revista investigação n° 11

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Explorar sofisticadamente imagens, conceitos e discussões sobre as artes visuais é a meta da revista Investigação nº 11. Editada por Guilherme Mautone e Letícia Bertagna, a publicação prioriza o enfoque teórico, a divulgação de novos artistas e a comunicação entre diversas regiões do país no que diz respeito à produção iniciante. Com a diagramação elegante do designer gráfico Vinícius Garcia, ela difundirá ensaios acadêmicos e textos de caráter menos formal, além de trazer seções ilustradas e contar com colaborações de profissionais de renome no meio artístico.

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Investigação nº 11 | Volume I | 03

Eduardo Montelli, Sem Título, 2010Fotografia Digital

Page 6: Revista Investigação n° 11

Investigação nº 11 | Volume I | 04

Expediente

Investigação n° 11

issn 2178-3993

www.investigacaon11.com.br

Distribuição Gratuita, Venda Proibida

EditoresGuilherme Mautone

Letícia Bertagna

Produtor ExecutivoJuliano Ventura

Editor de Design Vinícius Garcia

Editor de WebsiteLuis Rubina

RevisorMarden Müller

Conselho EditorialAlexandre Rocha da Silva. Ana Maria Albani de Carvalho.

Cléber Gibbon Ratto. Fábio Parode. Francisco Marshall. Gabriela Motta.

Hélio Fervenza. Kathrin Holzermayr Rosenfield. Luis Rubira. Maria Ivone dos Santos.

Mônica Zielinsky. Paulo Francisco Estrella Faria.

ColaboradoresAdriano e Fernando Guimarães. Alice Souza.

Eduardo Montelli. Elias Maroso.Elida Tessler. Elke Coelho.

Francisco Marshall. Isabel Ramil. Jorge Soledar. Juliano Ventura.

Kathrin Holzermayr Rosenfield. Marcone Moreira. Maria Esther Maciel. Marina Rheingantz.

Nara Amélia Melo. Paulo Faria.Ricardo Basbaum. Rodrigo Braga. Rommulo Conceição. Túlio Pinto.

Yuri Firmeza. Vinícius Garcia.

Outubro de 2010Tiragem: 5.000 exemplares

Investigação n° 11 foi impressa com o apoio da Gráfica Trindade - Porto Alegre

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Investigação nº 11 | Volume I | 05

06 Texto da Fundação Nacional de Artes por Sérgio Mamberti

07 Texto dos Editores Percepção e recepção das artes visuais por Guilherme Mautone e Letícia Bertagna

10 Imagem Gráfica por Vinícius Garcia

12 Entrevista Kathrin Holzermayr Rosenfield

20 Apontamento: História O Testamento de Duchamp - Interpretação iconológica de uma obra contempo- rânea: Etant donnés por Francisco Marshall

25 Resenha Eu, marco zero por Alice Souza

28 Crítica e Comunicação Sur, sur, sur, sur... como diagrama: mapa + marca por Ricardo Basbaum

Apreciacão Institucional35 O PLENO ou O VAZIO por Juliano Ventura

38 Notas da vocação coletiva e experimental do Porão do Paço por Jorge Soledar

41 Campo Aberto Projeto Toll Gallery: formatos expositivos como interesse de criação por Elias Maroso

43 Entre Rodrigo Braga, Túlio Pinto, Elke Coelho, Marina Rheingantz, Edu- ardo Montelli, Nara Amélia Melo, Adriano e Fernando Guimarães e Marcone Moreira

57 Apresentação Ascenção por Isabel Ramil

59 Apontamento: Estética Abstração e Evasão: Nota sobre a pintura moderna por Paulo Faria

Texto de Artista66 Eu confio em você por Yuri Firmeza

68 Antes de tudo: de onde eu falo, sobre o que falo e por que falo sobre isso? por Rommulo Conceição

71 Proposta por Elida Tessler

75 Apontamento: Outros Caminhos Corpo, texto e visualidade por Maria Esther Maciel

Sumário

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Texto da Fundação Nacional de Artes

Investigação nº 11 | Volume I | 06

O Conexão Artes Visuais possibilita a artistas, curadores, pesquisadores e

espectadores participar de uma grande rede de troca de ideias e experi-

ências no campo das artes visuais. O programa — realizado pela Funarte

com patrocínio da Petrobras, por meio da Lei Federal de Incentivo à

Cultura — já se disseminou por todo o Brasil, alcançando grandes cen-

tros urbanos e municípios menores.

Em 2010, os trinta projetos viabilizados pela segunda edição do pro-

grama ampliaram esse intercâmbio. Dois dos proponentes contemplados

publicaram seu próprio edital para convocar propostas de todo o país,

uma novidade que torna o Conexão ainda mais democrático. Quarenta

cidades brasileiras recebem exposições, intervenções, oficinas e debates.

Além disso, livros e websites reúnem textos críticos e acervos artísticos,

de forma a fomentar a documentação e a reflexão.

Esse conjunto reflete a diversidade de linguagens hoje presente nas artes

visuais, da fotografia ao grafite, da videoarte à instalação. Os artistas e pro-

dutores contemplados promovem eventos de caráter performático, ações

de difusão da cultura digital, pesquisas que integram arte e ciência, além

de atividades que fazem circular bens culturais e seus criadores por diver-

sas regiões do país. As ações são registradas pelos proponentes em textos,

fotos e vídeos. O material abastece o site do Conexão e servirá de base

para a produção de um catálogo, o que garante a difusão dos resultados

para um público ainda mais abrangente.

A primeira edição do programa viabilizou, em 2008, cerca de 300 ativi-

dades, oferecidas gratuitamente a mais de 80 mil pessoas, em 42 cidades.

Para nós é um grato prazer saber que muitos desses projetos continuam

a evoluir, incentivando o trabalho de outros artistas e atraindo novos

públicos para as artes. Esperamos que Investigação nº 11 siga essa trilha de

sucesso, propiciando cada vez mais olhares diversos para as artes visuais

no Brasil.

Sérgio Mamberti

Presidente da Funarte

Conexão Artes Visuais MinC Funarte Petrobras 2010www.conexaoartesvisuais2010.com.br

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Texto dos Editores

Investigação nº 11 | Volume I | 07

PercePção e recePção daS arteS vISuaIS

Guilherme mautone e letícia BertaGna

É de Ludwig Wittgenstein, pensador austríaco do século XX, a célebre obra

chamada Investigações Filosóficas. A emaranhada trama que constitui o núcleo

desse livro é essencialmente uma série de investigações, de pesquisas sobre

determinados temas. Investigação XI, título dado postumamente para uma

das seções, desdobra uma sequência de elucubrações a respeito das imagens

indeterminadas, inerentemente ambíguas, e das imagens-engodo (Vexierbild),

como o pato-ou-coelho. Esses empreendimentos exploram não somente as veredas

do processo de percepção, mas também inauguram acessos a vastíssimas discussões

dentro dos campos da Estética, essa disciplina filosófica, e das Artes Visuais.

É de recepção que se fala ao se falar de Estética. Como recebemos tais e tais

informações? Como as processamos? O que é desencadeado dentro de nós

pelos dados dos sentidos? Vemos uma coisa de uma maneira específica porque

sabemos, de antemão, que sobre ela se aplica determinado conceito, determinada

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Investigação nº 11 | Volume I | 08

categoria? Ou podemos experimentar uma recepção diferente, a recepção de

uma ambiguidade, que cliva subitamente nosso entendimento e nos faz sustentar

duas, ou mais, categorias para a mesma coisa vista? E como – partindo dessa

recepção da informação cujo estatuto é denso, complexo e multifacetado –

podemos organizar, ou reorganizar, nosso pensamento, nossas atitudes perante

as coisas, nosso lugar no mundo, nossos investimentos intelectuais, afetivos ou

artísticos?

São sobre essas questões, à primeira vista abstrusas, que a Estética se debruça.

E as Artes Visuais, que desde sempre medraram sobre esse território filosófico,

possuem a capacidade de reinserir, plasmar, e configurar em seus fenômenos esses

problemas. A arte contemporânea mais ainda, com mais intensidade, já que uma

de suas grandes indisposições se perfaz exatamente no processo de percepção.

Esta revista, que adota o nome da investigação wittgensteiniana, explora em seu

primeiro volume os significados do processo de percepção tanto para as Artes

Visuais, como para os campos da Humanidade que sobre elas se debruçam.

Nosso desejo ao realizar o volume inaugural de Investigação nº 11 foi o de

criar uma revista diferenciada, que salientasse a cooperação de dois fenômenos

distintos, a experiência intelectual e a experiência estética. Essa preocupação

será reconhecida nos mais variados aspectos desse periódico, como nos textos

agrupados, nos artistas apresentados e nos investimentos gráficos. O que

esperamos é que o leitor acesse este volume por duas vias complementares: a de

encantamento com a vivência sensorial e a de apreciação de novos argumentos.

Investigação nº 11 possui três seções denominadas Apontamento (História,

Estética e Outros Caminhos). Nelas o leitor encontrará considerações, notas,

observações, levantamentos ou análises – de maneira que cada uma dessas seções

é correspondente a olhares diferentes no âmbito das Humanidades, olhares que

se deixam passear em contextos específicos das Artes Visuais. Em “Apontamento:

História” e “Apontamento: Estética” os dois pólos de interação mais íntima com

as Artes Visuais ganham espaço e em “Apontamento: Outros Caminhos” são

abordadas as outras possibilidades de interação que as visualidades acabam por

travar.

A seção “Entrevista” gira em torno dos desafios lançados ao contemplador ao

longo da História da Arte e de seus aspectos mais perturbadores: a ambiguidade

que incomoda a percepção e obriga a inteligência a sustentar ideias opostas.

A seção “Crítica e Comunicação” realça os pontos de articulação entre o discurso

e a visualidade. Neste volume, Ricardo Basbaum propõe uma outra via de acesso

às ideias, relacionadas dinamicamente entre texto e imagem.

Na seção “Entre” são apresentados os trabalhos de Rodrigo Braga, Túlio Pinto,

Elke Coelho, Marina Rheingantz, Eduardo Montelli, Nara Amélia Melo, Irmãos

Guimarães e Marcone Moreira.

Page 11: Revista Investigação n° 11

Investigação nº 11 | Volume I | 09

“Resenha”, “Campo Aberto”, “Apresentação” e “Apreciação Institucional” são

espaços voltados às ramificações da discussão teórica, que se configuram sob

diferentes suportes: o livro, o projeto, o artista e a instituição.

“Texto de Artista” foi pensada como uma seção onde o posicionamento do

sujeito diante de sua produção e da situação da Arte nos dias de hoje é valorizado

e estimulado.

Em “Proposta”, convidamos Elida Tessler para uma colaboração diferenciada. A

seção condensa os muitos sentidos da palavra proposta e está sujeita às diversas

interpretações poéticas que ela possibilita, como um espaço onde o artista e o

leitor transitam livremente.

Entre a circulação deste volume e o próximo, contamos com um website,

investigacaon11.com.br, que opera como meio de interação e de novos diálogos.

Vemos essa complementaridade como necessária, uma vez que as discussões

levantadas nesse volume não se encerram aqui.

Esperamos que a experiência de folhear e ler Investigação nº 11 seja significativa,

assim como foi significativa para nós a sua realização.

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Investigação nº 11 | Volume I | 12

Entrevista

KatHrINHolzerMayrroSeNfIeld

nasceu na Áustria, fez doutorado sobre literatura, história e filosofia em Paris

com Jacques Le Goff. Vive no Brasil desde 1984. É pesquisadora do CNPq e

leciona na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, nos cursos de Filosofia,

Artes Visuais e Letras, bem como nos Programas de Pós-Graduação em Filosofia

e Letras. Em 2008 criou o Núcleo Filosofia, Literatura, Arte, ainda hoje dirige esse

núcleo que desenvolve as relações entre pesquisa acadêmica, criação artística

e comunicação com a sociedade. De dentro dele surgiram diversos eventos

importantes para a sociedade, como os espetáculos Antígona (2004 – 2005) e

Hamlet (2006 – 2007). Assina mais de vinte publicações, dentre as quais as mais

relevantes são suas notas e prefácio para a tradução de Antígona (Topbooks,

2006), de Sófocles, realizada por Lawrence Flores Pereira, Antígona: De Sófocles

a Hölderlin (L&PM, 2007), Desenveredando Rosa (Topbooks, 2006), Estética

(Zahar, 2006) e Grande Sertão Veredas – Roteiro de Leitura (Topbooks, 2008),

Antigone – Sophocles’ Art, Hölderlin’s Insight, J. Davies, Colorado, USA, 2010).

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Investigação nº 11Wittgenstein, em Investigações Filosóficas, mais precisamente na segunda seção, a investigação XI, nos fala de uma indeterminação da figura. a figura 1 que analisa e que pode ser interpretada como caixa de papel virada para baixo ou três tábuas que formam um canto ou ainda uma estrutura de arame. logo em seguida analisa essa mesma qualidade – a saber, indeterminação – na célebre figura de Jastrow, a figura l-P, ou lebre-Pato. em que sentido essa indeterminação toma forma nas artes visuais? ou melhor, de que maneira ela aparece para nós, ela

se coloca ao nosso olhar?

Kathrin Holzermayr rosenfield

Independentemente da tecnicalidade com que Wittgenstein coloca esse problema, o que ele investiga é um fenômeno primordial da percepção: de onde vem a nossa capacidade de sermos atingidos de tal maneira que notamos. Há aí um duplo processo – não só o registrar mecanicamente, mas o ver-que-vemos e, com isso, a possibilidade de vermos diferentemente. É disso que nasce a surpresa, o to be struck? Há aí uma reflexividade que intriga e esse maravilhamento, ele já aparece em Aristóteles, no conceito de thaumaston. Mas acredito que tua pergunta aponta para um desdobramento muito mais

amplo e que recorta a repercussão desse fenômeno na experiência estética e na arte. Notar e gostar de notar (sentir essa surpresa, striking) impulsiona o pendor propriamente humano (e estético) em direção ao fazer permutas, experimentações com aspectos e visões diversas das ‘mesmas’ coisas. Há uma espécie de compulsão por fazer permutas no ser humano... Ele é intranquilo porque ele constantemente procura encontrar modulações, versões diferentes das coisas já como são. Voltando a Aristóteles, ele fala de uma maneira extremamente factual dessa problemática quando insiste sobre a metáfora, que analisa na Poética - ela é o fato da permuta, o fato de tentarmos representar o que vivemos na vida cotidiana de uma outra maneira. Aristóteles trabalha com o próprio e o impróprio. O próprio então seriam as coisas tal como aparecem banalmente, no modo como falamos normalmente das coisas (que mal notamos e nem precisamos mais olhar), ao passo que o ‘impróprio’ da expressão poética provoca o thaumaston, o maravilhamento que faz ver de novo. Desmistificando o processo, Wittgenstein analisa nessa investigação um micro-fenômeno, forma diminuta do choque estético. Tece sua análise ao redor de fenômenos muito simplórios, enquanto Aristóteles foca o maravilhamento através da misteriosa

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Investigação nº 11 | Volume I | 14

capacidade poética, aquilo que Kant chamaria de genialidade do artista, de nos abrir outras perspectivas, outras maneiras de ver. O que aproveitar para a experiência estética nesses exemplos tão singelos? Em primeiro lugar, o fato que o notar (o ser intrigado, struck) não é um processo intelectual, mas o resultado de uma diferenciação estética. É esse dom imediato de virar a luva e ver o mundo diferentemente, que abre a porta para sair do hábito da percepção mecânica: a distinção sensorial já pensa.

Investigação nº 11lembro bem de uma aula tua na qual comentavas sobre o romantismo alemão. falavas entusiasmada sobre fenômenos essencialmente estranhos, truncados, que começavam a aparecer na literatura e também na pintura. delacroix foi um dos citados (evidente que ele se debruça sobre o estrangeiro, os seus temas não são os tradicionais, sua pincelada também não). outro, na esteira dos Modernos, foi francis Bacon e suas declarações impactantes na entrevista concedida a david Sylvester e suas figuras que parecem transitar, num movimento incessante, pela ambiguidade de figurativo e não-figurativo. tu poderias nos falar um pouco mais sobre isso aqui?

Kathrin Holzermayr rosenfield

Bom, me deixe começar com um desvio maior, dessa forma faço um gancho com a primeira pergunta. Os românticos – em particular aqueles ‘hiper-sensíveis’ Hölderlin, Novalis ou Kleist e, mais tarde, Nietzsche – foram os primeiros a admitir camadas mais profundas da percepção, camadas que irrompem mais como estranhos hieróglifos, como traços estranhos e constrangedores, que permanecem incompreensíveis, embora não sem sentido. Às vezes basta um tempo ou uma configuração maior para eles nos

dizerem algo – algo a mais da coisa representada. Hölderlin e Nietzsche, que se interessam por esses traços, ou atmosferas (o espírito da música) enigmáticas atrapalhando a beleza clássica, são os grandes inovadores. Eles antecipam a Modernidade, na medida em que o olho deles fura a normalidade do olhar convencional. O clássico era apreciado pelo equilíbrio entre forma e conteúdo, a expressão artística como uma versão sensorial da significação ou, como diria Hegel, da substância ética. Mas essa idéia da conciliação ‘bela’, do sensível e do espiritual, é na verdade uma banalização dos clássicos. O que os clássicos fazem muitas vezes é desafiar nossa sensibilidade, nossas idéias éticas e nosso conhecimento. E os românticos – Hölderlin, Kleist e depois Nietzsche – devassaram a superfície equilibrada dos clássicos. Os grandes artistas sempre foram, até certo ponto, iconoclastas. E já em Sófocles temos uma série de distorções dos cânones da visão e da narrativa que são muito importantes. Os românticos são importantes porque eles colocaram a sua atenção nisso, eles ousaram dizer isso e ousaram fixar sua atividade estética em torno dos elementos estranhos e inconciliáveis com o sentido, como motores de inquietação, motores que estimulam a nossa sensibilidade. A estranheza que encontramos em artistas modernos – tu mencionaste Delacroix e saltastes para Francis Bacon – tira seu impacto dos modos de sentir e pensar que escapam à expressão discursiva e às intenções voluntárias. Vem de uma energia que não pode ser representada, de algo que fundamentalmente escapa. As passagens que li para vocês do Francis Bacon1 falam, por exemplo, da “tentativa para fazer com que a coisa figurativa atinja o sistema nervoso de uma maneira mais direta, violenta e penetrante” (p. 13). Lembro de ter lido também um trecho do Musil, no qual ele falava sobre a irrecuperável,

1 Entrevistas a Francis Bacon, David Sylvester, São Paulo: Cosac & Naify, 2008.

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ou rara, experiência de sentir uma sensação realmente autêntica – ou seja, uma experiência não presa na rede narrativa. A arte gira inteiramente em torno dessa experiência muito secreta e muito fugaz. Lembro de ter introduzido, nessa mesma aula, um artigo de Eckart Förster sobre Kant, que tu (Guilherme) traduziste para a revista Analytica.

