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FRAUDE 2011

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Publicação da nona edição da revista Fraude 9. Produto laboratorial realizado pelo Programa de Educação Tutorial da Faculdade de Comunicação da Bahia (Petcom), financiado pelo Ministério da Educação (MEC).

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Page 1: Revista Fraude 9

FRAUDE 2011

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FRAUDE 2011

9Editorial

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FRAUDE 2011

Eis que surge uma nova Fraude. ‘Sur-gir’ talvez não seja exato, pois dá uma ideia de que tudo se organizou por von-tade de Deus e só dele. E não foi bem assim... Foram nove meses de gestação pensando no que traríamos de novo (mes-mo sabendo que nada nunca é tão novo assim!) tanto para nossos fiéis leitores quanto para os eventuais.

Se o início deste editorial parece com uma frase clichê de convite de formatura não é por acaso. É só para justificar que essa foto não é sinal de heresia. Frauda-mos tudo, não por mal, mas por necessi-dade. Nem a Santa Ceia nos escapou e ele tem de nos perdoar.

Na ânsia de querer mais e mais, tra-zemos três reportagens mais longas que renderam experiências bacanas tanto aos

repórteres quanto à equipe. Foram elas: Body modification, Redução de Danos e, claro, a matéria (de capa) sobre o Café Calypso. Em compensação, outras fica-ram mais enxutas.

Falando nisso, publicamos um calendá-rio de 2012 com fotos sensuais de uma das mulheres mais famosas do mundo. Só não vá destacá-lo e colar na parede de sua casa, por favor! Extinguimos as cinco editorias que desde a quinta edição nos acompanhavam, afinal classificações são boas até quando nos permitem fazer algo novo. Criamos o Selo Fraude de qualida-de, que este ano foi dedicado ao melhor arrumadinho da cidade. Contamos com a colaboração sempre bem-vinda de mui-tos ilustradores, que souberam expressar através dos seus traços exatamente aquilo

que queríamos dizer com nossas palavras. Como se não bastassem todos esses

processos de realização da revista, a Ma-caquicha sumiu. Inventou que nunca ne-nhum de nós demos real importância a ela, alegou que nem a convidamos para a foto deste editorial e fugiu, sem lenço e sem documento. Espalhamos cartazes de procura-se pela cidade, ligamos para a Polinter e pedimos ajuda aos amigos, mas até hoje não a encontramos. Antes de fugir, no entanto, pediu que pelo menos tivéssemos a consideração de publicar uma entrevista com um amigo que ela costumava afogar desilusões perdidas pela internet.

Após tudo isso, só temos dois grandes desejos: não nos crucifique e aprecie a nona edição da Fraude sem moderação.

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um guia para a fraude

06“Me pinte aqui pra Timbalada!”A obra de Ray Vianna: da Timbalada às lojas de decoração

08A forma fora da fôrmaBody modification: a arte estampada no corpo

13O Zéu é o limiteEm entrevista, o artista multimídia fala sobre trabalhos, fragilidades e desafios

16Antes de tudo, um forteO imaginário sertanejo do artista plástico Juraci Dórea

19Um lugar do caralho!O Café Calypso: saudoso e famoso inferninho de Salvador

24Não é proibido fumarRedução de Danos: a estratégia de saúde que respeita o uso de drogas

29O lado B do jornalismoO encontro de dois personagens de ficção que se mos-tram jornalistas de verdade

30Barbie quer ser gente grandeUm ensaio sensual com a modelo que não envelhece nunca

32Selo Fraude de qualidadeEm sua edição de estreia, o Selo Fraude avalia os arrumadinhos de Salvador

34A arte chegou lá!Tintas, cores, pincéis, brilho, desenhos e... cera!

37Oxe, uai!Conheça os culpados pelo inusitado e criativo Quadri-nhos Rasos e a dinâmica por trás do blog

E ainda: confira o material extra das matérias no site revistafraude.com

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A revista Fraude é uma publicação do Programa de Educação Tutorial da Faculdade de Comunicação (Petcom) da Universidade Federal da Bahia. O Pet é um programa mantido pela Secretaria de Ensino Superior do Ministério da Educação, e é através do orçamento anual destinado ao Petcom que é paga a impressão da revista. As opiniões expressas neste veículo são de inteira responsabilidade dos seus autores. Ano 8, número 9, novembro de 2011 Salvador - Bahia.Tiragem: 1000 exemplares. End.: Rua Barão de Geremoabo, s/n, Ondina, Salvador, Bahia - Brasil.Tel.: 3283-6186www.petcom.ufba.br | [email protected]

quem faz a fraudeTutora Petcom: Graciela NatansohnEditora-geral: Marília MoreiraSubeditores: Amana Dultra, Karina Ribeiro, Marcelo Argôlo e Tais BicharaEditora de Fotografia: Amana DultraEditora Multimídia: Bruna CookDiretor de Arte: Wesley MirandaDiagramação: Amana Dultra, Marcelo Argôlo e Wesley Miran-da, com colaboração de Karina RibeiroAssessoria de Comunicação: Bruna Cook, Daniel Silveira,

agradecimentosÀ gráfica Cartograf, pela ajuda de sempre na impressão da revista. A Oliver Dórea, pela ilustração feita sobre a foto de Agnes Cajaiba e que deu um “quê” à nossa capa. A Nancy Viégas, Vandex, Mauro YBarros, Ronei Jorge e Luciano Matos, frequentadores do antigo Café Calypso, que dedicaram uma parte de suas manhãs a posar para nossa foto de capa. Ao jornal Correio* por ceder uma foto de seu arquivo para matéria sobre o Café Calypso. Às ilustradoras Maribê e Luana Vellame. A Isabela Maranhão, Guilherme Souza e Breno Costa por terem cedido as fotos do ensaio sensual da Barbie para compor o calendário 2012 da nossa revista. Ao professor Rodrigo Rossoni, pelos conselhos fotográficos. A Matheus Pirajá pela gravação e edição dos vídeos de divulgação do evento. À banda Expresso Libre, que aceitou o convite para animar o lançamento. Ao Pelourinho Cultural, Centro de Culturas Populares e Identitárias e Secretaria de Cultura por cederem a Praça Pedro Archanjo e toda infraestrutura necessária à realização do nosso evento.

Marília Moreira e Paula MoraisProdução do Lançamento: Daniel de Farias, Eduardo Coutinho, Flávia Santana, Karina Ribeiro e Tais Bicha-ra, com colaboração de Bruna Cook e Nelson OliveiraRepórteres: Amana Dultra, Bruna Cook, Daniel de Fa-rias, Daniel Silveira, Eduardo Coutinho, Flávia Santana, Karina Ribeiro, Marcelo Argôlo, Marília Moreira, Paula Morais, Tais Bichara e Wesley MirandaFoto de Capa e Editorial: Agnes Cajaiba/LabfotoIlustração de Capa: Oliver Dórea

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Se você assistiu a “Ó Paí, Ó”, cer-tamente lembra dessa fala de Rosa, personagem de Emanuelle Araújo no filme de Mônica Gardenberg. Quem vê as marcas tribais pintadas de tinta branca nos corpos que acompanham o trio elétrico puxado pela banda Tim-balada geralmente não tem noção de como a ideia surgiu. Invenção casual de Ray Vianna, a pintura dos timbalei-ros é a principal obra do artista plásti-co, designer e cenógrafo baiano, com cerca de trinta anos de dedicação ao trabalho artístico.

Aos 15 anos, Ray Vianna já traba-lhava em decorações do carnaval com os artistas plásticos Renato Vianna, seu irmão, e Juarez Paraiso, sua princi-pal influência. Ainda na adolescência, participou do grupo de cenografia do colégio onde estudou. A experiência despretensiosa com arte, carnaval e

“Me pinte aqui pra

Timbalada!”texto Daniel de Farias e Daniel Silveirafoto Lorena Vinturini/Labfoto

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Ray Vianna é artista plástico e transita entre suas origens na Timbalada e suas novas peças para decoração

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cenário influenciou decisivamente a trajetória profissional do artista.

Ray conta que acompanhou a Timba-lada desde o início. Participou da mon-tagem de trios, pinturas de instrumen-tos e de abadás, ou seja, da produção da identidade visual da banda. O desenho tribal, por exemplo, nasceu de um en-graçado acaso. “Antes de um importan-te show, o figurino de um dos percussio-nistas não chegou e ele pediu para ter o próprio corpo pintado por mim. Pouco tempo antes de começar, tive a ideia de pintar desenhos tribais com tinta acrí-lica branca”. No dia seguinte, como a Timbalada estamparia a próxima capa da revista Isto É, Carlinhos Brown pe-diu ao artista que ele refizesse a pintura, dessa vez em toda a banda.

A pintura se tornou símbolo da Tim-balada. Até hoje, quem se pinta com as marcas características é reconhecido

como timbaleiro. No entanto, os dese-nhos não ficaram só no corpo. Nas ca-pas dos três primeiros discos da banda, produzidas por Ray, as marcas tribais são destacadas. A primeira, em que os seios de Patrícia – na época vocalista da banda – aparecem pintados, rendeu ao artista o troféu Caymmi – prêmio dedi-cado aos destaques da música baiana – na categoria melhor capa de disco.

A influência da cultura afro-baiana no processo criativo do artista é evi-dente no resultado final de sua obra. Tanto no trabalho com a Timbalada, como nas decorações de carnaval e obras de artes plásticas, os elementos de matriz africana, que, nas palavras do artista, entram pelos poros, estão presentes. A escultura “Odoyá” – lo-calizada no bairro Rio Vermelho – foi elaborada junto com a decoração da festa de Yemanjá e expressa saudação

ao orixá, além de reportar à tradição pesqueira local.

Atualmente, Ray tem dado priorida-de às artes plásticas, levando o reco-nhecimento da cenografia para o mer-cado das artes. O artista faz o que ele intitula de “arte aplicada” e suas obras mais atuais também são vendidas em lojas de decoração. Segundo ele, es-paços em galerias são muito difíceis e Salvador tem um público que não cos-tuma consumir artes plásticas.

Se alcançar a versatilidade e reali-zar trabalhos em diversas linguagens é uma meta de muitos artistas, para Ray Vianna é uma realidade. Difícil para ele é parar de trabalhar. Quando não está no computador desenhando um novo produto, está no atelier pintando ou montando peças. Multifacetado, ele afirma com prazer que se sente feliz em fazer o que faz.

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Ray

Vian

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esso

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Sem título, 2011 Alegria da cidade, 2010

Oxum/Série Orixás, 2009 Odóyá, 2008E MAIS...

DE OUTRAS OBRASDE RAY VIANNA

FOTOS

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Para contemplar uma pintura no mu-seu ou o lançamento de um filme é ne-cessário o deslocamento do espectador até o encontro dessas obras artísticas. No entanto, a arte em movimento e es-tampada no corpo, chamada de modi-ficação corporal ou body modification, não exige ser contemplada em um lu-gar específico, afinal é vista frequen-temente.

A ideia de utilizar o corpo como su-porte da arte foi difundida na década de 1960 com o movimento body art (arte do corpo). Braços, pernas, pelos ou fluidos corporais – sangue, saliva ou suor – são alguns dos elementos usados como base para a criação das obras do artista. Por também fazer uso do material corporal, a body modifica-tion se insere como uma das práticas desse movimento.

O objetivo dessa prática é alterar a silhueta através de cortes, aplicação de adereços ou produtos químicos, pro-duzindo novas dimensões estéticas. Os motivos que levam o indivíduo a optar por essas modificações são contras-tantes: por um lado, existe a busca por singularidade, por outro, essa procura é influenciada a partir da mídia, atra-vés de seus ídolos.

FRAUDE 2011 Elvira Bono é pesquisadora da body modification e adepta da prática

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Ritual, dor e transição

Os povos da África, Oceania, Ásia e América conservavam práticas distin-tas e exclusivas da body modification como parte inerente à cada cultura. Durante o período das grandes nave-gações, em que os europeus entraram em contato com esses continentes, as práticas foram difundidas para outras partes do mundo. No Brasil, os índios Aimorés usavam materiais circulares para alargar lóbulos e boca. Ainda hoje, as modificações são encontradas como marca cultural em alguns povos: as mulheres da tribo Padaung - comu-nidade indígena de Kayans, localizada

na Tailândia – utilizam, desde muito jovens, aros de metal para alongar o pescoço como símbolo de beleza.

