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R EVISTA E SPÍRITA Jornal de Estudos Psicológicos

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REVISTA ESPÍRITAJornal de Estudos Psicológicos

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REVISTA ESPÍRITAJornal de Estudos Psicológicos

Contém:

O relato das manifestações materiais ou inteligentes dos Espíritos,aparições, evocações, etc., bem como todas as notícias relativas aoEspiritismo. – O ensino dos Espíritos sobre as coisas do mundo visível e doinvisível; sobre as ciências, a moral, a imortalidade da alma, a naturezado homem e o seu futuro. – A história do Espiritismo na Antigüidade; suasrelações com o magnetismo e com o sonambulismo; a explicação das lendas e

das crenças populares, da mitologia de todos os povos, etc.

Publicada sob a direçãode

ALLAN KARDEC

Todo efeito tem uma causa. Todo efeito inteligente tem uma causa inteligente. O poder da causa inteligente está na razão da grandeza do efeito.

ANO QUARTO – 1861

TRADUÇÃO DE EVANDRO NOLETO BEZERRA

FEDERAÇÃO ESPÍRITA BRASILEIRA

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SumárioQUARTO VOLUME – ANO DE 1861

JANEIROBoletim da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas:15

O Livro dos Médiuns 22A “Bibliografia Católica” Contra o Espiritismo 24

Carta Sobre a Incredulidade – 1a parte 35O Espírito Batedor do Aube 46

Ensinos Espontâneos dos Espíritos:

Os três tipos 55Cazotte 56

A voz do Anjo-da-Guarda 58Garridice 59

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FEVEREIROBoletim da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas: 61

O Sr. Squire 66Escassez de Médiuns 74

Carta Sobre a Incredulidade 79Conversas Familiares de Além-Túmulo:

O Suicídio de um Ateu 89Questões e Problemas Diversos 96

Ensino dos Espíritos:

Ano de 1860 98Ano de 1861 99

Comentário sobre o ditado publicado sob o título de “O despertar do Espírito” 100Os três tipos – continuação 102

A harmonia 105

MARÇOO Homenzinho Ainda Vive – A Propósito do Artigo

do Sr. Deschanel, Publicado no Journal des Débats 107A Cabeça de Garibaldi 121

Assassinato do Sr. Poinsot 125Conversas Familiares de Além-Túmulo:

Sra. Bertrand 128Srta. Pauline M... 134

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Henri Murger 137O Espírito e as rosas 140

Ensinos e Dissertações Espíritas:

A lei de Moisés e a lei do Cristo 142Lições familiares de moral 145

Os missionários 148A França 149

A ingratidão 151

ABRILMais uma Palavra Sobre o Sr. Deschanel 153

O Sr. Louis Jourdan e O Livro dos Espíritos 156Apreciação da História do Maravilhoso, do Sr. Louis

Figuier, pelo Sr. Escande, Redator da Mode Nouvelle 168O Mar, pelo Sr. Michelet 180

Conversas Familiares de Além-Túmulo:

Alfred Leroy, suicida 182Jules Michel 187

Correspondência 189Ensinos e Dissertações Espíritas:

Vai nascer a verdade 192Progresso de um Espírito perverso 193

Sobre a inveja nos médiuns 195

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MAIOSociedade Parisiense de Estudos Espíritas – Discurso do Sr.

Allan Kardec por Ocasião da Renovação do Ano Social 199O Anjo da Cólera 209

Fenômenos de Transporte 213Conversas Familiares de Além-Túmulo – O Dr. Glas 224

Questões e Problemas Diversos 230Ensinamentos e Dissertações Espíritas:

Sra. de Girardin 238A pintura e a música 240

Festa dos Espíritos bons 240Vinde a nós 241

Progresso intelectual e moral 242A inundação 243

JUNHOChanning – Discurso Sobre a Vida Futura 245

Correspondência – Carta do Sr. Roustaing, de Bordeaux 253A Prece 260

Conversas Familiares de Além-Túmulo:

O Marquês de Saint-Paul 262Henri Mondeux 265

Sra. Anaïs Gourdon 270

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Efeitos do Desespero 273Dissertações e Ensinos Espíritas:

Muitos os chamados, poucos os escolhidos 278Ocupação dos Espíritos 280

O deboche 282Sobre o perispírito 284

O Anjo Gabriel 284Despertai 285

O gênio e a miséria 286Transformação 287

A separação do Espírito 288

JULHOEnsaio Sobre a Teoria da Alucinação 289

Uma Aparição Providencial 296Conversas Familiares de Além-Túmulo – Os amigos

não nos esquecem no outro mundo 300Correspondência 304

Desenhos Misteriosos 309Exploração do Espiritismo 313

Variedades:

As visões do Sr. O. 316Os Espíritos e a gramática 319

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Dissertações e Ensinos Espíritas:

O papel dos médiuns nas comunicações 322Hospital Público 326

A prece 330

AGOSTOAviso 333

Fenômenos Psicofisiológicos das Pessoas que Falam de si Mesmas na Terceira Pessoa 333

Manifestações Americanas 339Conversas Familiares de Além-Túmulo:

Dom Peyra, prior de Amilly 342Correspondência – Carta do Sr. Mateus Sobre os

Médiuns Trapaceiros352Dissertações e Ensinos Espíritas:

Da influência moral dos médiuns nas comunicações 355Dos transportes e outros fenômenos tangíveis 358

Os animais médiuns 363Povos, silêncio! 368

Jean-Jacques Rousseau 370A controvérsia 371O pauperismo 373

A concórdia 374A aurora dos novos dias 375

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SETEMBROO Estilo é o Homem – Polêmica Entre Vários Espíritos 377

Conversas Familiares de Além-Túmulo – A pena de talião 394Correspondência:

Carta do Sr. Mathieu sobre a mediunidade das aves 398Carta do Sr. Jobard sobre os espíritas de Metz 402

Dissertações e Ensinos Espíritas:

Um Espírito israelita a seus correligionários 408Variedades – Notícia falsa 419

OUTUBROO Espiritismo em Lyon 421

Banquete Oferecido ao Sr. Allan Kardec 427Discurso do Sr. Allan Kardec 430

Epístola de Erasto aos Espíritas Lioneses 439Conversas Familiares de Além-Túmulo – Eugène Scribe 447

Ensinamentos e Dissertações Espíritas:

Os cretinos 451Se fosse um homem de bem, teria morrido 454

Os pobres e os ricos 455Diferentes maneiras de fazer a caridade 456

Roma 457O Coliseu 458

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A Terra Prometida 460Egoísmo e orgulho 462

Sociedade Espírita de Metz 463

NOVEMBRO

Resquícios da Idade Média – O Auto-de-fé de Barcelona 465Opinião de um Jornalista sobre O Livro dos Espíritos 470

O Espiritismo em Bordeaux 473Reunião Geral dos Espíritas Bordeleses:

Discurso do Sr. Sabò 477Considerações sobre o Espiritismo 480

Discurso do Sr. Allan Kardec 490Primeira epístola de Erasto aos espíritas de Bordeaux 501

Banquete Oferecido a Allan Kardec pelos

Espíritas Bordeleses:

Discurso e brinde do Sr. Lacoste 506Brinde do Sr. Sabò 508

Discurso do Sr. Desqueyroux 509Discurso e brinde do Sr. Allan Kardec 511

Poesias do Momento, Ditadas pelo Sr. Dombre:

Os camponeses e o carvalho 514O ouriço, o coelho e a pega 516

Bibliografia:

O Livro dos Médiuns, 2a edição 517

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O Espiritismo ou Espiritualismo em Metz 518O Fluido Universal 519

Efeitos da Prece 520O Espiritismo na América 521

DEZEMBROAviso 527

Novas Obras do Sr. Allan Kardec a Serem Publicadas Brevemente 528

Organização do Espiritismo 528Necrologia – Morte do Sr. Jobard, de Bruxelas 547

Auto-de-fé de Barcelona 550A Toutinegra, o Pombo e o Peixinho – Fábula 554

O Sobrenatural 556Meditações Filosóficas e Religiosas 562

Nota Explicativa 567

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Revista EspíritaJornal de Estudos Psicológicos

ANO IV JANEIRO DE 1861 No 1

Boletim

DA SOCIEDADE PARISIENSE DE ESTUDOS ESPÍRITAS

(Resumo das Atas)

Sexta-feira, 16 de novembro de 1860 – Sessão particular

Admissão de dois novos membros.

Comunicações diversas:

1o Leitura de várias dissertações recebidas fora dassessões.

2o Carta do Sr. de Porry, de Marselha, presenteando aSociedade com a segunda edição de seu poema intitulado Urânia.A Sociedade agradece ao autor por lhe haver permitido apreciar oseu talento e sente-se feliz por vê-lo aplicar-se às idéias espíritas.Revestindo a forma graciosa da poesia, essas idéias têm um charmeque as tornam mais facilmente aceitáveis por aqueles a quempoderia melindrar a severidade da forma dogmática.

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3o Carta do Sr. L..., fornecendo novos detalhes sobre oEspírito batedor e obsessor, do qual a Sociedade já se ocupou. (Vero relato mais adiante).

4o Carta das senhoras G..., do Departamento do Indre,sobre as brincadeiras de mau gosto e as depredações de que sãovítimas há vários anos, e que atribuem a um Espírito malévolo.Trata-se de seis irmãs; malgrado todas as precauções que tomam,suas roupas são tiradas das gavetas dos móveis, mesmo fechadas achave, e muitas vezes são cortadas em pedaços.

5o O Sr. Th... relata um caso de obsessão violenta,exercida sobre o médium por um Espírito mau, ao qual aqueleconseguiu dominar e expulsar. Dirigindo-se ao Sr. Th..., esseEspírito escreveu: Odeio-te, pois que me dominas. Desde então, nãomais apareceu e o médium deixou de ser importunado no exercíciode sua faculdade.

6o O Sr. Allan Kardec cita um caso pessoal de indicaçãodada pelos Espíritos, notável por sua precisão. Numa conversa queele teve na véspera com o seu Espírito familiar, disse-lhe este:“Encontrarás no Siècle de hoje um longo artigo sobre este assuntoe que responde à tua pergunta; fomos nós que inspiramos o autore o trabalho que ele expõe, o qual está relacionado com as grandesreformas humanitárias que se preparam. Esse artigo, de que nem oSr. Kardec nem o médium tinham conhecimento, realmente seencontra no jornal indicado, sob o título designado, provando queos Espíritos podem estar a par das publicações do mundo material.

TRABALHO DA SESSÃO. Ensino espontâneo. Comu-nicação assinada por Cazotte, recebida pelo Sr. A. Didier. – Outra,contendo as lamúrias de um Espírito sofredor e egoísta, recebidapela Sra. Costel.

Evocações. Segunda conversa com o Espíritogastrônomo, que tomou o nome de Baltazar, e que alguém julgou

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reconhecer como sendo o do Sr. G... de la R..., o que foiconfirmado pelo Espírito.

Perguntas diversas. Perguntas dirigidas a São Luís sobreo Espírito batedor, ao qual se refere a carta do Sr. L..., assim comosobre o Espírito depredador das senhoras G... A propósito desteúltimo, ele diz que será mais fácil vencer a sua resistência,considerando-se que é mais brincalhão do que mau.

Sexta-feira, 23 de novembro de 1860 – Sessão geral

Comunicações diversas. Leitura de várias dissertaçõesobtidas fora da sessão: Entrada de um culpado no mundo dosEspíritos, assinada por Novel e recebida pela Sra. Costel. – Ocastigo do egoísta, pela mesma senhora. Esta comunicação dáseqüência a outra do mesmo Espírito, obtida na sessão anterior. –Outra sobre o livre-arbítrio, assinada por Marcillac. – Reflexões doEspírito de Verdade sobre as comunicações relativas ao castigo doegoísta, recebidas pelo Sr. C...

TRABALHOS DA SESSÃO. Ensino Espontâneo. 1o Oduende familiar, assinado por Charles Nodier e recebido pela Sra.Costel. – 2o Parábola de Lázaro, assinada por Lamennais e recebidapelo Sr. A. Didier. – 3o O Espírito Alfred de Musset apresenta-sepela Srta. Eugénie; coloca-se à disposição para tratar de um assuntoà escolha da assembléia; deixada a escolha ao seu critério, faznotável dissertação sobre as consolações do Espiritismo. Quanto àoferta feita para responder a perguntas, trata dos seguintes temas:Qual a influência da poesia sobre o Espiritismo? – Haverá uma arteespírita, como houve uma arte pagã e uma arte cristã? – Qual ainfluência da mulher no século XIX?

Evocações. Evocação de Cazotte, que se manifestaraespontaneamente na última sessão. Foram-lhe feitas váriasperguntas sobre o dom de previsão que em vida parecia possuir.

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Questões e problemas diversos. – Sobre a ubiqüidade dosEspíritos nas manifestações visuais. – Sobre os Espíritos das trevas,a propósito das manifestações do Sr. Squire, que só se produzemna obscuridade.

Nota – Trataremos dessa questão em artigo especial,falando do Sr. Squire.

O Sr. Jobard lê três encantadoras poesias de sua lavra:A felicidade dos mártires, A ave do paraíso e A anexação, esta últimauma fábula.

Sexta-feira, 30 de novembro de 1860 – Sessão particular

Assuntos administrativos. Carta coletiva assinada porvários membros, a respeito da proposta do Sr. L... As conclusõesadmitidas pela comissão foram aceitas pela Sociedade.

Carta do Sr. Sol..., rogando à Sociedade aceitar a suademissão de membro da comissão, por motivo das viagens que oafastam de Paris durante a maior parte do ano. – A Sociedadeexprime seu pesar pela decisão do Sr. Sol... e espera podermantê-lo no número de seus sócios. O Sr. presidente ficaencarregado de responder nesse sentido. Será providenciada a suasubstituição na comissão.

Comunicações diversas:

1o Ditado espontâneo, contendo novas explicaçõessobre a ubiqüidade, assinado por São Luís. Discussão a respeitodessa comunicação.

2o Outra assinada por Charles Nodier, recebida por ummédium estranho à Sociedade e transmitida pelo Sr. Didier, pai, apropósito do artigo do Journal des Débats contra o Espiritismo.

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3o O Sr. D..., do Departamento de Vienne, rogainsistentemente seja evocado o Sr. Jean-Baptiste D..., seu sogro. ASociedade jamais se presta a esses tipos de solicitações, quandoencerram apenas um interesse privado, sobretudo na ausência daspessoas interessadas e quando estas não são conhecidasdiretamente. Entretanto, tendo em vista o caráter honrado e aposição oficial do correspondente, as circunstâncias particularesapresentadas pelo defunto e o ateísmo que este último professoudurante toda a vida, pensa a Sociedade que tal evocação podeoferecer um proveitoso assunto de estudos. Em conseqüência, opõe na ordem do dia.

4o Vários membros relatam um interessante fenômenode manifestação física de que foram testemunhas. Consiste nolevantamento de uma pessoa pela influência mediúnica de duasjovens de 15 e 16 anos que, colocando dois dedos nas travessas dacadeira, a elevam um metro, aproximadamente, seja qual for o seupeso, do mesmo modo que o fariam com o mais leve dos corpos.Esse fenômeno foi repetido várias vezes, sempre com a mesmafacilidade. (Dar-lhe-emos a explicação em artigo especial).

5o O Sr. Jobard lê um artigo de sua autoria, intitulado Aconversão de um campônio.

TRABALHOS DA SESSÃO. Ensino espontâneo.Dissertação sobre a ubiqüidade, assinado por Channing e recebidopela Srta. Huet. – Outra sobre o artigo do Journal des Débats,assinada por André Chénier e recebida pelo Sr. A. Didier. – Outraassinada por Rachel e recebida pela Sra. Costel.

Um fato digno de nota, lembrado a propósito das duasprimeiras comunicações, é que, quando um assunto de certaimportância se encontra na ordem do dia, é muito comum vê-lotratado por vários Espíritos, através de médiuns e lugaresdiferentes. Parece que, interessando-se pela questão, cada um desejacontribuir para o ensino que resultará de tais comunicações.

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Evocações:

1o Jean-Baptiste D..., referida acima, e de seu irmão,ambos materialistas e ateus. A situação do primeiro, que sesuicidou, é deveras lamentável.

2o Evocação do Sr. C. de B..., de Bruxelas, a pedido doSr. Jobard, que o conhecera pessoalmente.

Sexta-feira, 7 de dezembro de 1860 – Sessão particular

Admissão do Sr. C..., professor em Paris, como sóciolivre.

Comunicações diversas. Leitura de uma dissertaçãoassinada pelo Espírito de Verdade, recebida em sessão particular,em casa do Sr. Allan Kardec, a propósito da definição de arte, bemcomo da distinção entre a arte pagã, a arte cristã e a arte espírita.

O Sr. Theub... completa essa definição dizendo que sepode considerar a arte pagã como sendo a expressão do sentimentomaterial; a arte cristã, expressão da expiação e a arte espírita,expressão do triunfo.

TRABALHOS DA SESSÃO. Ensino espírita espontâneo.Dissertação assinada por Lamennais, recebida pelo Sr. A. Didier. –Outra assinada por Charles Nodier, recebida pela Srta. Huet.Continua o assunto iniciado a 24 de agosto de 1860, emboraninguém lhe tivesse guardado a lembrança e o pudesse recordar. –Outra, assinada por Georges e recebida pela Sra. Costel.

Evocação do Dr. Kane, viajante americano e exploradordo pólo norte, o qual descobriu um mar livre além do círculo dosgelos polares. Apreciação muito justa da parte do Espírito sobre osresultados dessa descoberta.

Questões diversas. Perguntas dirigidas a Charles Nodiersobre as causas que podem influir na natureza das comunicações

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em certas sessões, notadamente nesse dia, em que os Espíritos nãotiveram a sua eloqüência habitual. Discussão a respeito desseponto.

Sexta-feira, 14 de dezembro de 1860 – Sessão geral

O Sr. Indermuhle, de Berna, presenteia a Sociedadecom uma brochura alemã publicada em Glaris, em 1855, intitulada:A eternidade já não é segredo ou As mais evidentes revelações sobre omundo dos Espíritos.

Comunicações diversas:

1o Leitura de uma evocação muito interessante e devárias dissertações espíritas obtidas fora das sessões.

2o Fato de manifestação visual relatado pelo Sr.Indermuhle na carta que dirigiu à Sociedade.

3o Fato pessoal ocorrido com o Sr. Allan Kardec, e quepode ser considerado como uma prova de identidade do Espíritode antigo personagem. A Srta. J... recebeu várias comunicações deJoão Evangelista, sempre com uma escrita muito característica ecompletamente diferente da sua caligrafia habitual. Tendo o Sr.Allan Kardec, a pedido seu, evocado aquele Espírito porintermédio da Sra. Costel, constatou-se que a escrita tinhaexatamente o mesmo caráter da da Srta. J..., embora a nova médiumdesconhecesse o fato; além disso, o movimento da mão tinha umadelicadeza fora do comum, o que constituía, ainda, uma similitude;enfim, as respostas concordavam em todos os pontos com as quetinham sido dadas através da Srta. J..., e nada havia na linguagemque não estivesse à altura do Espírito evocado.

4o Notícia remetida pelo Sr. D... sobre um caso notávelde visão e de revelação, ocorrido com um agricultor poucos diasantes de sua morte.

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TRABALHOS DA SESSÃO – Comunicações espíritasespontâneas. Os três tipos: Hamlet, Tartufe e Don Juan, assinada porGerard de Nerval e recebida pelo Sr. A. Didier. – Fantasia, assinadapor Alfred de Musset e recebida pela Sra. Costel. – O julgamento,assinada por Leão X e recebida pela Srta. Eugénie.

Evocação do agricultor, do qual falamos pouco acima.Ele dá algumas explicações sobre suas visões. Notávelparticularidade é a ausência absoluta de ortografia e uma linguagemcompletamente semelhante à da gente do campo.

Questões diversas dirigidas a São Luís sobre os fatosrelacionados com a evocação tratada acima.

O Livro dos Médiuns

Anunciada há muito tempo, mas com a publicaçãoretardada em virtude de sua própria importância, esta obraaparecerá entre os dias 5 e 10 de janeiro, na livraria do Sr. Didier,nosso editor, localizada no Quai des Augustins, 351. Representa ocomplemento de O Livro dos Espíritos e encerra a parteexperimental do Espiritismo, assim como este último contém aparte filosófica.

Fruto de longa experiência e de laboriosos estudos,nesse trabalho procuramos esclarecer todas as questões que seligam à prática das manifestações. De acordo com os Espíritos,contém a explicação teórica dos diversos fenômenos, bem comodas condições em que os mesmos se podem reproduzir. Nãoobstante, sobretudo a matéria relativa ao desenvolvimento e aoexercício da mediunidade mereceu de nossa parte uma atençãotoda especial.

1 Ela é igualmente encontrada nos escritórios da Revista Espírita, RuaSainte-Anne, 59, passagem Sainte-Anne. Um grande volume in-18, de500 páginas; Paris, 3 fr. 50; pelo Correio, 4 fr.

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O Espiritismo experimental é cercado de muito maisdificuldades do que geralmente se pensa, e os escolhos aíencontrados são numerosos. É isso que ocasiona tantas decepçõesaos que dele se ocupam, sem a experiência e os conhecimentosnecessários. Nosso objetivo foi o de prevenir contra esses escolhos,que nem sempre deixam de apresentar inconvenientes para quemse aventure sem prudência por esse terreno novo. Não podíamosnegligenciar um ponto tão capital, e o tratamos com o cuidado quea sua importância reclama.

Os inconvenientes quase sempre se originam daleviandade com que é tratado problema tão sério. Sejam quaisforem, os Espíritos são as almas dos que viveram, no meio dasquais estaremos infalivelmente, de um momento para outro. Todasas manifestações espíritas, inteligentes ou não, têm, pois, porobjeto, pôr-nos em contato com essas mesmas almas; serespeitamos os seus restos mortais, com mais forte razão devemosrespeitar o ser inteligente que sobrevive e que constitui a suaverdadeira individualidade. Fazer das manifestações umabrincadeira é faltar com o respeito que talvez amanhãreclamaremos para nós mesmos, e que jamais é violadoimpunemente.

O primeiro momento de curiosidade causado por essesestranhos fenômenos já passou. Hoje, que se lhes conhece a fonte,guardemo-nos de profaná-la com brincadeiras descabidas e nosesforcemos por nela haurir o ensinamento apropriado que nosassegurará a felicidade futura. O campo é muito vasto e o objetivopor demais importante para cativar toda a nossa atenção. Até hoje,todos os nossos esforços tenderam para fazer o Espiritismo entrarneste caminho sério. Se esta nova obra, tornando-o ainda mais bemconhecido, puder contribuir para impedir que o desviem de suadestinação providencial, estaremos amplamente recompensados denossos cuidados e de nossas vigílias.

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Não negamos que esse trabalho suscitará mais de umacrítica da parte daqueles a quem incomoda a severidade dosprincípios, bem como dos que, vendo as coisas de um outro pontode vista, já nos acusam de querer fazer escola no Espiritismo. Sefazer escola é procurar nesta ciência um fim útil e proveitoso paraa Humanidade, teríamos o direito de nos sentir envaidecidos comessa acusação. Mas uma tal escola não necessita de outro chefeque não seja o bom-senso das massas e a sabedoria dos Espíritosbons, que a teriam criado sem a nossa participação. Eis por quedeclinamos da honra de a ter fundado, felizes de nos colocarmossob a sua bandeira, não aspirando senão o modesto título depropagador. Se for necessário um nome, inscreveremos em seufrontispício: Escola de Espiritismo Moral e Filosófico, e para elaconvidaremos todos quantos têm necessidade de esperanças e deconsolações.

Allan Kardec

A “Bibliografia Católica” Contra oEspiritismo

Até este momento o Espiritismo não havia sidoatacado seriamente. Quando certos escritores da imprensaperiódica, em seus momentos de lazer, se dignaram ocupar-se dele,foi apenas para o ridicularizar. Trata-se de encher um rodapé, defornecer um artigo a tanto por linha, não importa sobre queassunto, desde que a contagem dê certo. De que matéria tratar?Tratarei de tal coisa? pergunta a si mesmo o redator encarregado daparte recreativa do jornal. Não; é muito séria. E daquela outra? Éassunto por demais repetido. Inventarei uma autêntica aventura daalta sociedade, ou da gente do povo? Nada me vem à mente nestequarto de hora e a crônica escandalosa da semana ainda está porfazer. Ah! tive uma idéia! Achei o meu assunto! Vi em algum lugar

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o título de um livro que fala de Espíritos; e há em toda parte gentebastante tola para levar isto a sério. Que são os Espíritos? Nada seisobre o assunto, mas pouco me importa! Deve ser divertido. Parafalar a verdade, eu não acredito absolutamente em Espíritos, porquejamais os vi e mesmo que visse também não acreditaria, porque issoé impossível. Assim, nenhum homem de bom-senso pode crerneles. Ou isto é lógico, ou não me conheço. Falemos, pois, dosEspíritos, uma vez que estão na ordem do dia. Tanto esse assunto,como qualquer outro, divertirá nossos caros leitores. O tema émuito simples: “Não há Espíritos; não pode nem deve havê-los.Assim, todos que neles crêem são loucos. Mãos à obra efantasiemos a coisa. Ó meu bom gênio! eu te agradeço por estainspiração! Tu me tiras de um grande embaraço, pois nada há a dizere preciso de meu artigo para amanhã, e dele não fazia a menoridéia”.

Mas eis um homem sério que diz: É um erro brincarcom essas coisas; isto é mais sério do que se pensa; não acrediteisque se trate de moda passageira: essa crença é inerente à fraquezada Humanidade, que em todas as épocas acreditou no maravilhoso,no sobrenatural, no fantástico. Quem imaginaria que em plenoséculo XIX, num século de luzes e de progresso, depois queVoltaire demonstrou tão bem que só o nada nos espera, depois detantos sábios que procuraram a alma e não a encontraram, ainda sepossa acreditar em Espíritos, em mesas girantes, em feiticeiros, emmagos, no poder de Merlin o encantador, na varinha mágica, naSenhorita Lenormand? Ó Humanidade! Humanidade! aonde irás seeu não vier em teu auxílio para tirar-te do lamaçal da superstição?Quiseram matar os Espíritos pelo ridículo, e não o conseguiram;longe disso, o mal contagioso faz incessantes progressos; azombaria parece fazer-lhe recrudescer e, se não for posto um freio,em breve a Humanidade inteira estará infestada. Considerando-seque esse meio, habitualmente tão eficaz, tornou-se impotente, étempo que os sábios interfiram, a fim de acabar com isso de umavez por todas. As zombarias não são argumentos; falemos em

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nome da Ciência; demonstremos que em todas as épocas oshomens foram imbecis por acreditarem que houvesse um podersuperior ao deles; que não tivessem em si mesmos todo o podersobre a Natureza. Provemos-lhes que tudo quanto atribuem àsforças sobrenaturais se explica por simples leis da fisiologia; que asobrevivência da alma e o seu poder de comunicar-se com os vivosé uma quimera, e que é loucura acreditar no futuro. Se, depois deter digerido quatro volumes de boas razões, eles não seconvenceram, não nos restará senão lamentar a sorte daHumanidade que, em vez de progredir, retrograda a largos passospara a barbárie da Idade Média e corre para a sua perda.

Que o Sr. Figuier possa revelar suas verdadeirasintenções, porquanto seu livro, tão pomposamente anunciado, tãoelogiado pelos campeões do materialismo, produziu um resultadodiametralmente oposto ao que esperava.

Mas eis que surge um novo campeão, que pretendeesmagar o Espiritismo por outro meio: trata-se do Sr. GeorgesGandy, redator da Bibliographie Catholique, atirando-se num corpo-a-corpo em nome da religião ameaçada. E vejam só! a religiãoameaçada por aquilo a que chamais de utopia! Tendes, pois, bempouca fé em sua força; acreditais, assim, na sua vulnerabilidade,desde que temeis que as idéias de alguns sonhadores possam abalaros seus fundamentos; assim, considerais esse inimigo deverastemível, para o atacar com tanta raiva e furor. Obtereis resultadomelhor que os outros? Duvidamo-lo, já que a cólera é máconselheira. Se conseguirdes amedrontar algumas almas timoratas,não receais acender a curiosidade num maior número de outras?Julgai-o pelo fato seguinte. Numa cidade que conta com certonúmero de espíritas e com alguns grupos íntimos que se ocupamdas manifestações, um pregador fez certo dia um sermão virulentocontra o que chamava a obra do demônio, pretendendo que só estevinha falar nessas reuniões satânicas, cujos membros estavam todosnotoriamente votados à danação eterna. Que aconteceu? Desde o

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dia seguinte bom número de ouvintes se pôs em busca das reuniõesespíritas, pedindo para ouvir os diabos falarem, curiosos de saber oque lhes diriam; porque tanto se tem falado que a gente sefamiliarizou com um nome que já não incute medo. Ora, nessasreuniões eles viram pessoas sérias, honradas, instruídas, orando aDeus, coisa que não faziam desde a primeira comunhão; pessoasque acreditavam em sua alma, em sua imortalidade, nas penas erecompensas futuras, trabalhando para se tornarem melhores,esforçando-se por praticar a moral do Cristo, não falando mal deninguém, nem mesmo dos que lhes lançavam anátemas. Entãoaquelas criaturas compreenderam que se o diabo ensinava taiscoisas é que se havia convertido. Quando os viram tratar respeitosae piamente com os seus parentes e amigos mortos, que lhesprodigalizava consolação e sábios conselhos, não puderam admitirque tais reuniões fossem sucursais do sabbat, considerando-se quenão viam caldeiras, nem vassouras, nem corujas, nem gatos pretos,nem crocodilos, nem livros de magia, nem trípode, nem varinhasmágicas ou quaisquer outras acessórios de feitiçaria, nem mesmo avelha de queixo e nariz aduncos. Também quiseram conversar, umcom sua mãe, outro com o filho querido, parecendo-lhes difícil, aoreconhecê-los, que essa mãe e esse filho fossem demônios. Felizespor terem a prova de sua existência e a certeza de se reencontraremnum mundo melhor, perguntaram-se com que objetivo haviamquerido amedrontá-los, suscitando-lhes reflexões que jamaistinham imaginado. O resultado é que gostaram mais de ir ali ondeencontravam consolações, do que aos locais em que eramamedrontados.

Como vimos, esse pregador enveredou por caminhoerrado, sendo o caso de se dizer: Mais vale um inimigo que umamigo incompetente. O Sr. Georges Gandy espera ser mais feliz?Nós o citamos textualmente, para edificação dos nossos leitores:

“Em todas as épocas das grandes provas da Igreja e deseus próximos triunfos houve contra ela conspirações infernais, nas

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quais a ação dos demônios era visível e tangível. Jamais a teurgia ea magia tiveram mais voga no seio do paganismo e da filosofia, doque no momento em que o Cristianismo se espalhava no mundo,para o subjugar. No século XVI, Lutero teve colóquios com Satã, eum redobramento de feitiçarias, de comunicações diabólicas se feznotar na Europa, enquanto na Igreja se operava a grande reformacatólica que iria triplicar suas forças, quando um novo mundo lheabria destinos gloriosos sobre um espaço imenso. No séculoXVIII, na véspera do dia em que o machado dos carrascos deveriaretemperar a Igreja no sangue de novos mártires, a demonolatriaflorescia no cemitério de Saint-Médard, ao redor das tinas deMesmer e dos espelhos de Cagliostro. Hoje, na grande luta docatolicismo contra todas as potências do inferno, a conspiração deSatã veio visivelmente em auxílio do filosofismo; o inferno quis dar,em nome do naturalismo, uma consagração à obra de violência e deastúcia que continua promovendo já há quatro séculos e que seapresta para coroar com uma suprema impostura. Aí reside todo osegredo da pretensa doutrina espírita, amontoado de absurdos, decontradições, de hipocrisia e de blasfêmias, como veremos a seguir,e que tenta, como a última das perfídias, glorificar o Cristianismopara o aviltar, espalhá-lo para o suprimir, afetando respeito pelodivino Salvador, a fim de arrancar na Terra tudo que Ele fecundoucom seu sangue e substituir o seu reino imortal pelo despotismodos ímpios devaneios.

“Abordando o exame dessas estranhas pretensões, quejulgamos ainda não suficientemente desvendadas e condenadas,pedimos aos nossos leitores a gentileza de acompanharem nossacaminhada, um tanto longa, nessa encruzilhada diabólica, de ondea seita espera sair vitoriosa depois de haver abolido para sempre onome divino, ante o qual a vemos dobrar os joelhos. A despeito deseus ridículos, de suas profanações revoltantes, de suascontradições sem fim, o Espiritismo constitui para nós preciosoensinamento. Jamais as loucuras do inferno haviam rendido à nossasanta religião mais deslumbrante homenagem. Jamais o havia Deus

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condenado com mais soberano poder, a confirmar-se pelotestemunho destas palavras do divino Mestre: Vos ex patre diaboloestis”.

Este começo permite julgar a amenidade do resto. Osnossos leitores que quiserem edificar-se nessa fonte de caridadeevangélica poderão permitir-se o prazer de ler a BibliographieCatholique, no 3, de setembro de 1860, Rua de Sèvres, no 31. Ainda umavez, por que tanta cólera, tanto fel contra uma doutrina que, comodizem, se é obra de Satã, não poderá prevalecer contra a obra deDeus, a menos que se suponha seja Deus menos poderoso queSatã, o que seria um tanto ímpio? Duvidamos muito que essairrupção de injúrias, essa febre, essa profusão de epítetos de que oCristo jamais se serviu contra os seus maiores inimigos, sobre osquais clamava a misericórdia de Deus e não a sua vingança, aodizer: “Perdoai-lhes, Senhor, pois não sabem o que fazem”;duvidamos – insistimos – que uma tal linguagem seja persuasiva. Averdade é calma e não necessita de exaltação; e, com tal raiva, faríeiscrer na vossa própria fraqueza. Confessamos não compreenderbem esta singular política de Satã, que glorifica o Cristianismo para oaviltar, que o espalha para o suprimir. Em nossa opinião isto revelariamuita falta de habilidade e se assemelharia a um hortelão que, nãoquerendo batatas, as semeasse em profusão em seu horto, a fim delhes destruir a espécie. Quando acusamos os outros de pecar porfalta de raciocínio, devemos, para ser lógicos, começar por nósmesmos.

Não sabemos muito bem por que o Sr. Georges Gandyacusa mortalmente o Espiritismo por se apoiar no Evangelho e noCristianismo. Que diria então se se apoiasse em Maomé?Certamente muito menos, porquanto é fato digno de nota que oIslamismo, o Judaísmo, o próprio Budismo são objeto de ataquesmenos virulentos que as seitas dissidentes do Cristianismo. Comcerta gente, é preciso ser tudo ou nada. Há, sobretudo, um pontoque o Sr. Gandy não perdoa ao Espiritismo: é o de não haver

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proclamado esta máxima absoluta: “Fora da Igreja não hásalvação”, e admitir que aquele que faz o bem possa ser salvo daschamas eternas, seja qual for a sua crença. Evidentemente, uma taldoutrina só poderia sair do inferno. Mas ele se trai principalmentenesta passagem:

“Que quer o Espiritismo? É uma importaçãoamericana, inicialmente protestante, e que já havia triunfado –permitam-nos dizê-lo – sobre todas as plagas da idolatria e daheresia; tais são os seus títulos em relação ao mundo. Seria, pois,das terras clássicas da superstição e das loucuras religiosas que nosviriam a verdade e a sabedoria!”

Eis aqui, por certo, uma grande ofensa. Se ele houvessenascido em Roma seria a voz de Deus; como, porém, nasceu numpaís protestante, é a voz do diabo. Mas o que direis quandotivermos provado, o que faremos um dia, que ele estava na Romacristã muito antes de estar na América protestante? Querespondereis ao fato, hoje constatado, de que há mais espíritascatólicos do que espíritas protestantes?

O número das pessoas que em nada crêem, que de tudoduvidam, do próprio Deus, é considerável e cresce numaproporção assustadora. Será por vossas violências, vossosanátemas, vossas ameaças do inferno, vossas declamaçõesfuribundas que as reconduzireis? Não, porque são as vossaspróprias violências que as afastam. Serão culpados por haveremlevado a sério a caridade, a mansuetude do Cristo e a bondadeinfinita de Deus? Ora, quando elas ouvem os que pretendem falarem seu nome, proferindo ameaças e injúrias, põem-se a duvidar doCristo, de Deus, de tudo, enfim. O Espiritismo as faz compreenderpalavras de paz e de esperança e, como lhes pesa a dúvida e sentemnecessidade de consolações, atiram-se aos braços do Espiritismo,porque preferem aquilo que sorri às coisas que apavoram. Entãocrêem em Deus, na missão do Cristo e na sua divina moral. Numa

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palavra, de incrédulos e indiferentes, tornam-se crentes. Foi istoque ultimamente levou um padre respeitável a responder a uma desuas penitentes que o consultava sobre o Espiritismo: “Nadaacontece sem a permissão de Deus; ora, Deus permite essas coisaspara reavivar a fé que se extingue”. Se houvera empregado outralinguagem, talvez a tivesse afastado para sempre. Quereis a todocusto que o Espiritismo seja uma seita, quando ele não aspira senãoao título de ciência moral e filosófica, respeitando todas as crençassinceras. Por que, então, dar uma idéia de separação àqueles quenão pensam nisso? Se repelirdes os que ele reconduz à crença emDeus, se só lhes derdes o inferno como perspectiva, sereisresponsáveis por uma cisão que vós mesmos tereis provocado.

São Luís nos dizia um dia: “Zombaram das mesasgirantes; jamais zombarão da filosofia, da sabedoria e da caridadeque brilham nas comunicações sérias”. Enganou-se, porque nãocontou com o Sr. Georges Gandy. Muitas vezes os escritores sedivertiram à custa dos Espíritos e de suas manifestações, sempensar que um dia eles mesmos poderiam ser alvo das piadas deseus sucessores; porém, sempre respeitaram a parte moral daciência. No entanto, foi reservado a um escritor católico, o quelamentamos sinceramente, expor ao ridículo as máximas admitidaspelo mais elementar bom-senso. Cita grande número de passagensde O Livro dos Espíritos; não aludiremos senão a algumas delas, quedarão uma idéia perfeita de sua apreciação. – “Deus prefere os queo adoram do fundo do coração aos que o adoram exteriormente”.O texto de O Livro dos Espíritos diz: “Deus prefere os que oadoram do fundo do coração, com sinceridade, fazendo o bem eevitando o mal, aos que julgam honrá-lo com cerimônias que nãoos tornam melhores para com os seus semelhantes”2; O Sr. Gandyadmite o inverso; mas, como homem de boa-fé, deveria ter citadoa passagem textualmente, em vez de truncá-la de maneira a lhedesnaturar o sentido.

2 N. do T.: O Livro dos Espíritos, questão 654.

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– “Toda destruição de animais que excede os limitesdas necessidades é uma violação da lei de Deus”3; o que quer dizerque o princípio moral que rege os prazeres se aplica igualmente aoexercício da caça e da matança.

Precisamente; mas parece que o Sr. Gandy é caçador epensa que Deus fez a caça, não para alimento do homem, mas paralhe proporcionar o prazer de, sem necessidade, promover amatança de animais inofensivos.

– “Os prazeres têm limites traçados pela Natureza: olimite do necessário; pelos excessos, chegamos à saciedade”. É amoral do virtuoso Horácio, um dos pais do Espiritismo.

Visto que o autor critica esta máxima, parece nãoadmitir limites aos prazeres, o que não é muito religioso.

– “Para ser legítima, a propriedade deve ser adquiridasem prejuízo da lei de amor e de justiça; assim, aquele que possuir,sem preencher os deveres de caridade que ordena a consciência ou arazão individual, é um usurpador do bem alheio; espiriticamenteestamos em pleno socialismo.”

O texto diz assim: “Só é legítima a propriedadeadquirida sem prejuízo de outrem. A lei de amor e de justiça proíbefazer a outrem o que não gostaríamos que nos fosse feito; condena,por isso mesmo, todo meio de aquisição que lhe seja contrário”. Lánão se encontra: que ordena a razão individual; é uma pérfida adição.Não julgamos que se possa, em sã consciência, possuir à custa dejustiça; o Sr. Gandy deveria dizer-nos em que casos a espoliação élegítima. Felizmente, os tribunais não são de sua opinião.

– “A indulgência aguarda, fora desta vida, o suicida quese vê a braços com a necessidade, que quis impedir caísse avergonha sobre os seus filhos, ou sobre a sua família. Aliás, São

3 N. do T.: O Livro dos Espíritos, questão 735.

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Luís, de cujas funções espíritas falaremos em breve, se dignarevelar-nos que há escusas para os suicídios por amor. Quanto àspenas do suicida, elas não são determinadas; o que é certo é que elenão escapa ao desapontamento; em outras palavras, é pego naarmadilha, como se diz vulgarmente neste mundo”.

Esta passagem está inteiramente desnaturada pelasexigências da crítica do Sr. Gandy; seria preciso mencionar setepáginas para restabelecer o seu texto. Com tal sistema seria fáciltornar ridículas as mais belas páginas dos nossos melhoresescritores. Parece que o Sr. Gandy não admite gradação nem nasfaltas, nem nas penalidades de além-túmulo. Acreditamos numDeus mais justo e desejamos que o Sr. Gandy jamais tenha quereclamar em seu favor o benefício das circunstâncias atenuantes.

– “A pena de morte e a escravidão foram, são e serãocontrárias à lei da Natureza. O homem e a mulher, sendo iguaisperante Deus, devem ser iguais perante os homens”. Terá sido aalma errante de algum saint-simonista4 apavorado, à procura damulher livre, que presenteou essa maliciosa revelação aoEspiritismo?”

Assim a pena de morte, a escravidão e a submissão damulher, que a civilização tende a abolir, são instituições que oEspiritismo não tem direito de condenar. Ó tempos felizes daIdade Média, por que passastes sem retorno? Onde estais,fogueiras, que nos teríeis livrado dos Espíritos?

Citemos uma última passagem, das mais benignas:

“O Espiritismo não pode negar uma tal salada decontradições, de absurdos e de loucuras, que não pertencem anenhuma filosofia, nem a nenhuma língua. Se Deus permite essasmanifestações ímpias, é que deixa aos demônios, conforme ensinaa Igreja, o poder de enganar os que os chamam, violando a sua lei.”

4 N. do T.: Grifos Nossos.

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Então o demônio é bonzinho, porque, sem o querer,nos faz amar a Deus.

“Quanto à verdade, a Igreja no-la dá a conhecer; ela nosdiz, com os Livros Sagrados, que o anjo das trevas se transformaem anjo da luz, e que seria necessário recusar até mesmo otestemunho de um arcanjo, caso fosse contrário à doutrina doCristo, de cuja infalível autoridade é depositária; aliás ela tem meiosseguros e evidentes para distinguir as seduções diabólicas dasmanifestações divinas.”

De fato é uma grande verdade que se deveria recusaraté mesmo o testemunho de um arcanjo, caso fosse contrário àdoutrina do Cristo. Ora, que diz essa doutrina, que o Cristo pregoupela palavra e pelo exemplo?

“Bem-aventurados os que são misericordiosos, porquealcançarão misericórdia”.

“Bem-aventurados os pacíficos, porque serãochamados filhos de Deus”.

“Aquele que se encolerizar contra seu irmão será réu dejuízo; quem disser a seu irmão: Raca, será condenado peloconselho; e qualquer que lhe disser: Louco, será condenado ao fogodo inferno.”

“Amai os vossos inimigos, fazei o bem aos que vosodeiam, e orai pelos que vos perseguem e caluniam, a fim de quesejais filhos do vosso Pai que está nos céus, que faz se levante o solsobre bons e maus, e chover sobre justos e injustos; porquanto, senão amardes senão os que vos amam, que recompensa tereis? Nãofazem os publicanos o mesmo?”

“Sede, pois, perfeitos, como perfeito é o vosso Pai queestá nos céus”.

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“Não façais aos outros o que não gostaríeis que eles vosfizessem”.

Sendo, pois, a caridade o princípio fundamental dadoutrina do Cristo, concluímos que toda palavra e toda açãocontrárias à caridade não podem ser, como dizeis com muitapropriedade, senão inspiradas por Satã, ainda mesmo que este serevestisse da forma de um arcanjo. É por essa razão que diz oEspiritismo: Fora da caridade não há salvação.

Sobre o mesmo assunto, remetemos o leitor às nossasrespostas ao jornal Univers, números de maio e julho de 1859, bemcomo à Gazette de Lyon, de outubro de 1860. Recomendamosigualmente aos nossos leitores, como refutação ao Sr. Gandy, aLettre d’un catholique sur le Spiritisme, pelo Dr. Grand. Se o autordessa brochura1 está condenado ao inferno, haverá muitos outros eali veríamos – coisa estranha – os que pregam a caridade paratodos, enquanto o Céu seria reservado àqueles que lançamanátemas e maldição. Estaríamos singularmente equivocadosquanto ao sentido das palavras do Cristo.

A falta de espaço obriga-nos a deixar para o próximonúmero algumas palavras em resposta ao Sr. Deschanel, do Journaldes Débats.

Carta Sobre a Incredulidade

(Primeira parte)

Um dos nossos colegas, o Sr. Canu, outrora muitoimbuído dos princípios materialistas, e que o Espiritismo levou auma apreciação mais sadia das coisas, acusava-se de ter-se feitopropagandista de doutrinas que hoje considera subversivas da

5 Grand in-18, preço 1 fr.; pelo Correio: 1 fr. e 15 centavos. – Noescritório da Revista Espírita e na Livraria Ledoyen, no Palais Royal.

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ordem social. No intuito de reparar o que considera, com justarazão, uma falta, e esclarecer aqueles a quem havia transviado,escreveu a um de seus amigos uma carta, sobre a qual julgou porbem pedir a nossa opinião. Pareceu-nos que ela correspondia tãobem ao objetivo que ele se propunha, que lhe pedimos permissãopara publicá-la, o que certamente agradará aos nossos leitores. Emvez de abordar francamente a questão do Espiritismo, que teriasido repelido pelas pessoas que não admitem ser a alma a sua base;sobretudo se em lugar de lhes expor sob os olhos os estranhosfenômenos que teriam negado, ou atribuído a causas ordinárias, eleremonta à sua origem. Procura, com razão, torná-las espiritualistas,antes de as tornar espíritas. Por um encadeamento de idéiasperfeitamente lógico, chega à idéia espírita como conseqüência.Esta marcha, evidentemente, é a mais racional.

A extensão desta carta obriga-nos a dividir a suapublicação.

Paris, 10 de novembro de 1860.

Meu caro amigo,

Desejas uma longa carta sobre o Espiritismo. Esforçar-me-ei por te satisfazer como melhor puder, enquanto espero aremessa de uma importante obra sobre a matéria, a qual deveaparecer no fim do ano.

Serei obrigado a começar por algumas consideraçõesgerais, para o que será necessário remontar à origem do homem.Isto alongará um pouco a minha carta, mas é indispensável para acompreensão do assunto.

Tudo passa! diz-se geralmente.

Sim; tudo passa. Mas em geral também se dá a estaexpressão uma significação muito afastada da que lhe é própria.

Tudo passa, mas nada acaba, a não ser a forma.

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Tudo passa, no sentido de que tudo marcha e segue oseu curso; mas não um curso cego e sem objetivo, embora jamaisdeva acabar.

O movimento é a grande lei do Universo, assim naordem moral como na ordem física, e o fim do movimento é aprogressão para o melhor. É um trabalho ativo, incessante euniversal; é o que chamamos o progresso.

Tudo está submetido a esta lei, exceto Deus. Deus é oseu autor; a criatura lhe é instrumento e objeto.

A criação compõe-se de duas naturezas distintas: anatureza material e a natureza intelectual. Esta é o instrumentoativo; aquela é o instrumento passivo.

Esses dois instrumentos são complementos um dooutro, isto é, um sem o outro seria de emprego inteiramente nulo.

Sem a natureza intelectual, ou o espírito inteligente eativo, a natureza material, isto é, a matéria ininteligente e inerte,seria perfeitamente inútil, nada podendo por si mesma. Sem amatéria inerte dar-se-ia o mesmo com o espírito inteligente.

Mesmo o instrumento mais perfeito seria como se nãoexistisse, caso não houvesse alguém para dele se servir.

O mais hábil operário e o sábio da mais elevada ordemseriam tão impotentes quanto o mais completo idiota, se nãotivessem instrumentos para desenvolver a sua ciência e fazê-lamanifestar-se.

Eis aqui o momento e o lugar de fazer notar que oinstrumento material não consiste somente na plaina domarceneiro, no cinzel do escultor, na paleta do pintor, no escalpelodo cirurgião, no compasso ou na luneta do astrônomo; consiste

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também na mão, na língua, nos olhos, no cérebro, numa palavra, nareunião de todos os órgãos materiais necessários à manifestação dopensamento, o que naturalmente implica a denominação deinstrumento passivo à própria matéria sobre a qual a inteligênciaopera, por meio do instrumento propriamente dito. É assim queuma mesa, uma casa e um quadro, considerados nos elementos queos compõem, não são menos instrumentos que a serra, a plaina, oesquadro, a colher de pedreiro e o pincel que os produziram, que amão e os olhos que os dirigiram; enfim, que o cérebro quepresidiu a essa direção. Ora, tudo isto, inclusive o cérebro, foi oinstrumento complexo de que se serviu a inteligência paramanifestar o seu pensamento, sua vontade, que era produzir umaforma, e essa forma ou era uma mesa, ou uma casa, ou um quadro,etc.

Inerte por natureza, disforme por essência, a matérianão adquire propriedades úteis senão pela forma que se lheimprime, o que levou um célebre fisiologista a dizer que a forma eramais necessária que a matéria, proposição talvez um tantoparadoxal, mas que prova a superioridade do papel desempenhadopela forma nas modificações da matéria. É conforme essa lei que opróprio Deus, se assim me posso exprimir, dispôs e modificouincessantemente os mundos e as criaturas que os habitam, deacordo com as formas que melhor convêm aos seus propósitospara a harmonização do Universo. E é sempre segundo essa mesmalei que as criaturas inteligentes, agindo incessantemente sobre amatéria, como o próprio Deus, mas secundariamente, concorrempara a sua transformação contínua, transformação em que cadagrau, cada estágio é um passo no progresso, ao mesmo tempo quemanifestação da inteligência que lhe deu origem.

É desse modo que tudo na criação está em movimentoe sempre em progresso; que a missão da criatura inteligente é ativaresse movimento no sentido do progresso, o que realiza muitasvezes mesmo sem o saber; que o papel da criatura material é

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obedecer a esse movimento e manifestar o progresso da criaturainteligente; que a Criação, enfim, considerada em seu conjunto ouem suas partes, realiza incessantemente os desígnios de Deus.

Quantas criaturas inteligentes (sem sair do nossoplaneta) desempenham uma missão da qual estão longe desuspeitar! E confesso que, de minha parte, ainda há bem poucotempo eu era desse número. Nem por isso me sentiria constrangidoem deixar aqui algumas palavras sobre a minha própria história.Haverás de perdoar-me essa pequena digressão, que pode ter seulado útil.

Educado na escola do dogma católico, não tendodesenvolvido a reflexão e o exame senão muito tarde, por muitotempo fui um crente fervoroso e cego; por certo não o esqueceste.

Mas sabes, também, que mais tarde caí no excessocontrário: da negação de certos princípios que minha razão nãopodia admitir, concluí pela negação absoluta. Sobretudo merevoltava o dogma da eternidade das penas. Eu não podia conciliara idéia de um Deus, que me diziam infinitamente misericordioso,com a de um castigo perpétuo para uma falta passageira. O quadrodo inferno, suas fornalhas, suas torturas materiais me pareciaridículo e uma paródia do Tártaro dos pagãos. Recapitulei minhasimpressões de infância e lembrei-me de que, por ocasião da minhaprimeira comunhão, diziam-nos que não havia necessidade de orarpelos danados, porque isso de nada lhes serviria; aquele que nãotivesse fé era votado às chamas, bastando uma dúvida sobre ainfalibilidade da Igreja para se ser condenado às penas eternas; queo próprio bem que fizéssemos aqui não nos poderia salvar,considerando-se que Deus colocava a fé acima das melhores açõeshumanas. Essa doutrina me tornara impiedoso, endurecendo-me ocoração. Olhava os homens com desconfiança e, à mais leve falta,eu cria ver ao meu lado um condenado de quem devia fugir comoda peste, e ao qual, em minha indignação, eu teria recusado um

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copo de água, dizendo-me a mim mesmo que Deus lhe recusariaainda mais. Se ainda houvesse fogueiras, eu teria empurrado paraelas todos os que não tivessem a fé ortodoxa, fosse ainda o meupróprio pai. Nesse estado de espírito eu não podia amar a Deus:tinha medo dele.

Mais tarde uma porção de circunstâncias demasiadolongas para enumerar, vieram abrir-me os olhos e eu rejeitei osdogmas que não se conciliavam com a minha razão, porqueninguém me havia ensinado a pôr a moral acima da forma. Dofanatismo religioso caí no fanatismo da incredulidade, a exemplo detantos companheiros de infância.

Não entrarei em detalhes, que nos levariam muitolonge. Apenas acrescentarei que, depois de haver perdido durantequinze anos a doce ilusão da existência de um Deus infinitamentebom, poderoso e sábio, da existência e da imortalidade da alma,enfim hoje encontro de novo, não uma ilusão, mas uma certeza tãocompleta quanto à de minha existência atual, quanto a de teescrever neste momento.

Eis, meu amigo, o grande acontecimento de nossaépoca, o grande acontecimento que nos é dado ver realizar-se emnossos dias: a prova material da existência e da imortalidade daalma.

Voltemos ao fato; mas para te fazer melhorcompreender o Espiritismo, vamos remontar à origem do homem,não nos detendo nesse assunto por muito tempo.

É evidente que os globos que povoam a imensidão nãoforam feitos unicamente tendo em vista a sua ornamentação. Têmtambém uma finalidade útil, ao lado da agradável: a de produzir ealimentar os seres vivos materiais, que são instrumentosapropriados e dóceis a essa multidão infinita de criaturasinteligentes que povoam o espaço e que são, definitivamente, a

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obra-prima, ou melhor, o objetivo da criação, pois que só elas têma faculdade de conhecer, admirar e adorar o seu autor.

Cada um dos globos espalhados no espaço teve o seucomeço, em relação à sua forma, num tempo mais ou menosrecuado. Quanto à idade da matéria que o compõe, é um segredoque não nos importa aqui conhecer, uma vez que a forma é tudopara o objeto que nos ocupa. Com efeito, pouco nos importa quea matéria seja eterna, ou apenas de criação anterior à formação doastro, ou, finalmente, contemporânea a essa formação. O que épreciso saber é que o astro foi formado para ser habitado. Talveznão seja um despropósito acrescentar que essas formações não sãofeitas em um dia, como dizem as Escrituras; que um globo não sairepentinamente do nada já coberto de florestas, de prados e dehabitantes, como Minerva saiu armada, dos pés à cabeça, da cabeçade Júpiter. Não; Deus procede, certamente, com mais lentidão;tudo segue uma lei lenta e progressiva, não porque Ele hesite outenha necessidade de lentidão, mas porque essas leis são assim e sãoimutáveis. Aliás, aquilo a que nós, seres efêmeros, chamamoslentidão, não o é para Deus, para quem o tempo nada representa.

Eis, pois, um globo em formação ou, se quiseres, jáformado. Devem transcorrer ainda muitos séculos ou milhares deséculos antes que ele seja habitável, mas enfim chega o momento.Depois de modificações numerosas e sucessivas em sua superfície,pouco a pouco começa a se cobrir de vegetação (falo da Terra, nãopretendendo fazer, a não ser por analogia, a história dos outrosglobos, cujo fim, evidentemente, é o mesmo, mas cujasmodificações físicas podem variar). Ao lado da vegetação aparece avida animal, uma e outra na sua maior simplicidade, pois sendoesses dois ramos do reino orgânico necessários um ao outro,fecundam-se mutuamente, alimentam-se reciprocamente,elaborando de comum acordo a matéria inorgânica, para torná-lacada vez mais apropriada à formação de seres sempre maisperfeitos, até que ela tenha atingido o ponto de poder produzir e

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alimentar o corpo que deve servir de habitação e de instrumentoao ser por excelência, isto é, ao ser intelectual que dele deve servir-se; que, por assim dizer, o espera para manifestar-se, pois, sem ele,não poderia fazê-lo.

Eis que chegamos ao homem! Como se formou ele?Ainda aí não é o problema. Formou-se segundo a grande lei daformação dos seres, eis tudo. Pelo fato de não ser conhecida, essalei não deixa de existir. Como se formaram os primeirosexemplares de cada espécie de plantas? Os primeiros indivíduos decada espécie de animal? Cada um deles se formou à sua maneira,segundo a mesma lei. O que é certo é que Deus não tevenecessidade de se transformar em oleiro, nem de sujar as mãos nobarro para formar o homem, nem de lhe arrancar uma costela paraformar a mulher. Esta fábula, aparentemente absurda e ridícula,pode muito bem ser uma figura engenhosa, ocultando um sentidopenetrável por Espíritos mais perspicazes que o meu; mas comodisso nada entendo, vou me deter aqui.

Finalmente, eis o homem material habitando a Terra,ele próprio habitado por um ser imaterial, do qual é apenas oinstrumento. Incapaz de algo por si mesmo, como a matéria emgeral, não se torna apto para qualquer coisa senão pela inteligênciaque o anima; mas essa mesma inteligência, criatura imperfeita comotudo quanto é criatura, isto é, como tudo quanto não é Deus, temnecessidade de aperfeiçoar-se, e é precisamente em vista desseaperfeiçoamento que o corpo lhe foi dado, porquanto, sema matéria, o Espírito não poderia manifestar-se, nem,conseqüentemente, melhorar-se, esclarecer-se e progredir, enfim.

Considerada coletivamente, a Humanidade écomparável ao indivíduo. Ignorante na infância, ela se esclarece àmedida que os anos avançam, o que se explica naturalmente pelomesmo estado de imperfeição em que se achavam os Espíritos,para cujo avanço a Humanidade foi feita. Mas quanto ao Espírito,

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considerado individualmente, não será numa única existência quepoderá adquirir a soma de progresso que é chamado a realizar. Eispor que um número mais ou menos grande de existênciascorpóreas lhe são necessárias, conforme o emprego que tiver feitode cada uma delas. Quanto mais houver trabalhado para o seuadiantamento em cada existência, menos existências terá desuportar; e como cada existência corpórea é uma prova, umaexpiação, um verdadeiro purgatório, tem interesse de progredir omais rapidamente possível, a fim de sofrer menor número deprovas, pois o Espírito não retrograda. Para ele cada progressorealizado é uma conquista assegurada, que não lhe poderá serretirada. De acordo com esse princípio, hoje demonstrado, torna-se evidente que ele alcançará mais cedo o objetivo, quanto maisdepressa caminhar.

Resulta do que precede que cada um de nós não seacha, hoje, em nossa primeira existência corporal, por muito quenos encontremos distanciados da última, porque nossas existênciasprimitivas devem ter-se passado em mundos muito inferiores àTerra, à qual só chegamos quando nosso Espírito alcançou umestado de perfeição compatível com esse astro. Do mesmo modo,à medida que progredimos passamos a mundos superiores, sobtodos os aspectos muito mais adiantados que a Terra, e isso dedegrau em degrau, avançando sempre para o melhor. Mas antes dedeixar um globo, parece que nele passamos várias existências, cujonúmero, todavia, não é limitado, mas subordinado à soma deprogresso que houvermos realizado.

Prevejo uma objeção em teus lábios. Dir-me-ás quetudo isto pode ser verdadeiro, mas como não me lembro de nada,o mesmo ocorrendo com os outros, tudo quanto se tiver passadoem nossas precedentes existências é como se não se tivessepassado. E, se acontece o mesmo em cada nova existência, ao meuEspírito pouco importa ser imortal ou morrer com o corpo, se,conservando a sua individualidade, não tem consciência de sua

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identidade. Com efeito, para nós seria a mesma coisa, mas não éassim. Não perdemos a lembrança do passado senão durante a vidacorporal, para readquiri-la com a morte, isto é, quando o Espíritodespertar em sua verdadeira existência, a de Espírito livre, emrelação à qual as existências corpóreas podem ser comparadas aoque o sono representa para o corpo.

Em que se tornam as almas dos mortos enquantoesperam uma nova reencarnação?

As que não deixam a Terra ficam errantes em suasuperfície, vão sem dúvida aonde lhes apraz, ou, pelo menos, aondepodem, conforme o seu grau de adiantamento, mas, em geral,pouco se afastam dos vivos, principalmente daqueles a quem sãoafeiçoadas, quando têm afeição por alguém, a menos que lhes sejamimpostos deveres a cumprir alhures. Estamos, pois, em todos osmomentos, cercados por uma multidão de Espíritos conhecidos edesconhecidos, amigos e inimigos, que nos vêem, nos observam enos ouvem; alguns participam de nossas penas, bem como denossas alegrias; outros sofrem com os nossos prazeres ou gozamcom as nossas dores, enquanto outros, finalmente, mostram-seindiferentes a tudo, exatamente como acontece na Terra, entre osmortais, cujas afeições, antipatias, vícios e virtudes sãoconservados no outro mundo. A diferença é que os bons desfrutamna outra vida de uma felicidade desconhecida na Terra, o que secompreende muito bem; não têm necessidades materiais asatisfazer, nem obstáculos do mesmo gênero a ultrapassar. Seviveram bem, isto é, se nada têm ou pouco têm a se censurar emsua última existência corporal, gozam em paz o testemunho de suaconsciência e do bem que fizeram. Se viveram mal, se foram maus,como lá estão a descoberto não podem mais dissimular sob oenvoltório material, sofrendo a presença daqueles a quemofenderam, desprezaram e oprimiram, bem como aimpossibilidade, em que se encontram, de subtrair-se aos olhares detodos. Sofrem, finalmente, pelo remorso que os corrói, até que oarrependimento os venha aliviar, o que acontece mais cedo ou mais

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tarde, ou que uma nova encarnação os afaste, não às vistas deoutros Espíritos, mas às próprias vistas, tirando-lhesmomentaneamente a consciência de sua identidade. Desse modo,perdendo a lembrança do passado, sentem-se aliviados. Mastambém é, para eles, o momento em que começa uma nova prova.Se dela tiverem a sorte de sair melhorados, gozarão o progressorealizado; se não se melhorarem, reencontrarão os mesmostormentos, até que, finalmente, se arrependam ou aproveitem umanova existência.

Há um outro gênero de sofrimento: o experimentadopelos piores e mais perversos Espíritos. Inacessíveis à vergonha eao remorso, estes não sentem os seus tormentos, embora seussofrimentos sejam ainda mais vivos, porquanto, sempre inclinadosao mal, mas impotentes para o fazer, sofrem de inveja ao ver osoutros mais felizes ou melhores que eles próprios, ao mesmotempo sofrendo a raiva de não poderem saciar o seu ódio eentregar-se a todas as suas más inclinações. Oh! estes sofrem muito,mas, como te disse, sofrerão apenas enquanto não se melhorarem,ou, em outros termos, até o dia em que melhorarem. Muitas vezesnão prevêem esse termo; são tão maus, tão enceguecidos pelo mal,que não suspeitam a existência, ou a possibilidade da existência deum melhor estado de coisas, não imaginando, conseqüentemente,que seu sofrimento deve acabar um dia. É isso que os tornainsensíveis ao mal e lhes agrava os tormentos. Como, porém, nemsempre podem fugir à sorte comum que Deus reserva, semexceção, a todas as criaturas, chega finalmente um momento emque lhes é preciso seguir a rota ordinária; algumas vezes esse diaestá mais próximo do que se poderia supor ao observar a suaperversidade. Foram vistos alguns que se converteram subitamente,e de repente seus sofrimentos cessaram; entretanto, ainda lhesrestam rudes provas a suportar na Terra, em sua próximaencarnação. É preciso que se depurem, expiando as próprias faltas,e isto, definitivamente, é mais que justo; pelo menos não tememmais a perda do progresso realizado, pois não podem retroceder.

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Eis aí, meu amigo, da mais clara e sucinta maneira, aexposição da filosofia do Espiritismo, tal qual me era possível fazê-lo numa carta. Dela encontrarás desenvolvimentos mais completos,até este momento, e os mais satisfatórios, em O Livro dos Espíritos,fonte onde bebi aquilo que me fez o que sou.

Passemos agora à prática.

(Conclusão no próximo número)

O Espírito Batedor do Aube

Um dos nossos assinantes transmite-nos detalhesmuito interessantes sobre manifestações que ocorreram, e aindaocorrem, numa localidade do Departamento do Aube, cujo nomesilenciaremos, mesmo considerando que a pessoa em cuja casa sedão esses fenômenos não se preocupa absolutamente em serassaltada pela visita de numerosos curiosos, e apesar dessasmanifestações barulhentas já lhe terem produzido váriosdissabores. Aliás, nosso correspondente relata como testemunhaocular e nós o conhecemos bastante para saber que ele é digno deconfiança. Extraímos as passagens mais interessantes de seu relato:

“Há quatro anos (em 1856), na cidade onde resido, emcasa do Sr. R..., ocorreram manifestações que lembram, até certoponto, as de Bergzabern; então eu não conhecia aquele senhor, sótravando conhecimento com ele mais tarde, de sorte que foi por terouvido dizer que fiquei sabendo do que se passava naquela época.Havendo as manifestações cessado há muito tempo, o Sr. R... já sejulgava livre delas quando, pouco depois, recomeçaram comoantigamente. Pude, então, testemunhá-las durante vários diasseguidos. Contarei, portanto, o que vi com os meus próprios olhos.

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“A pessoa que é objeto dessas manifestações é o filhodo Sr. R..., de dezesseis anos; tinha, portanto, apenas doze quandoelas se produziram pela primeira vez. É um rapaz de inteligênciaexcessivamente limitada, não sabe ler nem escrever e raramente saide casa. Quanto às manifestações que ocorreram em minhapresença, com exceção do balançar do leito e da suspensãomagnética, o Espírito imitou mais ou menos em tudo o deBergzabern; as pancadas e as arranhaduras foram as mesmas;assoviava, imitava o ruído da lima e da serra e atirou no quartopedaços de carvão vindos não se sabe de onde, desde que não oshavia no aposento em que estávamos. Os fenômenos geralmente seproduzem quando o jovem está deitado e começa a dormir.Durante o sono fala ao Espírito com autoridade e assume o tom decomando de um oficial superior a ponto de enganar os outros,embora jamais tenha assistido a exercícios militares; simula umcombate, comanda a manobra, alcança a vitória e se julga nomeadogeneral no campo de batalha. Quando ordena ao Espírito quedesfira certo número de golpes, acontece algumas vezes que este dámais do que lhe é ordenado. Então o garoto pergunta: ‘Como faráspara tirar as pancadas que deste a mais?’ Então o Espírito se põe araspar, como se apagasse algo. Quando o menino comanda, ficanuma grande agitação e por vezes grita tão forte que sua voz seextingue numa espécie de estertor. Ao ser comandado, o Espíritobate todas as marchas francesas e estrangeiras, mesmo as doschineses. Não pude verificar a sua exatidão, pois não as conheço.Mas muitas vezes acontecia ao menino dizer: ‘Não é assim!Recomece!’ E o Espírito obedecia. Devo dizer de passagem quedurante o sono o menino é muito grosseiro ao comandar.

“Numa noite em que eu assistia a uma dessas cenas, jáhavia cinco horas que o filho R... se achava em grande agitação.Tentei acalmá-lo por meio de alguns passes magnéticos, mas logose tornou furioso e revolveu todo o leito. No dia seguinte deitou-se à minha chegada e, como de costume, dormiu ao cabo de algunsminutos; então as pancadas e arranhaduras começaram. De repente

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disse ao Espírito: ‘Vem cá; eu vou te adormecer’. E, para grandesurpresa nossa, magnetizou-o, apesar da resistência do Espírito,que parecia recusar-se; pelo menos é o que pude depreender daconversa que eles tiveram juntos. Depois o despertou,desmagnetizando-o como o teria feito um magnetizadorprofissional. Percebi, então, que dava a impressão de recolhermuito fluido, que me lançou, apostrofando-me e injuriando-me. Aodespertar, não guardava nenhuma recordação do que haviaocorrido.

“Longe de se atenuarem, os fatos se agravam cada vezmais de modo aflitivo, para exasperação do Espírito, que por certoteme perder o domínio que exerce sobre o rapaz. Quis perguntar-lhe o nome e os antecedentes, mas só logrei mentiras e blasfêmias.Devo dizer agora que ele fala pela boca de um rapaz, que lhe servede médium falante. Tentei inutilmente despertar-lhe melhoressentimentos, por meio de boas palavras; respondeu-me que a precenão exerce o menor poder sobre ele; que tentou se elevar até Deus,mas só encontrou gelo e nevoeiro. Então me chama de beato e,quando oro mentalmente, observo que se torna furioso e dá golpesredobrados. Diariamente traz objetos muito volumosos, ferro,cobre, etc. Quando lhe pergunto onde os obtém, responde que ostoma das pessoas desonestas. Se lhe dou lições de moral, enfurece-se. Uma noite me disse que enquanto eu viesse ele quebraria tudo,e que não iria embora antes da Páscoa; depois me cuspiu no rosto.Tendo perguntado por que se ligava dessa forma ao jovem R...,respondeu: ‘Se não fosse ele, seria outro’. O próprio pai não estálivre dos assaltos desse Espírito malfazejo. Muitas vezes éinterrompido em seu trabalho porque é batido, puxado pelasroupas em todas as direções e mesmo beliscado até sangrar.

“Fiz o que pude, mas os recursos já chegam ao fim.Acrescento que é tanto mais difícil obter bons resultados quanto écerto que o Sr. e a Sra. R..., apesar do desejo de livrar-se do Espírito,que lhes ocasionou verdadeiros prejuízos, e são obrigados a

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trabalhar para viver, não me auxiliam, pois sua fé em Deus não temgrande consistência”.

Omitimos uma porção de detalhes que só serviriampara corroborar o que relatamos. Todavia, dissemos o bastante paramostrar que se pode dizer desse Espírito, como de certosmalfeitores, que é da pior espécie.

Na sessão da Sociedade, de 9 de novembro último,foram dirigidas a São Luís as seguintes perguntas a respeito:

1. Teríeis a bondade de dizer-nos alguma coisa sobre oEspírito que obsidia o jovem R...?

Resp. – A inteligência desse rapaz é das mais fracas.Quando o Espírito se apodera dele, fica completamente alucinado,tanto mais quanto mais mergulhado no sono. Não exercendo arazão nenhum domínio sobre o seu cérebro, deixa-se obsidiar poresse Espírito turbulento.

2. Pode um Espírito relativamente superior exercersobre outro Espírito uma ação magnética e paralisar suasfaculdades?

Resp. – Um Espírito bom nada pode sobre outro, a nãoser do ponto de vista moral; jamais fisicamente. A fim de paralisarpelo fluido magnético terá de agir sobre a matéria, e o Espírito nãoé matéria semelhante ao corpo humano.

3. Como, então, pretende o jovem R... magnetizar oEspírito e fazê-lo adormecer?

Resp. – Ele assim o julga, e o Espírito se presta à ilusão.

4. O pai deseja saber se não haveria um meio de sedesembaraçar desse hóspede importuno e se o filho ainda estariasujeito a essa prova por muito tempo.

Resp. – Quando o rapaz estiver acordado seránecessário que evoquem, junto com ele, os Espíritos bons, a fim de

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o pôr em contato com estes e, por esse meio, afastar os maus, queo obsidiam durante o sono.

5. Poderíamos agir assim, evocando, por exemplo, esseEspírito, a fim de o moralizar ou, quem sabe, o próprio Espírito dorapaz?

Resp. – Talvez não seja possível no momento; ambossão muito materializados. É preciso agir diretamente sobre o corpodo ser vivo, por meio da presença dos Espíritos bons, que virãoa ele.

6. Não compreendemos bem a resposta.Resp. – Digo que é preciso chamar o concurso dos

Espíritos bons, que poderão tornar o rapaz menos acessível àsimpressões dos Espíritos maus.

7. Que poderemos fazer por ele? Resp. – O Espírito mau que o obsidia não o deixará

com facilidade, já que não é fortemente repelido por ninguém.Vossas preces, vossas evocações são uma arma fraca contra ele.Seria necessário agir direta e materialmente sobre a pessoa a quemele atormenta. Podeis orar, pois a prece é sempre boa. Mas não oconseguireis por vós mesmos, se não fordes secundados poraqueles mais interessados no caso, isto é, o pai e a mãe.Infelizmente, eles não têm essa fé em Deus que centuplica asforças, e Deus só ouve aqueles que a Ele se dirigem com confiança.Não podem, pois, queixar-se de um mal para o qual nada fazempara evitar.

8. Como conciliar a sujeição desse rapaz, dominado portal Espírito, com a autoridade que sobre este exerce aquele, já queordena e o Espírito obedece?

Resp. – O Espírito desse jovem é pouco adiantadomoralmente, mas o é mais do que se pensa, em inteligência. Emoutras existências abusou de sua inteligência, não dirigida para um

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fim moral, mas, ao contrário, para objetivos ambiciosos. Agora seencontra em punição num corpo que não lhe permite dar livrecurso à inteligência, e o Espírito mau aproveita a sua fraqueza. Estese deixa levar por questões de somenos importância, porque sabeque o jovem é incapaz de lhe ordenar coisas sérias: ele o diverte. ATerra está repleta de Espíritos assim, em punição em corposhumanos; eis por que nela há tantos males, e dos mais variadostipos.

Observação – A observação vem apoiar esta explicação.Durante o sono, o jovem demonstra uma inteligênciaincontestavelmente superior à de seu estado normal, o que provaum desenvolvimento anterior, porém reduzido a estado latente sobesse envoltório grosseiro. Somente nos momentos de emancipaçãoda alma, nos quais não sofre tanto a influência da matéria, é que suainteligência se manifesta, ocasião em que exerce também umaespécie de autoridade sobre o ser que o subjuga. Mas, voltando aoestado de vigília, suas faculdades se aniquilam sob o envoltóriomaterial que as comprime. Não está aí um ensino moral prático?

Alguém manifesta o desejo de evocar esse Espírito, masnenhum dos médiuns presentes se interessa em servir-lhe deintérprete. A Srta. Eugénie, que também havia mostradorepugnância, tomou de repente o lápis num movimentoinvoluntário e escreveu:

1. Não queres? Pois sim! Tu escreverás. Certamentepensas que não te dominarei. Eis-me aqui. Mas não te espantestanto. Farei com que vejas minha força.

Nota – Nesse momento o Espírito faz a médium darum grande murro na mesa e quebrar vários lápis.

2. Já que estais aqui, dizei por que motivo vos ligastesao filho do Sr. R...

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Resp. – Seria preciso, creio, que eu vos fizesseconfidências! Antes de tudo, sabei que tenho grande necessidade deatormentar alguém. Um médium sensato me repeliria. Apego-me aum idiota, que não me opõe nenhuma resistência.

3. Nota – Alguém argumenta que, malgrado esse ato decovardia, esse Espírito não deixa de ter inteligência. Ele respondesem que lhe tenham perguntado diretamente:

Resp. – Um pouco. Não sou tão tolo quanto pensais.

4. Que éreis quando vivo? Resp. – Não era grande coisa; um homem que fez mais

mal do que bem e que é cada vez mais punido.

5. Já que sois punido por ter feito mal, deveríeiscompreender a necessidade de fazer o bem. Não desejais melhorar?

Resp. – Se quiserdes auxiliar-me, eu perderia menostempo.

6. Não pedimos mais que isso, mas é necessário quetenhais vontade. Orai conosco, isto vos ajudará.

Resp. – (Aqui o Espírito dá uma resposta blasfema).

7. Basta! Não queremos ouvir mais. Esperávamosdespertar em vós alguns sentimentos bons; foi com esse objetivoque vos chamamos. Mas desde que só respondeis à nossabenevolência com palavras vis, podeis retirar-vos.

Resp. – Ah! aqui esbarra a vossa caridade! Porque puderesistir um pouco, vejo que essa caridade logo pára; é que não valeismais do que eu. Sim, poderíeis moralizar-me mais do que pensais,se soubésseis dar provas disso, primeiro no interesse do idiota quesofre, do pai que não se assusta muito e finalmente no meu, seassim vos agrada.

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8. Dizei vosso nome, a fim de que possamos chamá-lo.Resp. – Oh! meu nome pouco importa. Chamai-me, se

quiserdes, o Espírito do jovem idiota.

9. Se vos quisemos fazer calar é porque dissestes umapalavra sacrílega.

Resp. – Ah! Ah! o senhor chocou-se! Para saber o quehá na lama é preciso revolvê-la.

10. Alguém diz: Esta imagem é digna do Espírito: éignóbil.

Resp. – Quereis poesia, moço? Ei-la: Para conhecer operfume da rosa é preciso cheirá-la.

11. Já que dissestes que vos poderíamos auxiliar a vostornardes melhor, um dos senhores presentes se oferece para vosinstruir. Quereis atendê-lo quando vos evocar?

Resp. – Antes de tudo, quero ver se me convém.(Depois de alguns instantes de reflexão acrescenta): Sim; irei.

12. Por que o filho do Sr. R... se enfurecia quando o Sr.L... queria magnetizá-lo?

Resp. – Não era ele que se encolerizava; era eu.

13. Por quê? Resp. – Não tenho nenhum poder sobre esse homem,

razão por que não posso suportá-lo. Ele quer arrebatar-me aqueleque tenho sob o meu domínio, e isso não admito.

14. Deveis perceber à vossa volta Espíritos mais felizesque vós. Sabeis por quê?

Resp. – Sei muito bem; eles são melhores do que eu.

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15. Compreendeis então que, se ao invés de fazer o mal,fizésseis o bem, seríeis feliz como eles?

Resp. – Não desejava mais que isso; mas é difícil fazero bem.

16. Talvez seja difícil para vós, mas não impossível.Sabeis que a prece pode exercer grande influência em vossamelhoria?

Resp. – Não digo que não; pensarei nisso. Chamai-mealgumas vezes.

Observação – Como se vê, esse Espírito não desmentiuo seu caráter. Entretanto, revelou-se menos recalcitrante no fim, oque prova não ser de todo inacessível ao raciocínio. Ele dispõe dasolução, mas, para dominá-lo, é preciso um concurso de vontadesque ora não existe. Isto deve ser um ensinamento para as pessoasque poderiam achar-se em casos semelhantes.

Sem dúvida esse Espírito é muito mau e pertence à ralédo mundo espírita. Pode-se dizer que é brutalmente mau, mas queem seres semelhantes há mais recursos que nos hipócritas.Seguramente são muito menos perigosos que os Espíritosfascinadores que, auxiliados por certa dose de inteligência e umafalsa aparência de virtude, sabem inspirar a certas pessoas umaconfiança cega em suas palavras, confiança de que cedo ou tardeserão vítimas, porquanto tais Espíritos jamais agem com vistas aobem: têm sempre uma segunda intenção. Esperamos que O Livrodos Médiuns tenha como resultado pôr-nos em guarda contra suassugestões, o que, certamente, não lhes agradará. Mas, como é fácilde ver, tão pouco nos inquietamos com a sua má vontade quantocom a dos Espíritos encarnados, que eles podem excitar contra nós.Os Espíritos maus, tanto quanto os homens, não vêem com bonsolhos aqueles que, desmascarando as suas torpezas, lhes tiram osmeios de fazer o mal.

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Ensino Espontâneo dos EspíritosDITADOS RECEBIDOS OU LIDOS NA SOCIEDADE

POR VÁRIOS MÉDIUNS

Os três tipos – Médium: Sr. Alfred Didier

Há no mundo três tipos que serão eternos. Esses trêstipos, grandes homens os pintaram tais quais eram em seu tempo;e adivinharam que existiriam sempre. Esses três tipos são,inicialmente, Hamlet, que diz para si mesmo: To be or not to be, thatis the question; depois Tartufe, que resmunga preces enquantomedita no mal; por fim Don Juan, que a todos diz: Não creio emnada. Molière achou, sozinho, dois desses tipos; Aviltou Tartufe efulminou Don Juan. Sem a verdade o homem fica na dúvida comoHamlet, sem consciência como Tartufe, sem coração como DonJuan. Hamlet está em dúvida, é verdade, mas procura, é infeliz, aincredulidade o acabrunha, suas mais doces ilusões se afastam cadavez mais, e esse ideal, essa verdade que ele persegue cai no abismocomo Ofélia e fica perdida para sempre. Então enlouquece e morrecomo um desesperado; mas Deus o perdoará, porque teve coração,amou e foi o mundo que lhe roubou aquilo que queria conservar.

Os outros dois tipos são atrozes, porque egoístas ehipócritas, cada um a seu modo. Tartufe toma a máscara davirtude, o que o torna odioso; Don Juan em nada crê, nem mesmoem Deus: só acredita em si mesmo. Jamais tivestes a impressão dever, nesse famoso símbolo que é Don Juan e na estátua doComendador, o cepticismo diante das mesas girantes? Ocorrompido Espírito humano frente à sua mais brutalmanifestação? Até o presente o mundo não viu neles senão umafigura inteiramente humana. Credes que não se deve neles ver esentir algo mais? Como o gênio inimitável de Molière não teve,nessa obra, o sentimento do bem-senso dos fatos espirituais, comoo tinha sempre dos defeitos deste mundo!

Gérard de Nerval

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CAZOTTE

Médium – Sr. Alfred Didier

É curioso ver surgir, no meio do materialismo, umareunião de homens de boa-fé para propagar o Espiritismo. Sim, éno meio das mais profundas trevas que Deus lança a luz, e nomomento em que é mais esquecido é que Ele melhor se mostra,semelhantemente ao ladrão sublime de que fala o Evangelho, e quevirá julgar o mundo no momento em que este menos esperar. MasDeus não vem a vós para vos surpreender; ao contrário, vemprevenir-vos de que essa grande surpresa, que deve apoderar-se doshomens ao morrerem, deve ser para eles funesta ou feliz.

Foi para o meio de uma sociedade corrompida queDeus me enviou. Graças à clarividência, algumas dessas revelaçõesque em meu tempo pareciam tão maravilhosas, hoje se mostrammuito naturais. Para mim, todas essas lembranças não passam desonhos e, louvado seja Deus! o despertar não foi penoso. OEspiritismo nasceu, ou melhor, ressuscitou em vosso tempo; omagnetismo era do meu tempo. Crede que as grandes luzesprecedem os grandes clarões.

O autor do Diable Amoureux vos lembra que já teve ahonra de conversar convosco e se sentirá feliz em continuar suasrelações amistosas.

Cazotte

Na sessão seguinte foram dirigidas ao Espírito Cazotteas perguntas que se seguem:

Na última vez em que aqui viestes espontaneamentetivestes a gentileza de dizer que voltaríeis de boa vontade.Aproveitamos o oferecimento para vos dirigir algumas perguntas,se assim o quiserdes.

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1o A história do famoso jantar em que predissestes asorte que aguardava cada um dos convivas é inteiramenteverdadeira?

Resp. – É verdadeira no sentido de que a predição nãofoi feita numa única noite, mas em vários jantares, no fim dos quaiseu me divertia em amedrontar os meus amáveis convivas, por meiode sinistras revelações.

2o Conhecemos os efeitos da dupla vista ecompreenderíamos que, dotado dessa faculdade, tivésseis podidover coisas distantes, mas que se passavam naquele momento. Comopudestes ver coisas futuras, que ainda não existiam, e vê-las comprecisão? Poderíeis dizer-nos, ao mesmo tempo, como vos foi dadaessa previsão? Falastes simplesmente como inspirado, sem nadaver, ou o quadro dos acontecimentos que anunciastes se vosapresentou como uma imagem? Tende a bondade de descrever istotão bem quanto puderdes para a nossa instrução.

Resp. – Há na razão do homem um instinto moral queo impele a predizer certos acontecimentos. É verdade que eu eradotado de uma clarividência extraordinária, mas sempre humana,para os acontecimentos que então se passaram. Mas acreditais queo bom-senso, ou o sadio julgamento das coisas terrenas possamvos detalhar, com anos de antecedência, tal ou qual circunstância?Não. À minha natural sagacidade aliava-se uma qualidadesobrenatural: a dupla vista. Quando eu revelava às pessoas que mecercavam os terríveis abalos que deveriam ocorrer, evidentementeeu falava como um homem de bom-senso e de lógica. Mas quandoeu via pequenos detalhes dessas circunstâncias; quando eu viavisivelmente tal ou qual vítima, então não falava mais como umsimples homem dotado, mas como um homem inspirado.

3o Independentemente desse fato, tivestes outrosexemplos de previsão durante a vida?

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Resp. – Sim. Eram todas mais ou menos sobre o mesmoassunto. Mas, como passatempo, eu estudava as ciências ocultas eme ocupava muito de magnetismo.

4o Essa faculdade de previsão vos acompanhou nomundo dos Espíritos? Isto é, após a morte ainda prevedes certosacontecimentos?

Resp. – Sim; esse dom me ficou muito mais puro.

Observação – Poder-se-ia ver aqui uma contradição como princípio que se opõe à revelação do futuro. Com efeito, o futuronos é oculto por uma lei muito sábia da Providência, considerando-se que tal conhecimento prejudicaria o nosso livre-arbítrio,levando-nos a negligenciar o presente pelo futuro. Além disso, pornossa oposição, poderíamos entravar certos acontecimentosnecessários à ordem geral. Mas quando essa comunicação nos podeimpelir a facilitar a realização de uma coisa, Deus pode permitir asua revelação, nos limites designados por sua sabedoria.

A VOZ DO ANJO-DA-GUARDA

Médium – Srta. Huet

Todos os homens são médiuns; todos têm um Espíritoque os dirige para o bem, quando sabem escutá-lo. Pouco importaque alguns se comuniquem diretamente com ele por umamediunidade particular, e que outros não o ouçam senão pela vozdo coração e da inteligência; nem por isso deixará de ser o seuEspírito familiar que os aconselha. Chamai-o Espírito, razão,inteligência: é sempre uma voz que responde à vossa alma e vosdita boas palavras; só que nem sempre as compreendeis. Nemtodos sabem agir segundo os conselhos dessa razão, não da razãoque se arrasta, em vez de marchar, dessa razão que se perde emmeio aos interesses materiais e grosseiros, mas da razão que elevao homem acima de si mesmo, que o transporta para regiõesdesconhecidas; chama sagrada que inspira o artista e o poeta,

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pensamento divino que eleva o filósofo, impulso que arrasta osindivíduos e os povos, razão que o vulgo não pode compreender,mas que aproxima o homem da divindade mais que qualquer outracriatura; entendimento que sabe conduzi-lo do conhecido aodesconhecido, fazendo com que execute os atos mais sublimes.Ouvi, pois, essa voz interior, esse bom gênio que vos fala semcessar, e chegareis progressivamente a ouvir o vosso anjo daguarda, que do alto do céu vos estende as mãos.

Channing

GARRIDICE

Médium – Sra. Costel

Hoje nos ocuparemos da garridice feminina, que é ainimiga do amor: ela mata ou o amesquinha, o que é pior. A mulhergarrida assemelha-se a um pássaro engaiolado, que, pelo canto, atraias outras aves para junto de si. Ela atrai os homens, cujos coraçõesse dilaceram contra as grades que a encerram. Lamentamos mais aela que a eles. Reduzida ao cativeiro pela estreiteza de idéias e pelaaridez de seu coração, sapateia na obscuridade de sua consciência,sem jamais poder ver luzir o sol do amor, que só irradia para asalmas generosas e dedicadas. É mais difícil sentir o amor do queinspirá-lo; no entanto, todos se inquietam e perscrutam o coraçãodesejado, sem primeiro examinar se o seu possui o tesourocobiçado.

Não; o amor que é a sensualidade do amor-próprio nãoé amor, assim como a garridice não é a sedução para uma almaelevada. Temos razão em censurar e cercar de dificuldades essasfrágeis ligações, vergonhosa permuta de vaidades, de misérias detoda sorte. O amor fica alheio a essas coisas, do mesmo modo queo raio não fica maculado pelas imundícies que ele ilumina.Insensatas são as mulheres que não compreendem que sua belezae sua virtude representam o amor em seu abandono, no

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esquecimento dos interesses pessoais e na transmigração da almaque se entrega inteiramente ao ser amado. Deus abençoa a mulherque carregou o jugo do amor e repele aquela que fez desseprecioso sentimento um troféu à sua vaidade, uma distração à suaociosidade ou uma chama carnal que consome o corpo, deixandovazio o coração.

Georges

Allan Kardec

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Revista EspíritaJornal de Estudos Psicológicos

ANO IV FEVEREIRO DE 1861 No 2

BoletimDA SOCIEDADE PARISIENSE DE ESTUDOS ESPÍRITAS

(Resumo das Atas)

Admissão de dois novos membros.

Relatórios diversos:

1o Leitura de várias comunicações obtidas fora dassessões.

2o O Sr. Allan Kardec lê uma carta de Bordeaux, naqual é proposta a evocação da Srta. M. H..., recentemente falecida.Consultada sobre o assunto, a Sociedade julga por bem não seocupar dessa evocação.

Trabalhos da sessão:

1o Ditado espontâneo assinado por Lázaro, recebidopela Sra. Costel. – Outro assinado por Gérard de Nerval, obtidopelo Sr. A. Didier. O Espírito desenvolve a tese cujas basesapresentara na comunicação Os Três Tipos: Hamlet, Don Juan e

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Tartufe, em 14 de dezembro. Desenvolve o tipo de Hamlet.Solicitado, dá a sua opinião sobre La Fontaine. – Outro assinadopor Torquato Tasso, recebido pela Srta. H... O Espírito fazigualmente uma apreciação sobre La Fontaine.

2o Evocação de lady Esther Stanhope, que passou amaior parte de sua vida nos altiplanos do Líbano, no meio daspopulações árabes que lhe haviam dado o título de Rainha dePalmira.

Sexta-feira, 28 de dezembro de 1860 – Sessão geral

Relatórios diversos:

1o Leitura de várias comunicações recebidas fora dassessões, entre outras um conto fantástico assinado por Hoffmann,obtido pela Sra. Costel, e a evocação de um negro, feita em NovaOrléans, pela Sra. B... A comunicação é notável pela ingenuidadedas idéias e pela reprodução da linguagem usada entre os negros.

2o Carta da Sra. T. D..., da Cracóvia, constatando osprogressos do Espiritismo na Polônia, na Podólia e na Ucrânia.Essa senhora é médium há sete anos. Junta à sua carta quatrocomunicações que atestam a bondade e a superioridade do Espíritoque as ditou, além de pedir para fazer parte da Sociedade.

3o O Sr. Allan Kardec dirige aos Espíritos a alocuçãoseguinte, para lhes agradecer o seu concurso durante o ano que orase finda:

“Não queremos terminar o ano sem dirigir os nossosagradecimentos aos Espíritos bons, que tiveram a bondade de nosinstruir. Agradecemos principalmente a São Luís, nosso presidenteespiritual, cuja proteção tem sido de tal modo evidente para aSociedade que esta o tomou sob seu patrocínio. Assim, esperamoscontinuar merecendo a sua proteção, rogando-lhe que nos inspire

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sentimentos que nos possam tornar sempre dignos dela.Agradecemos, igualmente, a todos os que espontaneamente vieramdar-nos os seus conselhos e as suas instruções, quer nas nossassessões, quer nas comunicações dadas em particular aos nossosmédiuns, e que nos foram transmitidas. Neste número nãopoderíamos esquecer Lamennais, que ditou ao Sr. Didier páginas detão grande eloqüência; Channing; Georges, cujas belascomunicações têm sido admiradas por todos os leitores da Revista;Sra. Delphine de Girardin, Charles Nodier, Gérard de Nerval,Lázaro, Tasso, Alfred de Musset, Rousseau e outros. O ano de 1860foi eminentemente próspero para as idéias espíritas. Esperamosque com o concurso dos Espíritos bons o ano que vai começarnão seja menos favorável. Quanto aos Espíritos sofredores quecompareceram, seja espontaneamente, seja ao nosso chamado,continuaremos, por nossas preces, a implorar para eles amisericórdia de Deus, rogando-lhe amparar os que se acham nocaminho do arrependimento e esclarecer os que ainda seencontram na via tenebrosa do mal.”

Trabalhos da sessão:

1o Ditado espontâneo sobre o ano de 1860, assinadopor J.-J. Rousseau, recebido pela Sra. Costel. – Outro assinado porNecker, obtido pela Srta. H... – Outro, sobre o ano de 1861,assinado por São Luís.

2o Evocação de lady Stanhope, de Hoffmann, e donegro de Nova Orléans.

3o Questões diversas: Sobre a lembrança de existênciasanteriores em Júpiter; – Sobre as diversas aparições de que foi alvoa sogra do Sr. Pr..., presente à sessão.

Sexta-feira, 4 de janeiro de 1861 – Sessão particular

Admissão do Sr. W..., pintor.

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Relatórios diversos:

1o Carta do Sr. Kond..., Médico de Vancluse,lamentando que tudo quanto se menciona nas atas da Sociedadenão seja publicado integralmente na Revista. Diz ele que “Ospartidários do Espiritismo, que não podem assistir às sessões,sentem-se estranhos às questões que são estudadas e resolvidasnessa assembléia científica. Todos os meses, aguardamos com febrilimpaciência a chegada da Revista. Quando a recebemos, nãoperdemos um minuto para a ler: lemos e relemos, pois aprendemosuma porção de problemas, dos quais jamais teríamos a solução.”Pergunta se não haveria um meio de remediar esse inconveniente.

A Sra. Costel diz ter recebido cartas no mesmo sentido.

Isto prova uma coisa, diz o Sr. Allan Kardec, e que nosdeve dar grande satisfação: é o valor que se atribui aos trabalhos daSociedade e o crédito que ela desfruta entre os verdadeirosespíritas. A publicação do resumo das atas mostra aos estrangeirosque ela só se ocupa de coisas graves e de estudos sérios; aconsideração que conquistou no exterior se deve à sua moderaçãoe à sua marcha prudente por um terreno novo, à ordem e àgravidade que presidem às suas reuniões, assim como ao caráteressencialmente moral e científico de seus trabalhos. É, pois, para elaum encorajamento para não se afastar de um caminho que lhe trazestima, já que do estrangeiro, até da Polônia, escrevem pedindopara dela participarem.

À reclamação especial e muito lisonjeira para nós, feitapelo Dr. K..., responderei, a princípio, que a publicação integral detudo quanto se faz e se discute na Sociedade demandaria volumese mais volumes. Entre as evocações que são feitas muitas há quenão correspondem à expectativa ou não oferecem interessebastante geral para serem publicadas. São conservadas nos arquivosa fim de que se possa consultá-las em caso de necessidade,

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limitando-se o boletim em mencioná-las. O mesmo se dá com ascomunicações espontâneas: só publicamos as mais instrutivas.Quanto às questões diversas e problemas morais, que muitas vezesapresentam grande interesse, o Dr. K... está equivocado se pensaque os espíritas de fora estarão privados delas. O que o leva apensar dessa maneira é o fato de a abundância das matérias e anecessidade de as coordenar muito raramente permitem apublicação de todas as questões no fascículo da Revista em que sãomencionadas no boletim; mais cedo ou mais tarde, porém, elasterão o seu lugar. Aliás, constituem um dos elementos essenciaisdas obras sobre o Espiritismo; foram aproveitadas em O Livro dosEspíritos e em O Livro dos Médiuns, nos quais se acham classificadasconforme o assunto, não tendo sido omitida nenhuma dasessenciais. Portanto, que o Sr. K... e outros espíritas se tranqüilizem;se não podem, pela leitura da Revista, assistir de longe às sessões daSociedade, nem perder uma única palavra, tudo quanto nela seobtém de importante jamais é posto sob o alqueire. Contudo, aRevista se esforçará por responder, na medida do possível, aodesejo expresso pelo honrado correspondente.

2o Assinala o Sr. Allan Kardec, conforme o relato deum negociante de Nova York, presente à sessão, o progresso feitonos Estados Unidos do Norte pelos princípios formulados em OLivro dos Espíritos. Trechos desse livro foram traduzidos em inglês,contando ali a doutrina da reencarnação com numerosospartidários.

3o Leitura de uma graciosa e encantadora comunicaçãono velho estilo da Idade Média, recebida pela Srta. S... – Outra,sobre a imaterialidade dos Espíritos, obtida pela Sra. Costel.

Trabalhos da sessão:

1o Observações críticas sobre o ditado feito na últimasessão pelo Espírito Necker. O Espírito Madame de Staël

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manifesta-se espontaneamente e justifica as palavras de seu pai,após lhes haver explicado o sentido.

2o Evocação de Leão X, que se havia manifestadoespontaneamente na sessão de 14 de dezembro. Ao responder àsdiversas perguntas que lhe foram feitas, explica e desenvolve suasidéias sobre o caráter comparado dos americanos, dos franceses edos ingleses; sobre a maneira de ver desses povos com relação aoEspiritismo; sobre os inevitáveis progressos dessa doutrina, etc.

3o Diálogo espontâneo entre monsenhor Sibour e o seuassassino.

4o Perguntas dirigidas a São Luís acerca do negroevocado na sessão de 28 de dezembro, sobre o seu caráter e a suaorigem.

Evocação da Srta. J. B., feita por sua mãe, presente àsessão. De interesse absolutamente particular, essa comunicaçãooferece um quadro comovedor da afeição que certos Espíritosconservam por aqueles que amaram na Terra.

O Sr. Squire

Como de praxe, vários jornais zombaram desse novomédium, compatriota do Sr. Home, sob cuja influência também seproduzem fenômenos de uma ordem, por assim dizer, excepcional.Apresentam como particularidade o fato de ocorrerem somente namais profunda escuridão, circunstância que os incrédulos nãodeixam de alegar. Como se sabe, o Sr. Home produzia fenômenosmuito variados, entre os quais o mais notável era,incontestavelmente, o das aparições tangíveis. Nós os relatamosdetalhadamente na Revista Espírita dos meses de fevereiro, marçoe abril de 1858. O Sr. Squire produz apenas dois ou, melhordizendo, um só, com certas variantes, embora não menos digno de

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atenção. Sendo a obscuridade uma condição essencial à obtençãodo fenômeno, não é necessário dizer que todas as precauçõesindispensáveis para garantir a sua realidade são devidamentetomadas. Eis em que consiste:

O Sr. Squire coloca-se em frente a uma mesa de 35 a 40quilos, semelhante a uma sólida mesa de cozinha; amarram-lhefortemente as duas pernas, a fim de que delas não se possa servir;nessa posição, sua força muscular estaria consideravelmenteparalisada, caso a ela recorresse. Uma outra pessoa, a primeira quevier, ou a mais incrédula, dá-lhe uma mão, de modo a não lhe deixarlivre senão a outra. Então ele a depõe suavemente à borda da mesa.Isto feito, as luzes são apagadas e no mesmo instante a mesa seergue, passa por cima de sua cabeça e vai cair por detrás dele, depernas para o ar, sobre um divã ou sobre almofadas previamentedispostas para recebê-la, a fim de não se quebrar na queda.Produzido o efeito, acende-se a luz imediatamente: é questão dealguns segundos. Ele pode repetir a experiência tantas vezes quantose queira na mesma sessão.

Eis uma variante desse fenômeno: uma pessoa secoloca ao lado do Sr. Squire; levantada e virada a mesa, como acabade ser descrito, em vez de cair para trás ela pousa horizontalmentee em equilíbrio sobre a cabeça da pessoa, que sente apenas umaligeira pressão; mas, tão logo é acesa a luz, ela sente seu pesocompleto e cairia, se duas outras pessoas não estivessem prontas arecebê-la e a sustentá-la pelas duas extremidades.

Tal é em essência e com a maior singeleza, sem ênfasesnem reticências, o relato desses fatos singulares que colhemos dojornal Patrie de 23 de dezembro de 1860, bem como de grandenúmero de testemunhas, pois confessamos não os haverpresenciado. Entretanto, a honorabilidade das pessoas que no-loscontaram não nos deixa nenhuma dúvida quanto à sua exatidão.Temos outro motivo, talvez mais poderoso, para lhes dar crédito: é

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que a teoria nos demonstra a sua possibilidade. Ora, nada melhorpara firmar uma convicção do que perceber a veracidade dessesfatos; nada provoca mais dúvida do que dizer: vi, mas nãocompreendo. Tentemos, pois, fazer compreender.

Comecemos levantando algumas objeções prejudiciais.A primeira a surgir muito naturalmente ao pensamento é a de queo Sr. Squire empregue algum meio secreto ou, em outras palavras,que seja um hábil prestidigitador; ou ainda, como dizem duramenteas pessoas que não se incomodam em passar por mal-educadas, queele é um charlatão. Uma só palavra é suficiente para responder a talsuposição: vindo a Paris como simples turista, o Sr. Squire não tiranenhum proveito de sua estranha faculdade. Ora, como não hácharlatães desinteressados, isto nos é a melhor garantia desinceridade. Se o Sr. Squire fizesse sessões a tanto por cabeça; sefosse movido por um interesse qualquer, todas a suspeitas seriamperfeitamente legítimas. Não temos a honra de o conhecer, massabemos, através de pessoas dignas de confiança, que o conhecemparticularmente há vários anos, que é um homem dos maisrespeitáveis, de caráter afável e benevolente, um distinto literato,que escreve em vários jornais da América. Raramente a crítica tomaem consideração o caráter das pessoas e o móvel que as faz agir. Ese equivoca, porque isto constitui seguramente uma base essencialde apreciação. Há casos em que a acusação de fraude não somenteé uma ofensa, mas uma falta de lógica.

Isto posto, e afastada toda presunção de meiosfraudulentos, resta saber se o fenômeno poderia produzir-se com oauxílio da força muscular. A experiência foi realizada por homensdotados de uma força excepcional, e todos reconheceram aabsoluta impossibilidade de levantar a mesa com uma mão e, aindamenos, de fazê-la dar piruetas no ar. Acrescentamos que acompleição física do Sr. Squire não combina com uma forçahercúlea. Desde que o emprego da força física é impossível, e queum exame escrupuloso afastou o emprego de qualquer meio

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mecânico, torna-se necessário admitir a ação de uma força sobre-humana. Todo efeito tem uma causa; se a causa não estiver naHumanidade é preciso, necessariamente, que esteja fora dela; emoutras palavras, na intervenção de seres invisíveis que nos rodeiam,ou seja, dos Espíritos.

Para os espíritas o fenômeno produzido pelo Sr. Squirenada tem de novo, a não ser a forma pela qual se produz; quantoao fundo, entra na categoria de todos os outros fenômenosconhecidos de levantamento e de deslocamento de objetos, com ousem contato, de suspensão de corpos pesados no espaço. Tem seuprincípio no fenômeno elementar das mesas girantes, cuja teoriacompleta se encontra em nossa nova obra: O Livro dos Médiuns.Quem quer que tenha bem meditado nessa teoria poderáfacilmente ter a explicação do efeito produzido pelo Sr. Squire;porque, certamente, o fato de uma mesa se destacar do solo sem oauxílio de nenhuma pessoa, e manter-se no ar sem ponto de apoio,é ainda mais extraordinário. Se lhe percebermos a causa, tanto maisfacilmente poderemos explicar o outro fenômeno.

Perguntar-se-á, em tudo isso, onde está a prova daintervenção dos Espíritos. Se os efeitos fossem puramentemecânicos, nada, é verdade, provaria tal intervenção, bastandorecorrer à hipótese de um fluido elétrico ou outro; mas desde queum efeito é inteligente, deve ter uma causa inteligente. Ora, foipelos sinais de inteligência desses efeitos que se pôde reconhecerque sua causa não era exclusivamente material. Falamos dos efeitosespíritas em geral, porquanto outros há cujo caráter inteligente équase nulo, e este é o caso do Sr. Squire. Poder-se-ia, então, supô-lo dotado, a exemplo de tantas pessoas, de um potencial elétriconatural; mas não saberíamos jamais que a luz fosse um obstáculo àação da eletricidade ou do fluido magnético. Por outro lado, oexame atento das circunstâncias do fenômeno exclui tal suposição,enquanto sua analogia com os que não podem ser produzidossenão pela intervenção de inteligências ocultas está manifesta. É,

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pois, mais racional colocá-lo entre esses últimos. Resta saber comoo Espírito, ou o ser invisível, atua sobre a matéria inerte.

Quando uma mesa se move, não é o Espírito que atoma com as mãos e a levanta com a força do braço, pela simplesrazão de que, embora tenha um corpo semelhante ao nosso, essecorpo é fluídico e não pode exercer uma ação muscularpropriamente dita. Ele satura a mesa com seu próprio fluido,combinado com o fluido animalizado do médium; por esse meiofica a mesa animada momentaneamente de uma vida artificial;então obedece à vontade, como o faria um ser vivo, exprimindo,por seus movimentos, alegria, cólera e os diversos sentimentos doEspírito que dela se serve. Não é a mesa que pensa; ela nem estáalegre, nem encolerizada; não é o Espírito que se incorpora nela,porque ele não se metamorfoseia em mesa. Para o Espírito a mesanão passa de um instrumento dócil, obediente à sua vontade, comoum bastão que um homem agita e com o qual exprime ameaças oufaz outros sinais. Neste caso o bastão é sustentado pelos músculos,ao passo que a mesa, não podendo ser posta em movimento pelosmúsculos do Espírito, é agitada pelo próprio fluido deste, que fazo papel de força muscular. Tal é o princípio fundamental de todosos movimentos em casos semelhantes.

Uma questão, à primeira vista mais difícil, é esta: comopode um corpo pesado destacar-se do solo e se manter no espaço,contrariando a lei da gravidade? Para nos darmos conta disso bastanos reportarmos ao que se passa diariamente aos nossos olhos.Sabe-se que num corpo sólido é necessário distinguir o própriopeso e a força da gravidade. O peso é sempre o mesmo e dependeda soma das moléculas; a força da gravidade varia em razão dadensidade do meio. Eis por que um corpo pesa menos na água doque no ar e ainda menos no mercúrio. Suponhamos que umcômodo, em cujo solo repousa uma mesa bastante pesada, derepente se encha de água; a mesa levantar-se-á por si mesma ou,

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pelo menos um homem, ou uma criança, a levantarão sem esforço.Outra comparação: Faça-se o vácuo sob a campânula pneumática eno mesmo instante o ar do seu interior, não mais se equilibrandocom a coluna atmosférica, faz com que a campânula adquira talpeso que o mais forte dos homens não poderá levantá-la.Entretanto, embora nem a mesa nem a campânula tenham ganhadoou perdido um átomo de sua substância, seu peso relativoaumentou ou diminuiu em razão do meio, quer seja este um líquidoou um fluido.

Conhecemos todos os fluidos da Natureza ou mesmotodas as propriedades daqueles que conhecemos? Seria muitapresunção pensar assim. Os exemplos que acabamos de citar sãocomparações: não dizemos similitudes; é unicamente para mostrarque os fenômenos espíritas, que nos parecem tão estranhos, não osão mais que os mencionados, e que podem ser explicados, se nãopelas mesmas causas, ao menos por causas análogas. Com efeito,eis uma mesa que, evidentemente, perde o peso aparente num dadomomento e que, em outras circunstâncias, adquire um aumento depeso, não podendo tal fato ser explicado pelas leis conhecidas. Noentanto, como se repete, isto prova que está submetido a uma leique, pelo simples fato de ser desconhecida, não deixa de existir.Que lei é esta? Dão-na os Espíritos. Todavia, em falta da explicaçãodeles, podemos deduzi-la por analogia, sem recorrermos a causasmiraculosas ou sobrenaturais.

O fluido universal, como o chamam os Espíritos, é oveículo e o agente de todos os fenômenos espíritas. Sabe-se que osEspíritos podem modificar as suas propriedades conforme ascircunstâncias; que ele é o elemento constitutivo do perispírito ouenvoltório semimaterial do Espírito; que, neste último estado, podeadquirir a visibilidade e mesmo a tangibilidade. É, pois, irracionaladmitir que, num dado momento, possa um Espírito envolver umcorpo sólido numa atmosfera fluídica, cujas propriedades,

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conseqüentemente modificadas, produzem sobre esse corpo oefeito de um meio mais denso ou mais rarefeito? Nesta hipótese, olevantamento tão fácil de uma pesada mesa pelo Sr. Squire seexplica muito naturalmente, assim como todos os fenômenosanálogos.

A necessidade de escuridão é mais embaraçosa. Por quecessa o efeito ao menor contato da luz? O fluido luminosoexerceria aqui uma ação mecânica qualquer? Isto não é provável, jáque fatos do mesmo gênero se produzem perfeitamente em plenaluz. Não se pode atribuir esta singularidade senão à natureza todaespecial dos Espíritos que se manifestam por esse médium. Maspor que por esse médium, de preferência aos outros? Eis aí umdesses mistérios só penetráveis por aqueles que se identificaramcom os fenômenos tão numerosos, e muitas vezes tão bizarros, domundo dos invisíveis. Somente eles podem compreender assimpatias e antipatias existentes entre os mortos e os vivos.

Esses Espíritos pertencem a que ordem? São bons oumaus? Sabemos que temos ferido o amor-próprio de certascriaturas terrenas, depreciando o valor dos Espíritos que produzemmanifestações físicas; criticaram-nos fortemente porque osqualificamos como saltimbancos do mundo invisível. À guisa dedesculpa, diremos que a expressão não é nossa, mas dos própriosEspíritos. Que nos perdoem, mas jamais poderá entrar em nossacabeça que Espíritos elevados venham divertir-se em fazer proezasou outras coisas do gênero, do mesmo modo que não nosconvencerão de que palhaços, atletas, dançarinos de corda erepentistas de rua sejam membros do Instituto. Quem quer queconheça a hierarquia dos Espíritos sabe que os há de todos os grausde inteligência e de moralidade, e que neles encontramos tantasvariedades de aptidões e de caracteres como entre os homens, oque não é de admirar, pois os Espíritos nada mais são que as almasdos que viveram. Ora, até prova em contrário, permitam-nosduvidar de que Espíritos como Pascal, Bossuet e outros, mesmo

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menos elevados, submetam-se às nossas ordens para fazer girar asmesas e divertir um grupo de curiosos. Perguntamos aos quepensam de modo contrário se julgam que, após a sua morte, iriamresignar-se facilmente a esse papel decorativo. Mesmo entre os quese acham às ordens do Sr. Squire há um servilismo incompatívelcom a menor superioridade intelectual, donde concluímos quedevem pertencer às classes inferiores, o que não quer dizer quesejam maus. Pode-se muito bem ser honesto e bom sem saber lernem escrever. Os Espíritos maus geralmente são indóceis, coléricose se comprazem em fazer o mal. Ora, não nos consta que os do Sr.Squire jamais lhe haja pregado uma brincadeira de mau gosto;obedecem com uma docilidade pacífica, que exclui toda suspeita demalevolência, mas nem por isso estão aptos a fazer dissertaçõesfilosóficas. Consideramos o Sr. Squire um homem de muitobom-senso para se melindrar com esta apreciação. Essa submissãodos Espíritos que o assistem levou um dos nossos colegas a dizerque certamente aqueles o haviam conhecido numa outra vida, naqual o Sr. Squire teria exercido sobre eles uma grande autoridade,razão por que ainda lhe conservam, na presente existência, umaobediência passiva. Aliás, não se deve confundir os Espíritos que seocupam de efeitos físicos propriamente ditos, e que são designadosmais especialmente por Espíritos batedores, com os que secomunicam por meio de batidas. Sendo este meio uma linguagem,pode ser empregado como escrita pelos Espíritos de qualquerordem.

Como dissemos, vimos muitas pessoas que assistiramàs experiências do Sr. Squire; mas entre as que não eram iniciadasna ciência espírita, muitas saíram pouco convencidas, como amostrar que a simples vista dos mais extraordinários efeitos não ésuficiente para levar à convicção. Depois de terem ouvido asexplicações que lhes demos, sua maneira de ver modificou-secompletamente. Certamente não apresentamos esta teoria como aúltima palavra, como a solução definitiva. Mas, na impossibilidadede poder explicar esses fatos pelas leis conhecidas, forçoso é convir

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que o sistema por nós formulado não é destituído deverossimilhança. Vamos admiti-lo, se assim o quiserem, a título desimples hipótese; quando apresentarem uma solução melhor,seremos um dos primeiros a aceitá-la.

Escassez de Médiuns

Embora publicado há pouco tempo, O Livro dosMédiuns já provocou, em várias localidades, o desejo de formarreuniões espíritas íntimas, como aconselhamos. Mas nos escrevemque param ante a escassez de médiuns. Por isso julgamos por bemdar alguns conselhos sobre os meios de os remediar.

Um médium, sobretudo um bom médium, éincontestavelmente um dos elementos essenciais de todaassembléia que se ocupa do Espiritismo; mas seria erro pensar que,em sua falta, nada mais resta a fazer senão cruzar os braços oususpender a sessão. Não compartilhamos absolutamente a opiniãode uma pessoa que comparava uma sessão espírita sem médiuns aum concerto sem músicos. Em nossa opinião, existe umacomparação muito mais justa: a do Instituto e de todas associedades científicas, que sabem utilizar o seu tempo sem terconstantemente sob os olhos os meios de experimentação. Vai-se aum concerto para ouvir música. É, pois, evidente que se os músicosestiverem ausentes, o objetivo falhou. Mas numa reunião espíritavamos, ou pelo menos deveríamos ir, para nos instruirmos. Aquestão agora é saber se se pode fazê-la sem médium.Seguramente, para os que vão a essas reuniões com o únicoobjetivo de ver efeitos, o médium é tão indispensável quanto omúsico no concerto; mas para os que, acima de tudo, buscaminstruir-se, que querem aprofundar as diversas partes da ciência, emfalta de um instrumento de experimentação terão mais de um meiode o obter. É o que tentaremos explicar.

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Inicialmente diremos que se os médiuns são comuns,os bons médiuns, na verdadeira acepção da palavra, são raros. Aexperiência prova diariamente que não basta possuir a faculdademediúnica para obter boas comunicações. É preferível privar-se deum instrumento do que o ter defeituoso. Certamente para os quebuscam, nas comunicações, mais o fato que a qualidade, que asassistem mais por distração do que para esclarecimento, a escolhado médium é completamente indiferente. Mas falamos dos que têmum objetivo mais sério e vêem mais longe. É a eles que nosdirigimos, porque estamos certos de que nos compreendem.

Por outro lado, os melhores médiuns estão sujeitos aintermitências mais ou menos longas, durante as quais hásuspensão parcial ou total da faculdade mediúnica, sem falar dasnumerosas causas acidentais que podem privar-nosmomentaneamente de seu concurso. Acrescentemos também queos médiuns inteiramente flexíveis, os que se prestam a todos osgêneros de comunicações, são ainda mais raros. Geralmentepossuem aptidões especiais, das quais importa não os desviar. Vê-se, pois, que se não houver provisão de reserva, podemos ficardesprevenidos quando menos o esperamos, e seria desagradávelque em tal caso fôssemos obrigados a interromper os trabalhos.

O ensino fundamental que se vem buscar nas reuniõesespíritas sérias é, sem dúvida, dado pelos Espíritos. Mas que frutostiraria um aluno das lições dadas pelo mais hábil professor se, porseu lado, ele também não trabalhasse? Se não meditasse sobreaquilo que ouviu? Que progresso faria a sua inteligência se tivesseconstantemente o mestre ao seu lado para lhe mastigar a tarefa elhe poupar o esforço de pensar? Nas assembléias espíritas osEspíritos preenchem dois papéis; uns são professores quedesenvolvem os princípios da ciência, elucidam os pontosduvidosos e, sobretudo, ensinam as leis da verdadeira moral; outrossão materiais de observação e de estudo, que servem de aplicação.Dada a lição, sua tarefa está acabada, enquanto a nossa começa: a

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de trabalhar sobre aquilo que nos foi ensinado, a fim de melhorcompreender, de melhor captar o sentido e o alcance. É com vistasa nos deixar tempo livre para cumprirmos o nosso dever – que nospermitam essa expressão clássica – que os Espíritos suspendemalgumas vezes as suas comunicações. Bem que eles querem nosinstruir, mas com uma condição: a de lhes secundarmos osesforços. Cansam-se de repetir sem cessar e inutilmente a mesmacoisa. Advertem; contudo, se não são ouvidos, retiram-se, a fim deque tenhamos tempo para refletir.

Na ausência de médiuns, uma reunião que se propõealgo mais que ver manejar um lápis tem mil e um meios de utilizaro tempo de maneira proveitosa. Limitar-nos-emos a indicar alguns,sumariamente:

1o Reler e comentar as antigas comunicações, cujoestudo aprofundado fará com que seu valor seja mais bemapreciado.

Se se objetar que seria uma ocupação fastidiosa emonótona, diremos que ninguém se cansa de ouvir um belo trechode música ou de poesia; que depois de haver escutado umeloqüente sermão, gostaríamos de o ler com a cabeça fria; quecertas obras são lidas vinte vezes, porque cada vez nelasdescobrimos algo de novo. Aquele que não é impressionado senãopor palavras, se aborrece ao ouvir a mesma coisa duas vezes, aindaque fosse sublime; faltam-lhe sempre coisas novas para o interessarou, melhor, para o distrair. Aquele que medita tem um sentidoadicional: é mais tocado pelas idéias do que pelas palavras, razãopor que gosta de ouvir ainda aquilo que lhe vai ao Espírito, sem selimitar ao ouvido.

2o Contar fatos de que se tem conhecimento, discuti-los, comentá-los, explicá-los pelas leis da ciência espírita; examinar-lhes a possibilidade ou a impossibilidade; ver o que têm de plausível

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ou de exagero; distinguir a parte da imaginação e da superstição,etc.

3o Ler, comentar e desenvolver cada artigo de O Livrodos Espíritos e de O Livro dos Médiuns, assim como de todas asoutras obras sobre o Espiritismo.

Esperamos que nos desculpem por citar aqui as nossaspróprias obras, o que é muito natural, já que para isso foramescritas. Aliás, de nossa parte não passa de uma indicação, e não deuma recomendação expressa. Aqueles aos quais elas não convieremestão perfeitamente livres para pô-las de lado. Longe de nós apretensão de imaginar que outros não as possam fazer tão boas oumelhores. Apenas acreditamos que, até o momento, nelas a ciênciaé encarada de modo mais completo do que em muitas outras, alémde responderem a um maior número de perguntas e de objeções. Éa esse título que as recomendamos. Quanto ao seu méritointrínseco, só o futuro lhes será o grande juiz.

Daremos um dia um catálogo racional das obras que,direta ou indiretamente, tratam da ciência espírita, na Antigüidadee nos tempos modernos, na França ou no estrangeiro, entre osautores sacros e os profanos, quando nos tiver sido possível reuniros elementos necessários. Esse trabalho naturalmente é muitolongo, e ficaremos muito reconhecidos às pessoas que no-loquiserem facilitar, abastecendo-nos de documentos e de indicações.

4o Discutir os diferentes sistemas sobre a interpretaçãodos fenômenos espíritas.

Sobre o assunto, recomendamos a obra do Sr. deMirville e a do Sr. Louis Figuier, que são as mais importantes. Aprimeira é rica em fatos do mais alto interesse, hauridos em fontesautênticas. Só a conclusão do autor é contestável, porque em todaparte só vê demônios. É verdade que o acaso o serviu ao seu gosto,pondo-lhe sob os olhos aqueles que melhor podiam servi-lo,

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enquanto lhe ocultava os inumeráveis fatos que a própria religiãoencara como obra dos anjos e dos santos.

A História do Maravilhoso nos Tempos Modernos, pelo Sr.Figuier, é interessante sob outro ponto de vista. Ali se encontramfatos longa e minuciosamente narrados, não se sabe muito bem porquê, mas que devem ser conhecidos. Quanto aos fenômenosespíritas propriamente ditos, ocupam a parte menos consideráveldos quatro volumes. Enquanto o Sr. de Mirville tudo explica pelodiabo e outros o explicam pelos anjos, o Sr. Figuier, que não crê nosdiabos, nem nos anjos, nem nos Espíritos bons e maus, explicatudo, ou pensa tudo explicar, pelo organismo humano. O Sr.Figuier é um cientista; escreve com seriedade e se apóia notestemunho de alguns sábios. Pode-se, pois, considerar o seu livrocomo a última palavra da ciência oficial sobre o Espiritismo. E estapalavra é a negação de todo princípio inteligente fora da matéria.Lamentamos que a Ciência seja posta a serviço de tão triste causa,embora não seja responsável por isso, logo ela que nos desvendaincessantemente as maravilhas da Criação, escrevendo o nome deDeus em cada folha, e nas asas de cada inseto; culpados são os que,em seu nome, se esforçam para convencer que, após a morte, nãorestam mais esperanças.

Por esse livro os espíritas verão a que se reduzem osraios terríveis que deveriam aniquilar suas crenças. Aqueles quepoderiam ter sido abalados pelo temor de um choque, serãofortificados ao constatarem a pobreza dos argumentos que se lhesopõem, as inumeráveis contradições resultantes da ignorância e dafalta de observação dos fatos. Sob esse aspecto a leitura podeser-lhes útil, fosse ainda para poderem falar com maiorconhecimento de causa, o que não faz o autor em relação aoEspiritismo, que nega sem o haver estudado, pela simples razão denegar todo poder extra-humano. O contágio de semelhantes idéiasnão é de temer, pois elas trazem em si mesmas o antídoto: a

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instintiva repulsa do homem pelo nada. Proibir um livro é provarque o tememos. Nós aconselhamos a leitura do livro do Sr. Figuier.

Se a pobreza dos argumentos contra o Espiritismo émanifesta nas obras sérias, sua nulidade é absoluta nas diatribes eartigos difamatórios, nos quais a raiva impotente se trai pelagrosseria, pela injúria e pela calúnia. Seria dar-lhes demasiadaimportância lê-las nas reuniões sérias. Ali nada há a refutar, nada adiscutir e, conseqüentemente, nada a aprender; não teremos senãoque as desprezar.

Vê-se, pois, que fora das instruções dadas pelosEspíritos, existe ampla matéria para um trabalho útil.Acrescentamos mesmo que colheremos nesse trabalho numerososelementos de estudo para submeter aos Espíritos, em perguntas àsquais inevitavelmente ele suscitará. Mas se for necessário suprir aausência momentânea de médiuns, não se deve cometer o erro depassar sem eles indefinidamente. É preciso nada negligenciar, a fimde os encontrar. Para uma reunião, o melhor é ir buscá-los nopróprio meio; e, se se reportarem ao que dissemos sobre o assuntoem nossa última obra6, às páginas 306 e 307, ver-se-á que o meio émais fácil do que se pensa.

Carta Sobre a Incredulidade

Conclusão – Vide o no de janeiro de 1861.

Desde que o homem existe na Terra, existem Espíritos;e também desde então eles se manifestam aos homens. A Históriae a tradição estão repletas de provas nesse sentido; porém, sejaporque uns não compreendessem os fenômenos de taismanifestações; seja porque outros não ousassem divulgá-los, pormedo da cadeia ou da fogueira; seja porque os fatos fossem postos

6 N. do T.: Allan Kardec se refere a O Livro dos Médiuns, publicado nomês anterior.

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à conta de superstição ou de charlatanismo por pessoaspreconceituosas, ou interessadas em que a luz não se fizesse; seja,finalmente, porque fossem levados à conta do demônio por umaoutra classe de interessados, o certo é que, até estes últimos tempos,embora bem constatados, esses fenômenos ainda não tinham sidoexplicados de modo satisfatório ou, pelo menos, a verdadeira teoriaainda não havia caído no domínio público, provavelmente porquea Humanidade não se encontrava madura para isto, como paramuitas outras coisas maravilhosas que se realizam em nossosdias. Estava reservada para a nossa época a eclosão, no mesmocinqüentenário, do vapor, da eletricidade, do magnetismo animal –pelo menos como ciências aplicadas – e, finalmente, doEspiritismo, de todas a mais maravilhosa, não só na constataçãomaterial de nossa existência imaterial e de nossa imortalidade, masainda no estabelecimento de relações, por assim dizer, materiais econstantes, entre nós e o mundo invisível.

Quantas conseqüências incalculáveis não brotarão deum acontecimento tão prodigioso! Mas, para não falar senãodaquilo que no momento mais impressiona a generalidade doshomens, da morte, por exemplo, não a vemos reduzida ao seuverdadeiro papel de acidente natural e necessário – diria quase feliz– perdendo assim o seu caráter de acontecimento doloroso eterrível? Para os que a sofrem, ela representa o momento dodespertar; desde o dia seguinte ao da morte de um ente querido,nós, que aqui ficamos, poderemos continuar nossas relaçõesíntimas como no passado! Apenas mudaram as nossas relaçõesmateriais! Não o vemos mais, não o tocamos mais, não maisouvimos a sua voz; mas continuamos a trocar com ele os nossospensamentos, como em vida, e muitas vezes até, com mais proveitopara nós. Depois disto, o que é que resta de tão doloroso? E seacrescentarmos ao que precede a certeza de que não mais estamosseparados dele senão por alguns anos, alguns meses, talvez algunsdias, não será para transformar num simples acontecimento útilaquilo que até hoje, com raras exceções, os mais decididos nãopodiam encarar sem pavor, e que representa, por certo, o tormento

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incessante da vida inteira de muitos homens? Mas eu me afasto doassunto.

Antes de te explicar a prática muito simples dascomunicações, tentarei dar-te uma idéia da teoria fisiológica queelaborei para mim. Não a dou como certa, porquanto ainda não avi explicada pela Ciência; mas pelo menos me parece que deve seralguma coisa que se aproxima disso.

O Espírito age sobre a matéria tanto mais facilmentequanto mais esta se dispuser de maneira apropriada a receber a suaação; daí por que não age diretamente sobre qualquer espécie dematéria, embora pudesse agir indiretamente se encontrasse entreele e essa matéria, certas substâncias de uma organização graduada,que pusesse em contato os dois extremos, isto é, a matéria maisbruta com o Espírito. É assim que o Espírito de um homem vivodesloca pesados blocos de pedra, os trabalha, os combina comoutros, com eles formando um todo que chamamos casa, coluna,igreja, palácio, etc. Foi o homem-corpo que fez tudo isso? Quemousaria dizê-lo?... Sim. Foi ele quem o fez, como é minha pena queescreve esta carta. Mas voltemos ao assunto, porque ainda me sintoà deriva.