Investigação nº 11e insistindo na ambiguidade, por que a arte se torna mais interessante quando consegue alcançá-la? e por que ela parece brilhar com mais intensidade ou ser mais grandiosa quando a olhamos, escutamos, sentimos, pela ambiguidade?

Kathrin Holzermayr rosenfield

Talvez seja melhor substituir “arte como ambígua” pela idéia da “arte como densa”. O ambíguo evoca o dúbio, o indefinido, mais que a riqueza. No momento em que posso olhar para a mesma coisa de duas maneiras diferentes, de três maneiras diferentes, eu noto não somente que essa coisa não é o que parece, mas que ela pode ser, ao mesmo tempo, várias coisas ou de vários modos. Os paradoxos (ou aspectos surpreendentes) que nos intrigam na densidade de certas obras conduzem a sensibilidade do espectador a distinguir mais sutilmente, parece que a própria sensibilidade já se torna reflexiva, começa a ‘pensar’ bem antes do raciocínio discursivo. Há toda uma riqueza da experiência que se abre para o espectador que contempla uma obra densa ou, como tu dizes, ambígua. Camadas emocionais, sensoriais, cognitivas conectam-se com uma rapidez espantosa, produzindo novos sentimentos que vão exigir maneiras mais complexas de pensar. Lembro da minha tese de doutorado, onde trabalhei com a idéia da arte/literatura antecipando novas formas de convivência, novas idéias, através

de uma mutação do nosso sentimento. Os trovadores e os narradores da Idade Média, saindo dos padrões do cânone cristão (da vida dos santos, e da mitologia cristã), criaram novas constelações figurativas que passam a modificar totalmente a idéia e a realidade do amor. Voltando a tua pergunta envolvendo a ambiguidade, lembrei Walter Benjamin que sublinha como os trágicos reelaboraram a ambiguidade do mito: o vago, indefinido e dúbio do mito arcaico reaparece, na tragédia, como paradoxo. O que significa isso? Significa que talvez, em si mesma, a ambiguidade não seja tão interessante. Apenas na medida em que define numa antinomia, ela se torna um motor de novas formas de expressão e novas formas de pensamento.

Investigação nº 11e falando sobre a tua experiência: tu te recordas do momento em que sentisse mais fortemente esse fenômeno da ambiguidade-densidade, que desafia a percepção, frente a uma obra de arte visual?

Kathrin Holzermayr rosenfield

É... Quando tu me escrevesses esta pergunta, antes de nos encontrarmos para a entrevista, pelo e-mail, eu fiquei pensando: “Ai, e agora?... só me lembro do meu maravilhamento, quando criança, diante da ambiguidade da própria realidade!”, porque nunca nada me parecia realmente como era quando eu era pequena... Mas depois me acalmei e deixei a memória passar em revista as primeiras obras de arte que lembro. Qual era então a primeira obra que realmente me colocou esse problema? Pensando nisso, me voltei para a estante de catálogos e encontrei - por acaso ou por necessidade - este catálogo aqui, onde a obra aparece. É a obra de um Modernista austríaco. Meus pais colecionavam obras de arte e tinham uma coleção bastante bonita. E nela eles tinham essa obra

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Investigação nº 11 | Volume I | 16

de Max Weiler, um importante pintor austríaco, e o quadro se chama Flores na Neve (Gartengewächse im Winter). É uma obra típica do Modernismo austríaco que sempre ficou entre a abstração e o figurativo. Esse quadro, Flores na Neve, me perturbava porque ele não era claro, eu não o entendia direitinho. Mesmo assim, eu ‘sabia’ o que era, já que, pela sensação visual não era difícil decodificá-lo. E é muito curioso como a nossa sensibilidade entende. É algo que sempre me fascinou, essa espécie de compreensão que capta a idéia na forma visível. O quadro brincava com as formas embrionárias que saem da terra quando a neve se recolhe e vemos aqueles brotos que saem e que possuem algo interessante e hiper sensual por causa das formas larvares, embrionárias e fálicas. As cores já estão presentes, mas não exatamente como elas aparecem depois quando essas formas se definem. Como todas as crianças, eu preferia as formas delimitadas quando era pequena, figuras bem desenhadinhas, com seus contornos, e me irritava muito que

meus pais tivessem aquelas coisas nas paredes. Então esse foi o meu primeiro trabalho de debulhar a ambiguidade, a densidade artística, a sobreposição de reflexões rejeitadas com sentimentos e sensações. E, engraçado, nunca me lembrei disso. Só agora, com a tua pergunta, lembrei disso.

Investigação nº 11esses são os meios convencionais, as artes tradicionais (pintura, escultura). e as formas de arte mais recentes, como poderiam ser consideradas a fotografia e o cinema? Kurosawa, por exemplo, que sei que aprecias. Rashomon não seria um bom candidato a esse desafio da percepção, seu efeito inquietante, sua história indeterminada? como tua acha que os novos meios, as artes recentes, podem trabalhar em torno desses fenômenos que temos comentado?

Kathrin Holzermayr rosenfield

Acredito que a diferença do meio (fotográfico ou filme no lugar da

Max Weiler, Gartengewächse im Winter, 1952

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Investigação nº 11 | Volume I | 17

pintura ou escultura) não exclui as possibilidades, densidades,

ambiguidades que comentamos – nesse filme, em particular, somos confrontados com a inquietante estranheza, a narrativa gira em torno de uma realidade tão equívoca que nunca saberemos qual é a versão certa. Isso recorta um pouco o que falei no início, que o que me inquietava, muito mais que as imagens, era a indeterminação da própria realidade. Fotografia e filme como formas de arte nada tem a ver com a simples reprodução mecânica, ‘inambígua’ do real. O mesmo vale, hoje, também para os meios eletrônicos.O que me fascina em Kurosawa é a sutileza do seu trabalho com as tonalidades. Não é apenas a história ambígua que é narrada, mas também o ponto de vista tomado pela câmera que nos desloca para uma dimensão inenarrável (impossível de narrar). A primeira cena, por exemplo, que mostra uma câmera numa posição de onça seguindo a sua presa no topo das árvores. Ali, evidentemente, entra algo de muito novo, que é próprio do cinema e que não poderíamos fazer com outros meios de expressão.

Investigação nº 11aquela câmera que vibra, como se espreitasse o camponês.

Kathrin Holzermayr rosenfield

É, realmente como o bigode do tigre, feito uma antena que segue sua presa.

Investigação nº 11e a fotografia?

Kathrin Holzermayr rosenfield

Um dos pontos principais que posso explorar é a brincadeira que a fotografia encena ao redor da idéia da imagem

– dessa confusão, que naturalmente fazemos, de tomar a fotografia como algo que replica a realidade, que emula o real, que finge reconstituí-lo e, na verdade, não faz isso. Quando surge um

novo meio de expressão, há uma fase eufórica – a descoberta que também ele pode ser um meio artístico para vermos diferentemente e trazer à tona dimensões inalcançáveis para outros meios. Mas vamos deixar isso de lado, pois não entendo muito de fotografia.

Investigação nº 11Isso me leva às novas mídias, por exemplo, a vídeo arte, o vídeo, que parece ganhar cada vez mais espaço nas artes visuais... tu acreditas que elas podem explorar esse mesmo fenômeno da ambiguidade ou do desafio à visibilidade, considerando a natureza desse suporte (a imagem instantânea ou apresentada diretamente a qual deleuze faz referência, a fugacidade de suas seqüências, a atenção diferenciada que a dedicamos, etc.)?

Kathrin Holzermayr rosenfield

Não vejo como não seria possível explorar esses problemas com as novas mídias. A lente (a câmera) de vídeo é um olho que acoplamos ao nosso olho, com o qual podemos fazer muita coisa. Inclusive o que vale para ele, vale também para a nossa visão – esse emborcar do olhar, de nós nos sentirmos olhados pela coisa que nós olhamos, vi em muitos lugares vídeos que atingem esse efeito. Mas são coisas diferentes, vídeo-arte e novas mídias. Como ainda não domino as novas mídias (sou incapaz de sequer mexer decentemente no meu próprio computador) me sinto um tanto perdida nessa pergunta... Quando assisto relatos de artistas que trabalham realmente com as novas mídias, como a computação, me dou conta de que eles trabalham com inúmeros meios diversos, dos quais sequer ouvi falar. Essa pergunta seria melhor respondida por uma vídeo-artista – por exemplo, a Christine Palmieri, artista canadense que vem frequentemente ao Brasil.

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Investigação nº 11 | Volume I | 18

Investigação nº 11Gostaria de falar sobre o gesto, agora. entendido como processo, como parte de uma configuração maior, ou de uma poética. o gesto está numa forma de arte como a dança, isso é evidente... Mas também na pintura, na escultura. lembro de ter visto gravações de Pollock pintando e também fotografias de rodin esculpindo. São impactantes. elas recolocam, para nós acostumados com o resultado final, uma nova perspectiva – ou seja, de que há algo que acontece e que é, muitas vezes, muito mais bonito e interessante no próprio processo, no envolvimento do artista. como se ali a arte estivesse ainda viva, dinamizada, e ainda não decantada. Que sorte de privilégios temos ao poder experimentar o artista em atividade, ao experimentar o artista em sua própria experimentação, no emprego dos seus gestos? a que essa experiência de observá-lo nos remete? ou a que essa experiência de saber que o artista também emprega o seu corpo e os seus gestos nos remete?

Kathrin Holzermayr rosenfield

O que me veio quando tu falaste foram duas coisas: há o gesto do artista quando ele filmado, quando ele é capturado no processo da criação; tu tens razão quando diz que são muito bem feitas aquelas imagens do Pollock, quase congelado, em frente à lona branca dias a fio, naquele sofrimento, completamente sujo, acocorado na frente do vazio, sua mulher entrando com comida e correspondências e depois, de repente, aquele salto. E tudo se dissolve numa música de gestos e ele está em cima daquela tela como se fossem núpcias artísticas; ele, a tela... e tudo é maravilhoso. Ou o Rodin e seu trabalho braçal sobre a escultura. Essa é uma coisa. E é fantástico poder entrar no processo do artista através dessas ajudas que mostram o próprio processo

artístico, mas acho que há alguma coisa a mais: é quando sentimos o gesto na própria obra. Não precisamos necessariamente ter essa muleta, onde alguém nos mostra como foi feito. Acho que sentimos isso na energia do traço, na energia da voz. Acho que há algo que passa por baixo do nível do discurso, mas que é igualmente forte, igualmente eloquente, reflexivo e inteligente. Ou seja, a condensação no gesto de uma compreensão mais global. Tem a ver com a supressão ou a condensação do excesso de pensamentos. É impossível dizer, explicar em que consiste esse gesto – a não ser, destruindo-o numa avalanche de pensamentos e descrições. Quando escrevi o meu livro sobre Antígona, parti do fascínio da energia gestual e do impacto certeiro dessa peça. Sempre tive vontade de ver encenada essa dimensão gestual diferentemente (isto é, sem as traduções que já adaptam o texto grego e dão forma racional-retórica aos Coros). Mas é impossível colocar numa encenação de duas horas as explicações de um livro que levei anos para escrever, que tem 500 páginas, que é tão complicado e tão chato... Isso é o contrário do gesto e do teatro. Mesmo assim, era através de uma outra visão, de uma outra interpretação, que eu estava sugerindo uma outra maneira de encenar. Basta confiar no gesto, na energia que concentra os pensamentos suprimidos. No trabalho com os atores, bastava que o Luciano (Alabarse) e os diferentes atores ouvissem a narrativa, vissem e sentissem como eu via a história. Entendendo isso profundamente, o enigma do texto do Sófocles ia passar para o gesto da encenação. Sentir que Antígona não era uma santa, que ela tem tons escandalosos e partes horripilantes durante a própria ação piedosa – tudo isso uma atriz pode transformar em gesto; aí entra todo o problema da complexidade, da densidade e da ambiguidade. Basta que o ator entenda e sinta isso com profundidade e isso vai

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Investigação nº 11 | Volume I | 19

aparecer no gesto, isso vai se manifestar na coreografia dos gestos, as pessoas irão ouvir isso como um longínquo eco e não vão entendê-lo no sentido explicativo – ou seja, a história contada e argumentada parte a parte; fica como uma fina música pairando sobre as coisas que permanecem obscuras. Mas em outras formas de arte, o gesto pode simplesmente ser a sobreposição de intenções e sentimentos que se manifestam implicitamente. O subentendido, o segredo... Toda a arte de Henry James, por exemplo, desdobra-se em gestos, embora ninguém gesticule.

Investigação nº 11tu te referes à The Turn of The Screw?

Kathrin Holzermayr rosenfield

Não, não somente a essa novela. Em toda obra dele encontramos isso. Mas esse é um livro really scary. É uma arte do suspense, uma arte do fantasma, uma arte da realidade dos nossos fantasmas.

Investigação nº 11o reconhecimento da arte, ou dos estilos como quis Gombrich, e também dos seus fenômenos mais próprios – a gestualidade, a ambiguidade, as múltiplas sugestões – ampliam o que o senso comum chama de sensibilidade. esse cultivo, essa dedicação às artes, amplia nossa visão. Seria injusto, ou demasiadamente informal, falar de uma sofisticação da percepção? e por sofisticação entendo uma espécie de privilégio, um ver diferentemente que os outros...

Kathrin Holzermayr rosenfield

Não, muito pelo contrário! Gombrich e Auerbach, por exemplo, são um pouco críticos de arte que se encontram ainda na esteira hegeliana, fazem uma defesa do desdobramento dialético das formas e com isso uma sofisticação delas e dos

sentidos, aquilo que tu chamas de uma crescente sofisticação. Lembro-me de alguns capítulos de Arte e Ilusão, nos quais Gombrich comenta o hiper-refinamento e a rigidificação das formas na arte egípcia e, depois, da crescente sofisticação delas na arte grega que libera numa outra direção a expressão artística, começando a trabalhar na interface com a reflexão e com a livre expressão. Então acredito que é bastante óbvio que o trabalho formal da arte se direciona para a sofisticação. E, inclusive, mesmo que digam que a arte moderna é a contraprova disso, essa alegação não é válida. Porque ela também é uma sofisticação. É a sofisticação de uma nova sensibilidade voltada para determinados detalhes, para os detalhes interiores, para o feio, o obsceno, o irrelevante-relevante, etc. Tudo isto não deixa de ser uma sofisticação.

Entrevista por Guilherme Mautone

Fotografia por Letícia Bertagna

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Francisco marshall

Apontamento: História

o teStaMeNto de

ducHaMPInterpretação iconológica de uma obra contemporânea: Etant donnés.

Tudo indica que a obra Etant donnés: 1° la chute d’eau, 2° le gaz d’éclairage (1946-1966), de Marcel Duchamp (1887-1968), deva ser lida em seu caráter testamentário. Foi a última obra de um artista que todos julgavam aposentado ou restrito ao enxadrismo, e foi cuidadosamente preparada pelo autor visando a sua apresentação póstuma. Está exposta no Philadelphia Museum of Art desde junho de 1969 e é um ícone da arte contemporânea, assinado por um dos três maiores nomes das artes visuais do século XX (com Pablo Picasso, 1881-1973, e um terceiro nome à sua escolha; cf. Paz, 1990). A obra possui em alto grau o que mais interessa ao intérprete, que é a determinação autoral na composição iconográfica. Como obra prima, apresenta grande rigor na organização formal, realizada como composição iconológica clássica. Etant donnés é um discurso visual interpretável com recurso a cânones e códigos da tradição humanística, da história da arte, da história das ciências e técnicas e com a história social do século XX.

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Duchamp era um homem com raciocínio sistêmico, com visão crítica da sociedade e um otimismo cínico quanto aos poderes do artista. Ele estudava em profundidade muitos temas da tradição, da filosofia e das técnicas, sobre os quais dialogava com seus amigos Picasso e Guillaume Apollinaire (1880-1918). Suas obras têm forte sentido platônico: revelam o peso das ideias, a força de conceitos e o fetiche da imagem. Devido à carga de pensar e de arte, sua interpretação requer abordagem metódica, descrevendo-se e decifrando-se os vários níveis que compõem a

obra, com os quais se esclarece uma proposição geral em que se revela, como em todas as suas obras, uma interpretação da cultura e da sociedade contemporânea. Ainda contemporânea, i.e., nós ainda estamos no horizonte de Duchamp. Com ele, rememoramos uma comunidade que nos aproxima de Mitra, de Diógenes, de Porfírio e de muitos magos herméticos da modernidade. Esqueça amnésia: a obra de Duchamp é densa em memória.

A obra é uma montagem cenográfica produzida a partir de um manual de instruções muito minucioso, editado por Duchamp e publicado postumamente (Duchamp & D’Harnoncourt, 1987). A cena erguida possui dois níveis, caracterizados como dois ambientes sensoriais. O primeiro é o umbral em que se inicia a evolução do observador e por onde se constitui uma experiência de observação e de contemplação curiosa. O segundo nível visual é o resultado desta observação, que se realiza como a percepção de um ambiente tridimensional montado pelo artista, em profundidade, com diferentes planos e formas; esta montagem projeta-se de modo vetorial desde o fundo e produz uma impressão visual específica na retina do observador. Esta impressão visual situa-se na fronteira entre o bi e o tridimensional, conferindo vitalidade escultórica ao ambiente cenografado. Esta realização constitui um recurso expressivo histórico de Duchamp, desenvolvido a partir de um efeito visual pesquisado na história da fotografia desde o século XIX: a produção de uma experiência sensorial estereoscópica por meio da visão de uma superfície plana. É o que hoje chamamos tridimensionalidade, mas neste caso estamos na fronteira, pois Duchamp cria algo meta-bidimensional e meta-tridimensional, simultaneamente bi e tridimensional. Há aqui a memória atualizada da história da perspectiva, de Andrea Mantegna (1431-1506) e Albrecht Dürer (1471-1528), e do estereógrafo, um aparelho para obtenção de imagens tridimensionais muito em voga ao final do século XIX e início do XX. Além desta interessantíssima experimentação e jogo com a espacialidade da imagem, este segundo nível da obra contém uma montagem cenográfica muito significativa, composta de ícones (sinais dotados de significados determinados) e símbolos, pontuações e sentenças. Por trás de um primeiro efeito surrealista, a composição se deixa explicar em uma sintaxe de formas e ideias clássicas.