Os praticantes da body modification também aliam o apelo estético ao cará-ter cultural, exibindo seus trabalhos ar-tísticos em eventos performáticos, que vão desde demonstrações com menor público até grandes apresentações em convenções de tatuagem. Essas apre-sentações são oriundas do conceito ritualístico das sociedades primitivas, cuja intenção era obter o controle so-bre o corpo, através da superação dos limites físicos. Na tribo dos Maués, indígenas da Amazônia brasileira, é

realizado um ritual em que os meninos colocam as mãos dentro de uma luva cheia de formigas tucandeiras, cuja dor da mordida pode durar 24 horas e ocasionar convulsões, febre, vômito e diarreia. Os jovens que passam no tes-te de bravura provam sua masculinida-de e se tornam guerreiros da tribo.

Segundo Elvira Bono, estudante da Escola de Belas Artes da Ufba e adepta das modificações corporais, atualmen-te, os ritos são realizados com objeti-vos distintos e pessoais. “Alguns ain-da buscam a superação de limites ou a inclusão em um determinado grupo social. Por outro lado, há pessoas que fazem somente por curiosidade e tam-bém quem deseje o prazer masoquista. O ritual é uma categoria inserida nas possibilidades de práticas corporais denominadas ‘jogos do corpo’ (body play). Essas práticas trabalham com estímulos dolorosos, mas não chegam a ter o intuito de mudar a forma origi-nal da silhueta”, explica.

O ato de levantar o corpo por meio de ganchos atravessados em perfura-ções na pele, chamado de suspensão corporal, apesar de ser doloroso, não tem a intenção de causar modifica-ções, já que os furos são temporários e feitos somente no dia da apresenta-ção. “As pessoas perguntam se existe a possibilidade dos ganchos rasgarem a pele na hora, mas somente se o furo for mal feito. É necessária uma agulha de quatro milímetros para os ganchos, que suportam 50 quilos cada, além de equipamento de bungee jump e o au-xílio de profissionais experientes”, ex-

‘‘Body modification significa transição

’’Origami

A body modification além da técnicatexto Paula Morais e Wesley Mirandailustrações Wesley Miranda fotos Leonardo Pastor/Labfoto

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‘‘Penso que a dor do procedi-mento é uma sensação como

qualquer outra a que estou sujeita a passar todos os

dias ’’

Elvira Bono

plica Elvira Bono. Os estímulos dolorosos também fa-

zem parte das modificações corporais e são entendidos como uma sensação inerente ao processo. No entanto, é

comum imaginar que a procura pela prática seja influenciada exclusiva-mente por conta da dor. “Penso que a dor do procedimento é uma sensação como qualquer outra a que estou su-jeita a provar todos os dias. Não gosto de senti-la, mas a tolero, pois faz parte da escolha que tomei. Depois posso amenizá-la”, comenta Elvira Bono, desconstruindo essa ideia.

A superação da dor, que marca a transformação da criança em adulto na cultura dos Aimorés, também caracte-riza a mudança de fases da vida para os adeptos à body modification. Segundo o body piercer profissional Romeu Queirós, conhecido como Origami, to-lerar a dor é uma necessidade. “Dói, mas passa. Isso faz parte do método. É muito comum essa prática ser feita em pessoas entre 18 e 28 anos, ou seja, na passagem da adolescência para a fase adulta. A body modification significa transição”, declara.

Cortes, suturas e perfurações Decidir a primeira modificação cor-

poral pode ser uma tarefa difícil, já que a prática apresenta muitas opções para a mudança estética do corpo. As esco-lhas podem ser desde pequenas altera-ções, como aplicação de um piercing no nariz, até as mais invasivas, que necessitam de maiores cuidados, como a nulificação, cujo objetivo é a ampu-tação de membros ou outras partes sa-

dias do corpo. A maioria das mudanças são decisões irreversíveis e, mesmo as revertíveis, como as tatuagens, podem deixar lesões caso haja a tentativa de remoção.

A bifurcação da língua é a modifica-ção invasiva mais procurada e é feita através de uma pequena intervenção cirúrgica. O procedimento consiste em dividir a língua em duas partes até a sua metade. Uma bifurcação pode ser feita em 40 minutos, mas desde o mo-mento em que uma pessoa decide fazê--la até o dia em que a língua é cortada, há algumas etapas a serem cumpridas. “É preciso fazer um corte mais profun-do do que o normal e esperar a cica-trização. Durante esse tempo, vai ser criada uma mucosa dentro desse corte e no dia exato da bifurcação poderei usá-lo como base”, explica o body piercer profissional André Mascare-nhas, conhecido como Pirão.

Uma pequena intervenção cirúrgica também é feita na aplicação dos im-plantes subcutâneos na hipoderme (ca-mada profunda da pele). Os materiais, que podem ser de silicone, aço cirúr-gico ou politetrafluoretileno (PTFE), geram relevo no local com diferentes formas e modelos, a depender da cria-tividade: bolas, estrelas, coração ou chifres.

A pele também pode ser usada para a criação de desenhos feitos através de cortes com uma lâmina ou bisturi.

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A técnica, conhecida como escarifica-ção, forma esses desenhos a partir de cicatrizes. “É necessário que o tempo para a cicatrização seja retardado para que os traços venham a ser permanen-tes. Caso cicatrize de modo suave ou rápido, o desenho pode ser perdido”, explica Pirão.

Para adeptos a adereços na orelha, o alargador consiste em aumentar a per-

furação do lóbulo, a depender do tama-nho desejado. O material é colocado através do pino de inserção, material de aço cirúrgico em forma cônica, que força a dilatação do lóbulo e facilita o procedimento. A expansão do furo na região de forma mais rápida pode ser realizada com o scalp, que também é utilizado para corrigir perfurações. “A diferença entre o alargador e o scalp é o método do uso. Com o scalp, posso colocar de uma só vez uma peça de dez milímetros, através do corte feito com o bisturi na orelha”, comenta Origami.

O monopólio do bisturi

O uso de materiais como o bisturi e a linha de sutura, ou a necessidade de serem feitas pequenas intervenções cirúrgicas nos procedimentos das mo-dificações corporais, levam ao questio-namento sobre até que ponto a prática médica interfere na artística: os body piercers realizam o exercício ilegal da profissão médica?

Para o presidente regional da Socie-dade Brasileira de Cirurgia Plástica, Marcus Moscozo, a ilegalidade é con-sumada somente em casos de compli-cações com diagnóstico. “O profissio-nal que empreende uma solução para o problema, recomenda medicação e

Pirão é body piercer e tatuador

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Quando as modificações corporais e rituais aparecem em telejornais e outros programas televisivos, são quase sempre tratados como “bizarrices” feitas por “loucos” que gostam de sentir dor. São notícias geralmente relaciona-das a tragédias em apresentações performáticas ou a in-divíduos extremamente modificados – no caso de Dennis Avner, que ficou famoso como o “Homem-Gato”, ou Erik Sprague, o “Homem-Lagarto”.

Em 2007, na Rede Record, foi exibido o vídeo de um ritual de suspensão no qual uma garota, ao ser suspensa, teve os joelhos rasgados pelos ganchos. Na reportagem, não foram apurados os possíveis motivos causadores do acidente; foram ao ar somente os procedimentos realiza-dos pelo profissional: estancou o sangue, colocou gaze, fez um curativo e levou a jovem até um centro médico. A exibição de acontecimentos como esse nos veículos de comunicação reforça a ideia negativa de que modifica-ções e rituais não passam de loucura. A matéria não mos-trou, porém, que o acidente foi causado por imprudência do profissional da suspensão, que utilizou um catéter de espessura errada, fazendo um furo muito superficial nos joelhos.

Em fevereiro de 2011, com o clipe Born This Way, da

cantora americana Lady Gaga, foi apresentado ao mundo o modelo canadense, Rick Genest, 31 anos, também co-nhecido como Zombie Boy. Ele é assim chamado porque tem a maior parte do corpo coberta por tatuagens que se assemelham a órgãos e formas da anatomia humana, além de possuir piercing no septo nasal. Apesar da sua atuação como coadjuvante, Zombie Boy fez muito sucesso devido ao seu visual inusitado e ajudou a mostrar que as modifi-cações podem ser abordadas de modo positivo pela mídia, juntamente com Lady Gaga, que durante a campanha de divulgação desse clipe, aparecia com uma maquiagem se-melhante a implantes subcutâneos na testa.

Segundo Diana Magnavita, o que é negativo não é o assunto difundido na televisão, mas a forma superficial com que é discutido. “Eu acho que a prática das modi-ficações corporais deve ser veiculada na televisão, mas acredito que o assunto nunca foi pesquisado a fundo e, quando divulgam matérias, são rasas, de modo que nos fazem parecer pessoas insanas que só desejam obter fu-ros pelo corpo”, comenta. Diana acredita que esse tipo de abordagem se deve ao caráter chocante das modificações. “Tudo que choca e é muito diferente do ponto de vista social acaba gerando uma deturpação”, afirma.

Um tabu (quase) quebrado

‘‘O corpo é um templo e não devemos profaná-lo

’’ Marcus Moscozo

tenta a correção com uma interven-ção cirúrgica está praticando o exer-cício ilegal da medicina. O indivíduo que faz um procedimento médico sem exercer a profissão é responsável por qualquer risco que a pessoa venha so-frer”, esclarece.

O uso da anestesia também é proi-bido nessas intervenções. Segundo o doutor Moscozo, a utilização indevida da droga pode causar complicações sérias. “Quando um dentista ou um médico aplica uma anestesia local, ele sabe que o paciente pode ter um cho-que anafilático ou uma parada cardíaca e tem que saber lidar com a situação.Caso ocorra algum problema, quem faz modificação corporal saberá tratar? Saberá entubar a pessoa? Terá adrena-lina para injetar?”, provoca.

As complicações podem também acontecer muito tempo depois de feita a modificação. A estudante do curso de Dança, Diana Magnavita, precisou ti-rar um piercing que tinha na língua por mais de dez anos, devido a uma retra-ção na gengiva. “Durante muito tem-po, a bolinha do meu piercing ficou em atrito com a boca, causando um feri-mento, até arrancar uma parte da gen-giva. Mesmo com cuidados médicos, ainda dói muito”, comenta. Os danos podem ser evitados com uma pesqui-sa adequada e escolha do melhor local para realizar os procedimentos, procu-rando conhecer principalmente o tra-balho do profissional.

A maior decisão a ser tomada, contu-do, é a de realizar alguma modificação. “O corpo é um templo”, afirma Mos-cozo, “e acredito que não devemos profaná-lo”, completa. No entanto, há quem o profane e o adore tanto em ca-deiras de estúdios quanto em mesas de cirurgias, já que nenhum templo está imune a marcas, sejam do tempo ou da mão humana.

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E MAIS...

FOTOSDOS TRABALHOS DOS

ENTREVISTADOS

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Aos 14 anos de idade, a cidade de Jequié já tinha ficado pequena demais para a inquietação do menino Zéu. Desde pequeno escrevendo músicas e transformando o quintal de casa em teatro para que ele mesmo pudesse se apresentar, Zéu Britto deixava explíci-to o traço multimídia que carrega con-sigo até hoje. No último ano do colé-gio, já em Salvador, Zéu conciliava os estudos com o Curso Livre de teatro da Ufba e, depois de cursar Artes Cênicas por dois anos, as peças o levaram de vez para a carreira profissional.

Zéu trabalhou durante seis anos com o grupo baiano Los Catedrásticos, onde ganhou certo reconhecimento, e depois foi convidado a fazer uma peça no Rio de Janeiro, de onde nunca mais saiu. Além do trabalho como ator em séries de televisão como “Sexo Frágil” e filmes como “Capitães da Areia” e “Trampolim do Forte”, Zéu já apresen-tou dois programas no Canal Brasil e, atualmente, grava participações como

repórter para o programa Mosaico Baiano, da TV Bahia. Como cantor, teve suas músicas incluídas em trilhas sonoras de filmes como “Lisbela e o Prisioneiro” e “Meu Tio Matou um Cara”, além de ter lançado no último ano o DVD “Saliva-me”.