Como se põe o Espírito em contato com o pesadobloco que quer deslocar? Por meio da matéria escalonada entre elee o bloco. A alavanca põe o bloco em relação com a mão; a mãopõe a alavanca em relação com os músculos; os músculos põem amão em relação com os nervos; os nervos põem os músculos emrelação com o cérebro, e o cérebro põe os nervos em relação como Espírito, a menos que haja uma matéria ainda mais delicada, umfluido que ponha o cérebro em relação com o Espírito. Seja comofor, um intermediário a mais ou a menos não infirma a teoria. Queraja o Espírito em primeira ou em segunda mão sobre o cérebro, agesempre de muito perto, de sorte que, retomando os contatos emsentido contrário, ou, antes, na sua ordem natural, eis o Espírito

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agindo sobre uma matéria extremamente delicada, organizada pelasabedoria do Criador, de maneira apropriada a receber diretamente,ou quase diretamente, a ação de sua vontade. Esta matéria, que é océrebro, atua por meio de suas ramificações, a que chamamosnervos, sobre uma outra matéria menos delicada, mas que o é aindabastante para receber a ação destes: os músculos; os músculosimprimem movimento às partes sólidas que são os ossos do braçoe da mão, enquanto as outras partes da estrutura óssea, recebendoa mesma ação, servem de ponto de apoio ou de sustentação.Quando, por si mesma, a parte óssea ainda não é suficientementeforte ou suficientemente longa para agir diretamente, multiplica asua força utilizando-se da alavanca, e eis o pesado bloco inerteobedecendo docilmente à vontade do Espírito que, sem essahierarquia intermediária, não teria exercido nenhuma ação sobre ele.

Procedendo do mais para o menos, eis que os menoresfeitos do Espírito ficam explicados, assim como, em sentidocontrário, vê-se como o Espírito pode chegar a transportarmontanhas, secar lagos, etc. E em tudo isso o corpo quasedesaparece em meio à multidão de instrumentos necessários, entreos quais não representa senão o primeiro papel.

Quero escrever uma carta. Que devo fazer? Pôr umafolha de papel em relação com o meu Espírito, como pouco antespunha um bloco de pedra. Substituo a alavanca pela pena e a coisaestá feita. Eis a folha de papel a repetir o pensamento do meuEspírito, como há pouco o movimento imprimido ao blocomanifestava a sua vontade.

Se meu Espírito quer transmitir mais diretamente, maisinstantaneamente o seu pensamento ao teu, e desde que a isso nadase oponha, como a distância ou a interposição dum corpo sólido,sempre por meio do cérebro e dos nervos, ele põe em movimentoo órgão da voz que, ferindo o ar de várias maneiras, produz certossons variados e combinados, representando o pensamento, os quaisvão repercutir sobre o teu órgão auditivo, que os transmite ao teu

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Espírito por meio de teus nervos e de teu cérebro. E é sempre opensamento manifestado e transmitido por uma série de agentesmateriais graduados e interpostos entre seu princípio e seu objeto.

Se a teoria precedente é verdadeira, nada é mais fácilagora, parece, que explicar o fenômeno das manifestações espíritase, particularmente, da escrita mediúnica, a única que nos ocupa nomomento.

Sendo a substância psíquica idêntica em todos osEspíritos, seu modo de ação sobre a matéria deve ser o mesmo paratodos; só o seu poder pode variar em graus. Sendo a matéria dosnervos organizada de modo a poder receber a ação de um Espírito,não há razão para que não possa receber a ação de um outro, cujanatureza não difira da do primeiro; e considerando-se que asubstância de todos os Espíritos é da mesma natureza, todos osEspíritos devem ser aptos a exercer, não direi a mesma ação, mas omesmo modo de ação sobre a mesma substância, sempre que seacharem em condições de poder fazê-lo. Ora, é isto que acontecenas evocações.

O que é a evocação?

É um ato pelo qual um Espírito, titular de um corpo,pede a outro Espírito, ou, muito simplesmente, lhe permite servir-se de seu próprio órgão, de seu próprio instrumento, paramanifestar o seu pensamento ou a sua vontade.

Nem por isso o Espírito titular abandona o seu corpo,embora possa muito bem neutralizar momentaneamente suaprópria ação sobre o órgão da transmissão, deixando-o à disposiçãodo Espírito evocado; este, porém, não pode servir-se dele senãoenquanto o outro o permitir, em virtude do axioma de direitonatural, de que cada um é senhor em sua casa. Deve-se dizer,contudo, que no Espiritismo, como nas sociedades humanas,acontece que o direito de propriedade nem sempre é

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escrupulosamente respeitado pelos senhores Espíritos, e que váriosmédiuns já foram surpreendidos mais de uma vez por terem dadohospedagem a criaturas que não foram convidadas e, menos ainda,desejadas. Mas isto é um dos mil insignificantes dissabores da vida,que devemos saber suportar, tanto mais que, na espécie, elessempre têm o seu lado útil, ainda que fosse para nos experimentar,sendo, ao mesmo tempo, a prova mais patente da ação de umEspírito estranho sobre o nosso organismo, fazendo-nos escrevercoisas que estávamos longe de imaginar, ou que não tínhamos amenor vontade de ouvir. Contudo, isso só acontece aos médiunsincipientes; quando adestrados, já não lhes acontece mais ou, pelomenos, já não se deixam surpreender.

Cada um é apto a ser médium? Naturalmente assimdeveria ser, embora em graus diferentes, como sói acontecer comas mais diversas aptidões. É esta a opinião do Sr. Kardec. Hámédiuns escreventes; médiuns videntes; médiuns audientes;médiuns intuitivos; isto é, médiuns que escrevem – os maisnumerosos e os mais úteis; médiuns que vêem os Espíritos; que osouvem e conversam com eles como com os vivos – estes são raros;outros recebem em seu cérebro o pensamento do Espírito evocadoe o transmitem pela palavra. Raramente um médium possui todasessas faculdades ao mesmo tempo. Existem ainda médiuns deoutro gênero, cuja simples presença num lugar qualquer permite amanifestação dos Espíritos, quer por meio de golpes vibrados, querpelo movimento dos corpos, tal como o deslocamento de umamesinha de três pés7, o levantamento de uma cadeira, de uma mesaou de qualquer outro objeto. Foi por esse meio que os Espíritoscomeçaram a manifestar-se e a revelar a sua existência. Ouvistefalar das mesas girantes e da dança das mesas; como eu, tambémriste delas. E daí? Foram os primeiros meios de que os Espíritos seserviram para chamar a atenção; assim foi reconhecida a suapresença, depois do que, com o auxílio da observação e do estudo,chegou-se a descobrir no homem faculdades até então ignoradas,por intermédio das quais ele pode entrar em comunicação direta

7 N. do T.: Guéridon, no original francês.

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com os Espíritos. Não é maravilhoso tudo isto? Entretanto éapenas natural; somente repito que à nossa época estava reservadaa descoberta e a aplicação desta ciência, como de muitos outrossegredos admiráveis da Natureza.

Agora, para nos pormos em relação com os Espíritos,ou, pelo menos, para ver se estamos aptos a fazê-lo pela escrita,toma-se de uma folha de papel e de um lápis em boas condições,posicionando-se para escrever. É sempre bom começar por dirigiruma prece a Deus; em seguida evoca-se um Espírito, isto é, pede-se que tenha a bondade de vir comunicar-se conosco e de nos fazerescrever; por fim espera-se, sempre na mesma posição.

Há pessoas que têm a faculdade mediúnica de tal formadesenvolvida que já começam a escrever logo de início; outras, aocontrário, só vêem essa faculdade desenvolver-se com o tempo e aperseverança. Neste último caso, repete-se a sessão todos os dias,para o que basta um quarto de hora; é inútil gastar mais tempo;mas, tanto quanto possível, deve-se repeti-la diariamente, sendo aperseverança uma das primeiras condições de sucesso. Também énecessário fazer sua prece e sua evocação com fervor; mesmorepeti-la durante o exercício; ter vontade firme, um grande desejode ser bem-sucedido e, sobretudo, nada de distração. Uma vezobtida a escrita, essas últimas precauções tornam-se inúteis.

Quando se está para escrever, sente-se em geral umligeiro estremecimento na mão, às vezes precedido de uma levedormência na mão e no braço e, até mesmo, de discreta dor nosmúsculos do braço e da mão; são sinais precursores e, quasesempre, indicativos de que o momento do sucesso está próximo.Algumas vezes é imediato; outras, porém, se faz esperar ainda umou vários dias, mas nunca tarda em demasia. Apenas para chegarnesse ponto é preciso mais ou menos tempo, que pode variar deum instante a seis meses; mas, repito, basta um quarto de hora deexercício por dia.

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Quanto aos Espíritos que podem ser evocados para taistipos de exercícios preparatórios, é preferível dirigir-se ao nossoEspírito familiar, que sempre está próximo e jamais nos deixa, aopasso que os outros podem estar ali apenas momentaneamente, ounão se encontrarem no instante em que os evocamos, ou, ainda,estarem impossibilitados, por uma causa qualquer, de atender aonosso apelo, como por vezes acontece.

O Espírito familiar, que até certo ponto confirma ateoria católica do anjo-da-guarda, não é, entretanto, exatamenteaquilo que nos apresenta o dogma católico. É simplesmente oEspírito de um mortal, que viveu como nós, mas que é muito maisadiantado que nós e, conseqüentemente, nos é infinitamentesuperior em bondade e em inteligência; que realiza uma missãomeritória para si, proveitosa para nós, desse modo nosacompanhando neste mundo e no outro, até ser chamado a umanova encarnação, ou até que nós mesmos, chegados a um certograu de superioridade, sejamos chamados a realizar, na outra vida,missão semelhante junto a um mortal menos evoluído do que nós.

Como bem vês, meu caro amigo, tudo isto entramaravilhosamente nas nossas idéias de solidariedade universal.Tudo isto, mostrando-nos essa solidariedade estabelecida em todosos tempos e funcionando constantemente entre nós e o mundoinvisível, prova-nos certamente que não é uma utopia de concepçãohumana, mas uma das leis da Natureza; que os primeirospensadores que a pregavam não a inventaram, mas apenas adescobriram; que, enfim, estando nas leis da Natureza, seráchamada fatalmente a se desenvolver nas sociedades humanas,apesar das resistências e dos obstáculos que ainda lhe possamcontrapor seus cegos adversários8.

8 Por pouco que os fatos mais naturais, mas ainda não explicados, seprestem ao maravilhoso, cada um sabe com que habilidade a astúcia seapodera deles, e com que audácia os explora. Talvez ainda esteja nissoum dos maiores obstáculos à descoberta e, sobretudo, à vulgarizaçãoda verdade.

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Não me resta senão falar da maneira de evocar. É acoisa mais simples. Para isso não há nenhuma fórmula cabalísticaou obrigatória; tu te diriges ao Espírito nos termos que te convêm:eis tudo.

Todavia, para fazer com que melhor compreendas asimplicidade da coisa, dar-te-ei a fórmula que eu mesmo emprego:

“Deus, Todo-Poderoso! Permiti a meu bom anjo (ou aoEspírito de fulano, caso se prefira evocar outro Espírito)comunicar-se comigo e fazer-me escrever.” Ou então: “Em nomede Deus Todo-Poderoso, rogo a meu bom anjo (ou o Espírito de...)que se comunique comigo.”

Agora queres saber o resultado de minha própriaexperiência. Ei-la:

Depois de mais ou menos seis semanas de exercíciosinfrutíferos, senti um dia a mão tremer, agitar-se e de repente traçarcom o lápis caracteres informes. Nos exercícios seguintes essescaracteres, embora sempre ininteligíveis, tornaram-se maisregulares; eu escrevia linhas e páginas com a velocidade de minhaescrita habitual, mas sempre ilegíveis. Outras vezes traçava rubricasde toda sorte, grandes, por vezes em todo o papel. Algumas vezeseram linhas retas, ora de alto a baixo, ora transversais. Outras vezeseram círculos, ora grandes, ora pequenos e tão repetidos uns sobreos outros que a folha de papel ficava completamente enegrecidapelo lápis.

Finalmente, depois de um mês de exercícios os maisvariados, mas também os mais insignificantes, comecei a meaborrecer e pedi ao meu Espírito familiar que me fizesse pelomenos traçar letras, caso não pudesse fazer-me escrever palavras.Então obtive todas as letras do alfabeto, mas não consegui mais queisso.

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Entrementes, minha mulher, que sempre tivera opressentimento de não possuir a faculdade mediúnica decidiu-se,mesmo assim, a fazer experiências. Ao cabo de quinze dias deespera, pôs-se a escrever fluentemente e com grande facilidade. Foimais feliz do que eu, fazendo-o com grande correção e de modobastante legível.

Um dos nossos amigos conseguiu, desde o segundoexercício, rabiscar como eu, mas foi tudo. Nem por issodesanimamos, convencidos de que era uma prova e que, mais cedoou mais tarde, escreveríamos. É fácil; só preciso ter paciência.

Numa outra carta entreter-te-ei com as comunicaçõesque obtivemos por intermédio de minha mulher e que, por maissingulares pareçam, são muito concludentes quanto à existênciados Espíritos. Mas por hoje já chega; eu devia fazer-te umaexposição que, não obstante primária, pudesse abarcar o conjuntoda teoria espírita. Espero que isto baste para excitar a tuacuriosidade e, sobretudo, despertar o teu interesse. A leitura dasobras especializadas a que te irás entregar fará o resto.

Esperando a obra prática da qual te falei, remetereibrevemente a obra filosófica intitulada: O Livro dos Espíritos.

Estuda, lê, relê, experimenta, trabalha e, sobretudo, nãodesanimes, porque a coisa vale a pena.

Além disso, não ligues atenção aos que riem; há muitosque não riem mais, embora ainda estejam de posse de todos osórgãos que até há pouco lhes serviam.

A ti e até logo.

Canu

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Conversas Familiares de Além-Túmulo

O SUICÍDIO DE UM ATEU9

O Sr. J. B. D... era um homem instruído, mas saturadoem extremo de idéias materialistas, não acreditando em Deus nemna existência da alma. Afogou-se voluntariamente há dois anos. Foievocado a pedido da família.

1. Evocação.Resp. – Sofro! Sou um condenado.

2. Fomos levados a vos evocar em nome de um dosvossos parentes, que deseja conhecer a vossa sorte. Podereis dizer-nos se esta evocação vos é penosa ou agradável?

Resp. – Penosa.

3. A vossa morte foi voluntária?Resp. – Sim.

Observação – O Espírito escreve com extremadificuldade. A letra é grossa, irregular, convulsa e quaseininteligível. Ao terminar a escrita encoleriza-se, quebra o lápis erasga o papel.

4. Tende calma, que nós todos pediremos a Deus porvós.

Resp. – Sou forçado a crer nesse Deus.

5. Que motivo poderia ter-vos levado ao suicídio? Resp. – O tédio de uma vida sem esperança.

Observação – Concebe-se o suicídio quando a vida é semesperança; procura-se então fugir-lhe a qualquer preço. Com oEspiritismo, ao contrário, a esperança fortalece-se porque o futurose nos desdobra. O suicídio deixa de ter objetivo, uma vez

9 N. do T.: Vide O Céu e o Inferno, 2a parte, capítulo V: Um ateu.

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reconhecido que, por tal meio, não se escapa do mal senão para cairnum outro cem vezes pior. Eis por que o Espiritismo temseqüestrado muita gente a uma morte voluntária. Estarão errados?Serão sonhadores os que nele buscam, antes de tudo, o fim morale filosófico? Grandemente culpados são os que se esforçam poracreditar, com sofismas científicos e a pretexto de uma falsa razão, nessaidéia desesperadora, fonte de tantos crimes e males, de que tudoacaba com a vida. Esses serão responsáveis não só pelos próprioserros, como igualmente por todos os males a que os mesmosderam causa.

6. Quisestes escapar às vicissitudes da vida... Ganhastesalguma coisa? Sois agora mais feliz?

Resp. – Por que não existe o nada?

7. Tende a bondade de nos descrever do melhor modopossível a vossa atual situação.

Resp. – Sofro pelo constrangimento em que estou decrer em tudo quanto negava. Meu Espírito está como num braseiro,horrivelmente atormentado.

8. Donde provinham as vossas idéias materialistas deoutrora?

Resp. – Em anterior encarnação eu fora mau e porisso condenei-me na seguinte aos tormentos da incerteza, e assimfoi que me suicidei.

Observação – Aqui há todo um corolário de idéias.Muitas vezes nos perguntamos como pode haver materialistasquando, tendo eles passado pelo mundo espiritual, deveriam ter domesmo a intuição; ora, é precisamente essa intuição que é recusadaa alguns Espíritos que, conservando o orgulho, não se arrependemdas suas faltas. Não se deve esquecer que a Terra é um lugar deexpiação. Eis a razão por que encerra tantos Espíritos maus,encarnados.

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9. Quando vos afogastes, que idéias tínheis dasconseqüências? Que reflexões fizestes nesse momento?

Resp. – Nenhuma, pois tudo era o nada para mim.Depois é que vi que, tendo cumprido toda a sentença, teria desofrer mais ainda.

10. Agora estais bem convencido da existência de Deus,da alma e da vida futura?

Resp. – Ah! Tudo isso muito me atormenta.

11. Tornastes a ver vossa esposa e vosso irmão? Resp. – Oh! não.

12. E por que não? Resp. – Para que confundir os nossos desesperos?

Exila-se a gente na desgraça e só na ventura se reúne; eis o que é.

13. Incomodar-vos-ia a presença de vosso irmão, quepoderíamos atrair para junto de vós?

Resp. – Não o façais, pois não o mereço.

14. Por que vos opondes? Resp. – Porque ele também não é feliz.

15. Receais a sua presença e, no entanto, ela só poderiaser benéfica para vós.

Resp. – Não; mais tarde.

16. Vosso parente pergunta se assististes ao vossoenterro, e se ficastes satisfeito com o que ele fez na ocasião.

Resp. – Sim.

17. Tendes algum recado para os vossos parentes? Resp. – Que orem por mim.

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18. Parece que no círculo das vossas relações há quempartilhe das vossas opiniões. Quereis que lhes digamos algo arespeito?

Resp. – Oh! os desgraçados! Assim possam eles crer emoutra existência, eis quanto lhes posso desejar. Se pudessem avaliara minha triste posição, muito refletiriam.

[Evocação de um irmão do precedente, que professavaas mesmas teorias, mas que não se suicidou. Posto que tambéminfeliz, este se apresenta mais calmo; a sua escrita é clara e legível.]

19. Evocação – Possa o quadro dos nossos sofrimentosser útil lição, persuadindo-vos da realidade de uma outra existência,na qual se expiam as faltas oriundas da incredulidade!

20. Vós, e vosso irmão que acabamos de evocar, vosvedes reciprocamente?

Resp. – Não; ele me foge.

21. Estais mais calmo do que vosso irmão. Podereisdar-nos uma descrição mais precisa dos vossos sofrimentos?

Resp. – Não sofreis aí na Terra no vosso orgulho, novosso amor-próprio, quando obrigados a reconhecer os vossoserros? O vosso Espírito não se revolta com a idéia de voshumilhardes a quem vos demonstre o vosso erro? Pois bem! Julgaiquanto deve sofrer o Espírito que durante toda a sua vida sepersuadiu de que nada existia além dele, e que sobre todosprevalecia sempre a sua razão. Encontrando-se de súbito em faceda verdade imponente, esse Espírito sente-se aniquilado,humilhado. A isso vem ainda juntar-se o remorso de haver portanto tempo esquecido a existência de um Deus tão bom, tãoindulgente. A situação é insuportável; não há calma nem repouso;não se encontra um pouco de tranqüilidade senão no momento emque a graça divina, isto é, o amor de Deus, nos toca, pois o orgulhode tal modo se apossa de nós, que de todo nos embota, a ponto de

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ser preciso ainda muito tempo para que nos despojemoscompletamente dessa roupagem fatal. Só a prece dos nossosirmãos pode ajudar-nos nesses transes.

22. Quereis falar dos irmãos encarnados, ou dosEspíritos?

Resp. – De uns e de outros.

23. Enquanto nos entretínhamos com o vosso irmão,uma das pessoas aqui presentes orou por ele; essa prece lhe foiproveitosa?

Resp. – Ela não se perderá. Se ele agora recusa a graça,outro tanto não fará quando estiver em condições de recorrer aessa divina panacéia.

Transmitindo a resultante destas duas evocações àpessoa que no-las havia solicitado, tivemos dela a seguinte resposta:

“Não podeis imaginar, meu caro senhor, o grandebenefício advindo da evocação de meu sogro e de meu tio.Reconhecemo-los perfeitamente. A letra do primeiro, sobretudo, éde uma analogia notável com a que ele tinha em vida, tanto maisquanto, durante os últimos meses que conosco passou, essa letraera sofreada e indecifrável. Aí se verificam a mesma forma depernas, da rubrica e de certas letras, principalmente os d, f, o, p, q,t. Quanto ao vocabulário e ao estilo, a semelhança é ainda maisfrisante; para nós a analogia é completa, apenas com maiorconhecimento de Deus, da alma e da eternidade que ele tãoformalmente negava outrora. Não nos restam dúvidas, portanto,sobre a sua identidade. Deus será glorificado pela maior firmezadas nossas crenças no Espiritismo, e os nossos irmãos encarnadose desencarnados se tornarão melhores. A identidade de seu irmãotambém não é menos evidente; na mudança de ateu em crente,reconhecemos-lhe o caráter, o estilo, o seu modo de falar. Umapalavra, sobre todas, nos despertou a atenção – panacéia – suaexpressão predileta, a todo instante repetida.

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“Mostrei essas duas comunicações a várias pessoas, quenão menos se admiraram da sua veracidade, mas os incrédulos, comas mesmas opiniões dos meus parentes, esses desejariam respostasainda mais categóricas.

“Queriam, por exemplo, que o Sr. D... se referisse aolugar em que foi enterrado, onde se afogou, como foi encontrado,etc. A fim de os convencer, não vos seria possível fazer novaevocação perguntando onde e como se suicidou, quanto tempoesteve submergido, em que lugar acharam o cadáver, onde foiinumado, de que modo, se civil ou religiosamente, foi sepultado?Dignai-vos, caro senhor, insistir pela resposta categórica a essasperguntas, pois são essenciais para os que ainda duvidam. Estouconvencido de que darão, nesse caso, imensos resultados.

“Dou-me pressa a fim de esta vos ser entregue na sexta-feira de manhã, de modo a poder fazer-se a evocação na sessão daSociedade desse mesmo dia... etc.”

Reproduzimos esta carta pelo fato da confirmação daidentidade e aqui lhe anexamos a nossa resposta para ensino daspessoas não familiarizadas com as comunicações de além-túmulo.

“As perguntas que nos pedistes dirigir novamenteao Espírito de vosso sogro são, incontestavelmente, ditadas porintenção louvável, qual a de convencer incrédulos, visto como emvós não mais existe qualquer sentimento de dúvida ou curiosidade.Contudo, um conhecimento mais aprofundado da ciência espíritavos faria julgar supérfluas essas perguntas. Em primeiro lugar,solicitando-me conseguir resposta categórica, mostrais ignorar acircunstância de não podermos governar os Espíritos, a nossotalante. Ficai sabendo que eles nos respondem quando e comoquerem, e também como podem. A liberdade de sua ação é maiorainda do que quando encarnados, possuindo meios mais eficazesde se furtarem ao constrangimento moral que por acaso queiramos

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exercer sobre eles. As melhores provas de identidade são as que elesfornecem espontaneamente, por si mesmos, ou, então, as oriundasdas próprias circunstâncias. Estas, é quase inútil provocá-las.Segundo afirmais, o vosso parente provou sua identidade de modoirrecusável; por conseguinte, é mais que provável a sua recusa emresponder a perguntas que podem, e com razão, ser consideradassupérfluas, visando satisfazer à curiosidade de pessoas que lhe sãoindiferentes. A resposta bem poderia ser a que outros têm dado emcasos semelhantes, isto é: – “para que perguntar coisas que jásabeis?”

“A isto acrescentarei que a perturbação e ossofrimentos que o assoberbam devem agravar-se com asinvestigações desse gênero, que correspondem perfeitamente aquerer constranger um doente, que mal pode pensar e falar, ahistoriar as minúcias da sua vida, faltando-se assim àsconsiderações inspiradas pelo seu próprio estado.

“Quanto ao objetivo por vós alegado, ficai certo de quetudo seria negativo. As provas de identidade fornecidas são bemmais valiosas, por isso que foram espontâneas, e não de antemãopremeditadas. Ora, se estas não puderam contentar os incrédulos,muito menos o fariam interrogativas já preestabelecidas, de cujaconivência poderiam suspeitar.

“Há pessoas a quem coisa alguma pode convencer.Essas poderiam ver o vosso sogro, com os próprios olhos, econtinuariam supondo-se vítimas de uma alucinação. O que demelhor se lhes pode fazer é deixá-las tranqüilas e não perder tempoem discursos supérfluos. Só podemos lamentá-las, pois mais cedoou mais tarde aprenderão por si mesmas o quanto custa teremrepelido a luz que Deus lhes envia. É sobretudo contra estes queDeus patenteia a sua severidade.

“Duas palavras ainda, senhor, sobre o vosso pedidode evocação no mesmo dia em que eu devia receber a carta. As

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evocações não são feitas assim, às pressas; nem sempre os Espíritosrespondem ao nosso apelo; para tanto é necessário que o possamou o queiram; além disso, é preciso um médium que lhes convenhae que este tenha a aptidão especial necessária; que esse médiumesteja à disposição em dado momento, que o meio seja simpáticoao Espírito, etc. São circunstâncias pelas quais não podemosresponder jamais e que importa conhecer quando se quer fazercoisa séria.”

Questões e Problemas Diversos

1. Em um mundo superior, como Júpiter ou outro, temo Espírito encarnado a lembrança de suas existências passadas,assim como a do seu estado errante? – P. Não; desde que o Espíritose reveste do envoltório material, perde a lembrança de suasexistências anteriores.

– Entretanto, sendo rarefeito em Júpiter o envoltóriocorporal, ali o Espírito não seria mais livre?

Resp. – Sim, mas ainda suficientemente denso paraextinguir, no Espírito, a lembrança do passado.

– Então os Espíritos que habitam Júpiter e que secomunicaram conosco encontravam-se mergulhados no sono?

Resp. – Certamente. Naquele mundo, sendo o Espíritomuito mais elevado, melhor compreende Deus e o Universo; mas oseu passado se apaga por enquanto, sem o que se obscureceria a suainteligência. Ele mesmo não se compreenderia; seria o homem daÁfrica, o da Europa ou da América? o da Terra, de Marte ou deVênus? Não se recordando mais, é ele mesmo, o homem de Júpiter,inteligente, superior, compreendendo a Deus; eis tudo.

Observação – Se o esquecimento do passado énecessário num mundo adiantado como Júpiter, com mais forte

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razão deve sê-lo em nosso mundo material. É evidente que alembrança de nossas existências precedentes causaria lamentávelconfusão em nossas idéias, sem falar de todos os outrosinconvenientes já assinalados a respeito. Tudo quanto Deus faz levao selo de sua sabedoria e de sua bondade; não nos cabe criticar,ainda mesmo quando não compreendamos o objetivo.

2. A Srta. Eugénie, um dos médiuns da Sociedade,oferece notável particularidade, de certo modo excepcional, que éa prodigiosa facilidade com que escreve e a incrível prontidão comque os mais diversos Espíritos se comunicam por seu intermédio.Há poucos médiuns com tão grande flexibilidade. A que se deve isto?

Resp. – Deve-se antes ao médium que ao Espírito; esteescreveria menos veloz por um outro médium, pela razão de que anatureza do instrumento já não seria a mesma. Assim, há médiunsdesenhistas, outros são mais aptos para a Medicina, etc.; o Espíritoatua conforme a mediunidade. Deve-se, pois, a uma causa física,antes que a uma causa moral. Os Espíritos se comunicam tantomais facilmente por um médium, quanto mais rapidamente se dá acombinação entre os fluidos deste último e os do Espírito; maisque os outros ele se presta à rapidez do pensamento, de que seaproveita o Espírito, como vos aproveitais de um carro rápidoquando estais com pressa. Esta vivacidade do médium é puramentefísica; seu próprio Espírito não tem nenhuma participação nesseprocesso.

– As qualidades morais do médium não terão algumainfluência?

Resp. – Elas exercem uma grande influência nassimpatias dos Espíritos, porquanto deveis saber que algunspossuem tal antipatia por certos médiuns que não é senão com amaior repugnância que se comunicam por eles.

São Luís

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Ensino dos EspíritosDITADOS ESPONTÂNEOS OBTIDOS OU LIDOS NA SOCIEDADE POR

DIVERSOS MÉDIUNS

ANO DE 1860

(Médium: Sra. Costel)

Falarei da necessidade filosófica em que se acham osEspíritos de fazerem freqüentes exames de consciência, de darem,enfim, ao estado de seus cérebros o mesmo cuidado que cada umtem com o próprio corpo. Eis um ano terminado. Que progressotrouxe ele ao mundo intelectual? Muito grandes e muito sériosresultados, sobretudo de ordem científica. Menos feliz, a literaturanão recebeu senão fragmentos e detalhes encantadores; mas,semelhante a uma estátua mutilada, que encontramos enterrada eadmiramos, lastimando o perdido conjunto de sua beleza deoutrora, a literatura não oferece nenhuma obra séria. Na França,ordinariamente ela marcha à frente das outras artes; este ano, foiultrapassada pela pintura, que floresce, gloriosa, acima das escolasrivais. Por que essa pausa entre os nossos jovens escritores? Aexplicação é fácil. Falta-lhes o sopro generoso que inspiram as lutas;a indiferença pesa sobre eles. Folheiam-nos, criticam-nos, mas nãoos discutem apaixonadamente como no meu tempo, em que a lutaliterária dominava quase todas as preocupações. Depois, não seimprovisa um escritor, e é um pouco disto que cada um faz. Paraescrever são necessários longos e profundos estudos; estes faltamabsolutamente à vossa geração impaciente de gozo e preocupada,antes de tudo, com o sucesso fácil. Termino admirando a marchaascensional das ciências e das artes, e lamentando a ausência degenerosos impulsos nos espíritos e nos corações.

J.-J. Rousseau

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Observação – Obtida espontaneamente, prova estacomunicação que os Espíritos que deixaram a Terra ainda seocupam com o que aqui se passa e que lhes interessa, e seguem amarcha do progresso intelectual e moral. Não seria das infinitasprofundezas do espaço que iriam fazê-lo; para tanto é preciso queestejam entre nós, em nosso meio, como testemunhas invisíveisdaquilo que aqui se passa. Esta comunicação e a seguinte foramdadas na sessão da Sociedade, em 28 de dezembro, onde se haviatratado do ano que findava e do que ia começar.Conseqüentemente, veio a propósito.

ANO DE 1861

O ano que termina viu progredir sensivelmente ascrenças no Espiritismo. É uma grande felicidade para os homens,porque os afasta um pouco das bordas do abismo que ameaçatragar o Espírito humano. O ano novo será ainda melhor, porqueverá importantes mudanças materiais, uma verdadeira revoluçãonas idéias; e o Espiritismo não será esquecido, crede-o bem. Aocontrário, a ele se agarrarão como a uma tábua de salvação. Rogareia Deus para abençoar vossa obra e fazê-la progredir.

São Luís

Observação – Numa sessão íntima, outro médiumrecebeu espontaneamente, sobre o mesmo assunto, a seguintecomunicação:

O ano que se vai iniciar traz em seus recônditos asmaiores coisas. A reação vai cair violentamente na armadilha quepreparou. Por que pensais que a Terra se cobre de estradas de ferroe o mar se entreabre à eletricidade, senão para espalhar a boa nova?O verdadeiro, o bom, o belo serão, enfim, por todoscompreendidos. Não vos canseis, pois, verdadeiros espíritas,porquanto a vossa tarefa está marcada na obra da regeneração.Felizes dos que souberem realizá-la!

Léon J... (irmão do médium)

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SOBRE O MESMO ASSUNTO (POR OUTRO MÉDIUM)

A mudança é absolutamente necessária; o progresso élei divina; parece que avançou nos últimos anos mais que nosoutros. Em relação a 1860, 1861 será magnífico, embora pálido, seconsiderarmos 1862, porque quereis partir, caros irmãos, e uma vezque o sopro divino põe em marcha a locomotiva, não hádescarrilamento possível.

Leão X

COMENTÁRIO SOBRE O DITADO PUBLICADO SOB O TÍTULO DE

“O DESPERTAR DO ESPÍRITO”

Numa comunicação que o Espírito Georges ditou àSra. Costel, publicada na Revista de 1860 sob o título de ODespertar do Espírito, foi dito que não há relações amistosas entre osEspíritos errantes; que aqueles mesmos que se amaram não trocam sinaisde reconhecimento. Em várias pessoas essa teoria causou umaimpressão muito penosa, sobretudo porque os leitores da Revistaconsideram aquele Espírito elevado, havendo admirado a maioriade suas comunicações. Se essa teoria fosse absoluta, estaria emcontradição com o que tantas vezes foi dito, que no momento damorte os Espíritos amigos vêm receber o recém-vindo, auxiliando-oa se desembaraçar dos liames terrestres e, de certo modo,iniciando-o em sua nova vida. Por outro lado, se os Espíritosinferiores não se comunicassem com os mais adiantados, nãopoderiam progredir.

Procuramos refutar essas objeções num artigo daRevista de 1860, sob o título de Relações Afetuosas dos Espíritos, maseis os comentários que, a pedido nosso, deu o próprio Georges desua comunicação:

“Quando um homem é surpreendido pela morte noshábitos materialistas de uma vida que jamais lhe deixou tempo para

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se ocupar de Deus; quando, palpitando ainda de angústias e detemores terrenos, chega ao mundo dos Espíritos, assemelha-se aum viajante que ignorasse a língua e os costumes do país que visita.Imerso na perturbação, é incapaz de se comunicar, nãocompreendendo nem mesmo as próprias sensações, nem as dosoutros. Erra envolto no silêncio; então sente germinarem,eclodirem e se desenvolverem lentamente pensamentosdesconhecidos, e uma nova alma floresce na sua. Chegada a esseponto, a alma cativa sente caírem os laços e, como uma ave a quema liberdade é devolvida, lança-se para Deus, soltando um grito dealegria e de amor. Então, se comprimem à sua volta os Espíritosdos parentes, dos amigos purificados que, silenciosamente, ohaviam acolhido em sua volta. São em reduzido número os quepodem, logo após a libertação do corpo, comunicar-se com osamigos que reencontram. É necessário ter merecido, e somente osque cumpriram gloriosamente suas últimas migrações se acham,desde o primeiro momento, bastante desmaterializados para gozardesse favor que Deus concede como recompensa.

Apresentei uma das fases da vida espírita; não quisgeneralizar. Como se vê, não falei senão do estado dos primeirosinstantes que se seguem à morte, que poderá ser mais ou menosduradouro, conforme a natureza do Espírito. Depende de cada umabreviá-lo, desprendendo-se dos laços terrenos desde a vidacorpórea, já que somente o apego às coisas materiais o impede defruir a felicidade da vida espiritual.

Georges

Observação – Nada é mais moral que essa doutrina, poisnos mostra que nenhum dos gozos prometidos à vida futura éobtido sem mérito; que a própria felicidade de rever os seres quenos são caros e com eles conversar pode ser adiada. Numa palavra,que a situação na vida espírita, como em tudo, será o que fizermospela nossa conduta na vida corpórea.

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OS TRÊS TIPOS

(Continuação)

Nota – Nos três ditados seguintes, o Espíritodesenvolve cada um dos três tipos esboçados no primeiro (Vide onúmero de janeiro de 1861).

I

Aqui no vosso mundo, o interesse, o egoísmo e oorgulho abafam a generosidade, a caridade e a simplicidade. Ointeresse e o egoísmo são os dois gênios maus do financista e donovo-rico; o orgulho é o vício do que sabe e, sobretudo, do quepode. Quando um coração verdadeiramente pensador examinaesses três vícios horríveis, sofre, porque o homem que pensa sobreo nada e sobre a maldade deste mundo é, em geral – não o duvideis– uma criatura cujos sentimentos e instintos são delicados ecaridosos. E, como bem o sabeis os delicados são infelizes,conforme disse La Fontaine, que esqueci de pôr ao lado de Molière.Só os delicados são infelizes, porque sentem.

Hamlet é a personificação desta parte infeliz daHumanidade, que sofre e chora sempre e que se vinga, vingando aDeus e a moral. Hamlet teve de castigar vícios horrorosos em suafamília: o orgulho e a luxúria, isto é, o egoísmo. Aspirando àverdade, essa alma terna e melancólica ofuscou-se ao sopro domundo, como um espelho que não pode refletir o que é bom e oque é justo. E essa alma tão pura derramou o sangue de sua mãe evingou a sua honra. Hamlet é a inteligência impotente, opensamento profundo em luta contra o orgulho estúpido e contraa impudicícia materna. O homem que pensa e que vinga um vícioda Terra, seja qual for, é culpado aos olhos dos homens, mas,muitas vezes, não o é perante Deus. Não penseis que eu queiraidealizar o desespero: já fui bastante castigado, mas há tanta névoaante os olhos do mundo!

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Nota – Instado a dar a sua apreciação sobre LaFontaine, do qual acabara de falar, acrescentou o Espírito:

La Fontaine não é mais conhecido do que Corneille eRacine. Conheceis apenas os vossos literatos, ao passo que osalemães conhecem tanto Shakespeare quanto Goëthe. Para voltarao meu assunto, La Fontaine é o francês por excelência, ocultandosua originalidade e sua sensibilidade sob o nome de Esopo e depensador alegre. Mas, tende certeza, La Fontaine era um delicado,como vos dizia há pouco; vendo que não era compreendido, afetouessa simplicidade que dizeis falsa. Nos vossos dias teria sidoarrolado no regimento dos falso-modestos. A verdadeirainteligência não é falsa, mas muitas vezes temos de uivar com oslobos; e foi isso que perdeu La Fontaine na opinião de muita gente.Não vos falo de seu gênio: este é igual, se não superior, ao deMolière.

II

Para voltar ao nosso cursinho de literatura muitofamiliar, Don Juan é, como já tive a honra de vos dizer, o tipo maisperfeitamente pintado de gentil-homem depravado e blasfemo.Molière o elevou até o drama, porque, na verdade, a punição deDon Juan não devia ser humana, mas divina. É pelos golpesinesperados da vingança celeste que tombam as cabeçasorgulhosas. O efeito é tanto mais dramático quanto maisimprevisto.

Eu disse que Don Juan era um tipo; mas, na verdade, éum tipo raro, porque, realmente, vêem-se poucos homens dessatêmpera, desde que quase todos são covardes; refiro-me à classedos indiferentes e dos corruptos.

Muitos blasfemam; poucos, no entanto – eu vosasseguro – ousam blasfemar sem temor. A consciência é um ecoque lhes devolve a blasfêmia e a escutam tremendo de medo,

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embora sorriam diante do mundo. São o que hoje chamamos defanfarrões do vício. Esse tipo de libertino é numeroso nos vossosdias, mas estão muito longe de serem filhos de Voltaire.

Para voltar ao nosso assunto, Molière, como o autormais sábio e o observador mais profundo, não somente castigou osvícios que atacam a Humanidade, como os que ousam dirigir-se aDeus.

III

Até agora vimos dois tipos: um generoso e infeliz;outro feliz, segundo o mundo, mas bem miserável perante Deus.Resta-nos ver o mais feio, o mais ignóbil, o mais repugnante: refiro-me a Tartufo.

Na Antigüidade, a máscara da virtude já era horrenda,porque, sem se haver depurado pela moral cristã, o paganismotambém tinha virtudes e sábios. Mas diante do altar do Cristo essamáscara é ainda mais feia, por ser a do egoísmo e da hipocrisia.Talvez o paganismo tenha tido menos Tartufos que a religião cristã.Explorar o coração do homem sábio e bom, lisonjeá-lo em todasas suas ações, enganar as pessoas confiantes por uma aparentepiedade, levar a profanação até receber a Eucaristia com o orgulhoe a blasfêmia no coração, eis o que faz Tartufo, o que fez e o quefará, sempre. Ó homens imperfeitos e mundanos! que condenaisum princípio divino e uma moral sobre-humana porque delaquereis abusar, estais cegos quando confundis os homens com esseprincípio, isto é, Deus com a Humanidade. É porque oculta as suastorpezas sob o manto sagrado que Tartufo é horroroso erepugnante. Maldição sobre ele, porque amaldiçoava quando eraperdoado e meditava uma traição quando pregava a caridade.

Gérard de Nerval

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A HARMONIA

Médium – Sr. Alfred Didier

Vistes muitas vezes, em certas regiões, particularmentena Provença, as ruínas de grandes castelos; um torreão que porvezes se eleva em meio a imensa solidão, com seus lúgubres esombrios destroços, transportam-nos a uma época em que a fétalvez fosse ignorante, mas em que a arte e a poesia se haviamelevado com essa mesma fé tão inocente e tão pura. Vedes queestamos em plena Idade Média. Muitas vezes não pensastes que aoredor desses muros desmantelados o elegante capricho de umacastelã tenha feito vibrar cordas harmoniosas, então chamadas deharpa de Éolo? Ah, que pena! Tão rápidos como o vento que osfazia vibrar, desapareceram torreões, castelãs e harmonias! Aquelaharpa de Éolo embalava o pensamento dos trovadores e das damas.Eram ouvidas com recolhimento religioso.

Tudo acaba sobre a vossa Terra. Aí raramente desce apoesia do Céu, para logo alçar vôo. Nos outros mundos, aocontrário, a harmonia é eterna, e o que a imaginação humana podeinventar não iguala essa constante poesia, que está não somente nocoração dos Espíritos puros, mas, também, em toda a Natureza.

Réné de Provence

Allan Kardec

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Revista EspíritaJornal de Estudos Psicológicos

ANO IV MARÇO DE 1861 No 3

O Homenzinho Ainda ViveA Propósito do Artigo do Sr. Deschanel, Publicado no Journal des Débats

O Sr. Émile Deschanel, cujo nome não nos eraconhecido, houve por bem consagrar-nos vinte e quatro colunas dofolhetim do Journal des Débats, nos números de 15 e 29 denovembro último. Nós lhe agradecemos o fato, mas não a intenção.Com efeito, depois do artigo da Bibliographie catholique e o daGazette de Lyon, que lançavam anátema e injúria à boca cheia, demaneira a fazer crer num retorno ao século XV, nada conhecemosde mais malévolo, de menos científico, sobretudo de mais longo,que o do Sr. Deschanel. Uma tão vigorosa investida deve ter-lhefeito pensar que o Espiritismo, por ele ferido a torto e a direito,deveria estar para sempre bem morto e enterrado. Como não lhehavíamos respondido, não lhe fizemos nenhuma intimação, nãoiniciamos com ele nenhuma polêmica extrema, pode ter-seequivocado quanto à causa do nosso silêncio. Devemos expor osmotivos. O primeiro é que, em nossa opinião, nada havia deurgente e estávamos muito à vontade para esperar, a fim de julgar

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o efeito desse assalto e regular nossa resposta. Hoje, que estamoscompletamente informados a respeito, diremos algumas palavras.

O segundo motivo é conseqüência do precedente. Pararefutar o artigo detalhadamente, teria sido preciso reproduzi-lo porinteiro, a fim de pôr à vista o ataque e a defesa, o que já teriaabsorvido um número da nossa Revista; só a refutação absorveriapelo menos dois números; teríamos, assim, três númerosempregados em refutar o quê? Razões? Não, apenas pilhérias do Sr.Deschanel. Francamente, não valia a pena e nossos leitorespreferem outra coisa. Os que desejarem conhecer a sua lógicapoderão contentar-se lendo os números citados. E, depois, nossaresposta não teria sido mais que a repetição do que escrevemos, doque já respondemos ao jornal Univers, ao Sr. Oscar Comettant, àGazette de Lyon, ao Sr. Louis Figuier e à Bibliographie catholique10,porque todos esses ataques não passam de variantes de um mesmotema. Teria sido preciso, então, repetir a mesma coisa em outrostermos para não ser monótono, e não teríamos tempo para isso. Oque poderíamos dizer seria inútil para os adeptos e não seriabastante completo para convencer os incrédulos; portanto, trabalhoperdido. Preferimos remeter às nossas obras os que queiramrealmente esclarecer-se; eles poderão comparar os argumentosa favor e contrários: sua própria razão fará o resto.

Aliás, por que responderíamos ao Sr. Deschanel? Paraconvencê-lo? Mas isto não nos interessa absolutamente. Dir-se-áque seria um adepto a mais. Mas, o que nos importa a pessoa do Sr.Deschanel, a mais ou a menos? Que peso pode ter na balança,quando as adesões chegam aos milhares, desde o alto da escalasocial? – Mas é um publicista e se, em lugar de fazer uma diatribetivesse feito um elogio, não teria sido muito melhor para adoutrina? Esta é uma questão mais grave; vamos examiná-la.

10 Univers, maio e julho de 1859; Sr. Oscar Comettant, dezembro de1859; Gazette de Lyon, outubro de 1860; Sr. Louis Figuier, setembro edezembro de 1860; Bibliographie catholique, janeiro de 1861.

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Antes de mais, quem garantiria que o recém-convertidoSr. Deschanel teria publicado vinte e quatro colunas em favor doEspiritismo, como as publicou contra? Não o cremos, por duasrazões: a primeira, porque teria temido ser levado ao ridículo porseus confrades; a segunda, porque o diretor do jornalprovavelmente não as teria aceitado, com medo de intimidar certosleitores menos apavorados com o diabo do que com os Espíritos.Conhecemos bom número de literatos e de publicistas que estãonesse caso e nem por isso são bons e sinceros espíritas. Sabe-se quea Sra. Emile de Girardin, que passa por ter tido alguma inteligênciaem vida, não só era muito crente, mas ainda muito boa médium eobteve inúmeras comunicações; mas ela as reservava para o círculoíntimo de seus amigos, que partilhavam suas convicções; aos outrosnão falava disto. Para nós, pois, um publicista que ousa bem falarcontra, mas que não ousaria falar a favor, se estivesse convencido,não passa de simples indivíduo. E quando vemos uma mãedesolada pela perda de um filho querido encontrar inefáveisconsolações na doutrina, sua adesão aos nossos princípios tem paranós cem vezes o preço da conversão de um ilustre qualquer, se esseilustre nada ousa dizer. Aliás, os homens de boa vontade nãofaltam; são em grande quantidade e tantos vêm a nós, que apenaspodemos lhes responder. Assim, não vemos por que perder onosso tempo com os indiferentes e correr atrás dos que não nosprocuram.

Uma só palavra dará a conhecer se o Sr. Deschanel éum homem sério. Eis o início de seu segundo artigo, publicado em29 de novembro:

“A Doutrina Espírita refuta-se por si mesma: bastaexpô-la. Depois de tudo ela não está errada por se chamarsimplesmente espírita, porquanto nem é espírita nem espiritualista.Ao contrário, baseia-se no mais grosseiro materialismo e só não édivertida porque é ridícula”.

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Dizer que o Espiritismo é baseado num materialismogrosseiro, quando combate este sem tréguas, quando nada seriasem a alma, sua imortalidade, as penas e as recompensas futuras,das quais é a demonstração patente, é o cúmulo da ignorânciadaquilo de que se trata. Se não é ignorância é má-fé e calúnia.Vendo essa acusação e ouvindo-o citar os textos bíblicos, osprofetas, a lei de Moisés, que proíbe interrogar os mortos – provade que podem ser interrogados, pois não se proíbe uma coisaimpossível – poderíamos acreditá-lo de uma ortodoxia furibunda,mas lendo a facciosa passagem de seu artigo, que vamostranscrever, os leitores ficarão muito embaraçados para sepronunciarem a respeito de suas opiniões:

“Como podem os Espíritos tornar-se patentes? Comopodem ser vistos, ouvidos e apalpados? E como podem escrevereles próprios e nos deixar autógrafos do outro mundo? – “Oh! masé que esses Espíritos não são Espíritos, como podeis crer; Espíritospuramente Espíritos. “O Espírito – ouvi bem isso – não é um serabstrato, indefinido, que só o pensamento pode conceber; é um serreal, circunscrito, que, em certo caso, é apreciável pelos sentidos davisão, da audição e do tato.”

– “Mas, então, esses Espíritos têm corpos?

– “Não exatamente.

– “Mas, então?...

– “Há no homem três coisas:

“1o O corpo, ou ser material, análogo aos animais,movido pelo mesmo princípio vital;

“2o A alma, ou ser imaterial, Espírito encarnado nocorpo;

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“3o O laço que une a alma e o corpo, princípiointermediário entre a matéria e o Espírito.”

– “Intermediário? Que diabo quereis dizer? Ou se ématéria ou não se é.

– “Isto depende.

– “Como! isto depende!

– “Eis a coisa: o laço ou perispírito, que une o corpo eo Espírito, é uma espécie de envoltório semimaterial...”

– “Semi! semi!

– “A morte é a destruição do envoltório mais grosseiro;o Espírito conserva o segundo, que constitui para ele um corpoetéreo, invisível para nós no estado normal, mas queacidentalmente pode torná-lo visível e mesmo tangível, comoacontece no fenômeno das aparições.”

– “Etéreo, tanto faz; um corpo é um corpo. Istosignifica dois. E a matéria é a matéria. Sutilizai-a tanto quanto oquiserdes, e lá dentro não há semi nenhum. A própria eletricidadenão passa de matéria, e não semimatéria. E quanto ao vosso...Como chamais isto?

– “O perispírito?

– “Sim, vosso perispírito... eu acho que ele nada explicae que ele mesmo necessita de uma boa explicação.

– “O perispírito serve de primeiro envoltório aoEspírito e une a alma ao corpo. Tais são, num fruto, o germe, operisperma e a casca... O perispírito é tirado do meio ambiente, dofluido universal; participa, ao mesmo tempo, da eletricidade, do

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fluido magnético e, até certo ponto, da matéria inerte...Compreendeis?

– “Não muito.

– “Poder-se-ia dizer que é a quintessência da matéria.

– “Por mais quintessencieis, daí não tirareis Espírito,nem semi-espírito; vosso perispírito é pura matéria.

– “É o princípio da vida orgânica, mas não o da vidaintelectual.

– “Enfim, é o que quiserdes; mas vosso perispírito étanta coisa, que não sei bem o que ele seja; poderá muito bem nadaser”.

Ao que parece, a palavra perispírito vos ofusca. Setivésseis vivido ao tempo em que foi inventada a palavra perisperma,provavelmente também o tivésseis achado ridículo. Por que nãocriticais os que são inventados diariamente para exprimir idéiasnovas? Não é a palavra que critico, direis vós, é a coisa. Seja, porque jamais o vistes; mas negais a alma, que também nunca vistes?Negais a Deus, que igualmente jamais vistes? E então? se não sepode ver a alma ou o Espírito, que é a mesma coisa, pode-se ver oseu envoltório fluídico ou perispírito, quando está livre, como se vêo seu envoltório carnal quando ela está encarnada.

O Sr. Deschanel esforça-se por provar que o perispíritodeve ser matéria; mas é o que dizemos com todas as letras. Poracaso seria isto que o faz dizer que o Espiritismo é uma doutrinamaterialista? Mas a própria citação que ele faz o condena, poisdizemos em termos apropriados, sem as suas facécias espirituosas,que o perispírito não passa de um envoltório independente doEspírito. Onde nos ouviu dizer que é o perispírito que pensa? Vá láque ele não queira o perispírito; mas que nos diga como explica a

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ação do Espírito sobre a matéria sem intermediário? Não falaremosdas aparições contemporâneas, nas quais por certo não acredita;mas já que é tão aferrado à Bíblia, cuja defesa faz com tanto fervor,é que crê na Bíblia e no que ela diz. Que, então, nos explique asaparições dos anjos, dos quais ela faz menção a todo instante.Segundo a doutrina teológica, os anjos são Espíritos puros; masquando se tornam visíveis, dir-se-á que é o Espírito que se mostra?Então seria, desta vez, materializar o próprio Espírito, porquantosó a matéria pode afetar os nossos sentidos. Dizemos que oEspírito é revestido por um envoltório, que ele pode tornar visívele mesmo tangível à vontade. Só o envoltório é material, emboramuito etéreo, o que nada tira às qualidades particulares do Espírito.Assim explicamos um fato até então inexplicado e, por certo,somos menos materialistas do que aqueles que pretendem ser opróprio Espírito que se transforma em matéria para se fazer ver eagir. Os que não acreditavam na aparição dos anjos da Bíbliapodem agora acreditar, se acreditam na existência dos anjos, semque isso lhes repugne a razão. Por isso mesmo podemcompreender a possibilidade das manifestações atuais, visíveis,tangíveis e outras, desde que a alma ou Espírito possui umenvoltório fluídico, se é que acreditam na existência da alma.

Aliás, o Sr. Deschanel esqueceu uma coisa: expor a suateoria da alma ou Espírito. Como homem judicioso deveria ter dito:Estais equivocado por esta ou aquela razão; as coisas não são taisquais dizeis; eis o que são. Só então teríamos algo sobre o quediscutir. Mas é de notar que isto ainda não fez nenhum doscontraditores do Espiritismo: apenas negam, zombam ou injuriam.Não lhes conhecemos outra lógica, o que é muito poucoinquietante. Assim, absolutamente não nos preocupamos,porquanto, se nada propõem, é que aparentemente nada têm demelhor a propor. Só os sinceros materialistas têm um sistemadefinitivo: o nada após a morte. Desejamos que se divirtam muito,se isto os satisfaz. Infelizmente os que admitem a alma estãoimpossibilitados de resolver as mais vitais questões, apenas

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conforme sua teoria. É por isso que não têm outro recurso senãorecorrer à fé cega, razão pouco concludente para os que gostam dasrazões, sendo grande o seu número neste século de luzes. Ora, osespiritualistas nada explicam de modo satisfatório para ospensadores, o que leva estes a concluir que nada existe e que osmaterialistas talvez tenham razão. É isto que conduz tanta gente àincredulidade, ao passo que essas mesmas dificuldades encontramsolução muito simples e natural pela teoria espírita. Omaterialismo diz: “Nada há fora da matéria”. O espiritualismo diz:“Existe algo”, mas não o prova. O Espiritismo diz: “Existe algumacoisa”, e o prova; e, auxiliado por sua alavanca, explica o que atéentão era inexplicável. É o que faz que o Espiritismo reconduzatantos incrédulos ao espiritualismo. Não pedimos ao Sr. Deschanelsenão uma coisa: expor claramente a sua teoria e responder, nãomenos claramente, às diversas perguntas que dirigimos aoSr. Figuier.

Em suma, as objeções do Sr. Deschanel são pueris. Sefosse um homem sério; se tivesse criticado com conhecimento decausa e não se houvesse exposto ao pesado equívoco de tachar oEspiritismo de doutrina materialista, por certo teria procuradoaprofundar o assunto. Teria vindo nos encontrar, como tantosoutros, pedir esclarecimentos que com prazer lhe daríamos; maspreferiu falar conforme suas próprias idéias, que sem dúvida encaracomo o supremo regulador, como a unidade métrica da razãohumana. Ora, como sua opinião pessoal nos é indiferente, não nospreocupamos absolutamente em mudá-la, razão por que nãodemos um só passo nessa direção, nem o convidamos a nenhumareunião, como a nenhuma demonstração. Se ele quisesse saber, teriavindo. Como não veio é porque não o queria, e não seríamos nós aquerer mais do que ele.

Outro ponto a examinar é este: Uma crítica tãovirulenta e tão longa, fundamentada ou não, num jornal tãoimportante quanto o Débats, não poderia prejudicar a propagaçãodas idéias novas? Vejamos.

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Antes de mais, é preciso observar que não se cuida deuma doutrina filosófica como de uma mercadoria. Se, apoiado emprovas, um jornal afirmasse que tal comerciante vende mercadoriasavariadas ou adulteradas, ninguém seria tentado a ir experimentarse aquilo era verdade. Mas toda teoria metafísica é uma opinião que,fosse ela do próprio Deus, encontraria contraditores. Não vimos asmelhores coisas, as mais incontestáveis verdades de hoje serempostas ao ridículo quando de seu aparecimento pelos homens maiscapazes? Isso as impediu de serem verdadeiras e de se propagarem?Todo mundo o sabe. Eis por que a opinião de um jornalista sobrequestões desse gênero é apenas e sempre uma opinião pessoal; e setantos sábios se enganaram sobre coisas positivas, o Sr. Deschanelpode muito bem equivocar-se sobre uma coisa abstrata. Por poucoque ele tenha uma idéia, mesmo vaga, do Espiritismo sua acusaçãode materialismo é a sua própria condenação. Disso resulta que sequer ver e julgar por si mesmo: é tudo o que pedimos. Sob esseaspecto, mesmo sem o querer o Sr. Deschanel prestou umverdadeiro serviço à nossa causa, pelo que lhe agradecemos, poisele nos poupa despesas de publicidade; afinal, não somos ricos osuficiente para pagar um folhetim de 24 colunas. Por maisespalhado que esteja, o Espiritismo ainda não penetrou em todaparte; há muita gente que dele jamais ouviu falar. Um artigo de talimportância atrai a atenção, faz penetrar até mesmo no campoinimigo, onde causa deserções, porque se diz naturalmente que nãose ataca assim uma coisa sem valor. Com efeito, a gente não sediverte apontando baterias formidáveis contra uma praça que sepode tomar a fuzil. Julga-se a resistência pela exibição das forças deataque, e é o que desperta a atenção sobre coisas que talvezpudessem passar despercebidas.

Isto não passa de raciocínio. Vejamos se os fatos o vêmcontradizer. Julga-se do crédito de um jornal, das simpatias queencontra na opinião pública, pelo número de seus leitores. Omesmo deve dar-se com o Espiritismo, representado por algumasobras especiais. Só falaremos das nossas, porque lhes conhecemos

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o número exato. Pois bem! O Livro dos Espíritos, que passa porconter a mais completa exposição da doutrina, foi publicado em1857; a 2a edição em abril de 1860; a 3a em agosto de 1860, isto é,quatro meses mais tarde; e em fevereiro de 1861 a 4a edição estavaà venda. Assim, três edições em menos de um ano, provando quenem todo mundo é da opinião do Sr. Deschanel. Nossa nova obra,O Livro dos Médiuns, apareceu a 15 de janeiro de 1861 e já é precisopensar em preparar uma nova edição. Foi pedido da Rússia, daAlemanha, da Itália, da Inglaterra, da Espanha, dos EstadosUnidos, do México, do Brasil, etc.

Os artigos do Journal des Débats apareceram emnovembro último. Se tivessem exercido alguma influência sobre aopinião pública, teria sido precisamente sobre a Revista Espírita,que publicamos, que tal influência teria feito sentir-se. Ora, a 1o dejaneiro de 1861, data da renovação das assinaturas anuais, havia umterço a mais de assinantes em relação à mesma época do anoprecedente, e diariamente recebe novos que – coisa digna de nota– pedem todas as coleções dos anos anteriores, de modo que foinecessário reimprimi-las. Isto prova, portanto, que ela não pareceassim tão ridícula. De todos os lados, em Paris, na província, noestrangeiro, formam-se reuniões espíritas. Conhecemos mais decem delas nos Departamentos e estamos longe de as conhecertotalmente, sem contar todas as pessoas que disso se ocupamisoladamente ou no seio da família. Que dirão a isto os Srs.Deschanel, Figuier e gente da espécie? Que o número de loucosaumenta. Sim, aumenta de tal forma que em pouco tempo osloucos serão mais numerosos que as pessoas sensatas. Mas o quetais senhores, tão cheios de solicitude pelo bom-senso humano,devem deplorar, é ver que tudo quanto fizeram para deter omovimento produz resultado exatamente contrário. Querem sabera causa? É muito simples. Eles pretendem falar em nome da razão,e nada oferecem de melhor; uns dão como perspectiva o nada;outros, as chamas eternas: duas alternativas que agradam a muitopouca gente. Entre as duas escolhe-se a que é mais tranqüilizadora.

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Depois disso, senhores, ainda vos admirais de ver os homens selançarem nos braços do Espiritismo? Acreditáveis matá-lo e nóstivemos de lhes provar que o homenzinho ainda vive e viverá pormuito tempo.

Tendo demonstrado a experiência que os artigos do Sr.Deschanel, longe de prejudicar a causa do Espiritismo, a serviram,ao excitar nos que dele ainda não haviam ouvido falar o desejo deo conhecer, julgamos supérfluo discutir cada uma de suasasserções. Todas as armas têm sido empregadas contra estadoutrina: atacaram-na em nome da religião, a que ela serve em vezde prejudicar; em nome da Ciência, em nome do materialismo;prodigalizaram-lhe, sucessivamente, a injúria, a ameaça, a calúnia, eela a tudo resistiu, mesmo ao ridículo. Sob a nuvem das setas quelhe atiram, ela dá pacificamente a volta ao mundo e se implanta portoda parte, às barbas de seus inimigos mais encarniçados. Não estánisto matéria para séria reflexão e não é prova de que encontra econo coração do homem, ao mesmo tempo em que se acha sob asalvaguarda de uma força contra a qual vêm aniquilar-se os esforçoshumanos?

É notável que no momento em que apareceram osartigos do Journal des Débats, comunicações espontâneas tenhamocorrido em vários lugares, tanto em Paris quanto nosDepartamentos. Todas exprimem o mesmo pensamento. Aseguinte foi dada na Sociedade, a 30 de novembro último:

“Não vos inquieteis com o que o mundo pode escrevercontra o Espiritismo. Não é a vós que atacam os incrédulos, mas aopróprio Deus; mas Deus é mais poderoso do que eles. É uma eranova, entendei bem, que se abre ante vós; e os que buscam opor-seaos desígnios da Providência logo serão derrubados. Como foi ditoperfeitamente, longe de prejudicar o Espiritismo, o cepticismo ferea própria mão e ele mesmo se matará. Já que o mundo quer tornara morte onipotente pelo nada, deixai-o falar; não lhe oponhais

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senão a indiferença ao seu amargo pedantismo. Para vós a mortenão será mais essa deusa atroz que os poetas sonharam: a morte sevos apresentará como a aurora dos dedos de rosa de Homero”.

André Chénier

Sobre o mesmo assunto São Luís havia dito antes:

“Semelhantes artigos só fazem mal aos que osescrevem; nenhum mal fazem ao Espiritismo, concorrendo para oespalhar mesmo entre os seus inimigos”.

Um outro Espírito respondeu a um médico de Nîmes,que lhe perguntou o que pensava dos artigos:

“Deveis ficar satisfeitos com isto. Se vossos inimigos seocupam tanto convosco, é porque vos reconhecem algum valor evos temem. Deixai-os, pois, que digam e façam o que quiserem;quanto mais falarem, mais vos farão conhecer, e não vem longe otempo em que serão forçados a calar-se. Sua cólera prova a suafraqueza. Só a verdadeira força sabe dominar-se: tem a calma daconfiança. A fraqueza procura perturbar fazendo muito barulho”.

Querem agora uma amostra do emprego que certossábios fazem da ciência em proveito do Espiritismo? Citemos umexemplo.

Um dos nossos colegas da Sociedade Parisiense deEstudos Espíritas, o Sr. Indermuhle, de Berna, escreve-nos oseguinte:

“O Sr. Schiff, professor de Anatomia (não sei se é omesmo que tão engenhosamente descobriu o músculo estalante, doqual o Sr. Jobert de Lamballe tornou-se o editor responsável)11, deuaqui há algumas semanas um curso público sobre digestão.

11 Vide a Revista Espírita, junho de 1859.

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Certamente o curso era interessante; porém, depois de haver faladomuito sobre a cozinha e a Química, a propósito dos alimentos, eprovado que nenhuma matéria se aniquila; que pode dividir-se etransformar-se, mas que é encontrada na composição do ar, daágua e dos tecidos orgânicos, chegou à seguinte conclusão: ‘Assim,pois – diz ele – a alma, tal como o vulgo a entende, é justamente nosentido de que aquilo que chamamos alma se dissolve após a mortedo corpo, assim como o corpo material. Ela se decompõe para quese juntem novamente as matérias nela contidas, seja no ar, seja nosoutros corpos. É somente neste sentido que a palavra imortalidade sejustifica: do contrário, não’.

É assim que, em 1861, encarregados de instruir e deesclarecer os homens, os sábios lhes oferecem pedra em vez de pão.É preciso que se diga, em louvor da Humanidade, que a maioriados ouvintes estava muito pouco edificada e satisfeita com estaconclusão, tirada tão bruscamente; que muitos ficaramescandalizados. Quanto a mim, tive piedade desse homem. Setivesse atacado o governo, tê-lo-iam interditado e mesmo punido.Como se pode tolerar o ensino público do materialismo, essasubversão da sociedade?”

A essas judiciosas reflexões de nosso colega,acrescentaremos que uma sociedade materialista, tal qual certoshomens se esforçam em transformar a sociedade atual, nãopossuindo nenhum freio moral, é a mais perigosa para qualquerespécie de governo. Talvez o materialismo jamais tenha sidoprofessado com tanto cinismo. Aqueles que são retidos por umpouco de pudor se compensam arrastando na lama o que o podedestruir. Mas, por mais que façam, são as convulsões de sua agonia.E, diga o que disser o Sr. Deschanel, é o Espiritismo que lhe daráo golpe de misericórdia.

Limitamo-nos a enviar a seguinte carta ao Sr.Deschanel:

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Senhor,

Publicastes dois artigos no Journal des Débats de 15 e 29de novembro último, nos quais apreciais o Espiritismo, do vossoponto de vista. O ridículo que lançais sobre esta doutrina e,conseqüentemente, sobre mim e sobre todos que a professam,autorizava-me a dirigir uma refutação, que eu pediria fosse insertanaquele jornal. Não o fiz porque, por maior extensão que lhe desse,sempre teria sido insuficiente para as pessoas estranhas a essaciência e inútil aos que a conhecem. A convicção não é adquiridasenão por estudos sérios, feitos sem prevenção, sem idéiaspreconcebidas e por numerosas observações, feitas com a paciênciae a perseverança de quem quer realmente saber e compreender. Eu precisariater dado aos vossos leitores um verdadeiro curso, que teriaultrapassado os limites de um artigo. Mas como vos creio umhomem muito honrado para atacar sem admitir defesa, limitar-me-ei a lhes dizer, nesta simples carta, que vos rogo a gentileza depublicar no mesmo jornal, que eles encontrarão em O Livro dosEspíritos ou em O Livro dos Médiuns, que acabo de publicar pelosSrs. Didier & Cia., uma resposta suficiente, em minha opinião.Deixo ao julgamento deles o cuidado de confrontar os vossosargumentos e os meus. Os que quiserem, previamente, ter umaidéia sucinta e com pouca despesa, poderão ler a pequena brochuraintitulada: O que é o Espiritismo? e que custa somente 60 centavos,bem como a Carta de um católico sobre o Espiritismo, do Sr. Dr.Grand, antigo vice-cônsul de França. Encontrarão ainda algumasreflexões sobre o vosso artigo no número do mês de março daRevista Espírita, que publico.

Todavia, há um ponto que eu não poderia passar emsilêncio. É o trecho do vosso artigo onde dizeis que o Espiritismo sebaseia no mais grosseiro materialismo. Ponho de lado as expressõesofensivas, e pouco parlamentares, às quais tenho por hábito nãoprestar atenção, limitando-me a dizer que essa passagem contémum erro, não direi grosseiro, pois o termo seria incivil, mas capital,

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que me importa realçar para a instrução de vossos leitores. Comefeito, o Espiritismo tem por base essencial, e sem a qual não terianenhuma razão de ser, a existência de Deus, da alma, suaimortalidade, as penas e as recompensas futuras. Ora, esses pontos sãoa mais absoluta negação do materialismo, que não admite nenhumdeles. A Doutrina Espírita não se limita a afirmá-los; não os admitea priori: é a sua demonstração patente. Eis por que já reconduziuum tão grande número de incrédulos, que já haviam abjuradoqualquer sentimento religioso.

Ela pode não ser espiritual, mas com toda certeza éessencialmente espiritualista, isto é, contrária ao materialismo,porquanto não se conceberia uma doutrina da alma imortal,fundada sobre a não-existência da alma. O que conduz tanta genteà incredulidade absoluta é a maneira pela qual são apresentados aalma e o seu futuro. Vejo diariamente as pessoas dizerem: “Se desdea infância me tivessem ensinado essas coisas, como o fazeis, eujamais teria sido incrédulo, porque agora compreendo o que antesnão compreendia”. Assim, diariamente tenho a prova de que bastaexpor esta doutrina para conquistar-lhe numerosos partidários.

Aceitai, etc.

A Cabeça de Garibaldi

O Siècle de 4 de fevereiro contempla uma carta do Dr.Riboli, que foi a Caprera examinar a cabeça de Garibaldi, do pontode vista frenológico. Não é nossa intenção apreciar o julgamentodo doutor e, menos ainda, a personagem política; mas a leitura dacarta nos forneceu algumas reflexões que, naturalmente, aqui têmseu lugar.

O Dr. Riboli acha que a organização cerebral deGaribaldi corresponde perfeitamente a todas as eminentesfaculdades intelectuais e morais que o distinguem, e acrescenta:

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“Podeis sorrir de meu fanatismo, mas possoassegurar-vos que esse momento que passei examinando essa cabeçanotável foi o mais feliz de minha vida. Vi, meu caro amigo, essegrande homem prestar-se como a uma criança a tudo quanto lhepedia; esta cabeça, que contém um mundo, eu a tive entre as mãosdurante mais de vinte minutos, sentindo a cada instante distinguir-sesob os meus dedos as desigualdades e os contrastes de seu gênio...

“Garibaldi tem 1 metro e 64 centímetros de altura.Medi todas as proporções, a largura das espáduas, o comprimentodos braços e das pernas, a cintura; é um homem bemproporcionado, forte e de temperamento nervoso, sanguíneo.

“O volume da cabeça é notável. A principalfenomenalidade é a altura do crânio, medido da orelha ao topo dacabeça, que é de 20 centímetros. Esta predominância particular detoda a parte superior da cabeça denota, à primeira vista e semexame prévio, uma organização excepcional; o desenvolvimento docrânio na sua parte superior, sede dos sentimentos, indica apreponderância de todas as faculdades nobres sobre os instintos.Em suma, a craniologia da cabeça de Garibaldi, após exame,apresenta uma fenomenalidade original das mais raras, pode-sedizer, sem precedentes; a harmonia de todos os órgãos é perfeita, ea resultante matemática de seu conjunto apresenta em alto grau: aabnegação antes de tudo e em tudo; a prudência e o sangue-frio; anatural austeridade dos costumes; a meditação quase perpétua; aeloqüência grave e exata; a lealdade dominante; a deferência incrívelcom os amigos a ponto de sofrer por isto; sua perceptibilidade comrespeito aos homens que o cercam é, sobretudo, dominante.

“Numa palavra, meu caro, sem vos aborrecer comtodas as comparações, com todos os contrastes de causalidade, dehabitatividade, de construtividade, de destrutividade12, é uma

12 Eis aí alguns neologismos, que, entretanto, não são mais barbarismosdo que Espiritismo e perispírito.

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cabeça maravilhosa, orgânica, sem desfalecimentos, que a Ciênciaestudará e tomarás por modelo, etc.”

A carta é escrita inteiramente com um entusiasmo quedenota a mais profunda e sincera admiração pelo herói italiano.Entretanto, queremos crer que as observações do autor nãotenham sido influenciadas por nenhuma idéia preconcebida; masnão é disto que se trata: aceitamos os seus dados frenológicos comoexatos e, se não o fossem, Garibaldi não seria nem mais nemmenos do que é. Sabe-se que os discípulos de Gall formam duasescolas: a dos materialistas e a dos espiritualistas. Os primeirosatribuem as faculdades aos órgãos; para eles os órgãos são a causa,as faculdades são o produto, de onde se segue que fora dos órgãosnão há faculdades; em outras palavras, quando o homem morre,tudo está morto. Os segundos admitem a independência dasfaculdades; as faculdades são a causa; o desenvolvimento dosórgãos, o efeito. De onde se segue que a destruição dos órgãos nãoprovoca o aniquilamento das faculdades.

Não sabemos a qual das duas escolas pertence o autorda carta, porquanto sua opinião não se revela por nenhuma palavra.Contudo, supondo que as observações acima tenham sido feitaspor um frenologista materialista, perguntamos que impressãodeveria ele sentir à idéia de que essa cabeça, que contém um mundo, sódeve o seu gênio ao acaso ou ao capricho da Natureza, que lhe teriadado maior massa cerebral num ponto que em outro. Ora, como oacaso é cego e não tem desígnio premeditado, poderiaperfeitamente ter aumentado o volume de uma outra circunvoluçãodo cérebro e assim dar, sem o querer, todo um outro curso às suasinclinações. Tal raciocínio aplica-se necessariamente a todos oshomens transcendentes, seja a que título for. Onde estaria o seumérito, se não dependesse senão do deslocamento de pequenaporção de substância cerebral? Se um simples capricho da Naturezapode, em vez de um grande homem, fazer um homem vulgar? Emvez de um homem de bem, um celerado?

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Mas isto não é tudo. Considerando hoje essa cabeçapoderosa, não haverá algo de terrível ao pensar que talvez amanhãnada mais reste desse gênio, absolutamente nada, senão a matériainerte, que será pasto dos vermes? Sem falar das funestasconseqüências de semelhante sistema, caso fosse verossímil,diremos que está repleto de contradições inexplicáveis, que os fatosdemonstram a cada passo. Ao contrário, tudo se explica pelosistema espiritualista: as faculdades não são produto dos órgãos,mas atributos da alma, cujos órgãos não passam de instrumentos aserviço de sua manifestação. Sendo a faculdade independente, suaatividade estimula o desenvolvimento do órgão, como o exercíciode um músculo lhe aumenta o volume. O ser pensante é o serprincipal, cujo corpo é apenas um acessório destrutível. O talento,então, é um mérito real, porque é fruto do trabalho, e não oresultado de uma matéria mais ou menos abundante. Com osistema materialista, o trabalho, com o auxílio do qual se adquire otalento, é inteiramente perdido com a morte, que muitas vezes nãodeixa tempo de o desfrutar. Com a alma, o trabalho tem sua razãode ser, porque tudo que a alma adquire serve ao seudesenvolvimento; trabalha-se para um ser imortal, e não para umcorpo que talvez só tenha algumas horas de vida.

Dirão, no entanto, que o gênio não se adquire: é inato.Certamente. Mas, então, por que dois homens, nascidos nasmesmas condições, são tão diferentes do ponto de vista intelectual?Por que teria Deus favorecido a um mais que ao outro? Por que aum teria dado os meios de progredir, recusando-os ao outro? Qualo sistema filosófico que resolveu este problema? Só a doutrina dapreexistência da alma o pode explicar: o homem de gênio já viveu,tem aquisição, experiência e, por isso, mais direito ao nossorespeito, do que se devesse a sua superioridade a um favor nãojustificado da Providência, ou a um capricho da Natureza.Preferimos acreditar que o Dr. Riboli tenha visto, na cabeçadaquele que, por assim dizer, não tocava senão com um temorrespeitoso, algo mais digno de sua veneração que uma simples

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massa de carne, e que não a tenha rebaixado ao papel de ummecanismo organizado. A gente se lembra daquele trapeiro que,olhando um cão morto num canto abandonado, dizia de si para si:Eis o que será de nós! Pois bem! Vós todos que negais a existênciafutura, vede a que ponto reduzis os maiores gênios!

Para mais detalhes sobre a questão da frenologia e dafisiognomonia, remetemos o leitor ao artigo publicado na RevistaEspírita do mês de julho de 1860.

Assassinato do Sr. Poinsot

O mistério que ainda cerca esse deplorávelacontecimento fez surgir em muita gente a idéia de que, evocandoo Espírito da vítima, poder-se-ia chegar a conhecer a verdade.Numerosas cartas nos foram enviadas a respeito; como a questãorepousa num princípio de certa gravidade, julgamos útil dar aconhecer a resposta a todos os nossos leitores.

Jamais fazendo do Espiritismo objeto de curiosidade,não tínhamos pensado em evocar o Sr. Poinsot. Todavia, a pedidoreiterado de um de nossos correspondentes, que havia recebidouma suposta comunicação dele, e por nosso intermédio desejavasaber se era autêntica, tentamos fazê-lo há poucos dias. Conformenosso hábito, perguntamos ao nosso guia espiritual se tal evocaçãoera possível e se tinha sido realmente ele que se havia manifestadoao nosso correspondente. Eis as respostas obtidas:

“O Sr. Poinsot não pode responder ao vosso apelo; aindanão se comunicou com ninguém. Deus o proíbe, no momento”.

1. Pode-se saber o motivo?Resp. – Sim: porque revelações desse gênero

influenciariam a consciência dos juízes, que devem agir com totalliberdade.

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2. Entretanto, ao esclarecerem os juízes, essasrevelações talvez pudessem poupar-lhes erros lamentáveis e atémesmo irreparáveis.

Resp. – Não é por esse meio que devem seresclarecidos. Deus lhes quer deixar a inteira responsabilidade desuas sentenças, como deixa a cada homem a responsabilidade deseus atos; não lhes quer poupar o trabalho das pesquisas, nem omérito de as haver feito.

3. Mas, na falta de informações suficientes, pode umculpado escapar à justiça?

Resp. – Credes que ele escape à justiça de Deus? Se eledeve ser ferido pela justiça dos homens, Deus saberá fazê-lo cairem suas mãos.

4. Assim entendemos, para o culpado; mas se uminocente fosse condenado, não seria um grande mal?

Resp. – “Deus julga em última instância, e o inocentecondenado injustamente pelos homens terá a sua reabilitação. Aliás,essa condenação pode ser para ele uma prova útil ao seuadiantamento; mas, por vezes, também pode ser a justa punição deum crime, da qual terá escapado em outra existência.

“Lembrai-vos de que os Espíritos têm por missão vosinstruir na via do bem, e não facilitar o caminho terreno, deixado àatividade de vossa inteligência. É pelo afastamento do fimprovidencial do Espiritismo que vos expondes a serdes enganadospela turba de Espíritos mentirosos que se agitam incessantementeem torno de vós”.

Depois da primeira resposta, os assistentes discutiamsobre os motivos dessa interdição e, como que para justificar oprincípio, um Espírito fez um médium escrever: Vou trazê-lo...ei-lo; Pouco depois: “Como sois amável em querer conversarcomigo; isto me é tanto mais agradável quanto tenho muitas coisasa vos dizer”. Essa linguagem pareceu suspeita da parte de um

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homem como o Sr. Poinsot, sobretudo em razão da resposta queacabava de dar. Eis por que pediram que afirmasse sua identidadeem nome de Deus. Então o Espírito escreveu: “Meu Deus, nãoposso mentir. Contudo, desejava muito conversar com tão amávelsociedade, mas não me quereis; adeus”. Foi então que o nosso guiaespiritual acrescentou: “Eu vos disse que esse Espírito não poderesponder esta noite; Deus o proíbe de manifestar-se. Se insistirdes,sereis enganados”.

Observação – É evidente que se os Espíritos pudessempoupar pesquisa aos homens, estes não se dariam ao trabalho paradescobrir a verdade, pois que ela lhes chegaria por si mesma.Assim, o mais preguiçoso poderia sabê-la tanto quanto o maislaborioso, o que não seria justo. Isto é um princípio geral. Aplicadoao caso do Sr. Poinsot, não é menos evidente que se o Espíritodeclarasse um indivíduo inocente ou culpado, e os juízes nãoachassem provas suficientes de uma ou outra afirmação, suaconsciência ficaria perturbada; que a opinião pública poderiaenganar-se por prevenções injustas. Não sendo perfeito o homem,devemos concluir que Deus sabe melhor que ele o que lhe deve serrevelado, ou oculto. Se uma revelação deve ser feita por meiosextra-humanos, Deus lhe sabe dar um cunho de autenticidadecapaz de levantar todas as dúvidas, como testemunha o fatoseguinte:

Nas vizinhanças das minas, no México, uma fazendatinha sido incendiada. Numa reunião onde cuidavam demanifestações espíritas (há diversas naquele país, ondeprovavelmente ainda não chegaram os artigos do Sr. Deschanel,razão por que lá se acham tão atrasados), um Espírito secomunicava por batidas; disse que o culpado estava entre osassistentes; a princípio duvidam, crendo numa mistificação. OEspírito insiste e designa um dos indivíduos presentes; espantam-se. Este revela presença de espírito, mas o Espírito parece relutar, eo faz tão bem que prendem o homem que, premido por perguntas,

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acaba por confessar o crime. Como se vê, os culpados não devemfiar-se muito na discrição dos Espíritos, que, muitas vezes, são osinstrumentos de que Deus se serve para os castigar. Como o Sr.Figuier explicaria tal fato? É intuição, hipnotismo, biologia,superexcitação do cérebro, concentração do pensamento,alucinação, que ele admite sem crer na independência do Espírito eda matéria? Resolvei tudo isto, se puderdes; sua própria solução éum problema e ele deveria dar a solução de sua solução. Mas porque um Espírito não revelaria o assassino do Sr. Poinsot, como ofez com aquele incendiário? Pedi, então, contas a Deus de suasações; perguntai ao Sr. Figuier, que julga saber mais que Ele.

Conversas Familiares de Além-TúmuloSRA. BERTRAND (HAUTE-SAÔNE)

Falecida em 7 de fevereiro de 1861. Evocada na SociedadeEspírita de Paris a 15 do mesmo mês.

Nota – A Sra. Bertrand havia feito um estudo sério doEspiritismo, cuja doutrina professava, compreendendo todo o seualcance filosófico.

1. Evocação.Resp. – Eis-me aqui.

2. Tendo vossa correspondência nos levado a apreciar-vos, e conhecendo vossa simpatia pela Sociedade, pensamos quenão vos seria desagradável chamar-vos tão cedo.

Resp. – Vedes que estou aqui.

3. Um outro motivo me impele pessoalmente a fazê-lo.Tenciono escrever à senhorita sua filha, a propósito doacontecimento que acaba de atingi-la e estou certo de que se sentiráfeliz ao saber do resultado de nossa conversa.

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Resp. – Certamente; ela o espera, pois eu lhe haviaprometido me revelar tão logo me evocassem.

4. Esclarecida como éreis sobre o Espiritismo, epenetrada dos princípios desta doutrina, vossas respostasser-nos-ão duplamente instrutivas. Inicialmente, quereis dizer-nosse demorastes muito a vos reconhecer e se já recobrastes aplenitude de vossas faculdades?

Resp. – A plenitude de minhas antigas faculdades, sim;a plenitude de minhas novas faculdades, não.

5. É costume perguntar aos vivos como passam. Masaos Espíritos perguntamos se são felizes. É com profundosentimento de simpatia que vos fazemos esta última pergunta.

Resp. – Obrigada, meus amigos. Ainda não sou feliz, nosentido espiritualista do termo. Mas sou feliz pela renovação domeu ser, deslumbrado e em êxtase; pela visão das coisas que nossão reveladas, mas que ainda compreendemos imperfeitamente, pormelhor médium ou espírita que sejamos.

6. Em vida havíeis feito uma idéia do mundo espíritapelo estudo da doutrina. Podeis dizer-nos se encontrastes as coisastais quais as tínheis imaginado?

Resp. – Mais ou menos, como vemos os objetos naincerteza da semi-escuridão. Mas como são diferentes quando a luzbrilhante os revela!

7. Assim, o quadro que nos é feito da vida espírita nadatem de exagerado, nada de ilusório!

Resp. – Ele é amesquinhado pelo vosso Espírito, quenão pode compreender as coisas divinas senão suavizadas e veladas.Agimos convosco como fazeis com as crianças, às quais apenasmostrais uma parte das coisas predispostas para o seuentendimento.

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8. Testemunhastes o instante da morte do vosso corpo? Resp. – Esgotado por longos sofrimentos, meu corpo

não teve de passar por uma grande luta; minha alma desprendeu-sedele como o fruto maduro que cai da árvore. O aniquilamento completode meu ser impediu-me de sentir a derradeira angústia da agonia.

9. Poderíeis descrever vossas sensações no momentodo despertar?

Resp. – Não há despertar, ou, antes, pareceu-me quehavia continuidade; como quando voltamos para casa após curtaausência, pareceu-me que apenas alguns minutos me separavam doque eu acabava de deixar. Errante em volta do meu leito, via-meestendida, transfigurada e não podia afastar-me, retida que era, oupelo menos ao que me parecia, por um último laço àqueleinvólucro corporal, que tanto me havia feito sofrer.

10. Vistes imediatamente outros Espíritos vos cercar?Resp. – Logo vieram me receber. Então desviei o

pensamento do meu eu terreno e, transportado, meu eu espiritualabismou-se no delicioso prazer das coisas novas e conhecidas quereencontrava.

11. Estáveis entre os membros da família durante acerimônia fúnebre?

Resp. – Vi levarem o meu corpo, mas logo me afastei.O Espiritismo desmaterializa por antecipação e torna mais súbita apassagem do mundo terreno ao mundo espiritual. Eu não tinhalevado de minha migração na Terra nem vãos pesares nemcuriosidade pueril.

12. Tendes algo de particular a dizer à senhorita vossafilha, que partilhava de vossas crenças, e várias vezes me escreveuem vosso nome?

Resp. – Eu lhe recomendo dar aos seus estudos umcaráter mais sério; transformar a dor estéril em lembrança piedosae fecunda; que não esqueça que a vida prossegue, sem interrupção,

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e que os frívolos interesses do mundo empalidecem ante a grandepalavra: Eternidade! Aliás, minha lembrança pessoal, terna e íntima,em breve lhe será transmitida.

13. Em janeiro eu vos remeti um cartão-retrato. Comojamais me vistes, podeis dizer se me reconheceis?

Resp. – Mas eu não vos reconheço; eu vos vejo.

– Não recebestes aquele cartão?Resp. – Não me lembro.

14. Eu teria várias perguntas importantes a vos fazersobre os fatos extraordinários que se passaram em vossa casa e quenos comunicastes. Penso que poderíeis nos dar, a respeito,interessantes explicações; mas a hora avançada e a fadiga domédium me obrigam a prorrogá-las. Limito-me a algumasperguntas para terminar.

– Embora vossa morte seja recente, já deixastes aTerra? Percorrestes os espaço e visitastes outros mundos?

Resp. – O termo visitar não corresponde ao movimentotão rápido como o é a palavra, a qual nos faz, tão rápido quanto opensamento, descobrir sítios novos. A distância não passa de umapalavra, como o tempo não é para nós senão uma mesma hora.

15. Preparando as perguntas que devemos dirigir a umEspírito, temos geralmente uma evocação antecipada. Podeis dizerse, nesse caso, estáveis prevenida de nossa intenção, e se vosencontráveis perto de mim ontem, enquanto preparava asperguntas?

Resp. – Sim; já sabia tudo que me diríeis hoje eresponderei com propriedade às perguntas que reservastes.

16. Em vossa vida teríamos sido muito felizes de vos terentre nós; mas desde que isso não foi possível, somos igualmentefelizes em vos ter em Espírito e vos agradecemos a solicitude emresponder ao nosso apelo.

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Resp. – Meus amigos, eu acompanhava os vossosestudos com interesse. Agora, porém, que posso habitar entre vóscomo Espírito, aconselho a vos ligardes mais ao Espírito do que àletra.

Adeus.

A carta seguinte nos foi dirigida a propósito destaevocação:

“Senhor,

É com um sentimento de profundo reconhecimentoque venho agradecer-vos, no meu e em nome de meu pai, por vosterdes antecipado ao nosso desejo de receber, por vossointermédio, as notícias daquela que choramos.

As numerosas provações morais e físicas que minhaquerida e boa mãe teve de sofrer durante sua existência, suapaciência em suportá-las, seu devotamento, sua completaabnegação faziam-me esperar que estivesse feliz. Mas a certeza quenos acabais de dar, senhor, é um grande consolo para nós que aamávamos tanto e queremos a sua felicidade antes da nossa.

Minha mãe era a alma da casa, senhor. Não precisodizer o vazio que sua ausência deixou; sofremos por não mais a ver,mais do que poderia exprimir e, no entanto, experimentamos umacerta quietude por não vê-la mais nas dores atrozes que padecia.Minha pobre mãe era uma mártir. Deve ter uma bela recompensapela paciência e doçura com que suportou todas as suas angústias.Sua vida não passou de uma longa tortura de espírito e de corpo.Seus elevados sentimentos, sua fé numa outra existência asustentaram; tinha como que um pressentimento e uma lembrançavelada do mundo dos Espíritos. Muitas vezes eu a surpreendiaolhando com piedade as coisas do nosso planeta; então me dizia:Nada aqui em baixo pode bastar-me; tenho a nostalgia de um outro mundo.

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Nas respostas que vos deu minha cara e adorada mãe,senhor, reconhecemos perfeitamente a sua maneira de pensar e dese exprimir; ela gostava de se servir de imagens. Somente estouadmirada de que não se tivesse lembrado do vosso cartão-retrato,que lhe tinha proporcionado tão grande e vivo prazer. Eu vosdeveria ter agradecido de sua parte; porém, minhas numerosasocupações durante os últimos tempos da moléstia de minhavenerada mãe não me permitiram fazê-lo. Creio que mais tarde elase lembrará melhor. No momento está inebriada nos esplendoresde sua nova vida. A existência que acaba de concluir não lhe parecesenão como um sonho penoso, já bem longe dela. Esperamos, pois,meu pai e eu, que ela nos venha dizer algumas palavras de afeição,de que temos muita necessidade. Seria indiscrição, senhor, pedirque nos comunicásseis quando minha boa mãe vos falar de nós?Fizestes tanto bem vindo falar dela, vindo dizer de sua parte quenão sofre mais! Ah! obrigada ainda, senhor! Rogo a Deus, de almae coração, que vos recompense. Deixando-me, minha mãe queridame priva da melhor das mães, da mais terna das amigas. Preciso dacerteza de sabê-la feliz e de minha crença no Espiritismo paradar-me um pouco de força. Deus ma sustentou; minha coragem foimaior do que eu esperava.

Aceitai, etc.”

Observação – Que os incrédulos riam do Espiritismo oquanto quiserem; que seus adversários mais ou menos interessadoso exponham ao ridículo; que mesmo o anatematizem, e não se lhetirará essa força consoladora que faz a alegria do infeliz, e que o faztriunfar da má vontade dos indiferentes, a despeito de seus esforçospara o abater. Os homens têm sede de felicidade; quando não aencontram na Terra, não é um grande alívio ter a certeza deencontrá-la na outra vida, se se fez o que é preciso para merecê-la?Quem, pois, mais lhe suaviza os males da Terra? Será omaterialismo, com a horrível expectativa do nada? a perspectiva daschamas eternas, às quais não escapa um só em milhões? Não vos

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enganeis: esta perspectiva é ainda mais horrível que a do nada; eispor que aqueles, cuja razão se recusa a admiti-la, são levados aomaterialismo. Quando se apresentar aos homens o futuro demaneira racional, não haverá mais materialistas. Que não seadmirem de ver as idéias espíritas acolhidas com tanta solicitudepelas massas, porque essas idéias aumentam a coragem, ao invés deabatê-la.

O exemplo da felicidade é contagioso. Quando todosos homens virem em torno de si pessoas felizes em razão doEspiritismo, lançar-se-ão nos seus braços como numa tábua desalvação, porque preferirão sempre uma doutrina que sorri e fala àrazão àquelas que apavoram. O exemplo que acabamos de citar nãoé o único do gênero; eles se nos oferecem aos milhares, e a maioralegria que Deus nos reservou aqui na Terra é a detestemunharmos os benefícios e os progressos de uma crença quenossos esforços tendem a espalhar. As pessoas de boa vontade, asque nela vêm beber consolação são tão numerosas que nãopoderíamos roubar-lhes nosso tempo, ocupando-nos dosindiferentes, que não têm o menor desejo de se convencer. Os quevêm a nós são suficientes para o absorver; por isso não vamos àfrente de ninguém. Eis por que também não o perdemos a rebuscarem campo estéril. A vez dos outros virá quando aprouver a Deuslevantar o véu que os cega, tempo esse que virá mais cedo do quepensam, para a glória de uns e a humilhação de outros.

SENHORITA PAULINE M...

(Enviado pelo Sr. Pichon, médium de Sens)

1. Evocação.Resp. – Aqui estou, meus bons amigos.

2. Vossos pais nos pediram que vos perguntássemos sesois mais feliz do que na existência terrena. Teríeis a gentileza deno-lo dizer?

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Resp. – Oh! sim; sou mais feliz do que eles.

3. Algumas vezes assistis vossa mãe?Resp. – Eu quase não a deixo. Mas ela não pode

compreender todo o encorajamento que lhe dou; sem isto nãoestaria tão mal. Ela chora por minha causa e eu sou feliz! Deus mechamou a si: é um favor. Se todas as mães estivessem bemcompenetradas das luzes do Espiritismo, quanta consolação paraelas! Dizei a minha pobre mãe que se resigne, porquanto, sem isso,afastar-se-á de sua filha querida. Quem não for dócil às provas quelhe envia o seu Criador, falha ao objetivo de suas provas. Que elacompreenda bem isto, senão não me verá tão cedo. Ela me perdeumaterialmente, mas me encontrará espiritualmente. Que trate, pois,de se restabelecer para assistir às vossas sessões; poderei, então,consolá-la melhor. Eu mesma serei mais feliz.

4. Poderíeis manifestar-vos a ela de modo maisparticular? Poderia ela servir-vos de médium? Assim receberia maisconsolação do que por nosso intermédio.

Resp. – Que ela tome um lápis, como o fazeis, e tentareidizer-lhe alguma coisa. Isto nos é muito difícil, quando nãoencontramos as disposições requeridas para tanto.

5. Poderíeis dizer-nos por que Deus vos retirou tãojovem do seio da família, da qual éreis a alegria e a consolação?

Resp. – Relede.

6. Poderíeis dizer-nos o que sentistes no instante damorte?

Resp. – Uma perturbação; não acreditava estar morta.Fiquei com tanta pena de deixar minha boa mãe! Eu não mereconhecia. Mas quando o compreendi, não foi a mesma coisa.

7. Agora estais completamente desmaterializada?Resp. – Sim.

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8. Poderíeis dizer quanto tempo ficastes no estado deperturbação?

Resp. – Fiquei seis de vossas semanas.

9. Em que lugar estáveis quando vos reconhecestes?Resp. – Perto de meu corpo. Vi o cemitério e

compreendi.

Mãe! estou sempre ao teu lado. Vejo-te e compreendomuito melhor do que quando tinha o meu corpo. Deixa, pois, delado essa tristeza, pois não perdeste senão o pobre corpo que mehavias dado. Tua filha está sempre aí. Não chores mais; aocontrário, rejubila-te: é o único meio de te fazer o bem, e a mimtambém. Nós nos compreenderemos melhor; dir-te-ei muitascoisas agradáveis; Deus mo permitirá; nós oraremos juntas. Virásentre estes homens que trabalham para o bem da Humanidade;tomarás parte em seus trabalhos; eu te ajudarei: isto servirá para onosso mútuo adiantamento.

Tua filha que te ama,Pauline

P. S. Dareis isto a minha mãe. Ser-vos-ei grata.

10. Pensais que a convalescença de vossa mãe seja aindalonga?

Resp. – Isso vai depender das consolações que recebere de sua resignação.

11. Lembrais de todas as vossas reencarnações?Resp. – Não; não de todas.

12. A penúltima ocorreu na Terra?Resp. – Sim; eu estava numa grande casa de comércio.

13. Em que época foi? Resp. – No reinado de Luís XIV; no começo.

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14. Lembrais de algumas personagens desse tempo?Resp. – Conheci o Sr. Duque de Orléans, que comprava

em nossa casa. Também conheci Mazarino e uma parte de suafamília.

15. Vossa última existência serviu muito ao vossoadiantamento como Espírito?

Resp. – Não me pôde servir muito porque não sofrinenhuma prova. Foi para meus pais, antes que para mim, ummotivo de prova.

16. E vossa penúltima existência? Foi mais proveitosa? Resp. – Sim, porque nela fui muito provada. Reveses de

fortuna; a morte de todas as pessoas que me eram caras; fiquei só.Mas, confiante em meu Criador, tudo suportei com resignação.Dizei a minha mãe que faça como fiz. Que aquele que lhe levarminha consolação, por mim aperte a mão de todos os meusparentes. Adeus.

HENRI MURGER

Nota – Numa sessão espírita íntima, que ocorria na casade um colega da Sociedade, em 6 de fevereiro de 1861, o médiumescreveu espontaneamente o seguinte:

“Quanto maior o espaço celeste, maior a atmosfera,mais belas as flores, mais doces os frutos e as aspirações sãosatisfeitas além mesmo da ilusão. Salve, nova pátria! Salve, novamorada! Salve, felicidade, amor! Como é pálida nossa breve estaçãona Terra, e como aquele que soltou o suspiro de alívio deve sentir-se feliz por haver deixado o Tártaro pelo Céu! Salve a bonançaverdadeira! Salve a tranqüilidade legítima! Salve, sonhos realizados!adormeci alegre porque sabia que ia despertar feliz. Ah! obrigadoaos meus amigos por sua doce lembrança!

H. Murger

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As perguntas e respostas seguintes foram feitas naSociedade, a 8 de fevereiro:

1. Quarta-feira passada viestes espontaneamentecomunicar-vos em casa de um de nossos colegas e ali ditastes umapágina encantadora. Entretanto, lá não havia ninguém que vosconhecesse particularmente. Quereis dizer, por favor, o que nosproporcionou a honra de vossa visita?

Resp. – Vim fazer ato de vida para ser evocado hoje.

2. Fostes levado às idéias espíritas?Resp. – Entre as duas; eu suspeitava; depois me deixava

levar facilmente por minhas inspirações.

3. Parece que a vossa perturbação durou pouco, poisvos exprimis tão prontamente, com tanta facilidade e clareza!

Resp. – Morri com perfeito conhecimento de mimmesmo; conseqüentemente, não tive senão que abrir os olhos doEspírito, tão logo se me fecharam os olhos da carne.

4. Esse ditado pode ser considerado como um relato devossas primeiras impressões do mundo onde estais agora. Poderíeisdescrever com mais precisão o que se passou em vós, desde oinstante em que a alma deixou o corpo?

Resp. – Inundou-me a alegria; revi rostos queridos, quesupunha perdidos para sempre. Apenas desmaterializado, só tivesensações quase terrenas.

5. Poderíeis dar-nos uma apreciação, do vosso ponto devista atual, de vossa principal obra: La Vie de Bohème?

Resp. – Como quereis que, deslumbrado como estoupelos esplendores desconhecidos da ressurreição, eu faça umbalanço dessa pobre obra, pálido reflexo de uma juventudesofredora?

6. Um de vossos amigos, o Sr. Théodore Pelloquet,publicou no jornal Siècle de 6 deste mês, um artigo bibliográfico

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sobre vós. Poderíeis dirigir-lhe algumas palavras, bem como aoutros amigos e confrades em literatura, entre os quais devemencontrar-se alguns crentes na vida futura?

Resp. – Dir-lhes-ei que o sucesso presente é semelhanteao ouro transformado em folhas secas. O que nós cremos, o queesperamos nós outros, perscrutadores insaciáveis da vidaparisiense, é o sucesso, sempre o sucesso. Jamais os nossos olhos seerguem para o céu, a fim de pensar naquele que julga as nossasobras em última instância. Minhas palavras os mudarão? Não;arrastados pela vida impetuosa que consome crença e mocidade,ouvirão distraídos e passarão esquecidos.

7. Vedes aqui a Gérard de Nerval, que acaba de falar devós?

Resp. – Eu o vejo, e a Musset, bem como a amável enobre Delphine. Vejo a todos. Ajudam-me; encorajam-me;ensinam-me a falar.

Observação – Esta pergunta foi motivada pelacomunicação seguinte, que um médium da Sociedade tinha escritoespontaneamente, no começo da sessão.

“Um irmão chegou entre nós, feliz e disposto. Eleagradece ao céu, como há pouco acabastes de ouvir, por sualibertação um pouco tardia. Muito longe, agora, a tristeza, aslágrimas e o sorriso amargo; em vosso meio, como percebemosmuito bem agora, o riso jamais é franco. O que há de lamentável erealmente penoso na Terra, é que é preciso rir; rir forçadamente ede um nada, sobretudo na França, quando se estaria disposto asonhar solitariamente. O que há de detestável para o coração queesperou muito, é a desilusão, esse esqueleto repugnante, cujoscontornos em vão querem palpar: trêmula e inquieta, a mão sóencontra ossos. Que horror! Para aquele que creu no amor, nareligião, na família, na amizade; aqueles que podem impunementeolhar de frente essa máscara horrível que petrifica, ah! esses vivem,

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embora petrificados; mas os que cantam como boêmios, ah! essesmorrem bem depressa: viram a cabeça da medusa. Meu irmãoMurger era destes últimos.

Como vedes, amigos, doravante não vivemos maisapenas em nossas obras; e ao vosso chamado logo estaremos aovosso lado. Longe de nos orgulharmos por esse ar de felicidade quenos envolve, viremos a vós como se ainda estivéssemos na Terra, eMurger cantará ainda.”

Gérard de Nerval

O ESPÍRITO E AS ROSAS

(Enviado de Nova Orléans pela Sra. B...)

Emma D..., linda menina, morta aos 7 anos, após seismeses de sofrimentos, quase não comia mais, nas últimas seissemanas antes de falecer.

1. Evocação.Resp. – Estou aqui, senhora. Que quereis?

2. Saber onde estais; se sois feliz e por que Deus infligiuà vossa encantadora mãe e às vossas irmãs tão grande mágoa, quala de vos perder?

Resp. – Estou no meio de Espíritos bons,que me amame me instruem; sou feliz, muito feliz. Minha passagem entre vós eraum resto de provação física. Sofri, mas esse sofrimento nada era;ele depurava minha alma e, ao mesmo tempo, devastava meu pobrecorpo. Agora aprendo a vida da alma; estou reencarnada, mascomo Espírito conservador. Estou num mundo onde nenhum denós se demora senão enquanto duram os ensinamentos que nos sãodados pelos Grandes Espíritos. Fora disto viajo, prevenindodesgraças, afastando tentações. Estou muitas vezes aqui. Há tantospobres negros! Sempre os lamentei, mas agora os amo. Sim, eu os

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amo, pobres almas! Entre eles há muitos bons, melhores que seussenhores; e mesmo os que são preguiçosos devem ser lamentados.

Minha mãe querida, muitas vezes eu vou até ela. Equando ela sente o coração fortalecido, fui eu quem lhe derramouo bálsamo divino. Mas é preciso que ela sofra. Ah! mais tarde tudoserá esquecido. E Lúcia, minha bem amada Lúcia estará comigoantes de tudo. Mas os outros virão. Morrer nada é; nada: muda-sede corpo, eis tudo. Eu já não tenho esse mal que me fazia umobjeto de horror para cada um. Sou mais feliz e, à noite, inclino-mesobre minha mãe e a beijo; ela nada sente, mas sonha comigo e mevê como eu era antes de minha horrível doença. Compreendei,senhora, que eu sou feliz.

Eu queria rosas do canto do jardim onde outrora iadormir. Sugeri a Lúcia a idéia de mas oferecer. Eu gostava tanto dasrosas! Por isso vou sempre lá. Tenho rosas aí; mas Lúcia dormediariamente em meu antigo lugar e todos os dias venho para juntodela; amo-a tanto!

3. Minha cara menina, eu não vos poderia ver?Resp. – Não; ainda não. Não podeis ver-me; mas olhai

o raio de sol sobre vossa mesa: vou atravessá-lo. Obrigada por meterdes evocado. Sede indulgente para com minhas irmãs. Adeus.

O Espírito desapareceu, por um instante fazendosombra sobre o raio de sol que continuava. Tendo as rosas sidopostas no adorado cantinho, três dias depois a médium, ao escreveruma carta, veio-lhe à pena a palavra obrigada, bem como aassinatura da criança, que a fez escrever: “Recomeça tua carta; quepena! mas estou tão feliz por ter um médium! Voltarei. Obrigadapelas rosas. Adeus!

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Ensinos e Dissertações EspíritasA LEI DE MOISÉS E A LEI DO CRISTO

(Comunicação obtida pelo Sr. R..., de Mulhouse)

Um de nossos assinantes de Mulhouse nos envia a cartae a comunicação seguintes:

“...Aproveito a ocasião que se apresenta de vosescrever, para vos informar sobre uma comunicação que recebi,como médium, de meu Espírito protetor, e que me pareceinteressante e instrutiva por todos os títulos. Se assim entenderdes,eu vos autorizo a fazer dela o uso que julgardes mais útil. Eis qualfoi o princípio. Inicialmente devo dizer-vos que professo o cultoisraelita e, naturalmente, sou levado às idéias religiosas nas quais fuieducado. Eu tinha notado que, em todas as comunicações dadaspelos Espíritos, não se tratava senão da moral cristã, pregada peloCristo, e que nunca se falava da lei de Moisés. No entanto, eu diziaa mim mesmo que os mandamentos de Deus, revelados porMoisés, me pareciam ser o fundamento da moral cristã; que oCristo poderia ter ampliado o quadro e desenvolvido suasconseqüências, mas que o germe estava na lei ditada no Sinai.Então me perguntei se a menção, tantas vezes repetida, da moral doCristo, embora a de Moisés não lhe fosse estranha, não provinha dofato de que a maior parte das comunicações recebidas emanavamde Espíritos que tinham pertencido à religião dominante, e se elasnão seriam uma lembrança das idéias terrenas. Dominado por taispensamentos, evoquei meu Espírito protetor, que foi um dos meusparentes próximos e se chamava Mardoché R... Eis asperguntas que lhe dirigi e as respostas dadas por ele, etc...13

1. Em todas as comunicações feitas à SociedadeParisiense de Estudos Espíritas, cita-se Jesus como sendo o queensinou a mais bela moral. Que devo pensar disto?

13 N. do T.: Parte considerável das respostas obtidas neste questionáriofoi transcrita por Allan Kardec em O Evangelho segundo o Espiritismo,capítulo I, item 9 – Instruções dos Espíritos: A nova era.

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Resp. – Sim, o Cristo foi o iniciador da moral mais pura,a mais sublime; a moral evangélica cristã, que deve renovar omundo, aproximar os homens e os tornar a todos irmãos; a moralque deve fazer jorrar de todos os corações humanos a caridade, oamor do próximo; que deve criar entre todos os homens umasolidariedade comum; enfim, uma moral que deve transformar aTerra e dela fazer uma morada para Espíritos superiores aos quehoje a habitam. É a lei do progresso, à qual está submetida aNatureza; e o Espiritismo é uma das forças vivas de que Deus seserve para fazer a Humanidade avançar na via do progresso moral.São chegados os tempos em que as idéias morais devemdesenvolver-se para realizar o progresso que está nos desígnios deDeus; elas devem seguir a mesma rota percorrida pelas idéias deliberdade, das quais eram precursoras. Mas não se deve crer queesse desenvolvimento se fará sem lutas. Não; para chegar àmaturidade, elas necessitam de abalos e discussões, a fim de quepossam atrair a atenção das massas; mas, uma vez fixada a atenção,a beleza e a santidade da moral impressionarão os Espíritos e estesse ligarão a uma ciência que lhes dá a chave da vida futura e lhesabre as portas da felicidade eterna.

Deus é único e Moisés é o Espírito que Ele enviou emmissão para torná-lo conhecido não só dos hebreus, comotambém dos povos pagãos. O povo hebreu foi o instrumento deque se serviu Deus para o revelar por Moisés e pelos profetas, e asvicissitudes por que passou esse povo tão notável destinavam-se achamar a atenção geral e fazer cair o véu que ocultava aos homensa divindade.

2. Em que, pois, a moral de Moisés é inferior à doCristo?

Resp. – A moral que Moisés ensinou era apropriadaao estado de adiantamento em que se encontravam os povos queele se propunha regenerar, e esses povos, semi-selvagens quanto aoaperfeiçoamento da alma, não teriam compreendido que se

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pudesse adorar a Deus de outro modo que não por meio deholocaustos, nem que se devesse perdoar a um inimigo. Notável doponto de vista da matéria e mesmo do das artes e ciências, ainteligência deles muito atrasada se achava em moralidade e não sehouvera convertido sob o império de uma religião inteiramenteespiritual. Era-lhes necessária uma representação semimaterial, quala que apresentava então a religião hebraica. Os holocaustos lhesfalavam aos sentidos, ao passo que a idéia de Deus lhes falava aoespírito.

Os mandamentos de Deus, dados por intermédio deMoisés, contêm os germes da mais ampla moral cristã. Oscomentários da Bíblia, porém, restringiam-lhe o sentido, porque,praticada em toda a sua pureza, não na teriam então compreendido.Mas, nem por isso os dez mandamentos de Deus deixavam de serum como frontispício brilhante, qual farol destinado a clarear aestrada que a Humanidade tinha de percorrer. Moisés abriu ocaminho; Jesus continuou a obra; o Espiritismo a concluirá.

3. O Sábado é um dia consagrado?Resp. – Sim. O Sábado é um dia consagrado ao repouso,

à prece. É o emblema da felicidade eterna, a que aspiram todos osEspíritos e ao qual não chegarão senão depois de se haveremaperfeiçoado pelo trabalho e se despojado, pelas encarnações, detodas as impurezas do coração humano.

4. Como se explica que cada seita tenha consagrado umdia diferente?

Resp. – Cada seita, é verdade, consagrou um diadiferente, mas isto não é motivo para nos pormos em desacordo.Deus aceita as preces e as formas de cada religião, desde que os atoscorrespondam aos ensinamentos. Seja qual for a forma pela qualseja invocado, a prece lhe é agradável, se a intenção é pura.

5. Pode-se esperar o estabelecimento de uma religiãouniversal?

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Resp. – Não; não no nosso planeta, ou, pelo menos, nãoantes que tenha feito progressos. Por enquanto, milhares e milharesde gerações ainda não o verão.

Mardoché R...

LIÇÕES FAMILIARES DE MORAL

(Enviadas pela condessa F..., médium de Varsóvia.

Traduzido do polonês)

I

Meus caros filhos, vossa maneira de compreender avontade de Deus está errada, desde que tomais tudo o que acontececomo expressão dessa vontade. Certamente conhece Deus tudo oque foi, que é e que será; sendo sempre a sua vontade a expressãodo seu amor divino, traz, ao realizar-se, a graça e a bênção,enquanto que, afastando-se dessa via única, o homem atrai a sisofrimentos, que não passam de advertências. Infelizmente, ohomem de hoje, enceguecido pelo orgulho de seu espírito, ouafogado no lamaçal das paixões, não as quer compreender. Ora,meus filhos, sabeis que se aproxima o tempo no qual começará oreinado da vontade de Deus na Terra; então, infeliz daquele queainda ousar opor-se, pois será quebrado como o caniço, ao passoque aqueles que se tiverem emendado verão abrir-se para si ostesouros da misericórdia infinita. Vedes por aí que se a vontade deDeus é a expressão de seu amor e, por isso mesmo, imutável eeterna, todo ato de rebeldia contra essa vontade, embora suportadopela incompreensível sabedoria, é apenas temporária e passageira;antes que a expressão de sua vontade, representa uma prova dapaciente misericórdia de Deus.

II

Vejo com prazer, meus filhos, que vossa fé não searrefece, malgrado os ataques dos incrédulos. Se todos os homens

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acolhessem essa manifestação extraordinária da bondade divina,essa nova porta aberta ao vosso adiantamento com o mesmo zelo,a mesma perseverança e, sobretudo, com a mesma pureza deintenção, teria sido uma prova evidente de que o mundo não éassim tão mau, nem tão endurecido quanto parece, e – o que éinadmissível – que a mão de Deus se tenha tornado injustamentepesada sobre a Humanidade. Não vos admireis, pois, da oposiçãoque o Espiritismo encontra no mundo. Destinado a combatervitoriosamente o egoísmo e a conduzir a caridade ao triunfo, é,naturalmente, o alvo das perseguições do egoísmo e do fanatismo,deste muitas vezes derivado. Lembrai-vos do que foi dito há muitosséculos: “Muitos serão chamados, mas poucos, escolhidos”.Entretanto, o bem, que vem de Deus, sempre acabará por triunfardo mal, que procede dos homens.

III

Deus fez descerem à Terra a fé e a caridade para auxiliaros homens a sacudir a dupla tirania do pecado e da arbitrariedade;e não há dúvida que, com esses dois divinos motores, há muitotempo eles teriam atingido uma felicidade tão perfeita quanto ocomporta a natureza humana e o estado físico do vosso globo, casoos homens não tivessem deixado a fé enlanguescer e os coraçõessecarem. Por um momento, mesmo, acreditaram poder dispensá-lae salvar-se apenas pela caridade. Foi então que se viu nascer essamultidão de sistemas sociais, bons na intenção que os ditava, masdefeituosos e impraticáveis na forma. E por que são impraticáveis?perguntareis; não se baseiam no desinteresse de cada um? Sim, semdúvida; mas para se basear no desinteresse é preciso, primeiro, queexista o desinteresse. Ora, não basta decretá-lo, é preciso inspirá-lo.Sem a fé que dá a certeza das compensações da vida futura, odesinteresse é um logro aos olhos do egoísta. Eis por que sãoinstáveis os sistemas que repousam apenas sobre os interessesmateriais, tanto é certo que o homem nada poderia construir de

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harmonioso e durável sem a fé, que não somente o dota de umaforça moral superior a todas as forças físicas, como lhe abre aassistência do mundo espiritual e lhe permite beber na fonte daonipotência divina.

IV

“Ainda mesmo quando cumprísseis tudo quanto vos foiordenado, considerai-vos como servos inúteis”. Estas palavras doCristo vos ensinam a humildade como a primeira base da fé e umadas primeiras condições da caridade. Aquele que tem fé nãoesquece que Deus conhece todas as imperfeições; emconseqüência, jamais pensa em querer parecer melhor do que é aosolhos do próximo. O que tem humildade sempre acolhe comdoçura as censuras que lhe fazem, por mais injustas que sejam,porquanto, sabei-o bem, a injustiça jamais irrita o justo. É pondo odedo sobre alguma chaga envenenada de vossa alma que se fazsubir ao vosso rosto o rubor da vergonha, índice certo de umorgulho mal disfarçado. O orgulho, meus filhos, é o maiorobstáculo ao vosso aperfeiçoamento, porque não vos deixaaproveitar as lições que vos dão. É, pois, combatendo-o sem tréguae sem quartel que melhor trabalhareis o vosso adiantamento.

V

Se lançardes o olhar sobre o mundo que vos cerca,vereis que tudo é harmonia. A harmonia da vida material é o belo.Entretanto, não é senão a parte menos nobre da Criação. Aharmonia do mundo espiritual é o amor, emanação divina queenche os espaços e conduz a criatura ao seu Criador. Procurai,meus filhos, com ele encher os vossos corações. Tudo quantopudésseis fazer de grande fora desta lei não vos seria levado emconsideração. Só o amor, quando tiverdes assegurado o seu triunfona Terra, fará vir a vós o reino de Deus prometido pelos apóstolos.

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OS MISSIONÁRIOS

(Enviada pelo Sr. Sabò, de Bordeaux)

Vou dizer-vos algumas palavras para vos dar acompreender o objetivo a que se propõem os Missionários,deixando pátria e família para evangelizar tribos ignorantes ouferozes, embora irmãos, mas inclinados ao mal e desconhecendo obem; ou para ir pregar a mortificação, a confiança em Deus, aprece, a fé, a resignação na dor, a caridade, a esperança de uma vidamelhor depois do arrependimento. Dizei: isto não é o Espiritismo?Sim, almas de escol, que sempre servistes a Deus e fielmenteobservais as suas leis; que amais e socorreis o vosso próximo, vóssois espíritas. Mas não conheceis esta palavra de criação recente enela vedes um perigo. Pois bem! Já que a palavra vos assusta, nãomais a pronunciaremos diante de vós, até que vós mesmos venhaispedir esse nome, que resume a existência dos Espíritos e suasmanifestações: o Espiritismo.

Irmãos amados, que são os Missionários junto àsnações na infância? Espíritos em missão, enviados por Deus, nossoPai, para esclarecer pobres Espíritos mais ignorantes; para lhesensinar a esperar nele, a conhecê-lo, amá-lo, a ser bons esposos,bons pais, bons para os semelhantes; enfim para lhes dar, tantoquanto comporta sua natureza inculta, a idéia do bem e do belo.Ora, vós que vos orgulhais de vossa inteligência, sabei que partistestão de baixo e que ainda tendes muito a fazer para chegar ao maisalto grau. Eu vos pergunto, amigos, em que se tornaria essa pobregente, abandonada às suas paixões e à sua natureza selvagem? Masdizeis: Sois vós que, a exemplo desses homens devotados, idespregar o Evangelho a esses irmãos incultos? Não; não sereis vós:tendes uma família, amigos, uma posição que não podeisabandonar; não; não sereis vós que gostais das doçuras do lar; não;não sereis vós, que tendes fortuna, honras, enfim, todas asfelicidades que satisfazem a vossa vaidade e o vosso egoísmo; não,não sereis vós. São necessários homens que deixem o teto paterno

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e a pátria com alegria; homens que façam pouco caso da vida,porque, muitas vezes, esta é cortada a ferro e fogo; são precisoshomens bem convencidos que, se vão trabalhar na vinha do Senhore regá-la com o próprio sangue, encontrarão no Alto a recompensade tantos sacrifícios. Dizei se os materialistas seriam capazes de taldevotamento, eles que nada mais esperam desta vida? Crede-me,são Espíritos enviados por Deus. Não riais mais daquilo quechamais a sua tolice, porque eles são instruídos e, expondo a vidapara esclarecer seus irmãos ignorantes, têm direito ao vossorespeito e à vossa simpatia. Sim, são Espíritos encarnados que têma missão perigosa de desbravar essas inteligências incultas, comooutros Espíritos mais adiantados têm por missão fazer que vósmesmos progridais.

O que acabamos de fazer, meus amigos, é Espiritismo.Não vos atemorizeis, pois, com esta palavra. Sobretudo, não riais,porque é o símbolo da lei universal que rege os seres vivos daCriação.

Adolfo, bispo de Argel

A FRANÇA

(Comunicação enviada pelo Sr. Sabò, de Bordeaux)

Tu também, Terra dos Francos, estavas mergulhada nabarbárie e tuas coortes selvagens levavam o terror e a desolação atéo seio das nações civilizadas. Oferecias montanhas de sacrifícios aTeutates e tremias à voz dos druidas, que escolhiam suas vítimas. Eos dólmens que te serviam de altares jazem em meio às charnecasestéreis! E o pastor que para ali conduz os seus magros rebanhosolha com admiração esses blocos de granito e se pergunta para queserviram essas lembranças de outros tempos!

Entretanto, teus filhos, cheios de bravura, dominavamas nações e retornavam ao solo natal com o rosto triunfante, tendonas mãos os troféus das vitórias e arrastando os vencidos em

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vergonhosa escravidão! Mas Deus queria que tomasses o teu lugarentre eles, e te enviou Espíritos bons, apóstolos de uma religiãonova, que vinham pregar a teus filhos selvagens o amor, o perdão,a caridade. E, quando à frente de seus exércitos, Clóvis chamava emseu socorro esse Deus poderoso, Ele acorreu à sua voz, deu-lhe avitória e, como filho reconhecido, o vencedor abraçou oCristianismo! O apóstolo do Cristo, derramando-lhe a santa unção,inspirado pelo Espírito de Deus, ordenou-lhe que adorasse aquiloque havia queimado, e queimar o que havia adorado.

Então começou para ti uma longa luta entre teus filhos,que não podiam afrontar a cólera de seus deuses e de seussacerdotes, e não foi senão depois que o sangue dos mártires regouo teu solo, para aí fazer germinar suas exortações, que pouco apouco sacudistes do coração o culto de teus pais, para seguir o deteus reis. Estes eram bravos e vacilantes; iam, por sua vez, combateras hordas selvagens dos bárbaros do Norte; e, voltando calmos aosseus palácios, aplicavam-se ao progresso e à civilização de seuspovos. Durante vários séculos são vistos realizando esse progresso,lentamente é verdade, mas, finalmente, te puseram no primeirolugar.

Contudo, tantas vezes fostes culpada que o braço deDeus levantou-se e estava prestes a te exterminar. Mas, se o solofrancês é um foco de incredulidade e de ateísmo, é também o focodos impulsos generosos, da caridade e dos sublimes devotamentos;ao lado da impiedade florescem as virtudes pregadas peloEvangelho. Elas desarmaram o seu braço, prestes a ferir-te tantasvezes e, lançando sobre esse povo a quem ama um olhar declemência, Ele o escolheu para ser o órgão de sua vontade; e é deseu seio que devem sair os germes da Doutrina Espírita, que Deusfaz ensinar pelos Espíritos bons, a fim de que seus raios benfazejospouco a pouco penetrem o coração de todas as nações, e que ospovos, consolados pelos preceitos de amor, de caridade, de perdãoe de justiça, marchem a passos de gigante para a grande reforma

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moral, que deve regenerar a Humanidade. França! Tens a tua sorteentre as mãos. Se desconhecesses a luz que deves espalhar, Deus terepudiaria, como outrora repudiou o povo hebreu, porquanto elesó ficará com aquele que cumprir os seus desígnios. Apressa-te,pois, porque é chegado o momento! Que os povos aprendam de tios caminhos da verdadeira felicidade. Que o teu exemplo lhesmostre os frutos consoladores que devem retirar e eles repetirãocom o coro dos Espíritos bons: “Deus protege e abençoa aFrança”.

Carlos Magno

A INGRATIDÃO

(Enviada pelo Sr. Pichon, médium de Sens)

É preciso sempre ajudar os fracos e os que desejamfazer o bem, embora sabendo antecipadamente que não seremosrecompensados por aqueles a quem o fazemos, porque aquele quese recusa a vos ser grato pela assistência que lhe destes, nem sempreé tão ingrato quanto o imaginais; muitas vezes age segundo o pontode vista determinado por Deus, embora os seus pontos de vista nãosejam, e muitas vezes não possam ser apreciados por vós. Que vosbaste saber que é necessário fazer o bem por dever e por amor aDeus, pois disse Jesus: “Aquele que não faz o bem senão porinteresse, já recebeu a sua recompensa”. Sabei que se aquele a quemprestais serviço esquece o benefício, Deus vos levará mais em contado que se já tivésseis sido recompensado pela gratidão do vossofavorecido.

Sócrates

Allan Kardec

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Revista EspíritaJornal de Estudos Psicológicos

ANO IV ABRIL DE 1861 No 4

Mais Uma Palavra Sobre o Sr.Deschanel

DO JOURNAL DES DÉBATS

No número anterior da Revista Espírita os leitorespuderam ver, ao lado de nossas reflexões sobre o artigo do Sr.Deschanel, a carta pessoal que lhe enviamos. Muito curta essa carta,cuja inserção lhe pedíamos, tinha o objetivo de retificar um graveerro que ele havia cometido em sua apreciação. Apresentar aDoutrina Espírita como baseada no mais grosseiro materialismoera desnaturar completamente o seu espírito, pois, ao contrário, elatende a destruir as idéias materialistas. Havia em seu artigo muitosoutros erros que poderíamos ter apontado, mas aquele era pordemais importante para ficar sem resposta; tinha uma gravidadereal porque tendia a lançar um verdadeiro descrédito sobrenumerosos adeptos do Espiritismo. O Sr. Deschanel julgou nãodever aquiescer ao nosso pedido e eis a resposta que nos dirigiu:

“Senhor,

“Recebi a carta que me fizestes a honra de escrever, emdata de 25 de fevereiro. O Sr. Didier, vosso editor, encarregou-se

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de vos explicar que tinha sido a seu reiterado pedido que eu haviaconsentido em noticiar, no Débats, o vosso O Livro dos Espíritos,desde que o pudesse criticar como bem entendesse; era a nossacombinação. Agradeço por terdes compreendido que, nestascircunstâncias, usar do vosso direito de contestação teria sidoestritamente legal, mas, certamente, menos delicado do que aabstenção com que havíeis concordado, conforme o Sr. Didier meinformou esta manhã.

“Quereis aceitar, etc.

E. Deschanel”

Esta carta peca pela falta de exatidão em diversospontos. É verdade que o Sr. Didier enviou ao Sr. Deschanel umexemplar de O Livro dos Espíritos, como é costume de editor parajornalista; mas o que não é exato é que o Sr. Didider tivesse secomprometido a não nos dar explicação sobre suas supostasinstâncias reiteradas para que lhe fizesse uma apreciação. Se o Sr.Deschanel julgou dever consagrar-lhe vinte e quatro colunas dezombarias, ele nos permitirá supor que não tenha sido porcondescendência nem por deferência para com o Sr. Didier. Aliás, jádissemos que não foi por isto que nos lamentamos: a crítica era umdireito seu; e, desde que não partilha do nosso modo de ver, estavalivre para apreciar a obra segundo o seu ponto de vista, comoacontece diariamente. Por alguns, uma coisa é levada às nuvens, poroutros, depreciada, mas nem um nem outro desses julgamentos éinapelável. O único juiz em última instância é o público, sobretudoo público futuro, que é alheio às paixões e às intrigas do momento.Os elogios obsequiosos das camarilhas não o impedem de enterrarpara sempre o que é realmente mau, e o que é realmente bomsobrevive, a despeito das diatribes da inveja e do ciúme.

Desta verdade duas fábulas darão testemunho,Tanto a coisa sobeja em provas,

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teria dito La Fontaine. Não citaremos duas fábulas, mas dois fatos.Quando de seu aparecimento, Fedra, de Racine, teve contra si acorte e a população da cidade, e foi ridicularizada. O autor sofreutantos desgostos que aos 38 anos renunciou a escrever para oteatro. A Fedra de Pradon, ao contrário, foi exaltada além damedida. Qual é hoje a sorte dessas duas obras? Um outro livro maismodesto, Paul et Virginie, foi declarado natimorto pelo ilustreBuffon, que o achava enfadonho e insípido; entretanto, sabe-se quejamais um livro foi tão popular. Com esses dois exemplos, nossoobjetivo é simplesmente provar que a opinião de um crítico, sejaqual for o seu mérito, não passa de uma opinião pessoal, nemsempre ratificada pela posteridade. Mas voltemos de Buffon ao Sr.Deschanel, sem comparação, porque Buffon enganou-seredondamente, enquanto o Sr. Deschanel crê, sem dúvida, que delenão dirão a mesma coisa.

Em sua carta o Sr. Deschanel reconhece que o nossodireito de contestação teria sido estritamente legal, mas acha maisdelicado de nossa parte não o exercer. Ainda se enganacompletamente quando diz que concordamos com uma abstenção, oque daria a entender que nos rendemos a uma solicitação, e mesmoque o Sr. Didier teria sido encarregado de o informar. Ora, nada émenos exato. Não julgamos dever exigir a inserção de umaexposição contraditória. Ele é livre para achar nossa doutrina má,detestável, absurda, de o gritar de cima dos telhados, masesperávamos de sua lealdade a publicação de nossa carta pararetificar uma alegação falsa, e que podia atingir a nossa reputação,no que tange a nos acusar de professar e propagar as própriasdoutrinas que combatemos, como subversivas da ordem social e damoral pública. Não lhe pedíamos uma retração, à qual seu amor-próprio se teria recusado, mas apenas que inserisse o nossoprotesto; por certo não estaríamos abusando do direito de resposta,considerando-se que em troca de vinte e quatro colunas, não lhepedíamos mais que trinta a quarenta linhas. Nossos leitores saberão

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apreciar sua recusa; se ele quis ver delicadeza em nossoprocedimento, não poderíamos julgar o seu da mesma maneira.