Antes de descrever a visão e ver algo nela, temos que ler a legenda criada pelo autor. A obra tem um nome composto de prenome e sobrenomes: Etant donnés: 1° la chute d’eau, 2° le gaz d’éclairage.

Vista lateral de Etant Donnés

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Os curadores do Philadelphia Museum of Art traduziram o prenome Etant donnés como given: dado. É algo como “tendo sido dado”, “isto posto”, “o estado das coisas”... mais do que um jogo de palavras do autor dos ready-mades, étant donnés significa um olhar sobre a tradição estabelecida, no seio da qual o autor desenvolve uma enquete sobre memória, tempo, visão e condição humana, com perguntas e respostas. O primeiro sobrenome da obra, por sua vez, esclarece muito, e determina o sentido da imagem: La chute d’eau, a queda d’água, que se refere a um aspecto da paisagem que se estende do fundo desta ao primeiro plano, constituindo o ambiente da obra e estabelecendo a sua orientação espacial e sintática. Este movimento desde o fundo sublinha o significado de tradição já indicado no prenome: vem de lá, vem do fundo. A queda d’água evolui em um manancial, mas próximo do obervador o que se vê é um terreno formado pela trama de galhos secos, sobre os quais repousa um corpo aparentemente inerte. Da queda d’água aos galhos secos. Por contraste, o sentido da paisagem evolui do úmido ao seco. Esta progressão do úmido ao seco requer análise à luz do sentido iniciático antigo e do que diz Porfírio de Tiro (c. 203-309 d.C.) no texto mais célebre de toda a história das interpretações alegóricas, o Antro das ninfas (conhecido como De Antro Nympharum, c. 270 d.C., título latino de um texto grego). Étant Donnés e a iniciação antiga seguem do úmido ao seco (Heráclito de Éfeso, fragmento 126 DK). Além de iniciático, este vetor marca aqui a passagem do tempo e a oposição cósmica entre os elementos. Não é demais lembrar a motivação esotérica de Duchamp, sobretudo seu envolvimento com a tradição hermética, atitude compartilhada com muitos de seus contemporâneos, em particular Apollinaire, André Derain (1880-1954) e Picasso. O segundo sobrenome, Le gas d’eclairage – o lampião, designa o ícone central da obra, o lampião que é portado pela mão esquerda de um corpo feminino inerte (na verdade, um corpo estranho: entre o inerte e o vivo, já veremos). O autor anota com letras para que o observador não deixe de perceber: há um lampião, e este é central, é o ponto de chegada. Compreendidos os nomes e seus efeitos hermenêuticos, vejamos os dois níveis da obra.

O primeiro nível da obra constitui um momento iniciático clássico, o umbral. Só poderás ver transpondo o umbral. Seu desenho é propositalmente românico, com tijolos romanos clássicos, iguais aos que se vê, e.g., em Ostia Antica, ou em Pompéia, ou em qualquer sítio romano antigo; a porta, igualmente romana. Este umbral sublinha ainda mais o elemento de iniciação, que tudo indica ser mitraico, como aparece no texto de Porfírio e no Mithraeum de Ostia Antica. Os banhos de Ostia foram de-senterrados no início do século XX (publicados em 1913), impactando a geração de Duchamp, para a qual a arqueologia teve efeito espetacular (Marshall, 2009).Iniciar-se, aqui, significa adquirir um ponto de vista, e é isto que ele sugere ao observador: que entenda a observação como visão, e esta como iluminação. Se pensarmos a natureza da experiência visual aqui prometida, não pode haver dúvida: iniciática. Todavia, não é preciso tornar-se um xamã, ou seguir longa escola; basta ir a um Museu – esta mesma instituição que Duchamp, O umbral de Etant Donnés

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paradoxalmente, tanto ajudou a dessacralizar – para encontrar o proscênio de onde, com um simples gesto corporal (inclinar-se um pouco para ver, e ver) e a correta atitude mental (i.e., observar e interpretar), tem-se a visão.

E do que trata a visão? Como se fosse uma originalíssima câmara escura fotográfica, ela compõe um cenário que se projeta como imagem para a retina localizada no orifício observador. Esta pode sentir a tridimensionalidade, mas o espaço profundo está organizado sobre um vetor que compõe, por assim dizer, um resultado análogo ao plano bidimensional. Esta obra desenvolvemetaforicamente tecnologias antigas da fotografia e dá continuidade a experiências com a tridimensionalidade que sempre fascinaram Duchamp (Miranda, 2008). Na imagem formada, há poucos e muito significativos elementos. O primeiro, a paisagem, ponto de partida, foi comentado acima; conservemos da informação inicial a identidade do espaço, cosmológica e temporal. Quanto ao aspecto cosmológico, além da presença segmentada dos quatro elementos (ar, água, terra, fogo), que aprecem discernidos e ordenados, há também o efeito da observação iniciática, que costuma ter como objeto uma imitatio imago mundi, organizada como visão do cosmos e produtora de graus sucessivos de esclarecimento. É isso que o iniciado vê: uma imagem significativa do mundo.

O espaço observado, porém, comporta também a imagem muito inquietante de um corpo estendido no solo, branco e inerte o suficiente para parecer morto, mas vivo e vigoroso o suficiente para sustentar um lampião aceso. Esta imagem de corpo é a composição complexa de alguns ícones fortes para a cultura artística dos últimos 100 anos antes de Duchamp, da sociedade norte-americana da década de 1940 e, mais amplamente, da humanidade pós-freudiana. Primeiramente, história da pintura, a marca de Gustave Courbet (1819-1877) e seu L’Origine du Monde (1866), sublinhando a dimensão erótica da cosmologia. É provável que o primeiro olhar da maioria dos observadores dirija-se não à queda d’água, como prescrito por Duchamp, mas para a genitália em quase frontalidade, como induz o desidério imaginativo inato. Esta recepção de Courbet é, junto com sua Mona Lisa de bigodinho (L.H.O.O.Q., 1919) uma das generosas alusões de Duchamp à história da arte, talvez a mais significativa. Por trás deste corpo, porém, não está a ruivinha Joanna Hiffernan, provável modelo de Courbet, mas a lembrança de um dos corpos que mais marcou a retina surrealista, o do assassinato de Black Dahlia (Dália negra), ocorrido em Los Angeles no início de 1947 e registrado pelo fotógrafo Man Ray (1890-1976), a quem Duchamp visitou em 1948. Há na web um ensaio meio maluco mas interessante animando esta hipótese (Hodel, 2009). A matriz iconográfica é inequívoca. Ela diz, portanto, não apenas de sexo, cosmologia e origem, mas também de violência, de violência mórbida. A que vem esta lembrança da violência?

Este corpo contém, além disso e paradoxalmente, um braço forte e uma mão que segura firme o lampião. Considerando-se o vetor espaço-temporal, da queda d’água ao lampião, podemos especular sobre uma metáfora da relação morte-vida, pois a vida do braço e da luz acesa aqui sucedem a morte do corpo e do mundo subjacente. A morte do corpo e, com ela, a superação das paixões sensuais, são um tema central do rito iniciático neoplatônico, figurado, no texto de Porfírio por meio de alegorias do destino de Ulisses, nas quais representa-se a obtenção do conhecimento e a realização purificada do destino através da

O Mithraeum de Ostia Antica

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purgação do corpo e do destino, provados como o herói diante das sereias. Além deste possível significado iniciático, o contraste entre braço forte com lanterna e corpo inerte sobre os galhos secos pode conter outros significados; especule-os livremente, mas não os creia, jamais, fortuitos.

Ao término deste périplo, chegamos ao ponto central e também final, o telos da obra: a lanterna, e, com ela, o hipertexto que responde a muito do que a obra questiona: Diógenes de Sinope (c. 412-323 a.C.), o filósofo cínico, e sua mensagem de desdém e ironia para com a vaidade e outras cobiças normais da espécie. Este resultado é consistente com a estrutura iniciática da obra, e sua dimensão de rito revelador. O que revela Duchamp? Qual seu legado e testamento, obtido ao final de um périplo testamentário de investigação e de experimentação com a visão e as ideias, com a história e a condição do mundo e humana? É o legado de cinismo esperançoso da lanterna de Diógenes, que desdenha todas as vaidades, e ainda segue em busca do humano. Ao final da tradição, pois, Duchamp reanima um de seus fundamentos e o dramatiza como iniciação no museu: continuemos a investigação, há algo após a perfeição do número 10.

Referências:Duchamp, Marcel. Manual of instructions for Marcel Duchamp, Étant donnés, 1⁰ la chute d’eau, 2⁰ le gaz d’éclairage. Philadelphia: Philadelphia Museum of Art, 1987. [56] p. [reeditado em 2009].Hodel, Steve (2009) http://207.56.179.67/steve_hodel/2009/08/black-dahlia-crime-scene-inspi.html, vista em 07/08/2010.Marshall, Francisco. Freud colecionista. Video-documentário sobre Freud e a arqueologia, 2009, 16’. In: http://moviolafm.blogspot.com.Miranda, Luís Carlos. Marcel Duchamp: De “La Mariée…” ao “Etant donné” - Parte I, 2008, in http://www.elsigma.com/site/detalle.asp?IdContenido=11670, vista em 07/08/2010.Nelson, Mark, & Bayliss, Sarah H. Exquisite corpse. 2008. http://exquisitecorpsebook.com/ e http://exquisitecorpsebook.blogspot.com/, vista em 07/08/2010.Paz, Octavio. Marcel Duchamp ou o castelo da pureza. São Paulo, Perspectiva, 1990.

Registro gráfico e digital da visão de Etant donnés.

Francisco Marshall é historiador, arqueólogo, iconologista e cliósofo, também é professor do depto. e PPG História IFCH-UFRGS, do PPG Artes Visuais do IA-UFRGS, fundador e curador cultural do StudioClio Instituto de Arte & Humanismo.

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Resenha

Alice Souza

1 René Descartes (La Haye

en Touraine, 31 de março

de 1596 — Estocolmo, 11

de fevereiro de 1650) foi

um filósofo, físico e mate-

mático francês.

2 John Locke (Wringtown, 29 de agosto de 1632 — Harlow, 28 de outubro de 1704) foi um filósofo inglês considerado o principal re-presentante do empirismo britânico.

3 George Berkeley (Con-dado de Kilkenny, 12 de março de 1685 — Oxford, 14 de janeiro de 1753) foi um filósofo irlandês.

Eu, marco zero.

Tudo o que sei, que vejo e que sinto parte de mim, meu corpo é o marco zero do mundo, é a fresta por onde o percebo, recebo e capturo os fragmentos que me cercam. A afirmação se baseia no raciocínio que Merleau-Ponty, filósofo fenomenologista francês (Ro-chefort-sur-Mer, 1908 – 1961), defende e que O olho e o espírito, último escrito concluído antes de sua morte, retoma de maneira complexa e eficaz.

A fenomenologia moderna de Merleau-Ponty bebe de fontes diversas e plurais. Não obstante muitas vezes os pensamentos sejam discordantes, não faltam referências bastante recorrentes ao pensamento idealista de Des-cartes1 , por exemplo. Diferentemente, o empirismo de John Locke2 (embora não seja tão anunciado como o cartesianismo que autor frequentemente cita e reto-ma), além de ter influenciado os ideais do Iluminismo francês e pensadores deste período como Rousseau, Diderot e Voltaire, vem a somar e também pode ser considerado como uma teoria bastante importante à qual a fenomenologia deve fortemente. O empirismo anuncia, já na segunda metade do século XVII, ideias que contestavam o teor idealista da teoria cartesiana evidenciada na primeira metade deste mesmo século. O que Locke propõe é uma linha filosófica que é con-trária à noção de verdade inata e que vai de encontro ao caráter universalista, dogmático e essencialista que propunha o pensamento de Descartes. Desta forma, o empirismo se inclina à ideia de construção do conhe-cimento pela experiência e ao caráter particular de cada ser, evitando qualquer tipo de valor generalizador e impessoal, sendo, por isso, grande colaborador para a fenomenologia. Ainda que de maneira mais remota, é possível associar esta disciplina da filosofia também ao imaterialismo de Berkeley3, pensamento em que há a mistura de um caráter platônico com noções mate-rialistas. Para o filosófo irlandês, as coisas tem de ser notadas para existirem de fato, portanto tudo são ideias, ser é ser percebido, sendo este um pensamento que quase beira o dogmatismo.

Tendo-se alguma noção histórica e após essa brevís-sima e bastante simplificada apresentação/listagem de alguns dos marcos filosóficos que influenciaram e con-versam com a fenomenologia, já é possível penetrar e compreender os apontamentos que o ensaio de Mer-leau-Ponty traz. Mesmo assim, O olho e o espírito não é

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4 MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espí-rito. (São Paulo: Cosac & Naify, 2004): p.33

um livro para ser lido uma vez apenas, às pressas – ele deve ser livremente revisitado a fim de que todo o seu detalhamento seja melhor absorvido e incorporado.

É com um frescor bastante vívido que o autor volta a questionar a pintura, a maneira como ela é percebida por quem a observa e como é concebida pelo pró-prio artífice, considerando sempre o corpo que carrega os olhos que, por sua vez, percebem o mundo e se apropriam dele juntamente a outros órgãos, sentidos e partes sensíveis do ser humano.

Como corpo, como pedaço de carne sensível e viden-te-visível que todos somos, considerando que vemos e que podemos ser vistos, o autor se coloca no centro de tudo: “O mundo está ao redor de mim, não diante de mim”4 , trazendo à tona questões que são nossas, seres dispostos no espaço, mas que também são da pintura, pois, afinal, como podemos definir o que é a perspec-tiva? Pense: nada está à frente ou atrás de alguma coisa, pois este juízo é relativo. Então como pode a pers-pectiva ser encontrada? Como pode ser representada em uma tela de modo que seja verdadeira e fiel? Da mesma maneira como este tópico é explorado pelo autor, também a linha, a cor e o espaço, por exemplo, são investigadas no decorrer do texto.

Insisto nos olhos, em falar deste complexo par de bo-las, por uma única razão: Descartes. Merleau-Ponty o cita algumas vezes durante o texto e a fenomenologia absorve alguns elementos da filosofia cartesiana, mes-mo que, por outro lado, também entre em profunda oposição com certos conceitos estabelecidos por ela. Para Descartes, o olho é o órgão teórico e superior, é através dele que se dá a forma mais aperfeiçoada de obtenção das informações que, virtualmente, passarão a ser o conhecimento do espírito. Enquanto Descartes foca na ideia de percepção total frontal, ou seja, de que o objeto precisa ser totalmente contemplado a partir do olhar para que seja compreendido em sua totalidade, Merleau-Ponty admite o olho como órgão sensorial associado ao resto do corpo em sua totalidade. O co-nhecimento, então, se dá através do contato sensorial, vivencial e visual do ser humano com todas as coisas que estão ao seu redor.

Um exemplo interessante é a Spiral Jetty de Robert Smithson. Se levarmos em conta a lógica cartesiana, só é possível compreender e perceber a obra se a enxer-garmos do alto, sobrevoando a paisagem. Entretanto, a percepção poderia existir de outra forma mesmo sem o sobrevôo, pois se pensarmos fenomenologicamen-

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te, também ao percorrê-la ou ao tocar as pedras que compõem a espiral estaríamos vivenciando e absor-vendo informações sobre o trabalho.

“O olho realiza o prodígio de abrir à alma o que não é alma, o bem-aventurado domínio das coisas, e seu deus, o sol. (...) É preciso tomar ao pé da letra o que nos ensina a visão: que por ela tocamos o sol, as estre-las, estamos ao mesmo tempo em toda parte, tão per-to dos lugares distantes quanto das coisas próximas”.5 Para Merleau-Ponty, o olho é de fato a janela da alma. Embora ele não o considere como o único órgão ca-paz de perceber o mundo, ele admite que através dos olhos podemos salvar tudo que está no exterior do ser e nos apropriarmos dessas visões (que se tornarão lem-branças) para sempre, podendo revivê-las a qualquer momento. O próprio autor descreve uma experiên-cia assim quando, em determinado momento do livro, mentaliza e descreve os azulejos no fundo de uma pis-cina cobertos pela massa d’água, por exemplo.

Deixando de lado a veia predominantemente marxista, a escrita de Merleau-Ponty neste escrito que envolve a pintura, o corpo e a arte, é vigorosa e, em diver-sos pontos da sua extensão, é profunda e poética, sem chegar a ser aborrecedora em nenhum momento. A maneira elegante e bem arranjada como o autor tece a sua trama complexa de pensamentos, com reflexões e conclusões muito bem costuradas é o que prende o leitor a um texto que, talvez não seja tão facilmente digerível em um primeiro contato, mas que, por essa mesma razão, não se esgota e tem aspiração a tornar-se cada vez mais interessante quando relido e repensado.

5 id., ibid.: p.42

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SuR, SuR, SuR, SuR…

coMo dIaGraMa:

MaPa + Marca

ricardo BasBaum

Crítica e Comunicação

O texto abaixo foi originalmente escrito para o evento Sitac – Simposio Internacional de Teoría sobre Arte Contemporáneo – em sua 7ª edição, janeiro de 2009. Anualmente, desde 20021, reunem-se na Cidade do México críticos de arte, teóricos, historiadores, artistas, curadores e intelectuais para debater questões da atualidade do campo. O diretor do Sitac VII, Cuauhtémoc Medina (crítico de arte, curador, historiador), convidou-me a participar do evento – mas, desta vez, de modo bastante particular: além de estar presente em uma das mesas, junto com outros artistas, para apresentar fala ou comunicação2 – como costuma acontecer em simpósios – o convite envolvia também a preparação de um diagrama, que deveria servir como emblema do evento (ou seja, figurar em todos os materiais de informação e divulgação, tais como cartazes, posteres, folderes, etc). Os diagramas que realizo, combinando linhas, palavras e outros elementos gráficos,

1 Aqui pode se ter um panorama do todos os simpósios já realizados: http://www.pac.org.mx/sitac/sitac-i-cronicas-controversias-y-puentes/2 A mesa de que participei ocorreu no dia 31 de janeiro e teve como tema “Desde el sur, para el sur: el despliegue de otra geografia”. Estavam também presentes os artistas Magdalena Jitrik, Roberto Jacoby e Fernando Alvim, com moderação de Daniela Pérez.

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frequentemente com utilização de campos monocromáticos, são estruturas cartográficas para mapeamento afetivo e relacional, mas que também indicam a efetivação de processos – procurando instaurar dinâmicas de funcionamento em que há produção de pensamento. Trata-se de plataforma de articulação das dimensões sensorial e conceitual, concebida como agente intersticial – dispositivo de contato entre uma situação real e outra potencial (ambas, próximas da variação e do múltiplo): além de apontarem para uma presença própria, autônoma e irredutível (o diagrama em contato corporal), procuram mediar tais contatos nos termos de cada inserção concreta, demarcando assim a produção de novos gestos e discursos1.

