revista espaço intermediário

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Sumário Música que agrega 40 Keith Swanwick ENTREVISTA Gestão de qualidade do ensino musical 35 Fernando Stanzione Galizia ARTIGO Monitoramento de processo - ferramenta para a qualidade em projetos socioculturais 35 Maria Helena Berlinck Martins ARTIGO A presença da educação musical em espaços não-formais: um campo de possibilidades 30 Eduardo Conegundes de Souza ARTIGO Dialogicidade e construção do conhecimento: um encontro entre o pensamento de Paulo Freire e a etnomusicologia 05 Samuel M Araujo ARTIGO Uma proposta de educação musical social e brasileira através da prática de instrumentos musicais em “Orquestras Brasileiras” 20 Joel Luis Barbosa RELATO DE EXPERIÊNCIA O desenvolvimento infantil para a perspectiva sócio-histórica 30 Daniela Emilena Santiago ARTIGO O método Dalcroze na prática do canto-coral 30 José Fortunato Fernandes ARTIGO Camargo Guarnieri e o ensino musical 30 Ana Lúcia Kobayashi ARTIGO O musical e o social: algumas reflexões sobre as experiências no NEAE e no CIEP do morro do Borel (RJ) 15 Sidney Mattos RELATO DE EXPERIÊNCIA Didática de ensino da música e prática pedagógica IV: reflexões sobre práticas musicais em um curso de licenciatura em música 10 Maria Cecília de Araujo Rodrigues RELATO DE EXPERIÊNCIA Manual ilustrado dos instrumentos musicais 45 Elizabeth Carrascosa Martínez RESENHA Conselho Editorial Editoras Susana Kruger (Coordenadora) Cassiana Vilela Renata Truzzi Membros Alessandra Costa Francisco Rodrigues Henrique Oliveira Gestor da Revista Leonardo Assis (gestão da implementação e site, etc - especificar função) Equipe de Apoio Fernanda Favaro (especificar função) Juliana Santos (especificar função) Rodrigo Masuda (especificar função) Edelci Amorim (especificar função) Implementação Tecnológica Amanda Vasconcellos Schustra (conferir o nome) Consultora Sueli Mara Soares Pinto Ferreira, Universidade de São Paulo, Brasil Associação Amigos do Projeto Guri Organização Social de Cultura Av. Francisco Matarazzo, 682 Água Branca São Paulo SP Brasil CEP: 05001 000 Submissões e contato Tel/ fax 55 11 3874 3355 ramal 371 [email protected] http://www.projetoguri.org.br/revista http://www.projetoguri.com.br/revista/regras.html

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Page 1: Revista Espaço Intermediário

SumárioMúsica que agrega 40Keith Swanwick ENTREVISTA

Gestão de qualidade do ensino musical 35Fernando Stanzione Galizia ARTIGO

Monitoramento de processo - ferramenta para a qualidade em projetos socioculturais 35Maria Helena Berlinck Martins ARTIGO

A presença da educação musical em espaços não-formais: um campo de possibilidades 30Eduardo Conegundes de Souza ARTIGO

Dialogicidade e construção do conhecimento: um encontro entre o pensamento de Paulo Freire e a etnomusicologia 05Samuel M Araujo ARTIGO

Uma proposta de educação musical social e brasileira através da prática de instrumentos musicais em “Orquestras Brasileiras” 20Joel Luis Barbosa RELATO DE EXPERIÊNCIA

O desenvolvimento infantil para a perspectiva sócio-histórica 30Daniela Emilena Santiago ARTIGO

O método Dalcroze na prática do canto-coral 30José Fortunato Fernandes ARTIGO

Camargo Guarnieri e o ensino musical 30Ana Lúcia Kobayashi ARTIGO

O musical e o social: algumas reflexões sobre as experiências no NEAE e no CIEP do morro do Borel (RJ) 15Sidney Mattos RELATO DE EXPERIÊNCIA

Didática de ensino da música e prática pedagógica IV: reflexões sobre práticas musicais em um curso de licenciatura em música 10Maria Cecília de Araujo Rodrigues RELATO DE EXPERIÊNCIA

Manual ilustrado dos instrumentos musicais 45Elizabeth Carrascosa Martínez RESENHA

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Page 2: Revista Espaço Intermediário

1010

ENTREVISTA

Durante a semana em que esteve no Brasil a convite da Associação Amigos do Projeto

Guri (AAPG), o educador-emérito da Universidade de Londres, keith Swanwick, ofereceu

conhecimentos importantes aos profi ssionais e participantes do III Seminário da

organização, realizado em novembro de 2009. Swanwick também teve a oportunidade de

conhecer mais sobre o trabalho musical desenvolvido pela AAPG em São Paulo. A seguir ele

comenta sobre as impressões que levou da visita ao Brasil, sobre o potencial da música para

mudar vidas de crianças e jovens que a praticam e sobre o olhar dos educadores e políticos

a respeito do tema.

AAPG - A partir de que momento de sua trajetória você percebeu que a música podia ser

determinante como recurso de educação na vida dos alunos? Quais as experiências práticas que o

levaram a essa conclusão?

Keith Swanwick - Meu início na área musical foi um tanto “bagunçado”, como acontece com

a maioria das pessoas nessa área. Toquei em bandas, estudei trombone e, posteriormente,

estudei música na Academia de Londres. Iniciei então carreira educacional, lecionando em

escolas secundárias. Mais tarde, comecei a ministrar seminários com base na experiência do

ensino e do acompanhamento de grupos musicais em educação. O que percebo é que, quando

começamos a trabalhar, é fácil visualizar a importância da música para os jovens. Porém,

conforme o tempo passa, vamos nos esquecendo dessa importância – tanto os alunos como

os professores. É como se as sensações se nivelassem e acabamos perdendo aquele sentido

mágico da música. Então, uma das coisas que procuro fazer nos seminários e reacender esse

senso mágico da música nas pessoas. Fazê-las resgatar esse valor e levar isso de volta àqueles

com quem trabalham.

AAPG - Como é possível trazer essa “mágica” às crianças que têm problemas sociais?

KS - Não existem respostas fáceis para isso. Mas acho que é preciso deixar a música disponível

de uma forma que interesse a eles. É preciso aproximá-los dela. Se a música for apenas um

recurso a mais, eles podem simplesmente escolher não praticá-la. Então é preciso oferecer

possibilidades de interesse, de se fazer um bom trabalho com a música. Precisamos saber o

que podem trazer para o aprendizado, mas precisamos também fazer mais do que isso. Não

podemos ensinar aquilo que eles já fazem. Devemos, na verdade, acrescentar valor a essas

experiências, estendendo o que fazem e tornando isso mais visível, desenvolvendo as direções

para onde caminham.

Música que agrega

O educador musical Keith Swanwick em visita à AAPG, quando concedeu

entrevista à revista Espaço Intermediário.

Foto

: Arq

uivo

AA

PG

por juliana Winkel

ReViSta eSPacO inteRMeDiÁRiO, Sao Paulo, v.i, n.i, p. 10-12, maio, 2010.

Page 3: Revista Espaço Intermediário

11

ENTREVISTA

AAPG - Como o abordagem pedagógica (T)EC(L)A1 contribui para de vencer as dificuldades de

aprendizagem e desempenho na música?

KS - Veja dessa forma: se você leciona música em apenas uma direção, tudo que as pessoas

farão é ouvir e reproduzir aquilo da maneira como aprenderam. Mas temos que nos lembrar

de que cada pessoa é diferente da outra e tem suas próprias possibilidades. A palavra original

para denominar esse modelo em inglês, C(L)A(S)P2, significa “agregar”, “manter alguma coisa”.

Tem esse significado em si mesma. Acho que se deve ter em mente a multiplicidade de

possibilidades. O melhor meio de aprender música, para uma pessoa, pode não ser o melhor

para outra. Se você tem uma banda, algumas pessoas vão adorar isso e outras vão odiar o

barulho – chamarão assim, de barulho. Ao invés de ensinar um instrumento da mesma forma

para todos, ou se focar apenas em teoria musical, é importante achar um meio de integrar tudo

isso de acordo com as diferentes pessoas. Até mesmo uma única pessoa oferece uma gama

diferente de possibilidades de aprendizado. É disso que fala o modelo C(L)A(S)P: de se estar

atento a essa multiplicidade. Aos poucos, o aprendizado os fará pensar também em si mesmos,

e não apenas no instrumento que estão estudando. É dessa forma que a música educa, agrega

e inclui. Ela ajuda a abrir mais janelas, mesmo quando você apenas a ouve, antes mesmo de

tocar algum instrumento.

AAPG - Em que áreas de vida do aluno o ensino musical pode ter influência positiva?

KS - Não se pode precisar exatamente. Mas acredito que, em qualquer área em que ele

se dedique e com a qual se identifique, e na qual se torne competente, pode desenvolver

esse senso de valorização pessoal. Eles podem não estar se desenvolvendo plenamente no

ambiente escolar, por exemplo, mas estão se desenvolvendo em várias habilidades por meio

da música. Acho que fortalecer a autoconfiança é um grande passo. A música, em particular,

auxilia na questão da expressão emocional, em direcionar sensações até então abstratas. Esse

efeito é algo muito difícil de mensurar, mas é também plenamente percebido.

AAPG - Você acha importante conhecer a vida do aluno, em especial sua situação social, para

desenvolver esse trabalho?

KS - Acho importante saber como o aluno vê a música, qual sua afinidade e com o que se

identifica para aprender. Pode ou não ser importante saber sobre sua vida pessoal. É preciso

saber até onde se pode ir. Para ajudar uma pessoa a sair de um rio, é preciso manter pelo

menos um dos pés na margem. Se você coloca os dois pés no rio, não conseguirá ajudá-lo.

AAPG - Acredita que, de modo geral, a sociedade reconhece a importância do ensino musical

para o desenvolvimento pleno dos estudantes? Como têm visto a receptividade desse tema pela

sociedade ao longo dos anos?

KS - A experiência da última década mostra que os investimentos têm variado, em diferentes

níveis da comunidade, inclusive de acordo com a orientação política do lugar ou do momento.

Um dos problemas do investimento nesse sentido é que não existe uma comprovação exata

1 O Modelo (T)EC(L)A foi criado pelo autor em 1979, e apresentado em parâmetro para a realização de atividades musicais. As letras ECA significam execução, composição e apreciação e as letras (T) e (L) sig-nificam técnica e literatura. Estão em parênteses por serem subsidiárias às demais. Vide SWANWICK, Keith. Aba-sis for music education. London: Routledge, 1979.

2 C(L)A(S)P: C Composition, (L) litera-ture, (A) Audition, (S) Skiel acquisi-tion, P Performance. (SWANWICH, 1979, p. 45)

Keith SwanwicK, Música que agrega.

Page 4: Revista Espaço Intermediário

1212

ENTREVISTA

ReViSta eSPacO inteRMeDiÁRiO, Sao Paulo, v.i, n.i, p. 10-12, maio, 2010.

dos efeitos dele para investidores. Não é como tomar penicilina, é um processo complexo de

efeitos a longo prazo. No Reino Unido, por exemplo, vimos um aumento de interesse nos últimos

anos. Mas continuo considerando que existem muitas possibilidades de desenvolvimento,

especialmente na área social, ligadas a essas ações. Uma das coisas mais importantes é

convencer a classe política da importância delas e da importância de eles próprios estarem

envolvidos na causa, se sentindo parte disso.

AAPG - Qual a importância, na sua opinião, de projetos como o Guri, que ensinam música e, ao

mesmo tempo, têm na música uma ferramenta para promover o desenvolvimento social?

KS - Acho muito importantes, pois são uma tentativa de reconhecer e combater problemas

sociais graves. Minha postura é a de que devemos incentivar a cultura da música no dia-a-

dia, pois se o sistema em geral reconhecer essa linguagem, ela poderá também se tornar um

instrumento de comunicação em termos sociais, que possibilitará aproximações. Não acho

que a música seja apenas um aspecto da sociedade. Ela é mais do que isso, tem a ver com a

liberdade de expressão e de escolha da maneira como as pessoas querem se desenvolver. Ela

oferece uma série de possibilidades. Então, o principal é promover o encontro musical dentro

da coletividade, de forma que as pessoas possam trocar conhecimentos e experiências e,

depois, levar isso de volta aos lugares onde vivem.

AAPG - Qual a sua opinião sobre o trabalho desenvolvido no Projeto Guri, com base no que pôde

conhecer durante esta passagem pelo Brasil?

KS - Estou muito impressionado com o trabalho do Guri, que reúne musicistas competentes

e comprometidos com o desenvolvimento dos estudantes. Infelizmente, não pude conhecer

a fundo os locais de ensino nesses poucos dias, ainda mais pelo fato de ser um projeto que

atua em uma área geográfi ca tão extensa, mas pude ver que existe um real comprometimento

profi ssional com a causa. Minha impressão pessoal é que, se você tem as pessoas certas

cuidando das tarefas certas, e comprometidas com isso, já tem 99% do que você precisa. Um

projeto dessa magnitude é também uma grande responsabilidade.

AAPG - Qual sua impressão sobre a cultura musical do Brasil de forma geral?

KS - Já estive no Brasil algumas vezes, visitando cidades como Salvador, Porto Alegre, Belo

Horizonte e Curitiba, além de São Paulo. Duas coisas que posso assinalar é que, desde a década

de 1970, quando o Brasil era controlado pelos militares, as mudanças são enormes. Agora é

possível ter um maior contato com a diversidade social, porque tudo é mais aberto. É mais

possível fazer coisas em conjunto, fazer projetos funcionarem. Mas uma coisa que não mudou

é a disposição das pessoas em se comunicar. Sempre gostei muito de trabalhar aqui porque as

pessoas são responsáveis, elas realmente fi cam em contato, se interessam e acompanham o

que é feito. Discutem, conversam e riem também. Essa é uma das boas características do povo

brasileiro, sempre a mesma em todas as vezes em que estive aqui.

Keith Swanwick foi um dos convidados do III Seminário da AAPG,

que reuniu mais de 400 pessoaspara discutir a Gestão de Qualidade

em Projetos Socioculturais.

Foto

: Arq

uivo

AA

PG

Page 5: Revista Espaço Intermediário

13

ARTIGO

RESUMO

Este texto tem como objetivos abordar formas

de buscar a qualidade do ensino musical em

projetos sociais, não perdendo de vista o objetivo

dessa prática – possibilitar o desenvolvimento

social dos estudantes – e examinar propostas

de indicadores de resultado para a avaliação

da qualidade desse ensino. O texto apresenta o

conceito de Gestão da Qualidade Total, utilizado

no mundo corporativo, traçando paralelos

entre esse conceito e o trabalho realizado por

educadores musicais. Nas considerações finais,

o artigo aponta a necessidade de formação

específica dos educadores musicais para o

trabalho docente em música; a contribuição,

para o trabalho dos educadores, do conceito de

aprendizagem significativa; e a possibilidade de

construção dos indicadores de desempenho do

ensino musical a partir da capacidade de cumprir

o objetivo ao qual ele se destina, além do impacto

da aprendizagem musical na vida dos alunos.

ABSTRACT

The aim of this text is to discuss ways of promoting

quality in music teaching within social projects

without losing sight of the purpose of this practice

– to make the social development of the students

possible – and to discuss proposals for outcome

indicators for use in evaluating the quality of this

teaching. The text presents the concept of Total

Quality Management, utilized in the business

world, tracing parallels between this concept

and the work carried out by music educators. In

the final considerations, a need is identified with

regard to specific training for music educators

in the work of teaching music; the contribution

made to the work of the educators through

the concept of meaningful learning; and the

possibility of constructing indicators for music

teaching performance based on the ability of

the same to fulfill the purpose for which they

are designed, as well as the impact that learning

music has on the lives of the students.