Você afirma que foi na infância que começou a cantar e compor canções excêntricas, como o “Hino em lou-vor à raspada”, inspirado no ensaio da atriz Claudia Ohana para a Play-boy. As suas primeiras músicas já apresentavam esse caráter?

As primeiras eram até mais excên-tricas do que agora. Hoje eu já tenho uma ideia louca e já consigo lapidar para deixar mais no parâmetro da mi-nha idade, com outra roupagem, outros ritmos. Nessa época, era um escárnio porque com 13, 14 anos eu não tinha limites, mas agora é esse escárnio mais lapidado. Na minha música eu falo pa-

lavrão, mas eu brinco com coisas da vida. As coisas reais, duras, podem ser engraçadas, só que vivemos em um mundo em que isso é pesado.

E o que motiva isso?

Eu não sei, acho que medo. Nas mi-nhas músicas, o máximo que falo é sobre sexo, mas existe um preconcei-to contra esse discurso. Acho que não falo nada demais, eu falo de coisas que acontecem na vida, nenhuma dessas canções é inventada. Adoro ser cronis-ta dos fatos reais, mas parece que isso está assombrando as pessoas.

Você se considera um ator que can-ta, um cantor que atua ou não existe essa distinção?

Não existe. Inclusive eu estava ouvin-do uma entrevista de Jô Soares à Marí-lia Gabriela e ele falou uma coisa que eu concordo: é tudo vertente de um

texto Eduardo Coutinho e Flávia Santanafotos Leonardo Pastor/Labfoto

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O Zéu é o limiteOs outros lados de Zéu Britto

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‘‘Eu sou eu o tempo inteiro e, no palco, só

dilato ou diminuo’’

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mesmo ser comunicador que não tem limites. Tem a ver com realização, por-que não é para ganhar dinheiro, é para se realizar, e acaba virando profissão. Não foi um que virou o outro porque tudo parte do ser artista.

Em uma entrevista no programa “Provocações”, você falou que nun-ca fez um grande personagem na sua carreira artística. O que seria um “grande personagem” e por que você acha que isso ainda não acon-teceu?

Na verdade, isso já aconteceu (risos). Nas primeiras peças que fiz, no Curso Livre e depois em Los Catedrásticos, o que eu interpretava não eram persona-gens, eram seres. Eu nunca tinha fei-to uma construção no palco, algo que exigisse um cuidado, eu só tinha feito maluquice mesmo. Um ano depois da-quela entrevista, eu fiz a peça “Deca-meron”. Ali sim! Eu fiz Biondello, um personagem meio erudito que tocava violão de um jeito bem diferente do meu, e também fiz a Irmã Beta, uma freira descarada com um jeito de ser estranho. Eram personagens porque eu vivia aquilo durante uma hora e meia intensamente e me preocupava com a construção do personagem, em levá-lo adiante e ir melhorando. Sabe aquilo de “estou mais perto do personagem ideal”? Isso eu não tinha feito até en-tão. “Decameron” me satisfez, foi aí que quebrei esse cabaço!

A grande maioria dos personagens que você interpretou até o momento apresenta características bastante reconhecíveis: são caricatos, engra-çados, excêntricos. Isso tem relação com o seu próprio jeito de ser?

Totalmente. Inclusive, minha busca agora é um personagem na televisão que dê chupão, que tenha um envol-vimento amoroso, que fale sério, que fale “cadê o documento, Dona Celes-te?”, porque hoje só faço maluquice pesada. Eu gosto e quero fazer malu-quice sempre, mas, quando você faz trinta anos, você busca outras coisas também. Adoro interpretar, mas tem que ter desafio. Até um dia desses, eu

fazia da interpretação uma brincadeira pessoal em que o diretor embarcava. Não conseguia pegar a minha alma e botar num cabide, eu não me deixava em paz. Então, todo diretor teve que aceitar o pacote, o ser. Eu sou eu o tempo inteiro e, no palco, só dilato ou diminuo.

Você consegue destacar um trabalho que fugiu desse padrão?

No cinema, em “Trampolim do Forte”, em que eu fiz uma travesti. As grava-ções eram na rua do Porto da Barra, de madrugada, e fazia muito frio. Então, uma hora o humor foi embora. Sabe quando você perde a graça? Quando você está na exaustão, como diz Au-gusto Boal, aí sim chega o persona-gem! Porque aquele salto alto, a calço-la no cu, tudo era muito desagradável. Depois de quatro horas esperando, quando começou a gravação, eu não tinha mais graça. No filme dá para per-ceber que não parece comigo. É outro tom, outro jeito. Esse tipo de persona-gem me acrescentou muito, eu quero fazer muita coisa assim.

Se você pudesse escolher o próxi-mo personagem a ser interpretado, como ele seria?

(Pausa) Boa pergunta. Eu usaria o meu outro lado, que é o lado dramático pe-sado, que chora. Acho que poderia ser um personagem como um pai de famí-lia que está com o filho numa situação de hospital e perde o emprego. Sabe numa situação desoladora? Isso seria um desafio, eu iria enlouquecer para fazer um negócio desses. Uma situa-ção assim, dramática, pesada. Não sei como me sairia, mas tenho curiosidade de descobrir.

Você afirmou em entrevista que o seu lado artista é, antes de tudo, frio e calculista, apesar de isso não ser mostrado. Explique para nós quan-do e como esse lado oculto se mani-festa.

É que eu sou aquariano com Lua em Peixes e, se deixar, eu nunca piso no chão. Se pudesse, ficaria um, dois me-

ses em casa criando, pintando meus quadros, tocando piano ou cuidando dos cachorros... Mas eu preciso tra-balhar e luto contra esse ser que só quer ficar em casa. Então o lado frio e calculista, o lado racional, vem nessa hora. É que sou meio, bem pouquinho, sociopata. Não gosto de ir a um lugar que tem muita gente e que sei que vou demorar.

Mas esse seu lado que não fica à von-tade num espaço com muita gente é algo que surpreende...

Porque o que fica é essa minha malu-quice, mas eu tenho os meus maneiris-mos. Só enfrento coisa assim se estiver munido profissionalmente de uma fun-ção. Por exemplo, cobertura do carna-val da Bahia: uma van te deixa na mul-tidão e você tem que interagir, buscar quem entrevistar. Isso não é coisa de sociopata, mas aí o lado racional en-tra em ação e eu me policio. Se deixar, juro por Deus, eu não iria para aquela muvuca nunca! Geralmente, com mui-ta confusão, costumo ficar tímido, só que vestido de personagem de bufão, de arlequim, eu enfrento.

Quando exatamente você é tímido?

Quando sou pego de surpresa. Se eu chegar a um lugar e, sem saber, encon-trar uma multidão, vou imediatamente ficar muito sem graça. Mas se vier al-guém perturbando, de repente, já fico envolvido na festa. Mas geralmente eu prefiro não ir, sou igual a gato, eu gos-to de ficar em casa.

Como em qualquer artista, existem diferenças entre o Zéu Britto “pes-soa” e o Zéu “personagem”. Que di-ferenças são essas?

É chocante, mas não tem diferença não. Eu não consigo levar um papo, até com gente íntima, sem gesticular, sem arregalar os olhos, sem cuspir, sem embolar a língua. Mas o povo me acaba, diz que é falsidade, que eu invento um personagem para me inse-rir socialmente. Nunca! Eu sou assim sempre, desde pequeno, em qualquer situação.

E MAIS...

PODCAST FOTOSDE ARQUIVO

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Antes de tudo, um forteO sertão de Juraci Dórea

texto Amana Dultrafoto Leonardo Pastor/Labfoto16 FRAUDE 2011

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O blém-blom do chocalho de metal é a campainha que abre as portas da casa de Juraci Dórea. É o mesmo blém--blom das cabras que pastam em Feira de Santana, portal do sertão e cidade natal do artista plástico. Juraci mora no bairro Olhos d’Água, próximo à Igreja da Matriz e ao Feiraguai, no coração do comércio da cidade, na mesma rua em que morava quando criança. Em sua infância, esta rua era caminho das boiadas. Já em sua memória, o bairro está encravado entre a Feira moderna e a dos vaqueiros.

Quando foi estudar arquitetura na capital, Juraci não se imaginava longe de sua cidade. “No final do curso vinha cada vez mais frequentemente visitar meus pais”, lembra. Sertanejo tem raiz forte, é de sua terra que tira força. Lon-ge, fica como rês desgarrada, como na música de Dominguinhos e Gil. Terra e couro nas entranhas do sertão

No imaginário sertanejo de Jura-ci não cabem ônibus direto para São Paulo, antenas parabólicas e sandá-lia de borracha. As casas, a caatinga, os homens, tudo é feito de couro e de terra. O “Projeto Terra”, trabalho mais conhecido de Dórea, também é assim: varas de pau estendendo o couro de bi-cho na imensidão da paisagem. Arte de sertanejo para sertanejo ver.

Entre os anos de 1982 e 1998, Juraci viajou pelo sertão construindo as insta-lações do projeto. As peças começaram a ser feitas na fazenda de seu pai, em São Gonçalo. “Eu quis demarcar al-guns lugares que estavam associados à minha infância, como o Tanque Novo, a Tapera e o Jericó, que eram referên-cias pra gente que andava no mato, cir-culando pela fazenda”, explica Dórea. Depois, ele seguiu para Monte Santo, Canudos e Euclides da Cunha, até che-

gar ao Raso da Catarina. Segundo ele, essas escolhas se deram em função de suas idas ao sertão mais tradicional.

Na infância do artista, Feira de San-tana era muito ligada à cultura serta-neja, e foi na medida em que a cidade ia perdendo essa referência que ele começou a fazer as viagens a Mon-te Santo, na década de 1970. “Lá era quase uma ilha, a estrada era de bar-ro e demorava um dia pra chegar. Era aquele sertão bruto”, lembra. A ideia de fazer o projeto no sertão foi em fun-ção do lugarejo: “Eu ficava em Feira e, quando viajava para lá, era como se eu recarregasse as baterias, como se eu buscasse uma energia do sertão. Quan-do surgiu o “Projeto Terra” eu pensei em devolver um pouco disso para o lugar”, completa.

Em Monte Santo, ele conheceu Edwirges, uma senhora de 76 anos, moradora da região. Ela é uma per-sonagem central, assim como Monte Santo é um lugar central para o “Pro-jeto Terra”. “Ela é aquela velha que está com a pedra na cabeça no filme ‘Deus e o Diabo na Terra do Sol’. De-pois da filmagem, incorporou isso de ser artista”, explica ele. Segundo Jura-ci, Edwirges tinha toda a memória de Monte Santo, desde as origens. “Ela contava as histórias do lugar, tudo ao jeito dela. Tenho horas e horas de fitas gravadas de conversas sobre o sertão”, emociona-se ao falar da genialidade por trás do depoimento da sertaneja.

Ele lembra, também, da época em que estava em Canudos e das dificul-dades que enfrentou para fazer as ins-talações, prender as peças de couro nas varas de pau e depois fixá-las no chão. “Canudos é muito seco, tem um sol muito quente. De repente, ficou um trabalho bonito no meio daquela paisa-gem seca. A gente tem sempre surpre-sas”, conta.

Por serem instalações, as obras se re-

lacionam com a paisagem e, portanto, a definição do local físico foi funda-mental. “Eu escolhia pela força do lu-gar, como a casa de Edwirges. Decidi fazer em alguns lugares também por-que eram memórias”, diz. Juraci con-ta que montou uma delas na frente da casa-da-fazenda do Acaru que, segun-do dizem, hospedou as tropas de Ca-nudos. Hoje, essa casa não existe mais.

O tempo agiu também sobre as ins-talações. Feitas de material perecível, estavam dentro da proposta de arte efêmera, em que o que fica do projeto é o registro. Por isso, o artista acom-panhou as transformações das peças através de fotografias, filmagens e gra-vações de áudio das impressões dos sertanejos e de seus comentários sobre as obras. “A própria ação do tempo faz parte do trabalho”, afirma Dórea.