O desafio mostrou-se singular: trabalhar a identificação visual do evento como instrumento para, ao mesmo tempo, pensá-lo. É preciso indicar que Medina concebeu esta edição do Sitac a partir do eixo-temático “Sur, Sur, Sur, Sur…” – refrão construído em paráfrase à Oswald de Andrade, que registra “Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros.” em seu Manifesto Antropófago (1928): assim, a tarefa colocada pelo simpósio indicava os contornos de uma problematização geopolítica, no sentido de se procurar compreender o novo desenho da geografia da ação artística no planeta, sob o contexto da globalização, e o papel ativo inédito desempenhado pelo Sul nesse quadro. É deste modo que Cuauhtémoc Medina registra a questão, no programa do evento, por ocasião das conferências de abertura:

Con todo y las desigualdades de poder institucional y simbólico, el Sur ha adquirido un nuevo protagonismo en la textura de la imaginación global. Esta importancia se manifiesta no sólo en la ampliada geografía de la actividad cultural, sino en las superposiciones, tensiones y corrientes de pensamiento, fantasmas y sombras que lo habitan. Esos cambios, no han sido una concesión graciosa: son el resultado de la contraofensiva cultural que sobre todo desde fines de los años 1980, planteó el cuestionamiento de la división geográfica del poder cultural y la crítica de los efectos del colonialismo. Ha llegado el momento de someter esa empresa colectiva a un balance.2

Logo, o texto que aqui apresento procura contextualizar o desenvolvimento particular do diagrama para o Sitac VII, a partir das questões trazidas pelo evento. Assim, o que era já uma ‘dupla’ tarefa (marcar/pensar) transformou-se em ‘tripla’, pois ao gesto de (duplo) desenho somou-se a escrita (e a fala), agregando de fato mais uma camada – discursiva – à intervenção plástica pretendida. Um detalhe é importante: uma versão do diagrama, ampliada, foi instalada na ampla sala de conferências do evento, situada no Centro Cultural Universitário Tlatelolco, utilizando como suporte os módulos iniciais da longa parede lateral de vidro: o material empregado (impressão sobre vinil translúcido) permitia transparência, e assim uma consistente luz azul (cor utilizada no fundo do desenho) invadia o espaço todos os dias. Para ser adaptado às grandes dimensões do local, o diagrama ali instalado se reconfigurou em três grandes blocos, que repetiam e desconstruíam o desenho principal – cada bloco ocupando área de 6,2 x 7,5m, compreendendo uma extensão total de pouco mais de vinte e dois metros lineares. Ou seja, os três dias de conferências ocorreram sob a constante presença do longo diagrama Sur, south, sul, ao fundo da sala, em sua lateral.

1 Registro aqui referências de dois textos de minha autoria recentemente publicados, acerca dos diagramas: “Diagrams”, in Peio Aguirre e Emily Pethick (Orgs.), The Great Method. Utrecht, Casco - Office for Art, Design and Theory, 2007; “9 Choreographic Diagrams”, in Control Magazine, Londres, abril 2009.2 Cuauhtémoc Medina, programa, Sitac VII, 2009.

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Ricardo Basbaum, Sur, south, sul, 2009

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Gostaria de desenvolver minha apresentação neste Sitac VII tomando como referência o diagrama que foi desenhado especialmente para o evento, a partir de convite de Cuauhtémoc Medina. Como sabem, Cuauhtémoc procurou-me com esta generosa proposta, envolvendo dois caminhos simultâneos e não necessariamente convergentes: por um lado, desenvolver uma imagem que funcionasse como ‘marca’ ou ‘emblema’ do Sitac VII; por outro, desenhar uma diagrama que ajudasse a pensar o evento. Dupla tarefa: ‘marcar’ e ‘pensar’ – não necessariamente nesta ordem. Claro, se um desenho – mapa, diagrama – é convocado a servir de ferramenta para produção de pensamento, é porque está já posto o desejo de se pensar de outra forma – pensar sensivelmente, sensorialmente, pensar o ainda não-articulado, o impensado. Além disso, se o desenho quer também deixar marcas, produzir uma marca sensível, então este desenho é sobretudo um gesto, uma ação que interfere e deixa registro, traço. Portanto, o convite se efetiva enquanto produção de um desenho – diagrama + emblema – que entende a ação de pensar como gesto que deixa traços, produz marcas. Todo pensar é político, em sua dimensão pública de produção de traços: há o reordenamento de uma situação, em público; há a proposição de um desenho que pretende mapear, marcar. Construção de uma memória artificial não abstrata a invadir o corpo, tal a ambição de envolvimento e impregnação do desenho-diagrama em seu formato de coração negro rasgado.

Tenho desenvolvido em meu trabalho o diagrama como ferramenta – ou seja, utilizando-o a partir da demanda de abrir e ocupar um tipo de espaço intermediário entre discurso e obra de arte. Há um processo de construção para se obter tal espaço, aglutinando palavras e tecendo um espaço dinâmico com linhas e diversos elementos visuais. Sobretudo, há a busca por instaurar no desenho índices de ritmo e pulsação: sem um adequado padrão rítmico o diagrama não funciona. Sim, pulsação, produção de ressonância, vibração rítmica – são a garantia de que o diagrama se move e produz as necessárias inscrições, sem as quais permaneceria abstração que não intervem, não move espaços nem ocupa regiões.

Cuauhtémoc Medina foi movido pela provocação de que o diagrama de Sitac VII pudesse funcionar de maneira homóloga ao desenho de Joaquim Torres-Garcia, Upside Down Map (1943). Sim, pode ser muito interessante lançar os dois desenhos lado a lado em provocação recíproca – dois mapas, de origens distintas e proposições diversas. De imediato, parece ser mais sensato recusar qualquer comparação – pois se trata de momentos históricos absolutamente diversos. É claro que TG movia-se em um contexto histórico-utópico moderno, buscando inserir Uruguai – e América Latina – como centros geradores de potência cultural. Em suas duas versões – uma mais geográfica, outra mais simbólica – TG não deixa de assinalar nos mapas as coordenadas do Uruguai, as quais se mantêm quando o mapa é invertido; no entanto este é um Sul posto acima, superior ao norte, que se estende acima do equador e portanto se posiciona de modo não ‘inferiorizado’. A identificação do continente sul-americano é imediata e o gesto claramente subversivo: a convenção cartográfica é desmontada e posta upside down – o que se busca é figurar no mapa, centralizar-se, delinear possibilidades de ação e intervenção.

Já no mapa Sur, South, Sul, desenhado para o Sitac VII, há uma deliberada deslocalização: não se está em qualquer região cartográfica facilmente identificável; não se sabe o que é mar ou terra, nem se esta região cartografada se inscreve em algum planeta identificável – supõe-se que estejamos na Terra. Mas que local é esse? Trata-se de alguma localização que se quer demarcar, intervir. Pode ser uma ilha, pode ser um continente. Os elementos cartográficos são substituídos

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por palavras e alguns poucos sinais gráficos – são as palavras principalmente que indicam as localizações, as quais deixam de ser cartográficas para se constituirem sobretudo como indicativos dinâmicos de um estado de coisas ou de uma intervenção pretendida. A deslocalização de faz a favor de um espaço de problemas: como indica a grande letra ‘X’ acima do mapa – aí estão postas diversas incógnitas, os ‘x’ dos problemas, as indagações. Sim, os processos de pensamento não se fazem com certezas, mas convicções de vulnerabilidade, indefinições enquanto aventura, atenção aos terrenos e contextos que se criam. Enquanto TG podia simples e genialmente trabalhar com uma imagem claramente ordenada e modificar sua gravitação, lançando-a ao centro das coisas – e é claro que houve aí o investimento militante de alguém que se dispôs a enfrentar as lutas de seu tempo, engajando-se nos combates políticos das vanguardas –, o investimento deste mapa/diagrama se dá enquanto forma impregnante, rasgada, entrecortada e concebida em termos de padrões rítmicos. É importante o cuidado rítmico que envolve este e outros diagramas que tenho produzido – enquanto ferramenta de intervenção; esta é então a modalidade da inserção pretendida: perceber as dinâmicas existentes e querer estar em meio delas, em algum turbilhão – mas não de modo ‘cacofônico’ de simples contatos desencontrados, meros entrechoques, mas sim ao modo polirrítmico. Onde há a ambição de se produzir marcas, há padrão rítmico, pulsação, ressonâncias; onde há ritmo, algo se torna público: há política, política de tambores. Constituir outras paisagens, outros cenários, imaginários, não somente para encontrar lugares mas sobretudo para localizar-se – a partir da água: como a inversão terra/água se relacionaria com a inversão norte/sul?

Uma coisa é certa e me interessa de modo constitutivo: os cortes e rasgos, que se perfazem a partir da incorporação da operação de descoberta e produção de linhas orgânicas, segundo foi proposto por Lygia Clark (1954) – furos produtivos na clausura das coisas, encontro de superfícies diferentes – se articulam no diagrama como pulsação. Reprodução, repetição, marcas nos corpos, memória: linha orgânica + política de tambores.

São muitas as questões a serem extraídas de uma arte e de um circuito brasileiros, quando confrontados com tal diagrama/mapa. Sobretudo a partir dos problemas do Sul e o modo como são contextualizados em um circuito particular. Como outras culturas do chamado mundo pós-colonial, também a arte brasileira teve que se construir a partir de uma condição de modernidade para além das matrizes européias – espaço conquistado ativamente, desde a elaboração de manobras diversas, em mistura de matrizes, até devoramentos extremos e combinações de diferenças. Belas possibilidades aí se abriram, exploradas em momentos importantes e ainda disponíveis, pulsando na atualidade enquanto instigante ferramenta de intervenção. Mas não há como ocultar o desconforto em emitir a expressão ‘arte brasileira’: sem qualquer tipo de ofensa, não há como acreditar plenamente em uma formulação que a todo momento só faz perpetuar exclusões, apagar diferenças, dissimular a existência de grupos em confronto e em disputa de poder e hegemonia. Sempre que se perpetua a expressão ‘arte brasileira’, parece que o rico contexto local se reduz a um colecionismo privado narcisista e limitado – por mais divisas que isso possa trazer ao país, é de se convir que é muito pouco, quase nada, frente às intervenções que a arte pode produzir nas redes conceituais, relacionais, afetivas, etc. Por outro lado, talvez seja melhor ‘deixar quieta’ tal emblemática expressão (arte brasileira), como se fosse algo com o qual seria melhor nem se relacionar – existem outros problemas mais interessantes, mais importantes: tal como se propõe aqui e se articula no mapa, a repetição sur, sur, sur, sur…

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é pretexto para se construir outro contexto, além das fronteiras políticas, em que o território a se configurar não se propõe a abrigar tudo ou todos – não se trata de exclusão, mas de constituição de pertencimento a algo maior e mais interessante. Quando se traz a expressão “conceitualismos do sul” – mesmo que se queira torná-la mais precisa – o que está em jogo é a busca e compreensão das ferramentas de construção deste outro pertencimento, parcial, local, mas em rede por diversos países e grupos; localização, forma de ação, gesto de intervenção. O que há são inscrições em um campo – e porque não construir ao mesmo tempo o contexto e sua possibilidade de inscrição; imaginar o mapa desta paisagem e torná-lo efetivo para poder percorrê-lo, transformá-lo, deformá-lo e mesmo – como fez TG – invertê-lo quando for o momento?

Talvez um dos aspectos mais despotencializantes das relações norte x sul, tal como se têm configurado, seja a dificuldade de emissão de vozes através das redes hegemônicas: participar de conversas, fazer-se ouvir, tomar parte em emissões amplas. Mas, afinal, não se trata de simplesmente estar nos espaços institucionais de emissão forte; não basta basicamente querer estar ali, conquistar o direito de atuação no centro hegemônico; a tarefa seria constituir outros percursos que podem ou não se impor – e isto seria necessariamente resultado de uma ação coletiva para além das fronteiras políticas. Refazer mapas seria também registrar vozes em outra geografia: enfatizar a importância dos veículos que estamos a produzir; renovar estratégias de contaminação, construir certa autonomia de deslocamento. A partícula que invade o diagrama, no alto à esquerda, é um tipo de signo verbivisual tal qual vírus extra-artístico1. Dispositivo para ações, plasmado em contato direto. É preciso estabelecer redes de ação além das fronteiras locais; contaminar outros, deixar-se ser contaminado.

Um mundo dividido por convenções geográficas somente pode ser compreendido a partir dos aspectos simbólicos desta divisão: basta um pequeno deslocamento de ponto de vista, para desmontar toda esta geografia, determinar miradas com outros posicionamentos. Tal divisão convencional não dá conta da diversidade e complexidade do mundo. Quando se quer comunicar algo, procura-se uma rede afetiva de afinidades – aí se tem um centro (transitório, volúvel, volátil, não importa): traçar tais linhas, demarcá-las no mapa, já é ação de intervenção de considerável contundência, pois se está na contra-corrente do hábito, trazendo à superfície outros caminhos e territórios possíveis. Pois é isso que o diagrama-mapa-marca Sur, south, sul procura indicar: desde políticas de subjetivação (eu x você) até lutas territoriais, está-se sempre a abrir frestas, no corpo individual e corpo coletivo: o que há são contatos, relações, conflitos, combates. Este é um mapa sem geografia, antimapa enquanto circuito, conglomerado orgânico agregado ao organismo e lugar de movimentação coletiva, trânsito de muita gente. Aqui não há escala definida a priori: o desenho pode estar a circular em nosso corpo (partícula, marca da experiência) e configurar os caminhos para encontros aqui agora, entre muitos (territórios de trânsito entre eu e você, nós e eles) – ou seja, ao mesmo tempo muito pequeno e muito grande (não acessível a um único golpe de olhar).

Se, em resumo da proposta deste evento, temos o “Conceptualismo der Sur” como “contraofensiva cultural” – uma “história de la militancia y del margen” a partir

1 O extradisciplinar “Comienza fuera de la jerarquía de las disciplinas y se mueve a través de ellas transversalmente, adquiriendo estilo, contenido, aptitud y fuerza discursiva en el camino. La crítica extradisciplinaria es el proceso por el que las ideas afectivas – i.e. las artes conceptuales – se vuelven esenciales para el cambio social.” Brian Holmes, “Manifesto afectivista”, México DF, des-bordes.net, número 0, http://des-bordes.net/des-bordes/brian_holmes.php

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da “especificidade local con la ambición de significación global”2 – é porque acreditamos que isso possa estar simultaneamente dentro e fora de nossos corpos.

2 Os termos entre aspas aqui citados foram retirados do texto de apresentação de Cuauhtémoc Medi-na para o Sitac VII. Estas quatro frases, impressas em espanhol e inglês, foram utilizadas na instalação final do diagrama nas janelas do auditório do Centro Cultural Universitário Tlatelolco, tomando parte na composição da porção lateral direita.

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o PleNo

ou o vazIo

Terça-feira, dia 17 de novembro de 2009, 18 horas. O Espaço Ado Malagoli no térreo do Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul em Porto Alegre estava inopinadamente ocupado.

Horas antes, Eduardo Montelli e eu chegamos ao local com seis televisores, quatro aparelhos de DVD, uma montanha de extensões elétricas e um pedaço de adesivo de vinil recortado. Era o nosso material de trabalho. Com agilidade, dispusemos os aparelhos no chão, fizemos as instalações elétricas e aplicamos a adesivagem. Tínhamos enfim tomado aquele lugar.

Durante semanas havíamos observado o Espaço Ado Malagoli desocupado. Vez ou outra havia ali algum móvel velho, que provavelmente esperava ser recolhido pelo patrimônio da Universidade.

O espaço, sob a coordenação do Centro Acadêmico Tasso Correa, é destinado a exposições dos alunos do Instituto de Artes. No entanto, o que se

Juliano Ventura

Apreciação Institucional

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via eram longos períodos em ociosidade, sem nenhuma mostra, sem programação. E nenhuma chamada de propostas havia sido realizada em 2009.

Aquela insistente desocupação tomava naquele momento um sentido bastante forte para nós. O engessamento daquele espaço poderia refletir o engessamento de um conjunto de coisas com as quais estávamos diretamente envolvidos.

Ocupá-lo seria marcar uma posição frente a essa conjuntura, certamente. Mas como ocupá-lo de forma a não sobrepor com um conteúdo qualquer aquela situação? Não poderíamos simplesmente fazer uso dos dispositivos mais óbvios; teríamos que reestruturá-los.

O objetivo estava definido: tomar subitamente aquele espaço. Passamos então a dar forma à proposta. Buscamos em nossa produção trabalhos que pudessem de alguma maneira se colocar proximamente àquele lugar.

Decidimos que o suporte para a proposta seria o vídeo. Faríamos uma videoinstalação no formato de uma exposição. Uma videoinvasão.

Quatro vídeos compuseram O PLENO ou O VAZIO. “Não basta” e “Golpes de luz em ambiente de vídeo”, de minha autoria, foram ambos gravados em espaços expositivos. O primeiro na Pinacoteca Barão de Santo Ângelo, a outra e mais importante galeria do Instituto de Artes. Já o segundo foi gravado em 2008 em um dos armazéns do cais do porto de Porto Alegre, local que é ocupado em anos ímpares pela Bienal do Mercosul e que, naquele momento, estava aparentemente abandonado.

Eduardo Montelli realizou o vídeo “Ninguém vive só de laranja” usando fragmentos das imagens divulgadas pela imprensa da então recente invasão do Movimento dos Sem Terra a uma fazenda no interior do estado de São Paulo. O impacto das imagens do vídeo de Eduardo, acredito, fez vibrar em O PLENO ou O VAZIO os sentidos de uma invasão, seus propósitos e despropósitos.

“Burning Car” do coletivo dinamarquês Superflex completou o conjunto de vídeos. As ações do coletivo formado pelos artistas Rasmus Nielsen, Jakob Fenger e Bjørnstjerne Christiansen enfocam as relações econômicas e sociais, num contínuo e articulado trânsito entre o campo da arte e o campo social. O vídeo, que mostra um carro sendo completamente destruído pelo fogo em seus onze minutos de duração, está disponível em alta resolução para download no próprio site do Superflex. A ideia de inserir esse trabalho clandestinamente em O PLENO ou O VAZIO surgiu ao percebermos que algo muito próximo à pirataria é indissociável à maioria dos projetos do coletivo, como “Copyshop” e “Supercopy”. E percebemos isso como margem ao nosso gesto de curadoria.

Havia ainda duas televisões que, por estarem estragadas, não exibiam vídeos. Dispostas no chão e ligadas à corrente elétrica da mesma forma que as outras quatro, elas receberam a seguinte identificação: TV ESTRAGADA, Eduardo Montelli e Juliano Ventura, 2009.