PALAVRAS-CHAVE

Educação musical. Gestão da qualidade.

Profissionalização docente. Saberes do

docente. Aprendizagem significativa.

KEYWORDS

Musical education. Quality management.

Professional teaching. Teacher knowledge.

Meaningful learning.

FERNANDO STANZIONE GALIZIA

Professor Assistente da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) – Membro do Conselho de

Administração da Associação Amigos do Projeto Guri (AAPG) / Mestre em Música, pela UFRGS,

área de concentração: Educação Musical, pela UFRGS. e-mail: [email protected]

Gestão de qualidade do ensino musical1

1 Texto apresentado na mesa redon-da “Gestão de qualidade do ensino musical”, durante o III Seminário da Associação Amigos do Projeto Guri, evento realizado entre os dias 19 e 21 de novembro de 2009 na cidade de São Paulo/SP

Quality management in music teaching.

FeRnanDO StanZiOne GaLiZia, Gestão de qualidade do ensino musical.

Page 6: Revista Espaço Intermediário

1414

ARTIGO

O tema gestão de qualidade do ensino musical requer, primeiramente, que pensemos no

significado da palavra qualidade, termo cujo significado todos imaginam, mas ainda difícil de

se definir com exatidão. Se realizarmos uma busca sobre essa palavra, encontraremos diversas

definições, todas interessantes, porém diferentes entre si. Essa impressão é corroborada por

autores como Longo (1996):

Qualidade, enquanto conceito, é um valor conhecido por todos e, no entanto, definido de forma

diferenciada por diferentes grupos ou camadas da sociedade — a percepção dos indivíduos

é diferente em relação aos mesmos produtos ou serviços, em função de suas necessidades,

experiências e expectativas (LONGO, 1996, p. 8).

A autora apresenta, no mesmo texto, o conceito de gestão da qualidade total (GQT), que julgo

se adequar ao trabalho de educação musical em projetos de cunho social. A GQT é uma nova

filosofia gerencial que exige mudanças de atitudes e de comportamento. Essas mudanças visam

o comprometimento com o desempenho, a procura do autocontrole e o aprimoramento dos

processos. A GQT valoriza o ser humano no âmbito das organizações, reconhecendo sua capacidade

de resolver problemas no local e momento em que ocorrem, buscando permanentemente a

perfeição. Segundo a autora, ela precisa ser entendida como uma nova maneira de pensar, realizada

antes de se agir e produzir, implicando em uma mudança de postura gerencial e em uma forma

moderna de entender o sucesso de uma organização (LONGO, 1996).

Dessa forma, os pontos principais da GQT seriam o trabalho em equipe permeando toda a

organização; as decisões baseadas em fatos e dados; a busca constante da solução de problemas

e diminuição de erros; e o foco no cliente. Esse último ponto – o foco no cliente – é particularmente

interessante. Quem é o cliente de um projeto de educação musical de cunho social? Tornando a

pergunta mais abrangente, quem é o “cliente” de qualquer instituição de ensino, musical ou não?

Duas respostas são possíveis, de acordo com a linha de raciocínio que se segue. A primeira diz que

o cliente é aquele que paga e, dessa forma, os clientes de uma instituição de ensino são os pais

ou responsáveis pelos alunos. No caso de uma Organização Social de Cultura (OS), nessa linha de

raciocínio, os clientes seriam as entidades mantenedoras, públicas ou privadas2.

Outra forma de pensar seria entender como cliente de uma instituição aquele que consome o

“produto” dessa instituição. No caso de uma instituição de ensino, quem “consome” esse “produto”

(ensino) é o aluno, que aprende. Essa discussão é incomum no meio corporativo, pois, no caso de

uma empresa, quem consome também paga e, conseqüentemente, mantém a empresa3. Adoto

aqui essa segunda linha de raciocínio, entendendo como cliente de qualquer instituição de ensino

– musical ou não – o aluno. Essa posição é corroborada por diversos autores da área de educação,

como Abreu e Masetto (1980), por exemplo. Segundo esses autores, “entendemos que toda e

qualquer instituição de ensino, qualquer que seja seu nível (...) existe em função do aluno (...) e da

sociedade na qual se insere” (ABREU e MASETTO, 1980, p. 6).

Isso posto, voltemos à GQT. Como dimensões básicas, essa filosofia visa a qualidade intrínseca,

o custo, o atendimento, a moral, a segurança e a ética. Essas dimensões, embora pensadas para o

2 Para mais detalhes sobre esse assun-to, ver GALIZIA, KRUGER e KORSOKO-VAS, 2009.

3 Poderia se discutir ainda se o cliente de uma empresa são os consumidores de seus produtos ou os acionistas, mas essa discussão foge aos objetivos desse artigo.

ReViSta eSPacO inteRMeDiÁRiO, Sao Paulo, v.i, n.i, p. 13-24, maio, 2010.

Page 7: Revista Espaço Intermediário

15

ARTIGO

mundo corporativo, se adequam perfeitamente ao universo das instituições de educação. Voltemos

nossas atenções a três delas: a qualidade intrínseca, a moral e a segurança. A qualidade intrínseca

é entendida como a capacidade do produto ou serviço de cumprir o objetivo ao qual se destina.

A moral é uma dimensão associada aos funcionários da instituição, no que tange a sua motivação,

treinamento e engajamento no trabalho. Por fim, a segurança é associada ao cliente – no caso, o

aluno – e, mais especificamente, ao impacto do serviço prestado na vida desse cliente.

Como essas três dimensões, aliadas ao foco no aluno, se relacionariam dentro de uma

instituição de ensino? Vejamos a figura abaixo:

Figura 1 – As dimensões da GQT relacionadas entre si em uma instituição de ensino

De acordo com a figura acima, podemos pensar que os funcionários possuem uma atuação

direta junto ao o cliente (aluno) e essa atuação é avaliada em duas frentes: por meio do impacto

do serviço prestado na vida desses clientes e da capacidade do serviço de cumprir o objetivo

ao qual se destina. Mas se já sabemos (ou assumimos) quem são os clientes de uma instituição

de Educação Musical, então quem seriam os funcionários atuando diretamente junto ao aluno?

Eles são chamados de educadores musicais. Mas quem são de fato? Porque são chamados

dessa forma? O que significa ser um educador musical? Qual a diferença entre um educador

musical e um músico? Vamos refletir sobre essas questões por um instante.

Em primeiro lugar, pensemos no local de atuação de um músico, constituído dos diversos

espaços de apresentação musical (teatros, bares e outros). Não são os mesmos locais de

atuação do educador musical, que atua, primordialmente, em salas de aula.

Em segundo lugar, que ações são desenvolvidas nesses espaços? Os músicos, em seus

locais de atuação, desenvolvem primordialmente ações artístico-musicais – em outras palavras,

eles tocam (cantam, compõem, etc.). Por sua vez, em seus respectivos locais de atuação, os

educadores musicais promovem ações pedagógico-musicais – eles ensinam música. Quando

tocam ou compõem, esses profissionais são sempre guiados pela ação pedagógica, fazendo-o

como exemplo para os alunos ou como prática para determinado conteúdo.

Funcionários (motivação,

treinamento, engajamento)

Clientes (impacto

do serviço prestado)

A capacidade do produto ou serviço de

cumprir o objetivo ao qual se destina

ALUNOATUAÇÃO

AVALI

AÇÃO

AVALIAÇÃO

FeRnanDO StanZiOne GaLiZia, Gestão de qualidade do ensino musical.

Page 8: Revista Espaço Intermediário

1616

ARTIGO

ReViSta eSPacO inteRMeDiÁRiO, Sao Paulo, v.i, n.i, p. 13-24, maio, 2010.

Por fim, pensemos no objeto de trabalho de cada profissional. O músico possui como

objeto de trabalho a música – ele sobe ao palco com o objetivo de gerar música de alguma

forma. E o educador musical? Ele entra na sala de aula para gerar música? A resposta é não;

esse profissional entra em sala de aula com o objetivo de gerar aprendizado sobre música

junto a seus alunos. Essas ideias podem ser melhor visualizadas na tabela abaixo:

Tabela 1 – Diferenças entre músicos e educadores musicais

Músicos Educadores Musicais

Local de atuação Espaços de apresentação musical Sala de aula

Ação Artístico-musical Pedagógico-musical

Objeto de trabalho Música Aprendizagem dos alunos

A partir do exposto acima, podemos chegar a três conclusões. A primeira diz respeito ao fato

de o músico e educador musical serem profissionais diferentes, embora sua prática profissional

exija alguns saberes em comum. Em outras palavras, ambos lidam de forma mais ou menos direta

com música, porém em locais, de maneira e com objetivos diferentes. Traçando uma comparação

grosseira, seria como a diferença entre um dermatologista e um oftalmologista, por exemplo.

Embora ambos sejam médicos e lidem com a saúde dos pacientes, possuem atuações profissionais

distintas.

A segunda conclusão é decorrente da primeira. Por possuírem profissões diferentes, esses

profissionais – músicos e educadores musicais - precisam de formações diferentes. Não se

pode imaginar que pessoas que atuam de forma diversa, em espaços diversos e com objetivos

diversos possam receber a mesma formação, ou simplesmente saber as mesmas coisas.

Por fim, a terceira conclusão a que chego é que ambas as profissões podem ser exercidas

pelo mesmo profissional, desde que ele entenda que terá uma especialização dupla. Não

bastará a ele ser um músico para atuar como educador musical ou o inverso: ele terá que

buscar duas formações distintas, embora com algumas coisas em comum.

Essas conclusões estão em sintonia com o movimento de profissionalização da docência

e formação de professores que atinge a educação (GAUTHIER et al., 1998; GONÇALVES PINTO,

2004). Esse movimento acredita que, negando-se a reconhecer a existência de conhecimentos

inerentes ao exercício docente, nega-se o status de profissão a essa atividade, relegando-a a

categoria de semiprofissão. Em outras palavras, negando-se o status de profissão à docência,

assume-se que a atividade de professor não exige nenhum conhecimento próprio ou

específico. Porém, segundo diversos autores da educação e também da educação musical, a

docência tem, sim, especificidades e conhecimentos próprios, o que acarreta a necessidade

de formação específica dos profissionais que atuam nessa atividade (CALDEIRA e SANTIAGO,

2004; ISAIA e BOLZAN, 2004).

Page 9: Revista Espaço Intermediário

17

ARTIGO

O movimento de profissionalização docente combate o pensamento, comum tanto dentro

das instituições que contratam o profissional como entre muitos dos próprios profissionais

de que “quem sabe, automaticamente sabe ensinar” (MASETTO, 2003, p. 13). Para Anastasiou

(2002), já que instituição não exige desse docente os elementos da formação inicial para a

docência, deveria prover meios específicos para que o profissional preenchesse essa lacuna

em serviço. No entanto, segundo a autora, essas iniciativas não ocorrem nem por parte das

instituições, nem por parte dos professores individualmente.

Temos, assim, atuando nas salas de aulas, profissionais competentes em suas áreas de atuação,

com pleno domínio dos saberes científicos de suas áreas, sendo desafiados a constituírem-se como

professores, a assumirem-se nessa nova profissão, que tem estatuto, características, compromissos

e procedimentos próprios (...) ficam, então, desconsiderados os elementos constitutivos dessa

categoria profissional: o ideal, os objetivos, os compromissos pessoais e sociais, a regulamentação

profissional, o conceito de profissão e de profissional, o código de ética, as participações nas

entidades de classe, que são fundamentais para exercer-se com competência uma profissão, o que

possibilitaria um reconhecimento social da profissão (ANASTASIOU, 2002, p. 176).

O movimento de profissionalização docente assume então que, para se ensinar algo, é preciso

um conjunto de conhecimentos diferenciados em relação à área de atuação – no caso, música. Esse

discurso gera uma dicotomia entre o Músico e o Educador Musical, no sentido de que uma pessoa

não poderia ser as duas coisas. A posição que assumo aqui, já afirmada anteriormente, é que, no

caso específico da área de música, é possível sim que uma mesma pessoa atue como músico e

como educador musical, desde que assuma o fato de que são duas profissões diferentes com alguns

saberes em comum e busque formações distintas e condizentes com sua atuação.

Quando falamos na formação dos educadores musicais, citamos conhecimentos específicos para

a docência utilizando o termo “saber”, sem, no entanto, o definir. Esse termo possui três concepções

distintas, porém com pontos em comum. São eles a subjetividade, o juízo e a argumentação. Na

concepção de saber como subjetividade, ele seria equivalente a um tipo de certeza subjetiva,

produzida pelo pensamento racional, podendo assumir duas formas: uma intuição intelectual ou

uma representação intelectual, resultado do raciocínio. Já o juízo é contrário ao conceito anterior,

pois considera o saber como conseqüência de uma atividade intelectual - ou, explicitamente, um

julgamento a respeito dos fatos. Por fim, a argumentação define o saber como uma atividade

discursiva pela qual o sujeito tenta validar uma proposição ou uma ação. Tal validação é feita por

meio da lógica, da dialética ou da retórica. Nesse sentido, o saber não se reduz apenas a um juízo,

mas à capacidade de apresentar justificativas racionais para nossos argumentos.

Um ponto em comum entre as três concepções seria a exigência de racionalidade (GAUTHIER

et al, 1998; TARDIF, 2002; ARAÚJO, 2005). Para estes autores, o saber engloba os argumentos, os

discursos, as ideias, os juízos e os pensamentos que obedecem à exigência de racionalidade.

Porém, é preciso ressaltar que a racionalidade possui um grau de relatividade que exige

argumentação e justificativa para validá-la (PERRENOUD et al., 2002; ARAÚJO, 2005).

FeRnanDO StanZiOne GaLiZia, Gestão de qualidade do ensino musical.

Page 10: Revista Espaço Intermediário

1818

ARTIGO

ReViSta eSPacO inteRMeDiÁRiO, Sao Paulo, v.i, n.i, p. 13-24, maio, 2010.

A partir do exposto, Tardif e Gauthier (2002) apresentam a seguinte definição para o conceito de saber:

Chamaremos doravante de “saber” unicamente os pensamentos, as ideias, os julgamentos, os discursos,

os argumentos que obedecem a certas exigências de racionalidade. Eu falo ou ajo racionalmente quando

sou capaz de motivar, com auxílio de razões, declarações, procedimentos, etc., meu discurso ou minha

ação em face de um outro ator que me interroga sobre sua pertinência, seu valor, etc. Essa “capacidade”

(...) é verificada na argumentação, isto é, em um discurso em que apresento razões para justificar meus

atos. Essas razões são discutíveis, criticáveis e passíveis de revisão (id., p. 195).

Com essa definição em mente, podemos nos perguntar: o que um educador musical

precisa saber para realizar seu trabalho? Em primeiro lugar, de forma inegável, um educador

musical precisa saber música. Alguns profissionais diriam que a “quantidade” de música que um

educador precisa saber para dar aulas para crianças é menor do que a necessária a um músico

para desempenhar suas funções. Porém, apesar de o músico lidar de forma mais direta com

a música, o que exige dele um domínio exemplar dessa área de conhecimento, também um

educador musical precisa ter um amplo conhecimento acerca de música para poder ensiná-la.

Quanto mais conhecimento em sua área de atuação, melhor.

Mas apenas isso basta? Se sim, então quem tem conhecimento de música pode automaticamente

ensinar música, como afirma Masetto (2003). Alguns afirmam que, além de música, é necessário

“saber dar aulas”, ou “saber ensinar”, ou ainda “ter didática”. Como afirma Libâneo (2002):

Os alunos mais velhos comentam entre si: “Gosto dessa professora porque ela tem didática”. Os

mais novos costumam dizer que com aquela professora eles gostam de aprender. Provavelmente,

o que os alunos querem dizer é que essas professoras têm um modo acertado de dar aula, que

ensinam bem, que com elas, de fato, aprendem (LIBÂNEO, 2002, p. 8).

