousa. Isto É on line. 31/05/2006. Disponível em: http://
www. terra. com.br /istoe/1910/especial_proxima_geracao/ 1910_fim_da_lousa.htm Acesso
em: 20 jun. 2009.
UNEB. Ementário do Curso de Letras com Lingua Inglesa e Literaturas, Campus I, 2005.
COMO ESCREVER NO ESPAÇO VIRTUAL? POLIDEZ E IMPOLIDEZ
How to write in the cyberspace? Politeness and Impoliteness
Maria de Fatima S.O. Barbosa (Universidade Estácio de Sá)
RESUMO
Este texto focaliza processos interacionais em ambiente virtual (ou ciberespaço), na
correspondência eletrônica por meio de emails, fóruns ou chats em EAD. Analisa a escrita
virtual, desterritorializada, que implica o domínio das tecnologias de informação e
comunicação – TICs, uma das principais ferramentas do ensino e da aprendizagem a
distância. O estudo alarga as concepções de letramento escolar e de letramento social e as
fronteiras do continuum fala/escrita incluindo a noção do letramento digital. Examina os
princípios de Polidez e de Elaboração da Face no espaço cibernético entre alunos e
professores e entre alunos e alunos de um curso a distância, em que os interagentes se sentem
obrigados a preservar suas próprias faces e as faces dos outros, respeitadas as regras
estabelecidas a priori.
Palavras-chave: Interação. Polidez. Educação a distância. Textos online.
ABSTRACT
This text focuses on online interaction processes through e-mails, forums, or chats in
distance learning. It analyses virtual writing, landless, which implies mastering information
and communication Technologies – ITs, one of the principal tools in distance education. The
study broadens the conceptions of school literacy and digital literacy. It examines the
principles of Politeness and Face Elaboration in the cyberspace amongst students and teachers
and students and other students in a distance learning course, in which the interactors feel
complied to preserve their own faces and other people’s faces, respecting rules established a
priori.
Palavras-chave: Interaction. Politeness. Distance Education. Online texts.
CONTEXTO DA PESQUISA
A Educação a Distância (EAD) é uma modalidade de ensino e aprendizagem em
franca expansão desde o final do século XX. Por ser um método relativamente recente, tem se
mostrado um campo de investigação ainda com muitos pontos por vir à luz, despertando o
interesse de várias áreas do conhecimento que têm empreendido pesquisas e levantado
discussões sobre essa modalidade (Educação, Ciências Sociais, Comunicação, Informática,
dentre outras). É também uma área de muitas divergências teóricas, algumas vezes para
enaltecer, outras vezes, para rechaçar a forma como a EAD vem sendo empregada e
implementada no âmbito das instâncias de ensino.
Nessa perspectiva, o objetivo deste artigo é o de lançar um olhar do ponto de vista da
Sociolinguística Interacional para os processos interacionais provenientes no ambiente virtual
na correspondência eletrônica (e-mails, mensagens em fóruns ou chats, e-mensagens). O
corpus do trabalho é constituído por dados coletados de correspondência entre alunos e
mediadores e entre alunos e alunos de um curso a distância (interagentes, navegadores de
espaço virtual).
As interações virtuais são um fenômeno em efervescência na sociedade
contemporânea. Os sites de relacionamento, os sites de busca, os sites de pesquisas
adquiriram status de grandes empresas tal a quantidade de acessos online. Aos poucos, a
comunicação mediada por computador vai substituindo cartas e bilhetes, até mesmo o próprio
telefone. Marcuschi (2005) ressalta que no espaço virtual
[...] desenvolvemos formas novas de comunicação, principalmente
escrita, passamos a escrever de forma mais aberta, hipertextual,
conectada, multilinguística, utilizando os recursos midiáticos de texto
e imagem, oferecidos por softwares cada vez mais sofisticados, que
incorporam sons e imagens em movimento (MARCUSHI, 2005, p.
33).
