revista kriterion - gosto e conhecimento na estética de kant

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REFLEXÃO E FUNDAMENTO: SOBRE A RELAÇÃO ENTRE GOSTO E CONHECIMENTO NA ESTÉTICA DE KANT Pedro Costa Rego* pedrorego@onda.com.br RESUMO A Crítica da Faculdade do Juízo, de Kant, é primordialmente uma investigação crítica acerca de uma certa classe de juízos chamados reflexionantes, que se subdivide em dois grupos, estéticos e teleológicos, e se define em oposição a uma outra classe, a dos chamados juízos determinantes. Nosso objetivo neste artigo é elaborar a hipótese de um privilégio fundacional do juízo reflexionante estético relativamente ao conhecimento determinante. Para tanto, pretendemos cumprir duas etapas. Em primeiro lugar, procederemos a uma análise da conexão entre os temas centrais — e aparentemente dissociados — do belo e da faculdade do juízo enquanto tal que justifica a passagem do projeto de uma crítica do gosto ao de uma crítica do juízo e delimita como alvo da obra o fundamento de determinação (Bes- timmungsgrund) de uma “intersubjetividade” conceitualmente indeterminada. Em segundo lugar, passaremos à análise da relação entre a reflexão e o princípio da finalidade da natureza, com base na Introdução da terceira Crítica, a fim de identificar, na formulação “prática” do princípio do gosto, o germe de uma anterioridade que subordina a determinação à reflexão estética. Palavras-chave Reflexão, Finalidade, Juízo de Gosto, Faculdade do Juízo KRITERION, Belo Horizonte, nº 112, Dez/2005, p. 214-228 * Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do ParanÆ. Artigo recebido em 15/09/05 e aprovado em 15/11/05. Kriterion 112.p65 10/2/2006, 11:32 214

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  • REFLEXO E FUNDAMENTO:SOBRE A RELAO ENTRE GOSTO E

    CONHECIMENTO NA ESTTICA DE KANTPedro Costa Rego*

    [email protected]

    RESUMO A Crtica da Faculdade do Juzo, de Kant, primordialmenteuma investigao crtica acerca de uma certa classe de juzos chamadosreflexionantes, que se subdivide em dois grupos, estticos e teleolgicos, e sedefine em oposio a uma outra classe, a dos chamados juzos determinantes.Nosso objetivo neste artigo elaborar a hiptese de um privilgio fundacionaldo juzo reflexionante esttico relativamente ao conhecimento determinante.Para tanto, pretendemos cumprir duas etapas. Em primeiro lugar,procederemos a uma anlise da conexo entre os temas centrais eaparentemente dissociados do belo e da faculdade do juzo enquanto talque justifica a passagem do projeto de uma crtica do gosto ao de uma crticado juzo e delimita como alvo da obra o fundamento de determinao (Bes-timmungsgrund) de uma intersubjetividade conceitualmente indeterminada.Em segundo lugar, passaremos anlise da relao entre a reflexo e oprincpio da finalidade da natureza, com base na Introduo da terceira Crtica,a fim de identificar, na formulao prtica do princpio do gosto, o germede uma anterioridade que subordina a determinao reflexo esttica.

    Palavras-chave Reflexo, Finalidade, Juzo de Gosto, Faculdade do Juzo

    KRITERION, Belo Horizonte, n 112, Dez/2005, p. 214-228

    * Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Paran. Artigo recebido em 15/09/05e aprovado em 15/11/05.

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  • 215REFLEXO E FUNDAMENTO: SOBRE A RELAO ENTRE GOSTO E CONHECIMENTO NA ESTTICA DE KANT

    ABSTRACT Kants Critique of Judgment is chiefly a critical investigationinto a certain class of judgments identified as reflective, divided into theaesthetic and the teleological sub-classes and defined in opposition to thosetermed by Kant determinant judgments. In this paper I intend to elaborate,in two expositive moments, the hypothesis of a foundational primacy of reflectiveaesthetic judgment over determinant knowledge. Firstly, I analyse theconnection between the main themes apparently dissociated of beautifuland faculty of judgment in order to disclose both the ground of Kants movefrom a Critique of Taste into a Critique of Judgment and the determining groundof a conceptually indeterminate intersubjectivity considered as the main aimof the work. In the next step I investigate the relationship between reflectionand the principle of finality of nature on the basis of third Critiques Introductionin order to verify, through the practical formula of the principle of taste, theaccuracy of the thesis supporting the primacy of aesthetic reflection overdetermination.

    Keywords Reflection, Finality, Judgment of Taste, Faculty of Judgment

    Nosso objetivo neste artigo elaborar, a partir de uma reflexo acerca detemas essenciais da primeira parte da Crtica da Faculdade do Juzo de Kant,a hiptese de um privilgio fundacional do juzo reflexionante esttico relati-vamente ao conhecimento determinante. Para tanto, pretendemos cumprir duasetapas. Na primeira, procederemos a uma anlise da conexo entre os temascentrais e aparentemente dissociados do belo e da faculdade do juzoenquanto tal, que justifica a passagem do projeto de uma crtica do gosto ao deuma crtica do juzo e delimita como alvo da obra o fundamento de determinao(Bestimmungsgrund) de uma intersubjetividade conceitualmenteindeterminada. Em segundo lugar, passaremos anlise da relao entre areflexo e o princpio da finalidade da natureza, com base na Introduo daterceira Crtica, a fim de identificar, na formulao prtica do princpio dogosto, o germe de uma anterioridade que subordina a determinao reflexoesttica.