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Sob o título dos famosos trabalhos de Yves Klein e Arman, a videoinvasão seguiu sendo planejada em silêncio. Apenas algumas pessoas muito próximas sabiam do projeto. Como o espaço seria ocupado indevidamente, a movimentação teria que ser um tanto sorrateira. E assim foi.

No dia subsequente à realização da proposta, foi definido com o Centro Acadêmico um período para a permanência do trabalho naquele espaço. No mesmo dia, a Secretaria de Comunicação do Instituto de Artes passou a divulgar a videoinvasão como faz com todos os eventos institucionais. Do dia 17 ao dia 25 de novembro de 2009, as televisões, os vídeos e os sons de O PLENO ou O VAZIO mantiveram-se presentes naquela fissura do térreo do Instituto de Artes. Já no dia 26, o espaço, como de costume, ficou novamente vazio.

Ainda no fim de 2009, mais uma mostra foi realizada no Espaço Ado Malagoli. Em 2010 foi aberto um edital para seleção de propostas de exposição, que têm ocorrido lá num ritmo considerável. Por coincidência, o vídeo “Burning Car” voltou a ser exibido em Porto Alegre – desta vez oficialmente – em abril deste ano, na 5ª edição do projeto Videoarte nos Jardins do DMAE, promovido pela Coordenação de Cinema, Vídeo e Fotografia da Secretaria Municipal da Cultura.

Este texto relata a experiência de um trabalho realizado por dois jovens artistas e acadêmicos num contexto bastante específico. O Espaço Ado Malagoli é marcado, para além das suas insuficiências estruturais, por um desfoque institucional. Contudo, não acredito que as proposições de O PLENO ou O VAZIO se encerrem nessa camada de invisibilidade. Talvez, ao menos para quem pôde de alguma forma ter contato com o trabalho, essas proposições direcionem-se naturalmente para possibilidades de aproximação com os limites desfocados dos circuitos institucionais.

O PLENO ou O VAZIO

Fotografia: Eduardo Montelli

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Apreciação Institucional

NotaS da vocaçãocoletIva e eXPerIMeNtal

do Porão do Paço

Subsolo, parte da terra logo abaixo da que se avista para o cultivo de coisas.1 Na área das Artes Visuais, subsolo pode ser leitmovit para atos que não se mostram facilmente à superfície, atos que podem aflorar como pensamentos ou vibrações no espaço.

Assim emerge uma observação do caráter experimental de grande parte das apresentações artísticas realizadas no Porão do Paço a partir de 2004, espaço expositivo localizado no andar subsolo do prédio histórico da Prefeitura Municipal de Porto Alegre, de onde é possível avistar, através de suas janelas, os pés de quem transita na superfície da Praça Montevidéo, centro da cidade.

Instituição pública, o Porão é administrado pela Coordenação de Artes Plásticas (CAP), órgão vinculado à Secretaria Municipal de Cultura (SMC) da capital gaúcha, que disponibiliza 4 salas interligadas de exposição: Sala da Cadeia, Sala das Colunas, Sala de Acesso e Sala da Escadinha, perfazendo aproximadamente 350m2. 1 Dicionário eletrônico do Aurélio – Século XXI.

JorGe soledar

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Contudo, essa configuração institucional,1 que demarca claramente os espaços para exposição, permite também torná-las imprecisas pela proposição de alguns projetos selecionados pela CAP, quando observamos que suas realizações (sons, performances e/ou dispositivos instalados) praticam com certa liberdade pensamentos numa esfera pública, normalmente, ligada à mera superfície das experimentações e dos temas artísticos.

Destacamos dois projetos distintos que, a nosso ver, contribuíram para este ponto: o projeto “Contemporão” e a instalação, “Residuu”. O primeiro, realizado em 2004, teve a curadoria de Gabriela Motta e o trabalho dos artistas Adriane Vasquez, Cristiano Lenhardt, Cristina Ribas, Luiz Roque, Marcos Sari, Maria Paula Recena, Pedro Engel e Tiago Giora;2 e o segundo, em 2005, esteve inserido no vetor curatorial chamado “Direções no Novo Espaço”, da 5ª Bienal do MERCOSUL, com a curadoria geral de Paulo Sérgio Duarte.3

O projeto “Contemporão” foi então uma iniciativa coletiva caracterizada, grosso modo, pela experimentação curatorial, poética e difusora. Publicando o documento de trabalho “Jornal Contemporão”, contendo textos de Alexandre Santos, Luis Roberto Targa, Cláudia Paim e Rommulo Conceição, e imagem de capa da artista Mariana Rotter, a iniciativa contribuiu, como se percebe, para o senso da expressão “vocação coletiva do Paço”, corrente pela menção que agentes públicos, artistas e teóricos fazem do projeto como referência ao caráter coletivo que salientam. Assim, ao nos limitarmos ao elenco de seus participantes, em relação ao desenvolvimento dos seus temas particulares (curatoriais e poéticos), pretendemos somente frisar essa iniciativa como marco experimental neste espaço institucional e público.

Entretanto, na esteira do projeto “Contemporão” percebe-se a falta de dispositivos oficiais que reúnam dados ou acervos documentais de Arte Contemporânea produzida pelo circuito gaúcho, de modo que listamos apenas aqueles cujas táticas de difusão e de documentação foram localizados,4 como: “Infiltrações” (2009), iniciativa do grupo Cine Água, formado por Dirnei Prates e Nelton Pellenz;5 “ZEDE ETES - O Estranho Equívoco de A. Hilzendeger Feltes” (2008), do Grupo Ío, formado por Laura Cattani, Muni Klamt e Guilherme Klamt;6 “Quando não soubermos mais COMO” (2007), do Grupo Mergulho, formado por Ali Khodr, Camila Mello, Manuela Eichner e Jorge Soledar;7 e “Porões A-paralelos” (2007), do grupo A-paralelos, iniciativa de Eny Schuch, Niura Borges, Fernanda Stein e Paulo Guimarães, com a participação

1 As informações oficiais do espaço do Porão do Paço foram extraídas do sítio da Prefeitura Munici-pal de Porto Alegre na internet, através do endereço eletrônico: http://www2.portoalegre.rs.gov.br/smc/default.php?reg=7&p_secao=33. Acesso em 07 de julho de 2010.2 Informação extraída do release do projeto, veiculado pelo Canal Contemporâneo, através do en-dereço eletrônico: http://www.canalcontemporaneo.art.br/e-nformes.php?codigo=629#8bis. Acesso em 6 de julho de 2007.3 Informação extraída do site da 5ª Bienal do MERCOSUL, disponível através do endereço eletrô-nico: http://www.bienalmercosul.art.br/site/index.jsp?s=noticias_mostra&uid=81. Acesso em 14 de julho. (falta referência do ano)4 A maioria das iniciativas coletivas insere aos seus projetos artísticos, táticas de produção de mídias (blogs, impressos etc.) com a finalidade de documentar informações curatoriais, audiovisuais e de outros registros que, geralmente, as instituições públicas não preservam como acervo público de Arte Contemporânea. Motivo que dificulta obter dados que possibilitem a configuração de uma historio-grafia recente das Artes Visuais no circuito local.5 Cf. http://cineagua.blogspot.com. 6 Cf. http://www.grupo-io.com.7 Cf. http://corpoliquido.wordpress.com.

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do músico Arthur Barbosa.1

A segunda contribuição, que acreditamos ter assinalado deste modo o Porão do Paço, deve-se a uma leitura poética da instalação, “Residuu”, de Paulo Vivacqua, apresentada em 2005, durante a 5ª Bienal do MERCOSUL. Na ocasião, a instalação dispunha placas de vidro intercaladas por dispositivos sonoros sobre o solo e a parede, cuja ativação sugeria o estado de um ambiente vibrátil que pulsava os ruídos de um porão.

Por óbvio, outros projetos também ativaram, experimentalmente, o uso deste espaço no circuito contemporâneo. E compor seu elenco a fim de explorar seus conteúdos (configurando assim uma leitura historiográfica e recente com foco no Porão) abre-se como uma perspectiva que demandaria dos gestores a constituição de acervos documentais aos estudos e às experimentações da Arte Contemporânea, tornando perene, então, registos de uma intensa vibração entre artistas, ideias e processos.

Finalmente, ainda que os passantes que avistamos das janelas do Porão conheçam pouco o conteúdo de sua representação para as artes, é importante assinalarmos o Porão do Paço Municipal de Porto Alegre como uma galeria alternativa ao compartilhamento de novos processos, cujos documentos devem nos revelar interessantes campos de escuta e leitura que afloram por debaixo da mera superfície.

1 Cf. http://enyschuch.net/portfolio/pl_porao1.html.

Paulo Vivacqua, Residuu, 2005, instalação

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Campo Aberto

Práticas em si distantes e em ressonância não intencional, hoje, indicam que produzir e pensar arte demanda uma postura articulada frente aos espaços ocupados e aos elementos chave de sua estrutura. Por todos os lados, o encontro poético com a cidade firma-se como um dos principais motes de produção no panorama artístico observado. Também há uma considerável incidência de propostas voltadas à criação de formatos possíveis para exposição, paralelos ou tangentes aos eixos instituídos. Nos pontos que conferem a intervenção urbana e a movimentação do campo artístico podemos situar um interessante projeto intitulado Toll Gallery, iniciado na cidade de Montevidéu, Uruguai. Sua primeira implementação situa-se em um trecho da rua San José, muito próxima à principal avenida da capital uruguaia, 18 de Julio. Aos transeuntes que seguem seus caminhos pelo segmento, dois pequenos objetos coloridos instalados na calçada tencionam uma alteração do ritmo montevideano. Em um olhar atento, os recipientes hexagonais, antigos vasos de concreto para jardinagem, evidenciam sutis espaços de exposição. Como gesto de adaptação, as “salas” de interior branco abrigam curiosos objetos condicionados às suas dimensões. Está estabelecido um inicial marco de passagem. O projeto tem autoria de Agustina Rodríguez e Eugenia González,,

elias maroso

ProJeto

toll Gallery: formatos expositivos como interesse de criação

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artistas voltadas basicamente à questão do espaço público e a atitudes estratégicas no sistema da arte. Desenvolvem uma poética crítica no passo em que flexionam características do campo artístico como pontos de criação. Em seus trabalhos/projetos/obras há o movimento de decompor e reorganizar, de modo hipotético ou incisivo, os componentes do sistema vigente. Nisso, são apresentados ordenamentos próprios que instabilizam noções de artista (autoria), curador, obra, espaço expositivo (legitimação) e circulação. Toll Gallery (toll do alemão: estupendo, formidável, fantástico) insinua uma conjunção destes aspectos. A intenção primeira acolhe objetos encontrados no espaço público; tal atitude, em um só tempo, atribui às artistas a qualidade de propositoras e confere à criação uma face co-alimentada por demais propostas visuais. No ano de 2009, o projeto contou com mostras semanais de artistas uruguaios e de outras nacionalidades. Houve uma intensa circulação tanto de produções já reconhecidas no meio artístico quanto de processos em andamento. Gradativamente, o Toll Gallery toma forma, reconhecimento na esfera artística e, ainda, insinua uma disseminação efetiva para outros territórios. A flexibilidade em adaptar-se ao meio potencializou o surgimento de novos pontos do projeto, distantes do Uruguai. Uma segunda sede Toll foi inaugurada na cidade de Frankfurt, por meio de contatos com o coletivo alemão SpezLab. O princípio adotado foi o mesmo: criação de salas de arte em espaço público, apropriando-se de suportes existentes no entorno. Partindo deste feito, o projeto inicia o desenvolvimento de uma rede de galerias. Embora tenha sua gênese marcada por ações específicas das artistas uruguaias, a gestão de cada sede fica a cargo de responsáveis e dos meios encontrados no local onde está implementada, o que condiciona uma variação em seus aspectos organizacionais e físicos. Enquanto a sede “Tollmvd” (Montevidéu) permanece atualmente inativa, em latência, a “Tollffm” (Frankfurt) continua uma rotina de mostras mensais em sua sala única, instalada em uma zona residencial da cidade. Neste ano, A. Rodríguez e E. González colocam em prática extensões de sua obra, levando propostas semelhantes a distintos lugares no interior uruguaio. Também há uma recente movimentação de outros artistas e coletivos voltados para o desenvolvimento desta rede e, semelhante à Frankfurt, iniciam-se estudos para a implementação de novas sedes nas cidades brasileiras de Santa Maria e Porto Alegre. O que se inicia como produção crítica, referente aos cânones de uma estrutura instituída, adquire potência a ponto de estabelecer um modo paralelo e auto-organizado de circulação artística. Tais aspectos apontam uma possibilidade de prática não subjugada à direta intermediação institucional. Confere à ação conjunta de artistas e propositores o desenvolvimento de caminhos próprios.

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ambos, o comunicado e a exclamação, são a expressão da percepção e da vivên-cia visual. Mas a exclamação o é num sentido diferente do comunicado. ela nos escapa. - ela se comporta com relação à vivência de modo semelhante ao gri-to com relação à dor. Mas, porque ela é a descrição de uma percepção, pode-se chamá-la também de expressão de pensa-mento. - Quem olha o objeto, não preci-sa pensar nele; mas quem tem a vivência visual, cuja a expressão é a exclamação, pensa também naquilo que vê. e por isso, a revelação do aspecto aparece entre vi-vência visual e pensamento.

ludwig WittgensteinInvestigações Filosóficas

Investigação XI

Entre

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ambos, o comunicado e a exclamação, são a expressão da percepção e da vivên-cia visual. Mas a exclamação o é num sentido diferente do comunicado. ela nos escapa. - ela se comporta com relação à vivência de modo semelhante ao gri-to com relação à dor. Mas, porque ela é a descrição de uma percepção, pode-se chamá-la também de expressão de pensa-mento. - Quem olha o objeto, não preci-sa pensar nele; mas quem tem a vivência visual, cuja a expressão é a exclamação, pensa também naquilo que vê. e por isso, a revelação do aspecto aparece entre vi-vência visual e pensamento.

ludwig WittgensteinInvestigações Filosóficas

Investigação XI

Entre

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Rodrigo BragaRisco de desassossego 5 e 6Fotografia30 x 40 cm2004

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Rodrigo BragaRisco de desassossego 7Fotografia30 x 40 cm2004

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Túlio PintoCem unidades relocadasCem escoras de obra (3,5 - 4,5 metros cada)2010

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Elke CoelhoÁrea de Risco com núcleo fel-pudo (Série Coexistências)Palito de fósforo, acrílico e tecido16 x 16 x 5 cm2008

Elke CoelhoVerruga(Série Coexistências)Palito de fósforo e acrílico16 x 16 x 5 cm2008

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Elke CoelhoCasuloLâmina de barbear, algodão, madeira, vidro e alfinete30,5 x 30,5 cm (cada estrutura)2008

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Marina RheingantzEu, você, o parrudo e a pratolaÓleo sobre tela50 x 60 cm2009

Fotografia: DING MUSA

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Eduardo MontelliOrbis terrarumFotografia digital2010

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Nara Amélia MeloBennommenheitSérie O Grande Sofrimento da NaturezaÁgua-forte e aquarela30 x 30 cm2009

Nara Amélia MeloStummheitSérie O Grande Sofrimento da NaturezaÁgua-forte e aquarela30 x 30 cm2009

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Nara Amélia Melodas grosse Leid der NaturSérie O Grande Sofrimento da Natureza.Água-forte e aquarela30 x 37 cm2009

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Adriano e Fernando GuimarãesRespiração MaisPerformance2004

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Adriano e Fernando GuimarãesRespiração MenosPerformance2004

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Marcone MoreiraVisualidade AmbulanteIsopores revestidos com fitas adesivas coloridas2009

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isaBel ramil

Apresentação

aSceNSão

Acredito que a vantagem de ter uma péssima memória seja o fato de que nela permanecem somente algumas poucas coisas realmente interessantes. Eu tenho uma péssima memória. De uma das sessões de vídeos das aulas do extinto Torreão, lembro somente de um vídeo: Fear no Art, de Frederico Câmara. E é por me lembrar tão nitidamente (e tão somente) de Fear no Art, que o seu autor é o artista que quero apresentar nessa edição inaugural de Investigação n°11. Em seu texto para a curadoria que fez de uma das edições do programa Rumos do Itaú Cultural, da qual Fear no Art fez parte, Cristina Freire escreveu:

Algo se manifesta no campo da arte quando do belo passa-

se ao interessante como critério de valor. Para o artista

norte-americano Donald Judd, o interessante faz frente

à qualidade intrínseca da obra de arte, apregoado pela

estética moderna. Isto porque o interesse não é inerente

à obra, mas advém da relação entre o observador, a obra

e o contexto em suas múltiplas dimensões. (Freire, Arte:

Sistema e Redes, 2003, p.128)1

“”Investigação nº 11 | Volume I | 57

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Fear no Art não é um vídeo belo no sentido retiniano da coisa. Fear no Art é indubitavelmente um vídeo interessante. É simples: câmera na mão e uma escadaria no meio de uma trilha rústica. O artista sobe a escadaria. É o trajeto penoso do artista em busca da legitimação no sistema das artes. Para cada degrau corresponde um dos grandes nomes da história da arte, que são recitados um atrás do outro. A subida é exaustiva e parece interminável. Mas finalmente chega o topo, o peito arfa. É o fim da escada, e o que há adiante é uma descida íngreme de areia, com mato em volta. Não é fácil, não é linda, não é prometedora. Mas o movimento não pode parar. O movimento está nos espaços vazios a serem preenchidos; e o espaço é aquela estrada de areia. Por isso o artista, do topo, se joga imprudente a correr pela estrada. O vídeo de Frederico Câmara traduz a experiência do artista e de sua movimentação necessária, cansativa e solitária dentro do campo artístico. O belo dar lugar ao interessante talvez possa traduzir-se satisfatoriamente pelo estático dar lugar ao cinético. Por depender não mais de uma “qualidade intrínseca à obra”, mas de toda uma relação entre observador-obra-contexto, o valor de interessante das obras de arte pauta-se pela relatividade e indeterminação. A constituição de relações em rede e em constante movimento e mutação estabelecida na sociedade atual, nessa sociedade da informação, da imagem, da mídia, se refletem (inevitavelmente) na constituição do campo artístico contemporâneo. Artista, crítico, curador, galerista, público já não têm suas funções tão determinadas e separadas como outrora. Todos fazem parte e movimentam uma rede de relações complexa.