Do sertão à Veneza: trajetórias

Essas lembranças e fotografias se transformaram em um painel de 3,60x3 metros e foram para a 43ª Bie-nal de Veneza, em 1988. Colocada na entrada do pavilhão, a obra teve forte impacto sobre o artista: “De repen-te eu fui chegando e vi aquele cená-rio nordestino através daquelas fotos. Foi uma viagem no tempo. Eu estava na Europa e, de repente, eu estava no sertão”. Os registros fotográficos acompanharam vídeos, couro estira-do e bosta de boi, que completaram a instalação da mostra italiana. Só faltou levar o sol de rachar.

A instalação de couro que pode ain-da ser vista, foi feita há quatro anos, e fica na Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). “Aqui, em Feira, as pessoas não se interessam mais pelo couro. Se pudesse levar a peça toda para vender, talvez”. No sertão, não. “Qualquer pedacinho que sobrava, os sertanejos ficavam de olho. Qualquer

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tira que sobrava dava para fazer uma correia, dava para consertar um gibão, uma sela, um sapato”, completa Dórea. O couro é muito útil no sertão, quanto mais o sertão é bruto, mais ele é usado.

Para Juraci, a reação das pessoas em Feira foi muito diferente da dos pas-santes das estradas em que construiu o projeto. Ele acredita que isso se deu porque a cidade já tinha outras caracte-rísticas, não era mais um sertão bruto: “A reação às obras estava muito asso-ciada ao que já se conhecia, às repor-tagens sobre o trabalho que já tinham passado na televisão. No sertão não tinha nada disso, era algo novo, tinha uma certa curiosidade, tinha aquele es-tranhamento em relação à peça”. Ele argumenta que, antes, Feira era a gran-de referência de sertão da Bahia. Para o artista, a grande perda da memória da cidade aconteceu quando a feira li-vre acabou.

Raízes, fantasias sertanejas, feira livre e outras histórias

“A feira já é outra história”, diz ele, “está mais associada à minha memória de Feira de Santana”. Assim como Ca-ruaru, Feira era conhecida pelo comér-

cio ao ar livre. Tanto era que, quando Sartre veio à Bahia, Jorge Amado o levou para conhecer a cidade. Na dé-cada de 70, quando a febre modernista varreu o país, e, especialmente depois da implantação do Centro Industrial Subaé (CIS), a feira livre foi extinta. Juraci chegou a filmar a última feira, em uma câmera Super 8.

Para ele, isto foi o sinal para outras coisas acabarem: “A arquitetura foi se modificando, a Festa de Sant’Ana aca-

bou. Só sobrou a micareta, que quase acabou também”.

A feira estava associada ao Campo do Gado, onde acontecia o comércio ligado à pecuária, outra grande refe-rência de sertão baiano. “Inclusive”, ressalta o artista, “Glauber começa ‘Deus e o Diabo na Terra do Sol’ no Campo de Feira”. Durante o Império, quando a comercialização de pecuária era muito forte, Dom Pedro II veio a

Feira de Santana conhecer o Campo do Gado. Hoje, isto se perdeu e, para Juraci, a cidade precisa construir uma nova identidade.

Assim como o sertão de Juraci é ro-mântico, seu sertanejo é imaginário, é um homem cavaleiro – como já disse o poeta Antonio Brasileiro. É o homem que tem uma ligação forte com a terra, que tem sabedoria. Não uma sabedoria de livro, mas de vivência, e é isto que encanta Juraci: o conhecimento pro-fundo da vida que tinham as pessoas que conheceu em suas entradas pelo sertão. Dons Quixotes que levam a boiada para onde tem pasto verde, que rezam pela chuva, que festejam dia de Reis, que vão à feira.

Ele mesmo também é um cavaleiro, labuta para tentar guardar um pouco da cultura do seu tempo para as próximas gerações. Tempo de um sertão do povo da enxada, dos pés cor da terra, da po-eira subindo. Uma das grandes satisfa-ções do trabalho de Juraci Dórea é ver as novas gerações falarem do sertão que não conheceram e que construíram em sua imaginação também a partir da memória do artista. Sertão idílico, em que a alma do sertanejo ainda é feita de couro.

Escultura em Canudos, 1984

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E MAIS...

DE CAROLINALÔBO SOBRE

PROCESSOCRIATIVO DE

JURACI DÓREA

TEXTO

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Um lugar do caralho!

Travessa Prudente de Morais, número 59, Rio Vermelho. Na casa branca com portas e janelas de madeira pintadas de verde e uma estrutura que, para quem passa na frente, deixa uma sensação de insegurança, habitava uma família: Jean Claude, Lourdes e Naomi, filha do casal.

Travessa Prudente de Morais, número 59, Rio Vermelho. No meio da ladeira de acesso ao bairro boêmio é inaugurado o Café Calypso, apelidado carinhosa-mente pelos seus assíduos frequentadores como “Café Colapso”: um pequeno bar, para aproximadamente 80 pessoas, que costumeiramente ultrapassava a lo-tação.

Muitos não lembram como chegaram, apenas sabem que lá estavam. Sem um sistema de refrigeração eficiente e janelas sempre fechadas para diminuir os pro-blemas com a vizinhança, o Calypso, como todo bom inferninho, tinha como principais características rock ‘n roll a noite inteira e um calor de deixar o Saara com inveja.

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As lembranças de quem tocou, trabalhou e frequentou o bar que transpirava rock

texto Bruna Cook e Marcelo Argôloilustração Bruna Cook

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Luciano Matos, Nancy Viégas, Vandex, Mauro YBarros e Ronei Jorge de volta ao antigo Café Calypso

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Paulinho Oliveira:músico e ex-guitarrista da

Cascadura

O estabelecimento foi inaugurado em maio de 1997 sem a proposta de abrigar shows de rock, pois o francês Jean Claude, seu dono e ex-proprietá-rio do Paris Latino – um antigo bar de rock na orla do Rio Vermelho –, queria apenas que a casa fosse um restauran-te. “Eu tinha prometido que não faria música ao vivo, para poder fechar mais cedo. Não queria aquela agitação”, confessa.

No entanto, duas semanas depois da abertura, a casa sofreu um assalto e, para recuperar-se do prejuízo, Jean Claude resolveu investir em música ao vivo. No dia 8 de junho de 1997, uma apresentação de violão clássico deu inicio à nova fase do bar. No mês seguinte, as primeiras bandas começa-ram a tocar e foi criada uma programa-ção: encontro de jazz organizado pelo baterista Ivan Huol às terças-feiras, Enfim Blues às quartas e Black Soul Connection aos sábados. Estas duas foram as primeiras bandas a tocarem no local com um estilo mais próximo do rock.

A casa 59, com uma simples pla-ca oval branca, escrito em vermelho “Café Calypso”, chamava atenção por sua fachada precária. Aqueles que se arriscavam a entrar atravessavam o portão principal – onde geralmen-te ficava o segurança do bar, Márcio Santos –, abriam outra porta e subiam uma escada íngreme que dava acesso ao ambiente principal. Com uma ilu-minação avermelhada, contava com um balcão, cadeiras e mesas. O pal-co, improvisado, ficava ao lado desse balcão, de costas para o banheiro e de frente para as mesas. Essa disposição

espacial (ver ilustração da página 22) criava a mais memorável e emblemáti-ca característica do Calypso: o público precisava atravessar a banda no meio do show para ir ao banheiro ou pegar uma cerveja.

A casa do rock

Jean Claude nunca teve a intenção de montar outro estabelecimento do tipo. Entretanto, se tornou dono de um bar que respirava e, principalmente, transpirava rock. Márcio Santos, que trabalhou desde 1997, revela que era pessimista em relação ao futuro do Calypso. “Achei que o bar não iria vin-gar. No entanto, o tempo foi mostran-do que o Calypso era, como muitos falavam, a ‘casa do rock’”. Esse título começou a ser construído quando Jean Claude abriu espaço para as bandas Enfim Blues e Black Soul Connection e a sua consolidação veio no ano se-guinte, com as temporadas das bandas King Cobra e Cascadura.

O Café Calypso é sempre lembrado como um espaço agregador da cena musical, principalmente de rock. “Era a nossa casa. Lá fazíamos o que querí-amos”, diz Paulinho Oliveira, músico e ex-guitarrista da Cascadura. O local era o ponto de encontro das pessoas que curtiam a produção roqueira da cidade. Apenas quem realmente era in-teressado na área musical se submetia aos problemas de estrutura do espaço. Logo, a maior parte dos frequentado-res assíduos eram músicos ou tinham relação próxima com eles, como jor-nalistas e produtores. Por isso, era comum, ao fim do show, a plateia pe-

Nancy Viégas:vocalista da extinta banda

Nancyta e os Grazzers

Jean Claude:dono do Calypso

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gar os instrumentos, subir no palco e transformar a noite numa jam session.

Esse, inclusive, era um dos diferen-ciais do lugar: público e banda estarem no mesmo espaço de circulação. “O Calypso desmistificava aquela ideia do músico como intocável”, afirma o produtor e DJ Rogério BigBross. As mesmas pessoas que estavam tocando no palco viam a banda seguinte – exis-tindo uma mão dupla entre ser público e ser artista.

O clima sempre amistoso predomi-nava, principalmente porque a maioria dos que circulavam se conhecia, o que fazia dele um lugar ao mesmo tempo de trabalho e lazer, em que as pessoas estavam presentes de terça a domingo. “Era o velho povo do rock que circu-lava por lá, mas foi ali também que surgiu um novo público, menos homo-gêneo. Começaram a aparecer as mu-lheres no rock, inclusive”, completa o jornalista e DJ Luciano Matos.

O bar tornou-se trampolim e centro de divulgação para as bandas inician-tes ou já firmadas no cenário roqueiro soteropolitano. Cascadura, brincan-do de deus, The Dead Billies, The Honkers, Guizzzmo, Jupiterscope, Brinde, Soma, Sangria, Arsene Lupin, SmoothPod, Saci Tric, Lou, Retrofo-guetes, Formidável Família Musical e mais uma interminável lista tocou no local. “O Calypso foi importante porque nos proporcionou uma difu-são. Conhecemos músicos e isso ser-viu como laboratório”, afirma Vandex, fundador da Guizzzmo.

O espaço conseguiu manter um fôle-go para a cena alternativa em um mo-mento que as bandas precisavam de

um ponto de referência, independen-te da sua estrutura. As apresentações eram democráticas, fosse banda cover ou autoral. Era possível ter a King Co-bra – cover de clássicos do rock – aos sábados e Cascadura – autoral – no dia seguinte, ambos com lotação máxi-ma. “Tinha cover, mas não precisava ser cover para tocar no Calypso”, frisa Vandex.

Apesar da King Cobra ter feito lon-gas temporadas, o bar foi considerado um dos principais pioneiros na difusão de material autoral. “Era bem mescla-do, mas longe de ser uma casa majori-tariamente de covers. Com tanta coisa legal na cidade, um bar só de banda cover era uma burrice sem tamanho. Jean valorizava a cena”, afirma Lucia-no Matos.

Jean Claude tinha uma preocupação em dar espaço também para bandas novas e sempre que uma delas apre-sentava um bom CD de demonstração – mais conhecido como demo – ele marcava um show. “No começo eu co-locava na programação do mês, só que depois eu percebi que precisava de um teste antes, porque acontecia de uma banda entregar uma demo boa, e ao vivo falhar”, afirma.

Outra iniciativa para fomentar e in-centivar a renovação das bandas foi a realização do Troféu Heineken. Fruto de uma parceria do bar com a filial nordestida da cervejaria holandesa – que implicou na mudança do nome Café Calypso para Calypso Heineken Station –, o evento tinha um formato de competição. Em cada eliminatória, duas bandas disputavam entre si uma vaga para as próximas etapas, sob

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Rogério BigBross:produtor e DJ

Vandex:fundador da Guizzmo

Mauro YBarros:designer e baixista daBlack Soul Connection

Luciano Matos:jornalista e DJ

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a avaliação de um júri formado por produtores, jornalistas e músicos. A premiação foi a gravação de uma co-letânea com músicas das três melhores bandas.

A divulgação de todos os eventos se dava basicamente por meio de cartazes no Rio Vermelho, panfletos e releases para a imprensa, além do bom e velho boca a boca. Essas poucas ferramen-tas, graças ao engajamento do público, já proporcionavam lotação. Panfletos eram impressos em menor quantidade, pois o tamanho do local não justificava uma grande panfletagem.