Quando o Sr. abade Chesnel publicou no jornalUnivers, em 1858, seu artigo sobre o Espiritismo, deu da SociedadeParisiense de Estudos Espíritas uma idéia igualmente falsa, aoapresentá-la como uma seita religiosa com seu culto e seussacerdotes. Tal alegação desnaturava completamente seu objetivo esuas tendências e podia confundir a opinião pública. Era tanto maiserrônea que o regulamento da Sociedade lhe proíbe ocupar-se dematérias religiosas. Com efeito, não se conceberia uma Sociedadereligiosa que não pudesse ocupar-se de religião. Protestamos contraesta asserção, não por algumas linhas, mas por um artigo inteiro elongamente motivado que, a nosso simples pedido, o Universjulgou dever publicar. Lamentamos que, em idêntica circunstância,o Sr. Deschanel, do Journal des Débats, se creia menos moralmenteobrigado de restabelecer a verdade do que os senhores do Univers.Se não fosse uma questão de direito, seria sempre uma questão delealdade. Reservar-se o direito de ataque sem admitir a defesa é ummeio fácil de fazer crer aos seus leitores que ele tem razão.

O Sr. Louis Jourdan eO Livro dos Espíritos 14

Já que estamos falando dos jornalistas, a propósito doEspiritismo, não paremos no caminho. Esses senhores em geralnão nos adulam e, como não fazemos mistério de suas críticas, hãode nos permitir apresentar a contrapartida e opor à opinião do Sr.Deschanel e outros, a de um escritor cujo valor e influêncianinguém contesta, sem que nos possam tachar de amor-próprio.Aliás, os elogios não se dirigem à nossa pessoa, ou, pelo menos, nãoos tomamos para nós, de modo que transferimos a honra aos guiasespirituais que bondosamente nos dirigem. Não poderíamos, pois,prevalecer-nos do mérito que se possa encontrar em nossos

14 Nota da Editora: Ver “Nota Explicativa”, p. 567.

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trabalhos; aceitamos os elogios não como sinal de nosso valorpessoal, mas como uma consagração à obra que empreendemos,obra que esperamos levar a bom termo com a ajuda de Deus, poisainda não estamos no fim e o mais difícil ainda não está feito. Sobesse aspecto, a opinião do Sr. Jourdan tem um certo peso, porquese sabe que não fala levianamente e por falar, ou para enchercolunas com palavras. Certamente ele pode enganar-se, comoqualquer outro, mas, em todo caso, sua opinião é sempreconscienciosa.

Seria prematuro dizer que o Sr. Jourdan é um adeptoconfesso do Espiritismo. Ele próprio declara nada ter visto e nãoestar em contato com nenhum médium. Julga a coisa conforme seusentimento íntimo e, como não toma seu ponto de partida nanegação da alma e de qualquer força extra-humana, vê na DoutrinaEspírita uma nova fase do mundo moral e um meio de explicar oque até então era inexplicável. Ora, admitindo a base, sua razão nãose recusa absolutamente a lhe admitir as conseqüências, ao passoque o Sr. Figuier não pode admitir tais conseqüências, desde querepele o princípio fundamental. Não tendo estudado tudo, tudoaprofundado nesta vasta ciência, não é de admirar que suas idéiasnão se tenham fixado sobre todos os pontos e, por isso mesmo,certas questões devem parecer-lhe ainda hipotéticas. Mas, comohomem de senso, não diz: “Não compreendo; logo, não existe”; aocontrário, diz: “Não sei, porque não aprendi, mas não nego”.Como homem sério, não zomba com uma questão que toca osmais graves interesses da Humanidade e, como homem prudente,cala-se sobre aquilo que ignora, temendo que os fatos não venham,como a tantos outros, desmentir as suas negações, nem lheoponham este argumento irresistível: “Falais do que não sabeis”.Assim, passando sobre as questões de detalhe, sobre as quaisconfessa a sua incompetência, limita-se à apreciação do princípio; eesse princípio, apenas o raciocínio o leva a admitir a possibilidade,como acontece diariamente.

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O Sr. Jourdan publicou primeiro um artigo sobre OLivro dos Espíritos, no jornal Le Causeur (no 8, abril de 1860). Eisum ano decorrido e ainda não falamos disso nesta Revista,provando que não temos muita pressa em nos prevalecer doselogios, enquanto citamos textualmente, ou indicamos, as maisamargas críticas, revelando, também, que não tememos a suainfluência. Esse artigo é reproduzido em sua nova obra Um Filósofoao pé do fogo15, da qual forma um capítulo. Dele extraímos asseguintes passagens:

......................................................................................................................

“Prometi formalmente voltar a um assunto, sobre oqual apenas disse algumas palavras e que merece uma atenção todaespecial. Trata-se de O Livro dos Espíritos, contendo os princípiosda doutrina e da filosofia espíritas. A palavra pode parecer-vosbárbara, mas que fazer? Às coisas novas é preciso dar nomes novos.As mesas girantes levaram ao Espiritismo, e hoje nós estamos deposse de uma doutrina completa, inteiramente revelada pelosEspíritos, porque esse O Livro dos Espíritos não é feito pela mão dohomem; o Sr. Allan Kardec limitou-se a recolher e a ordenar asrespostas dadas pelos Espíritos às inumeráveis perguntas que lhesforam feitas, respostas breves, que nem sempre satisfazem àcuriosidade do interrogador, mas que, consideradas em seuconjunto constituem, com efeito, uma doutrina, uma moral e, quemsabe? talvez uma religião.

“Julgai-o vós mesmos. Os Espíritos se explicaramclaramente sobre as causas primeiras, sobre Deus e o infinito, sobreos atributos da Divindade. Deram-nos os elementos gerais doUniverso, o conhecimento do princípio das coisas, as propriedadesda matéria. Falaram sobre os mistérios da criação, a formação dosmundos e dos seres vivos, as causas da diversidade das raçashumanas. Daí ao princípio vital não havia mais que um passo e eles

15 1 vol. In-12; preço 3 fr. Livraria Dentu.

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nos disseram em que consistia esse princípio, o que eram a vida e amorte, a inteligência e o instinto.

“Depois levantaram o véu que nos oculta o mundoespírita, isto é, o mundo dos Espíritos, dizendo-nos qual era a suaorigem e qual a sua natureza; como se encarnavam e qual o objetivodessa encarnação; como se efetuava a volta da vida corpórea à vidaespiritual. Espíritos errantes, mundos transitórios, percepções,sensações e sofrimentos dos Espíritos, relações de além-túmulo,relações simpáticas e antipáticas dos Espíritos, retorno à vidacorporal, emancipação da alma, intervenção dos Espíritos nomundo corpóreo, ocupações e missões dos Espíritos, nada nos foiocultado.

“Eu disse que os Espíritos não só estavam fundandouma doutrina e uma filosofia, mas, também, uma religião. Comefeito, eles elaboraram um código de moral, no qual se achamformuladas leis cuja sabedoria me parece muito grande e, para quenada lhe falte, disseram quais seriam as penas e as recompensasfuturas e o que se deveria entender pelas palavras: Paraíso,purgatório e inferno. Como se vê, é um sistema completo, e nãosinto nenhum embaraço em reconhecer que se o sistema não tema poderosa coesão de uma obra filosófica, se contradiçõesdespontam aqui e ali, é pelo menos muito notável por suaoriginalidade, por seu elevado alcance moral e pelas soluçõesimprevistas que dá às delicadas questões que em todos os temposinquietaram ou preocuparam o espírito humano.

......................................................................................................................

“Sou completamente estranho à escola espírita; nãoconheço seus chefes, nem seus adeptos; jamais vi funcionar amenor mesa girante; não tenho contato com nenhum médium; nãotestemunhei nenhum desses fatos sobrenaturais ou miraculosos,dos quais encontro os relatos incríveis nas coletâneas espíritas queme enviam. Não afirmo nem rejeito absolutamente as

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comunicações dos Espíritos; creio, a priori, que tais comunicaçõessão possíveis e minha razão absolutamente não se alarma por isto.Para nelas crer, não necessito da explicação que meu sábio amigo,o Sr. Figuier, ultimamente me dava sobre esses fatos, por eleatribuídos à influência magnética dos médiuns.

......................................................................................................................

“Nada vejo de impossível em que se estabeleçamrelações entre o mundo invisível e nós. Não me pergunteis como epor quê; eu nada sei a respeito. Isto é uma questão de sentimento enão de demonstração matemática. É, pois, um sentimento queexprimo, mas um sentimento que nada tem de vago, e no meuespírito e no meu coração assume formas bastante precisas.

“Se, pelo movimento dos pulmões, extraímos doespaço infinito que nos envolve, os fluidos e os princípios vitaisnecessários à nossa existência, é bem evidente que estamos emrelação constante e necessária com o mundo invisível. Esse mundoé povoado por Espíritos errantes, como as almas penadas, sempreprontas a acudirem ao nosso apelo? Eis o que é mais difícil deadmitir, embora seja também temerário negá-lo completamente.

“Certamente não temos dificuldade em acreditar quenem todas as criaturas de Deus se assemelham aos tristeshabitantes de nosso planeta. Somos muito imperfeitos; porestarmos submetidos a necessidades bastante grosseiras, não nos édifícil imaginar a existência de seres superiores que não soframnenhuma pena corporal; seres radiosos e luminosos, espírito ematéria como nós, mas espírito mais sutil e mais puro, matériamenos densa e menos pesada; mensageiros fluídicos, que unementre si os universos, sustentam, encorajam os astros e as raçasdiversas que os povoam, com vistas à realização de suas tarefas.

“Pela aspiração e respiração estamos em relação comtoda a hierarquia dessas criaturas, desses seres cuja existência não

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podemos compreender nem representar as formas; assim, não éabsolutamente impossível que alguns desses seres acidentalmenteentrem em relação com os homens. Porém, o que nos parece puerilé que seja necessário o concurso material de uma mesa, de umaprancheta ou de um médium qualquer para que tais relações seestabeleçam.

“De duas, uma: ou essas comunicações são úteis, oudesnecessárias. Se são úteis, os Espíritos não devem ter necessidadede ser chamados de maneira misteriosa, nem de ser evocados einterrogados para ensinar aos homens o que importa saber; se sãoinúteis, por que a elas recorrer?

......................................................................................................................

“Não sinto nenhuma repugnância em admitir essasinfluências, essas inspirações, essas revelações, se quiserdes. O querepilo absolutamente é que, sob pretexto de revelação, venhamdizer-me: Deus falou, portanto, ides submeter-vos. Deus falou pelaboca de Moisés, do Cristo, de Maomé, portanto sereis judeus,cristãos ou muçulmanos, senão incorrereis nos castigos eternos; e,enquanto esperamos, iremos amaldiçoar-vos e vos torturar aqui.

“Não! não! Semelhantes revelações não quero a preçonenhum. Acima de todas as revelações, de todas as inspirações, detodos os profetas presentes, passados e futuros, há uma leisuprema: a lei da liberdade. Com esta lei por base, admitirei, salvodiscussão, tudo o que vos agradar. Suprimi esta lei e só haverátrevas e violência. Quero ter a liberdade de crer ou de não crer edizê-lo claramente; é o meu direito e quero usá-lo; é a minhaliberdade e faço questão de preservá-la. Dizeis-me que não crendono que me ensinais, perco minha alma; é possível. Quero minhaliberdade até esse limite; quero perder minha alma, se isto me apraz.Assim, quem será aqui o juiz de minha salvação e de minha perda?Quem, pois, poderá dizer: Aquele foi salvo e este perdido para

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sempre? Então a misericórdia de Deus não será infinita? Haveráalguém no mundo que possa sondar o abismo de uma consciência?

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“É porque esta doutrina também se encontra nocurioso livro do Sr. Allan Kardec, que me reconcilio com osEspíritos que ele interrogou. O laconismo de suas repostas provaque os Espíritos não têm tempo a perder e, se de alguma coisa meadmiro, é que ainda o tenham bastante para respondercomplacentemente ao chamado de tanta gente que perde o seu aevocá-los.

......................................................................................................................

“Tudo quanto, de maneira mais ou menos clara e maisou menos sumária dizem os Espíritos, cujas respostas o Sr. AllanKardec coligiu, foi exposto e desenvolvido com notável clareza porMichel, que, de longe, parece ser o mais adiantado e o maiscompleto de todos os místicos contemporâneos. Sua revelação é,ao mesmo tempo, uma doutrina e um poema, doutrina sã efortificante, poema brilhante. A única vantagem que encontro nasperguntas e respostas que o Sr. Allan Kardec publicou é queapresentam, sob uma forma mais acessível à grande massas dosleitores, e sobretudo, das leitoras, as principais idéias sobre as quaisimporta chamar-lhes a atenção. Os livros de Michel não são deleitura fácil; exigem uma tensão de espírito muito pronunciada. Olivro de que falamos, ao contrário, pode ser uma espécie de vademecum; nós o tomamos, o deixamos ou o abrimos em qualquerpágina: logo a curiosidade é despertada. As perguntas dirigidas aosEspíritos são as que nos preocupam a todos; as respostas, porvezes, são muito fracas; outras vezes condensam em poucaspalavras a solução dos problemas mais espinhosos e sempreoferecem um vivo interesse ou salutares indicações. Não sei decurso de moral mais atraente, mais consolador, mais encantador

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que esse. Todos os grandes princípios sobre os quais se fundam ascivilizações modernas ali são confirmados e, notadamente, oprincípio dos princípios: a liberdade! O espírito e o coração saemdali tranqüilizados e fortalecidos.

“São, sobretudo, os capítulos relativos à pluralidade dossistemas16 e à lei do progresso coletivo e individual que têm umatrativo e um encanto poderosos. Para mim, os Espíritos do Sr.Allan Kardec nada me ensinaram a este respeito. Há muito euacreditava firmemente no desenvolvimento progressivo da vidaatravés dos mundos; que a morte é o limiar de uma existência nova,cujas provas são proporcionadas aos méritos da existência anterior.Aliás, é a velha fé gaulesa, era a doutrina druídica, e nisto osEspíritos nada inventaram; mas acrescentaram uma série dededuções e de regras práticas excelentes na conduta da vida. Sobesse aspecto, como sob muitos outros, a leitura desse livro,independentemente do interesse e da curiosidade excitados por suaorigem, pode ter um alto caráter de utilidade para os caracteresindecisos, para as almas pusilânimes que flutuam nos limbos dadúvida. A dúvida! É o pior dos males! É a mais horrível das prisões,e delas se deve sair a qualquer preço. Esse estranho livro ajudarámais de uma criatura a consolidar a sua vida, a quebrar osferrolhos da prisão, precisamente porque é apresentado sob formasimples e elementar, como um catecismo popular, que todospodem ler e compreender”.

......................................................................................................................

Após ter citado algumas perguntas sobre o casamento eo divórcio, que acha um tanto pueris e não são tratadas ao seugosto, o Sr. Jourdan assim termina:

“Apresso-me a dizer, entretanto, que nem todas asrespostas dos Espíritos são tão superficiais quanto as de que acabo

16 N. do T.: O autor se refere à pluralidade dos mundos habitados, umdos princípios fundamentais da Doutrina dos Espíritos.

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de falar. É o conjunto desse livro que é admirável, é o fundamentogeral que é marcado por uma certa grandeza e por uma vivaoriginalidade. Quer emane ou não de uma fonte extranatural,a obra é surpreendente sob vários títulos e, só por isso,interessou-me vivamente e sou levado a crer que possa interessar amuita gente”.

RESPOSTA

O Sr. Jourdan faz uma pergunta, ou, antes, umaobjeção, necessariamente motivada pela insuficiência de seusconhecimentos sobre a matéria.

“Não é absolutamente impossível – diz ele – que algunsdesses seres acidentalmente entrem em relação com os homens.Porém, o que nos parece pueril é que seja necessário o concursomaterial de uma mesa, de uma prancheta ou de um médiumqualquer para que tais relações se estabeleçam. De duas, uma: ouessas comunicações são úteis, ou são desnecessárias. Se úteis, osEspíritos não devem ter necessidade de ser chamados de maneiramisteriosa, nem de ser evocados e interrogados para ensinar aoshomens o que importa saber; se inúteis, por que a elas recorrer?”No seu Filósofo ao pé do fogo, acrescenta a respeito: “Eis um dilemado qual a escola espírita terá dificuldade para sair”.

Não; certamente não terá dificuldade para sair,porquanto há muito tempo o tinha proposto e também resolvido;e se não o foi pelo Sr. Jourdan é que ele não conhece tudo. Ora, nóscremos que se ele tivesse lido O Livro dos Médiuns, que trata daparte prática e experimental do Espiritismo, teria sabido a que seater sobre esse ponto.

Sim, sem dúvida seria pueril, e essa palavra, empregadapor conveniência pelo Sr. Jourdan seria muito fraca; dizemos queseria ridícula, absurda e inadmissível que, para relações tão sériasquanto as do mundo visível com o invisível, os Espíritos

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necessitassem, para nos transmitir seus ensinos, de um utensílio tãovulgar quanto uma mesa, uma cesta ou uma prancheta, porque daíse seguiria que quem estivesse privado de tais acessórios tambémestaria privado de suas lições. Não, não é assim. Não sendo osEspíritos senão as almas dos homens, despojadas do grosseiroenvoltório do corpo, há Espíritos desde que houve homens noUniverso (não dizemos na Terra); esses Espíritos constituem omundo invisível que povoa os espaços, que nos cerca e em meio aoqual vivemos sem o suspeitar, como igualmente vivemos, sem operceber, em meio ao mundo microscópico. Em todos os temposesses Espíritos têm exercido sua influência sobre o mundo visível;em todos os tempos os que são bons e sábios têm auxiliado o gêniopor inspirações, enquanto outros se limitam a nos guiar nos atosordinários da vida; mas essas inspirações, que ocorrem pelatransmissão de pensamento a pensamento, são ocultas e nãopodem deixar nenhum traço material. Se o Espírito quisermanifestar-se de maneira ostensiva, é preciso que atue sobre amatéria; se quer que o seu ensino, ao invés de expressar a confusãoe a incerteza do pensamento, tenha precisão e estabilidade, nãodispensa sinais materiais e, para isso – que nos permitam aexpressão – serve-se de tudo quanto lhe cai à mão, desde que sejanas condições apropriadas à sua natureza. Utiliza uma pena oulápis, se quer escrever, um objeto qualquer, mesa ou caçarola, sequer bater, sem que por isso seja humilhado. Haverá algo maisvulgar que uma pena de ganso? Não é com isto que os maioresgênios legam as suas obras-primas à posteridade? Tirai-lhes todomeio de escrever; que fazem? Pensam; mas seus pensamentos seperdem, se ninguém os recolher. Suponde um literato maneta:como se arranja? Tem um secretário, que transcreve o seu ditado.Ora, como os Espíritos não podem segurar a pena semintermediário, fazem-na sustentar por alguém que se chama ummédium, que inspiram e dirigem. Algumas vezes esse médium agecom conhecimento de causa: é o médium propriamente dito;outras vezes atua de maneira inconsciente da causa que o solicita: éo caso de todos os homens inspirados que, assim, são médiuns sem

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o saber. Vê-se, pois, que a questão das mesas e pranchetas éinteiramente acessória e não a principal, como crêem os que nãoestão bem informados. Elas foram o prelúdio dos grandes epoderosos meios de comunicação, como o alfabeto é o prelúdio daleitura corrente.

A segunda parte do dilema não é menos fácil deresolver. “Se essas comunicações são úteis – diz o Sr. Jourdan – osEspíritos não devem ter necessidade de ser chamados de maneiramisteriosa, de ser evocados...”.

Para começar, digamos que não nos cabe regular o quese passa no mundo dos Espíritos; não podemos dizer: As coisasdevem ou não devem ser desta ou daquela maneira, pois seriaquerer reger a obra de Deus. Os Espíritos querem mesmo iniciar-nos em parte no seu mundo, porque esse mundo talvez seja o nossoamanhã. Cabe a nós tomá-lo tal qual é e, se não nos convier, nãoserá nem mais nem menos, porque Deus não o mudará para nós.

Isto posto, apressemo-nos a dizer que jamais háevocação misteriosa e cabalística; tudo se faz simplesmente, emplena luz e sem fórmula obrigatória. Os que julgam tais coisasnecessárias ignoram os primeiros elementos da ciência espírita.

Em segundo lugar, se as comunicações espíritas nãopudessem existir senão em conseqüência de uma evocação, seguir-se-ia que elas seriam um privilégio dos que sabem evocar, e que aimensa maioria dos que jamais ouviram falar dessas coisas estariaprejudicada. Ora, isto estaria em contradição com o que dissemoshá pouco, a respeito das comunicações ocultas e espontâneas. Essassão para todo o mundo, para o pequeno como para o grande, o ricocomo o pobre, o ignorante como o sábio. Os Espíritos que nosprotegem, os parentes e amigos que perdemos não têm necessidadede ser chamados; estão junto de nós e, conquanto invisíveis, noscercam com a sua solicitude; só o nosso pensamento basta para os

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atrair, provando-lhes a nossa afeição, porque, se não pensarmosneles, é muito natural que não pensem em nós.

Perguntareis, então: Evocá-los para quê? Ei-lo.Supondes que estejais na rua, cercado por uma multidão compacta,que fala e murmura aos vossos ouvidos; mas nesse númeropercebeis ao longe um conhecido a quem quereis falar emparticular. Que fazeis, se não puderdes ir a ele? Chamais e ele vema vós. Dá-se o mesmo com os Espíritos. Ao lado dos queestimamos e que talvez nem sempre lá estejam, existe a multidãodos indiferentes. Se quiserdes fazer falar um determinado Espírito,como não podeis ir até ele, retido que estais pela grilheta corporal,vós o chamais; nisto consiste todo o mistério da evocação, que nãotem outro objetivo senão dirigir-vos a quem quiserdes, e não darouvidos ao primeiro que se apresente. Nas comunicações ocultas eespontâneas, de que há pouco falamos, os Espíritos que nosassistem nos são desconhecidos; fazem-no sem que o saibamos;por meio das manifestações materiais, escritas ou outras, revelam asua presença de maneira patente e podem dar-se a conhecer, casoo queiram: é um meio de saber com quem se trata e se temos emnosso redor amigos ou inimigos. Ora, os inimigos não faltam nomundo dos Espíritos, como entre os homens. Lá, como cá, os maisperigosos são os que não conhecemos. O Espiritismo prático dá-nos os meios de conhecê-los.

Em suma, quem só conhece o Espiritismo pelas mesasgirantes faz dele uma idéia tão mesquinha e tão pueril quantoaquele que só conhecesse a Física por certos brinquedos infantis.Mas, quanto mais se avança, mais o horizonte se amplia; só entãose compreende o seu verdadeiro alcance, porque ele nos desvendauma das forças mais poderosas da Natureza, força que atua, aomesmo tempo, sobre o mundo moral e o mundo físico. Ninguémcontesta a reação que sobre nós exerce o meio material, visível ouinvisível, no qual estamos mergulhados. Se estamos numa multidão,essa multidão de seres também atua sobre nós, moral e fisicamente.

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Quando morremos, as nossas almas vão para algumlugar. Aonde vão? Como não há para elas nenhum lugar fechadoe circunscrito, o Espiritismo diz e prova pelos fatos que esse algumlugar é o espaço; elas formam em torno de nós uma populaçãoinumerável. Ora, como admitir que esse meio inteligente tenhamenos ação que o meio ininteligente? Aí está a chave de um grandenúmero de fatos incompreendidos, que o homem interpretaconforme os seus preconceitos e que explora ao sabor das paixões.Quando essas coisas forem compreendias por todos, desaparecerãoos preconceitos e o progresso poderá seguir sua marcha sementraves. O Espiritismo é uma luz que aclara os mais tenebrososrecônditos da sociedade; é, pois, muito natural que aqueles quetemem a luz busquem extingui-la. Mas, quando a luz tiver tudopenetrado, será preciso que os que buscam a escuridão se decidama viver em plena luz; veremos, então, cair muitas máscaras. Todohomem que realmente quer o progresso não pode ficar indiferentea uma das causas que mais devem contribuir para ele e que preparauma das maiores revoluções morais até agora sofridas pelaHumanidade. Como se vê, estamos longe das mesas girante: é quehá também a mesma distância deste modesto começo até suasconseqüências, quanto houve da maçã de Newton para a gravitaçãouniversal.

Apreciação da História do MaravilhosoDO SR. LOUIS FIGUIER, PELO SR. ESCANDE,

Redator da Mode Nouvelle

Nos artigos que publicamos sobre esta obraprocuramos nos ater principalmente ao ponto de partida do autor,o que não nos foi difícil, pois citando as suas próprias palavrasprovamos que ele se baseia em idéias materialistas. Sendo falsa abase, pelo menos do ponto de vista da imensa maioria dos homens,as conseqüências que dela tirou contra os fatos que qualifica demaravilhosos, são, por isso mesmo, eivadas de erro. Isto não

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impediu que alguns de seus colegas da imprensa exaltassem omérito, a profundidade e a sagacidade da obra. Contudo, nem todossão dessa opinião. A respeito, encontramos na Mode Nouvelle17

jornal mais sério que o seu título, um artigo tão notável pelo estiloquanto pela justeza das apreciações. Sua extensão não nos permitecitá-lo por inteiro; aliás, o autor promete outros, porque neste nãose ocupa muito senão do primeiro volume. Nossos leitores nosserão gratos por lhes darmos alguns fragmentos.

I

“Este livro tem grandes pretensões, embora nãojustifique nenhuma. Queria passar por erudito: afeta ciência eostenta um aparente luxo de pesquisas, mas sua erudição ésuperficial, sua ciência incompleta e suas pesquisas prematuras emal digeridas. O Sr. Louis Figuier deu-se à especialidade derecolher, um a um, os mil pequenos fatos que brotam, dia a dia, emtorno das academias, como essas longas carreiras de cogumelos quenascem da noite para o dia sobre as camadas criptogamíferas,organizando livros que fazem concorrência à Cozinha Burguesa eaos tratados do Bom Homem Ricardo. Habituado a esse trabalho decomposições fáceis – inferior ao trabalho de compilação desse bomAbade Trublet, do qual Voltaire zombou espirituosamente – e queforçosamente lhe deixa lazeres, disse a si mesmo que não seriamais difícil explorar a paixão do sobrenatural que, mais do quenunca excita as imaginações, do que utilizar os palavrórios quasesempre ociosos da segunda classe do Instituto. Habituado a redigirrevistas científicas, repisando o que é dos outros, com os resumosde relatórios que por sua vez resume, com as teses e memórias queanalisa; hábil em transformar mais tarde em volumes esses resumosde resumos, põe-se à obra. E, fiel ao seu passado, compulsou àspressas todos os tratados sobre a matéria, que lhe caíram à mão,esmigalhou-os, depois tornou a amassar essas migalhas à sua

17 Escritório, Rua Sainte-Anne, 63; no de 22 de fevereiro de 1861. Preçopor no, 1 fr.

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maneira, com elas compondo um livro, depois do que – nãoduvidamos – tenha exclamado com Horácio: Exegi monumentum;“eu também erigi um monumento, que será mais durável que obronze!”

“E ele teria razão para sentir-se orgulhoso de sua obra,se a qualidade fosse medida pela quantidade. Com efeito, essahistória do maravilhoso não forma menos que quatro grossosvolumes e só contém a história do maravilhoso nos temposmodernos, a partir de 1630 até os nossos dias; apenas dois séculos,o que suporia ao menos um pouco mais do dobro que as maisvolumosas enciclopédias, caso encerasse a história do maravilhosoem todos os tempos e em todos os povos! Assim, quando se pensaque esse fragmento de monografia, de tão vasta extensão, não lhecustou senão alguns meses de trabalho, somos levados a crer queuma produção, ao mesmo tempo tão grande e tão apressada, é maisextraordinária que as maravilhas que contém. Mas essafecundidade deixa de ser um prodígio quando se estuda de perto oprocesso de composição por ele utilizado, que, na verdade, lhe é tãofamiliar que não poderíamos esperar fosse empregado outro. Emvez de condensar os fatos, de os expor sumariamente, denegligenciar detalhes inúteis, de destacar principalmente ascircunstâncias características, e em seguida discuti-los, aplicou-seapenas em escrever um folhetim mais longo que os quesemanalmente escreve na Presse. Armado de uma tesoura pinçoudas obras anteriores à sua o que poderia favorecer as idéiaspreconcebidas que desejava fazer triunfar, afastando o que pudessecontrariar a opinião que a priori havia formado sobre essaimportante questão, sobretudo o que obviasse a explicação naturalque se propunha dar das manifestações qualificadas comosobrenaturais, pelo que os livres-pensadores são unânimes emchamar de credulidade pública. Porque é ainda uma das pretensõesde seu livro – e essa pretensão não é mais bem justificada que asoutras – dar uma solução física ou médica nova, achada por ele,solução triunfante, inatacável, doravante ao abrigo das objeções

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dos homens bastante simples para crer que Deus é mais poderosoque os nossos sábios. Ele o repete em cem diferentes passagens desua obra, a fim de que ninguém o ignore e com a esperança de queacabarão por crê-lo, não obstante se limite a repetir o que a respeitodisseram, antes dele, os físicos e os médicos, os filósofos e osquímicos, que têm mais horror ao sobrenatural do que Pascal tinhaao vácuo.

“Daí resulta que essa história do maravilhoso carece, aomesmo tempo, de autoridade e de proporções. Do ponto de vistadogmático, não ultrapassa as negações dos negadores anteriores;não acrescenta nenhum argumento aos raciocínios jádesenvolvidos, e nesta questão, como em todas as outras, nãocompreendemos a utilidade dos ecos. Há mais: atormentado pelodesejo de parecer fazer melhor que Calmeil, Esquiros, Montègre,Hecquet e tantos outros que o precederam e serão sempre seusmestres, o Sr. Louis Figuier muitas vezes se perde no labirintoconfuso das demonstrações que lhes toma de empréstimo,querendo delas apropriar-se, acabando por rivalizar na lógica como Sr. Babinet. Quanto aos fatos, ele os acumulou em grandequantidade, embora um pouco ao acaso, truncando uns,desprezando outros, limitando-se a reproduzir de preferência osque pudessem oferecer um certo atrativo à leitura, prova de quevisou, principalmente, um sucesso fácil, a ter de lutar com osromancistas do dia. Ficamos mesmo a nos perguntar como ele nãoinduziu o editor a incluir sua obra na divertida Biblioteca dasEstradas de Ferro, a fim de que alcançasse mais diretamente essamultidão que lê para se distrair e jamais para instruir-se.

“Não contestamos que seu livro seja divertido, se bastara um livro, para ter esse mérito, que se assemelhe a uma coleção deanedotas, compostas de historietas amontoadas, tendo em vista opitoresco, sem muita preocupação com a verdade. Isto não oimpede de gabar-se a cada instante e sem propósito algum de suaimparcialidade, de sua veracidade: uma pretensão a mais, a

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acrescentar a todas as que destacamos e na qual se pavoneia comtanto mais afetação quanto não dissimula se ela lhe faz falta. Talqual é, não poderíamos compará-lo melhor do que a essesrestaurantes improvisados, pródigos de comestíveis, que não têmde sedutores senão a aparência, e que servem aos consumidoressem muita preocupação com a etiqueta. Mais superficial queprofundo, ali o importante é sacrificado ao fútil, o principal aoacessório, o lado dogmático ao lado episódico; aliás, as lacunas sãotão abundantes quanto as coisas inúteis e, para que nada falte, estácheio de contradições, afirmando aqui o que nega adiante, de modoque seríamos tentado a crer que, diferentemente do célebre Picodella Mirandola – capaz de dissertar de omni re simili – o Sr. LouisFiguier aventurou-se a ensinar aos outros o que ele próprio nãosabia.

II

“Poderíamos limitar aqui o exame dessa história domaravilhoso, se não tivéssemos de justificar estas severas, masjustas apreciações. Para começar, precisaremos acrescentar queaquele que a escreveu não acredita na possibilidade dosobrenatural? Não o cremos. Em sua qualidade de acadêmicosupranumerário – um supranumerário que provavelmente sóterminará com a sua vida; – em virtude dos poderes que lhe confereseu título de folhetinista científico, ele não podia sustentar outratese sem se expor a ser colocado no index pelo exército dosincrédulos, dos quais se julga suscetível de fazer parte. Ele tambémnão crê e, a respeito, sua incredulidade está acima de suspeitas. Eleé do número “desses espíritos sábios que, testemunhas da expansãoimprevista do maravilhoso contemporâneo, não podemcompreender uma tal alucinação em pleno século XIX, com umafilosofia avançada e em meio a esse magnífico movimentocientífico que dirige tudo hoje para o positivo e o útil.” –Reconhecemos que deve ser penoso para “esses espíritos sábios”ver que o espírito público assim se recusa a despojar-se de seus

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velhos preconceitos e persiste em ter outras crenças, diversas dopositivismo filosófico, que, entretanto, são as de todos os animais.Além disso, esse dissabor não data apenas dos nossos dias. O Sr.Louis Figuier o confessa, não sem despeito, quando pergunta, emtermos que denotam estupefação, como é possível que omaravilhoso tenha resistido ao século XVIII, “o século de Voltairee da Enciclopédia, enquanto os olhos se abrem às luzes dobom-senso e da razão.” Que fazer, então? Tão vivaz é essa crençano maravilhoso, consagrada por todas as religiões, que foi a detodos os tempos, de todos os povos, sob todas as latitudes e emtodos os continentes, que os livres-pensadores, satisfeitos por tê-laagitado por si e para si mesmos, agiriam com sabedoria em abster-se, doravante, de um proselitismo cujo insucesso sabem inevitável.

“Mas o Sr. Figuier não é desses corações pusilânimesque se apavoram por antecipação em face da inutilidade de seusesforços. Cheio de confiança e de bazófia em sua força, vangloria-se de realizar o que Voltaire, Diderot, Lamétrie, Dupuis, Volney,Dulaure, Pigault-Lebrun; o que Dulaurens com o seu CompèreMathieu, o que os químicos com os seus alambiques, os físicos comas suas pilhas elétricas, os astrônomos com seus compassos, ospanteístas com seus sofismas, o trocista malévolo com seucepticismo desprezível, foram impotentes para realizar. Ele sepropôs demonstrar de novo e triunfalmente desta vez, que “osobrenatural não existe e jamais existiu” e, em conseqüência, que“os prodígios antigos e contemporâneos podem todos seratribuídos a uma causa natural.” A tarefa é árdua: até aqui os maisintrépidos sucumbiram. Mas “semelhante conclusão, quenecessariamente afastaria todo agente sobrenatural, seria umavitória da Ciência sobre o espírito de superstição, em favor da razãoe da dignidade humanas”, e essa vitória lisonjeou a sua ambição; –vitória fácil, afinal de contas, mais fácil do que pensamos, se o Sr.Figuier não se tiver enganado quando diz, em sua introdução, que“nosso século se inquieta muito pouco com as matérias teológicase as disputas religiosas.” Então, para que se armar em guerra

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contra uma crença que não existe? Para que atacar opiniões deteologia, com as quais ninguém se inquieta? Para que se prender asuperstições religiosas que não mais nos preocupam? “Vitória semperigo é triunfo sem glória”, diz o poeta, e não convém tocarmuito alto a trombeta guerreira, se não tem a combater senãomoinhos de vento. Que quereis? O Sr. Louis Figuier tinhaesquecido, ao escrever isto, o que havia escrito acima, quandoconfessava, com a vergonha no rosto, que o nosso século, surdoàs lições da Enciclopédia e aos ensinos da imprensa leiga, se tinhasubitamente inflamado pelo maravilhoso e, mais que seusantepassados, acreditava no sobrenatural, aberraçãoincompreensível, da qual ambicionava curá-lo. Mas estacontradição é tão insignificante que talvez não valesse a pena serassinalada; veremos muitas outras e ainda seremos obrigados anegligenciar muitas!

Assim, o Sr. Figuier nega que se produzam em nossosdias, ou que se tenham produzido em qualquer tempo,manifestações sobrenaturais. No caso de milagres, só a Ciência ospode fazer: o poder de Deus foi até aí. Ainda quando digamos queDeus não tem tal poder, temos uma espécie de escrúpulo detraduzir incompletamente o seu pensamento. Reconhece ele umoutro deus, além do deus natureza, tão admirável na sua inteligênciacega, e que realiza maravilhas sem o suspeitar, deus querido dossábios, porque é bastante complacente para lhes deixar crer queusurpam diariamente uma fatia de sua soberania? É uma questãoque não nos permitimos aprofundar.

“Mediocremente maravilhosa, essa história domaravilhoso começa por uma introdução que o Sr. Louis Figuierchama um golpe de vista rápido lançado ao sobrenatural naAntigüidade e na Idade Média, da qual nada diremos, porque nãoteríamos muito a dizer. As mais importantes manifestações aí sãodesfiguradas sob pretexto de resumo, e compreende-se que seriapreciso muito tempo e espaço para restituir a verdadeira

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fisionomia aos milhares de fatos que nela só figuram de maneiraexcessivamente abreviada.

“O edifício é digno do peristilo. Essa história domaravilhoso durante os dois últimos séculos abre-se para o relatodo caso de Urbain Grandier e das religiosas de Loudun; vem aseguir a varinha mágica, os Tremedores das Cévennes, osConvulsionários Jansenistas, Cagliostro, o magnetismo e as mesasgirantes. Quanto à possessão de Louviers nem uma palavra, etambém nem uma nota sobre os iluminados, os martinistas, oswedenborgismo, os estigmatizados do Tirol e a notávelmanifestação das crianças na Suécia, há menos de cinqüenta anos;disse apenas uma palavra sobre os exorcismos do padre Gassner, emenos de uma página insignificante é consagrada à vidente dePrevorst. O Sr. Louis Figuier teria feito melhor se intitulasse seulivro: Episódios da história do maravilhoso nos tempos modernos,ainda que os episódios que escolheu possam dar origem a sériasobjeções. Ninguém jamais atribuiu às prestidigitações de Cagliostrouma significação sobrenatural. Era um hábil intrigante, que detinhaalguns segredos curiosos, de que sabia servir-se habilmente paraseduzir aqueles que queria explorar e, sobretudo, um intrigante quepossuía numerosos comparsas. Cagliostro merecia antes um lugarna galeria dos precursores revolucionários do que no pandemôniodos feiticeiros. Igualmente não vemos o que o magnetismo tem afazer nessa história do maravilhoso, principalmente do ponto devista em que o Sr. Louis Figuier se colocou. O magnetismo ressaltada Academia de Medicina e da Academia das Ciências, que odesdenharam muito; mas não pode interessar o supranaturalismosenão por ocasião de algumas de suas manifestações, aliásnegligenciadas pelo Sr. Louis Figuier, a fim de reservar o espaçoque consagrou ao relato da vida de Mesmer, das experiências doMarquês de Puységur e do incidente relativo ao famoso relatório doSr. Husson. Há dois anos tratamos dessa importante questão e a elanão voltaremos, pois apenas nos repetiríamos. Também

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deixaremos de lado a das mesas girantes, que examinamos namesma época. Entretanto, muito haveria a dizer sobre a explicaçãonatural e física que o Sr. Louis Figuier pretende dar dessa dança dasmesas e das manifestações que se lhe seguem; mas é preciso saberlimitar-se. Deixemo-lo, pois, debater-se com a Revista Espiritualistae com a Revista Espírita, duas revistas publicadas em Paris pelosadeptos da crença na manifestação dos Espíritos, que o acusam deter escrito o seu requisitório sem haver previamente ouvido astestemunhas e consultado as peças do processo. Uma e outraafirmam que ele jamais assistiu a uma única sessão espiritualista eque, à sua chegada, teve o cuidado de declarar que sua opiniãoestava formada e nada o faria mudá-la.

“É verdade? Não sabemos. Tudo quanto podemosafirmar é que, depois de ter repelido, com justa razão, a solução doSr. Babinet, pelos movimentos nascentes e inconscientes, acabouadotando-a por conta própria, tanto é ele inconsciente do quepensa e escreve. Eis a prova: “Nessas reuniões de pessoasfixamente ligadas durante vinte minutos ou meia hora, a formar acorrente, mãos abertas sobre a mesa, sem ter a liberdade de distrair,mesmo por um instante, a atenção da operação em que tomamparte, a maioria não experimenta nenhum efeito particular. Mas émuito difícil que uma delas, uma só que se queira, por ummomento não caia no estado hipnótico ou biológico. (Ohipnotismo lhe dá resposta a tudo, como veremos mais tarde.) Nãoé necessário que esse estado dure mais que um segundo para que ofenômeno esperado se realize. O membro da corrente, caído nessemeio-sono nervoso, não mais tendo consciência de seus atos, nem outropensamento senão a idéia fixa da rotação da mesa, imprime, sem osaber, o movimento ao móvel.” Por que, então, não começaria atroçar de si mesmo, uma vez que gostava de troçar do Sr. Babinet?Teria sido lógico, sobretudo depois de ter anunciado que vinhaesclarecer o mistério, desde que só colocava em sua lanterna umaluzinha tão ridícula quanto a que antes havia iluminado o sábio

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acadêmico. Mas a lógica e o Sr. Louis Figuier divorciaram-se nessahistória do maravilhoso. Ah! por mais pretendam os ecos que elesvão falar, seus esforços só conseguem repetir o que ouvem.

“Quanto aos longos capítulos consagrados à varinhamágica e, em particular, a Jacques Aymar, inicialmente nospermitimos observar-lhe que ele se ilude se pensa que o problemafoi estudado suficientemente pelo Sr. Chevreul. É uma fantasia quepode deixar, se bem lhe parecer, àquele sábio; mas, fora daAcademia das Ciências, não encontrará ninguém que admita que ateoria do pêndulo explorador responda a todas as objeções. A fraseatribuída a Galileu “E, contudo, ela gira!” poderia muito bem seraplicada à varinha mágica. Ela girou e gira, a despeito dos cépticosque negam o movimento, porque se recusam a ver; os milhares deexemplos que poderíamos citar – e que cita o próprio Sr. LouisFiguier – atestam a realidade do fenômeno. Gira por um impulsodiabólico ou espírita, como se diria hoje, ou sob a impressão querecebe de alguns eflúvios desconhecidos? Repelimos com muitogosto qualquer influência sobrenatural, embora ela possa seradmitida em certos casos. O que não nos parece provado é ainexistência de fluidos desconhecidos. Entre outros, conta o fluidomagnético numerosos partidários, cujas afirmações merecem tantaautoridade quanto as negações de seus adversários. Seja como for,a varinha mágica realizou maravilhas que podem nada ter desobrenatural, mas que a Ciência é incapaz de explicar, ela que, aliás,muito pouco explica de todas as que vemos produzir-sediariamente à nossa volta, na vida do menor pé de erva. A modéstiaé uma virtude que lhe faz falta, e que ele faria bem em adquirir.

“Entre outras maravilhas, as que realizava JacquesAymar, do qual falamos há pouco, mereciam ser relatadasminuciosamente. Certa vez, entre outras, ele foi chamado a Lyon,no dia seguinte a um grande crime cometido naquela cidade.Armado de sua varinha, explorou a adega que tinha sido o teatrodo crime, declarando que os assassinos eram três; depois, começou

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a seguir suas pegadas, que o conduziram a um jardineiro, cuja casaestava situada à margem do Ródano, o qual afirmou que eles alihaviam entrado e bebido uma garrafa de vinho. O jardineiroprotestou, negando; mas, interrogados, seus filhos pequenosconfessaram que três indivíduos tinham vindo, na ausência do pai,e que lhes haviam vendido vinho. Então Aymar, retomando ocaminho e sempre conduzido pela varinha, descobriu o local ondetinham embarcado no Ródano, entrou numa canoa, desceu emtodos os lugares onde eles desceram, foi ao campo de Sablon, entreVienne e Saint-Vallier, achou que ali demoraram alguns dias,continuou a sua perseguição e, de etapa em etapa, chegou atéBeaucaire, em plena feira, percorrendo as suas ruas apinhadas degente e se detendo diante da porta da prisão, onde entrou eapontou um pequeno corcunda como um dos assassinos. A seguirsuas investigações lhe apontaram que os outros dois tinham sedirigido para os lados de Nîmes, mas as autoridades policiais nãoquiseram levar suas pesquisas mais longe. Conduzido a Lyon, ocorcunda confessou o crime e foi esquartejado vivo.

“Eis a proeza de Jacques Aymar e proezas tãosurpreendentes quanto esta são numerosas em sua vida. O Sr. LouisFiguier o admite em todas as circunstâncias. Aliás, não podia fazerde outro modo, desde que é atestado por centenas de testemunhas,cuja veracidade não se pode suspeitar “por três relatos e váriascartas concordantes, escritas pelas testemunhas e pelosmagistrados, homens igualmente honrados e desinteressados e queninguém, no público contemporâneo, suspeitou de um acordoverdadeiramente impossível entre eles.” Mas como aqui umaexplicação física não podia ser aventada, ele se viu obrigado arenunciar ao seu processo ordinário e se atirou num labirinto desuposições mais engenhosas que verossímeis. Transforma JacquesAymar num agente de polícia de uma perspicácia que suplanta a doSr. de Sartines, por mais célebre que seja. Junto a ele, nossos maisinteligentes chefes de polícia de segurança não passariam deescolares. Ele supõe, assim, que esse agitador de varinha, durante as

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três ou quatro horas passadas em Lyon, antes de começar suasexperiências teve tempo de colher informações e descobrir o queas próprias autoridades judiciárias ignoravam. Foi à casa dojardineiro porque era de presumir que os assassinos tivessemembarcado no Ródano, a fim de se afastarem mais depressa;adivinhou que tinham bebido vinho porque tinham sede; abordoua margem do rio em toda parte onde se soube que eles tinhamrealmente atracado, porque esses lugares habituais de acostagemlhe eram conhecidos; deteve-se no campo de Sablon porque eraevidente que queriam ver o espetáculo da reunião de tropas; dirigiu-se a Beaucaire porque era certo que o desejo de dar um bom golpeali os teria conduzido; parou, finalmente, à porta da prisão porqueera provável que um deles tivesse tido o azar de ser preso. “Eis porque vossa filha é muda!” diz Sganarelle; e o Sr. Louis Figuier nãodiz melhor, nem diferente. Sobretudo crê triunfar, porque JacquesAymar, tendo sido mais tarde chamado a Paris, pelos rumores desua fama, aí viu sua perspicácia sofrer reais fracassos, ao lado dealguns triunfos reais também. Mas por esses eclipses, que lhevaleram certo desfavor, menos que qualquer outro, o Sr. LouisFiguier lhe devia censurar; menos que qualquer outro ele poderia sesentir autorizado para o declarar um impostor, ele que sabe melhorque ninguém, ele que reconhece, a propósito do magnetismo, queesses gêneros de experiências são caprichosos, bem-sucedidos numdia e malogrados no outro. A essa inconseqüência ele junta, porfim, uma segunda, menos desculpável. Não contente de acusarJacques Aymar de charlatanismo, pronuncia a mesma condenaçãocontra quase todos os giradores de varinha, cujos gestos e feitosrelata, e na discussão diz: “Entre os numerosos adeptos práticos, sóum pequeno número era de má-fé; ainda não o eram sempre; omaior número operava com inteira sinceridade. Realmente avarinha girava em suas mãos, independente de qualquer artifício, eo fenômeno, enquanto fato, era bem real.” Bem, muito bem, nãopode ser melhor: aí está a verdade. Mas como e por que girava?Impossível escapar a essa interrogação indiscreta. Ora, o Sr. LouisFiguier responde assim: ‘Esse movimento da varinha era operado

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em virtude de um ato de seu pensamento e sem que eles tivessema menor consciência dessa ação secreta de sua vontade.’ Sempreessa inconsciência, mais maravilhosa que o maravilhoso querepelem! Acredite quem quiser.”

Escande

O MarPELO SR. MICHELET

O Sr. Michelet tem de se pôr em guarda, pois todos osdeuses marinhos da Antigüidade se aprestam para o maltratar. É oque nos ensina o Sr. Taxile Delord, num artigo espirituosopublicado pelo Siècle de 4 de fevereiro último. Sua linguagem édigna do Orfeu nos Infernos, das óperas bufas parisienses, comotestemunha esta amostra: Netuno, aparecendo de repente à portada residência de Anfitrite, onde se haviam reunido os descontentes,exclama: “Eis o Netuno chamado. Não me esperáveis agora, caraAnfitrite; é a hora de minha sesta; mas não há meio de fechar osolhos, desde o aparecimento deste diabo de livro intitulado O Mar.Quis percorrê-lo, mas está repleto de frivolidades; não sei de quemares o Sr. Michelet quer nos falar; para mim, é impossívelreconhecer-me nele. Todo mundo sabe muito bem que o martermina nas colunas de Hércules. Que pode haver além?... etc.”

Nem é preciso dizer que o Sr. Michelet triunfa em todaa linha. Ora, após a dispersão de seus inimigos, o Sr. Taxile Delordlhe diz: “Talvez vos sintais à vontade ao saber em que se tornaramos deuses marinhos, desde que o mar os expulsou de seu império.Netuno faz a piscicultura em grande quantidade; Glaucus éprofessor de natação nos banhos de Ouarnier; Anfitrite érecepcionista nos banhos do Mediterrâneo, em Marselha; Nereuaceitou um lugar de cozinheiro nos navios transatlânticos; váriostritões morreram e outros se exibem nas feiras.”

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Não garantimos a exatidão das informações dadas peloSr. Delord sobre a situação atual dos heróis olímpicos; mas, emprincípio e sem o querer, ele disse algo mais sério do quetencionava dizer.

Entre os Antigos a palavra deus tinha uma acepçãomuito elástica. Era uma qualificação genérica aplicada a todo serque lhes parecia elevar-se acima do nível da Humanidade. Eis porque divinizaram seus grandes homens. Não os acharíamos tãoridículos se não nos tivéssemos servido da mesma palavra paradesignar o Ser Único, soberano senhor do Universo. Os Espíritos,que existiam então como hoje, lá se manifestavam igualmente, eesses seres misteriosos também deviam, conforme as idéias daépoca, e ainda com maior razão, pertencer à classe dos deuses.Olhando-os como seres superiores, os povos ignorantes lhesrendiam culto; os poetas os cantaram e semearam a sua história deprofundas verdades filosóficas, ocultas sob o véu de engenhosasalegorias, cujo conjunto formou a mitologia pagã. O vulgo, quegeralmente só vê a superfície das coisas, tomou a figura ao pé daletra, sem rebuscar o fundo do pensamento, absolutamente comoaquele que, hoje, não visse nas fábulas de La Fontaine senãoconversas de animais.

Tal é, em substância, o princípio da mitologia. Osdeuses não eram, pois, senão os Espíritos ou as almas dos seresmortais, como os dos nossos dias; mas as paixões que a religiãopagã lhes emprestava não dão uma idéia brilhante de sua elevaçãona hierarquia espírita, a começar por seu chefe, Júpiter, o que nãoos impedia de deleitar-se com o incenso que queimavam em seusaltares. O Cristianismo os despojou de seu prestígio e oEspiritismo, hoje, os reduziu ao seu real valor. Sua própriainferioridade pôde sujeitá-los a várias reencarnações na Terra.Poderíamos, pois, entre nossos contemporâneos encontrar algunsEspíritos que outrora tivessem recebido honras divinas, e que, nempor isso, seriam mais adiantados. O Sr. Taxile Delord, que sem

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dúvida nisso não acredita, por certo quis apenas fazer umabrincadeira. Mas, sem o saber, não deixou de dizer uma coisa talvezmais verdadeira do que pensava, ou, pelo menos em tese, que nãoé materialmente impossível. Assim, muitas pessoas, imitando o Sr.Jourdain, fazem Espiritismo, mau grado seu.

Conversas Familiares de Além-TúmuloALFRED LEROY, SUICIDA

(Sociedade Espírita de Paris, 8 de março de 1861)

O Siècle de 2 de março de 1861 relata o seguinte fato:

Num terreno baldio, no ângulo do caminho dito daArcada, que conduz de Conflans a Charenton, operários que iamao trabalho, ontem pela manhã, encontraram enforcado numpinheiro muito alto um indivíduo que cessara de viver.

Prevenido do fato, o comissário de polícia deCharenton dirigiu-se ao local, acompanhado pelo Dr. Josias eprocedeu às comprovações.

Diz o Droit que o suicida era um homem de cerca decinqüenta anos, de fisionomia distinta, vestido de maneiraconveniente. De um de seus bolsos retiraram um bilhete a lápis,assim redigido: “Onze horas e três quartos da noite; subo aosuplício. Deus me perdoará os erros.”

O bolso encerrava ainda uma carta sem endereço e semassinatura, cujo conteúdo é o seguinte:

“Sim, lutei até o último extremo! Promessas, garantias,tudo me faltou. Eu podia chegar; tinha tudo a crer, tudo a esperar;uma falta de palavra me mata; não posso mais lutar. Abandono estaexistência, desde algum tempo tão dolorosa. Cheio de força e de

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energia, sou obrigado a recorrer ao suicídio. Tomo Deus portestemunha, eu tinha o maior desejo de me desobrigar para com osque me haviam auxiliado no infortúnio; a fatalidade me esmaga:tudo se contrapõe a mim. Abandonado subitamente por aquelesque representei, sofro a minha sorte. Confesso que morro sem fel;mas, por mais que digam, a calúnia não impedirá que nos últimosmomentos eu não atraia nobres simpatias. Insultar o homem que sereduziu à ultima das resoluções seria uma infâmia. É muito tê-loreduzido a isto. A vergonha não será toda minha; o egoísmo meterá matado.”

Conforme outros papéis, o suicida era um tal AlfredLeroy, de cinqüenta anos, originário de Vimoutiers (Orne). Aprofissão e o domicílio são desconhecidos e, depois dasformalidades ordinárias, o corpo, que ninguém reclamou, foi parao necrotério.

1. Evocação.Resp. – Não venho como supliciado; estou salvo!

Alfred.

Observação – As palavras: Estou salvo! surpreenderam amaioria dos assistentes. Sua explicação foi pedida no desenrolar daconversa.

2. Soubemos pelos jornais do ato de desespero peloqual sucumbistes e, embora não vos conheçamos, vos lamentamos,pois a religião exige que compartilhemos da dor de todos os nossosirmãos infelizes; e é para vos testemunhar simpatia que voschamamos.

Resp. – Devo calar os motivos que me impeliram a esseato de desespero. Agradeço o que fazeis por mim; é uma felicidade,uma esperança a mais; obrigado!

3. Podeis dizer, primeiramente, se tendes consciência devossa situação atual?

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Resp. – Perfeita. Sou relativamente feliz; não me suicideipor causas puramente materiais; crede que havia mais, como odemonstraram as minhas últimas palavras. Foi uma mão-de-ferroque me agarrou. Quando encarnei na Terra, vi o suicídio no meufuturo. Era a prova contra a qual tinha de lutar. Quis ser mais forteque a fatalidade e sucumbi.

Observação – Ver-se-á logo que esse Espírito não escapaà sorte dos suicidas, malgrado o que acaba de dizer. Quanto àpalavra fatalidade, é evidente que nele é uma lembrança das idéiasterrenas; põe-se à conta da fatalidade todas as desgraças que não sepodem evitar. Para ele o suicídio era a prova contra a qual tinha delutar; cedeu ao arrastamento ao invés de resistir, em virtude de seulivre-arbítrio, e acreditou que estivesse em seu destino.

4. Quisestes escapar a uma situação deplorável pelosuicídio; ganhastes alguma coisa com isto?

Resp. – Aí está o meu castigo: a vergonha do meuorgulho e a consciência da minha fraqueza.

5. Segundo a carta encontrada convosco, parece que adureza dos homens e uma falta de palavra vos conduziram àprópria destruição. Que sentimento experimentais agora pelos queforam a causa dessa resolução funesta?

Resp. – Oh! não me tenteis, não me tenteis, eu vossuplico!

Observação – Esta resposta é admirável; pinta a situaçãodo Espírito lutando contra o desejo de odiar aqueles que lhefizeram mal, e o sentimento do bem, que o impele a perdoar. Receiaque esta pergunta provoque uma resposta que a sua consciênciareprova.

6. Lamentais o que fizestes?Resp. – Eu já vos disse que meu orgulho e minha

fraqueza são a sua causa.

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7. Quando vivo acreditáveis em Deus e na vida futura? Resp. – Minhas últimas palavras o provam; marcho para

o suplício.

Observação – Ele começa a compreender sua posição,sobre a qual a princípio pôde ter uma ilusão, porque não podia sersalvo e marchar para o suplício.

8. Tomando essa resolução, que pensáveis que vosaconteceria?

Resp. – Eu tinha bastante consciência da justiça paracompreender o que agora me faz sofrer. Por um momento tive aidéia do nada, mas a repeli bem depressa. Não me teria matado setivesse tal idéia; primeiro me haveria vingado.

Observação – Esta resposta é, ao mesmo tempo, muitológica e muito profunda. Se ele acreditasse no nada após a morte,em vez de se matar ter-se-ia vingado ou, pelo menos, teriacomeçado por se vingar. A idéia do futuro o impediu de cometerum duplo crime; com a do nada, o que teria a temer, se quisessetirar a própria vida? Não mais temia a justiça dos homens e teria oprazer da vingança. Tal a conseqüência das doutrinas materialistasque certos sábios se esforçam em propagar.

9. Se estivésseis bem convencido de que as mais cruéisvicissitudes da vida são provas muito curtas em face da eternidade,teríeis sucumbido?

Resp. – Muito curtas, eu o sabia, mas o desespero nãopode raciocinar.

10. Rogamos a Deus que vos perdoe e em vosso favorlhe dirigimos esta prece, à qual todos nos associamos:

“Deus todo-poderoso, sabemos a sorte reservada aosque abreviam os seus dias e não podemos entravar a vossa justiça.Mas sabemos também que a vossa misericórdia é infinita. Possa elaestender-se sobre a alma de Alfred Leroy! Possam também nossas

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preces, mostrando-lhe que há na Terra seres que se interessam porsua sorte, aliviar os sofrimentos que suporta por não ter tido acoragem de resistir às vicissitudes da vida!

“Espíritos bons, cuja missão é aliviar os infelizes,tomai-o sob vossa proteção; inspirai-lhe o pesar pelo que fez e odesejo de progredir por novas provas, que saberá suportar melhor.”

Resp. – Esta prece me faz chorar e, por isso, sou feliz.

11. Dissestes no início: agora estou salvo. Comoconciliar estas palavras com o que dissestes depois: Marcho para osuplício?

Resp. – E como entendeis a bondade divina? Eu nãopodia viver; era impossível. Credes que Deus não veja o impossívelneste caso?

Observação – Em meio a algumas respostasnotavelmente sensatas, há outras – e esta é de seu número – quedenotam neste Espírito uma idéia imperfeita de sua situação. Istonada tem de extraordinário, se pensarmos que ele morreu hápoucos dias.

12. [A São Luís] Podeis dizer a sorte do infeliz queacabamos de invocar?

Resp. – A expiação e o sofrimento. Não, não hácontradição entre as primeiras palavras desse infortunado e suasdores. Ele se diz feliz; feliz pela cessação da vida. E como ainda estápreso aos laços terrenos, sente apenas a ausência do mal terreno;mas quando seu Espírito elevar-se, os horizontes da dor, daexpiação lenta e terrível desenrolar-se-ão diante dele e oconhecimento do infinito, ainda velado aos seus olhos, ser-lhe-á osuplício que entreviu.

13. Que diferença estabeleceis entre este suicida e o daSamaritana? Ambos se mataram de desespero e, no entanto, suasituação é bem diferente; este se reconhece perfeitamente; fala com

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lucidez e ainda não sofre, ao passo que o outro não acreditava estarmorto e desde os primeiros instantes sofria um suplício cruel, o deter a impressão de sentir seu corpo em decomposição.

Resp. – Uma imensa diferença. O suplício de cada umdesses homens reveste o caráter próprio de seu progresso moral. Oúltimo, alma fraca e alquebrada, suportou tanto quanto creu.Duvidou de sua força, da bondade de Deus, mas nem blasfemounem amaldiçoou; seu suplício interior, lento e profundo, terá amesma intensidade da dor que sentiu o primeiro suicida. Apenasnão é uniforme a lei de expiação.

Nota – A narrativa do suicida da Samaritana foipublicada no fascículo de junho de 1858.

14. Aos olhos de Deus qual o mais culpado e qual o quesofrerá o grande castigo: este que sucumbiu à sua fraqueza ouaquele que, por sua dureza, foi levado ao desespero?

Resp. – Seguramente o que sucumbiu pela tentação.

15. A prece que por ele dirigimos a Deus lhe será útil? Resp. – Sim, a prece é um orvalho benfazejo.

JULES MICHEL

Morto aos 14 anos, amigo do filho da médium, Sra. Costel,evocado 8 dias após a morte

1. Evocação.Resp. – Agradeço por me evocardes. Lembro-me de vós

e dos passeios que nos fizestes dar no parque Monceau.

2. E que dizeis do vosso camarada Charles?Resp. – Charles sente muito pesar por minha morte.

Mas estou morto? Vejo, vivo, penso como antes, apenas não meposso tocar, nem reconheço nada do que me cerca.

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3. Que vedes?Resp. – Vejo uma grande claridade; meus pés não tocam

o solo; deslizo; sinto-me arrastado. Vejo formas brilhantes e outrasenvoltas em branco; pressionam-me e me rodeiam; uns mesorriem, outros me metem medo com seus olhares negros.

4. Vedes a vossa mãe?Resp. – Ah! sim. Vejo minha mãe, minha irmã e meu

irmão. Ei-los todos! Minha mãe chora muito. Gostaria de lhe falarcomo vos falo; ela veria que não estou morto. Como fazer, então,para a consolar? Peço-vos que faleis de mim. Queria também quedissésseis a Charles que vou me divertir bastante ao vê-lo trabalhar.

5. Vedes o vosso corpo?Resp. – Mas, claro; vejo-o lá, deitado, todo duro.

Entretanto, não estou naquele buraco, uma vez que me encontro aqui.

6. Onde estais, então?Resp. – Estou ali, junto de vossa mesa, à direita. Acho

engraçado que não me vejais; eu vos vejo tão bem!

7. O que sentistes quando deixastes o corpo?Resp. – Não me lembro bem do que senti então; tinha

muita dor de cabeça e via tudo quanto é tipo de coisas ao redor demim. Estava completamente entorpecido; queria mover-me e nãopodia; as mãos estavam molhadas de suor e sentia uma grandeagitação em meu corpo; depois nada mais senti e despertei bastantealiviado; não sofria mais e estava leve como uma pluma. Então mevi em meu leito e, contudo, não estava nele; vi toda amovimentação que faziam e fui para outra parte.

8. Como soubestes que eu vos chamava?Resp. – Não me dou muita conta de tudo isto. Ouvi

bem que há pouco me chamáveis e vim imediatamente, porque,como dizia a Charles, não sois enfadonha. Adeus, senhora, até maisver. Voltarei a vos falar, não é verdade?

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Correspondência

Roma, 2 de março de 1861.

Senhor,

Há cerca de quatro anos ocupo-me aqui dasmanifestações espíritas e tenho a felicidade de contar na famíliacom um bom médium, que nos dá comunicações de ordemsuperior. Temos lido e relido vosso O Livro dos Espíritos, que nosproporciona alegria e consolação, dando-nos as mais sublimes eadmissíveis noções da vida futura. Se desta pudesse duvidar, asprovas que tenho agora são mais que suficientes para consolidar aminha fé. Perdi pessoas que me eram muito caras e tenho ainapreciável felicidade de saber que elas são felizes e possocorresponder-me com elas. Dizer da alegria que por issoexperimentei é inexprimível. A primeira vez que me deram sinaismanifestos de sua presença, exclamei: Então é verdade que nemtudo morre com o corpo! Eu vos devo, senhor, o ter-me dado essaconfiança. Crede em minha eterna gratidão pelo bem que mefizestes, porque, mau grado meu, o futuro me atormentava. A idéiado nada era horrível e, fora do nada, só encontrava uma incertezaatormentadora. Nada de dúvida, agora; parece que renasci para avida; todas as minhas apreensões se dissiparam e minha confiançaem Deus voltou mais forte que nunca. Espero muito que, graças avós, meus filhos não tenham os mesmos tormentos, pois sãoalimentados com as verdades que a razão crescente não pode nelessenão fortificar-se.

Todavia, faltava-nos um guia seguro para a prática. Senão temesse importunar-vos, desde muito já vos teria pedidoconselhos da vossa experiência. Felizmente vosso O Livro dosMédiuns veio preencher essa lacuna, e agora marchamos a passomais firme, pois estamos prevenidos contra os escolhos que sepodem encontrar.

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Estou enviando, senhor, algumas amostras dascomunicações que há pouco recebemos. Foram escritas em italianoe sem dúvida perderam na tradução. Apesar disto serei muito gratose me disserdes o que pensais delas, caso me favoreçais com umaresposta. Será um encorajamento para nós.

Peço me desculpeis, senhor, esta longa carta e crede notestemunho de simpatia do vosso devotado,

Conde X...

Nota – A profusão de matérias força-nos a adiar apublicação das comunicações transmitidas pelo Sr. conde X..., emcujo número algumas há admiráveis. Extraímos somente asrespostas seguintes, dadas por um dos Espíritos que se lhemanifestaram:

P. – Conheceis O Livro dos Espíritos?Resp. – Como os Espíritos não conheceriam sua obra?

Todos a conhecem.

P. – É muito natural em relação aos que nelatrabalharam. Mas quanto aos outros Espíritos?

Resp. – Há entre os Espíritos uma comunhão depensamentos e uma solidariedade que não podeis compreender,homens, que vos nutris no egoísmo e não vedes senão pelasestreitas janelas de vossa prisão.

P. – Trabalhastes nela? Resp. – Não; não pessoalmente, mas sabia que devia ser

feita e que outros Espíritos, muito acima de mim, estavamencarregados dessa missão.

P. – Que resultados produzirá?Resp. – É uma árvore que já lançou sementes fecundas

em toda a Terra. Essas sementes germinam; logo amadurecerão eem pouco tempo serão colhidos os frutos.

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P. – Não é de temer a oposição de seus detratores?Resp. – Quando se dissipam as nuvens que obscurecem

o Sol, este brilha com mais vigor.

P. – Então essas nuvens serão dissipadas?Resp. – Basta um sopro de Deus.

P. – Assim, em vossa opinião, o Espiritismo se tornaráuma crença geral?

Resp. – Dizei universal.

P. – Entretanto, há homens que parecem muito difíceisde convencer.

Resp. – Há os que jamais o serão nesta vida, masdiariamente a morte os arrebata.

P. – Não virão outros em seu lugar, e que serão tãoincrédulos quanto eles?

Resp. – Deus quer o triunfo do bem sobre o mal, daverdade sobre o erro, assim como anunciou. É preciso que venhao seu reino; seus caminhos são impenetráveis. Mas crede bem que,para ele, querer é poder.

P. – Algum dia o Espiritismo será aceito aqui?Resp. – Será aceito e florescerá. (No mesmo instante o

Espírito dirige o lápis sobre a penúltima resposta e a sublinha comforça).

P. – Qual pode ser a utilidade do Espiritismo para otriunfo do bem sobre o mal? Para isto não basta a lei do Cristo?

Resp. – Certamente esta lei bastaria, caso a praticassem.Mas, quantos o fazem? Quantos não têm da fé senão a aparência?Assim, vendo Deus que a sua lei era ignorada e incompreendida eque, a despeito dessa lei, o homem vai se precipitando cada vezmais no abismo da incredulidade, quis dar-lhe uma nova marca desua infinita bondade, multiplicando aos seus olhos as provas do

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futuro pelas manifestações brilhantes de que é testemunha,advertindo-os de todos os lados por esses mesmos que deixaram aTerra e lhes vêm dizer: Nós vivemos. Em presença de taistestemunhos, os que resistirem não terão desculpa; expiarão suacegueira e seu orgulho através de novas existências em mundosinferiores, que serão mais penosas, até que finalmente abram osolhos para a luz. Crede bem que, entre os que sofrem na Terra, hámuitos que expiam as existências passadas.

P. – Pode o Espiritismo ser olhado como uma lei nova? Resp. – Não, não é uma lei nova. As interpretações que

os homens deram da lei do Cristo têm gerado lutas que sãocontrárias ao seu espírito. Deus não quer mais que a lei de amor sejaum pretexto de desordem e de lutas fratricidas. Exprimindo-se semrodeios e sem alegorias, o Espiritismo está destinado a restaurar aunidade da crença; é, pois, a confirmação e o esclarecimento doCristianismo, que é e será sempre a lei divina, a que deve reinar emtoda a Terra, cuja propagação vai tornar-se mais fácil por estepoderoso auxiliar.

Ensinos e Dissertações EspíritasVAI NASCER A VERDADE

(Enviado pelo Sr. Sabò, de Bordeaux)

Quais são os dolorosos gemidos que vêm retumbar emmeu coração, fazendo vibrar todas as suas fibras? É a Humanidadeque se debate no esforço de rude e penoso trabalho, porque vai darà luz a Verdade. Acorrei, espíritas, arrumai-vos em redor de seuleito de sofrimento; que os mais fortes entre vós tenham osmembros retesados sob as convulsões da dor; que os outrosesperem o nascimento dessa criança e a recebam nos braços à suaentrada na vida. Chega o momento supremo; num último esforçoela escapa do seio que a havia concebido, deixando sua mãe por

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algum tempo abatida na atonia da fraqueza. Entretanto, nasceusadia e robusta, e de seu largo peito aspira a vida a plenos pulmões.É preciso que a sigais passo a passo na vida, vós que assististes aoseu nascimento. Vede! A alegria de ter gerado deu à sua mãe umarecrudescência de força e coragem, e é com entoação materna quechama todos os homens a agrupar-se em torno dessa criançaabençoada, porque pressente que de sua voz retumbante, em algunsanos vai fazer cair os andaimes do Espírito de mentira e, verdadeimutável como o próprio Deus, chamar pelo Espiritismo todos oshomens à sua bandeira. Mas ele só comprará o triunfo ao preço daluta, porque tem inimigos encarniçados que conspiram a sua perda.Esses inimigos são o orgulho, o egoísmo, a cupidez, a hipocrisia eo fanatismo, inimigos todo-poderosos, que até então reinaramcomo senhores e não se deixarão destronar sem resistência. Algunsriem de sua fraqueza, mas outros se assustam com a sua vinda epressentem a própria ruína. Eis por que procuram fazê-lo perecer,como outrora Herodes buscou fazer perecer Jesus no massacre dosinocentes. Esta criança não tem pátria; percorre toda a Terra,procurando o povo que há de ser o primeiro a arvorar a suabandeira, e esse povo será o mais poderoso entre os povos, pois talé a vontade de Deus.

Massillon

PROGRESSO DE UM ESPÍRITO PERVERSO

(Sociedade Espírita de Paris – Médium: Sra. Costel)

Sob o título de Castigo do Egoísta, publicamos nonúmero de dezembro de 1860 várias comunicações com aassinatura de Claire, nas quais esse Espírito revela suas másinclinações e a situação deplorável em que se encontra. Nossacolega, Sra. Costel, que a conheceu em vida e lhe serve de médium,empreendeu a sua educação moral. Seus esforços foram coroadosde sucesso; pode-se julgá-lo pelo ditado espontâneo seguinte, dadona Sociedade a 1o de março último.

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“Falar-vos-ei da importante diferença que existe entre amoral divina e a moral humana. A primeira assiste a mulheradúltera em seu abandono e diz aos pecadores: ‘Arrependei-vos, eo reino dos céus vos será aberto.’ Enfim, a moral divina aceitatodos os arrependimentos e todas as faltas confessadas, ao passoque a moral humana repele estas e admite, sorrindo, os pecadosocultos que, diz ela, estão meio perdoados. A uma, a graça doperdão; a outra, a hipocrisia. Escolhei, espíritos ávidos de verdade!Escolhei entre os céus abertos ao arrependimento e a tolerânciaque admite o mal que não lhe prejudica o egoísmo e as falsasmaquinações, mas que repele a paixão e os soluços de faltasconfessadas aos olhos de todos. Arrependei-vos, vós todos quepecais; renunciai ao mal, mas, sobretudo, à hipocrisia que oculta atorpeza do mal sob a máscara risonha e enganadora das mútuasconveniências.”

Claire

Eis um outro exemplo de conversão obtido num casomais ou menos semelhante. Na mesma sessão se achava uma damaestrangeira, médium, que escrevia na Sociedade pela primeira vez.Havia conhecido uma senhora, morta há nove anos e que, quandoviva, merecera pouca estima. Desde sua morte, seu Espírito semostrava ao mesmo tempo perverso e mau, não buscando fazersenão o mal. No entanto, bons conselhos tinham acabado por levá-la a melhores sentimentos. Nessa sessão ela dita espontaneamenteo que se segue:

“Peço que orem por mim; preciso ser boa. Persegui eobsidiei muito um ser chamado a fazer o bem e Deus não quermais que eu persiga; mas temo que me falte coragem; ajudai-me; fiztanto mal! Oh! como sofro! como sofro! Eu me comprazia com omal praticado, para ele contribuindo com todas as minhas forças;mas já não quero fazer o mal. Oh! orai por mim.”

Adèle

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SOBRE A INVEJA NOS MÉDIUNS

(Enviado pelo Sr. Ky..., correspondente da Sociedade em Carlsruhe)

Por si mesmo e por sua própria inteligência, o homemvão é tão desprezível quanto digno de comiseração. Afasta averdade de sua frente, para substituí-la por argumentos econvicções pessoais, que julga infalíveis e irrevogáveis, porque lhepertencem. O homem vão é sempre egoísta, e o egoísmo é oflagelo da Humanidade. Entretanto, ao desprezar o resto domundo, mostra bem a sua pequenez; repelindo verdades, que paraele são novidades, também mostra a limitação da própriainteligência, pervertida por sua obstinação, que mais aumenta suavaidade e seu egoísmo.

Infeliz do homem que se deixa dominar por esses doisinimigos de si mesmo! Quando despertar nesse estado em que averdade e a luz fundir-se-ão de todos os lados sobre ele, só verá emsi um ser miserável, que se exaltou loucamente acima daHumanidade, durante a sua vida terrena, e que estará muito abaixode certos seres mais modestos e mais simples, aos quais pensavaimpor-se aqui na Terra.

Sede humildes de coração, vós a quem Deus permitiuparticipásseis de seus dons espirituais. Não atribuais nenhummérito a vós mesmos, assim como não se o atribui à obra e aosutensílios, mas ao operário. Lembrai-vos bem de que não passais deinstrumentos de que Deus se serve para manifestar ao mundo o seuEspírito onipotente, e que não tendes nenhum motivo para vosglorificardes de vós mesmos. Há tantos médiuns, ah! que se tornamvãos, em vez de humildes, à medida que seus dons se desenvolvem!Isto é um atraso no progresso, pois no lugar de ser humilde epassivo, muitas vezes o médium repele, por vaidade e orgulho,comunicações importantes dadas a lume por outros maismerecedores. Deus não considera a posição material de uma pessoapara lhe conferir o espírito de santidade; bem longe disso, já que

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muitas vezes exalta os humildes entre os humildes, para os dotarcom as maiores faculdades, a fim de que o mundo veja bem quenão é o homem, mas o Espírito de Deus pelo homem que fazmilagres. Como disse, o médium é simples instrumento do grandeCriador de todas as coisas, e a este último é que deve render glória,é a Ele que deve agradecer por sua inesgotável bondade.

Gostaria, também, de dizer uma palavra sobre a invejae o ciúme que muitas vezes reinam entre os médiuns e que, comoerva daninha, é preciso extirpar, desde que começa a aparecer,temendo que abafe os bons germes da vizinhança.

No médium a inveja é tão temível quanto o orgulho;prova a mesma necessidade de humildade. Direi mesmo que denotafalta de senso comum. Não é mostrando inveja dos dons do vossovizinho que recebereis dons semelhantes, porquanto, se Deus dámuito a uns e pouco a outros, ficai certos de que, assim agindo,tem um motivo bem fundado. A inveja exaspera o coração; abafamesmo os melhores sentimentos. É, pois, um inimigo que só sepoderia evitar com muito cuidado, pois não dá nenhuma trégua,uma vez que se apoderou de nós. Isto se aplica a todos os casos davida terrena. Mas eu queria falar principalmente da inveja entre osmédiuns, tão ridícula quanto desprezível e infundada, e que provaquão fraco é o homem quando se deixa escravizar pelas paixões.

Luos

Observação – Quando da leitura desta últimacomunicação perante a Sociedade, estabeleceu-se uma discussãosobre a inveja dos médiuns, comparada com a dos sonâmbulos. Umdos membros, o Sr. D..., disse que a inveja, em sua opinião, é amesma em ambos os casos e, se aparece com mais freqüência entreos sonâmbulos é porque, nesse estado, eles não a sabem dissimular.

O Sr. Allan Kardec refuta essa opinião: “A inveja – dizele – parece inerente ao estado sonambúlico, por uma causa difícil

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de ser compreendida e que os próprios sonâmbulos não podemexplicar. Tal sentimento existe entre os sonâmbulos que, em vigília,só agem entre si com benevolência. Nos médiuns está longe de serhabitual, prendendo-se, evidentemente, à natureza moral doindivíduo. Um médium tem inveja de outro médium porque estáem sua natureza ser invejoso. Esta falha, conseqüência do orgulhoe do egoísmo, é essencialmente prejudicial à boa qualidade dascomunicações, ao passo que o sonâmbulo mais invejoso pode sermuito lúcido, o que se concebe facilmente. O sonâmbulo vê por simesmo; é o seu próprio Espírito que se desprende e age: nãonecessita de ninguém. O médium, ao contrário, não passa deintermediário: recebe tudo de Espíritos estranhos e suapersonalidade está muito menos em jogo que a do sonâmbulo. OsEspíritos simpatizam com ele em razão de suas qualidades ou deseus defeitos. Ora, os defeitos mais antipáticos aos Espíritos bonssão o orgulho, o egoísmo e a inveja. A experiência nos ensina quea faculdade mediúnica, enquanto faculdade, é independente dasqualidades morais; pode, assim como a faculdade sonambúlica,existir no mais alto grau no homem mais perverso. O mesmo nãose dá absolutamente em relação às simpatias dos Espíritos bons,que naturalmente se comunicam tanto mais à vontade, quanto maispuro e sincero for o intermediário encarregado de transmitir o seupensamento, e quanto mais se afaste o médium da natureza dosEspíritos maus. A este respeito fazem o que nós mesmos fazemosquando tomamos alguém para confidente. Especialmente no queconcerne à inveja, como esta imperfeição existe em quase todos ossonâmbulos, sendo muito mais rara nos médiuns, parece que nosprimeiros é uma regra e nos últimos a exceção, donde se segue quea causa não deveria ser a mesma nos dois casos.”

Allan Kardec

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Revista EspíritaJornal de Estudos Psicológicos

ANO IV MAIO DE 1861 No 5

Sociedade Parisiense de Estudos EspíritasDISCURSO DO SR. ALLAN KARDEC

Por ocasião da renovação do ano social, pronunciado nasessão de 5 de abril de 1861.

Senhores e caros colegas,

No momento em que nossa Sociedade inicia o seuquarto ano, creio que devemos um agradecimento especial aosEspíritos bons que se têm dignado assistir-nos e, em particular, aonosso Presidente espiritual, cujos sábios conselhos nospreservaram de vários perigos e cuja proteção permitiuvencêssemos as dificuldades semeadas em nosso caminho,certamente para pôr à prova o nosso devotamento e a nossaperspicácia. Devemos reconhecer que sua benevolência jamais nosfaltou e, graças ao Espírito bom de que a Sociedade agora estáanimada, triunfou sobre a má vontade de seus inimigos. Permiti-me, a propósito, algumas observações retrospectivas.

A experiência havia-nos demonstrado lacunaslamentáveis na constituição da Sociedade, que abriam a porta a

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certos abusos. A Sociedade as reparou e, desde então, só teve de sefelicitar. Realiza o ideal da perfeição? Não seríamos espíritas setivéssemos o orgulho de o crer. Mas, quando a base é boa e o restonão depende senão da vontade, é preciso esperar que, auxiliadospelos Espíritos bons, não paremos no caminho.

No número das mais úteis reformas deve-se colocar emprimeiro lugar a instituição dos sócios livres, que dá mais fácil acessoaos candidatos, permitindo que se conheçam e se apreciem antes desua admissão definitiva como membros titulares. Participando nostrabalhos e nos estudos da Sociedade, aproveitam tudo quando nelase faz. Como, porém, não têm voz na parte administrativa, nãopodem, em nenhum caso, comprometer a responsabilidade daSociedade. Vem a seguir medida que teve por objeto restringir onúmero dos ouvintes e cercar de maiores dificuldades, por umaescolha mais severa, a sua admissão às sessões; depois, a queinterdita a leitura de qualquer comunicação obtida fora daSociedade, antes de ser conhecida previamente e que a leitura tenhasido autorizada; enfim, as que armam a Sociedade contra quemquer que possa trazer perturbação ou tente impor-lhe a suavontade.

Há outras ainda que seria supérfluo lembrar, cujautilidade não é menor e cujos felizes resultados podemos apreciardiariamente. Mas se tal estado de coisas é compreendido no seio daSociedade, o mesmo não se dá fora dela, onde – nem é precisodissimular – não temos somente amigos. Criticam-nos em váriospontos, e embora não tenhamos que nos preocupar com isto, poisa ordem da Sociedade só a nós interessa, talvez não seja inútillançar uma vista d’olhos sobre aquilo que nos censuram, porque,em última análise, se essas censuras fossem fundadas, deveríamosaproveitá-las.

Certas pessoas desaprovam a severa restrição àadmissão dos ouvintes; dizem que se quisermos fazer prosélitos é

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preciso esclarecer o público e, para isso, abrir-lhe as portas denossas sessões, autorizar todas as perguntas e todas asinterpelações; que se não admitirmos senão pessoas crentes, nãoteremos grande mérito em convencê-las. Esse raciocínio éespecioso; se, abrindo nossas portas a qualquer um, o resultadosuposto fosse alcançado, certamente erraríamos se não ofizéssemos. Mas como é o contrário que aconteceria, não ofazemos.

Afinal de contas, seria muito desagradável que apropagação da doutrina se subordinasse à publicidade de nossassessões. Por mais numeroso que fosse o auditório, seria sempremuito restrito, imperceptível, comparado à massa da população.Por outro lado, sabemos por experiência que a verdadeiraconvicção só se adquire pelo estudo, pela reflexão e por umaobservação contínua, e não assistindo a uma ou duas sessões, pormais interessantes que sejam. Isto é tão verdadeiro que o númerodos que crêem sem ter visto, mas porque estudaram ecompreenderam, é imenso. Sem dúvida o desejo de ver é muitonatural e estamos longe de o censurar, mas queremos que vejam emcondições aproveitáveis. Eis por que dizemos: Estudai primeiro evede depois, porque compreendereis melhor.

Se os incrédulos refletissem sobre esta condição nelaveriam, para começar, a melhor garantia de nossa boa-fé e, depois,a força da doutrina. O que mais teme o charlatanismo é sercompreendido; ele fascina os olhos e não é tolo a ponto de sedirigir à inteligência, que facilmente descobriria o reverso damoeda. O Espiritismo, ao contrário, não admite a confiança cega;quer ser claro em tudo; quer que lhe compreendam tudo, que sedêem conta de tudo. Por conseguinte, quando prescrevemos oestudo e a meditação, pedimos o concurso da razão, assimprovando que a ciência espírita não teme o exame, uma vez que,antes de crer, sentimos a necessidade de compreender.

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Não sendo de demonstração as nossas sessões, suapublicidade não atingiria o objetivo e teria graves inconvenientes.Com um público não selecionado, trazendo mais curiosidade queverdadeiro desejo de instruir-se e, ainda mais, a vontade de criticare ridicularizar, seria impossível ter o recolhimento indispensávelpara toda manifestação séria; uma controvérsia mais ou menosmalevolente, na maior parte do tempo baseada na ignorância dosmais elementares princípios da Ciência, provocaria eternosconflitos, nos quais a dignidade poderia ser comprometida. Ora, oque nós queremos é que, ao sair de nossa casa, os ouvintes nãolevem convicção, mas levem da Sociedade a idéia de umaassembléia grave, séria, que se respeita e sabe fazer-se respeitar, quediscute com calma e moderação, examina com cuidado, aprofundatudo com olho de observador consciencioso, que procuraesclarecer-se, e não com a leviandade de simples curioso. E crede-o bem senhores, esta opinião faz mais pela propaganda do que sesaíssem com o único pensamento de haverem satisfeito acuriosidade, porquanto a impressão dela resultante os induz arefletir, ao passo que, no caso contrário, estariam mais dispostos arir do que a crer.

Eu disse que as nossas não são sessões dedemonstração, mas se algum dia as fizéssemos desse gênero, parauso dos neófitos, quer se tratasse para instrui-los ou convencê-los,tudo nelas se passaria com tanta seriedade e recolhimento quantonas nossas sessões ordinárias; a controvérsia estabelecer-se-ia comordem, de maneira a ser instrutiva e não tumultuosa, e quem querque se permitisse uma palavra inconveniente seria excluído; entãoa atenção seria mantida e a própria discussão aproveitaria a todos.É provavelmente o que faremos um dia. Perguntarão, sem dúvida,por que não o fizemos mais cedo, no interesse da vulgarização daCiência. A razão é simples: é que quisemos proceder comprudência, e não como estouvados, mais impacientes querefletidos. Antes de instruir os outros quisemos, nós próprios, nosinstruir. Queremos apoiar nosso ensino sobre uma imponente

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massa de fatos e observações, e não sobre algumas experiênciasincoerentes, observadas leviana e superficialmente.

Toda ciência, em seu início, encontra forçosamentefatos que, a princípio, parecem contraditórios, de modo que só umestudo minucioso e completo pode demonstrar-lhe a conexão. Foia lei comum desses fatos que quisemos buscar, a fim de apresentarum conjunto tão completo, tão satisfatório quanto possível, semdeixar a mínima oportunidade para a contradição. Com esteobjetivo recolhemos os fatos, examinamo-los, escrutamo-los noque eles têm de mais íntimo, comentamo-los, discutimo-losfriamente, sem entusiasmo, e foi assim que chegamos a descobrir oadmirável encadeamento que existe em todas as partes desta vastaCiência, que toca os mais graves interesses da Humanidade. Tal foiaté o momento, senhores, o objetivo dos nossos trabalhos, objetivoperfeitamente caracterizado pelo simples título de Sociedade deEstudos Espíritas, que adotamos. Reunimo-nos com a intenção denos esclarecermos e não de nos distrairmos. Não buscando umadiversão, não queremos divertir os outros. Daí por que nãoqueremos ter senão ouvintes sérios, e não curiosos que aquijulgassem encontrar um espetáculo. O Espiritismo é uma Ciênciae, como qualquer outra ciência, não se aprende brincando. Aindamais, tomar as almas dos que se foram como assunto para distraçãoseria faltar ao respeito que merecem; especular sobre sua presençae sua intervenção seria impiedade e profanação.

Estas reflexões respondem à crítica que algumaspessoas nos dirigiram, por voltar a fatos conhecidos e não procurarconstantemente novidades. No ponto em que estamos é difícil que,à medida que avançamos, os fatos que se produzem não girem maisou menos no mesmo círculo; mas esquecem que fatos tãoimportantes quanto os que tocam o futuro do homem só podemchegar ao estado de verdade absoluta após um grande número deobservações. Seria leviandade formular uma lei baseada em algunsexemplos. O homem sério e prudente é mais circunspeto; não

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apenas quer ver tudo, mas ver muito e muitas vezes. Eis por quenão recuamos diante da monotonia das repetições, porque delasresultam confirmações e, freqüentemente, matizes instrutivos, mas,também, porque nelas descobriríamos fatos contraditórios, cujascausas rebuscaríamos. Não temos a menor pressa de nospronunciarmos sobre os primeiros dados, necessariamenteincompletos; antes de colher, esperamos a maturidade. Se temosavançado menos do que alguns desejariam na sua impaciência,marchamos com mais segurança, sem nos perdermos no labirintodos sistemas; talvez saibamos menos coisas, mas sabemos melhor,o que é preferível, e podemos afirmar o que sabemos segundo otestemunho da experiência.

Aliás, senhores, não penseis que a opinião dos quecriticam a organização da Sociedade seja a dos verdadeiros amigosdo Espiritismo; não, é a dos seus inimigos, que estão melindradospor ver a Sociedade prosseguir seu caminho com calma edignidade, através das emboscadas que lhe armaram e aindaarmam. Eles lamentam que o acesso a ela seja difícil, porqueficariam contentíssimos de aqui semear a perturbação. Por issotambém a censuram, por limitar o círculo de seus trabalhos, sob opretexto de que não se ocupa senão de coisas insignificantes e semalcance, já que se abstém de tratar de questões políticas e religiosas;gostariam de vê-la entrar na controvérsia dogmática. Ora, é issoprecisamente que os denuncia. Com muita prudência a Sociedadese fechou num círculo inatacável à malevolência. Ferindo o seuamor-próprio, queriam arrastá-la por um caminho perigoso, masela não se deixará levar. Ocupando-se exclusivamente das questõesque interessam à Ciência, e que não podem fazer sombra aninguém, ela se pôs ao abrigo dos ataques e assim devepermanecer. Por sua prudência, moderação e sabedoria, conciliou aestima dos verdadeiros espíritas, estendendo-se a sua influência atépaíses distantes, de onde aspiram a honra de dela fazer parte. Ora,essa homenagem que lhe é prestada por pessoas que só a conhecemde nome, por seus trabalhos e pela consideração que conquistou, é-

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lhe cem vezes mais preciosa que o sufrágio dos imprudentes muitoapressados, ou dos malévolos que queriam arrastá-la à sua perda eficariam muito contentes por vê-la comprometida. Enquanto eutiver a honra de a dirigir, todos os meus esforços tenderão a mantê-la nesta via. Se algum dia dela saísse, eu a deixaria no mesmoinstante, porque a preço algum desejaria assumir essaresponsabilidade.

Não obstante isso, senhores, sabeis das vicissitudes porque a Sociedade tem passado. Tudo quanto aconteceu antes edepois foi anunciado e tudo se realizou como fora previsto. Seusinimigos queriam sua ruína; os Espíritos, que a sabiam útil, queriama sua conservação, de modo que ela se manteve e se manteráenquanto for indispensável aos seus objetivos. Se tivésseisobservado, como pude fazê-lo, as coisas nos seus íntimos detalhes,não desconheceríeis a intervenção de um poder superior, que paramim é manifesto, e teríeis compreendido que tudo foi para omelhor e no interesse de sua própria conservação. Mas tempo viráem que, tal qual o é atualmente, ela já não será indispensável. Entãoveremos o que teremos a fazer, porque a marcha está traçada emvista de todas as eventualidades.

Os mais perigosos inimigos da Sociedade não são os defora: podemos fechar-lhes as portas e os ouvidos. Os mais temíveissão os inimigos invisíveis, que aqui poderiam introduzir-se maugrado nosso. Cabe a nós provar-lhes, como já o temos feito, queperderiam o tempo se tentassem impor-se a nós. Sua tática, bem osabemos, é procurar semear a desunião, lançar o facho da discórdia,inspirar a inveja, a desconfiança e as susceptibilidades pueris quegeram a desafeição. Oponhamos-lhes a muralha da caridade, damútua benevolência, e seremos invulneráveis, tanto contra suasmalignas influências ocultas quanto contra as diatribes de nossosadversários encarnados, que mais se ocupam de nós, do que nósdeles; porque podemos dizer, sem amor-próprio, que aqui jamaisseu nome foi pronunciado, seja por uma questão de conveniência,

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seja porque temos de nos ocupar de coisas mais úteis. Nãoforçamos ninguém a vir a nós. Acolhemos com prazer e solicitudeas pessoas sinceras e de boa vontade, seriamente desejosas deesclarecimento, e destas encontramos muitas para não perdermostempo correndo atrás dos que nos voltam as costas por motivosfúteis, de amor-próprio ou de inveja. Estes não podem serconsiderados como verdadeiros espíritas, apesar das aparências. Épossível que creiam nos fatos, mas, seguramente, não acreditamnas suas conseqüências morais, pois, ao contrário, mostrariammais abnegação, indulgência, moderação, e menos presunção deinfalibilidade. Procurá-los seria mesmo prestar-lhes um mauserviço, porque seria fazer crer em sua importância e que nãopodemos passar sem eles. Quanto aos que nos denigrem, tambémnão nos devemos preocupar; homens que valem cem vezes maisque nós foram denegridos e ridicularizados; não poderíamos terprivilégio quanto a esse ponto. Cabe-nos provar por nossos atosque suas diatribes não encontram ressonância, e as armas de que seservem voltar-se-ão contra eles.

Depois de ter, no início, agradecido aos Espíritos quenos assistem, não devemos esquecer os seus intérpretes, alguns dosquais nos dão seu concurso com um zelo, uma complacência jamaisdesmentidos. Em troca, não lhes podemos oferecer senão umestéril testemunho de nossa satisfação. Mas o mundo dos Espíritosos espera, e lá todos os devotamentos são levados em conta narazão do desinteresse, da humildade e da abnegação.

Em resumo, senhores, durante o ano que passou nossostrabalhos marcharam com perfeita regularidade e nada osinterrompeu. Uma multidão de fatos do mais alto interesse foirelatado, explicado e comentado; questões muito importantes foramresolvidas; todos os exemplos que passaram sob nossos olhos pelasevocações, todas as investigações a que nos entregamos vieramconfirmar os princípios da ciência e fortalecer as nossas crenças;numerosas comunicações, de incontestável superioridade, foramobtidas por diversos médiuns; a província e o estrangeiro nos

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remeteram algumas deveras notáveis, provando não só quanto oEspiritismo se espalha, mas, também, sob que ponto de vista gravee sério ele agora é encarado por toda parte. Sem dúvida este é umresultado pelo qual devemos nos sentir felizes, mas há outro nãomenos satisfatório e que é, aliás, uma conseqüência do que haviasido predito desde a origem: é a unidade que se estabelece na teoriada doutrina, à medida que é estudada e mais bem compreendida.Em todas as comunicações que nos chegam de fora encontramos aconfirmação dos princípios que nos são ensinados pelos Espíritos,e, como as pessoas que as recebem nos são, na maioria,desconhecidas, não se pode dizer que sofram a nossa influência.

O princípio mesmo da reencarnação, que inicialmentehavia encontrado muitos contraditores, porque não eracompreendido, é hoje aceito pela força da evidência e porque todohomem que pensa nele reconhece a única solução possível domaior número de problemas da filosofia moral e religiosa. Sem areencarnação somos detidos a cada passo, tudo é caos e confusão;com a reencarnação tudo se esclarece, tudo se explica da maneiramais racional. Se ela ainda encontra alguns adversários maissistemáticos que lógicos, seu número é muito restrito. Ora, quem ainventou? Seguramente não fostes vós, nem eu; ela nos foiensinada, nós a aceitamos: eis tudo o que fizemos. De todos osfenômenos que surgiram no princípio, bem poucos sobrevivemhoje, e pode-se dizer que os seus raros partidários estão,principalmente, entre pessoas que julgam à primeira vista e, muitasvezes, conforme idéias preconcebidas e prevenções. Mas agora éevidente que quem quer que se dê ao trabalho de aprofundar todasas questões e julgar friamente, sem prevenção, sobretudo semhostilidade sistemática, é levado invencivelmente, tanto peloraciocínio quanto pelos fatos, à teoria fundamental que, pode-sedizer, hoje prevalece em todos os países do mundo.

Por certo, senhores, a Sociedade não fez tudo para esteresultado. Mas, sem vaidade, creio que ela pode reivindicar uma

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pequena parte; sua influência moral é maior do que se pensa,precisamente porque jamais se desviou da linha de moderação quese traçou. Sabe-se que ela se ocupa exclusivamente de seus estudos,sem se deixar desviar pelas mesquinhas paixões que se agitam à suavolta; que o faz seriamente, como deve fazer toda assembléiacientífica; que persegue o seu objetivo sem se misturar comnenhuma intriga, sem atirar pedras em ninguém, sem mesmorecolher as que lhe atiram. Sem sombra de dúvida, eis a principalcausa do crédito e da consideração de que desfruta, dos quais podesentir-se orgulhosa e que dá certo peso à sua opinião. Continuemos,senhores, por nossos esforços, por nossa prudência e pelo exemploda união que deve existir entre os verdadeiros espíritas, a mostrarque os princípios que professamos não são para nós letra morta eque tanto pregamos pelo exemplo quanto pela teoria. Se nossasdoutrinas encontram tanta ressonância é que, aparentemente, asacham mais racionais que as outras. Duvido que acontecesse omesmo se tivéssemos professado a doutrina da intervençãoexclusiva do diabo e dos demônios nas manifestações espíritas,doutrina hoje completamente ridícula, que mais excita a curiosidadedo que amedronta, à exceção de algumas pessoas timoratas, quepor si mesmas em breve reconhecerão a sua futilidade.

Tal qual é hoje professada, a Doutrina Espírita tem umaamplidão que lhe permite abarcar todas as questões de ordemmoral; satisfaz a todas as aspirações e, pode-se dizer, ao maisexigente raciocínio, para quem quer que se dê ao trabalho deestudá-la e não esteja dominado pelos preconceitos. Ela não tem asmesquinhas restrições de certas filosofias; alarga ao infinito ocírculo das idéias e ninguém é capaz de elevar mais alto opensamento e tirar o homem da estreita esfera do egoísmo, na qualintentaram confiná-lo. Enfim, ela se apóia nos imutáveis princípiosfundamentais da religião, dos quais é a demonstração patente. Eis,sem dúvida, o que lhe conquista tão numerosos partidários entre aspessoas esclarecidas de todos os países, e o que a fará prevalecer,

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em tempo mais ou menos próximo, e isto malgrado os seusadversários, na maioria mais opostos pelo interesse do que pelaconvicção. Sua marcha progressiva tão rápida, desde que entrou navia filosófica séria, é-nos garantia segura do futuro que lhe éreservado e que, como sabeis, está anunciado em toda parte.Deixemos, pois, dizer e fazer os seus inimigos; eles nada poderãofazer contra a vontade de Deus, porque nada acontece sem a suapermissão. E, como dizia outrora um eclesiástico esclarecido: “Seessa coisas acontecem, é que Deus o permite, para avivar a fé quese extingue nas trevas do materialismo.”

O Anjo da Cólera

Um de nossos correspondentes de Varsóvia escreve-nos o seguinte:

“...Ouso reclamar vossa atenção para um fato de talforma extraordinário que seria preciso colocá-lo na categoria doabsurdo, se o caráter da pessoa que mo relatou não fosse umagarantia de sua realidade. Todos nós, que do Espiritismoconhecemos tudo quanto foi tratado por vós tão judiciosamente –o que significa que julgamos compreendê-lo bem – nãoencontramos explicação para este fato; desse modo, entrego-o àvossa apreciação, rogando me perdoeis o tempo que vos façoperder para o ler, caso não o julgueis digno de um exame mais sério.Eis do que se trata:

“A pessoa de quem falei acima estava, em 1852, emWilna, cidade da Lituânia, na época assolada pela cólera. Sua filha,encantadora menina de doze anos, era dotada de todas asqualidades que constituem as naturezas superiores. Desde a maistenra idade, fez-se notar por uma inteligência excepcional, umabondade de coração e uma candura verdadeiramente angélicas. Emnossa região ela foi uma das primeiras a gozar da faculdade

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mediúnica, sempre assistida por Espíritos de ordem bastanteelevada. Muitas vezes, e sem ser sonâmbula, tinha pressentimentodo que ia acontecer, e o predizia sempre com justeza. Estasinformações não me parecem inúteis para julgar de sua sinceridade.Certa noite, tão logo as velas acabavam de ser apagadas, a garota,ainda completamente desperta, viu erguer-se diante de seu leito afigura lívida e sangrenta de uma velha, cuja simples visão a fezestremecer. A mulher aproximou-se do leito da menina e lhe disse:‘Sou a cólera, e venho pedir-te um beijo; se me beijares, voltarei aoslugares que deixei e a cidade ficará livre da minha presença.’ Aheróica menina não recuou diante do sacrifício: colou os lábiossobre o rosto gelado e úmido da velha e a visão – se era visão –desapareceu. Apavorada, a criança não se acalmou senão ao colo dopai, que, embora nada compreendendo do caso, estava, no entanto,convencido de que a filha havia dito a verdade; mas não falaram aninguém. Por volta do meio-dia receberam a visita de um médico,amigo da família: ‘Venho trazer-vos uma boa notícia – disse ele; estanoite nenhum doente foi encaminhado ao hospital dos coléricos,que acabo de visitar.’ E, com efeito, desde esse dia a cólera deixoude ceifar. Cerca de três anos mais tarde, essa pessoa e sua famíliafizeram outra viagem à mesma cidade. Durante sua estada a cólerareapareceu e as vítimas já eram contadas por centenas, quando umanoite a mesma velha apareceu junto ao leito da menina, sempreperfeitamente desperta, e lhe fez o mesmo pedido, acrescentandoque, se sua prece fosse atendida, dessa vez deixaria a cidade paranunca mais voltar. Como da primeira vez, a jovem não recuou. Logoviu abrir-se um sepulcro e se fechar sobre a mulher. A cóleraacalmou-se como que por milagre, não tendo sido do meuconhecimento que haja reaparecido em Wilna. Era uma alucinaçãoou uma visão real? Ignoro-o. Tudo quanto posso garantir é que nãoposso duvidar da sinceridade da mocinha e de seus pais.”

Realmente, o fato é muito singular. Os incrédulos nãodeixarão de dizer que é uma alucinação; mas, provavelmente, ser-lhes-ia mais difícil explicar esta coincidência com um fato material,

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que nada podia deixar prever. Uma primeira vez isto poderia serlevado à conta do acaso, essa maneira tão cômoda de passar sobreaquilo que não se compreende. Mas em duas ocasiões diferentes,em condições idênticas, era mais extraordinário. Admitindo o fatoda aparição, restava saber o que era essa mulher. Era realmente oanjo exterminador da cólera? Estariam os flagelos personificadosem certos Espíritos, encarregados de os provocar ou de os fazercessar? Podia-se crer, vendo este desaparecer pela vontade dessamulher. Mas, então, por que se dirigia ela àquela garota, estranha àcidade, e de que maneira um beijo desta podia ter tal influência?Embora o Espiritismo já nos tenha dado a chave de muitas coisas,ainda não disse a última palavra; no caso de que se trata, a últimahipótese nada tinha de positivamente absurda. Confessamos que,inicialmente, nós nos inclinávamos para este lado, não vendo nofato o caráter da verdadeira alucinação. Algumas palavras dosEspíritos vieram derrubar a nossa suposição. Eis a explicação,muito simples e muito lógica, dada por São Luís, na sessão daSociedade, em 19 de abril de 1861.

P. – O fato que acaba de ser relatado parece muitoautêntico. A propósito, gostaríamos de obter algumas explicações.Primeiramente poderíeis dizer quem é essa mulher que apareceu àmenina e disse ser a cólera?

Resp. – Não era a cólera; um flagelo material nãoreveste a aparência humana. Era o Espírito familiar da menina, queassim experimentava sua fé, fazendo coincidir esta prova com o fimdo flagelo. Essa prova era salutar à criança que a sofria; idealizando-as, fortalecia as virtudes em germes nesse ser protegido eabençoado. As naturezas de escol, as que, vindo ao mundo, trazema lembrança dos bens adquiridos, muitas vezes recebem essasadvertências, que seriam perigosas para uma alma não depurada enão preparada, pelas migrações anteriores, aos grandesdevotamentos do amor e da fé.

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P. – O Espírito familiar dessa jovem tinha bastantepoder para prever o futuro e o fim do flagelo?

Resp. – Os Espíritos são os instrumentos da vontadedivina e, muitas vezes, elevados à altura dos mensageiros celestes.

P. – Os Espíritos não têm nenhuma ação sobre osflagelos, como agentes produtores?

Resp. – Eles não têm absolutamente nada com isto,assim como as árvores com o vento e os efeitos com as causas.

Na previsão de respostas conformes ao nosso primeiropensamento, tínhamos preparado uma séria de perguntas que, emconseqüência, se tornaram inúteis. Isto prova uma vez mais que osmédiuns não são o reflexo do pensamento de quem interroga. Nãoobstante, devemos dizer que a respeito não tínhamos nenhumaopinião prévia. Em falta de outra melhor, inclinávamos para a quehavíamos emitido, porque não nos parecia impossível. Contudo,sendo mais simples e mais racional a explicação dada pelo Espírito,nós a julgamos infinitamente preferível.

Aliás, pode-se tirar do fato uma outra instrução. O queaconteceu àquela mocinha deve ter-se produzido em outrascircunstâncias e, mesmo na Antigüidade, desde que os fenômenosespíritas são de todos os tempos. Não seria uma das causas quelevaram os Antigos a personificar e a ver em cada coisa um gênioparticular? Não pensamos que seja preciso buscar-lhe a causaapenas no gênio poético, uma vez que se vêem essas idéias empovos menos avançados.

Suponhamos que um fato semelhante a esse querelatamos se tivesse produzido num povo supersticioso e bárbaro;não era preciso mais para acreditar na idéia de uma divindademalfazeja, que não se podia apaziguar senão lhe sacrificandovítimas. Como já dissemos, todos os deuses do paganismo não têm

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outra origem senão as manifestações espíritas. O Cristianismo veioderrubar os seus altares, mas ao Espiritismo estava reservado dar aconhecer a sua verdadeira natureza e lançar a luz sobre osfenômenos desnaturados pela superstição, ou explorados pelacupidez.

Fenômenos de Transporte

Esse fenômeno é, sem contradita, um dos maisextraordinários entre os apresentados pelas manifestações espíritase, também, um dos mais raros. Consiste no transporte espontâneode um objeto que não existe no local em que nos encontramos.Nós já o conhecíamos há muito tempo, por ouvir dizer; mas comohá pouco nos foi dado testemunhá-lo, podemos agora dele falarcom conhecimento de causa. Digamos, primeiramente, que é umdos que mais se prestam à imitação; em conseqüência, faz-senecessário que nos guardemos contra a trapaça. Sabe-se até ondepode ir a arte da prestidigitação, no caso de experiências dessegênero; mas, sem se haver com gente do ofício, poder-se-iafacilmente ser enganado por uma hábil manobra. A melhor detodas as garantias está no caráter, na honorabilidade notória, nodesinteresse absoluto da pessoa que obtém semelhantes efeitos; emsegundo lugar, no exame atento de todas as circunstâncias em quese produzem os fatos; enfim, no conhecimento esclarecido doEspiritismo, único que pode fazer descobrir o que seria suspeito.

Dissemos que o fenômeno é um dos mais raros e,menos que os outros, talvez não se produza à vontade e nomomento certo. Algumas vezes, embora raramente, pode serprovocado; mas na maioria das vezes é espontâneo. Portanto, quemquer que se vanglorie de obtê-lo à vontade e à hora marcada pode,sem temor, ser tachado de ignorante e suspeito de fraude,principalmente se nele se misturar o menor motivo de interessematerial. Um médium que tirasse um proveito qualquer de sua

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faculdade pode realmente ser médium; mas como essa faculdadeestá sujeita a intermitências, e os fenômenos dependemexclusivamente da vontade dos Espíritos, que não se submetem aonosso capricho, resulta que o médium interessado, para não seatrapalhar ou para produzir mais efeito, conforme ascircunstâncias, chama a astúcia em seu auxílio, porque, para ele, épreciso que o Espírito aja de qualquer maneira; caso contrário esteé substituído pela esperteza do médium, que por vezes se ocultasob os mais simples disfarces.

Feitas estas reflexões preliminares, que tiveram por fimpôr em guarda os observadores, vamos voltar ao nosso assunto.Mas, antes de falar do que nos concerne, julgamos dever relatar acarta seguinte, que nos foi enviada de Orléans, a 14 de fevereiroúltimo.

“Senhor,

“É um espírita convicto que vos escreve esta carta. Osfatos que ela relata são raros; devem servir ao bem de todos e jálevaram a convicção a várias pessoas que nos cercam e que ostestemunharam.

“O primeiro fato passou-se em 1o de janeiro de 1861.Uma de minhas parentas, que possui em supremo grau a faculdademediúnica e que a ignorava completamente antes que eu lhe tivessefalado do Espiritismo, via algumas vezes sua mãe, mas tomava ofato como uma alucinação e tratava de a evitar. No dia 1o de janeiroúltimo, por volta das três horas da tarde, viu-a novamente. Osobressalto que ela e o marido experimentaram, embora este nadavisse, impediu-a de se dar conta de seus movimentos. Algunsminutos depois, entrando novamente nesse aposento, seu maridoviu sobre a mesa um anel, que a esposa reconheceu perfeitamentecomo sendo o anel da mãe dela, que a própria filha havia posto nodedo da genitora quando da morte desta última. Alguns dias mais

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tarde, como aquela senhora sofresse de uma sufocação, a que erasujeita, aconselhei a seu marido que a magnetizasse, o que ele fez;ao cabo de três minutos, ela adormeceu profundamente e a lucidezfoi perfeita. Então ela disse ao marido que sua mãe lhe haviatrazido o anel para lhe provar que está com eles e que vela por eles.Seu marido lhe pergunta se ela vê a filha morta há oito anos, comdois anos de idade, e se esta lhe pode trazer uma lembrança. Asonâmbula responde que ela está lá, assim como a mãe de seumarido; que no dia seguinte lhe trará uma rosa e que ele aencontrará sobre a escrivaninha. O fato realizou-se; a rosa murchaestava acompanhada de um papel, sobre o qual estavam escritasestas palavras: A meu querido papai. Laura. Dois dias depois, sonomagnético; o marido pergunta se poderia receber cabelos de suaprópria mãe. Seu desejo é executado no mesmo instante: os cabelosestão sobre a lareira. Depois, duas cartas foram escritasespontaneamente pelas duas mães.

“Chego a fatos que se passaram em minha casa. Apósum estudo sério de vossas obras sobre o Espiritismo, veio-me a fé,sem que tivesse visto um único fato. O Livro dos Médiuns me haviaincitado a tentar escrever, mas sem nenhum resultado. Persuadidode que nada obteria sem a presença da pessoa da qual falei acima,pedi-lhe que viesse a Orléans, assim como o marido. Segunda-feira,11 de fevereiro, às 10 horas da noite, sono magnético e êxtase; elavê junto de si e de nós os Espíritos que a acompanham e tinhamprometido acompanhá-la. Pergunto se eu seria médium escrevente;ela responde: ‘Sim, dentro de 15 dias’; acrescenta que no diaseguinte escreverá por intermédio de sua mãe para convencer umde meus amigos, rogando-me que o traga comigo. No dia seguinte,12, às 8 horas da manhã, sono; perguntamos se lhe devemos darum lápis: ‘Não’, disse ela; minha mãe está perto de ti e escreve; suacarta está sobre a lareira. Vou até lá e encontro um papel dobrado,contendo estas palavras: ‘Crede e orai; estou convosco. Isto é para vosconvencer.’ Disse-me ainda que nessa noite eu poderia tentarescrever, com sua mão posta sobre a minha. Eu não ousava esperar

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tal resultado; entretanto, escrevi estas palavras: ‘Crede; vou voltar ;não esqueçais o magnetismo; não demoreis muito tempo.’ Minha parentadevia partir no dia seguinte. À noite escrevemos isto: ‘A ciênciaespírita não é uma brincadeira; é verdadeira; o magnetismo pode conduzira ela. Orai e invocai aqueles que o coração vos disser. Não fiqueis maispor muito tempo. Catherine.’ Era o nome de sua mãe.

“Ordenaram-me várias vezes que vos escrevesse estesfatos; fui até censurado por não havê-lo feito antes; aliás, ela medisse que poderíeis ter a prova do que vos digo, e que sua própriamãe iria vos confirmar os fatos, se a chamásseis. Recebei, etc.”

Esta carta relata dois fenômenos notáveis: o dostransportes e o da escrita direta. A propósito, faremos umaobservação essencial: é que, quando o marido e a mulher obtiveramos primeiros resultados, estavam sós, preocupados com o que lhespudesse acontecer e não tinham o menor interesse em seenganarem mutuamente. Em segundo lugar, o transporte do anel,que havia sido enterrado com a mãe, é um fato positivo que nãopodia ser resultado de uma trapaça, pois não se brinca com essascoisas.

Vários fatos da mesma natureza nos foram relatadospor pessoas que gozam da nossa inteira confiança, e que sepassaram em circunstâncias também autênticas; mas eis um de quefomos duas vezes testemunha ocular, assim como vários membrosda Sociedade.

A Srta. V. B..., jovem de 16 ou 17 anos, é excelentemédim escrevente e ao mesmo tempo sonâmbula muitoclarividente. Durante o sono ela vê principalmente o Espírito deum de seus primos, que por diversas vezes já lhe havia trazidodiferentes objetos, entre os quais anéis, bombons em grandequantidade e flores. É sempre necessário que ela esteja adormecidacerca de duas horas antes da produção do fenômeno. A primeira

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vez que assistimos a uma manifestação do gênero, houve otransporte de um anel que lhe foi colocado na mão. Para nós, queconhecíamos a jovem e seus pais, gente muito honesta, não havianenhum motivo de dúvida. No entanto, confessamos que, para osestranhos, a maneira pela qual isto se passou era poucoconcludente. O mesmo não ocorreu na outra sessão. Após duashoras de sono prévio, durante as quais a jovem sonâmbula ocupou-se de coisas muito interessantes, conquanto estranhas ao nossoobjetivo, o Espírito apareceu-lhe com um ramo de flores, visívelapenas para ela. Não foi senão após muito tempo, estimulado porardente desejo e provocado por incessantes pedidos, que o Espíritofez cair a seus pés um ramo de açaflor. A moça não se deu porsatisfeita; o Espírito tinha ainda algo que ela queria; novas súplicasdurante cerca de meia hora, depois do que um maço de violetas,envolvidas por musgo, apareceu no soalho. Algum tempo depoisum bombom, grande como um punho, caiu ao seu lado; pelo gostoreconheceram tratar-se de conserva de abacaxi, que parecia ter sidoamassada nas mãos.

Tudo isto durou cerca de uma hora e, durante essetempo, a sonâmbula esteve constantemente isolada de todos osassistentes; seu próprio magnetizador manteve-se a grandedistância. Nós estávamos colocados de maneira a não perder devista um único movimento, e declaramos sinceramente que nãohouve a menor coisa suspeita. Nessa sessão o Espírito, que sechama Léon, prometeu vir à Sociedade para dar as explicações quelhe fossem pedidas.

Evocamo-lo na sessão da Sociedade, de 1o de março,simultaneamente com o Espírito da Sra. Catherine, que se haviamanifestado em Orléans. Eis a conversa que se seguiu:

1. Evocação da Sra. Catherine.Resp. – Estou presente e pronta a responder.

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2. Dissestes à vossa filha e à vossa parenta de Orléansque viríeis confirmar aqui os fenômenos que elas testemunharam.Ficaremos muito contentes se recebermos vossas explicações arespeito. A princípio, eu perguntaria com que objetivo insististestanto para que me escrevessem relatando esses fatos?

Resp. – O que eu disse, estou pronta a fazê-lo, pois avós é que mais se deve instruir. Eu havia dito a meus filhos que voscomunicassem essas provas, tendo em vista a propagação doEspiritismo.

3. Há poucos dias fui testemunha de fatos análogos evou pedir ao Espírito que os produziu a gentileza de vir. Tendopodido observar todas as fases do fenômeno, espero dirigir-lhevárias perguntas. Peço que vos unais a ele para completar asrespostas, caso necessário.

Resp. – Farei o que me pedis; com os dois haverá maisclareza e precisão.

4. Evocação de Léon.Resp. – Eis-me pronto a cumprir a promessa que vos

fiz, senhor.

Observação – Muito freqüentemente os Espíritos seeximem de nossas fórmulas de polidez. Este oferece aparticularidade de servir-se sempre da palavra senhor, toda vez queo evocamos.

5. Peço nos digais por que esses fenômenos só seproduzem durante o sono magnético do médium?

Resp. – Isto se deve à natureza do médium. Os fatosque produzo, quando o meu está adormecido, poderiam igualmenteproduzir-se em estado de vigília.

6. Por que fazeis esperar tanto tempo o transporte deobjetos e por que excitais a cobiça do médium, exasperando seudesejo de obter o objeto prometido?

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Resp. – Esse tempo é-me necessário para preparar osfluidos que servem ao transporte. Quanto à excitação, é apenaspara divertir os presentes e a sonâmbula.

7. Eu tinha pensado que a excitação poderia produzirmais abundante emissão de fluidos da parte do médium e facilitara combinação necessária.

Resp. – Vós vos enganastes, senhor; os fluidos que nossão necessários não pertencem ao médium, mas ao Espírito e, emcertos casos, pode-se mesmo prescindir-se deles, e o transporteocorrer imediatamente.

8. A produção do fenômeno se deve à natureza especialdo médium? Poderia dar-se por outros médiuns com maisfacilidade e presteza?

Resp. – A produção se deve à natureza do médium e sópode realizar-se com outros de natureza correspondente. Quanto àprontidão, o hábito que adquirimos, correspondendo muitas vezescom o mesmo médium, nos é de grande valia.

9. A natureza do médium deve corresponder à naturezado fato ou à do Espírito?

Resp. – Faz-se mister que corresponda à natureza dofato, e não à do Espírito.

10. A influência das pessoas presentes tem algumsignificado?

Resp. – Quando há incredulidade e oposição, podemprejudicar bastante. Preferimos fazer nossas provas com crentes epessoas versadas no Espiritismo, mas com isso não queremos dizerque a má vontade possa paralisar-nos completamente.

11. Aqui só há crentes e pessoas muito simpáticas. Háalgum empecilho em que o fato ocorra?

Resp. – Sim: aquele para o qual não estou preparadonem disposto.

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12. Estaríeis num outro dia?Resp. – Sim.

13. Poderíeis fixá-lo?Resp. – Um dia em que nada me pedirdes eu virei de

improviso surpreender-vos com um bonito ramo de flores.

14. Talvez haja pessoas que preferissem bombons.Resp. – Se há gastrônomos, também podem ser con-

tentados. Creio que as mulheres, que não desdenham das flores,gostarão ainda mais dos bombons.

15. A Srta. V. B. precisará ficar em estado sonambúlico?Resp. – Farei o transporte com ela desperta.

16. Onde pegastes as flores e os bombons quetransportastes?

Resp. – As flores eu as colho nos jardins, onde meagradam.

17. Mas, e os bombons? O comerciante não lhes nota afalta?

Resp. – Eu os pego onde me apraz. O comerciante nadapercebe, porque ponho outros no lugar.

18. Mas os anéis têm um valor. Onde os pegastes? Istonão prejudica àqueles de quem os tirastes?

Resp. – Tirei-os de lugares de todos desconhecidos, e demodo que ninguém possa sofrer qualquer prejuízo.

19. É possível trazer flores de outro planeta?Resp. – Não; a mim não é possível.

20. Outros Espíritos o poderiam?Resp. – Sim; há Espíritos mais elevados do que eu que

podem fazê-lo; quanto a mim, não posso encarregar-me disto.Contentai-vos com o que vos trago.

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21. Poderíeis trazer flores de um outro hemisfério, dostrópicos, por exemplo?

Resp. – Desde que sejam da Terra, posso.

22. Como introduzistes esses objetos outro dia, já quea sala estava fechada?

Resp. – Fi-los entrar comigo, por assim dizer envoltosem minha substância. Quanto a vos falar mais longamente, isto nãoé explicável.

23. [À Sra. Catherine] – Considerando-se que o anel quetrouxestes à vossa filha estava enterrado convosco, como oobtivestes?

Resp. – Retirei-o da terra e o trouxe a minha filha.

24. [A Léon] – Como tornastes visíveis esses objetosque, um instante antes, eram invisíveis?

Resp. – Tirei a matéria que os envolvia.

25. Poderíeis fazer desaparecer esses objetos quetransportastes e os transportar novamente?

Resp. – Assim como os trouxe, posso levá-los à vontade.

26. Ontem... (o Espírito retifica escrevendo: quarta-feira.)Exatamente; quarta-feira o médium vos viu tomar uma tesoura ecortar flores de laranjeira no ramalhete que está em seu quarto.Realmente tiveste necessidade de um instrumento cortante paraisso?

Resp. – Absolutamente; eu não tinha tesoura, mas mefiz ver assim para que ficassem bem certos de que era eu quem astirava.

27. Mas o buquê estava sob um globo de vidro?Resp. – Oh! eu bem podia tirar o globo.

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28. Tiraste o globo?Resp. – Não.

29. Não compreendemos como isto pode acontecer.Credes que um dia chegaremos a ter a explicação desse fenômeno?

Resp. – Em pouco tempo mesmo; não apenas ocremos: temos certeza.

30. Quem acaba de responder? Léon ou a Sra.Catherine?

Resp. – Nós dois.

31. A produção do fenômeno dos transportes vos causaalguma aflição, um embaraço qualquer?

Resp. – Não nos causa nenhuma dificuldade, quandotemos permissão, mas poderiam causar, e grandes, se quiséssemosproduzir efeitos sem que, para isto, estivéssemos autorizados.

32. Quais as dificuldades que encontrais?Resp. – Nenhuma outra senão as más disposições

fluídicas que nos podem ser contrárias.

33. Como trazeis o objeto? Segurais com as mãos?Resp. – Não; nós o envolvemos em nós.

34. Traríeis com a mesma facilidade um objeto de pesoconsiderável, de 50 quilos, por exemplo?

Resp. – O peso nada representa para nós; trazemosflores porque isto talvez seja mais agradável do que um pesovolumoso.

35. Por vezes há desaparecimento de objetos cuja causaé ignorada e que se poderia atribuir aos Espíritos?

Resp. – Isto acontece freqüentemente; muito mais doque pensais. Tal ocorrência poderia ser remediada se pedíssemos aoEspírito para restituir o objeto desaparecido.

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36. Há efeitos que são considerados como fenômenosnaturais e que sejam devidos à ação de certos Espíritos?

Resp. – Vossos dias estão repletos de fatos que nãocompreendeis, porque não pensastes neles, mas que um pouco dereflexão vos faria ver claramente.

37. Entre os objetos transportados, não se encontramalguns que podem ser fabricados pelos Espíritos, isto é, produzidosespontaneamente pelas modificações que estes imprimem ao fluidoou ao elemento universal?

Resp. – Não por mim, pois para isso não tenho per-missão; só um Espírito elevado o pode.

38. Um objeto feito de tal maneira poderia terestabilidade e tornar-se um objeto de uso? Se um Espírito me fi-zesse uma tabaqueira, por exemplo, poderia servir-me dela?

Resp. – Poderia ter, se o Espírito o quisesse. Mas,também, poderia ser apenas para a vista e desvanecer-se ao cabo dealgumas horas.

Observação – Pode-se classificar na categoria dos fenô-menos de transporte os que se passaram na Rua des Noyers e querelatamos na Revista do mês de agosto de 1860, com a diferença deque, neste último caso, são produzidos por um Espírito malévolo,que apenas deseja causar perturbação, enquanto nos fenômenosaqui tratados são Espíritos benevolentes que procuram seragradáveis e testemunhar simpatia.

Nota – Sobre a teoria da formação espontânea dosobjetos, vide O Livro dos Médiuns, capítulo intitulado Laboratório doMundo Invisível.

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Conversas Familiares de Além-TúmuloO DR. GLAS

Nascido em Lyon, morto em 21 de fevereiro de 1861com 35 anos e meio de idade

(SOCIEDADE ESPÍRITA DE PARIS, 5 DE ABRIL DE 1861)

O Sr. Glas era um espírita fervoroso. Sucumbiu a umalonga e dolorosa enfermidade, cujos sofrimentos só eramatenuados pela esperança que dá o Espiritismo. Sua vida laboriosae acidentada por preocupações amargas, e um acidente,inicialmente desconhecido, abreviaram-lhe a existência. Foievocado a pedido de seu pai.

1. Evocação.Resp. – Eis-me aqui.

2. Ficaríamos muito contentes de nos entreterconvosco, inicialmente para condescender ao desejo do senhorvosso pai e de vossa esposa e, depois, porque, considerando oestado dos vossos conhecimentos, esperamos deles aproveitar-nos.

Resp. – Desejo que esta comunicação seja, para os queme pranteiam, uma consolação, e para vós, que me evocais, umobjeto de estudos instrutivos.

3. Parece que sucumbistes a uma moléstia cruel.Poderíeis dar-nos algumas explicações sobre a sua natureza e a suacausa?

Resp. – Hoje vejo claramente que minha doença eratoda moral e terminou por me extinguir dolorosamente o corpo.Quanto a me estender longamente sobre os meus sofrimentos,ainda os tenho bem presentes para não os recordar. Um trabalhoobstinado, aliado a uma contínua agitação do cérebro, foi averdadeira fonte do meu mal.

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Observação – Esta resposta é confirmada pela seguintepassagem da carta de seu pai: “Sua vida laboriosa e acidentada porpreocupações amargas, e um acidente, inicialmente desconhecido,abreviaram sua existência.” Esta carta não tinha sido lida antes daevocação, e nem o médium nem os assistentes conheciam o fato.

4. Também parece que vossas crenças vos auxiliaram asuportar o sofrimento com coragem, pelo que vos felicitamos.

Resp. – Eu tinha em mim a consciência de uma vidamelhor; isto diz tudo.

5. Essas crenças contribuíram para apressar o vossodesprendimento?

Resp. – Infinitamente, uma vez que as idéiasespiritualistas que se podem ter sobre a vida são, por assim dizer,indulgências plenárias que afastam de vós, após a morte, todainfluência terrestre.

6. Poderíeis descrever-nos o mais exatamente possível anatureza da perturbação que experimentastes, sua duração e assensações quando vos reconhecestes?

Resp. – Quando morri, eu tinha perfeito conhecimentode mim mesmo e entrevia com calma o que muitos outros tememcom tanto pavor. Meu trespasse foi rápido e a consciência de mimmesmo não mudou. Ignoro quanto tempo durou a perturbação,mas, quando despertei, realmente estava morto.

7. No momento em que vos reconhecestes, achastes-vos isolado?

Resp. – Sim; aliás, pelo coração, ainda estava ligado àTerra; não vi imediatamente Espíritos à minha volta; somentepouco a pouco.

8. Que pensais dos confrades que buscam, por meio daCiência, provar aos homens que neles não há senão matéria e quesomente o nada os aguarda?