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  • 216 Pedro Costa Rego

    I

    A terceira Crtica de Kant simultaneamente uma crtica de nosso poderde julgar e uma obra de esttica que trata, em sua parte principal,1 da apreciaoe da criao do belo. Registre-se, no so dois temas elaborados em duassees.2 O caminho pelo qual a obra realiza uma investigao crtica de nossafaculdade de julgar em geral o do privilgio do tema da esttica, assim comoo modo possvel e pertinente, para Kant, de falar do belo perguntando porjuzos sobre o belo e, em seguida, pelo nosso poder de produzir juzos emgeral. Pergunta-se, ento: o que torna essa dupla anlise uma anlisetematicamente una? Qual o tema da terceira Crtica, que unifica o belo e opoder de julgar enquanto tal e exige que a investigao de um se d pela via daanlise do outro?

    O objeto de investigao da parte principal da terceira Crtica o problemade uma certa universalidade e, notadamente, daquilo de onde ela provm enraizada no elemento da subjetividade transcendental, que no fundadae circunscrita por princpios objetivos. Ao sujeito pertence necessria econstitutivamente um poder de se relacionar com objetos no modo de um tipo

    1 Remetemos, aqui, exclusivamente ao testemunho da letra de Kant, na Introduo definitiva da Crtica daFaculdade do Juzo. A Crtica da Faculdade do Juzo Teleolgica, segunda parte da obra, no menosimportante do que a Crtica da Faculdade do Juzo Esttica. Ela apenas no oferece privilegiadamenteuma anlise da [aceito] faculdade do juzo enquanto tal. E isso porque, ainda que atue subsumindo sob oprincpio supremo da faculdade do juzo reflexionante em geral, a saber, o princpio da Zweckmssigkeit,ela procede segundo conceitos, como no conhecimento terico (nach Begriffen verfhrt, wie berall imtheoretischen Erkenntnisse). Subordinada aos princpios pertencentes Erkenntnisvermgen, a Urteilskraftteleolgica no pode gozar do estatuto de objeto privilegiado de uma Crtica que se distingue da primeira,sobretudo por tratar do poder de julgar enquanto tal, e no da sua aplicao no conhecimento objetivo econceitual. Por isso, a posio de Kant a de que ao menos segundo sua aplicao, pertence ela [afaculdade do juzo teleolgica] parte terica da filosofia (ihrer Anwendung nach, gehrt sie [die teleologischeUrteilskraft] zum theoretischen Teile der Philosophie) qual parte a Urteilskraft esttica completamenteestranha, na medida em que, ao referir seu objeto ao princpio da finalidade formal da natureza, a nicaque subsume sob um princpio que a faculdade do juzo pe completamente a priori na base de suareflexo sobre a natureza (welche die Urteilskraft vllig a priori ihrer Reflexion ber die Natur zum Grundelegt). Subsumir esteticamente sob formale Zweckmssigkeit, e no teleologicamente sob objektiveZweckmssigkeit portanto subtrair-se esfera de sujeio dos conceitos de objetos e credenciar-se aoestatuto de tema principal de uma obra crtica acerca do poder de julgar enquanto tal. Cf. KANT, I. Werke inzehn Bnden. Hrsg. Wilhelm Weischedel. Darmstadt, Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1983, Band 8;Kritik der Urteilskraft (doravante citada como CJ), Int., v. III, p. 268-270. Para uma reflexo mais detidaacerca desse ponto, cf. nota 8.

    2 Registre-se: a correspondncia de Kant permite-nos afirmar com segurana que, ao menos at 1788-1789,o esboo da obra em questo o de uma Crtica do Gosto. Mas virada de uma Kritik des Geschmackspara uma Kritik der Urteilskraft no corresponde nem uma desqualificao do problema do gosto nem adeciso por um projeto de justaposio de temas desconexos. O que mobiliza a passagem a evidncia deuma coerncia interna que faz do juzo reflexionante esttico uma privilegiada via de acesso ao poder dejulgar como tal, a essa faculdade que em juzos determinantes tericos, prticos e em juzos estticosempricos renuncia, de certa forma, sua prpria autonomia judicativa. o que ser visto. Sobre acorrespondncia de Kant, cf. Kants gesammelte Schriften. Preussische Akademie der Wissenschaften.Berlin: Walter de Gruyter, 1942, X, p. 505 (Carta a Reinhold, 7 de maro de 1788).

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  • 217REFLEXO E FUNDAMENTO: SOBRE A RELAO ENTRE GOSTO E CONHECIMENTO NA ESTTICA DE KANT

    de ajuizamento cujo fundamento de determinao, apesar de universalmentevlido e, portanto, universalmente comunicvel, no garante para essa relaoo estatuto da objetividade por se tratar ele de um princpio conceitualmenteindeterminado. A investigao de tal universalidade subjetiva se traduz comocrtica da faculdade de julgar no mesmo movimento pelo qual a ela pertence aEsttica kantiana como pergunta pelo juzo de gosto sobre o belo. A questopreliminar que se impe portanto a de esclarecer o modo como se estabelecemessas duas relaes. 1) A relao entre universalidade judicativa subjetiva e aEsttica kantiana e 2) a relao entre universalidade judicativa subjetiva efaculdade de julgar (Urteilskraft), tomadas em conjunto, revelam a relaoentre a faculdade do juzo como tal e o juzo de gosto. Em suma, explicam porque a crtica da Urteilskraft fundamentalmente uma Esttica. Seja, ento, aprimeira relao mencionada.

    A terceira Crtica parte da constatao exposta no livro inicial da seoque abre a primeira parte da obra, intitulado Analtica do Belo de que umcerto uso judicativo supe determinadas condies que no so as mesmasque fundam nossos juzos objetivos e a maioria dos nossos juzos subjetivos.Por juzos objetivos entende Kant, at sua investigao na terceira Crtica,juzos de validade universal. Objetividade e universalidade se confundem namedida em que 1) um juzo objetivo um juzo fundado em conceitos doentendimento ou da razo; 2) as categorias, como formas de conceitosempricos, e as idias da razo so elementos pertencentes subjetividadecomo tal; 3) juzos que tm como fundamento de determinao princpiospertencentes a priori subjetividade so vlidos para todos os sujeitos. Quetodo juzo objetivo seja universal, isso jamais ser problema para Kant. O que,entretanto, a anlise do gosto revelar impreciso ser a formulao completaat ento vlida para a relao entre a objetividade e a universalidade do juzo:a saber, que universalidade seja condio necessria e suficiente para aobjetividade de um juzo.