Se, num primeiro momento, a tarefa do crítico foi

arbitrar o gosto, louvável tarefa que muitos ainda não se

dispuseram a abdicar, hoje opera-se muito mais como

uma observação crítica e apurada dos mecanismos que

fazem mover esta engrenagem. Assim, aproximar-se da

obra não significa acercar dos olhos sua materialidade

sensível à maneira do connaisseur, mas, sim, compreender

criticamente os meandros desse sistema. (Freire, Arte:

Sistema e Redes, 2003, p.128)2

Interessante é entender como se movimenta o sistema das artes e como movimentar-se dentro dele. É conseguir captar as sutilezas do funcionamento de um mecanismo tão complexo e expandido. É não temer o sistema: fear no art. Frederico Câmara, em seu vídeo, parece ter conseguido entender e exprimir satisfatoriamente um dos movimentos que o artista realiza a duras penas dentro do campo da arte: o de ascensão.

Referências Bibliográficas1 – 2 FREIRE, Cristina. Arte: sistemas e Redes. In: Mapeamento Nacional da Produção Emergente. Rumos Itaú Cultural, 2003. p.128

frederico ozanam agostino câmara nasceu em Governador Valadares (MG), em 1971. Pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), formou-se em gravura em 1993. Fez residência no Vermont Studio Center, Vermont, Estados Unidos, 2000; no The Banff Centre for the Arts, Banff, Canadá, 2001; e na Fundación Valparaiso, Mojacar Playa, Espanha, 2001. Sua produção de videoarte é marcada por uma economia de recursos que lhe confere resultados documentais. Os trabalhos refletem sobre o papel do artista em relação às instituições culturais e sociais. Entre as exposições coletivas de que participou, destaca-se Trip, no The Banff Centre for the Arts, Banff, 2001. Vive e trabalha em Belo Horizonte (MG) e Amsterdã, na Holanda.

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Paulo Faria

Para Nelson Boeira, que saberá por que.

Apontamento: Estética

aBStração

e evaSãoNota sobre a pintura moderna

1. Alguns anos atrás, no curso de uma conversa com um grande pintor

brasileiro – um dos representantes máximos, entre nós, do que continuamos

a chamar, à falta de melhor nome, ‘pintura abstrata’ – tive ocasião de aludir

a certa ‘nostalgia da figuração’ que me parecia distintiva de suas elegantes e

austeras criações: telas em que a distribuição medida de umas poucas cores (não

raro, matizes de uma e única e mesma cor) evocava, irresistivelmente, ora uma

abertura (porta, janela), ora um umbral (arco ou pórtico), ora as colunas de algo

como um templo grego delineado em efígie.1

2. Essa observação valeu-me uma resposta que me deu muito que

pensar – e que hoje, quase seis anos depois, motiva esta nota. A saber (eu cito

1 O artista em questão é Paulo Pasta. Não posso garantir a exatidão de minha lembrança da conversa que aqui evoco. Por essa razão, peço ao leitor que tome essa evocação antes como uma ilustração do que um grande artista poderia ter dito que como uma reconstituição fiel das palavras que escutei, numa tarde calorenta da primavera de 2004, no atelier paulistano do pintor.

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de memória): ‘É mais do que nostalgia. A verdade é que eu não sei o que seja

pintura abstrata – acho mesmo que isso não existe, a menos que se trate de algo

muito superficial. Pois toda pintura – toda arte – aponta para alguma coisa; ou não

tem nenhum valor.’

3. Intendere (apontar) é o verbo latino do qual provêm ‘intenção’,

‘intencional’ - e, também, essa palavra do jargão filosófico, ‘intencionalidade’. Ter

alguma intenção é querer fazer alguma coisa: não qualquer coisa, mas uma coisa

(mais ou menos) determinada. É encontrar-se no estado ou atitude de quem visa

algo, mais ou menos específico. (Assim, os lógicos medievais distinguiam intentio

recta e intentio obliqua: se eu digo ‘Quero uma casa na praia’, posso estar querendo

dizer duas coisas muito diferentes: que quero alguma casa na praia; ou que há uma

casa determinada que eu quero. No primeiro caso (intentio obliqua, de dicto) quero

uma casa indeterminada, alguma casa; no segundo (intentio recta, de re), quero uma

casa determinada, aquela. Como resumiu, memoravelmente, Andréa Loparic, no

curso de uma aula na UFRGS nos idos de 1997: ‘A ambição é de dicto; a inveja é

de re.’).

4. A intencionalidade das intenções é apenas um caso da intencionalidade

dos estados mentais que se definem (diversamente, por exemplo, de uma sensação

térmica, de uma comichão ou de um estado de ânimo como a euforia ou a

depressão) por visar algum objeto. Intendere significa ‘apontar’, como faz o arqueiro

ao mirar o alvo (intendere arcum in). O objeto de minha inveja, no exemplo do

parágrafo anterior, poderia ser a casa de praia do meu vizinho; o objeto de minha

ambição, em troca, era, mais difusamente, alguma casa – quem sabe a dos meus

sonhos; mais plausivelmente, a de minhas possibilidades e oportunidades. Temer,

desejar, pensar, saber, acreditar, perceber, lembrar, amar, odiar (e a lista pode prosseguir

indefinidamente) são todos estados intencionais – como o são todos os estados

denotados por verbos psicológicos que tomam por complemento um objeto

direto (‘Joana odeia a música do Dream Theater’) ou uma oração subordinada

precedida pela conjunção ‘que’ (‘Pedro pensa que o Oasis é uma pálida cópia dos

Beatles’).

5. Tudo isso para assinalar que toda representação (toda figuração:

mental, verbal, pictórica, diagramática) é, por sua natureza, intencional. Como

todo ato ou estado intencional, toda representação – ela própria, o produto de

um ato intencional – é, necessariamente, representação de algo. Uma fotografia

é de uma praia, ou de uma torre, ou uma árvore, ou um grupo sorridente de

turistas. Uma descrição (a festa da princesa de Guermantes na Recherche du Temps

Perdu, o comício agrícola em Madame Bovary, o desapontamento de Isabel Archer

com Gilbert Osmond em The Portrait of a Lady) é sempre a descrição de algo;

e não precisávamos ter aprendido com Tarski para saber que a frase ‘A neve é

branca’ é verdadeira se, e somente se, a neve é branca. A proposição (que a frase

expressa) representa o fato possível que, se for o caso, a tornará verdadeira; como

certa tela detestável desse burocrata da pintura “realista” (já volto a isso), Jacques-

Louis David, representa a morte de Sócrates.

6. Mas, é aí que eu queria chegar, nem toda intencionalidade é

representacional. Há outros modos de visar (de orientar-se para) um objeto que

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representá-lo. O exemplo a que recorri para explicar a etimologia da palavra, o

arqueiro apontando para o alvo, já é uma ilustração disso: nenhuma representação

(nenhuma imagem, mental ou outra) precisa interpor-se entre o arqueiro e o

alvo: ele vê, diretamente, o alvo que tem diante de si, e para ele orienta a flecha.

Do mesmo modo, o marceneiro que emprega um martelo encontra-o ‘ao alcance

da mão’ (vorhand), e emprega-o tão hábil quanto irrefletidamente – e tanto mais

hábil é o usuário que menos precisa pensar sobre o utensílio que emprega.1

É assim que ‘by the hammer / by the blow / the nail finds its way’ (Gregory

Corso).

7. Essa intencionalidade não-representacional, parece-me, é o traço

distintivo de toda grande pintura que, por força do hábito, seguimos chamando

‘abstrata’: de toda pintura que, ainda que emancipada dos imperativos da

representação, não seja, como dizia o artista em quem eu vislumbrara uma

‘nostalgia da figuração’, ‘muito superficial’ – em suma, de boa parte de toda a

pintura que conta em nossa época.

8. Uma tela de Jackson Pollock ou de Willem de Kooning guarda o

traço do gesto do artista (por algo se falou em action painting), sem por isso

representá-lo – essas pinturas não representam nada. Mas, na medida em que

guardam esse traço e fazem dele a matéria da composição pictórica, não são

pinturas abstratas: não abstraem de nada, pois nada separam ou recusam, de nada

prescindem.2

9. Do que uma pintura que fosse genuinamente abstrata (superficial a

esse ponto) prescindiria? Da intencionalidade, não apenas da representação. Essa

pintura - que (ai de nós!) existe, está mesmo em toda parte - não apontaria (não

aponta) para nada; e é assim que chega a ser ainda mais superficial que certa

pintura figurativa meramente ornamental, que só mostra o que todo mundo

já viu (a mesma paisagem bucólica sem surpresas, o mesmo patético clown

lacrimoso), e cuja legibilidade ilimitada é a de uma ‘clareza que funciona como

um soco no olho: clareza que não esclarece, mas, bem ao contrário, reprime,

esmaga o labor da pulsão tendente ao esclarecimento.’3

10. Uma pintura genuinamente abstrata (pois isso existe: está nos

catálogos de nossas galerias de arte; nas listas de compras e comissões “por fora”

de arquitetos de interiores; em saguões de bancos e salas de espera de consultórios

médicos: em toda parte, igualmente inócua e sedativa) obliterou todo traço da

atividade intencional do artista, e de sua imersão no mundo e na história. O

que resta é, no sentido mais próprio do termo, abstração: separação, privação,

perda. E, tendo prescindido assim de seu autor,4 prescinde igualmente de sua

responsabilidade pela obra, por seu caráter de criação histórica, de gesto de um

homem endereçado a outros homens, ‘Not as ladder from Earth to Heaven,

1 Cf. Martin Heidegger, Sein und Zeit, Siebzehnte Aufgabe (Tübingen: Max Niemeyer Verlag, 1993), p. 69.2 ‘Abstrair’, do latim abstrahere, separar: abs-, ab-, ‘de’ (from, out of) + trahere, ‘tirar’, ‘puxar’, ‘trazer’. Abs-trair = re-mover.3 Gabriel de Britto Velho, Um Estudo: Arqueologia Provincial Fantástica (Porto Alegre: Editora Movi-mento, 1975), p. 984 Não por acaso, foi possível escrever programas de computador para gerar essa espécie de peças ornamentais.

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not as a witness to any creed / But simple service simply given to his own kind

in their common need’.1

11. Esvaziada de toda intencionalidade, purgada de todo traço da

subjetividade que a conformou, a pseudo-arte genuinamente abstrata (o

ornamento fútil de uma paisagem de interiores livre de toda interioridade

autêntica, de suas dificuldades e da responsabilidade que acarreta; mas também de

suas recompensas, da ‘verdadeira liberdade’ de que falava Clyfford Still) exonera

igualmente de toda responsabilidade (de todo esforço, de toda atividade, de todo

trabalho) seu espectador.

12. O espectador dessa pintura que não aponta para nada, pintura

degradada a ornamento, é mero espectador, constituído em sua passividade

completa por essa obliteração ativa da história, do tempo e da responsabilidade

pessoal que é o espetáculo (o vasto espetáculo da “indústria cultural”) que se

resignou a contemplar.

13. ‘O caráter fundamentalmente tautológico do espetáculo decorre do

simples fato que seus meios são ao mesmo tempo seu fim. Ele é o sol que jamais

se põe no império da passividade moderna. Recobre toda a superfície do mundo

e banha-se indefinidamente em sua própria glória.’2

14. Para não deixar dúvida: pelo critério que estou propondo, boa parte

da arte “figurativa” que ainda se produz é, estritamente falando, arte abstrata

– porque abstraiu, justamente, do que constitui a arte como arte, e a separa

do ornamento. Diante dessas figurações fechadas em si mesmas, num presente

perpétuo, sem antes nem depois, sem janelas para o lado de fora, o consumidor

não precisa fazer nada; mas isso é apenas o complemento rigoroso do nada que

lhe é oferecido pelo produtor. (O ornamento nunca aponta para nada. Não é essa

a menor das razões porque Loos entreviu uma relação estreita entre ornamento

e delito.)3

15. Todo mundo sabe que espécie de tratamento a República – a

‘cidade de palavras’ concebida por Platão4 – dispensaria ao poeta que porventura

a visitasse: ele seria coberto de louros e honrarias, como convém a alguém que

é ‘divino, admirável e encantador’ – e, em seguida, convidado a retirar-se.5 Um

estado justo não tem lugar para traficantes de ilusões.

16. De Platão a Freud, o impulso de buscar consolação na fantasia foi

denunciado como uma fonte, possivelmente a mais importante, de boa parte do

chamamos ‘arte’. A suspeita sobre a idoneidade moral dessas técnicas de evasão

nunca foi gratuita: e, em nossos dias, menos que nunca. Mas a denúncia da

evasão, que motiva a proscrição platônica dos artistas, tem sua contrapartida

no reconhecimento, que mesmo Platão não pôde recusar inteiramente, de uma

função inteiramente diversa – de fato, diametralmente oposta – da arte e da

1 Rudyard Kipling, ‘The Sons of Martha’ (1907), em Complete Verse: Definitive Edition (New York: Anchor Books, 1940), p. 381.2 Guy Debord, La Société du Spectacle [1957] (Paris: Gallimard, 1991), p. 21. 3 Adolf Loos, ‘Ornament und Verbrechen’ [1908], Nachdruck (Wien: Prachner, 2000).4 República, 592a5 República, 398a.

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experiência estética.

17. Nos ensaios reunidos em The Sovereignty of Good, e em outros

escritos, Iris Murdoch – que dedicou um livro à querela de Platão contra a

arte6 – atribuiu uma função essencial à contemplação estética na vida moral.

A atribuição depende do contraste entre o impulso à evasão, que produz a

arte menor, e o esforço de resistir a esse impulso e contemplar atentamente a

realidade, que produz a grande arte. A tese central de Murdoch é que o esforço

de resistir ao impulso evasivo e educar a percepção para o discernimento do

real é um esforço intrinsecamente moral, porque importa em subjugar o egoísmo

ao reconhecimento da alteridade do mundo e dos outros: ‘Silenciar e expulsar

o eu, contemplar e delinear a natureza com um olhar desimpedido, não é fácil,

e requer uma disciplina moral. Um grande artista é, em relação a sua obra, um

homem bom e, no verdadeiro sentido da palavra, um homem livre.’7

18. Essa tese tem um corolário que Murdoch não tarda em extrair: toda

grande arte – além de não ser nunca, como venho insistindo, “abstrata”, pois

aponta para além de si mesma – é (por isso mesmo) realista. Realismo não é um

gênero de arte: é o que distingue a arte desses expedientes de evasão que Platão

e Loos queriam proscrever.

19. ‘A apreciação da beleza na arte e na natureza não é apenas (apesar

de todas as suas dificuldades) o exercício espiritual mais facilmente acessível;

também é uma via de acesso inteiramente adequada à vida moral, e não apenas

uma analogia dessa vida, porque é a contenção do egoísmo no interesse de

enxergar o que é real.’8

20. Por esse critério, a ‘Morte de Sócrates’ de David não é um exemplo

de pintura realista – ao contrário de uma obra paradigmática (e suprema) do que

seguimos chamando (ainda uma vez, à falta de melhor nome) “expressionismo

abstrato”, como ‘Onement I’ (1948) de Barnett Newman. David, o cronista

pompier do bonapartismo, é abstrato e não é realista; por isso mesmo, é um artista

menor. Newman, o “metafísico”, é realista; por isso mesmo não é abstrato, e é

um artista essencial.

Porto Alegre, 28 de março de 2010

6 The Fire and the Sun: Why Plato Banished the Artists (Oxford: Clarendon Press, 1977)7 Iris Murdoch, ‘On ‘God’ and ‘Good’’, em The Sovereignty of Good (London: Routledge, 1991), p. 648 Murdoch, Ibid., pp. 64-65. Apresentei uma defesa da tese de Murdoch, aplicando-a especificamente à filosofia da música, em meu artigo ‘A escuta à distância: a propósito do Prometeo de Luigi Nono’, publicado em Filosofia Política, Série III n.2, ‘Ética e Estética’ (2001), pp. 118-133, do qual extraí parte do material nos cinco últimos parágrafos.

Paulo Faria é professor do Departamento de Filosofia da UFRGS

e pesquisador 1B do CNPq

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Jacques-Louis David, A morte de Marat, 1793Museu do Louvre, Paris

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Barnett Newmann, Onement I, 1948Museu de Arte Moderna, Nova York

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Texto de Artista

eu coNfIo eM vocÊ.

Desconfio dos artistas que produzem obras, somente obras; meros fazedores de objetos.

Desconfio dos artistas, críticos, curadores que, por temerem o fracasso, evitam o risco. Aliás, desconfio de todos que não assumem o risco.

Desconfio de curadores que utilizam obras para ilustrarem teses em projetos curatoriais. Encaixam obras em certezas totalizantes anteriores às próprias obras.

Desconfio, e cada vez mais, do uso recorrente da palavra negociação. Logo, desconfio do uso gratuito de palavras como fricção, tensão, política, poética, potência, intensidade.

Desconfio da falta de posicionamento crítico por parte dos artistas, críticos, curadores acerca da mercantilização exacerbada da arte.

Yuri Firmeza

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Desconfio do arsenal de feiras de arte mundo afora.

Desconfio das exposições cujo artista tem – como fator determinante para sua inserção na mostra – que ser representado por uma galeria.

Desconfio da maneira como a crítica é exercida por muitos – menos como intervenção no campo da cultura e mais como retórica.

Desconfio – mais que isso – tenho ojeriza dos artistas, críticos, curadores carreiristas.

Desconfio daqueles que criam com as próprias neuroses.

Desconfio das exposições que apresentam artistas ao invés de obras.

Desconfio da especulação, dos valores exorbitantes e da produção pautada pelo capital. Ainda assim, desconfio do moralismo e idealização daqueles que levantam a bandeira anti-mercado.

Desconfio – e detesto – a subserviência de artistas, críticos, curadores que, por terem rabo preso, obliteram-se diante de situações sociais gritantes.

Desconfio de curadorias sem texto crítico.

Desconfio dos artistas, críticos, curadores que afirmam que desconfiar do mercado é hipocrisia dos artistas, críticos, curadores que não estão inseridos no mercado e que, por isso, tratam de questioná-lo.

Desconfio do riso fácil.

Desconfio de curadorias – e de obras – em que o texto serve apenas de muleta. Ou melhor, desconfio das muletas.

Desconfio de exposições que homogeneízam os trabalhos expostos.

Desconfio dos hábitos, dos valores rígidos, das absolutas certezas, dos pensamentos cristalizados, dos pensamentos cristalizadores, dos pilares, das múmias.

Desconfio dos que não riem.

Desconfio de críticos, artistas e curadores que entendem por política a neutralização dos conflitos e empregam, desastrosamente, a palavra negociação como sinônimo de apaziguamento.

Desconfio daqueles que desconfiam demasiadamente.

Desconfio daqueles que não desconfiam de nada.

Desconfio do em termos gerais.