E quanto a “saber preparar aulas”? Quem já não teve um professor que conhecesse sua área de

atuação a fundo e que, além disso, ao falar possuísse uma “didática” incrível, mas cujas aulas eram sempre

“bagunçadas”, sem ligação umas com as outras ou ainda repetitivas, como se o professor não soubesse

prepará-las, pensar previamente no que iria ensinar em cada dia e de que forma? Saber “preparar aulas”

parece ser algo diferente de “saber dar aulas”, porém igualmente necessário a um educador.

Finalmente, se esse professor souber tudo isso e, ainda por cima, possuir uma larga experiência

no ensino de música, muitos considerariam ser esse um profissional completo. Pois essa é justamente

a tipologia adotada por Maurice Tardif (2002) para os saberes necessários à prática docente. Esse

autor identifica quatro grupos de saberes vinculados à formação do professor do ensino regular:

os saberes disciplinares, os saberes curriculares, os saberes experienciais e os saberes da formação

profissional (das ciências da educação e da ideologia pedagógica).

Os saberes disciplinares correspondem aos diversos campos de conhecimento transmitidos

através de disciplinas (por exemplo, matemática, história e outras) nos cursos universitários,

independentemente das faculdades de educação e dos cursos de formação de professores.

Seria o “saber música”. Os saberes curriculares correspondem aos programas escolares

(objetivos, conteúdos, métodos) que os professores devem aprender a aplicar. Seria o “saber

preparar aulas”. Os saberes experienciais brotam do próprio exercício da profissão, oriundos da

Page 11: Revista Espaço Intermediário

19

ARTIGO

experiência e por ela validados (ter experiência no ensino de música). Por fim, os saberes da

formação profissional (das ciências da educação e da ideologia pedagógica) são o conjunto

de saberes transmitidos pelas instituições de formação de professores, incluindo aí os saberes

pedagógicos, que seriam as doutrinas ou concepções provenientes de reflexões sobra a prática

educativa no sentido amplo do termo – o “saber dar aulas” (TARDIF, 2002, p. 37-39).

Em suma, o professor ideal é alguém que deve conhecer sua matéria, sua disciplina e seu programa,

além de possuir certos conhecimentos relativos às ciências da educação e à pedagogia e desenvolver

um saber prático baseado em sua experiência cotidiana com os alunos (TARDIF, 2002, p. 39).

No que tange à experiência, porém, ela por si basta? Ou seja, ter uma larga experiência no

ensino de música garante, por si, que o profissional tenha saberes experienciais? A resposta

parece ser: não. Fazer algo – ensinar, por exemplo - há muito tempo não garante, por si, que

aquilo seja feito de forma bem feita (ou com qualidade). Para que essa experiência traga saber

experiencial de fato é necessária uma prática reflexiva constante.

O conceito de profissional reflexivo é muito utilizado em pesquisas atuais (ARAÚJO, 2005), e

tem suas origens nos estudos de John Dewey sobre ação reflexiva, segundo a qual o professor

formula questões a partir de sua própria prática. Porém, foi Schön (2000) quem mais difundiu

esse conceito criando a ideia de “experiência compreendida”. Para esse autor, a reflexão deve

ser um elemento chave da educação profissional, pois possibilita integração entre teoria

e prática, devendo ocorrer de duas maneiras: pela reflexão-na-ação, ou seja, durante o ato

de ensinar o professor reflete sobre o que acontece, interferindo e modificando esse ato

simultaneamente, e pela reflexão-sobre-a-ação, segundo a qual o professor reflete sobre a

ação educativa após ela ter ocorrido, visando às ações futuras. A reflexão na prática educativa

é fruto também do processo de formação continuada que permeia o discurso de formação

de professores atualmente (PIMENTA, 1999). Essa constante reflexão está intimamente ligada

aos saberes docentes, mudando seu significado, pois, ao refletir na e sobre a ação, o professor

valida ou reformula seus saberes a partir da própria prática, adaptando-os a ela4.

Com base em tudo o que foi exposto até agora, podemos voltar à figura 1 e modificá-la

da seguinte forma:

4 E antes da ação, não é necessário refletir? Essa reflexão se dá no pla-nejamento (de aula, de disciplina, de atividade, etc.), onde se utilizam, para tal, os saberes curriculares.

Educadores musicais

Clientes (impacto

do serviço prestado)

A capacidade do produto ou serviço de

cumprir o objetivo ao qual se destina

ALUNOATUAÇÃO

AVALI

AÇÃO

AVALIAÇÃO

Figura 2 - Esquema de educação musical com base nas dimensões da GQT

FeRnanDO StanZiOne GaLiZia, Gestão de qualidade do ensino musical.

Page 12: Revista Espaço Intermediário

2020

ARTIGO

Vimos que os educadores musicais têm como objetivo de seu trabalho gerar aprendizado

sobre música em seus alunos. Mas como seria esse aprendizado? O que se quer com ele?

Vários podem ser os objetivos de uma instituição de ensino. Em se tratando de música, pode-

se querer formar músicos profissionais, por exemplo, ou ainda oferecer uma introdução ao

assunto, dentre várias possibilidades. No caso específico de entidades de educação musical

de cunho social, como as Organizações Sociais (OSs) ligadas à Secretaria Estadual de Cultura

do Estado de São Paulo5, o objetivo passa ao mesmo tempo pelo ensino de música e pela

formação do indivíduo de forma mais abrangente. Vejamos o objetivo da Associação Amigos

do Projeto Guri (AAPG), por exemplo. De acordo com o novo plano de trabalho da AAPG,

elaborado pela diretoria e pelo conselho de administração da instituição, seu objetivo é

“promover com excelência a Educação Musical e a prática coletiva de música, tendo em vista o

desenvolvimento humano de gerações em formação”. Percebe-se, pelo objetivo da instituição,

que se trata de um projeto de cunho social, além de cultural e artístico. Nesse caso, entendo

que o conceito elaborado por Rogers (1987) de aprendizagem significativa poderia se adequar

a tal objetivo. Segundo esse autor:

[aprendizagem significativa é] uma aprendizagem que é mais que uma acumulação de fatos. É

uma aprendizagem que provoca uma modificação, quer seja no comportamento do indivíduo,

na orientação da ação futura que escolhe ou nas suas atitudes e na sua personalidade. É uma

aprendizagem penetrante, que não se limita a um aumento de conhecimentos, mas que penetra

profundamente todas as parcelas da sua existência (ROGERS, 1987, p. 258).

A aprendizagem significativa não ocorre apenas quando o aluno compreende o que se está

ensinando (neste caso, música). Ela ocorre quando o conteúdo ensinado passa a fazer sentido

para sua vida. Quando, mais do que compreender, o aluno se apropria do conhecimento e

entende o porquê de estar aprendendo aquilo, enxergando possibilidades de aplicar esse

conhecimento em seu dia-a-dia. Dessa forma, promove-se uma mudança interna real na

pessoa. Em outras palavras,

A aprendizagem significativa ocorre quando o aluno consegue se apropriar do conhecimento trabalhado

e aplicá-lo em diferentes contextos ou situações [...] é possível dizer que, quando ocorre a aprendizagem

significativa, ocorre também o entendimento do que é aquele conhecimento e por que ele é importante.

Para que ocorra a aprendizagem significativa, faz-se necessário que as matérias de ensino sejam

estruturadas de maneira significativa (REALI, 2007, p. 60-61, grifo nosso).

A última frase da citação acima está grifada para chamar a atenção para a importância

dos saberes curriculares, além dos pedagógicos, disciplinares e experienciais. São eles que

permitem que a matéria de ensino – música - seja estruturada de forma significativa, o que

permite a ocorrência da aprendizagem significativa.

5 Para mais detalhes sobre esse assunto, ver GALIZIA, KRUGER e KORSOKOVAS, 2009.

ReViSta eSPacO inteRMeDiÁRiO, Sao Paulo, v.i, n.i, p. 13-24, maio, 2010.

Page 13: Revista Espaço Intermediário

21

ARTIGO

Figura 3 – Ações de educação musical de uma OS ligada à cultura como a AAPG, com base nas premissas da GQT e de autores da educação

Por fim, uma última ideia que gostaria de desenvolver é a dos indicadores de desempenho,

essenciais em qualquer atividade que busque a qualidade. Seguindo as premissas da GQT, as variáveis

e os indicadores devem ser factíveis em sua construção, expressando valores compartilhados por

todos os agentes envolvidos (funcionários, alunos, mantenedores e outros). Mas como construir

esses indicadores? Se a ação maior da instituição será avaliada pelo impacto da aprendizagem

musical na vida do aluno, assim como pela capacidade do ensino musical de cumprir o objetivo ao

qual se destina, esses dois pontos podem ser entendidos como pilares básicos para a construção

desses indicadores. Dessa forma entende-se que, se essas duas metas forem alcançadas, o ensino de

música oferecido pela instituição é de qualidade, como pode ser visto na figura abaixo.

Educador musical

Impacto da apren-

dizagem musical na

vida do aluno

Capacidade do ensino musical de cumprir o objetivo ao qual se destina (promover

com excelência a Educação Musical e a prática coletiva de música, tendo em vista

o desenvolvimento humano de gerações em formação)

ALUNOAPRENDIZAGEM

SIGNIFICATIVA

AVALIAÇÃO AVALIAÇÃO

Pilares para construção de indicadores de desempenho

Educador musical

Impacto da apren-

dizagem musical na

vida do aluno

Capacidade do ensino musical de cumprir o objetivo ao qual se destina (promover

com excelência a Educação Musical e a prática coletiva de música, tendo em vista

o desenvolvimento humano de gerações em formação)

ALUNOAPRENDIZAGEM

SIGNIFICATIVA

AVALIAÇÃO AVALIAÇÃO

Figura 4 – Indicadores de desempenho e qualidade

Nossa figura, então, pode ser entendida agora da seguinte forma:

FeRnanDO StanZiOne GaLiZia, Gestão de qualidade do ensino musical.

Page 14: Revista Espaço Intermediário

2222

ARTIGO

A construção de indicadores de desempenho e qualidade ainda é um tópico que merece

mais discussões na área de cultura. Atualmente, parte-se da premissa de que esses indicadores

sempre serão parciais e específicos para um determinado serviço, indicando quantitativamente

as atividades realizadas pelas organizações. Como afirma Pacheco (2006):

Na área de cultura são ainda numerosos os problemas a enfrentar. Os indicadores foram adotados

de forma homogênea, sem ainda refletir as especificidades de cada equipamento ou projeto

cultural. Há problemas jurídicos a serem enfrentados. E, sobretudo, restam os desafios ligados à

mudança cultural (PACHECO, 2006, p. 7).

CONSIDERAÇõES FINAIS

Os educadores musicais possuem uma atuação diferente em relação à atuação dos

músicos. Essa atuação é específica da ação docente e, como conseqüência, esses profissionais

precisam de formação condizente com seu trabalho. Essa formação deve focar a aquisição dos

saberes necessários para o trabalho docente em música, o que contribuiria para o movimento

de profissionalização do ensino. Umas das especificidades do trabalho docente passa pelo seu

objeto de trabalho, entendido aqui como a aprendizagem em música de seus alunos.

No âmbito da missão da AAPG, um instituição de ensino musical de cunho social, essa

aprendizagem deve seguir os preceitos da aprendizagem significativa, entendida como aquela

que não visa a mera transmissão de conhecimentos, mas sim o contexto em que o aluno se

apropria do conteúdo, compreendendo o porquê de o estar aprendendo e enxergando

aplicações desse conteúdo em seu dia-a-dia.

Por fim, a avaliação dos resultados deverá ter como pilares de seus indicadores a capacidade

do ensino musical de cumprir o objetivo ao qual se destina e o impacto da aprendizagem

musical na vida dos alunos (ou o quanto essa aprendizagem foi significativa). Todas essas

ações levam à qualidade do ensino musical.

ReViSta eSPacO inteRMeDiÁRiO, Sao Paulo, v.i, n.i, p. 13-24, maio, 2010.

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Page 17: Revista Espaço Intermediário

25

ARTIGO

RESUMO

Este artigo apresenta a dificuldade da efetividade

de políticas sociais por falta de focalização

adequada. A qualidade só será atingida se

houver a preocupação constante pela gestão

por resultados, monitorando e avaliando tanto

o processo de execução das ações do projeto

social como também seu retorno imediato.

Outros pontos fundamentais para o alcance da

qualidade dos projetos sociais são a situação e

o papel do público alvo dentro do projeto. Os

beneficiários da ação não devem permanecer

passivos, expectadores; precisam participar

ativamente da avaliação e do replanejamento

das ações.

ABSTRACT

This article presents the difficulty encountered

in making social policies effective, owing to

the lack of adequate focus. Quality will only

be achieved if there is ongoing concern for

outcome management, monitoring and

evaluation of both the executive process for the

actions of the social project and the immediate

outcomes of the same. Another point that

is fundamental to achieving quality in social

projects is the situation and role of the target

public within the Project. Those benefitted by

the action can not be passive beneficiaries or

spectators; they need to actively participate in

the evaluation and the re-planning.

PALAVRAS-CHAVE

Gestão Social, Projeto Sociocultural, sistema

de monitoramento e avaliação, construção

de indicadores qualitativos e quantitativos.

KEYWORDS

Social management, Social-cultural project,

Monitoring and evaluation system, construction

of qualitative and quantitative indicators.

Assessora de Gabinete da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo - Coordenadora

do Programa Escola da Família/BA e-mail: [email protected]

Monitoramento de processo -ferramenta para a qualidade em projetos socioculturais1

1 Texto apresentado na mesa redonda “Gestão de Qualidade em Projetos Socioculturais”, durante o III Semi-nário da Associação Amigos do Pro-jeto Guri, evento realizado em 20 de novembro de 2009 na cidade de São Paulo/SP. Inclui atualizações realiza-das pelo autor.

Process monitoring – a tool for promoting quality in social-cultural projects

MARIA HELENA BERLINCk MARTINS

MaRia heLena BeRLincK MaRtinS, Monitoramento de processo - ferramenta para a qualidade em projetos socioculturais

Page 18: Revista Espaço Intermediário

2626

ARTIGO

1 Introdução

Falar em gestão de qualidade em projetos socioculturais é, além de satisfação e orgulho,

uma viagem pela minha experiência. Mas antes de entrar no tema propriamente dito, preciso

esclarecer como entendo o significado de qualidade no contexto de um projeto social. Para

mim, a qualidade de um projeto está vinculada à efetividade do mesmo.

Para investigar o grau de efetividade de um projeto, temos que responder algumas

perguntas iniciais. O projeto provoca mudanças no público alvo que escolheu e na comunidade

em que atua? Trabalha para o fortalecimento e desenvolvimento de pessoas e comunidades?

Sua relação custo x benefício é razoável? Tem instrumentos de gestão modernos e eficazes?

Envolve o público alvo e parceiros em sua avaliação e no seu replanejamento? Possui práticas

articuladas com parceiros? Desenvolve uma comunicação clara e direta com todos os que nele

têm interesse?

Responder a todas essas questões de forma satisfatória significa um alto grau de exigência

para o gestor de um projeto social. Porém, na conjuntura que vivemos, isso tem que ser assim.

Não podemos deixar de ser exigentes quando vemos a grande desigualdade da sociedade

brasileira e a quantidade de recursos que os diferentes níveis de governo, e também a

sociedade, investem em programas, projetos e ações de inclusão social e redução da pobreza.