Bom para brincar

O Calypso nunca foi o melhor lugar para tocar. Tinha problemas de infra-estrutura, instalação elétrica e sono-rização, o que acabou implicando em um descompasso para a profissionali-zação das bandas. “Achar aquilo o ho-rizonte da produção musical era bem problemático”, diz Messias Bandeira, vocalista da banda brincando de deus. “No entanto, era o possível naque-le momento enquanto casa noturna”, completa. O espaço era um ponto de encontro social, onde muitos iam para ver as bandas iniciantes e tocar “de brincadeira”. “Todo mundo adorava isso, mas na hora de tocar para traba-lhar todo mundo chiava”, diz Paulinho Oliveira.

Não havia um palco propriamente dito, muito menos iluminação cênica. “Os músicos cheios de performance não gostavam. Não cabia a banda, que dirá o ego”, diz Mauro YBarros, desig-ner e baixista da Black Soul Connec-tion. Diversas propostas foram feitas para a mudança da estrutura interna, principalmente em relação à posição do palco. Entretanto, surpreendente-mente, houve uma grande resistência até mesmo por parte das bandas, argu-mentando que essa era uma marca do Calypso.

A classificação de inferninho não foi à toa. As janelas viviam fechadas e o ar-condicionado estava constante-mente em manutenção. Para completar, o ar continha um grande percentual de fumaça oriunda de cigarros e derivados. “Muitos criticavam, mas poucos gasta-vam dinheiro aqui”, defende-se Jean.

“Um dos problemas do Calypso era a Sucom”, brinca Nancy Viégas, paulista, vocalista da extinta banda Nancyta e os Grazzers, que se desta-cou junto com Pitty por representar as mulheres do rock em Salvador. O rela-cionamento de Jean Claude com os vi-zinhos era pacífico, apesar de algumas exceções. “O vizinho da frente vendeu a casa por não conseguir fechar o bar”, conta Jean Claude sobre um dos pou-cos conflitos. A concorrência também era algo que ele tinha que administrar. “Soube, por um ex-funcionário de um bar concorrente, que eles ligavam para a Sucom se passando por vizinhos e reclamavam do barulho”, lamenta.

Uma sexta feira 13

Pensando nos problemas financeiros e em sua saúde, Jean Claude, em 13 de fevereiro de 2004, abre o bar pela última vez – uma sexta-feira 13. “Sete anos e nunca havia sobrado dinheiro, pagávamos os custos pessoais e do bar apenas. Eu acordava, tomava café e já estava na frente do computador traba-lhando: cuidando da divulgação e da programação do próximo mês. À noi-te era até três ou quatro horas da ma-drugada. Era cansativo”, afirma Jean Claude.

No entanto, duas semanas após o fe-chamento do bar, ele foi reaberto. “Eu

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Banda The Honkers em show no Calypso nos idos de 20 de janeiro de 2003

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não queria fechar”, argumenta Lour-des Oliveira, ex-esposa e ex-sócia de Jean. Apesar da dificuldade financeira, durante mais dois anos o espaço con-tinuou com a sua programação e seu público fiel. “Theo Filho, um dos só-cios da extinta Boomerangue, tentou fazer uma sociedade comigo, mas o Calypso já estava em uma situação fi-nanceira instável”, continua. Lourdes lembra que o baterista de uma banda local tocou de forma ensurdecedora, o que implicou na visita da Sucom e em uma multa alta, que o bar não pôde pagar. Foi em novembro de 2006 que o Calypso Heineken Station fechou os portões de seu inferninho.

Memorial

O espaço serviu de palco para situ-ações e shows marcantes. As apresen-tações das bandas cariocas Forgotten Boys e Pelvs; Velhas Virgens, de São Paulo; o show do gaúcho Wander Wildner e a gravação de uma parte do DVD “Admirável Vídeo Novo” da baiana Pitty são os exemplos mais recorrentes. Histórias peculiares ocor-reram no bar ao longo dos nove anos e ficaram marcadas na memória afeti-va dos seus frequentadores. Uma das mais inusitadas envolveu certo jorna-lista e crítico local que, bêbado, foi ex-pulso do Calypso. Em outra situação, talvez uma das mais embaraçosas, a garçonete, Márcia Santos – irmã do segurança Márcio –, passou por trás do vocalista de uma banda conhecida, o cutucou e em seguida lhe entregou a conta, sinalizando explici-tamente que estava na hora do show acabar. A passa-gem de Cássia Eller, Nan-do Reis, Nasi, ex-vocalista do IRA, e Ivete Sangalo – prestigiando os irmãos Calasans, que trabalhavam com ela – estão no hall de memórias do bar.

“Eu tocava e colocava a cerveja em cima do am-plificador. Quando virava, tinham levado a cerveja”, conta Ivan Oliveira, músico e ex-baixista da Cascadu-ra. “Às vezes você ia beber

“O lugar cumpriu seu papel. Talvez faça falta um lugar como o Calypso”, diz Fábio Cascadura, vocalista e fun-dador da banda que incorporou como sobrenome, referindo-se ao ambiente de amizade e fomento da cena. “Passa-va longas temporadas sem frequentar, porque cansava encontrar sempre as mesmas pessoas – um problema crô-nico da night alternativa de Salvador”, afirma Chico Castro Jr., jornalista e frequentador. “Só sentimos falta ou saudade quando algo não é completo. Como foi uma experiência completa, só tenho boas lembranças”, afirma Márcio Santos.

“Rock”, “amigos”, “eterno” e “um lugar do caralho” são algumas expres-sões que foram usadas para se referir ao Calypso. Mesmo com seus proble-mas estruturais, o bar é lembrado com estima pelos músicos e frequentadores. Assim como o CBGB – clube de músi-ca novaiorquino que abrigou shows de bandas como os Ramones – foi funda-mental para a formação e propagação do punk rock do final da década de 1970, o Calypso foi fundamental para o rock de Salvador no final dos anos 90.

Seria um grande equívoco classifi-car o espaço como mais um bar com rock na região boêmia de Salvador. O Calypso, mesmo não sendo o melhor lugar para tocar, serviu de referência e foi, durante nove anos, a alternativa para o desenvolvimento da produção local de rock.

uma água e quando voltava já tinha uma pessoa cantando no seu lugar”, diz Nancy Viégas. “A fauna noturna de Salvador aparecia no Calypso em gê-nero, número e grau”, relembra Mauro YBarros. “O dia mais cheio que eu vi aquele Calypso foi no show da Forgot-ten Boys. As paredes suavam, transpi-ravam”, relembra Rogério BigBross. “Eu fiquei lá fora ouvindo, pois nem era tão fã da banda, mas lembro de ter visto, assim que o show acabou, três caras branquelos cheio de tatuagens sairem correndo encharcados de suor, parecendo que tinham saído de uma batalha. Eram os músicos da banda que não aguentaram o calor depois que terminaram de tocar”, conta Luciano Matos.

Saudosismo (ou não)

O saudosismo do mais autêntico in-ferninho de Salvador está muito ligado ao cenário que existia na época – cená-rio este que, atualmente, está enfraque-cido pela falta de espaços para bandas com trabalho autoral. “O Calypso re-presenta a cena do final da década de 90, que foi o começo da escassez de público”, afirma Paulinho Oliveira. A nova geração de bandas hoje tem um público que, em sua maioria, não fre-quentou o Calypso, mas freqüentou bares como a Boomerangue e o World Bar – que se assimilavam ao formato da extinta casa 59.

E MAIS...

DE ARQUIVO COM TRECHOS DAS

ENTREVISTAS

PODCAST FOTOS

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Encontrar um folheto com indica-ções de como utilizar drogas, lícitas ou ilícitas, de maneira mais saudável, ainda pode causar espanto em muitas pessoas. Instruções sobre cuidados que envolvem a alimentação durante o uso, os instrumentos utilizados para consumir as substâncias ou a avaliação de sua qualidade e procedência são apenas algumas das ações da Redução de Danos. A prática, que já foi interdi-tada e proibida no país sob acusação de estimular o uso de drogas, foi ado-tada no ano 2000 pelo Ministério da Saúde como uma estratégia de saúde pública.

Não é proibido fumarQuando a liberdade de uso e de escolha do sujeito norteiam uma

estratégia de saúdetexto Eduardo Coutinho e Marília Moreirailustrações Luana Vellame

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A Redução de Danos (RD) se preo-cupa em tornar o uso da droga menos nocivo ao indivíduo. Com a atenção voltada à autonomia do sujeito, a RD considera o consumo um direito do usuário e direciona as suas estratégias para o cuidado com a sua saúde. “A ideia é que esse usuário passe a ser visto como sujeito das suas próprias ações”, explica Wilton Valença, antro-pólogo do Centro de Atenção Psicos-social para Álcool e outras Drogas Gey Espinheira. A estratégia, por não obje-tivar necessariamente a abstinência e ir de encontro ao princípio da tolerância zero e da cultura proibicionista, é alvo de críticas morais que consideram, tanto a droga quanto o usuário, males a serem extintos da sociedade.

No Brasil, a vida é considerada um bem inalienável e inegociável. De-vido a este princípio, o Estado tem o direito de intervir na liberdade de al-guém quando este coloca a sua própria vida e a de outros em risco. A maioria dos defensores da Redução de Danos acredita que a “sacralidade” da vida não deve alcançar a liberdade do su-jeito. “Se o sistema legal e o sistema de saúde lutam contra a morte até a morte, a Redução de Danos faz uma

mediação entre essa ‘sacralidade’ da vida e a liberdade individual”, explica Antônio Nery Filho, médico psiquia-tra e coordenador geral do Centro de Estudos e Terapia do Abuso de Drogas (Cetad). A prática reconhece, portanto, o direito que as pessoas têm de usar droga, mesmo que muitos ainda acre-ditem que esse uso, por colocar a vida do usuário em risco, seja condenável. “Algumas pessoas acham que eu sou um defensor das drogas, mas não sou. Eu sou defensor dos direitos que as pessoas têm de usar drogas, afinal, não proponho que as pessoas usem dro-gas”, afirma. “Que há danos e risco em qualquer uso, sempre há, mas a estra-tégia existe justamente para que o usu-ário possa reduzi-los”, complementa.

Drogas, tô fora!

A palavra “droga” é estigmatizada socialmente e costuma ser associada ao mal. Na Grécia, o termo utilizado era “fármaco” e significava tanto ve-

neno quanto remédio: a classificação dependia do uso e da dosagem de cada substância. O nome “droga” é mais recente, mas há uma luta para subs-tituí-lo pelo termo “psicoativo”, para que haja a destituição de substâncias ilícitas dessa significação negativa e a introdução daquelas que são consi-deradas menos prejudiciais no mesmo grupo, a exemplo do álcool. A palavra “psicoativo” é destituída de um julga-mento moral e a única significação que possui é a de que provoca alterações no sistema nervoso central, por isso a reivindicação pelo seu uso.

Devido a diversos fatores associa-dos ao consumo e ao usuário, a co-mum distinção das drogas em “leve” e “pesada” é rejeitada pela estratégia. Segundo Nery, se fôssemos seguir essa classificação, o álcool deveria estar en-tre as substâncias mais pesadas, uma vez que é a que mais causa transtornos físico, mental e social. “É perceptível que o que se chama droga pesada é a droga ilícita. Isso é uma convenção”,

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‘‘É muito mais fácil dizer que a culpa dos problemas sociais é

uma droga, é uma pedra ’’Wilton Valença

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afirma. Nery, no entanto, faz uma res-salva ao caso da maconha, que é consi-derada uma droga leve pelo seu baixo potencial de morte e pela baixa proba-bilidade de causar transtornos mentais e sociais. O centro das atenções

A sombra da ameaça do crack paira tanto sobre a mídia quanto sobre boa parte dos discursos políticos relacio-nados à segurança pública. O crack é uma mistura de pasta-base de cocaína com substâncias como carbonato de cálcio, ácido clorídrico e amoníaco e é resultado da interrupção do proces-so de refinamento da cocaína. Por ser uma droga barata e capaz de causar um forte efeito psicoativo, o crack é mais consumido por pessoas em situação de abandono social.