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Resp. – Orgulho! Quando estiverem perto da morte,talvez se calem; é o que lhes desejo. Ah! como dizia Lamennais hápouco, existem duas ciências, a do bem e a do mal. Eles têm aciência que vem dos homens: a do mal.

Observação – O Espírito faz alusão a uma comunicaçãoque Lamennais acabara de dar momentos antes, prova de que nãoesperara a evocação para comparecer à sessão.

9. Estais freqüentemente junto de vossa esposa, dovosso filho e do vosso pai?

Resp. – Quase constantemente.

10. O sentimento que experimentais ao vê-los édiferente do que sentíeis em vida, quando estáveis junto deles?

Resp. – A morte dá aos sentimentos, como às idéias,uma visão larga, mais cheia de esperança, que o homem não podeapreender na Terra. Eu os amo, mas gostaria de tê-los junto a mim.É, sobretudo, em vista das esperanças futuras que o Espírito deveter coragem e sangue-frio.

11. Estando aqui, podeis vê-los em casa sem vosperturbar?

Resp. – Oh! perfeitamente.

Observação – Um Espírito inferior não o poderia;somente os que têm certa elevação podem ver simultaneamente depontos diferentes. Os outros ainda estão muito terra-a-terra.

Lendo esta resposta, certas pessoas dirão, sem dúvida,que era uma boa ocasião de controle; que se deveria ter perguntadoao Espírito o que faziam os seus parentes nesse momento everificar se era exato. Com que objetivo o teríamos feito? Para nosasseguramos de que era realmente um Espírito que nos falava. Mas,então, se não era um Espírito, o médium nos enganava. Ora, hámuitos anos esse médium presta o seu concurso à Sociedade ejamais tivemos ocasião de suspeitar de sua boa-fé.

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Se o tivéssemos feito, como prova de identidade, nãonos teria valido grande coisa, porque um Espírito enganador teriapodido sabê-lo tanto quanto o Espírito verdadeiro. Assim, essaquestão teria entrado na categoria das perguntas de curiosidade ede prova, que os Espíritos sérios desprezam e às quais jamaisrespondem. Como fato, sabemos por experiência que isto épossível; mas sabemos, igualmente, que quando um Espírito querentrar em certos detalhes, ele o faz espontaneamente, se o julgarútil, e não para satisfazer a um capricho.

12. Fazeis distinção entre o vosso Espírito e o vossoperispírito? Qual a diferença que estabeleceis entre as duas coisas?

Resp. – Penso, logo sinto e tenho uma alma, como disseum filósofo. Não sei mais que ele a respeito. Quanto ao perispírito,é uma forma, como sabeis fluídica e natural; mas buscar a alma équerer buscar o absoluto espiritual.

13. Credes que a faculdade de pensar resida noperispírito? Numa palavra, que a alma e o perispírito sejam uma sóe mesma coisa?

Resp. – É absolutamente como se perguntásseis se opensamento reside no vosso corpo. Um se vê; o outro se sente e seconcebe.

14. Assim, não sois um ser vago e indefinido, mas umser limitado e circunscrito?

Resp. – Limitado, sim; mas rápido como o pensamento.

15. Quereis indicar o lugar onde estais aqui?Resp. – À vossa esquerda e à direita do médium.

Nota – O Sr. Allan Kardec estava no mesmo lugarindicado pelo Espírito.

16. Fostes obrigado a deixar o vosso lugar para moceder?

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Resp. – Absolutamente: nós passamos através de tudo,como tudo passa através de nós; é o corpo espiritual.

17. Assim, estou mergulhado em vós?Resp. – Sim.

18. Por que não vos sinto?Resp. – Porque os fluidos que compõem o perispírito

são muito etéreos, não suficientemente materiais para vós; mas,pela prece, pela vontade, numa palavra, pela fé, os fluidos podemtornar-se mais ponderáveis, mais materiais, e mesmo afetar o tato,o que acontece nas manifestações físicas e é a conclusão destemistério.

Observação – Suponhamos um raio luminoso pene-trando num local escuro; pode-se atravessá-lo, nele mergulhar, semlhe alterar a forma nem a natureza. Embora esse raio seja umaespécie de matéria, é tão sutil que não oferece nenhum obstáculo àpassagem da matéria mais compacta. Dá-se o mesmo com a colunade fumaça ou de vapor que, igualmente, pode ser atravessada semdificuldade. Somente o vapor, por ter mais densidade, produzirá nocorpo uma impressão que não produz a luz.

19. Suponhamos que neste momento pudésseis tornar-vos visível aos olhos da assembléia. Que efeitos produziriamnossos dois corpos, um dentro do outro?

Resp. – O efeito que vós mesmos imaginais, natural-mente; todo o vosso lado esquerdo seria menos visível que odireito; estaria num nevoeiro, no vapor do perispírito; o mesmoocorreria do lado direito do médium.

20. Suponhamos agora que vos pudésseis tornar nãoapenas visível, mas tangível, como já aconteceu algumas vezes. Istopoderia acontecer, conservando a situação em que estamos?

Resp. – Forçosamente eu me mudaria pouco a pouco delugar; eu me construiria ao vosso lado.

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21. Há pouco, quando falei somente da visibilidade,dissestes que estaríeis entre mim e o médium, o que indica queteríeis mudado de lugar. Agora, para a tangibilidade, parece que vosafastais ainda mais. Não seria possível tomardes as duas aparências,conservando nossa posição inicial, eu ficando mergulhado em vós?

Resp. – Não, absolutamente, já que respondo àpergunta. Eu me reconstruiria ao lado. Não me posso solidificarnaquela posição; só posso aí ficar se permanecer fluídico.

Observação – Dessa explicação ressalta grave ensina-mento. No estado normal, isto é, fluídico e invisível, o perispírito éperfeitamente penetrável à matéria sólida; já no estado devisibilidade há um começo de condensação que o torna menospenetrável, enquanto no estado de tangibilidade a condensação écompleta e a penetrabilidade não pode mais ocorrer.

22. Credes que um dia a Ciência chegue a submeter operispírito à apreciação dos instrumentos, como o faz com osoutros fluidos?

Resp. – Perfeitamente. Não conheceis ainda senão asuperfície da matéria; mas a sutileza, a essência da matéria, sóconhecereis pouco a pouco. A eletricidade e o magnetismo sãocaminhos certos.

23. Com que outro fluido conhecido o perispírito temmais analogia?

Resp. – Com a luz, a eletricidade e o oxigênio.

24. Há aqui uma pessoa que julga ter sido vossocamarada de colégio; não a reconheceis?

Resp. – Não a vejo; não me lembro.

25. É o Sr. Lucien B..., de Montbrison, que esteveconvosco no colégio de Lyon.

Resp. – Eu jamais teria pensado em vos encontrarassim. Estudei intensamente na Terra, mas vos asseguro que meus

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estudos, como Espírito, são ainda mais sérios. Mil vezes obrigado,por vossa lembrança.

Questões e Problemas Diversos18

O Sr. Jobard, de Bruxelas, nos dirige a seguinte carta,assim como as respostas obtidas às diversas perguntas.

“Meu caro Presidente,

“Estando Bruxelas tão longe de Paris quanto a Lua doSol, os raios do Espiritismo ainda não a aqueceram. Todavia oSr. Nicolas B..., tendo-me consagrado dois dias, deu notícia de ummédium escrevente de primeira ordem, que nos surpreendediariamente, tanto mais quanto ele mesmo está admirado dosmagníficos ditados que lhe são feitos pelo Espírito Tertuliano, oqual deseja que ele escreva um livro explicativo do quadro dacriação dos mundos, a partir do caos até Deus. Eu o li ontem aogrande pintor Wiertz, que o compreendeu e quer consagrar-lheuma página de 100 pés. Não ouso enviar-vos esses sublimes ditadosantes que vos tenhais assegurado da identidade da personagem.Junto apenas dois ou três fragmentos que acabo de extrair dosrascunhos mediúnicos que conservo preciosamente.

“Nós chamamos Cabanis o materialista, que é tãoinfeliz quanto o vosso ateu e todos os outros quebradores de lápis.Chamai, pois, a Henri Mondeux, para saber a longa fieira dematemáticos que ele deve ter habitado. Todo o mundo quer que sedescubra Jud, o assassino do Sr. Poinsot. A rendição de Gaëte nosfoi anunciada com oito dias de antecedência. Tenho também aordem de escrever um livro, mas não sei por onde começar, nãosendo nem me podendo tornar um médium escritor, sob opretexto de que não é mais necessário. Vosso discurso de Lyon é

18 Nota da Editora: Ver “Nota Explicativa”, p. 567.

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admirável; eu os fiz ler aos humanimais mais avançados de nossaLua. Não há muitos aqui, infelizmente. Quando me irei aquecer aovosso sol? Adeus, caro mestre.”

Jobard

P. Os magos, os sábios, os grandes filósofos e osprofetas antigos não eram médiuns?

Resp. – Evidentemente, sim. O laço que os unia àsinteligências superiores agia sobre eles e lhes inspirava novospensamentos, sem falar de sua própria superioridade, que lhespermitia emitirem apreciações mais exatas. Eles comunicavam aosEspíritos encarnados idéias que pareciam profecias, porque estasnada mais são do que comunicações vindas dos grandes Espíritos.E como possuíam uma parte dos atributos divinos, as idéiasanunciadas tinham um caráter de adivinhação, e forçosamente serealizaram nos tempos e épocas indicados.

P. A mediunidade é, pois, um favor aos que a possuem?Resp. – O verdadeiro médium, que não faz profissão

desse dom sublime, evidentemente deve tornar-se melhor. Comonão seria de outro modo, quando a cada instante pode receberimpressões tão favoráveis ao seu progresso na senda do bem? Asidéias filosóficas que emite, não só por seu próprio Espírito, mas,ainda, e principalmente por nós, são retificadas naquilo que a suainteligência, muito fraca, poderia compreender mal e mal enunciar.

Observação do Sr. Jobard – Destas respostas plenas dejusteza segue-se que os bons médiuns se multiplicam, a raçahumana melhora e acabará trazendo, num dado tempo, o reino deDeus à Terra.

P. Nas estatísticas do crime nota-se que os operáriosque trabalham o ferro nela figuram raramente. Terá o ferro algumainfluência sobre eles?

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Resp. – Sim, porque nesse trabalho de transformação damatéria há algo que deve elevar o Espírito menos dotado; umainfluência magnética age sobre ele. O ferro é o pai de todos osminerais; é o mais útil ao homem, para ele representando a vida detodos os dias, ao passo que os metais que chamais ricosrepresentam, para os Espíritos em baixo estágio, a fonte dasatisfação de todas as paixões humanas. São os instrumentos doEspírito do mal.

P. Todos os metais podem transformar-se uns nosoutros, como pretendem certos sábios?

Resp. – Sim, mas essa transformação só se fará com otempo.

P. E o diamante?Resp. – É carbono desprendido da fonte que o

produziu em estado gasoso e que se cristalizou sob pressões quenão podeis apreciar. Mas chega de perguntas; não as possoresponder.

Tertuliano

Observação do Sr. J. – Geralmente os Espíritos se recusama responder às perguntas que poderiam fazer a fortuna de umhomem sem trabalho. Cabe a ele buscar, porque as pesquisas fazemparte das provas que deve sofrer, na penitenciária que devemosatravessar. É provável que os Espíritos não saibam mais que nósquanto às descobertas a fazer. Como nós, podem pressenti-las;podem guiar-nos em nossas pesquisas, mas não nos podem evitaro prazer ou o trabalho de pesquisar. Nem por isso é menosagradável, quando julgamos ter uma solução, obter sua aprovação,que podemos considerar como uma confirmação.

Nota – Sobre o assunto da observação acima, vide OLivro dos Espíritos, no 532 e seguintes; O Livro dos Médiuns, capítulo

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Evocações; Perguntas que se podem fazer aos Espíritos, no 78 eseguintes.19

Observação do Sr. A. K. – A carta do nosso honradoconfrade é anterior à publicação do número de março da Revista,no qual inserimos um artigo sobre o Sr. Poinsot. Quanto aHenri Mondeux, várias explicações foram dadas na Sociedade;as circunstâncias, porém, não permitiram ainda completar suaevocação, razão pela qual ainda não nos manifestamos. A propósitodo pedido que nos fez o Sr. Jobard, de nos assegurarmos daidentidade do Espírito que se comunicou sob o nome deTertuliano, já lhe respondemos em tempo o que a respeitodissemos em nosso O Livro dos Médiuns. Não poderia havermateriais de identidade do Espírito de personagens antigas.Sobretudo quando se trata de um ensinamento superior, o mais dasvezes o nome é apenas um meio de fixar as idéias, considerando-seque entre os Espíritos que nos vêm instruir, o número dosdesconhecidos na Terra é incontestavelmente maior. O nome é,antes um sinal de analogia que de identidade, só se lhe devendoligar uma importância secundária. O que se deve considerar, antesde tudo, é a bondade e a racionalidade do ensino. Se em nadadesmentir o caráter do Espírito cujo nome toma, se estiver à suaaltura, é o essencial. Se for inferior, a origem deve ser suspeita,porque um Espírito pode fazer melhor, mas não pior do quequando vivo, desde que pode ganhar, mas não perder o que haviaadquirido. Consideradas sob esse ponto de vista, as respostasseguintes nos parecem imputáveis a Tertuliano, donde concluímosque pode ser ele, sem o poder afirmar, ou um Espírito de suacategoria, que tomou esse nome para indicar a posição que ocupa.

19 N. do T.: Provável cochilo de revisão. Em vez do item 78 e seguintes,de O Livro dos Médiuns, considerar os itens 291 (Perguntas sobre osinteresses morais e materiais); 294(Perguntas sobre as intervenções edescobertas); e 295 (Perguntas sobre tesouros ocultos) do livrocitado. [O item 78 se refere ao fenômeno da suspensão das mesas –Segunda parte, capítulo IV: Teoria das manifestações físicas].

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As perguntas e respostas seguintes nos foramendereçadas por um de nossos correspondentes de SãoPetersburgo.

1. Eu queria me dar conta de qual pode ser o destino dabeleza no Universo; não será um escolho que serve às provas?

Resp. – Crê-se em tudo que se espera; espera-se tudo oque se ama; ama-se tudo o que é belo. Portanto, a beleza contribuipara fortalecer a fé. Se, muitas vezes, ela se torna uma tentação, nãoé por causa da beleza em si, um dos atributos das obras de Deus,mas por causa das paixões que, semelhantes às Harpias, murchamtudo o que tocam.

2. E que dirás do amor?Resp. – É um bem de Deus, quando germina e se

desenvolve num coração não corrompido, casto e puro; é umacalamidade, quando as paixões a ele se misturam. Tanto eleva edepura no primeiro caso, quanto perturba e agita no segundo. Ésempre a mesma lei admirável do Eterno: beleza, amor, memóriade uma outra existência, talentos que trazeis ao nascer. Todos osdons do Criador podem tornar-se venenos ao sopro excitante daspaixões, que o livre-arbítrio pode conter ou desenvolver.

3. Rogo a um Espírito bom a gentileza de esclarecer-mequanto às perguntas que lhe vou submeter, a propósito dos fatosrelatados às páginas 223 e seguintes de O Livro dos Médiuns, sobrea transfiguração20.

Resp. – Pergunta.

4. Se, no aumento de volume e peso da mocinha dascercanias de Saint-Étienne, o fenômeno se produzia peloadensamento de seu perispírito, combinado com o de seu irmão,

20 N. do T.: Livro citado, segunda parte, capítulo VII: Bicorporeidade etransfiguração.

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como é que os olhos dela, que deviam ter ficado no mesmo lugar,podiam ver através da espessa camada de um novo corpo que seformava diante deles?

Resp. – Como vêem os sonâmbulos com as pálpebrasfechadas: pelos olhos da alma.

5. No fenômeno citado o corpo aumentou. No fim docapítulo VIII21 está dito ser provável que se a transfiguração tivesseocorrido sob o aspecto de uma criancinha, o peso teria diminuídoproporcionalmente. Não posso me dar conta, conforme a teoria dairradiação e da transfiguração do perispírito, de que este possatornar-se menor que um corpo sólido. Parece-me que o últimodeveria ultrapassar os dois perispíritos combinados.

Resp. – Como o corpo pode tornar-se invisível pelavontade de um Espírito superior, o da mocinha também se tornainvisível, pela força de um poder independente de sua vontade. Aomesmo tempo, combinando-se com o do menino, seu perispíritopode formar e realmente forma a imagem dessa criança. A teoriada mudança do peso específico te é conhecida.

6. Após haver dissipado uma a uma as minhas dúvidase reafirmado minha fé na sua base, o Espiritismo me deixa umaquestão não resolvida; ei-la: Como os Espíritos novos, que Deuscria, e que se destinam a um dia tornar-se Espíritos puros, depoisde terem passado pela peneira de uma multidão de existências e deprovas, saem tão imperfeitos das mãos do Criador, que é a fonte detoda perfeição, e não se melhoram gradualmente senão seafastando de sua origem?

Resp. – Esse é um mistério que o Eterno não nospermite penetrar, antes que nós, Espíritos errantes ou encarnados,tenhamos atingido a perfeição que nos é indicada, graças à bondadedivina, perfeição que novamente nos aproximará de nossa origeme fechará o círculo da eternidade.

21 N. do T.: Corresponde ao item 124, segunda parte, capítulo VII (OLivro dos Médiuns).

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Observação – Nosso correspondente não nos diz qual oEspírito que lhe respondeu, mas a sabedoria de suas respostasprova que não é um Espírito vulgar. Eis o essencial, porquanto,como se sabe, o nome pouco importa. Nada temos a dizer quantoàs suas primeiras respostas, que concordam em todos os pontoscom o que nos foi ensinado, provando que a teoria que demos dosfenômenos espíritas não é produto de nossa imaginação, visto serdada por outros Espíritos, em tempos e lugares diversos e fora denossa influência pessoal. Apenas a última resposta não resolve apergunta feita. Vamos tentar remediá-la. Digamos, primeiramente,que a solução pode ser facilmente deduzida do que está dito, comalguns desenvolvimentos, em O Livro dos Espíritos, sobre aprogressão dos Espíritos, no 114 e seguintes. Teremos pouca coisa aacrescentar. Os Espíritos saem das mãos do Criador simples eignorantes, mas nem são bons, nem maus: do contrário, desde asua origem teria Deus votado uns ao bem e à felicidade, e outrosao mal e à desgraça, o que não estaria nem conforme à suabondade, nem de acordo com a sua justiça. No momento de suacriação, os Espíritos não são imperfeitos senão do ponto de vistado desenvolvimento intelectual e moral, como a criança ao nascer,como o germe contido na semente da árvore; mas não são mauspor natureza. Ao mesmo tempo, neles se desenvolve a razão, olivre-arbítrio, em virtude do qual escolhem, uns o bom caminho,outros o mau, fazendo que uns cheguem ao objetivo mais cedo queoutros. Mas todos, sem exceção, devem passar pelas vicissitudes davida corporal, a fim de adquirir experiência e ter o mérito da luta.Ora, nessa luta uns triunfam, outros sucumbem, conquanto osvencidos possam sempre se erguer e resgatar os seus fracassos.

Esta questão levanta outra, mais grave, que muitasvezes nos tem sido apresentada. É a seguinte: Deus, que tudo sabe,o passado, o presente e o futuro, deve saber que tal Espíritoseguirá o mau caminho, sucumbirá e será infeliz. Neste caso, porque o criou?

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Ora, por certo sabe Deus perfeitamente a linha queseguirá um Espírito, pois, de outro modo, não teria a ciênciasoberana. Se o mau caminho no qual se aventura o Espírito devessefatalmente conduzi-lo a uma eternidade absoluta de penas esofrimentos; se, porque tivesse falido, lhe fosse sempre negadoreabilitar-se, a objeção acima teria uma força de lógicaincontestável, e talvez aí residisse o mais poderoso argumentocontra o dogma dos suplícios eternos. Neste caso, impossível é sairdo dilema: ou Deus não conhece a sorte reservada à sua criatura, eentão não tem a soberana ciência; ou, se a conhece, Ele a criou paraser eternamente infeliz e, portanto, não tem a soberana bondade.Com a Doutrina Espírita, tudo concorda perfeitamente e não hámais contradição: Deus sabe que um Espírito tomará um maucaminho; conhece todos os perigos de que este se acha semeado,mas sabe, também, que dele sairá, e que não haverá para ele senãoum atraso. E, em sua bondade e para lhe facilitar, multiplica em suarota as advertências salutares, das quais infelizmente nem sempreele aproveita. É a história de dois viajantes que querem alcançar umbelo país, onde viverão felizes; um sabe evitar os obstáculos, astentações que o fariam parar no caminho; o outro, porimprudência, choca-se contra os mesmos obstáculos, leva quedasque o atrasam, mas chegará por sua vez. Se, no caminho, pessoascaridosas o previnem dos perigos que corre e se, por presunção,não as escuta, mais repreensível será por isso.

O dogma da eternidade absoluta das penas é atacadoviolentamente por todos os lados, não só pelo ensino dos Espíritos,mas pela simples lógica do bom-senso. Sustentá-lo é desconheceros atributos mais essenciais da Divindade; é contradizer-se,afirmando de um lado o que se nega do outro; ele cai, e as fileirasde seus partidários se esclarecem dia a dia, de tal sorte que, se éabsolutamente necessário nele crer para ser católico, em breve nãohaverá mais verdadeiros católicos, assim como hoje não os haveriase a Igreja tivesse persistido em fazer artigo de fé do movimento do

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Sol e dos seis dias da Criação. Insistir numa tese que a razão repeleé desferir um golpe fatal na religião e dar armas ao materialismo; oEspiritismo, ao contrário, vem reavivar o sentimento religioso, quese verga aos golpes aplicados pela incredulidade, dando sobre asquestões do futuro uma solução que o mais severo raciocínio podeadmitir. Rejeitá-lo é dispensar a tábua de salvação.

Ensinamentos e Dissertações EspíritasSRA. DE GIRARDIN

(Sociedade Espírita de Paris – Médium: Sra. Costel)

Nota – Tendo sido feitas algumas observações críticassobre a comunicação ditada na sessão anterior, dada pela Sra. deGirardin, esta as responde espontaneamente. Faz alusão àscircunstâncias que acompanharam aquela comunicação.

“Venho agradecer ao associado que houve por bemapresentar a minha defesa e minha reabilitação moral perante vós.Com efeito, em vida eu amava e respeitava as leis do bom-gosto,que são as da delicadeza – diria mais – do coração, para o sexo aque pertencia; depois de minha morte, permitiu Deus que eu fossebastante elevada para praticar fácil e simplesmente os deveres dacaridade, que nos ligam a todos, Espíritos e homens. Dada estaexplicação, não insistirei sobre a comunicação assinada com meunome, desde que a crítica e a censura não convêm nem a meumédium, nem a mim. Assim, crede que virei quando for evocada,mas jamais me intrometerei nos incidentes fúteis. Eu vos falei dascrianças. Deixai-me retomar este assunto, que foi a chaga dolorosade minha vida. A mulher necessita da dupla coroa do amor e damaternidade, para preencher o mandato de abnegação que Deuslhe confiou, ao lançá-la na Terra. Infelizmente eu jamais conheci

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essa doce e suave preocupação, que na alma imprimem esses frágeisdepósitos. Quantas vezes segui, com os olhos rasos de lágrimasamargas, as crianças que, brincando, vinham se roçar no meuvestido; e sentia a angústia e a humilhação de minha decadência. Eutremia, esperava, escutava, e minha vida, cheia dos sucessos domundo, frutos repletos de cinza, não me deixou senão um gostoamargo e decepcionante.”

Delphine de Girardin

Observação – Há neste trecho uma lição que não devepassar despercebida. A Sra. de Girardin, fazendo alusão a certaspassagens de sua comunicação anterior, que levantara algumasobjeções, disse que em vida amava e respeitava as leis dobom-gosto, que são as da delicadeza, e que conservou essesentimento depois da morte. Repudia, em conseqüência, tudo oque, nas comunicações que levam o seu nome, se afaste dobom-gosto. Após a morte, a alma reflete as qualidades e os defeitosque tinha durante a vida corpórea, salvo os progressos que possater feito no bem, porque pode ter-se melhorado, mas jamais semostra inferior ao que era. Assim, na apreciação das comunicaçõesde um Espírito muitas vezes há matizes de extrema delicadeza aobservar, para distinguir o que realmente é dele, ou o que poderiaser uma substituição. Os Espíritos verdadeiramente elevados não secontradizem nunca e podemos corajosamente rejeitar tudo quantodesminta o seu caráter. Muitas vezes esta apreciação é tanto maisdifícil quanto a uma comunicação perfeitamente autêntica podemisturar-se um reflexo, seja do próprio Espírito do médium, quenão exprime exatamente o pensamento, seja de um Espíritoestranho, que se interpõe, insinuando seu próprio pensamento nodo médium. Deve-se, pois, considerar como apócrifas ascomunicações que, em todos os pontos, e pelo mesmo fundo dasidéias, desmintam o caráter do Espírito cujo nome levam. Mas seriainjusto lhes condenar o conjunto, por algumas nódoas parciais, quepodem ter a causa que acabamos de assinalar.

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A PINTURA E A MÚSICA

(Sociedade Espírita de Paris – Médium: Sr. Alfred Didier)

A arte foi definida cem mil vezes: é o belo, overdadeiro, o bem. A música, que é um dos ramos da arte, pertenceinteiramente ao domínio da sensação. Entendamo-nos e tratemosde não ser obscuro. A sensação se produz no homem quando elecompreende a arte de duas maneiras distintas, mas estreitamenteligadas; a sensação do pensamento que tem por conclusão amelancolia ou a filosofia, e, depois, a sensação que pertence porinteiro ao coração. A música, a meu ver, é a arte que vai maisdiretamente ao coração. A sensação – havereis de compreender-me– está toda no coração; a pintura, a arquitetura, a escultura, apintura antes de tudo, atingem muito mais a sensação cerebral.Numa palavra, a música vai do coração ao Espírito, a pintura dopensamento ao coração. A exaltação religiosa criou o órgão.Quando na Terra a poesia toca o órgão, os anjos do céu lherespondem. Assim, a música séria, religiosa eleva a alma e ospensamentos. A música vulgar faz vibrar os nervos, nada mais. Eubem gostaria de indicar algumas personalidades, mas não tenhoesse direito: não estou mais na Terra. Amai o Réquiem de Mozart,que o matou. Não desejo, mais que os Espíritos, a vossa morte pelamúsica, a morte viva, contudo; aí está o esquecimento de tudoquanto é terreno, pela elevação moral.

Lamennais

FESTAS DOS ESPÍRITOS BONS

A chegada de um irmão

(Enviada pela Sra. Cazemajoux, médium de Bordeaux)

Também temos nossas festas, e isto acontece comfreqüência, porque os Espíritos bons da Terra, nossos irmãos bem-amados, despojando-se de seu invólucro material nos estendem osbraços e nós vamos, em grupo inumerável, recebê-los à entrada da

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morada que, doravante, vão habitar conosco. E nessas festas, comonas vossas, não se agitam as paixões humanas, sob rostos graciosose frontes coroadas de flores, ocultando a inveja, o orgulho, o ciúme,a vaidade, o desejo de agradar e de primar sobre rivais nessesprazeres factícios. Aqui reinam a alegria, a paz, a concórdia; cadaum está contente com a posição que lhe é assinalada e feliz com afelicidade de seus irmãos. Pois bem, meus amigos! com esse acordoperfeito, que impera entre nós, nossas festas têm um encantoindescritível. Milhões de músicos cantam em liras harmoniosas asmaravilhas de Deus e da Criação, com acentos mais deslumbrantesque vossas mais suaves melodias. Longas procissões aéreas deEspíritos adejam como zéfiros, lançando, sobre os recém-chegados,nuvens de flores cujo perfume e variados matizes não podeiscompreender. Depois, o banquete fraterno a que são convidados osque com felicidade terminaram suas provas, e vêm receber arecompensa de seus trabalhos. Oh! meu amigo, gostaríeis de sabermais; impotente, porém, é a vossa linguagem, para descrever essasmagnificências. Eu vos disse bastante, a vós que sois os meusbem-amados, para vos dar o desejo de aspirá-las. E, então, caroEmílio, livre da missão que realizei junto a ti, na Terra, eu acontinuarei para te conduzir através do espaço, e te fazer desfrutartodas as felicidades.

Felícia(Esposa do evocador Emílio, há um ano seu guia protetor)

VINDE A NÓS

(Enviada pela Sra. Cazemajoux, médium de Bordeaux)

O Espiritismo é a aplicação da moral evangélica,pregada pelo Cristo em toda a sua pureza; assim, os homens que ocondenam sem o conhecer são pouco prudentes. Com efeito, porque qualificar de superstição, de charlatanice, de sortilégios, dedemonomania as coisas que o vulgar bom-senso faria aceitar sequisessem estudá-lo? A alma é imortal: é o Espírito. A matéria

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inerte é o corpo perecível a despojar-se de suas formas para não setornar, quando o Espírito a deixou, senão um monte de podridãosem nome. E achais lógico, vós que não acreditais no Espiritismo,que esta vida, que para a maioria dentre vós é de amargura, dedores, de decepções – um verdadeiro purgatório – não tenha outrofim senão o túmulo? Desiludi-vos; vinde a nós, pobres deserdadosdos bens, das grandezas e dos prazeres terrenos, vinde a nós esereis consolados, vendo que vossas dores, vossas privações, vossossofrimentos devem abrir-vos as portas dos mundos felizes, e queDeus, justo e bom para com todas as criaturas, só nos provou parao nosso bem, conforme estas palavras do Cristo: “Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados.” – Vinde,pois, incrédulos e materialistas; abrigai-vos sob a bandeira na qual,em letras de ouro, estão inscritas estas palavras: Amor e caridadepara os homens, que são todos irmãos; bondade, justiça,indulgência de um pai grande e generoso para os Espíritos quecriou e que eleva a si por caminhos seguros, embora vos sejamdesconhecidos; a caridade, o progresso moral, o desenvolvimentointelectual vos conduzirão ao autor e Senhor de todas as coisas.

Não vos instruímos senão para que, por vossa vez,trabalheis para espalhar essa instrução; mas, sobretudo, fazei-o semazedume; sede pacientes e esperai. Lançai a semente; a reflexão e oauxílio de Deus a farão frutificar, a princípio para um pequenonúmero, que fará como vós, e, pouco a pouco, aumentando onúmero de operários, vos fará esperar, após as semeaduras, umaboa e abundante colheita.

Ferdinand,Filho do médium

PROGRESSO INTELECTUAL E MORAL

(Enviada pelo Sr. Sabò, de Bordeaux)

Venho dizer-vos que o progresso moral é o de mais útilaquisição, porque nos corrige de nossos maus pendores e nos torna

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bons, caridosos e devotados aos nossos irmãos. Entretanto, oprogresso intelectual também é útil para o nosso adiantamento,porque eleva a alma, faz com que julguemos mais corretamente asnossas ações, facilitando, assim, o progresso moral; inicia-nos nosensinos que Deus nos tem dado há tantos séculos, por homens deméritos diversos, que vieram sob todas as formas e em todas aslínguas para nos dar a conhecer a verdade, e que outros não eramsenão Espíritos já avançados, enviados por Deus paradesenvolverem o entendimento humano. Mas na época em queviveis, a luz que apenas clareia um pequeno número vai brilhar paratodos. Trabalhai, pois, para compreenderdes a grandeza, o poder, amajestade, a justiça de Deus; para compreenderdes a sublimebeleza de suas obras; para compreenderdes as magníficasrecompensas concedidas aos bons e os castigos infligidos aosmaus; enfim, para compreenderdes que o único objetivo a quedeveis aspirar é o de vos aproximardes dEle.

Georges(Bispo de Périgueux e de Sarlat

feliz por ser um dos guias do médium)

A INUNDAÇÃO

(Enviada pelo Sr. Casimir H., de

Inspruck22; traduzido do alemão)

Um dia surgiu uma fonte numa região outrora estéril. Aprincípio não passava de um delgado filete de água a correr naplanície, ao qual não deram muita atenção. Pouco a pouco essefraco regato engrossou, tornando-se ribeirão; alargou-se, invadiu asterras vizinhas, mas as que ficaram descobertas foram fertilizadas eproduziram a cem por um. Contudo, um proprietário ribeirinho,descontente por ver seu terreno recuado, tentou deter o curso parareconquistar a porção coberta pelas águas, julgando, assim,

22 N. do T.: Em vez de Inspruck, não estaria o Espírito se referindo àcidade austríaca de Innsbruck?

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aumentar as suas riquezas. Ora, aconteceu que, reprimido, oribeirão submergiu tudo, terreno e proprietário.

Tal é a imagem do progresso; como um rio impetuoso,rompe os diques que se lhe opõem e arrasta com ele osimprudentes que, em vez de lhe seguir o curso, procuram entravá-lo. Será o mesmo com o Espiritismo. Deus o envia para fertilizar oterreno moral da Humanidade. Bem-aventurados os que souberemaproveitá-lo e infelizes os que tentarem opor-se aos desígnios deDeus! Não o vedes avançar a passos de gigante pelos quatro pontoscardeais? Por toda parte sua voz já se faz ouvir e logo cobrirá de talmodo a dos inimigos, que estes serão forçados ao silêncio econstrangidos a se curvarem ante a evidência. Homens! os quetentam entravar a marcha irresistível do progresso vos preparamrudes provas. Deus permite que assim seja para castigo de uns eglorificação de outros; mas vos dá no Espiritismo o piloto que vosdeverá conduzir ao porto, levando nas mãos a bandeira daesperança.

Wilhelm,Avô do médium

Allan Kardec

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Revista EspíritaJornal de Estudos Psicológicos

ANO IV JUNHO DE 1861 No 6

ChanningDISCURSO SOBRE A VIDA FUTURA

Pregado por Channing, no domingo da Páscoa de 1834,após a morte de um de seus amigos

Várias vezes temos reproduzido nesta Revista ditadosespontâneos do Espírito Channing, que não desmentem a suasuperioridade de caráter e de inteligência. Por certo nossos leitoresserão gratos por lhes darmos uma idéia das opiniões que eleprofessava em vida, pelo seguinte fragmento de um de seusdiscursos, cuja tradução devemos à gentileza de um dos nossosassinantes. Sendo seu nome pouco conhecido na França, faremosprecedê-lo de breve notícia biográfica.

William Ellery Channing nasceu em 1780, emNewport, Rhode-Island, Estado de Nova Iorque. Seu avô, WilliamEllery, assinou a famosa declaração da independência. Channing foieducado no Harward College, destinado à profissão médica; masseus gostos e aptidões o levaram à carreira religiosa e em 1803tornou-se ministro da capela unitarista de Boston. Semprepermaneceu nessa cidade, professando a doutrina dos Unitaristas,

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seita protestante que conta numerosos adeptos na Inglaterra e naAmérica, nas camadas mais elevadas. Fez-se notar por seus pontosde vista amplos e liberais. Por sua eloqüência notável, por suasnumerosas obras e pela profundidade de sua filosofia, é contado nonúmero dos homens mais destacados dos Estados Unidos.Partidário declarado da paz e do progresso, pregou sem tréguascontra a escravidão e fez a essa instituição uma guerra tãoobstinada, que a muitos liberais tal excesso de zelo, prejudicial à suapopularidade, por vezes parecia inoportuno. Seu nome fezautoridade entre os anti-escravagistas. Morreu em Boston em 1842,aos 62 anos de idade. Gannet o sucedeu como chefe da seita dosUnitaristas.

“Para a massa dos homens, o céu é quase sempre ummundo de fantasia: falta-lhe substância. A idéia de um mundo noqual existam seres sem corpos grosseiros, Espíritos puros ourevestidos de corpos espirituais ou etéreos, parece-lhes pura ficção;aquilo que nem se pode ver nem tocar não lhes parece real. Isto étriste, mas não é de admirar; de fato, como é possível que homensmergulhados na matéria e em seus interesses, não cultivando oconhecimento da alma e de suas capacidades espirituais, possamcompreender uma vida espiritual mais elevada? A multidãoconsidera como sonhador visionário aquele que fala claramente ecom alegria de sua vida futura e do triunfo do Espírito sobre adecomposição corpórea. Esse cepticismo sobre as coisas espirituaise celestes é tão irracional e pouco filosófico quanto aviltante.

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“E quanto é pouco racional imaginar que não hajaoutros mundos além deste, outro modo de existência mais elevadoque o nosso! Quem é aquele que, percorrendo os olhos sobre estaCriação imensa, pode duvidar que não haja seres superiores a nós,

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ou ver algo despropositado em conceber o Espírito num estadomenos circunscrito, menos entravado do que na Terra, em outraspalavras, que haja um mundo espiritual?

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“Aqueles que nos deixaram por um outro mundodevem tomar por este um interesse ainda mais profundo; seus laçoscom os que aqui deixaram se depuram, mas não se dissolvem. Se oestado futuro é um melhoramento do estado presente, se ainteligência deve ser fortalecida e o amor ampliado, a memória,poder fundamental da inteligência, deve agir sobre o passado comuma energia maior, e todas as afeições benévolas que aquiconservamos devem receber uma atividade nova. Supor apagada avida terrena do Espírito seria destruir a sua utilidade, romper arelação dos dois mundos e subverter a responsabilidade; de outromodo, como a recompensa e o castigo atingiriam uma existênciaesquecida? Não; é preciso que conosco levemos o presente, sejaqual for o nosso futuro, feliz ou desgraçado. Os bons formarão, éverdade, laços novos mais santos; mas, sob a influência expansivadesse mundo melhor, o coração terá uma capacidade bastantegrande para reter os laços antigos, à medida que forma novos;lembrar-se-á com ternura do seu lugar de nascimento, enquantogoza de uma existência mais madura e mais feliz. Se eu pudesseimaginar que aqueles que partiram morrem para os que ficam, euos honraria e amaria menos. O homem que, deixando-os, esqueceos seus, parece desprovido dos melhores sentimentos de nossanatureza; e se, em sua nova pátria, os justos devessem esquecer osseus pais na Terra, se, ao se aproximarem de Deus, devessem cessarde interceder por eles, poderíamos achar que a mudança lhes foiproveitosa?

“Poder-se-ia perguntar se os que são levados ao céu nãoapenas se lembram com interesse dos que deixaram na Terra, mas,ainda, se têm um conhecimento presente e imediato. Não tenho

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nenhuma razão para crer que tal conhecimento não exista. Estamoshabituados a considerar o céu como afastado de nós, mas nada oprova. O céu é a união, a sociedade dos seres espirituais superiores.Não podem esses seres povoar todo o Universo, reproduzindo océu por toda parte? Como nós, é provável que tais seres sejamcircunscritos por limites materiais? Disse Milton:

‘Millions of spiritual beings walk the earthBoth when we wake and when we sleep.’

‘Milhões de seres espirituais percorrem a Terra tão bemquando velamos, como quando dormimos.’

“Um sentido novo, uma nova visão poderia mostrar-nos que o mundo espiritual nos envolve por todos os lados. Massuponde mesmo que o céu esteja afastado; nem por isso seushabitantes deixam de estar presentes e nós visíveis para eles; porém,o que entendemos por presença? Não estou presente para aquelesdentre vós que meu braço não pode alcançar, mas que vejodistintamente? Não está plenamente de acordo com o nossoconhecimento da Natureza supor que os que estão no céu, seja qualfor o local de sua residência, possam ter sentidos e órgãosespirituais, por meio dos quais podem ver o que está distante, coma mesma facilidade com que distinguimos o que está perto? Nossosolhos percebem sem esforço planetas a milhões de léguas dedistância e, com o auxílio da Ciência, podemos reconhecer atémesmo as desigualdades de sua superfície. Podemos mesmoimaginar um órgão visual bastante sensível ou um instrumentosuficientemente poderoso para permitir distinguir, de nosso globo,os habitantes desses mundos afastados. Por que, então, os queentraram na sua fase de existência mais elevada, que estãorevestidos de corpos espiritualizados, não poderiam contemplarnossa Terra tão facilmente quanto na época em que era a suamorada?

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“Isto pode ser verdade; mas, se o aceitamos assim, nãoabusamos: poder-se-ia abusar. Não pensamos nos mortos como seeles nos contemplassem com um amor parcial, terreno. Eles nosamam mais que nunca, mas com uma afeição espiritual depurada.Têm por nós apenas um desejo: o de que nos tornemos dignos denos reunirmos em sua morada de beneficência e de piedade. Suavisão espiritual penetra as nossas almas; se pudéssemos ouvir a suavoz, não seria uma declaração de afeição pessoal, mas um apelovivificante a maiores esforços, a uma abnegação mais firme, a umacaridade mais ampla, a uma paciência mais humilde, a umaobediência mais filial à vontade de Deus. Eles respiram a atmosferada benevolência divina, e sua missão é agora mais elevada do que oera aqui.

“Perguntar-me-eis: se nossos mortos conhecem osmales que nos afligem, existirá sofrimento nessa vida bendita?Respondo que não posso considerar o céu senão como um mundode simpatias. Parece-me que nada pode melhor atrair o olhar deseus habitantes benfazejos do que a visão da miséria de seusirmãos. Mas esta simpatia, se dá origem à tristeza, está longe detornar infelizes os que a sentem. Neste mundo inferior, acompaixão desinteressada, aliada ao poder de abrandar osofrimento, é uma garantia de paz, muitas vezes proporcionando osmais puros prazeres. Livres de nossas enfermidades presentes eesclarecidos pela visão mais dilatada da perfeição da governançadivina, esta simpatia acrescentará mais encanto à virtude dos seresabençoados e, como qualquer outra fonte de perfeição, só faráaumentar-lhes a felicidade.

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“Nossos amigos, que nos deixam por esse outromundo, não se encontram no meio de desconhecidos; não têm essesentimento desolado de haver trocado a pátria por uma terraestrangeira. As mais ternas palavras de amizade humana não se

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aproximam dos acentos de felicitações que os esperam quandochegarem àquela morada. Lá o Espírito tem meios mais seguros dese revelar do que aqui; o recém-chegado sente-se e se vê cercado devirtudes e de bondade e, por essa visão íntima dos Espíritossimpáticos que os rodeiam, ligações mais fortes que as cimentadaspelos anos na Terra podem criar-se momentaneamente. As maisíntimas afeições na Terra são frias, comparadas às dos Espíritos. Deque maneira eles se comunicam? Em que língua e por meio de queórgãos? Ignoramo-lo, mas sabemos que o Espírito, progredindo,deve adquirir maior facilidade para transmitir o seu pensamento.

“Incorreríamos em erro se crêssemos que os habitantesdo céu se limitam à comunicação recíproca de suas idéias; aocontrário, os que atingem esse mundo entram em novo estado deatividade, de vida e de esforços. Somos levados a pensar que oestado futuro seja de tal modo feliz que ninguém ali necessite deauxílio, que o esforço cesse, que os bons nada tenham a fazer senãogozar. A verdade, entretanto, é que toda ação na Terra, mesmo amais intensa, não passa de jogo infantil, comparado à atividade, àenergia desdobrada nessa vida mais elevada. E deve ser assim,porquanto não há princípio mais ativo que a inteligência, abeneficência, o amor da verdade, a sede da perfeição, a piedadepelos sofrimentos e o devotamento à obra divina, que são osprincípios expansivos da vida de além-túmulo. É, então, que a almatem consciência de suas capacidades, que a verdade infinita semanifesta diante de nós, que sentimos que o Universo é uma esferasem limites para a descoberta, para a Ciência, para a caridade e paraa adoração. Esses novos objetivos da vida, que reduzem a nada osinteresses atuais, manifestam-se constantemente. Não se deve, pois,imaginar que o céu seja composto de uma comunidadeestacionária. Eu o concebo como um mundo de planos e deesforços prodigiosos para o seu próprio melhoramento. Considero-o como uma sociedade a atravessar fases sucessivas dedesenvolvimento, de virtudes, de conhecimentos, de poder, pelaenergia de seus próprios membros.

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“O gênio celeste está sempre ativo a explorar as grandeleis da Criação e os princípios eternos do espírito, a desvendar obelo na ordem do Universo e a descobrir os meios de avanço paracada alma. Lá, como aqui, há inteligências de diversas graus, e osEspíritos mais evoluídos encontram a felicidade e o progressoeducando os mais atrasados. Lá o trabalho de educação, como naTerra, progride sempre, e uma filosofia mais divina que a ensinadaentre nós revela ao Espírito a sua própria essência, estimulando-o aesforços alegres para a sua própria perfeição.

“O céu encontra-se em relação com outros mundos;seus habitantes são os mensageiros de Deus em toda a Criação; elestêm grandes missões a cumprir e, pelo progresso de sua existênciasem-fim, pode Deus lhes confiar o cuidado de outros mundos.”

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Este discurso foi pronunciado em 1834. Nessa épocanão se cogitava de manifestações de Espíritos na América.Channing, portanto, não as conhecia; do contrário teria afirmado oque em certos pontos apenas admitiu como hipótese. Mas não énotável ver esse homem pressentir com tanta precisão aquilo quesó deveria ser revelado alguns anos mais tarde? Porque, salvopoucas exceções, sua descrição da vida futura concordaperfeitamente. Só falta a reencarnação; aliás, se a examinarmosbem, vemos que dela ele se aproxima, como chega perto dasmanifestações, sobre as quais se cala, porque não as conhece. Comefeito, admite o mundo invisível que nos rodeia, em meio a nós,cheio de solicitude por nós, auxiliando-nos a progredir. Daí àscomunicações diretas não há senão um passo. Não admite nomundo celeste a contemplação perpétua, mas a atividade e oprogresso; aceita a pluralidade dos mundos corpóreos, mais oumenos adiantados. Se tivesse dito que os Espíritos podiam realizaro seu progresso passando por esses diferentes mundos, teríamos aí

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a reencarnação. Sem esta, a idéia desses mundos progressivos émesmo inconciliável com a criação das almas no momento donascimento dos corpos, a menos que se admita tenham as almassido criadas mais ou menos perfeitas; neste caso, seria necessáriojustificar essa preferência. Não é mais lógico dizer que se as almasde um mundo são mais avançadas que as de um outro, é que jáviveram em mundos inferiores? O mesmo se pode dizer doshabitantes da Terra, comparados entre si, desde o selvagem até ohomem civilizado. Seja como for, perguntamos se um tal retrato davida de além-túmulo, por suas deduções lógicas, acessíveis àsinteligências mais vulgares e aceita pela mais severa razão, não écem vezes mais adequada para infundir a convicção e a confiançano futuro, do que a horrível e inadmissível descrição das torturassem-fim, tomadas de empréstimo do Tártaro do paganismo? Osque pregam essas crenças não fazem a menor idéia do número deincrédulos que geram, nem dos recrutas que arregimentam para afalange dos materialistas.

Notemos que Milton, citado nesse discurso, emitesobre o mundo invisível ambiente uma opinião em tudo conformeà de Channing, que é também a dos espíritas modernos. É queMilton, como Channing e como tantos outros homens eminentes,eram espíritas por intuição. É por isso que não cessamos de afirmarque o Espiritismo não é uma invenção moderna; é de todos ostempos, porque houve almas em todos os tempos e em todos ostempos a massa de homens acreditou na alma. Assim, encontram-se traços dessas idéias numa multidão de escritores, antigos emodernos, sagrados e profanos. Essa intuição das idéias espíritas éde tal modo geral que vemos todos os dias uma porção de pessoasque, delas ouvindo falar pela primeira vez, absolutamente não seadmiram: não faltava senão uma sistematização para a sua crença.

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CorrespondênciaCarta do Sr. Roustaing, de Bordeaux

A carta seguinte nos foi enviada pelo Sr. Roustaing,advogado na Corte Imperial de Bordeaux, antigo bastonário. Osprincípios aí altamente expressos por um homem de sua posição,posto entre os mais esclarecidos, talvez levem a refletir aqueles que,julgando ter o privilégio da razão, classificam, sem cerimônia, todosos adeptos do Espiritismo como imbecis.

“Meu caro senhor e muito honrado chefe espírita,

“Recebi a doce influência e colhi o benefício destaspalavras do Cristo a Tomé: Felizes os que não viram e creram. Pro-fundas, verdadeiras e divinas palavras, que mostram a via maissegura, a mais racional, que conduz à fé, segundo a máxima deSão Paulo, que o Espiritismo cumpriu e realiza: Rationabile sitobsequium vestrum.

“Quando vos escrevi em março último, pela primeiravez, dizia: Nada vi, mas li e compreendi; e creio. Deus me recom-pensou muito por ter acreditado sem ter visto; depois vi e vi bem;vi em condições proveitosas, e a parte experimental veio animar, seassim me posso exprimir, a fé que a parte doutrinária meproporcionara e, fortalecendo-a, imprimir-lhe a vida.

“Depois de ter estudado e compreendido, eu conheciao mundo invisível como conhece Paris quem a estudou sobre omapa. Por experiência, trabalho e observação continuada, chegueia conhecer o mundo invisível e seus habitantes, como conheceParis quem a percorreu, mas sem ter ainda penetrado em todos osrecantos desta vasta capital. Contudo, desde o começo do mês deabril, graças ao conhecimento que me proporcionastes, doexcelente Sr. Sabò e de sua família patriarcal, todos bons everdadeiros espíritas, pude trabalhar e trabalho constantemente

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com eles, todos os dias, quer em minha casa, quer na presença ecom o concurso dos adeptos de nossa cidade, que estão convictosda veracidade do Espiritismo, embora nem todos ainda sejam, defato e na prática, espíritas.

“O Sr. Sabò vos enviou exatamente o produto denossos trabalhos, obtidos a título de ensinamento por evocações oumanifestações espontâneas dos Espíritos superiores. Experi-mentamos tanta alegria e surpresa, quanto confusão e humildade,quando recebemos esses ensinamentos, tão preciosos everdadeiramente sublimes, de tantos Espíritos elevados, que nosvieram visitar ou nos enviaram mensageiros para falar em seunome.

“Oh! caro senhor, como sou feliz por não maispertencer, pelo culto material, à Terra, que agora sei não ser para osnossos Espíritos senão um lugar de exílio, a título de provas ou deexpiação! Como sou feliz por conhecer e ter compreendido areencarnação, com todo o seu alcance e todas as suas conseqüências,como realidade e não como alegoria. A reencarnação, esta sublimee eqüitativa justiça de Deus, como ainda ontem dizia o meu guiaprotetor, tão bela, tão consoladora, visto deixar a possibilidade defazer no dia seguinte o que não pudemos fazer na véspera; que faza criatura progredir para o Criador; ‘esta justa e eqüitativa lei’,segundo a expressão de Joseph de Maistre, na evocação quefizemos de seu Espírito, e que recebestes; a reencarnação é,conforme a divina palavra do Cristo, ‘o longo e difícil caminho apercorrer para chegar à morada de Deus.’

“Agora compreendo o sentido destas palavras de Jesusa Nicodemos: Sois doutor da lei e ignorais isto? Hoje, que Deus mepermitiu compreender de maneira completa toda a verdade da leievangélica, eu me pergunto como a ignorância dos homens, doutoresda lei, pôde resistir a este ponto à interpretação dos textos; produzirassim o erro e a mentira que engendraram e alimentaram o

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materialismo, a incredulidade, o fanatismo ou a poltronaria? Eu mepergunto como esta ignorância, este erro puderam produzir-sequanto o Cristo tivera o cuidado de proclamar a necessidade dereviver, dizendo: É preciso nascer de novo e, por aí, a reencarnação,como único meio de alcançar o reino de Deus, o que já eraconhecido e ensinado na Terra e que Nicodemos devia saber: ‘Soisdoutor da lei e ignorais isto!’ É verdade que o Cristo acrescenta acada passo: ‘Que os que têm ouvidos, ouçam’; e também: ‘Têmolhos e não vêem; tem ouvidos e não ouvem e não compreendem’,o que também se aplica aos que vieram depois dele, assim comoaos de seu tempo.

“Dissera eu que Deus, em sua bondade, recompensou-me por nossos trabalhos até este dia, e os ensinos que nos foramtransmitidos pelos seus divinos mensageiros, ‘missionáriosdevotados e inteligentes junto aos seus irmãos – segundo aexpressão do Espírito Fénelon – para lhes inspirar o amor e acaridade do próximo, o esquecimento das injúrias e o culto daadoração devido a Deus.’ Compreendo agora o admirável alcancedestas palavras do Espírito Fénelon, quando fala desses divinosmensageiros: ‘Viveram tantas vezes que se tornaram nossosmestres.’

“Agradeço com alegria e humildade a esses divinosmensageiros por terem vindo nos ensinar que o Cristo está emmissão na Terra para a propagação e o sucesso do Espiritismo, estaterceira explosão da bondade divina, em cumprimento daquelapalavra final do Evangelho: ‘Unum ovile et unus pastor’; por nos tervindo dizer: ‘Nada temais! O Cristo – por eles chamado Espírito deVerdade – é o primeiro e mais santo missionário das idéiasespíritas.’ Estas palavras me tinham tocado vivamente e eu meperguntava: ‘Mas onde então está o Cristo em missão na Terra?’ AVerdade comanda, conforme expressão do Espírito Marius, bispodos primeiros tempos da Igreja, essa falange de Espíritos enviadospor Deus em missão na Terra, para a propagação e o sucesso doEspiritismo.

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“Que doces e puras satisfações dão esses trabalhosespíritas, pela caridade feita, com o auxílio da evocação aosEspíritos sofredores! Que consolação entrar em comunicação comos que, na Terra, foram nossos parentes ou amigos; saber que sãofelizes, ou aliviar-lhes, caso sofram! Que viva e brilhante luzprojetam em nossas almas esses ensinos espíritas que, fazendo-nosconhecer a verdade completa da lei do Cristo, dão-nos a fé pornossa própria razão e nos fazem compreender a onipotência doCriador, sua grandeza, sua justiça, sua bondade e sua misericórdiainfinitas, colocando-nos assim na deliciosa necessidade de praticaresta lei divina de amor e de caridade! Que sublime revelação nosdão, ensinando que esses divinos mensageiros, fazendo-nosprogredir, progridem eles também, indo aumentar a falangesagrada dos Espíritos perfeitos! A admirável e divina harmonia quenos mostra, ao mesmo tempo, a unidade em Deus e a solidariedadeentre todas as criaturas; que nos revela estas sob a influência e oimpulso dessa solidariedade, dessa simpatia, dessa reciprocidade,chamadas a subir e subindo, mas não sem passos falsos e semquedas, nos seus primeiros ensaios, esta longa e alta escada espíritapara, após haver percorrido todos os degraus, chegar, do estado desimplicidade e de ignorância originais, à perfeição intelectual emoral e, por esta perfeição, a Deus. Admirável e divina harmonia,que nos mostra esta grande divisão da inferioridade e dasuperioridade, pela distinção entre os mundos de exílio, onde tudosão provas ou expiações, dos mundos superiores, morada dosEspíritos bons, onde não têm senão que progredir para o bem.

“Bem compreendida, a reencarnação ensina aoshomens que eles aqui se acham de passagem, livres para não maisvoltar, se para isso fizerem o que for necessário; que o poder, asriquezas, as dignidades, a ciência não lhes são dados senão a títulode provas e como meio de progredir para o bem; que em suas mãosnão são mais que um depósito e um instrumento para a prática dalei de amor e de caridade; que o mendigo que passa ao lado de umgrão-senhor é seu irmão perante Deus e talvez o tenha sido diante

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dos homens; que, talvez, tenha sido rico e poderoso; se agora seencontra numa condição obscura e miserável, é por ter falido emsuas terríveis provas, lembrando assim aquela palavra célebre, doponto de vista das condições sociais: Não há senão um passo doCapitólio à rocha Tarpéia, com a diferença de que, pelareencarnação, o Espírito se levanta de sua queda e pode, depois dehaver remontado ao Capitólio, lançar-se de seu picos às regiõescelestes, morada esplêndida dos Espíritos bons.

“A reencarnação, ao ensinar aos homens, segundo aadmirável expressão de Platão, que não há quem não descenda deum pastor, nem pastor que não descenda de um rei, dissipa todasas vaidades terrenas, liberta do culto material, nivela moralmentetodas as condições sociais; constitui a igualdade, a fraternidadeentre os homens, como para os Espíritos, em Deus e diante deDeus, e a liberdade que, sem a lei de amor e de caridade, não passade mentira e de utopia, como ultimamente no-lo dizia o EspíritoWashington. Em seu conjunto, o Espiritismo vem dar aos homensa unidade e a verdade em todo progresso intelectual e moral,grande e sublime empreendimento, do qual somos apenas humildesapóstolos.

“Adeus, meu caro senhor. Após três meses de silêncio,eu vos sobrecarrego com uma carta muito longa. Respondeiquando puderdes e quando quiserdes. Eu me propunha a fazer umaviagem a Paris para ter o prazer de vos conhecer pessoalmente, devos apertar fraternalmente a mão; minha saúde, porém, opõe-se nomomento a tal propósito.

“Podeis fazer desta carta o uso que julgardesconveniente. Eu me honro de ser altivamente e publicamenteespírita.

“Vosso bem dedicado,

Roustaing, advogado

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Como nós, todos apreciarão a exatidão dospensamentos expressos nesta carta. Vê-se que, embora iniciadorecentemente, o Sr. Roustaing passou a mestre em assunto deapreciação. É que estudou séria e profundamente, o que lhepermitiu apanhar, com rapidez, todas as conseqüências dessa gravequestão do Espiritismo, não se detendo, em sentido oposto a muitagente, na superfície. Dissera ainda nada ter visto, mas estavaconvencido, porque havia lido e compreendido. Tem ele isto decomum com muitas criaturas e sempre observamos que estas,longe de serem superficiais, são, ao contrário, as que mais refletem.Ligando-se mais ao fundo do que à forma, para elas a partefilosófica é a principal, sendo acessórios os fenômenospropriamente ditos; dizem que mesmo que tais fenômenos nãoexistissem, nem por isso deixaria de haver uma filosofia, a únicaque resolve problemas até hoje insolúveis; a única a dar, do passadoe do futuro do homem, a teoria mais racional. Ora, eles preferemuma doutrina que explica a uma que nada explica, ou explica mal.Quem quer que reflita, compreende perfeitamente que se podefazer abstração das manifestações sem que, por isso, deixe adoutrina de subsistir. As manifestações vêm corroborá-la,confirmá-la, mas não são a sua base essencial. O discurso deChanning, que acabamos de citar, é prova disso, porque, cerca devinte anos antes dessa grande exibição de manifestações naAmérica, somente o raciocínio o havia conduzido às mesmasconseqüências.

Há um outro ponto, pelo qual também se reconhece oespírita sério; pelas citações que o autor desta carta faz, dospensamentos contidos nas comunicações que ele recebeu, prova quenão se limitou a admirá-las como belos trechos literários, bons paraconservar num álbum, mas que as estuda, medita e tira proveito.Infelizmente há muitos para quem esse importante ensinamentopermanece letra morta; que colecionam essas belas comunicaçõescomo certa gente coleciona belos livros, mas sem os ler.

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Devemos, além disso, felicitar o Sr. Roustaing peladeclaração com que termina sua carta. Infelizmente nem todostêm, como ele, a coragem da própria opinião, o que estimula osadversários. Entretanto, forçoso é reconhecer que as coisas têmmudado muito neste particular, de algum tempo a esta parte. Hádois anos apenas, muitas pessoas só falavam do Espiritismo entrequatro paredes; só compravam livros às escondidas e tinhamgrande cuidado em não os deixar em evidência. Hoje é bemdiferente; já se familiarizaram com os epítetos grosseiros dosgracejadores e deles se riem, em vez de se ofenderem. Não maistêm receio em confessar-se espíritas abertamente, como nãotemem dizer-se partidários de tal ou qual filosofia, do magnetismo,do sonambulismo, etc.; discutem livremente o assunto com oprimeiro que chegar, como discutiriam sobre os clássicos e osromânticos, sem se sentirem humilhados por serem a favor destesou daqueles. É um progresso imenso, que prova duas coisas: oprogresso das idéias espíritas em geral, e a pouca consistência dosargumentos dos adversários. Terá como conseqüência imporsilêncio a estes últimos, que se julgavam fortes por se crerem maisnumerosos; mas quando, de todos os lados, encontram com quemfalar, não diremos que serão convertidos, mas guardarão reserva.Conhecemos uma pequena cidade da província, onde, há um ano,o Espiritismo não contava senão com um adepto, que era apontadoa dedo como um bicho estranho e assim considerado; e, quemsabe? talvez até deserdado por sua família ou destituído de seucargo. Hoje os adeptos ali são numerosos; reúnem-se abertamente,sem se inquietarem com o que dirão; e quando se viram entre elesautoridades municipais, funcionários, oficiais, engenheiros,advogados, tabeliães e outros, que não ocultavam suas simpatiaspelo Espiritismo, os trocistas cessaram de zombar e o jornal dalocalidade, redigido por um espírito muito forte, que já havialançado alguns dardos e se aprestava para pulverizar a novadoutrina, temendo encontrar pelas costas partido mais forte que odele, guardou prudente silêncio. É a história de muitas outraslocalidades, história que se generalizará à medida que os partidários

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do Espiritismo, cujo número aumenta diariamente, levantam acabeça e a voz. Bem podem querer abater uma cabeça que semostre, mas quando há vinte, quarenta, cem pessoas que nãoreceiam falar alto e firme, pensam duas vezes, e isso dá coragem aquem não a possui.

A Prece

Um de nossos correspondentes de Lyon nos envia oseguinte trecho de poesia. Entra muito no espírito da DoutrinaEspírita, para não nos privarmos do prazer de lhe conceder espaçoem nossa Revista.

Mais não possa, mortais, por meus fracos acentosPôr-vos no coração o incenso dos alentos!Em versos aprendeis, ouvindo-lhe a expressão,Isso que é suplicar, isso que é oração.É, num fluido ardoroso, um impulso de amor,Que da alma se projeta e se eleva ao Senhor.Sublimada expansão da humilde criaturaO que retorna à fonte excelsa da Natura!Orar não muda em nada as sábias leis do Eterno,Inalteráveis sempre; o coração paternoDerrama o influxo seu sobre aquele que o imploraE assim redobra o ardor do fogo que o devora.É então que o ser se sente elevar e crescer;E ao próximo de amor o coração bater.Mas ele esparge amor, mais augusto é o saberQue enche o seu coração de altos dons a deter.Um santo anseio, então, de rogar pelos mortos,Sob o peso da pena e agudos desconfortos,Nos mostra a precisão que o estado seu reclamaDe então lhes dirigir o fluido da alma que ama,Que, bálsamo eficaz e tão consolador,Penetra-lhes no ser como um libertador.Tudo se lhes reanima; um raio de esperançaAjuda-lhes o esforço e à redenção os lança.Assim como os mortais vencidos pelo mal

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Que um bálsamo supremo os leva ao natural,Regenerados são por um impulso ocultoDa augusta prece ardente e seu divino culto.Redobremos o ardor; nada se perde enfim;Peçamos mais e mais por eles até o fim;A prece, sempre a prece, essa chispa divina,Faz-se foco de amor, pois ao final domina.Sim, pelos mortos, sempre oremos com fervor,Que eles nos enviarão doce raio de amor.

Joly

Nestes versos, evidentemente inspirados por umEspírito elevado, o objetivo e os efeitos da prece são definidos comperfeita exatidão. Certamente Deus não derroga suas leis a pedidonosso, pois de outro modo seria a negação de um de seus atributos,que é a imutabilidade; mas a prece age principalmente sobre aqueleque constitui o seu objeto; é, em primeiro lugar, um testemunho desimpatia e de comiseração que se lhe dá e que, por isso mesmo, fazcom que a sua pena lhe pareça menos pesada; em segundo lugar,tem por efeito ativo estimular o Espírito ao arrependimento desuas faltas, inspirando-lhe o desejo de as reparar pela prática dobem. Disse Deus: “A cada um segundo as suas obras.” Leieminentemente justa, que nos põe a sorte em nossas próprias mãose que tem como conseqüência subordinar a duração da pena àduração da impenitência; de onde se segue que a pena seria eterna,se eterna fosse a impenitência. Se, pois, pela ação moral da prece,provocarmos o arrependimento e a reparação voluntária, por elamesma abreviamos o tempo da expiação. Tudo isto estáperfeitamente expresso nos versos acima. Esta doutrina pode nãoser muito ortodoxa aos olhos dos que crêem num Deus impiedoso,surdo à voz que o implora, condenando a torturas sem-fim suaspróprias criaturas pelas faltas de uma vida passageira. Mas,convenhamos que ela é mais lógica e mais conforme à verdadeirajustiça e à bondade de Deus. Tudo nos diz, assim a religião como arazão, que Deus é infinitamente bom; com o dogma do fogo

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eterno, forçoso é ajuntar que ele é, ao mesmo tempo, infinitamenteimpiedoso, dois atributos que se anulam reciprocamente, pois um éa negação do outro. Quanto ao mais, o número dos partidários daeternidade das penas diminui todos os dias: é um fato positivo,incontestável; logo estará tão restrito que poderão ser contados. Emesmo que a Igreja, desde hoje, tachasse de heresia e,conseqüentemente, rejeitasse de seu seio todos quantos não crêemnas penas eternas, haveria entre os católicos mais heréticos do queverdadeiros crentes, sendo preciso condenar, ao mesmo tempo,todos os eclesiásticos e teólogos que, como nós, interpretam essapalavra num sentido relativo, e não absoluto.

Conversas Familiares de Além-Túmulo

É um erro imaginar que não tenhamos nada a ganharnas conversas com os Espíritos de homens vulgares, e que só doshomens ilustres podem sair ensinamentos proveitosos. Em seunúmero, por certo, muitos serão insignificantes, mas muitos,também, de quem menos se espera, saem revelações de grandeimportância para o observador sério. Aliás, há um ponto que nosinteressa em grau supremo, porque nos toca mais de perto: é apassagem, a transição da vida atual à vida futura, passagem tãotemida que só o Espiritismo pode nos fazer encará-la sem pavor, eque só podemos conhecer estudando os casos atuais, isto é, os queacabam de transpô-la, sejam ilustres ou não.

O MARQUÊS DE SAINT-PAUL

Morto em 1860. Evocado a pedido de sua irmã,membro da Sociedade, em 16 de maio de 1861.

1. Evocação.Resp. – Eis-me aqui.

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2. A senhora vossa irmã pediu-nos para vos evocar,embora seja médium, mas não ainda bastante desenvolvida parasentir-se segura.

Resp. – Tentarei responder da melhor forma possível.

3. Primeiramente ela deseja saber se sois feliz.Resp. – Estou errante e este estado transitório nunca

traz felicidade nem castigo absolutos.

4. Demorastes muito tempo para vos reconhecerdes?Resp. – Fiquei muito tempo em perturbação, e dela não

saí senão para bendizer a piedade dos que não me esqueciam eoravam por mim.

5. Podeis avaliar o tempo dessa perturbação?Resp. – Não.

6. Quais de vossos parentes logo reconhecestes?Resp. – Reconheci minha mãe e meu pai; ambos me

receberam ao despertar. Eles me iniciaram na vida nova.

7. Como explicar que no fim de vossa doença parecíeisconversar com os que havíeis amado na Terra?

Resp. – Porque tive, antes de morrer, a revelação domundo que iria habitar. Eu era vidente antes de morrer e meusolhos se velaram na passagem da separação definitiva do corpo,porque muito vigorosos ainda eram os laços carnais.

Observação – O fenômeno do desprendimentoantecipado da alma é muito freqüente. Antes de morrer, muitaspessoas entrevêem o mundo dos Espíritos; é, sem dúvida, com oobjetivo de suavizar, pela esperança, o pesar de deixar a vida. Maso Espírito acrescenta que seus olhos se velaram durante aseparação; é, com efeito, o que sempre ocorre. Nesse momento oEspírito, perdendo a consciência de si mesmo, jamais testemunha oúltimo suspiro de seu corpo e a separação se opera sem que dela se

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dê conta. As próprias convulsões da agonia são um efeitopuramente físico, cuja sensação o Espírito quase nuncaexperimenta; dizemos quase porque pode acontecer que estasúltimas dores lhe sejam infligidas como castigo.

8. Como é que as lembranças da infância parecem virde preferência a outras?

Resp. – Porque o começo é mais aproximado do fim doque o meio da vida.

9. O que pretendeis significar com isso?Resp. – Que os moribundos se lembram e vêem, como

consoladora miragem, os anos jovens e inocentes.

Observação – É provavelmente por um motivo provi-dencial semelhante que os velhos, à medida que se lhes aproxima otermo da vida, algumas vezes têm lembranças tão precisas dosmenores detalhes de seus primeiros anos.

10. Por que, referindo-se ao vosso corpo, faláveissempre na terceira pessoa?

Resp. – Porque, como disse, eu era vidente e sentiaclaramente as diferenças que existem entre o físico e o moral; taisdiferenças, ligadas entre si pelo fluido da vida, tornam-se bemdistintas aos olhos dos agonizantes clarividentes.

Observação – Eis aí uma particularidade singular,apresentada pela morte desse senhor. Nos seus últimos momentosdizia sempre: Ele tem sede; é preciso dar-lhe de beber; ele tem frio;é preciso aquecê-lo; ele sofre em tal região, etc. E quando lhediziam: Mas sois vós que tendes sede, ele respondia: Não, é ele.Aqui se desenham perfeitamente as duas existências; o eu pensanteestá no Espírito e não no corpo; já em parte desprendido, oEspírito considerava seu corpo como uma outra individualidade,que, a bem dizer, não era ele. Era, pois, ao seu corpo que deviamdar de beber, e não a ele, Espírito.

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11. O que dissestes do vosso estado errante e daduração da vossa perturbação levam a crer que não sois muito felize, no entanto, vossas qualidades deveriam fazer supor o contrário.Aliás, há Espíritos errantes que são muito felizes, como os há muitoinfelizes.

Resp. – Estou num estado transitório. As virtudeshumanas aqui adquirem seu verdadeiro valor. Sem dúvida meuestado é cem mil vezes preferível ao da encarnação terrena, massempre carreguei comigo as aspirações do verdadeiro bem e doverdadeiro belo, e minha alma não será saciada senão quando sealçar aos pés de seu Criador.

HENRI MONDEUX

Sociedade Espírita Parisiense – 26 de abril de 1861

Os jornais anunciaram, em fevereiro último, a mortesúbita do pastor Henri Mondeux, o célebre calculador, quesucumbiu nos primeiros dias de fevereiro de 1861 a um ataque deapoplexia na diligência de Condom (Gers), com cerca de 34 anos.Tinha nascido na Touraine e desde a idade de dez anos fez-se notarpela prodigiosa facilidade com que resolvia, de cabeça, as maisintrincadas questões de aritmética, embora completamente iletradoe não havendo feito nenhum estudo especial. Logo atraiu a atençãoe muitas pessoas iam vê-lo, enquanto pastoreava seus rebanhos. Osvisitantes divertiam-se em propor-lhe problemas, o que lheproporcionava pequeno lucro. Lembravam ainda o pastornapolitano, Vito Mangiamele que, poucos anos antes, tinhaapresentado um fenômeno semelhante. Um professor dematemática do colégio de Tours pensou que um dom natural tãonotável deveria dar resultados surpreendentes, se fosse auxiliado.Em conseqüência, empenhou-se na tarefa de o educar; mas nãotardou a perceber que lidava com uma das mais refratáriasnaturezas. Com efeito, aos dezesseis anos de idade, mal sabia ler eescrever correntemente e, coisa extraordinária, jamais conseguira oprofessor que ele retivesse o nome das figuras elementares de

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geometria, de sorte que sua faculdade era inteiramente circunscritaàs combinações numéricas. Era, pois, um calculador, mas não ummatemático.

Uma outra singularidade é que ele jamais pôde dobrar-se às nossas fórmulas de cálculo; nem mesmo as compreendia;tinha sua própria maneira, à qual nunca pôde dar conta de maneiraclara, não sendo capaz de explicá-la nem aos outros, nem a simesmo, e que se prendia a uma memória prodigiosa dos números.Dizemos dos números e não dos algarismos, porque a visão destesúltimos o atrapalhava mais que o ajudava; preferia que osproblemas fossem colocados verbalmente, e não por escrito.

Tal é, em resumo, o resultado das observações que nóspróprios fizemos sobre o jovem Mondeux, e que, na ocasião, nosforneceram assunto para uma Memória, lida na SociedadeFrenológica de Paris.

Uma faculdade tão exclusiva, conquanto levada aoextremo limite, não podia abrir-lhe nenhuma carreira, porque nemmesmo poderia ser contador numa casa comercial, e disto seuprofessor se apavorava, e com razão; este quase se censurava porhavê-lo retirado de suas vacas, perguntando-se o que seria delequando os anos o tivessem privado do interesse a ele ligado,sobretudo em razão da sua idade. Nós o perdemos de vista hádezoito anos; parece que encontrou algum meio de subsistênciadando sessões de cidade em cidade.

1. Evocação.Resp. – 4 e 3 são sete, tanto nos outros mundos, como

aqui.

2. Queríamos evocar-vos pouco depois de vossa morte,mas nos foi dito que não vos encontráveis em condição deresponder. Parece que estais agora?

Resp. – Eu vos esperava.

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3. É provável que não vos lembreis de mim, embora eutenha tido ocasião de vos conhecer muito particularmente naPrússia, e mesmo de assistir às vossas sessões. Quanto a mim, aindame parece vos ver, bem como ao professor de matemática que vosacompanhava, e que me deu preciosas informações sobre vós evossa faculdade.

Resp. – Tudo isto é para que eu diga que me recordo devós, mas somente hoje, em que minhas idéias estão lúcidas.

4. De onde vinha a estranha faculdade de que éreisdotado?

Resp. – Ah! eis a pergunta que eu sabia iríeis me dirigir.Começa-se por dizer: eu vos conhecia, eu vos tinha visto, éreisnotável e, enfim, chegais ao que de fato quereis. Pois bem! eu tinhaa faculdade de poder ler em meu espírito os cálculos imediatos deum problema; dizei que um Espírito expunha diante de mim asolução: eu tinha apenas de ler; eu era médium vidente e calculadore, não devo negar, uma pequena tabuada.

5. Tanto quanto posso lembrar-me, quando vivo nãotínheis este espírito brincalhão, cáustico. Não éreis mesmo umpouco grave?

Resp. – Veja! porque a faculdade foi sempre empregadanisto, não restava mais outra coisa.

6. Como é que essa faculdade, tão desenvolvida para ocálculo, fosse tão incompleta para as outras partes mais elementaresdas matemáticas?

Resp. – Por certo eu era um tolo, não é mesmo? Dizei apalavra, eu a aceitarei. Mas aqui, compreendeis, não mais tenho quedesenvolver a minha faculdade para as cifras, e ela se desenvolverapidamente para outras coisas.

7. Não tendes mais de desenvolvê-la para os números...(O Espírito escreve sem esperar o fim da pergunta).

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Resp. – Quer dizer que Deus nos deu a todos umamissão: Tu, disse-me ele, vai espantar os sábios matemáticos; far-te-ei parecer sem inteligência para que fiquem mais impressionados;derrota todos os seus cálculos e faze que eles se digam: Mas quetem ele acima de nós? Que tem de mais forte que o estudo? QueriaDeus levá-los a procurar além do corpo? O que existirá de maismaterial que um algarismo?

8. Que fostes em outras existências?Resp. – Fui enviado para mostrar outras coisas.

9. Eram sempre relativas às matemáticas?Resp. – Sim dúvida, desde que é a minha especialidade.

10. Eu tinha formulado alguns problemas para saber setínheis sempre a mesma faculdade. Mas, de acordo com o quedizeis, julgo não ser mais necessário.

Resp. – Mas não tenho mais soluções a dar; não possomais. O instrumento é mau, pois não é matemático.

11. Não poderíeis vencer a dificuldade?Resp. – Ah! nada é invencível; a própria Sebastopol foi

tomada. Mas que diferença!

12. Em que vos ocupais agora?Resp. – Quereis saber a que me entrego? Passeio e

espero um pouco antes de recomeçar minha carreira comomédium, que deve continuar.

13. Em que gênero pensais exercer esta faculdademediúnica?

Resp. – Sempre a mesma, porém mais desenvolvida,mais surpreendente.

14. [Um membro faz a seguinte reflexão]: Dasrespostas do Espírito infere-se que ele agiu como médium na Terra,

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levando a crer que teria sido auxiliado por outro Espírito, o queexplicaria por que hoje já não goza dessa faculdade.

Resp. – É que meu Espírito foi feito de propósito paraver os números que outros Espíritos me passavam; ele os captavamelhor do que o faríeis; tinha o dom do cálculo, pois foi nessegênero que eu me exercitava. Buscam-se todos os meios deconvencer; todos são bons, pequenos ou grandes, e os Espíritosassenhoreiam-se de todos.

15. Fizestes fortuna com vossa faculdade, correndo omundo para dar sessões?

Resp. – Oh! perguntar se um médium faz fortuna! Vósvos enganais de caminho. Claro que não.

16. Mas não vos consideráveis como médium? Nemmesmo sabíeis do que se tratava?

Resp. – Não. Também me admirava de que me servissetão pouco pecuniariamente. Isto me ajudou moralmente e prefiroo meu ativo, escrito no grande livro de Deus, às rendas que teriaobtido do Estado.

17. Agradecemos por vos terdes dignado a responderao nosso chamado.

Resp. – Mudaste de opinião quanto à minha pessoa.

18. Não mudei; sempre tive por vós grande estima.Resp. – Felizmente eu resolvia as questões, sem o que

não me teríeis olhado.

Observação – Como se sabe, a identidade dos Espíritos édifícil de ser constatada. Geralmente se revela por circunstâncias edetalhes imprevistos, por matizes delicados que somente umaobservação atenta pode captar; isto é mais significativo do que ossinais materiais, sempre fáceis de imitar pelos Espíritosenganadores que, no entanto, não podem simular a capacidadeintelectual ou as qualidades morais que lhes faltam. Poder-se-ia,

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pois, duvidar da identidade, nessa circunstância, sem a explicaçãomuito lógica que o Espírito dá da diferença existente entre seucaráter atual e o que mostrava em vida; porque a resposta numéricaque ele dá à evocação não pode ser considerada como provaautêntica. Seja qual for a opinião que se possa formar a respeito daevocação acima, temos de convir que, ao lado de pensamentosfaceciosos, ela os encerra profundos; sobretudo as respostas àsperguntas 7 e 16 são notáveis quanto a isto. Delas ressaltaigualmente, assim como das respostas dadas por outros Espíritos,que o Espírito Mondeux tem uma predisposição para asmatemáticas; que é provável tenha exercido essa faculdade emoutras existências, mas que não pertenceu ao rol de nenhuma dascelebridades da Ciência. Dificilmente se conceberia que umverdadeiro sábio fosse reduzido a fazer esforços de cálculo paradivertir o público, sem alcance e sem utilidade científicas. Haveriamuito mais motivos para duvidar de sua identidade se se tivessefeito passar por Newton ou Laplace.

SRA. ANAÏS GOURDON

Jovem mulher, notável pela doçura de caráter e pelasmais eminentes qualidades morais, falecida em 1860. Evocada apedido de seu pai e de seu marido. Pertencia a uma família detrabalhadores das minas de carvão nos arredores de Saint-Étienne,circunstância importante para melhor apreciar a sua evocação.

1. Evocação.Resp. – Eis-me aqui.

2. Vosso marido e vosso pai pediram-me que voschamasse e se sentirão felizes em obter uma comunicação vossa.

Resp. – Também estou muito feliz em poder dá-la.

3. Por que fostes subtraída tão cedo à afeição de vossafamília?

Resp. – Porque terminavam as minhas provas terrestres.

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4. Ides vê-los algumas vezes?Resp. – Oh! estou incessantemente junto deles.

5. Sois feliz como Espírito?Resp. – Sou feliz; espero, aguardo, amo; os céus não

constituem terror para mim e espero, confiante e com amor, que asbrancas asas me conduzam.

6. Que entendeis por essas asas?Resp. – Entendo tornar-me Espírito puro e resplan-

decer como os mensageiros celestes, que me deslumbram.

Observação – As asas dos anjos, arcanjos e serafins, quesão Espíritos puros, não passam, evidentemente, de um atributoimaginado pelos homens para descrever a rapidez com a qual setransportam, uma vez que a sua natureza etérea os dispensa dequalquer sustentáculo para percorrer os espaços. Contudo, podemaparecer aos homens com esse acessório e, assim, corresponderemao pensamento destes, do mesmo modo que outros Espíritostomam a aparência que tinham na Terra, para se fazerem mais bemconhecidos.

7. Vedes vosso cunhado, morto há algum tempo e queevocamos o ano passado?

Resp. – Eu o vi entre os Espíritos, quando cheguei.Agora não o vejo mais.

8. Por que não o vedes mais?Resp. – Nada sei quanto a isto.

9. Vossos parentes podem fazer algo que vos sejaagradável?

Resp. – Podem; esses entes queridos não devem maisme entristecer com a visão de seus pesares, pois sabem que nãoestou perdida para eles. Que meu pensamento lhes seja suave, levee perfumado em sua lembrança. Transitei na vida como uma flor,e nada de triste deve subsistir de minha rápida passagem.

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10. Como se explica que a vossa linguagem seja tãopoética e tão pouco relacionada com a posição que tínheis na Terra?

Resp. – Porque é minha alma que fala. Sim, eu tinhaconhecimentos adquiridos, e muitas vezes Deus permite queEspíritos delicados se encarnem entre os homens mais rudes paralhes fazer pressentir as delicadezas que atingirão e que mais tardecompreenderão.

Observação – Sem esta explicação, tão lógica e tãoconforme à solicitude de Deus para com as suas criaturas,dificilmente nos daríamos conta do que, à primeira vista, poderiaparecer uma anomalia. Com efeito, que de mais gracioso e maispoético que a linguagem do Espírito dessa jovem senhora, educadaem meio aos mais rudes trabalhos? A contrapartida se vê muitasvezes; são Espíritos inferiores, encarnados entre homens maisadiantados, mas com objetivo oposto. É em vista de seu próprioadiantamento que Deus os põe em contato com um mundoesclarecido e, algumas vezes, também, para servirem de prova a essemesmo mundo. Que outra filosofia pode resolver tais problemas?

11. Evocação do Sr. Gourdon, filho mais velho, jáevocado em 1860.

Resp. – Eis-me aqui.

12. Lembrai-vos de que já fostes chamado por mim?Resp. – Sim, perfeitamente.

13. Como é que vossa cunhada não vos vê mais?Resp. – Ela se elevou.

Observação – A esta pergunta ela havia respondido: “Nadasei quanto a isto”; sem dúvida por modéstia. Agora tudo se explica:de uma natureza superior, pertence a uma ordem mais elevada,enquanto ele ainda está retido na Terra. Seguem caminhos diferentes.

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14. Quais têm sido vossas ocupações desde aquelaépoca?

Resp. – Avancei na via dos conhecimentos, ouvindo asinstruções dos nossos guias.

15. Poderíeis dar uma comunicação para o vosso pai,que ficará muito feliz?

Resp. – Caro pai, não creias perdidos os teus filhos e nãosofras ante a visão dos nossos lugares vazios. Eu também te espero,sem nenhuma impaciência, porque sei que os dias que passam sãooutros tantos degraus subidos, a nos aproximarem um do outro. Sêgrave e recolhido, mas não triste, porquanto a tristeza é uma censuramuda, dirigida a Deus, que quer ser louvado em suas obras. Aliás,por que sofrer nesta vida triste, onde tudo se apaga, exceto o bemou o mal que realizamos? Caro pai, coragem e confiança!

Observação – A primeira evocação deste rapaz eramarcada pelos mesmos sentimentos de piedade filial e de elevação.Tinha sido imensa consolação para os pais, que não podiamsuportar sua perda. Compreende-se que a mesma coisa deveriaocorrer com a jovem senhora.

Efeitos do DesesperoMorte do Sr. Laferrière, membro do Instituto.

Suicídio do Sr. Léon L... – A viúva e o médico

Somente para registrar os acidentes funestos quechegam ao conhecimento do público, causados pelo desespero,seriam necessários volumes e mais volumes. Quantos suicídios,doenças, mortes involuntárias, casos de loucura, atos de vingança,crimes mesmo, não produz ele todos os dias! Uma estatística muitoinstrutiva seria a das causas primeiras que levaram à perturbação do

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cérebro; nela se veria que o desespero entra, pelo menos, comquatro quintos. Mas não é disto que queremos nos ocupar hoje. Eisdois fatos assinalados pelos jornais, não a título de novidades, mascomo assunto de observação.

Lê-se no Siècle de 17 de fevereiro último o relato dasexéquias do Sr. Laferrière:

“Terça-feira passada conduzimos à sua última morada,com alguns amigos entristecidos, uma jovem de vinte anos,arrebatada por uma doença de alguns dias. O pai dessa filha únicaera o Sr. Laferrière, membro do Instituto, inspetor-geral dasFaculdades de Direito. O excesso de dor fulminou esse pai infeliz ea resignação da fé cristã foi impotente para o consolar.

‘Trinta e seis horas mais tarde, a morte vibrou umsegundo golpe, e a mesma semana, que havia separado do pai afilha, os reuniu novamente. Uma multidão numerosa e consternadaseguia hoje o esquife do Sr. Laferrière.’

Segundo o jornal, o Sr. Laferrière tinha sentimentosreligiosos, o que apreciamos, porquanto não se deve crer quetodos os sábios sejam materialistas. Entretanto, esses sentimentosnão o impediram de sucumbir ao desespero. Estamos convictosde que se tivesse idéias menos vagas e mais positivas sobre ofuturo, tais as que dá o Espiritismo; se tivesse acreditado napresença da filha ao seu lado; se houvesse tido a consolação decomunicar-se com ela, por certo teria compreendido que dela nãoestava separado senão materialmente e por determinado tempo; eteria tido paciência, submetendo-se à vontade de Deus quanto aomomento de sua reunião; ter-se-ia acalmado pela idéia de que seupróprio desespero era uma causa de perturbação para a felicidadedo objeto de sua afeição.

Estas reflexões se aplicam ainda, e com mais razão, aofato seguinte, que se lê no Siècle de 1o de março último:

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“O Sr. Léon L..., de 25 anos, empresário de ônibus deVillemonble, em Paris, havia se casado, há cerca de dois anos, comuma jovem a quem amava apaixonadamente. O nascimento de umfilho, hoje com um ano de idade, viera estreitar ainda mais a afeiçãodo casal. Como seus negócios prosperavam, tudo lhes pareciapressagiar um longo futuro de felicidades.

“Há alguns meses a Sra. L... foi subitamente acometidade febre tifóide e, apesar dos mais assíduos cuidados, malgradotodos os recursos da Ciência, sucumbiu em pouco tempo. A partirdesse momento, o Sr. L... foi tomado de grande melancolia, da qualnada podia subtraí-lo. Muitas vezes ouviam-no dizer que a vida lheera odiosa e que iria reunir-se àquela que havia levado toda a suafelicidade.

“Ontem, voltando de Paris em seu cabriolé, por voltadas sete horas da noite, o Sr. L... entregou o veículo ao palafreneiroe, sem dizer uma palavra a ninguém, entrou num aposento situadono rés-do-chão, contíguo à sala de jantar. Uma hora mais tarde,uma criada veio avisar que o jantar estava servido. Ele respondeuque não tinha necessidade de mais nada; estava recostado sobre amesa, a cabeça apoiada nas mãos e parecia tomado de completaprostração.

“A doméstica avisou aos pais, que vieram para junto dofilho. Tinha perdido a consciência. Correram à procura do Dr.Dubois. À sua chegada o médico constatou que Léon não existiamais. Tinha-se envenenado com o auxílio de uma forte dose deopiáceo23, que havia comprado para os seus cavalos.

“A morte do rapaz causou viva impressão na região,onde gozava da estima geral.”

23 N. do T.: No original laudanum [láudano]: medicamento cuja base éo ópio.

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Certamente o Sr. Léon L... acreditava na vida futura,pois se matou para ir reunir-se à esposa. Se houvesse conhecido,através do Espiritismo, a sorte que aguarda os suicidas, teria sabidoque, longe de apressar o momento dessa união, era um meioinfalível de o retardar.

A estes dois fatos contrapomos o seguinte, mostrandoo império que podem exercer as crenças espíritas sobre asresoluções dos que as possuem.

Um de nossos correspondentes nos transmite o quesegue:

“Uma senhora do meu conhecimento havia perdido omarido, cuja morte era atribuída a um erro médico. A viúva foitomada de tal ressentimento contra este último, que o perseguiaincessantemente com invectivas e ameaças, dizendo-lhe, onde querque o encontrasse: ‘Carrasco, não morrerás senão por minha mão!’Essa senhora era muito piedosa e boa católica; mas foi em vão que,para acalmá-la, lançaram mão dos socorros da religião; chegou aponto de o médico julgar dever dirigir-se à autoridade, para suaprópria segurança.

“O Espiritismo conta numerosos adeptos na cidadehabitada por essa senhora. Um de meus amigos, excelente espírita,disse-lhe um dia: – Que pensaríeis se pudésseis ainda conversarcom o vosso marido? – Oh! disse ela, se soubesse que tal erapossível! Se tivesse certeza de não o haver perdido para sempre,consolar-me-ia e esperaria. Logo lhe deram a prova; seu própriomarido veio ministrar-lhe conselhos e consolo, não tendo ela, pelalinguagem do consorte, nenhuma dúvida quanto à presença delejunto a ela. Desde então se operou uma revolução completa em seuespírito; ao desespero sucedeu a calma, e as idéias de vingançaderam lugar à resignação. Oito dias depois ela se dirigiu à casa domédico, o qual não se achava muito seguro quanto a essa visita;mas, longe de o ameaçar, ela lhe estende a mão e diz: ‘Nada temais,senhor; venho pedir que me perdoe o mal que vos tenho feito,

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como eu vos perdôo o que me fizestes involuntariamente. Foi meupróprio marido que me aconselhou a postura que tomo nomomento; ele me disse que absolutamente não fostes a causa desua morte. Aliás, tenho agora a certeza de que ele está perto demim, vê e vela por mim, e que um dia estaremos reunidos. Assim,senhor, não me queirais mal, como, por meu lado, não lhe desejomais o mal.’ Inútil dizer que o médico aceitou logo a reconciliaçãoe teve pressa em saber a causa misteriosa a que, doravante, devia asua tranqüilidade. Assim, sem o Espiritismo, essa senhoraprovavelmente teria cometido um crime, por mais religiosa quefosse. Isto prova a inutilidade da religião? Não, de forma alguma,mas apenas a insuficiência das idéias que ela dá do futuro,apresentando-o de tal modo vago que deixa em muita gente umaespécie de incerteza, ao passo que o Espiritismo, permitindo, porassim dizer, tocá-lo com o dedo, faz nascer na alma uma confiançae uma segurança mais completas.

Ao pai que perdeu o filho, ao filho que perdeu o pai, aomarido que perdeu a esposa adorada, que consolação dá omaterialista? Diz ele: Tudo acabou; do ser que vos era tão caro nadaresta, absolutamente nada, a não ser esse corpo que logo estarádissolvido. Mas de sua inteligência, de suas qualidades morais, dainstrução adquirida, nada; tudo isto é o nada; vós o perdestes parasempre. Já o espírita diz: De tudo isto nada é perdido; tudo existe;só há de menos o invólucro perecível, mas o Espírito, liberto de suaprisão, está radiante; ei-lo, junto de vós; ele vos vê, vos escuta e vosespera. Oh! quanto mal fazem os materialistas ao inocularem, comos seus sofismas, o veneno da incredulidade! Jamais amaram; seassim não fora poderiam ver, impassíveis, os objetos de sua afeiçãoreduzidos a um amontoado de poeira? Parece, pois, que, para eles,Deus reservou maiores rigores, desde que os vemos reduzidos àmais deplorável posição no mundo dos Espíritos; Deus é tantomenos indulgente para com eles quanto mais perto estiveram de seesclarecer.

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Dissertação e Ensinos EspíritasPOR DITADOS ESPONTÂNEOS

MUITOS OS CHAMADOS POUCOS OS ESCOLHIDOS24

(Obtido pelo Sr. d’Ambel, médium da Sociedade)

Esta máxima evangélica deve aplicar-se com muitomais razão aos tempos atuais do que aos primeiros dias doCristianismo.

Com efeito, já não escutais o ruído da tempestade quehá de arrebatar o velho mundo e abismar no nada o conjunto dasiniqüidades terrenas? Ah! bendizei o Senhor, vós que haveis postoa vossa fé na sua soberana justiça e que, novos apóstolos da crençarevelada pelas proféticas vozes superiores, ides pregar o novodogma da reencarnação e da elevação dos Espíritos, conformetenham cumprido, bem ou mal, suas missões e suportado suasprovas terrestres.

Não mais vos assusteis! As línguas de fogo estão sobreas vossas cabeças. Ó verdadeiros adeptos do Espiritismo!... sois osescolhidos de Deus! Ide e pregai a palavra divina. É chegada a horaem que deveis sacrificar à sua propagação os vossos hábitos, osvossos trabalhos, as vossas ocupações fúteis. Ide e pregai.Convosco estão os Espíritos elevados. Certamente falareis acriaturas que não quererão escutar a voz de Deus, porque essa vozas exorta incessantemente à abnegação. Pregareis o desinteresse aosavaros, a abstinência aos dissolutos, a mansidão aos tiranosdomésticos, como aos déspotas! Palavras perdidas, eu o sei; masnão importa. Faz-se mister regueis com os vossos suores o terrenoonde tendes de semear, porquanto ele não frutificará e nãoproduzirá senão sob os reiterados golpes da enxada e da charruaevangélicas. Ide e pregai!

24 N. do T.: Com o título de “Missão dos espíritas”, Allan Kardecinseriu esta mensagem, da autoria do Espírito Erasto, no capítulo XX,item 4, de seu O Evangelho segundo o Espiritismo.

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Ó todos vós, homens de boa-fé, conscientes da vossainferioridade em face dos mundos disseminados pelo Infinito!...lançai-vos em cruzada contra a injustiça e a iniqüidade. Ide eproscrevei esse culto do bezerro de ouro, que cada dia mais sealastra. Ide, Deus vos guia! Homens simples e ignorantes, vossaslínguas se soltarão e falareis como nenhum orador fala. Ide epregai, que as populações atentas recolherão ditosas as vossaspalavras de consolação, de fraternidade, de esperança e de paz.

Que importam as emboscadas que vos armem pelocaminho! Somente lobos caem em armadilhas para lobos,porquanto o pastor saberá defender suas ovelhas das fogueirasimoladoras.

Ide, homens, que, grandes diante de Deus, mais ditososdo que Tomé, credes sem fazerdes questão de ver e aceitais os fatosda mediunidade, mesmo quando não tenhais conseguido obtê-lospor vós mesmos; ide, o Espírito de Deus vos conduz.

Marcha, pois, avante, falange imponente pela tua fé epor teu pequeno número! Marcha! Diante de ti os grandesbatalhões dos incrédulos se dissiparão, como a bruma da manhãaos primeiros raios do Sol nascente.

A fé é a virtude que desloca montanhas, disse Jesus.Todavia, mais pesados do que as maiores montanhas, jazemdepositados nos corações dos homens a impureza e todos os víciosque derivam da impureza. Parti, então, cheios de coragem, pararemoverdes essa montanha de iniqüidades que as futuras geraçõessó deverão conhecer como lenda, do mesmo modo que vós, que sómuito imperfeitamente conheceis os tempos que antecederam acivilização pagã.

Sim, em todos os pontos do globo, vão produzir-se assubversões morais e filosóficas; aproxima-se a hora em que a luzdivina se espargirá sobre os dois mundos.

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Ide, pois, e levai a palavra divina: aos grandes que adesprezarão, aos eruditos que exigirão provas, aos pequenos esimples que a aceitarão; porque, principalmente entre os mártiresdo trabalho, desta provação terrena, encontrareis fervor e fé. Ide;estes receberão, com hinos de gratidão e louvores a Deus, a santaconsolação que lhes levareis, e baixarão a fronte, rendendo-lhegraças pelas aflições que a Terra lhes destina.

Arme-se a vossa falange de decisão e coragem! Mãos àobra! o arado está pronto; a terra espera; arai!

Ide e agradecei a Deus a gloriosa tarefa que Ele vosconfiou; mas, atenção! entre os chamados para o Espiritismomuitos se transviaram; reparai, pois, vosso caminho e segui averdade.

P. – Se, entre os chamados para o Espiritismo, muitosse transviaram, quais os sinais pelos quais reconheceremos os quese acham no bom caminho?

Resp. – Reconhecê-los-eis pelos princípios da verda-deira caridade que eles ensinarão e praticarão. Reconhecê-los-eispelo número de aflitos a que levem consolo; reconhecê-los-eispelo seu amor ao próximo, pela sua abnegação, pelo seudesinteresse pessoal; reconhecê-los-eis, finalmente, pelo triunfo deseus princípios, porque Deus quer o triunfo de Sua lei; os queseguem Sua lei, esses são os escolhidos e Ele lhes dará a vitória; masEle destruirá aqueles que falseiam o espírito dessa lei e fazem deladegrau para contentar sua vaidade e sua ambição.

Erasto,Anjo-da-guarda do médium

OCUPAÇÃO DOS ESPÍRITOS

(Médium – Sra. Costel)

As ocupações dos Espíritos de segunda ordemconsistem em se prepararem para as provas que terão de suportar,

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por meditações sobre suas vidas passadas e observações sobre osdestinos dos homens, seus vícios, suas virtudes, aquilo que os podeaperfeiçoar ou levá-los a falir. Os que, como eu, têm a felicidade deter uma missão, ocupam-se dela com tanto mais zelo e amor,quanto o progresso das almas que lhes são confiadas lhes é contadocomo mérito. Assim, esforçam-se por lhes sugerir bonspensamentos, ajudam os seus bons impulsos e afastam os Espíritosmaus, opondo sua doce influência às influências nocivas. Essaocupação interessante, sobretudo quando se é bastante feliz paradirigir um médium e ter comunicações diretas, não afasta o cuidadoe o dever de aperfeiçoar-se.

Não creiais que o tédio possa atingir um ser que só vivepelo espírito e cujas faculdades tendem, todas, para um objetivo,que ele sabe distante, mas certo. O tédio resulta do vazio da alma eda esterilidade do pensamento. O tempo, tão pesado para vós, queo medis por vossos temores pueris ou vossas frívolas esperanças,não faz sentir sua marcha aos que não estão sujeitos nem àsagitações da alma, nem às necessidades do corpo. Ele passa aindamais depressa para os Espíritos puros e superiores que Deusencarrega da execução de suas ordens e que percorrem as esferasem vôo muito rápido.

Quanto aos Espíritos inferiores, especialmente os quetêm pesadas faltas a expiar, o tempo se mede por seus pesares, seusremorsos e seus sofrimentos. Os mais perversos dentre elesbuscam escapar fazendo o mal, isto é, sugerindo a maldade. Entãoexperimentam essa áspera e fugidia satisfação do doente que coçaa sua ferida, não fazendo senão aumentar a dor. Assim, seussofrimentos aumentam de tal sorte que acabam fatalmente porprocurar o remédio, que outra coisa não é que o retorno ao bem.

Os pobres Espíritos, que apenas foram culpados pelafraqueza ou pela ignorância, sofrem a sua inanidade, o seuisolamento. Lamentam o seu envoltório terreno, seja qual for a dor

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que lhes tenha causado; revoltam-se e se desesperam até omomento em que percebem que só a resignação e a vontade firmede volver ao bem podem aliviá-los; acalmam-se e compreendemque Deus não abandona nenhuma de suas criaturas.

Marcillac,Espírito familiar

O DEBOCHE

(Enviado pelo Sr. Sabò, de Bordeaux)

A escolha dos bons autores é muito útil e os queexercem seu domínio sobre vós, excitando-vos a imaginação pelasloucas paixões humanas, não fazem senão corromper o coração eo espírito. Com efeito, não é entre os apologistas da orgia, dodeboche, da volúpia e dos que preconizam os prazeres materiaisque se podem haurir lições de melhoramento moral. Pensai, pois,meus amigos, que se Deus vos deu paixões foi com o objetivo devos fazer concorrer para os seus desígnios e não para as satisfazercomo um animal. Ficai certos de que se consumis a vossa vida emloucos prazeres, que apenas deixam remorsos e o vazio no coração,não agireis segundo os propósitos de Deus. Se vos é dadoreproduzir a espécie humana, é que milhares de Espíritos errantesesperam no espaço a formação dos corpos de que têm necessidadepara recomeçar suas provas e que, usando as vossas forças emignóbeis volúpias, ides de encontro aos desígnios de Deus e grandeserá o vosso castigo. Bani, pois, essas leituras, das quais não tiraisnenhum proveito, nem para a vossa inteligência, nem para o vossoaperfeiçoamento moral. Que os escritores sérios de todos ostempos e de todos os países vos façam conhecer o belo e o bem;que elevem vossa alma pelo encanto da poesia, ensinando-vos oemprego útil das faculdades com que o Criador vos dotou.

Felícia,Filha do médium

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Observação – Não haverá algo de profundo e de sublimenessa idéia que dá à reprodução do corpo um objetivo tão elevado?Os Espíritos errantes esperam esses corpos, de que necessitam parao seu próprio adiantamento, e que os Espíritos encarnados estãoencarregados de reproduzir, como o homem espera a reproduçãode certos animais para vestir-se e alimentar-se.

Disso resulta um outro ensinamento, de alta gravidade.Se não se admite que a alma já tenha vivido, é absolutamentenecessário que seja criada no momento da formação e para o usode cada corpo; de onde se segue que a criação da alma por Deusestaria subordinada ao capricho do homem, e na maior parte dasvezes é o resultado do deboche. Como! Todas as leis religiosas emorais condenam a depravação dos costumes e Deus seaproveitaria disto para criar almas! Perguntamos a todo homem debom-senso se é admissível que Deus se contradiga a tal ponto? Nãoseria glorificar o vício, uma vez que se prestaria à realização dosmais elevados desígnios do Todo-Poderoso: a criação das almas?Que nos digam se tal não seria a conseqüência da formaçãosimultânea das almas e dos corpos; e seria pior ainda se fosseadmitida a opinião dos que pretendem que o homem procria a almaao mesmo tempo que o corpo. Admiti, ao contrário, a preexistênciada alma, e toda contradição desaparece. O homem não procriasenão a matéria do corpo; a obra de Deus, a criação da almaimortal, que um dia deve se aproximar dEle, não mais estásubmetida ao capricho do homem. É assim que, fora dareencarnação, surgem dificuldades insolúveis a cada passo e se caina contradição e no absurdo quando se quer explicá-las. Oprincípio da unicidade da existência corporal, para decidir semretorno os destinos futuros do homem, perde terreno e partidáriosdiariamente. Podemos, pois, dizer com segurança que, em poucotempo, o princípio contrário será universalmente admitido, como oúnico lógico, o único conforme à justiça de Deus, e proclamadopelo próprio Cristo, quando disse: Eu vos digo que é necessário nascervárias vezes antes de entrar no reino dos céus.

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SOBRE O PERISPÍRITO

Ditado espontâneo a propósito de uma discussão que acabava deocorrer na Sociedade quanto à natureza do Espírito e do perispírito.

Médium: Sr. A. Didier

Segui com interesse a discussão que se estabeleceuagora mesmo e que vos pôs em tão grande embaraço. Sim; faltamàs palavras cor e forma para expressarem o perispírito e suaverdadeira natureza. Mas há uma coisa certa: o que uns chamamperispírito não é senão o que outros chamam envoltório fluídico,material. Quando se discute semelhantes questões, não são as frasesque devemos buscar, mas as palavras. Para me fazer compreenderde maneira mais lógica, direi que esse fluido é a perfectibilidade dossentidos e a extensão da visão e das idéias; refiro-me aqui aosEspíritos elevados. Quanto aos Espíritos inferiores, os fluidosterrestres são ainda completamente inerentes a eles; assim, comovedes, são matéria; daí os sofrimentos da fome, do frio, etc.,sofrimentos que não podem alcançar os Espíritos superiores,considerando-se que os fluidos terrestres são depurados em tornodo pensamento, isto é, da alma. Para seu progresso, a alma sempretem necessidade de um agente; sem agente a alma nada é para vósou, melhor dizendo, não pode ser concebida por vós. Para nósoutros, Espíritos errantes, o perispírito é o agente pelo qual noscomunicamos convosco, seja indiretamente, por vosso corpo ouvosso perispírito, seja diretamente por vossa alma. Daí as infinitasgradações de médiuns e de comunicações. Agora resta o ponto devista científico, isto é, a essência mesma do perispírito. Isto é umaoutra questão. Primeiro compreendei moralmente; não resta maisque uma discussão sobre a natureza dos fluidos, o que éinexplicável no momento. A Ciência não conhece bastante, mas láchegaremos se ela quiser marchar com o Espiritismo.

Lamennais

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O ANJO GABRIEL

Evocação de um Espírito bom, pela Sra. X..., em Soultz, Alto-Reno

Sou Gabriel, o anjo do Senhor, que me encarrega devos abençoar, não por vossos méritos, mas pelos esforços queempreendeis para os adquirir.

A vida deve ser um combate; não se deve jamais parar,jamais vacilar entre o bem e o mal. A hesitação já vem de Satã, istoé, dos Espíritos maus. Coragem, pois! Quanto mais espinhosencontrardes em vosso caminho, mais esforços vos serãonecessários para o seguir. Se fosse semeado de rosas, que méritoteríeis perante Deus? Cada um tem o seu calvário na Terra, masnem todos o percorrem com aquela doce resignação de que Jesusvos deu o exemplo. Ele foi tão grande que os anjos ficaramcomovidos! E os homens! mal derramam uma lágrima a tantasdores! Ó dureza do coração humano! Mereceríeis semelhantesacrifício? Lançai vosso rosto no pó e clamai misericórdia a Deus,mil vezes bom, mil vezes terno, mil vezes misericordioso! Umolhar, ó meu Deus! sobre a vossa obra; sem isso ela perecerá! Seucoração não está à altura do vosso; ele não pode compreender esteexcesso de amor de vossa parte. Tende piedade; tende mil vezespiedade de sua fraqueza. Levantai sua coragem por pensamentosque só podem proceder de vós. Sobretudo abençoai-os, a fim deque dêem frutos dignos de vossa imensa grandeza!

Hosana no mais alto dos céus! e paz aos homens de boavontade!

É assim que terminarei as palavras que Deus meordenou vos transmitisse.

Sede benditos no Senhor, para que possais despertarum dia em seu seio.

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DESPERTAI

(Sociedade Espírita de Paris – Médium: Sra. Costel)

Falarei dos sintomas e predições que, por toda parte,anunciam a vinda de grandes acontecimentos que o nosso séculoencerra. Em sua tocante bondade, os Espíritos, mensageiros deDeus, advertem o Espírito dos homens, como as dores previnem amãe quanto à proximidade do parto. Esses sinais, muitas vezesdesprezados e, entretanto, sempre justificados, neste momento semultiplicam ao infinito. Por que sentis todos o Espírito proféticoagitar-vos os corações e abalar-vos as consciências? Por que asincertezas? Por que os desfalecimentos que turvam os corações?Por que o despertar do espírito público que, em toda parte, arvoraa sua altiva bandeira? Por quê? É que os tempos são chegados; éque o reino do materialismo está cedendo e vai desabar; é que osprazeres do corpo, em breve desprezados, darão lugar ao reino daidéia; é que o edifício social está carcomido e será substituído pelajovem e triunfante legião das idéias espíritas, que fecundarão asconsciências estéreis e os corações mudos. Que estas palavrasincessantemente repetidas não vos achem distraídos e indiferentes.Depois que o lavrador houver semeado, recolhei as preciosasespigas que nascerem. Não digais: a vida segue o seu curso e umamarcha normal. Nossos pais nada viram do que hoje nos anunciam:não veremos mais que eles. Adoremos o que eles adoraram, ou,melhor, substituamos a adoração por fórmulas vãs, e tudo estarábem. Falando assim, dormis. Despertai, porque não é a trombetado juízo final que ecoará em vossos ouvidos, mas a voz da verdade.Não se cogita da morte vencida e humilhada, trata-se da vidapresente, ou antes, da vida eterna; não a esqueçais e despertai.

Helvétius

O GÊNIO E A MISÉRIA

(Sociedade Espírita de Paris – Médium: Sr. Alfred Didier)

Há uma prova muito grande na Terra, sobre a qual deveapoiar-se a moral do Espiritismo: é a terrível provação do homem

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de gênio, sobretudo do que é dotado de faculdades superiores, presadas exigências da miséria. Ah! sim; esta prova moral, esta miséria dainteligência, muito mais que a do corpo será o maior mérito para ohomem que tiver cumprido sua missão. Compenetrai-vos dessa lutaincessante do talento contra a miséria, esta harpia que se lança sobrevós durante o festim da vida, semelhante ao monstro de Virgílio eque diz a todas as suas vítimas: Sois poderosos, mas sou eu quemvos mata, eu que envio ao nada os dons de vossa inteligência,porquanto sou a morte do gênio. Eu sei que só alguns estãovencidos, mas os outros, quantos são? Há um pintor da escolamoderna que assim concebeu o assunto. Um ser, o gênio, cujas asasse abrem e cujo olhar se volta para o Sol; quase que se ergue, mascai sobre um rochedo, onde estão fixadas cadeias de ferro que talvezo reterão para sempre. É possível que o homem que teve este sonhohaja sido acorrentado e, talvez, após a sua libertação, se tenharecordado dos que deixara para sempre no rochedo.

Gérard de Nerval

TRANSFORMAÇÃO

(Sociedade Espírita de Paris – Médium: Sra. Costel)

Venho falar-te daquilo que mais importa, nesta época decrise e de transformação. No momento em que as nações vestem atúnica viril, no momento em que o céu desvelado vos mostra,vagando nos espaços infinitos, os Espíritos dos que julgáveisdispersos como moléculas ou servindo de pasto aos vermes; nestemomento solene faz-se necessário que, armado da fé, o homem nãomarche tateando nas trevas do personalismo e do materialismo.Como outrora os pastores, guiados por uma estrela, vinham adoraro Menino-Deus, é preciso que o homem, guiado pela brilhanteaurora do Espiritismo, marche finalmente para a Terra Prometida daliberdade e do amor. É preciso que, compreendendo o grandemistério, saiba que o fim harmonioso da Natureza, seu ritmoadmirável, são os modelos da Humanidade. Nesta impressionantediversidade que confunde os Espíritos, distingui a perfeita similitudedas relações entre as coisas criadas e os seres criados, e que essa

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poderosa harmonia vos leve a todos, homens de ação, poetas,artistas, operários, à união na qual devem fundir-se os esforçoscomuns durante a peregrinação da vida. Caravanas assaltadas pelastempestades e pelas adversidades, estendei vossas mãos amigas emarchai com os olhos fixos no Deus justo, que recompensa aocêntuplo aquele que tiver aliviado o fraco e o oprimido.

Georges

A SEPARAÇÃO DO ESPÍRITO

(Enviado pelo Sr. Sabò, de Bordeaux)

Corpo de lama, foco de corrupção onde fermenta olevedo das paixões impuras; são seus órgãos que muitas vezesarrastam o Espírito às sensações brutais que dizem respeito àmatéria. Quando o princípio da vida orgânica se extingue por um dosmil acidentes aos quais está sujeito o corpo, o Espírito se desprendedos laços que o retinham à sua fétida prisão, e ei-lo livre no espaço.

Todavia acontece que, quando ignorante, e sobretudoquando é muito culpado, um espesso véu lhe oculta as belezas damorada onde habitam os Espíritos bons, e ele se encontra só ou nacompanhia de Espíritos cruéis e inferiores, num círculo que lhe nãopermite nem ver onde chega, nem se lembrar de onde vem. Entãose sente inquieto, sofredor, pouco à vontade, até que, num tempomais ou menos longo seus irmãos, os Espíritos, vêm esclarecê-losobre a sua posição e lhe abrem os olhos para que se lembre domundo dos Espíritos, que habitou, e dos diferentes planetas, ondesofrerá suas diversas encarnações; se a última foi bem conduzida,ela lhe abre as portas dos mundos superiores; mas se foi inútil echeia de iniqüidades, ele é punido pelo remorso. Somente depoisque o Espírito se curvou à cólera de Deus, por seu arrependimentoe pela prece de seus irmãos, recomeça a viver, o que não é umafelicidade, mas um castigo ou uma provação.

Ferdinand,Espírito familiar

Allan Kardec

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Revista EspíritaJornal de Estudos Psicológicos

ANO IV JULHO DE 1861 No 7

Ensaio Sobre a Teoria da Alucinação

Os que não admitem o mundo incorpóreo e invisíveljulgam tudo explicar pela palavra alucinação. Sua definição éconhecida: é um erro, uma ilusão da pessoa que acredita terpercepções que realmente não possui (Academia. Do latimhallucinari, errar; derivado de ad lucem), mas os sábios, ao quesabemos, ainda não deram a razão fisiológica. Parece que a ópticae a fisiologia para eles já não têm segredos. Como é que ainda nãoexplicaram a fonte das imagens que se oferecem ao espírito emcertas circunstâncias? Real ou não, o alucinado vê alguma coisa; dir-se-ia que ele crê estar vendo, mas que nada vê? Isto não é provável.Dizei, se quiserdes, que é uma imagem fantástica; seja; mas qual aorigem dessa imagem, como se forma e como se reflete em seucérebro? Eis o que não dizeis. Certamente, quando ele crê estarvendo o diabo com seus chifres e garras, as chamas do inferno,animais fabulosos que não existem, a Lua e o Sol que se batem, éevidente que não há nisto nenhuma realidade. Mas se é um produtode sua imaginação, como é que descreve tais coisas como seestivessem presentes? Há, pois, diante dele um quadro, umafantasmagoria qualquer; então qual o espelho sobre o qual sereflete essa imagem? Qual a causa que dá a essa imagem a forma, a

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cor e o movimento? É o que inutilmente temos procurado asolução na Ciência. Desde que os sábios querem tudo explicar pelasleis da matéria, então que dêem, por essas leis, uma teoria daalucinação; boa ou má, será sempre uma explicação.

Provam os fatos que há verdadeiras aparições,perfeitamente explicáveis pela teoria espírita, e que só podem sernegadas pelos que nada admitem fora do mundo visível. Mas, aolado das visões reais, haverá alucinações no sentido ligado a estapalavra? Isto não é duvidoso; o essencial é determinar-se oscaracteres que as podem distinguir das aparições reais. Qual a suafonte? São os Espíritos que nos vão colocar nesse caminho, pois aexplicação nos parece completa na resposta dada à seguintepergunta:

– Podem ser consideradas como aparições as figuras eoutras imagens que muitas vezes se apresentam no primeiro sonoou simplesmente quando se fecham os olhos?

“Tão logo os sentidos se entorpecem, o Espírito sedesprende e pode ver, longe ou perto, o que não poderia ver comos olhos. Por vezes essas imagens são visões, mas também podemser um efeito das impressões deixadas pela vista de certos objetosno cérebro, que lhes conserva traços, como conserva sons. Então,desprendido, o Espírito vê no próprio cérebro essas impressões,que se lhe fixaram como se o fizessem sobre uma chapa dedaguerreótipo. Sua variedade e sua mistura formam conjuntosbizarros e fugidios, que se apagam quase que imediatamente, apesardos esforços feitos para os reter. É a uma causa semelhante que sedevem atribuir certas aparições fantásticas, que nada têm de real, eque muitas vezes se produzem no estado de doença.”

Reconhece-se que a memória é o resultado dasimpressões conservadas pelo cérebro. Por que singular fenômenoessas impressões, tão variadas, tão multiplicadas, não se

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confundem? Eis um mistério impenetrável, mas não menosestranho que o das ondulações sonoras que se cruzam no ar e nempor isso ficam menos distintas. Num cérebro sadio e bemorganizado, essas impressões são claras e precisas; em condiçõesmenos favoráveis, elas se apagam ou se confundem, como fazem asmarcas de um sinete sobre uma substância muito sólida, ou muitofluída. Daí a perda da memória ou a confusão das idéias. Istoparecerá menos extraordinário se se admitir, como em frenologia,uma destinação especial a cada parte, e mesmo a cada fibra docérebro.

Assim, as imagens que chegam ao cérebro pelos olhosnele deixam uma impressão que faz nos lembremos de um quadro,como se o tivéssemos à nossa frente. O mesmo acontece com asimpressões dos sons, os odores, os sabores, as palavras, osnúmeros, etc. Conforme as fibras e órgãos destinados à recepção etransmissão dessas impressões estejam aptos a conservá-las, tem-sea memória das formas, das cores, da música, dos números, daslínguas, etc. Quando se representa uma cena que se viu, não é senãouma questão de memória, porque na realidade não se vê; mas, emcerto estado de emancipação, a alma vê no cérebro e nele encontraessas imagens, sobretudo as que mais impressionaram, segundo anatureza das preocupações ou disposições do espírito; aí encontraa impressão de cenas religiosas, diabólicas, dramáticas e outras, queviu em outra época em pintura, em ação, em leitura ou em relatos,porquanto os relatos também deixam impressões. Assim, a almarealmente vê alguma coisa: de alguma sorte é a imagemdaguerreotipada no cérebro. No estado normal estas imagens sãofugidias e efêmeras, porque todas as partes cerebrais funcionamlivremente; mas no estado de doença, o cérebro está sempre maisou menos debilitado; não existe mais equilíbrio entre todos osórgãos; somente alguns conservam sua atividade, enquanto outrosestão de certo modo paralisados. Daí a permanência de certasimagens, que se não mais apagam, como no estado normal, pelaspreocupações da vida exterior; eis a verdadeira alucinação, a fonte

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primeira das idéias fixas. A idéia fixa é a lembrança exclusiva deuma impressão; a alucinação é a visão retrospectiva, pela alma, deuma imagem impressa no cérebro.

Como se vê, descrevemos esta anomalia aparente poruma lei inteiramente fisiológica, bem conhecida, a das impressõescerebrais; mas sempre nos foi preciso admitir a intervenção daalma, com suas faculdades distintas da matéria. Ora, se osmaterialistas ainda não podem dar uma solução racional dessefenômeno, é que não querem admitir a alma e que, com omaterialismo puro, ele é inexplicável. Assim dirão que nossaexplicação é inadequada, porque fazemos intervir um agentecontestado. Mas contestado por quem? Por eles, mas admitido pelaimensa maioria, desde que há homens na Terra; e a negação dealguns não pode fazer lei.

Nossa explicação é boa? Nós a damos pelo que elapode valer, à falta de outras e, se quiserem, a título de hipótese,esperando outra melhor; pelo menos ela tem a vantagem de dar àalucinação uma base, um corpo, uma razão de ser, ao passo que,quando os fisiologistas pronunciaram suas palavras sacramentais desuperexcitação, de exaltação, de efeitos da imaginação, nadadisseram, ou não disseram tudo, por não terem observado todas asfases do fenômeno.

A imaginação também desempenha um papel que épreciso distinguir da alucinação propriamente dita, conquanto essasduas causas muitas vezes estejam reunidas. Ela empresta a certosobjetos formas que estes não têm, como faz ver uma figura na Luaou animais nas nuvens. Sabe-se que, na obscuridade, os objetosassumem formas bizarras, por não se distinguirem todas as suaspartes e porque os contornos não são claramente definidos.Quantas vezes, à noite, num quarto, um vestido pendurado, umvago reflexo luminoso, não parecem ter uma forma humana aosolhos das pessoas de maior sangue-frio? Se se juntar o medo ou

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uma credulidade exagerada, a imaginação fará o resto. Com-preende-se, assim, que a imaginação possa alterar a realidade dasimagens percebidas durante a alucinação e emprestar-lhes formasfantásticas.

As verdadeiras aparições têm um caráter que, para oobservador experimentado, não permite confundi-las com osefeitos que acabamos de citar. Como podem ocorrer em pleno dia,deve-se desconfiar das que se julga ver à noite, pelo temor desermos vítima de uma ilusão de óptica. Aliás, nas aparições, comoem todos os outros fenômenos espíritas, há o caráter inteligente,que é a melhor prova de sua realidade. Toda aparição que não dáqualquer sinal inteligente pode, com toda certeza, ser posta nacategoria das ilusões. Os senhores materialistas devem ver que lhesconcedemos a parte mais larga.

Tal como é, nossa explicação dá a razão de todos oscasos de visão? Certamente, não, e desafiamos todos os fisiologistasa que dêem uma só, de seu ponto de vista exclusivo, que resolva atodos. Se, então, todas as teorias da alucinação são insuficientespara explicar todos os fatos, é que existe outra coisa além daalucinação propriamente dita, e esse algo não encontra sua soluçãosenão na teoria espírita, que a todos abrange. Com efeito, se seexamina com cuidado certos casos de visões muito freqüentes, ver-se-á que é impossível atribuir-lhes a mesma origem que aalucinação. Procurando dar a esta uma explicação plausível,quisemos mostrar em que ela difere da aparição. Num e noutrocaso, é sempre a alma que vê, e não os olhos. No primeiro, ela vêuma imagem interior e no segundo uma coisa externa, se assim nospodemos exprimir. Quando uma pessoa ausente, na qualabsolutamente não pensamos, e que julgamos com saúde seapresenta espontaneamente quando estamos perfeitamentedespertos e vem revelar particularidades de sua morte, ocorridanaquele mesmo instante e da qual, conseqüentemente, não se podiater conhecimento, tal fato não poderá ser atribuído a uma

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lembrança, nem à preocupação do espírito. Supondo se tenhamtido apreensões sobre a vida dessa pessoa, restaria ainda porexplicar a coincidência do momento da morte com a aparição e,sobretudo, as circunstâncias da morte, coisa que não se podeconhecer, nem prever. Pode-se, pois, classificar entre as alucinaçõesas visões fantásticas, que nada têm de real, mas o mesmo não se dácom as que revelam atualidades positivas, confirmadas pelosacontecimentos. Explicá-las pelas mesmas causas seria absurdo emais absurdo ainda atribuí-las ao acaso, esta suprema razão dos quenada têm a dizer. Só o Espiritismo lhes pode dar a razão, pela duplateoria do perispírito e da emancipação da alma. Mas como crê naação da alma, quando não se admite a sua existência?

Não levando em nenhuma conta o elemento espiritual,a Ciência se acha impotente para resolver uma multidão defenômenos e cai no absurdo ao querer tudo referir ao elementomaterial. É principalmente em Medicina que o elemento espiritualdesempenha um papel importante; quando os médicos o levaremem consideração, enganar-se-ão com menos freqüência do queagora. Aí extrairão uma luz que os guiará mais seguramente nodiagnóstico e no tratamento das doenças. É o que já se podeconstatar desde o presente na prática dos médicos espíritas, cujonúmero aumenta dia a dia. Tendo a alucinação uma causafisiológica, estamos certos de que encontrarão o meio de acombater. Conhecemos um que, graças ao Espiritismo, está acaminho de descobertas do mais alto alcance, porque lhe deu aconhecer a verdadeira causa de certas afecções rebeldes à Medicinamaterialista.

O fenômeno da aparição pode produzir-se de duasmaneiras: ou é o Espírito que vem encontrar a pessoa que vê, ou éo Espírito desta que se transporta e vai encontrar a outra. Os doisexemplos seguintes nos parecem caracterizar perfeitamente ambosos casos.

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Um de nossos colegas nos contava, recentemente, queum oficial seu amigo, estando na África, de repente viu à sua frenteo quadro de um cortejo fúnebre: era o de um de seus tios, queresidia na França, e que ele não via há muito tempo. Viudistintamente toda a cerimônia, desde a saída da casa mortuária atéa igreja e o transporte ao cemitério. Chegou a notar diversasparticularidades, das quais não podia ter idéia. Nesse momentoestava desperto e, entretanto, num certo estado de absorção, doqual só saiu quando tudo desapareceu. Chocado com acircunstância, escreveu para a França, a fim de obter notícias do tioe soube que este, tendo morrido subitamente, havia sido enterradono dia e hora em que ocorrera a aparição e com as particularidadesque tinha visto. É evidente que, neste caso, não foi o cortejo queveio encontrá-lo; ele é que foi encontrar o cortejo, do qual tevepercepção por efeito da segunda vista.

Um médico do nosso conhecimento, o Sr. Félix Mallo,tinha tratado de uma jovem senhora; mas, julgando que o ar deParis lhe era prejudicial, aconselhou-a a ir passar algum tempo coma família, na província, o que ela fez. Havia seis meses não tinhamais notícias dela, nem pensava mais no caso quando, uma noite,por volta das dez horas, estando em seu quarto, ouviu bater à portado consultório. Julgando viessem chamá-lo para um doente, disseque entrasse; mas ficou bastante surpreendido ao ver, à sua frente,a jovem senhora em questão, pálida, vestida como a tinhaconhecido e que lhe disse com grande sangue-frio: “Sr. Mallo,venho dizer-vos que morri.” E logo desapareceu. Assegurando-sede que estava bem desperto e de que ninguém havia entrado, omédico tomou informações e soube que a mulher havia morrido namesma noite em que lhe aparecera. Aqui, foi bem o Espírito dasenhora que veio encontrá-lo. Os incrédulos não deixarão de dizerque o médico podia estar preocupado com a saúde de sua antigadoente, e que nada há de surpreendente em que previsse a suamorte; seja. Mas que expliquem a coincidência de sua aparição como momento da morte, já que há muitos meses o médico não mais

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ouvira falar dela. Supondo mesmo que tivesse acreditado naimpossibilidade de sua cura, poderia prever que ela morresse em taldia e a tal hora? Devemos acrescentar que ele não é um homem quese deixe abalar pela imaginação.

Eis um outro fato não menos característico, e que nãopoderia ser atribuído a nenhuma previsão. Um dos nossosassociados, oficial da marinha, estava no mar, quando viu seu pai eseu irmão atirados debaixo de uma carruagem: o pai morto e oirmão sem haver sofrido nenhum mal. Quinze dias depois, tendodesembarcado na França, seus amigos tentaram prepará-lo parareceber a triste notícia. – “Não tomai tantas precauções – disse ele– sei o que ides dizer: Meu pai morreu; há quinze dias que o sei.”Realmente, seu pai e seu irmão, estando em Paris, desciam decarruagem os Campos Elísios; o cavalo assustou-se, o carroquebrou-se, o pai morreu e o irmão apenas sofreu algumascontusões. Esses fatos são positivos, atuais, e não se dirá que sejamlendas da Idade Média. Se cada um recolhesse suas lembranças, ver-se-ia que tais fatos são mais freqüentes do que se imagina.Perguntamos se alguns deles têm os caracteres da alucinação.Pedimos aos materialistas que dêem uma explicação do fatorelatado no artigo seguinte.