Podemos dizer que o problema na redução da desigualdade social não é fruto da falta de uma

política social, nem tampouco de recursos orçamentários, mas sim da baixa efetividade dos

programas, projetos e ações na área social.

São inúmeras as iniciativas existentes, mas elas dificilmente chegam aos que delas mais

necessitam. Existe imensa dificuldade em se atingir a população eleita como foco principal das

ações; geralmente, as iniciativas e projetos sociais acabam chegando a uma população menos

pobre, que já está incluída em outras ações da rede de proteção social brasileira.

2 o cuidado com a focalização

Tanto trabalho e tão pouco resultado: porque nossa política social é tão pouco efetiva?

Barros e Carvalho (2003) apontam duas razões: a má focalização e a baixa eficácia. Dizem eles

que grande parte dos programas sociais deixa de beneficiar os segmentos mais pobres da

população, em detrimento dos segmentos não-pobres.

Temos aqui o primeiro grande gargalo da qualidade de programas socioculturais. Em quem

estamos focalizando o programa? Trata-se de um programa voltado para uma população

menos pobre, já com acesso a diversos bens e serviços (moradia de qualidade, assistência à

saúde, por exemplo) e que amplia este acesso para bens culturais? Ou trata-se de um programa

de inclusão social através do acesso a bens culturais? Quais são os objetivos do programa

sociocultural em questão? Quero fortalecer as capacidades de pessoas e comunidades, abrir-

lhes opções de conhecimentos e práticas, capacitá-las no domínio de alguma habilidade de

expressão e comunicação artística, fortalecendo assim a auto-estima e o acesso a outros bens

ReViSta eSPacO inteRMeDiÁRiO, Sao Paulo, v.i, n.i, p. 25-32, maio, 2010.

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27

ARTIGO

e serviços? Ou quero capacitar pessoas e comunidades para que aprimorem suas capacidades

artísticas e sejam formadas tanto para produzir como para consumir bens culturais? Em que

contexto de focalização se localiza o projeto sociocultural do qual faço parte?

Paes de Barros e Carvalho (2003) apontam ainda para o baixo grau de focalização das

iniciativas, que pode resultar do próprio desenho dos programas. Citam como exemplo

projetos desenhados para beneficiar os empregados com carteira de trabalho, como o abono

salarial, que acaba por beneficiar muito pouco os segmentos mais pobres da população.

Além da dificuldade de focalização, temos outro empecilho à qualidade: quando o

desenho e a gestão não oferecem impactos satisfatórios à população beneficiada. Isto ocorre

porque, muitas vezes, definimos o público alvo de nosso programa sociocultural por critérios

estatísticos, sem analisá-lo como ator social. A focalização baseada em dados socioeconômicos

não traz para os projetos interlocutores participantes, mas sim beneficiários passivos. O

impacto positivo no nosso público alvo se traduz por uma resposta espontânea aos estímulos

recebidos – quando ele percebe que é capaz de fazer alguma coisa autonomamente, adquire

auto estima, segue seu caminho de aprendizagem e busca por novas fronteiras para sua

vida. Este impacto positivo é produto de uma nova metodologia de trabalho que promove

as capacidades latentes nos grupos selecionados. Diz Cardoso (2004): “é importante integrar

ao debate sobre a focalização este outro debate sobre as inovações metodológicas que

necessitamos para tornar mais eficaz o combate à desigualdade social” (p. 44). Para olhar os

associados de um projeto sociocultural como interlocutores importantes da ação e não apenas

como beneficiários, é preciso observar suas potencialidades e então flexibilizar os métodos e

ações do projeto às características locais e ao público específico.

Ao focalizar o público-alvo, relacioná-lo com o local, o território ou a comunidade e

observar as suas potencialidades, abrimos caminho para a adesão e receptividade à proposta

do projeto e se flexibilizamos a metodologia de trabalho com esses achados podemos buscar

a integração entre várias formas de expressão artística, abrindo espaços para a participação de

outros membros da comunidade e parceiros locais.

Assim temos dois aspectos da focalização para projetos socioculturais. Não basta buscar

os mais pobres e excluídos, precisamos conhecer também a forma como vivem, como se

relacionam, os laços afetivos, as formas de relacionamento com outros grupos sociais e,

sobretudo, suas formas de expressão cotidiana. Com esses conhecimentos podemos adequar

e flexibilizar a metodologia do trabalho e alcançar resultados de qualidade.

3 MonItorAMEnto E AvAlIAção CoMo InStruMEnto dE quAlIdAdE

O grande desafio do gestor de projetos socioculturais parece ser controlar e monitorar a

execução do projeto dando condições de autonomia de novas buscas metodológicas para os

gestores locais. Como manter a visão estratégica do projeto sob sua coordenação, adequando as

ações a novos padrões de resultados e redefinição de atividades de acordo com o perfil local?

MaRia heLena BeRLincK MaRtinS, Monitoramento de processo - ferramenta para a qualidade em projetos socioculturais

Page 20: Revista Espaço Intermediário

2828

ARTIGO

O segredo está no monitoramento e avaliação constantes das ações. Sabemos muito pouco

sobre como executamos e quais os resultados que alcançamos conforme os diferentes tipos de

ações. Sabemos pouco sobre as razões das diferenças de resultados em diferentes locais. Nosso

conhecimento também é relativo quanto às razões da adesão do público alvo à proposta, ao

aproveitamento das atividades, à regularidade da freqüência e assim por diante.

Interessante notar como valorizamos a etapa de planejamento dos nossos projetos

sociais e damos pouca importância à etapa de monitoramento e avaliação do processo de

execução e dos resultados imediatos. Chegamos até a valorizar a avaliação para a elaboração

de um diagnóstico que apontará os objetivos da nossa ação ou ainda a avaliação externa que

servirá como uma espécie de “auditoria”, mas desprezamos o monitoramento de processo e a

avaliação dos impactos imediatos, muitas vezes por preconceitos do tipo: trata-se de práticas

de controle, vigilância e autoritarismos de nossos chefes. Outras vezes as barreiras manifestam

a auto-suficiência dos gestores, que acreditam firmemente que sabem tudo sobre o que fazem.

Esses gestores, resistentes ao monitoramento, acreditam que “o projeto é bom, que vem dando

certo há anos e que não há porque mudar”.

Não pretendo esgotar neste artigo um tema que é vasto, extremamente técnico e

específico. Quero somente apontar para a importância da estratégia de gestão social que, com

certeza, contribuirá para a efetividade do projeto e indicará seus principais componentes e

características.

O monitoramento e a avaliação - termos que considero como uma expressão composta, já

que as duas técnicas caminham sempre juntas - permitem conhecer a execução dos processos

e os resultados imediatos obtidos no projeto sociocultural de forma sistemática, auxiliando o

gestor e sua equipe no replanejamento e na disseminação da ação.

Montar um sistema de monitoramento e avaliação exige alguns condicionantes. O

primeiro deles é a participação da equipe. Mesmo que nem todos estejam presentes às etapas

de coleta e análise de informações, é imprescindível que todos saibam o que é monitorado e

porque é monitorado. A participação da equipe permite também um olhar mais abrangente

sobre as ações e suas características, assim como a definição coletiva dos indicadores de

qualidade, envolvendo eficiência, eficácia e efetividade do projeto. O momento de reflexão

e de elaboração de indicadores com a equipe é um excelente método de capacitação da

prática e de fortalecimento do compromisso de todos pelos resultados satisfatórios das ações.

E o envolvimento de toda a equipe tem que responder uma pergunta básica: o que vamos

monitorar e para quê?

Ao envolvermos a equipe na definição do sistema de monitoramento e avaliação, estamos

também sinalizando que queremos que todos juntos aprendam sobre o que fazemos, os

motivos pelos quais fazemos e o que estamos produzindo e modificando. Sinalizamos que

somos uma comunidade de aprendizagem, e não apenas colegas de trabalho que cuidam de

setores verticalizados e especializados na execução do nosso projeto. Sinalizamos também

que queremos evitar erros e não apenas remediá-los.

ReViSta eSPacO inteRMeDiÁRiO, Sao Paulo, v.i, n.i, p. 25-32, maio, 2010.

Page 21: Revista Espaço Intermediário

29

ARTIGO

Montar um sistema de monitoramento e avaliação em um projeto sociocultural exige

a superação de algumas dificuldades. A maior delas está na definição de parâmetros para

conceitos intangíveis, que também fazem parte dos objetivos – como auto-estima, ampliação

do universo cultural e nova cultura de expressão artística, entre outros. Que parâmetros usar

para a apuração e julgamento dos indicadores? Outro desafio é a definição dos instrumentos

de coleta de informações ou a utilização dos meios de verificação.

Marino (2003) publicou um importante compêndio de conceitos e práticas para a gestão

por resultados, no qual explica a descrição dos sete passos do monitoramento de processos:

1. Foco da avaliação – o que monitorar, para que monitorar e por quem 2. Formação da equipe, constituição e capacitação 3. Identificação dos interessados - aqueles que ajudarão a formular perguntas e, a seguir, os

indicadores 4. Levantamento das informações quantitativas e qualitativas 5. Análise das informações e dos fatos 6. Elaboração do relatório e da divulgação

7. Utilização e disseminação (MARINO, 2003, p. 26-27)

Uma das etapas em que encontramos maiores dificuldades é aquele em que definimos os

indicadores - sobretudo porque estamos trabalhando, muitas vezes, com mudanças de atitude

sobre as quais os indicadores quantitativos pouco esclarecem. Mas, de fato, esta etapa não é

tão difícil como parece.

Sabendo que o indicador irá atribuir um valor às nossas ações, apontando o avanço, a

evolução e o desenvolvimento rumo aos objetivos e às metas do projeto, podemos dividir

sua formulação em três grandes grupos: aquele que indicará valores de abrangência, o que

indicará a receptividade ao projeto e o terceiro de impacto imediato. Todos os três grupos

deverão contemplar também indicadores de eficiência, cotejando os valores encontrados

junto aos recursos físicos, financeiros e humanos.

Figura 1 - orientadora da organização na definição dos indicadores (Capacitação Solidária - 2004)

Receptividade à proposta

Abrangência:

público alvo, atividades, equipe técnica

Impactos

imediatos

MaRia heLena BeRLincK MaRtinS, Monitoramento de processo - ferramenta para a qualidade em projetos socioculturais

ReViSta eSPacO inteRMeDiÁRiO, Sao Paulo, v.i, n.i, p. 25-32, maio, 2010.ReViSta eSPacO inteRMeDiÁRiO, Sao Paulo, v.i, n.i, p. 25-32, maio, 2010.ReViSta eSPacO inteRMeDiÁRiO, Sao Paulo, v.i, n.i, p. 25-32, maio, 2010.ReViSta eSPacO inteRMeDiÁRiO, Sao Paulo, v.i, n.i, p. 25-32, maio, 2010.

Page 22: Revista Espaço Intermediário

3030

ARTIGO

Dentro do grupo da abrangência, construiremos indicadores que nos respondam a

perguntas como: até que ponto atingimos o público alvo pretendido; que parte da demanda

conseguimos atender; de qual território provêm os participantes do projeto; que tipos de

atividades oferecemos (relacionando tanto as que planejamos como aquelas que tivemos

que improvisar); qual a relação entre os inscritos no projeto e a frequência por atividade; qual

a caracterização e qualificação da nossa equipe; qual a sua distribuição por atividades que

espaços físicos são utilizados e qual o orçamento efetivamente gasto. Estaremos trabalhando

com indicadores quantitativos e os meios de verificação serão os questionários fechados,

fichas de inscrição e de frequência e planos de trabalho, além de uma grande parte do acervo

documental do projeto que compõe o sistema gerencial de informações.

No grupo de indicadores de receptividade e de impacto imediato, avaliaremos a aderência

prática das atividades oferecidas às expectativas, potencialidades e necessidades do público

alvo, assim como os resultados alcançados na vida dos associados, seus familiares e entorno.

Neste estágio podemos trabalhar com indicadores qualitativos e quantitativos. Como meio

de verificação dos indicadores qualitativos, podemos usar entrevistas individuais e em grupo,

além da técnica dos grupos focais. Importante será definir parâmetros relativos aos conceitos

dos indicadores, como: “ver muita televisão, ficar na rua, brigar com os colegas e em casa,

dificuldade de concentração”, e assim por diante. Não nos esqueçamos que dentro deste

foco de análise – a receptividade – podemos incluir a quantidade e a qualidade de parcerias

formadas, para responder ao seguinte questionamento: estamos fazendo parte de uma rede?

Que tipo de rede?

É preciso lembrar que não existe receita para se montar um sistema de monitoramento do

projeto sociocultural. Muitas vezes a equipe pode desanimar, achar que é muito trabalho, que

é difícil a coleta de informações – e, então, pensar em optar: “ou desenvolvemos o projeto ou

monitoramos”. Para ultrapassar este momento de crise, o gestor deverá administrar o tempo de

construção do sistema de monitoramento. Num primeiro momento poderá reduzir o número

de indicadores, ou dividi-los em grupos que serão introduzidos progressivamente. Mas não

deve desanimar nunca. Logo, na análise dos primeiros resultados, toda a equipe se sentirá

recompensada pelo esforço, reconhecendo que o trabalho valeu a pena, pois os amadureceu

como grupo e sinalizou tanto os pontos positivos como os desafios de aprimoramento.

4 ConCluSão: A AnálISE doS rESultAdoS do proCESSo dE MonItorAMEnto E

AvAlIAção EM projEtoS SoCIoCulturAIS?

A análise dos resultados apurados merece também muita atenção e discussão do grupo

gestor. Tanto os dados de receptividade como de impacto imediato guardam, em geral,

complexidades e especificidades próprias. Os resultados de um dado projeto sociocultural

podem ter múltiplos fatores e causas. Muitas vezes temos um objetivo e alcançamos outro

diferente. A análise desses resultados deve orientar o replanejamento do projeto. Também

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31

ARTIGO

nesta etapa, começamos a ter indicadores de efetividade do projeto, quando comparamos

os resultados alcançados, as mudanças ocorridas no público alvo e a inserção em redes de

colaboração, ou seja, avaliamos nossa “cesta” completa de indicadores, incluindo recursos

humanos, financeiros e físicos envolvidos.

A avaliação externa, ou post-facto, pode ser também muito útil, mas dificilmente terá

impactos imediatos na qualidade da gestão do projeto - pois irá apurar os resultados

alcançados somente depois de algum tempo. Este tipo de avaliação servirá ao alinhamento da

visão estratégica do projeto e à medição de sua efetividade de forma mais assertiva, sobretudo

quando isolamos grupos que fizeram parte das ações e outros que não fizeram parte de nada

semelhante, comparando comportamentos.

A qualidade de um projeto sociocultural poderá ser disseminada no relatório de divulgação

da experiência ou de prestação de contas. Construir e redigir o relatório constitui também

uma oportunidade de aprendizagem. Temos que nos perguntar para quem queremos falar.

Muitos relatórios são descrições de vitórias e certezas. Muitas vezes eu me pergunto: será que

somente eu encontro dificuldades? Não existem dúvidas, nem tampouco pontos a aprimorar?

Os gestores não foram surpreendidos por algum fato? A equipe do projeto, autora do relatório,

não adquiriu novos conhecimentos que quisesse disseminar?