Eu confio em você, mas, talvez, eu não seja de confiança.

03 de Julho de 2010

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Texto de Artista

aNteS de

tudo:de onde eu falo, sobre o que falo e por que falo sobre isso?

1 A definição de artista deve ser tão complexa quanto àquela de arte, e por tanto, esquivo-me de tentá-la. Mas algo deve ser dito sobre esse assunto: a minha percepção consciente da decisão de querer ser um artista teve uma data definida. Essa percepção consciente atinge todos os artistas? Não sei! Não falo dessa consciência como algo entronizador da palavra arte ou artista, ou relacionado a um começo de produção. Nem falo, tampouco, com algum critério de valor, seja ele positivo ou negativo. Falo apenas como uma mudança de comportamento, de atitude e de percepção em querer enxergar mais objetivamente o próprio interesse por arte, a insistência no que se produz, e os porquês daquela produção. Esse querer e os seus porquês não se concluem facilmente; só proliferaram. E essa tentativa de percepção consciente se torna quase como uma perda de inocência para vários artistas.

2 Acredito que uma das formas do artista abordar seu próprio trabalho é a avaliação do artista através de sua própria leitura, procurando-se remeter aos

rommulo Vieira conceição

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processos que ocorrem durante a sua produção, tentando-se estabelecer relações com os seus pares dentro do sistema das artes, bem como situando o seu trabalho frente a esses pares e no contexto histórico. Tudo isso, entretanto, é apenas um raio de uma roda de bicicleta, que precisa de tantos outros para estruturá-la, suportá-la e deixá-la sempre em movimento.

Evidentemente que ao fazer a leitura e estabelecer as relações citadas, pode-se optar por escolher arbitrariamente um dos aspectos do trabalho ou do processo de criação. Desde algum tempo, durante a construção dos meus trabalhos, o aspecto escolhido tem sido o espaço físico, a atualização do seu conceito, a aproximação ou o afastamento da percepção deste conceito ao longo da sua atualização e como a abordagem dessa dificuldade de percepção pode traçar relações com a arte e com outras áreas e funcionar como um arcabouço para uma poética visual própria.

3 Ao abordar este tema, creio estar falando da posição de artista. Dessa forma, estendendo-se a definição de autor proposta por Foucault1 e trazendo-a para a de artista: como artista, eu sou uma soma de informações com diversas origens (pessoas, livros, paisagens, objetos, sentimentos, áreas...) que me subtraem inclusive o adjetivo de artista ou criador de qualquer coisa. Essa soma de informações se expressa no momento em que algo é gerado por mim e, dessa forma, esse algo gerado também representa essa soma.

No meu caso, uma das origens dessas informações vem do campo das ciências exatas, mais particularmente, a geologia. A geologia se caracteriza por ser uma ciência exata, mas com uma forma de abordagem de um fenômeno natural diferente da forma utilizada por outras ciências exatas, como física, química ou matemática. Parte disso deve-se ao fato de que até 1960, aproximadamente, a geologia ainda era uma ciência natural. Só naquele momento a geologia tenta quantificar mais precisamente os fenômenos que lhe interessam, mas essa tentativa resulta numa forma de abstração dos fenômenos naturais diferente da forma utilizada pela física, por exemplo. A abstração da física vem em parte da observação do fenômeno e do conhecimento abstrato da linguagem matemática. Na geologia, a abstração vem da observação do fenômeno e de uma capacidade imaginativa de gerar uma figura que represente o processo em si relacionado ao fenômeno: uma ilustração que possa ser mentalmente animada. O espaço físico é abstraído do seu próprio representar.

4 Mas já que eu falo da posição do artista, o que é arte para mim?

O conceito de arte que eu utilizo refere-se ao processamento e utilização de informações, idéias, materiais, meios (...) para abordar um determinado assunto de interesse, de forma a me aproximar ao máximo deste assunto. Considerando-se esta afirmação, assim como está expressa, ciência e arte, assim como as outras áreas do conhecimento, convergem em conceito. Entretanto, em artes, este processo de abordagem e o próprio assunto abordado se relacionam por meio do artista, levando em consideração todo o arcabouço de informações que o compõem e que o influenciam. Dessa forma, a arte se manifesta pela forma única, pessoal e individual da abordagem do assunto de interesse escolhido e proposto pelo artista. Mas, não se encerra aí. A partir de um trabalho considerado pronto e exposto ao público, a arte se manifesta num segundo momento pelo

1 Foucault mostra que não existe exatamente um autor, mas sim, autores. Mostra que o autor, na realidade é uma soma de informações que têm suas origens em vários lugares. Mostra ainda que, ao se ler uma frase, por exemplo, o leitor se torna autor no momento que a interpreta segundo o seu cabedal de informações.

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cruzamento desta abordagem única com a abordagem única do observador (que possui o seu acervo de informações). Este cruzamento gera informações que retornam ao artista e ao público e que, em um terceiro momento, enriquecem seus arcabouços de informações.

O que eu produzir, então, está inserido em um contexto. E nesse contexto, no campo do conhecimento seja ele de origem qual for, existem inúmeros conceitos a serem utilizados. Entretanto, os conceitos são mutáveis. Eles se atualizam em função do pensamento e das ferramentas disponíveis na época. A atualização em si de um conceito é o produto de uma soma de reflexões antigas e contemporâneas. Mesmo os conceitos básicos, como espaço físico, por exemplo, estão submetidos a esta soma.

A ideia dos trabalhos que tenho gerado é falar sobre como o espaço físico em si e sua percepção influenciam a sua própria percepção: o afastamento ou aproximação da percepção do conceito de espaço físico com a experiência do espaço físico, em si. Ao fazer isso eu acredito que eu não me coloco na interface entre o campo da ciência (ou de qualquer outro campo de conhecimento, com todas as suas especificidades) e o campo das artes (com todas as suas especificidades). Eu não falo a partir de uma interface de campos. Muito menos coloco a arte nesta interface. Eu falo de dentro do campo das artes. Mas utilizo um conceito que pertence a vários campos. O conceito em si (espaço, correlacionado à forma) e a sua atualização que estão submetidos à interface, não à arte.

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Proposta

BLOOM: (Bitterly) Man and woman, love, what is it? A cork and bottle.

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Elida TesslerInvestigação

2010Fotografia: Eduardo Montelli

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maria esther maciel

Apontamento: Outros Caminhos

corPo,

teXto e vISualIdade

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el cuerpo y sus partes; cada parte una instantánea totalidad a su vez inmediatamente escindida, cuerpo segmentado descuartizado despedazado, trozos de oreja tobillo ingle nuca seno uña, cada pedazo un signo del cuerpo de cuerpos, cada parte entera y total... Octavio Paz

I. Paisagens do corpo na cultura contemporânea

O signo corpo vem adquirindo – sob o impacto das mudanças de ordem econômica, social e tecnológica das últimas décadas – uma dimensão cada vez mais complexa e intrincada na contemporaneidade. Os avanços científicos no campo da medicina e da biotecnologia, a conversão da doença em um fator produtivo da economia global, o incremento das práticas de “building-

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”“

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body” (plásticas, tatuagens, implantes, próteses), o exercício da vigilância e da disciplina , bem como a atenção quase que exclusiva conferida hoje a um ideal de físico perfeito e saudável são algumas das linhas de força que incidem na maneira o corpo se inscreve na cultura contemporânea. O que tem deflagrado, conseqüentemente, uma vasta e não menos complexa miríade de teorias e reflexões sobre o tema, em distintos campos disciplinares.

Verifica-se, mais do que nunca, que o corpo ocupa um lugar privilegiado no tempo presente, como se ele fosse, hoje, o único domínio possível de afirmação de uma identidade social, cultural e política, diante de um horizonte instável e desprovido de utopias. Como afirma Francisco Ortega, hoje, não podendo mudar o mundo, resta-nos mudar o corpo, considerado “o único espaço que restou à utopia, à criação”1. Mas um espaço que, não obstante se afirme como o atestado concreto de nossa existência no mundo, se sustenta, paradoxalmente, numa “rejeição corporal da corporeidade” em prol de um de um ideal de corpo artificialmente moldado pelos imperativos estéticos do mercado, virtualizado e subtraído de sua “carnalidade”. Como afirma o pesquisador:

O virtual não é mais o oposto do real, aparece como seu prolongamento, e o corpo é basicamente uma imagem que se apresenta dotada de materialidade, em concorrência com a materialidade real do corpo físico. Trata-se de um corpo construído, despojado de sua dimensão subjetiva, descarnado2.

Sob esse prisma, ao investir no próprio corpo, tomando-o como espaço por excelência de uma suposta construção identitária, num processo que Ortega chama de “somatização da subjetividade”, o sujeito contemporâneo não faz mais do que transformá-lo – pela força dos clichês – em réplicas dos modelos corporais cultuados pela mídia e pela sociedade de consumo. O que não deixa de significar um conseqüente distanciamento (ou falseamento) do que de fato constitui um gesto criativo.

É mais ou menos no contrafluxo dessa tendência que alguns artistas contemporâneos têm atuado, enfocando o corpo fora de tais diretrizes, de forma a explorar suas múltiplas potencialidades enquanto uma realidade palpável, um objeto de carne, osso e vísceras, que deseja, sofre, adoece, tem sensações, e ao mesmo tempo se dá a ver como um depositário de imagens, inscrições, estigmas, códigos de identidade e de alteridade.

Este é o caso do cineasta britânico Peter Greenaway que, desde os anos 80, tem se dedicado ao signo corpo em seus filmes e trabalhos de artes plásticas, num viés distinto do que comumente se vê no cinema do nosso tempo. O corpo em diversas configurações físicas, idades e gêneros, em situações de prazer, doença, mutilação, tortura, morte e decomposição ocupa um topos privilegiado no repertório de imagens e conceitos do cineasta, adquirindo, em certos momentos, uma feição enciclopédica.

Corpos nus, femininos e masculinos, jovens e velhos, proliferam nos

1 ORTEGA, Francisco. O corpo incerto – corporeidade, tecnologias médicas e cultura contemporâ-nea. Rio de Janeiro: Garamond, 2008, p. 48.2 ORTEGA, Francisco. Op. cit., p. 14. O tema é denso e cheio de matizes, tendo sido abordado com muita competência por Ortega em seu livro.

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filmes, exposições e instalações do cineasta britânico, em meio a referências e citações extraídas de tratados de anatomia, compêndios médicos, manuais eróticos, obras de arte e textos literários. Nesse sentido, ele se desvia da tendência predominante do cinema comercial, que privilegia apenas o corpo feminino jovem, com uma nudez que funciona sempre como prelúdio para as cenas de sexo. Greenaway opta por reacender, no imaginário fílmico contemporâneo, a fisicalidade das artes plásticas desde a Antigüidade clássica, como antídoto “às noções de corpo como fonte de dinheiro ou do que entendemos ser saúde, medicina e longevidade”3. Com isso, ele se propõe a compor o que ele mesmo chamou de “enciclopédia fisiológica da humanidade”, na qual reverberam imagens de vários séculos, incluindo as representações medievais do corpo nu de Jesus Cristo recém-nascido ou crucificado. Nas palavras do próprio Greenaway:

Todos nós fazemos parte de um mesmo fenômeno da corporalidade e não quero particularizar e, menos ainda, corresponder aos estereótipos que a moda e a cultura contemporâneas exigem. O que eu quero é um uso onipresente do corpo em todos os seus aspectos, contendo tanto o de dentro quanto o de fora, o doente e o sadio, o mutilado, o deformado, o cego... É toda uma enciclopédia fisiológica da humanidade.4

Esse exercício enciclopédico fica nítido, por exemplo, em um projeto de curadoria realizado pelo artista-cineasta no Museu Boymans-van Beuningen de Roterdã, em 1991. Sob o título The physical self5, o trabalho consistiu na seleção e reordenação de itens e imagens pertencentes ao acervo da instituição, com o foco nas questões relacionadas ao corpo humano. Da imagem de um recém-nascido ainda coberto de muco e sangue – usada (com fins equivocados e controversos, segundo Greenaway) numa propaganda da grife Benneton – até obras canônicas da história da arte européia, passando por fotografias de Muybridge e reproduções de Andy Warhol, tudo o que se relaciona à condição física da espécie humana é aproveitado na exposição, de forma a se criar um leque de referências anatômicas, estéticas, sociais, éticas e políticas.

Em meio aos artefatos da coleção vêem-se, inclusive, corpos vivos e pulsantes, expostos em vitrines espalhadas estrategicamente pelo museu. As pessoas que servem de modelos (ou performers) são de diferentes idades, estaturas, volumes, e se colocam em várias posições. O propósito é levar os espectadores a comparar os corpos reais de homens e mulheres, jovens e senis, às aventuras da imaginação que as obras inanimadas do museu trazem em suas representações do “eu físico”. Figurações de partes avulsas do corpo (cabeças, pés e mãos), mulheres grávidas, partos, casais em cenas eróticas, criaturas mitológicas compõem as seções da grande exposição. Acrescente-se aí um conjunto de objetos referentes ao tato e ao uso corporal, como luvas, talheres, sapatos ecadeiras, num instigante diálogo com as demais figuras e imagens.

3 GREENAWAY, Peter. Corpo e cinema pela boca aberta de Peter Greenaway. Entrevista a Evelyn Schuler e Thomas H. Lehmann. Revista Sexta-Feira – antropologia, artes, humanidades, volume espe-cial sobre corpo. São Paulo, Hedra, v. 4, 1999, p.22. 4 Idem, ibidem, p. 24.5 Publicado em livro-catálogo em 1992. Cf. GREENAWAY, Peter. The physical self. Rotterdam, Mu-seum Boymans-van Beuningen Rotterdam, 96p.

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Essa lógica da diversidade enciclopédica no trato da fisicalidade humana atravessa também a maioria dos filmes de Greenaway. Cabe mencionar, nesse contexto, A barriga do arquiteto (1987), em que o corpo – centrado no aparelho digestivo de um arquiteto americano volumoso e voraz – surge na interface do erótico com o gastronômico e o patológico, deflagrando situações de prazer, doença e morte; ou O cozinheiro, o ladrão, sua mulher e o amante (1989), filme que associa sexo, comida e escatologia, com direito a uma exuberante cena de canibalismo, numa explícita remissão crítico-alegórica à sociedade de consumo do final do século XX. A esses filmes se juntam Zoo – um z e dois zeros (1985), ficção darwinista sobre as 8 etapas do processo de decomposição orgânica, e A última tempestade (1991), adaptação de A tempestade, de Shakespeare, que apresenta uma profusão barroca de corpos de todos os tipos e explora em primeiro plano a quase nudez do protagonista, Próspero – um homem sábio e idoso representado pelo ator veterano John Guilgud. Os filmes para tv, como M is for man, music, Mozart (1991) e A TV Dante (1989) também são significativos no que se refere à “imagerie” do corpo em suas figurações anatômicas, orgânicas, simbólicas e enciclopédicas.

Com se vê, o repertório de filmes dentro dessa linha de corporalidade é vasto e diversificado. E em quase todos Greenaway alia à sua pulsão enciclopédica uma forte preocupação estética que o leva a explorar – a partir do signo corpo – uma variedade de metáforas visuais, associações poéticas e sinestesias, capaz de intensificar o próprio caráter corporal, material, da linguagem fílmica. O que se dá a ver, de maneira exemplar, no longa-metragem O livro de cabeceira, de 1996, que através de sofisticados recursos tecnológicos e de referências literárias extraídas do diário de mesmo título da escritora japonesa medieval, Sei Shonagon, encena a idéia do corpo como um espaço de criação, associado ao exercício escritural.

II. o corpo escrito em O livro de Cabeceira, de Peter Greenaway

Em O livro de cabeceira, as tríades corpo-livro-filme e pele-página-tela se fundem e se confundem como suportes de uma narrativa ao mesmo tempo contínua e descontínua, visual e textual, erótica e escatológica, na qual também se imbricam gêneros sexuais e textuais, culturas do Oriente e do Ocidente, línguas, registros de escrita e de imagem, tempos, espaços e tradições distintas.

A trama do filme, que – ao contrário do que se pensa – não foi extraída nem adaptada do livro de Shonagon, mas criada pelo próprio Greenaway, resume-se na história de uma japonesa de Kyoto, Nagiko, que quando criança tinha, a cada aniversário, o rosto caligrafado pelo pai escritor, num ritual de celebração que marcaria toda a sua história de vida. É nessa mesma época que ela tem acesso ao Livro de Cabeceira de Sei Shonagon, um clássico da literatura japonesa medieval, que se tornará sua obra de referência, seu livro de cabeceira. Na idade adulta, vivendo em Hong Kong, onde se torna modelo de um estilista japonês, Nagiko começa a buscar amantes que escrevam no seu corpo, de forma a reeditar a cena escritural paterna. Mas após o encontro com Jerome, um tradutor inglês bissexual, que a desafia (ou incita) a assumir ela mesma o papel de escritora, a moça passa a escrever livros em corpos de outros homens, de idades e compleições físicas variadas, enviando-os a um velho editor com quem Jerome mantinha uma ligação amorosa. Por coincidência, o mesmo editor que explorara o pai da protagonista nos tempos remotos de Kyoto. Depois que Jerome morre e tem o corpo escrito por Nagiko, o editor, enciumado, manda desenterrar o cadáver do rapaz, arranca-lhe, cirurgicamente, a pele caligrafada

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e a transforma literalmente em um livro. Nagiko escreve, ao todo, treze livros em corpos masculinos, sendo que o décimo terceiro, O Livro dos Mortos, dá o desfecho ao filme. Recuperando o livro feito com a pele do amante inglês e guardando-o sob um vaso de bonsai, Nagiko aparece na cena final com o corpo tatuado, com a filha recém-nascida nos braços, para em seguida, com o pincel, caligrafar no rosto do bebê uma mensagem de aniversário.

Vale ressaltar a presença incisiva do diário de Sei Shonagon ao longo de toda a narrativa, o qual figura tanto como um texto provedor de imagens e palavras para a composição da trama, quanto como uma espécie de personagem, dotado de concretude física e convertido em objeto de culto por parte da protagonista.

Enfim, O livro de cabeceira é um filme em que a conjunção visual entre corpo e textualidade é levada às últimas conseqüências, não apenas nos âmbitos temático e narrativo, mas também no que tange à própria materialidade significante da linguagem. Para além da mera analogia assentada na idéia do corpo como texto e o texto como corpo, o jogo proposto por Greenaway abre-se a muitas variantes e desdobramentos, levando-nos também a pensar não nas funções e figurações do corpo na sociedade e no imaginário contemporâneos. O corpo como um território de prazer e gozo, o corpo na condição de carne, o corpo prostituído, o corpo dilacerado, o corpo estetizado, tomado como matéria e suporte da escrita, o corpo na condição de cadáver, são algumas dessas variantes exploradas por Greenaway, sempre a partir da conjunção sexualidade-textualidade. Conjunção esta, aliás, sugerida pela própria Sei Shonagon em seu diário, ao afirmar – em tom confessional – que duas coisas são indispensáveis na vida: os deleites da carne e os deleites da literatura, experimentados, de preferência, a um só tempo.