Uma Aparição Providencial

Lê-se no Oxford Chronicle, de 1o de junho de 1861:

“Em 1828 um navio que fazia viagens de Liverpool aNew-Brunswick tinha como oficial substituto o Sr. Robert Bruce.Estando perto dos bancos na Terra-Nova, o capitão e o seuimediato calculavam um dia de sua rota, o primeiro em sua cabinae o outro na câmara ao lado. As duas peças eram dispostas de modoque eles podiam ver-se e falar-se. Bruce, absorvido em seu trabalho,não percebeu que o capitão havia subido para a ponte; sem olhar,

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lhe disse: “Encontro tal longitude; como está a vossa?” Nãoobtendo resposta, repete a pergunta, mas inutilmente. Entãoavança em direção à porta da cabina e vê um homem sentado nolugar do capitão e escrevendo numa ardósia. O indivíduo se volta,olha Bruce fixamente e este, terrificado, lança-se para a ponte. –Capitão, disse ele assim que o alcançou, quem é que nestemomento está à vossa escrivaninha na cabina? – Mas ninguém,presumo. – Eu vos garanto que há um estranho. – Um estranho!Sonhais Sr. Bruce; Quem ousaria meter-se em minha secretária semminhas ordens? Talvez tenhais visto o contramestre ou ointendente. – Senhor, trata-se de um homem sentado em vossapoltrona e escrevendo em vossa ardósia. Ele me olhou na cara e euo vi distintamente, ou jamais vi alguém neste mundo. – Ele! quem?– Só Deus o sabe, senhor! Eu vi esse estranho que, em minha vida,jamais houvera visto em qualquer parte. – Vós vos tornastes louco,Sr. Bruce. Um estranho! e lá se vão seis semanas que estamos nomar. – Eu sei; contudo o vi. – Muito bem! Ide ver quem é. –Capitão, sabeis que não sou um poltrão; não creio em aparições;entretanto, confesso que não desejaria vê-lo só e de frente. Gostariaque fôssemos ambos. O capitão desceu primeiro, mas nãoencontrou ninguém. – Vede bem, disse ele, que sonhastes. – Não seicomo é isto, mas juro que há pouco ele estava lá e escrevia em vossaardósia. – Neste caso, deve haver algo escrito nela. Tomou a ardósiae leu estas palavras: Dirigi para o noroeste. Tendo feito Bruceescrever as mesmas palavras, assim como todos os homens datripulação que sabiam escrever, constatou o capitão que a letra daardósia não se assemelhava à de nenhum deles. Procuraram portodos os cantos do navio e não descobriram nenhum estranho.Tendo consultado para saber se devia seguir o conselho misterioso,o capitão resolveu mudar de direção e navegou para noroeste,depois de ter posto como vigia um homem de confiança. Por voltadas três horas foi assinalado um bloco de gelo, depois um naviodesmastreado sobre o qual havia vários homens. Aproximandomais, soube-se que o navio estava quebrado, as provisões esgotadas,a tripulação e os passageiros esfomeados. Enviaram barcos para os

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recolher. Mas no momento em que chegaram a bordo, o Sr. Bruce,para sua grande estupefação, reconheceu entre os náufragos ohomem que tinha visto na cabina do capitão. Logo que foiacalmada a confusão e o navio retomou sua rota, o Sr. Bruce disseao capitão: – Parece que não foi um Espírito que vi hoje; ele estávivo; o homem que escrevia em vossa ardósia é um dos passageirosque acabamos de salvar. Ei-lo. Eu juraria perante a justiça.

“Dirigindo-se ao referido homem, o capitão oconvidou a descer à sua cabina e lhe pediu que escrevesse naardósia, do lado oposto àquele onde se achava a escrita misteriosa:Dirigi para o noroeste. Intrigado por esse pedido, o passageiro,entretanto, com ele se conformou. Tomando a ardósia, o capitãovirou-a, sem nada transparecer no semblante, e, mostrando aopassageiro as palavras escritas antes, disse-lhe: – É mesmo a vossaletra? – Sem dúvida, pois acabo de escrever diante de vós. – E estaaqui? acrescentou, mostrando o outro lado. – Também é a minhaletra; mas não sei como aconteceu isto, pois só escrevi de um lado.– Meu substituto, aqui presente, julga vos ter visto hoje, ao meio-dia, sentado a esta mesa e escrevendo estas palavras. – É impos-sível, porque só há poucos instantes me trouxeram para este navio.

“O capitão do navio naufragado, interrogado sobre estehomem e sobre o que se teria passado de extraordinário com ele,pela manhã, respondeu: – Não o conheço senão como um de meuspassageiros; mas pouco antes do meio-dia ele caiu num sonoprofundo, do qual só saiu depois de uma hora. Durante o sono eleexprimiu a confiança de que logo iríamos ser resgatados, dizendoque se via a bordo de um navio, cuja espécie e enxárcia descreveu,em tudo conforme ao que tivemos à vista alguns momentos depois.O passageiro acrescentou que não se lembrava de haver sonhado,nem de ter escrito o que quer que fosse, mas apenas queconservara, ao despertar, um pressentimento que não sabiaexplicar, de que um navio lhes viria em socorro. Uma coisaestranha, disse ele, é que tudo quanto está neste navio me parece

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familiar e, entretanto, estou certo de jamais o ter visto. Acerca dissoo Sr. Bruce lhe contou as circunstâncias da aparição que havia tidoe eles concluíram que o fato era providencial.”

Esta história é perfeitamente autêntica. O Sr. RobertDale Owen, antigo ministro dos Estados Unidos em Nápoles, queigualmente a relata em sua obra, cercou-se de todos os documentosque pudessem constatar a sua veracidade. Perguntamos se elapossui alguns dos caracteres da alucinação! Que a esperança, quejamais abandona os infelizes, tenha seguido o passageiro em seusono e lhe tenha feito sonhar que lhes vinham socorrer,compreende-se. A coincidência do sonho com o socorro podiaainda ser um efeito do acaso; mas como explicar a descrição donavio? Quanto ao Sr. Bruce, ele está certo de que não sonhava. Sea aparição fosse uma ilusão, como explicar essa semelhança com opassageiro? Se ainda fosse o acaso, a escrita na ardósia é um fatomaterial. De onde vinha o conselho, dado por esse meio, denavegar na direção dos náufragos, contrariando a rota seguida pelonavio? Que os defensores da alucinação tenham a bondade de dizercomo, com o seu sistema exclusivo, poderão dar a razão de todasessas circunstâncias. Nos fenômenos espíritas provocados eles têmo recurso de dizer que há trapaça; mas aqui é pouco provável queo passageiro tenha representado uma comédia. É nisto que osfenômenos espontâneos, quando apoiados em testemunhosirrecusáveis, são de grande importância, por não se poder suspeitarde nenhuma conivência.

Para os espíritas, este fato nada tem de extraordinário,porque o compreendem. Aos olhos dos ignorantes parecerásobrenatural, maravilhoso. Para quem conhece a teoria doperispírito, da emancipação da alma nos vivos, ele não sai das leisda Natureza. Um crítico divertiu-se muito com a história dohomem da tabaqueira, relatada na Revista de março de 1859,dizendo que era efeito da imaginação da mulher doente. Que temela de mais impossível que esta? Os dois fatos explicam-se

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exatamente pela mesma lei que rege as relações entre o Espírito e amatéria. Além disso, perguntamos a todos os espíritas queestudaram a teoria dos fenômenos se, lendo o fato que acabamosde referir, sua atenção não foi imediatamente conduzida sobre amaneira pela qual deve ter-se produzido; se não encontraram aexplicação; se, com tal explicação não concluíram pelapossibilidade e se, em conseqüência dessa possibilidade, não seinteressaram mais do que se o devessem aceitar apenas pelos olhosda fé, sem acrescentar o assentimento da inteligência? Os que noscensuram por havermos dado esta teoria se esquecem de que ela éo resultado de longos e pacientes estudos que, como nós, elespoderiam ter feito, trabalhando tanto quanto o temos feito efazemos todos os dias; que, dando os meios de compreender osfenômenos, nós lhes demos uma base, uma razão de ser, quesilenciaram mais de um crítico e contribuíram, em grande parte,para a propagação do Espiritismo, considerando que se aceita commais boa vontade aquilo que se compreende do que aquilo que nãose compreende.

Conversas Familiates de Além-TúmuloOS AMIGOS NÃO NOS ESQUECEM NO OUTRO MUNDO

Um dos nossos assinantes nos envia a conversaseguinte, que teve com um de seus amigos, cuja perda lhe foramuito sentida, através de um médium estranho, já que ele mesmonão é médium. Além da notável elevação dos pensamentos, há denotar-se que os laços formados na Terra, quando sinceros, não sãorompidos pela morte.

Primeira conversa – 28 de dezembro de 1860

1. Evocação – Súplica ao Espírito Jules P..., que me foitão caro, para vir comunicar-se comigo.

Resp. – Caro amigo, acudo ao teu apelo com tanta

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maior solicitude quanto não esperava poder comunicar-me contigosenão em tempo ainda recuado pela vontade de Deus. Quanto meé agradável ver esse tempo abreviado por tua vontade e poderdizer-te o quanto a provação que sofri na Terra serviu ao meuprogresso! Embora ainda errante, sinto-me completamente feliz,sem outro pensamento que o do entusiasmo pelas obras de Deus,que me permite desfrutar de todos os prodígios que Ele houve porbem colocar à minha disposição, deixando-me esperar umareencarnação num mundo superior, onde seguirei a gradaçãoafortunada que me levará à suprema felicidade. Possas tu, caroamigo, ouvindo-me, ver em minhas palavras um presságio do quete espera! No último dia, virei tomar-te a mão para te mostrar a viaque já percorro desde algum tempo com tanta alegria. Encontrar-me-ás como guia, como na vida terrestre me encontraste comoamigo fiel.

2. Posso contar com o teu concurso, caro amigo, paraalcançar o objetivo feliz que me deixas entrever?

Resp. – Fica tranqüilo; farei o possível para que avancesneste caminho onde ambos nos encontraremos com tanta emoçãoe prazer. Como outrora, virei dar-te todas as provas de bondade decoração a que sempre foste tão sensível.

3. Por tua linguagem devo concluir que és muito maisfeliz do que em tua última existência?

Resp. – Sem contradita, meu amigo, muito feliz, ejamais o poderia repetir bastante. Que diferença! Não maisaborrecimentos, não mais tristeza, não mais sofrimentos corporaise morais; e, com isto, a visão de tudo o que nos foi caro! Muitasvezes eu estava contigo, ao teu lado. Quantas vezes te segui em tuacarreira! Eu te via quando não me supunhas tão perto de ti, já queme julgavas perdido para sempre. Meu caro amigo, a vida é preciosapara o Espírito, tanto mais preciosa quanto suave; e, como naTerra, pode fazê-la servir ao seu adiantamento celeste. Fica bempersuadido de que tudo se harmoniza nos decretos divinos paratornar as criaturas de Deus mais felizes e que basta, de sua parte,

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ter um coração para amar e curvar a cabeça para ser humilde. Entãose eleva mais alto do que poderia esperar.

4. Que desejas de mim, que te possa causar prazer?Resp. – Teu pensamento ornado de uma flor.

Nota – Tendo-se estabelecido uma discussão sobre osentido desta resposta, o Espírito acrescentou:

Quando digo teu pensamento ornado de uma flor, digoque, colhendo flores, deves pensar algumas vezes em mim. Hás decompreender que quero, tanto quanto possível, fazer-me notar porum de teus sentidos, tocando-te agradavelmente.

5. Adeus, caro amigo. Aproveitarei com prazer apróxima ocasião que tiver de te evocar.

Resp. – Esperarei com impaciência. Até mais ver, caroamigo.

Segunda conversa – 31 de dezembro

6. Evocação – Novo pedido ao meu amigo para vir dar-me uma comunicação no interesse de minha instrução.

Resp. – Eis-me de novo, caro amigo; não peço mais doque vir dizer-te ainda uma vez o quanto me foste caro. Quero dar-te uma prova disso, elevando-me às mais altas considerações. Sim,meu amigo, a matéria nada é; trata-a duramente; nada temas, oEspírito é tudo. Só ele se perpetua e jamais deve cessar de viver,nem de percorrer os caminhos que Deus lhe traça. Por vezes sedetém em bordas escarpadas para retomar o fôlego; mas quandovolta os olhos para o Criador retoma coragem e rapidamentesupera as dificuldades que encontra, eleva-se e admira a bondade deseu Senhor, que lhe distribui providencialmente as energias de quetem necessidade. Então avança; o empíreo se apresenta aos seusolhos, ao seu coração; ele marcha e logo se torna digno do destinoceleste que entrevê. Caro amigo, nada mais temas; sinto em mim acoragem redobrada, as forças decuplicadas, desde que deixei a

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Terra. Não mais duvido da felicidade predita que, comparada à quedesfruto, será tão superior quanto a mais brilhante das pedraspreciosas o é ao mais simples anel. Assim, vês quanto há degrandeza nas vontades celestes, e que será muito difícil para osseres humanos apreciar e pesar os seus resultados! Vossa linguagemdificilmente nos serve quando queremos exprimir o que vos deveparecer incompreensível.

7. Nada tens a acrescentar aos belos pensamentos queacabas de expressar?

Resp. – Sem dúvida não terminei; mas quis dar-te umaprova de minha identidade. Quando quiseres, eu te darei outras.

Observação – Estas provas de identidade são aqui todasmorais e não resultam de nenhum sinal material, nem de nenhumadessas questões pueris que muitas vezes algumas pessoas fazemcom esse propósito. As provas morais são melhores e mais seguras,uma vez que os sinais materiais sempre podem ser imitados porEspíritos enganadores. Aqui, o Espírito se deixa reconhecer porseus pensamentos, seu caráter, sua elevação e a nobreza do estilo.Certamente um Espírito enganador poderia, quanto a este aspecto,tentar a contrafação, mas jamais passaria de uma imitação grosseira;como lhe faltaria o fundo, ele não poderia imitar senão a forma,nem representar por muito tempo o seu papel.

8. Visto estares nesta disposição benevolente, eu mesentiria feliz de aproveitá-la agora e te peço a gentileza decontinuar.

Resp. – Eu te direi: Abre o livro de teus destinos; oEvangelho, meu amigo, far-te-á compreender muitas coisas que eunão saberia expressar. Deixa a letra; toma o Espírito desse livrosagrado e nele encontrarás todas as consolações necessárias ao teucoração. Não te inquietes com os termos obscuros; busca opensamento e teu coração o interpretará como deve interpretar.Agora estou mais bem informado e te confesso o erro em que nós,Espíritos, incorríamos ao considerá-lo tão friamente quando vivos.

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Felizmente, hoje reconheço que, impulsionado pelo meu bomcoração, teria podido, entendendo melhor os ensinamentospreciosos que o divino Mestre nos deixou, neles haurir o socorroque me faltava.

9. Obrigado e adeus, caro amigo; aproveitarei comprazer a primeira ocasião que tiver para te evocar.

Resp. – Não duvides de que então virei, como venhohoje. Farei o melhor que puder.

CorrespondênciaCARTA DO PRESIDENTE DA SOCIEDADE ESPÍRITA DO MÉXICO

México, 18 de abril de 1861.

Ao Senhor Allan Kardec, em Paris.

Senhor,

Meu amigo Sr. Viseur, em sua penúltima carta,manifesta-me o desejo que teríeis de conhecer o objetivo e astendências da Sociedade Espírita que presido no México. É comimenso prazer e a mais viva simpatia por vossas profundas luzes notocante a esta matéria que vos dirijo esta breve exposição dahistória do Espiritismo neste país, suplicando não apenas que leveisem consideração a nossa fraca experiência, mas, também, que nosconteis entre vós como fervorosos adeptos.

Muito tempo depois de vós, senhor, tivemos afelicidade de conhecer a suave verdade de que os Espíritos oualmas das pessoas mortas podem comunicar-se com os vivos. Nãoobstante algumas publicações vindas do Norte, nossa atenção ecuriosidade não haviam despertado e não nos havíamos dado aotrabalho de procurar o que entendiam por manifestaçõesespirituais. Foi o vosso O Livro dos Espíritos, felizmente chegado

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entre nós, que nos abriu os olhos e nos convenceu da realidade dosfatos que se propagam com tanta rapidez em todos os pontos doglobo, fazendo-nos compreendê-los. Começamos então a fazerpesquisas e experiências, assumindo a tarefa de, por um trabalhoconstante, nos adestrarmos para receber as manifestações. Osconselhos que haurimos em vosso excelente livro fizeram-nosconhecer esta grande verdade: após a morte a alma existe epodemos entrar em comunicação com as que nos foram caras naTerra.

Eu não renderia homenagem à verdade se vos dissesseque fomos aqui os primeiros a ter conhecimento das manifestações.Várias pessoas de nossa cidade já se ocupavam delas, o que sósoubemos mais tarde. O princípio da reencarnação é o que maisnos surpreendeu, inicialmente; mas as nossas comunicações comos Espíritos de uma ordem que, por sua linguagem, reconhecemosser superiores, não nos permitiram duvidar de uma crença que tudoprova estar na ordem das coisas e conforme à onipotente justiça deDeus. Um fato que prova a bondade e a superioridade dosEspíritos que nos assistem é que eles restabelecem a saúde dos quesofrem corporalmente e proporcionam calma e resignação àsaflições espirituais. A simples lógica nos diz que o bem não poderávir senão de uma boa fonte; mas seríamos muito presunçosos senos impuséssemos como campeões capacitados desta sublimedoutrina. Cabe a vós, senhor, o direito de nos esclarecer, comoprovam os trabalhos oriundos do seio de vossa Sociedade.

Formamos uma sociedade composta de membrosexperimentados na crença espírita e recebemos em sua intimidadetodo indivíduo que quer ser esclarecido. As leis fundamentais quenos regem são a unidade de princípios, a fraternidade entre osmembros e a caridade para com todos os que sofrem. Eis, senhor,como as idéias espíritas se espalharam neste país e, podemos dizercom satisfação, se propagaram além de nossas esperanças. Casojulgueis conveniente guiar-nos com os vossos bons conselhos,

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sempre os receberemos com vivo reconhecimento e como umtestemunho de simpatia de vossa parte.

Aceitai, etc.Ch. Gourgues

No mesmo dia em que nos chegou esta carta doMéxico, recebemos a seguinte, de Constantinopla:

Constantinopla, 28 de maio de 1861.

Ao Sr. Allan Kardec, diretor da REVISTA ESPÍRITA.

Senhor,

Permiti-me vir, no meu e no nome pessoal de meusamigos e irmãos espiritualistas desta cidade, oferecer-vos doissingelos presentes, como lembrança, não de pessoas que ainda nãoconheceis, e que só têm tido a honra de vos conhecer por vossasobras, mas que aceitareis como testemunho dos sentimentos deconfraternização, que devem unir os espiritualistas de todos ospaíses. Aceitá-los-eis, também, porque são uma prova dosfenômenos tão sublimes quanto extraordinários do Espiritismo.Aceitareis e lhes dareis a honra de um quadro à nossa boa Sofia, poisé no seu e no nome de sua irmã Angélica que o Espiritismo sedesenvolve e se propaga em Constantinopla, esta capital do Oriente,tão emocionante por suas lembranças históricas. Verdadeira Torrede Babel, é a cidade que reúne todas as seitas religiosas, todas asnações, e na qual se falam todas as línguas. Imaginai o Espiritismose propagando de repente em meio a tudo isto... Que imenso pontode partida! Somos ainda em reduzido número, mas este númeroaumenta dia a dia, como se fora uma bola de neve. Espero que, empouco tempo, seremos contados às centenas.

As manifestações que obtivemos até hoje são olevantamento das mesas, das quais uma, de mais de 100 quilos,ergueu-se como uma pluma acima de nossas cabeças; golpes

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diretos, batidos por Espíritos; fenômenos de transportes, etc.Estamos ensaiando as aparições de Espíritos, visíveis para todos;conseguiremos? Eles nos prometeram e nós aguardamos. Já temosum grande número de médiuns escreventes; outros fazemdesenhos; outros ainda compõem trechos musicais, mesmo quandoignoram essas diferentes artes. Vimos, seguimos e estudamosdiversos Espíritos de todos os gêneros e qualidades. Alguns denossos médiuns têm visões e êxtases; outros, mediunizados,executam árias ao piano, inspirados pelos Espíritos. Duassenhoritas, que jamais viram ou nada leram sobre o magnetismo,magnetizam toda espécie de males, pela ação dos Espíritos, que asfazem agir da maneira mais científica possível.

Eis, senhor, de relance, o que temos feito em matéria deEspiritismo até hoje. Para que melhor possais julgar os nossostrabalhos, no que diz respeito às revelações espirituais, apresentamoso resultado de algumas sessões por intermédio da mesa.

[Seguem-se diversas comunicações morais de ordemmuito elevada, cuja leitura a Sociedade ouviu com o mais vivointeresse].

Se julgardes que essas revelações possam interessar àpropagação da nova ciência espiritualista, ou espírita – porque paramim, como para meus amigos, o título nada significa, pois nemmuda a forma nem o fundo – terei o prazer de vos enviar algumasmensagens instrutivas e concludentes, do ponto de vista da provadas manifestações espirituais.

Em breve todos os espiritualistas da Terra formarãoum só feixe, uma só e mesma família. Não somos todos irmãos efilhos do mesmo pai, que é Deus? Eis os primeiros princípios queos espiritualistas devem pregar ao gênero humano, sem distinção declasse, país, língua, seita ou fortuna.

Aceitai, etc.Repos, Advogado

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Esta carta fazia-se acompanhar de um desenho,representando uma cabeça em tamanho natural, muito bemexecutado, embora o médium não soubesse desenhar, bem comode um trecho musical, letras, canto e acompanhamento de piano,intitulado Espiritualismo; o conjunto com esta dedicatória: “Ofertaem nome dos espiritualistas de Constantinopla ao Sr. Allan Kardec,diretor da Revista Espírita, de Paris.”

No fragmento de música, só o canto e a letra foramobtidos por via mediúnica; o acompanhamento foi feito por umartista.

Se publicássemos todas as cartas de adesão querecebemos, precisaríamos consagrar-lhes volumes e mais volumes.Ver-se-ia repetida, milhares de vezes, uma tocante expressão dereconhecimento à Doutrina Espírita. Muitas dessas cartas, aliás, sãobastante íntimas para serem publicadas. As duas que reproduzimosacima têm um interesse geral, como prova da expansão que, portodos os lados, toma o Espiritismo, e do ponto de visto sério sobo qual é, agora, encarado, muito longe, como se vê, doentretenimento das mesas girantes. Por toda parte compreendem-lhe as conseqüências morais e o consideram como a baseprovidencial das reformas prometidas à Humanidade. Sentimo-nosfelizes por dar assim um testemunho de simpatia e deencorajamento aos nossos confrades distantes. Este laço, que jáexiste entre os espíritas dos diferentes pontos do globo, e que nãose conhecem senão pela conformidade da crença, não é umsintoma do que será mais tarde? Esse laço é uma conseqüêncianatural dos princípios que decorrem do Espiritismo; só pode serrompido pelos que lhe desconhecem a lei fundamental: a caridadepara com todos.

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Desenhos MisteriososNOVO GÊNERO DE MEDIUNIDADE

Sob esse título, o Herald of Progress, de Nova Iorque,jornal consagrado a assuntos espiritualistas e dirigido por AndrewJackson Davis, contém a seguinte narrativa:

“Em 22 de novembro último, o Dr. Hallock,juntamente com outras pessoas, foi convidado à casa da Sra.French, 4a Avenida, no 8, para testemunhar diversas manifestaçõesespíritas e ver as evoluções de um lápis de grafite. Por volta das oitohoras a Sra. French deixou o cômodo onde o grupo estava reunidoe sentou-se num canapé, localizado em gabinete contíguo. Nãoabandonou esse lugar durante toda a reunião. Pouco depois desentar-se, pareceu entrar numa espécie de êxtase, com os olhosfixos e desvairados. Pediu ao Dr. Hallock e ao professor Brittonque examinassem o quarto. Eles encontraram sobre o leito,defronte do lugar onde ela estava sentada, uma pasta amarrada comuma fita de seda e uma garrafa de vinho para servir à experiência.O papel que seria utilizado para fazer os desenhos estava na pasta.Fomos convidados – diz o Dr. Hallock – a não tocar na pasta, nemna garrafa. Vários lápis e dois pedaços de goma elástica encon-travam-se igualmente sobre o leito, mas no resto do aposento nãohavia desenhos, nem papel. Após esta pesquisa a Sra. French pediuao Sr. Cuberton que tomasse a pasta e a levasse para a sala ocupadapelos convidados, abrisse-a e tirasse o conteúdo. Havia papelcomum, do qual seis folhas de diferentes tamanhos foram tomadasdas mãos do Sr. Cuberton pela Sra. French e postas sobre umamesa situada diante dela. Esta pediu alfinetes e, tomando uma tirade papel de 5 ou 6 polegadas de comprimento, que colocou naborda inferior do papel, prendeu as duas bordas deste à tira. Feitoisto, alguém foi solicitado a tomar o papel e fazer fosse eleexaminado pelos assistentes, segurasse a tira e os alfinetes e lhedevolvesse a folha. A mesma coisa foi feita com as outras folhas, ecada vez os alfinetes eram postos em número e em locais

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diferentes; as folhas eram entregues, uma a uma, a outra pessoa,com vistas a reconhecer o papel por meio dos traços, que deviamcorresponder aos das tiras. Depois de examinadas todas as folhas edevolvidas à Sra. French, o Sr. Cuberton pegou o vinho e lhoentregou. Ela pôs as folhas sobre a mesa e derramou, sobre cadauma delas, uma quantidade de vinho suficiente para molhá-lacompletamente, espalhando-o com a palma da mão. Em seguidatratou de secá-las, pressionando uma por uma das folhas,enrolando-as, soprando acima e as agitando no ar. Isto duroualguns minutos; depois baixou o pavio do lampião e mandou osconvidados se aproximarem. É preciso dizer que durante a opera-ção de molhagem, uma das folhas de papel tinha ficado muito seca,sendo necessário recomeçar o trabalho. (O vinho era uma simplesmistura de suco de uvas e açúcar, autorizado pelo Estado eproduzido na Nova Inglaterra). Então a Sra. French fez resta-belecer a luz e pediu às pessoas que viessem sentar-se junto à portaonde ela estava: o Sr. Gurney, o professor Britton, o Dr. Warner eo Dr. Hallock estavam a seis pés dela e os outros em plena vista.

“Pondo uma das folhas sobre a mesa à sua frente, elacolocou vários lápis entre os dedos; o Dr. Hallock não a perdeu devista, como houvera prometido. Estando tudo pronto, a Sra.French, para advertir que a experiência ia começar, exclamou: Time(tempo); então foi visto um movimento rápido da mão e, durantecerto momento, das duas mãos; ouviu-se um ruído vivamenterepetido sobre o papel; os lápis e o papel foram atirados a algumadistância no assoalho, por uma espécie de movimento nervoso;tudo isso durou vinte e um segundos. O desenho representa umbuquê de flores, composto de jacintos, lírios, tulipas, etc.

“Operaram sucessivamente em outras folhas. O no 2 étambém um grupo de flores. O no 3 é um belo cacho de uvas, comseu talo, folhas, etc.; foi feito em vinte e um segundos. O no 4 é umtalo e folhas com cinco grupos de frutas parecidas com damascos;as folhas são uma espécie de musgo. Quando se preparou para esta

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folha, a Sra. French perguntou quanto tempo lhe davam para aexecução; uns disseram dez segundos; outros, menos. Bem, disse aSra. French, quando eu disser: um, olhai vossos relógios; à palavraquatro o desenho estará terminado. Atenção! um, dois, três, quatro:o desenho foi feito, isto é, em quatro segundos. O no 5 representaum ramo de groselheira, do qual partem doze cachos de groselhasverdes, com flores e folhas, cercadas de folhas de uma outraespécie. O desenho foi apresentado pela Sra. French, em êxtase, aoSr. Bruckmaster, de Pittsbourg, como vindo do Espírito de suairmã, em cumprimento da promessa que ela lhe havia feito. Otempo gasto foi de dois segundos. O no 6, que pode ser con-siderado como a obra-prima da série, é um desenho de novepolegadas por quatro; consiste em flores e folhagens brancas sobrefundo escuro, isto é, o desenho é da cor natural do papel, oscontornos marcados e os interiores coloridos a lápis. Exceto doisoutros desenhos produzidos da mesma maneira em outra ocasião,são sempre a lápis sobre fundo branco. No centro desse grupo deflores e na parte inferior da página existe uma mão segurando umlivro aberto, de uma polegada e um quarto por três quartos; oscantos não são exatamente em ângulos retos; mas o que é muitocurioso, os furos dos alfinetes, feitos anteriormente parareconhecer o papel, marcam os quatro cantos do livro. No alto dapágina esquerda está escrito: Galatians vi e, a seguir, os seisprimeiros versículos e uma décima sexta parte deste capítulo,cobrindo quase as duas páginas inteiras, em caracteres muitolegíveis, com boa luz, a olho nu ou com uma lupa. Conta-se maisde cem palavras bem escritas. O tempo gasto foi de treze segundos.Quando se constatou a coincidência dos furos do papel com os datira, a Sra. French, ainda em êxtase, pediu aos presentes quecertificassem por escrito o que acabavam de ver. Então foi escritoà margem do desenho o seguinte: “Executado em treze segundos,em nossa presença, pela Sra. French; certificado pelos abaixo-assinados. 22 de novembro de 1860, 4a Avenida, no 8. Seguem-sedezenove assinaturas.”

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Não temos nenhum motivo para duvidar daautenticidade do fato, nem suspeitar da boa-fé da Sra. French, quenão conhecemos. Mas é de convir que essa maneira de procederteria algo de pouco convincente para os nossos incrédulos, que nãodeixariam de fazer objeções e de dizer que todos os preparativosteriam um ar de familiaridade com a prestidigitação, que faz asmesmas coisas, aparentemente sem tantos embaraços.Confessamos estar um pouco de acordo com eles. Que osdesenhos tenham sido feitos, é incontestável; somente a origemnão nos parece provada de maneira autêntica. Seja como for,admitindo-se que não tenha havido nenhuma fraude, é, sem amenor dúvida, um dos mais curiosos fatos de escrita e de desenhosdiretos, dos quais a teoria nos explica a possibilidade. Sem essateoria semelhantes fatos seriam, à primeira vista, relegados comofábulas ou manobras de prestidigitação. Mas, pelo fato mesmo denos dar a conhecer as condições nas quais os fenômenos podemproduzir-se, ela deve tornar-nos tanto mais circunspetos para nãoos aceitar senão com conhecimento de causa.

Decididamente os médiuns americanos têm umaespecialidade para a produção de fenômenos extraordinários, poisos jornais do país estão cheios de uma porção de fatos do gênero,de que nossos médiuns europeus estão longe de se aproximarem.Assim, do outro lado do Atlântico, dizem que ainda estamos muitoatrasados em Espiritismo. Quando perguntamos aos Espíritos arazão dessa diferença, eles responderam: “A cada um o seu papel;o vosso não é o mesmo, e Deus não vos reservou a menor parte naobra de regeneração.” A considerar o mérito dos médiuns peloponto de vista da rapidez da execução, pela energia e pelo poderdos efeitos, os nossos são apagados ao lado daqueles; entretanto,conhecemos muitos que não trocariam as simples e consoladorascomunicações que recebem, pelos prodígios dos médiunsamericanos. Elas bastam para lhes dar a fé, e eles preferem o quetoca a alma ao que lhes fere os olhos; a moral que consola e tornamelhor, aos fenômenos que impressionam. Por um instante, na

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Europa, preocuparam-se com os fatos materiais; mas logo osdeixaram de lado pela Filosofia, que abre um campo mais vasto aopensamento e tende para o objetivo final e providencial doEspiritismo: a regeneração social. Cada povo tem seu gênioparticular e suas tendências especiais e cada um, nos limites que lhesão assinalados, concorre para os planos da Providência. O maisadiantado será aquele que marchar mais depressa na via doprogresso moral, porquanto é este que mais se aproximará dosdesígnios de Deus.

Exploração do Espiritismo

A América do Norte reivindica, a justo título, a honrade ter sido a primeira nos últimos tempos a revelar asmanifestações de além-túmulo. Por que não deveria ser ela aprimeira a dar o exemplo do tráfico e por que, nesse povo tãoadiantado sob tantos aspectos, e tão digno de nossa simpatia, oinstinto mercantil não se tenha detido no limiar da vida eterna?Quando lemos seus jornais, em cada página vemos anúncios comoestes:

“Srta. S. E. Royers, sonâmbula, médium-médico, curapsicologicamente por simpatia. Tratamento comum, se necessário.– Descrição da fisionomia, da moralidade e do Espírito daspessoas. Das dez horas ao meio-dia; das duas às cinco da tarde; dassete às dez da noite, exceto às sextas, sábados e domingos, a não serpor acordo antecipado. Preço: 1 dólar por hora (5 fr. 42 c.).”

Pensamos que a simpatia do médium por seus doentesdeve estar na razão direta da quantidade de dólares que lhe pagam.Julgamos supérfluo dar os endereços.

“Srta. E. C. Morris, médium escrevente. Das dez horasao meio-dia; das duas às quatro da tarde; de sete às nove da noite.”

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“J. B. Conklin, médium. Recebe visitantes em seussalões todas as noites. Atende em domicílio.”

“A. C. Styles, médium lúcido. Garante o diagnósticoexato da doença da pessoa presente, mediante pagamento. Regrasestritamente observadas: Para um exame lúcido e prescrições, coma pessoa presente, 2 dólares; para descrições psicométricas doscaracteres, 3 dólares. Não esquecer que as consultas são pagasantecipadamente.”

“Aos amadores do Espiritismo. Srta. Beck, médiumcrisíaco, falando, soletrando, batendo e raspando. Os verdadeirosobservadores podem consultá-la das nove horas da manhã às dezhoras da noite, em sua casa. Um médium batedor muito poderosoestá associado à Srta. Beck.”

Pensam que tal comércio só seja feito porespeculadores obscuros e ignorantes? Eis o que prova o contrário:

“O Dr. G. A. Redman, médium experiente, está devolta a Nova Iorque. É encontrado em seu domicílio, onde recebecomo outrora.”

O tráfico do espiritualismo estendeu-se até os objetoscomuns. Assim, lemos no Spiritual Telegraph, de Nova Iorque, oanúncio de “Fósforos Espirituais; nova invenção sem fricção e semcheiro.”

O que é mais honroso para esse país do que essesanúncios é o artigo seguinte, que encontramos no Weekly American,de Baltimore, de 5 de fevereiro de 1859:

“Estatística do Espiritualismo. O Spiritual Register, de1859, estima em 1.284.000 o número de espiritualistas nos EstadosUnidos. Em Maryland há 8.000. O número total no mundo éavaliado em 1.900.000. O Register conta 1.000 oradores espi-

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ritualistas; 40.000 médiuns públicos e privados; 500 livros ebrochuras; 6 jornais hebdomadários, 4 mensais e 3 quinzenais,consagrados a essa causa.”

Os médiuns especuladores ganharam a Inglaterra. EmLondres contam-se diversos que não cobram menos de um guinéupor sessão. Caso se aventurem a introduzir-se na França,esperamos que o bom-senso dos verdadeiros espíritas lhes façajustiça.

A produção dos efeitos materiais mais excita acuriosidade do que toca o coração. Daí, nos médiuns com aptidãoespecial para obter tais efeitos, uma propensão para explorar essacuriosidade. Os que apenas recebem comunicações morais deordem elevada têm uma instintiva repugnância por tudo quantocheira a especulação desse gênero. Para isso há nos primeiros umduplo motivo: primeiro, porque a exploração da curiosidade é maislucrativa, pois os curiosos são abundantes em todo o país; depois,porque os fenômenos físicos, agindo menos sobre o moral, háneles menos escrúpulos. Aos seus olhos, sua faculdade é um domque deve sustentá-los na vida, como uma bela voz para um cantor;a questão moral é secundária ou nula. Desse modo, uma vez nestecaminho, o atrativo do ganho desenvolve o gênio da astúcia; comoé preciso ganhar dinheiro, não se quer falhar na reputação dehabilidade, cometendo trapalhadas. Aliás, quem garante que ocliente que hoje vem voltará amanhã? É preciso, pois, satisfazê-lo aqualquer preço; se o Espírito não colabora, o médium vem em seuauxílio, o que de outro modo é muito mais fácil para as coisasmateriais do que para as comunicações inteligentes, de elevadoalcance moral e filosófico. Para os primeiros, a prestidigitação temrecursos que faltam absolutamente aos outros. Eis por que dizemosque é preciso considerar, antes de tudo, a moralidade do médium;que a melhor garantia contra a trapaça está em seu caráter, em suahonorabilidade, em seu desinteresse absoluto. Em qualquer parteonde se insinua a sombra do interesse, por menor que seja, tem-seo direito de suspeitar. A fraude é sempre condenável, mas quando

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se liga às coisas de ordem moral é um sacrilégio. Aquele que, sóconhecendo de nome o Espiritismo, busca imitar-lhe os efeitos,não é mais repreensível que o saltimbanco, ao imitar as experiênciasdo físico. Sem dúvida, mais valeria que tal não acontecesse; mas, naverdade, ele não engana a ninguém, porque não faz mistério de suaqualidade: só esconde os meios. Já o mesmo não acontece comaquele que, falsificando, ilude a boa-fé de outrem com o ignóbilobjetivo de especular. É mais que fraude: é hipocrisia, porquanto sedá por aquilo que não é; e é ainda mais culpado se, realmentepossuindo algumas faculdades, delas se serve para melhor abusarda confiança que lhe concedem. Mas Deus sabe o que lhe estáreservado, talvez ainda nesta vida. Se os falsos médiuns nãofizessem mal senão a si próprios, só haveria um meio-mal; o que émais deplorável são as armas que fornecem aos incrédulos e odescrédito que lançam sobre a questão no espírito dos indecisos,desde que reconhecida a fraude. Não contestamos as faculdades,até mesmo poderosas, de certos médiuns mercenários, masdizemos que o atrativo do ganho é uma tentação de fraude quedeve inspirar uma desconfiança tanto mais legítima quanto não sepode ver nessa exploração um excesso de zelo apenas pelo bem dacausa. Ainda que não houvesse fraude, nem por isso a censuradeixaria de atingir aquele que especula com uma coisa tão sagradacomo as almas dos mortos.

VariedadesAS VISÕES DO SR. O.

Extraímos o seguinte relato do Spiritual Magazine,publicado em Londres, em seu número de abril de 1861.

“O Sr. O..., gentil-homem de Glocestershire, jamaistivera visões até o momento em que veio residir em P..., a 3 deoutubro de 1859. Cerca de quinze dias após sua chegada, começoua ver à noite; de início eram raios de luz, que vinham iluminar o seu

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quarto, passando pela vidraça. Prestou-lhe pouca atenção,atribuindo-os à lanterna de um guarda ou a um relâmpagodemorado. Todavia, uma noite em que fixava os olhos na parede doquarto, viu formar-se uma rosa e depois estrelas de várias formas.Outra noite viu, na misteriosa luz, dois magníficos anjos com umatrombeta. Nessa noite o Sr. O... se havia recolhido mais cedo que decostume por causa de leve indisposição que sentia. A presença dosdois anjos, que durou um ou dois segundos, fez-lhe experimentardoce sensação, que se prolongou depois de sua partida.

“Na semana seguinte a mesma luz lhe apareceu com afigura de uma criança, a abraçar um pequeno gato. Várias outrasfiguras igualmente apareceram, mas muito obscuras para seremdistinguidas. Em março viu o perfil de uma dama, rodeada de umcírculo luminoso; reconheceu sua mãe e exclamou muito alegre:‘Minha mãe! minha mãe!’ mas logo a visão se desvaneceu. Namesma noite, viu uma bela senhora, vestida com distinção, chapéuà cabeça.

“Uma ou duas noites depois viu um belo cachorrinho eum meninote. A seguir apareceu-lhe uma luz semelhante à de umajanela, cujo contorno não estava nitidamente delimitado, o que serepetiu quatro vezes e, nas três primeiras, durante cerca de meiominuto. O Sr. O... recolheu-se e procurou adivinhar o sentido dessavisão, imaginando significasse que ele não teria mais que três anosou três meses de vida. A luz voltou ainda uma vez; o Sr. O...levantou-se e a luz desapareceu ao cabo de um minuto.

“A 3 de abril ele viu uma luz produzindo o efeito deuma fenda luminosa e, no interior do quarto, uma parte do rosto deum homem: só a fronte, os olhos e o nariz eram visíveis. Muitograndes e muito salientes, os olhos o fitavam fixamente; logodesapareceu. Nas datas adiante teve ainda as seguintes visões:

“4 de abril – Rosto e busto de uma dama, sorrindo paraduas crianças que se abraçavam. Pouco depois era a parte superior

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da cabeça de um homem que o Sr. O... reconheceu, pelo cabelo epela fronte, como um de seus amigos, falecido recentemente; 27 dejulho – Uma mão, dirigida para baixo; a princípio apareceu naparede como uma luz fosforescente, tomando gradualmente aforma de mão. Então ele viu a cabeça de um homem idoso,pertencente a essa mão, um passarinho cinzento, de penas claras. Orosto o olhava com ar solene, mas desapareceu; o Sr. O... foitomado de certo medo e sentiu-se tremer, ao mesmo tempo queexperimentava agradável sensação de calor. Viu também um rolode papel sobre o qual havia hieróglifos; 12 de dezembro – Umpássaro em seu ninho dando de comer aos filhotes; 13 dedezembro – Duas cabeças de leopardos; 15 de dezembro – Fortepancada foi ouvida pela Srta. S... em seu quarto, e que despertou oSr. O..., profundamente adormecido; 16 de dezembro – Toque desinos, ouvido também pela Srta. S... Um anjo e uma criançabrilhante, que se transformam em flores. Uma cabeça de cervo,com grandes chifres; 18 de dezembro – alguns rostos e doispombos; 20 de dezembro – Vários rostos de homens, mulheres ecrianças; 1o de janeiro – uma grande embarcação, atrás da qual seergue gradualmente a cabeça de uma criança, que acaba por voarpara frente; 3 de janeiro – Um querubim e uma criança.

“Uma noite ele viu um quadro, representando soberbapaisagem, como se fora uma abertura na obscuridade; via prados,campos, árvores, etc.; um homem a passear e uma vaca. A mais belaclaridade do Sol iluminava a paisagem. O que há de particularnessas visões luminosas é que muitas vezes a luz clareia todo oquarto, de maneira a deixar ver os móveis como em pleno dia.Quando ela desaparece, tudo retorna à obscuridade.

“O Sr. O... teve muitas outras visões, das quais não teveo cuidado de tomar nota.

Parece-nos que há o suficiente para nos permitir apreciá-las e não pensamos que nenhuma pessoa esclarecida sobre a causa e

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a natureza dos fenômenos espíritas possa considerá-las comoverdadeiras aparições. Se se reportarem ao primeiro artigo destenúmero, no qual tentamos determinar o caráter da alucinação,compreenderão a analogia que ela tem com as figuras que muitasvezes se apresentam em estados de sonolência, e que devem ter asmesmas causas; disto estamos convencidos pelo simples fato damultidão de animais que ele viu. Sabe-se que não há Espíritos deanimais errantes no mundo invisível e que, conseguintemente, nãopode haver aparições de animais, salvo o caso em que um Espíritofizesse surgir uma aparência desse gênero, com um fim determinado,o que não deixaria de ser sempre uma aparência, e não o Espíritoreal, de tal ou qual animal25. O fato das aparições é incontestável, masé preciso guardar-se de vê-las em toda parte e de tomar como tais ojogo de certas imaginações facilmente exaltáveis, ou a visãoretrospectiva das imagens impressas no cérebro. A própria minúciacom a qual o Sr. O... revela certas particularidades insignificantes éum indício da natureza das preocupações de seu espírito.

Em resumo, nada encontramos nas visões do Sr. O...que tenha o caráter das aparições propriamente ditas e acreditamoshaver muita inconveniência em propagar semelhantes fatos sem osdevidos comentários e sem as reservas que a prudência recomenda,porque, sem o querer, estaríamos fornecendo armas à crítica.

OS ESPÍRITOS E A GRAMÁTICA

Um grave erro gramatical foi descoberto em O Livro dosEspíritos por um profundo crítico, que nos dirigiu a seguinte nota:

“Leio à página 384, parágrafo 91126, linha 23, em vossoO Livro dos Espíritos: ‘Há muitas pessoas que dizem: Quero; mas a

25 N. do T.: Vide a questão 600, de O Livro dos Espíritos, e o item 283,de O Livro dos Médiuns.

26 N. do T.: Grifo nosso. O crítico alude ao parágrafo 911, mas, emverdade, refere-se à pergunta de mesmo número, inserida no LivroIII, Capítulo XII, de O Livro dos Espíritos.

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vontade só lhes está nos lábios; eles querem, porém muitosatisfeitos ficam que assim não seja’. Se tivésseis dito: ‘Elas que-rem e ficam muito satisfeitas que assim não seja’, não credes que ofrancês teria lucrado? Eu seria levado a pensar que o vosso Espíritoprotetor escrevente seja um farsista que vos faz cometer erros delinguagem. Apressai-vos em puni-lo e, sobretudo, em corrigi-lo.”

Lamentamos não poder enviar os nossosagradecimentos ao autor desta observação. Mas, sem dúvida, é pormodéstia e para se furtar ao testemunho de nosso reconhecimentoque ele esqueceu de pôr seu nome e endereço, limitando-se aassinar: Um Espírito protetor da língua francesa. Considerando-se queesse senhor, ao que parece, se dá ao trabalho de ler nossas obras,pedimos aos Espíritos bons o obséquio de colocar nossa respostasob os seus olhos.

Torna-se evidente ser do conhecimento desse senhorque o substantivo pessoa é do feminino e que os adjetivos e ospronomes concordam em gênero e número com o substantivo aoqual se referem. Infelizmente nem tudo se ensina na escola,sobretudo em questões da língua francesa. Se tal senhor, que sedeclara protetor de nossa língua, tivesse transposto os limites dagramática de Lhomond, saberia que se encontra em Regnard aseguinte frase: Embora essas três pessoas tivessem interesses muitodiferentes, eles eram, todavia, atormentados pela mesma paixão. Eesta outra, em Vaugelas: As pessoas consumidas na virtude em todas ascoisas têm uma retidão de espírito e uma atenção judiciosa que as impedede ser murmuradores. Daí a regra que se acha na GramáticaNormal dos Exames, pelos senhores Levi Alvarès e Rivail, na deBonifácio, etc.

“Às vezes empregamos, por silepse, o pronome ele parasubstituir o substantivo pessoa, embora esta última palavra sejafeminina. Tal concordância só pode ocorrer quando, nopensamento, o vocábulo pessoa não representa exclusivamentemulheres e, além disso, quando o pronome ele está bastanteafastado para que o ouvido não seja ferido de modo desagradável.”

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A respeito do pronome ninguém, que é masculino,encontra-se a seguinte observação: “Entretanto, quando opronome ninguém designa especialmente uma mulher, o adjetivoque a ele se refere pode ser posto no feminino; pode-se dizer:Ninguém é mais bonita que Rosina (Bonifácio)27.

Os Espíritos que ditaram a frase em questão não sãotão ignorantes quanto pretende aquele senhor. Seríamos mesmolevado a crer que sabem um pouco mais que ele, embora em geralnão se melindrem muito com a correção gramatical, a exemplo demuitos dos nossos sábios, que não primam pela ortografia. Moral:É bom saber antes de criticar.

Seja como for, para acalmar os escrúpulos dos que nãosabem muito, e julgam a doutrina em perigo por um erro delinguagem, real ou imaginário, nós alteramos a concordância naquinta edição de O Livro dos Espíritos, que acaba de ser lançada,porque:

...Com boa vontade, aos rimadores audaciosos o usoainda permite, creio, a escolha entre os dois.

É um verdadeiro prazer ver o trabalho que se dão osadversários do Espiritismo para o atacar com todas as armas quelhes caem às mãos. Mas o que há de singular é que, malgrado aquantidade de setas que lhe arremessam, apesar das pedrassemeadas em seu caminho, não obstante as armadilhas que lheestendem para fazê-lo desviar-se de seu objetivo, nenhum meio foi aindaencontrado para o deter em sua marcha e ele ganha um terrenodesesperador para os que julgam abatê-lo com piparotes. Depoisdos piparotes os atletas de folhetim experimentaram as bordoadas,mas ele nem sequer se abalou; em vez disso avançou mais rápido.

27 N. do T.: Para os leitores da língua portuguesa essas lições gramaticaisde Allan Kardec só farão sentido se considerarmos que, em francês,os vocábulos pessoa e ninguém são homógrafos (personne).

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Dissertações e Ensinos EspíritasPOR DITADOS ESPONTÂNEOS

O PAPEL DOS MÉDIUNS NAS COMUNICAÇÕES28

(Obtido pelo Sr. d’Ambel, médium da Sociedade)

Seja qual for a natureza dos médiuns escreventes, quermecânicos ou semimecânicos, quer simplesmente intuitivos, nãovariam essencialmente os nossos processos de comunicação comeles. De fato, nós nos comunicamos com os Espíritos encarnados,da mesma forma que com os Espíritos propriamente ditos, tão-sópela irradiação do nosso pensamento.

Os nossos pensamentos não precisam da vestidura dapalavra para serem compreendidos pelos Espíritos e todos elespercebem os pensamentos que lhes desejamos transmitir, sendosuficiente que lhes dirijamos esses pensamentos, e isto em razão desuas faculdades intelectuais. Quer dizer que tal pensamento taisou quais Espíritos o podem compreender, em virtude doadiantamento deles, ao passo que, para tais outros, por nãodespertarem nenhuma lembrança, nenhum conhecimento que lhesdormitem no fundo do coração, ou de seu cérebro, esses mesmospensamentos não lhes são perceptíveis. Neste caso, o Espíritoencarnado que nos serve de médium é mais apto a exprimir onosso pensamento a outros encarnados, se bem não o compreenda,do que um Espírito desencarnado, mas pouco adiantado, sefôssemos forçado a servir-nos dele, porquanto o ser terreno põeseu corpo, como instrumento, à nossa disposição, o que o Espíritoerrante não pode fazer.

Assim, quando encontramos em um médium o cérebropovoado de conhecimentos adquiridos na sua vida atual e o seuEspírito rico de conhecimentos latentes, obtidos em vidasanteriores, susceptíveis de nos facilitarem as comunicações, dele de

28 N. do T.: Vide O Livro dos Médiuns, 2a parte, capítulo XIX, item 225.

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preferência nos servimos, porque com ele o fenômeno dacomunicação se nos torna muito mais fácil do que com ummédium de inteligência limitada e de escassos conhecimentosanteriormente adquiridos. Vamos fazer-nos compreensíveis pormeio de algumas explicações claras e precisas.

Com um médium cuja inteligência atual ou anterior seache desenvolvida, o nosso pensamento se comunica instan-taneamente de Espírito a Espírito, por uma faculdade peculiar àessência mesma do Espírito. Nesse caso, encontramos no cérebrodo médium os elementos próprios a dar ao nosso pensamento avestidura da palavra que lhe corresponda, e isto quer o médium sejaintuitivo, semimecânico, ou inteiramente mecânico. Essa a razãopor que, seja qual for a diversidade dos Espíritos que se comunicamcom um médium, os ditados que este obtém, embora procedendode Espíritos diferentes, trazem, quanto à forma e ao colorido, ocunho que lhe é pessoal. Com efeito, se bem o pensamento lhe sejade todo estranho, se bem o assunto esteja fora do âmbito em queele habitualmente se move, se bem o que nós queremos dizer nãoprovenha dele, nem por isso deixa o médium de exercer influência,no tocante à forma, pelas qualidades e propriedades inerentes à suaindividualidade. É exatamente como quando observais panoramasdiversos, com lunetas matizadas, verdes, brancas, ou azuis;embora os panoramas, ou objetos observados, sejam inteiramenteopostos e independentes, em absoluto, uns dos outros, não deixampor isso de afetar uma tonalidade que provém das cores das lunetas.Ou, melhor: comparemos os médiuns a esses recipientes de vidrocheios de líquidos coloridos e transparentes que se vêem nosmostruários dos laboratórios farmacêuticos. Pois bem, nós somoscomo as luzes que clareiam certos panoramas morais, filosóficos einternos, através dos médiuns, azuis, verdes ou vermelhos, de talsorte que os nossos raios luminosos, obrigados a passar através devidros mais ou menos bem facetados, mais ou menostransparentes, isto é, de médiuns mais ou menos inteligentes, só

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chegam aos objetos que desejamos iluminar, tomando a coloração,ou, melhor, a forma de dizer própria e particular desses médiuns.Enfim, para terminar com uma última comparação: nós osEspíritos somos quais compositores de música, que hão composto,ou querem improvisar uma ária e que só têm à mão ou um piano,um violino, uma flauta, um contrabaixo ou uma gaita de dezcentavos. É incontestável que, com o piano, a flauta ou o violino,executaremos a nossa composição de modo muito maiscompreensível para os ouvintes. Se bem sejam muito diferentes unsdos outros os sons produzidos pelo piano, pelo contrabaixo e pelaclarineta, nem por isso ela deixará de ser idêntica em qualquerdesses instrumentos, abstração feita dos matizes do som. Mas, se sótivermos à nossa disposição uma gaita de dez centavos, ou uminstrumento improvisado qualquer, aí está para nós a dificuldade.

Efetivamente, quando somos obrigados a servir-nos demédiuns pouco adiantados, muito mais longo e penoso se torna onosso trabalho, porque nos vemos forçados a lançar mão de formasincompletas, o que é para nós uma complicação, pois somosconstrangidos a decompor os nossos pensamentos e a ditar palavrapor palavra, letra por letra, constituindo-se isso uma fadiga e umaborrecimento, assim como um entrave real à presteza e aodesenvolvimento das nossas manifestações.

Por isso é que gostamos de achar médiuns bemadestrados, bem aparelhados, munidos de materiais prontos aserem utilizados, numa palavra: bons instrumentos, porque então onosso perispírito, atuando sobre o daquele a quem mediunizamos,nada mais tem a fazer senão impulsionar a mão que nos serve delapiseira, ou caneta, enquanto que, com os médiuns insuficientes,somos obrigados a um trabalho análogo ao que temos quando noscomunicamos mediante pancadas, isto é, formando, letra por letra,palavra por palavra, cada uma das frases que traduzem ospensamentos que vos queiramos transmitir.

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É por estas razões que de preferência nos dirigimos,para a divulgação do Espiritismo e para o desenvolvimento dasfaculdades mediúnicas escreventes, às classes cultas e instruídas,embora seja nessas classes que se encontram os indivíduos maisincrédulos, mais rebeldes e mais imorais. É que, assim comodeixamos hoje, aos Espíritos galhofeiros e pouco adiantados, oexercício das comunicações tangíveis, de pancadas e transportes,assim também os homens pouco sérios preferem o espetáculo dosfenômenos que lhes afetam os olhos ou os ouvidos, aos fenômenospuramente espirituais, puramente psicológicos.

Quando queremos transmitir ditados espontâneos,atuamos sobre o cérebro, sobre os arquivos do médium epreparamos os nossos materiais com os elementos que ele nosfornece e isto à sua revelia. É como se lhe tomássemos à bolsa assomas que ele aí possa ter e puséssemos as moedas que as formamna ordem que mais conveniente nos parecesse.

Mas quando o próprio médium é quem nos querinterrogar, bom é reflita nisso seriamente, a fim de nos fazer commétodo as suas perguntas, facilitando-nos assim o trabalho deresponder a elas. Porque, como já dissemos em instrução anterior,o vosso cérebro está freqüentemente em inextricável desordem e,não só difícil, como também penoso se nos torna mover-nos nodédalo dos vossos pensamentos. Quando seja um terceiro quemnos haja de interrogar, é bom e conveniente que a série deperguntas seja comunicada de antemão ao médium, para que estese identifique com o Espírito do evocador e dele, por assim dizer,se impregne, porque, então, nós outros teremos mais facilidadepara responder, por efeito da afinidade existente entre o nosso e operispírito do médium que nos serve de intérprete.

Sem dúvida, podemos falar de matemáticas, servindo-nos de um médium a quem estas sejam absolutamente estranhas;porém, quase sempre, o Espírito desse médium possui, em estadolatente, conhecimento do assunto, isto é, conhecimento peculiar ao

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ser fluídico e não ao ser encarnado, por ser o seu corpo atual uminstrumento rebelde, ou contrário, a esse conhecimento. O mesmose dá com a astronomia, com a poesia, com a medicina, com asdiversas línguas, assim como com todos os outros conhecimentospeculiares à espécie humana.

Finalmente, ainda temos como meio penoso deelaboração, para ser usado com médiuns completamente estranhosao assunto de que se trate, o da reunião das letras e das palavras,uma a uma, como em tipografia.

Conforme acima dissemos, os Espíritos não precisamrevestir seus pensamentos; eles os percebem e transmitem,reciprocamente, pelo só fato de os pensamentos existirem neles. Osseres corpóreos, ao contrário, só podem perceber os pensamentos,quando revestidos. Enquanto que a letra, a palavra, o substantivo,o verbo, a frase, em suma, vos são necessários para perceberdes,mesmo mentalmente, as idéias, nenhuma forma visível ou tangívelnos é necessária.

Erasto e Timóteo,Espíritos protetores dos médiuns

HOSPITAL PÚBLICO29

(Recebido pelo Sr. A. Didier, médium da Sociedade)

Uma noite de inverno eu seguia os cais sombrios queconfinam Notre-Dame. Como bem o compreendeu um poeta, é obairro do desespero e da morte. Essa região sempre foi, desde oPátio dos Milagres até o Necrotério, o receptáculo de todas asmisérias humanas. Hoje, que tudo se desmorona, esses imensosmonumentos da agonia, que o homem chama Santas Casas deMisericórdia, talvez venham a cair também. Eu olhava essas luzesembaciadas que varam paredes sombrias e me dizia: Quantas

29 N. do T.: L’Hôtel-Dieu, em francês. Corresponde às nossas SantasCasas de Misericórdia.

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mortes desesperadas! que fossa comum do pensamento, quetraga diariamente tantos corações mudados, tantas inocênciasgangrenadas! É lá que têm morrido tantos sonhadores, poetas,artistas ou sábios! Há um pequeno corredor em ponte sobre oriacho que corre pesadamente; é por ali que passam os que nãovivem mais. Os mortos são levados, então, para outro edifício, emcuja fachada deveriam escrever como na porta do inferno: Aquinão há mais esperança. Efetivamente, é aí que o corpo é recortadopara servir à Ciência, mas é também aí que a Ciência subtrai à fé omenor vestígio de esperança.

Presa de tais pensamentos eu havia dado alguns passos,mas o pensamento vai mais rápido que nós. Fui alcançado por umrapaz, pálido e tiritando de frio que, sem-cerimônia, pediu fogopara o cachimbo; era um estudante de Medicina. Dito e feito; eutambém fumava e entabulei conversa com o desconhecido.Descorado, magro e enfraquecido pelas vigílias, fronte vasta eolhos tristes, tal era, à primeira vista, o aspecto desse homem.Parecia pensativo e eu lhe comuniquei meus pensamentos. –“Acabo de dissecar, disse ele, mas só encontrei a matéria. Ah! meuDeus, acrescentou ele com um sangue-frio glacial, se quiserdes vosdesembaraçar da estranha doença cognominada de crença naimortalidade da alma, ide ver diariamente, como eu, dissolver-secom tanta uniformidade essa matéria que chamamos corpo; ide vercomo se apagam esses cérebros entusiastas, esses coraçõesgenerosos ou degradados; ides ver se o nada que os apanha não éo mesmo em todos. Que loucura acreditar!” – Perguntei-lhe aidade. – “Tenho 24 anos, disse ele; agora devo deixar-vos, porquefaz muito frio.”

Ao vê-lo afastar-se, perguntei a mim mesmo: É isto oresultado da Ciência?

Continuarei.Gérard de Nerval

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Nota – Alguns dias mais tarde a Sra. Costel recebeu, emsua casa, a comunicação seguinte, cuja analogia com a precedenteoferece notável particularidade.

Uma noite eu seguia pelos cais desertos; o tempo estavabonito e fazia calor. As estrelas de ouro se destacavam no azulsombrio; a Lua arredondava seu círculo elegante e seus níveos raiosiluminavam como um sorriso a água profunda. Os álamos, guardassilenciosos das margens do Sena, erguiam suas formas esbeltas e eupassava lentamente, ora olhando o reflexo dos astros na água, orao reflexo de Deus na abóbada azulada. À minha frente caminhavauma mulher e, com uma curiosidade pueril, eu lhe seguia os passos,que pareciam regular os meus. Caminhamos assim durante muitotempo. Chegados em frente ao Hospital, cujas fachadas deixavamver aqui e ali aberturas iluminadas, ela parou e, virando-se paramim, dirigiu-me subitamente a palavra, como se eu fosse seucompanheiro. – Amigo, perguntou ela, crês que os que sofrem aquisofrem mais da alma que do corpo? ou crês que a dor físicaextingue a centelha divina? – Creio, respondi eu,profundamente surpreendido, que, para a maioria dos infelizes, quea esta hora sofrem e agonizam, a dor física é o descanso e oesquecimento de suas misérias habituais. – Tu te enganas, amigo,retomou ela, sorrindo gravemente. A doença é a suprema angústiapara os deserdados da Terra, para os pobres, os ignorantes e osabandonados; ela só deixa no esquecimento os que, semelhantes ati, não sofrem senão a nostalgia dos bens sonhados e só conhecemas dores idealizadas, coroadas de violetas. Quis falar; ela fez sinalque me calasse e, erguendo a branca mão para o Hospital, disse:Ali se agitam infelizes que calculam o número de horas roubadaspela doença ao seu salário; ali mulheres angustiadas pensam nocabaré que entorpece a mágoa e faz os maridos esquecerem o pãodos filhos; ali, acolá, em toda parte as preocupações terrenasapertam e sufocam o pálido clarão da esperança, que não poderesvalar nessas almas desoladas. Deus é ainda mais esquecido poresses infelizes, vencidos pelo sofrimento, do que no seu paciente

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labor; é que Deus está muito alto, muito distante, enquanto amiséria está próxima. Que fazer, então, para dar a esses homens, aessas mulheres, o impulso moral necessário para que se despojemde seu invólucro carnal, não como insetos rastejantes, mas comocriaturas inteligentes, ou para que entrem menos sombrios e menosdesesperados na batalha da vida? Tu, sonhador; tu, poeta que rimassonetos à Lua, alguma vez já pensaste nesse formidável problemaque só duas palavras podem resolver: caridade e amor?

A mulher parecia crescer e o frêmito das coisas divinascorria em mim. Escuta ainda – retomou ela, e sua grande vozparecia encher a cidade com a sua harmonia – Ide todos, vós ospoderosos, os ricos, os inteligentes; ide espalhar uma notíciamaravilhosa; dizei aos que sofrem e que estão abandonados, queDeus, seu pai, não mais está refugiado no céu inacessível e lhesenvia, para os consolar e assistir, os Espíritos daqueles que elesperderam; que seus pais, suas mães, seus filhos, curvados à suacabeceira e lhes falando a língua conhecida, ensinar-lhes-ão quealém da tumba brilha uma nova aurora, semelhante a uma nuvemque dissipa os males terrenos. O anjo abre os olhos de Tobias; que,por sua vez, o anjo do amor abra as almas fechadas dos que sofremsem esperança. E, dizendo isto, a mulher tocou levemente minhaspálpebras e eu vi, através das paredes do Hospital, os Espíritos,puras chamas, que faziam resplandecer as salas desoladas. Suaunião com a Humanidade se consumava, e as chagas da alma e docorpo eram pensadas e aliviadas pelo bálsamo da esperança.Legiões de Espíritos, mais inumeráveis e mais brilhantes que asestrelas, expulsavam de sua frente, como vapores impuros, odesespero, a dúvida, e do ar, da terra, do rio, escapava uma sópalavra: amor.

Fiquei muito tempo imóvel e transportado para fora demim mesmo; depois as trevas invadiram novamente a Terra; oespaço tornou-se deserto. Quando olhei ao meu redor a mulhernão mais estava; um grande tremor agitou-me e fiquei indiferente

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ao que me cercava. Desde essa noite chamaram-me de sonhador ede louco. Oh! que doce e sublime loucura a de crer no despertar dotúmulo! Mas como é pungente e estúpida a loucura que mostra onada como única compensação de nossas misérias, como únicarecompensa às virtudes obscuras e modestas! Qual é, aqui, overdadeiro louco: o que espera, ou o que desespera?

Alfred de Musset

Após a leitura desta comunicação, Gérard de Nervaldita espontaneamente o que segue, por outro médium, o Sr. Didier:

“Meu nobre amigo Musset terminou por mim. Nós noshavíamos entendido; já que a continuação era exatamente a res-posta à primeira parte que ditei, era preciso um estilo diferente eimagens mais consoladoras.”

A PRECE

Enviada pelo Sr. Sabò30, de Bordeaux

Tempestade de paixões humanas, que abafais os bonssentimentos de que todos os Espíritos encarnados trazem umavaga intuição no fundo da consciência, quem acalmará a vossafúria? É a prece que deve proteger os homens contra o fluxo desseoceano, cujo seio encerra os monstros horrendos do orgulho, dainveja, do ódio, da hipocrisia, da mentira, da impureza, domaterialismo e das blasfêmias. O dique que lhe opondes pela preceé construído com a pedra e o cimento mais duros e, impotentespara o transpor, esses monstros se esgotam em vãos esforçoscontra ele e mergulham, sangrentos e aflitos, nas profundezasabissais. Ó prece do coração, invocação incessante da criatura aoCriador, se conhecessem tua força, quantos corações arrastadospela fraqueza teriam recorrido a ti no momento da queda! Tu és oprecioso antídoto que cura as chagas, quase sempre mortais, que a

30 N. do T.: Há três grafias na Revue: Sabò, Sabô e Sabo. Ficamos coma primeira, por ser, de todas, a mais freqüentemente citada nesta obra.

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matéria abre no Espírito, fazendo correr em suas veias o venenodas sensações brutais. Mas como é restrito o número dos que orambem! Acreditais que depois de haver consagrado grande parte dovosso tempo a recitar fórmulas que aprendestes, ou a lê-las emvossos livros, tereis merecido bastante de Deus? Desiludi-vos; aboa prece é a que parte do coração; não é prolixa; apenas, de vezem quando, deixa escapar seu grito a Deus em aspirações, emangústias e em rogativas de perdão, como a implorar que venha emnosso socorro e os Espíritos bons a levem aos pés do Pai justo,pois esse incenso é para Ele de agradável odor. Então Ele os enviaem grupos numerosos para fortalecer os que oram bem contrao Espírito do mal; assim, tornam-se fortes como rochedosinabaláveis. Vêem quebrar-se contra eles as vagas das paixõeshumanas e, como se comprazem nessa luta que os deve cumular deméritos, constroem, como a alcíone, seus ninhos em meio àstempestades.

Fénelon

Allan Kardec

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Revista EspíritaJornal de Estudos Psicológicos

ANO IV AGOSTO DE 1861 No 8

Aviso

A Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas decidiu,em sessão de 19 de julho, que tomará férias no período de 15 deagosto a 1o de outubro. Em conseqüência, as sessões serãosuspensas nesse intervalo.

Fenômenos PsicofisiológicosDAS PESSOAS QUE FALAM DE SI MESMAS NA TERCEIRA PESSOA

O jornal Siècle, de 4 de julho de 1861, cita o seguintefato, segundo o jornal do Havre:

“Acaba de morrer no hospício um homem, vitimadopor uma aberração mental das mais singulares. Era um soldado,chamava-se Pierre Valin, e havia sido ferido na cabeça na batalha deSolferino. Embora a ferida estivesse completamente cicatrizada,desde então ele se julgava morto.

“Quando lhe pediam notícias da saúde, respondia:‘Quereis saber como vai Pierre Valin? Pobre rapaz! Foi morto com

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um tiro na cabeça em Solferino. O que vedes aqui não é Valin; éuma máquina que fizeram à sua semelhança, mas muito malfeita.Deveríeis pedir para que fizessem outra.’

“Ao falar de si mesmo, jamais dizia eu ou a mim, maseste. Freqüentemente caía em completo estado de imobilidade e deinsensibilidade, que durava vários dias. Aplicados contra essaafecção, os cataplasmas e vesicatórios jamais produziram o menorsinal de dor. Muitas vezes exploraram a sensibilidade da pele dessehomem, beliscando-lhe os braços e pernas, sem que manifestasse omais leve sofrimento.

“Para assegurar-se de que não dissimulava, o médicomandava picá-lo nas costas, enquanto conversavam com ele. Odoente nada percebia. Muitas vezes, Pierre Valin recusavaalimentar-se, dizendo que isto não era necessário; que, aliás, isto nãotinha ventre, etc.

“O fato, ademais, não é o único do gênero. Um outrosoldado, igualmente ferido na cabeça, falava sempre na terceirapessoa e no feminino. Exclamava: ‘Ah! como ela sofre! Ela está commuita sede, etc.’ Inicialmente fizeram com que percebesse o erro eele concordou, bastante surpreendido, embora continuasse areincidir no mesmo erro, de tal sorte que nos últimos tempos desua vida só assim se exprimia.

“Um zuavo, também em conseqüência de umferimento na cabeça, não obstante perfeitamente curado, haviaperdido a memória dos substantivos. Sargento instrutor, postosoubesse muito bem o nome dos soldados de seu esquadrão, só osdesignava por estas palavras: ‘O morenão, o castanhozinho, etc’Para comandar, servia-se de perífrases, quando se tratava dedesignar o fuzil ou o sabre, etc. Foram forçados a mandá-lo paracasa.

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“Os últimos anos do célebre médico Baudelocqueofereceram o exemplo de uma lesão análoga, porém menosmarcante. Lembrava-se muito do que houvera feito quando gozavasaúde; reconhecia pela voz os que vinham vê-lo, embora acometidode cegueira; mas não tinha a mínima consciência de sua existência.Se lhe perguntassem, por exemplo: Como vai a cabeça? elerespondia: ‘Não tenho cabeça.’ Se lhe pedissem o braço para lhetomar o pulso, respondia não saber onde ele estava. Um dia quis elepróprio apalpar o pulso; puseram-lhe a mão direita sobre o punhoesquerdo; a seguir perguntou se era mesmo a sua mão que sentia,após o que se julgou muito saudável pela pulsação.”

A cada passo a fisiologia nos oferece fenômenos queparecem anomalias e ante os quais ela fica muda. Por que isto? Já odissemos, e nunca seria demais repetir: é que ela pretende referirtudo ao elemento material, sem levar na menor conta o elementoespiritual. Enquanto se obstinar nessa via restritiva, será impotentepara resolver os mil e um problemas que surgem a cada instantesob o seu escalpelo, como a lhe dizer: “Bem vês que existe algoalém da matéria; apenas, com ela, não podes explicar tudo.” E aquinão falamos unicamente de alguns fenômenos bizarros, quepoderiam pegá-la desprevenida, mas dos mais vulgares efeitos. Teráela pelo menos se dado conta dos sonhos? Não falamos sequer dossonhos reais, desses que são percepções reais das coisas ausentes,presentes ou futuras, mas simplesmente dos sonhos fantásticos oudas recordações. A fisiologia explica como se produzem essasimagens tão claras e tão nítidas que por vezes nos aparecem? Qualo espelho mágico que, assim, conserva a imagem das coisas? Nosonambulismo natural, que ninguém contesta, ela explica de ondevem essa estranha faculdade de ver sem o auxílio dos olhos? Nãode ver vagamente, mas nos mínimos detalhes, a ponto de se poderfazer com precisão e regularidade trabalhos que, em estado normal,exigiriam uma visão aguçada? Existe, pois, em nós, alguma coisaque vê independentemente dos olhos. Nesse estado, não apenas osensitivo age, mas pensa, calcula, combina, prevê e se entrega atrabalhos de inteligência de que é incapaz no estado de vigília e do

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qual não conserva a menor lembrança. Há, portanto, algo quepensa e que não depende da matéria. O que é esse algo? Aí ela sedetém. Entretanto, tais fatos não são raros. Mais de um sábio iráaos antípodas para ver e calcular um eclipse, ao passo que não vaià casa do vizinho para observar um fenômeno da alma. São muitonumerosos os fatos naturais e espontâneos que provam a açãoindependente de um princípio inteligente, mas esta ação ressaltaainda com mais evidência nos fenômenos magnéticos e espíritas,nos quais o isolamento desse princípio se produz, por assim dizer,à vontade.

Retornemos ao nosso assunto. Narramos um fatosemelhante na Revista de junho de 1861, a propósito da evocaçãodo marquês de Saint-Paul. Em seus últimos momentos ele diziasempre: “Ele tem sede; é preciso dar-lhe de beber. Ele tem frio; épreciso aquecê-lo. Ele sente dor em tal local, etc.” Mas quando lhediziam: Mas sois vós que tendes sede, ele respondia: Não, é ele. “Éque o eu pensante está no Espírito, e não no corpo. Já em partedesprendido, o Espírito considerava seu corpo como uma outraindividualidade que, propriamente falando, não era ele. Era, pois,ao seu corpo, a esse outro indivíduo que era preciso dar de beber,e não a ele Espírito. Assim, quando na evocação lhe fizeram estapergunta: Por que faláveis sempre na terceira pessoa? ele respondia:“Porque, como vos dissera, estava vendo e sentia nitidamente asdiferenças que existem entre o físico e o moral. Essas diferenças,ligadas entre si pelo fluido da vida, tornam-se muito distintas aosolhos dos moribundos clarividentes.

Uma causa semelhante deve ter produzido o efeitonotado nos militares a que nos referimos. Talvez digam que a feridatenha determinado uma espécie de loucura; mas o marquês deSaint-Paul não tinha recebido nenhum ferimento; tinha em estadoperfeito o raciocínio, do que estamos certos, pois fomosinformados do caso por sua irmã, membro da Sociedade. O quenele se produziu de modo espontâneo pode perfeitamente, nosoutros, ter sido determinado por uma causa acidental. Aliás, todos

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os magnetizadores sabem que é muito comum aos sonâmbulosfalarem na terceira pessoa, fazendo ainda a distinção entre apersonalidade de sua alma, ou Espírito, e o corpo.

Em estado normal as duas individualidades seconfundem e sua perfeita assimilação é necessária à harmonia dosatos da vida. Mas o princípio inteligente é como esses gases, quenão se prendem a certos corpos sólidos senão por uma coesãoefêmera, escapando ao primeiro sopro. Há sempre uma tendênciade se desembaraçar de seu fardo corpóreo, desde que deixa de agir,por uma causa qualquer, a força que mantém o equilíbrio. Só aatividade harmônica dos órgãos mantém a união íntima completa daalma e do corpo; mas, à menor suspensão dessa atividade, a almalevanta vôo. É o que acontece no sono, no quase sono, no meroentorpecimento dos sentidos, na catalepsia, na letargia, nosonambulismo natural ou magnético, no êxtase, no que se chamasonho acordado, ou segunda vista, nas inspirações do gênio e emtodas as grandes tensões do Espírito, que muitas vezes tornam ocorpo insensível. É, enfim, o que pode ocorrer como conseqüênciade certos estados patológicos. Uma porção de fenômenos moraisnão tem por causa senão a emancipação da alma. A Medicina bemque admite a influência das causas morais, mas não aceita oelemento moral como princípio ativo. Daí por que confunde essesfenômenos com a loucura orgânica, razão por que lhes aplica umtratamento puramente físico que, com muita freqüência, determinaa verdadeira loucura, onde desta só havia a aparência.

Entre os fatos citados, um há que parece muitoestranho: é o do militar que falava na terceira pessoa do feminino.Como já dissemos, o elemento primitivo do fenômeno é a distinçãodas duas personalidades em conseqüência do desprendimento doEspírito. Mas há uma outra causa, revelada pelo Espiritismo, e quedeve ser levada em consideração, porquanto pode dar às idéias umcaráter particular: é a vaga lembrança de existências anteriores que,no estado de emancipação da alma, pode despertar e permitir umolhar retrospectivo sobre alguns pontos do passado. Em tais

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condições o desprendimento da alma jamais é completo e as idéias,ressentindo-se da debilidade dos órgãos, não podem ser muitolúcidas, pois não o são inteiramente nem mesmo nos primeirosmomentos que se seguem à morte. Suponhamos que o homem doqual falamos haja sido mulher em sua precedente encarnação: aidéia que pudesse ter conservado poderia confundir-se com a deseu estado presente.

Não poderia encontrar-se nesse fato a causa primeira daidéia fixa de certos alienados que se julgam reis? Se o tiverem sidoem outra existência, pode ficar-lhes uma lembrança que lhes dê ailusão. Isto não passa de uma suposição, mas, para os neófitos noEspiritismo, não é desprovida de verossimilhança. Dir-se-á que setal causa é possível neste caso, ela não poderia aplicar-se aos que sejulgam lobos ou porcos, uma vez que se sabe que o homem jamaisfoi animal. É verdade; mas o homem pode ter estado numacondição abjeta, que o obrigasse a viver entre os animais imundosou selvagens. Aí talvez esteja a fonte dessa ilusão, que bem poderia,em alguns, ter-lhes sido imposta como punição dos atos de sua vidaatual. Quando fatos da natureza desses de que estamos falando seapresentam; se, em vez de os assimilar sistematicamente àsmoléstias puramente corporais, seguíssemos atentamente todas asfases, com o auxílio dos dados fornecidos pelas observaçõesespíritas, reconheceríamos sem dificuldade a dupla causa que lhesassinalamos, e compreenderíamos que não é com duchas,cauterizações e sangrias que podem ser remediados.

O caso do Dr. Baudelocque encontra ainda suaexplicação em causas análogas. Diz o artigo que ele não tinha amenor consciência de sua existência. Isto é um erro, porque não sejulgava morto; apenas não tinha consciência de sua existênciacorpórea. Se se achasse num estado mais ou menos semelhante aode certos Espíritos que, nos primeiros tempos após a morte, nãocrêem estar mortos e tomam o seu corpo pelo de um outro, aperturbação em que se encontram não lhes permite se dêem contada situação. O que se passa com certos desencarnados pode

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acontecer com certos encarnados. É assim que o Dr. Baudelocquepodia fazer abstração de seu corpo e dizer que não tinha maiscabeça, porque, efetivamente, o seu Espírito não mais possuíacabeça carnal. As observações espíritas oferecem numerososexemplos desse gênero, projetando, assim, uma luz inteiramentenova sobre uma infinita variedade de fenômenos até hojeinexplicados, e inexplicáveis sem as bases fornecidas peloEspiritismo.

Restaria a examinar o caso do zuavo que perdera amemória dos substantivos. Mas este só pode ser explicado porconsiderações de ordem inteiramente diversa, que pertencem aodomínio da fisiologia orgânica. Os desenvolvimentos que elecomporta nos obrigam a consagrar-lhe um artigo especial, quepublicaremos brevemente.

Manifestações Americanas

Lê-se no Banner of Light, jornal de Nova Iorque, de 18de maio de 1861:

“Pensando que os fatos seguintes são dignos deatenção, nós os reunimos para serem publicados no Banner, e osfizemos acompanhar de nossas assinaturas, a fim de lhes atestar asinceridade.

“Na manhã de quarta-feira, 1o de maio, pedimos aomédium, Sr. Say, que nos encontrasse em casa do Sr. Hallock, emNova Iorque. O médium sentou-se perto de uma mesa, sobre aqual foram colocados uma corneta de estanho, um violino e trêspedaços de corda. Os convidados estavam sentados emsemicírculo, em frente ao médium, a seis ou sete polegadas damesa; suas mãos se tocavam para dar a cada um a certeza de queninguém saía do lugar durante as experiências que vamos narrar. Aluz foi retirada e foi solicitado aos convidados que cantassem. Após

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alguns minutos, tendo sido trazida a luz, encontraram o médiumsentado em sua cadeira, com os braços cruzados, os punhosamarrados com a corda apertada, a ponto de dificultar a circulaçãoe inchar as mãos. A ponta da corda tinha passado para trás dacadeira e amarrava as pernas às travessas. Uma outra cordaamarrava os joelhos fortemente, enquanto a terceira prendia damesma maneira os tornozelos. Em tais condições, era claro que omédium não podia andar, nem se levantar, nem utilizar as mãos.

“Um membro do círculo colocou uma folha de papelno assoalho, debaixo dos pés do médium e, com um lápis, traçou-lhe o contorno dos pés. A luz foi retirada e quase imediatamente acorneta, impulsionada por uma força invisível, pôs-se a bater rápidae violentamente na mesa, de maneira a deixar uma porção de sinais.Da corneta saía uma voz que conversava com os presentes; aarticulação das palavras era muito distinta; o som era de uma vozmasculina e o tom por vezes mais alto do que na conversa normal.Uma outra voz, mais fraca, um tanto gutural e menos distinta,conversava também com a assistência. Trouxeram a luz e o médiumfoi encontrado em sua cadeira, pés e mãos atados como jáhavíamos dito e os pés sobre os papéis, dentro dos limites traçadosnas linhas feitas a lápis. Mais uma vez a luz foi retirada e a cornetarecomeçou como acima. Foi pedido novamente às pessoaspresentes que cantassem e, quase imediatamente, as manifestaçõescessaram. As experiências foram repetidas várias vezes, e em cadauma delas o médium era sempre encontrado no mesmo estado.Esta foi a primeira série de manifestações.

“Novamente a luz foi retirada, os assistentes cantarampor alguns momentos, mas, ao ser aquela trazida de volta,constatou-se que o médium estava sempre amarrado à sua cadeira.Puseram uma campainha sobre a mesa e, tendo sido feita aobscuridade, ela começou a bater na mesa, na corneta e noassoalho; foi retirada da mesa e começou a tocar muito forte,parecendo percorrer um arco de cinco a seis pés a cada badalada.Durante esse tempo, o médium exclamava: Estou aqui; estou aqui,para mostrar que se achava sempre no mesmo lugar.

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“Com fósforo, fizeram no violino uma grande marcabrilhante. A luz foi retirada e logo se viu, pelo traço fosforescente,o violino elevar-se a seis ou sete pés e fazer rápidas evoluções noar. Podia-se também acompanhá-lo pelo ouvido, porquanto ascordas vibravam no vôo. Enquanto o violino flutuava, o médiumexclamava: Estou aqui; estou aqui.

“Um membro do grupo pôs um vaso sobre a mesa,com água pela metade, e um pedaço de papel entre os lábios domédium. Levaram a luz e cantaram por alguns momentos. Trazidade volta a luz, o vaso estava vazio, sem nenhum sinal de água, nemsobre a mesa, nem no chão; o médium sempre em seu lugar e opapel seco entre os seus lábios. Isto terminou a segunda série deexperiências.

“A Sra. Spence sentou-se em frente ao médium. Umsenhor acomodou-se entre os dois, pondo o pé direito sobre odaquela senhora, a mão direita na cabeça do médium e a esquerdana cabeça da Sra. Spence. O médium pegou o braço direito dosenhor com ambas as mãos, e a Sra. Spence fez o mesmo com obraço esquerdo. Quando a luz foi retirada, o senhor sentiudistintamente os dedos de uma mão passando sobre o seu rosto elhe puxar o nariz; recebeu uma bofetada, ouvida pelos assistentes eo violino golpeou-lhe a cabeça, igualmente ouvido pelas outraspessoas. Cada um repetiu a experiência e sentiu os mesmos efeitos.Com isto termina a terceira série e certificamos que nada distopoderia ter sido produzido pelo Sr. Fay, nem por nenhuma outrapessoa do grupo.”

Charles Patridge, R. T. Hallock, Sra. Sarah P. Clark,Sra. Mary S. Hallock, Sra. Amanda, Sr. Spence, Srta. Alla Britt,

William Blondel, William P. Coles, W. B. Hallock, B. FranklinClark, Peyton Spence.

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Observação – Não contestamos a possibilidade de todasessas coisas, nem temos o menor motivo para duvidar dahonorabilidade dos signatários, embora não os conheçamos.Todavia, mantemos as reflexões que fizemos em nosso últimonúmero, a propósito dos dois artigos sobre Os desenhos misteriosos ea Exploração do Espiritismo.

Diz-se que na América essa exploração nada tem quechoque a opinião pública e acham muito natural que os médiuns sefaçam pagar. Isto é compreensível, de acordo com os hábitos deum país onde time is money; mas nem por isso deixaremos derepetir o que dissemos num outro artigo: o desinteresse absoluto éuma garantia ainda melhor que todas as precauções materiais. Senossos escritos têm contribuído, na França e em outros países, paradesacreditar a mediunidade interesseira, cremos que isto não seráum dos menores serviços que terão prestado ao Espiritismo sério.Estas reflexões gerais de modo algum foram feitas tendo em vistao Sr. Fay, cuja posição perante o público desconhecemos.

A. K.

Conversas Familiares de Além-TúmuloDOM PEYRA, PRIOR DE AMILLY

Esta evocação foi feita o ano passado, na Sociedade, apedido do Sr. Borreau, de Niort, que nos havia encaminhado aseguinte notícia:

“Há cerca de trinta anos, tínhamos no priorado deAmilly, muito perto de Mauzé, um sacerdote chamado Dom Peyra,o qual deixou na região uma reputação de feiticeiro. De fato ele seocupava constantemente de ciências ocultas. Conta-se dele coisasque parecem fabulosas, mas que, segundo a ciência espírita, bempoderiam ter sua razão de ser. Há mais ou menos doze anos, aofazer com uma sonâmbula experiências muito interessantes,

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achei-me em relação com seu Espírito. Ele se apresentou como umauxiliar, com o qual não podíamos deixar de ter êxito; entretantofracassamos. Depois, em pesquisas da mesma natureza, fui levado acrer que esse Espírito deveria ter-se interessado por isso. Se não forabusar de vossa benevolência, venho pedir que o evoqueis e lhe sejaperguntado quais foram e quais são suas relações comigo. Partindodaí, talvez um dia eu tenha coisas interessantes a vos comunicar.”

(Primeira conversa – 13 de janeiro de 1860)

1. Evocação.Resp. – Aqui estou.

2. De onde procedia a reputação de feiticeiro quetínheis em vida?

Resp. – Fofocas de comadres; eu estudava Química.

3. Qual o motivo que vos levou a entrar em contatocom o Sr. Borreau, de Niort?

Resp. – O desejo de me distrair um pouco, a propósitodo poder que ele julgava que eu tivesse.

4. Diz ele que vos apresentastes como um auxiliar emsuas pesquisas. Poderíeis dizer-nos qual era a natureza dessaspesquisas?

Resp. – Não sou bastante indiscreto para trair umsegredo que ele não julgou por bem vos revelar. Vossa pergunta meofende.

5. Não queremos insistir, mas vos faremos notar quepoderíeis ter respondido de modo mais conveniente a pessoas quevos interrogam seriamente e com benevolência. Vossa linguagemnão é a de um Espírito adiantado.

Resp. – Sou o que sempre fui.

6. De que natureza são as coisas fabulosas que contamsobre vós?

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Resp. – Como já vos disse, são fofocas. Eu conhecia aopinião que tinham de mim e, longe de tentar abafá-la, fazia o queera preciso para a favorecer.

7. Conforme a resposta precedente, parece que nãoprogredistes após a morte.

Resp. – A bem da verdade, não procurei fazê-lo, poisnão conhecia os meios. Todavia, creio que deve haver algo a fazer;há pouco pensei nisto.

8. Vossa linguagem nos surpreende, vinda da parte deum Espírito que em vida era sacerdote e que, por isto mesmo, deviater idéias de certa elevação.

Resp. – Acredito que eu fosse muito pouco instruído.

9. Tende a gentileza de desenvolver o vossopensamento.

Resp. – Pouco instruído para crer, mas bastante para saber.

10. Então não éreis o que se chama um bom padre?Resp. – Oh! não!

11. Quais as vossas ocupações como Espírito?Resp. – Sempre a Química. Creio que teria feito melhor

se procurasse Deus, em vez da matéria.

12. Como pode um Espírito ocupar-se de Química?Resp. – Oh! permiti-me dizer que a questão é pueril;

acaso terei necessidade de microscópio ou de alambique para estudaras propriedades da matéria, que sabeis tão penetrável ao Espírito?

13. Sois feliz como Espírito?Resp. – Palavra de honra! não. Creio que vos disse ter

enveredado por falsa rota e vou mudá-la, sobretudo se for bastanteventuroso para ser auxiliado; principalmente eu, que tive de rezartanto pelos outros, o que, confesso, nem sempre fiz pelo dinheirorecebido; se, digo eu, não me quiserem aplicar a pena de talião.

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14. Agradecemos por terdes vindo e faremos por vós oque não fizestes pelos outros.

Resp. – Valeis mais do que eu.

(Segunda conversa – 25 de junho de 1861)

Tendo o Sr. Borreau, por nosso intermédio, dirigidonovas perguntas ao Espírito Dom Peyra, este foi evocadonovamente, por outro medianeiro e deu as seguintes respostas, dasquais se podem extrair úteis lições, quer como estudo dasindividualidades do mundo espírita, quer como ensinamento geral.

15. Evocação.Resp. – Que quereis comigo e por que me incomodais?

16. Foi o Sr. Borreau, de Niort, que nos pediu para vosdirigir algumas perguntas.

Resp. – Que quer ainda de mim? Não está contente porme perturbar em Niort? Por que é necessário que me evoquem emParis, onde nada me atrai? Bem gostaria que ele tivesse a idéia deme deixar em paz. Ele me chama, evoca-me e me põe em contatocom sonâmbulos. Faz-me evocar por terceiros. Esse senhor émuito enfadonho.

17. Contudo deveis lembrar-vos de que já vosevocamos e que respondestes de maneira mais cortês que hoje; eaté havíamos prometido orar por vós.

Resp. – Lembro-me muito bem; mas prometer e fazersão coisas diferentes. De fato, orastes; mas, e os outros?

18. Certamente os outros também oraram. Enfim,quereis responder às perguntas do Sr. Borreau?

Resp. – Garanto-vos que, por ele, não tenho a mínimavontade de o satisfazer, porque está sempre em minhas costas.Perdoai a expressão, mas ela é verdadeira, tanto mais quanto entremim e ele não existe nenhuma afinidade; mas, para vós, quepiedosamente chamastes sobre mim a misericórdia do Alto, queroresponder o melhor que puder.

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19. Dizíeis há pouco que vos incomodavam. Poderíeisdar-nos uma explicação a respeito, para nossa instrução pessoal?

Resp. – Digo ser incomodado no sentido que chamastesa minha atenção e o meu pensamento para junto de vós, ocupando-vos de mim e vi que teria de responder ao que me perguntásseis,fosse ainda por polidez. Explico-me mal; meu pensamento estavaalhures, em meus estudos, minha ocupação habitual. Vossaevocação forçosamente atraiu-me a atenção sobre vós, sobre ascoisas terrenas. Conseqüentemente, como não estava em meuspropósitos ocupar-me de vós e da Terra, incomodaste-me.

Observação – Os Espíritos são mais ou menos comuni-cativos e comparecem mais ou menos de boa vontade, conformeseu caráter. Mas podemos estar certos de que, como os homenssérios, não gostam dos que os importunam sem necessidade.Quanto aos Espíritos levianos, é diferente: estão sempre dispos-tos a intrometer-se em tudo, mesmo quando não são chamados.

20. Quando vos pusestes em contato com o Sr.Borreau, conhecíeis suas crenças na possibilidade de fazer triunfarsuas convicções pela realização de um grande fato, ante o qual aincredulidade fosse forçada a inclinar-se?

Resp. – O Sr. Borreau queria que eu o servisse numaoperação meio magnética, meio espírita. Mas ele não tem estaturapara levar a bom termo semelhante obra e julguei que não deviaconceder-lhe o meu concurso por mais tempo. Aliás, eu o teriafeito, se pudesse. A hora, para isso, não havia chegado e ainda estápor chegar.

21. Poderíeis ver e dizer-lhe quais as causas, durantesuas pesquisas na Vendéia, que foram responsáveis pelo seufracasso, derrubando-o, e a sua sonâmbula, e mais duas outraspessoas presentes?

Resp. – Minha resposta precedente pode aplicar-se aesta pergunta. O Sr. Borreau foi derrubado pelos Espíritos, que lhequiseram dar uma lição e ensinar-lhe a não procurar o que devepermanecer oculto. Fui eu quem os empurrou, com o fluido dopróprio magnetizador.

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Observação – Esta explicação concorda perfeitamentecom a teoria que foi dada, das manifestações físicas. Não foi comas mãos que os Espíritos os empurraram, mas com o próprio fluidoanimado das pessoas, combinado com o do Espírito. A dissertaçãoque oferecemos mais adiante, sobre os transportes de objetos,contém, a respeito, desenvolvimentos do mais alto interesse. Umacomparação que talvez tivesse alguma analogia parece justificar aexpressão do Espírito.

Quando um corpo, carregado de eletricidade positiva,se aproxima de uma pessoa, esta se carrega de eletricidadecontrária; a tensão cresce até a distância explosiva; nesse ponto osdois fluidos se reúnem violentamente pela fagulha e a pessoarecebe um choque que, conforme a massa de fluido, pode derrubá-la e mesmo fulminá-la. Nesse fenômeno é sempre necessário que apessoa forneça seu contingente de fluido. Se supuséssemos que ocorpo eletrizado positivamente fosse um ser inteligente, atuandopor sua vontade e dando-se conta da operação, dir-se-ia quecombinou uma parte do fluido da pessoa com o seu. No caso doSr. Borreau, talvez as coisas não se tenham passado exatamenteassim, mas compreende-se que possa haver um efeito análogo, eque Dom Peyra foi lógico dizendo que a empurrou com seupróprio fluido. Compreender-se-á melhor ainda se se reportaremao que está dito em O Livro dos Espíritos e em O Livro dos Médiuns,sobre o fluido universal, que é o princípio do fluido vital, do fluidoelétrico e do fluido magnético animal.31

22. Ele diz ter feito, durante suas longas e dramáticasexperiências, descobertas muito mais surpreendentes para ele, doque a solução que buscava. Vós as conheceis?

31 N. do T.: O Livro dos Espíritos – perguntas 27, 27-a, 29, 65 e 94; OLivro dos Médiuns – 1a parte: capítulo I; capítulo IV, itens 74, 75, 77,79 e 81; A Gênese – capítulo XIV [Não foi citada por Kardec porquesomente publicada em 1868].

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Resp. – Sim, mas há algo que ele não descobriu: é queos Espíritos não têm por missão auxiliar os homens em pesquisassemelhantes à que ele fazia. Se o pudessem, Deus nada poderia terocultado, e os homens negligenciariam o trabalho e o exercício desuas faculdades para correr, este em busca de um tesouro, aquele deuma invenção, pedindo aos Espíritos lhes servirem tudo isto aindaquente, de tal maneira que não bastará senão curvar-se para colhera glória e a fortuna. Na verdade, teríamos muito a fazer setivéssemos de contentar a ambição de todo o mundo. Vedes, assim,quanta desordem no mundo dos Espíritos pela crença universal noEspiritismo? Seríamos chamados a torto e a direito: aqui paraescavar a terra e enriquecer um preguiçoso; ali para poupar a umimbecil o trabalho de resolver um problema; acolá para aquecer oforno de um químico e, em toda parte, para descobrir a pedrafilosofal. A mais bela descoberta que o Sr. Borreau deveria ter feitoé a de saber que sempre há Espíritos que se divertem em provocarmiragens de minas de ouro, mesmo aos olhos do mais clarividentesonâmbulo, fazendo-as aparecer onde não estão e rindo-se à vossacusta quando imaginais deitar a mão no tesouro, e isto para vosensinar que a sabedoria e o trabalho são os verdadeiros tesouros.

23. O objetivo das pesquisas do Sr. Borreau era umtesouro?

Resp. – Creio já ter dito, quando me chamastes aprimeira vez, que não sou indiscreto. Se ele julgou conveniente nãovos dizer, não me compete fazê-lo.

Observação – Vê-se que o Espírito é discreto; aliás, éuma qualidade geralmente encontrada em todos eles, até mesmonos Espíritos pouco adiantados, de onde se pode concluir que, seum Espírito fizesse revelações indiscretas sobre alguém, com todaprobabilidade seria para se divertir e seria erro levá-los a sério.

24. Poderíeis dar-lhe algumas explicações sobre a mãoinvisível que, por muito tempo, traçou numerosos escritos, queele encontrava nas folhas do caderno, posto de propósito para osreceber?

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Resp. – Quanto aos escritos, não são dos Espíritos; maistarde ele lhes conhecerá a origem, mas não devo dizê-lo nomomento. Os Espíritos podem tê-los provocado com o fim a quejá me referi antes, mas – repito – nada têm a ver com eles.

Observação – Embora estas duas conversas tenhamocorrido dezoito meses uma da outra e por médiuns diferentes,reconhece-se nelas um encadeamento, uma seqüência e umasimilitude de linguagem que não permitem duvidar tenha sido omesmo Espírito que as respondeu. A propósito da identidade, estaressalta da carta seguinte, que nos escreveu o Sr. Borreau, após aremessa da segunda evocação.

“18 de julho de 1861.

“Senhor,

“Venho agradecer-vos o trabalho que tivestes e apresteza em me remeter a última evocação de Dom Peyra. Comodizeis, o Espírito do antigo prior não estava de bom humor, aoexprimir, energicamente, a impaciência que lhe causou essa novadiligência. Daí resulta, senhor, um grande ensinamento: osEspíritos que fazem o jogo malévolo de nos atormentar podem,por sua vez, ser pagos por nós com a mesma moeda.

“Ah! senhores de além-túmulo! – e aqui não me refirosenão aos Espíritos farsistas e levianos – sem dúvida vos deleitaríeiscom o privilégio exclusivo de nos importunar. E eis que um pobreEspírito terreno, muito pacífico, simplesmente pondo-se em guardacontra vossas manobras e procurando frustrá-las, vos atormenta aponto de o sentirdes penosamente sobre o vosso dorso fluídico!Ora! que direi, então, meu caro prior, quando confessais ter feitoparte da turba espírita que tão cruelmente me obsidiou e pregoutantas peças durante minhas excursões na Vendéia? Se é verdadeque vos metestes nisto, devíeis saber que não as empreendi senãocom o objetivo de fazer triunfar a verdade por fatos irrefutáveis.Era uma grande ambição, sem dúvida, mas era honesta, ao que me

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parece; apenas, como dizeis, eu não tinha porte para lutar e vós eos vossos nos abalaram, de tal sorte que nos vimos obrigados aabandonar a partida, carregando nossos mortos, porquanto vossasmanobras fantásticas, que desencadearam terrível luta, acabaramaniquilando minha pobre sonâmbula que, num desfalecimento quenão durou menos de seis horas, não mais dava nenhum sinal devida e nós já a julgávamos morta. Talvez nossa posição seja maisfácil de compreender do que descrever, se se pensar que era meia-noite e que estávamos em campos ensangüentados pelas guerras daVendéia, região de aspecto selvagem, cercada de colinasdesprovidas de vegetação, cujos ecos vinham repetir os gritoslancinantes das vítimas. Meu pavor atingira o cúmulo, pensando naterrível responsabilidade que caía sobre mim e da qual não sabiacomo escapar... Eu estava desvairado! Só a prece poderia salvar-me;ela me salvou. Se a isto chamais lições, haveis de convir que sãorudes! Provavelmente, era ainda para me dar uma dessas lições que,um ano mais tarde, me chamáveis a Mauzé; mas, então, eu estavamais instruído e já sabia a quem me dirigir quanto à existência dosEspíritos e quanto aos atos e gestos de muitos deles. Aliás, a cenanão estava mais preparada para um drama, como em Châtillon;assim, eu estava livre para uma escaramuça.

“Perdão, senhor, se me deixei arrastar com o prior.Retorno a vós para vos ocupar ainda, se vos dignardes permiti-lo.Há poucos dias fui à casa de um homem muito honrado, que oconheceu bastante na juventude e lhe comuniquei sobre a evocaçãoque me remetestes. Ele reconheceu perfeitamente a linguagem, oestilo e o espírito cáustico do antigo prior e contou-me os fatosseguintes:

“Vendo-se forçado a abandonar o priorado de Surgèresem conseqüência da Revolução, Dom Peyra comprou a pequenapropriedade de Amilly, perto de Mauzé, onde fixou residência. Aliele se tornou conhecido pelas belas curas obtidas por intermédiodo magnetismo e da eletricidade, que empregava com sucesso.Vendo, porém, que os negócios não iam tão bem quanto desejava,empregou o charlatanismo e, auxiliado por sua máquina elétrica,

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praticou magias, não tardando a fazer-se passar por feiticeiro.Longe de combater tal opinião, ele a provocava e estimulava. Haviaem Amilly uma longa alameda arborizada, por onde chegavam osclientes, vindos muitas vezes de dez a quinze léguas. Sua máquinaera posta em comunicação com o malhete da porta, e quando ospobres camponeses queriam bater, sentiam-se como quefulminados. É fácil imaginar o que semelhantes fatos deviamproduzir em criaturas pouco esclarecidas, sobretudo naquela época.

“Temos um provérbio que diz: ‘não se deve vender apele do lobo antes de o matar.’ Ai! bem vejo que temos de mudarmais de uma vez antes que os nossos maus instintos nosabandonem. Entretanto, senhor, não concluais que eu deseje malao prior. Não; e a prova de tudo isto é que, seguindo o vossoexemplo, orei por ele, o que confesso, como ele vos disse, não terfeito até então.

“Aceitai.J.-B. Borreau”

Notar-se-á que esta carta é de 18 de julho de 1861,enquanto a primeira evocação remonta ao mês de janeiro de 1860.Naquela época não conhecíamos todas as particularidades da vidade Dom Peyra, com as quais suas respostas concordamperfeitamente, pois diz que fazia o que era possível para corroborarsua reputação de feiticeiro.

O que aconteceu ao Sr. Borreau tem uma singularanalogia com os golpes baixos que, em vida, Dom Peyra aplicavaaos visitantes. E nos inclinaríamos muito a crer que este último quisrepeti-las. Ora, para isso não havia necessidade de máquina elétrica,já que dispunha da grande máquina universal. Compreender-se-á asua possibilidade se associarmos essa idéia à observação quefizemos acima, na pergunta 21. O Sr. Borreau encontra umaespécie de compensação às malícias de certos Espíritos nosaborrecimentos que lhes podemos causar. Todavia, nós oaconselhamos a não se fiar muito, porque eles têm mais meio de

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escapar à nossa influência do que nós de nos subtrairmos à deles.Quanto ao mais, é evidente que, se na época o Sr. Borreauconhecesse a fundo o Espiritismo, por certo teria sabido o que erarazoável pedir aos Espíritos e não se teria aventurado em tentativasque a Ciência demonstraria não conduzir senão a uma mistificação.Não é o primeiro a pagar pelas conseqüências de suaimprevidência. Eis por que não cessamos de repetir: Estudaiprimeiro a teoria; ela vos ensinará todas as dificuldades da prática;assim, evitareis experiências das quais vos sentireis felizes em delassair apenas com alguns dissabores. Diz ele que sua intenção eraboa, pois queria provar por um grande fato a veracidade doEspiritismo. Mas, em casos semelhantes, os Espíritos dão as provasque querem e quando querem, e jamais quando se lhas pedem.Conhecemos pessoas que também queriam dar essas provasirrecusáveis através da descoberta de fortunas colossais, porintermédio dos Espíritos; mas o que lhes resultou de mais claro foigastar o seu dinheiro. Acrescentaremos, até, que provassemelhantes, se por acaso dessem resultado, seriam muito maisprejudiciais que úteis, porque falseariam a opinião sobre o objetivodo Espiritismo, validando a crença de que ele pode servir de meiode adivinhação; só então se justificaria a resposta de Dom Peyra àpergunta 22.

CorrespondênciaCARTA DO SR. MATEUS SOBRE OS MÉDIUNS TRAPACEIROS

32

“Paris, 21 de julho de 1861.

“Senhor,

“Pode-se estar em desacordo sobre certos pontos e deperfeito acordo sobre outros. Acabo de ler, na página 213 doúltimo número do vosso jornal, algumas reflexões acerca da fraude

32 N. do T.: Vide O Livro dos Médiuns – 2a parte, capítulo XXVIII, item317.

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em matéria de experiências espiritualistas (ou espíritas), às quaistenho a satisfação de me associar com todas as minhas forças. Aí,quaisquer dissidências a propósito de teorias e doutrinasdesaparecem como por encanto.

“Não sou talvez tão severo quanto o sois, com relaçãoaos médiuns que, sob forma digna e decente, aceitam uma paga,como indenização do tempo que consagram a experiências muitasvezes longas e fatigantes. Sou, porém, tanto quanto o sois – eninguém o seria mais – com relação aos que, em tal caso, suprem,quando se lhes oferece ocasião, pelo embuste e pela fraude, a faltaou a insuficiência dos resultados prometidos e esperados.

“Misturar o falso com o verdadeiro, quando se trata defenômenos obtidos pela intervenção dos Espíritos, é simplesmenteuma infâmia e haveria obliteração do senso moral no médium quejulgasse poder fazê-lo sem escrúpulo. Conforme o observastes comperfeita exatidão – é lançar a coisa em descrédito no espírito dosindecisos, desde que a fraude seja reconhecida. Acrescentarei que écomprometer do modo mais deplorável os homens honrados,que prestam aos médiuns o apoio desinteressado de seusconhecimentos e de suas luzes, que se constituem fiadores da boa-fé que neles deve existir e os patrocinam de alguma forma. Écometer para com eles uma verdadeira prevaricação.

“Todo médium que fosse apanhado em manobrasfraudulentas; que fosse apanhado, para me servir de uma expressãoum tanto trivial, com a boca na botija, mereceria ser proscrito portodos os espiritualistas ou espíritas do mundo, para os quaisconstituiria rigoroso dever desmascará-los ou infamá-los.

“Se vos convier, Senhor, inserir estas breves linhas novosso jornal, ficam elas à vossa disposição.

“Aceitai, etc.Mathieu”

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Não esperávamos menos dos sentimentos honradosque distinguem o Sr. Mathieu, senão esta enérgica reprovação,pronunciada contra os médiuns de má-fé. Teríamos ficadosurpresos, ao contrário, se ele tivesse encarado com frieza eindiferença tais abusos de confiança. Eles podiam ser mais fáceis,quando o Espiritismo era menos conhecido; mas, à medida queesta ciência se espalha e é mais bem compreendida, que melhor seconhecem as verdadeiras condições em que os fenômenos podemproduzir-se, por toda parte encontram-se olhos clarividentes,capazes de descobrir a fraude. Assinalá-la, onde quer que ela semostre, é o melhor meio de a desencorajar.

Disseram que era preferível não desvendar essastorpezas, no próprio interesse do Espiritismo; que a possibilidadede enganar poderia aumentar a desconfiança dos indecisos. Nãosomos desta opinião e pensamos que mais vale que os indecisossejam desconfiados do que enganados, porque, desde quesoubessem tê-lo sido, poderiam afastar-se para sempre. Aliás,haveria um inconveniente ainda maior aos que cressem que osespíritas se deixam iludir facilmente. Ao contrário, estarão tantomais dispostos a crer quanto mais virem os crentes cercar-se demaiores precauções e repudiar os médiuns susceptíveis de enganar.

O Sr. Mathieu diz que talvez não seja tão severo, quantonós, em relação aos médiuns que, sob forma digna e decente,aceitam uma paga, como indenização do tempo que consagram àmatéria. Estamos perfeitamente de acordo que pode e deve haverhonrosas exceções, mas, como o atrativo do ganho é uma grandetentação e os iniciantes não têm a necessária experiência paradistinguir o verdadeiro do falso, mantemos nossa opinião de que amelhor garantia de sinceridade está no desinteresse absoluto,porque onde não há nada a ganhar, o charlatanismo nada tem afazer. Aquele que paga quer alguma coisa por seu dinheiro e não secontentaria se lhe dissessem que o Espírito não quer agir. Daí adescoberta dos meios de fazer o Espírito atuar a qualquer preço,

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não há senão um passo, conforme o provérbio: quem não tem cãocaça com gato. Acrescentamos que os médiuns ganhariam cem vezesmais em consideração o que deixassem de ganhar em proveitosmateriais. Diz-se que a consideração não faz viver. É verdade quenão basta, mas, para viver, há outros ofícios mais honestos do quea exploração das almas dos mortos.

Dissertações e Ensinos EspíritasDA INFLUÊNCIA MORAL DOS MÉDIUNS NAS COMUNICAÇÕES

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(Sociedade Espírita de Paris – Médium: Sr. d’Ambel)

Já o dissemos: apenas como tais, os médiuns só muitosecundária influência exercem nas comunicações dos Espíritos; opapel deles é o de uma máquina elétrica, que transmite osdespachos telegráficos, de um ponto da Terra a outro pontodistante. Assim, quando queremos ditar uma comunicação, agimossobre o médium, como o empregado do telégrafo sobre o aparelho,isto é, do mesmo modo que o tique-taque do telégrafo traça, amilhares de léguas, sobre uma tira de papel, os sinais reprodutoresdo despacho, também nós comunicamos, por meio do aparelhomediúnico, através das distâncias incomensuráveis que separam omundo visível do mundo invisível, o mundo imaterial do mundocarnal, o que vos queremos ensinar. Mas, assim como as influênciasatmosféricas atuam, perturbando, muitas vezes, as transmissões dotelégrafo elétrico, igualmente a influência moral do médium atua eperturba, às vezes, a transmissão dos nossos despachos de além-túmulo, porque somos obrigados a fazê-los passar por um meioque lhes é contrário. Entretanto, essa influência, amiúde, se anula,pela nossa energia e vontade, e nenhum ato perturbador semanifesta. Com efeito, os ditados de alto alcance filosófico, ascomunicações de perfeita moralidade são transmitidas fre-qüentemente por médiuns impróprios a esses ensinos superiores;

33 N. do T.: Vide O Livro dos Médiuns – 2a parte, capítulo XX, item 230.

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enquanto que, por outro lado, comunicações pouco edificanteschegam também, algumas vezes, por médiuns que se envergonhamde lhes haverem servido de condutores.

Em tese geral, pode afirmar-se que os Espíritos atraemEspíritos que lhes são similares e que raramente os Espíritos dasplêiades elevadas se comunicam por aparelhos maus condutores,quando têm à mão bons aparelhos mediúnicos, bons médiuns,numa palavra.

Os médiuns levianos e pouco sérios atraem, pois,Espíritos da mesma natureza; por isso é que suas comunicações semostram cheias de banalidades, frivolidades, idéias truncadas e, nãoraro, muito heterodoxas, espiriticamente falando. É certo que elespodem dizer, e às vezes dizem, coisas aproveitáveis; mas, nessecaso, principalmente, é que um exame severo e escrupuloso se faznecessário, porquanto, em meio a coisas aproveitáveis, Espíritoshipócritas insinuam, com habilidade e preconcebida perfídia, fatosde pura invencionice, asserções mentirosas, a fim de iludir a boa-fédos que lhes dispensam atenção. Devem riscar-se, então, sempiedade, toda palavra, toda frase equívoca e só con-servar do ditadoo que a lógica possa aceitar, ou o que a Doutrina já ensinou. Ascomunicações desta natureza só são de temer para os espíritas quetrabalham isolados, para os grupos novos, ou pouco esclarecidos,visto que, nas reuniões onde os adeptos estão adiantados ejá adquiriram experiências, a gralha perde o seu tempo a seadornar com as penas do pavão: acaba sempre impiedosamentedesmascarada.

Não falarei dos médiuns que se comprazem em solicitare receber comunicações obscenas. Deixemos se deleitem nacompanhia dos Espíritos cínicos. Aliás, os autores dascomunicações desta ordem buscam, por si mesmos, a solidão e oisolamento, porquanto só desprezo e nojo poderão causar entre osmembros dos grupos filosóficos e sérios. Onde, porém, a

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influência moral do médium se faz realmente sentir, é quando elesubstitui, pelas que lhe são pessoais, as idéias que os Espíritos seesforçam por lhe sugerir e também quando tira da sua imaginaçãoteorias fantásticas que, de boa-fé, julga resultarem de umacomunicação intuitiva. É de apostar-se então mil contra um queisso não passa de reflexo do próprio Espírito do médium. Dá-semesmo o fato curioso de mover-se a mão do médium, quasemecanicamente às vezes, impelida por um Espírito secundário ezombeteiro. É essa a pedra de toque contra a qual vêm quebrar-seas imaginações ardentes, por isso que, arrebatados pelo ímpeto desuas próprias idéias, pelas lentejoulas de seus conhecimentosliterários, os médiuns desconhecem o ditado modesto de umEspírito criterioso e, abandonando a presa pela sombra, osubstituem por uma paráfrase empolada. Contra este escolhoterrível vêm igualmente chocar-se as personalidades ambiciosasque, em falta das comunicações que os Espíritos bons lhesrecusam, apresentam suas próprias obras como sendo dessesEspíritos. Daí a necessidade de serem, os diretores dos gruposespíritas, dotados de fino tato, de rara sagacidade, para discernir ascomunicações autênticas das que não o são e para não ferir os quese iludem a si mesmos.

Na dúvida, abstém-te, diz um dos vossos velhosprovérbios. Não admitais, portanto, senão o que seja, aos vossosolhos, de manifesta evidência. Desde que uma opinião nova venhaa ser expendida, por pouco que vos pareça duvidosa, fazei-a passarpelo crisol da razão e da lógica e rejeitai desassombradamente o quea razão e o bom-senso reprovarem. Melhor é repelir dez verdadesdo que admitir uma única falsidade, uma só teoria errônea.Efetivamente, sobre essa teoria poderíeis edificar um sistemacompleto, que desmoronaria ao primeiro sopro da verdade, comoum monumento edificado sobre areia movediça, ao passo que, serejeitardes hoje algumas verdades, porque não vos sãodemonstradas clara e logicamente, mais tarde um fato brutal, ouuma demonstração irrefutável virá afirmar-vos a sua autenticidade.

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Lembrai-vos, no entanto, ó espíritas! de que, para Deuse para os Espíritos bons, só há um impossível: a injustiça e ainiqüidade.

O Espiritismo já está bastante espalhado entre oshomens e já moralizou suficientemente os adeptos sinceros da suasanta doutrina, para que os Espíritos já não se vejam constrangidosa usar de maus instrumentos, de médiuns imperfeitos. Se, pois, agora,um médium, qualquer que ele seja, se tornar objeto de legítimasuspeição, pelo seu proceder, pelos seus costumes, pelo seu orgulho,pela sua falta de amor e de caridade, repeli, repeli suas comunicações,porquanto aí estará uma serpente oculta entre as ervas. É esta aconclusão a que chego sobre a influência moral dos médiuns.

Erasto

DOS TRANSPORTES E OUTROS FENÔMENOS TANGÍVEIS34

(Sociedade Espírita de Paris – Médium: Sr. d’Ambel)

Quem deseja obter fenômeno desta ordem precisater consigo médiuns a que chamarei – sensitivos, isto é, dotados, nomais alto grau, das faculdades mediúnicas de expansão e depenetrabilidade, porque o sistema nervoso facilmente excitável detais médiuns lhes permite, por meio de certas vibrações, projetarabundantemente, em torno de si, o fluído animalizado que lhes épróprio.

As naturezas impressionáveis, as pessoas cujos nervosvibram à menor impressão, à mais insignificante sensação; as quea influência moral ou física, interna ou externa, sensibiliza sãomuito aptas a se tornarem excelentes médiuns, para os efeitosfísicos de tangibilidade e de transportes. Efetivamente, quase detodo desprovido do invólucro refratário, que, na maioria dosoutros encarnados, o isola, o sistema nervoso dessas pessoas ascapacita para a produção destes diversos fenômenos. Assim, com

34 N. do T.: Vide O Livro dos Médiuns, 2a parte, capítulo V, item 98.

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um indivíduo de tal natureza e cujas outras faculdades não sejamhostis à mediunidade, facilmente se obterão os fenômenos detangibilidade, as pancadas nas paredes e nos móveis, osmovimentos inteligentes e mesmo a suspensão, no espaço, da maispesada matéria inerte. A fortiori, os mesmos resultados seconseguirão se, em vez de um médium, o experimentadordispuser de muitos, igualmente bem dotados.

Mas, da produção de tais fenômenos à obtenção dos detransporte há um mundo de permeio, porquanto, neste caso, não sóo trabalho do Espírito é mais complexo, mais difícil, como,sobretudo, ele não pode operar, senão por meio de um únicoaparelho mediúnico, isto é, muitos médiuns não podem concorrersimultaneamente para a produção do mesmo fenômeno. Sucede atéque, ao contrário, a presença de algumas pessoas antipáticas aoEspírito que opera lhe obsta radicalmente a operação. A estesmotivos a que, como vedes, não falta importância, acrescentemosque os transportes reclamam sempre maior concentração e, aomesmo tempo, maior difusão de certos fluidos, que não podem serobtidos senão com médiuns superiormente dotados, com aqueles,numa palavra, cujo aparelho eletromediúnico é o que melhorescondições oferece.

Em geral, os fatos de transporte são e continuarão a serextremamente raros. Não preciso demonstrar por que são e serãomenos freqüentes do que os outros fenômenos de tangibilidade; doque digo, vós mesmos podeis deduzi-lo. Demais, estes fenômenossão de tal natureza, que nem todos os médiuns servem paraproduzi-los. Com efeito, é necessário que entre o Espírito e omédium influenciado exista certa afinidade, certa analogia: certasemelhança capaz de permitir que a parte expansível do fluidoperispirítico35 do encarnado se misture, se una, se combine com o do

35 Vê-se que, quando se trata de exprimir uma idéia nova, para a qualfaltam termos na língua, os Espíritos sabem perfeitamente criarneologismos. Estas palavras: eletromediúnico, perispirítico, não são deinvenção nossa. Os que nos têm criticado por havermos criado ostermos espírita, Espiritismo, perispírito, que não tinham análogos,poderão fazer também a mesma crítica aos Espíritos.

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Espírito que queira fazer um transporte. Deve ser tal essa fusão,que a força resultante dela se torne, por assim dizer, uma: domesmo modo que, atuando sobre o carvão, uma corrente elétricaproduz um só foco, uma só claridade.

Por que essa união, essa fusão, perguntareis? É que,para que estes fenômenos se produzam, necessário se faz que aspropriedades essenciais do Espírito motor se aumentem comalgumas das do médium; é que o fluido vital, indispensável àprodução de todos os fenômenos mediúnicos, é apanágio exclusivodo encarnado e que, por conseguinte, o Espírito operador ficaobrigado a se impregnar dele. Só então pode, mediante certaspropriedades, que desconheceis, do vosso meio ambiente, isolar,tornar invisíveis e fazer que se movam alguns objetos materiais emesmo os encarnados.

Não me é permitido, por enquanto, desvendar-vos asleis particulares que governam os gases e os fluidos que voscercam; mas, antes que alguns anos tenham decorrido, antes queuma existência de homem se tenha esgotado, a explicação destasleis e destes fenômenos vos será revelada e vereis surgir e produzir-se uma variedade nova de médiuns, que agirão num estadocataléptico especial, desde que sejam mediunizados.

Vedes, assim, quantas dificuldades cercam a produçãodo fenômeno dos transportes. Muito logicamente podeis concluirdaí que os fenômenos desta natureza são extremamente raros, ecom tanto mais razão, quanto os Espíritos muito pouco se prestama produzi-los, porque isso dá lugar, da parte deles, a um trabalhoquase material, o que lhes acarreta aborrecimento e fadiga. Poroutro lado, ocorre também que, freqüentemente, não obstante aenergia e a vontade que os animem, o estado do próprio médiumlhes opõe intransponível barreira.

Evidente é, pois, e o vosso raciocínio, estou certo, osancionará, que os fatos de tangibilidade, como pancadas,

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suspensão e movimentos, são fenômenos simples, que se operammediante a concentração e a dilatação de certos fluidos e quepodem ser provocados e obtidos pela vontade e pelo trabalho dosmédiuns aptos a isso, quando secundados por Espíritos amigos ebenevolentes, ao passo que os fatos de transporte são múltiplos,complexos, exigem um concurso de circunstâncias especiais, não sepodem operar senão por um único Espírito e um único médium enecessitam, além do que a tangibilidade reclama, uma combinaçãomuito especial, para isolar e tornar invisíveis o objeto, ou os objetosdestinados ao transporte.

Todos vós espíritas compreendeis as minhasexplicações e perfeitamente apreendeis que seja essa concentraçãode fluidos especiais, para a locomoção e a tactilidade da matériainerte. Acreditais nisso, como acreditais nos fenômenos daeletricidade e do magnetismo, com os quais os fatos mediúnicostêm grande analogia e de que são, por assim dizer, a confirmação eo desenvolvimento. Quanto aos incrédulos, não me competeconvencê-los e com eles não me ocupo. Convencer-se-ão um dia,por força da evidência, pois que forçoso será se curvem diante dotestemunho dos fatos espíritas, como forçoso foi que o fizessemdiante de outros fatos, que a princípio repeliram.

Resumindo: os fenômenos de tangibilidade sãofreqüentes, mas os de transporte são muito raros, porque muitodifíceis de se realizar são as condições em que se produzem.Conseguintemente, nenhum médium pode dizer: a tal hora, em talmomento, obterei um transporte, visto que muitas vezes o próprioEspírito se vê obstado na execução de sua obra. Devo acrescentarque esses fenômenos são duplamente difíceis em público, porqueneste quase sempre se encontram elementos energicamenterefratários, que paralisam os esforços do Espírito e, com mais forterazão, a ação do médium. Tende, ao contrário, como certo que, naintimidade, os ditos fenômenos se produzem quase sempreespontaneamente, as mais das vezes à revelia dos médiuns e sem

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premeditação, sendo muito raros quando esses se achamprevenidos. Deveis deduzir daí que há motivo de suspeição todasas vezes que um médium se lisonjeia de os obter à vontade, ou, poroutra, de dar ordens aos Espíritos, como a servos seus, o que ésimplesmente absurdo. Tende ainda como regra geral que osfenômenos espíritas não se produzem para constituir espetáculo epara divertir os curiosos. Se alguns Espíritos se prestam a taiscoisas, só pode ser para a produção de fenômenos simples, nãopara os que, como os de transporte e outros semelhantes, exigemcondições excepcionais.

Lembrai-vos, espíritas, de que, se é absurdo repelirsistematicamente todos os fenômenos de além-túmulo, tambémnão é de bom aviso aceitá-los todos, cegamente. Quando umfenômeno de tangibilidade, de visibilidade, ou de transporte seopera espontaneamente e de modo instantâneo, aceitai-o. Porém –nunca o repetirei demasiado – não aceiteis coisa alguma às cegas.Seja cada fato submetido a um exame minucioso, aprofundado esevero, porquanto, crede, o Espiritismo, tão rico em fenômenossublimes e grandiosos, nada tem a ganhar com essas pequenasmanifestações, que prestidigitadores hábeis podem imitar.

Bem sei que ides dizer: é que estes são úteis paraconvencer os incrédulos. Mas, ficai sabendo, se não houvésseisdisposto de outros meios de convicção, não contaríeis hoje acentésima parte dos espíritas que existem. Falai ao coração; por aíé que fareis maior número de conversões sérias. Se julgardesconveniente, para certas pessoas, valer-vos dos fatos materiais, aomenos apresentai-os em circunstâncias tais, que não possampermitir nenhuma interpretação falsa e, sobretudo, não vos afasteisdas condições normais dos mesmos fatos, porque, apresentadosem más condições, eles fornecem argumentos aos incrédulos, emvez de convencê-los.

Erasto

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OS ANIMAIS MÉDIUNS36, 37

(Sociedade Espírita de Paris – Médium: Sr. d’Ambel)

Explanarei hoje a questão da mediunidade dos animais,levantada e sustentada por um dos vossos mais fervorosos adeptos.Pretende ele, em virtude deste axioma: Quem pode o mais pode omenos, que podemos mediunizar os pássaros e os outros animais eservir-nos deles nas nossas comunicações com a espécie humana.É o que chamais, em filosofia, ou, antes, em lógica, pura esimplesmente um sofisma. “Podeis animar, diz ele, a matéria inerte,isto é, uma mesa, uma cadeira, um piano; a fortiori, deveis poderanimar a matéria já animada e particularmente pássaros.” Pois bem!no estado normal do Espiritismo, não é assim, não pode ser assim.

Primeiramente, entendamo-nos bem acerca dos fatos.Que é um médium? É o ser, é o indivíduo que serve de traço deunião aos Espíritos, para que estes possam comunicar-se facilmentecom os homens: Espíritos encarnados. Por conseguinte, semmédium, não há comunicações tangíveis, mentais, escritas, físicas,de qualquer natureza que seja.

Há um princípio que, estou certo, todos os espíritasadmitem, é que os semelhantes atuam com seus semelhantes ecomo seus semelhantes. Ora, quais são os semelhantes dosEspíritos, senão os Espíritos, encarnados ou não? Será preciso quevo-lo repitamos incessantemente? Pois bem! repeti-lo-ei ainda: ovosso perispírito e o nosso procedem do mesmo meio, são denatureza idêntica, são, numa palavra, semelhantes. Possuem umapropriedade de assimilação mais ou menos desenvolvida, demagnetização mais ou menos vigorosa, que nos permite a nós,Espíritos desencarnados e encarnados, pormo-nos muito pronta efacilmente em comunicação. Enfim, o que é peculiar aos médiuns,o que é da essência mesma da individualidade deles, é uma

36 N. do T.: Vide O Livro dos Médiuns, 2a parte, capítulo XXII, item 236.37 Nota da Editora: Ver “Nota Explicativa”, p. 567.

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afinidade especial e, ao mesmo tempo, uma força de expansãoparticular, que lhes suprimem toda refratariedade e estabelecem,entre eles e nós, uma espécie de corrente, uma espécie de fusão, quenos facilita as comunicações. É, em suma, essa refratariedade damatéria que se opõe ao desenvolvimento da mediunidade, na maiorparte dos que não são médiuns. Acrescentarei que é a essaqualidade refratária que deve ser atribuída a particularidade, que fazque certos indivíduos, não médiuns, transmitam e desenvolvam amediunidade, pelo simples contato, a médiuns neófitos ou médiunsquase passivos, isto é, desprovidos de certas qualidades mediúnicas.

Os homens se mostram sempre propensos a tudoexagerar; uns – não falo aqui dos materialistas – negam alma aosanimais, outros de boa mente lhes atribuem uma, igual, por assimdizer, à nossa. Por que hão de pretender deste modo confundir operfectível com o imperfectível? Não, não, convencei-vos, o fogoque anima os irracionais, o sopro que os faz agir, mover e falar nalinguagem que lhes é própria, não tem, quanto ao presente,nenhuma aptidão para se mesclar, unir, fundir com o sopro divino,a alma etérea, o Espírito em uma palavra, que anima o seressencialmente perfectível: o homem, o rei da Criação. Ora, não éessa condição fundamental de perfectibilidade o que constitui asuperioridade da espécie humana sobre as outras espéciesterrestres? Reconhecei, então, que não se pode assimilar aohomem, que só ele é perfectível em si mesmo e nas suas obras,nenhum indivíduo das outras raças que vivem na Terra.