Finalizando, gostaria de acrescentar a descrição das características de um bom sistema de

monitoramento e avaliação, definida por Varallelli (2000):

É coerente com a visão e a concepção das organizações envolvidas •Considera as particularidades do contexto •Tem indicadores bem definidos, precisos e representativos•Está orientado para o aprendizado•Prevê e especifica os meios de verificação que serão utilizados•É simples, capaz de ser compreendido por todos•Combina indicadores relativos à eficiência, eficácia e efetividade•Fornece informações relevantes para a tomada de decisão•Aproveita as fontes confiáveis de informação existentes (VARALLELI, 2000, p.2)•

O monitoramento e a avaliação de um projeto social ou mesmo sociocultural não são tarefas

fáceis. Mas são, sem dúvida nenhuma, a garantia da busca da efetividade e da qualidade. Sua

construção é uma tarefa árdua que deve mobilizar toda equipe gestora. Não existe, que eu saiba,

nenhum manual com indicadores de monitoramento de processo para projetos socioculturais.

A equipe que trabalha na construção de indicadores de monitoramento se sente, muitas vezes,

num “ziguezagueando”, enfrentando a dúvida constante: estou conseguindo? Aos gestores,

digo apenas: não desanimem, não é fácil, mas os resultados são fantásticos e compensadores.

Espero que tenha contribuído para orientar o gestor de projetos socioculturais nas

metodologias de busca na qualidade de resultados.

MaRia heLena BeRLincK MaRtinS, Monitoramento de processo - ferramenta para a qualidade em projetos socioculturais

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ARTIGO

Referências

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CARDOSO, Ruth. Sustentabilidade: o Desafi o das Políticas Sociais no Século 21. São Paulo em Per-spectiva, São Paulo, v. 18, n. 2, abr.-jun. 2004. p. 42-48.

MARINO, Eduardo. Manual de Avaliação de projetos sociais. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2003.

VALARELLI, Leandro Lamas. Indicadores de resultados de projetos sociais. 1999. Disponível em: http://www.rits.org.br. Acesso em: 10 out. 2008.

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ARTIGO

RESUMO

O presente artigo visa pensar sobre as

possibilidades de intercessão entre as

contribuições provindas dos métodos formais

de educação musical, que se consolidaram

como referências a partir do início do século

XX, e as constituições metodológicas possíveis

de serem observadas a partir de processos

não formais de educação. Assim, procuramos

demonstrar de que modo a educação não

formal vem se constituindo como um campo

educacional específico, em diálogo com as

áreas da educação e da sociologia da educação

na busca de gerar metodologias consonantes

com os contextos socioculturais dentro dos

quais se desenvolvem. Com isso, a educação

musical passa a ser apresentada enquanto

possibilidade de construção de práticas sociais

dialógicas e reflexivas.

ABSTRACT

The aim of this article is to reflect on the

possibilities for intercession between the

contributions offered by the formal methods

of music education, which have served as

consolidated references since the beginning

of the 20th century, and the methodological

constitutions one can observe based on non-

formal education processes. With this in mind,

we seek to demonstrate the way in which non-

formal education has been gaining space as a

specific field of education, in dialogue with the

areas of education and educational sociology

jointly seeking to generate methodologies in

keeping with the social and cultural contexts

within which they are carried out. In this way,

music education comes to be presented as a

possibility for the construction of dialogical and

reflexive social practices.

PALAVRAS-CHAVE

Educação musical. Educação não-formal.

Música.

KEYWORDS

Musical education. Non-formal education.

Music.

Professor Assistente do Curso de Educação Musical da UFSCar e UAB-UFSCar.

e-mail: [email protected]

A presença da educação musical em espaços não-formais: um campo de possibilidades1

1 Texto apresentado durante a Mesa Redonda Ensino de Música e Inclusão Social, promovida pela As-sociação Amigos do Projeto Guri em 03/06/2009 em São Paulo/SP.

The presence of music education in non-formal spaces: a field of possibilities.

EDUARDO CONEGUNDES DE SOUZA

eDUaRDO cOneGUnDeS De SOUZa, a presença da educação musical em espaços não-formais: um campo de possibilidades.

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ARTIGO

1 A EduCAção não-forMAl CoMo CAMpo ESpECífICo

Para iniciarmos as reflexões que pretendemos realizar durante esse texto, é de fundamental

importância ter em mente que a educação musical no Brasil, desde que deixou de habitar o

espaço escolar nos anos de 1970, deixou também de ter um locus institucional que a abrigasse

e que exercesse o papel realizador daquilo que Maura Penna (1990) apresenta como processo

de musicalização efetivo e abrangente em meio à sociedade brasileira2.

Para que exista musicalização, é necessário que a educação musical ocorra enquanto ação

propiciadora do desenvolvimento humano, equilibrada no que diz respeito à sua integração com

as diversas áreas do conhecimento. Dessa forma, não podemos perder de vista o entendimento da

música enquanto conhecimento sensível, ligado aos diversos níveis de expressão humana.

Embora afastada da escola regular – espaço que seria ideal para a socialização dos diversos

saberes e do conhecimento historicamente construído – a música, justamente por ser uma forma

de expressão humana e também por estar arraigada a diversas culturas, nunca deixou de ser

praticada, ensinada e aprendida. Portanto, podemos formular a seguinte questão: será que, a

partir do afastamento do espaço escolar, a educação musical passou a estar presente apenas em

espaços especializados no ensino de música, como conservatórios e escolas de artes?

Embora esses espaços possam oferecer atividades de educação musical em sentido

mais amplo, os conservatórios e escolas de música apresentam caráter restrito em termos

de acesso. Por outro lado, normalmente, cumprem um papel ligado ao ensino técnico,

visando o treinamento e o direcionamento para a execução instrumental. Portanto, embora

sejam espaços formais de educação, se diferenciam da escola regular principalmente em

seu alcance e abrangência sociais.

Conforme nos coloca AFONSO (1992), quando nos referimos à educação formal nos

remetemos aos espaços em que as práticas educacionais são pautadas por uma grade curricular

previamente estabelecida, dentro da qual se definem classes ou graus de conhecimento pelos

quais os educandos devem passar de modo linear. Além disso, as práticas educacionais formais

ocorrem em tempos e espaços definidos e delimitados.

Pensando ainda em nossa questão inicial, é interessante observarmos que os saberes

musicais sempre foram transmitidos, também, em meio a relações informais do cotidiano, onde

ocorrem o ensino e a aprendizagem. Nesse outro âmbito que agora estamos denominando

como “informal” (AFONSO, 1992; GARCIA, 2001; TRILLA 1996), a educação pode acontecer sem a

utilização ou o desenvolvimento de métodos, sem tempos e espaços definidos e, muitas vezes,

sem mesmo intenção de se ensinar conteúdos específicos. É em meio às relações interpessoais

que ocorre a educação informal. No caso da educação musical, ela pode ocorrer em meio a

relações em que a música se faz presente, sendo apreciada ou praticada em diversos níveis –

como no âmbito familiar, em ciclos de amizades ou no convívio cotidiano.

Para que cheguemos a uma visão do que seria um “processo efetivo de musicalização”

(PENNA 1990, p. 32), podemos ainda observar as contribuições vindas dos “processos não-

formais de educação” (AFONSO, 1992; GARCIA, 2001; GOHN, 2001; TRILLA 1996).

Conforme nos coloca Jusamara Souza (1996), o fenômeno ensino-aprendizagem de músi-ca não ocorre só nos locais onde estamos e nem só da forma como conhecemos. Sendo assim, observar e considerar as possibilidades de educação em espaços diversos significa estarmos

2 Entendemos aqui musicalização como um processo que se desenvol-ve no decurso da vida dos indivíduos sem que tenha término ou ponto de chegada definido. Musicalizar seria atuar na sensibilização a partir da concretude sonora e no nível do fato musical. Sob essa concepção, mesmo o músico que se profissionaliza conti-nua sendo musicalizado ao longo de suas atividades. Portanto, usaremos o termo musicalização não em sobre-posição à educação musical, mas sim como sendo intrínseco aos diversos processos que a envolvem. Assim, po-demos ainda pensar que a educação musical abarca também o desenvolvi-mento técnico instrumental, a prepa-ração de repertório, a conceituação e teorização dos elementos musicais e a notação enquanto representação convencionada, relacionando-se ain-da à pesquisa e ao desenvolvimento de metodologias de ensino.

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abertos a processos interculturais, expressos por meio do diálogo entre diversidades que se apresentam em meio a processos diferentes da educação formal – e que também não podem ser encerrados pela definição de educação informal.

É importante ressaltar que a partir dos anos de 1980, atendendo a necessidades e demandas

sociais principalmente ligadas às populações periféricas, houve um grande aumento de práticas

educacionais não escolares em meio a organizações sociais, culturais, ONG’s, associações e fundações

de caráter privado, estatal e mesmo religioso. A partir dessas experiências e da observação de

práticas concretas, estudos que se situam na área da sociologia da educação vêm contribuindo para

que possamos ver a educação não formal como um campo educacional específico que difere da

educação escolar (formal) e também daquilo que se tem como educação informal. Esse foco sobre

um novo campo educacional vem se consolidando pelo fato de que: “embora essas práticas não

obedeçam a uma série de requisitos formais, passaram a construir diferentes modos de vivenciar,

compreender e sistematizar o processo de ensino-aprendizagem” (GARCIA, 2003).

Conforme Trilla (1996), a educação informal ocorre sem que se tenha a intencionalidade e

a sistematização de uma ação pedagógica. Quando tratamos da educação formal (escolar) e

não formal, podemos pressupor métodos e graus de sistematização de conteúdos e de ações

pedagógicas em ambos os tipos. A distinção observada está na flexibilização dos tempos em relação

aos conteúdos trabalhados e aos espaços em que ocorrem, assim como no foco centralizado na

figura do professor como transmissor dos conhecimentos - ou na ênfase participativa com foco nos

processos de coletivização e construção do conhecimento a partir dos diversos saberes.

Contribuindo para tal entendimento, podemos observar ainda a caracterização dada por

AFONSO:

Por educação formal, entende-se o tipo de educação organizada com uma determinada seqüência e

proporcionada pelas escolas enquanto que a designação educação informal abrange todas as possibilidades

educativas no decurso da vida do indivíduo, construindo um processo permanente e não organizado. Por

último, a educação não-formal embora obedeça também a uma estrutura e a uma organização (distintas

porém das escolares) e possa levar uma certificação (mesmo que não seja esta a sua finalidade), diverge

ainda da educação formal no que respeita a não fixação de tempos e locais e a flexibilidade na adaptação

dos conteúdos de aprendizagem a cada grupo concreto. (AFONSO, 1992, p.86)

Historicamente, segundo Maria da Glória Gohn (1997), até os anos de 1980, a educação não

formal no Brasil esteve ligada a processos de alfabetização de adultos, tendo como base as propostas

de Paulo Freire e outras práticas de movimentos sociais. Assim, em um primeiro momento, podemos

caracterizar dois campos de atuação da educação não formal - o primeiro voltado à alfabetização ou

transmissão de conhecimentos historicamente sistematizados, sendo estas atividades planejadas

para a os sujeitos das ações educativas, com uma estrutura e uma organização distintas das

organizações escolares, abrangendo a área que se convencionou chamar de educação popular

(conforme uso corrente nas décadas de 1970 e 1980) e educação de jovens e adultos nos anos 90;

e o segundo abrangendo a educação gerada dentro do processo de participação social, em ações

coletivas não voltadas para o aprendizado de conteúdos da educação formal.

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Assim, embora sejam diferentes das escolares, as práticas tidas como não formais apresentam um direcionamento e uma metodologia de construção dos saberes, de conteúdos específicos ou de transmissão da memória histórica, formadas a partir de referências culturais diversas e ligadas a contextos concretos e próprios dos grupos dentro dos quais são realizadas. Ou seja, não se baseiam na socialização de pacotes curriculares fechados, mas buscam construir e sistematizar os saberes a partir do conhecimento do contexto sociocultural em que estão imersas.3

Ao concebermos a cultura enquanto modos, formas e processos de atuação do homem na história, esta se torna uma construção em constante transformação e, ao mesmo tempo, continuamente influenciada por valores que se sedimentam em tradições e são transmitidos de geração a geração. Portanto, a educação pode ser abordada enquanto forma de ensino e aprendizagem realizada ao longo da vida dos cidadãos, consistindo o processo de absorção, reelaboração e transformação da cultura existente nos grupos sociais, o que lhe dá ainda uma dimensão política. Conforme nos coloca Maria da Glória Gohn (2001), esse processo ocorre pela leitura, interpretação e assimilação dos fatos, eventos e acontecimentos, atividades realizadas pelos indivíduos de forma isolada ou em contato com grupos e organizações. Para a educação musical, esses processos podem também ser observados em meio a manifestações culturais dentro das quais a música se faz presente, tendo papel gerador da sociabilidade (interações humanas) e aglutinador de pessoas em torno do fazer cultural.

Os processos de musicalização, portanto, não se restringem apenas ao âmbito de instituições destinadas especificamente ao ensino da música, mas envolvem contextos socioculturais mais amplos. A música normalmente está presente em diversas manifestações da cultura popular, envolvendo seus praticantes no fazer musical – seja através dos cantos entoados pela coletividade, seja pelo acompanhamento com instrumentos de percussão, harmônicos e melódicos. No Brasil, existe uma infinidade de manifestações dessa natureza espalhadas por todo o território, incorporando várias formas de expressão da cultura – tais como a dança, a música e a dramatização, podendo envolver elementos sagrados ligados a tradições católicas ou à religiosidade afrobrasileira.

Ao registrar e descrever como se desenvolvem as cheganças, reisados, pastoris e sambas de roda, dentre outras manifestações, Mário de Andrade (1937) evidencia o fato de serem estas tradições culturais transmitidas de geração a geração essencialmente através da oralidade. Por serem formas de organização comunitária pelas quais se transmitem valores e tradições, essas manifestações incorporam processos educativos na medida em que continuam vivas em diversas regiões do país. Nesse sentido, os processos de musicalização intrínsecos a elas ocorrem a partir da prática e da convivência, sendo os conhecimentos musicais transmitidos a partir de uma organização que se diferencia dos processos formais e (ou) escolares.

Essa diferenciação se dá, em princípio, pelo fato de serem criadas situações didáticas em que os saberes são construídos a partir do próprio fazer. Nessas manifestações, há uma inserção do indivíduo no discurso musical – e é através da observação e da prática imitativa ou criativa que o participante se relaciona com a música, aperfeiçoando e, principalmente, aguçando a percepção dos elementos musicais e corporais que constituem a manifestação. O executante, seja qual for o seu domínio com relação ao material musical, ao ser inserido na manifestação, precisa ouvir, interagir e adaptar a sua execução à dos outros integrantes do grupo. Assim, a partir do convívio, o participante passa a assimilar as células rítmicas, frases melódicas ou sequências harmônicas. Nesse processo, ao buscar se integrar ao conjunto rítmico e harmônico,

3 Abordar tais processos não significa legitimá-los como ideais ou perfeitos em termos dos resultados atingidos, nem que possam suplantar a educa-ção formal. O que ressaltamos é que este vem se tornando um campo de possibilidades e de experiências a ser considerado pela diversidade de metodologias possíveis a partir desse campo. Além disso, se fazem necessários estudos pedagógicos sobre a área inclusive enquanto pos-sibilidade de atuação dos educado-res musicais em formação.

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passa a ter uma relação concreta com a música, desenvolvendo a fluência musical. Conforme nos coloca SWANWICK (2003), a fluência e a inserção do educando no discurso musical são princípios fundamentais para que ocorra o aprendizado musical.

Nas manifestações da cultura popular brasileira, em muitos casos, há a presença de lideranças exercendo o papel de condução musical e organização coletiva. Estas se tornam os sujeitos que geram a transmissão ou mesmo a construção e reconstrução da música a ser executada coletivamente. Esses sujeitos detentores de saberes tradicionais se utilizam de métodos que se desenvolvem com o objetivo de transmitir as idéias musicais estruturantes da manifestação. Os cantos entoados em diversas manifestações da cultura popular brasileira, por exemplo, estão baseadas em versos conhecidos ou improvisados por esses sujeitos que, nesse momento, se tornam referência para o grupo e, portanto, exercem o papel de educadores. Normalmente, esses são chamados de mestres ou puxadores.