O fato de o Japão ser a grande referência cultural e geográfica do filme potencializa, sem dúvida, o empreendimento de Greenaway. Como diz Roland Barthes, em O império dos signos, o corpo, na cultura japonesa, “existe, se abre, age, se dá sem histeria, sem narcisismo, mas segundo um projeto erótico”6. Como também acontece com a arte japonesa da escrita, caracterizada por Barthes também como uma atividade corporal. “O pincel que escreve”, diz ele, “tem seus gestos, como se fosse dedo, desliza, torce, levanta-se, e o traçado se cumpre, por assim dizer, no volume do ar, tem a flexibilidade carnal, lubrificada, da mão”.7 A isso se somam o culto da caligrafia na tradição asiática, tomada como uma arte da palavra e da imagem, simultaneamente, e a prática milenar da tatuagem, que no Japão passou por vários estatutos simbólicos, associando-se tanto à idéia de punição (os criminosos do período feudal tinham os corpos tatuados), quanto à de decoração (a partir do séc. XVII) e aos rituais místicos.

O diário de Sei Shonagon, dentro desse conjunto de referências, ocupa um lugar especial. Primeiro porque a autora foi uma das figuras mais importantes do Japão medieval, integrando, ao lado de sua contemporânea e rival Murasaki Shikibu, autora de a História de Genji, uma plêiade de escritoras que farão surgir toda uma literatura em língua vernácula, num momento único da história da literatura oriental. Sobre sua biografia, pouco se sabe. Consta que foi dama da corte da Dinastia Heian e viveu em fins do séc. X, num ambiente

6 Barthes acrescenta: “Ora, acontece que no Japão o império dos significantes é tão vasto, excede a tal ponto a fala, que a troca de signos é de uma riqueza, de uma mobilidade, de uma sutileza fascinantes, apesar da opacidade da língua, às vezes mesmo graças a essa opacidade”. BARTHES, Roland. O império dos signos. Trad. Leyla Perrone. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p.18. 7 Roland Barthes chama a atenção para o fato de que, no seu livro, Oriente e Ocidente, não podem ser tomados como “realidades” a serem aproximadas ou colocadas em oposição por vias históricas, filosóficas, culturais e políticas. Ele os concebe, sim, como sistemas simbólicos diferentes. Cf. BAR-THES, Roland. Op. cit., p. 8.

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social refinado, no qual predominavam os valores estéticos e, em especial, o culto à poesia e à caligrafia. Dedicou-se, sobretudo, ao registro de detalhes da vida na corte, documentando, com sensibilidade e não sem malícia, um mundo cuja realidade parecia ter abolido, pela força dos rituais, as leis de gravidade que a sustentavam. Como afirma Maria Kodama, que traduziu com Borges alguns excertos de O livro de cabeceira para o espanhol, a escrita de Shonagon “revela uma personalidade de mulher aguda, observadora, bem informada, ágil, sensível às belezas e sutilezas do mundo, ao destino das coisas, em suma, uma personalidade complexa e inteligente”8. Uma quase protofeminista, acrescenta Greenaway, numa época patriarcal em que as mulheres da corte permaneciam, na maioria, silenciosas, quietas e disponíveis dentro de casa durante toda a vida. Não à toa, ela lamenta a situação das mulheres de seu tempo, ao dizer:

Quando me ponho a imaginar como deve ser a vida dessas mulheres que ficam em casa atendendo fielmente seus maridos, sem expectativa de nada e que, apesar de tudo, se consideram perfeitamente felizes, encho-me de desprezo. Em geral, elas são de bom nascimento, mas não têm nenhuma oportunidade de descobrir o mundo. Eu queria que elas pudessem experimentar um pouco a vida na corte, mesmo isso signifique prestar serviços como empregadas, de modo que lhes fosse dado conhecer as delícias que essa vida oferece. 9

III. os sentidos do corpo: Sei Shonagon e Hildegard de Bingen

Vale observar aqui, entre parêntesis, que uma possível correspondente (numa espécie de simetria inversa) dessa mulher no Ocidente seja Hildegard de Bingen, santa, escritora, musicista, médica, pintora, visionária, enciclopedista alemã, que viveu no século XII. Autora de mais de 70 sinfonias e dezenas de quadros em forma de iluminuras, escreveu poemas, livros de teologia e de história natural, num contexto em que poucas mulheres eram alfabetizadas ou tinham acesso à cultura canônica. Não bastasse isso, Hildegard colocou o corpo no centro de suas preocupações médicas e estéticas, contra a orientação da Igreja, que o via como algo abominável, indigno de ser levado em consideração, ainda mais por uma mulher religiosa. Quase todas as suas pinturas evocam o corpo humano em nudez, em suas dimensões anatômica, alegórica e sagrado. Como expõe Maria Tereza Horta em um artigo sobre o lugar (ou não-lugar) do corpo na Idade Média, “essa época escamoteou o corpo num jogo ambíguo, tapando-o e destapando-o, mostrando-o e iludindo-o”. E completa: “Sobretudo o corpo feminino, tomado como imperfeito, conspurcado pelo pecado de Eva”.10

Hildegard, porém, não hesitou em colocar corpo e alma em uma relação de paridade não excludente, na qual incide – de forma positiva – a potência dos sentidos. O fragmento a seguir, extraído de seu livro de visões 8 KODAMA, Maria. Prólogo. In: SHONAGON, Sei. El libro de la almohada. Selección y traducción de Jorge Luis Borges y Maria Kodama. Madrid: Alianza Editorial, 2004, p. 9. Tradução minha.9 SHONAGON, Sei. The pillow book. Trad. Ivan Morris. London: Penguin Classics, 1980, p. 38. Tradução minha. 10 HORTA, Maria Tereza. A história do corpo ou o corpo da história. In: Diário de Notícias (Ca-derno de Artes). Lisboa, 15/03/2005. Disponível na Internet: http://dn.sapo.pt/2005/03/15/artes/a_historia_corpo_o_corpo_historia.html (Último acesso: 24/11/2008).

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intitulado Scivias11, evidencia essa posição:

Mas o homem tem em si três vertentes. Quais são? A alma, o corpo e os sentidos, e é por elas que a vida se exerce. Como? A alma vivifica o corpo e mantém o pensamento,o corpo atrai a alma e manifesta o pensamento, mas os sentidos abalam a alma e potencializam o corpo.12

Sabe-se que santa Hildegard defendeu ainda a igualdade teológica entre homens e mulheres (“eles estão entrelaçados de tal maneira que um é trabalho do outro”, ela diz), embora com suas diferenças biopsíquicas preservadas, e sustentou – enquanto médica - uma visão positiva a respeito das relações sexuais. Consta também que é dela a primeira descrição científica do orgasmo feminino, na qual não omitiu as contrações uterinas e o “deleite sensual” delas decorrente. Além disso, considerou – numa visão inédita para o seu tempo – a medula óssea como a base da existência material humana, numa analogia com a força divina:

Fluindo para dentro e para fora, como a respiração, a medula do quadril destila sua essência, conduzindo e fortalecendo a pessoa. Da mesma maneira, A vitalidade dos elementos da terra vem da força do Criador.(...)

... a vitalidade espiritual esta presente na alma da mesma maneira que a medula dos quadris na carne.13

Embora num viés bem distinto de Sei Shonagon – aquela era uma monja e esta, uma cortesã –, Hildegard também era fascinada por listas, descrições, receitas e verbetes, nutrindo um especial apreço pelo exercício estético dos sentidos. Tanto que sua poesia, à feição dos escritos de Shonagon, primam pela sinestesia, compondo “uma cadeia iconográfica de imagens que

11 Segundo os biógrafos de Hildegarda, a monja beneditina levou dez anos (1141-1151) para escre-ver a obra de visões Scivias, que compreende três livros: o primeiro descreve seis visões, seguidas de comentários, da própria Hildegarda . O segundo sete visões e o terceiro treze. A última visão do terceiro livro termina em uma espécie de ópera, em que as virtudes são personificadas e sofrem ataques dos demônios, tema que mais tarde é retomado e transformado, por Hildegarda, numa obra musical denominada Ordo Virtutum, que, possívelmente , chegou a ser encenada no convento de Bingen. Outros livros de Hildegarda: Liber vitae meritorum, Liber divinorum operum, Physica, Causae et Curae, Symphonia Armonie Celestium Revelationu. Cf. PERNOUD, Régine. Hildegard de Bingen � a consciência inspirada do século XII.Trad. Eloá Jacobina. Rio de Janeiro: Rocco, 1996.12 BINGEN, Hildegard Von. Selected writings. Trad. Mark Atherton. London: Penguin Classics, 2001, p. 6. Tradução minha.13 Apud KLÜPPEL, Berta Lúcia Pinheiro. Hildegard de Bingen - vidente, Médica e Artista. http://yesod.sites.uol.com.br/cadernos/edicao1/hilde.htm (Data do último acesso: 24/11/2008).

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convocam a totalidade dos sentidos audição, olfacto, visão, tacto e paladar.”14 Além disso, soube entrelaçar visualmente em suas iluminuras palavras e imagens, representando em algumas delas o próprio ato da escrita e da leitura de livros, e suas visões místicas foram transfiguradas em textos, músicas e pinturas, numa explícita abertura ao exercício da multiplicidade.

Fechando parêntesis e voltando à Idade Média japonesa, pode-se dizer que, no caso específico do diário de Sei Shonagon, não há propriamente relatos de visões místicas, mas o registro poético de pequenas epifanias extraídas do cotidiano e das coisas da natureza. Afeita ao fragmentário, a autora registrou em seu diário 164 listas de coisas agradáveis, desagradáveis, irritantes, esplêndidas, etc, encenou intimidades vividas e postiças, recriou sensações e criou guias de ideias.

Esse diário foi precursor de um gênero tipicamente japonês conhecido como zuihitsu (escritos ocasionais) e apresenta, além das listas, observações sobre plantas, pássaros e insetos, diálogos, poemas, descrições de pessoas, registros de encontros amorosos e críticas aos homens medíocres. Tudo isso numa escrita transparente, ágil e de uma inquietante modernidade, através da qual vemos, como apontou Octavio Paz, “um mundo milagrosamente suspenso em si mesmo, perto e distante ao mesmo tempo”15. Mundo up to date, com os olhos fixos no presente, movido pelo sentimento de fugacidade das coisas. Nesse sentido é uma obra completamente distinta do romance de Murasaki Shikibu (considerada por muitos como uma legítima precursora oriental de Marcel Proust e do grande romance francês), por evocar uma atmosfera similar à que também evocou Baudelaire ao recorrer à moda para tratar do caráter transitório e circunstancial da modernidade.

Aliás, a propósito do gênero literário zuihitsu, consta que ele definia, inicialmente, os diários mantidos dentro dos travesseiros de madeira, como o de Shonagon, passando, mais tarde, a designar livros afrodisíacos para amantes insones, até se converterem em manuais de sexo para amantes entediados ou para iniciar no sexo os inocentes. Em sua fase tardia, eles se inseririam, portanto, dentro do que Foucault, com o intento de diferenciar as formas de se lidar com a sexualidade no Ocidente e no Oriente, chamou de ars erótica, em contraponto à sciencia sexualis, predominante no mundo ocidental.16 No que tange à ars erótica, o prazer é concebido como uma arte e, como explica Octavio Paz – que também incursionou no estudo das diferenças entre as concepções ocidentais e orientais de corporalidade – “não há a mais leve preocupação com a saúde, exceto como condição do prazer, nem com a família, nem com a imortalidade”. Em resumo, o prazer aparece como uma ramificação da estética.17

Mesmo que O livro de cabeceira de Shonagon não se enquadre em nenhuma dessas categorias que não a de diário íntimo, pode-se dizer que Greenaway aproveitou todos os desdobramentos do gênero em seu filme, conferindo à trama uma forte carga erótica, a qual, no plano da linguagem se intensifica esteticamente, graças à sua força visual e sinestésica. E é sob essa perspectiva que o filme também se produz sen sualmente, à feição do que Barthes

14 CARVALHO, Joaquim Félix e MENDONÇA, José Tolentino. A bela flor. In: BINGEN, Hildegar von. Flor brilhante. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, p. 13.15 PAZ, Octavio. Tres momentos de la literatura japonesa. Las peras del olmo. Barcelona: Seix Barral, 1992, p. 111. Tradução minha.16 Segundo Foucault, a China, o Japão e a Índia dotaram-se de uma ars erótica, em que “a verdade é extraída do próprio prazer, encarado como uma prática e recolhido como experiência”. Já a nossa civilização, segundo ele, “pelo menos, à primeira vista, não possui ars erótica”. “Em compensação”, completa, “é a única, sem dúvida, a praticar uma scientia sexualis”. Cf. FOULCAUT, Michel. História da sexualidade 1 – a vontade de saber. Trad. Maria Thereza Albuquerque e J.A.Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 1984, p. 57. 17 PAZ, Octavio. Conjunções e disjunções. P. 98-99.

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denomina, em O prazer do texto, de escritura, ou seja, uma prática, um fazer, uma poiésis, que escapa a uma existência meramente conceitual e narrativa, afirmando-se como “a ciência dos gozos da linguagem, seu Kamasutra”18. A textualidade fílmica assume, assim, também uma explícita corporalidade, ao se converter numa espécie de anagrama de nosso corpo erótico.

A literatura, sob esse prisma, pode ser também associada no filme a “uma arte da tatuagem”, a qual, segundo Severo Sarduy, “inscreve, cifra na massa amorfa da linguagem os verdadeiros signos da significação”19. Mas tal inscrição (indelével) nunca é possível sem ferida, sem perda. Nas palavras de Sarduy:

A escritura seria a arte desses grafos, do pictural assumido pelo discurso, mas também a arte da proliferação. A plasticidade do signo escrito e seu caráter barroco estão presentes em toda literatura que não esqueça sua natureza de inscrição, o que se poderia chamar de sua escrituralidade.20

Cabe dizer que esses efeitos escriturais do filme se devem, em parte, à maneira como Greenaway incorpora o texto de Shonagon no filme. Este é trazido à flor da tela, potencializado através de sucessivas sobreposições de imagens e textos. Os ideogramas da escrita oriental aparecem na tela como metáforas vivas do corpo. E dialogam, de forma produtiva, com diferentes tipos de textos que proliferam ao longo do filme, e que vão de passagens bíblicas em inglês e latim a letreiros luminosos de lojas e livrarias, títulos de livros e grafites. Para não mencionar o uso estratégico das legendas em inglês correspondentes às falas e escritas estrangeiras do filme, que acabam adquirindo também, pela força da caligrafia, uma função poética enquanto texto inscrito/traduzido nas margens da tela. Inscrições em japonês, francês, italiano, inglês, chinês, com caracteres kanji, hiragana e katakana, letras góticas e fontes exóticas também cobrem as peles dos personagens e a superfície da tela, num jogo babélico de impressionante força sinestésica.

Ademais, ao evocar visualmente os escritos de Sei Shonagon, Greenaway procurou ainda mostrar o papel das mulheres na constituição da própria língua japonesa, visto que, segundo fontes históricas, foram as mulheres que, confinadas no seu espaço doméstico, inventaram a escrita japonesa num momento em que os homens ainda se valiam do chinês em seus escritos e o japonês era usado apenas como um idioma coloquial. Consta que a literatura douta desse período era escrita em chinês, por homens, enquanto os gêneros considerados de divertimento - o diário e o romance - eram escritos em japonês, por mulheres.21 Daí a importância destas para a constituição de uma língua literária própria do Japão. Maria Kodama elucida esses dados:

Pode parecer curioso o fato de que esse período, um dos mais importantes da literatura japonesa, esteja representado quase exclusivamente por mulheres.

18 BARTHES, Roland. O prazer do texto. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 1977, p.11.19 SARDUY, Severo. Escrito sobre um corpo. Trad. Lúcia Chiappini Leite e Lúcia Teixeira Wisnik. São Paulo: Perspectiva, 1979, p. 53.20 SARDUY, Severo. Op. Cit., p. 54.21 PAZ, Octavio. Tres momentos de la literatura japonesa, p. 114.

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(...) As mulheres utilizam os silabários japoneses hiragana e katakana, este último com traços mais geométricos, destinado à transcrição dos nomes ou palavras estrangeiras. Por isso em Murasaki Shikibu ou em Sei Shonagon encontramos os ideogramas chineses só para nomes próprios, títulos ou citações; é impossível encontrar em todas as suas obras uma só palavra ou locução chinesa.22

Greenaway traduz, portanto, para a linguagem do cinema e para o espaço da cultural ocidental, uma série de aspectos culturais da tradição japonesa, ao mesmo tempo em que promove uma mistura desses mundos, evidenciando que, hoje, as noções de exotismo, centro, periferia, tradição, modernidade perderam, para usar aqui as palavras de Serge Gruzinski, “sua nitidez outrora apaziguadora”23. Corpos humanos, vestidos e desnudos, ocupam a tela inteira, numa mesclagem ornamental de estilos, em que estampas de roupas coloridas combinam com o claro-escuro europeu. Configura-se, dessa forma, um festim visual, que envolve carne, pele e caligramas, num mix de Oriente e Ocidente, no qual incide, inclusive, a arte européia influenciada pelo Japão, como as pinturas de Gauguin, Degas, Whistler e Klimt. Para não falar das melodias chinesas ocidentalizadas, do rock japonês, das músicas ritualísticas tibetanas e de canções francesas contemporâneas que se entrecruzam na película. Como observa Gruzinski, “a câmera trata das relações entre Oriente e Ocidente sem mais se preocupar com a questão do Outro; ela explora a mistura dos mundos que Greenaway declina em todas as formas”24.

Ademais, fica patente ao longo deste e de outros trabalhos do diretor, que ele se insurge veementemente contra a presença pasteurizada do corpo no cinema atual e toda uma cultura somática contemporânea que estimula o culto do corpo como objeto de design e bem de consumo. Com isso, busca reinstaurar no horizonte cultural do presente o corpo enquanto conflagração múltipla de formas, experiências, temporalidades, sentidos e identidades, potencializando-o como um espaço criativo, onde imperam – em exuberância - os sentidos e os poderes da imaginação.

22 KODAMA, Maria. Op. cit., p. 11. Tradução minha. 23 GRUZINSKI, Serge. O pensamento mestiço. Trad. Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 117.24 Idem, ibidem, p. 117.

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