O cão que, pela sua inteligência superior entre osanimais, se tornou o amigo e o comensal do homem, será perfectívelpor si mesmo, por sua iniciativa pessoal? Ninguém ousaria afirmá-lo, porquanto o cão não faz progredir o cão. O que, dentre eles, semostre mais bem educado, sempre o foi pelo seu dono. Desde queo mundo é mundo, a lontra sempre construiu sua choça em cimad'água, seguindo as mesmas proporções e uma regra invariável; osrouxinóis e as andorinhas jamais construíram os respectivos ninhos

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senão do mesmo modo que seus pais o fizeram. Um ninho depardais de antes do dilúvio, como um ninho de pardais dos temposmodernos, é sempre um ninho de pardais, edificado nas mesmascondições e com o mesmo sistema de entrelaçamento das palhinhase dos fragmentos apanhados na época dos amores. As abelhas eformigas, que formam pequeninas repúblicas bem administradas,jamais mudaram seus hábitos de abastecimento, sua maneira deproceder, seus costumes, suas produções. A aranha, finalmente, tecea sua teia sempre do mesmo modo.

Por outro lado, se procurardes as cabanas de folhagense as tendas das primeiras idades do mundo, encontrareis, em lugarde umas e outras, os palácios e os castelos da civilização moderna.Às vestes de peles brutas sucederam os tecidos de ouro e seda.Enfim, a cada passo achais a prova da marcha incessante daHumanidade pela senda do progresso.

Desse progredir constante, invencível, irrecusável, daespécie humana e desse estacionamento indefinido das outrasespécies animais, haveis de concluir comigo que, se é certo queexistem princípios comuns a tudo o que vive e se move na Terra:o sopro e a matéria, não menos certo é que somente vós, Espíritosencarnados, estais submetidos à inevitável lei do progresso, que vosimpele fatalmente para diante e sempre para diante. Deus colocouos animais ao vosso lado como auxiliares, para vos alimentarem,para vos vestirem, para vos secundarem. Deu-lhes uma certa dosede inteligência, porque, para vos ajudarem, precisavam com-preender, porém lhes outorgou inteligência apenas proporcionadaaos serviços que são chamados a prestar. Mas, em sua sabedoria,não quis que estivessem sujeitos à mesma lei do progresso. Taiscomo foram criados se conservaram e se conservarão até àextinção de suas raças.

Dizem: os Espíritos mediunizam a matéria inerte e fa-zem que se movam cadeiras, mesas, pianos. Fazem que se movam,

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sim, mediunizam, não! porquanto, mais uma vez o digo, semmédium, nenhum desses fenômenos pode produzir-se. Que há deextraordinário em que, com o auxílio de um ou de muitos médiuns,façamos se mova a matéria inerte, passiva, que, precisamente emvirtude da sua passividade, da sua inércia, é apropriada a executaros movimentos e as impulsões que lhe queiramos imprimir? Paraisso, precisamos de médiuns, é positivo; mas, não é necessário queo médium esteja presente ou seja consciente, pois que podemos atuarcom os elementos que ele nos fornece, a seu mau grado e ausente,sobretudo para produzir os fatos de tangibilidade e o detransportes. O nosso envoltório fluídico, mais imponderável e maissutil do que o mais sutil e o mais imponderável dos vossos gases,com uma propriedade de expansão e de penetrabilidadeinapreciável para os vossos sentidos grosseiros e quase inexplicávelpara vós, unindo-se, casando-se, combinando-se com o envoltóriofluídico, porém animalizado, do médium, nos permite imprimirmovimento a móveis quaisquer e até quebrá-los em aposentosdesabitados.

É certo que os Espíritos podem tornar-se visíveis etangíveis aos animais e, muitas vezes, o terror súbito que elesdenotam, sem que lhe percebais a causa, é determinado pela visãode um ou de muitos Espíritos, mal-intencionados com relação aosindivíduos presentes, ou com relação aos donos dos animais. Aindacom mais freqüência vedes cavalos que se negam a avançar ou arecuar, ou que empinam diante de um obstáculo imaginário. Poisbem! tende como certo que o obstáculo imaginário é quase sempreum Espírito ou um grupo de Espíritos que se comprazem emimpedi-los de mover-se. Lembrai-vos da mula de Balaão que, vendoum anjo diante de si e temendo-lhe a espada flamejante, seobstinava em não dar um passo. É que, antes de se manifestarvisivelmente a Balãao, o anjo quisera tornar-se visível somente parao animal. Mas, repito, não mediunizamos diretamente nem osanimais, nem a matéria inerte. É-nos sempre necessário o concursoconsciente, ou inconsciente, de um médium humano, porque

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precisamos da união de fluidos similares, o que não achamos nemnos animais, nem na matéria bruta.

O Sr. Thiry, diz-se, magnetizou o seu cão. A queresultado chegou? Matou-o, porquanto o infeliz animal morreu,depois de haver caído numa espécie de atonia, de langor,conseqüentes à sua magnetização. Com efeito, saturando-o de umfluido haurido numa essência superior à essência especial da suanatureza de cão, ele o esmagou, agindo sobre o animal àsemelhança do raio, ainda que mais lentamente. Assim, pois, comonão há assimilação possível entre o nosso perispírito e o envoltóriofluídico dos animais, propriamente ditos, aniquilá-los-íamosinstantaneamente, se os mediunizássemos.

Isto posto, reconheço perfeitamente que há nosanimais aptidões diversas; que certos sentimentos, certas paixões,idênticas às paixões e aos sentimentos humanos, se desenvolvemneles; que são sensíveis e reconhecidos, vingativos e odientos,conforme se procede bem ou mal com eles. É que Deus, que nadafez incompleto, deu aos animais, companheiros ou servidores dohomem, qualidades de sociabilidade, que faltam inteiramente aosanimais selvagens, habitantes das solidões.

Resumindo: os fatos mediúnicos não podem dar-se semo concurso consciente, ou inconsciente, dos médiuns; e somenteentre os encarnados, Espíritos como nós, podemos encontrar osque nos sirvam de médiuns. Quanto a educar cães, pássaros, ououtros animais, para fazerem tais ou tais exercícios, é trabalhovosso e não nosso.

Erasto

Observação – A propósito da discussão que ocorreu naSociedade, sobre a mediunidade dos animais, disse o Sr. AllanKardec ter observado muito atentamente as experiências feitasnestes últimos tempos em aves, às quais se atribuía a faculdade

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mediúnica, acrescentando ter reconhecido, de maneiraincontestável, os processos da prestidigitação, isto é, das cartasmarcadas38, empregadas com muita habilidade, para darem ilusãoao espectador que, sem se preocupar com o fundo, contenta-seapenas com a aparência. Efetivamente, essas aves fazem coisas quenem o mais inteligente dos homens, nem mesmo o sonâmbulomais lúcido poderiam fazer, levando-se a concluir que seriamdotadas de faculdades intelectuais superiores às do homem e assimcontrariando as leis da Natureza. O que mais se deve admirar emtais experiências é a arte, a paciência que foi preciso desenvolverpara adestrar esses animais, tornando-os dóceis e atentos. Paraobter tais resultados, certamente foi necessário ocupar-se comnaturezas flexíveis, mas, em última análise, só com animaisamestrados, nos quais há mais hábito do que combinações. E aprova disso é que, se deixam de treiná-los durante algum tempo,logo perdem o que aprenderam. O encanto dessas experiências,como o de todas as manobras de prestidigitação, está no segredodos processos utilizados. Uma vez conhecido o processo, perdemtodo o seu atrativo; foi o que aconteceu quando os saltimbancosquiseram imitar a lucidez sonambúlica pelo pretenso fenômeno aque chamavam dupla vista. Nesse caso, não pode haver ilusão paraquem quer que conheça as condições normais do sonambulismo.Dá-se o mesmo com a pretensa mediunidade das aves, facilmentepercebida por qualquer observador experiente.

POVOS, SILÊNCIO!

(Enviada pelo Sr. Sabò, de Bordeaux – Médium: Sra. Cazemajoux)

Para onde correm essas crianças vestidas de túnicasbrancas? A alegria ilumina-lhes o coração. Essa multidão folgazãvai brincar nos verdes prados, onde farão uma ampla colheita deflores e perseguirão o inseto brilhante que se nutre em seus cálices.Despreocupadas e felizes nada percebem além do horizonte azul

38 N. do T.: Carte forcée, no original = constrangimento. No contexto dafrase, traduzimos por cartas marcadas.

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que as cerca. Sua queda será terrível se não vos apressardes empredispor seus corações aos ensinamentos espíritas. Porque osEspíritos do Senhor atravessaram as nuvens e vêm pregar a vós.Escutai suas vozes amigas; escutai atentamente. Povos, silêncio!

II

Elas se tornaram grandes e fortes. A beleza máscula deuns, a graça e o abandono de outras fazem reviver no coração dospais as doces lembranças de uma época já distante, mas o sorrisoque ia desabrochar em seus lábios emurchecidos desaparece paradar lugar a sombrias preocupações. É que também sorveram, emgrandes tragos, na taça encantada das ilusões da juventude, oveneno sutil que lhes enfraqueceu o sangue, debilitou-lhes as forçase lhes envelheceu os rostos, tornando-os calvos. Por isso, gostariamde impedir os filhos de provar a mesma taça envenenada. Irmãos!o Espiritismo será o antídoto que deve preservar a nova geração desuas devastações mortais. Porque os Espíritos do Senhoratravessaram as nuvens e vêm pregar a vós. Escutai suas vozesamigas; escutai atentamente. Povos, silêncio!

III

Alcançaram a virilidade; tornaram-se homens. Sãosérios e graves, mas não são felizes; seus corações estão entediadose não têm senão uma fibra sensível: a da ambição. Empregam tudoquanto têm de força e de energia na aquisição dos bens terrestres.Para eles não há felicidade sem as dignidades, as honrarias, afortuna. Insensatos! De um instante para outro o anjo da libertaçãovai abater-vos; sereis forçados a abandonar todas as quimeras; soisproscritos que Deus pode convocar à mãe-pátria a qualquerinstante. Não edifiqueis palácios nem monumentos; uma tenda,roupas e pão, eis o necessário. Contentai-vos com isto e oferecei osupérfluo aos irmãos a quem tudo falta: abrigo, roupa e pão. OEspiritismo vem dizer-vos que os verdadeiros tesouros que deveisconquistar são o amor de Deus e do próximo. Eles vos farão ricos

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para a eternidade. Porque os Espíritos do Senhor atravessaram asnuvens e vêm pregar a vós. Escutai suas vozes amigas; escutaiatentamente. Povos, silêncio!

IV

Suas frontes se inclinam à beira do sepulcro. Têm medoe queriam erguer a cabeça; mas o tempo lhes arqueou as espáduas,endureceu-lhes os nervos e os músculos e eles são impotentes paraolhar para o alto. Ah! quantas angústias vêm assaltá-los! Repassamnos refolhos da alma sua vida inútil e muitas vezes criminosa; oremorso os corrói, como um abutre esfaimado. É que,freqüentemente, no curso dessa existência, esgotada na indiferença,negaram seu Deus, que, à borda da sepultura, lhes aparece comovingador inexorável. Não temais, irmãos, e orai. Se, em sua justiça,Deus vos castiga, fará graça ao vosso arrependimento, porquanto oEspiritismo vem dizer-vos que a eternidade das penas não existe eque renasceis para vos purificardes e expiar. Assim, vós que estaisfatigados do exílio na Terra, envidai todos os esforços paramelhorardes, a fim de a ela não mais retornar. Porque os Espíritosdo Senhor atravessaram as nuvens e vêm pregar a vós. Escutai suasvozes amigas; escutai atentamente. Povos, silêncio!

Byron

JEAN-JACQUES ROUSSEAU

(Médium – Sra. Costel)

Nota – A médium estava ocupada com assuntos alheiosao Espiritismo; dispunha-se a escrever sobre assuntos pessoais,quando uma força invisível a compeliu a dissertar o que segue,malgrado o seu desejo de continuar o trabalho começado. É o queexplica o início da comunicação:

“Eis-me aqui, embora não me chamasses. Venho falar-te de coisas muito estranhas às tuas preocupações. Sou o EspíritoJean-Jacques Rousseau. Há tempos esperava a ocasião de mecomunicar contigo. Escuta, pois.

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“Penso que o Espiritismo é um estudo puramentefilosófico das causas secretas dos movimentos interiores da alma,pouco ou nada definidos até agora. Explica, mais ainda do quedescobre, horizontes novos. A reencarnação e as provas sofridasantes de alcançar o fim supremo não são revelações, mas umaconfirmação importante. Estou comovido pelas verdades que essemeio põe à luz. Digo meio intencionalmente, porque, a meu ver, oEspiritismo é uma alavanca que afasta as barreiras da cegueira. Apreocupação das questões morais está inteiramente por nascer.Discute-se política, que move os interesses morais; discute-se osinteresses privados; apaixona-se pelo ataque ou pela defesa daspersonalidades; os sistemas têm seus partidários e seus detratores,mas as verdades morais, as que constituem o pão da alma, oalimento da vida, são deixadas na poeira acumulada pelos séculos.Aos olhos da multidão, todos os aperfeiçoamentos são úteis, salvoos da alma; sua educação, sua elevação são quimeras, boas só paradeleitarem os sacerdotes, os poetas, as mulheres, seja como modo,seja como ensinamento.

“Se o Espiritismo ressuscitar o espiritualismo, devolverá àsociedade o impulso que a uns dá a dignidade interior, a outros aresignação e a todos a necessidade de se elevarem para o SerSupremo, esquecido e ignorado pelas criaturas ingratas.

Jean-Jacques Rousseau”

A CONTROVÉRSIA

(Enviada pelo Sr. Sabò, de Bordeaux)

Ó Deus! meu Senhor, meu Pai e meu Criador, dignai-vos dar ainda ao vosso servo um pouco daquela eloqüência humanaque levava a convicção ao coração dos Irmãos que vinham, emtorno da cátedra sagrada, instruir-se nas verdades que lhes havíeisensinado.

Enviando seus Espíritos para vos ensinarem vossosverdadeiros deveres para com ele e para com os vossos irmãos,

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quer Deus, acima de tudo, que a caridade seja o móvel de todas asvossas ações e de vossos irmãos, que querem fazer renascer essesdias de luto e estão na senda do orgulho. Este tempo está longe devós e Deus seja bendito eternamente, por ter permitido que oshomens cessassem para sempre essas disputas religiosas, que jamaisproduziram o menor bem e causaram tanto mal. Por que quererdiscutir os textos evangélicos, que já comentastes de tantasmaneiras? Esses diversos comentários foram feitos quando nãopossuíeis o Espiritismo para vos esclarecer, e é ele que vos diz: Amoral evangélica é a melhor; segui-a. Mas se, no fundo de vossaconsciência, uma voz vos clama: Para mim há tal ou qual pontoobscuro e não me posso permitir pensar diferentemente de meusoutros irmãos! Eloim! meu irmão, ponde de lado o que vosperturba; amai a Deus e a caridade, e estareis no bom caminho.Para que serviu o fruto de minhas longas vigílias, quando eu viviaem vosso mundo? para nada. Muitos não lançaram os olhos sobreos meus escritos, que não eram ditados pela caridade e que atraíramperseguições a meus irmãos. A controvérsia é sempre animada porum sentimento de intolerância, que pode degenerar até à ofensa, ea teimosia com que cada um sustenta suas pretensões torna maisdistante a época em que a grande família humana, reconhecendo oserros passados, respeitará todas as crenças e não afiará o punhalque havia cortado esses laços fraternos. E para vos dar um exemplodo que vos digo, abri o Evangelho e aí encontrareis estas palavras:“Eu sou a verdade e a vida; aquele que crê em mim, viverá.” Emuitos de vós condenais os que não seguem a religião que possuios ensinamentos do Verbo Encarnado. No entanto, muitos estãosentados à direita do Senhor, porque, na retidão de seus corações,o adoraram e amaram; porque respeitaram as crenças de seusirmãos e clamaram ao Senhor quando viram os povos sedilacerando entre si nas lutas de religião e porque não estavamaptos a encontrar o verdadeiro sentido das palavras do Cristo, nãopassando de instrumentos cegos de seus sacerdotes ou de seusministros.

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Meu Deus, eu que vivia nesses tempos, em que oscorações tempestuosos se voltavam contra os irmãos de umacrença oposta, se tivesse sido mais tolerante; se não houvessecondenado, em meus escritos, sua maneira de interpretar oEvangelho, eles estariam hoje menos irritados contra seus irmãoscatólicos, e todos teriam dado um passo maior para a fraternidadeuniversal. Mas os protestantes, os judeus, todas as religiões mais oumenos importantes, têm seus sábios e seus doutores; e, quandomais espalhado, o Espiritismo for estudado de boa-fé peloshomens instruídos, estes virão, como fizeram os católicos, trazer aluz aos seus irmãos e acalmar os seus escrúpulos religiosos. Deixai,pois, que Deus prossiga em sua obra de reforma moral, obra quevos deve elevar para Ele, todos no mesmo grau, e não sejaisrefratários aos ensinos dos Espíritos que Ele vos envia.

Bossuet

O PAUPERISMO

(Enviada pelo Sr. Sabò, de Bordeaux)

Em vão os filantropos da Terra sonham com coisas quejamais verão realizar-se. Lembrai-vos destas palavras do Cristo:“Sempre tereis pobres entre vós”, pois sabeis que estas são palavrasde verdade. Meu amigo, agora que conheceis o Espiritismo, nãoachais justa e eqüitativa, essa desigualdade das condições, que fazialevantar vossos corações, cheios de murmúrio contra esse Deusque não havia feito todos os homens igualmente ricos e ditosos?Pois bem! Agora que sabeis que Deus agiu com sabedoria em tudoquanto fez e que a pobreza é um castigo ou uma prova, buscaiamenizá-la, mas não lanceis mão de utopias para fazer os infelizessonharem com uma igualdade impossível. Certamente, por umasábia organização social, é possível aliviar muitos sofrimentos; éisto que se deve visar. Mas pretender que todos venham adesaparecer da face da Terra é uma idéia quimérica. Sendo a Terraum lugar de expiação, sempre haverá pobres que expiam nessaprova o abuso dos bens de que Deus os fizera dispensadores, e que

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jamais experimentaram a satisfação de fazer o bem aos seus irmãos;que entesouraram moeda por moeda para acumular riquezas inúteisa si mesmos e aos outros; que espoliaram as viúvas e os órfãos paraenriquecer. Oh! esses são muito culpados e seu egoísmo se voltarácontra eles!

Guardai-vos, entretanto, de ver em todos os pobresculpados em punição. Se, para alguns, a pobreza é uma expiaçãosevera, para outros é uma provação que lhes deve abrir maisrapidamente o santuário dos eleitos. Sim, sempre haverá pobres ericos, a fim de que uns tenham o mérito da resignação, e outros oda caridade e do devotamento. Quer sejais ricos ou pobres,transitais sobre um terreno escorregadio, que vos pode precipitarno abismo, na descida do qual só as vossas virtudes vos podemreter.

Quando digo que haverá sempre pobres na Terra,quero dizer que enquanto houver vícios, que dela façam um lugarde expiação para os Espíritos perversos, Deus os enviará para nelase encarnarem, para seu próprio castigo e dos vivos. Merecei, porvossas virtudes, que a vós Deus não envie senão Espíritos bons,e de um inferno fareis um paraíso terrestre.

Adolfo, bispo de Argel

A CONCÓRDIA

(Enviada pelo Sr. Rodolfo, de Mulhouse)

Sede unidos, meus amigos: a união faz a força;proscrevei de vossas reuniões todo espírito de discórdia, todoespírito de inveja. Não invejeis as comunicações que recebe tal ouqual médium; cada um a recebe conforme a disposição de seuEspírito e a perfeição de seus órgãos.

Jamais vos esqueçais de que sois irmãos, e essafraternidade não é ilusória: é uma fraternidade real, porque aquele

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que foi vosso irmão numa outra existência pode achar-se entre vós,fazendo parte de outra família.

Assim, sede unidos de espírito e de coração; buscai amesma comunhão de pensamento. Sede dignos de vós mesmos, dadoutrina que professais e dos ensinos que fostes chamados aespalhar.

Sede conciliatórios nas opiniões; que elas não sejamabsolutas; procurai esclarecer-vos uns aos outros. Postai-vos àaltura do vosso apostolado e dai ao mundo o exemplo da boaharmonia.

Sede o exemplo vivo da fraternidade humana e mostrai,até que ponto podem chegar os homens sinceramente devotados àpropagação da moral.

Não tendo senão um objetivo, um só e mesmopensamento deveis ter: o de pôr em prática o que ensinais. Que,pois, seja vossa divisa: Paz e fraternidade!

Mardochée

A AURORA DOS NOVOS DIAS

(Sociedade Espírita de Paris – Médium: Sra. Costel)

Eis-me aqui, eu que não evocais, mas que estou ansiosapara ser útil à Sociedade, cujo objetivo é tão sério quanto o é ovosso. Falarei de política. Não vos assusteis: sei em que limites devorestringir-me.

A situação atual da Europa oferece o maisimpressionante aspecto ao observador. Em nenhuma época – nãoexcetuo nem mesmo o fim do último século, que fez tão grandeestrago nos preconceitos e abusos que oprimiam o espíritohumano – o movimento intelectual se fez sentir mais ousado, maisfranco. Digo franco, porque o espírito europeu marcha na verdade.

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A liberdade não é mais um fantasma sangrento, mas a bela e grandedeusa da prosperidade pública. Na própria Alemanha, nestaAlemanha que retratei com tanto amor, o sopro ardente da épocadestrói os últimos baluartes dos preconceitos. Sede felizes, vós queviveis em tal momento; porém, mais felizes ainda serão os vossosdescendentes. Aproxima-se a hora anunciada pelo precursor. Vedesempalidecer o horizonte, mas, como outrora os hebreus, ficareis nolimiar da Terra Prometida e não vereis levantar-se o sol radioso dosnovos dias.

Staël

Allan Kardec

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Revista EspíritaJornal de Estudos Psicológicos

ANO IV SETEMBRO DE 1861 No 9

O Estilo é o HomemPOLÊMICA ENTRE VÁRIOS ESPÍRITOS

(Sociedade Espírita de Paris)

Na sessão da Sociedade, de 19 de julho do corrente ano,o Espírito Lamennais deu espontaneamente a dissertação que sesegue, sobre o aforismo de Buffon: O estilo é o homem, porintermédio do Sr. Didier, médium. Julgando-se atacado, Buffonreplicou alguns dias mais tarde, servindo-se do Sr. d’Ambel.Depois, sucessivamente, o Visconde de Launay (Sra. Delphine deGirardin), Bernardin de Saint-Pierre e outros entraram na liça. Éesta polêmica, tão curiosa quanto instrutiva, que reproduzimosintegralmente. Notar-se-á que não foi provocada, nem premeditadae que cada Espírito veio espontaneamente nela tomar parte.Lamennais abriu a discussão; os outros o seguiram.

DISSERTAÇÃO DE LAMENNAIS

(Médium – Sr. A. Didier)

Há no homem um fenômeno muito estranho, a quechamo de fenômeno dos contrastes. Refiro-me, antes de tudo, às

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naturezas de escol. De fato as encontrareis no mundo dosEspíritos, cujas obras poderosas divergem estranhamente da vidaprivada e dos hábitos de seus autores. Disse o Sr. Buffon: O estilo éo homem. Infelizmente, esse grão-senhor da elegância e do estiloencarava os demais autores exclusivamente do seu ponto de vista.Aquilo que podia perfeitamente aplicar-se a ele está longe de seraplicado a todos os outros escritores. Tomamos aqui o vocábuloestilo em sentido mais amplo e na sua mais larga acepção. Emnossa opinião, o estilo será a maneira grandiosa, a forma mais purapela qual o homem apresentará suas idéias. Todo o gênio humanoestá aqui, diante de nós e, com uma vista d’olhos, contemplamostodas as obras da inteligência humana: poesia na arte, na literaturae na Ciência. Longe de dizer como Buffon: O estilo é o homem,talvez diremos, de maneira menos concisa, menos significativa, queo homem, por sua natureza mutável, difusa, contestadora erevoltada, muitas vezes escreve contrariamente à sua naturezaoriginal, às suas primitivas inspirações. Direi mesmo mais: emoposição às suas crenças.

Muitas vezes, lendo as obras de alguns dos grandesgênios de um ou de outro século, nós nos dizemos: Que pureza!Que sensibilidade! Que crença profunda no progresso! Quegrandeza! Depois se sabe que o autor, longe de ser o autor moralde suas obras, não é senão o autor material, imbuído de prejuízos eidéias preconcebidas. Aí está um grande fenômeno, não apenashumano, mas espírita.

Muito freqüentemente, pois, o homem não se refleteem suas obras. Diremos, também, quantos poetas debilitados,embrutecidos, e quantos artistas desiludidos sentem, de repente,uma centelha divina a iluminar-lhes a inteligência! Ah! é que entãoo homem escuta algo que não vem dele mesmo; ouve o que oprofeta Isaías chamava o pequeno sopro, e que nós chamamos osEspíritos. Sim, eles sentem em si essa voz sagrada, mas, esquecendoDeus e a sua luz, a atribuem a si mesmos; recebem a graça na arte

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como outros a recebem na fé, e algumas vezes ela toca os quepretendem negá-la.

Lamennais

RÉPLICA DE BUFFON

(Médium – Sr. d’Ambel)

Disseram que fui um gentil-homem das letras e quemeu estilo, muito apuradinho, cheirava a pó-de-arroz e a tabacoda Espanha. Não é a consagração mais certa dessa verdade:O estilo é o homem? Embora tenham exagerado um pouco,representando-me com a espada ao lado e a pena à mão, confessoque gostava das belas coisas, das roupas adornadas com lantejoulas,das rendas e dos casacos vistosos, em suma, de tudo quanto fosseelegante e delicado. É, pois, muito natural que sempre me vestissecom elegância, razão por que meu estilo traz o sinete do bom-tom,esse perfume de boa companhia que se encontra igualmente emnossa grande Sévigné. Que quereis? Sempre preferi os saraus e ospequenos salões das damas elegantes aos cabarés e às assembléiastumultuosas de baixa categoria. Permitir-me-eis, pois, apesar daopinião emitida por vosso contemporâneo Lamennais, manter meujudicioso aforismo, apoiando-o com alguns exemplos tomadosentre vossos autores e filósofos modernos.

Uma das desgraças de vosso tempo é que muitosfizeram da pena uma profissão. Mas deixemos esses artistas da penaque, semelhantes aos artistas das palavras, escrevemindiferentemente pró ou contra tal idéia, conforme são pagos, egritando segundo o tempo: Viva o rei! Viva a Liga! 39 Deixemo-los.Esses não são, para mim, autores sérios. Vejamos, abade: não vosofendais se tomo a vós mesmo como exemplo. Vossa vida, bem ou

39 N. do T.: Liga – Alusão ao movimento político-religioso que se opôsa Henrique III (Valois) e prosseguiu contra seu sucessor e ex-cunhado, Henrique IV (Bourbon), no período mais exacerbado daschamadas Guerras de Religião, na França.

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mal fundamentada, não se reflete sempre em vossas obras? E daindiferença em matéria de religião às palavras de um crente, que contraste,como dizeis! Todavia, vosso tom doutoral é tão categórico, tãoabsoluto, numa como noutra dessas obras. Haveis de concordarque sois bilioso, padre, e destilais vossa bile em amargos lamentos,em todas as belas páginas que deixastes. Em sobrecasaca abotoada,como em sotaina, ficastes desclassificado, meu pobre Lamennais.Ora, vamos, não vos zangueis, mas convinde comigo que o estilo éo homem.

Se passo de Lamennais a Scribe, o homem feliz sereflete nas tranqüilas e pacíficas comédias de costumes. Ele éalegre, feliz e sensível: semeia a sensibilidade, a alegria e a felicidadeem suas obras. Nele, jamais o drama, jamais o sangue; apenasalguns duelos sem perigo, para punir o traidor e o culpado.

Vede em seguida Eugène Sue, o autor dos Mistérios deParis. É forte como seu príncipe Rodolfo; como ele, aperta em sualuva amarela a mão calejada do operário e, também como ele, é oadvogado das causas populares.

Vede o vosso Dumas vagabundo, malbaratando a vidae a inteligência; indo do pólo sul ao pólo norte tão facilmentequanto seus famosos mosqueteiros; fazendo-se conquistador comGaribaldi e indo da intimidade do Duque de Orléans aos pedintesnapolitanos; fazendo romances com a história e pondo a históriaem romances.

Vede as obras orgulhosas de Victor Hugo, esseprotótipo do orgulho encarnado. Eu, eu, diz Hugo poeta; eu, eu, dizHugo em seu rochedo de Jersey.

Vede Murger, esse poeta lírico dos costumes fáceis,representando conscientemente seu papel nessa boemia quecantou. Vede Nerval, de cores estranhas, de estilo espalhafatoso eincoerente, fazendo fantasia com sua vida, como o fez com sua

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pena. Quantos deixo, e dos melhores, como Soulié e Balzac, cujasvidas e obras seguem caminhos paralelos! Mas creio que estesexemplos serão suficientes para não mais repelirdes, de modo tãoabsoluto, o meu aforismo: O estilo é o homem.

Não teríeis, caro abade, confundido a forma e o fundo,o estilo e o pensamento? Mas, ainda aí, tudo se acomoda.

Buffon

PERGUNTAS DIRIGIDAS A BUFFON A PROPÓSITO

DE SUA COMUNICAÇÃO

P. – Agradecemos a espirituosa comunicação quehouvestes por bem nos dar. Contudo, há algo que nos surpreende:é que estais a par dos mínimos detalhes da nossa literatura,apreciando obras e autores com notável precisão. Então ainda vosocupais com o que se passa na Terra, desde que conheceis tudoisso? Ledes, pois, tudo quanto se publica? Tende a bondade de daruma explicação, que será muito útil à nossa instrução.

Resp. – Não precisamos de muito tempo para ler eapreciar; num único golpe de vista apanhamos o conjunto dasobras que nos atraem a atenção. Todos nós nos ocupamos commuito interesse do vosso caro grupinho; daqueles a quem chamaishomens eminentes, não acreditaríeis quantos acompanham, combenevolência, os progressos do Espiritismo. Assim, podeis pensarquanto me senti feliz por ver meu nome pronunciado porLamennais, um de vossos fiéis Espíritos, e com que agilidadeaproveitei a ocasião para me comunicar convosco. Com efeito,quando fui posto em causa em vossa última sessão, recebi, porassim dizer, o contragolpe do vosso pensamento e, não querendoque a verdade que eu havia proclamado em meus escritos fossederrubada sem ser defendida, roguei a Erasto que me emprestasseseu médium para responder às asserções de Lamennais. Por outrolado, deveis compreender que cada um de nós permanece fiel àssuas preferências terrenas, razão por que nós outros, escritores,

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estamos atentos ao progresso realizado pelos autores vivos, ou queeles pensam realizar na literatura. Assim como os Jouffroy, osLaroque, os la Romiguière se preocupam com a filosofia, e osLavoisier, os Berzélius, os Thénard com a química, cada um cultivaa sua mania e se recorda com amor de seus trabalhos,acompanhando com olhar inquieto o que fazem seus sucessores.

P. – Em poucas palavras apreciastes vários escritorescontemporâneos, mortos ou vivos. Seríamos muito reconhecidosse nos désseis, sobre alguns deles, uma apreciação um pouco maisdesenvolvida e mais metódica; seria muito útil para nós. Paracomeçar, pediríamos que falásseis de Bernardin de Saint-Pierre,principalmente de seu Paulo e Virgínia, cuja leitura havíeiscondenado e que, no entanto, se tornou uma das obras maispopulares.

Resp. – Não posso aqui empreender o desenvolvimentocrítico das obras de Bernardin de Saint-Pierre. Quanto à apreciaçãoque fiz naquela época, posso confessá-lo hoje: eu era, como o Sr.Josse, um tanto perfeccionista; numa palavra, fiel ao espírito decamaradagem literária, desancava o quanto podia um importuno eimportante concorrente. Mais tarde vos darei a minha verdadeiraapreciação sobre esse eminente escritor, caso um Espíritorealmente crítico, como Merle ou Geoffroy, não se encarregue de ofazer.

Buffon

DEFESA DE LAMENNAIS PELO VISCONDE DE LAUNAY

(Médium – Sr. d’Ambel)

Nota – Na conversa havida na Sociedade sobre ascomunicações precedentes, foi pronunciado o nome da Sra. deGirardin, a propósito do assunto em discussão, embora não tenhasido mencionada pelos Espíritos interlocutores. É o que explica ocomeço da nova intervenção.

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– Nas últimas sessões, senhores espíritas, vós mepusestes ligeiramente em causa e creio que me destes o direito,como se diz no Tribunal, de intervir nos debates. Não foi semprazer que ouvi a profunda dissertação de Lamennais e a respostaum tanto incisiva do Sr. Buffon. Mas falta uma conclusão a essatroca de argumentos. Assim, intervenho e me arvoro em juiz decampo, estribado na minha autoridade particular. Aliás, pedíeis umcrítico. Respondo-vos: Cuidado ao me envolverdes nesta questão,porquanto, se bem vos lembrais, em vida desempenhei, de maneiraconsiderada magistral, esse temível posto de crítico executivo.Agrada-me imensamente retornar a esse terreno tão amado. Assim,pois, era uma vez... mas, não; deixemos de lado as banalidades dogênero e entremos seriamente no assunto.

Senhor de Buffon, satirizais de maneira graciosa; vê-selogo que procedeis do grande século. Mas, por mais elegante quesejais como escritor, um visconde de minha raça não teme aceitaro desafio e enfrentar a pena convosco. Vamos, meu gentil-homem!Fostes muito duro para com esse pobre Lamennais, que tratastescomo desclassificado! É culpa desse gênio extraviado se, depois dehaver escrito com mão de mestre esse estudo admirável que lhecensurais, tenha-se voltado para outras regiões, para outras crenças?Certamente, as páginas da Indiferença em matéria de religião seriamassinadas com ambas as mãos pelos melhores prosadores da Igreja;mas se essas páginas permaneceram de pé quando o padre perdeuas estribeiras, não reconheceis a causa, logo vós, tão rigoroso? Ah!olhai Roma, lembrai-vos de seus costumes dissolutos e tereis achave dessa reviravolta que vos surpreendeu. Oh! Roma está tãolonge de Paris!

Os filósofos, os investigadores do pensamento, todosesses rudes e incansáveis trabalhadores do eu psicológico jamaisdevem ser confundidos com os escritores de estilo impecável. Estesescrevem para o deleite do público, aqueles para a ciênciaimpenetrável; estes últimos não se preocupam senão com a verdade;

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os outros não se vangloriam de ser lógicos: fogem à uniformidade.Em suma, o que buscam é o que vós mesmos buscáveis, meu belosenhor, isto é, a divulgação, a popularidade e o sucesso, que seresumem em belos escudos. Aliás, salvo isto, vossa respostaespirituosa é por demais verdadeira para que eu não a aplaudissecom todo o prazer. Apenas aquilo pelo qual tornais o indivíduoresponsável, eu transfiro a responsabilidade ao meio social. Enfim,eu tinha de defender o meu contemporâneo que, como bem osabeis, não participou de saraus, não freqüentou cabarés, nãotransitou pelos pequenos salões das damas elegantes, nem, muitomenos, tomou parte nas assembléias tumultuosas de baixacategoria. Alcandorado em sua mansarda, sua única distração eraesmigalhar o pão e oferecer os pedacinhos aos pardais barulhentosque o vinham visitar em sua cela da rua de Rivoli. Mas sua supremaalegria era sentar-se defronte da mesa pouco firme e fazer a penavaguear sobre as folhas virgens de um caderno de papel!

Oh! certamente teve razão para se lamentar esse grandeEspírito doente que, para evitar a sujidade de um século material,havia esposado a Igreja Católica e que, após tê-lo feito, encontroua sujeira sentada nos degraus do altar. É culpa sua se, lançadojovem entre as mãos do clericato, não pôde sondar a profundeza doabismo onde o precipitavam? Sim, ele tem razão de manifestar osseus amargos lamentos, como dizeis. Não é a imagem viva de umaeducação mal dirigida e de uma vocação imposta?

Padre renegado! Sabeis quantos burgueses ineptos lhehão lançado ao rosto essa injúria, porque obedeceu às suasconvicções e ao impulso da consciência? Ah! crede-me, feliznaturalista, enquanto corríeis atrás das mulheres e a vossa pena,célebre pela conquista do cavalo, era elogiada por lindas pecadorase aplaudida por mãos perfumadas, ele subia penosamente o seuGólgota! Porque, assim como o Cristo, sorveu o cálice da amargurae carregou com dificuldade a sua cruz!

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E vós, Sr. Buffon, não ofereceis um pouco o flanco àcrítica? Vejamos. Ora essa! Vosso estilo é fanfarrão, como vós e,como vós, todo vestido de ouropéis! Mas, então, que intrépidoviajante não fostes? Visitastes países!... não; bibliotecasdesconhecidas? Que pioneiro infatigável! Desbravastes florestas!...não; manuscritos inéditos, jamais vistos! Reconheço que cobristesos vossos ricos despojos com um verniz brilhante, que é bemvosso. Mas de todos esses volumes enfadonhos, o que há deseriamente vosso como estudo, como fundo? A história do cão, dogato ou do cavalo, talvez? Ah! Lamennais escreveu menos que vós,mas tudo é realmente dele, Sr. Buffon: a forma e o fundo. Outro diavos acusavam de haver ignorado o valor das obras do bom Bernardinde Saint-Pierre. Desculpaste-vos um tanto jesuiticamente; mas nãodissestes que se recusastes vitalidade a Paulo e Virgínia foi porque,em obras desse gênero, ainda não estáveis na Grande Scudéri, noGrande Cyrus e no país do Tendre, enfim, em todos esses trastessentimentais, que fazem tanto bem hoje aos alfarrabistas, essesnegociantes de roupas da literatura. Ah! Sr. Buffon, começais a cairmuito baixo na estima desses senhores, ao passo que o utopistaBernardin conservou uma posição elevada. A Paz Universal, umautopia! Paulo e Virgínia, uma utopia! Vamos, vamos! Vosso julgamentofoi anulado pela opinião pública. Não falemos mais disso.

Palavra de honra, tanto pior! Pusestes a pena em minhamão; uso-a e abuso. Isto vos ensinará, caros espíritas, a vosinquietardes com uma mulher pedante e aposentada como eu, e apedir notícias minhas. Esse caro Scribe nos chegou de todoestupefato com esses últimos meio-sucessos; queria que noserigíssemos em Academia. Falta-lhe a palma verde. Era tão feliz naTerra que ainda hesita em assumir a sua nova posição. Ah! ele seconsolará vendo que suas peças voltam a ser apresentadas e, poralgumas semanas, não aparecerá mais.

Ultimamente Gérard de Nerval vos deu umaencantadora fantasia inacabada. Esse Espírito caprichoso irá

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terminá-la? Quem sabe! Todavia, queria concluir que o verdadeirodo sábio não estando no verdadeiro, o belo do pintor não estandono belo e a coragem da criança sendo mal recompensada, ele fezmuito bem em seguir os desvios de sua cara Fantasia.

Visconde de Launay (Delphine de Girardin)

Nota – Ver mais adiante Fantasia, por Gérard de Nerval.

RESPOSTA DE BUFFON AO VISCONDE DE LAUNAY

Convidais-me a voltar a um debate ao qual firmementerecusei, por não ter o que dizer. Confesso que prefiro ficar noambiente sossegado onde me encontrava a me expor a semelhanteincômodo. Em meu tempo a gente participava de uma brincadeiramais ou menos ateniense, mas hoje, que horror! vai-se a golpes dechicote chumbado. Obrigado! eu me retiro; tenho mais do quepreciso, pois ainda estou completamente marcado pelos golpes dovisconde. Havereis de concordar que, embora me tenham sidoadministrados com muita generosidade, pela graciosa mão de umamulher, não são menos dolorosos. Ah! senhora, a mim lembrastesa caridade de maneira muito pouco caridosa. Visconde! sois muitotemível; deponho as armas e humildemente reconheço meus erros.Concordo que Bernardin de Saint-Pierre foi um grande filósofo.Que digo? Encontrou a pedra filosofal e eu não sou, como não fui,mais que um indigesto compilador! E então? Estais contente agora?Vejamos, sede gentil e doravante não me humilheis mais; não sendoassim, obrigareis um gentil-homem, amigo do nosso grupoparisiense, a abandonar a praça, o que não faria sem grande pesar,porque ele tem de aproveitar também os ensinamentos espíritas econhecer o que aqui se passa.

Ah! Hoje ouvi o relato de fenômenos tão estranhos queem meu tempo teriam sido queimados vivos, como feiticeiros, osatores e até os narradores desses acontecimentos. Aqui, entre nós,serão mesmo fenômenos espíritas? A imaginação de um lado e o

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interesse do outro não valerão alguma coisa? Eu não juraria. Quepensa o espirituoso visconde? Quanto a mim, lavo as mãos. Aliás,se creio no meu senso de naturalista, por mais que me chamemnaturalista de gabinete, os fenômenos dessa ordem só devemocorrer raramente. Quereis minha opinião sobre o caso de Havana?Pois bem! lá existe uma camarilha de gente mal-intencionada, quetem todo o interesse em desacreditar a propriedade, a fim de quepossa ser vendida a preço vil, e proprietários medrosos e tímidos,apavorados com uma fantasmagoria muito bem preparada. Quantoao lagarto: lembro-me bem de lhe haver escrito a história, masconfesso jamais os ter encontrado diplomados pela Faculdade deMedicina. Há aqui um médium de cérebro fraco, que tomou de suaimaginação fatos que, em substância, não tinham nenhumarealidade.

Buffon

Nota – Este último parágrafo faz alusão a dois fatosnarrados na mesma sessão; por falta de espaço, adiaremos a suatranscrição para outro número. A respeito, Buffon dáespontaneamente a sua opinião.

RESPOSTA DE BERNARDIN DE SAINT-PIERRE

(Médium – Sra. Costel)

Venho eu, Bernardin de Saint-Pierre, envolver-me numdebate em que meu nome foi citado, discutido e defendido. Nãoposso concordar com meu espirituoso defensor; o Sr. de Buffontem um outro valor, que não o de um compilador eloqüente. Queimportam os erros literários de um julgamento muitas vezes tãofino e delicado para as coisas da Natureza e que não foi desviadosenão pela rivalidade e o ciúme profissional?

Apesar disso, sou de opinião inteiramente contrária àsua e, como Lamennais, digo: Não, o estilo não é o homem. Disto

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sou uma prova eloqüente, eu, cuja sensibilidade jazia completa nocérebro, inventando o que os outros sentiam. As coisas da vidaterrena, as coisas acabadas são julgadas com frieza do outro lado davida. Não mereço toda a reputação literária de que desfrutei. Seaparecesse hoje, Paulo e Virgínia seria facilmente eclipsado por umaquantidade de encantadoras produções, que passam despercebidas.É que o progresso de vossa época é grande, mais que vós,contemporâneos, podeis julgar. Tudo se eleva: ciências, literatura,arte social; mas tudo se eleva como o nível do mar na enchente damaré, e os marinheiros que estão ao largo não o podem julgar.Estais em alto-mar.

Volto ao Sr. Buffon, cujo talento louvo, esquecendo acensura, e também ao meu espirituoso defensor, que sabe descobrirtodas as verdades, seus sentidos espirituais, dando-lhes um coloridoparadoxal. Depois de haver provado que os literatos mortos nãoconservam nenhum fel, dirijo-vos os meus agradecimentos, assimcomo o vivo desejo de vos poder ser útil.

Bernardin de Saint-Pierre

LAMENNAIS A BUFFON

(Médium – Sr. A. Didier)

É preciso prestar muita atenção, Sr. Buffon; eu nãoconclui absolutamente de maneira literária e humana; encarei aquestão de modo muito diverso e o que deduzi foi isto: “Que ainspiração humana muitas vezes é divina”. Aí não havia matériapara nenhuma controvérsia. Agora não mais escrevia com essapretensão, e podeis vê-lo mesmo em minhas reflexões sobre ainfluência das artes, o coração e o cérebro40. Evitei o mundo e aspersonalidades; jamais volvamos ao passado; olhemos o futuro.Cabe aos homens julgar e discutir as nossas obras; a nós compete

40 Alusão a uma série de comunicações ditadas por Lamennais, sob otítulo de Meditações filosóficas e religiosas, que publicaremos no próximonúmero.

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dar outras, emanando todas desta idéia fundamental: Espiritismo.Mas, para nós: adeus ao mundo!

Lamennais

FANTASIA – POR GÉRARD DE NERVAL

(Médium – Sr. A. Didier)

Nota – Lembramos que Buffon, falando dos autorescontemporâneos, disse que “Gérard de Nerval, de cores estranhas,de estilo espalhafatoso e incoerente, fazia fantasia com sua vida,como o fez com sua pena.” Em vez de discutir, Gérard de Nervalrespondeu a esse ataque ditando espontaneamente o trechoseguinte, ao qual ele próprio deu o título de Fantasia. Escreveu emduas sessões, e foi no intervalo que ocorreu a resposta do Viscondede Launay41 a Buffon; eis por que disse ele não saber se essecaprichoso Espírito o acabaria, dando a sua provável conclusão.

Não o pusemos em ordem cronológica, a fim de nãointerromper a série de ataques e réplicas, considerando-se queGérard de Nerval não se envolveu nos debates senão por estaalegoria filosófica:

– Um dia, numa de minhas fantasias, não sei como,cheguei perto do mar, num pequeno porto pouco conhecido; queimporta! Por algumas horas eu havia abandonado meuscompanheiros de viagem e pude entregar-me à mais tempestuosafantasia, que é o termo consagrado às minhas evoluções cerebrais.Todavia, não se deve crer que a Fantasia seja sempre uma meninalouca, entregue às excentricidades do pensamento. Muitas vezes apobre mocinha ri para não chorar e sonha para não cair.Freqüentemente seu coração está ébrio de amor e de curiosidade,enquanto sua cabeça se perde nas nuvens; talvez seja porque muitoama, essa pobre imaginação. Deixai-a, pois, vaguear, pois ama eadmira.

41 N. do T.: Ora aparece grafado Visconde Delaunay, ora Visconde deLaunay. Preferimos esta última.

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Assim, eu estava com ela um dia, a contemplar o mar,cujo horizonte é o céu, quando, em meio à minha solidão a doisavistei – palavra de honra! um velhinho condecorado. Tivera tempode o ser, felizmente, pois estava muito abatido; mas seu ar era tãopositivo, tão regulares os movimentos, que essa sabedoria e essaharmonia, em sua aparência, substituíam os nervos e os músculosentorpecidos. Sentou-se, examinou bem o terreno e assegurou-sede que não seria picado por um desses bichinhos que pululam naareia da praia; depois deixou de lado sua bengala de castão dourado;mas imaginai o meu espanto quando ele colocou os óculos. Óculos!para ver a imensidade! Fantasia deu um salto terrível e quis atirar-sesobre ele. Consegui acalmá-la com muita dificuldade; aproximei-me, oculto por uma rocha e apurei os ouvidos para melhor escutar:“Eis, então, a imagem de nossa vida! Eis o grande todo! Profundaverdade! Eis, pois, nossas existências, elevadas e baixas, profundase mesquinhas, revoltadas e calmas! Ó vagas! vagas! Grandeflutuação universal!” Depois o velhinho só falou para si mesmo.Até então Fantasia mantivera-se calma e ouvia religiosamente;porém, não se contendo mais, soltou uma longa gargalhada. Só tivetempo de tomá-la nos braços e abandonamos o velhinho. “Naverdade – dizia Fantasia – ele deve ser membro de algumasociedade erudita.” Depois de ter corrido durante algum tempo,percebemos uma tela de pintor, representando uma falésia amergulhar no mar. Olhei, ou antes, olhamos a tela. Provavelmenteo pintor procurava outro sítio nas redondezas. Após olhar a tela,fitei a Natureza e assim alternativamente. Fantasia quis rasgar a tela;só à custa de muito esforço pude contê-la. – “Como! disse-me ela,são sete horas da manhã e vejo nesta tela um efeito que não temnome!” Compreendi perfeitamente o que Fantasia me explicava.Realmente essa menina maluca tem senso, dizia a mim mesmo,querendo afastar-me. Ah! escondido, o artista tinha seguido asmenores nuanças de minha expressão; quando seus olhosencontraram os meus, foi um choque terrível, um choque elétrico.Lançou-me um desses olhares soberbos, que parecem dizer:“Vermezinho!” Dessa vez Fantasia ficou aterrada por tanta

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insolência e o viu retomar a paleta com estupefação. “Tu não tensa paleta da Lorena”, disse-lhe ela, sorrindo.

Depois, voltando-se para mim: “Já vimos o verdadeiroe o belo – falou-me ela – procuremos, então, um pouco o bem.”Após ter escalado as falésias, avistei um menino, um filho depescador, que bem poderia ter treze ou quatorze anos; brincavacom um cachorro e corriam um atrás do outro, este a latir, aquelea bradar. De repente, ouvi gritos no ar, que pareciam vir de baixoda falésia; imediatamente o menino atirou-se, de um salto só, porum atalho que levava ao mar. Apesar de todo o seu ardor, Fantasiateve dificuldade em segui-lo. Quando cheguei na parte inferior dafalésia, vi um espetáculo terrível: o menino lutava contra as vagas etrazia para a costa um infeliz que se debatia contra ele, seu salvador.Eu quis atirar-me, mas o garoto gritou que nada fizesse; e, ao cabode alguns instantes, magoado, deprimido e trêmulo, aproximava-secom o homem que havia salvado. Era, ao que tudo indica, umbanhista que se tinha aventurado muito longe e caíra numacorrente.

Continuarei de outra vez.

Gérard de Nerval

Nota – Foi nesse intervalo que ocorreu a comunicaçãodo Visconde de Launay, reportada acima.

CONTINUAÇÃO

Depois de alguns instantes o afogado, pouco a pouco,voltava à vida, mas apenas para dizer: “É incrível; logo eu, que nadotão bem!” Viu perfeitamente quem o havia salvado, mas, olhando-me, acrescentou: “Ufa! escapei por pouco! Como sabeis, há certosmomentos em que perdemos a cabeça; não são as forças que nostraem, mas... mas...” Vendo que não podia continuar, apressei-meem lhe dizer: “Enfim, graças a este bravo rapaz, eis-vos salvo.” Ele

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olhou o garoto, que o examinava com o ar mais indiferente domundo, mãos na cintura. O senhor pôs-se a sorrir: “Contudo éverdade”, disse, saudando-me em seguida. Fantasia quis correr atrásdele. “Deixa pra lá!”, disse ela, mudando de idéia, “de fato é muitonatural.” O rapazola o viu afastar-se, depois voltou ao seu cão.Desta vez Fantasia chorou.

Gérard de Nerval

Tendo um membro da Sociedade observado que faltavaa conclusão, Gérard acrescentou estas palavras:

“Encontro-me à vossa disposição, de todo o coração,para dar outro ditado; mas, quanto a este, Fantasia me diz que pareaqui. Talvez esteja errada; ela é tão caprichosa!”

A conclusão havia sido dada antecipadamente peloVisconde de Launay.

CONCLUSÃO DE ERASTO

Depois do torneio literário e filosófico ocorrido nasúltimas sessões da Sociedade, ao qual assistimos com verasatisfação, julgo necessário, do ponto de vista puramente espírita,comunicar-vos algumas reflexões, que me foram suscitadas poresse interessante debate, no qual, aliás, não quero intervir de modonenhum. Antes de mais, porém, deixai que vos diga que, se vossareunião foi animada, esta animação nada significou em relação àque reinava entre os grupos numerosos de Espíritos eminentes, queessas sessões, quase acadêmicas, tinham atraído. Ah! certamente sevos tivésseis tornado vidente instantaneamente, teríeis ficadosurpreso e confuso perante esse areópago superior. Mas não éminha intenção desvendar-vos hoje o que se passou entre nós; meuobjetivo é unicamente fazer que entendais algumas palavras sobreo proveito que deveis tirar dessa discussão, no que respeita à vossainstrução espírita.

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Conheceis Lamennais há muito tempo e, certamente,apreciastes o quanto esse filósofo continuou apaixonado pela idéiaabstrata; sem dúvida notastes o quanto ele acompanha compersistência, e com talento – devo dizê-lo – suas teorias filosóficase religiosas. Logicamente deveis deduzir que o ser pessoal pensanteprossegue, mesmo depois da tumba, seus estudos e trabalhos e que,por meio dessa lucidez que é o apanágio particular dos Espíritos,comparando seu pensamento espiritual com o seu pensamento humano,deve eliminar tudo quanto o obscurecia materialmente. Muito bem!o que é verdadeiro para Lamennais, o é igualmente para os outros,e cada um, no vasto país da erraticidade, conserva suas aptidões esua originalidade.

Buffon, Gérard de Nerval, o Visconde de Launay,Bernardin de Saint-Pierre conservam, como Lamennais, os gostose a forma literária que observáveis neles, quando vivos. Creio útilchamar vossa atenção sobre essa condição de ser do nosso mundode além-túmulo, para que não venhais a crer que abandonamosinstantaneamente nossas inclinações, costumes e paixões quandodespimos as vestes humanas. Na Terra, os Espíritos são comoprisioneiros, que a morte deve libertar; no entanto, assim comoaquele que está sob grades tem as mesmas propensões, conserva amesma individualidade quando em liberdade, os Espíritosconservam suas tendências, originalidade e aptidões, ao chegarementre nós. Contudo, à exceção dos que passaram, não por uma vidade trabalho e de provas, mas por uma vida de expiação, como osidiotas, os cretinos e os loucos, suas qualidades inteligentes,mantidas em estado latente, não despertam senão à saída da prisãoterrestre. Como pensais, isto deve entender-se do mundo espíritainferior ou médio, e não dos Espíritos elevados libertos dainfluência corporal.

Ides tomar as vossas férias, senhores associados.Permiti que vos dirija algumas palavras amigas, antes de nossepararmos por algum tempo. Creio que a doutrina consoladora

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que vos viemos ensinar só conta, entre vós, com adeptosfervorosos. Eis por que, como é essencial que cada um se submetaà lei do progresso, julgo dever aconselhar-vos a examinar, perantevós, que proveito haveis tirado pessoalmente de nossos trabalhosespíritas, e que progresso moral disso resultou em vossos meiosrecíprocos. Porque – bem o sabeis – não basta dizer: Sou espírita, eencerrar essa crença no seu íntimo; o que vos é indispensável saberé se vossos atos estão de acordo com as prescrições de vossa novafé, que, nunca seria demais repetir, é Amor e caridade. Que Deus sejaconvosco!

Erasto

Conversas Familiares de Além-Túmulo

A PENA DE TALIÃO42

(Sociedade, 9 de agosto de 1861 – Médium: Sr. d’Ambel)

Um correspondente da Sociedade lhe transmite aseguinte nota:

“O Sr. Antonio B..., um de meus parentes, escritor demérito, estimado por seus concidadãos, tendo desempenhado comdistinção e integridade funções públicas na Lombardia, caiu, há cercade seis anos, em conseqüência de um ataque de apoplexia, numestado de morte aparente que, infelizmente, como algumas vezessucede em casos tais, a sua morte foi considerada real, concorrendoainda mais para o engano os vestígios da decomposição assinaladosno corpo. Quinze dias depois do enterro, uma circunstânciafortuita levou a família a determinar a exumação. Tratava-se de ummedalhão, por acaso esquecido no caixão. Qual não foi, porém,o espanto dos assistentes, quando, ao abrir aquele, notaram que o

42 N. do T.: Vide O Céu e o Inferno, 2a parte, capítulo VIII: ANTONIOB – Enterrado vivo – A pena de talião.

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corpo havia mudado de posição, voltando-se de bruços e – coisahorrível – que uma das mãos havia sido comida em parte pelodefunto. Ficou, então, patente que o infeliz Antonio B... foraenterrado vivo, e deveria ter sucumbido sob a ação do desesperoe da fome. Seja como for, desse triste acontecimento e de suasconseqüências morais não seria interessante, do ponto de vistaespírita e psicológico, fazer um inquérito no mundo dos Espíritos?”

1. Evocação de Antonio B...Resp. – Que quereis de mim?

2. A pedido de um vosso parente, nós vos evocamoscom prazer e seremos felizes se quiserdes responder-nos.

Resp. – Sim, desejo fazê-lo.

3. Lembrais-vos dos incidentes da vossa morte?Resp. – Ah! Certamente que me lembro: – Mas por que

avivar essa lembrança do castigo?

4. Efetivamente fostes enterrado por descuido?Resp. – Assim deveria ser, visto revestir-se a morte

aparente de todos os caracteres da morte real: eu estava quaseexangue. Não se deve, porém, imputar a ninguém umacontecimento que me estava predestinado desde que nasci.

5. Incomodam-vos estas perguntas? Será mister lhesdemos fim?

Resp. – Não. Podeis continuar.

6. Porque deixastes a reputação de um homem de bem,esperamos fôsseis feliz.

Resp. – Eu vos agradeço, pois sei que haveis deinterceder por mim. Vou fazer o possível para vos responder, e, senão puder fazê-lo, fá-lo-á um dos vossos guias por mim.

7. Podeis descrever-nos as vossas sensações daquelemomento?

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Resp. – Que dolorosa provação sentir-me encerradoentre quatro tábuas, tolhido, absolutamente tolhido! Gritar?Impossível! A voz, por falta de ar, não tinha eco! Ah! que tortura ado infeliz que em vão se esforça para respirar num ambientelimitado! Eu era qual condenado à boca de um forno, abstraçãofeita ao calor. A ninguém desejo um fim rematado por semelhantestorturas. Não, não desejo a ninguém um tal fim! Oh! cruel puniçãode cruel e feroz existência! Não saberia dizer no que então pensava;apenas revendo o passado, vagamente entrevia o futuro.

8. Dissestes: – cruel punição de feroz existência...Como se pode conciliar esta afirmativa com a vossa reputaçãoilibada?

Resp. – Que vale uma existência diante da eternidade?!Certo, procurei ser honesto e bom na minha última encarnação,mas eu aceitara um tal epílogo previamente, isto é, antes deencarnar. Ah!... Por que interrogar-me sobre esse passado doloroso,que só eu e os Espíritos bons enviados do Senhor conhecíamos?Mas, visto que assim é preciso, dir-vos-ei que numa existênciaanterior eu emparedara uma mulher – a minha, viva num sepulcrosubterrâneo. A pena de talião devia ser-me aplicada. Olho por olho,dente por dente.

9. Agradecemos essas respostas e pedimos a Deus vosperdoe o passado, em atenção ao mérito da vossa últimaencarnação.

Resp. – Voltarei mais tarde, mas, não obstante, oEspírito Erasto completará esta minha comunicação.

REFLEXÕES DE LAMENNAIS SOBRE ESTA EVOCAÇÃO

Deus é bom! Mas, para chegar ao aperfeiçoamento,deve o homem sofrer as provas mais cruéis. Este infeliz viveuvários séculos durante sua desesperada agonia, e embora sua últimaexistência tenha sido honrada, esta prova deveria realizar-se, pois atinha escolhido.

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REFLEXÕES DE ERASTO

Por essa comunicação podeis inferir a co-relatividade edependência imediata das vossas existências entre si; as tribulações,as vicissitudes, as dificuldades e dores humanas são sempre asconseqüências de uma vida anterior, culposa ou mal aproveitada.Devo, todavia, dizer-vos que desfechos como este de Antonio B...são raros, visto como, se de tal modo terminou uma existênciacorreta, foi por tê-lo solicitado ele próprio, com o fito de abreviara sua erraticidade e atingir mais rápido as esferas superiores.Efetivamente, depois de um período de perturbação e sofrimentomoral, inerente à expiação do hediondo crime, ser-lhe-á perdoadoeste, e ele se alçará a um mundo melhor, onde o espera a vítima quehá muito lho perdoou. Aproveitai este exemplo cruel, queridosespíritas, a fim de suportardes, com paciência, os sofrimentosmorais e físicos, todas as pequenas misérias da Terra.

P. – Que proveito pode a Humanidade auferir desemelhantes punições?

Resp. – As penas não existem para desenvolver aHumanidade, porém para punição dos que erram. De fato, aHumanidade não pode ter nenhum interesse no sofrimento de umdos seus membros. Neste caso, a punição foi apropriada à falta. Porque há loucos, idiotas, paralíticos? Por que morrem estesqueimados, enquanto aqueles padecem as torturas de longa agoniaentre a vida e a morte? Ah! crede-me; respeitai a soberana vontadee não procureis sondar a razão dos decretos da Providência! Deusé justo e só faz o bem.

Erasto

Observação – Este fato não encerra um ensinamentoterrível? Às vezes tardia, nem por isso a justiça de Deus deixa deatingir o culpado, prosseguindo em seu aviso. É altamentemoralizador o saber-se que, se grandes culpados acabam,pacificamente, na abundância de bens terrenos, nem por isso

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deixará de soar cedo ou tarde, para eles, a hora da expiação. Penastais são compreensíveis, não só por estarem mais ou menos aoalcance das nossas vistas, como por serem lógicas. Ora,perguntamos se esse quadro, que o Espiritismo desdobra a cadainstante diante de nós, não é mais apropriado a impressionar, parareter à beira do abismo, do que o medo das chamas eternas, em quejá não acreditamos? Se apenas relermos as evocações publicadasnesta Revista, veremos que não há um vício que não determine oseu castigo, nem uma virtude que não suscite a sua recompensa,proporcionados ao mérito ou ao grau de culpabilidade, porquantoDeus leva em conta todas as circunstâncias que possam atenuar omal ou aumentar o prêmio do bem.

Correspondência

CARTA DO SR. MATHIEU SOBRE A MEDIUNIDADE DAS AVES

Paris, 11 de agosto de 1861.

Senhor,

Quem ainda vos escreve sou eu e, se o permitis, paraprestar uma nova homenagem à verdade.

Somente hoje pude ler, no último número da Revista,vossas excelentes observações sobre a pretensa faculdademediúnica das aves e me apresso em vo-lo agradecer com mais umserviço prestado à causa que ambos defendemos.

Várias exibições de aves maravilhosas têm ocorridonestes últimos anos. Como eu conhecia o truque principal dashabilidades executadas por esses interessantes galináceos, ouviacom muita pena e pesar certos espiritualistas, ou espíritas,atribuírem essas façanhas a uma ação mediúnica, o que devia fazersorrir in petto, se assim me posso exprimir, os proprietários dessas

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aves. Mas o que eles não pareciam apressados em desmentir, venhodesmentir por eles, já que me forneceis a ocasião, não paraprejudicar a sua indústria, o que me desgostaria, mas para impediruma deplorável confusão entre os fatos que uma engenhosapaciência e uma certa habilidade de mãos produzem só neles e quea intervenção dos Espíritos produz em nós.

Estais coberto de razão quando dizeis: “Essas avesfazem coisas que nem o mais inteligente dos homens, nem mesmoo sonâmbulo mais lúcido poderiam fazer, levando-se a concluir queseriam dotadas de faculdades intelectuais superiores às do homeme assim contrariando as leis da Natureza.” Esta consideraçãodeveria atingir em cheio as pessoas excessivamente entusiastas, quenão temem recorrer à faculdade mediúnica para explicarexperiências que, à primeira vista, não compreendem. Infelizmente,os observadores frios e judiciosos são ainda muito raros e, entre oshomens distintos que acompanham os nossos estudos, há os quenem sempre sabem defender-se contra a exaltação da imaginação eos perigos da ilusão.

Ora, quereis que vos diga o que me foi comunicado arespeito dessas aves maravilhosas, das quais, se vos lembrais,admiramos, juntos, uma amostra, certa noite? Um de meus amigos,amante de todas as curiosidades possíveis, mostrou-me um dia umacomprida estante de madeira, na qual estavam colocados, emgrande número, pequenos cartões, dispostos uns ao lado dosoutros. Nesses cartões estavam impressos palavras, números,estampas de baralho, etc. “Comprei-a – disse-me ele – de umhomem que exibia aves sábias.” A venda incluía, também, a maneirade a usar.

Então o meu amigo, retirando da estante, vários dessescartões, fez-me notar que as bordas superiores e inferiores eram,uma completa, outra formada por duas folhas, separadas por umafenda quase imperceptível e, sobretudo, invisível a distância.

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Explicou-me em seguida que esses cartões deviam ser colocados naestante, ora com a fenda dirigida para baixo, ora para o alto,conforme se quisesse que a ave os tirasse da estante com o bico, ounão os tocasse. A ave estava previamente adestrada para atrair a sitodos os cartões em que percebesse uma fenda. Parece que essainstrução preliminar era-lhe dada por meio de grãos de alpiste, oude qualquer outra guloseima, colocados na fenda em questão; elaacabava por adquirir o hábito de bicar e, assim, por tirar da estantetodos os cartões fendidos que aí encontrasse, andando de costas.

Tal é, senhor, o engenhoso ardil que meu amigo deu-me a conhecer. Tudo me leva a crer seja isto comum a todas aspessoas que exploram a indústria das aves inteligentes. Resta a taispessoas o mérito de treiná-las para esse manejo com muitapaciência e, talvez, um pouco de jejum – para as aves, bementendido. Resta-lhes, também, com a maior habilidade possível, omérito de salvar as aparências, quer pela conivência, que por hábilprestidigitação no manejo dos cartões, como no dos acessórios quefiguram em suas experiências.

Lamento assim revelar o mais importante de seussegredos. Mas, por um lado, o público não verá com menos prazeraves tão bem adestradas, mesmo correndo o risco de tornar-setestemunha de coisas impossíveis; por outro lado, não me erapossível deixar por mais tempo que uma opinião fosse aceita,quando a sua propagação não conduz senão à profanação denossos estudos. Na presença de um interesse tão sagrado, creio queum silêncio complacente seria um escrúpulo exagerado. Se fortambém a vossa opinião, senhor, estais livre para comunicar estanotícia aos vossos leitores.

Aceitai, etc.

Mathieu

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Certamente concordamos com o Sr. Mathieu e estamosfelizes por nos termos encontrado com ele sobre esta questão.Agradecemos-lhe os detalhes que houve por bem nos transmitir,que, sem dúvida, agradarão aos nossos leitores. O Espiritismo ébastante rico em fatos notáveis, autênticos, sem admitir os que sereferem ao maravilhoso e ao impossível. Somente um estudo sérioe aprofundado da ciência espírita pode pôr em guarda as pessoasmuito crédulas, considerando-se que tal estudo, ao dar a chave dosfenômenos, ensina-lhes os limites nos quais eles podem produzir-se.

Dissemos que se as aves operassem seus prodígios comconhecimento de causa e pelo esforço da inteligência, fariam o quenão pode fazer nem o mais inteligente dos homens, nem osonâmbulo mais lúcido. Isto nos lembra o sucessor do célebreMunito, que vimos, há vinte e cinco ou trinta anos, ganharinvariavelmente de seu parceiro o jogo de cartas, e dar o total deuma soma antes que pudéssemos fazer o cálculo. Ora, sem vaidade,nós nos julgamos um pouco mais forte no cálculo do que aquelecão. Sem a menor dúvida, havia ali cartas marcadas, como no casodas aves. Quanto aos sonâmbulos, alguns há, incontestavelmente,que são bastante lúcidos para fazerem coisas tão surpreendentesquanto fazem esses interessantes animais, o que não impede quenossa proposição seja verdadeira. Sabe-se que a lucidezsonambúlica, mesmo a mais desenvolvida, é, por natureza,essencialmente variável e intermitente; que está subordinada a umamultidão de circunstâncias e, acima de tudo, à influência do meio-ambiente; que raramente o sonâmbulo vê de modo instantâneo;que muitas vezes não pode ver em dado instante ou que verá umahora mais tarde, ou no dia seguinte; que o que vê com uma pessoa,não o verá com outra. Supondo haja nos animais sábios umafaculdade análoga, seria preciso admitir que eles não sofressemnenhuma influência susceptível de a perturbar; que a tivessemsempre à sua disposição, a qualquer hora, vinte vezes por dia, sepreciso for, e sem nenhuma alteração. É sobretudo no tocante aesse aspecto que dizemos fazerem eles o que o mais lúcido

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sonâmbulo é incapaz de fazer. O que caracteriza os truques deprestidigitação é a precisão, a pontualidade, a instantaneidade, arepetição facultativa, coisas todas contrárias à essência dosfenômenos puramente morais do sonambulismo e do Espiritismo,cujos efeitos se deve sempre aguardar e só raramente podem serprovocados.

Ainda que os efeitos de que acabamos de falar fossemdevidos a processos artificiais, nada provariam contra amediunidade dos animais em geral.

Assim, a questão seria saber se neles há ou não apossibilidade de servirem de intermediários entre os Espíritos e oshomens. Ora, a incompatibilidade de sua natureza, a esse respeito,está demonstrada pela dissertação de Erasto, publicada em nossonúmero de agosto, e a do mesmo Espírito sobre o papel dos médiunsnas comunicações, inserida no do mês de julho.

CARTA DO SR. JOBARD SOBRE OS ESPÍRITAS DE METZ

Bruxelas, 18 de agosto de 1861.

Meu caro mestre,

Acabo de visitar os espíritas de Metz, como visitastes osde Lyon o ano passado. Mas, em vez de pobres operários, simplese iletrados, são condes, barões, coronéis, oficiais engenheiros,antigos alunos da Escola Politécnica, sábios conhecidos por obrasde grande mérito. Eles também me ofereceram um banquete, masum banquete de pagão, que nada tinha de comum com osmodestos ágapes dos primeiros cristãos. O Espírito Lamennaisos admoestou nestes termos:

“Pobre Humanidade! Juntai sempre os detritos do meioem que viveis; materializais tudo, prova de que a lama ainda maculao vosso ser. Não vos censuro, apenas faço uma mera observação.

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Sendo o vosso objetivo adornado de excelentes intenções, oscaminhos que a ele conduz não são condenáveis. Se, ao lado deuma satisfação quase animal, pondes o desejo de santificá-la, deenobrecê-la, certamente a pureza de vossos prazeres a centuplicará.Fora as boas palavras que vão estreitar vossa amizade, ao lado dalembrança dessa boa jornada, na qual o Espiritismo tem largaparticipação, não deixeis a mesa sem ter pensado que os Espíritosbons, que são os professores de vossas reuniões, fazem jus a umpensamento de reconhecimento.”

Que isto sirva de lição aos Lucullus, aos Trimalcionsparisienses, que devoram num jantar o alimento de cem famílias,pretendendo que Deus lhes deu os bens da Terra para desfrutá-los.Para desfrutar, seja; mas não para abusar, a ponto de alterar a saúdedo corpo e do Espírito. Para que servem, pergunto, esses duplos,triplos e quádruplos serviços; essa crescente superfluidade dos maisdelicados vinhos, aos quais parece Deus haver tirado o sabor porum milagre inverso ao das bodas de Caná e que transmuta emveneno para os que perdem a razão, a ponto de se tornareminsensíveis às advertências de seu instinto animal? Ainda que oEspiritismo, propalado nas classes elevadas da sociedade, nãotivesse por efeito senão colocar um freio à glutonaria e às orgias damesa dos ricos, estaria prestando à sociedade um imenso serviço,que a medicina oficial não pôde dispensar, já que os própriosmédicos partilham com muito gosto desses excessos, que lhesfornecem mais doentes, mais estômagos a desobstruir, mais baçosa desopilar, mais gotosos a consolar, porque não sabem curá-los.

Dir-vos-ei, caro mestre, que encontrei em Metz casasda antiga nobreza, muito religiosas, cujas avós, mães, filhas e netose até seus dirigentes eclesiásticos obtêm pela tiptologia ditadosmagníficos, embora de ordem inferior à dos sábios médiuns daSociedade de que vos falo.

Tendo perguntado a alguns Espíritos o que pensavamde certo livro, um nos disse que o tinha lido e meditado, fazendo-

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lhe o maior elogio; o outro confessou que não o havia lido, mas quetinha ouvido falar muito bem a respeito; outro, ainda, o achavabom, mas lhe censurava uma certa obscuridade. Exatamente comose julga na Terra.

Um outro Espírito nos expôs uma das mais sedutorascosmogonias, a nós oferecida como pura verdade; e comoadentrasse nos segredos de Deus sobre o futuro, perguntei-lhe seele não seria o próprio Deus e se sua teoria não passava de uma belahipótese de sua parte. Balbuciou e reconheceu que tinha ido muitolonge, mas que, para ele, tratava-se de uma convicção. Ainda bem!

Em poucos dias recebereis a primeira publicação dosespíritas de Metz, da qual fui o padrinho, a pedido e por gentilezade sua parte. Ficareis contente, pois está boa. Ali encontrareis doisdiscursos de Lamennais sobre a prece, que um padre leu durante osermão, declarando que não podia ser obra de um homem. A Sra.de Girardin os visita, como vós, e reconhecereis seu espírito, seusentimento e seu estilo.

O círculo de Metz pediu-me que o pusesse em contatocom o círculo belga, composto apenas por dois médiuns, dos quaisum francês e outro inglês. Os belgas são infinitamente maisrazoáveis; lamentam de todo coração que um homem deinteligência tão vasta quanto a minha, sobretudo nas ciências ematérias ligadas à indústria, dê-se a essa loucura de acreditar naexistência da alma e, como se não bastasse, na sua imortalidade.Desviam-se de mim com piedade, dizendo: “O que será de nós?!”Foi o que me aconteceu ontem à noite, ao ler-lhes a nossa Revista,que eu pensava dever interessar-lhes, e que tomam como umacoletânea de notícias falsas para divertir os...

Jobard

Observação – Há muito sabíamos que a cidade de Metzmarcha a largos passos na senda do progresso espírita e que os

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senhores oficiais não são os últimos a segui-la. Sentimo-nos felizespor ter a confirmação disto, através de nosso distinto colega Sr.Jobard. Assim, teremos prazer em prestar informações sobre otrabalho desse círculo, que se estabelece sobre basesverdadeiramente sérias. Não deixará de exercer uma grandeinfluência pela posição social de seus membros. Em brevefalaremos do de Bordeaux, que se funda sob os auspícios daSociedade de Paris, já com numerosos elementos e em condiçõesque lhe permitirão ocupar o primeiro lugar.

Conhecemos bastante os princípios do Sr. Jobard paraestarmos certos de que, ao enumerar os títulos e qualidades dosespíritas de Metz, ao lado dos modestos operários que visitamosem Lyon, o ano passado, não quis fazer nenhuma comparaçãoinjuriosa; seu objetivo foi unicamente constatar que o Espiritismoconta adeptos em todas as camadas sociais. É fato bem conhecidoque, por um desígnio providencial, primeiro os recrutou nas classesesclarecidas, a fim de provar aos adversários que não é privilégiodos tolos e ignorantes e, ainda, para não chegar às massas senãodepois de ter sido depurado e eximido de toda idéia supersticiosa.Só há pouco o Espiritismo penetrou entre os trabalhadores; mas aí,também, fez rápidos progressos, pois traz supremas consolaçõesaos sofrimentos materiais, que ensina a suportar com resignação ecoragem.

Engana-se o Sr. Jobard se pensa que em Lyon sóencontramos espíritas entre os operários; a alta indústria, o grandecomércio, as artes e ciências, lá como alhures, fornecem seucontingente. É verdade que naquela cidade os operários sãomaioria, por circunstâncias peculiares ao local. Se esses operáriossão pobres, como diz o Sr. Jobard, é uma razão a mais para lhesestendermos a mão. Mas são cheios de sentimentos, de zelo e dedevotamento; se só tiverem um pedaço de pão, sabem dividi-locom os irmãos; são simples, também é verdade, isto é, não têmorgulho nem a presunção do saber. São iletrados? Sim,

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relativamente, mas não em sentido absoluto. Em falta de ciência,têm bastante raciocínio e bom-senso para apreciarem o que é justoe distinguirem, naquilo que se lhes ensina, o que é racional do queé absurdo. Eis o que pudemos julgar por nós mesmo. Por issoaproveitamos a ocasião para lhes fazer justiça. A carta quepublicamos a seguir, pela qual nos convidam a visitá-los ainda esteano, testemunha a feliz influência exercida pelas idéias espíritas e osresultados que devem ser esperados, quando se generalizarem.

Lyon, 20 de agosto de 1861.

Meu bom senhor Allan Kardec,

Se fiquei tanto tempo sem vos escrever, não creiais terhavido indiferença de minha parte. É que, sabendo da volumosacorrespondência que recebeis, só vos escrevo quando tenho algumacoisa importante a relatar. Venho, pois, dizer que contamosconvosco este ano e pedir informeis a época, tão precisa quantopossível, de vossa chegada, assim como o lugar onde descereis, poisaumentou bastante, este ano, o número de espíritas, sobretudo nasclasses operárias. Todos vos querem ver, ouvir, e, embora sabendoperfeitamente que foram os Espíritos que ditaram vossas obras,desejam ver o homem escolhido por Deus para esta bela missão.Querem dizer-vos o quanto se sentem felizes em vos ler e vos fazerjuiz do progresso moral que tiraram de vossas instruções, pois seesforçam por se tornarem brandos, pacientes e resignados em suamiséria, que é tão grande em Lyon, principalmente na indústria ecomércio da seda. Os que murmuram, os que ainda se queixam sãoos principiantes. Os mais instruídos lhes dizem: Coragem! nossaspenas e sofrimentos são provas, ou a conseqüência de nossas vidasanteriores; Deus, que é bom e justo, nos tornará mais felizes e nosrecompensará em novas reencarnações. Allan Kardec no-lo disse eo prova em seus escritos.

Escolhemos um local maior que o da última vez,porque seremos mais de cem. Nosso banquete será modesto, pois

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as contribuições serão pequenas; será antes o prazer da reunião.Faço de modo que haja espíritas de todas as classes e condições, afim de lhes fazer compreender que são todos irmãos. O Sr. Déjouse ocupa disso com zelo e trará todo o seu grupo, que é numeroso.

Vosso devotado e dedicado,

C. Rey

Um convite igualmente lisonjeiro nos foi enviado deBordeaux:

Bordeaux, 7 de agosto de 1861.

Meu caro senhor Kardec,

O último número de vossa Revista anuncia que aSociedade Espírita de Paris toma suas férias de 15 de agosto a 1o deoutubro. Podemos esperar que, nesse intervalo, honrareis osespíritas bordeleses com vossa presença? Ficaríamos todos muitofelizes. Os mais fervorosos adeptos da doutrina, cujo númeroaumenta diariamente, desejam organizar uma Sociedade, quedependeria da de Paris, para o controle dos trabalhos. Redigimosum documento, calcado no modelo da Sociedade Parisiense e osubmetemos à vossa apreciação. Além da Sociedade principal,haverá grupos de dez a doze pessoas em diversos pontos da cidade,destinados principalmente aos operários, onde, vez por outra,comparecerão membros da Sociedade para dar os conselhosnecessários. Todos os nossos guias espirituais estão de acordo nesteponto, isto é, que Bordeaux deve ter uma sociedade de estudos,pois a cidade será o centro da propagação do Espiritismo em todoo Sul.

Nós vos esperamos confiantes e felizes para o diamemorável da inauguração, julgando que ficareis contente com onosso zelo e maneira de trabalhar. Estamos prontos a submeter-nos

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aos sábios conselhos de vossa experiência. Vinde, pois, ver-nos àobra: pela obra se conhece o obreiro.

Vosso bem dedicado servidor,

A. Sabò

Dissertações e Ensinos Espíritas

UM ESPÍRITO ISRAELITA A SEUS CORRELIGIONÁRIOS

Nossos leitores se recordam da bela comunicaçãopublicada no número de março último, sobre a lei de Moisés e a leido Cristo, assinada por Mardochée e recebida pelo Sr. R..., deMulhouse. Esse senhor recebeu outras, igualmente notáveis, domesmo Espírito, e que publicaremos. A que damos a seguir é de umoutro parente, falecido há alguns meses. Foi ditada em três ocasiõesdiferentes.

A TODOS QUE CONHECI

I

Meus amigos,

Sede espíritas, eu vos conjuro a todos. O Espiritismo éa lei de Deus; é a lei de Moisés aplicada à época atual. QuandoMoisés deu a lei aos filhos de Israel, fê-la tal qual Deus lha dera, eDeus a apropriou aos homens daquele tempo. Mas depois oshomens progrediram; melhoraram em todos os sentidos; fizeramprogressos em ciência e moralidade; hoje, cada um sabe conduzir-se; cada um sabe o que deve ao Criador, ao próximo, a si mesmo.Hoje, pois, é preciso alargar as bases do ensino; o que a lei deMoisés vos ensinou já não basta para fazer avançar a Humanidadee Deus não quer que fiqueis sempre no mesmo ponto, porquanto,

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o que era bom há cinco mil anos já não o é hoje. Quando quereisque vossos filhos progridam e desejais dar-lhes uma educação umtanto mais esmerada, sempre os enviais à mesma escola, onde nãoaprenderiam senão as mesmas coisas? Não; vós os mandais a umaescola superior. Pois bem! São chegados os tempos, meus amigos,em que Deus quer ampliar o quadro dos vossos conhecimentos. Opróprio Cristo, embora tenha feito a lei mosaica avançar um passo,não disse tudo, pois não teria sido compreendido, mas lançousementes que deveriam ser recolhidas e aproveitadas pelas geraçõesfuturas. Deus, em sua infinita bondade, vos envia hoje oEspiritismo, cujas bases estão, inteiras, na lei bíblica e na leievangélica, para vos elevar e ensinar a vos amardes uns aos outros.Sim, meus amigos: a missão do Espiritismo é extinguir todos osódios, de homem a homem, de nação a nação; é a aurora dafraternidade universal que se levanta; somente com o Espiritismopodeis chegar a uma paz geral e durável.

Levantai-vos, pois, ó povos! ficai de pé, porque Deus, oCriador de todas as coisas, envia os Espíritos de vossos parentespara vos abrirem um novo caminho, maior e mais amplo do queaquele que ainda seguis. Oh! meus amigos, não sejais os últimos avos render à evidência, porquanto a mão de Deus pesará sobre osincrédulos, fazendo desapareçam da face da Terra os endurecidos,a fim de não perturbarem o reino do bem, que se prepara. Credenas advertências daquele que foi e será sempre vosso parente evosso amigo.

Que os israelitas tomem a dianteira! Que ostentemrapidamente e sem tardança a bandeira que Deus envia aos homens,para os congregar numa só família. Armai-vos de coragem e deresolução; não hesiteis; não vos detenhais diante dos retardatáriosque vos queiram reter os passos, falando-vos de sacrilégios. Não,meus amigos, não há sacrilégio; lamentai os que tentarem retardar avossa marcha com semelhantes pretextos. Não vos diz a razão queneste mundo nada há de imutável? Só Deus é imutável; mas tudo

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quanto Ele criou deve seguir, e segue, uma marcha progressiva, quenada pode deter, porque está nos desígnios do Criador. Assim, nãocuideis de impedir que a Terra gire!

As instituições, magníficas há cinco mil anos, hoje estãovelhas; o objetivo a que se destinavam está superado; elas já nãobastam à sociedade atual, assim como o antigo regime francês jánão serviria à França dos nossos dias. Novo progresso se prepara,sem o qual todos os outros melhoramentos sociais ficamdesprovidos de bases sólidas: o progresso da fraternidade universal,cujas sementes foram lançadas pelo Cristo e que germinam noEspiritismo. Seríeis, então, os últimos a entrar nessa via? Não vedesque o mundo velho está num trabalho de parto para se renovar?Lançai os olhos sobre o mapa, não digo da Europa, mas do mundo,e vede de que maneira, uma a uma, caem todas as instituiçõesantiquadas, para jamais se levantarem. Por quê? É a aurora daliberdade que se ergue, banindo os despotismos de toda espécie,como os primeiros raios do Sol expulsam as trevas da noite. Ospovos estão cansados de terem sido inimigos; compreendem quesua felicidade está na fraternidade e querem ser livres, porque nãopoderão melhorar e tornar-se irmãos enquanto não forem livres.Não reconheceis à frente de um grande povo um homememinente, que desempenha uma missão assinalada por Deus eprepara os caminhos? Não ouvis o sombrio retumbar do VelhoMundo, que se desmorona para dar lugar a uma nova era? Logovereis surgir na cátedra de São Pedro um pontífice que proclamaráos novos princípios, e esta crença, que será a de todos os povos,reunirá as seitas dissidentes numa só e mesma família. Estaiprontos; içai a bandeira desse ensinamento tão grande e tão santo,para não serdes os últimos.

Israelitas de Bordeaux e de Bayonne, vós quemarchastes à frente do progresso, erguei-vos; aclamai oEspiritismo, porque é a lei do Senhor, e bendizei-o, por vos trazeros meios de chegar mais prontamente à felicidade eterna, que estádestinada aos seus eleitos.

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II

Meus amigos,

Não vos surpreendais ao lerdes esta comunicação. Elavem de mim, Edouard Pereyre, vosso parente, vosso amigo, vossocompatriota. Fui eu mesmo que a ditei ao meu sobrinho Rodolfo,cuja mão seguro para fazê-lo escrever com minha letra. Dou-me aesse trabalho, fatigante tanto a mim quanto ao médium, a fim demelhor vos convencer, pois o medianeiro deve seguir ummovimento contrário ao que lhe é habitual.

Sim, meus amigos, o Espiritismo é uma nova revelação;compreendei o alcance desta palavra em toda a sua acepção. É umarevelação porque vos desvenda uma nova força da Natureza, daqual não suspeitáveis e, contudo, é tão antiga quanto o mundo. Eraconhecida na época de Moisés, pelos homens superiores de nossahistória religiosa, e foi por ela que recebestes os primeirosensinamentos sobre os deveres do homem para com o seu Criador;mas ela não deu senão o que era compatível com os homensdaquela época.

Hoje, que o progresso está feito; que a luz se espalhanas massas; que a estupidez e a ignorância dos primeiros temposcomeçam a dar lugar à razão e ao senso moral; hoje que a idéia deDeus é por todos compreendida ou, pelo menos, pela maioria, dá-se uma nova revelação, que se produz simultaneamente entre todosos povos instruídos, revelação que todavia se modifica conforme ograu de adiantamento desses povos. Tal revelação vos diz que ohomem não morre, que a alma sobrevive ao corpo e habita oespaço; está entre vós, ao vosso lado.

Sim, meus amigos; consolai-vos quando perderdes umser que vos é caro, desde que só perdeis o seu corpo material; seuEspírito vive no meio de vós, para vos guiar, instruir e inspirar.Enxugai vossas lágrimas, sobretudo se ele for bom, caridoso e sem

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orgulho, porque, então, ele é feliz nesse novo mundo, onde todas asreligiões se confundem numa só e mesma adoração, banindo osódios e os ciúmes de seitas. Nós também somos felizes, quandopodemos inspirar esses mesmos sentimentos aos homens, a quemestamos encarregados de instruir, e a nossa maior felicidade é vosver entrar no bom caminho, porque, então, abris a porta pela qualvos juntareis a nós. Perguntai ao médium quais os sublimesensinamentos que ele recebe de seu avô Mardochée; se segue ocaminho que lhe é traçado, prepara para si um futuro de felicidade,mas se falta aos seus deveres após um tal ensino, arcará com todaa responsabilidade e terá de recomeçar até haver cumprido demodo aceitável a sua tarefa.

Sim, meus amigos; já vivemos corporalmente eviveremos ainda. A felicidade que desfrutamos é apenas relativa; háestados muito superiores àquele em que estamos e aos quais não sechega senão por encarnações sucessivas e progressivas em outrosmundos. Não julgueis, portanto, que de todos os globos doUniverso seja a Terra o único habitado. Pobre orgulho humano,que pensa ter Deus criado todos os astros apenas para deleitar a suavista! Sabei, então, que todos os mundos são habitados e, entre eles,se soubésseis a posição que ocupa a Terra, não teríeis razão paravos glorificardes! Se não fosse para cumprir a missão que nos édada, de vos inspirar e instruir, quantos de nós teríamos preferidovisitar esses mundos e nos instruirmos nós mesmos! Mas nossosdeveres e nossas afeições ainda nos ligam à Terra. Mais tarde,quando cedermos o lugar aos que chegarem por último, iremostomar outras existências em mundos melhores, purificando-nosgradualmente até chegar a Deus, nosso Criador.

Eis o Espiritismo. Eis o que ele ensina, e isto é averdade que hoje podeis compreender e que deve auxiliar a vosregenerardes.

Compreendei bem que todos os homens são irmãos,quer sejam negros ou brancos, ricos ou pobres, muçulmanos, judeus

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ou cristãos. Como, para progredir, devem renascer várias vezes,conforme a revelação feita pelo Cristo, permite Deus que aquelesque foram unidos em vidas anteriores pelos laços do sangue ou daamizade, se encontrem novamente na Terra, sem se conhecerem,mas em condições relativas às expiações que devem suportar porsuas faltas passadas, de sorte que aquele que é o vosso servo podeter sido vosso senhor em outra existência. O infeliz a quem recusaisassistência talvez seja um dos vossos antepassados, do qual vosorgulhais, ou um amigo que vos foi caro. Compreendeis agora oalcance do mandamento do Decálogo: “Amarás a teu próximocomo a ti mesmo”? Eis, meus amigos, a revelação que vos deveconduzir à fraternidade universal, quando for compreendida portodos. Eis por que não deveis permanecer imutáveis em vossosprincípios, mas seguir a marcha do progresso traçado por Deus, semjamais vos deterdes. Eis por que vos exortei a empunhar a bandeirado Espiritismo. Sim, sede espíritas, pois é a lei de Deus, e lembrai-vos de que neste caminho está a felicidade, porque é ela que conduzà perfeição. Eu vos sustentarei, eu e todos aqueles que conhecestes,os quais, como eu, agem no mesmo sentido.

Que em cada família se estude o Espiritismo; que emcada família se formem médiuns, a fim de multiplicar os intérpretesda vontade de Deus. Não vos deixeis desencorajar pelos entravesdas primeiras provas; muitas vezes elas são cercadas de dificuldadese nem sempre isentas de perigo, pois não haverá recompensa ondenão houver um pouco de esforço. Todos podeis adquirir essafaculdade; mas estudai antes de tentar obtê-la, a fim de vospremunirdes contra os obstáculos. Purificai-vos de vossas máculas;emendai o coração e os pensamentos para afastar de vós osEspíritos maus; orai, sobretudo, pelos que procuram vos obsidiar,porquanto é a prece que os converte e deles vos liberta. Que aexperiência de vossos antecessores vos seja proveitosa e vos impeçade cairdes nas mesmas faltas!

Continuarei minhas instruções.

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III

A religião israelita foi a primeira que formulou, aosolhos dos homens, a idéia de um Deus espiritual. Até então oshomens adoravam: uns, o Sol; outros, a Lua; aqui, o fogo; ali, osanimais. Mas em parte alguma a idéia de Deus era representada emsua essência espiritual e imaterial.

Chegou Moisés; trazia uma lei nova, que derrubavatodas as idéias até então recebidas. Tinha de lutar contra ossacerdotes egípcios, que mantinham os povos na mais absolutaignorância, na mais abjeta escravidão, e contra esses sacerdotes, quedesse estado de coisas tiravam um poder ilimitado, não podendover sem pavor a propagação de uma idéia nova, que vinha destruiros fundamentos de seu poder e ameaçava derrubá-los. Essa fétrazia consigo a luz, a inteligência e a liberdade de pensar; era umarevolução social e moral. Assim, os adeptos dessa fé, recrutadosentre todas as classes do Egito, e não só entre os descendentes deJacó, como erroneamente tem sido dito, eram perseguidos,acossados, submetidos aos mais duros vexames e, por fim, expulsosdo país, porque infestavam a população com idéias subversivas eanti-sociais. É sempre assim, toda vez que um progresso surge nohorizonte e resplandece sobre a Humanidade. As mesmasperseguições e os mesmos tratamentos acompanham os inovadoresque lançam sobre o solo da nova geração os germes fecundos doprogresso e da moral. É que toda inovação progressiva, ao levar àdestruição de certos abusos, tem, necessariamente, por inimigostodos quanto estão interessados na manutenção desses abusos.

Mas Deus Todo-Poderoso, que conduz com infinitasabedoria os acontecimentos de onde deve surgir o progresso,inspirou Moisés; deu-lhe um poder que homem algum havia tido e,pela irradiação desse poder, cujos efeitos feriam os olhos dos maisincrédulos, Moisés adquiriu uma imensa influência sobre umapopulação que, confiando cegamente em seu destino, realizou umdesses milagres, cuja impressão deveria perpetuar-se de geração em

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geração, como lembrança imperecível do poder de Deus e de seuprofeta.

A passagem do mar Vermelho foi o primeiro ato dalibertação desse povo. Mas sua educação estava por fazer; erapreciso domá-lo pela força do raciocínio e por milagres muitasvezes repetidos; era preciso inculcar-lhes a fé e a moral, ensinando-lhes a pôr a força e a confiança num Deus criador, ser imaterial,infinitamente bom e justo. Os quarenta anos de provaçõespassados no deserto, em meio de privações, sofrimentos evicissitudes de toda ordem, e os exemplos de insubordinação tãoseveramente reprimidos por uma justiça providencial, tudocontribuiu para desenvolver nele a fé nesse ser Todo-Poderoso,cuja mão, ora benfeitora, ora severa, punia quem O desafiasse.

No Monte Sinai ocorreu esta primeira revelação, estenotável mistério, que surpreendeu o mundo, o subjugou e espalhousobre a Terra os primeiros benefícios de uma moral que libertariao Espírito das garras da carne e de um despotismo embrutecedor;que colocou o homem acima da esfera dos animais, dele fazendoum ser superior, capaz de elevar-se, pelo progresso, à supremainteligência.

Os primeiros passos desse povo, que havia confiadoseu destino ao homem de Deus, foram entravados por guerras, cujoefeito devia ser o germe fecundo de uma renovação social entre aspopulações que o combatiam. O judaísmo tornava-se o foco da luz,da inteligência e da liberdade, e irradiava um brilho extraordináriosobre todas as nações vizinhas, provocando ódio e hostilidade. Esteresultado imediato estava nos desígnios de Deus; sem isso, oprogresso teria sido muito lento. E, ao mesmo tempo que essasguerras fecundavam os germes do progresso, eram uma lição paraos judeus, cuja fé reavivavam.

Esse povo, liberto de um outro e confiandoirrefletidamente na conduta de um homem, que o surpreendera em

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virtude de um poder miraculoso, tinha uma missão; era um povopredestinado.

Não é sem razão que foi dito: cumpria uma missão deque não se dava conta, nem ele, nem os outros povos; ia às cegas,executando sem compreender os desígnios da Providência. Essaárida missão foi cheia de fel e de amargura; seus apóstolos sofreramtodas as humilhações possíveis, foram perseguidos, oprimidos,lapidados e dispersos, embora trouxessem consigo essa fé viva einteligente, essa confiança em seu Deus, cujo poder haviammedido, cuja bondade haviam experimentado e cujas provasaceitavam, sobretudo as que deviam trazer à Humanidade osbenefícios da civilização.

Eis os vossos apóstolos obscuros, ridicularizados,desprezados; eis os primeiros pioneiros da liberdade. Terão sofridobastante, da sua saída do Egito até os nossos dias?

A hora da reabilitação não tardará a soar para eles, e nãoestá longe o dia que haverá de saudar esses primeiros soldados dacivilização moderna, com reconhecimento e veneração; far-se-ájustiça aos descendentes dessas antigas famílias que, inabaláveis emsua fé, a levaram como dote a todas as nações onde Deus permitiuque fossem dispersados.

Quando Jesus-Cristo apareceu, era ainda um enviadode Deus; como Moisés, era um novo astro que surgia na Terra,retomando sua missão para dar-lhe continuidade, desenvolvê-la eadaptá-la ao progresso realizado. O próprio Cristo estava destinadoa sofrer essa morte ignominiosa, cujas vias os judeus haviampreparado, desencadeando as suas circunstâncias, e cujo crime foicometido pelos romanos. Deixai, porém, de considerar a históriados povos e dos homens como a haveis considerado até hoje. Emvosso orgulho, imaginais que foram eles que provocaram osacontecimentos que mudaram a face do mundo e esqueceis que háum Deus no Universo, regendo essa harmonia admirável, cujas leis

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suportais, imaginando que a impondes vós mesmos. Olhai, assim,de um ponto mais elevado a História da Humanidade; abarcai umhorizonte mais vasto e notai que tudo segue um sistema único; alei do progresso em cada século, e não em cada dia, vos leva a darum passo.

Jesus-Cristo foi, pois, a segunda fase, a segundarevelação, e seus ensinamentos levaram dezoito séculos para seespalharem e se vulgarizarem. Por aí julgai quanto é lento oprogresso e o que deveriam ser os homens quando Moisés trouxeao mundo admirado a idéia de um Deus Todo-Poderoso, infinito eimaterial, cujo poder se tornava visível para esse povo, para quemsua missão trouxe tantos espinhos e tantas perturbações. Oprogresso não se realiza sem dificuldade; é à sua custa, é por seussofrimentos e cruéis vicissitudes que a Humanidade tomaconsciência do objetivo do seu destino e do poder daquele a quemdeve a existência.

Portanto, o Espiritismo foi o resultado da segundarevelação. Mas essa doutrina, cuja sublime moral o Cristo haviatrazido e desenvolvido, tem sido compreendida em sua admirávelsimplicidade? De que modo é praticada pela maior parte dos que aprofessam? Nunca a desviaram de seu objetivo? Jamais abusaramdela, para que servisse de instrumento ao despotismo, à ambição eà cupidez? Numa palavra, todos os que se dizem cristãos o sãoconforme o seu fundador? Não! Eis por que eles também deviampassar pelo alambique da infelicidade, que tudo purifica. A Históriado Cristianismo é por demais moderna para contar todas as suasperipécias; mas, enfim, o objetivo está perto de ser alcançado, anova aurora vai despontar e, por meios diferentes, vai fazer comque marcheis a passo mais rápido neste caminho, onde levastes seismil anos para chegar.

O Espiritismo é o advento de uma era que verá realizar-se esta revolução nas idéias dos povos, uma vez que haverá de

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destruir essas prevenções incompreensíveis, esses preconceitosimotivados, que acompanharam e seguem os judeus em sua longae penosa peregrinação. Compreender-se-á que sofressem umdestino providencial, do qual eram os instrumentos, assim comoaqueles que os perseguiam com seu ódio o faziam impelidos pelomesmo poder, cujos secretos desígnios deviam realizar-se porcaminhos misteriosos e ignorados.

Sim, o Espiritismo é a Terceira Revelação. Revela-se auma geração de homens mais adiantados, portadores das maisnobres aspirações, generosas e humanitárias, que devem concorrerpara a fraternidade universal. Eis o novo destino assinalado porDeus para os vossos esforços; mas esse resultado, da mesma formaque os já atingidos até hoje, não será obtido sem dores e semsofrimento. Que se ergam os que se sintam com coragem de serseus apóstolos; que levantem a voz, falem alto e claro e exponhamsuas doutrinas; que ataquem os abusos e mostrem o seu objetivo.Esse objetivo não é a brilhante miragem que em vão perseguis; éreal e o atingireis na época fixada por Deus. Talvez esteja distante,mas lá está determinada. Não temais; ide, apóstolos do progresso,marchai corajosamente, a fronte erguida e o coração resignado.Tendes por sustentáculo uma doutrina completamente isenta demistérios, que faz apelo às mais belas virtudes da alma e ofereceessa certeza consoladora de que a alma não morre nunca,sobrevivendo à morte e aos suplícios.

Eis, meus amigos, o objetivo desvendado. Perguntareis:Quais os apóstolos? Como os reconheceremos? Deus se encarregade vo-los tornar conhecidos, por missões que lhes serão confiadase que haverão de realizar. Reconhecê-los-ei por suas obras, e nãopelas qualidades que se atribuam. Os que recebem missões do altoas cumprem, mas não se glorificam, porque Deus escolhe oshumildes para difundir a sua palavra, e não os ambiciosos eorgulhosos. Por estes sinais reconhecereis os falsos profetas.

Edouard Pereyre

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Variedades

NOTÍCIA FALSA

Um jornal, não sabemos de que país, publicou há algumtempo e, ao que parece, outros o repetiram, que deveria realizar-seuma conferência solene sobre o Espiritismo, entre os Srs. Home,Marcillet, Squire, Delaage, Sardou, Allan Kardec, etc., etc. Àquelesdos nossos leitores que porventura tenham ouvido falar doassunto, informamos que nem tudo quanto se imprime é palavra doEvangelho, mesmo que saia num jornal. Trata-se simplesmente denotícia falsa, condimentada pela malícia. É uma pena que tenhamesquecido de pôr espírito no tempero. Aliás, não nossurpreenderíamos se um dia víssemos publicadas as decisões dessecongresso e mesmo citadas palavras que ali teriam sidopronunciadas. Isto não custará nada e, em falta de coisa melhor,encherá as colunas do jornal.

Allan Kardec

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Revista EspíritaJornal de Estudos Psicológicos

ANO IV OUTUBRO DE 1861 No 10

O Espiritismo em Lyon

Atendendo aos reiterados convites que nos fizeram osespíritas de Lyon, fomos este ano novamente a essa cidade.Embora conhecêssemos, pela correspondência, os progressos alirealizados pelo Espiritismo, o resultado da visita ultrapassou demuito a nossa expectativa. Certamente os leitores nos agradecerãopor lhes darmos algumas informações a respeito; nelas verão umindício da marcha irresistível da doutrina e uma prova patente desuas conseqüências morais.

Antes, porém, de falar dos espíritas de Lyon, nãodevemos esquecer os de Sens e de Mâcon, que visitamos depassagem, e agradecer-lhes a simpática acolhida. Lá, também,pudemos constatar um notável progresso, quer no número deadeptos, quer na opinião que se faz do Espiritismo em geral. Portoda parte os zombadores se esclarecem e mesmo aqueles queainda não crêem observam uma prudente reserva, ditada pelocaráter e pela posição social de quantos, hoje, não temem maisconfessar-se publicamente partidários e propagadores das novasidéias. Em face da opinião que se pronuncia e se generaliza, osincrédulos dizem que talvez exista algo, mas, em suma, que cada um

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é livre em suas crenças. Pelo menos antes de falar, querem saber doque se trata, contrariamente ao que ocorria. Ora, não se pode negarque, para muita gente, isso não seja um verdadeiro progresso. Maistarde voltaremos a esses dois centros, ainda novos, numericamentefalando, enquanto Lyon já atingiu todo o seu vigor.

Com efeito, não é mais por centenas que ali se contamos espíritas, como no ano passado, mas por milhares; dito de outraforma, não se os conta mais, calculando-se que, se seguirem amesma progressão, em um ou dois anos serão mais de trinta mil. OEspiritismo os recruta em todas as classes, mas é sobretudo nasclasses operárias que se propagou mais rapidamente, o que não éde admirar; sendo esta a classe que mais sofre, volta-se para o ladoonde encontra mais consolações. Vós, que bradais contra oEspiritismo, que lhe deis outro tanto! A classe operária se voltariapara vós; mas, em vez disto, quereis tirar-lhe aquilo que a ajuda acarregar o seu fardo de misérias. É o meio mais seguro de vossubtrairdes à sua simpatia e engrossar as fileiras que se vos opõem.O que vimos pessoalmente é de tal modo característico e encerratão grande ensinamento, que julgamos um dever consagrar aostrabalhadores a maior parte do nosso relato.

O ano passado só havia um único centro de reunião, ode Brotteaux, dirigido pelo Sr. Dijoud, chefe de oficina, e suamulher; outros se formaram depois, em diferentes pontos dacidade, em Guillotière, em Perrache, em Croix-Rousse, em Vaise,em Saint-Just, etc., sem contar um grande número de reuniõesparticulares. No todo havia apenas dois ou três médiuns, muitoinexperientes, enquanto hoje os há em todos os grupos, e vários deprimeira categoria; só num grupo vimos cinco, escrevendosimultaneamente. Vimos também uma jovem, excelente médiumvidente, na qual pudemos constatar a faculdade desenvolvida emalto grau.

Trouxemos uma coletânea de desenhos extremamentenotáveis, de um médium desenhista que não sabe desenhar. Pela

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execução e pela complexidade, rivalizam com os desenhos deJúpiter, embora de outro gênero. Não devemos esquecer ummédium curador, tão recomendável por seu devotamento quantopela potência de sua faculdade.

Com certeza os adeptos se multiplicam; mas o queainda vale mais do que o número é a qualidade. Pois bem!declaramos alto e bom som que não vimos, em parte alguma,reuniões espíritas mais edificantes que a dos operários lioneses,quanto à ordem, o recolhimento e a atenção com que se devotamàs instruções de seus guias espirituais. Ali há homens, velhos,senhoras, moços, até crianças, cuja postura, respeitosa e recolhida,contrasta com sua idade; jamais perturbaram, fosse por uminstante, o silêncio de nossas reuniões, geralmente muito longas;pareciam quase tão ávidas quanto seus pais em recolher nossaspalavras. Isto não é tudo; o número das metamorfoses morais, nosoperários, é quase tão grande quanto o dos adeptos: hábitosviciosos reformados, paixões acalmadas, ódios apaziguados, índolespacificadas, em suma, desenvolvidas as virtudes mais cristãs e istopela confiança, doravante inabalável, que as comunicações espíritaslhes dão de um futuro em que não acreditavam. Para eles é umafelicidade assistir a essas instruções, de onde saem reconfortadoscontra a adversidade; também se vêem alguns que andam mais deuma légua com qualquer tempo, inverno ou verão, enfrentandotudo para não perderem a sessão; é que neles não há uma fé vulgar,mas fé baseada em convicção profunda, raciocinada, e não cega.

Os Espíritos que os instruem sabem pôr-seadmiravelmente ao alcance de seus ouvintes. Seus ditados não sãomanifestações de eloqüência, mas boas instruções familiares,despretensiosas, e que, por isto mesmo, dirigem-se ao coração. Asconversas com os parentes e amigos mortos ali representam umgrande papel, de onde saem quase sempre úteis lições. Muitas vezesuma família inteira se reúne e a noite passa em suave expansão comos que se foram; querem ter notícias dos tios, tias, primos e primas;

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saber se são felizes. Ninguém é esquecido; cada um quer que o avôlhe diga algo, e a cada um ele dá um conselho. – E eu, vovô,perguntava um dia um adolescente, não me dizeis nada? – Sim, meufilho, a ti eu te direi alguma coisa: não estou contente contigo;outro dia discutiste em caminho por uma tolice, em vez de ir diretoao trabalho; isto não é bom. – Como sabeis disto, vovô? – Semdúvida eu sei. Será que nós Espíritos não vemos tudo o que fazeis,considerando-se que estamos ao vosso lado? – Perdão, vovô;prometo não fazer mais isto.

Não haverá algo de tocante nesta comunicação dosmortos com os vivos? Aí está a vida futura, palpitante aos seusolhos; não mais a morte, não mais a eterna separação, não mais onada; o Céu está mais perto da Terra e se o compreende melhor. Seisto é uma superstição, praza a Deus que jamais tivesse havidooutras!

Um fato digno de nota, e que constatamos, é afacilidade com que esses homens, quase sempre iletrados eendurecidos nos mais rudes trabalhos, compreendem o alcance dadoutrina; pode-se dizer que só lhe vêem o lado sério. Nasinstruções que demos nos diferentes grupos, em vão procuramosexcitar-lhes a curiosidade pelo relato das manifestações físicas,embora nem um só deles tenha visto uma mesa mover-se; noentanto, tudo quanto tocava as apreciações morais cativava seuinteresse no mais alto grau.

A alocução seguinte nos foi dirigida quando de nossavisita ao grupo de Saint-Just; publicamo-la, não para dar satisfaçãoa uma tola e pueril vaidade, mas como prova dos sentimentos quedominam as oficinas de trabalho, onde penetrou o Espiritismo, eporque sabemos ser agradável aos que nos quiseram dar essetestemunho de simpatia. Transcrevemo-la textualmente, poisteríamos escrúpulo de lhe acrescentar uma só palavra; só aortografia foi emendada.

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“Senhor Allan Kardec, discípulo de Jesus, intérprete doEspírito de Verdade, sois nosso irmão em Deus. Estamos reunidostodos com o mesmo coração, sob a proteção de São João Batista,protetor da Humanidade e precursor do grande mestre Jesus, nossoSalvador.

“Nós vos rogamos, caro mestre, que mergulheis vossoolhar no recesso de nossos corações, a fim de que possais vos darconta das simpatias que temos por vós. Somos pobrestrabalhadores, sem artifícios; uma espessa cortina, desde a nossainfância, foi estendida sobre nós, para abafar a nossa inteligência;mas vós, caro mestre, pela vontade do Todo-Poderoso, rasgais acortina. Essa cortina, que julgavam impenetrável, não pôde resistirà vossa digna coragem. Oh! sim, nosso irmão, tomastes o pesadoenxadão para descobrir a semente do Espiritismo, que haviamenterrado em granítico terreno, e a semeais aos quatro cantos doglobo, até mesmo nos pobres quarteirões de ignorantes, quecomeçam a saborear o pão da vida.

“Todos o dizemos do fundo do coração; estamosanimados do mesmo fogo e repetimos todos: Glória a AllanKardec e aos Espíritos bons que o inspiraram! E vós, bons irmãos,Sr. e Sra. Dijoud, os abençoados por Deus, Jesus e Maria, estaisgravados em nossos corações para jamais sair, porque por nóssacrificastes os vossos interesses e os vossos prazeres materiais.Deus o sabe; nós lhe agradecemos por vos ter escolhido para estamissão, agradecendo também ao nosso protetor superior, São JoãoBatista.

“Obrigado, Sr. Allan Kardec; mil vezes obrigado, emnome do grupo de Saint-Just, por terdes vindo entre nós, simplesoperários e ainda muito imperfeitos em Espiritismo; vossapresença nos causa uma grande alegria em meio de nossastribulações, que são grandes neste momento de crise comercial; vósnos trazeis o bálsamo benfazejo que se chama esperança, que

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acalma os ódios e reacende no coração do homem o amor e acaridade. Nós nos aplicaremos, caro mestre, em seguir vossos bonsconselhos, bem assim os dos Espíritos superiores que tiverem abondade de nos ajudar e instruir, a fim de nos tornarmos, todos,verdadeiros e bons espíritas. Caro mestre, tende certeza de quelevais convosco a simpatia de nossos corações para a eternidade;nós o prometemos. Somos e seremos sempre vossos adeptossinceros e submissos. Permiti, a mim e ao médium, que vos demoso ósculo do amor fraterno, em nome de todos os irmãos e irmãsaqui presentes. Ficaríamos muito felizes também se quisésseisbrindar conosco.”

Vínhamos de longe e tínhamos subido às alturas deSaint-Just com um calor sufocante. Alguns refrescos tinham sidopreparados, em meio dos instrumentos do trabalho: pão, queijo,algumas frutas, um copo de vinho, verdadeiro ágape oferecido coma simplicidade antiga e um coração sincero. Um copo de vinho! ah!em nossa intenção, porque essa boa gente não bebe todos os dias;mas era uma boa festa para eles: ia-se falar de Espiritismo. Oh! foicom um prazer imenso que brindamos com eles, e seu lanchemodesto, aos nossos olhos, tinha cem vezes mais valor que os maisesplêndidos banquetes. Que tenham eles aqui a certeza disto.

Alguém nos dizia em Lyon: “O Espiritismo infiltra-senos operários pelo raciocínio; não seria tempo de fazer quepenetrasse pelo coração?” Certamente esta pessoa não conhece osoperários; seria desejável que se encontrasse tanto coração em todoo mundo. Se uma tal linguagem não for inspirada pelo coração; seo coração nada significa para quem, no Espiritismo, encontra aforça de vencer suas más inclinações, de lutar com resignaçãocontra a miséria, de sufocar seus rancores e animosidades; paraquem partilha seu pedaço de pão com um mais infeliz,confessamos não saber onde está o coração.

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BanqueteOFERECIDO AO SR. ALLAN KARDEC PELOS VÁRIOS GRUPOS DE

ESPÍRITAS LIONESES, EM 19 DE SETEMBRO DE 1861

Mais um banquete reuniu este ano certo número deespíritas em Lyon, com a diferença de que no ano passado haviauma trintena de convivas, ao passo que agora alcançavam cento esessenta, representando os diferentes grupos que se consideramtodos como membros de uma mesma família, e entre os quais nãohá sombra de ciúme nem de rivalidade, o que nos deixava muito àvontade. A maioria dos presentes era composta de operários e todosnotavam a perfeita ordem que não deixou de reinar um só instante.É que os verdadeiros espíritas põem a sua satisfação nas alegrias docoração, e não nos prazeres escandalosos. Foram pronunciadosvários discursos. Vamos relatá-los, pois resumem a situação ecaracterizam uma das fases da marcha do Espiritismo; além disso,dão a conhecer o verdadeiro espírito dessa população, outroraencarada com certo temor, porque a haviam julgado mal e, talvez,mal dirigida moralmente. Infelizmente, um dos principais discursosnão será publicado e o lamentamos sinceramente: é o do Sr. Renaud,notável por suas apreciações e no qual encontramos muitos elogiosà nossa pessoa. Um tanto longa, a cópia desse discurso não nos foientregue antes de nossa partida, privando-nos de sua publicação; noentanto, nem por isso somos menos reconhecido ao autor, pelostestemunhos de simpatia que houve por bem nos dar.

Notou-se que, por uma coincidência não premeditada,porque subordinada à nossa chegada, o banquete deste ano ocorreuem 19 de setembro, mesma data daquele do ano passado.

ALOCUÇÃO DO SR. DIJOUD, CHEFE DE OFICINA, PRESIDENTEDO GROUPE SPIRITE DES BROTTEAUX, AGRADECENDO A

ASSISTÊNCIA DOS ESPÍRITOS BONS

Meus bons amigos,

Venho, em nome de todos, agradecer aos Espíritosbons por nos haverem reunido e iniciado, por suas

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manifestações, nas leis divinas, às quais estamos todos submetidos;satisfação imensa para nós, pelas doces consolações que eles nosdão, pois nos fazem suportar com paciência e resignação as provase sofrimentos desta vida passageira e porque agora não maisignoramos o fim de nossas encarnações de rude labor e arecompensa que espera o nosso Espírito, caso as suportemos comcoragem e submissão.

Com eles também aprendemos que se ouvirmos seusconselhos e se praticarmos sua moral sublime, nós mesmos é quetraremos o reino de felicidade que Deus nos prometeu por seuFilho; então o egoísmo, a calúnia e a malícia desaparecerão donosso meio, pois somos todos irmãos e devemos amar-nos, ajudar-nos e nos perdoarmos como irmãos.

É, por conseguinte, ao apelo invisível dos Espíritossuperiores que respondemos, vindo aqui testemunhar-lhes, com ocoração unânime, o nosso reconhecimento. Roguemos-lhes quenos conservem sua proteção e seu amor e continuem suasinstruções tão suaves, tão consoladoras, tão vivificantes, que nostêm feito tanto bem, desde que tivemos a felicidade de receber suascomunicações.

Oh! meus amigos! Como é belo o dia em que Deus nosconvocou! Tomemos todos a resolução de ser bons e sincerosespíritas e de jamais esquecer esta doutrina, que fará a felicidade daHumanidade inteira, conduzindo os homens ao bem. Obrigado aosEspíritos bons que nos assistem e nos iluminam e obrigado a Deuspor no-los haver enviado.

BRINDE DO SR. COURTET, NEGOCIANTE

Senhores,

Membro do Groupe Spirite des Brotteaux, venho, em seunome, propor um brinde em honra do Sr. e da Sra. Dijoud.

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Senhora, cumpro um dever muito agradável, servindode intérprete de toda a nossa Sociedade, que vos agradece por tudoquanto fizestes em nosso favor! Quantas consolações fizestesbrotar entre nós! Quantas lágrimas de ternura e de alegria nosfizestes derramar! Vosso coração, tão bom e tão modesto, não seorgulhou com os vossos sucessos, fazendo aumentar a vossacaridade.

Bem sabemos, senhora, que sois apenas a intérprete dosEspíritos superiores que vos estão ligados, como sabemos,também, com que devotamento vos desobrigais dessa tarefa. Porvosso intermédio fomos iniciados nestas altas questões de moral ede filosofia, cuja solução deve trazer o reino de Deus e, porconseguinte, a felicidade dos homens na Terra.

Também vos agradecemos, senhora, a assistência quedais aos nossos doentes; vossa fé e vosso zelo são recompensadospela satisfação que experimentais em fazer o bem e aliviar osofrimento. Não vos pedimos a continuação dos vossos bonsofícios; ficai certa de toda a nossa gratidão e do nosso eternoreconhecimento.

Sr. Dijoud, nós vos agradecemos a inteligência, afirmeza e a complacência que trazeis às nossas reuniões. Contamosconvosco para continuar esta grande obra, com o concurso dosEspíritos bons.

BRINDE DO SR. BOUILLANT, PROFESSOR

Tenho a honra de fazer um brinde ao Sr. Allan Kardec,um brinde de gratidão e reconhecimento, em nome dos seusadeptos e de seus apóstolos aqui presentes.

Ah! como somos felizes, nós os voluntários da grandeobra, da obra fecunda e regeneradora, por vermos entre nós nossovalente, nosso chefe bem-amado!

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Se experimentamos essa felicidade – é precisoreconhecê-lo – é que o favor especial, que hoje nos é concedido, édaqueles que não se esquecem, que jamais são esquecidos. Oh! qualé o soldado, por exemplo, que não se recordaria com o mais vivoardor de que seu general quis unir-se a ele para partir o mesmo pão,à mesma mesa?

Pois bem! Nós também, caro mestre, somos vossossoldados, vossos voluntários e, por mais alto tenhais plantado ovosso estandarte, não nos compete defendê-lo, pois que ele não onecessita, mas, sim, fazê-lo triunfar, por uma prudente e fervorosapropagação. Esta causa, na verdade, é tão bela, tão justa, tãoconsoladora! Vós no-lo provastes tão bem em vossas obras, tãocheias de erudição, de saber, de eloqüência! Ah! nós todos oreconhecemos, lá estão páginas do homem inspirado pelosEspíritos puros, pois cada um de nós compreendeu, ao beber nafonte do vosso consciencioso trabalho, que todos os vossospensamentos eram outras tantas emanações do Altíssimo! Depois,caro mestre, se acrescentarmos que vossa missão aqui é santa esagrada é porque sentimos, pelo socorro de vossas luzes, acentelha fluídica que liga os mundos visíveis e invisíveis quegravitam na imensidade! Assim, nossos corações batem emuníssono, com um mesmo amor para convosco; recebei aqui a suaexpressão viva, sincera e profunda. A vós, de todo o coração; avós, de todo a nossa alma!

Discurso do Sr. Allan Kardec

Senhoras e Senhores, todos vós, meus caros e bonsirmãos no Espiritismo:

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Se há circunstâncias em que se pode lamentar ainsuficiência de nossa pobre linguagem humana, é sem dúvidaquando se trata de exprimir certos sentimentos; tal é no momentoa minha posição. O que experimento é, ao mesmo tempo, umasurpresa muito agradável, quando vejo o terreno imenso que aDoutrina Espírita conquistou entre vós no último ano, o que mefaz admirar a Providência; uma alegria indizível à vista do bem queela aqui produz, das consolações que espalha sobre tantas dores,ostensivas ou ocultas, podendo deduzir o futuro que a aguarda; éuma felicidade inexprimível encontrar-me em meio a esta família,que em pouco tempo se tornou tão numerosa e cresce a cada dia;é, enfim e acima de tudo, uma profunda e sincera gratidão peloscomoventes testemunhos de simpatia que recebo de vós todos.

Esta reunião tem um caráter particular. Graças a Deus,aqui somos todos muito bons espíritas, penso eu, para não vermossenão o prazer de nos acharmos juntos, e não o de nosencontrarmos à mesa. E, diga-se de passagem, creio mesmo queum festim de espíritas seria uma contradição. Presumo, também,que me convidando tão graciosamente e com tanto empenho paravir ao vosso meio, não imaginastes que a questão do banquete fossepara mim motivo de atração. Foi o que me apressei a escrever aosmeus bons amigos Rey e Dijoud, quando se desculparam pelasimplicidade da recepção. Ficai bem certos: o que mais me honranesta circunstância, aquilo de que posso, com razão, estarorgulhoso, é a cordialidade e a sinceridade do acolhimento, o queraramente se encontra nas recepções aparatosas, pois aqui os rostosnão estão mascarados.

Se uma coisa pudesse diminuir a felicidade que tenhode me achar entre vós, seria não poder ficar aqui senão por poucotempo. Ter-me-ia sido muito agradável prolongar minha estadanum dos centros mais numerosos e mais zelosos do Espiritismo;desde, porém, que desejastes receber algumas instruções, havereisde permitir que eu utilize todos os instantes, saia um pouco das

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banalidades muito comuns em semelhantes circunstâncias, e queminha alocução assuma certa gravidade, a mesma gravidade, aliás,do motivo que nos reúne. Certamente, se estivéssemos num jantarde bodas ou de batizado, seria inoportuno falar de almas, da mortee da vida futura; mas, repito, aqui estamos para nos instruir, e nãopara comer; em qualquer caso, jamais para nos divertirmos.

Não imagineis, senhores, que esta espontaneidade quevos levou a vos reunirdes aqui seja um fato puramente pessoal. Nãoduvideis de que esta reunião tem um caráter especial e providencial;uma vontade superior a provocou; mãos invisíveis vos impeliram,mau grado vosso, e talvez um dia ela seja assinalada nos fastos doEspiritismo. Possam os nossos irmãos do futuro lembrar este diamemorável, em que os espíritas lioneses, dando exemplo de uniãoe concórdia, plantaram nesses ágapes a primeira baliza da aliançaque deve reinar entre os espíritas de todos os países do mundo;porque o Espiritismo, restituindo ao Espírito o seu verdadeiropapel na Criação, constatando a superioridade da inteligência sobrea matéria, faz com que desapareçam, naturalmente, todas asdistinções estabelecidas entre os homens, conforme as vantagenscorporais e mundanas, sobre as quais só o orgulho fundou as castase os estúpidos preconceitos de cor. Ampliando o círculo da famíliapela pluralidade das existências, o Espiritismo estabelece entre oshomens uma fraternidade mais racional que aquela que não tempor base senão os frágeis laços da matéria, porquanto esses laçossão perecíveis, ao passo que os do Espírito são eternos. Uma vezbem compreendidos, esses laços influirão, pela própria força dascoisas, nas relações sociais e, mais tarde, na legislação social, quetomará por base as leis imutáveis do amor e da caridade. Ver-se-áentão desaparecerem essas anomalias que chocam os homens debom-senso, como as leis da Idade Média chocam os homens dehoje. Mas isto é obra do tempo. Deixemos a Deus o cuidado defazer com que cada coisa venha a seu tempo; esperemos tudo desua sabedoria e Lhe agradeçamos tão-somente por nos haverpermitido assistir à aurora que se levanta para a Humanidade e por

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nos ter escolhido como os pioneiros da grande obra que se prepara.Que Ele se digne de espargir a sua bênção sobre esta assembléia, aprimeira em que os adeptos do Espiritismo estão reunidos em tãogrande número, com o sentimento de verdadeira confraternidade.

Digo de verdadeira confraternidade porque tenho aíntima convicção de que todos vós, aqui presentes, não trazemoutra. Mas não duvideis que numerosas coortes de Espíritosestejam entre nós; de que nos ouvem neste momento, espreitamtodas as nossas ações e nos sondam os pensamentos, perscrutandosua força ou sua fraqueza moral. Os sentimentos que os animamsão muito diversos; se uns estão felizes nesta união, crede queoutros padecem de terrível inveja. Saindo daqui, vão tentar semeara discórdia e a desunião; cabe a vós, bons e sinceros espíritas,provar-lhes que perdem o tempo e se equivocam, julgandoencontrar aqui corações acessíveis às suas pérfidas sugestões.Invocai, pois, com fervor a assistência dos vossos anjos da guarda,a fim de que afastem de vós todo pensamento que não seja para obem. Ora, como o mal não pode ter sua fonte no bem, diz osimples bom-senso que todo pensamento mau não pode vir de umEspírito bom; e um pensamento é necessariamente mau quandocontraria a lei de amor e de caridade; quando tem por móvel ainveja ou o ciúme, o orgulho ferido, ou mesmo uma puerilsusceptibilidade do amor-próprio ultrajado, irmão gêmeo doorgulho, que levaria a olhar seus irmãos com desdém. Amor ecaridade para com todos, diz o Espiritismo; Amarás o próximo como ati mesmo, disse o Cristo; não são sinônimos?

Meus amigos, eu vos felicitei pelos progressos que oEspiritismo fez entre vós, e não poderia me sentir mais feliz emconstatá-lo. Felicitai-vos, por vosso lado, porque esse progresso é omesmo em toda parte. Sim, este último ano viu o Espiritismocrescer em todos os países, numa proporção que ultrapassou todasas expectativas; está no ar, nas aspirações de todos, e por toda parteencontra ecos, bocas que repetem: Eis o que eu esperava, o que

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uma voz secreta me fazia pressentir. Mas o progresso se manifestaainda sob uma nova fase: é a coragem de opinião, que há bempouco ainda não existia. Só se falava do Espiritismo em segredo, demaneira disfarçada; hoje a gente se confessa espírita com tantaaltivez quanto se confessa católico, judeu ou protestante. Afronta-se a zombaria, e tal ousadia se impõe aos gracejadores, os quais secomportam como esses cachorrinhos de madame: correm atrásdos que fogem, mas se acovardam quando perseguidos. Azombaria dá coragem aos tímidos e em muitas localidades revelanumerosos espíritas que se desconheciam mutuamente. Talmovimento pode estacionar? Poderão detê-lo? Digo com todaclareza: Não! Para isto, lançaram mão de todos os meios:sarcasmos, deboches, ciência, anátemas; ele tudo superou, semdiminuir sua marcha um segundo. Cego, pois, quem nisto não visseo dedo de Deus. Poderão entravá-lo; detê-lo, jamais, porquanto, senão escapar pela direita, fugirá pela esquerda.