Mesmo com a ausência de pesquisas indicativas do número de usuários de crack na cidade, a substância tem sido protagonista de afirmações que rela-cionam o uso de drogas aos índices de criminalidade. Wilton Valença atribui à mídia a culpa por reforçar alguns preconceitos através de slogans como “Crack: cadeia ou caixão” ou “80% dos homicídios estão ligados ao cra-ck”. Para ele, essas afirmações são fal-sas e servem apenas a fins políticos. “É

muito mais fácil dizer que a culpa dos problemas sociais é uma pedra”, afir-ma. A antropóloga Luana Malheiro, residente do Instituto de Saúde Coleti-va da Ufba, é enfática: “Eu já fiz uma provocação a muitos médicos. Se al-gum deles puder me mostrar um ates-tado de óbito com a informação de que a causa da morte foi o crack, eu coloco o meu nome embaixo destas propagan-das”. Para ela, os usuários de crack es-tão morrendo por questões associadas à vulnerabilidade social, aos fatores de risco. “São pessoas que têm tubercu-lose, tomam chuva, dormem nas ruas, se alimentam mal, têm práticas sexuais de risco, muitos têm HIV, sífilis, e mui-tos morrem pela ausência de qualquer estrutura de saúde”, afirma Malheiro. No entanto, Nery atenta para o elevado risco de morte oferecido pelo consumo do crack, já que o seu consumo por via respiratória faz com que a quantidade de substância absorvida seja centenas de vezes maior que o uso de cocaína por via nasal, por exemplo.

Trajetória

As primeiras medidas de Redução de Danos surgiram na década de 1920, na Inglaterra, quando um grupo de médicos passou a prescrever opiáceos, como morfina e heroína, com o objeti-

vo de auxiliar dependentes químicos a lidarem com as síndromes de absti-nência. Na Holanda, durante os anos 80, a RD surge como uma estratégia de combate à transmissão de doenças como Aids e Hepatite B entre usuários de drogas injetáveis.

No Brasil, a primeira tentativa ocor-reu em 1989, e foi levada adiante pela prefeitura de Santos, em São Paulo, com objetivo de controlar a epidemia

da Aids entre os usuários de drogas in-jetáveis. Sob acusação de estimular o consumo de substâncias ilícitas, a ex-periência de Santos em pouco tempo foi interrompida por ordem judicial e o primeiro Programa de Redução de Da-nos do país só foi criado seis anos de-pois, em 1995, no Cetad, em Salvador.

O professor e coordenador geral da Aliança de Redução de Danos Fátima Cavalcanti (ARD-FC), Tarcísio Andra-de, que esteve à frente da implemen-tação das estratégias de RD enquanto trabalhava no Cetad, afirma que as intervenções em rua superaram as ex-pectativas. “No começo nós tínhamos 58% das pessoas que usavam drogas

injetáveis infectadas com o vírus HIV e, alguns anos depois, essa taxa era de 7,1%”, conta Tarcísio. “Nos anos seguintes, o governo brasileiro começou a olhar a ex-periência da Bahia. Diante disto e da criação de novos grupos de redutores de danos em estados como o Rio de Janeiro, São Pau-lo e Rio Grande do Sul, o Minis-tério da Saúde adotou, em 2000, a Redução de Danos como uma prática de saúde do Brasil”, com-plementa Nery.

Apesar de o Ministério da Saú-de ter adotado a estratégia da Redução de Danos, foi apenas em 2006 que a lei brasileira re-lacionada ao usuário e/ou depen-dente de drogas (11.343/2006) deixou de prever a pena de prisão (art. 28). Diante deste cenário,

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e é nesse espaço que se concretizam a maior parte de ações. Tarcísio Andra-de, coordenador da ARD-FC, afirma que o contato com os usuários de dro-gas nas ruas do centro histórico de Sal-vador, antes mesmo da implementação efetiva do programa de RD, permitiu que fosse conhecida uma realidade que, em muitos aspectos, contestava o imaginário popular. “Existiam crenças de que os usuários de drogas queriam mesmo morrer ou de que o comparti-lhamento de seringas entre eles estava relacionado a um pacto de sangue”, lembra.

As experiências deram origem a pesquisas que, segundo Andrade, com-provaram que os usuários comparti-lhavam as seringas apenas por uma questão circunstancial, já que prioriza-vam a compra da droga. “As pessoas usam drogas numa tentativa de sobre-viver, cada uma a sua maneira. O uso é sempre uma tentativa de sobrevivência psíquica, de enfrentar a vida, de tocar as coisas adiante, embora, às vezes,

com consequências muito negativas”, explica Andrade.

Hoje, as ações em campo pela ARD--FC cobrem as áreas como o Comér-cio, Gravatá, Praça da Sé, Pelourinho. Como o número de usuários de drogas injetáveis é praticamente inexistente, são distribuídos apenas preservativos. Na rua, o encontro entre redutores e usuários pouco parece uma visita de profissionais de saúde: entre orienta-ções sobre uso, como indicação do pa-pel mais apropriado para enrolar a ma-conha ou advertências para que nunca sejam compartilhados cachimbos de crack, são comuns piadas, histórias, gargalhadas e abraços. “Nós criamos um vínculo forte com o usuário e é a partir desse vínculo que ele se sente a vontade para falar sobre o seu uso, a sua vida. A relação é muito tranqui-la, os usuários recebem a gente muito

‘‘Você protege a vida quando dá uma seringa limpa, mas, ao usar a droga, a morte está perto

do usuário ’’Antônio Nery

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os profissionais têm trabalhado numa linha muito tênue entre a legalidade e a ilegalidade. “Os redutores de da-nos chegam às ruas e dão uma seringa para uma pessoa usar uma droga que é proibida”, diz Nery. Para ele, a posição ética dos profissionais de saúde é a de que não estão estimulando a ilegalida-de, mas protegendo a vida de pessoas que estão na ilicitude. “Não somos po-liciais, por isso não nos cabe julgar as pessoas, mas sim proteger suas vidas”, compara. No entanto, Nery aponta para a fragilidade dessa fronteira en-tre vida e morte. “Você protege a vida quando dá uma seringa limpa, mas, ao usar a droga a morte está perto do usu-ário”, conclui.

O estado ilegal das drogas impede que algumas ações de RD, como a estratégia de substituição das substân-cias, aconteçam no Brasil. A ação con-siste na diminuição ou substituição do uso de uma substância psicoativa por

outra menos nociva, a exemplo da utili-zação da maconha em lugar do crack. “Se você oferece um pouco de maconha a uma pessoa que fuma dez pedras de crack por dia e ela reduz o consumo para cinco pedras, estão sendo reduzidos os danos”, explica Nery.

A rua

Hoje, no país, as práticas de RD são adotadas por órgãos públicos de saúde, como os Centros de Atenção Psicos-social para Álco-ol e outras Drogas (Caps-AD), além de

estarem presen-tes em ONGs e em projetos de extensão univer-sitária.

Em Salvador, a estratégia é uti-lizada nos dois Caps-AD, situ-

ados nos bairros de Pirajá e Pernam-bués, além do Cetad e da Aliança de Redução de Danos Fátima Cavalcanti (ARD-FC), serviços pertencentes à Faculdade de Medicina da Ufba. Os Caps funcionam como uma institui-ção de portas abertas, onde o usuário é acompanhado por uma equipe multi-disciplinar composta por médicos, psi-cólogos e assistentes sociais. O bom desempenho do tratamento depende em grande parte do próprio usuário, já que é ele quem vai até o serviço por conta própria. A Redução de Danos pode estar presente ainda em festas de música eletrônica. Em Salvador, o Coletivo Balance assiste a usuários de drogas como êcstasy e LSD nestes ti-pos de festa dando orientações sobre o uso e testando a composição das subs-tâncias.

No entanto, a maior parte da popula-ção assistida pela Redução de Danos é moradora ou está em situação de rua,

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pessoa que vá ao N.A. passa pelos 12 passos, herdados da teoria cognitiva comportamental e com forte cunho re-ligioso, que se centra na culpa, na auto-punição”. Para Luana, esse modelo não se preocupa com as particularidades do uso e do usuário. “Se você for usuário de crack, de álcool ou de maconha você vai usar os 12 passos e dessa forma o sujeito é achatado e a droga é conside-rada de forma uniforme”.

Feios, sujos e malvados

“Quantas vezes eu tive de sair da-qui de madrugada, pegar um táxi para levar algum colega no hospital e, che-gando lá, negarem atendimento?” A pergunta é feita de forma indignada por Roque*, morador da Praça Marechal Deodoro (Praça das Mãos), no bairro do Comércio e é reveladora de como os centros de saúde e grandes hospi-tais lidam com os usuários de drogas e moradores de rua. Acostumado a ouvir “não”, Roque não se acomoda com a resposta. “A gente tem que lutar pelo que é nosso de direito”, diz.

Como a droga ainda está muito asso-ciada à criminalidade e à marginalida-de, muitos profissionais de saúde ainda têm receio de prestar atendimento a es-tes usuários tanto em centros de saúde voltados para atenção básica, quanto nos hospitais de média e alta comple-xidade. Segundo Luana Malheiro, isso ocorre, entre outros motivos, devido ao fato de que a maioria dos usuários, sobretudo de crack, se encontram em situação de vulnerabilidade social e procuram atendimento com um as-pecto muito sujo. “O cheiro, o jeito, o aspecto destes usuários incomoda. Os profissionais de saúde querem o usuário limpinho”, opina. A denomi-nação “viciado”, geralmente associada aos usuários de drogas ilícitas, é mais um rótulo que acaba por violar muitos direitos dos indivíduos. “É justo que uma pessoa que toma remédio todas as noites para dormir não seja considera-da viciada e uma pessoa que usa um cigarro de maconha todo final de se-mana seja nomeada desta forma? Um a gente chama de viciado e outro de pa-ciente!”, ironiza Antônio Nery.

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bem”, conta Beatriz Vianna, estudante de psicologia e redutora de danos da ARD-FC. Porém, o clima nem sem-pre é de tranquilidade. O trabalho nas áreas de tráfico pode, a qualquer mo-mento, converter-se em insegurança. “O perigo maior é a polícia chegar. Ela chega nesses lugares de uma for-ma violenta, porque sabe que aquelas são pessoas desassistidas. No entanto, o risco quase nunca vem do usuário”, reforça Beatriz.

O Cetad, que foi o pioneiro nas ações de campo através do conceito de con-sultório de rua – em que uma equipe multidisciplinar, com o suporte de um ambulatório móvel, presta atendimento aos usuários nos próprios locais de uso –, passou alguns anos sem realizar in-tervenções por falta de recursos e, em 2010, retomou as atividades. Segundo Tarcísio Andrade, o sucesso das inter-venções em rua depende, em grande medida, da postura do redutor de danos. “Quando o profissional de saúde vai às ruas, ele tem que abandonar a tradição verticalizada, onde se diz ao indivíduo o que é bom, que remédio tomar, que dieta seguir, aonde se dirigir”. Para o médico, o redutor de danos deve deixar os seus valores em stand by para apren-der com usuário e, junto com ele, cons-truir um conhecimento.

Outros tratamentos

Há várias instituições de saúde que cuidam de usuários de drogas, mas que não concordam com a prática da Re-dução de Danos. O professor Antônio Nery dá o exemplo das comunidades terapêuticas evangélicas que não acei-tam a troca de seringas. Também as co-munidades católicas, que não aceitam a distribuição de preservativos.

A Vila Serena, instituição privada de Salvador, que se baseia nos 12 passos dos Alcoólicos Anônimos (programa criado nos EUA, caracterizado pela doutrinação religiosa e que leva em conta a percepção do sujeito enquanto impotente diante da droga), reconhe-ce a prática de RD, mas não tem uma intervenção terapêutica baseada nessa estratégia. Moema Britto Raquelo, te-rapeuta da família e assistente social da Vila Serena Bahia, explica que todo o tratamento da clínica é baseado no modelo Minnesota, o qual compreen-de que a dependência química é uma doença crônica, progressiva, fatal, mas que tem controle e visa tratá-la em uma terapia de grupo. Apesar desses exem-plos, Nery vê o Brasil muito mais do lado da Redução de Danos que contra ela (como acontece nos EUA que segue o princípio da tolerância zero).