    Por juzos subjetivos entende Kant, tambm at a terceira Crtica, juzosde validade meramente privada. Subjetivismo e validade privada confundem-se na medida em que 1) um juzo subjetivo tem como fundamento dedeterminao (Bestimmungsgrund) uma inclinao do sujeito isto , arepresentao de um fim atravs do qual a razo, a servio da inclinao,determina a faculdade da apetio (Begehrungsvermgen) do sujeito; 2) finsdeterminados sob a influncia das inclinaes jamais podem ser consideradoselementos pertencentes subjetividade como tal; e 3) juzos fundados emprincpios que s contingentemente pertencem ao sujeito podem ser vlidosapenas para sujeitos particulares. Jamais, para Kant, haver problema em relao

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    classificao dos juzo de validade privada como subjetivos. Mas o que aanlise do gosto revelar impreciso a formulao completa at ento vlidapara a relao entre subjetivismo e validade privada do juzo: a saber, que osubjetivismo seja uma condio necessria e suficiente para que a um juzoseja atribuda uma validade meramente privada.

    Kant identifica no uso judicativo do predicado belo determinadascondies que, podendo ser expostas e deduzidas, provam que: 1)universalidade uma condio necessria, mas no suficiente, para garantir aobjetividade de um juzo e 2) subjetivismo uma condio necessria, masno suficiente, para condenar um juzo a uma validade meramente privada. AAnaltica do Belo expe comparativamente as caractersticas de um juzoque, se for o que parece ser, universal sem ser objetivo e subjetivo sem serprivado. Se tudo se confirmar, universalidade e subjetivismo no so maisincompatveis. Que tudo se confirme significa: que uma deduo seja capazde fundamentar a exposta e analisada reivindicao de universalidade de umjuzo que no se funda em conceitos objetivos, mas em um sentimento deprazer. Fundamentar a pretenso de universalidade erguida pelo uso habitualdo predicado belo indicar no elemento da subjetividade como tal ofundamento de determinao no-objetivo de tal uso judicativo. Se isso nofor possvel, o juzo de gosto no se diferencia do juzo de agradabilidadeprivada e no h argumento contra a tese do empirismo esttico. Se for possvel,no mais preciso aderir insensatez racionalista de um gosto lgico edemonstrvel para mostrar que os prazeres estticos no so todos iguais. Emsuma, a relao entre universalidade subjetiva e juzo de gosto uma relaoreivindicada. A Analtica da Faculdade do Juzo Esttica uma exposioda reivindicao de universalidade subjetiva que apenas o juzo de gosto erguee uma deduo do direito do uso dessa reivindicao.

    Clara a relao entre juzo de gosto e validade universal subjetiva, passamos segunda relao mencionada. Como se explica que essa universalidade,desvendada privilegiadamente pela via de uma Esttica, diga respeito tointimamente faculdade do juzo como tal, a ponto de a terceira Crtica no sechamar nem crtica do juzo de gosto, nem crtica da universalidadesubjetiva, mas sim crtica da faculdade do juzo?

    Acreditamos que a resposta se formula nos seguintes termos: Kant intentasustentar a pretenso de universalidade erguida pelo juzo de gosto mostrandoque h um fundamento intersubjetivo para um certo tipo de juzo esttico eque esse fundamento justamente a prpria faculdade do juzo (Urteilskraft).O juzo de gosto sobre o belo teria essa particularidade relativamente aos juzosobjetivos e estticos empricos: a saber, que nele, a faculdade do juzo no

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  • 219REFLEXO E FUNDAMENTO: SOBRE A RELAO ENTRE GOSTO E CONHECIMENTO NA ESTTICA DE KANT

    atua apenas como poder de ligao de representaes, mas tambm comoprincpio, fundamento de determinao sob o qual as representaes em questoso ligadas. Em outros termos, no belo, a Urteilskraft subsume sob ela mesma,e no sob um conceito do entendimento, uma idia da razo ou a representaode um fim patolgico. Subsumindo sob si como sob o poder de julgar elemesmo (das Vermgen zu urteilen selbst),3 a Urteilskraft instaura, entre aunidade do sujeito e um conjunto de representaes intudas, um domnio derelacionamento universalmente vlido que, entretanto, no envolve um processode constituio lgica de objetos. Eis a universalidade subjetiva que interessaao Kant da terceira Crtica: a universalidade de um juzo que tem comofundamento de determinao no um conceito, mas o poder de julgar enquantotal. Sendo esse juzo justamente o juzo de gosto sobre o belo, fica explicada arelao entre universalidade subjetiva, juzo de gosto e faculdade dojuzo, e compreende-se no mesmo movimento por que a Esttica de Kant aparte principal de uma obra chamada crtica da faculdade de julgar Tantonosso poder de julgar como tal quanto a universalidade indemonstrvel queele patrocina quando no atua a servio da razo terica e da razo prtica seoferecem privilegiadamente a uma investigao crtica, quando colocamos sobanlise o juzo de gosto sobre o belo.

    Isso posto, trata-se de acompanhar Kant na decomposio analtica dessejuzo (o juzo de gosto) nos seus elementos constitutivos, a fim de compreendera natureza de seu fundamento de determinao e no que consiste o registro deuniversalidade subjetiva a que ele d acesso. A hiptese que procuramosdefender a de que ao juzo de gosto sobre o belo, em virtude de seu fundamentode determinao e do registro de universalidade subjetiva que ele delimita,pertence um privilgio fundacional em relao aos juzos de conhecimentoem geral.