Vendo os benefícios morais que proporciona, asconsolações que prodigaliza e os próprios crimes que já impediu,somos naturalmente levados a perguntar: quem poderia terinteresse em combatê-lo? Primeiramente tem contra si osincrédulos, que o ridicularizam: estes não são para temer, poisviram suas setas afiadas quebrar-se contra a própria couraça; Emsegundo lugar os ignorantes, que o combatem sem conhecê-lo:constituem maioria; mas, combatida pela ignorância, a verdadejamais teve algo a temer, já que os ignorantes se refutam por simesmos e sem o querer, conforme testemunho do Sr. LouisFiguier, na sua História do Maravilhoso. A terceira categoria deadversários é mais perigosa, porque tenaz e pérfida; compõe-se detodos aqueles cujos interesses materiais podem ser contrariados;combatem na sombra, e os dardos envenenados da calúnia não lhesfaltam. Eis os verdadeiros inimigos do Espiritismo, como em todosos tempos o têm sido de todas as idéias do progresso; sãoencontrados em todas as fileiras, em todas as classes da sociedade.Levarão a melhor? Não, desde que não é dado ao homem opor-se

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à marcha da Natureza e o Espiritismo está na ordem das coisasnaturais. Mais cedo ou mais tarde terão de tomar-lhe o partido eaceitar o que for aceito por todos. Não! Não o vencerão: eles é queserão vencidos.

Um novo elemento vem juntar-se à legião dos espíritas:o das classes laboriosas. Notai nisto a sabedoria da Providência. OEspiritismo propagou-se primeiro nas classes esclarecidas, nassumidades sociais. Tal era necessário: a princípio, para lhe dar maiscrédito; depois, para que fosse elaborado e expurgado das idéiassupersticiosas que a falta de instrução nele poderia introduzir, ecom as quais o teriam confundido. Apenas constituído, se assim sepode falar de uma ciência tão nova, sensibilizou as classes operáriase entre elas se propaga com rapidez. Ah! é que nele há tantasconsolações a dar, tanta coragem moral a levantar, tantas lágrimasa enxugar, tanta resignação a inspirar que foi acolhido como umaâncora de salvação, como um escudo contra as terríveis tentaçõesda necessidade. Por toda parte onde o vi penetrar nas casas detrabalho, nelas percebi que ele havia produzido seus efeitosbenfazejos e moralizadores. Regozijai-vos, pois, operários lionesesque me ouvis, porque tendes em outras cidades, como Sens, Lille,Bordeaux, irmãos espíritas que, como vós, abjuraram ascensuráveis esperanças da desordem e os criminosos desejos davingança. Continuai, pelo exemplo, a provar os benéficosresultados desta doutrina. Aos que perguntarem para que pode elaservir, respondei: Em meu desespero eu queria me matar; oEspiritismo me deteve, porque agora sei o que custa abreviarvoluntariamente as provas que Deus houve por bem mandar aoshomens. Para me atordoar, embriagava-me; compreendi o quantoera desprezível por me tirar voluntariamente a razão, privando-meassim de ganhar o pão e o de meus filhos. Havia-me divorciado detodos os sentimentos religiosos: hoje rogo a Deus e deponho asesperanças na sua misericórdia. Só acreditava no nada, comosupremo remédio para as minhas misérias; meu pai comunicou-secomigo e me disse: Filho, coragem! Deus te vê; mais um esforço e

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estarás salvo! Ajoelhei-me perante Deus e lhe pedi perdão. Vendoricos e pobres, gente que tem tudo e outros que nada têm, acusavaa Providência; hoje sei que Deus tudo pesa na balança da justiça eespero o seu julgamento; se estiver em seus decretos que eu devasucumbir no sofrimento, então sucumbirei, mas com a consciênciapura e sem levar o remorso de haver roubado um óbolo a quem mepodia salvar a vida. Dizei-lhes: Eis para que serve o Espiritismo,esta loucura, esta quimera, como o chamais. Sim, meus amigos,continuai a pregar pelo exemplo; fazei com que entendam oEspiritismo com suas conseqüências salutares, pois quando forcompreendido não mais se aterrorizarão; muito mais: será acolhidocomo garantia da ordem social, e os próprios incrédulos serãoforçados a falar dele com mais respeito.

Falei dos progressos do Espiritismo. É que, com efeito,não há exemplo de uma doutrina, seja qual for, que tenha marchadocom tanta rapidez, sem excetuar o próprio Cristianismo. Istosignifica que lhe seja superior, que o deva suplantar? Não; mas éaqui o lugar de fixar o seu verdadeiro caráter, a fim de destruir umaprevenção por demais espalhada entre os que não o conhecem.

Em sua origem, o Cristianismo teve de lutar contra umapotência perigosa: o paganismo, então universalmente disseminado.Entre eles não havia nenhuma aliança possível, como não há entrea luz e as trevas; numa palavra, não poderia propagar-se senãodestruindo o que havia. Assim, a luta foi longa e terrível, de que asperseguições são a prova. O Espiritismo, ao contrário, nada vemdestruir, porque assenta suas bases no próprio Cristianismo; sobreo Evangelho, do qual não é mais que a aplicação. Concebeis avantagem, não de sua superioridade, mas de sua posição. Não é,pois, como o pretendem alguns, quase sempre porque não oconhecem, uma religião nova, uma seita que se forma à custa dasmais antigas; é uma doutrina puramente moral, que absolutamentenão se ocupa dos dogmas e deixa a cada um inteira liberdade desuas crenças, pois não impõe nenhuma. E a prova disto é que tem

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aderentes em todas, entre os mais fervorosos católicos, como entreos protestantes, os judeus e os muçulmanos. O Espiritismo repousasobre a possibilidade de comunicação com o mundo invisível, istoé, com as almas. Ora, como os judeus, os protestantes e osmuçulmanos têm almas como nós, o que significa que podemcomunicar-se tanto com eles quanto conosco, e que,conseguintemente, eles podem ser espíritas como nós.

Não é uma seita política, como não se trata de uma seitareligiosa; é a constatação de um fato que não pertence mais a umpartido do que a eletricidade e as estradas de ferro; é, insisto, umadoutrina moral, e a moral está em todas as religiões, em todos ospartidos.

É boa ou má a moral que ensina? É subversiva? Eistoda a questão. Que o estudem e saberão em que ela se baseia.Ora, desde que é a moral do Evangelho desenvolvida e aplicada,condená-la seria condenar o Evangelho.

O Espiritismo tem feito o bem ou o mal? Estudai-oainda, e vereis. Que tem feito? Tem impedido inumeráveissuicídios; restaurou a paz e a concórdia num grande número defamílias; tornou mansos e pacientes homens violentos e coléricos;deu resignação aos que não a tinham e consolações aos aflitos;reconduziu a Deus os que não O conheciam, destruindo-lhes asidéias materialistas, verdadeira chaga social que aniquila aresponsabilidade moral do homem. Eis o que tem feito e faz todosos dias, o que fará cada vez mais, à medida que se espalhar. Será istoo resultado de uma doutrina má? Não sei de ninguém que tenhaatacado a moral do Espiritismo; apenas dizem que a religião podeproduzir tudo isso. Concordo perfeitamente; mas, então, porquenão o produz sempre? É porque nem todos a compreendem. Ora,ao tornar claro e inteligível para todos aquilo que não o é, eevidente o que é duvidoso, o Espiritismo conduz à aplicação, aopasso que jamais se sente necessidade daquilo que se não

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compreende. O Espiritismo, portanto, longe de ser o antagonistada religião, é o seu auxiliar; e a prova é que conduz às idéiasreligiosas os que as haviam repelido. Em resumo, jamais oEspiritismo aconselhou a mudança de religião, nem o sacrifício desuas crenças; não pertence particularmente a nenhuma religião, ou,melhor dizendo, está em todas elas.

Por favor, senhores, algumas palavras ainda, sobre umaquestão muito prática. O crescente número de espíritas em Lyonmostra a utilidade do conselho que vos dei o ano passado,relativamente à formação dos grupos. Reunir todos os adeptosnuma única sociedade, hoje, já seria uma coisa materialmenteimpossível, e o será mais ainda dentro de algum tempo. Além donúmero, as distâncias a percorrer em vista da extensão da cidade, eas diferenças de hábitos, conforme as posições sociais, aumentamessa impossibilidade. Por esses motivos e por muitos outros, queseria longo aqui desenvolver, uma sociedade única é uma quimeraimpraticável. Multiplicai os grupos o mais possível; que haja dez,que haja cem, se preciso for, e ficai certos de que chegareis maisdepressa e com mais segurança.

Haveria aqui coisas muito importantes a dizer, sobre aquestão da unidade de princípios e sobre a divergência que poderiaexistir entre eles quanto a alguns pontos. Mas me detenho, para nãoabusar de vossa paciência em me ouvir, paciência que já pus a umaprova muito longa. Se desejardes, farei disto objeto de umainstrução especial, que vos enviarei brevemente.

Termino esta alocução, senhores, a que me deixeiarrastar pela própria raridade das ocasiões que tenho a felicidade deestar em vosso meio. Ficai certos de que levarei da vossa benévolaacolhida uma lembrança que jamais se apagará.

Ainda uma vez, meus amigos, obrigado do fundo docoração pelas demonstrações de simpatia com que me distinguis;

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obrigado pelas bondosas palavras que me dirigistes por vossosintérpretes, das quais só aceito o dever que elas me impõem quantoao que me resta fazer, e não os elogios. Possa esta solenidade ser openhor da união que deve existir entre todos os verdadeirosespíritas!

Levanto um brinde aos espíritas lioneses e a todos osque se distinguem por seu zelo, seu devotamento, sua abnegação eque vós mesmos nomeais, sem que eu precise fazê-lo.

Aos espíritas lioneses, sem distinção de opinião, estejamou não presentes!

Senhores, os Espíritos também querem participar destafesta de família e dizer algumas palavras. Erasto, que conheceispelas notáveis dissertações publicadas na Revista, ditouespontaneamente, antes da minha partida e em vossa intenção, aepístola seguinte, que me encarregou de ler em seu nome. É comprazer que me desobrigo desse encargo. Tereis assim a prova deque os Espíritos comunicantes não são os únicos a se ocuparemconvosco e daquilo que vos diz respeito. Esta certeza não podesenão reforçar vossa fé e vossa confiança, vendo que o olharvigilante dos Espíritos superiores se estende sobre todos e que,seguramente, também sois objeto de sua solicitude.

Epístola de Erasto aos EspíritasLioneses

Lida no banquete de 19 de setembro de 1861

Não é sem a mais grata emoção que venho entreter-meconvosco, caros espíritas do grupo lionês. Sinto-me tomado desimpatia e de ternura num meio como o vosso, onde todas ascondições sociais se dão as mãos, e feliz por vos poder anunciar

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que nós todos, os iniciadores do Espiritismo na França,assistiremos com a mais viva alegria os vossos ágapes fraternais, aosquais fomos convidados por João e Irineu, vossos eminentes guiasespirituais. Ah! esses ágapes despertam em meu coração alembrança daqueles em que todos nos reuníamos, mil e oitocentosanos atrás, quando combatíamos os costumes dissolutos dopaganismo romano e já comentávamos os ensinos e parábolas doFilho do Homem, morto pela propagação de uma idéia santa, sobreo lenho da infâmia! Se o Altíssimo, meus amigos, por efeito de suainfinita misericórdia, permitisse que a lembrança do passadopudesse resplandecer um instante em vossas memóriasentorpecidas, recordar-vos-íeis dessa época, ilustrada pelos santosmártires da plêiade lionesa: Sanctus, Alexandre, Attale, Episode; adoce e corajosa Blandina; Irineu, o intrépido bispo, dos quais muitosde entre vós então formáveis cortejo, aplaudindo-lhes o heroísmoe entoando louvores ao Senhor; também vos lembraríeis de quevários dos que me escutam regaram com o seu sangue a terralionesa, esta terra fecunda que Eucher e Gregório de Tourschamaram a pátria dos mártires. Não os mencionarei; mas podeisconsiderar os que, em vossos grupos, desempenham uma missão,um apostolado, como já tendo sido mártires da propagação da idéiaigualitária, ensinada do alto do Gólgota por nosso Cristo bem-amado! Hoje, caros discípulos, aquele que foi sagrado por SãoPaulo vem dizer-vos que vossa missão é sempre a mesma, porquantoo paganismo romano, sempre de pé, sempre vivaz, ainda enlaça omundo, como a hera enleia o carvalho. Deveis, pois, espalhar entreos vossos irmãos infelizes, escravos de suas paixões ou das paixõesalheias, a sã e consoladora doutrina que meus amigos e eu viemosvos revelar, por nossos médiuns de todos os países. Apesar disso,constatamos que os tempos progrediram, os costumes já não sãoos mesmos e a Humanidade cresceu; porque hoje, se fôsseis alvode perseguição, esta não mais emanaria de um poder tirânico einvejoso, como no tempo da igreja primitiva, mas de interesses

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coligados contra a idéia e contra vós, os apóstolos da idéia.

Acabo de pronunciar a palavra igualitária. Julgo útildeter-me um pouco nela, porque absolutamente não vimos pregar,em vosso meio, utopias impraticáveis, e também porque, aocontrário, repelimos com energia tudo quanto pareça ligar-se àsprescrições de um comunismo anti-social; antes de tudo, somosessencialmente propagandistas da liberdade individual,indispensável ao desenvolvimento dos encarnados; por conseguinte,inimigos declarados de tudo quanto se aproxime dessas legislaçõesconventuais, que aniquilam brutalmente os indivíduos. Embora eume dirija a um auditório, em parte composto de artífices eproletários, sei que suas consciências, esclarecidas pelas irradiaçõesda verdade espírita, já repeliram toda comunhão com as teoriasanti-sociais dadas em apoio da palavra igualdade. Seja como for,devo restituir a ela sua significação cristã, tal como a explicaraaquele que disse: “Dai a César o que é de César.” Pois bem,espíritas! a igualdade proclamada pelo Cristo, e que nós mesmosprofessamos nos vossos grupos amados, é a igualdade perante ajustiça de Deus, isto é, nosso direito, conforme nosso devercumprido, de subir na hierarquia dos Espíritos e um dia atingir osmundos avançados, onde reina a perfeita felicidade. Para isto nãosão levados em conta nem o nascimento, nem a fortuna; o pobre eo fraco a alcançam, como o rico e o poderoso, porque uns nãolevam materialmente mais que os outros; e como lá ninguémcompra seu lugar e seu perdão com dinheiro, os direitos são iguaispara todos. Igualdade diante de Deus: eis a verdadeira igualdade.Não vos será perguntado o que possuístes, mas o uso que fizestesdo que possuístes. Ora, quanto mais possuirdes, mais demoradas emais difíceis serão as contas que tereis de prestar da vossa gestão.Assim, pois, conforme as vossas existências de missões, de provasou de castigos nas paragens terrenas, cada um de vós, consoante asboas ou más obras, progredirá na escala dos seres ou recomeçará,mais cedo ou mais tarde, a sua existência, caso se tenha desviado.

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Em conseqüência, repito, ao proclamar o dogma sagrado daigualdade, não vimos ensinar que aqui na Terra deveis ser todosiguais em riqueza, saber e felicidade, mas, sim, que todos chegareis,quando soar a hora e conforme os vossos méritos, à felicidade doseleitos, partilha das almas de escol, que cumpriram seus deveres.Meus caros espíritas, eis a igualdade à qual todos tendes direito, aque vos conduzirá o Espiritismo emancipador, a que vos convidocom todas as minhas forças. Para alcançá-la, que deveis fazer?Obedecer a estas duas palavras sublimes: amor e caridade, queresumem admiravelmente a lei e os profetas. Amor e caridade! Ah!aquele que, segundo sua consciência, cumprir as prescrições destamáxima divina estará certo de subir, de transpor rapidamente osdegraus da escada de Jacó e de logo atingir as esferas elevadas, deonde poderá adorar, contemplar e compreender a majestade doEterno.

Não podeis acreditar quanto nos é doce e agradávelpresidir ao vosso banquete, onde o rico e o artesão se acotovelam,brindando à fraternidade; onde o judeu, o católico e o protestantepodem sentar-se à mesma comunhão pascal. Não podeis imaginarquanto me sinto orgulhoso de distribuir a cada um de vós oselogios e o encorajamento que o Espírito de Verdade, nossobem-amado mestre43, ordenou-me conferisse às vossas piedosascoortes. A ti, Dijoud, e à tua digna companheira; e a vós todos,devotados missionários, que espalhais os benefícios do Espiritismo,obrigado por vosso concurso e por vosso zelo; mas a nobrezaobriga, meus irmãos, sobretudo a do coração, e seríeis muitoculpados, muito criminosos se faltásseis, no futuro, às vossas santasmissões. Não falhareis; tenho como garantia o bem que realizastese o que vos resta fazer. Mas é a vós, meus bem-amados irmãos dolabor quotidiano, que reservo minhas mais sinceras felicitações,porque, bem o sei, subis penosamente o vosso Gólgota, levando,

43 N. do T.: Para algumas pessoas, este testemunho de Erasto vemreforçar a opinião, vez por outra defendida, de que o Espírito deVerdade seria o próprio Cristo.

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como o Cristo, a vossa cruz dolorosa. O que vos poderia dizer demais elogioso que lembrar a coragem e a resignação com quesuportais os desastres inauditos que a luta fratricida44, masnecessária, das duas Américas engendra em vosso meio? Ah!ninguém pode negar já se faça sentir a benéfica influência doEspiritismo; ela penetrou, com a esperança e a fé, no ambiente dasoficinas; e quando nos lembramos dos tempos do último reinado,em que, desde que faltava o trabalho, os operários desciam daCroix-Rousse para os Terreaux45, em grupos tumultuosos, fazendopressagiar motins, cuja repressão era terrível, devemos agradecer aDeus a nova revelação. Com efeito, segundo esta imagem vulgar, deque se servem em sua linguagem pitoresca, muitas vezes é precisodançar diante do bufê 46; então dizem, apertando o cinto: Ah!comeremos amanhã!!! Bem sei que a caridade pública e particularse movimenta e faz o que é possível; mas não é nisso que está overdadeiro remédio. A Humanidade precisa de algo melhor, razãopor que, se o Cristianismo preconizou a igualdade e as leisigualitárias, o Espiritismo encerra em seus flancos a fraternidade eas suas leis, obra grandiosa e durável que os séculos futuros haverãode abençoar. Lembrai-vos, meus amigos, de que o Cristo escolheuseus apóstolos entre os últimos dos homens, e estes, mais fortesque os césares, conquistaram o mundo para a idéia cristã. A vós,pois, incumbe a obra santa de esclarecer os vossos companheirosde oficina e propagar a nossa sublime doutrina, que torna oshomens tão fortes na adversidade, a fim de que o Espírito do male da revolta não venha suscitar o ódio e a vingança no coração devossos irmãos ainda não tocados pela graça espírita. Esta obra vospertence por inteiro, meus caros amigos; sei que a realizareis como mesmo zelo e o mesmo ardor ditados pela consciência de umdever a cumprir. Um dia a História, reconhecida, escreverá em seusanais que os operários de Lyon, iluminados pelo Espiritismo, muito

44 N. do T.: Erasto faz alusão à guerra da Secessão, nos EstadosUnidos, iniciada em 1861.

45 N. do T.: Grifos nossos.46 N. do T.: No original: danser devant le buffet – imagem vulgar que

significa: não ter o que comer, passar por dificuldades, estar na miséria.

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mereceram da pátria em 1861 e 1862, pela coragem e resignaçãocom que suportaram as tristes conseqüências das lutas escravagistasentre os Estados desunidos da América. Que importa! Esses temposde lutas e de provas meus filhos, são abençoados por Deus,enviados para desenvolver a coragem, a paciência e a energia; paraapressar a elevação e o aperfeiçoamento do orbe terrestre e dosEspíritos aprisionados nos laços carnais da matéria. Ide agora; atrincheira está aberta no Velho Mundo; sobre as suas ruínasaclamareis a era espírita da fraternidade, que vos mostra o objetivoe o fim das misérias humanas, consolando e fortalecendo vossoscorações contra a luta e a adversidade; confundireis os incrédulos eos ímpios, e agradecereis a Deus o quinhão de vossos infortúnios ede vossas provas, porque estas vos aproximam da felicidade eterna.

Resta-me ainda vos dar alguns conselhos – embora osvossos guias muitas vezes já vos tenham dado – mas que minhaposição pessoal e a atual circunstância me aconselham a voslembrar novamente. Meus amigos, aqui me dirijo a todos osespíritas, a todos os grupos, a fim de que nenhuma cisão, nenhumadissidência, nenhum cisma venha surgir entre vós, mas, aocontrário, que uma crença solidária vos anime e vos reúna a todos,pois isto é necessário ao desenvolvimento de nossa doutrinabenfazeja. Sinto uma espécie de vontade que me constrange a vospregar a concórdia e a união, pois nisto, como em tudo, a união faza força e tendes necessidade de ser fortaleza e união, a fim de quepossais enfrentar as tempestades que se aproximam. E não sótendes necessidade de união entre vós, mas ainda com os vossosirmãos de todos os países. Eis por que vos concito a seguir oexemplo que vos deram os espíritas de Bordeaux, cujos gruposparticulares formam, todos, os satélites de um grupo central; foiesse grupo central que pediu para entrar em comunhão com aSociedade iniciadora de Paris, a primeira a receber os elementos deum corpo de doutrina e lançar as bases sérias para o estudo doEspiritismo, que todos nós, espíritas, professamos no mundointeiro.

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Sei que aquilo que vos digo aqui não será perdido; aliás,estou me referindo inteiramente aos conselhos que já recebestes, eainda recebereis, dos vossos excelentes guias espirituais, que vosdirigirão nesta via salutar, pois é necessário que a luz se irradie docentro para a periferia e desta para o centro, a fim de que todosaproveitem e se beneficiem dos trabalhos de cada um. Aliás, éincontestável que, submetendo ao crisol da razão e da lógica todosos dados e todas as comunicações dos Espíritos, será fácil repelir oabsurdo e o erro. Um médium pode ser fascinado, um grupoenganado; todavia, o controle severo dos outros grupos, a ciênciaadquirida e a autoridade moral dos chefes de grupos, bem assim ascomunicações dos principais médiuns, que recebem um cunho delógica e de autenticidade de nossos melhores Espíritos,rapidamente farão justiça aos ditados falsificados e astuciosos,emanados de uma turba de Espíritos enganadores, imperfeitos oumaus. Repeli-os impiedosamente, e a todos esses Espíritos queaconselham com exclusividade, pregando a divisão e o isolamento.Quase sempre são Espíritos vaidosos e medíocres, que tendem a seimpor aos homens fracos e crédulos, prodigalizando-lhes louvoresexagerados, a fim de os fascinar e os manter sob domínio.Geralmente são Espíritos sedentos de poder, que, déspotaspúblicos ou privados quando vivos, ainda querem ter vítimas paratiranizar após a morte. Meus amigos, desconfiai, em geral, dascomunicações que trazem um caráter de misticismo ou deestranheza, ou que prescrevem cerimônias e atos bizarros; então hásempre um motivo de legítima suspeita. Por outro lado, ficai certosde que uma verdade, quando deve ser revelada à Humanidade, é,por assim dizer, instantaneamente comunicada em todos os grupossérios, que possuem médiuns sérios.

Enfim, creio ser bom repetir que ninguém é médiumperfeito se estiver obsidiado; a obsessão é um dos maioresescolhos, e há manifesta obsessão quando um médium não estáapto a receber comunicações senão de um Espírito especial, pormais alto que este procure colocar-se. Em conseqüência, todo

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médium, todo grupo que se julguem privilegiados porcomunicações que só eles podem receber, ou que estejam sujeitosa práticas que beiram a superstição, encontram-se indubitavelmentesob o império de uma obsessão muito bem caracterizada. Digotudo isto, meus amigos, porque existem no mundo médiunsfascinados por pérfidos Espíritos. Desmascarai impiedosamenteesses Espíritos, se ousarem ainda profanar nomes venerados, dosquais se apoderam como ladrões e se enfeitam orgulhosamente,como fazem os lacaios com as roupas dos patrões; pregai-os nopelourinho sem piedade, caso persistam em desviar do bomcaminho os cristãos honestos, os espíritas zelosos, cuja boa-féiludiram. Numa palavra, deixai-me repetir o que já aconselhei aosespíritas parisienses: é melhor repelir dez verdades por algumtempo, do que admitir uma única mentira, uma só teoria errônea,porque poderíeis, sobre essa teoria e essa mentira, edificar todo umsistema, que desmoronaria ao primeiro sopro da verdade, qual sefora um monumento edificado sobre areia movediça, ao passo quese hoje rejeitardes certas verdades, certos princípios, porque nãovos são demonstrados com clareza, logo um fato brutal ou umademonstração irrefutável virá firmar a sua autenticidade.

A João, a Irineu, a Blandina, bem como a todos osvossos Espíritos protetores incumbe a tarefa de vos prevenirdoravante contra os falsos profetas da erraticidade. O grandeEspírito emancipador que preside aos nossos trabalhos, sob o olhardo Todo-Poderoso, proverá a isso, podeis crer-me. Quanto a mim,embora esteja mais particularmente ligado aos grupos parisienses,virei algumas vezes entreter-me convosco e acompanharei semprecom interesse os vossos trabalhos particulares.

Esperamos muito da província lionesa, e sabemos quenão faltareis, nem uns nem outros, às vossas respectivas missões.Lembrai-vos de que o Cristianismo, trazido pelas legiões cesaristas,lançou, há quase dois mil anos, as primeiras sementes da renovação

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cristã em Vienne47 e Lyon, de onde se propagaram rapidamente àGália do Norte. Hoje o progresso deve realizar-se numa radiaçãonova, isto é, do Norte ao Sul. À obra, pois, lioneses! É preciso quea verdade triunfe, e não é sem uma legítima impaciência queesperamos a hora em que soará a trombeta de prata, a nos anunciaro vosso primeiro combate e a vossa primeira vitória.

Permiti agora agradecer o recolhimento com que meouvistes e a simpática acolhida que me concedestes. Que DeusTodo-Poderoso, Senhor de todos nós, vos conceda a suabenevolência, espalhando sobre vós e sobre o seu servo muitohumilde os tesouros de sua infinita misericórdia. Adeus! Lioneses,eu vos bendigo!

Erasto

Conversas Familiares de Além-TúmuloEUGÈNE SCRIBE

(Sociedade Espírita de Paris)

Quando da discussão que se estabeleceu entre váriosEspíritos sobre o aforismo de Buffon: O estilo é o homem, relatadoem nosso número anterior, foi citado o nome do Sr. Scribe, o quesem dúvida lhe deu motivo para vir, embora não tivesse sidochamado. Sem participar do debate, ditou espontaneamente adissertação seguinte, ensejando a conversa que a acompanha:

“Seria desejável que o teatro, onde os grandes epequenos vão haurir ensinamentos, se preocupasse um poucomenos em lisonjear o gosto pelos costumes fáceis e em exaltaros aspectos veniais de uma juventude ardente, mas que o progresso

47 N. do T.: Erasto não se refere a Viena, capital da Áustria, mas àcidade francesa do mesmo nome, plantada às margens do Ródano(Rhône), rica em vestígios da época da dominação romana.

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social fosse perseguido por peças elevadas e morais, onde a finaanedota substituísse o sal grosso de cozinha, de que hoje se servemos autores de comédias leves. Mas não; conforme o teatro,conforme o público, lisonjeiam-se as paixões humanas. Aqui,preconizam o avental, em detrimento da casaca, transformada embode expiatório de todas as iniqüidades sociais; ali, é o avental queé difamado e conspurcado, porque, ao que dizem, sempre ocultaum tratante ou um assassino. Mentira de ambos os lados.

“Alguns autores até começam a agarrar o touro peloschifres e, como Émile Augier, a pregar os especuladores nopelourinho da opinião pública. Ah! que importa! Nem por isso opúblico deixa de se arrastar para os teatros, onde uma plásticadescarada e sem pudor faz todas as despesas do espetáculo. Ah! jáé tempo de as idéias espíritas serem propagadas em todas ascamadas sociais, porque, então, o teatro será moralizado por simesmo e, às exibições femininas, sucederão peças conscienciosas,representadas conscienciosamente por artistas de talento. Todosganharão com isto. Esperemos que logo surja um autor dramáticocapaz de expulsar do teatro e do entusiasmo do público todos essesintrujões, proxenetas imorais das damas das camélias de todaespécie. Trabalhai, pois, em espalhar o Espiritismo, que deveproduzir tão louvável resultado.”

E. Scribe

P. – Numa comunicação que ditastes há pouco tempo àSrta. J..., e lida na Sociedade, dissestes que o que fez a vossareputação na Terra não a fez no Céu e que poderíeis ter empregadomelhor os bens que recebestes de Deus. Teríeis a gentileza dedesenvolver este pensamento e dizer em que vossas obras sãorepreensíveis? Parece-nos que têm um lado moral e, de certo modo,abriram caminho ao progresso.

Resp. – Tudo é relativo. No mundo elevado onde hojeme encontro não vejo mais com os olhos terrenos e penso que,

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com os dons que havia recebido do Todo-Poderoso, deveria terfeito coisa melhor para a Humanidade. Foi por isso que disse nãohaver trabalhado para o Céu. Mas não posso exprimir em poucaspalavras o que vos queria dizer acima, porque, com bem o sabeis,eu era um tanto verboso.

P. – Dissestes ainda que gostaríeis de compor uma obramais útil e mais séria, mas que tal alegria vos foi recusada. É comoEspírito que queríeis fazer essa obra e, neste caso, como teríeis feitopara que os homens a aproveitassem?

Resp. – Meu Deus! da maneira mais simples empregadapelos Espíritos, inspirando os escritores que, muitas vezes,imaginam tirar de seu próprio imo, ah! por vezes tão vazio.

P. – Pode-se saber qual o assunto que ofereceríeis paratratar?

Resp. – Eu não tinha um objetivo determinado, mas,como sabeis, a gente gosta um pouco de fazer o que nunca fez.Gostaria de cuidar de filosofia e de espiritualismo, já que me ocupeimais que devia do realismo. Não tomeis a palavra realismo comohoje a entendem; apenas quis dizer que me ocupei maisespecialmente daquilo que divertia os olhos e o ouvido dosespíritos frívolos da Terra, e não do que poderia satisfazer osespíritos sérios e filosóficos.

P. – Dissestes à Srta. J... que não éreis feliz. Podeis nãoter a sorte dos bem-aventurados, mas há pouco, no comitê,contaram uma porção de boas ações que praticastes e que, porcerto, devem ter sido levadas em consideração.

Resp. – Não; não sou feliz porque, infelizmente, aindatenho ambição e, tendo sido acadêmico na Terra, queria fazer parte,também, da assembléia dos eleitos.

P. – Parece-nos que, em falta da obra que ainda nãopodeis fazer, poderíeis alcançar o mesmo objetivo, para vós e paraos outros, se aqui viésseis fazer uma série de dissertações.

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Resp. – Não pediria nada melhor; virei com prazer, seme permitirem, o que ignoro, pois ainda não tenho posição bemdefinida no mundo espiritual. Tudo é tão novo para mim – eu quepassei a vida a casar oficiais subalternos com ricas herdeiras – queainda não tive tempo de conhecer e admirar este mundo etéreo, deque me havia esquecido durante a encarnação. Voltarei, pois, se osGrandes Espíritos o permitirem.

P. – No mundo em que estais, já revistes a Sra. deGirardin que, em vida, ocupava-se muito de Espíritos e evocações?

Resp. – Ela teve a bondade de vir esperar-me no limiarda verdadeira vida, com os Espíritos da plêiade à qual pertencemos.

P. – Ela é mais feliz que vós? Resp. – Seu Espírito é mais feliz do que eu, porque

contribuiu para as obras de educação da infância, compostas porSophie Gay, sua mãe.

Observação de Erasto – Não; foi porque lutou, ao passoque Scribe deixou-se arrastar na torrente da vida fácil.

P. – Ides às vezes assistir à representação de vossasobras, assim como a Sra. de Girardin ou Casimir Delavigne?

Resp. – Como quereis que não fôssemos ver esses filhosqueridos, que deixamos na Terra? Ainda é um dos nossos prazeresmais puros.

Observação – A morte, pois, não separa os que seconheceram na Terra; eles se reencontram, reúnem-se e seinteressam pelo que era objeto de suas preocupações. Dirão, semdúvida, que se eles se lembram do que lhes dava alegria, haverão delembrar-se, também, daquilo que lhes causava dor, e isso lhes devealterar a felicidade. Tal lembrança produz um efeito inteiramentecontrário, porque a satisfação de estar liberto dos males terrestres éum prazer tanto mais suave, quanto maior for o contraste.Apreciamos melhor os benefícios da saúde após uma doença, a

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calma após a tempestade. Voltando ao lar, o guerreiro não secompraz em contar os perigos que correu, as fadigas queexperimentou. Do mesmo modo, para os Espíritos a lembrança daslutas terrestres é uma satisfação, quando delas saíram vitoriosos.Mas essa lembrança se perde ao longo do tempo ou, pelo menos,diminui de importância aos seus olhos, à medida que se libertamdos fluidos materiais dos mundos inferiores e se aproximam daperfeição. Para eles, tais lembranças são sonhos longínquos, comono homem feito as recordações da primeira infância.

Ensinamentos e Dissertações EspíritasOS CRETINOS

(Sociedade Espírita de Paris – Médium: Sra. Costel)

Nossa companheira, Sra. Costel, tendo feito umaexcursão na região dos Alpes em que o cretinismo parece terestabelecido um de seus principais focos, ali recebeu, de um de seusEspíritos habituais, a seguinte comunicação:

– Os cretinos são seres punidos na Terra pelo mau usoque fizeram de poderosas faculdades. Sua alma está aprisionadanum corpo, cujos órgãos impotentes não podem exprimir seupensamento. Esse mutismo moral e físico é uma das mais cruéispunições terrestres, muitas vezes escolhidas pelos Espíritosarrependidos que querem resgatar suas faltas. Tal prova não éestéril, porque o Espírito não fica estacionário na sua prisão decarne: os olhos hebetados vêem, o cérebro deprimido compreende,mas nada pode ser traduzido, nem pela palavra, nem pelo olhar e,salvo o movimento, estão moralmente no estado dos letárgicos edos catalépticos, que vêem e ouvem o que se passa ao seu redorsem poderem exprimi-lo. Quando, em sonho, tendes esses terríveispesadelos, nos quais quereis fugir de um perigo, quando gritais parapedir socorro, enquanto a língua fica presa à abóbada palatina e os

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pés ao solo, experimentais por alguns instantes o que o cretinoexperimenta sempre: paralisia do corpo ligada à vida do Espírito.

Quase todas as enfermidades têm, assim, sua razão deser; nada se faz sem causa, e o que chamais injustiça da sorte é aaplicação da mais alta justiça. A loucura também é uma puniçãopelo abuso de altas faculdades; o louco tem duas personalidades: adelirante e a que retém a consciência de seus atos, sem os poderdirigir. Quanto aos cretinos, a vida contemplativa e isolada de suasalmas, sem as distrações do corpo, também pode ser tão agitadaquanto as existências mais complicadas pelos acontecimentos;alguns se revoltam contra seu suplício voluntário; lamentam tê-loescolhido e sentem um desejo furioso de voltar a uma outra vida,desejo que lhes faz esquecer a resignação na vida presente e oremorso da vida passada, que albergam na consciência, porquantoos cretinos e os loucos sabem mais que vós, e na sua incapacidadefísica oculta-se uma força moral da qual não fazeis a menor idéia.Os atos de furor ou de imbecilidade a que seus corpos se entregamsão julgados pelo ser interior, que sofre e se envergonha. Assim,ridicularizá-los, injuriá-los, mesmo maltratá-los, como às vezes sefaz com eles, é aumentar-lhes os sofrimentos, porque os faz sentirmais duramente sua fraqueza e sua abjeção; se pudessem,acusariam de covardia os que assim agem, pois sabem que suasvítimas não podem se defender.

O cretinismo não é uma lei de Deus e a Ciência podefazê-lo desaparecer, porquanto é o resultado material da ignorância,da miséria e da imundície. Os novos meios de higiene, que aCiência, tornada mais prática, pôs ao alcance de todos, tendem adestruí-lo. Sendo o progresso condição expressa da Humanidade,as provas impostas se modificarão e seguirão a marcha dos séculos;tornar-se-ão todas morais; e quando a vossa Terra, ainda jovem,tiver realizado todas as fases de sua existência, tornar-se-á umamorada de felicidade, como outros planetas mais adiantados.

Pierre Jouty, pai do médium

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Observação – Houve um tempo em que se havia postoem dúvida a alma dos cretinos e se perguntava se eles, realmente,pertenciam à espécie humana. A maneira por que o Espiritismo osencara não é de alta moralidade e de grande ensinamento? Não hámatéria para sérias reflexões, ao pensar que esses corposdesgraçados encerram almas que talvez tenham brilhado nomundo, que são tão lúcidas e tão pensantes quanto as nossas, sobo espesso envoltório que lhes sufoca as manifestações e que, umdia, o mesmo pode acontecer conosco, se abusarmos dasfaculdades que nos concedeu a Providência?

De outro modo, como poderíamos explicar ocretinismo? Como fazê-lo concordar com a justiça e a bondade deDeus, sem admitir a pluralidade das existências, isto é, areencarnação? Se a alma ainda não viveu, é que foi criada ao mesmotempo que o corpo. Nesta hipótese, como justificar a criação dealmas tão deserdadas quanto a dos cretinos, por parte de um Deusjusto e bom? Porque aqui não se trata absolutamente de um dessesacidentes – a loucura, por exemplo – que se pode prevenir ou curar.Esses seres nascem e morrem no mesmo estado. Não possuindonenhuma noção do bem e do mal, qual a sua sorte na eternidade?Serão felizes como os homens inteligentes e trabalhadores? Maspor que este favor, pois que nada fizeram de bom? Estarão naquiloa que chamam limbo, isto é, num estado misto, que nem éfelicidade nem infelicidade? Mas por que esta inferioridade eterna?É sua culpa se Deus os criou cretinos? Desafiamos todos os querepelem a doutrina da reencarnação a saírem desse impasse. Com areencarnação, ao contrário, o que parece uma injustiça torna-seadmirável justiça; o que é inexplicável explica-se da maneira maisracional. Aliás, não sabemos se os que repelem esta doutrina atenham combatido com argumentos mais peremptórios que o desua repugnância pessoal em voltar à Terra. Estariam, assim, muitoseguros de possuir bastante virtude para ganhar o Céu com tantafacilidade? Desejamos-lhes boa sorte. Mas... e os cretinos? E ascrianças que morrem em tenra idade? Que títulos possuirão parafazer valer?

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SE FOSSE UM HOMEM DE BEM, TERIA MORRIDO48

(Sociedade Espírita de Sens)

Falando de um homem mau, que escapa de um perigo,costumais dizer: Se fosse um homem bom, teria morrido. Pois bem,assim falando, dizeis uma verdade, pois, com efeito, muito amiúdesucede dar Deus a um Espírito de progresso ainda incipienteprova mais longa, do que a de um bom que, por prêmio do seumérito, receberá a graça de ter tão curta quanto possível a suaprovação. Por conseguinte, quando vos utilizais daquele axioma,não suspeitais de que proferis uma blasfêmia.

Se morre um homem de bem, cujo vizinho é mauhomem, logo observais: Antes fosse este. Enunciais uma enormidade,porquanto aquele que parte concluiu a sua tarefa e o que fica talveznão haja principiado a sua. Por que, então, haveríeis de querer queao mau faltasse tempo para terminá-la e que o outro permanecessepreso à gleba terrestre? Que diríeis se um prisioneiro, que cumpriua sentença contra ele pronunciada, fosse conservado no cárcere, aomesmo tempo que restituíssem à liberdade um que a esta não tivessedireito? Ficai sabendo que a verdadeira liberdade, para o Espírito,consiste no rompimento dos laços que o prendem ao corpo e que,enquanto vos achardes na Terra, estareis em cativeiro.

Habituai-vos a não censurar o que não podeiscompreender e crede que Deus é justo em todas as coisas. Muitasvezes, o que vos parece um mal é um bem. Tão limitadas, noentanto, são as vossas faculdades, que o conjunto do grande todonão o apreendem os vossos sentidos obtusos. Esforçai-vos por sair,pelo pensamento, da vossa acanhada esfera e, à medida que voselevardes, diminuirá para vós a importância da vida material que,nesse caso, se vos apresentará como simples incidente, no cursoinfinito da vossa existência espiritual, única existência verdadeira.

Fénelon

48 N. do T.: Vide O Evangelho segundo o Espiritismo, capítulo V, item 22.

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OS POBRES E OS RICOS

(Sociedade Espírita de Lyon)

Nota – Embora os espíritas de Lyon estejam divididosem vários grupos, que se reúnem separadamente, nós osconsideramos como formando uma única sociedade, quedesignaremos sob o nome geral de Sociedade Espírita de Lyon. Asduas seguintes comunicações foram recebidas em nossa presença:

O ciúme é o companheiro do orgulho e da inveja. Elevos leva a desejar tudo quanto os outros possuem, sem quepercebais que, invejando sua posição, não estareis pedindo senão opresente de uma víbora, que acalentaríeis ao seio. Sempre invejais etendes ciúme dos ricos; vossa ambição e vosso egoísmo vos levama ter sede do ouro alheio. “Se eu fosse rico – dizeis – faria dos meusbens um uso muito diverso do que vejo fazendo este ou aquele.” Esabeis se, tendo esse ouro, não faríeis um uso ainda pior? A istorespondeis: “Aquele que está ao abrigo das necessidades cotidianasda vida sofre muito pouco, em comparação comigo.” Que sabeis arespeito? Aprendei que o rico nada mais é que um intendente deDeus; se usar mal a sua fortuna, ser-lhe-ão pedidas contas severas.Esta fortuna que Deus lhe dá e da qual aproveita na Terra, é a suapunição, é a sua prova, a sua expiação. Quantos tormentos o ricose permite para conservar esse ouro, a que tanto se prende! Equando chega a sua hora derradeira, quando deve prestar contas ecompreende, nessa hora suprema, que quase sempre lhe revela todaa conduta que deveria ter tido, como treme! como tem medo! É quecomeça a compreender que falhou em sua missão, que foi ummandatário infiel e que suas contas vão ser desordenadas. Ospobres trabalhadores, ao contrário, que sofreram toda a vida,ligados à bigorna ou à charrua, vêem chegar a morte, estalibertação de todos os males, com reconhecimento, sobretudo sesuportaram suas misérias com resignação e sem murmurar. Crede,meus amigos, se vos fosse dado ver o rude pelourinho ao qual afortuna liga os ricos, vós, cujo coração é bom, porque passastes por

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todas as peneiras da desgraça, diríeis com o Cristo, quando vossoamor-próprio fosse ferido pelo luxo dos opulentos da Terra:“Perdoai-lhes, Senhor, pois não sabem o que fazem”; eadormeceríeis no vosso rude travesseiro, acrescentando: “MeuDeus, abençoai-me, e que seja feita a vossa vontade!”

O Espírito protetor do médium

DIFERENTES MANEIRAS DE FAZER A CARIDADE49

(Sociedade Espírita de Lyon)

Nota – A comunicação seguinte foi recebida em nossapresença no grupo de Perrache:

Sim, meus amigos, virei sempre ao vosso meio, sempreque for chamado. Ontem me senti muito feliz por vossa causa,quando ouvi o autor dos livros que vos abriram os olhostestemunhar o desejo de vos ver reunidos para vos dirigir palavrasde benevolência. É um grande ensinamento para todos vós e, aomesmo tempo, poderosa lembrança. Apenas notei, quando vosfalou do amor e da caridade, que vários de vós se perguntavam:Como fazer a caridade? Muitas vezes não tenho sequer onecessário.

Amigos, de mil maneiras se faz a caridade. Podeis fazê-la por pensamentos, por palavras e por ações. Por pensamentos,orando pelos pobres abandonados, que morreram sem se acharemsequer em condições de ver a luz. Uma prece feita de coração osalivia. Por palavras, dando aos vossos companheiros de todos osdias alguns bons conselhos, dizendo aos que o desespero, asprivações azedaram o ânimo e levaram a blasfemar do nome doAltíssimo: “Eu era como sois; sofria, sentia-me desgraçado, masacreditei no Espiritismo e, vede, agora sou feliz.” Aos velhos quevos disserem: “É inútil; estou no fim da minha jornada; morrerei

49 N. do T.: Vide O Evangelho segundo o Espiritismo, capítulo XIII, item 10.

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como vivi”, dizei: Deus usa de justiça igual para com todos nós;lembrai-vos dos trabalhadores da última hora. Às crianças jáviciadas pelas companhias de que se cercaram e que vão pelomundo, prestes a sucumbir às más tentações, dizei: “Deus vos vê,meus caros pequenos”, e não vos canseis de lhes repetir essasbrandas palavras. Elas acabarão por lhes germinar nas inteligênciasinfantis e, em vez de vagabundos, fareis deles homens. Tambémisso é caridade.

Dizem, outros dentre vós: “Ora! somos tão numerososna Terra, que Deus não nos pode ver a todos.” Escutai bem isto,meus amigos: Quando estais no cume da montanha, não abrangeiscom o olhar os bilhões de grãos de areia que a cobrem? Pois bem:do mesmo modo vos vê Deus. Ele vos deixa usar do vosso livre-arbítrio, como vós deixais que esses grãos de areia se movam aosabor do vento que os dispersa. Apenas, Deus, em sua misericórdiainfinita, vos pôs no fundo do coração uma sentinela vigilante, quese chama consciência. Escutai-a, que somente bons conselhos ela vosdará. Às vezes, conseguis entorpecê-la, opondo-lhe o espírito domal. Ela, então, se cala. Mas, ficai certos de que a pobre escorraçadase fará ouvir, logo que lhe deixardes aperceber-se da sombra doremorso. Ouvi-a, interrogai-a e com freqüência vos achareisconsolados com o conselho que dela houverdes recebido.

Meus amigos, a cada regimento novo o general entregaum estandarte. Eu vos dou por divisa esta máxima do Cristo:“Amai-vos uns aos outros.” Observai esse preceito, reuni-vos todosem torno dessa bandeira e tereis ventura e consolação.

Vosso Espírito protetor

ROMA

(Enviada pelo Sr. Sabò, de Bordeaux)

Cidade de Rômulo, cidade dos Césares, berço doCristianismo, tumba dos apóstolos, tu és a cidade eterna, e Deus

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quer que a longa letargia em que caíste cesse finalmente. Vai soar ahora de teu retorno; sacode o entorpecimento de teus membros;levanta-te, forte e valente, para obedecer aos destinos que teesperam, pois há longos séculos não passas de uma cidade deserta.As ruínas numerosas de tuas vastas arenas, que dificilmentecontinham as ondas de ávidos espectadores, mal são visitadas pelosraros estrangeiros que, de vez em quando, passam por tuas ruassolitárias. Tuas catacumbas, onde repousam os despojos de tantossoldados valentes, mortos pela fé, apenas os tiram de suaindiferença. Mas a crise que sofres será a última e irás sair dessepenoso e doloroso trabalho, grande, forte, poderosa, transformadapela vontade de Deus e, do alto de tua velha basílica, a voz dosucessor de São Pedro estenderá sobre ti as mãos que trarão asbênçãos do céu, e ele chamará ao seu supremo conselho osEspíritos do Senhor; submeter-se-á às suas lições e dará o sinal doprogresso, empunhando francamente a bandeira do Espiritismo.Então, submetido a seus ensinos, o universo católico acorrerá emmassa para se colocar ao redor do cajado de seu primeiro pastor e,dado esse impulso, todos os corações se voltarão para ti. Serás ofarol luminoso que deve iluminar o mundo, e teus habitantes,alegres e felizes por te ver dar às nações o exemplo domelhoramento e do progresso, repetirão em seu canto: Sim, Romaé a cidade eterna.

Massillon

O COLISEU

(Enviada pelo Conde X..., de Roma. Traduzida do italiano)

Que sentimento faz nascer em vós a visão do Coliseu?O produzido pelo aspecto de toda ruína: tristeza. Suas vastas ebelas proporções lembram todo um mundo de grandeza; mas suadecrepitude invariavelmente leva o pensamento para a fragilidadedas coisas humanas. Tudo passa; e os monumentos, que pareciamdesafiar o tempo, se desmoronam, como para provar que só as

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obras de Deus são duráveis. E quando os escombros, semeados portoda parte, protestam contra a eternidade das obras do homem,ousais chamar eterna uma cidade juncada de ruínas do passado!

Onde estás, Babilônia? Onde estás, Nínive? Ondevossos imensos e esplêndidos palácios? Viajante, em vão osprocura sob as areias do deserto; não vês que Deus os apagou daface da Terra? Roma! Esperas, pois, afrontar as leis da Natureza?Sou cristã, dizes, e Babilônia era pagã. Sim; mas, como ela, és depedra, e um sopro de Deus pode dispersar essas pedrasamontoadas. O solo que treme à tua volta não está a te advertir queteu berço, que se acha sob teus pés, pode tornar-se o teu túmulo?Sou cristã, dizes, e Deus me protege! Mas ousas comparar-te a essesprimeiros cristãos, que morriam pela fé, e cujos pensamentos jáeram deste mundo, tu que vives de prazeres, luxo e indolência?Lança os olhos sobre estas arenas, diante das quais passas comtanta indiferença; interroga estas pedras, ainda de pé, e elas tefalarão, e a sombra dos mártires te aparecerá para dizer: Que fizesteda simplicidade, de que nosso divino mestre fez uma lei, dehumildade e de caridade, cujo exemplo nos deu? Tinham palácios?Vestiam-se de ouro e seda esses primeiros propagadores doEvangelho? Suas mesas esbanjavam o supérfluo? Tinham coortesde servos inúteis para lhes adular o orgulho? Que há de comumentre ti e eles? Eles não buscavam senão os tesouros do Céu, e tubuscas os tesouros da Terra! Ó homens que vos dizeis cristãos,vendo o vosso apego aos bens perecíveis deste mundo, dir-se-iarealmente que não contais com os da eternidade. Roma! que tedizes imortal, possam os séculos futuros não buscar o teu lugar,como hoje é procurado o da Babilônia!

Dante

Observação – Por singular coincidência, estas duasúltimas comunicações nos chegaram no mesmo dia. Embora

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tratando do mesmo assunto, vê-se que os Espíritos o encaram cadaum do seu ponto de vista pessoal. O primeiro vê a Roma religiosae, em sua opinião, eterna, porque será sempre a capital do mundocristão; o segundo vê a Roma material e diz que nada do que oshomens edificam é eterno. Aliás, sabe-se que os Espíritos têm suasopiniões e que podem divergir entre si na maneira de ver, quandoainda imbuídos das idéias terrestres; só os Espíritos mais purosestão isentos de preconceitos. Mas, pondo de lado a opinião, quepode ser controversa, não se poderá recusar a estas duascomunicações uma grande elevação de estilo e de pensamento ecremos que não seriam desabonadas pelos autores que levam seusnomes.

A TERRA PROMETIDA

(Enviada pelo Sr. Rodolfo, de Mulhouse)

O Espiritismo se levanta e logo sua luz fecunda vaialumiar o mundo; seu brilho magnífico protestará contra os ataquesdos interessados em conservar os abusos e contra a incredulidadedo materialismo. Os que duvidam sentir-se-ão felizes por encontrarnesta doutrina nova, tão bela, tão pura, o bálsamo consolador queos curará do cepticismo e os tornará aptos a melhorar e progredir,como todas as demais criaturas. Privilegiados serão os que,renunciando às impurezas da matéria, se lançarem em vôo rápidoaté o topo das idéias mais puras e buscarem desmaterializar-secompletamente.

Povos! erguei-vos para assistir à aurora desta vida nova,que vem para a vossa regeneração; que, enviada por Deus, vem paravos unir numa santa comunhão fraterna. Oh! como serão felizes osque, ouvindo esta voz abençoada do Espiritismo, seguirem suabandeira e cumprirem o apostolado, que deve reconduzir os irmãosextraviados pela dúvida e pela ignorância, ou embrutecidos pelovício!

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Voltai, ovelhas desgarradas, voltai ao aprisco; levantai acabeça, contemplai o vosso Criador e rendereis homenagem ao seuamor por vós. Retirai prontamente o véu que vos ocultava oEspírito da Divindade; admirai-o em toda a sua bondade; prostraia face contra a terra e arrependei-vos. O arrependimento vos abriráas portas da felicidade: as de um mundo melhor, onde reinam oamor mais puro, a fraternidade mais estreita, onde cada um sentealegria na alegria do próximo.

Não sentis que se aproxima o momento em que vãosurgir coisas novas? Não sentis que a Terra está em trabalho departo? Que querem esses povos que se remexem, que se agitam,que se aprestam para a luta? Por que vão combater? Para romper ascadeias que estancam o progresso de sua inteligência, absorvem asua seiva, semeiam a desconfiança e a discórdia, armam o filhocontra o pai, o irmão contra o irmão, corrompem as nobresaspirações e matam o gênio. Ó liberdade! Ó independência! nobresatributos dos filhos de Deus, que alargais o coração e elevais a alma,é por vós que os homens se tornam bons, grandes e generosos; porvós nossas aspirações se voltam para o bem, a injustiça desaparece,os ódios se extinguem e a discórdia, envergonhada, foge e apagaseu facho, temendo irradiar seus sinistros clarões. Irmãos! escutai avoz que vos diz: Marchai! marchai para esse brilhante objetivo quevedes despontar mais além! Marchai para esse brilhante raio de luzque está à vossa frente, como a coluna luminosa adiante do povode Israel; ele vos conduzirá à verdadeira Terra Prometida, onde reinaa eterna felicidade, reservada aos Espíritos puros. Armai-vos devirtudes; purificai-vos das impurezas e, então a rota vos pareceráfácil e a encontrareis coberta de flores; percorrê-la-eis com uminefável sentimento de alegria, porque, a cada passo,compreendereis que vos aproximais do alvo onde podeisconquistar as palmas eternas.

Mardochée

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EGOÍSMO E ORGULHO50

(Sociedade Espírita de Sens)

Se os homens se amassem com mútuo amor, mais bempraticada seria a caridade; mas, para isso, mister fora vosesforçásseis por largar essa couraça que vos cobre os corações, afim de se tornarem eles mais sensíveis aos sofrimentos alheios. Arigidez mata os bons sentimentos; o Cristo jamais se escusava; nãorepelia aquele que o buscava, fosse quem fosse: socorria assim amulher adúltera, como o criminoso; nunca temeu que a suareputação sofresse por isso. Quando o tomareis por modelo detodas as vossas ações? Se na Terra a caridade reinasse, o mau nãoimperaria nela; fugiria envergonhado; ocultar-se-ia, visto que emtoda parte se acharia deslocado. O mal então desapareceria, ficaibem certos.

Começai vós por dar o exemplo; sede caridosos paracom todos indistintamente; esforçai-vos por não atentar nos quevos olham com desdém; crede sempre que eles merecem vossasimpatia e deixai a Deus o encargo de fazer toda a justiça, a Deusque todos os dias separa, no seu reino, o joio do trigo.

O egoísmo é a negação da caridade. Ora, sem acaridade não haverá descanso para sociedade humana. Digo mais:não haverá segurança. Com o egoísmo e o orgulho, que andam demãos dadas, a vida será sempre uma carreira em que vencerá o maisesperto, uma luta de interesses, em que se calcarão aos pés as maissantas afeições, em que nem sequer os sagrados laços da famíliamerecerão respeito.

Pascal

50 N. do T.: Vide O Evangelho segundo o Espiritismo, capítulo XI, item 12.

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Sociedade Espírita de Metz

Ao retornar de nossa viagem encontramos uma cartado honrado presidente da Sociedade Espírita de Metz, bem comoa primeira publicação dessa Sociedade. Daremos notícias dela nopróximo número, pois este já está composto e pronto para serimpresso. Só nos resta espaço e tempo para enviar nossas sincerasfelicitações àquela Sociedade e ao seu digno Presidente.

Allan Kardec

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Revista EspíritaJornal de Estudos Psicológicos

ANO IV NOVEMBRO DE 1861 No 11

Resquícios da Idade Média

AUTO-DE-FÉ DAS OBRAS ESPÍRITAS EM BARCELONA

Nada informamos aos leitores sobre esse fato, que jánão o saibam através da imprensa. O que é de admirar é que certosjornais, que geralmente passam por bem informados, o tenhamposto em dúvida. A dúvida não nos surpreende, mas o fato em simesmo parece tão estranho ao tempo em que vivemos, está de talmodo longe de nossos costumes que, por maior cegueirareconheçamos no fanatismo, pensamos sonhar ao ouvir dizer queas fogueiras da Inquisição ainda se acendem em 1861, às portas daFrança. Nestas circunstâncias a dúvida é uma homenagem prestadaà civilização européia e ao próprio clero católico. Hoje, empresença de uma realidade incontestável, o que mais devesurpreender é que um jornal sério, que diariamente cai sem dó nempiedade sobre os abusos e usurpações do poder sacerdotal, nãotenha encontrado, para registrar esse fato, senão algumas palavraszombeteiras, acrescentando: “Em todo o caso, não seríamos nósque nos divertiríamos neste momento em fazer girar as mesas naEspanha.” (Siècle de 14 de outubro de 1861). Então o Siècle aindavê o Espiritismo nas mesas girantes? Estará tão enceguecido pelo

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cepticismo para ignorar que toda uma doutrina filosófica,eminentemente progressiva, saiu dessas mesas, das quais tantozombaram? Não sabe que esta idéia fermenta em toda parte? Quenas grandes cidades, como nas pequenas localidades, de alto a baixoda escala social, tanto na França quanto no estrangeiro, esta idéia seespalha com inaudita rapidez? Que por toda parte agita as massas,que nela saúdam a aurora de uma renovação social? O golpe comque imaginaram feri-lo não é um indício de sua importância?Porque ninguém se atira assim contra uma infantilidade semconseqüência, e Dom Quixote não voltou à Espanha para sedebater contra moinhos de vento.

O que não é menos exorbitante, o que causa admiraçãopor não se ver nenhum protesto enérgico, é a estranha pretensãoque se arroga o bispo de Barcelona, de policiar a França. Ao sepedir a reexportação das obras, ele respondeu com uma recusaassim justificada: A Igreja católica é universal; e sendo estes livroscontrários à fé católica, o governo não pode consentir que venham pervertera moral e a religião de outros países. Eis, assim, um bispo estrangeiroque se institui juiz do que convém ou não convém à França! Entãoa sentença foi mantida e executada, sem mesmo isentar odestinatário das taxas alfandegárias, cujo pagamento lhe foi exigido.

Eis o relato que nos foi dirigido pessoalmente:

“Hoje, nove de outubro de mil oitocentos e sessenta eum, às dez horas e meia da manhã, na esplanada da cidade deBarcelona, lugar onde são executados os criminosos condenados aoúltimo suplício, e por ordem do bispo desta cidade, foram queimadostrezentos volumes e brochuras sobre o Espiritismo, a saber:

“A Revista Espírita, diretor Allan Kardec;

“A Revista Espiritualista, diretor Piérard;

“O Livro dos Espíritos, por Allan Kardec;

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“O Livro dos Médiuns, pelo mesmo;

“O que é o Espiritismo, pelo mesmo;

“Fragmentos de sonata ditada pelo Espírito Mozart;

“Carta de um católico sobre o Espiritismo, pelo Dr. Grand;

“A História de Joana d’Arc, ditada por ela mesma à Srta.Ermance Dufau51;

“A realidade dos Espíritos demonstrada pela escrita direta,pelo Barão de Guldenstubbé.

“Assistiram ao auto-de-fé:

“Um sacerdote com os hábitos sacerdotais,empunhando a cruz numa mão e uma tocha na outra;

“Um escrivão encarregado de redigir a ata do auto-de-fé;

“Um ajudante do escrivão;

“Um empregado superior da administração dasalfândegas;

“Três serventes da alfândega, encarregados dealimentar o fogo;

“Um agente da alfândega representando o proprietáriodas obras condenadas pelo bispo.

“Uma multidão incalculável enchia as calçadas e cobriaa imensa esplanada onde se erguia a fogueira.

“Quando o fogo consumiu os trezentos volumes oubrochuras espíritas, o sacerdote e seus ajudantes se retiraram,

51 N. do T.: Dufau, no original. O correto é Dufaux (Ermance Dufaux).

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cobertos pelas vaias e maldições de numerosos assistentes, quegritavam: Abaixo a Inquisição!

“Em seguida, várias pessoas se aproximaram dafogueira e recolheram as suas cinzas.”

Uma parte das cinzas nos foi enviada. Ali se encontraum fragmento de O Livro dos Espíritos, consumido pela metade.Nós os conservamos preciosamente, como autêntico testemunhodesse ato de insensatez.

À parte qualquer opinião, este caso levanta grave questãode direito internacional. Reconhecemos ao governo espanhol odireito de interditar, em seu território, a entrada de obras que não lheconvenham, como a de todas as mercadorias proibidas. Se as obrastivessem sido introduzidas clandestina e fraudulentamente, nadahaveria a objetar; mas foram expedidas ostensivamente eapresentadas à alfândega; havia, pois, uma permissão legalmentesolicitada. A alfândega julga dever reportar-se à autoridade episcopalque, sem qualquer formalidade processual, condena as obras a seremqueimadas pelas mãos do carrasco. Então o destinatário pede quesejam reexportadas para o lugar de sua procedência e, por fim, lhe érespondido que não as receberá, conforme relatado acima.Perguntamos se em tais circunstâncias a destruição dessapropriedade não é um ato arbitrário e contra o direito comum.

Examinando o caso do ponto de vista de suasconseqüências, diremos, inicialmente, não haver dúvida de quenada poderia ter sido mais benéfico ao Espiritismo. A perseguiçãosempre foi proveitosa à idéia que quiseram proscrever: exalta a suaimportância, chama a sua atenção e a torna conhecida por quantosa ignoravam. Graças a esse zelo imprudente, todo o mundo naEspanha vai ouvir falar do Espiritismo e quererá saber o que é ele;é tudo quanto desejamos. Podem queimar-se livros, mas não sequeimam idéias; as chamas das fogueiras as superexicitam, em vezde abafar. Aliás, as idéias estão no ar, e não há Pireneus bastante

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altos para as deter. Quando uma idéia é grande e generosa encontramilhares de pulmões prestes a aspirá-la. Façam o que quiserem, oEspiritismo já tem numerosas e profundas raízes na Espanha; ascinzas da fogueira vão fazê-la frutificar. Mas não é somente naEspanha que se produzirá tal resultado: o mundo inteiro sentirá ocontragolpe. Vários jornais da Espanha estigmatizaram esse atoretrógrado, como bem o merece. Entre outros, Las Novedades deMadrid, de 19 de outubro, contém notável artigo a respeito. Seráreproduzido em nosso próximo número.

Espíritas de todos os países! Não esqueçais esta data: 9de outubro de 1861; será marcada nos fastos do Espiritismo. Queela seja para vós um dia de festa, e não de luto, porque é a garantiade vosso próximo triunfo!

Entre as numerosas comunicações que os Espíritosditaram a respeito, citaremos apenas as duas seguintes, dadasespontaneamente na Sociedade de Paris. Elas resumem as causas etodas as suas conseqüências.

SOBRE O AUTO-DE-FÉ DE BARCELONA

“O amor da verdade deve sempre fazer-se ouvir: elarompe o véu e brilha ao mesmo tempo por toda parte. OEspiritismo tornou-se conhecido de todos; logo será julgado eposto em prática. Quanto mais perseguições houver, tanto maisdepressa esta sublime doutrina alcançará o apogeu. Seus maiscruéis inimigos, os inimigos do Cristo e do progresso, atuam demaneira que ninguém possa ignorar a permissão de Deus, dadaàqueles que deixaram esta Terra de exílio, de voltarem aos queamaram.

“Ficai certos: as fogueiras apagar-se-ão por si mesmas;e se os livros são lançados ao fogo, o pensamento imortal lhessobrevive.”

Dollet

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Nota – Este Espírito, tendo se manifestadoespontaneamente, disse ser o de um antigo livreiro do séculodezesseis.

OUTRA

“Era necessário que algo ferisse violentamente certosEspíritos encarnados, a fim de que se decidissem a ocupar-se destagrande doutrina que vai regenerar o mundo. Nada é feitoinutilmente em vossa Terra. Nós, que inspiramos o auto-de-fé deBarcelona, sabíamos perfeitamente que assim agindo daríamos umgrande passo à frente. Esse fato brutal, inacreditável nos temposatuais, foi consumado com vistas a chamar a atenção dos jornalistasque se mantinham indiferentes diante da profunda agitação quetomava conta das cidades e dos centros espíritas. Eles deixavamdizer e fazer, mas, obstinados, faziam ouvidos de mercador,respondendo pelo mutismo ao desejo de propaganda dos adeptosdo Espiritismo. Queiram ou não, é preciso que hoje falem; uns,constatando o histórico do caso de Barcelona, outros odesmentindo, ensejaram uma polêmica que fará a volta ao mundoe da qual só o Espiritismo aproveitará. Eis por que hoje aretaguarda da Inquisição praticou o seu último auto-de-fé, porqueassim o quisemos.”

São Domingos

Opinião de um JornalistaSOBRE O LIVRO DOS ESPÍRITOS

Como se sabe, a imprensa não morre de amores pornós, o que não impede o Espiritismo de avançar rapidamente,prova evidente de que é bastante forte para marchar sozinho. Se aimprensa é muda ou hostil, seria erro acreditarmos tenha ele contra

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si todos os seus representantes. Muitos, ao contrário, são-lhesmuito simpáticos, mas tolhidos por considerações pessoais, porquetodos querem dar o exemplo. Neste tempo a opinião pública sepronuncia cada vez mais. A idéia se generaliza e, quando tiverinvadido as massas, a imprensa progressista será mesmo forçada asegui-la, sob pena de ficar com os que jamais avançam. Fá-lo-ásobretudo quando compreender que o Espiritismo é o maispoderoso elemento de propagação para todas as idéias grandiosas,generosas e humanitárias, que não cessa de pregar; sem dúvida suaspalavras não ficam perdidas; mas quantos golpes de picareta nãodevem ser dados na rocha dos preconceitos antes de a encetar! OEspiritismo lhes abre um terreno fecundo e aplana as últimasbarreiras que lhe detinham a marcha. Eis o que compreenderão osque se derem ao trabalho de o estudar a fundo, medir-lhe o alcancee ver suas conseqüências, que já se manifestam por resultadospositivos; mas para isto precisamos de observadores sérios e nãosuperficiais, homens que não escrevam por escrever, mas quefaçam de seus princípios uma religião. Eles serão encontrados, nãoduvidemos disso; e, mais cedo do que se pensa, ver-se-á à cabeçada propagação das idéias espíritas alguns desses nomes que, por sisós, são autoridades e cuja memória o futuro guardará, comohavendo concorrido para a verdadeira emancipação daHumanidade.

O artigo a seguir, publicado pelo Akhbar, jornal deArgel, de 15 de outubro de 1861 é, nesse sentido, um primeiropasso, que por certo terá imitadores. Sob o modesto pseudônimode Ariel, nossos leitores talvez reconheçam a pena exercitada de umdos nossos eminentes jornalistas.

“A imprensa da Europa tem se ocupado bastante comesta obra. Depois de a ter lido, compreende-se o porquê, seja qualfor a opinião que se tenha da colaboração das inteligênciasultramundanas, que o autor diz ter obtido. Com efeito, suprimindoalgumas páginas de introdução que expõem as vias e os meios da

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dita colaboração – a parte contestável para os profanos – resta umlivro de alta filosofia, de uma moral eminentemente pura e,principalmente, de um efeito muito consolador para a almahumana, assediada entre os sofrimentos do presente e o medo dofuturo. Assim, mais de um leitor deve ter dito a si mesmo, ao chegarà ultima página: Não sei se tudo isto é verdade, mas bem quegostaria que fosse!

“Quem não ouviu falar, desde alguns anos, dasestranhas comunicações de que certos privilegiados eramintérpretes entre o nosso mundo material e o mundo invisível?Cada um tomou partido na questão e, como sói acontecerhabitualmente, a maioria dos que se colocaram sob a bandeira doscrentes, ou que se entrincheiraram no campo dos incrédulos, não sedeu ao trabalho de verificar os fatos, cuja realidade era admitida poruns e negada por outros.

“Mas estes não são assuntos para serem discutidos numjornal da natureza do nosso. Assim, sem contestar nem atestar aautenticidade das assinaturas póstumas de Platão, Sócrates, SantoAgostinho, Júlio César, Carlos Magno, São Luís, Napoleão, etc., quese acham na parte inferior de vários parágrafos do livro do Sr. AllanKardec, concluímos que se esses grandes homens voltassem aomundo para nos dar explicações sobre os problemas maisinteressantes da Humanidade, não se exprimiriam com maislucidez, com um senso moral mais profundo, mais delicado, commaior elevação de vistas e de linguagem do que o fazem naexcêntrica obra, da qual tentaremos dar uma idéia. São coisas quenão se lêem sem emoção e não são daquelas que logo se esquecedepois de as haver lido. Neste sentido, O Livro dos Espíritos nãopassará, como tantos outros, em meio à indiferença do século: teráardentes detratores, zombadores impiedosos, mas não nossurpreenderíamos se, em compensação, também tivesse partidáriossinceros e entusiastas.

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“Não podendo, em consciência, por falta de umaverificação prévia, colocar-nos entre uns e outros, ficamos nohumilde ofício de relator e dizemos: Lede esta obra, pois ela saicompletamente dos atalhos repisados da banalidadecontemporânea. Se não estiverdes seduzido, subjugado, talvez vosirriteis, mas, com toda a certeza, nem ficareis frio nem indiferente.

“Recomendamos, sobretudo, a passagem relativa àmorte. Eis um tema sobre o qual ninguém gosta de fixar a atenção,mesmo aquele que se julga espírito forte e intrépido. Pois bem!depois de ter lido e meditado, a gente se sente muito admirada pornão mais encontrar essa crise suprema tão aterradora; sobre oassunto, chega-se ao ponto mais desejável, aquele em que nãotememos nem desejamos a morte. Outros problemas de não menorimportância têm soluções igualmente consoladoras e inesperadas.Em suma, o tempo que se consagra à leitura desse livro será bemempregado para a curiosidade intelectual e não será perdido para omelhoramento moral.”

Ariel

O Espiritismo em Bordeaux

Se Lyon fez o que se poderia chamar o seupronunciamento no que respeita ao Espiritismo, Bordeaux não ficouatrás, porque também quer ocupar um dos primeiros lugares nagrande família. Pode-se julgar pelo relato que damos da visita queacabamos de fazer aos espíritas dessa cidade, a convite deles mesmos.Não foi em alguns anos, mas em alguns meses, que a doutrina alitomou proporções grandiosas em todas as classes da sociedade. Paracomeçar, constatamos um fato capital: é que lá, como em Lyon e emmuitas outras cidades que visitamos, vimos a doutrina encarada domais sério ponto de vista e nas suas aplicações morais; ali, comoalhures, vimos inumeráveis transformações, verdadeiras

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metamorfoses; caracteres que não são mais reconhecíveis; pessoasque em nada acreditavam, trazidas às idéias religiosas pela certeza doporvir, agora palpável para elas. Isto dá a medida do espírito queimpera nas reuniões espíritas, já muito multiplicadas. Em todas asque assistimos, constatamos o mais edificante recolhimento, um arde mútua benevolência entre os assistentes; a gente se sente em meiosimpático, que inspira confiança.

Os operários de Bordeaux nada ficam a dever aos deLyon; ali eles contam numerosos e fervorosos adeptos, cujonúmero aumenta diariamente. Sentimo-nos feliz em dizer quesaímos de suas reuniões edificados pelo piedoso sentimento que aspreside e pelo tato com o qual sabem guardar-se contra a intrusãodos Espíritos enganadores. Um fato que constatamos com prazer éque certos homens, muitas vezes em eminente posição social, semisturam aos grupos plebeus com a mais fraterna cordialidade,deixando os títulos à porta, como se fossem simples trabalhadores,acolhidos com igual benevolência nos grupos de uma e outraordem. Por toda parte o rico e o artesão se apertam as mãoscordialmente. Disseram-nos que essa aproximação das duasextremidades da escala social entrou nos costumes da região e nosfelicitamos por isto. Mas reconhecemos que o Espiritismo veio dara esse estado de coisas uma razão de ser e uma sanção moral, aomostrar em que consiste a verdadeira fraternidade.

Encontramos em Bordeaux numerosos e excelentesmédiuns em todas as classes, de todos os sexos e idades. Muitosescrevem com grande facilidade e obtêm comunicações de elevadoalcance, o que, aliás, os Espíritos nos haviam prevenido antes denossa partida. Além disso, não se pode senão louvá-los pelasolicitude com que prestam seu concurso nas reuniões. Mas o que éainda melhor é a abnegação de todo o amor-próprio a respeito dascomunicações; ninguém se julga privilegiado e intérprete exclusivo daverdade; ninguém procura impor-se, nem impor os Espíritos que osassistem; todos submetem com simplicidade o que obtêm ao

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julgamento da assembléia e ninguém se ofende, nem se melindracom a crítica; aquele que recebe falsas comunicações consola-seaproveitando as boas que outras obtêm e dos quais não têm ciúmes.Acontece a mesma coisa em toda parte? Ignoramos. Constatamos oque vimos; constatamos, também, que se compenetraram doprincípio de que todo médium orgulhoso, ciumento e susceptívelnão pode ser assistido por Espíritos bons e que nele essasimperfeições são motivo de suspeita. Longe, pois, de procurar taismédiuns, a despeito da eminência de suas faculdades, porquanto sefossem encontrados seriam repelidos por todos os grupos sérios que,antes de tudo, querem ter comunicações sérias, e não visar os efeitos.

Entre os médiuns que vimos, um há que merecemenção especial. É uma moça de dezenove anos que, à faculdadede escrever, reúne a de médium desenhista e músico. Ela anotoumecanicamente, sob o ditado de um Espírito, que disse ser Mozart,um trecho de música que este não desautorizaria. Assinou-o, evárias pessoas, que viram os seus autógrafos, atestaram a perfeitaidentidade da assinatura. Mas o trabalho mais notável é, semcontradita, o desenho; trata-se de um quadro planetário de quatrometros quadrados de superfície, de um efeito tão original e tãosingular que nos seria impossível dar uma idéia pela sua descrição.É trabalhado em lápis negro, em pastel de diversas cores e emesfuminho. Esse quadro, começado há alguns meses, ainda não estáterminado; é destinado pelo Espírito à Sociedade Espírita de Paris.Vimos o médium à obra e tanto ficamos maravilhado com arapidez, quanto com a precisão do trabalho. Inicialmente, e à guisade treino, o Espírito a fez traçar, com mão levantada e de um jacto,círculos e espirais de cerca de um metro de diâmetro e de talregularidade, que se encontrou o centro geométrico perfeitamenteexato. Nada podemos dizer ainda quanto ao valor científico doquadro; mas, admitindo seja uma fantasia, não deixa de ser, comoexecução mediúnica, um trabalho deveras notável. Devendo ooriginal ser enviado a Paris, o Espírito aconselhou que ofotografassem para se tirar várias cópias.

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Um fato que devemos mencionar é que o pai damédium é pintor. Como artista achava que o Espírito obravacontrariamente às regras da arte e pretendia dar conselhos. Por issoo Espírito o proibiu de assistir ao trabalho, a fim de que a médiumnão lhe sofresse a influência.

Até pouco tempo a médium não havia lido nossasobras. O Espírito lhe ditou, para nos ser entregue à nossa chegada,que ainda não estava anunciada, um pequeno tratado de Espi-ritismo, em todos os pontos de acordo com O Livro dos Espíritos.

Seria muita presunção de nossa parte relatar ostestemunhos de simpatia que recebemos, das atenções e cortesiasde que fomos objeto; por certo teriam inflamado o nosso orgulho,se não tivéssemos pensado que era uma homenagem antestributada à doutrina do que à nossa pessoa. Pelo mesmo motivotínhamos hesitado em publicar alguns discursos que forampronunciados e que realmente nos deixaram confuso. Tendosubmetido nossos escrúpulos a alguns amigos e a vários membrosda Sociedade, foi-nos dito que tais discursos eram uma indicaçãodo estado da doutrina e que, sob esse ponto de vista, era instrutivoque todos os espíritas os conhecessem; que, por outro lado, sendoas palavras a expressão de um sentimento sincero, os que as tinhampronunciado lamentariam que, por excesso de modéstia, nosabstivéssemos de reproduzi-las; poderiam ver nisto indiferença denossa parte. Foi sobretudo esta última consideração que nosdeterminou. Esperamos que os leitores nos julguem um espíritaassaz bom para não mentir aos princípios que professamos,fazendo deste relato uma questão de amor-próprio.

Uma vez que nos reportamos a esses diversosdiscursos, não queremos omitir, como traço característico, apequena alocução que nos foi recitada com graça encantadora eingênua solicitude por um menino de cinco anos e meio, filho doSr. Sabò, quando da nossa chegada ao seio dessa famíliaverdadeiramente patriarcal, e sobre a qual o Espiritismo derramou

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a mancheias suas benfazejas consolações. Se toda geração quesurge estivesse imbuída de tais sentimentos, seria permitidoentrever como muito próxima a mudança que deve operar-se noscostumes sociais, mudança que de todos os lados é anunciada pelosEspíritos. Não penseis que aquela criança tenha recitado suapequena saudação como um papagaio. Não; captou-lhe muito bemo sentido. O Espiritismo, no qual, por assim dizer, foi embalada, jáé para a sua jovem inteligência um freio, que compreendeperfeitamente e que sua razão, ao se desenvolver, não rechaçará.

Eis o pequeno discurso do nosso jovenzinho JosephSabò, que ficaria muito desgostoso se não o publicássemos:

“Sr Allan Kardec, permiti à mais jovem de vossascrianças espíritas vir hoje, dia para sempre gravado em nossoscorações, vos exprimir a alegria causada por vossa estada entre nós.Ainda estou na infância; mas meu pai já me ensinou que são osEspíritos que se manifestam a nós; a docilidade com que devemosseguir seus conselhos; as penas e recompensas que lhes estãodestinadas. E, em alguns anos, se Deus o julgar conveniente,também quero, sob os vossos auspícios, tornar-me um digno efervoroso apóstolo do Espiritismo, sempre submisso ao vossosaber e à vossa experiência. Em recompensa por estas brevespalavras, ditadas por meu coraçãozinho, conceder-me-íeis um beijo,que não ouso vos pedir?”

Reunião Geral dos Espíritas Bordeleses14 DE OUTUBRO DE 1861

DISCURSO DO SR. SABÒ

Senhoras, Senhores,

Rendamos a Deus a sincera homenagem do nossoreconhecimento, por haver lançado sobre nós um olhar paternal e

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benevolente, concedendo-nos o precioso favor de receber osensinamentos dos Espíritos bons que, por sua ordem, vêmdiariamente ajudar-nos a discernir a verdade do erro, dar-nos acerteza de uma felicidade futura, mostrar-nos que a punição éproporcional à ofensa, mas não eterna, e fazer-nos compreenderesta justa e eqüitativa lei da reencarnação, pedra angular do edifícioespírita, que serve para a nossa purificação e para nos fazerprogredir em direção ao bem.

Eu disse reencarnação! Mas, para tornar essa palavramais compreensível, cedemos um instante a palavra a um dosnossos guias espirituais, que se prontificou, para nossa instruçãoespírita, a desenvolver em algumas palavras este tão grave einteressante assunto para a nossa pobre Humanidade.

Diz ele: “A reencarnação é o inferno; a reencarnação éo purgatório; a reencarnação é a expiação; a reencarnação é oprogresso. É, enfim, a santa escada, pela qual devem subir todos oshomens; seus degraus são as fases das diversas existências apercorrer para atingir o topo, pois Deus disse: Para chegar a ele épreciso nascer, morrer e renascer até que se tenha alcançado oslimites da perfeição, e ninguém chega a Ele sem ter sido purificadopela reencarnação.”

Ainda neófito na ciência espírita, só dispúnhamos dozelo e da boa vontade para divulgá-la. Deus se contentou com istoe abençoou nossos frágeis esforços, fazendo germinar no coraçãode alguns de nossos irmãos de Bordeaux a semente da palavradivina.

Com efeito, desde o mês de janeiro nos ocupamos daciência prática e vimos ligar-se a nós um certo número de irmãosque dela se ocupavam isoladamente; outros que ouviram falar pelavoz da imprensa ou pela fama, essa trombeta retumbante que seencarregou de anunciar, em todos os pontos da nossa cidade, o

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aparecimento desta fé consoladora, testemunha irrecusável dabondade de Deus para com os seus filhos.

Não obstante as dificuldades encontradas no caminho,fortalecidos pela pureza e retidão de nossas convicções,sustentados pelos conselhos de nosso amado e venerado chefe Sr.Allan Kardec, tivemos a grata satisfação, após nove meses deapostolado, com o auxílio de alguns dos nossos irmãos, de poderreunir-nos hoje, sob suas vistas, para a inauguração desta Sociedadeque, assim o espero, continuará a dar frutos em abundância e seespalhará como orvalho benfazejo sobre os corações dessecadospelo materialismo, endurecidos pelo egoísmo, intumescidos peloorgulho, e levará o bálsamo da resignação aos aflitos e sofredores,aos pobres e aos deserdados dos bens terrestres, dizendo-lhes:“Confiança e coragem; as provas terrenas são curtas,comparativamente à eterna felicidade que Deus vos reserva, emrecompensa de vossas lutas e sofrimento aqui embaixo.”

Sim, confesso em alto e bom som, estou feliz por ser ointérprete de um grande número de membros da SociedadeEspírita de Bordeaux, protestando nossa fidelidade em seguir a rotatraçada pelo nosso caro missionário, aqui presente, poiscompreendemos que, para ser seguro, o progresso não se faz senãogradativamente, e que, combatendo fortemente certas idéiasrecebidas há séculos, adiaríamos o momento de nossa emanci-pação espiritual. É possível que haja entre nós opiniões divergentesa este respeito; nós as respeitamos. Por nós, marchemos pouco apouco, seguindo esta máxima da sabedoria das nações: que va pianova sano52. Talvez cheguemos mais tarde, mas chegaremos maisseguros, porque não teremos rompido com a fé de nossosancestrais, sempre sagrada para nós, seja ela qual for.Sirvamo-nos da luz do Espiritismo, não para abater, mas paranos melhorarmos, para progredirmos. Suportando com cora-gem e resignação as vicissitudes desta vida, onde estamos de

52 N. do T.: A frase ficará perfeita se substituirmos o vocábulo que(francês) por chi (italiano).

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passagem, mereceremos o favor de sermos conduzidos ao fim denossas provas, pelos Espíritos do Senhor, para desfrutar daimortalidade para a qual fomos criados.

Permiti, caro mestre, que em nome dos membros destaSociedade, que vos cercam, eu vos agradeça a honra que lhesdestes, vindo pessoalmente inaugurar esta reunião familiar, que éuma festa para todos nós, e que sem dúvida marcará ponto nosfastos do Espiritismo. Recebei, igualmente, neste dia que ficarágravado em nossos corações e de maneira muito particular, aexpressão muito sincera do nosso vivo reconhecimento pelabondade paternal com que encorajastes os nossos frágeis trabalhos.Fostes vós que nos traçastes a rota e nos sentimos felizes por vosseguir, previamente convencidos de que vossa missão é fazermarchar o progresso espiritual em nossa bela França, a qual, porsua vez, impulsionará as demais nações da Terra de modo apermitir, pelo progresso intelectual e moral, que elas cheguempouco a pouco à felicidade.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O ESPIRITISMO,LIDAS NA SESSÃO GERAL, QUANDO DA PASSAGEM DO

SR. ALLAN KARDEC EM BORDEAUX.

Pelo Dr. Bouché de Vitray

(14 de outubro de 1861)

Há certas épocas em que a idéia governa o mundo,precedendo esses grandes cataclismos que transformam os homense os povos. Tanto ou mais que aquela que preside os interessestemporários, a idéia religiosa também contribui para o grandemovimento social.

Absorvida freqüentemente pelas preocupaçõesmateriais, ela se desprende de repente, ou insensivelmente. Ora é oraio que escapa das nuvens, ora o vulcão, que mina secretamente amontanha, antes de transpor a cratera. Hoje afeta outro gênero de

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manifestação: após se haver mostrado como ponto imperceptívelno horizonte do pensamento, acabou por invadir a atmosfera. O arestá impregnado; ela atravessa o espaço, fecunda as inteligências,mantém emocionado o mundo inteiro. E não penseis que me sirvode metáfora para expressar a realidade. Não; é um fenômeno doqual se tem consciência e que dificilmente a palavra traduz. É comoum fluido que nos comprime por todos os lados, é alguma coisavaga e indeterminada, cuja influência todos sentem, de que océrebro está impregnado e que dele se desprende freqüentementecomo que por intuição, raramente como um pensamentoformulado explicitamente. A idéia religiosa – digamos espírita –tem seu lugar no balcão do negociante, no consultório do médico,no gabinete do advogado e do procurador, na oficina do operário,nos campos e nas casernas. O nome do nosso grande, do nossocaro missionário espírita está em todas as bocas, como sua imagemse acha em todos os nossos corações, e todos os olhos estãofixados neste ponto culminante, digno intérprete dos ministros doSenhor. Esta idéia que percorre a imensidade, que superexcitatodos os cérebros humanos, que existe mesmo instintivamente nosEspíritos encarnados mais recalcitrantes, não seria obra dessamultidão de inteligências que nos envolvem, precedendo efacilitando os nossos trabalhos apostólicos?

Sabemos que o testemunho da autenticidade de nossadoutrina remonta à noite dos tempos; que os livros sagrados, basefundamental do Cristianismo, as relatam; que vários padres daIgreja, entre os quais Tertuliano e Santo Agostinho, afirmam a suarealidade; até mesmo as obras contemporâneas lhe fazem mençãoe não posso resistir ao desejo de citar a passagem de um opúsculopublicado em 1843, que parece expor analiticamente toda aquintessência do Espiritismo:

“Algumas pessoas põem em dúvida a existência deinteligências superiores, incorpóreas, isto é, gênios que presidem àadministração do mundo, e entretêm um comércio íntimo com

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alguns seres privilegiados. É para elas que escrevo as linhas que seseguem, esperando que lhes dêem convicção:

“Em todos os reinos da Natureza existe uma lei queescalona as espécies, desde os infinitamente pequenos até osinfinitamente grandes. É por graus imperceptíveis que se passa doinseto ao elefante, dos minúsculos grãos de areia ao maior dosglobos celestes. Esta gradação regular é evidente em todas as obrassensíveis do Criador; deve, pois, achar-se nas suas obras-primas, afim de que a escala seja contínua, para subir até Ele! A distânciaprodigiosa que existe entre a matéria inerte e o homem dotado derazão parece ser preenchida pelos seres orgânicos, mas privadosdesta nobre prerrogativa. Na distância infinita entre o homem e seuautor, encontra-se o lugar dos Espíritos puros. Sua existência éindispensável para que a Criação seja acabada em todos os sentidos.

“Assim, há também o mundo dos Espíritos, cujavariedade é tão grande quanto o das estrelas que brilham nofirmamento; há também o universo das inteligências que, pelasutileza, prontidão e vastidão de sua penetração, se aproximamcada vez mais da Inteligência Soberana. Seu desígnio, já manifestona organização do mundo visível, continua até a perfeitaconsumação no mundo invisível. Todas as religiões proclamam aexistência desses seres imateriais; todas os representam como seimiscuindo nos assuntos humanos, como agentes secundários. Nãoadmitir a sua intromissão nas peripécias humanas é negar,conseqüentemente, os fatos sobre os quais repousam as crenças detodos os povos, de todos os filósofos e de todos os sábios,remontando até a mais alta Antiguidade.”

Com toda a certeza, aquele que traçou este quadro eraespírita nos mais íntimos refolhos da alma. A este esboçoincompleto falta o dogma essencial da reencarnação, bem como asconseqüências morais que o ensino dos Espíritos impõe aosadeptos do Espiritismo. A doutrina existia no estado de intuição,

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tanto nas inteligências quanto nos corações. Vós aparecestes,senhor, como eleito de Deus; o Todo-Poderoso apoiou-se numavasta erudição, num Espírito elevado, numa retidão completa enuma mediunidade privilegiada. Todos os elementos das verdadeseternas estavam disseminados no espaço; era preciso fixar a ciência,levar a convicção às consciências ainda indecisas e reunir todas asinspirações emanadas do Altíssimo num corpo substancial dedoutrina. A obra caminhou e o pólen escapado dessa anteraintelectual produziu a fecundação. Vosso nome é a bandeira sob aqual nos colocamos à vontade. Hoje vindes em auxílio destesneófitos do Espiritismo, que ainda não fazem senão balbuciar osrudimentos da ciência, mas que um grande número de Espíritos,atenciosos e benevolentes, não desdenha favorecer em suas celestesinspirações. Já – e nos felicitamos por isto – em meio a estecongresso de inteligências dos dois mundos, as paixões más seamotinam em torno da obra regeneradora; já o falso saber, oorgulho, o egoísmo e os interesses humanos se erguem contra oEspiritismo, em testemunho de seu poder, enquanto o grandemotor desse progresso ascensional para as regiões celestes – Deus– oculto atrás dessa nuvem de teorias odientas e quiméricas,permanece calmo e prossegue a sua obra.

Realizada a obra, formam-se centros espíritas em todosos pontos do globo. Os moços abandonam as ilusões da primeiraidade, que lhes preparam tantas decepções na maturidade; homensmaduros aprendem a levar a vida a sério; velhos que gastaram asilusões no conflito da vida, enchem o vazio imenso com prazeresmais reais que aqueles que os abandonam, e de todos esseselementos heterogêneos formam-se agregados que irradiam aoinfinito.

Nossa bela cidade não foi a última a participar dessemovimento intelectual. Um desses homens de coração reto, dejulgamento são, tomou a iniciativa. Seu apelo foi ouvido porinteligências que se harmonizavam com a sua. Em torno desse focoluminoso gravitava um grande número de círculos espíritas.

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De toda parte surgem comunicações variadas trazendoa marca de seu autor: é a mãe que, de sua esfera gloriosa, com aperfeição do detalhe e sua infinita ternura, comunica-se com o filhomuito amado; é o pai ou o avô, que alia ao amor paternal aseveridade da forma; é Fénelon, que dá à linguagem da caridade ocunho da beleza antiga e a melodia de sua prosa; é o espetáculotocante de um filho, tornado Espírito bem-aventurado,homenageando aquela que o trouxe ao seio com o eco de seusilustres ensinos; é o de uma mãe que se revela ao filho e que, coma cabeça coroada de estrelas, o conduz, de prova em prova, ao lugarque ele deve ocupar junto dela, no seio de Deus, por todas aseternidades (sic); é o arcebispo de Utrecht, soprando ao seuprotegido suas eloqüentes inspirações e as submetendo ao freio daortodoxia; é um anjo Gabriel, comovente homônimo do grandearcanjo, tomando espontaneamente, e com a permissão de Deus, amissão de guiar seu irmão, segui-lo passo a passo, assim aliando,Espírito superior que é, o amor fraternal ao amor divino; são osEspíritos puros, os santos, os arcanjos que revestem suas sublimesinstruções com o selo da divindade; são, enfim, manifestaçõesfísicas, após as quais a dúvida não passa de um absurdo, para nãodizer uma profanação.

Depois de ter elevado os vossos olhares até os degraussuperiores da escala dos seres, consenti, caros colegas, em baixá-losaos degraus ínfimos, e os infinitamente pequenos ainda vosfornecerão ensinamentos.

Há uns bons dez anos que as claridades do Espiritismoluziram aos meus olhos; mas era o Espiritismo em estadorudimentar, despido de seus principais documentos e de suatecnologia característica; era um reflexo, alguns jactos de finaradiação; mas ainda não era a luz.

Em vez de tomar a pena ou o lápis e obter, por essemeio assim simplificado, comunicações rápidas, recorria-se à mesa

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pela tiptologia ou escrita mediata. A mesa não passava de umapêndice da mão, mas esse modo de comunicação, em geralrepugnante para os Espíritos superiores, freqüentemente osmantinha a distância. Assim, só obtive mistificações, respostastriviais ou obscenas; eu mesmo me afastei desses mistérios de além-túmulo, que se traduziam de maneira tão pouco conforme à minhaexpectativa, ou antes, que se apresentavam sob um aspecto que meassustava. Várias experimentações haviam sido tentadas,conduzindo a resultados análogos.

E, no entanto, essas decepções aparentes mais nãoeram que provas temporárias, que deviam ter como conseqüênciadefinitiva o aprofundamento de minhas convicções.

Mau grado meu, o positivismo de meus estudos tinhaarrefecido as minhas crenças filosóficas; mas eu era céptico e nãoobstinado; duvidava, para grande pesar meu, e fazia vãos esforçospara expulsar o materialismo que, de surpresa, havia invadidominha alma e meu coração. Como são impenetráveis os decretos deDeus! Essa disposição moral serviu precisamente para a minhatransformação. Eu tinha sob os olhos a imortalidade da alma,revestindo o aspecto de uma realidade material e, para assentar estafé tão nova, o que me importava, afinal de contas, se asmanifestações viessem de um Espírito superior ou inferior, desdeque fosse um Espírito! Eu já não sabia perfeitamente que um corpoinerte, tal qual uma mesa, pode ser instrumento, mas não a causade uma manifestação inteligente, manifestação que não entravaabsolutamente na esfera de minhas idéias, e que todas as teoriasfluídicas são impotentes para as explicar?

Assim, eu tinha sacudido essas tendências materialistas,contra as quais lutava sem sucesso, com uma energia desesperada,e teria explorado francamente essas regiões intelectuais, que apenasentrevia, não fosse a demoniofobia do Sr. de Mirville e a profundaimpressão que ela havia lançado em minha alma. Como

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contrapartida de seu livro, surgiu esse tratado tão luminoso, tãosubstancial, tão cheio de verdades consoladoras, ditado porinteligências celestes a um Espírito de escol – posto que encarnado– ao qual, desde aquele dia, foi revelada sua missão na Terra.

Hoje, o reconhecimento me obriga a inscrever nestapágina o nome de um de meus bons amigos, que me abriu os olhosà luz, o do Sr. Roustaing, advogado distinto e, sobretudo,consciencioso, destinado a representar um papel marcante nosfastos do Espiritismo. Devo esta homenagem passageira aoreconhecimento e à amizade.

Se nesta solenidade eu não temesse abusar do tempo,por certo teria citado numerosas comunicações de incontestávelinteresse; contudo, em meio a esta atividade puramente intelectual,acima de nossas incessantes relações com o mundo dos Espíritos,sobrelevam dois fatos que me parecem, por exceção, protestarcontra o mutismo absoluto. O primeiro é caracterizado pelosdetalhes íntimos e tocantes que nos comoveram até as lágrimas; osegundo, pela estranheza do fenômeno, diz respeito à mediunidadede vidência e constitui uma prova tão palpável que não nos restariasenão negar a boa-fé dos médiuns, caso quiséssemos negar arealidade do fato.

Alguns espíritas fervorosos reúnem-se comigosemanalmente para estudarmos em comum, e com mais proveito,a Doutrina dos Espíritos. Uma fé plena e total, a analogia para amaior parte dos estudos e da educação, fizeram brotar umarecíproca simpatia e uma comunhão de idéias e de pensamentos;disposição intelectual e moral, sem sombra de dúvida a maisfavorável às comunicações sérias.

Nessa modesta reunião, um de nós, dotado de elevadograu de mediunidade, quis evocar o Espírito de uma garota quehavia conhecido, vitimada pelo crupe, ao que suponho, aos seis

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anos de idade. Ele fazia o papel de médium e eu o de evocador. Malterminara a evocação, uma percussão muito sensível num dosmóveis da sala de espera excitou a nossa atenção e nos levou aaveriguar se esse ruído insólito provinha de uma causa natural ouresultava de um fato espírita. São – responderam os guias – ascompanheiras de Estelle (era o nome da criança durante a sua vidaterrena), que vêm à frente de sua amiguinha. E, pelo pensamento,seguimos esse gracioso cortejo a planar no espaço! Entre elasdesignaram-nos Antônia, jovem que mal passara pela Terra eapenas completara sua quarta primavera quando tombou sob osgolpes de uma foice assassina. Prevendo que elas iam concluir suasprovas em uma nova existência, roguei ao meu anjo-da-guarda, essaboa mãe, cuja ternura jamais me faltou, que as tomasse sob os seuscuidados e lhes mostrasse claramente a sua celeste protetora. Aadesão não se fez esperar; mas Deus só lhe permitiu aparecer a umadelas, e ela escolheu Antônia: “Que vês, minha amiguinha?”,exclamei evocando esta última. – “Oh, a bela senhora! Estáresplandecente de luzes! – “E que te diz essa bela senhora?” – Elame diz: “Vem a mim, minha filha, eu te amo!” Por isso retrateiaquela terna mãe com a cabeça coroada de estrelas.

Se esta comovente historieta, pertencente ao mundoespírita, só se vos assemelha a um capítulo de novela, então há querenunciar a toda comunicação.

O outro fato pode resumir-se em duas palavras: Euestava com um dos meus colegas espíritas; a noite nos surpreenderaem meio a preces a Deus pelos Espíritos sofredores, quandovislumbrei, vagamente, uma sombra saindo de um canto do meuconsultório e descrevendo uma linha diagonal, que se prolongouaté a minha cama, situada na peça vizinha. Ao terminar seupercurso, ouvimos um estalido muito distinto e a sombra se dirigiupara a biblioteca, formando um ângulo agudo com a primeiradireção.

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Fui tomado pela emoção; mas, numa hora daquelas –onze e meia da noite – bastante propícia às emoções e ao mistério,julguei a princípio que se tratasse de alucinação, de ilusão de óptica,e tomei a íntima resolução de guardar silêncio quanto a essafantástica aparição; foi quando o meu companheiro de constantesestudos voltou-se para mim e perguntou-me se nada vira. Eu estavaperturbado; esperei um pouco para me refazer e limitei-me aindagar os motivos da pergunta. Então ele me descreveu o estranhofenômeno, que igualmente testemunhara, com tamanha exatidãoque me foi impossível duvidar ou deixar de confirmar a realidadeda aparição.

Dois dias depois, nosso médium por excelência estavapresente. Consultados, os guias confirmaram a verdade,acrescentando que aquela aparição espontânea era a de umEspírito, conhecido na vida terrena sob o nome de Maria de losÂngeles. Foi-nos permitido evocá-la e o resultado de nossasperguntas foi que havia nascido na Espanha; tinha tomado ohábito; por muito tempo sua vida estivera isenta de censuras, masuma falta grave, à qual a morte não deixou tempo para a expiação,era a causa de seus sofrimentos no mundo dos Espíritos.

Alguns dias depois o acaso, ou antes, a vontade deDeus, nos permitiu um segundo controle desse estranhofenômeno. Um espírita, jovem mecânico, de inteligênciaextraordinária, tinha passado comigo a última parte da noite.Enquanto me entretinha com ele, notei que seu olhar tomavasingular imobilidade. Ele não esperou a pergunta para explicar acircunstância: “No mesmo instante em que me olháveis, vidistintamente a silhueta de uma mulher que, da janela, avançou atéa poltrona vizinha, diante da qual ajoelhou-se. Tinha o aspecto deuma pessoa de vinte e cinco anos; estava vestida de negro; umaespécie de xale recobria a parte superior do busto; tinha à cabeçaalgo parecido com um lenço ou uma touca.”

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A descrição concordava perfeitamente com a idéia queeu fizera da religiosa espanhola, e o lugar em que ela se prosternoué mais ou menos aquele onde, ajoelhado como ela, façohabitualmente as minhas orações pelos mortos. Para mim era Mariados Anjos.

Certamente, os incrédulos e os falsos espíritas sorrirãode minha certeza, e no fato narrado verão três visionários, em vezde um. Quanto aos espíritas sinceros, estes acreditarão em mim,principalmente quando o afirmo sob palavra de honra. A ninguémreconheço o direito de pôr em dúvida semelhante testemunho.

Os trabalhos do Espiritismo em Bordeaux, por maioressejam a modéstia e a reserva, nem por isso deixam de ser objeto dacuriosidade pública, não se passando um dia em que eu não sejainterrogado a respeito. Todo profano, toda criatura maravilhadacom os fenômenos espíritas reclama com insistência o favor deuma experiência; sua alma flutua entre a própria dúvida e aconvicção dos adeptos.

Introduzi-o numa reunião séria, numa assembléia deespíritas que supomos profundamente recolhidos, isto é, trazendouma disposição conveniente à gravidade da situação. Que sepassará nele? Transcrevendo para o papel as inspirações de umEspírito superior, o médium escrevente fará que as aceite comotais? Passei por uma experiência desagradável: se a comunicaçãotiver o cunho da inspiração celeste, ele atribuirá o mérito ao talentodo médium; se o pensamento do mensageiro de Deus tomar acoloração do meio onde passa, certamente lhe parecerá deconcepção inteiramente humana. Nesta circunstância, eis a minharegra de conduta: Ela é previamente traçada pelo homem daProvidência, por esse missionário do pensamento, que possuímosmomentaneamente e que, de seu centro habitual de atividade,continuará a fazer irradiar sobre nós os tesouros celestes, de queuma graça especial o fez dispensador. Aos curiosos que vêm

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inquirir da realidade dos fatos ou solicitar uma audiência, quercomo distração, quer como uma emoção que atravessa o coraçãosem se deter, limito-me a expor a gravidade do assunto; ao Espíritoencarnado pseudo-sábio, que me retrata perfeitamente neste globoo da 8a classe e da 3a ordem do mundo espírita, respondo comevasivas; mas àquele que, embora obcecado pela dúvida, possui averdade em estado de germe, começando pela boa-fé para chegar àfé, aconselho os estudos teóricos, aos quais não tarda a suceder oestudo prático ou a experimentação. Assim, à medida que um fatonovo se desprende de uma idéia nova, ele o registra ao lado do fato;então a ciência espírita é infundida gota a gota no coração e nocérebro, com suas conseqüências morais, fazendo-nos ver, ao cabodesta longa sucessão de reveses, trabalhos e provas se alternandonas duas existências, uma eternidade radiosa que se escoa do seiode Deus, fonte de felicidade e de vida!

Bouché de Vitray, médico

DISCURSO DO SR. ALLAN KARDEC

Senhoras e Senhores,

Foi com felicidade que atendi ao vosso apelo, e osimpático acolhimento com que sou recebido é uma dessassatisfações morais que deixam no coração uma impressão profundae indestrutível. Se me sinto feliz com esta cordial recepção, é quenela vejo uma homenagem prestada à doutrina que professamos eaos Espíritos bons que no-la ensinam, muito mais que a mimpessoalmente, que não passo de um instrumento nas mãos daProvidência. Convencido da verdade desta doutrina, e do bem queela está chamada a produzir, tratei de lhe coordenar os elementos;esforcei-me por torná-la clara e inteligível para todos. É tudoquanto me cabe e, assim, jamais me considerei seu criador: a honrapertence inteiramente aos Espíritos. É, pois, somente a eles que sedevem dirigir os testemunhos de vossa gratidão, e não aceito os

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elogios que me dirigis senão como um estímulo para continuarminha tarefa com perseverança.

Nos trabalhos que tenho feito para alcançar o objetivoa que me propunha, sem dúvida fui ajudado pelos Espíritos, comoeles próprios já me disseram várias vezes, mas sem o menor sinalexterior de mediunidade. Assim, não sou médium, no sentidovulgar da palavra, e hoje compreendo que é uma felicidade queassim o seja. Por uma mediunidade efetiva, eu só teria escrito sobuma mesma influência; teria sido levado a não aceitar comoverdade senão o que me tivesse sido dado, e talvez injustamente, aopasso que, na minha posição, convinha que eu desfrutasse de umaliberdade absoluta para captar o bom, onde quer que se encontrassee de onde viesse. Foi possível, assim, fazer uma seleção dosdiversos ensinamentos, sem prevenção e com total imparcialidade.Vi muito, estudei muito e observei bastante, mas sempre com oolhar impassível; nada ambiciono, senão ver a experiência queadquiri posta em proveito dos outros. É por eles que me sinto feliz,por poder evitar os escolhos inseparáveis de todo noviciado.

Se trabalhei muito e se trabalho todos os dias, estoulargamente recompensado pela marcha tão rápida da doutrina,cujos progressos ultrapassam tudo quanto seria permitido esperar,pelos resultados morais que ela produz. Sinto-me feliz por ver quea cidade de Bordeaux não apenas não fica na retaguarda destemovimento, mas se dispõe a marchar na vanguarda, pelo número epela qualidade dos adeptos. Se se considerar que o Espiritismo devea sua propagação às suas próprias forças, sem contar com o apoiode nenhum dos meios auxiliares que, em geral, fazem tanto sucesso,e malgrado os esforços de uma oposição sistemática ou, antes, emvirtude mesmo desses esforços, não podemos deixar de ver nisto odedo de Deus. Se seus inimigos, embora poderosos, não lhepuderam paralisar o avanço, forçoso é convir que o Espiritismo émais poderoso que eles e, tal como a serpente da fábula, em vãoempregam os dentes contra uma lima de aço.

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Se dissermos que o segredo de seu poder está navontade de Deus, os que não crêem em Deus escarnecerão. Hátambém pessoas que não negam a Deus, mas se julgam mais fortesque Ele; esses não riem: opõem barreiras, que imaginamintransponíveis e, contudo, o Espiritismo as ultrapassa todos osdias e sob suas vistas. É que, efetivamente, ele tira da sua natureza,de sua própria essência, uma força irresistível. Qual, então, osegredo dessa força? Teremos que a ocultar, receando que, umavez conhecida e a exemplo de Sansão, seus inimigos aproveitempara derrubá-lo? De modo algum. No Espiritismo não hámistérios; tudo se faz às claras; podemos revelá-lo sem temor,altivamente. Embora já o tenha dito, talvez não seja fora depropósito repeti-lo aqui, a fim de que se saiba que se entregamosaos adversários o segredo de nossas forças é porque também lhesconhecemos o lado fraco.

A força do Espiritismo tem duas causaspreponderantes: a primeira é tornar felizes os que o conhecem, ocompreendem e o praticam. Ora, como há pessoas infelizes, elerecruta um exército inumerável entre os que sofrem. Querem lhetirar esse elemento de propagação? Que tornem os homens de talmodo felizes, moral e materialmente, que nada mais tenham adesejar, nem neste, nem no outro mundo. Não pedimos mais,desde que o objetivo seja atingido. A segunda é que o Espiritismonão se assenta na cabeça de nenhum homem, sujeitando-se, assim,a ser derrubado; não tem um foco único, que possa ser extinto; seufoco está em toda parte, porque em toda parte há médiuns quepodem comunicar-se com os Espíritos; não há família que não ospossua em seu seio e que não realizem estas palavras do Cristo:Vossos filhos e filhas profetizarão, e terão visões; porque, enfim, oEspiritismo é uma idéia e não há barreiras impenetráveis à idéia,nem bastante altas que estas não possam transpor. Mataram oCristo, mataram seus apóstolos e discípulos. Mas o Cristo tinhalançado ao mundo a idéia cristã, e esta idéia triunfou da perseguiçãodos Césares onipotentes. Por que, então, o Espiritismo, que não é

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senão o desenvolvimento e a aplicação da idéia cristã, não triunfariade alguns zombeteiros e de antagonistas que, até o presente,malgrado seus esforços, só lhe puderam opor uma negação estéril?Haveria nisto uma pretensão quimérica? Um sonho de reformador?Aí estão os fatos para responder: o Espiritismo penetra em todaparte, a despeito de tudo e contra tudo; como o pólen fecundantedas flores, é levado pelos ventos e finca raízes nos quatro cantos domundo, porque em todo lugar encontra uma terra fecunda emsofrimentos, sobre a qual derrama o bálsamo consolador. Suponde,então, o estado mais absoluto que a imaginação possa sonhar,recrutando toda a gente de seus esbirros para deter a idéia aopassar: poderão impedir que os Espíritos entrem nela e semanifestem espontaneamente? Impedirão que os médiuns seformem na intimidade das famílias? Suponhamo-la bastante fortepara impedir de escrever, para proibir a leitura dos livros; poderãoimpedir de ouvir, desde que há médiuns auditivos? Impedirão o paide receber consolações do filho que perdeu? Vedes, pois, que éimpossível, e que eu tinha razão em dizer que o Espiritismo pode,sem receio, entregar aos inimigos o segredo de suas forças.

Seja, dirão. Quando uma coisa é inevitável, é precisoaceitá-la. Mas se for uma idéia falsa ou má, não se tem razão paralhe opor obstáculos? Primeiramente, seria preciso provar que éfalsa. Ora, até o presente o que opõem os seus adversários?Zombarias e negações que, em boa lógica, jamais passaram porargumentos. Mas uma refutação séria, sólida; uma demonstraçãocategórica, evidente, onde a encontrareis? Em parte alguma; nemnas críticas da Ciência, nem alhures. Por outro lado, quando umaidéia se propaga com a rapidez do relâmpago; quando encontrainumeráveis ecos nas classes mais esclarecidas da sociedade;quando tem suas raízes em todos os povos, desde que há homensna Terra; quando os maiores filósofos sagrados e profanos aproclamaram, é ilógico supor que não repouse senão na mentira ena ilusão. Todo homem sensato, que a paixão ou o interesse pessoalnão cegaram, dirá que deve haver algo de verdadeiro; no mínimo ohomem sensato suspenderá o seu julgamento antes de negar.

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A idéia é má? Se é verdadeira, se não passa de umaaplicação das leis da Natureza, parece difícil que possa ser má, amenos que se admita que Deus fez mal aquilo que fez. Como seriamá uma doutrina que torna melhores os que a praticam; consola osaflitos; dá resignação na infelicidade; restabelece a paz nas famílias;acalma a efervescência das paixões e impede o suicídio? Dizemalguns que ela é contrária à religião. Eis a grande palavra com quetentam amedrontar os tímidos e os que não a conhecem. Comouma doutrina que torna melhor, que ensina a moral evangélica, quesó prega a caridade, o esquecimento das ofensas, a submissão àvontade de Deus seria contrária à religião? Seria um contra-senso.Afirmar semelhante coisa é atacar a própria religião. Eis por quedigo que não a conhecem os que assim falam. Se tal fosse oresultado, por que conduziria ela às idéias religiosas os que em nadacrêem? Por que faria orar aqueles que haviam esquecido de o fazerdesde a infância?

Aliás, há outra resposta, igualmente peremptória: oEspiritismo é estranho a toda questão dogmática. Aos materialistasprova a existência da alma; aos que só crêem no nada, prova a vidaeterna; aos que julgam que Deus não se ocupa das ações doshomens, prova as penas e recompensas futuras; destruindo omaterialismo, destrói a maior chaga da sociedade. Eis o seu objetivo.Quanto às crenças especiais, delas não se ocupa, deixando a cada uminteira liberdade. O materialismo é o maior inimigo da religião;trazendo-o ao espiritualismo, o Espiritismo lhe faz marchar trêsquartas parte do caminho para voltar ao seio da Igreja. Cabe à Igrejafazer o resto. Mas se a comunhão para a qual ele tenderia a se ligaro repele, seria de temer que se voltasse para uma outra.

Dizendo isto, senhores, ensino padre-nosso a vigário,pois já o sabeis tanto quanto eu. Mas há outro ponto, sobre o qualé útil dizer algumas palavras.

Se os inimigos externos nada podem contra oEspiritismo, o mesmo não acontece com os de dentro. Refiro-me

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aos que são mais espíritas de nome que de fato, sem falar dos quedo Espiritismo apenas têm a máscara. O mais belo lado doEspiritismo é o lado moral. É por suas conseqüências morais quetriunfará, pois aí está a sua força, por aí é invulnerável. Ele inscreveem sua bandeira: Amor e caridade; e diante desse paládio, maispoderoso que o de Minerva, porque vem do Cristo, a própriaincredulidade se inclina. Que se pode opor a uma doutrina que levaos homens a se amarem como irmãos? Se não se admitir a causa,pelo menos se respeitará o efeito. Ora, o melhor meio de provar arealidade do efeito é fazer sua aplicação a si mesmo; é mostrar aosinimigos da doutrina, pelo próprio exemplo, que ela realmentetorna melhor. Mas como fazer crer que um instrumento possaproduzir harmonia se emite sons discordantes? Do mesmo modo,como persuadir que o Espiritismo deve conduzir à concórdia, se osque o professam, ou supostamente o praticam – o que para osadversários dá no mesmo – se atiram pedras? Se basta uma simplessusceptibilidade do amor-próprio para os dividir? Não é o meio derejeitar seu próprio argumento? Os mais perigosos inimigos doEspiritismo são, pois, os que o fazem mentir a si mesmos, nãopraticando a lei que proclamam. Seria pueril criar dissidência pelasnuanças de opinião; haveria evidente malevolência, esquecimentodo primeiro dever do verdadeiro espírita, em separar-se por umaquestão pessoal, porquanto o sentimento de personalidade é frutodo orgulho e do egoísmo.

Não devemos esquecer, senhores, que os inimigos doEspiritismo são de duas ordens: de um lado, tendes os zombadorese os incrédulos. Estes recebem diariamente o desmentido pelosfatos; não os temeis e tendes razão. Sem o querer, servem à nossacausa e, por isso, lhes devemos agradecer. Do outro lado estão aspessoas interessadas em combater a doutrina; não espereis trazê-laspela persuasão, pois não buscam a luz. Em vão exibireis aos seusolhos a evidência do sol: são cegos porque não querem ver. Nãovos atacam porque estejais no erro, mas porque estais com averdade e, com ou sem razão, crêem que o Espiritismo seja

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prejudicial aos seus interesses materiais. Se estivessem convencidosde que é uma quimera, o deixariam em paz. Assim, sua fúria crescena razão do progresso da doutrina, de tal sorte que se pode medirsua importância pela violência dos ataques. Enquanto não viram noEspiritismo senão uma brincadeira de mesas girantes, nadadisseram, confiando tratar-se de um capricho da moda; mas, hoje,que a despeito de sua má vontade, vêem a insuficiência dazombaria, empregam outros meios. Sejam estes quais forem, jádemonstramos a sua impotência. Contudo, se não podem abafaressa voz que se eleva em todas as partes do mundo; se não podemdeter essa torrente que os invade por todos os lados, tudo farãopara criar entraves e, se puderem fazer recuar o progresso por umsó dia, dirão ainda que é um dia ganho.

Esperai, portanto, que o terreno seja disputado palmo apalmo, pois o interesse material é, de todos, o mais tenaz; para ele,os mais sagrados direitos da Humanidade nada são; tendes a provana luta americana. Pereça a união que fazia nossa glória, antes queos nossos interesses!, dizem os escravagistas. Assim falam osadversários do Espiritismo, pois a questão humanitária é a menorde suas preocupações. Que lhes opor? Uma bandeira que os façaempalidecer, pois sabem que ela traz palavras saídas da boca doCristo: Amor e caridade, e que estas palavras são a sua sentença. Emtorno desta bandeira, que todos os verdadeiros espíritas secongreguem, e serão fortes, porquanto a união faz a força.Reconhecei, pois, os verdadeiros defensores de vossa causa, nãopelas palavras vãs, que nada custam, mas pela prática da lei de amore caridade, pela abnegação da personalidade; o melhor soldado nãoé o que ergue o sabre mais alto, mas o que sacrifica corajosamentea própria vida. Encarai, pois, como fazendo causa comum comvossos inimigos todos os que tendem a lançar entre vós o fermentoda discórdia, porque, voluntária ou involuntariamente, fornecemarmas contra vós. Em todo o caso, não conteis mais com eles doque com esses maus soldados, que fogem ao primeiro tiro de fuzil.

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Mas – perguntareis – se as opiniões estão divididassobre alguns pontos da doutrina, como reconhecer de que lado estáa verdade? É a coisa mais fácil. Primeiro, tendes por peso o vossojulgamento e por medida a lógica, sã e inflexível. Depois, tereis oassentimento da maioria, porque, acreditai bem, o númerocrescente ou decrescente dos partidários de uma idéia dá a medidade seu valor; se ela é falsa, não conquistará mais voto que a verdade:Deus não o permitiria; Ele pode deixar o erro à vista aqui e ali, paranos mostrar suas características e nos ensinar a reconhecê-lo. Semisto, onde estaria o nosso mérito, se não tivéssemos escolha a fazer?Quereis um outro critério da verdade? Eis um, infalível. Desde quea divisa do Espiritismo é Amor e caridade, reconhecereis a verdadepela prática desta máxima, e tereis como certo que aquele que atiraa pedra em outro não pode estar com a verdade absoluta. Quantoa mim, senhores, ouvistes a minha profissão de fé. Se – que Deusnão o permita! – surgissem dissidências entre vós, digo-o compesar, eu me separaria abertamente dos que desertassem dabandeira da fraternidade, porque, aos meus olhos, não poderiamser encarados como verdadeiros espíritas.

Aconteça o que acontecer, não vos inquieteisabsolutamente com algumas dissidências passageiras; logo tereis aprova de que elas não têm conseqüências graves. São testes para avossa fé e para o vosso julgamento; muitas vezes, também, sãomeios permitidos por Deus e pelos Espíritos bons para dar amedida da sinceridade e tornar conhecidos aqueles com os quaisrealmente podemos contar, caso necessário, evitando, assim, que oscoloquemos em evidência. São pequenas pedras semeadas emvosso caminho, a fim de vos habituar a ver em que vos apoiais.

Resta-me falar ainda, senhores, da organização daSociedade. Desde que quereis pedir-me conselho, dir-vos-ei o quedisse o ano passado em Lyon. Os mesmos motivos me levam a vosdissuadir, com todas as minhas forças, do projeto de formar umaSociedade única, abrangendo todos os espíritas da cidade, o queseria de todo impraticável, em razão do número crescente dos

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adeptos. Não tardaríeis a serdes paralisados pelos obstáculosmateriais e pelas dificuldades morais, ainda maiores, que vosmostrariam a sua impossibilidade. É preferível, pois, nãoempreenderdes uma coisa a que seríeis obrigados a renunciar.Todas as considerações em apoio a esta opinião estãocompletamente desenvolvidas na nova edição de O Livro dosMédiuns, à qual convido a vos reportardes. Não acrescentarei senãoalgumas palavras.

O que é difícil de se obter numa reunião numerosa ébem mais fácil de conseguir nos grupos particulares. Estes seformam por afinidade de gostos, de sentimentos e de hábitos. Doisgrupos separados podem ter uma diferente maneira de ver sobrealguns detalhes e nem por isso deixam de marchar de acordo, aopasso que se estivessem reunidos, as divergências de opiniõestrariam inevitáveis perturbações.

O sistema da multiplicação dos grupos ainda tem comoresultado interromper bruscamente as rivalidades de supremacia ede direção. Cada grupo, naturalmente, é presidido pelo dono dacasa ou pelo que for designado, e tudo se passa em família. Se a altadireção do Espiritismo, numa cidade, pertence a alguém, este seráconvocado pela força das coisas, e um consentimento tácito odesignará muito naturalmente, em virtude de seu mérito pessoal, desuas qualidades conciliadoras, do zelo e do devotamento de quetiver dado provas, dos reais serviços que houver prestado à causa.Desse modo, terá adquirido, sem a buscar, uma força moral queninguém pensará em lhe contestar, porque todos a reconhecerão,ao passo que aquele que, por sua autoridade privada, procurasseimpor-se, ou fosse conduzido por uma camarilha, encontrariaoposição da parte de todos quantos não lhe reconhecessem asqualidades morais necessárias. Daí uma causa inevitável de divisões.

É uma coisa séria confiar a alguém a suprema direçãoda doutrina. Antes de o fazer, é preciso estar bem seguro desseindivíduo sob todos os pontos de vista, porque, com idéias

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errôneas, poderia arrastar a Sociedade por uma ladeira deplorável e,talvez, à sua ruína. Nos grupos particulares, cada um pode darprova de habilidade e ser designado, mais tarde, pelos sufrágios doscolegas, se for o caso. Mas ninguém pode pretender ser generalantes de ser soldado. Assim como reconhecemos o bom generalpor sua coragem e por seus talentos, o verdadeiro espírita éreconhecido por suas qualidades. Ora, a primeira de que deve darprovas é a abnegação da personalidade; é, pois, por seus atos que oreconhecemos, mais que pelas palavras. O que é necessário parauma tal direção é um verdadeiro espírita, e o espírita verdadeiro nãose deixa mover pela ambição, nem pelo amor-próprio. A respeito,senhores, chamo a vossa atenção para as diversas categorias deespíritas, cujos caracteres distintivos estão claramente definidos emO Livro dos Médiuns (no 28).

Quanto ao mais, seja qual for a natureza da reunião,numerosa ou não, as condições que deve satisfazer para atingir oseu objetivo são as mesmas. É para isto que devemos concentrartodos os nossos cuidados e os que os satisfazerem serão fortes,porque terão, necessariamente, o apoio dos Espíritos bons. Taiscondições estão traçadas em O Livro dos Médiuns (no 341).

Um erro muito freqüente entre alguns neófitos é o dese julgarem mestres após alguns meses de estudo. Como sabeis, oEspiritismo é uma ciência imensa, cuja experiência não pode seradquirida senão com o tempo, como, aliás, em todas as coisas. Hánessa pretensão de não mais necessitar de conselhos e de se julgaracima de todos uma prova de incompetência, pois não atende a umdos primeiros preceitos da doutrina: a modéstia e a humildade.Quando os Espíritos maléficos encontram semelhantes disposiçõesnum indivíduo, não deixam de o superexcitar e de o entreter,persuadindo-o de que só ele possui a verdade. É um dos escolhosque podem ser encontrados, e contra o qual julguei dever vosprevenir, acrescentando que não basta dizer-se espírita, como nãobasta dizer-se cristão: é preciso prová-lo pela prática.

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Se, pela formação dos grupos, evitamos a rivalidade dosindivíduos, essa rivalidade não poderia existir entre os própriosgrupos que, marchando por vias um pouco divergentes, poderiamproduzir cismas, enquanto uma Sociedade única manteria a unidadede princípios? A isto respondo que o inconveniente assinalado nãoseria evitado, considerando-se que aqueles que não adotassem osprincípios da Sociedade dela se separariam e nada os impediria deformarem um grupo à parte. Os grupos são outras tantas pequenasSociedades, que marcharão necessariamente no mesmo caminho setodas adotarem a mesma bandeira e as bases da ciência,consagradas pela experiência. A respeito, chamo igualmente a vossaatenção para o no 348 de O Livro dos Médiuns. Nada impede, aliás,que um grupo central seja formado por delegados dos diversosgrupos particulares, que, assim, teriam um ponto de reunião e umcorrespondente direto com a Sociedade de Paris. Depois,anualmente, uma assembléia geral poderia reunir todos os adeptose tornar-se, assim, uma verdadeira festa do Espiritismo. Aliás,preparei uma instrução detalhada sobre esses diversos pontos, queterei a honra de vos transmitir posteriormente, tanto sobre aorganização, quanto sobre a ordem dos trabalhos. Os que aseguirem manter-se-ão naturalmente na unidade de princípios.

Tais são, senhores, os conselhos que julguei por bemvos dar, já que vos quisestes conformar com a minha opinião.Sinto-me feliz por acrescentar que em Bordeaux encontreielementos excelentes e um progresso muito maior do que esperava.Aqui me deparei com um grande número de espíritas sinceros everdadeiros e levo da visita a fundada esperança de que a doutrinase desenvolverá sobre as mais largas bases e em excelentescondições. Crede que meu concurso jamais faltará, naquilo queestiver ao meu alcance fazer, para secundar os esforços dos que sãosincera e conscienciosamente devotados de coração a esta nobrecausa, que é a da Humanidade.

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Senhores, o Espírito Erasto, que já conheceis pelasnotáveis dissertações que dele lestes, também quer trazer-vos otributo de seus conselhos. Antes de minha partida de Paris, eleditou, por seu médium habitual, a comunicação seguinte, cujaleitura terei a honra de fazer.

PRIMEIRA EPÍSTOLA AOS ESPÍRITAS DE BORDEAUX,POR ERASTO, HUMILDE SERVO DE DEUS

Que a paz do Senhor esteja convosco, meus bonsamigos, a fim de que nada venha perturbar a boa harmonia quedeve reinar num centro de espíritas sinceros! Sei quão profunda é avossa fé em Deus e quanto sois fervorosos adeptos da novarevelação. Eis por que vos digo, com toda a efusão de minhaternura, que todos nós ficaríamos desolados – nós que somos, soba direção do Espírito de Verdade, os iniciadores do Espiritismo naFrança – se a concórdia, de que até hoje destes provas brilhantes,viesse a desaparecer do vosso meio; se não tivésseis dado oexemplo de uma sólida fraternidade; se, enfim, não fôsseis umcentro sério e importante da grande comunhão espírita francesa, euteria deixado esta questão na sombra. Mas se a levantei é que tenhorazões plausíveis para vos convidar a manter a união, a paz e aunidade de doutrina entre os vossos diversos grupos. Sim, meuscaros discípulos, aproveito diligentemente esta ocasião, que nósmesmos preparamos, para vos mostrar quanto seria funesta aodesenvolvimento do Espiritismo e que escândalo causaria entrevossos irmãos de outras terras a notícia de uma cisão no centro quenos encantou mencionar até agora, por seu Espírito defraternidade, a todos os outros grupos, formados ou em formação.Não ignoro, como não deveis ignorar, que recorrerão a todos osmeios para semear a divisão entre vós; que vos armarão ciladas; quesemearão emboscadas de toda sorte em vosso caminho; que vosoporão uns aos outros, a fim de fomentar a divisão e levar a umaruptura, sob todos os aspectos lamentável. Mas podereis evitartudo isto, praticando os sublimes preceitos da lei de amor e decaridade, em primeiro lugar diante de vós próprios e, a seguir,

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diante de todos. Não; estou convencido de que não dareis aosinimigos de nossa santa causa a satisfação de dizer: “Vede essesespíritas de Bordeaux, que nos mostravam como marchando navanguarda dos novos crentes. Nem sequer sabem estar de acordoentre si!” Eis, meus caros amigos, onde vos esperam e onde nosesperam a todos. Vossos excelentes guias já vos disseram: Tereis delutar não só contra os orgulhosos, os egoístas, os materialistas etodos esses infelizes que se acham imbuídos do espírito do século,mas, ainda e principalmente, contra a turba dos Espíritosenganadores que, encontrando em vosso meio uma rara reunião demédiuns, pois a tal respeito sois os mais favorecidos, logo virãoassaltar-vos: uns, com dissertações sabiamente combinadas, nasquais, graças a algumas tiradas piedosas, insinuarão a heresia oualgum princípio subversivo; outros, com comunicaçõesabertamente hostis aos ensinos dados pelos verdadeirosmissionários do Espírito de Verdade. Ah! crede-me, não temaisdesmascarar os velhacos que, novos Tartufos, se introduziriamentre vós sob a máscara da religião; sede igualmente impiedosospara com os lobos devoradores, que se ocultariam sob peles decordeiro. Com a ajuda de Deus, que jamais invocais em vão, e coma assistência dos Espíritos bons que vos protegem, ficareisinquebrantáveis em vossa fé; os Espíritos maus vos acharãoinvulneráveis e, quando virem suas flechas tornar-se menos afiadascontra o amor e a caridade que vos animam o coração, retirar-se-ãoconfusos de uma campanha onde não terão colhido senão aimpotência e a vergonha. Encarando como subversiva todadoutrina contrária à moral do Evangelho e às prescrições gerais doDecálogo, que se resumem nesta concisa lei: Amai a Deus acima detodas as coisas e ao próximo como a vós mesmos, ficareisinvariavelmente unidos. Aliás, em tudo é preciso saber submeter-seà lei comum: a ninguém cabe subtrair-se ou querer impor suaopinião e seu sentimento, quando estes não forem aceitos pelosoutros membros de uma mesma família espírita; e nisto eu vosconvido encarecidamente a vos modelardes pelos usos eregulamentos da Sociedade de Estudos Espíritas de Paris, onde

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ninguém, seja qual for a sua posição, idade, serviços prestados ouautoridade adquirida, pode substituir, por sua iniciativa pessoal, ada Sociedade de que faz parte e, a fortiori, engajá-la no que quer queseja, por expedientes que ela não aprovou. Dito isto, é incontestávelque os adeptos de um mesmo grupo devem ter uma justadeferência para com a sabedoria e a experiência adquiridas. Aexperiência não é atributo do mais velho, nem do mais sábio, masdo que se ocupou com mais tempo e com mais proveito para todos,de nossa consoladora filosofia. Quanto à sabedoria, cabe a vósexaminar aqueles que, entre vós, seguem e praticam melhor ospreceitos e as leis. Entretanto, meus amigos, antes de seguir vossaspróprias inspirações, não esqueçais de que tendes os vossosconselhos e vossos consultores etéreos a consultar, e estes jamaisvos faltarão, quando solicitardes com fervor e com um objetivo deinteresse geral. Para isso, necessitais de bons médiuns e aqui os vejoexcelentes, no meio dos quais não tendes senão que escolher. Porcerto sei perfeitamente que a Sra. e a Srta. Cazemajoux e algunsoutros possuem qualidades mediúnicas no mais alto grau enenhuma região, eu vo-lo repito aqui, é mais bem favorecida a esserespeito do que Bordeaux.