Luana Malheiro considera o modelo dos Narcóticos Anônimos (N.A.) res-tritivo, apesar de reconhecer que fun-ciona para algumas pessoas. “Qualquer

*Nome fictícioE MAIS...TEXTO

A VIVÊNCIA DOS REPÓRTERES EM UM DIADE REDUÇÃO DE DANOS

COM TRECHOS DA ENTREVISTA DE ANTÔNIO NERY

PODCAST

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FRAUDE 2011 29

Como você reagiu à queda da obri-gatoriedade do diploma? Pensou em aprender truques da cozinha após ver o Ministro comparar seu traba-lho à culinária?

Num primeiro momento, minha gran-de dúvida foi descobrir o que fazer com o meu diploma. Forrar a gaiola do passarinho ou o chão para o xixi do cachorro? Apesar de sempre xingar o Gilmar Mendes, sei que diploma não é tudo. Tem muito jornalista diplomado por aí que não sabe o que é jornalismo.

Você deseja ainda ganhar prêmios com o jornalismo?

Se ganhar prêmio pagasse minhas contas, gostaria de ganhar um por mês (risos). Não sou contra prêmios, sou contra os jornalistas que são escravos de premiações.

Seu blog é muito visitado, mas não há nenhuma publicidade nele. Você fez um voto de pobreza?

Fiz voto de pobreza quando entrei na faculdade de jornalismo (risos). Mi-nha idéia com o blog nunca foi ganhar dinheiro, mas ter um espaço com li-berdade para publicar os meus textos. Não descarto no futuro ter publici-dade, desde que isso não interfira no conteúdo.

Com as ameaças de fim do mundo, sempre é bom se perguntar qual será a próxima vítima. O Desilusões Perdidas está na lista?

O blog segue firme e forte. Pretendo até lançar, em breve, um livro. Po-rém, para responder esta pergunta com 100% de certeza, teria que consultar mãe Dinah.

Todo jornalista sabe que seu ofício é cor-tar e trocar palavras. Como você reagirá às edições que a equipe da Fraude fará em suas respostas?

De verdade, não tenho nada contra mexerem no meu texto. Só fi-carei bravo se vocês deixarem uma vírgula separando o sujeito do predicado numa frase (risos).

Você contaria algum off à revista Fraude?

Se é off, não posso con-tar. Sou pobre, corno e desempregado, mas ain-da mantenho meus prin-cípios éticos.

Sob o pseudônimo de Duda Rangel está um marido inconformado pela perda da mulher, desolado pela imi-nente perda da guarda do cão Nestor. Ele é um jornalista desiludido pelo de-semprego que bateu à porta mais cedo do que o esperado. Essas e outras frus-trações foram transformadas por Duda no desilusõesperdidas.blogspot.com em postagens cheias de humor, de iro-nia e, porque não, de ficção. Apesar de muita gente acreditar que é um homem de carne e osso, na verdade, ele é uma criação de dois amigos jornalistas que preferem o anonimato. Eu, Macaqui-cha, a mascote da Fraude, conversei com Duda sobre o blog, jornalismo e outras desilusões.

Ilusões Perdidas, de Balzac, roman-ce que inspirou o nome do blog, é considerado um retrato duro e mag-nífico de uma sociedade que engole os fracos, atropela os ingênuos e des-trói os sonhos dos idealistas. O blog Desilusões Perdidas também é?

Não pretendo destruir o sonho dos idealistas, mas mostrar que o jorna-lismo não é feito apenas de glamour. Na blogosfera, discute-se muito o fa-zer jornalístico, o que é publicado na imprensa, mas quase nada da vida do profissional.

O que motiva você a escrever no blog Desilusões Perdidas?

A idéia (ainda não adotei a nova or-tografia, apenas por birra) de fazer o blog surgiu como uma forma de lutar por minha reconstrução pessoal. Fui abandonado pela minha mulher e perdi o emprego no jornal. Tentei o suicídio, mas fracassei. Como não tinha dinhei-ro para fazer terapia, resolvi criar um blog para desabafar. Os terapeutas se deram mal, não ganharam dinheiro co-migo.

o la

dodo Jornalismo

texto Macaquicha*ilustração Oliver Dórea

B

* por Amana Dultra e Marília Moreira E MAIS...

INÉDITODE DUDA RANGEL

TEXTO ENQUETE

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texto Amana Dultrafotos Isabela Maranhãoprodução Breno Costa e Guilherme Souza

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dom seg ter qua qui sex sábMarço

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Agostodom seg ter qua qui sex sáb

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Julhodom seg ter qua qui sex sáb

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Setembro

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Fevereiro

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dom seg ter qua qui sex sábJaneiro

Barbie quer ser gente grande

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Maiodom seg ter qua qui sex sáb1 2 3 4 5 6 78 9 10 11 12 13 1415 16 17 18 19 20 2122 23 24 25 26 27 2829 30

Abrildom seg ter qua qui sex sáb

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Junho

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Dezembrodom seg ter qua qui sex sáb

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Outubrodom seg ter qua qui sex sáb

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Novembro

Barbara Millicent Roberts e sua amiga Nikki são as Fraudegirls desta edição. Assim como as modelos que enfeitam as borracharias, Barbie estreia no calen-dário da mais famosa marca de carrinhos em miniatura. Nesse ensaio sensual, a fotógrafa Isabela Maranhão, monitora do Labfoto/Ufba, brinca de fraudar nosso imaginário infantil. Como sempre, fotos sem Photoshop e modelos sem botox.

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Selo Fraude de Qualidadetexto Flávia Santanafoto Agnes Cajaiba/Labfoto

O objetivo dessa primeira edição do Selo Fraude de qualidade é muito cla-ro: descobrir qual é o melhor e mais saboroso arrumadinho de Salvador. É evidente que não foi possível visitar todos os lugares da cidade que servem o prato, mas, de todo modo, houve um cuidado em visitar botecos que estivessem localizados em diferentes regiões e que tivessem características

Bar do Chico

Com mais de quarenta anos de existência, o Bar do Chico está localizado perto da ladeira da Barra. Mesmo sendo bastante frequentado pelos moradores do bairro, o local é prova viva de que nem sempre experiência é sinônimo de qualidade. O arrumadinho é composto por uma pequena quantidade de carne com nervos (além dos pedaços só com gordura!); um feijão que parece que foi cozido na água e sal; uma farofa seca não amanteigada e uma salada que mal tampa os buracos dos dentes. Defi-nitivamente, não recomendo para ninguém.

Local: Rua Presidente Kennedy, BarraValor: R$16,00Nota: 3

Bar & Restaurante 36a

Sendo um dos principais pontos de encontro de estudan-tes do bairro na hora do almoço, o Bar 36a, carinhosamente chamado de “36”, oferece uma grande variedade dos famosos “PFs” (pratos feitos). Ninguém tem dúvidas de que o ponto forte do local é o arrumadinho, pois, além de ser o mais pedi-do pelas mesas vizinhas, o prato apresenta diversas opções de tamanhos, como o mini, grande e super. O arrumadinho, em si, tem pequenos problemas: quase não se vê a cor da salada; o feijão é meio sem graça; a carne é gostosa, apesar dos nervos; e a farofa (que mais parece farinha) é molhada. De todo modo, o gosto caseiro é bastante específico e saboroso e o custo-be-nefício é muito bom, já que o “super”, por exemplo, serve de quatro a cinco pessoas.

Local: Av. Cardeal da Silva, FederaçãoValor: R$18,50 (grande) Nota: 7

Caminho de Casa

Não é à toa que o Caminho de Casa está sempre cheio: local agradável e com um cardápio regional de deixar qualquer um com água na boca. Ainda que o custo-benefício seja baixo, já que a quantidade não é compatível com o preço, o arruma-dinho do Caminho de Casa é excelente. A carne, cortada em cubos, é extremamente macia; a salada é bonita e tem varieda-de; o feijão é bem temperado; e, por fim, a farofa é fininha e saborosa – apesar de ocupar metade do prato. Vale muitíssimo à pena!

Local: Rua Anísio Teixeira, Shopping Boulevard, Itaigara.Valor: R$19,50Nota: 9

Central da Lambreta Bar & Restaurante

Quem pensa que a especialidade do Central da Lam-breta é frutos do mar está muito enganado. O bar, locali-zado na Mouraria, tem no seu cardápio uma grande va-riedade de refeições envolvendo carne vermelha e, entre elas, o arrumadinho. O prato, que demorou apenas doze minutos para ficar pronto, tem um aroma agradável e é muito bem servido. Destaque para a distribuição dos in-gredientes: muita farofa (a mais gostosa de todas, diga--se de passagem!); boa quantidade de salada; e pouca quantidade de carne, que foi cortada em pedaços minús-culos e misturada com o feijão para disfarçar.

Local: Rua Tristão Nunes, MourariaValor: R$ 25,90 Nota: 8

e públicos distintos. De 0 a 10, foram pontuados os melhores (e piores) arru-madinhos da cidade e, como a pessoa que vos escreve não é nem estudante de gastronomia e muito menos chefe de cozinha, os critérios de avaliação ado-tados estão baseados naquilo que todo mundo observa ao se deparar com um arrumadinho: aparência, quantidade, apreciação culinária do prato (sabor,

qualidade e textura da carne, varieda-de da salada, textura da farofa) e, por fim, custo-benefício. É possível que muitas pessoas, ao lerem essa matéria, se sintam injustiçadas porque seu ar-rumadinho favorito não apareceu aqui. Porém, devo lembrá-los que a busca ainda não terminou! Entre no site da Fraude [revistafraude.com] e deixe seu comentário e/ou sugestão!

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Selo Fraude de Qualidade

Aconchego da Zuzu

O Aconchego da Zuzu surgiu há 12 anos e é administrado pela família da matriarca Zuzu – que faleceu em janeiro de 2011, aos 103 anos. O boteco ganhou bastante fama não só pelo sambinha aos domingos, mas, principalmente, pelos pra-tos da culinária baiana, como moqueca de peixe, caruru, ma-riscada e por aí vai. Entre outras delícias, você também pode encontrar o escondidinho de camarão e, claro, o arrumadinho que, por sinal, merece nota quase dez – não fosse pelo pre-ço salgadinho. Em um prato de barro, o arrumadinho tem um cheiro de dar água na boca; a carne parece ter sido cuidado-

Malagueta

Localizado no Mercado do Peixe, o Malagueta se destaca pelo bom atendimento e pela simplicidade. O arrumadinho tem um tempero caseiro gostosinho e a quantidade é muito boa (serve de três a quatro pessoas). Além disso, a carne é bem ma-cia e sem nervos; a salada é de boa qualidade; o feijão é bem temperado e cozido; e a farofa é meio sem graça, mas cumpre o seu papel. Acompanhado de uma cerveja bem geladinha, é uma ótima pedida.

Local: Largo da Mariquita, Mercado do Peixe, Rio VermelhoValor: R$20,00Nota: 8,5

Bombordo Bar & Restaurante

Apesar da vista privilegiada da orla da Ribeira, dos garçons simpáticos fantasiados de marinheiros e da lim-peza do local, o restaurante Bombordo deixa muito a de-sejar. O arrumadinho (que de arrumado não tem nada) é um mix de carne de sol passada do ponto; salada verde mal cortada (não tinha nenhum tomate vermelho e os pe-daços da cebola eram enormes!) e feijão misturado com uma farofa molhada. Mesmo apresentando um tempero caseiro especial, o arrumadinho do Bombordo não con-vence.

Local: Av. Beira Mar, Ribeira.Valor: R$22,90Nota: 5

samente escolhida, muito macia, sem gordura e cortada em cubos; a farofa é bem soltinha; e a salada é bem va-riada, colorida e fresquinha. Tudo isso combinado com um tempero muito especial. Ficou com água na boca? Mas não para por aí: o docinho de goiaba fica por conta da casa.

Local: Rua Prediliano Pita, nº87, Garcia (fim de linha)Valor: R$22,50Nota: 9,5

O autêntico arrumadinho do Aconchego da Zuzu

FRAUDE 2011 33E MAIS...

