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72 revista incluir • maio/junho 2011 alternativa K eila está aflita. Sua aula começou e ela está atrasada. Após olhar repetidas ve- zes para o relógio de pulso, faz sinais em Libras para que sua mãe a libere. Como não é aten- dida prontamente, arregala os olhos e bate os dedos no relógio, num gesto universal de impaciência. Uma vez livre, abre um sorriso e sai correndo, feliz, até en- trar em sua sala. O local em questão é o Conservató- rio Municipal de Guarulhos (SP). Keila, 21 anos, tem deficiência auditiva em razão da rubéola contraída pela mãe durante sua gestação; entretanto, isso não a Superação e inclusão por meio Por: Hevlyn Celso Fotos: Thiago Henrique impede de fazer o que mais gosta, aprender a tocar órgão e sonhar em ser uma organista profissional. Mas seu aprendizado somente tornou-se possível pela iniciativa do professor de música e regente Fábio Bonvenuto, 42 anos. Aos 17 anos, ele assumiu a regência da banda de sua escola e na universidade estagiou em uma entidade que atendia pessoas com várias deficiên- cias, que o levaram a se engajar, desde então, em trabalhos sociais envolvendo a inclusão. Em 2010, Fábio recebeu o Prêmio Professor em Destaque, concedido pela Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, pelo projeto Música do Silêncio, no qual desenvolveu um método de en- sino de música e inclusão para pessoas com defi- ciência auditiva e ouvintes. O projeto começou em 2005, numa escola pau- lista para pessoas com deficiência auditiva, que recebeu por engano um convite para participar de um concurso de bandas. Ao invés de desfazer o mal- -entendido, a diretora consultou a opinião dos alu- nos e vários se interessaram. Quando soube que eles procuravam um professor de música, Fábio candi- datou-se ao cargo. Concursado nas duas cidades, enxergou no desafio uma grande oportunidade. PROJETOS INOVADORES LEVAM O ENSINO MUSICAL da MÚ ICA A PESSOAS COM DEFICIÊNCIA Keila, atenta às explicações do professor Fábio

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72 revista incluir • maio/junho 2011

alternativa

Keila está aflita. Sua aula começou e ela está atrasada. Após olhar repetidas ve-zes para o relógio de pulso, faz sinais em

Libras para que sua mãe a libere. Como não é aten-dida prontamente, arregala os olhos e bate os dedos no relógio, num gesto universal de impaciência. Uma vez livre, abre um sorriso e sai correndo, feliz, até en-trar em sua sala. O local em questão é o Conservató-rio Municipal de Guarulhos (SP). Keila, 21 anos, tem deficiência auditiva em razão da rubéola contraída pela mãe durante sua gestação; entretanto, isso não a

Superação e inclusão por meio

Por: Hevlyn CelsoFotos: Thiago Henrique

impede de fazer o que mais gosta, aprender a tocar órgão e sonhar em ser uma organista profissional. Mas seu aprendizado somente tornou-se possível pela iniciativa do professor de música e regente Fábio Bonvenuto, 42 anos.

Aos 17 anos, ele assumiu a regência da banda de sua escola e na universidade estagiou em uma entidade que atendia pessoas com várias deficiên-cias, que o levaram a se engajar, desde então, em trabalhos sociais envolvendo a inclusão.

Em 2010, Fábio recebeu o Prêmio Professor em Destaque, concedido pela Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, pelo projeto Música do Silêncio, no qual desenvolveu um método de en-sino de música e inclusão para pessoas com defi-ciência auditiva e ouvintes.

O projeto começou em 2005, numa escola pau-lista para pessoas com deficiência auditiva, que recebeu por engano um convite para participar de um concurso de bandas. Ao invés de desfazer o mal--entendido, a diretora consultou a opinião dos alu-nos e vários se interessaram. Quando soube que eles procuravam um professor de música, Fábio candi-datou-se ao cargo. Concursado nas duas cidades, enxergou no desafio uma grande oportunidade.

PROJETOS INOVADORES LEVAM O ENSINO MUSICAL

da MÚ ICAA PESSOAS COM DEFICIÊNCIA

Keila, atenta às explicações do professor Fábio

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Após realizar diversas pesquisas e estudar Libras, verificou que instrumentos de percussão eram os mais indicados para o ensino. Hoje, o grupo é formado por 60 alunos e costuma apresentar-se em diversos locais.

A necessidade de desenvolver um trabalho para pessoas com deficiência visual surgiu quando um rapaz procurou o Núcleo de Inclusão do conservatório. Com isso, Fábio aprendeu braille e musicografia e apresen-tou os projetos para Guarulhos, transformando o con-servatório da cidade em referência de inclusão.