Eu tive de vos fazer ouvir uma voz um tanto maissevera, meus bem-amados, quanto o Espírito de Verdade, mestrede todos nós, mais espera de vós. Lembrai-vos de que fazeis parteda vanguarda espírita e que, assim como o estado-maior, avanguarda deve a todos o exemplo de uma submissão absoluta àdisciplina estabelecida. Ah! vossa tarefa não é fácil, pois é a vós queincumbe o trabalho de levar, com mão vigorosa, o machado àssombrias florestas do materialismo e perseguir até as suas últimastrincheiras os interesses materiais coligados. Novos Jasons,marchai à conquista do verdadeiro tosão de ouro, isto é, dessasidéias novas e fecundas que devem regenerar o mundo; mas, então,já não marchais no vosso próprio interesse, nem mesmo nointeresse da geração atual, mas sobretudo no interesse das geraçõesfuturas, para as quais preparais os caminhos. Há nesta obra um

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sinal de abnegação e de grandeza que ferirá de admiração e dereconhecimento os séculos futuros, de que Deus, crede-me, saberávos levar em conta. Tive de falar como falei porque me dirijo acriaturas que escutam a razão; a homens que perseguem seriamenteum fim eminentemente útil: a melhoria e a emancipação da raçahumana; enfim, a espíritas que ensinam e pregam pelo exemplo,que o melhor meio para lá chegar está na prática das verdadeirasvirtudes cristãs. Tive de vos falar assim porque era preciso vosprevenir contra um perigo, que era meu dever assinalar; venhocumpri-lo. Assim, agora, posso encarar o futuro sem inquietação,porque estou convencido de que minhas palavras aproveitarão atodos e a cada um; e que o egoísmo, o amor-próprio e a vaidadenão terão, doravante, nenhum poder sobre corações onde, semqualquer limite, reine a verdadeira fraternidade.

Vós vos lembrareis, espíritas de Bordeaux, que a vossaunião é o verdadeiro encaminhamento para a união e a fraternidadeuniversal. A esse respeito sinto-me feliz, muito feliz, de poderconstatar claramente que o Espiritismo vos fez dar um passo àfrente. Recebei, pois, nossos cumprimentos, pois aqui falo em nomede todos os Espíritos que presidem à grande obra da regeneraçãohumana, por terdes, por vossa iniciativa, aberto um novo campo deexploração e uma nova causa de certeza aos estudos dos fenômenosde além-túmulo, por vosso pedido de filiação, não mais comoindivíduos isolados, mas como grupo compacto, à Sociedadeiniciadora de Paris. Pela importância dessa iniciativa, reconheço aalta sabedoria de vossos guias principais e agradeço ao meigoFénelon e seus fiéis auxiliares Georges e Marius, que com elepresidem às vossas piedosas reuniões de estudo. Aproveito estacircunstância para igualmente dar um testemunho brilhante aosEspíritos Ferdinand e Félicia, que todos conheceis. Embora essesdignos colaboradores tenham apenas feito o bem pelo bem, é bomque saibais que é a esses modestos pioneiros, secundados pelohumilde Marcelin, que nossa santa doutrina deve ter prosperado tãorapidamente em Bordeaux e no sudoeste da França.

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Sim, meus crentes fiéis, vossa admirável iniciativa seráseguida, bem o sei, por todos os grupos espíritas formados comseriedade. É, pois, um passo imenso à frente. Compreendestes, etodos os vossos irmãos compreenderão como vós, que vantagens,que progressos, que propaganda resultarão da adoção de umprograma uniforme para os trabalhos e estudos da doutrina quevos revelamos. Fique bem entendido, apesar disso, que cada grupoconservará sua originalidade e sua iniciativa particular; mas, fora deseus trabalhos particulares, terá de se ocupar com diversas questõesde interesse geral, submetidas a seu exame pela Sociedade central,e resolver várias dificuldades cuja solução, até hoje, não pôde serobtida dos Espíritos, por razões que seria inútil desenvolver aqui.Recearia vos ofender se ressaltasse aos vossos olhos asconseqüências que advirão dos trabalhos simultâneos; quemousará, então, contestar uma verdade, quando esta for confirmadapela unanimidade ou pela maioria das respostas mediúnicas,obtidas simultaneamente em Lyon, Bordeaux, Constantinopla,Metz, Bruxelas, Sens, México, Carlsruhe, Marselha, Toulouse,Mâcon, Sétif, Argel, Oran, Cracóvia, Moscou, São Petersburgo,como em Paris?

Eu vos entretive com a rude franqueza de que me sirvopara falar aos vossos irmãos de Paris. No entanto, não vos deixareisem testemunhar minhas simpatias, justamente conquistadas, a estafamília patriarcal, onde excelentes Espíritos, incumbidos de vossadireção espiritual, começaram a fazer ouvir suas eloqüentespalavras. Mencionei a família Sabò, que, com uma constância e umapiedade inalterável, soube atravessar as dolorosas provas com queDeus a afligiu, com o fito de a elevar e torná-la apta para a suamissão atual. Também não devo esquecer o concurso devotado detodos quantos, em suas respectivas esferas, contribuíram para apropagação de nossa consoladora doutrina. Continuai todos, meusamigos, a marchar resolutamente no caminho aberto; ele vosconduzirá seguramente às esferas etéreas da perfeita felicidade,

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onde vos marcarei encontro. Em nome do Espírito de Verdade, quevos ama, eu vos abençôo, espíritas de Bordeaux!

Erasto

Banquete Oferecido aAllan Kardec pelos Espíritas Bordeleses

DISCURSO E BRINDE DO SR. LACOSTE, NEGOCIANTE

Senhores,

Rogo principalmente à juventude, que me ouve, abondade de prestar atenção às poucas palavras de fraterna afeição,escritas especialmente para ela. A falta de experiência, aconformidade de nossas idades, e a comunhão de nossas idéias measseguram a sua indulgência.

Nenhum de nós, senhores, acolheu com indiferença arevelação desta santa doutrina, cujos elementos novos foramrecolhidos por nosso venerado mestre num livro sábio. Em tempoalgum campo mais vasto foi aberto às nossas imaginações; jamaishorizonte mais grandioso foi desvendado às nossas inteligências. Écom o ardor da mocidade, é sem olhar para trás que nos tornamosadeptos da fé no futuro e pioneiros da civilização futura. Nãopermita Deus que eu venha proferir palavras de desânimo! Vossascrenças me são muito conhecidas, senhores, e as sei muito sólidaspara crer que a zombaria ou o falso raciocínio de alguns adversáriosas venham abalar. A juventude é rica em privilégios, fácil às nobresemoções e ardente no empreendimento; possui ainda o entusiasmoda fé, essa alavanca moral que levanta os mundos. Mas se suaimaginação a empurra além dos obstáculos, ela lhe faz muitas vezesultrapassar o objetivo. É contra esses desvios que vos exorto a vosacautelardes. Entregues a vós mesmos, atraídos pelo encanto danovidade, levantando a cada passo a ponta do véu que vos ocultava

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o desconhecido, quase que tocando o dedo na solução do eternoproblema das causas primeiras, guardai-vos de vos deixar inebriarpelas alegrias do triunfo. Poucos caminhos estão isentos deprecipícios; a maior confiança segue sempre caminhos fáceis, enada é mais difícil de obter dos jovens soldados, como dasinteligências jovens, do que a moderação na vitória. Aí está o malque temo para vós, como receio para mim.

Felizmente o remédio está perto do mal. Há entre nós,aqui reunidos, alguns que, à maturidade da idade e do talento, aliama feliz vantagem de terem sido, em nossa cidade, propagadoresesclarecidos do ensino espírita. É a esses Espíritos mais calmos emais refletidos que deveis submeter a direção dos vossos estudos e,graças a essa deferência de todos os dias, graças a essasubordinação moral, ser-vos-á dado trazer à construção do edifíciocomum uma pedra que não oscilará.

Saibamos, pois, senhores, vencer as questões pueris doamor-próprio. Nossa parte à nossa juventude, não é tão bela?Efetivamente, a nós pertence o futuro; a nós que poderemosassistir, cheios de vida e de fé, quando nossos pais em Espiritismoreviverem num mundo melhor, à esplêndida radiação destaverdade, da qual eles não terão entrevisto na Terra senão amisteriosa aurora.

Deixai-me, pois, esperar, senhores, que possais dizercomigo, e do fundo do coração:

A todos os nossos decanos de idade; a todos os que,conhecidos ou não, sob a casaca do rico ou o avental do operário,fizeram-se adeptos e propagadores da Doutrina Espírita, emBordeaux! À prosperidade da Sociedade Espírita de Paris, dessaSociedade que empunha tão alto e com tanta firmeza o estandartesob o qual aspiramos a nos colocar! Que o Sr. Allan Kardec, nossomestre comum, receba por nossos irmãos de Paris o penhor deuma profunda simpatia; que ele lhes diga que os nossos jovens

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corações batem em uníssono e que, embora com passo menosseguro, nem por isso deixamos de concorrer para a regeneraçãouniversal, estimulados por seus exemplos e sucessos!

BRINDE DO SR. SABÒ

Mais uma vez, senhores, os Espíritos querem nosassegurar de que podemos conquistar a sua simpatia unindo os seusaos nossos desejos para a prosperidade desta santa doutrina, que éa sua obra. O Espírito Ferdinand, um de nossos guias protetores,ditou espontaneamente o seguinte ensinamento, que me deixa felizem vo-lo transmitir:

“A grande família espírita, da qual fazeis parte, vêaumentar diariamente o número de seus filhos e, em breve, nãohaverá mais em vossa bela pátria, nem cidades, nem povoados ondenão se tenha estabelecido a tenda dos membros desta triboabençoada por Deus.

“Já nos seria impossível assinalar os numerosos centrosque gravitam em torno do foco luminoso cuja sede é Paris, porqueos centros das grandes cidades só por nós são conhecidos. Entreestes se distingue, pelo saber, inteligência e união fraternal, aSociedade dos Espíritas de Metz; está destinada a dar frutos emabundância e, se buscardes com eles estabelecer relações amigáveis,baseadas numa estima recíproca, enchereis de doce alegria ocoração paternal de vosso chefe aqui presente.

“O eminente Espírito Erasto vos disse ontem: Sedeunidos; a união faz a força. Envidai, pois, todos os esforços para oconseguir, a fim de que, em pouco tempo, todos os centrosespíritas franceses, unidos entre si pelos laços da fraternidade,possam marchar a passos de gigante pela via traçada.”

FerdinandGuia Espiritual do médium

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Finalmente, e como fiel intérprete dos sentimentosexpressos por esse Espírito bom, proponho um brinde aos nossosirmãos de Metz, em particular, e a todos os espíritas franceses, emgeral.

Senhores,

Convencido de que as calorosas palavras, pronunciadasontem em vosso meio pelo nosso honrado chefe espírita, nãocaíram sobre pedras e espinheiros, mas nos vossos corações, agoradispostos a apertar os laços da fraternidade, venho propor umbrinde aos nossos irmãos espíritas de Lyon. Eles começaram suastarefas antes de nós e, para se organizarem, tiveram de passarpelas mesmas dificuldades que outrora tanto nos fizeram sofrer.Mas, graças ao impulso que o nosso bem-amado chefe lhesproporcionou no ano passado, deram um passo imenso na estradaabençoada em que os Espíritos bons estão fazendo entrar aHumanidade. Imitemo-los, senhores. Que uma louvável emulaçãouna aos de Bordeaux os espíritas de Lyon, a fim de que a comunhãode pensamentos e sentimentos, de que todos estiverem animados,deles faça dizer: bordeleses e lioneses são irmãos.

Proponho um brinde à união dos irmãos de Bordeauxe Lyon.

DISCURSO DO SR. DESQUEYROUX, MECÂNICO

Em nome do grupo de operários

Senhor Allan Kardec, nosso caro mestre,

Em nome de todos os operários espíritas de Bordeaux,meus amigos e irmãos, permito-me erguer um brinde à vossaprosperidade. Embora já chegado a uma alta perfeição, que Deusvos faça crescer ainda nos bons sentimentos que vos têm animadoaté hoje e, sobretudo, vos faça crescer aos olhos do Universo e nocoração dos que, seguindo vossa doutrina, se aproximam de Deus.

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Nós, que somos do número dos que a professam, vos bendizemosdo fundo do coração e rogamos ao nosso Criador para que vosdeixe ainda muito tempo entre nós, a fim de que, quando vossamissão estiver terminada, já estejamos bastante firmes na fé paranos conduzirmos sozinhos, sem nos afastar do bom caminho.

Para nós é uma felicidade inefável ter nascido numaépoca em que podemos ser esclarecidos pelo Espiritismo. Mas nãobasta conhecer e desfrutar essa felicidade; com a doutrina,contraímos compromissos que consistem em quatro deveresdiferentes: dever de submissão, que nos faça ouvir com docilidade;dever de afeição, que nos faça amar com ternura; dever de zelo,para atender seus interesses com ardor; dever de prática, que nosfaça honrá-la por nossas obras.

Estamos no seio do Espiritismo e o Espiritismo é paranós uma firme consolação em nossas penas. Não podemos negarque há momentos na vida em que a razão talvez pudesse nossustentar, mas outros há em que se tem necessidade de toda fé quedá o Espiritismo, para não sucumbir. Em vão os filósofos vêmpregar uma firmeza estóica, enunciar suas pomposas máximas,dizer-nos que nada os perturba, que o homem é feito para sepossuir a si mesmo e dominar os acontecimentos da vida. Tristesconsolações! Longe de suavizar a dor, eles a tornam mais amarga;em todas as suas palavras só encontramos o vazio e a esterilidade.Mas o Espiritismo nos vem em socorro, provando que nossaprópria aflição pode contribuir para a nossa felicidade.

Sim, caro mestre, continuai vossa augusta missão.Continuai a nos mostrar esta ciência, que vos é ditada pela bondadedivina, nosso consolo durante a vida e pensamento inabalável quenos sustentará por ocasião da morte.

Recebei, caro mestre, estas poucas palavras, brotadasdo coração de vossos filhos, porquanto sois o pai de todos nós; pai

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da classe laboriosa e dos aflitos. Como bem o sabeis, progresso esofrimento marcham juntos; mas, quando o desespero oprimia osnossos corações, viestes trazer-nos força e coragem. Sim, ao nosmostrardes o Espiritismo, dissestes: “Irmãos, coragem! Suportaicorajosamente as provas que vos são enviadas, e Deus vosbendirá”. Sabei, pois, que somos apóstolos devotados e que nesteséculo, como nos que se seguirão, vosso nome será abençoadopelos nossos filhos e pelos nossos amigos operários.

DISCURSO E BRINDE DO SR. ALLAN KARDEC

Meus caros irmãos no Espiritismo,

Faltam-me expressões para externar o que sinto porvossa acolhida tão simpática e benevolente. Permiti-me, pois, dizerem algumas palavras e não em longas frases, que nãoacrescentariam mais, que incluirei minha primeira estada emBordeaux entre os mais felizes momentos de minha vida, e delaguardarei eterna lembrança. Mas também não esquecerei, senhores,que esta acolhida me impõe uma grande responsabilidade – ade justificá-la – o que espero fazer com a ajuda de Deus e dosEspíritos bons. Além disso, ela me impõe grandes obrigações, nãosó para convosco, mas ainda para com os espíritas de todos ospaíses, dos quais sois representantes como membros da grandefamília; para com o Espiritismo em geral, que acabais de aclamarnestas duas reuniões solenes e que, não tenhais dúvida, colherá noentusiasmo de vossa importante cidade uma força nova para lutarcontra os obstáculos que quererão lançar em vosso caminho.

Em minha alocução de ontem, falei de sua forçairresistível, de que sois a prova evidente. Não é um fatocaracterístico a inauguração de uma sociedade espírita que, como avossa, se inicia pela reunião espontânea de quase trezentas pessoas,atraídas, não por uma vã curiosidade, mas pela convicção e pelo sódesejo de se agrupar num único feixe? Sim, senhores, este fato não

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somente é característico, como providencial. Eis, a respeito, o queainda ontem me dizia, antes da sessão, o Espírito de Verdade – meuguia espiritual:

“Deus marcou com o selo de sua imutável vontade ahora da regeneração dos filhos desta grande cidade. À obra, pois,com confiança e coragem. Esta noite os destinos de seus habitantesvão começar a sair da rotina das paixões, que sua riqueza e seu luxofaziam germinar, como o joio em meio ao trigo, para alcançar, peloprogresso moral que lhe vai imprimir o Espiritismo, a altura dosdestinos eternos. Como vês, Bordeaux é uma cidade amada pelosEspíritos, pois multiplica intramuros, sob todas as formas, as maissublimes devoções da caridade. Por isso eles estavam aflitos por vê-la na retaguarda do movimento progressivo que o Espiritismo vemimpor à Humanidade. Mas os progressos hão de ser tão rápidosque os Espíritos bendirão o Senhor por te haver inspirado o desejode vir ajudá-los a entrar nesta via sagrada.”

Vedes, pois, senhores, que o impulso que vos animavem do Alto, e bem temerário seria quem o quisesse deter,porquanto seria abatido como os anjos rebeldes, que quiseram lutarcontra o poder de Deus. Assim, não temais a oposição de algunsadversários interessados, que se pavoneiam na sua incredulidadematerialista. O materialismo vê chegada a sua última hora, e é oEspiritismo que vem anunciá-la, por ser a aurora que dissipa astrevas da noite. E, coisa providencial, o próprio materialismo, semo querer, serve de auxiliar à propagação do Espiritismo, porque,por seus ataques, chama a si a atenção dos indiferentes. Querem vero que é; como o encontram bem, adotam-no. Tendes a prova distoaos vossos olhos: sem os artigos de um dos jornais da vossa cidade,os espíritas bordeleses talvez não passassem da metade do que hojesão. Tal artigo naturalmente despertou a curiosidade. Como se dizgeralmente, onde há fumaça há fogo; mediram a importância dofogo pela extensão do artigo. Perguntaram: É bom? É mau? Éverdadeiro? É falso? Vejamos para crer. Viram, e sabeis o resultado.

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Longe, pois, de atacar o autor do artigo, devemos agradecer-lhepela propaganda gratuita; e, caso esteja aqui algum de seus amigos,pedimos a este que o aconselhe a recomeçar, a fim de que, se onteméramos trezentos, sejamos seiscentos no próximo ano. Sobre istoeu vos poderia citar fatos curiosos de propaganda semelhante, feitaem certas cidades, por sermões furibundos contra o Espiritismo.

Como Lyon, Bordeaux vem, pois, plantarorgulhosamente a bandeira do Espiritismo, e o que vejo me garanteque não será arrancada. Bordeaux e Lyon! Duas das maiorescidades da França; focos de luz! E ainda dizem que todos osespíritas são loucos! Honra aos loucos desta espécie! Nãoesqueçamos Metz, que também acaba de fundar sua sociedade,onde figuram em grande número oficiais de todos os graus, e quereclama sua admissão na grande família. Espero que em breveToulouse, Marselha e outras cidades, onde já fermenta a novasemente, se juntem às suas irmãs mais velhas, dando o sinal daregeneração em suas respectivas regiões.

Senhores, em nome da Sociedade Parisiense de EstudosEspíritas, levanto um brinde aos espíritas de Bordeaux; à sua uniãofraterna para resistir ao inimigo que os queria dividir, a fim de termais facilmente razão.

A este brinde associo, do imo do meu coração, e com amais viva simpatia, o Grupo Espírita dos operários de Bordeauxque, como os de Lyon, dão admirável exemplo de zelo,devotamento, abnegação e reforma moral. Estou feliz, muito feliz,vos asseguro, de ver vossos delegados reunidos fraternamente nestamesa, com a elite da sociedade, provando, por esta associação, ainfluência do Espiritismo sobre os preconceitos sociais. Nãopoderia ser de outro modo, quando ele nos ensina que o mais altocolocado no mundo pode ter sido humilde proletário e que, aoapertar a mão do último serviçal, talvez aperte a de um irmão, deum pai ou de um amigo.

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Em nome dos espíritas de Metz e de Lyon, dos quaisme faço intérprete, eu vos agradeço por os terdes compreendido naexpressão de vossos sentimentos fraternos.

Aos espíritas bordeleses!

Senhores, os espíritas não devem ser ingratos. Creio serdever de reconhecimento não esquecer os que, mesmo sem oquerer, servem à nossa causa. Assim, proponho um brinde ao autordo artigo do Courrier de la Gironde, pelo serviço que nos prestou,fazendo votos para que ele repita, de vez em quando, seusespirituosos artigos. E, se Deus quiser, logo ele será o únicohomem sensato de Bordeaux.

Poesias do Momento, Ditadas PeloSr. Dombre (de Marmande), Vindo a

Bordeaux Para Esta SolenidadeOS CAMPONESES E O CARVALHO

FÁBULA

Ao Sr. Allan Kardec

Os abusos têm campeões ocultos mais perigososque os adversários declarados, e a prova disto é a

dificuldade que se tem de os arrancar.

Allan Kardec (O que é o Espiritismo)

Um dia honestos camponesesDe pé ante um carvalho enorme, fronde imensa,O mensuravam muitas vezes.– É em vão, um deles diz, que tal semente intensaGermine em sulcos tais virados e adubados.

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Não cresce nada; adubo e seiva consumadosSão pela ramaria, essa espessa folhagem.Fazer gostos assim é bem triste bobagem.Esta árvore deixar que torne pobre o chão,Que nos consuma o suor e esterilize o grão.Irmãos, se me quiserdes crerNós livraremos nosso campoDa incômoda presença... e isso... num tranco!À obra! Gritam com prazer.Estavam todos muito ardentes;Uma corda é amarrada em cima no carvalho,Formando uma cadeia em forte galhoCujos anéis uniam-se potentes.A folhagem treme e farfalha,Mas é tudo... Eles vão se agitar, se estafarA fim da tortuosa e robusta ramalha,Que enfim não se deixa abalar.Alguém sensato da região,Um bom velho lhes diz ao passar: Meus meninos,A vossa messe é perdida, então,Dos ramos em proveito e desses grãos franzinos,Destruí-os... é bom... Posso entender;Mas a árvore abater coisa fácil não é;Para dobrar tal carvalhaçoEm força é fraco o vosso braço;A idade enrija o corpo e não se faz render.Fazei menos ruidoso o assalto e mais terrívelA esse colosso vigoroso;Séculos já se vão por seu cascão nodoso;Empregai dias a miná-lo, isso é possível.Descobri-lhe a raiz, sugadora, felinaE levareis a morte ao ramalhal confuso.Não podendo de um golpe extinguir um abusoBusca em seu fundamento a oportuna ruína.

C. Dombre

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O OURIÇO, O COELHO E A PEGA

FÁBULA

Aos membros da Sociedade Espírita de Bordeaux

A caridade, meus amigos, é feita de muitasmaneiras: podeis fazer a caridade por pensamentos,

palavras e obras...

(O Espírito protetor da Sociedade Espírita de Lyon – Revista Espírita de10 de outubro de 1861).

Um pobre ouriço ao ser posto fora da toca,Rolava pelo campo em meio aos espinheiros,De algum petiz aos golpes mais certeiros,Que em sangue o abandona e quase que o sufoca.Ele eriça, tremendo, a armadura espinhenta,Espicha-se, lançando em volta oculto olhar,E sem perigo já, lamentaNuma voz débil, a chorar:Para onde vou?... Fugir?... Voltar ao velho abrigoAcima está do meu querer.Já nem posso prever qual o perigoPior que me ameaça... É forçoso morrer?...Preciso de um refúgio e um pouco de repousoPara sarar minhas feridas;Mas, aonde achar quaisquer guaridas? Quem de meus males é piedoso?Num coelho que habitava entre lascas de rochaE para quem a caridade,Não sendo um termo vão, sensível desabrochaE lhe diz – Meu amigo, aceitai a metadeDe meu modesto abrigo; estou bem nesse asilo,Nele estareis seguro; é difícil, já vi,De achar o vosso rastro, com maldade.Podeis aqui estar tranqüilo:Atenção junto a mim sempre tereis, ali.Ante essa oferta tão graciosa,O ouriço segue a passo lento,Quando uma pega obsequiosa,Faz um sinal ao coelho: – Esperai um momento,Eu peço... uma palavra... é um breve caso...

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E depois ao ouriço: – É um pequeno segredo...Perdoai-me, quando nada pelo atraso!E o bom coelho, todo quedo,– As orelhas a erguer pede a ela fale baixo.Como! Levardes vós a casa uma tal gente!...Sede prudente mais no trato com os de baixo!Nunca eu faria tal tolice tão patente!Eu... Mas não receais de vos arrepender?Uma vez com saúde e forças redobradas,Quem sabe sejais vós o primeiro a sofrerCom o seu mau coração e as farpas aceradas;E a que meios, então, tereis a recorrer?O coelho respondeu: – Nenhuma inquietaçãoNão nos deve afastar de impulsos benfeitores;Vale bem mais expor-se a uma ingratidão,Do que faltar aos sofredores!

C. Dombre

BibliografiaO LIVRO DOS MÉDIUNS

Segunda edição53

A primeira edição de O Livro dos Médiuns, publicada noinício do ano, esgotou-se em poucos meses, o que vem a ser umdos traços mais característicos do progresso das idéias espíritas.Nós mesmos pudemos constatar, em nossas excursões, a influênciasalutar que esta obra exerceu sobre a direção dos estudos espíritaspráticos; assim, as decepções e mistificações são muito menosnumerosas do que outrora, porque ela ensinou os meios de frustraras artimanhas dos Espíritos enganadores. Esta segunda edição émuito mais completa que a precedente; encerra numerosas eimportantes instruções e vários capítulos novos. Toda a parte queconcerne mais especialmente aos médiuns, à identidade dos

53 1 vol. in-12, preço 3 fr. 50 c.; pelo Correio, 4 fr.

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Espíritos, à obsessão, às questões que podem ser dirigidas aosEspíritos, às contradições, aos meios de discernir os Espíritos bonsdos maus, à formação de reuniões espíritas, às fraudes em matériade Espiritismo, recebeu notáveis desenvolvimentos, frutos daexperiência. No capítulo das dissertações espíritas adicionamosvárias comunicações apócrifas, acompanhadas de observaçõespertinentes, de modo a facultar os meios de descobrir o embustedos Espíritos enganadores, que se apresentam com falsos nomes.

Devemos acrescentar que os Espíritos reviram a obrainteiramente e trouxeram numerosas observações do mais altointeresse, de sorte que se pode dizer que é obra deles, tanto quantonossa.

Recomendamos com insistência esta nova edição,como o guia mais completo, seja para os médiuns, seja para ossimples observadores. Podemos afirmar que, seguindo-apontualmente, evitar-se-ão os escolhos tão numerosos, contra osquais se vão chocar principiantes inexperientes. Depois de a terlido e meditado atentamente, os que forem enganados oumistificados certamente não poderão culpar-se senão delesmesmos, porque tiveram todos os meios para se esclarecerem.

O ESPIRITISMO OU ESPIRITUALISMO EM METZ

Primeira série das publicações da Sociedade Espírita de Metz54

Em nosso último número anunciamos esta publicaçãoapenas de memória, propondo-nos a voltar à matéria. Lemo-la comatenção e só podemos felicitar a Sociedade dos espíritas de Metzpor seus resultados. Ela conta em seu seio um grande número dehomens esclarecidos que, esperamos, saberão mantê-la em guardacontra as ciladas dos Espíritos maus, que não deixarão de tentardesviá-la do bom caminho em que se colocou.

54 Brochura in-8; preço 1 fr. Em Paris: Didier & Cia., Quai desAugustins, 35; Ledoyen, Palais-Royal, galeria d’Orléans, 31. Em Metz:Verronais, rue des Jardins, 14; Warrion, rue du Palais, 8.

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Esta publicação não é periódica; a Sociedade de Metztem o propósito de fazer outras semelhantes de vez em quando, emdatas indeterminadas, e nelas inserir as melhores comunicações quetiver obtido. Esse método tem a vantagem de não obrigar aassunção de nenhum compromisso com assinantes, aos quais sedeve servir apesar de tudo, e porque os gastos são sempreproporcionais.

Todas as comunicações contidas nesta primeirabrochura trazem um sinete eminentemente sério e uma moralidadeirrepreensível. Nada notamos que não fosse o que se poderiachamar de ortodoxo, do ponto de vista da Ciência e de acordo como ensino de O Livro dos Espíritos. Se os senhores espíritas de Metznos permitem um conselho, nós os estimularíamos a quecontinuem guardando, em suas publicações subseqüentes, aprudente reserva que notamos nesta; que se convençam de que aspublicações intempestivas podem ser mais prejudiciais que úteis àpropagação do Espiritismo. Contamos com a sabedoria e asagacidade dos que as dirigem, para não cederem ao entusiasmo deadeptos mais zelosos que sensatos; que se lembrem bem destamáxima: Não adianta correr ; tudo tem sua hora.

As duas comunicações seguintes, extraídas desteprimeiro número, podem dar uma idéia do espírito no qual sãofeitas.

O FLUIDO UNIVERSAL

(29 de setembro de 1860)

O fluido universal liga entre si todos os mundos; e,conforme os movimentos que lhe são impressos pela vontade doCriador, origina todos os fenômenos da Criação. Ele é a própriavida, ligando as diferentes matérias de nosso globo; é ele que, porpropriedades subordinadas a leis, regula as diferentes coisas tãomisteriosas para vós, as afinidades físicas e morais; é ele que vos faz

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ver o passado, o presente e o futuro, principalmente quando amatéria que obstrui vossa alma é anulada ou enfraquecida por umacausa qualquer; então essa dupla vista (embora menosdesenvolvida do que após a morte), vê, sente e toca tudo, nessemeio fluídico que é o seu elemento e o reflexo exato do que foi, ée será; porque somente as partes mais grosseiras desse fluido estãosujeitas a modificações sensíveis de composição.

Henry, antigo magnetizador

EFEITOS DA PRECE

(15 de outubro de 1860)

A prece é uma aspiração sublime, à qual Deus concedeuum poder tão mágico que os Espíritos a reclamam para siconstantemente. Suave orvalho, é um refrigério para o pobreexilado na Terra e um arranjo (sic) frutuoso para a alma em prova.A prece age diretamente sobre o Espírito a quem é dirigida; nãotransforma espinhos em rosas, mas modifica sua vida desofrimentos; não tem poder sobre a vontade imutável de Deus, masimprime esse impulso de vontade que levanta a sua coragem, aodar-lhe força para lutar contra as provas e as dominar. Por essemeio é abreviado o caminho que conduz a Deus e, como efeitomaravilhoso, nada pode ser comparado à prece.

Aquele que blasfema contra a prece não passa deEspírito inferior, de tal modo terreno e atrasado que nem mesmocompreende que deve se agarrar a essa tábua de salvação para sesalvar.

Orar: palavra descida do céu, é a gota de orvalho nocálice de uma flor, é o sustentáculo do caniço durante a tormenta,é a tábua do pobre náufrago durante a tempestade, é o abrigo domendigo e do órfão, é o berço para a criança dormir. Emanaçãodivina, a prece nos liga a Deus pela linguagem, fazendo-o

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interessar-se por nós; orar a Ele é amá-lo; suplicar-lhe por umirmão é um ato de amor dos mais meritórios. Vinda do coração, aprece contém a chave dos tesouros da graça; é o ecônomo quedispensa benefícios em nome da infinita misericórdia. A alma,elevada para Deus por um desses impulsos sublimes da prece,desprendida de seu envoltório grosseiro, apresenta-se cheia deconfiança diante dEle, segura de obter o que pede com humildade.Orai, oh! orai! fazei um reservatório de vossas santas aspirações,que será despejado no dia da justiça. Preparai o celeiro daabundância, tão precioso durante a escassez; escondei o tesouro devossas preces até o dia escolhido por Deus para distribuir o ricodepósito. Acumulai para vós e para os vossos irmãos, o quediminuirá as vossas angústias e vos fará transpor mais rapidamenteo espaço que vos separa de Deus. Refleti em vossa miserávelnatureza, contai vossas decepções, vossos perigos, sondai o abismotão profundo aonde vos podem arrastar as paixões, olhai em tornode vós os que caem e sentireis a imperiosa necessidade de recorrerà prece. A oração é a âncora de salvação que impedirá a destruiçãodo vosso navio, tão agitado pelas desordens do mundo.

Teu Espírito familiar

O ESPIRITISMO NA AMÉRICA

Fragmentos traduzidos do inglês pela Srta. Clémence Guérin55

O Espiritismo conta na América homens eminentesque, desde o princípio, lhe avaliaram o alcance e nele viram algomais do que simples manifestações. Nesse número está o juizEdmonds, de Nova Iorque, cujos escritos sobre esse importanteassunto são bastante apreciados, mas muito pouco conhecidos naEuropa, onde ainda não foram traduzidos. Devemos ser gratos àSrta. Guérin por nos dar uma idéia deles através de algunsfragmentos publicados em sua brochura. Apenas lamentamos não

55 Brochura grande in-18, preço 1 fr. Dentu, Palais Royal, galeriad’Orléans.

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tenha ela acabado sua obra por uma tradução completa. Ela juntaalguns extratos não menos notáveis do Dr. Hare, de Filadélfia, que,também ele, teve a ousadia de ser um dos primeiros a afirmar suafé nas novas revelações.

A Srta. Guérin, que residiu muito tempo na América,onde viu se produzirem e se desenvolverem as primeirasmanifestações, é uma dessas espíritas sinceras, conscienciosas, quetudo julgam com calma, sangue-frio e sem entusiasmo. Temos ahonra de conhecê-la pessoalmente e nos sentimos felizes por lhedar aqui um testemunho merecido de nossa profunda estima. Peloseguinte trecho de sua introdução, pode-se ver que nossa opinião éjustamente motivada.

“Como os americanos, temos a Fé profunda, aesperança radiosa de que esta doutrina, tão eminentemente baseadana caridade – não esmola, mas amor – seja bem aquela que deveregenerar e pacificar o mundo. Jamais a solidariedade fraternal foidemonstrada de maneira mais clara, nem de modo mais sedutor.Vindo consolar-nos, ajudar-nos, instruir-nos, indicar-nos, enfim, omelhor uso a ser feito de nossas faculdades, tendo em vista ofuturo, os Espíritos são de tal modo desinteressados que o homemnão os pode ouvir muito tempo sem experimentar o desejo de osimitar, sem procurar ao seu redor alguém para participar dosbenefícios que lhe dispensaram tão generosamente. Ele o faz comtanto mais boa vontade quanto compreende que seu próprioprogresso tem esse preço e que, no grande livro de Deus, não sãolevados a seu favor senão os atos praticados em vista do bem-estarmaterial ou moral de seus irmãos. O que os Espíritos fazem comsucesso neste momento foi tentado muitas vezes na Terra pornobres corações, por almas corajosas, que foram e ainda sãodesconhecidos e ridicularizados. Suspeitam de seu devotamento enão é senão quando desaparecem que têm chance de ser julgadoscom imparcialidade. Eis por que Deus lhes permite continuar aobra após aquilo a que chamamos morte.

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“Não é o caso de repetir com Davis: Nada temais,irmãos; sendo mortal, o erro não pode viver; sendo imortal, averdade não pode morrer!”

Clémence Guérin

A passagem seguinte, do juiz Edmonds, mostrará comque precisão ele entrevira as conseqüências do Espiritismo. Não sedeve esquecer que escrevia em 1854, época em que o Espiritismona América, como na Europa, ainda era novo.

“Falsas ou verdadeiras, outros julgarão as minhasdeduções. Meu objetivo será atingido se, falando do efeitoproduzido em meu espírito por essas revelações, eu tiver feitobrotar em alguns o desejo de também pesquisar e assim levar novasluzes ao estudo desses fenômenos. Até aqui, os mais impetuososadversários, os que, na sua indignação, gritam contra a impostura,são também os mais obstinados na sua recusa de nada ver ou ouvirsobre isto, os mais decididos a permanecer na completa ignorânciada natureza dos fatos. Homens com reputação de saber, se não deciência, não temem comprometê-la dando explicações que nãosatisfazem a ninguém, baseadas em observações superficiais, feitascom tal leviandade que faria corar um estudante.

“Entretanto, não é uma coisa indiferente esse novopoder inerente ao homem (connected with man), e que, sem a menordúvida, terá sobre o seu destino uma influência considerável, parao bem ou para o mal.

“E já podemos ver que, desde a origem, apenas hácinco anos, a idéia espiritualista se propagou com uma rapidez quea igreja cristã não havia igualado em cem anos. Ela não procura oslugares isolados, não se envolve em mistérios, mas vemabertamente aos homens, provocando minucioso exame de suaparte, não exigindo uma fé cega, mas recomendando, em todas ascircunstâncias, o exercício da razão e da livre apreciação.

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“Vimos que as zombarias dos filósofos nãoconseguiram desviar um só crente; que os sarcasmos da imprensa,os anátemas do púlpito são igualmente impotentes para deter oprogresso e, sobretudo, já podemos constatar sua influênciamoralizadora. O verdadeiro crente torna-se sempre mais prudente emelhor (a wiser and a better man), porque lhe foi demonstrado quea sobrevivência do homem após a morte do corpo estápositivamente provada. Todos quantos, seriamente e comsinceridade, conduziram suas investigações sobre o assunto,tiveram suas provas irrefutáveis. Como poderia ser de outro modo?Eis uma inteligência que nos fala todos os dias; é um amigo. (Emgeral os americanos começam conversando com parentes ouamigos). Ele prova a sua identidade por mil circunstâncias que nãopodem deixar a menor dúvida, pelas numerosas recordações que sóele pode conhecer. Fala-nos das conseqüências da vida terrena enos pinta a vida futura em cores tão racionais que nós sentimos quediz a verdade, tanto se conforma com a idéia íntima que fazíamosda Divindade e dos deveres que ela nos impõe.

“A morte não nos separa daqueles a quem amamos.Muitas vezes eles estão junto de nós, ajudam-nos e nos consolampela esperança de uma reunião certa. Quantas vezes os vi para mime para os outros! Quantas pessoas desoladas vi acalmadas pela docecerteza de que o ser querido, ‘trazido pelos laços do amor, adeja emtorno delas, murmura-lhes ao ouvido, contempla a sua alma,conversa com seu Espírito!’

“Assim, a morte se acha despojada do cortejo deterrores misteriosos e indefinidos com que foi cercada por aquelesque confiam mais na degradante paixão do medo que no nobresentimento do amor.

“Notemos, por alto que, sejam quais forem os matizesno ensino da nova filosofia, todos os seus discípulos se entendemsobre este ponto: a morte não é um espantalho, mas um fenômeno

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natural, de passagem a uma existência em que, livre de mil males davida material e dos entraves que o confinam num mesmo planeta,o Espírito pode percorrer a imensidade dos mundos, levantar vôopara regiões onde a glória de Deus é realmente visível.

“Está igualmente demonstrado (demonstrated) que osnossos mais secretos pensamentos são conhecidos pelos seres quenos amaram e que continuam a velar por nós. É em vão quetentaríamos nos livrar dessa inquisição, terrível por sua própriabenevolência. Não é possível duvidar, como quiseram. Muitasvezes fiquei estupefato e me arrepiei ante a revelação imprevista,mas irrecusável, de que os mais íntimos refolhos da consciênciapodem ser revistados justamente por aqueles a quem quereríamosocultar nossas fraquezas.

“Não está aí um freio salutar contra os mauspensamentos, os atos criminosos, na maioria das vezes cometidosporque o culpado se tranqüilizou por estas palavras: ‘Ninguémficará sabendo...’ Se algo pode confirmar esta verdade tãoterrificante para alguns, é a lembrança do que cada um experimentaapós uma boa ação, mesmo quando ficou secreta: umcontentamento íntimo incomparável. Esses o sabem muito bem,pois a mão esquerda ignora o que dá a direita. É, pois, racional, crerque se nossos amigos nos podem felicitar, também nos podemadmoestar; se vêem nossos atos meritórios, igualmente percebemos nossos defeitos.

“A isto não hesitamos em atribuir o fato incontestável einconteste, de que não há verdadeiro crente que não se tenha tornadomelhor.

“De nossa conduta, de nossa submissão a este grandepreceito: Amar a Deus e ao próximo... depende o nosso destinofuturo, e não de nossa adesão a esta ou àquela seita religiosa. Nãodevemos postergar a nossa conversão e sim trabalhar, nós mesmos,pela nossa salvação, agora, e não mais tarde, hoje, e não amanhã.

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“Que haverá de mais consolador, mais reconfortantepara a alma virtuosa, através das provas e vicissitudes desta vida, doque a certeza completa de que sua felicidade futura depende de suasações, que ela pode dirigir?

“Por outro lado o vicioso, o mau, o cruel, o egoísta,sobretudo o egoísta, sofrerá por si e pelos outros (self and mutualtorment) tormentos mais terríveis que os do inferno material, talqual a imaginação mais desordenada jamais pôde conceber.”

Allan Kardec

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Revista EspíritaJornal de Estudos Psicológicos

ANO IV DEZEMBRO DE 1861 No 12

Aviso

Os Srs. assinantes que não quiserem sofrer atraso naremessa da Revista Espírita para o ano de 1862 (5o ano) sãoconvidados a renovar a assinatura antes de 31 de dezembro.

Os assinantes de 1862 poderão obter a coleção dosquatro anos precedentes, em conjunto, ao preço de 30 francos, emvez de quarenta, de modo que, com a assinatura atual não pagarãopelos cinco anos senão 40 francos, ou seja, pelo mesmo preço terãocinco anos em vez de quatro, o que representa um desconto de20%. Como no passado, os anos tomados isoladamente saem a dezfrancos cada um.

A segunda tiragem dos anos de 1858, 1859 e 1860 seesgotou. Acaba de ser feita uma terceira reimpressão.

Nota – O número de janeiro de 1862 conterá um artigomuito desenvolvido sobre a Interpretação da doutrina dos Anjosrebeldes, dos Anjos decaídos, do Paraíso perdido e sobre a Origem e acondição moral do homem na Terra.

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Novas Obras do Sr. Allan KardecA SEREM PUBLICADAS BREVEMENTE

O Espiritismo na sua expressão mais simples –Brochura destinada a popularizar os elementos da DoutrinaEspírita. Será vendida a 25 centavos.

Refutação das críticas contra o Espiritismo, doponto de vista do materialismo, da ciência e da religião. Esta últimaparte terá todos os desenvolvimentos necessários. Conterá aresposta à brochura do padre Marouzeau.

Várias outras obras, das quais uma de importância maisou menos igual, como volume, a O Livro dos Espíritos, serãopublicadas no correr de 186256.

Organização do Espiritismo

1. Até o presente, embora muito numerosos, osespíritas se têm disseminado por todos os países, o que nãoconstitui uma das características menos salientes da doutrina.Como uma semente levada pelo vento, fincou raízes em todos ospontos do globo, prova evidente de que a sua propagação não éefeito de uma camarilha, nem de uma influência local e pessoal. Aprincípio isolados, os adeptos hoje se surpreendem com o seunúmero; e como a similitude das idéias inspira o desejo deaproximação, procuram reunir-se e fundar sociedades. Assim, detodas as partes nos pedem instruções a respeito, manifestando odesejo de se unirem à Sociedade central de Paris. É, pois, chegadoo momento de nos ocuparmos do que se pode chamar a organizaçãodo Espiritismo. O Livro dos Médiuns (2a edição) contém observações

56 N. do T.: Nenhuma nova obra desse porte foi publicada em 1862. OEvangelho segundo o Espiritismo só seria lançado em 1864, O Céu e oInferno em 1865 e A Gênese em 1868.

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importantes sobre a formação das Sociedades espíritas, às quaisremetemos os interessados, rogando-lhes que meditemcuidadosamente. Diariamente a experiência vem lhes confirmar oacerto; nós as lembraremos de modo sucinto, acrescentandoinstruções mais circunstanciadas.

2. Inicialmente, falemos dos adeptos ainda isolados emmeio a uma população hostil ou ignorante das idéias novas. Todosos dias recebemos cartas de pessoas que estão neste caso e queperguntam o que podem fazer, na ausência de médiuns e de co-participantes do Espiritismo. Estão na situação em que, apenas háum ano, se achavam os primeiros espíritas dos centros maisnumerosos de hoje; pouco a pouco os adeptos se forammultiplicando e, se até recentemente havia cidades onde eramcontados por unidades isoladas, hoje o são por centenas demilhares; em breve se dará a mesma coisa em toda parte; é umaquestão de paciência. Quanto ao que devem fazer, é muito simples.Para começar, podem trabalhar por conta própria, impregnando-seda doutrina pela leitura e meditação das obras especiais; quantomais se aprofundarem, mais verdades consoladoras descobrirão,confirmadas pela razão. Em seu isolamento, devem julgar-se felizespor terem sido os primeiros favorecidos. Mas se se limitassem acolher na doutrina uma satisfação pessoal, seria uma espécie deegoísmo. Em razão de sua própria posição, têm uma bela eimportante missão a cumprir: a de espalhar a luz em seu redor. Osque aceitarem essa missão sem se deixarem deter pelas dificuldades,serão largamente recompensados pelo sucesso e pela satisfação deterem feito uma coisa útil. Sem dúvida encontrarão oposição; serãoalvo das zombarias e dos sarcasmos dos incrédulos, da própriamalevolência das pessoas interessadas em combater a doutrina;mas, onde estaria o mérito, se não houvesse nenhum obstáculo avencer? Aos que fossem detidos pelo medo pueril do que os outrospensariam deles, nada temos a dizer, nenhum conselho a dar. Masaos que têm a coragem da sua opinião, que estão acima dasmesquinhas considerações mundanas, diremos que o que têm a

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fazer se limita a falar abertamente do Espiritismo, sem afetação,como de uma coisa muito simples e muito natural, sem a pregar e,sobretudo, sem buscar nem forçar convicções, nem fazer prosélitosa qualquer preço. O Espiritismo não deve ser imposto; vem-se a eleporque dele se necessita, e porque dá o que não dão as outrasfilosofias. Convém mesmo não entrar em nenhuma explicação comos incrédulos obstinados: seria dar-lhes muita importância e levá-los a pensar que dependemos deles. Os esforços feitos para osatrair os afastam e, por amor-próprio, obstinam-se na sua oposição.Eis por que é inútil perder tempo com eles; quando a necessidadese fizer sentir, virão por si mesmos. Enquanto esperamos, é precisodeixá-los tranqüilos, satisfeitos no seu cepticismo que, acreditai,muitas vezes lhes pesa mais do que dão a parecer; porque, por maisque digam, a idéia do nada após a morte tem algo de maisassustador, de mais doloroso que a própria morte.

Mas, ao lado dos gracejadores, há pessoas queperguntarão: “O que é isto?” Apressai-vos, então, em satisfazê-las,proporcionando-lhes explicações conforme a natureza dasdisposições que nelas encontrardes. Quando se fala do Espiritismoem geral, é preciso considerar as palavras que se pronunciam comogrãos lançados ao léu: muitos deles caem sobre pedras e nadaproduzem; mas, se cair um só em terra fértil, deveis julgar-vos feliz;cultivai-a e ficai certos de que essa planta, frutificando, dará origema outras tantas. Para alguns adeptos a dificuldade é responder acertas objeções; a leitura atenta das obras lhes fornecerá os meios.Para tal efeito, poderão se servir da brochura que vamos publicarsob o título de: Refutação das críticas contra o Espiritismo, do ponto devista materialista, científico e religioso57.

3. Falemos agora da organização do Espiritismo noscentros já numerosos. O aumento incessante dos adeptos

57 N. do T.: Essa brochura teria sido realmente publicada? Pelo menosnão aparece na relação de obras espíritas de Allan Kardec, arroladasno capítulo I, volume III (páginas 15 a 20), da pesquisa bibliográficade Zêus Wantuil e Francisco Thiesen. (ALLAN KARDEC, 2. ed.Rio [de Janeiro]:FEB. 1982).

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demonstra a impossibilidade material de constituir-se numa cidade,sobretudo, numa cidade populosa, uma sociedade única. Além donúmero, há a dificuldade das distâncias que, para muitos, é umobstáculo. Por outro lado, é sabido que as grandes reuniões sãomenos favoráveis às belas comunicações e que as melhores sãoobtidas nos pequenos grupos. É, pois, na multiplicação dos gruposparticulares que devemos concentrar os nossos esforços. Ora,como dissemos, vinte grupos de quinze a vinte pessoas obterãomais e farão mais pela propaganda do que uma sociedade única dequatrocentos membros. Os grupos se formam naturalmente pelaafinidade de gostos, sentimentos, hábitos e posição social; todos alise conhecem e, como são reuniões privadas, tem-se liberdade denúmero e de escolha dos que nela são admitidos.

4. O sistema da multiplicação dos grupos tem aindacomo resultado, conforme o dissemos em várias ocasiões, impediros conflitos e as rivalidades de supremacia e de direção. Cada gruponaturalmente é dirigido pelo chefe da casa, ou por aquele que paraisso for designado; não há, a bem dizer, dirigente oficial, porquetudo se passa em família. O dono da casa, como tal, tem todaautoridade para manter a boa ordem. Com uma sociedadepropriamente dita, há necessidade de um local especial, um pessoaladministrativo, um orçamento, numa palavra, uma complicação deburocracias, que a má vontade de alguns dissidentes mal-intencionados poderia comprometer.

5. A essas considerações, longamente desenvolvidas emO Livro dos Médiuns, acrescentaremos uma, que é preponderante.O Espiritismo ainda não é visto com bons olhos por todo omundo. Brevemente se compreenderá que é de grande interessefavorecer uma crença que torna melhores os homens e é umagarantia da ordem social. Mas até que estejam bem convencidos desua benéfica influência sobre o espírito das massas e de seus efeitosmoralizadores, os adeptos devem esperar que, seja pela ignorânciado verdadeiro objetivo da doutrina, seja em vista do interesse

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pessoal, suscitar-lhes-ão embaraços; não apenas os ridicularizarão,mas, quando virem enfraquecidas as armas do ridículo, oscaluniarão. Serão acusados de loucura, de charlatanismo, deirreligião, de feitiçaria, a fim de amotinar o fanatismo contra eles.Loucura! Sublime loucura esta que faz crer em Deus e no futuro daalma. Para os que em nada crêem, com efeito, é loucura acreditarna comunicação entre mortos e vivos; loucura que faz a voltaao mundo e atinge os homens mais eminentes. Charlatanismo!Eles têm uma resposta peremptória: o desinteresse, pois ocharlatanismo jamais é desinteressado. Irreligião! Logo eles, queassim que se tornam espíritas, ficam mais religiosos do que antes.Feitiçaria e comércio com o diabo! Eles, que negam a existência dodiabo e só reconhecem a Deus como o único Senhor Todo-Poderoso, soberanamente justo e bom. Singulares feiticeiros estesque renegariam o seu senhor e agiriam em nome de seuantagonista! Na verdade o diabo não deveria estar muito contentecom seus adeptos. Mas as boas razões não constituem a mínimapreocupação dos que querem provocar discussões; quando alguémquer matar seu cão, diz que está raivoso. Felizmente a Idade Médialança seus últimos e pálidos clarões sobre o nosso século. Como oEspiritismo lhe vem dar o golpe de misericórdia, não é de admirarvê-la tentar um supremo esforço. Mas sosseguemos, a luta não serálonga. Todavia, que a certeza da vitória não nos torne imprudentes,porque uma imprudência poderia, se não comprometer, pelomenos retardar o sucesso. Por esses motivos, a constituição desociedades numerosas talvez encontrasse obstáculos em certaslocalidades, o que não ocorreria com as reuniões familiares.

6. Acrescentemos ainda uma consideração. Associedades propriamente ditas estão sujeitas a numerosasvicissitudes. Mil causas, dependentes ou não de sua vontade,podem levar à dissolução. Assim, suponhamos que uma sociedadeespírita tenha reunido todos os adeptos de uma mesma cidade eque, por uma circunstância qualquer, deixe de existir; eis osmembros dispersos e desorientados. Agora, se em vez disto houver

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cinqüenta grupos, caso alguns desapareçam, sempre restarãooutros, e outros se formarão; são outras tantas plantas vivazes que,a despeito de tudo, continuam brotando. Não tenhais no camposomente uma grande árvore; o raio pode abatê-la. Tende cem, e omesmo raio não atingirá a todas; quanto menores menos expostasestarão.

Assim, tudo milita em favor do sistema que propomos.Quando um primeiro grupo, fundado em qualquer parte, torna-semuito numeroso, que faça como as abelhas: que, como enxamessaídos da colméia materna fundem novas colméias que, por suavez, formarão outras. Serão outros tantos centros de açãoirradiando em seu respectivo círculo, e mais poderosos para apropaganda do que uma sociedade única.

7. Admitida, pois, em princípio a formação dos grupos,resta o exame de várias questões importantes. A primeira de todasé a uniformidade na doutrina. Essa uniformidade não seria maisbem garantida por uma sociedade compacta, pois os dissidentessempre teriam facilidade de se retirar, formando grupo à parte.Quer a sociedade seja una ou fracionada, a uniformidade será aconseqüência natural da unidade de base que os grupos adotarem.Será completa em todos os que seguirem a linha traçada em O Livrodos Espíritos e em O Livro dos Médiuns. Um contém os princípiosda filosofia da ciência; o outro, as regras da parte experimental eprática. Estas obras estão escritas com bastante clareza, de modo anão ensejar interpretações divergentes, condição essencial de todadoutrina nova.

Até o presente essas obras servem de regulador àimensa maioria dos espíritas, e por toda parte são acolhidas cominequívoca simpatia; os que dela quiseram afastar-se puderamreconhecer, por seu isolamento e pelo número decrescente de seuspartidários, que não tinham a seu favor a opinião geral. Esseassentimento da maioria tem um peso considerável; é um

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julgamento que não poderia ser suspeito de influência pessoal,considerando-se que é espontâneo e pronunciado por milhares depessoas que nos são completamente desconhecidas. Uma provadesse assentimento é que nos pediram para as traduzir em diversaslínguas: espanhol, inglês, português, alemão, italiano, polonês, russoe até mesmo na língua tártara. Podemos, pois, sem presunção,recomendar o seu estudo e prática às diversas reuniões espíritas, eisto com tanto mais razão quanto são as únicas, até o momento, emque a ciência é tratada de maneira completa. Todas as que forampublicadas sobre a matéria não abordaram senão alguns pontosisolados da questão. Aliás, não temos a menor pretensão de impornossas idéias; nós as emitimos por ser um direito nosso. Aqueles aquem elas convêm as adotam; os outros as rejeitam, por sertambém um direito que lhes assiste. Assim, as instruções quedamos se destinam naturalmente aos que caminham conosco, paraos que nos honram com o título de seu chefe espírita; de maneiraalguma pretendemos regulamentar os que querem seguir outra via.Submetemos a doutrina que professamos à apreciação geral. Ora,temos encontrado muitos aderentes para nos dar confiança e nosconsolar de algumas dissidências isoladas. O futuro, aliás, será o juizem última instância. Com os homens atuais desaparecerão, pelaforça das coisas, as suscetibilidades do amor-próprio ferido, ascausas de ciúme, de ambição, de esperanças materiais malsucedidas.Não considerando mais as pessoas, só se verá a doutrina e ojulgamento será imparcial. Quais as idéias novas que, no seunascedouro, não tiveram contraditores mais ou menosinteressados? Quais os propagadores dessas idéias que não foramalvo das setas da inveja, sobretudo se o sucesso lhes coroou osesforços? Mas voltemos ao nosso assunto.

8. O segundo ponto é a constituição dos grupos. Umadas primeiras condições é a homogeneidade, sem a qual não haveriacomunhão de pensamentos. Uma reunião não pode ser estável,nem séria, se não há simpatia entre os que a compõem; e não podehaver simpatia entre pessoas que têm idéias divergentes e que

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fazem oposição surda, quando não aberta. Longe de nós dizer comisso que se deva abafar a discussão; ao contrário, recomendamos oexame escrupuloso de todas as comunicações e de todos osfenômenos. Fique, pois, bem entendido, que cada um pode e deveexternar a sua opinião; mas há pessoas que discutem para impor asua, e não para se esclarecer. É contra o espírito de oposiçãosistemático que nos levantamos; contra as idéias preconcebidas,que não cedem nem mesmo perante a evidência. Tais pessoasincontestavelmente são uma causa de perturbação, que é precisoevitar. A este respeito, as reuniões espíritas estão em condiçõesexcepcionais. O que elas requerem acima de tudo é o recolhimento.Ora, como estar recolhido se, a cada momento, somos distraídospor uma polêmica acrimoniosa? Se, entre os assistentes, reina umsentimento de azedume e quando sentimos à nossa volta seres quesabemos hostis e em cuja fisionomia se lê o sarcasmo e o desdémpor tudo quanto não concorde inteiramente com eles?

9. Traçamos o caráter das principais variedades deespíritas em O Livro dos Médiuns, no 28. Sendo tal distinçãoimportante para o assunto que nos ocupa, julgamos deverlembrá-la.

Pode-se pôr em primeira linha os que crêem pura esimplesmente nas manifestações. Para eles o Espiritismo não passade uma ciência de observação, uma série de fatos mais ou menoscuriosos; a filosofia e a moral são acessórios de que pouco seocupam e de cujo alcance nem mesmo desconfiam. Nós oschamamos espíritas experimentadores.

Vêm a seguir os que vêem no Espiritismo algo mais quesimples fatos; compreendem o seu alcance filosófico; admiram amoral dele decorrente, mas não a praticam; extasiam-se ante asbelas comunicações, como diante de um sermão eloqüente, queouvem mas não aproveitam. A influência sobre o seu caráter éinsignificante ou nula; em nada mudam seus hábitos e não se

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privariam de um único prazer: o avarento é sempre avarento, oorgulhoso sempre cheio de si mesmo, o invejoso e o ciumentosempre hostis. Para eles a caridade cristã é apenas uma bela máximae os bens deste mundo os arrastam na sua estima sobre os dofuturo. São os espíritas imperfeitos.

Ao lado destes há outros, mais numerosos do que sepensa, que não se limitam a admirar a moral espírita, mas que apraticam e a aceitam em todas as suas conseqüências. Convencidosde que a existência terrena é uma prova passageira, tratam deaproveitar estes curtos instantes para marchar na via do progresso,esforçando-se por fazer o bem e reprimir as más inclinações; suasrelações são sempre seguras, porque sua convicção os afasta detodo mau pensamento. Em tudo a caridade é sua regra de conduta.São os verdadeiros espíritas, ou, melhor, os espíritas cristãos.

10. Se bem compreendido o que precede,compreender-se-á também que um grupo formado exclusivamentepor elementos desta última classe estaria em melhores condições,porque entre pessoas que praticam a lei de amor e de caridade é quese pode estabelecer uma séria ligação fraternal. Entre homens paraquem a moral não passa de uma teoria, a união não seria durável;como não impõem nenhum freio ao orgulho, à ambição, à vaidadee ao egoísmo, não o imporão também às suas palavras; quererão seros primeiros, quando deveriam humilhar-se; irritar-se-ão com ascontradições e não terão nenhum escrúpulo em semear aperturbação e a discórdia. Entre verdadeiros espíritas, ao contrário,reina um sentimento de confiança e de recíproca benevolência;sentem-se à vontade nesse meio simpático, ao passo que háconstrangimento e ansiedade num ambiente heterogêneo.

11. Isto faz parte da natureza das coisas e nadainventamos a respeito. Daí se segue que, na formação dos grupos,deve-se exigir a perfeição? Seria simplesmente absurdo, porqueexigir o impossível e, neste ponto, ninguém poderia pretender dele

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fazer parte. Tendo como objetivo a melhoria dos homens, oEspiritismo não vem recrutar os que são perfeitos, mas os que seesforçam em o ser, pondo em prática o ensino dos Espíritos. Overdadeiro espírita não é o que alcançou a meta, mas o que desejaseriamente atingi-la. Sejam quais forem os seus antecedentes, serábom espírita desde que reconheça suas imperfeições e seja sinceroe perseverante no propósito de emendar-se. Para ele o Espiritismoé uma verdadeira regeneração, porque rompe com o passado;indulgente para com os outros, como gostaria que fossem paraconsigo, de sua boca não sairá nenhuma palavra malevolente nemofensiva contra ninguém. Aquele que, numa reunião, se afastassedas conveniências, não só provaria falta de civilidade e deurbanidade, mas falta de caridade; aquele que se melindrasse com acontradição e pretendesse impor a sua pessoa ou as suas idéias,daria prova de orgulho. Ora, nem um nem outro estariam nocaminho do verdadeiro Espiritismo cristão. Aquele que pensa teruma opinião mais justa fará que os outros a aceitem melhor pelapersuasão e pela doçura; o azedume, de sua parte, seria um péssimonegócio.

12. A simples lógica demonstra, pois, a quem quer queconheça as leis do Espiritismo, quais os melhores elementos para acomposição dos grupos verdadeiramente sérios, e não vacilamosem dizer que são os que exercem maior influência na propagaçãoda doutrina. Pela consideração que exigem, pelo exemplo que dãode suas conseqüências morais provam a sua gravidade e impõemsilêncio à zombaria que, quando se ataca ao bem, é mais queridícula, porque odiosa. Mas, que quereis que pense um críticoincrédulo, quando assiste a experiências cujos assistentes são osprimeiros a se divertirem com elas? Sai dali um pouco maisincrédulo do que entrou.

13. Acabamos de indicar a melhor composição dosgrupos. Mas a perfeição não é mais possível nos grupos do que nosindivíduos. Indicamos os objetivos e dizemos que quanto mais nos

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aproximarmos deles, tanto mais satisfatórios serão os resultados.Às vezes nos deixamos dominar pelas circunstâncias, mas é naeliminação dos obstáculos que devemos concentrar todos osnossos cuidados. Infelizmente, quando criamos um grupo, somosmuito pouco rigorosos na escolha, porque, antes de tudo,queremos formar um núcleo. Para nele ser admitido basta, namaioria das vezes, um simples desejo ou uma adesão qualquer àsidéias mais gerais do Espiritismo. Só mais tarde é que percebemoster facilitado em demasia a admissão.

14. Num grupo sempre há elementos estáveis eflutuantes. O primeiro é composto de pessoas assíduas, queformam a base; o segundo, das que são admitidas temporária eacidentalmente. É essencial prestar escrupulosa atenção no querespeita à composição do elemento estável; neste caso, não se devehesitar em sacrificar a quantidade pela qualidade, porque é ele quedá impulso e serve de regulador. O elemento flutuante é menosimportante, porque sempre se é livre para modificá-lo à vontade.Não se deve perder de vista que as reuniões espíritas, como, aliás,todas as reuniões em geral, haurem as forças de sua vitalidade nabase sobre a qual se assentam; neste particular, tudo depende doponto de partida. Aquele que tem a intenção de organizar umgrupo em boas condições deve, antes de tudo, assegurar-se doconcurso de alguns adeptos sinceros, que levem a doutrina a sérioe cujo caráter, conciliador e benevolente, seja conhecido. Formadoesse núcleo, ainda que de três ou quatro pessoas, estabelecer-se-ãoregras precisas, seja para as admissões, seja para a realização dassessões e para a ordem dos trabalhos, regras às quais os recém-vindos terão de se conformar. Essas regras podem sofrermodificações conforme as circunstâncias, mas há algumas que sãoessenciais.

15. Sendo a unidade de princípios um dos pontosimportantes, não pode existir naqueles que, não tendo estudado,não podem ter opinião formada. Assim, a primeira condição a

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impor, caso não queiramos ser interrompidos a cada instante porobjeções ou perguntas ociosas, é o estudo prévio. A segunda é umaprofissão de fé categórica e uma adesão formal à doutrina de OLivro dos Espíritos, além de outras condições especiais julgadasconvenientes. Isto quanto aos membros titulares e dirigentes. Paraos assistentes, que geralmente vêm para adquirir um pouco mais deconhecimento e de convicção, pode-se ser menos rigoroso; todavia,como há os que poderiam causar perturbação com observaçõesdespropositadas, é importante assegurar-se de suas disposições.Faz-se necessário, acima de tudo e sem exceção, afastar os curiosose quem quer que seja atraído por motivo frívolo.

16. A ordem e a regularidade dos trabalhos são coisasigualmente essenciais. Consideramos de grande utilidade abrir cadasessão pela leitura de algumas passagens de O Livro dos Médiuns ede O Livro dos Espíritos. Por esse meio, ter-se-ão sempre presentesna memória os princípios da ciência e os meios de evitar osescolhos encontrados a cada passo na prática. Assim, a atenção seráfixada sobre uma porção de pontos, que muitas vezes escapamnuma leitura particular e poderão ensejar comentários e discussõesinstrutivas, das quais os próprios Espíritos poderão participar.

Não menos importante é recolher e passar a limpotodas as comunicações obtidas, por ordem de datas, com indicaçãodo médium que serviu de intermediário. Esta última menção é útilpara o estudo do gênero da faculdade de cada um. Mas muitasvezes acontece que se perde de vista estas comunicações, que assimse tornam letra morta; isto desencoraja os Espíritos que as tinhamdado, com vistas à instrução dos assistentes. É necessário, pois,fazer uma coleta especial das mais instrutivas e proceder à suareleitura de vez em quando. Freqüentemente essas comunicaçõessão de interesse geral e não são dadas pelos Espíritos apenas paraa instrução de alguns ou para serem relegadas aos arquivos. Assim,é útil que, para a publicidade, sejam levadas ao conhecimento detodos. Examinaremos esta questão num artigo que publicaremos

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em nosso próximo número, indicando o modo mais simples, maiseconômico e, ao mesmo tempo, mais apropriado para alcançar oobjetivo.

17. Como se vê, nossas instruções se destinamexclusivamente aos grupos formados de elementos sérios ehomogêneos; aos que querem seguir a rota do Espiritismo moral,visando o progresso de cada um, fim essencial e único da doutrina;enfim, aos que nos querem aceitar por guia e levar em conta osconselhos de nossa experiência. É incontestável que um grupoformado nas condições que indicamos funcionará comregularidade, sem entraves e de maneira proveitosa. O que umgrupo pode fazer, outros também o podem. Suponhamos, então,numa cidade, um número qualquer de grupos, constituídos sobreas mesmas bases; necessariamente haverá entre eles unidade deprincípios, já que seguem a mesma bandeira; união simpática, já quetêm por máxima amor e caridade. Numa palavra, são os membrosde uma mesma família, entre os quais não haveria concorrência,nem rivalidade de amor-próprio, já que todos estão animados dosmesmos sentimentos para o bem.

18. Entretanto, seria útil que houvesse entre eles umponto de ligação, um centro de ação. Segundo as circunstâncias elocalidades, os diversos grupos, pondo de lado toda questãopessoal, poderiam designar para tal fim aquele que, por sua posiçãoe importância relativa, estaria mais apto a dar ao Espiritismo umimpulso salutar. Se necessário, e se fosse preciso lidar comsusceptibilidades, um grupo central, formado pelos delegadosde todos os grupos, tomaria o nome de grupo diretor. Naimpossibilidade de nos correspondermos com todos, com esteteríamos relações mais diretas. Em certos casos tambémpoderíamos designar uma pessoa, encarregada mais especialmentepara nos representar.

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Sem prejuízo das relações que, pela força das coisas, seestabelecerão entre os grupos de uma mesma cidade quemarchassem por uma via idêntica, uma assembléia geral anualpoderia reunir os espíritas dos diversos grupos numa festa familiar,que seria, ao mesmo tempo, a festa do Espiritismo. Seriampronunciados discursos e lidas as comunicações mais notáveis, ouapropriadas à circunstância.

O que é possível entre os grupos de uma mesma cidadeo é igualmente entre os grupos dirigentes de diversas cidades, desdeque, entre eles, haja comunhão de vistas e de sentimentos, isto é,desde que possam estabelecer relações recíprocas. Indicaremos osmeios para isto quando falarmos do modo de publicidade.

19. Como se vê, tudo isto é de execução muito simplese sem burocracia; mas tudo depende do ponto de partida, ou seja,da composição dos grupos primitivos. Se formados de bonselementos, serão outras tantas boas raízes que darão bons frutos.Se, ao contrário, forem formados de elementos heterogêneos eantipáticos, de espíritas duvidosos, mais preocupados com a formado que com o fundo, que consideram a moral como parte acessóriae secundária, há que se esperar polêmicas irritantes, que a nadalevam, pretensões pessoais, atritos de susceptibilidades e, emconseqüência, conflitos precursores da desorganização. Entreverdadeiros espíritas, tais como os definimos, que vêem o objetivoessencial do Espiritismo na moral, que é a mesma para todos,haverá sempre abnegação de personalidade, condescendência ebenevolência e, por conseguinte, segurança e estabilidade nasrelações. Eis por que temos insistido tanto sobre as qualidadesfundamentais.

20. Talvez digam que essas restrições severas sejam umobstáculo à propagação. Isto é um equívoco. Não imagineis que,abrindo a porta ao primeiro que surgisse, estaríeis fazendo maisprosélitos; a experiência aí está para provar o contrário. Seríeisassaltados pela multidão dos curiosos e dos indiferentes, que ali

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viriam como a um espetáculo. Ora, os curiosos e os indiferentes sãoum estorvo, e não auxiliares. Quanto aos incrédulos, seja porsistema, seja por orgulho, por mais que lho mostreis, não tratarãodisso senão com zombaria, porque não o compreenderão e nãoquerem dar-se ao trabalho de compreender. Já o dissemos, e nuncarepetiríamos em demasia: a verdadeira propagação, aquela que é útile proveitosa, é feita pelo ascendente moral das reuniões sérias. Seapenas houvesse estas, os espíritas seriam ainda mais numerosos doque o são, porque, forçoso é reconhecer, muitos foram desviadosda doutrina porque só assistiram a reuniões fúteis, sem ordem esem gravidade. Sede, pois, sérios, em toda a acepção da palavra e aspessoas sérias virão a vós: são os melhores propagadores, porquefalam com convicção e tanto pregam pelo exemplo, quanto pelapalavra.

21. Do caráter essencialmente sério das reuniões não sedeve inferir que se deva proscrever sistematicamente asmanifestações físicas. Como dissemos em O Livro dos Médiuns (no

326), elas são de incontestável utilidade, do ponto de vista doestudo dos fenômenos e para a convicção de certas pessoas; mas,para que se possa tirar proveito desse duplo ponto de vista, deve-se excluir todo pensamento frívolo. Uma reunião que possuísse umbom médium de efeitos físicos e que se ocupasse desse gênero demanifestações com ordem, método e gravidade, cuja condição moraloferecesse toda garantia contra o charlatanismo e a fraude, não sópoderia obter coisas notáveis, do ponto de vista fenomênico, masproduziria muito bem. Assim, aconselhamos a não desprezaremesse gênero de experimentação, caso disponham de médiunsapropriados, organizando, para esse efeito, sessões especiais,independentes daquelas voltadas para as comunicações morais efilosóficas. Os médiuns poderosos dessa categoria são raros; mashá fenômenos que, não obstante vulgares, não são menosinteressantes e concludentes, porque provam, de maneirainsofismável, a independência do médium. Deste número são ascomunicações pela tiptologia alfabética que, muitas vezes, dá os

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mais imprevistos resultados. A teoria desses fenômenos énecessária para explicar a maneira como se operam, pois é raro quelevem a uma convicção profunda os que não os compreendem.Tem, além disso, a vantagem de dar a conhecer as condiçõesnormais em que aqueles se podem produzir e, conseqüentemente,evitar tentativas inúteis e permitir descobrir a fraude, caso esta seinsinue em alguma parte.

Equivocaram-se imaginando que fôssemossistematicamente contrários às manifestações físicas; preconizamose preconizaremos sempre as comunicações inteligentes, sobretudoas que têm alcance moral e filosófico, porque só elas tendem parao objetivo essencial e definitivo do Espiritismo; quanto às outras,nunca lhes contestamos a utilidade, mas nos levantamos contra oabuso deplorável que delas fazem, ou podem fazer, contra aexploração feita pelo charlatanismo, contra as más condições emque freqüentemente são realizadas, e que se prestam ao ridículo;dissemos e repetimos que as manifestações físicas são o começo daciência, e que não se avança ficando no á-bê-cê; que, se oEspiritismo não tivesse saído das mesas girantes, não teria crescidocomo cresce e talvez hoje nem mais se falasse dele. Eis por que nosesforçamos por fazê-lo entrar na via filosófica, certos de que,dirigindo-se mais à inteligência do que aos olhos, tocaria o coraçãoe não seria um capricho da moda. É com esta condição única quepoderia dar a volta ao mundo e implantar-se como doutrina. Ora,o resultado ultrapassou, e de muito, a nossa expectativa. Nãoatribuímos às manifestações físicas senão uma importância relativa,e não absoluta. Sob a óptica de certas pessoas, aí está o nosso erro,porquanto dela fazem uma ocupação exclusiva e nada mais vêem.Se não nos ocupamos pessoalmente dos fenômenos é porque nadade novo nos ensinariam e temos coisas mais essenciais a fazer. Aocontrário, longe de censurar os que deles se ocupam, nós osencorajamos, desde que o façam em condições realmenteproveitosas. Sempre que conhecermos reuniões desse gênero,

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merecedoras de toda a nossa confiança, seremos os primeiros arecomendá-las à atenção dos novos adeptos. Tal é, sobre o assunto,nossa profissão de fé categórica.

22. Dissemos no começo que diversos círculos espíritaspediram para se unir à Sociedade de Paris; utilizaram até mesmo apalavra filiar-se. A respeito, faz-se necessária uma explicação.

A Sociedade de Paris foi a primeira a ser regularizada elegalmente constituída. Por sua posição e pela natureza de seustrabalhos, teve uma grande parte no desenvolvimento doEspiritismo e, em nossa opinião, justifica o título de SociedadeIniciadora, que lhe deram certos Espíritos. Sua influência moral sefez sentir longe e, embora restrita, numericamente falando, temconsciência de ter feito mais pela propaganda do que se tivesseaberto as portas ao público. Formou-se com o único objetivo deestudar e aprofundar a ciência espírita. Para isto não necessita deum auditório numeroso, nem de muitos membros, pois sabe muitobem que a verdadeira propaganda é feita pela influência dosprincípios; como não é movida por nenhum interesse material, umexcedente numérico ser-lhe-ia mais prejudicial do que útil. Assim,verá com prazer multiplicarem-se à sua volta reuniões particulares,formadas em boas condições, e com as quais poderia estabelecerrelações de confraternidade. Ela nem seria conseqüente com seusprincípios, nem estaria à altura de sua missão, se pudesse concebera sombra da inveja; quem disso a julgasse capaz, provaria que nãoa conhece.

Estas observações são suficientes para mostrar que aSociedade de Paris não poderia ter a pretensão de absorver asdemais Sociedades que se formassem, em Paris ou alhures, com osmesmos procedimentos habituais. A palavra filiação seria, pois,imprópria, porque suporia de sua parte uma espécie de supremaciamaterial, à qual ela absolutamente não aspira, e que teria mesmoinconvenientes. Como Sociedade iniciadora e central, pode

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estabelecer com os outros grupos ou sociedades relaçõespuramente científicas, limitando-se aí o seu papel; não exercenenhum controle sobre essas sociedades, que em nada dependemdela e ficam inteiramente livres para se constituírem como bem oentenderem, sem ter de prestar contas a ninguém, e sem que aSociedade de Paris tenha que se imiscuir no que for em seusnegócios. Assim, as sociedades estrangeiras podem formar-se nasmesmas bases, declarar que adotam os mesmos princípios, semdepender da de Paris senão pela concentração dos estudos, dosconselhos que lhe podem pedir e que ela terá prazer em dar.

Aliás, a Sociedade de Paris não se vangloria de estar,mais que as outras, ao abrigo das vicissitudes. Se, por assim dizer,as tivesse em suas mãos e se, por uma causa qualquer, deixasse deexistir, a falta de um ponto de apoio resultaria em perturbação. Osgrupos ou sociedades devem buscar um ponto de apoio maissólido que numa instituição humana, frágil por natureza; devemhaurir sua vitalidade nos princípios da doutrina, que são os mesmospara todas e que a todas sobrevivem, estejam ou não essesprincípios representados por uma sociedade constituída.

23. Estando claramente definido o papel da Sociedadede Paris, para evitar qualquer equívoco ou falsa interpretação, asrelações que vier a estabelecer com as sociedades estrangeirastornam-se extremamente simplificadas; limitam-se a relaçõesmorais, científicas e de mútua benevolência, sem qualquer sujeição;permutarão o resultado de suas observações, quer através depublicações, quer de correspondência. Para que a Sociedade deParis possa estabelecer essas relações é preciso, necessariamente,que seja designada pelas sociedades estrangeiras, que marcharão nomesmo caminho e adotarão a mesma bandeira; ela os inscreverá nalista de seus correspondentes. Se houver vários grupos numacidade, serão representados pelo grupo central, de que falamos noparágrafo 18.

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24. Indicaremos agora alguns trabalhos aos quaispoderão concorrer as diversas sociedades de maneira proveitosa.Mais tarde indicaremos outros.

Sabe-se que os Espíritos, não possuindo todos asoberana ciência, podem considerar certos princípios de seu pontode vista pessoal e, conseqüentemente, nem sempre estarão deacordo. O melhor critério da verdade está naturalmente naconcordância dos princípios ensinados sobre diversos pontos, porEspíritos diferentes e por meio de médiuns estranhos uns aosoutros. Desse modo foi composto O Livro dos Espíritos. Mas aindarestam muitas questões importantes a serem resolvidas destamaneira, cuja solução terá mais autoridade quando obtida porgrande maioria. Assim, poderá a Sociedade de Paris dirigir,ocasionalmente, perguntas dessa natureza a todos os gruposcorrespondentes que, através de seus médiuns, pedirão a solução aseus guias espirituais.

Um outro trabalho consiste em pesquisasbibliográficas. Existe um grande número de obras antigas emodernas, nas quais se encontram testemunhos mais ou menosdiretos em favor das idéias espíritas. Uma coleção dessestestemunhos seria muito preciosa, mas é quase impossível ser feitapor uma só pessoa. Torna-se fácil, ao contrário, se cada um colheralguns elementos em suas leituras e estudos e os transmitir àSociedade de Paris, que os coordenará.

25. No estado atual das coisas está é a únicaorganização possível do Espiritismo. Mais tarde as circunstânciaspoderão modificá-la, mas nada dever ser feito intempestivamente;já é muito que em tão pouco tempo os adeptos se tenhammultiplicado para chegar a este resultado. Há nesta simplesdisposição um panorama que pode estender-se ao infinito, pelasimples disposição das engrenagens. Não procuremos, pois,complicá-las, temendo encontrar obstáculos. Os que quiserem

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testemunhar-nos a sua confiança podem estar certos de que não osdeixaremos na retaguarda e que tudo virá a seu tempo. Só a eles,como dissemos, nos dirigimos nestas instruções, sem a pretensãode nos impor aos que não marcham conosco.

Disseram, por pura maldade, que queríamos fazerescola no Espiritismo. E por que não teríamos esse direito? O Sr.de Mirville não tentou fundar uma escola demoníaca? Por queseríamos obrigados a seguir a reboque deste ou daquele? Nãotemos o direito de ter uma opinião, de formulá-la, publicá-la eproclamá-la? Se ela encontra tão numerosos aderentes é que,aparentemente, não a julgam desprovida de senso comum. Mas aosolhos de certa gente aí está o nosso erro, pois não nos perdoam porhavermos chegado primeiro que eles e, sobretudo, por havermostriunfado. Que seja, pois, uma escola, já que assim o querem. Paranós será uma glória inscrever no frontispício: Escola do EspiritismoMoral, Filosófico e Cristão; e a ela convidamos todos os que têm pordivisa amor e caridade. Aos que aderirem a esta bandeira, todas asnossas simpatias; o nosso concurso jamais faltará.

Allan Kardec

Necrologia

MORTE DO SR. JOBARD, DE BRUXELAS

O Espiritismo acaba de perder um de seus adeptosmais fervorosos e esclarecidos. O Sr. Jobard, diretor do Museu Realda Indústria, de Bruxelas, oficial da Legião de Honra, membro daAcademia de Dijon e da Sociedade Incentivadora de Paris, morreuem Bruxelas, de um ataque de apoplexia, em 27 de outubro de1861, aos 69 anos de idade. Nasceu em Baissey (Haute-Marne), em14 de maio de 1792. Tinha sido, sucessivamente, engenheiro docadastro, fundador do primeiro estabelecimento de litografia na

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Bélgica, diretor do Industriel e do Courrier belge, redator do Bulletinde l’Industrie belge, da Presse e, ultimamente, do Progrès international.A Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas lhe havia conferido otítulo de presidente honorário. Eis a apreciação que lhe dispensouo jornal Siècle:

“Espírito original, fecundo, pronto para o paradoxo epara o sistema, o Sr. Jobard prestou reais serviços à tecnologiaindustrial e à causa, tanto tempo abandonada, da propriedadeintelectual, da qual foi defensor obstinado e, talvez, excessivo; suasteorias sobre o assunto foram formuladas no seu Maunotopole, em1844. Deve-se a este polígrafo infatigável uma porção de escritos ebrochuras sobre todos os assuntos possíveis, desde o psiquismooriental até a utilidade dos tolos na ordem social. Deixa ainda contose fábulas picantes. Entre suas numerosas invenções, figura aengenhosa e econômica lâmpada para um, que figurou na exposiçãouniversal de Paris, em 1855.”

Nenhum jornal, pelo menos do nosso conhecimento,falou deste que tinha sido um dos caracteres mais notáveis dosúltimos anos de sua vida: sua inteira adesão à Doutrina Espírita,cuja causa abraçara com ardor. É custoso aos adversários doEspiritismo confessar que homens de gênio, que não podem sertachados de loucura sem que se duvide de sua própria razão,adotem essas idéias novas. Para eles, realmente, é um dos pontosmais embaraçosos, dos quais jamais puderam dar uma explicaçãosatisfatória, a de que a propagação dessas idéias se faça primeiro ede preferência na classe mais esclarecida da sociedade. Assim,entrincheiram-se por trás deste axioma banal: o gênio é primo-irmão da loucura; alguns chegam mesmo a afirmar, de boa-fé e semrir, que Sócrates, Platão e todos os filósofos e sábios queprofessaram idéias semelhantes não passavam de loucos,principalmente Sócrates, com seu demônio familiar. Com efeito, épossível se ter o senso comum e crer que se tenha um Espírito àssuas ordens? Assim, o Sr. Jobard não podia achar graça diante desse

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areópago que se erige em juiz supremo da razão humana, da qualpretende ser o padrão métrico. Foi, disseram-nos, para poupar areputação do Sr. Jobard e em respeito à sua memória que passaramem silêncio esse pequeno defeito de seu espírito.

A obstinação nas idéias falsas jamais foi encarada comoprova de bom-senso. É, além disso, pequenez, quando se deve aoorgulho, o que é o caso mais comum. O Sr. Jobard provou que era,ao mesmo tempo, homem de senso e de espírito, abjurando semtitubear suas primeiras teorias sobre o Espiritismo, quando lhedemonstraram que não estava certo.

Sabe-se que nos primeiros tempos, antes que aexperiência tivesse elucidado a questão, surgiram diversos sistemas,cada um explicando à sua maneira esses fenômenos novos. O Sr.Jobard era partidário do sistema da alma coletiva. Segundo talsistema, “só a alma do médium se manifesta, embora se identifiquecom a de vários outros seres vivos, presentes ou ausentes, demaneira a formar um todo coletivo, reunindo as aptidões, ainteligência e os conhecimentos de cada um.” De todos os sistemascriados naquela época, quantos ficaram de pé até hoje? Nãosabemos se este ainda conta alguns partidários, mas o que épositivo é que o Sr. Jobard, que o havia preconizado e enaltecido,foi um dos primeiros a abandoná-lo, quando apareceu O Livro dosEspíritos, a cuja doutrina se ligou francamente, como o atestam asdiversas cartas que dele publicamos.

Sobretudo a doutrina da reencarnação o tinha feridocomo um rasgo de luz. Dizia-nos ele um dia: “Se tanto patinei nolabirinto dos sistemas filosóficos, é que me faltava uma bússola; sóencontrava caminhos sem saída, que não levavam a nada; nenhumme dava uma solução decisiva dos mais importantes problemas;por mais quebrasse a cabeça, sentia que me faltava uma chave parachegar à verdade. Pois bem! esta chave está na reencarnação, queexplica tudo de uma maneira tão lógica, tão conforme à justiça de

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Deus, que nos dizemos naturalmente: Sim, é preciso que sejaassim.”

Depois de sua morte, terá o Sr. Jobard menosprezadocertas teorias científicas, que sustentara durante a vida? Dissofalaremos no próximo número, no qual publicaremos as conversasque com ele mantivemos. Digamos, por ora, que ele se mostrouprontamente desprendido e que a perturbação durou muito poucotempo. Como todos os espíritas que o precederam, confirma emtodos os pontos o que nos foi dito do mundo dos Espíritos, ali seencontrando muito melhor que na Terra, na qual, não obstante,deixa pesares sinceros em todos quantos puderam apreciar seueminente saber, sua benevolência e sua afabilidade. Não era umdesses cientistas ciumentos que barram o caminho aos novatos,cujo mérito lhes faz sombra. Todos esses, ao contrário, aos quaisestendeu a mão e abriu caminho, bastariam para lhe formar umbelo cortejo. Em suma, o Sr. Jobard era um homem de progresso,trabalhador infatigável e partidário de todas as idéias nobres,generosas e próprias a fazer avançar a Humanidade. Se sua perda élamentável para o Espiritismo, não o é menos para as artes e aindústria, que inscreverão seu nome em seus anais.

Auto-de-fé de Barcelona(Vide o número de novembro de 1861)

Os jornais espanhóis não foram tão sóbrios dereflexões quanto os jornais franceses sobre esse acontecimento.Seja qual for a opinião que se professe em relação às idéias espíritas,há no fato em si algo de tão estranho para o tempo em quevivemos, que mais excita piedade do que cólera contra gente queparece ter dormido durante vários séculos e haver despertado semconsciência do caminho que a Humanidade percorreu, julgando-seainda no ponto de partida.

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Eis um extrato do artigo em questão, publicado por LasNovedades, um dos grandes jornais de Madrid:

“O auto-de-fé celebrado há alguns meses em LaCoruña, em que foi queimado grande número de livros à porta deuma igreja, tinha produzido no nosso e no espírito de todos oshomens de idéias liberais uma impressão muito triste. Mas é comindignação ainda bem maior que foi recebida em toda a Espanha anotícia do segundo auto-de-fé em Barcelona, nesta capital civilizadada Catalunha, em meio a uma população essencialmente liberal, àqual sem dúvida fizeram este bárbaro insulto, porque nelareconhecem grandes qualidades.”

Depois de relatar os fatos, conforme o jornal deBarcelona, acrescenta:

“Eis o repugnante espetáculo, autorizado pelos homensda união liberal, em pleno século dezenove: uma fogueira em LaCoruña, outra em Barcelona, e ainda muitas outras, que nãofaltarão, em outros lugares. É o que deve acontecer, pois é umaconseqüência imediata do espírito geral que domina o atual estadode coisas e que em tudo se reflete. Reação no interior, relativa aosprojetos de lei apresentados; reação no exterior, apoiando todos osgovernos reacionários da Itália, antes e depois de sua queda,combatendo as idéias liberais em todas as ocasiões, buscando portodos os lados o apoio da reação, obtido ao preço das maisdesastradas concessões.”

Seguem-se longas considerações, referentes aossintomas e às conseqüências deste ato, mas que, pelo seu carátereminentemente político, não são da competência do nosso jornal.

O Diário de Barcelona, jornal ultramontano, foi oprimeiro a anunciar o auto-de-fé, dizendo: “Os títulos dos livrosqueimados bastavam para justificar a sua condenação; que é direitoe dever da Igreja fazer respeitar a sua autoridade, tanto mais quanto

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se dá carta branca à liberdade de imprensa, principalmente nospaíses que desfrutam da terrível chaga da liberdade de cultos.”

La Coruña, jornal de Barcelona, fez a respeito asseguintes reflexões:

“Esperávamos que nosso colega (El Diário), que tinhadado a notícia, tivesse a bondade de satisfazer a curiosidade dopúblico, seriamente alarmado por semelhante ato, incrível nostempos em que vivemos; mas foi em vão que esperamos as suasexplicações. Desde então temos sido assaltados por perguntassobre esse acontecimento, e somos obrigados a dizer que os amigosdo governo com isso sofrem mais penas do que os que lhe fazemoposição.

“Com vistas a satisfazer a curiosidade tão vivamenteexcitada, pusemo-nos em busca da verdade; infelizmente o fato éverdadeiro. O auto-de-fé foi celebrado nas seguintes circunstâncias:

(Segue o relato que demos em nosso último número)

“Os expedientes empregados para chegar a esseresultado não poderiam ter sido mais diligentes nem mais eficazes.Apresentaram ao controle da Alfândega os livros supracitados.Responderam ao comissário que não podiam ser expedidos semuma licença do senhor bispo. O senhor bispo estava ausente;quando retornou, apresentaram-lhe um exemplar de cada obra;depois de as haver lido ou mandado ler por pessoas de suaconfiança, conformando-se com o julgamento de sua consciência,ordenou que fossem lançados ao fogo, como imorais e contráriosà fé católica. Reclamaram contra tal sentença e pediram ao governo,já que não permitiam a circulação de tais livros na Espanha, quepelo menos fosse permitido ao seu proprietário reexpedi-los aolugar de procedência; mas até isto foi recusado, sob a alegação deque, sendo contrários à moral e à fé católica, o governo não podia consentirque esses livros fossem perverter a moral e a religião de outros países.

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Malgrado isto, o proprietário foi obrigado a pagar os direitos que,parece, não deveriam ser exigidos. Uma grande multidão assistiu aoauto-de-fé, o que não é de admirar, se se levar em conta a hora e olocal da execução e, sobretudo, o inusitado do espetáculo. O efeitoproduzido sobre os assistentes foi de estupefação entre alguns, deriso em outros e de indignação no maior número, à medida que sedavam conta do que se passava. Palavras de ódio saíram de váriasbocas, vindo depois as piadas, os ditos grotescos e mordazes dosque viam com extremo prazer a cegueira de certos homens. Nistotêm razão, porque nesta reação, digna do tempo da Inquisição,entrevêem o mais rápido triunfo de suas idéias; zombavam paraque essa cerimônia não aumentasse o prestígio da autoridade que,com tanta complacência, se presta a exigências verdadeiramenteridículas. Quando esfriaram as cinzas dessa nova fogueira,observou-se que as pessoas presentes, ou que passavam nascercanias, instruídas do fato, dirigiam-se para o local do auto-de-fé,ali recolhendo uma parte das cinzas.

“Tal é o relato dos acontecimentos, que não deixam deprovocar comentários entre as pessoas que se encontram.Indignam-se, lamentam, alegram-se ou se regozijam, conforme amaneira de interpretar as coisas. Os partidários sinceros da paz, doprincípio de autoridade e da religião se afligem com essasdemonstrações reacionárias, porque compreendem que às reaçõesse sucedem as revoluções, e porque sabem que os que semeiam ventosó podem colher tempestades. Os liberais sinceros se indignam quesemelhantes espetáculos sejam dados ao mundo por homens quenão compreendem a religião sem intolerância, querendo impô-lacomo Maomé impunha o Alcorão.

“Agora, abstração feita da qualificação dada aos livrosqueimados, examinaremos o fato em si. Pode a jurisprudênciaadmitir que um bispo diocesano tenha uma autoridade sem apelo epossa impedir a publicação e a circulação de um livro? Dirão que alei de imprensa assinala o que deve ser feito neste caso. Mas diz a

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lei que se os livros forem maus e perniciosos, serão lançados aofogo com tal aparato? Nela não encontramos nenhum artigo quepossa justificar um ato semelhante. Além disso, os livros emquestão foram publicamente declarados. Um comissário declaralivros à alfândega, porque poderiam estar arrolados na categoriados assinalados no artigo 6; passam a censura diocesana, o governopoderia proibir-lhes a circulação e a coisa estava acabada. Ossacerdotes deveriam limitar-se a aconselhar aos seus fiéis aabstenção de tal ou qual leitura, caso a julgassem contrária à morale à religião; mas não se lhes deveria conceder um poder absoluto,que os torna juízes e carrascos. Não vamos emitir nenhuma opiniãosobre o valor das obras queimadas; o que visamos é o fato, suastendências, o espírito que ele revela. Doravante, em que diocesedeixariam de usar, se não de abusar, de uma faculdade que emnossa opinião o próprio governo não tem, se em Barcelona, naliberal Barcelona, o fazem? O absolutismo é muito sagaz; ensaia sepode dar um golpe de autoridade em alguma parte; se vencer, ousamais. Esperemos, todavia, que os esforços do absolutismo sejaminúteis e que todas as concessões que lhe façam não tenham outroresultado senão desmascarar o partido que, repetindo cenas comoas de quinta-feira última, se precipite cada vez mais no abismo paraonde corre obstinadamente. É o que nos leva a esperar o efeitoproduzido pelo auto-de-fé em Barcelona.

A Toutinegra, o Pombo e o Peixinho(FÁBULA)

À Sra. e Srta. C***, de Bordeaux

Amor e Caridade

(Espiritismo)

Bela e terna roseira um cercado adornava,E ali a toutinegra incubara a ninhada;Nascera, assim, feliz a alegre petizada;

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Mas um desastre, ó céus, lhes reservado estava!Entre raios do céu a tormenta troava;E a chuva, em torrencial imenso,Pelos campos formava um lago extensoE pronto o cercado inundava.Já longe da roseira o ninho se balança;A toutinegra o cobre e se entrega ao destino;Não tem o coração firmado na esperança;O astro da salvação dá-lhe um riso divino.A água escorre. Porém, junto às águas da vargem,Forma um arroio, assim, com o ninho flutuante,Que ante os riscos enfim encontrados na margem,Atinge facilmente um curso navegante.Em meio ao rio um banco de areia se elevaDas águas acima da altura;Um zéfiro que ajuda a uma vaga que o leva,Impele para lá o ninho com brandura.São justos transportes de gozoQue prova a ave ao tocar o ninho pequenino,No entanto, de repente algo um tanto amargoso:Neste lugar, qual seu destino?Seus filhotes estão já querendo alimento:Deve ela para achar ao longe o seu sustento,Deixar na areia o ninho exposto a um mau evento?Se acharam salvação em uma vaga amigaNão deviam temer uma vaga inimiga,Ou, num funesto efeito, algum golpe do vento?No mesmo instante, ali, um pombo bravo pousa:“Ó pássaro possante, exculpai a quem ousaApelar à vossa bondade:Trata-se de salvar uma família, enfim;Oh! devolvei o cercado, a roseira, o jardimA meus filhos, aqui, da cheia na impiedade.Dignai-vos nos abrir as asas generosas:Não é tão longe e vós, com garras vigorosas,Jamais levastes vós fardo tão leve.”Não se fez surdo o pombo a tal voz. Em tom breve:“O vosso infortúnio eu deploroE lamento que um caso, então, de que me coro,Obrigue-me a seguir desse meu vôo o curso,Negando-me o prazer de vos dar meu concurso,Ficai, porém, sem inquietude,

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E o conselho segui de uma solicitude.Que me faz feliz de vos dar:Sustentai-vos na fé... O gênio benfeitorQue a vida vos salvou, não há de se indisporConvosco e vos abandonar.”E contente de si nos ares se elevou.Uma pequena carpa a nadar escutouTudo, viu tudo e compreendeu.“Consolai-vos, disse ela, ó mãe desesperada!Compreendo a vossa dor imensa, amargurada,Nem tudo ainda se perdeu.Forças não tenho a repartir;Quanto à margem, porém, penso vos conduzir.”E prendendo na boca uns longos filamentosBastos na largura do ninho,O desenrola e faz correr em seu caminho.A toutinegra, em pé, audazmente ajudava,Suas asas abrindo aos ventos.A carga se agitou e o peixe que a puxava,Para boiar sem risco, a marcha equilibrava,Às torrentes ambos atentos.Perto da borda, então... Chegaram!Alegre a toutinegra e os filhos encontraramRelva abundante entre altos fenos;E o peixinho lhe diz: “Ó minha cara, ao menos,Com os grandes, amanhã, cuidado; da misériaNão sentem seu clamor os servos da matéria:Os seus dons sempre são conselhos, condolência;Sempre a cordial assistênciaSó achareis junto aos pequenos.”

C. Dombre

O SobrenaturalPELO SR. GUIZOT

Extraímos da nova obra do Sr. Guizot: A Igreja e asociedade cristã em 1861, o extraordinário capítulo a respeito do

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sobrenatural. Não é, como poderiam pensar, um discurso pró oucontra o Espiritismo, porquanto não se trata da nova doutrina; mascomo aos olhos de muita gente o Espiritismo é inseparável dosobrenatural, que segundo uns é uma superstição e, conformeoutros, uma verdade, é interessante conhecer a opinião de umhomem de valor, como o Sr. Guizot. Há nesse trabalhoobservações de incontestável acerto, mas, em nossa opinião,também há grandes erros, devidos aos pontos de vista em que secoloca o autor. Faremos o seu exame aprofundado em nossopróximo número.

“Todos os ataques de que hoje é objeto o Cristianismo,por mais diversos que sejam na sua natureza e na sua medida,partem de um mesmo ponto e tendem a um mesmo fim: a negaçãodo sobrenatural nos destinos do homem e do mundo, a abolição doelemento sobrenatural na religião cristã – e em todas as religiões –na sua história e nos seus dogmas.

“Materialistas, panteístas, racionalistas, cépticos,críticos, eruditos, uns altivamente, outros discretamente, todospensam e falam sob o império da idéia de que o mundo e o homem,a natureza moral e a física, são apenas governados por leis gerais,permanentes e necessárias, cujo curso nenhuma vontade especialjamais veio ou virá suspender ou modificar.

“Não penso aqui discutir plenamente esta questão, queé a questão fundamental de toda religião; quero apenas submeteraos adversários declarados ou velados do sobrenatural, duasobservações ou, para dizer mais exatamente, dois fatos que, emminha opinião, a decidem.

“É sobre uma fé natural ao sobrenatural, sobre uminstinto inato do sobrenatural que toda religião se funda. Não merefiro a toda idéia religiosa, mas a toda religião positiva, prática,poderosa, durável, popular. Em todos os lugares, sob todos os

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climas, em todas as épocas da História, em todos os graus dacivilização o homem traz em si esse sentimento ou, melhor, essepressentimento, de que o mundo que vê, a ordem em cujo seio vive,os fatos que se sucedem regular e constantemente à sua volta nãosão tudo. Neste vasto conjunto, em vão ele faz, todos os dias,descobertas e conquistas; em vão observa e constata sabiamente asleis permanentes que a tudo presidem: seu pensamento não seencerra neste universo entregue à sua ciência; este espetáculo nãobasta à sua alma; ela se lança alhures; busca, entrevê outra coisa;aspira ao Universo, a outros destinos e a outro senhor.

“Para além de todos estes céus o Deus dos céus reside”,

disse Voltaire, e o Deus que está além de todos os céus não é anatureza personificada, é o sobrenatural em pessoa. É a ele que asreligiões se dirigem; é para pôr o homem em relação com ele queelas se fundam. Sem a fé instintiva dos homens no sobrenatural,sem seu impulso espontâneo e invencível para o sobrenatural, nãohaveria religião.

“De todos os seres da Terra, o único que ora é ohomem. Entre seus instintos morais nenhum é mais natural, maisuniversal, mais invencível que a prece. A criança nela se conduzcom uma docilidade atenciosa. O velho a ela se dobra como numrefúgio contra a decadência e o isolamento. A prece sobe por si dosjovens lábios que mal balbuciam o nome de Deus, e dos lábiosagonizantes que já não têm forças para o pronunciar. Em todos ospovos, célebres ou obscuros, civilizados ou bárbaros, encontram-sea cada passo atos e fórmulas de invocação. Por toda parte ondevivem os homens, em certas circunstâncias, em certas horas, sob oimpério de certas impressões da alma, os olhos se elevam, as mãosse juntam, os joelhos se dobram para implorar ou render graças,para adorar ou apaziguar. Com enlevo ou em comoção,publicamente ou no íntimo do coração, é à prece que o homem sedirige, como derradeiro recurso, para encher o vazio de sua alma ou

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carregar os fardos de seus destino; é na prece que busca, quandotudo lhe é adverso, apoio para a sua fraqueza, consolação para assuas dores, esperança para a sua virtude.

“Ninguém desconhece o valor moral e interior daprece, independentemente de sua eficácia, no que respeita ao seuobjetivo. Pelo simples ato de orar, a alma sente-se aliviada, eleva-se,acalma-se e se fortifica. Recorrendo a Deus, experimenta essesentimento de volta à saúde e ao repouso que toma conta do corpo,quando passa de um ambiente tempestuoso e pesado a umaatmosfera serena e pura. Deus acode aos que o imploram, antes esem que saibam se os atenderá.

“Atendê-los-á? Qual a eficácia exterior e definitiva daprece? Eis o mistério, o impenetrável mistério dos desígnios e daação de Deus sobre cada um de nós. O que sabemos é que, quer setrate de nossa vida exterior ou interior, não somos apenas nós quedela dispomos, conforme nosso pensamento e vontade própria.Todos os nomes que dermos a esta parte do nosso destino, que nãovem de nós mesmos, como acaso, fortuna, estrela, natureza efatalidade são outros tantos véus lançados sobre nossa impiedadeignorante. Quando assim falamos, recusamos ver Deus onde eleestá. Além da acanhada esfera onde estão encerrados o poder e aação do homem, é Deus que reina e atua. Há, no ato natural euniversal da prece, uma fé natural e universal nessa açãopermanente, e sempre livre, de Deus sobre o homem e seu destino:Diz São Paulo: ‘Nós somos operários com Deus’; operários comDeus e na obra dos destinos gerais da Humanidade, e na de nossopróprio destino, presente e futuro. Aí está o que nos faz entrever aprece, no laço que une o homem a Deus; mas aí a luz se detém paranós: ‘Os caminhos de Deus não são os nossos caminhos’;marchamos neles sem os conhecer. Crer sem ver e orar sem preveros resultados, eis a condição que Deus impôs ao homem nestemundo, para tudo quanto ultrapasse os seus limites. É na

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consciência e na aceitação desta ordem sobrenatural que consistema fé e a vida religiosas.

“Assim, tem razão o Sr. Edmond Scherer, quandoduvida que ‘o racionalismo cristão seja e jamais possa ser umareligião’. E por que o Sr. Jules Simon, que se inclina perante Deuscom um respeito tão sincero, intitulou seu livro: A religião natural?Deveria tê-lo chamado Filosofia religiosa. A filosofia persegue eatinge algumas das grandes idéias sobre as quais se fundamenta areligião; mas, pela natureza de seus processos e pelos limites de seudomínio, jamais fundou, nem poderia fundar uma religião. Falandomais precisamente, não há religião natural, pois desde que abolis osobrenatural, a religião também desaparece.

“Quem pensa em negar que esta fé instintiva nosobrenatural, fonte da religião, possa ser e seja, também, a fonte deuma infinidade de erros e de superstições que, por sua vez, é fontede uma infinidade de males? Aqui, como em tudo, é da condiçãodo homem que o bem e o mal se misturem incessantemente nosseus destinos e nas suas obras, como em si mesmo; mas, dessaincurável mistura não se segue que nossos grandes instintos nãotenham sentido e não nos façam senão enganar, quando noselevam. Aspirando a isto, sejam quais forem os nossos enganos,continua certo que o sobrenatural está na fé natural do homem eque é a condição sine qua non, o verdadeiro objetivo, a própriaessência da religião.

“Eis um segundo fato que, penso, merece toda aatenção dos adversários do sobrenatural.

“É reconhecido e constatado pela ciência que o nossoglobo nem sempre esteve no estado em que hoje se encontra; queem épocas diversas e indeterminadas sofreu revoluções,transformações que alteraram sua face, o regime físico e apopulação; que o homem, em particular, nem sempre existiu e que,

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em vários dos estados sucessivos pelos quais este mundo passou, ohomem não poderia ter existido.

“Como apareceu? De que maneira e por que podercomeçou o gênero humano na Terra?

“Para sua origem, não pode haver senão duasexplicações: ou resultou do trabalho íntimo das forças naturais damatéria, ou foi obra de um poder sobrenatural, exterior e superiorà matéria; geração espontânea ou criação: uma dessas duas causasse faz necessária para o aparecimento do homem na Terra.

“Mas, admitindo a geração espontânea, em queabsolutamente não acredito, esse modo de produção não poderiater produzido senão seres imaturos, na primeira hora e no primeiroestágio da vida nascente. Creio que ninguém jamais disse, nem diráque, pela virtude de uma geração espontânea, o homem, isto é, ohomem e a mulher, o par humano, tivesse podido sair, um dia, doseio da matéria, já formados e crescidos, em plena posse de suaestatura, de sua força e de todas as suas faculdades, como opaganismo grego fez sair Minerva do cérebro de Júpiter.

“E, contudo, é somente sob essa condição que,aparecendo pela primeira vez na Terra, nela o homem teria podidoviver, perpetuar-se e fundar o gênero humano. Imagine-se oprimeiro homem, nascendo no estado de primeira infância, vivo,mas inerte, baldo de inteligência, impotente, incapaz de se bastar asi mesmo, tiritando e gemendo, sem mãe para o ouvir e amamentar!Pois é justamente esse o primeiro homem que o sistema da geraçãoespontânea pode dar.

“Evidentemente, a outra origem do gênero humano é aúnica admissível, a única possível. Só o fato natural da criaçãoexplica a primeira aparição do homem aqui na Terra.

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“Assim, os que negassem e abolissem o sobrenatural,aboliriam, no mesmo golpe, toda religião real. E é em vão quetriunfam do sobrenatural, tantas vezes introduzido com erro emnosso mundo e em nossa história; são constrangidos a parar ante oberço sobrenatural da Humanidade, impotentes para dele fazeremsair o homem sem a mão de Deus.”

Guizot

Meditações Filosóficas e ReligiosasDITADAS AO SR. ALFRED DIDIER, MÉDIUM, PELO ESPÍRITO

LAMENNAIS

(Sociedade Espírita de Paris)

Já publicamos um certo número de comunicaçõesditadas pelo Espírito Lamennais, cujo alcance filosófico pudemosobservar. Por vezes o assunto era claramente indicado, mastambém acontecia, com certa freqüência, não ter um caráterbastante definido para que fosse fácil lhe dar um título. Tendo feitoa observação ao Espírito, este respondeu que se propunha dar umasérie de dissertações sobre assuntos variados, à qual sugeria o títulogenérico de Meditações filosóficas e religiosas, salvo a liberdade de darum título particular aos assuntos que o comportassem.Suspendemos, então, a publicação até que tivéssemos um conjuntosusceptível de ser coordenado. É essa publicação que começamoshoje e daremos continuidade nos próximos números.

Devemos fazer observar que os Espíritos chegados aum alto grau de perfeição são os únicos aptos a julgar as coisas deuma maneira completamente sã; que até lá, seja qual for odesenvolvimento de sua inteligência e mesmo de sua moralidade,podem estar mais ou menos imbuídos de suas idéias terrenas e veras coisas de seu ponto de vista pessoal, o que explica ascontradições muitas vezes encontradas em suas apreciações.

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Lamennais nos parece estar neste caso; sem dúvida há, em suascomunicações, muitas coisas boas e belas, como pensamento ecomo estilo, mas por certo há outras que podem prestar-se àcrítica, cuja responsabilidade absolutamente não assumimos. Cadaum é livre para aceitar o que achar bom e rejeitar o que parecermau. Só os Espíritos perfeitos podem produzir coisas perfeitas.Ora, Lamennais que, sem a menor dúvida, é um Espírito bom eelevado, não tem a pretensão de já ser perfeito, de modo que ocaráter sombrio, melancólico e místico do homem seguramente sereflete nesse Espírito e, por conseguinte, nas suas comunicações.Sob esse ponto de vista elas já seriam interessante motivo deobservação.

I

As idéias mudam, mas as idéias e os desígnios de Deus,jamais. A religião, isto é, a fé, a esperança, a caridade, uma só coisaem três, o emblema de Deus na Terra, fica inabalável em meio àslutas e preconceitos. A religião existe, antes de tudo, nos coraçõese, assim, não pode mudar. É no momento em que reina aincredulidade, em que as idéias se chocam e se entrechocam, semproveito para a verdade, que aparece esta Aurora que vos diz:Venho em nome do Deus dos vivos, e não dos mortos; só a matériaé perecível, porque é divisível; mas a alma é imortal, porque é unae indivisível. Quando a alma do homem se enfraquece na dúvidasobre a eternidade, toma moralmente o aspecto da matéria; divide-se e, em conseqüência, estará sujeita às provas infelizes nas suasfuturas reencarnações. A religião, pois, é a força do homem;diariamente ela assiste às novas crucificações que inflige ao Cristo;diariamente ouve as blasfêmias que lhe são atiradas na face; mas,forte e inquebrantável como a Virgem, assiste divinamente aosacrifício de seu filho, porque possui em si a fé, a esperança e acaridade. A Virgem desvaneceu-se ante as dores do Filho doHomem, mas não está morta.

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II

SANSÃO

Após uma leitura da Bíblia sobre a história de Sansão,vi em pensamento um quadro análogo ao do artista influente que aFrança acabe de perder, Decamps. Vi um homem de estaturacolossal, membros musculosos, como o Dia, de Miguel Ângelo.Esse homem forte dormia ao lado de uma mulher que faziaqueimar, à sua volta, perfumes tais como os orientais sempresouberam introduzir em seu luxo e em seus costumes delicados. Osmembros desse gigante caíram em lassidão e um gatinho orasaltitava sobre ele, ora sobre a mulher junto a ele. A mulhercurvou-se para ver se o gigante dormia; depois tomou umatesourinha e se pôs a cortar a cabeleira ondulada do colosso; o restojá sabeis. – Homens armados investiram contra ele e oacorrentaram. Preso nas malhas de Dalila, o homem chamava-seSansão, conforme mo disse um Espírito que logo vi junto a mim.Este homem representa a Humanidade enfraquecida pelacorrupção, isto é, pela avidez e pela hipocrisia. Quando Deus estavacom a Humanidade, levantou, como Sansão, as portas de Gaza;quando a Humanidade teve por sustentáculo a liberdade, isto é, oCristianismo, esmagou os seus inimigos, como sozinho o giganteesmagou o exército dos filisteus. – Assim, respondi ao Espírito: Amulher que está junto dele... Não me deixou concluir e disse: “É aque substituiu a Deus; pense que não quero falar da corrupção dosséculos passados, mas do vosso.” Desde muito tempo Sansão eDalila se haviam apagado diante dos meus olhos. Eu via o anjo,sempre só, que me disse a sorrir: “A Humanidade está vencida.”Então seu rosto tornou-se grave e profundo, e acrescentou: “Eis ostrês seres que devolverão à Humanidade seu vigor primitivo; eles sechamam Fé, Esperança e Caridade. Virão em alguns anos efundarão uma nova doutrina, que os homens chamarãoEspiritismo.”

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DEZEMBRO DE 1861

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III

(Continuação)

Cada fase religiosa da Humanidade possuiu a forçadivina materializada nas figuras de Sansão, Hércules e Rolando. Umhomem, armado com os argumentos da lógica, nos diria: “Eu vosadivinho; mas essa comparação me parece muito sutil e lenta.” Éverdade; talvez não tenha vindo ao espírito de ninguém e, contudoexaminemos. Ultimamente eu vos falei de Sansão, emblema daforça da fé divina nos primeiros tempos. A Bíblia é um poemaoriental; Sansão é a figura material dessa força impetuosa quederrubou Heliodoro no átrio do templo e que reuniu as ondas domar Vermelho após havê-las separado. Esta grande força divinaabateu exércitos e derrubou os muros de Jericó. Os gregos, bem osabeis, vieram do Egito e do Oriente. Esta tradição de Sansão nãoexistia mais senão no domínio da filosofia e da história egípcia. Osgregos lapidaram os colossos de granito do Egito, armaramHércules com uma maça e lhe deram a vida. Hércules fez seus dozetrabalhos, abateu a hidra de Lerna, a hidra dos sete pecados capitais,e tornou-se, nesse mundo pagão, o símbolo da força divinaencarnada na Terra; dele fizeram um deus. Mas notai quais foramos vencedores desses dois gigantes. Como diz Lamartine, deve-sesorrir? chorar? Foram duas filhas de Eva: Dalila e Dejanira. Comovedes, a tradição de Sansão e de Hércules é a mesma que a de Dalilae Dejanira. Apenas Dalila tinha mudado o penteado das filhas doFaraó pelo diadema de Vênus.

Pela noite, no famoso vale de Roncevaux, um gigante,deitado numa ravina profunda, berrava o nome de Carlos Magnoem gritos desesperados. Estava semi-esmagado sob enormerochedo, que suas mãos enfraquecidas em vão tentavam remover.Pobre Rolando! tua hora chegou; os bascos te insultam do alto dorochedo e ainda fazem rolar sobre ti enormes pedras. Entre os teusinimigos se encontram mulheres; talvez Rolando tenha amado uma:sempre Dalila e Dejanira. A História não o diz, mas isto é muito

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provável. Sempre foi dito que Rolando morreu como Sansão eHércules. Discuti agora se quiserdes; mas creio, senhores, que estacomparação não me parece tão sutil. Qual será, nos temposfuturos, a personificação da força do Espiritismo? Quem viver verá,diz-se na Terra. Aqui se diz: O homem verá sempre.

Lamennais(Continua no próximo número)

Allan Kardec

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Nota Expl icat iva58

Hoje crêem e sua fé é inabalável, porque assentada na evidência ena demonstração, e porque satisfaz à razão. [...] Tal é a fé dosespíritas, e a prova de sua força é que se esforçam por se tornaremmelhores, domarem suas inclinações más e porem em prática asmáximas do Cristo, olhando todos os homens como irmãos, semacepção de raças, de castas, nem de seitas, perdoando aos seusinimigos, retribuindo o mal com o bem, a exemplo do divinomodelo. (KARDEC, Allan. Revista Espírita de 1868. 1. ed. Rio deJaneiro: FEB, 2005. p. 28, janeiro de 1868.)

A investigação rigorosamente racional e científica defatos que revelavam a comunicação dos homens com os Espíritos,realizada por Allan Kardec, resultou na estruturação da DoutrinaEspírita, sistematizada sob os aspectos científico, filosófico ereligioso.

A partir de 1854 até seu falecimento, em 1869, seutrabalho foi constituído de cinco obras básicas: O Livro dos Espíritos(1857), O Livro dos Médiuns (1861), O Evangelho segundo o Espiritismo(1864), O Céu e o Inferno (1865), A Gênese (1868), além da obra O Que

58 Nota da Editora: Esta “Nota Explicativa”, publicada em face deacordo com o Ministério Público Federal, tem por objetivodemonstrar a ausência de qualquer discriminação ou preconceito emalguns trechos das obras de Allan Kardec, caracterizadas, todas, pelasustentação dos princípios de fraternidade e solidariedade cristãs,contidos na Doutrina Espírita.

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é o Espiritismo (1859), de uma série de opúsculos e 136 edições daRevista Espírita (de janeiro de 1858 a abril de 1869). Após sua morte,foi editado o livro Obras Póstumas (1890).

O estudo meticuloso e isento dessas obras permite-nosextrair conclusões básicas: a) todos os seres humanos sãoEspíritos imortais criados por Deus em igualdade de condições,sujeitos às mesmas leis naturais de progresso que levam todos,gradativamente, à perfeição; b) o progresso ocorre através desucessivas experiências, em inúmeras reencarnações, vivenciandonecessariamente todos os segmentos sociais, única forma de oEspírito acumular o aprendizado necessário ao seu desenvolvimento;c) no período entre as reencarnações o Espírito permaneceno Mundo Espiritual, podendo comunicar-se com os homens; d) oprogresso obedece às leis morais ensinadas e vivenciadas por Jesus,nosso guia e modelo, referência para todos os homens que desejamdesenvolver-se de forma consciente e voluntária.

Em diversos pontos de sua obra, o Codificador serefere aos Espíritos encarnados em tribos incultas e selvagens,então existentes em algumas regiões do Planeta, e que, em contatocom outros pólos de civilização, vinham sofrendo inúmerastransformações, muitas com evidente benefício para os seusmembros, decorrentes do progresso geral ao qual estão sujeitastodas as etnias, independentemente da coloração de sua pele.

Na época de Allan Kardec, as idéias frenológicas deGall, e as da fisiognomonia de Lavater, eram aceitas por eminenteshomens de Ciência, assim como provocou enorme agitação nosmeios de comunicação e junto à intelectualidade e à população emgeral, a publicação, em 1859 – dois anos depois do lançamentode O Livro dos Espíritos – do livro sobre a Evolução das Espécies, deCharles Darwin, com as naturais incorreções e incompreensões

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que toda ciência nova apresenta. Ademais, a crença de que ostraços da fisionomia revelam o caráter da pessoa é muito antiga,pretendendo-se haver aparentes relações entre o físico e oaspecto moral.

O Codificador não concordava com diversos aspectosapresentados por essas assim chamadas ciências. Desse modo,procurou avaliar as conclusões desses eminentes pesquisadores à luzda revelação dos Espíritos, trazendo ao debate o elemento espiritualcomo fator decisivo no equacionamento das questões da diversidadee desigualdade humanas.

Allan Kardec encontrou, nos princípios da DoutrinaEspírita, explicações que apontam para leis sábias e supremas,razão pela qual afirmou que o Espiritismo permite “resolver osmilhares de problemas históricos, arqueológicos, antropológicos,teológicos, psicológicos, morais, sociais, etc.” (Revista Espírita, 1862,p. 401). De fato, as leis universais do amor, da caridade, daimortalidade da alma, da reencarnação, da evolução constituemnovos parâmetros para a compreensão do desenvolvimento dosgrupos humanos, nas diversas regiões do Orbe.

Essa compreensão das Leis Divinas permite a AllanKardec afirmar que:

O corpo deriva do corpo, mas o Espírito não procede do Espírito.Entre os descendentes das raças apenas há consangüinidade. (O Livrodos Espíritos, item 207, p. 176.)

[...] o Espiritismo, restituindo ao Espírito o seu verdadeiro papel naCriação, constatando a superioridade da inteligência sobre a matéria,faz com que desapareçam, naturalmente, todas as distinçõesestabelecidas entre os homens, conforme as vantagens corporais emundanas, sobre as quais só o orgulho fundou as castas e osestúpidos preconceitos de cor. (Revista Espírita, 1861, p. 432.)

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Os privilégios de raças têm sua origem na abstração que oshomens geralmente fazem do princípio espiritual, para considerarapenas o ser material exterior. Da força ou da fraquezaconstitucional de uns, de uma diferença de cor em outros, donascimento na opulência ou na miséria, da filiação consangüíneanobre ou plebéia, concluíram por uma superioridade ou umainferioridade natural. Foi sobre este dado que estabeleceram suasleis sociais e os privilégios de raças. Deste ponto de vistacircunscrito, são conseqüentes consigo mesmos, porquanto, nãoconsiderando senão a vida material, certas classes parecempertencer, e realmente pertencem, a raças diferentes. Mas se setomar seu ponto de vista do ser espiritual, do ser essenciale progressivo, numa palavra, do Espírito, preexistente esobrevivente a tudo cujo corpo não passa de um invólucrotemporário, variando, como a roupa, de forma e de cor; se, alémdisso, do estudo dos seres espirituais ressalta a prova de que essesseres são de natureza e de origem idênticas, que seu destino é omesmo, que todos partem do mesmo ponto e tendem para omesmo objetivo; que a vida corporal não passa de um incidente,uma das fases da vida do Espírito, necessária ao seu adiantamentointelectual e moral; que em vista desse avanço o Espírito podesucessivamente revestir envoltórios diversos, nascer em posiçõesdiferentes, chega-se à conseqüência capital da igualdade denatureza e, a partir daí, à igualdade dos direitos sociais de todas ascriaturas humanas e à abolição dos privilégios de raças. Eis o queensina o Espiritismo. Vós que negais a existência do Espírito paraconsiderar apenas o homem corporal, a perpetuidade do serinteligente para só encarar a vida presente, repudiais o únicoprincípio sobre o qual é fundada, com razão, a igualdade dedireitos que reclamais para vós mesmos e para os vossossemelhantes. (Revista Espírita, 1867, p. 231.)

Com a reencarnação, desaparecem os preconceitos de raças ede castas, pois o mesmo Espírito pode tornar a nascer rico oupobre, capitalista ou proletário, chefe ou subordinado, livreou escravo, homem ou mulher. De todos os argumentosinvocados contra a injustiça da servidão e da escravidão, contra

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a sujeição da mulher à lei do mais forte, nenhum há que prime, emlógica, ao fato material da reencarnação. Se, pois, a reencarnaçãofunda numa lei da Natureza o princípio da fraternidade universal,também funda na mesma lei o da igualdade dos direitos sociaise, por conseguinte, o da liberdade. (A Gênese, cap. I, item 36,p. 42-43. Vide também Revista Espírita, 1867, p. 373.)

Na época, Allan Kardec sabia apenas o que váriosautores contavam a respeito dos selvagens africanos, semprereduzidos ao embrutecimento quase total, quando nãoescravizados impiedosamente.

É baseado nesses informes “científicos” da época queo Codificador repete, com outras palavras, o que os pesquisadoreseuropeus descreviam quando de volta das viagens que faziam àÁfrica negra. Todavia, é peremptório ao abordar a questão dopreconceito racial:

Nós trabalhamos para dar a fé aos que em nada crêem; paraespalhar uma crença que os torna melhores uns para os outros, quelhes ensina a perdoar aos inimigos, a se olharem como irmãos,sem distinção de raça, casta, seita, cor, opinião política ou religiosa;numa palavra, uma crença que faz nascer o verdadeiro sentimentode caridade, de fraternidade e deveres sociais. (KARDEC, Allan.Revista Espírita de 1863 – 1. ed. Rio de Janeiro: FEB, 2005. – janeirode 1863.)

O homem de bem é bom, humano e benevolente para com todos,sem distinção de raças nem de crenças, porque em todos oshomens vê irmãos seus. (O Evangelho segundo o Espiritismo, cap.XVII, item 3, p. 348.)

É importante compreender, também, que os textospublicados por Allan Kardec na Revista Espírita tinham porfinalidade submeter à avaliação geral as comunicações recebidasdos Espíritos, bem como aferir a correspondência desses ensinos

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com teorias e sistemas de pensamento vigentes à época. Em Notaao capítulo XI, item 43, do livro A Gênese, o Codificador explicaessa metodologia:

Quando, na Revista Espírita de janeiro de 1862, publicamosum artigo sobre a “interpretação da doutrina dos anjosdecaídos”, apresentamos essa teoria como simples hipótese, semoutra autoridade afora a de uma opinião pessoal controversível,porque nos faltavam então elementos bastantes para umaafirmação peremptória. Expusemo-la a título de ensaio, tendoem vista provocar o exame da questão, decidido, porém, aabandoná-la ou modificá-la, se fosse preciso. Presentemente, essateoria já passou pela prova do controle universal. Não só foi bemaceita pela maioria dos espíritas, como a mais racional e a maisconcorde com a soberana justiça de Deus, mas também foiconfirmada pela generalidade das instruções que os Espíritosderam sobre o assunto. O mesmo se verificou com a que concerneà origem da raça adâmica. (A Gênese, cap. XI, item 43, Nota, p. 292.)

Por fim, urge reconhecer que o escopo principal daDoutrina Espírita reside no aperfeiçoamento moral do ser humano,motivo pelo qual as indagações e perquirições científicas e/oufilosóficas ocupam posição secundária, conquanto importantes,haja vista o seu caráter provisório decorrente do progresso e doaperfeiçoamento geral. Nesse sentido, é justa a advertência doCodificador:

É verdade que esta e outras questões se afastam do ponto de vistamoral, que é a meta essencial do Espiritismo. Eis por que seria umequívoco fazê-las objeto de preocupações constantes. Sabemos,aliás, no que respeita ao princípio das coisas, que os Espíritos, pornão saberem tudo, só dizem o que sabem ou que pensam saber.Mas como há pessoas que poderiam tirar da divergência dessessistemas uma indução contra a unidade do Espiritismo,

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precisamente porque são formulados pelos Espíritos, é útil podercomparar as razões pró e contra, no interesse da própria doutrina,e apoiar no assentimento da maioria o julgamento que se pode fazerdo valor de certas comunicações. (Revista Espírita, 1862, p. 38.)

Feitas essas considerações, é lícito concluir que naDoutrina Espírita vigora o mais absoluto respeito à diversidadehumana, cabendo ao espírita o dever de cooperar para o progressoda Humanidade, exercendo a caridade no seu sentido maisabrangente (“benevolência para com todos, indulgência para asimperfeições dos outros e perdão das ofensas”), tal como aentendia Jesus, nosso Guia e Modelo, sem preconceitos denenhuma espécie: de cor, etnia, sexo, crença ou condiçãoeconômica, social ou moral.

A EDITORA

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