    3 Cf. CJ, 35, p. 381. Eis o desdobramento analtico dessa tese de Kant, esboada no 9 e apresentadadefinitivamente no 35 da CJ: o juzo de gosto sobre o belo tem como princpio de subsuno uma certaafinao (Stimmung) subjetiva entre a faculdade do entendimento e a faculdade da imaginao. EssaStimmung caracterizada como uma condio subjetiva do uso da faculdade do juzo para um conhecimentoem geral. Mas a condio subjetiva de todos os juzos o prprio poder de julgar (das Vermgen zuurteilen selbst), ou a faculdade do juzo (Urteilskraft). Desse modo, o poder de julgar enquanto tal que sefaz sensvel, isto , esteticamente acessvel por ocasio de uma representao a que aplicamos o predicadoda beleza. A Stimmung formal e indeterminada entre a faculdade ativa dos conceitos, o entendimento, e afaculdade das intuies (ttulo que merece a faculdade da imaginao na terceira Crtica, e no a dasensibilidade), afinao ou disposio vivificada no encontro com o belo, aquilo pelo qual nos tornamosconscientes do nosso poder de ligar conceitos a intuies. Tornamo-nos assim conscientes no daconsumao de um conhecimento, mas apenas do poder de julgar cognitivamente, da nossa faculdade dojuzo como possibilidade de conhecimento. Em suma, no juzo de gosto, a Urteilskraft como condiosubjetiva do conhecimento o fundamento de determinao de seu prprio uso e o princpio de instauraode um registro de universalidade meramente subjetiva.

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    Kant fornece na CJ basicamente trs formulaes para o princpio do juzode gosto puro: chamamos epistemolgica, segundo a qual ele uma afinao(Stimmung) subjetiva das faculdades do entendimento e da imaginao;chamamos reflexiva, que o caracteriza como o prprio poder de julgar ou afaculdade do juzo; e chamamos prtica, segundo a qual ele o princpioda finalidade (Zweckmssigkeit) formal da natureza em relao nossafaculdade de julgar. Reservamos para outra ocasio a explicao nossos e ainteressante discusso acerca do sentido de unidade dessas trs formulaesaparentemente dissonantes. Trabalharemos aqui fundamentalmente com altima, apresentada formalmente na Introduo definitiva da CJ e poucoelaborada ao longo da Analtica do Belo. Acreditamos que, a partir dela, sedeixa elaborar uma anlise preparatria que s pode se consumar nodesdobramento das acepes epistemolgica e reflexiva do princpio do gosto.Em uma frase: trata-se aqui da elaborao preliminar do argumento de umprivilgio fundacional do juzo de gosto sobre o belo com base em seu carterreflexionante, decorrente da caracterizao de seu fundamento como o princpioda Zweckmssigkeit. Nosso caminho ser analisar a relao entre reflexo e oprincpio da finalidade da natureza, com base na Introduo da terceira Crtica,a fim de identificar, na formulao prtica do princpio do gosto, o germe deuma anterioridade que subordina a determinao reflexo esttica.

    II

    A terceira Crtica pronuncia-se acerca dos juzos e de nosso poder deproduzi-los logo no item IV da Introduo, nos termos de uma definio: Afaculdade do juzo em geral o poder de pensar o particular como contido sobo universal.4 A esse pensamento chama-se subsuno. O juzo como subsunoapresenta-se, ainda segundo a Introduo, em dois modos bsicos, odeterminante e o reflexionante, que so assim explicitados:

    Se o universal (a regra, o princpio, a lei) dado, a faculdade do juzo que nele subsumeo particular determinante (bestimmend). Porm, se s o particular for dado, para oqual ela deve encontrar o universal, ento a faculdade do juzo simplesmentereflexionante (reflektierend)5 .

    O critrio que permite a diviso dos juzos em determinantes ereflexionantes a presena dada de um universal. Isso significa que a falta de

    4 CJ, Int., IV, p. 251.5 Idem.

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  • 221REFLEXO E FUNDAMENTO: SOBRE A RELAO ENTRE GOSTO E CONHECIMENTO NA ESTTICA DE KANT

    um universal dado no impede ou descaracteriza o juzo como subsuno doparticular sob um universal. No havendo um universal dado, pode haverjuzo, a saber, apenas reflexionante e nunca determinante. Mas pergunta-se:como possvel subsumir, vale dizer, pensar um particular como contido sobum universal sem que haja um universal? Enfim, o que um juzo reflexionante?

    O texto da Introduo esclarece:

    A faculdade de juzo determinante, sob leis universais transcendentais dadas peloentendimento somente subsume. A lei lhe indicada a priori e ela, por isso, noprecisa pensar para si mesma uma lei de modo a poder subordinar o particular nanatureza ao universal. (grifo nosso)

    Por excluso podemos ento inferir: a faculdade do juzo reflexionantedistingue-se da determinante por uma tarefa com a qual somente ela anda svoltas. Porque falta-lhe o universal sob o qual subsumir, porque faltam-lheleis universais transcendentais dadas pelo entendimento,6 ela, alm desubsumir, precisa pensar para si mesma uma lei que lhe permita descobrir umo universal sob o qual h de subsumir seu objeto. A faculdade do juzoreflexionante vive, assim, s voltas com uma dupla tarefa. em virtude daprimeira delas que ela se chama reflexionante, ou simplesmente no-determinante, justamente a tarefa de que a determinante se v dispensada, asaber, a tarefa de pensar para si mesma uma lei. Pensada essa lei, a faculdadedo juzo conduzida para diante de princpios universais7 que antes faltavam.Agora, se eles no mais faltam, a faculdade do juzo no precisa mais refletir.A segunda tarefa, a de subordinar o particular na natureza ao universal,encontrado pela via da reflexo, j no mais, a rigor, uma tarefa reflexionante.