Ao ouvir os versos entoados pelo mestre, os participantes os repetem mantendo sua métrica e melodia. Nesse caso, a atividade envolve aspectos ligados à memória, percepção musical, reprodução de elementos rítmicos, melódicos e harmônicos, produção de texturas e densidades diversas, além do aprendizado e interpretação dos versos e do conteúdo expressivo da manifestação - fatores de fundamental importância dentro da cultura popular.

No modo de vida urbano e industrializado, tais manifestações perdem espaço frente ao modo de vida urbano e aos meios de comunicação de massa, em que a vivência cultural, segundo KENSKI, “ocorre de forma imaginária e virtual, porém, potencialmente forte a ponto de interferir nas experiências concretas da vida dos indivíduos”(KENSKI, s.d.).

É nesse contexto moderno e urbano que surgem e atuam instituições como as associações democráticas para o desenvolvimento, ONGS e fundações. Embora não tenhamos dados quantitativos para precisar tal informação, em grande parte essas instituições oferecem atividades musicais ou abrigam grupos e manifestações culturais em que a música se faz presente como elemento constitutivo. Muitas delas, por visarem a socialização, a solidariedade e o desenvolvimento social, tendo estruturas pouco hierarquizadas e sem a presença de grades curriculares pré-definidas se comparadas ao sistema escolar formal, essas instituições se caracterizam como espaços de educação não formal, dentro dos quais a educação musical se desenvolve em atividades ligadas à vivência e à prática musical concretas, assim como à valorização da cultura e do discurso musical vivenciados por seu público – possibilitando ainda o desenvolvimento de atividades voltadas à criação e à livre expressão. Com isso, no contexto brasileiro esses espaços passam a desenvolver um papel importante no desenvolvimento de processos de educação musical. Nesse aspecto, essas instituições adquirem um potencial transformador, pois podem retomar, junto às comunidades onde atuam, relações de grupo capazes de gerar a organização comunitária em torno da produção cultural, quebrando a relação passiva de consumo ligada aos meios de comunicação de massa.

Conforme temos apresentado, as práticas pedagógicas não formais podem se diferenciar do que ocorre na escola regular e na escola tradicional de música não por se contraporem a elas, mas por desenvolverem graus diferentes de formalização dos procedimentos didáticos com sistematizações baseadas em códigos culturais próprios – ligados à oralidade, à observação e inserção do aprendiz em meio ao desenvolvimento das manifestações musicais coletivas,

à inserção do participante a partir de seu grau de conhecimento e bagagem musical e ao

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estabelecimento de relações menos hierárquicas, favorecendo a vivência de saberes em nível de troca e igualdade em meio à diversidade. Como costuma ocorrer em grupos manifestantes da cultura musical brasileira, pode haver a presença de lideranças que floresçam a partir das competências comunicativas, organizacionais e de domínio de determinados conteúdos, tornando-se assim referências para o grupo, chegando a assumir muitas vezes o papel de educadores que atuam conforme as necessidades apresentadas em meio ao fazer.

O importante aqui é percebermos que os princípios balizadores da educação musical, construídos e desenvolvidos desde o início do século XX, podem encontrar nessas instituições espaços para novas formas de aplicação e para o desenvolvimento de diversas possibilidades metodológicas de musicalização.

Para a formação desses que estamos chamando de princípios fundamentais da educação musical, estão as práticas pedagógicas e reflexões desenvolvidas a partir do trabalho de diversos músicos e pedagogos musicais. Ao encontrarem consonância com os avanços da psicopedagogia focados no desenvolvimento humano e cognitivo, os músicos e pedagogos, ao longo do século XX, se voltaram à inserção do educando na vivência musical, tendo a experiência concreta e a atividade prática como princípios básicos para a formulação de seus métodos e procedimentos de construção e consolidação dos conceitos e saberes musicais.

Dentro do que hoje entendemos como uma corrente consolidadora dos fundamentos da educação musical, temos músicos e pedagogos musicais tais como Jaques-Dalcroze, Maurice Martenot, Edgar Willems e Carl Orff, que contribuíram para o desenvolvimento de importantes recursos de iniciação musical a partir dos quais se buscou a integração entre corpo e mente, gerando assim o equilíbrio entre percepção e conceituação dos elementos sonoro-musicais. Além disso, esses educadores passaram a dar ênfase à valorização da vivência efetiva dos elementos musicais como forma de consolidação dos saberes e da expressão musicais. Nessa busca, se gerou a constituição de instrumentos didáticos para musicalização infantil, desenvolvidos levando-se em conta as necessidades da criança e as interações entre diferentes formas expressivas e sensoriais. Somado a isso, o incentivo aos processos criativos também passou a figurar como fundamental para a consolidação dos modos de abordagem dos conteúdos musicais em atividades de musicalização. Compositores como Zoltan Kodály influenciaram diversos métodos que levam em conta o uso das tradições populares, ou da música tida como folclórica para o desenvolvimento de atividades lúdico-educativas (danças de roda, brincadeiras, parlendas, canções). Além desses, devemos considerar as ações de Shinichi Suzuki, que, sobre bases psicopedagógicas, realizou contribuições importantes para o ensino coletivo de instrumentos, tendo formulado sua metodologia a partir do ensino do violino para a iniciação musical.

Em suma, temos nas contribuições desses músico-pedagogos a consolidação do que consideramos os princípios básicos da educação musical. Dentre estes estão: a liberdade na manipulação dos materiais sonoro-musicais; a relação direta com os elementos musicais; a atividade como forma de valorização da experiência concreta e perceptiva; o desenvolvimento da percepção como ponto de partida para o acesso aos conceitos musicais. Além disso, o trabalho voltado para a criatividade e liberdade de expressão criadora foram aspectos marcantes para o desenvolvimento dessa corrente pedagógico-musical e dos processos de musicalização num sentido mais amplo, como temos abordado.

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Ligados a uma segunda etapa dos avanços da educação musical, também conhecida como “música experimental na escola”, estão músicos como John Paynter e Murray Schafer, dentre outros que tiveram suas práticas influenciadas pelo estruturalismo filosófico, pelas pesquisas sociológicas e também pelos desenvolvimento tecnológico inserido no campo da composição musical contemporânea. Estes desenvolveram suas práticas pedagógico-musicais baseados nos princípios e fundamentos desenvolvidos pela corrente anteriormente citada; porém buscaram, sob novas bases contextuais, trazer contribuições no sentido da inserção de novos materiais e objetos sonoros como possibilidades expressivas. Além disso, passaram a dar maior enfoque ao “ambiente sonoro” como fator a ser considerado para uma nova educação dos sentidos e da música em meio às sociedades contemporâneas. A criatividade e a liberdade de expressão na construção musical e na formulação de novas formas alternativas de notação se tornaram algumas das principais bases de suas práticas pedagógicas.

No Brasil, temos diversos músicos e pedagogos que, ao longo do tempo, vêm se voltando a atividades pedagógicas e à formulação de métodos, além de contribuírem para a ampla produção de pesquisas na área da educação musical. Podemos citar o movimento das “Oficinas de Música”, que tem na figura de Hans-Joachim Koellreutter o impulso agregador de pesquisadores voltadas ao desenvolvimento de atividades pedagógico-musicais ligadas aos progressos anteriormente citados, porém buscando novas propostas dentro do contexto brasileiro e contemporâneo.

No contexto brasileiro, os estudos e práticas, além de objetivarem avanços para o ensino da música em espaços diversos, também vinham sendo desenvolvidos como propostas de educação musical para a escola regular, com a busca de formulação de um currículo específico para a disciplina de música. Durante o governo populista de Getúlio Vargas, sob a ideologia do Estado Novo – focado no desenvolvimento de um caráter nacional da cultura e perpassando assim a educação – a música foi incluída na escola formal por meio da prática do canto orfeônico. Naquele momento, conforme as leituras empreendidas hoje sobre tal período, a educação musical figurou nas escolas dando ênfase à formação de um caráter cívico e nacional, o que lhe imprimiu um concepção menos formativa e mais ideológica. Mais tarde, com as reformas do ensino de primeiro e segundo graus ocorrida no início da década de 1970, como havíamos ressaltado, o ensino de música deixou de existir de forma autônoma na escola. Isso fez com que os esforços que se voltavam para o desenvolvimento da educação musical na escola se direcionassem para outros ambientes de ensino musical. Este fato contribuiu, em certo grau, para que o ensino formal da música tenha se tornado pouco acessível às classes populares brasileiras.

É importante notar que o percurso traçado por tais correntes pedagógicas e os métodos por elas desenvolvidos ao longo do tempo vêm dando base à constituição de procedimentos formais de educação musical, presentes em espaços voltados ao ensino de música em vários níveis. Porém, no contexto brasileiro, a educação musical têm estado presente em outros espaços, tais como os de educação não formal. Assim, os princípios e fundamentos da educação musical destas correntes apresentam graus diferentes na aplicação do que estamos chamando

de processo efetivo de musicalização.

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ARTIGO

2 poSSIbIlIdAdES dE IntErSECção EntrE AS prátICAS forMAIS E não forMAIS

nA buSCA do EquIlíbrIo pArA o dESEnvolvIMEnto dA EduCAção MuSICAl

A cultura musical brasileira é marcada e reconhecida pela grande riqueza e diversidade

de formas e estilos, além de propiciar uma grande variedade de modos de realização e de

organização do fazer musical coletivo. Tais práticas podem estar ligadas a manifestações

populares tradicionais, muitas vezes remanescentes do universo rural, porém ainda presentes

nos meios urbanos - sendo reconstruídas e transformadas através de associações, organizações

populares ou mesmo grupos musicais específicos. Nesse contexto a música cumpre papel

mediador das relações comunitárias, se tornando um dos componentes marcantes das relações

de sociabilidade e de construção das identidades individuais e coletivas. Essa diversidade de

práticas se apresenta, ainda, em agrupamentos e instituições que têm o fazer musical como

centro de suas atividades, tais como orquestras comunitárias, bandas municipais ou ligadas a

escolas e conservatórios, pequenos grupos musicais e corais, dentre outros.

Em quaisquer das categorias anteriormente delimitadas, há modos significativos de

transmissão de saberes musicais e de experiências de vida a serem observados quando

pensamos em processos de educação musical, no desenvolvimento de metodologias e na

sistematização das ações dirigidas aos processos de ensino e aprendizagem. Esses modos de

transmissão podem ter maior ou menor grau de formalização, normalmente regidos pelas

necessidades de cada prática concreta. Portanto, ao observarmos o contexto amplo em que a

educação musical se insere como campo de atuação do educador, devemos considerar tanto

os aspectos formais e tradicionais do ensino da música quanto as experiências não formais,

considerando-as formadoras de um conjunto de possibilidades no desenvolvimento de novas

metodologias para a educação musical.

Se retomarmos os princípios ligados ao que diversos educadores ao longo da história

formularam como geradores de uma efetiva educação musical, se faz necessário buscar a

intersecção entre os métodos formais e não formais. Assim podemos gerar a riqueza necessária

para que, em nossas ações como educadores musicais, sejamos capazes de encontrar caminhos

válidos de atuação dentro de sociedades complexas, permeadas pelo moderno mas também

pelo tradicional. Com isso, passamos a considerar a importância da escrita e também da

oralidade, assim como da comunicação tecnologicamente mediada, sem deixar de considerar

a necessidade indissolúvel do contato humano. Nesse sentido, podemos observar a existência

de uma temporalidade linear da produção industrial e capitalista que deve ser contrabalançada

pelo tempo ritualístico da música e da sociabilidade por ela gerada, onde passado e presente

podem se encontrar levando a novas possibilidades de construções culturais.

A partir daí percebemos que a educação musical que buscamos desenvolver pode se

dar fundamentalmente em três momentos ou dimensões aqui apresentados distintamente,

apenas como recurso didático. Na verdade, entendemos estes como momentos indissociáveis,

que não devem cumprir uma ordem fixada a priori. Portanto, podemos pensar especificamente

no momento do contato e aquisição de conhecimentos, alcançados pelo educando a partir

da sistematização e transmissão didática de conteúdos musicais. Este momento marca o

processo formal de educação e aquisição de conhecimentos, estando baseado nas relações

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ARTIGO

de ensino/aprendizagem, professor/aluno, mestre/discípulo, percepção/conceituação. Uma

outra dimensão passível de análise seria a da prática musical, em que os conhecimentos são

agregados ao processo de expressão em meio a manifestações simbólicas e estéticas, gerando

o significado necessário à continuidade do fazer musical prazeroso e motivador. Neste

momento, podemos buscar o estabelecimento das relações de sociabilidade dentro das quais

as trocas são possíveis em nível de igualdade de relações e respeito às diversidades. Portanto,

podemos considerar como parte fundamental do processo de educação musical a integração

do educando em meio a um fazer coletivo, dentro do qual os indivíduos podem se perceber

contribuindo para o resultado estético-musical coletivo. Assim se desenvolve o sentido de

pertencimento, propiciando a constituição da identidade coletiva a partir da qual a educação

pode buscar o equilíbrio entre necessidades e anseios individuais e objetivos grupais - gerando

ainda a motivação para uma busca contínua pelo desenvolvimento musical e humano.

Estes momentos associados ainda a um terceiro, o da prática reflexiva como forma de

avaliação do processo de construção dos saberes, pode gerar a consolidação dos processos

de ensino e aprendizagem num caminho que vai da percepção à conceituação. Para o músico,

o educando ou ainda para o educador musical, esse percurso se desenvolve de “forma

espiralada” (HENTSCHKE, 1993, p. 47). As experiências, o contato com o material musical e com

a prática, levam a conceituações possíveis de serem retomadas a partir de novos contatos.

Nesse processo há, em cada momento, diferentes níveis de reflexão e diferentes pontos de

vista. Este é um percurso fundamental no processo de formação enquanto construção dos

saberes musicais. Assim, há um olhar lançado a partir do presente para as experiências vividas

– ao mesmo tempo em que, ao reconhecer a concretude do que foi realizado, se projeta para

o futuro no sentido da construção contínua. Essa relação intrínseca entre o conhecer e o saber,

que se corporifica pela prática, gera o sentido necessário à continuidade do crescimento

musical e humano - foco da educação musical efetiva e motivadora, capaz de enxergar o

homem em sua inteireza.

Conforme nos coloca Gainza (1998), a inserção do educando em práticas musicais efetivas

promove o equilíbrio necessário ao bom desenvolvimento musical, entre a aquisição de

conhecimentos, a recepção da música e a expressão. Assim, a inserção dos educandos em

práticas coletivas, já desde o início de seu aprendizado, tende a gerar um desenvolvimento

musical mais claro e seguro. Os conceitos passam a ser construídos a partir da experiência,

o que alicerça toda a construção dos saberes musicais a serem desenvolvidos ao longo de

uma trajetória musical saudável. Segundo a autora, o aprendizado musical seria a síntese ou o

produto das condutas receptivo-expressivas que envolvem a musicalização, podendo ser essa

síntese gerada pelo contato do educando com possibilidades de práticas musicais coletivas.

Além disso, com a vivência em meio a práticas musicais efetivas, a música ou mesmo a

performance musical passam a ter sentidos claros dentro do processo de educação musical.

Segundo Koellreuter (1997), a música retoma assim seu sentido primordial: o de mediar relações

humanas em diversos níveis. Quando essa prática está associada a procedimentos dialógicos

e de incentivo às trocas entre os membros do grupo em nível de igualdade, se fortalecem

os laços identitários entre eles, assim como entre estes e seus dirigentes e lideranças e entre

participantes do grupo e seus professores ou mestres. Todos passam a ter um foco comum - o de

eDUaRDO cOneGUnDeS De SOUZa, a presença da educação musical em espaços não-formais: um campo de possibilidades.