Informalmente, os usuários de internet estão se comunicando cada vez mais via email,
blogs, chats, fóruns e listas de discussão. Os fóruns virtuais podem ser constituídos pelos mais
diversos interesses e estar disponibilizados tanto em um sistema fechado, como no caso do
uso ao qual somente alunos e professores da disciplina têm acesso, quando podem estar num
ambiente aberto, como em um site gratuito no qual os interesses variam de acordo com a
conveniência dos participantes. As mensagens são enviadas de um para muitos e são lidas por
todos os que estão na lista.
REFERENCIAL TEÓRICO
Observaremos a interação entre os agentes de um curso em EAD segundo os
princípios de Polidez (BROWN & LEVINSON, 1984). Para Brown e Levinson (1987),
fundamentados na Teoria de Elaboração da Face de Goffman (1967), a interação verbal é uma
atividade eminentemente ameaçadora, e o simples fato de os indivíduos entrarem em contato
entre si já provoca desequilíbrio de faces. Goffman postula que as regras estabelecidas pelo
grupo e a definição de situação orientam os sentimentos ligados à face e os modos como os
sentimentos devem ser distribuídos entre as faces envolvidas.
São também observados os aspectos da (im)polidez online sob os pressupostos de
Culpeper et al.(2003). Com base nos estudos de Brown e Levinson (op. cit.), Culpeper et al
(2003) ressaltam que: (1) para que a impolidez aconteça, é necessário que haja intenção de
ataque à face do ouvinte; (2) as limitações do mundo online podem afetar convenções de
polidez e torna mais difícil para os leitores interpretar a intenção de quem escreve; (3)
determinar a intenção (e impolidez) pode ser difícil no ambiente virtual em que marcadores
prosódicos e pistas não-verbais são de difícil representação.
Os comportamentos inapropriados e (im)polidos numa comunidade de prática mediada
por computador são analisados de acordo com as diretrizes de Graham (2007). O autor utiliza
os termos inapropriado e impolido para demonstrar que, entre um comportamento e outro,
existem gradações. Graham faz uma projeção de que a linha que divide um comportamento do
outro está na intenção do falante, como se segue:
Inapropriado: para identificar comportamentos não-intencionais.
Impolido: para indicar comportamentos cuja intenção do falante é
ameaçar ou atacar a face do ouvinte.
Uma declaração negativamente marcada como intencional é provavelmente
interpretada como impolida, mais do que inapropriada, como podemos verificar na passagem:
“Se um Ouvinte interpreta uma fala marcadamente negativa como intencional, essa fala deve
ser provavelmente interpretada como impolida, em vez de meramente inapropriada”
(GRAHAM, 2007, p. 744).
Sange Lambert Graham (2007) analisou uma comunidade de prática. Utilizando os
conceitos de (im)polidez (CULPEPER, 2002) e de comportamento não-político (WATTS,
2005), concluiu que são necessários comportamentos de polidez online – e-politeness – para
que a interação aconteça satisfatoriamente. Os participantes devem entender o funcionamento
da própria comunidade à qual pertencem, seus códigos, conhecer as normas para um
comportamento apropriado, além de dominar as ferramentas de internet utilizadas na
interação. A não observação de um desses quesitos por um dos membros da lista pode ser
interpretada como ataque à face com intenção e considerada impolidez.
AS INTERAÇÕES NO CIBERESPAÇO
No espaço cibernético, surgem novas configurações para representar o envolvimento
entre os interagentes. De acordo com Santaella (2007), a escrita virtual, desterritorializada,
implica o domínio das tecnologias de informação e comunicação (TICs), um dos principais
fatores de expansão do ensino e a aprendizagem a distância. A escrita hipertextual,
viabilizada pelas TIC, é uma escrita colaborativa, coletiva, na qual vários agentes cooperam
entre si para a produção de um texto significativo (LÉVY,1996). Aqueles que fazem uso dos
recursos multimídias, disponíveis em nossa sociedade, têm a possibilidade de ultrapassar as
fronteiras do continuum fala-escrita (MARCUSCHI, 2005) e podem aumentar a capacidade
de compreensão em outras áreas.