    O que, ento, caracteriza essencialmente a faculdade do juzo reflexionante a mencionada lei que ela pensa para si mesma. Mas no que consiste

    6 Nessa formulao inicial, Kant parece descrever a faculdade do juzo determinante como aquela quesubsume, exclusivamente no registro terico-cognitivo, sob as categorias do entendimento como princpiosque contm a regra de ligao do que os objetos so. Convm observar, entretanto, que no so apenasleis transcendentais dadas pelo entendimento que atuam como Bestimmungsgrund em juzosdeterminantes. tambm determinante o juzo que subsume sob leis fornecidas pela faculdade da razo,e, em geral, sob leis que contm a regra objetiva da ligao daquilo que os objetos devem ser, vale dizer,leis prticas, e no apenas leis tericas relativas ao que os objeto so.

    7 Observe-se que os princpios universais para diante dos quais a faculdade do juzo eventualmenteconduzida pela reflexo no so aquelas leis transcendentais dadas pelo entendimento. Quando no seesgota na sua dimenso esttica, a atividade reflexionante, que o pensamento de uma lei orientado nosentido da descoberta de universais para os particulares, conduz a faculdade do juzo para a descoberta deleis empricas reguladoras do funcionamento especfico de formas da natureza que permanecemindeterminadas em seu funcionamento e organizao mesmo quando pensadas sob as categorias doentendimento. Em outras palavras, quando a reflexo alcana seu telos, a faculdade do juzo progride, pelarenovada descoberta de leis empricas particulares (subordinadas aos conceitos puros do entendimento),na direo da unidade completa da natureza como sistema.

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  • 222 Pedro Costa Rego

    propriamente o juzo de uma faculdade de julgar que precisa pensar para siuma lei para poder subsumir? Vimos que, uma vez pensada a lei e, porconseguinte, descoberto o universal para um particular dado, a tarefa dafaculdade do juzo determinante; ela simplesmente subsume, visto que ouniversal finalmente est dado. Mas se julgar subsumir o particular sob umuniversal, no que consiste julgar de modo exclusivamente reflexionante? Seainda no h universal nenhum dado, se a faculdade do juzo reflexionanteest justamente s voltas com o pensamento de uma lei para, a partir disso,descobrir um universal sob o qual subsumir, como pode ela, enquantoreflexionante, julgar? No que consiste um juzo reflexionante? No somoslevados a crer que ou bem se reflete, ou bem se julga? Como refletir pode ser,ao mesmo tempo e no mesmo sentido, julgar, de tal modo que haja umpensamento do particular como contido sob um universal... reflexionante?

    Se reflexo, ao lado de determinao, modalizao do ato de julgar,ento a faculdade do juzo reflexionante no apenas pensa uma lei e busca umuniversal. Ela, enquanto reflexionante, subsume. Para isso, foroso que eladisponha de um universal. A rigor, no existe o pensamento de um particularcomo contido sob um universal, isto , um juzo, sem que haja um universal.Kant chama de princpio ou fundamento de determinao o universal sob oqual a faculdade do juzo subsume um particular. Pergunta-se: qual o princpioou fundamento de determinao (o universal) do juzo reflexionante, vistoque, apesar da problemtica definio supracitada, ele precisa ter um, de algummodo dado, se ao menos merece o estatuto de juzo?

    A afirmao de que a faculdade do juzo reflexionante no dispe de umuniversal dado no pode implicar que o juzo reflexionante no tenha princpio.Simplesmente, seu princpio aquele que, na ausncia de um universal dado,a faculdade do juzo pensa para si. O princpio da faculdade do juzoreflexionante a mencionada lei que ela pensa para si mesma com vistas a serconduzida para diante de leis empricas do funcionamento especfico de formasda natureza. Mas se reflexionante uma qualificao de juzo, ento, nomovimento mesmo pelo qual a faculdade do juzo pensa para si uma lei,subsume ela um particular sob essa lei. O juzo reflexionante a referncia deum dado qualquer ao princpio pensado pela prpria faculdade do juzo comvistas a descobrir universais dados, isto , lei empricas da natureza, esubsumir certas formas especficas da natureza sob eles.

    Se tudo for assim, o princpio supremo da faculdade do juzo reflexionante uma estratgia e uma condio para a subsuno determinante. Para podermosdeterminar formas especficas da natureza sob determinados princpiosuniversais, quando faltam esses princpios, precisamos refletir, isto , pensar

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  • 223REFLEXO E FUNDAMENTO: SOBRE A RELAO ENTRE GOSTO E CONHECIMENTO NA ESTTICA DE KANT

    essas formas, antes de mais nada, sob um princpio que no um universaldado, que no uma lei emprica, mas sim uma lei que condiciona apossibilidade da descoberta de leis empricas e juzos determinantes. Esseprincpio que condiciona, de um modo ainda um tanto enigmtico, apossibilidade de juzos determinantes o princpio ou a lei que a faculdade dojuzo, enquanto reflexionante, pensa para si prpria e o fundamento dedeterminao de juzos chamados reflexionantes em geral.