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ARTIGO

gerar a capacidade de desenvolvimento de um discurso musical fluente, dentro do qual todo o

conhecimento passe a ser aplicado e direcionado ao fazer musical efetivo. Em última instância,

estes laços se estabelecem ainda entre o grupo e seu público quando há uma preocupação em

informar os ouvintes sobre os valores humanos, culturais e estéticos daquilo que está sendo

executado e do próprio processo coletivo. Isso ocorre desde a escolha do repertório à forma

como se dá o contato entre o grupo e seu público.

Portanto, neste tipo de atividade ocorrem diversos níveis de educação, envolvendo desde o

desenvolvimento técnico musical até o desenvolvimento da sociabilidade e do senso estético

do público espectador. Em muitos casos os indivíduos integrantes desse público podem

passar a desenvolver o senso participativo, seja como ouvintes atentos ou como pessoas que

se percebem integrados como produtores de cultura e como sujeitos dos processos históricos

e sociais.

Este tipo de relação entre educação e prática musical leva a um diálogo constante

entre aquilo que se exige de uma boa execução musical e o que, por conseguinte, deve ser

trabalhado para que a performance aconteça enquanto prática social e coletiva capaz de

socializar conteúdos músico-culturais e sociabilizar o homem através da música.

Assim, passamos a entender a performance musical como uma prática que envolve mais do

que a execução musical: engloba a interação humana que se dá desde o processo de ensino/

aprendizagem até a relação do músico com a sua cultura, com seu público e com as gerações

passadas e futuras no sentido da recuperação e transmissão da memória cultural, assim como

na construção dos saberes enquanto prática social reflexiva, crítica e dialógica.

A partir disso, podemos pensar que a educação musical se expande ao reconhecer o seu

papel, indo além da transmissão de conhecimentos e habilidades musicais. Independente

de habitar o espaço formal ou não formal, ela pode formar seres humanos conscientes da

importância da música como saber sensível e possível de ser vivenciado de forma indiscriminada.

Consequentemente, o músico e o educador musical passam a ser considerados como sujeitos

sociais, com um importante papel: o de possibilitar as interações humanas e sociais a partir da

vivência musical, tendo assim a possibilidade de atuar para a expansão do acesso à cultura de

forma rica, igualitária e livre da mera reprodução dos padrões veiculados e consumidos a partir

dos meios de comunicação de massa.

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eDUaRDO cOneGUnDeS De SOUZa, a presença da educação musical em espaços não-formais: um campo de possibilidades.

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4444

ARTIGO

RESUMO

O artigo discute as premissas implícitas tanto

em trabalhos de pesquisa etnográfica da

música quanto no ensino de música modelado

institucionalmente no Ocidente, a partir do

pensamento pedagógico de Paulo Freire.

Propõe, então, com base em experiência de

longa duração desenvolvida no Rio de Janeiro,

alternativas metodológicas de abordagem da

música em ambos os contextos enfocados,

no caminho do reforço à participação ativa

de membros das culturas pesquisadas e de

educandos no processo de construção do

conhecimento.

ABSTRACT

This article discusses the premises implicit

both in the work of ethnographical research

into music and in music teaching that is

institutionally modeled on the West, based

on the teaching philosophy of Paulo Freire.

Grounded in the long term experience carried

out in Rio de Janeiro, it therefore proposes

alternative methodologies for approaching

music within both of the contexts under focus,

as a way of reinforcing the active participation

of representatives from the cultures surveyed

and of students in the knowledge building

process.

PALAVRAS-CHAVE

Educação musical. Etnomusicologia. Práxis

musical. Autonomia.

KEYWORDS

Musical education. Ethnomusicology. Musical

praxis. Autonomy.

dialogicidade e construção do conhecimento: um encontro entre o pensamento de paulo freire e a etnomusicologia1

1 Texto apresentado na mesa redonda “Entre o musical e o social - diferentes perspectivas do ensino de música em projetos especiais”, realizada durante o II Ciclo de Palestras da Associação Amigos do Projeto Guri, realizado em São Paulo/SP em 4 de março de 2009.

Dialogicity and the construction of knowledge: a meeting between the thoughts of Paulo Freire and ethnomusicology.

Universidade Federal do Rio de Janeiro / Doutor em Etnomusicologia

e-mail: [email protected]

SAMUEL M. ARAUJO

ReViSta eSPacO inteRMeDiÁRiO, Sao Paulo, v.i, n.i, p. 44-53, maio, 2010.

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SaMUeL M. aRaUJO, Dialogicidade e construção do conhecimento: um encontro entre o pensamento de Paulo Freire e a etnomusicologia

1 Introdução

De um modo geral, a pesquisa etnomusicológica é concebida pelo senso comum como

o estudo de uma cultura musical estranha à experiência do pesquisador. Sob esse viés, a

compreensão dos fenômenos, conhecimentos, acordos e desavenças que constituem tal

cultura parecerá ao pesquisador tão mais difícil quanto estranhas forem para ele as práticas

observadas, a língua que veicula os conhecimentos pertinentes à cultura e os discursos

em torno dos mesmos. A pesquisa propriamente dita requereria, assim, a observação e

participação do pesquisador, na medida do possível, dentro da cultura a ser pesquisada, assim

como a realização de registros variados da mesma (por meio de caderno de campo, vídeo,

áudio e outros recursos) e a interpretação do material observado e registrado em termos de

uma discussão acadêmica que, muito comumente, tem a forma escrita como principal veículo.

Poderíamos dizer, portanto, que esse tipo de pesquisa assume inicialmente uma postura

bastante despojada de pretensões em relação ao conhecimento estranho e desafiador que

já se encontra construído no universo a ser observado, através de um processo de iniciação

progressiva, até que a aquisição de certa competência cultural, ou a capacidade de operar com

os códigos de conduta “internos às culturas observadas”, permitam um discurso mais reflexivo

acerca das mesmas.

O grau em que esse discurso poderá reivindicar autoridade sobre a cultura observada,

assim como sua excelência de interpretação, dependerá de muitos fatores – entre eles

a legitimação de tal pesquisa no campo de conhecimento em questão, o renome do

pesquisador, as instituições que a tornaram possível ou a quantidade de publicações por ela

gerada. Já a repercussão do trabalho realizado será tão maior quanto o forem o exotismo

da cultura pesquisada na percepção do meio acadêmico que valoriza o racionalismo e a

ciência e, conseqüentemente, o desafio interpretativo enfrentado pelo pesquisador, assim

como o eventual reconhecimento dos pesquisados por “algo bom” que a pesquisa lhes tenha

retornado. Quando, porém, essa interpretação (“conhecimento”) leva à identificação de

alguma forma de distorção, estereotipação ou estigma atribuídos à cultura em estudo, ou,

pior, chega ser contestada publicamente pelos próprios pesquisados, põe-se sob suspeita não

apenas o trabalho de pesquisa responsável por esse tipo de desacordo entre pesquisados e

pesquisadores, mas também toda a área de pesquisa por estes representada.

Por outro lado, ao nos defrontarmos com percepções de senso comum relativas à educação

(incluída aí a musical) que, muitas vezes, estão embutidas em práticas educacionais concretas,

também podemos encontrar semelhante margem de equívoco entre o que se propõe

como caminho à construção do conhecimento, o papel ativo reservado exclusivamente ao

educador e a experiência daqueles que deveriam ser sujeitos desse processo de construção

- os educandos. Tais concepções e práticas foram denominadas “bancárias” por Paulo Freire

(1970), - ou seja, a experiência e universo cognitivo dos educandos seriam reduzido a uma

espécie de estado de latência, “à espera de” um conhecimento pré-formatado, em contextos

socialmente distantes e, muitas vezes, adversos à promoção da autonomia do educando.

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4646

ARTIGO

Desnecessário lembrar aqui os muitos paradoxos dessa “charada”. Podemos citar um exemplo

apenas: a redução relativa de índices de analfabetismo, incrementando os índices do assim

chamado analfabetismo funcional.

Notemos a simetria quase absoluta entre os dois processos cognitivos comentados

brevemente até aqui. No primeiro, dentro da pesquisa etnomusicológica, o conhecimento (uma

cultura musical “estranha”) é dado como preexistente à intervenção de um agente externo, o

pesquisador - que fará, de início, um grande esforço de codificação em termos simultaneamente

inteligíveis às culturas respectivas dos pesquisados (tanto quanto for possível, a chamada

teoria musical nativa) e do pesquisador (a chamada “teoria da música”, quase sempre extraída

ou adaptada da música erudita ocidental), para finalmente ser capaz de decodificar seus

significados em termos inteligíveis tão somente à própria cultura do pesquisador (“a verdadeira

teoria”), já que o pesquisado dificilmente terá acesso ao (ou interesse pelo) produto final da

pesquisa. No segundo caso, da ação educativa a partir de modelos institucionais do Ocidente,

o conhecimento (em nosso caso, “a música”, também definida como uma cultura “estranha”)

já se encontra précodificado em termos inteligíveis à cultura do agente “externo”, o educador

(em geral, no nosso caso específico, música com teor “educacional” avalizada por instâncias

escolares), que procura decodificá-lo em termos inteligíveis aos educandos (supostamente

carentes de “conhecimentos musicais”).

Em ambas as situações, portanto, o senso comum tomaria o agente externo como termo

ativo de uma desejável equação cognitiva: no primeiro caso, entre o conhecimento produzido

pelo pesquisador e o conhecimento que conforma a experiência do pesquisado; no segundo,

entre o conhecimento depositado no educador e o conhecimento a ser depositado no

educando. Também em ambas as situações, essa equação tenderá ao fracasso, como assinalado

tanto por Paulo Freire (1970) quanto por certos antropólogos e etnomusicólogos que tratam

do diálogo intercultural: quanto maior o fosso entre a experiência e poder de vocalização das

diferentes culturas impedidas de real diálogo, tanto maior a negação de um papel mais ativo

ao pesquisado ou ao educando.

Após este longo preâmbulo, colocamos as seguintes questões: o que aconteceria se

pudéssemos vislumbrar outro mundo, em que tanto a pesquisa quanto a ação educativa

reservassem um papel ativo a, respectivamente, pesquisados e educandos [já que “ninguém

educa ninguém”, insiste Paulo Freire (1970) em várias ocasiões]? Poder-se-ia imaginar a

produção de outro tipo de conhecimento, superando relações sociais de sujeição em prol

de relações de construção efetivamente compartilhada, talvez qualitativamente superior

às do modo “tradicional” (no sentido de “tradições disciplinares”) ou “bancário”? Nesse caso,

dissolver-se-ia qualquer distinção entre pesquisa e educação?

Este artigo não pretende, obviamente, responder tais questões de modo categórico, mas

busca tão somente refletir sobre sua pertinência dentro de uma pesquisa2 realizada junto a um

grupo de dez estudantes de escolas de ensino médio da Maré - área do Rio de Janeiro marcada

pela exclusão social e violência – e conduzida por equipe do Laboratório de Etnomusicologia

2 O autor agradece o suporte do CNPq (Edital Universal nº 1 – 2002; Bolsa de Produtividade em Pesquisa 2007-2013; Bolsa de Iniciação Científica 2005-2010), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Bolsas de Iniciação de Cien-tífica, Artística e Cultural 2005-2010), do Centro de Estudos e Ações Solidá-rias da Maré - Rede Memória (2003-2010), da Fundação Carlos Chagas de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Bolsa Cientistas do Nosso Estado 2005-2006; Edital Humanida-des 2009-2010; Bolsas Jovens Talentos de Iniciação Científica Jr. 2008-2010); CENPES - Fundação COPPETEC Bolsas de Convênio Pró-Iniciação Científica 2006-2010).

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SaMUeL M. aRaUJO, Dialogicidade e construção do conhecimento: um encontro entre o pensamento de Paulo Freire e a etnomusicologia

da UFRJ, alunos de pós-graduação em etnomusicologia e de graduação em diferentes áreas de

conhecimento (música, artes visuais, história, ciências sociais, fonoaudiologia, física, biologia,

letras, pedagogia), além do autor e orientador do presente trabalho. Partindo de uma breve

exposição do contexto em que a pesquisa se desenvolve, será examinado uma série de desafios

conceituais e práticos que essa experiência tem colocado aos modos mais usuais de produção

de conhecimento na etnomusicologia, esperando-se abrir uma discussão em torno dos temas

já apontados. Acima de tudo, deseja-se compartilhar algumas perplexidades e assimilar críticas

que possam contribuir para a pesquisa em andamento.

2 ContExto GErAl dA pESquISA

A concepção da pesquisa acima referida surgiu como desdobramento de uma série de

discussões entre professores e alunos da área de etnomusicologia no âmbito da Escola de

Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), na tentativa de assimilar alguns dos

debates cruciais no campo da antropologia. Entre estes, pode-se mencionar as assim chamadas

“crises” da representação e da autoridade etnográfica, assim como o valor e modo de inserção

da voz do “pesquisado” como contribuição ao debate acadêmico. Em conseqüência dessas

discussões, procuramos vislumbrar objetivos e metodologias de pesquisa experimentais que

respondessem aos desafios colocados à desejada “horizontalização”, por assim dizer, do processo

de produção de conhecimento. Estudos de pequena escala, conduzidos inicialmente por

alunos de pós-graduação, resultaram em trabalhos de pesquisa e dissertações que buscavam

combinar estratégias etnográficas tradicionais de observação participante com modelos mais

recentes, alguns dos quais auto-rotulados “dialógicos”, de etnografia. Estes embutiam cuidadosa

negociação de focos e modos de observação, assim como questões de linguagem e tradução,

bem como das formas de difusão das respectivas pesquisas. À medida que tais discussões se

tornaram sólidas e os resultados parciais mais palpáveis e difundidos através de dissertações,

publicações e participações em simpósios, algumas organizações não-governamentais (ONGs)

comunitárias da cidade do Rio de Janeiro procuraram pelo Laboratório de Etnomusicologia da

UFRJ (LE-UFRJ) em busca do estabelecimento de projetos comuns, tendo como ponto de partida

o desejo dessas instituições de trabalhar com a memória local, envolvendo o estabelecimento de

centros de referência e bancos de dados - talvez percebendo essas ações como “resultado” mais

imediatamente identificável dos projetos até então realizados pelo laboratório.

Um aspecto relevante da perspectiva particular aqui apresentada é a ênfase relativamente

recente, dada por ONGs que atuam em áreas marcadas pela violência e pela exclusão, aos assim

chamados “projetos sociais” com foco artístico - incluindo aí o trabalho de educação musical -

geralmente patrocinados por agências e instituições externas à comunidade, públicas e privadas.

Como em outras partes do mundo (IMPEY, 2002; OCHOA GAUTIER, 2002), uma idéia bastante

presente em tais projetos é o uso da arte como alternativa à violência e à exclusão. Tais projetos

artístico-sociais são tipicamente propostos a uma ONG comunitária por iniciativas isoladas

de artistas, ou coletivos artísticos, externos à comunidade (por exemplo, não-residentes em

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ARTIGO

seus limites espaciais), que muitas vezes assumem, eles próprios, o papel de educadores

propriamente ditos. A credibilidade constitui fator capital na captação de recursos para a

viabilização de cada projeto - mas, eventualmente, a projeção social do artista também terá

uma influência muito grande, ou talvez ainda maior que a da própria ONG, sobre o acesso a

determinadas oportunidades de patrocínio ou financiamento.