COMPETÊNCIA LINGUÍSTICO-DIGITAL
A competência linguístico-digital pressupõe a competência pragmática (CP) dos
falantes e requer desempenho importante na utilização dos mecanismos digitais dos ambientes
online. Resumimos assim:
CLD = (CP + P)
Onde: CLD (competência linguístico-digital) = (competência pragmática + polidez)
Para obter essa competência, o usuário deve aprender a utilizar as normas digitais de
convivência virtual. Significa, então, apropriar-se das regras de polidez (BROWN &
LEVINSON, 1987), conjuntamente com as regras de polidez online, e-politeness,
(CULPEPER et al., 2003).
LETRAMENTO DIGITAL
O indivíduo que alcança o domínio do letramento digital demonstra competência ao
realizar práticas de leitura e escrita (MOLLICA, 2003) que correspondem a tecnologias da
sociedade grafocêntrica em que estamos inseridos (SOARES, 2006). Semelhanças e
diferenças de habilidades de registros linguísticos escritos, que circulam nos espaços virtuais,
dão a medida da CLD de cada usuário.
A falta de competência linguística digital pode ser um entrave na comunicação do
aluno dentro de um curso em EAD, resultando em consequências, tais como: interpretações
erradas nos eventos comunicativos, frustrações para aluno e mediador, afastamento precoce
do aluno no curso, Atos de Ameaça à Face (AAF), comportamentos impolidos.
O pouco contato face a face requer, num modelo de ensino virtual, estratégias
diferenciadas de interação, que exigem comunicação pela escrita, que pressupõe a utilização
de:
Gêneros virtuais: Emails, post, e-mensagens (messages)
Canais virtuais com fins educativos: Fóruns, Chats, listas de
discussão, correio eletrônico, webpages, wikispace.
Tais gêneros, em novo suporte, sucitam questões que se impõem no processo de
intercâmbio de mensagens no ambiente virtual:
(a) Como comunicar desejos?
(b) Como expor necessidades?
(c) Como interagir?
(d) Que palavras utilizar na comunicação com o professor?
(e) Qual a melhor forma de dirigir-se a alguém por escrito?
Goffman (1967) afirma que as regras estabelecidas, pelo grupo, e a definição de
situação determinam os sentimentos ligados à face e os distribuídos entre as faces envolvidas.
Investigações em práticas comunicativas indicam que, nas comunidades online, as normas de
interação entre os participantes unem-se às normas de polidez para criar um único conjunto de
expectativas.
REGRAS DE POLIDEZ ONLINE
Usuários preestabelecem um acordo tácito de etiquetas comportamentais para a
interação online. Fora do âmbito acadêmico, as regras são conhecidas como netiquetas.
Convencionou-se chamar essas regras de polidez online, de e-polidez, tradução livre
de E-Politeness, termo cunhado por Graham (2007). E-polidez é a tentativa de preservar a
própria face e a face dos outros nas interações e nas correspondências trocadas no espaço
virtual, respeitando as regras de polidez estabelecidas a priori. Muitas dessas regras são
recursos ortográficos, tal como utilizar a caixa alta (letra maiúscula em todo o texto) para
significar que a pessoa está falando alto ou gritando. Examinar os aspectos de polidez nas
interações é uma tarefa complexa, uma vez que percepções desse fenômeno variam de um
indivíduo para outro (Graham, 2007).
Numa interação a distância, os componentes da prosódia apontados por Culpeper et al.
(2003) para representar a fala são, dentre outros, pitch (intonation), loudness, speed and voice
quality. Como esses fenômenos estão ausentes na escrita, há necessidade de se utilizar
recursos paralinguísticos, além dos linguísticos, que deem conta da falta de marcadores
prosódicos presentes na interação face a face. No entanto, o que se percebe é que esses
mecanismos linguísticos nem sempre fazem parte da interação entre os indivíduos. De acordo
com os autores, a prosódia pode ser um importante fator para identificar uma dada declaração
como (im)polida; numa situação onde marcadores prosódicos e pistas não-verbais são
esquecidos, porém, determinar a intenção (condição para que haja impolidez) pode ser difícil.