    Temos portanto que, j na caracterizao inicial dos juzos reflexionantesem geral, fica sugerida sua anterioridade em relao a um certo tipo deconhecimento. O conhecimento das leis empricas da natureza depende, numcerto sentido, funda-se, num certo sentido, no ato reflexionante, e, portanto,no seu princpio judicativo. Kant quem apresenta, ainda nesse restrito domniode tematizao, um privilgio fundacional da reflexo em relao determinao cognoscitiva. Por conseguinte, se levarmos em conta que afaculdade do juzo esttica, e no a teleolgica, que paradigmaticamenteresponde pelo princpio da reflexo em geral,8 ento podemos dizer que o

    8 Sobre esse privilgio, Kant assim se pronuncia: Numa crtica da faculdade do juzo, a parte que contm afaculdade do juzo esttica aquela que lhe essencial, porque apenas esta contm um princpio que afaculdade do juzo coloca inteiramente a priori na sua reflexo sobre a natureza, a saber, o princpio de umaconformidade a fins formal da natureza segundo suas leis particulares (empricas) para a nossa faculdadede conhecimento, conformidade sem a qual o entendimento no se orientaria naquelas (CJ, Int. VIII,p. 268). Os juzos reflexionantes no tm todos a mesma natureza e os mesmos fins. Essa diversidadepermite a Kant classific-los em dois grupos: o dos estticos e o dos teleolgicos. Se a condio dereflexionante, e por conseguinte, a presena do princpio da Zweckmssigkeit e a conformidade a umainteno cognoscitiva, no os identifica, porque o juzo reflexionante teleolgico, diferena do esttico, um juzo de conhecimento; o juzo de conhecimento de um telos. Ele , portanto, um juzo conceitual. Aletra da Introduo assim o caracteriza: A faculdade de juzo teleolgica [...] procede, como sempre aconteceno conhecimento terico, segundo conceitos [...]. Por isso, segundo a sua aplicao, pertence parteterica da filosofia... (CJ, Int., VIII, p. 270). Reflexionante e no entanto... juzo de conhecimento. Nostermos de Jacques Taminiaux, h uma quase-objetividade nesse juzo (il y a une quasi-objectivit de cejugement), explicada pelo fato de que o juzo reflexionante teleolgico, ainda que no fornea conceito doobjeto, pelo menos orientado para a natureza... (jugement rflchissant tlologique, encore quil nefournisse pas de concept de lobjet, est du moins orient sur la nature...). (TAMINIAUX, J. La Nostalgie dela Grce lAube de lIdalisme Allemand. La Haye: M. Nijhoff, 1967. p. 34). Tudo indica que um mesmojuzo no pode ser ao mesmo tempo reflexionante e conceitual (supondo que aqui, a despeito de todaflutuao terminolgica da CJ a esse respeito, no se trata do conceito da finalidade). Mas ele pode fazerda subsuno reflexionante indeterminada uma etapa da determinao funcional. Ele pode, portanto, diferena do esttico, j dispor de uma determinao conceitual da natureza do objeto julgado, e se propora determin-lo, com o uso da reflexo, do ponto de vista de sua funo em um todo sistemtico. A reflexo, aqui, uma atividade que no tem seu fim nela mesma. Ela um instrumento utilizado no conhecimentodeterminado da funo de um organismo, e nesse conhecimento ela se esgota. Enquanto instrumento, areflexo do juzo teleolgico por si s no satisfaz. Refletindo para determinar, o juzo teleolgico usa dereflexo a contragosto, no v gosto algum em refletir e estaria mais vontade na parte terica da filosofia,ao lado daqueles juzos chamados determinantes, pelos quais eu me decido sem rodeios pela verdade.(KANT, I. Werke in zehn Bnden. Hrsg. Wilhelm Weischedel. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft,1983. Logik ein Handbuch zu Vorlesungen. Band 5, p. 504) para esse sentido que apontam asconsideraes de Kant, na Introduo, acerca da teleologia: a Urteilskraft teleolgica aquela que somenteutiliza o conceito da finalidade para refletir sobre os produtos da natureza no respeitante conexo dosfenmenos na natureza (CJ, Int., p. 253), como fio condutor de investigao da natureza (CJ, Int., II,

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    mencionado privilgio fundacional antepe, nos limites da caracterizaoapresentada, o juzo de gosto ao conhecimento emprico.

    Kant apresenta o princpio dos juzos reflexionantes nos seguintes termos:Tal princpio no pode ser seno este: como leis universais da natureza tm seufundamento em nosso entendimento, que as prescreve natureza (ainda que somentesegundo o conceito universal dela como natureza), as leis empricas particulares, noque diz respeito quilo que nelas deixado indeterminado pelas leis universais danatureza, precisam ser consideradas segundo uma tal unidade , como se um entendimento (ainda queno o nosso) as tivesse dado, com vistas nossa faculdade deconhecimento para tornar possvel um sistema da experincia segundo leis da naturezaparticulares. No que desse modo um tal entendimento tivesse realmente que seradmitido (...)9 .

    Algumas linhas adiante, o princpio em questo finalmente batizado:finalidade da natureza, conformidade a fins da natureza, Zweckmssigkeit. Oque a faculdade do juzo, em sua verso reflexionante, precisa pensar para simesma com vistas a superar o estgio reflexionante em que ela se encontra ese tornar determinante, isto , subordinar o particular na natureza ao universal, uma tal unidade (solche Einheit). Trs elementos pertencentes a estaapresentao inicial do princpio da finalidade da natureza merecem algumasconsideraes.

    O primeiro deles o fato de que a unidade pensada tem o aspecto de umentendimento. Ela precisa ter tal aspecto justamente porque a faculdade dojuzo reflexionante reflete com vistas ao conhecimento. Se o que move suaatividade reflexionante a perspectiva da determinao cognoscitiva, ela spode refletir sob o pressuposto de que as mltiplas formas empricas da naturezaso acessveis ao nosso entendimento cognoscente. Diante do fato de que elasainda no o so, razo pela qual refletimos, reflete a faculdade do juzo sob ahiptese de que elas apenas ainda no estejam acessveis. A hiptese de queelas ainda no esto acessveis ao nosso entendimento a hiptese de que elasso acessveis e conformes ao entendimento que o nosso ainda no , mas na

    p.181/139-140. A ltima numerao da traduo de Rubens R. Torres Filho: Duas Introdues Crtica doJuzo. So Paulo: Iluminuras, 1995) e com vistas ordenao final (conforme a fins) da natureza em umsistema da experincia (CJ, Int., V). Enfim, se da reflexo teleolgica subtrairmos o seu telos, entenda-seaqui, o objetivo epistemolgico com que se emprega o princpio da finalidade e no esse princpiomesmo como um pressuposto , estaremos subtraindo o que a torna objetiva, a submete ao controleexclusivo do entendimento e a encerra na parte terica da filosofia. Acreditamos que tudo isso nos confereo direito de considerar o juzo reflexionante esttico, ou o juzo de gosto, caso paradigmtico da reflexo naCJ e concentrar em torno dele o eventual privilgio que a reflexo em geral e seu fundamento de determinaoapresentarem relativamente aos juzos conceitualmente determinados.