Aprendizagem pelos sentidosVoltemos à sala de aula; enquanto Keila tira dú-

vidas com o professor, seu amigo Ediarlem Barbosa Pomponet Silva, 19 anos, que possui deficiência múl-tipla, toca um tambor e Bruna Caroline Neiva Ramos, 17 anos, com deficiência visual, dedilha o teclado. A mãe de Keila, a costureira Jailze Gonçalves Guima-rães, fala sobre a ansiedade da filha. “A semana inteira ela passa bem, mas quando chega o sábado, fica con-tando os minutos para a aula, não posso marcar nada para esse dia.”

Marlene Barbosa de Souza Silva, mãe de Ediarlem, elogia o músico. “Fábio é bem paciente e eles gostam.” Já para a dona de casa Luzmar Neves Neiva, mãe de

O professor Fábio, premiado por projeto inclusivo

Bruna, o carinho e a paciência do professor e tam-bém da família são fundamentais para o sucesso das aulas. “Eu sei que ela gosta muito dele. Tem hora que é difícil lidar com ela, mas ele já se acos-tumou. Quero que ela faça tudo o que tem desejo de fazer e, enquanto eu tiver força, vou apoiar no que eu puder.”

Fábio não impõe o aprendizado da música para os alunos com deficiência auditiva, mas todos que se interessam, podem aprender, apesar das limi-tações. “A maior dificuldade está em perceber as alturas do som, reconhecer as frequências, mas é um trabalho a longo prazo. No entanto, é possí-vel aprender pela vibração do som no corpo, prin-cipalmente pelos tons mais graves”, diz ele, que destaca a percussionista e compositora escocesa Evelyn Glennie, que perdeu a audição aos 12 anos. “Ela sempre se apresenta descalça, em cima de um tablado de madeira, pois isto facilita a percepção das vibrações.”

Questionado sobre como é possível para um aluno com deficiência auditiva dar unidade ao som que produz, ele garante que é uma questão de prestar atenção na vibração do instrumento e na regência com a sinalização comum e em Libras.“Um exemplo disso foi numa apresentação doMúsica do Silêncio. A banda estava tocando e, em um momento, eles tinham que diminuir o som e deixar bem fraquinho. Um aluno ouvinte estava desatento, a banda inteira diminuiu e ele conti-nuou forte, mas uma aluna com deficiência auditi-va estava tão inteirada, que percebeu o erro e cha-mou a atenção do colega.”

A interação dos alunos é total, pois sempre arrumam um jeito de se comunicar, diz Fábio. “Os ouvintes buscam formas de aprender Libras, e passam a conversar com aqueles que têm defi-ciência auditiva; quando não conseguem, comu-nicam-se por mensagens de celular, e saem até uns namoricos entre eles assim”, conta. >

MusibrailleA aula seguinte é de musicografia em braille, mé-

todo de escrita da partitura em que os alunos com deficiência visual utilizam um programa sonoro de computador que os auxilia no estudo. O software é o Musibraille (disponível para download no blog do professor), desenvolvido pelos mesmos criadores do DOSVOX e distribuído gratuitamente. De acordo com Fábio, um software semelhante não sai por menos de 5 mil dólares, e cada partitura, em braille, pode che-gar a 2.500 reais.

Segundo ele, o estudo da musicografia faz par-te da teoria e precisa do complemento das aulas práticas. Assim que o aluno está preparado, passa para as salas comuns, com um professor regular de acordo com a escolha do instrumento musical.

Outra questão que Fábio destacou é que al-guns alunos com deficiência visual optaram por seguir carreira e tornaram-se músicos profissio-nais, como aconteceu com a pianista e cantora Tatiane Di Paula, que gravou um CD de MPB, e com a cantora, flautista e violonista Luzia Lúcia Soares, que produziu um CD gospel.

O diretor do conservatório, Paulo de Moraes, 48 anos, afirma que o projeto foi o primeiro a implan-tar esse tipo de curso em Guarulhos, sendo a única escola de música no Estado de São Paulo a oferecê--lo com a produção de material pelos alunos.

Para ele, o atendimento dado ao aluno estende--se às famílias, pois é uma forma de ampliar as op-ções de lazer, muitas vezes restritas. “É diferente, por exemplo, de ensinar uma pessoa com deficiên-cia visual a operar uma máquina na indústria. Ela se sentirá útil, mas dentro da arte, há esse degrau a mais, porque a pessoa terá acesso à cultura e, de certa maneira, aumentará as possibilidades de ter prazer com a vida, ser mais feliz.”

Já Fábio garante que seu trabalho não seria pos-sível sem o apoio das famílias. “Pessoas com defi-ciência que não têm uma família presente estão fadadas a não ter um desenvolvimento pleno das suas capacidades, porque há uma limitação, apesar delas terem potencial. Dependerá da fa-mília decidir se essa pessoa irá atingir e ultra-passar esses limites ou não.”

Serviço:Conservatório Municipal de ArteAv. Tiradentes, 2.521 – 1o Andar Vila São Jorge – Guarulhos/SPTel: (11) 2087-7440Fábio Bonvenutowww.fabiobonvenuto.blogspot.com

O professor desenvolveu técnica para Ediarlem

Com defi ciência visual, Bruna ouve as explicações de Fábio

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