FOTOSDE OUTROS

ARRUMADINHOSDIÁRIO

GASTRONÔMICO

TEXTO

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FRAUDE 2011

A arte chegou láOs novos contornos da depilaçãotexto Karina Ribeiro e Marília Moreirailustrações Maribê

Hoje, parece clara a ideia de que a arte é feita para ser publicada, expos-ta. Não é à toa que quadros, esculturas, espetáculos estão à mostra em galerias, museus e teatros para serem aprecia-dos por todos que desejem. E quando tudo quanto é obra passa a poder ser copiada – e nem os direitos autorais e copyrights conseguem barrar essa proliferação –, isso fica ainda mais fá-cil e explícito, afinal, aumentaram as ocasiões e lugares em que elas podem aparecer. No entanto, um movimento interessante vem sendo notado, sobre-tudo, em terras brasileiras. A chama-da depilação artística tem permitido o movimento contrário, uma vez que a pintura e o desenho chegaram às partes íntimas.

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A arte chegou lá Dessa forma, a arte, que adquiriu claramente um caráter público, volta a ser caracterizada pela privacidade da região mais escondida e, ao mesmo tempo, mais procurada do corpo hu-mano. O chamado decote tem adqui-rido os mais diversos formatos através da técnica de depilação feita com cera e tinta.

A remoção dos pelos do corpo é algo que existe há cerca de quatro mil anos. Desde o Egito Antigo, a cera, compos-ta de gordura de animais e breu era uti-lizada para tal fim. Obviamente, Cle-ópatra se preocupava com o material que passava sobre o corpo, no entanto, o mais importante era ficar prontinha para César, Marco Antônio e o restan-te da sua vastidão de amantes. Já na Grécia, o produto era obtido através de um xarope espesso de açúcar e limão que não ia ao fogo. Além de tirar os pelos, esse xarope servia como esfo-liante natural.

Da Mata Atlântica ao Pampa

No Brasil, a depilação também não é algo novo. A carta escrita por Pero Vaz de Caminha ao rei de Portugal em 1500 revela que as índias desta terra já removiam pelos: "[...] Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem novinhas e gentis, com cabelo mui pretos e compridos pelas costas e suas vergonhas tão altas e tão saradinhas e tão limpas das cabeleiras que de as nós muito bem olharmos não tínhamos nenhuma vergonha." Segundo Mônica Mayor, especialista em depilação, ain-da que as índias tenham, por natureza, poucos pelos, elas costumavam retirá--los com escama de peixe-lixa. Foi com a chegada maciça dos europeus em território brasileiro que este costu-me acabou sendo esquecido.

Somente a partir do século XIX, as brasileiras voltaram a se preocupar com a depilação, principalmente das pernas e axilas. Buço e barriga ganha-ram atenção apenas a partir da década de 1950, quando as mulheres passaram a utilizar lâminas com mais frequên-cia. Além disso, “aquele lugar” não chegava a receber maiores cuidados, pois costumava ser pouco aparado e a lateral anal era completamente es-quecida. A partir da década de 1980,

as técnicas e produtos de depilação se desenvolveram rapidamente devi-do à industrialização da maioria dos processos. Hoje é possível se depilar utilizando cera industrial, creme, laser, linha e de muitas outras formas.

O ressurgimento da depilação femi-nina esteve intimamente ligado à moda das minissaias, com a popularização dos biquínis no Brasil e com a publi-cação do impresso Revista do Homem – atual Playboy – que acabava por in-dicar tendências e reformular a cultura de ambos os sexos. Não foi à toa que a atriz Cláudia Ohana acabou causan-do polêmica em 1985 por posar para a Playboy mostrando a Mata Atlânti-ca de uma mulher brasileira. Mesmo tendo passado 23 anos da publicação desse ensaio, a polêmica perdura até hoje. Se por um lado a atriz diz aos quatro ventos que não se lembra de ter ouvido ninguém reclamar na época da quantidade de pelos que ela possuía, em 2008, na publicação do seu segun-do ensaio nu para a mesma revista, ela resolveu não arriscar.

A chamada depilação “cavada” da região da virilha surgiu no Brasil na década de 1990. A diferença do novo modelo consistia na diminuição do comprimento dos pelos e na sua ex-tensão sobre a área genital, retirando inclusive aqueles localizados na lateral do ânus.

A adesão do público feminino foi permitida a partir do surgimento das mais variadas técnicas e produtos e, também, pelo boom das casas espe-cializadas que começaram no Rio de Janeiro e apenas se fortaleceram na capital baiana há cerca de quatro anos. Mesmo sendo poucos aqueles que co-nhecem e ainda menor o número dos que aderem à técnica, o seu público é majoritariamente constituído por mu-lheres jovens, que têm entre 20 e 25 anos. Hoje é possível remover os pelos

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com menos dor, com maior segurança em relação à qualidade dos produtos e da assepsia das clínicas estéticas e com maior facilidade diante da cres-cente oferta de serviços. Caroline Do-val, artista plástica formada pela Uni-versidade Federal da Bahia (Ufba) e especialista em depilação e micropig-mentação, considera que o aumento do número de casas especializadas revela uma mudança que ultrapassa questões puramente mercadológicas. “Eu en-xergo realmente como uma mudança de pensamento”, comenta. Hoje o há-bito é, principalmente, um investimen-to na beleza.

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Como tudo que envolve fantasias se-xuais, quem faz ou gosta da depilação artística ainda se sente intimidado em dizê-lo. “As mulheres ainda têm muito medo do julgamento das pessoas, até das próprias amigas”, afirma a perso-nal sexy trainer Fátima Moura, colu-nista do portal Vila Mulher e autora do livro “Sexo, amor e sedução”.

A técnica da depilação artística, que existe há mais de cinco anos, permite a realização de desenhos na púbis a partir da remoção de alguns fios. Podem ser feitos os mais variados formatos – co-rações, coelhinhos, estrelas, luas, setas – que podem ser tingidos de diversas cores (inclusive, com as mais discre-tas, como o pink e o amarelo). Além de os pelos servirem como matéria-prima para o desenho, também é comum que os profissionais os retirem totalmente da virilha da cliente para pintar o local com tintas anti-alérgicas. “As pessoas pedem bastante coração, coelhinho da Playboy, mas letra de nome é o que mais encanta as mulheres. Elas fazem questão de colocar a inicial do nome deles”, revela Caroline Doval sobre as preferências de suas clientes. A prova de amor dura cerca de 15 dias, já que o crescimento dos pelos, felizmente, permite a renovação das iniciais. Já as pinturas, quando não são feitas de hen-na, duram até três dias. “A duração vai depender da intensidade do amor do casal”, brinca Doval. Ou seja, quan-to mais inspirador o desenho, menos tempo ele terá de vida.

O público masculino, apesar de es-

‘‘E suas vergonhas tão altas e tão saradinhas e tão limpinhas das cabeleiras que de as nós muito bem olharmos não tínhamos

nenhuma vergonha ’’Pero Vaz de Caminha

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lando, até chegar lá. Foi a coisa mais inusitada que já fiz”, conta Caroline Doval rindo. Ela afirma que já recebeu proposta muito mais ousada que essa: “Uma mulher queria fazer uma flor no ânus, com a técnica da micropigmen-tação. Isso para que quando ela fizesse sexo anal, o parceiro visse a flor de-sabrochando. Não aceitei fazer isso: eu gosto de decote artístico, mas ânus artístico não é a minha praia”.

Entretanto, nem sempre é preciso arriscar tanto para inovar: tintas co-loridas, glitter, tingimento dos pelos, olhinhos, lacinhos, tatuagens de henna, adesivos, letra do nome, coração, inter-rogação, boca, pegadas, pimentinhas são algumas das possibilidades. Criati-vidade para isso é o que não falta.

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Eu gosto de decote artístico, mas ânus artístico não é a

minha praia Caroline Doval

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tar aderindo cada vez mais à depilação comum, ainda tem uma forte resistên-cia a estampar esta forma de arte no seu corpo. As mulheres são machistas e, por isso, a resistência. “Eu só fiz o desenho em dois homens: em um foi um coração e outro foi a letra inicial do nome do namorado”, comenta Doval. Ainda assim, muitos deles incentivam suas parceiras a fazerem. Para ela, os mais moderninhos que costumam fre-quentar sexshops à procura de inova-ções, que buscam coisas diferentes e fetiches, geralmente gostam que suas parceiras façam os desenhos. “Tudo que for novidade ajuda a dar uma api-mentada e trazer maior intimidade ao casal”, comenta Fátima Moura.

Há ainda os homens que não gostam

deste tipo de depilação e, sabe-se lá por quais motivos, acham engraçado. Doval conta o caso de uma de suas clientes que retornou dizendo que o marido perdeu a concentração na hora H. “Quando ele viu o desenho, na mes-ma hora arriou e se acabou na risada. Os dois ficaram rindo e não consegui-ram fazer mais nada, não tinha mais clima”, recorda.

Nem tudo são flores

A diversidade de desenhos é infini-ta, e segue de acordo com a imagina-ção de cada um. “Já me pediram uma língua. Na verdade, o desenho de uma boquinha partindo do quadril com a língua descendo, circulando, circu-

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ENTREVISTAS SOBRE “DEPILAÇÃO ARTÍSTICA”

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Lá pelo início de setembro de 2010, tendo como cenário, provavelmente, mais uma mesa de bar em Belo Horizonte, Eduardo Damasceno e Luís Felipe Garrocho resolveram criar um blog por conta da (não tão) simples constatação de que “falar que faz quadrinho e fazer esporadicamente não transforma ninguém em quadrinista”, como colocou o próprio Eduardo. Mas quadrinhos sobre o quê? A ideia antiga de criar várias histórias a partir de um mesmo texto, a vontade de exercitar e de entreter, e a inexistência de (pré)conceitos quando o assunto é música – não necessariamente nessa ordem – deram origem, então, ao Quadrinhos Rasos. A dinâmica é simples: um escolhe a música para o outro ilustrar; pode-se usar qualquer trecho e começar de qualquer frase, contanto que não altere a ordem de nenhuma palavra ou frase da letra. No entanto, a regra que torna o trabalho dos dois mineiros diferenciado de fato é: o quadrinho não pode retratar o que a música diz. Experimen-tações visuais e escolhas narrativas inusitadas fazem com que cada exercício de re-interpretação surpreenda pelo conteúdo e impressione pela qualidade. O “rasos” fica mesmo só para o nome.

Culpado pelos quadri-nhos de números ímpa-res, Eduardo Damasce-no tem 28 anos e nasceu em Formiga, interior de Minas. Apaixonado pela música sertaneja, rejeita a velha história da cara feia acompanhada de “Ah, mas sertanejo de raiz é bom mesmo.” Ele gosta do sertanejo ro-mântico também. Entrou na faculdade de Artes Plásticas, mas percebeu que não queria estar em um pedestal, nem olhar para alguém em um; queria mes-mo era fazer entretenimento. Saiu correndo de lá, já que não tinha o Lipão para rir junto com ele das coisas em que ninguém mais via graça. Prefere criar no papel, ex-perimentar materiais, mas finaliza sempre digitalmente, e sempre com softwares livres. Entre romances noir, fa-roestes e piratas, diz que qualquer ambiente em que falte senso de humor ou no qual as pessoas se levem muito a sério lhe deixa desconfortável. Segundo o Lipão, Duda é o Haroldo*.

*personagem de Bill Waterson

Culpado pelos quadri-nhos de números pares, Luis Felipe Garrocho tem – segundo seus cál-culos – 25 anos, nasceu em BH mesmo e está feliz com isso. Autor das tirinhas “Bufas Dana-das”, sempre que tenta colorir o que desenha, acha que não vai ficar bom. E também por isso, se sente mais confortável com a linha pura, o gra-fite e a caneta; o que se reflete na forte presença

de P&B em suas produções. Não parece gostar muito de sertanejo, a não ser do sertanejo que existe no Duda. Bill Waterson é sua maior referência e “Calvin e Ha-roldo” a melhor coisa que já leu em quadrinhos. Tem uma memória comumente chamada de assustadora e isso facilita tanto na hora de escolher a música para o Duda, quanto para trabalhar na própria música. E, claro, na hora de assustar as pessoas também. Segundo o Duda, Lipão é o Melhor Homem*, sempre com uma tira de bacon para salvar o dia.

*personagem das tiras “Bufas Danadas”

OXE, UAI!Os mineiros do “Quadrinhos Rasos” fraudando músicas com sotaque baiano

texto Tais Bichara

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