    9 CJ, Int., IV, p. 253.

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    direo do qual o nosso entendimento aspira. Esse entendimento no o nosso,mas se ele no for um entendimento, superior ao nosso, referncia ideal para onosso e, portanto, hipottico, o pensamento que o pe como princpio dereflexo no servir em nada para aquilo com vistas a que a reflexo reflete, asaber, nosso conhecimento. somente o estatuto de um entendimento quetorna essa unidade pensada pela faculdade do juzo reflexionante algo favorvel(zum Behuf) nossa faculdade de conhecimento para tornar possvel umsistema da experincia segundo leis da natureza particulares.

    O segundo elemento concerne ao fato de que a unidade que a faculdadedo juzo reflexionante pensa para si, sob a qual ela judicativamente subsumeseus objetos e que tem o aspecto de um entendimento superior, apresentadacomo a unidade de um como se. Note-se que o princpio do juzo reflexionanteno uma unidade hipottica. No como se houvesse uma unidadejudicativa, como se o juzo reflexionante tivesse um princpio. Ele, de fato,o tem e sob ele, de fato, subsume. O que, entretanto, caracteriza esse princpiode fato existente e atuante que aquilo que ele de fato afirma uma hiptese.Subsumir sob um princpio hipottico no , aqui, subsumir sob a hiptese deque h um princpio. A rigor, esta ltima formulao no tem sentido, porquebasta admitirmos que haja subsuno para que a presena de um princpio sejaum fato e no uma hiptese. Kant explica o como se da Zweckmssigkeitnos seguintes termos: o princpio da finalidade uma idia que serve deprincpio (eine Idee, die zum Prinzip dient); um princpio subjetivo (subjektivesPrinzip); uma unidade normativa pensvel, mas imperscrutvel (nicht zuergrndende aber doch denkbare gesetzliche Einheit); , finalmente, umprincpio pressuposto (vorausgesetzt), admitido (angenommen), com vistas aum uso (Gebrauch) em que a faculdade do juzo nada prescreve (vorschreibt),nada acrescenta (beilegt) natureza de modo determinante, mas apenas refletesobre ela (zum Reflektieren, nicht zum Bestimmen). O final do item V daIntroduo rene todas essas caractersticas em torno de um termo constitudoa partir da lngua grega: heautonomia. O princpio da finalidade da natureza,que no um entendimento superior mas a hiptese de um entendimentosuperior em relao ao qual a natureza final, um princpio heautnomoda faculdade do juzo. Isso significa: um princpio que a faculdade do juzotira de si mesma heautou e confere a si mesma heauto. Tirar de simesma, conferir a si mesma, utilizar, admitir, servir-se de, pressupor; o comose da finalidade diz que a natureza na multiplicidade de suas formas pode oubem ser conforme a um entendimento ou bem no o ser; mas diz, sobretudo,que ns teremos que nos comportar em relao a ela apostando nessaconformidade se, e somente se, estivermos comprometidos com a tarefa de

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    conhec-la exaustivamente. O princpio hipottico, heautnomo e subjetivoda finalidade da natureza , assim, um pressuposto de cognoscibilidade. Issos confirma a tese anteriormente proposta de que a faculdade do juzoreflexionante reflete, em princpio, por princpio, desde o princpio com vistas determinao, com vistas a deixar de ser reflexionante, com vistas a encontraro universal dado que, no momento, acidentalmente falta. Ainda que subjetivo,o princpio da finalidade um princpio de conhecimento.10

    Finalmente, o terceiro elemento dessa apresentao introdutria doprincpio da finalidade merece ateno especial. Ele diz respeito relaoentre o pressuposto entendimento superior e as mltiplas formas da naturezaque a reflexo a ele reporta. H aqui algo de decisivo para a caracterizao doprincpio reflexionante como Zweckmssigkeit: conformidade a fins. Aqui estocontidos tambm, em germe, o fundamento da tese da Esttica kantiana comounificao sistemtica da obra crtica e a explicao mesma do carter aprazvelda beleza. O uso da expresso gegeben htte indica que esse entendimentoheuristicamente hipottico hipoteticamente demirgico, criador. A rigor, no apenas um entendimento; tambm uma vontade superior, diramos, umentendimento volitivo. Expliquem-se brevemente a ligao entre o geben e1) o batismo do princpio reflexionante, 2) a tese da unidade do sistema e3) o prazer que nos causa a reflexo sobre o belo.