Refutando a abordagem tradicional binária, Watts (2005) apresenta um modelo de
polidez para comportamento polido/político ou (im)polido e faz duas distinções para
comportamentos numa relação social: comportamento polido marcado positivamente e
comportamento não-marcado negativamente, o qual inclui comportamento impolido,
comportamento rude e comportamento ‘over-polite’. Entretanto, Watts não diferencia
comportamento não-político de um comportamento impolido. Esse enquadre nos permite
interpretar comportamentos ao longo de um continuum que vai do comportamento ‘rude’ até o
comportamento ‘over-polite’.
CONTEXTO/ENQUADRE
O enquadre é uma interação entre aluno e mediador, acontecida em poucos minutos,
dentro de um ambiente virtual de aprendizagem. O aluno não sabe onde achar os ícones que
lhe possibilitam navegar com competência pelo ambiente virtual. Envia, então, mensagem
para o mediador (tutor) que, naquele momento, está online. Os dois iniciam a conversação.
No enquadre, o mediador tenta passar o roteiro de navegação do site para o aluno, que
tem, porém, o interesse mais voltado para os modos de acessar os fóruns, com a finalidade de
identificar as mensagens dos outros colegas. Para atender apenas ao seu desejo, o aluno
comete uma indelicadeza com o mediador, conforme se observa na linha L3, no trecho da
conversa transcrita a seguir.
Trecho da conversa
BREVE ANÁLISE
De acordo com os pressupostos apresentados, é de se supor, na linha 3, a intenção da
aluna cometer um AAF?
L3 (Se/ 2 às 04:1) ALUNA diz: Quero saber dos fóruns (sic).
O ato performativo do tipo imposição imperativa em determinadas situações pode
gerar conflitos. A aluna “atropela” a fala da mediadora e expressa apenas sua vontade. Apesar
disso, a mediadora segue a interação sem ressaltar a indelicadeza que acabou de “ouvir”.
Nesse caso, pode-se inferir que o comportamento do mediador, ao não reagir ao aluno,
configura uma atitude acertada. Pelo fecho de despedida, percebe-se que o aluno nem se dá
conta de que cometeu um ato inapropriado (Graham, 2007), o que confirma a observação de
Culpeper (2003), segundo a qual é difícil delimitar as fronteiras entre impolidez e polidez no
ambiente virtual. No caso de cursos a distância, é importante observar tais comportamentos
porque deles pode depender a permanência do aluno no curso.
Estamos diante da intenção ou não intenção? Pode-se analisar que a aluna não teve
intenção de cometer um ato de ameaça à face? O fecho da conversa leva-nos a inferir que,
embora sem muita delicadeza (então estamos falando dos graus de um ato inapropriado até
chegar a um comportamento rude), o aluno termina a interação de forma amistosa e delicada.
Se o mediador online tivesse interpretado a atitude do aluno como um AAF, a interação
poderia ter tomado outro caminho com consequências negativas.
CONCLUSÃO
Na interação virtual, principalmente em cursos à distância, há de se observar os
mecanismos linguísticos e paralinguísticos, bem como as regras de e-politeness. Nas
interações virtuais, muitas mensagens são mal interpretadas por falta dos recursos linguísticos
da fala presencial. É necessário o domínio da competência linguístico digital para se
perceberem atitudes de ameaça entre os agentes do evento. Nas interações online, é
necessário perceber a atitude (intenção) do interagente, que pode influir no entendimento do
grau de polidez, inscrito nos textos em ambientes virtuais de aprendizagem.
Os recursos paralinguísticos disponíveis no ambiente virtual podem não ser suficientes
para desfazer mal entendidos ou ameaças à face. Nessa perspectiva, percebemos que, para que
a interação online ocorra satisfatoriamente, além de dominar as ferramentas de comunicação e
informação, os interactantes devem ter competência e habilidade linguísticas que possam
auxiliá-los a manter a linha de polidez em alta. Dessa forma, pensando no custo-benefício de
um comportamento impolido numa relação profissional, deixou-se em aberto a questão da
(im)polidez na mensagem da aluna, pois faltou-nos os recursos paralinguísticos que pudessem
certificar que a mensagem carregava em seu conteúdo um ato de impolidez, tal como definida
por Culpeper: “ameaça à face com intenção” (2003, p.1456). Nessa direção, pensar como
trazer os recursos de prosódia para esse contexto torna-se desafio para os estudos liguísticos.
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