    10 Aqui duas objees podem ser preliminarmente eliminadas. No se trata, em primeiro lugar, de defenderque o princpio da Zweckmssigkeit fundamento de determinao (Bestimmungsgrund) objetivo dos juzosdeterminantes, tericos ou prticos, nem que o exerccio da faculdade do juzo determinante depende daatividade reflexionante. Como Kant afirma, onde h determinao no h reflexo, porque no precisahaver. A atividade reflexionante resultado de uma impossibilidade de determinao. Mas s no necessriorefletir para determinar porque e quando aquilo sobre o que a reflexo atua um pressuposto bvio, tcitoe no tematizado para a determinao, a saber, que o objeto conhecido precisa ser conforme estruturacategorial de nosso entendimento. Ora, o pressuposto da conformidade da natureza em relao nossafaculdade de conhecimento s se torna visvel quando aquilo que ele subjetiva e tacitamente costumacondicionar simplesmente no acontece, a saber, a determinao do mltiplo segundo conceitos de objetos.A reflexo, portanto que se exerce sob o princpio da hiptese de um entendimento superior comoimagem do pressuposto de que o mais especfico na natureza para ns mesmos cognoscvel , no ela mesma condio da possibilidade do conhecimento. O que aqui condio de possibilidade doconhecimento, a saber, condio subjetiva, o pressuposto, tcito na determinao e explcito na reflexo,de cognoscibilidade da natureza em sua mais perifrica nervura. Assim, a finalidade um princpio deconhecimento na medida em que ela a idia heautnoma por meio da qual a faculdade do juzo, naimpossibilidade da determinao, explicita nossa convico, a despeito da falta de evidncias, de que anatureza exaustivamente cognoscvel. Em segundo lugar, no convm minimizar a relao daZweckmssigkeit ao processo cognoscitivo com base no anunciado subjetivismo do princpio reflexionante.A esse respeito, convm observar que o 22 da CJ, no momento expositivo que a Analtica do Beloconsagra ao tema da modalidade do juzo de gosto, esboa e abandona sumariamente uma discussosobre se o princpio do juzo reflexionante esttico um princpio constitutivo ou regulativo. Que a discusso,embora explicitamente direcionada formulao epistemolgica do princpio do juzo de gosto (a saber,como Stimmung subjetiva de imaginao e entendimento) diga respeito diretamente Zweckmssigkeit algo que no pode ser demonstrado aqui. Registre-se apenas que o princpio dos juzos reflexionantespode estar ainda mais decisivamente conectado ao conhecimento e ao esquematismo objetivo do que oque se espera de uma idia regulativa.

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  • 227REFLEXO E FUNDAMENTO: SOBRE A RELAO ENTRE GOSTO E CONHECIMENTO NA ESTTICA DE KANT

    O princpio geral da reflexo, que se mostrou, antes mesmo de seu batismoe de modo ainda provisrio, como fundamento da possibilidade de juzos deconhecimento emprico, chama-se Zweckmssigkeit, porque ele o pensamentode que um entendimento superior criou as referidas formas mltiplas danatureza, potencialmente cognoscveis de modo emprico, segundo arepresentao de um fim (Zweck). As formas mltiplas da natureza seriam,assim, conformes ao fim (zweckmssig) a partir de cuja representao umentendimento superior as teria intencionalmente dado. Refletir , portanto,referir um particular ao princpio da hiptese de que uma vontade superior,determinada pela representao da existncia dele como um fim a ser realizado,deu essa existncia, vale dizer, o criou.

    Quando se l a terceira Crtica como uma obra orientada pela tarefa deunificar o sistema crtico, a vocao demirgica da representao do princpioreflexionante parece particularmente importante. Ora, o que Kant anuncia naIntroduo definitiva da obra que se trata de pensar a passagem do domniodos conceitos de natureza para o domnio do conceito de liberdade,11 Se, eem que medida, a terceira Crtica oferece essa descoberta, uma controvrsiaque no nos interessa no momento. Interessa apenas o fato de que tal passagemse torna concebvel apenas quando uma manifestao particular da natureza,subordinada ao princpio necessrio da causalidade natural, vista como tendosido dada (gegeben) a partir de uma vontade superior segundo a representaode fins, vale dizer, a partir de uma causalidade por liberdade. Se em um objetoessa conciliao se faz de algum modo efetiva, ento tem-se elementos paraprovar que a base do princpio da finalidade da natureza sustenta a articulaosistemtica dos domnios terico e prtico da filosofia crtica.

    Por fim, uma tese da terceira Crtica a subordinao do sentimento deprazer, qualquer que seja sua qualidade, ao princpio do preenchimento deuma inteno.12 Como explicar, ento, que o juzo de gosto sobre o belo,fundado apenas em um certo exerccio das faculdades cognoscitivas (que lhegarantem universalidade e necessidade) e simplesmente desinteressado, envolvaum sentimento de prazer? porque a predicao do belo expressa a refernciade uma forma ao princpio da finalidade (formal) da natureza; porque referimosessa forma ao princpio pressuposto e heurstico de um entendimentointencional que sua representao em um juzo gera prazer.

    11 CJ, Int., II, p. 247.12 Cf. CJ, Int., VI, p. 261.

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    13 ... e, acreditamos, se consuma no desdobramento da acepo propriamente epistemolgica do princpio dojuzo reflexionante esttico (que se encontra sobretudo na base do movimento argumentativo da Deduo),tema que, infelizmente, ultrapassa o escopo desta exposio preliminar...

    Com a exposio da diferena entre juzo reflexionante e juzo determinantee com a anlise dos trs elementos relevantes da apresentao introdutria doprincpio da reflexo em geral, vale dizer, da Zweckmssigkeit, fica mais claraa relao entre reflexo e finalidade. Um primado fundacional do juzoreflexionante esttico em relao ao conhecimento aqui se anunciou naanterioridade fundacional do princpio da finalidade em relao determinaocognoscitiva. Em poucas palavras, quando o gosto reporta uma representaoparticular da natureza ao princpio da Zweckmssigkeit, vale dizer, idiaheurstica, heautnoma e subjetiva (als ob) de que esse particular foi dado porum entendimento superior em favor das nossas faculdades de conhecimento, oprazer esttico puro que a se gera provm do encontro da subjetividade comuma condio da possibilidade do conhecimento, por enquanto, apenas doconhecimento emprico. Em que medida esse carter fundacional se amplia eintensifica na progresso dos temas da CJ,13 algo que precisa ser visto.

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