Os programas ou, termo mais recorrente entre as partes envolvidas, “projetos” artísticos, incluindo

os musicais, possuem focos variados, desde a transmissão de noções de leitura e escrita musicais

à formação de grupos de flauta-doce ou de percussão. Rotineiramente, inexiste integração entre

os mesmos, o que reflete a dificuldade das ONGs em acompanhar, de um modo geral, os diversos

projetos em andamento sob sua tutela. Disso resulta certa desarticulação e, não raro, contradições,

quando não conflitos, entre as várias experiências envolvidas.3

3 ContExto pArtICulAr

A primeira parceria do LE-UFRJ em projetos dessa natureza foi firmada com o Centro de

Estudos e Ações Solidárias da Maré (CEASM),4 ONG criada por moradores de uma das áreas

residenciais do Rio de Janeiro mais estigmatizadas pela equação favela-exclusão-tráfico-

violência - uma representação parcial, mas decerto recorrente como “verdade” em certo

espectro do imaginário carioca e brasileiro, incluindo desde formuladores de políticas públicas

até agentes do aparelho repressivo de Estado, por seu viés conservador e discriminatório.

É importante estabelecer aqui um parêntese para que possamos destacar a enorme ambigüidade

conceitual, notada por Löic Wacquant, no que concerne às categorias desenvolvidas acerca dos

núcleos residenciais urbanos das grandes metrópoles, que congregam majoritariamente os

estratos subalternos da hierarquia social de base capitalista. As “favelas”, no caso brasileiro, seriam

algo definível entre “slum” e “ghetto” no caso norte-americano, encerrando, segundo o sociólogo

francês, os quatro requisitos que elevariam os dois termos em inglês de um plano meramente

descritivo e circunstancial a categorias sociológicas abrangentes: estigma, constrangimento/

repressão (constraint), confinamento espacial e auto-institucionalização (criação de instituições

voltadas para o atendimento de demandas internas) (WACQUANT, 2004). No contexto mundial de

hegemonia neoliberal da década de 1990, a desindustrialização e a conseqüente deterioração de

instituições “tradicionais” (laborais, culturais e outras) dos guetos teriam levado, ainda segundo o

mesmo autor, à hegemonia do tráfico de drogas como instituição nas áreas em questão.

A Maré possui aproximadamente 135 mil habitantes distribuídos em cerca de 16 subáreas

reconhecidas como distintas pelos moradores, envolvendo diferenças sociais, econômicas e

demográficas significativas. As populações respectivas de cada uma variam entre 8 mil e 25

mil habitantes, que derivam de movimentos populacionais social e historicamente diversos -

incluindo desde populações removidas de outras localidades do Rio de Janeiro até oriundos de

processos migratórios de trabalhadores para a área industrial — em sua maioria, nordestinos

— passando até mesmo por movimentos migratórios internacionais, como é o caso dos mais

de mil angolanos, entre estudantes e refugiados de guerra, que lá vivem. Tais referenciais

3 Em seminário acontecido na cidade do Rio de Janeiro/RJ em 2003, o re-presentante de uma importante ONG da cidade manifestou a preocupação da entidade com ao questão da de-sarticulação, uma vez que a organi-zação possuía, à época, mais de 900 projetos realizados simultaneamente. Na ocasião, este tema foi eleito como prioritário para o seminário a ser reali-zado no ano seguinte.

4 Mais informações sobre a histó-ria, demografia e cultura locais em www.ceasm.org.br .

ReViSta eSPacO inteRMeDiÁRiO, Sao Paulo, v.i, n.i, p. 44-53, maio, 2010.

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SaMUeL M. aRaUJO, Dialogicidade e construção do conhecimento: um encontro entre o pensamento de Paulo Freire e a etnomusicologia

apenas sugerem os amplos contornos humanos e culturais da área da Maré, pontuados por

uma dura exposição a violentas incursões policiais, à tibieza e corrupção do poder público e às

lutas sangrentas entre facções do tráfico de drogas em disputa pelo controle de territórios.

Nesse contexto, o CEASM, parceiro institucional do LE-UFRJ, é uma das mais visíveis e reputadas

ONGs comunitárias atuantes na região, dispondo de considerável infraestrutura (dois prédios

localizados na comunidade, além de dependências administrativas bem equipadas, salas de aula

com bom suporte de equipamentos, salas de informática, biblioteca e bancos de dados) e um forte

foco na preparação de jovens para exames vestibulares, visando especialmente as instituições

públicas de ensino. Por meio da continuada interlocução entre a administração da ONG e as

lideranças locais, definiu-se como objetivo dos programas de arte ali realizados a complementação

do ensino preparatório para os vestibulares, desenvolvendo nos alunos, dessa forma, capacidades

complementares que contribuam para sua formação geral.

Após alguns meses de discussões, a colaboração CEASM/LE-UFRJ estruturou-se em torno

da criação de um banco de dados sobre a produção musical na Maré, levando-se em conta a

contribuição dessa atividade na formação global de seus moradores - notadamente os participantes

de projetos culturais em áreas como música, dança, teatro e contação de estórias, entre outros.

4 MúSICA E SoCIAbIlIdAdE nA MAré

Uma versão inicial do projeto foi preparada por uma equipe do LE-UFRJ5 tendo

como principais pontos de partida: a) o retorno positivo, tanto em termos éticos

quanto epistemológicos, de experiências prévias em pequena escala, envolvendo

modos experimentais de etnografia, cujos respectivos focos foram negociados entre os

pesquisadores universitários e membros dos grupos estudados, assim como o envolvimento

destes em vários estágios da pesquisa propriamente dita6; b) em contraste com os muitos

projetos artísticos em andamento, a ênfase nos recursos musicais produzidos ou disponíveis

localmente; c) a considerável experiência acumulada em subcampos da pesquisa acadêmica

qualificados como “aplicados”, “advocatícios” e “participativos” nas ciências humanas,

incluída a etnomusicologia, e a disponibilidade de literatura a eles relacionada; d) o suporte

institucional de agências de fomento e da universidade em meio a um quadro político de

crescente consciência das acachapantes desigualdades sociais, políticas e econômicas

vigentes no país.7

Discussões intensas com representantes da ONG parceira, entre educadores, historiadores

e representantes administrativos, levaram ao desenvolvimento do projeto inicial de um ano

de duração, restrito a duas subáreas da Maré e envolvendo três estágios básicos. O primeiro

deles consistiu de dois encontros semanais, por um período de quatro meses, com um grupo

de vinte estudantes voluntários de escolas de ensino médio residentes na comunidade, e em

sua maioria já participantes de outros projetos, com o objetivo de identificar áreas temáticas

e desenvolver uma base conceitual para a formação do banco de dados sobre a música local.

5 Compreendendo dois dou-Compreendendo dois dou- dois dou-tores, um mestre egresso da UFRJ e três alunos de pós-gra-duação.

6 Por exemplo, como colabo-exemplo, como colabo-, como colabo-radores em registros sonoros, tradutores de variações lingüís-ticas locais e outras atividades.

7 Não discutimos aqui, por ex-discutimos aqui, por ex- aqui, por ex-trapolar os limites do trabalho, em que medida se encaminha a efetiva solução ou apenas se tergiversa a respeito do tema, mas parece evidente que, frus-tradas ou não, as expectativas manifestadas publicamente são no sentido de sua superação.

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Para tal, utilizou-se uma estratégia moldada em torno do pensamento pedagógico de Paulo

Freire (1970, 1996), em que os pesquisadores universitários atuassem tão somente como

mediadores do debate entre os pesquisadores “nativos” sobre categorias e objetos relevantes

para a pesquisa musical.

O segundo estágio, em andamento e sem previsão de término ou resultados concretos no

momento8, envolve a documentação propriamente dita de práticas musicais e depoimentos

em suportes de áudio e imagem - preparação para o que seria a terceira e última etapa do

projeto, igualmente com prazos abertos: a construção do banco de dados de acesso público,

localizado em uma das dependências do CEASM na Maré9, e o desenvolvimento de programas

de difusão de seu conteúdo entre a comunidade e o público em geral.

5 olhAr loCAl dEfInIndo tEMAS pArA uMA pESquISA dA MAré

Um grande número de questões potenciais emergiu durante as discussões para a realização

da primeira etapa do projeto. Examinaremos aqui apenas algumas entre as mais recorrentes.

As diferenças entre as experiências musicais individuais dentro do próprio grupo

de residentes locais foram imediatamente percebidas e discutidas como traço presente

na experiência comunitária como um todo. Após algumas discussões que serviram ao

amadurecimento da questão e superação, ao menos parcial, de certo individualismo na

apreciação da experiência alheia, a noção de paisagem sonora (SHAFFER, 1977a, 1997b)

foi introduzida pelos pesquisadores universitários e reconhecida, de um modo geral,

como pertinente à questão em análise. Na paisagem sonora da Maré, foram identificados

os gêneros pagode, forró, rock, reggae, gospel (música popular evangélica) e funk

(incluído aí o gênero “proibidão”, ligado à apologia do tráfico), além da música ouvida

por segmentos minoritários, como o pop africano ouvido por angolanos. Constatou-

se também muito rapidamente que cada um desses gêneros pode tanto ser a escolha

exclusiva de um indivíduo como fazer parte de um espectro mais amplo de opções em seu

cardápio auditivo - o mesmo podendo ser dito sobre as fontes de experiência musical dos

residentes da comunidade, que envolvem uma ampla gama de recursos midiáticos, além

de eventos públicos e privados em espaços fechados ou abertos, próximos ou distantes

da Maré (incluindo outros bairros ou regiões da cidade); um leque, enfim, não muito

diferente do disponível à maioria dos habitantes do Rio de Janeiro. À medida que tais

discussões foram aprofundadas, as distinções entre gostos musicais foram reconhecidas

como relacionadas a fatores como idade, educação formal, afiliação religiosa, período de

residência na Maré e proximidade relativa com o tráfico de drogas (o que não significa

necessariamente envolvimento direto).

É relevante notar, também, que a revelação e análise iniciais dessas diferenças, com se

poderia esperar, desse margem a extensos períodos de silêncio significativo (ver FREIRE, 1970)

durante os primeiros encontros. Pouco a pouco, no entanto, determinadas estratégias de

8 Retornando ano após ano aos mes-Retornando ano após ano aos mes- ano após ano aos mes-mos locais de prática musical pesqui-sados, constatamos em muitos deles a mudança de objetivos, públicos e repertórios, entre outros aspectos.

9 O CEASM foi recentemente contem-plado com um Ponto de Cultura, pro-grama de auxílio à criação de centros de fomento à cultura do Ministério da Cultura, tendo apresentado o projeto Museu da Maré, que prevê, entre ou-tras ações, o abrigo e continuidade do banco de dados, em gestação, so-bre a produção musical local.

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Page 43: Revista Espaço Intermediário

51

ARTIGO

SaMUeL M. aRaUJO, Dialogicidade e construção do conhecimento: um encontro entre o pensamento de Paulo Freire e a etnomusicologia

interação propostas pelos pesquisadores universitários10 abriram a cada um dos participantes

a possibilidade de apreciação da forma e conteúdo dos estilos musicais preferidos pelos

demais estudantes.

Outro tema significativo surgido nas primeiras discussões foi o impacto da violência sobre

a vida social em geral e, particularmente, sobre a vida musical. Violência, nas discussões realiza-

das, aparece quase sempre relacionada ao tráfico de drogas (às “guerras” por território) e/ou à

ação policial. É importante registrar que os exemplos de violência abordados nos debates foram

freqüentemente associados aos sons significativos de suas variadas manifestações, indo as refer-

ências específicas do volume do alto-falante de uma entidade de religiosa, na tentativa de “abafar”

o ruído amedrontador da luta armada, até rajadas de metralhadoras em meio ao baile que segue.

Essa percepção torna particularmente relevante a ênfase na categoria “som”, sobrepondo-se às

noções mais elásticas e abrangentes de “música”, ao se tratar do mapeamento do contínuo entre

a criação seletiva e a experiência cotidiana mediadas por esse mesmo som. Nesse sentido, vale

retomar a noção de paisagem sonora de Schaffer(1977b), ressaltando o caráter descritivo de uma

realidade dada, a partir da qual se pensam novas formas de intervenção ou composição. Na alter-

nativa de se trabalhar apenas com a descrição da paisagem sonora, tem se mostrado relevante

pensar o contínuo que move a experiência humana entre sons perceptíveis e sons significativos

- estes últimos marcados por situações mais ou menos ritualizadas, ou, em outras palavras, as for-

mas de ação sobre as paisagens sonoras e as condições de sua produção (ver ARAUJO, 1992).

Não obstante a violência física em estado latente e o terror que se impõe em dados momen-

tos, a violência tem aparecido mais freqüentemente nos discursos dos pesquisadores da Maré

sob sua forma mais sub-reptícia e eficazmente perversa: como violência simbólica (BOURDIEU,

1997). Reconhecida apenas ocasionalmente e, ainda assim, em estágio muito recente das dis-

cussões, a violência simbólica aparece muitas vezes sob a forma de depreciação da produção

local — ou até mesmo de incredulidade diante do fato de que esta ideia possa fazer sentido

— pelos próprios residentes, talvez como resultado de anos de políticas voltadas ao que lhes

“falta”. A adoção de uma perspectiva dialógica e não diretiva, com ênfase em questões que

sejam relevantes aos sujeitos do diálogo, sempre encontra uma grande resistência interna dos

próprios (ver FREIRE, 1970). No entanto, à medida que são superados os mecanismos de vio-

lência simbólica que lhes impõem visões de mundo conservadoras e a eles próprios contrárias,

não apenas é modificada a atitude em relação à construção do conhecimento, dissolvendo

contradições inexistentes entre o plano particular e o geral, mas continuamente reinventada a

agenda de pesquisa de temáticas significativas.

Nesse ponto, embora não se possa assegurar a continuidade ou a autossustentabilidade

(redução do papel da universidade em paralelo ao incremento das condições locais) da ex-

periência em curso, é importante lembrar que muitos dos programas artísticos, ao depend-

erem de conteúdo definido exclusivamente por um responsável não-residente, são interrom-

10 Por exemplo, mostrando videodo-exemplo, mostrando videodo-, mostrando videodo-cumentários registrando diferentes práticas musicais na Maré ou através da realização de entrevistas levantan-do as histórias de vida, com ênfase na experiência musical, dos próprios pesquisadores residentes.

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5252

ARTIGO

pidos quando este interrompe sua participação ou sua colaboração com a ONG responsável,

deixando freqüentemente um senso de vácuo ou frustração na comunidade.

A violência simbólica têm aparecido também sob a forma de conceitos acerca de práticas locais

concebidos a partir de visões externas socialmente legitimadas, tais como o discurso acadêmico

ou de agências de Estado, que “congelam”, por assim dizer, as práticas sociais, falhando em re-

conhecer - ou, de acordo com Bourdieu (1997), “reconhecendo” erroneamente - estratégias práti-

cas dinâmicas ou apresentando-as como categorias relativamente “fechadas” que não fazem o

menor sentido no mundo real. Isso traz sérias implicações ao trabalho, uma vez que as discussões

entre os pesquisadores residentes na Maré têm revelado usos particulares locais de categorias

aparentemente estabelecidas com diferentes sentidos no meio acadêmico, lado a lado ao uso de

categorias de amplo uso local que permanecem absolutamente excluídas dos estudos acadêmi-

cos sobre a exclusão e a violência. Conseqüentemente, não parece inoportuno especular sobre

a relativa inocuidade de muitos rótulos e abordagens centradas em categorias aparentemente

estabelecidas em torno de características exclusivamente sonoras (samba, forró, funk e outras)

que permeiam a literatura sobre as culturas musicais populares no Brasil, vis-à-vis a extremamente

significativa, embora amplamente ignorada, práxis - conceito que integra o sonoro a outras di-

mensões da vida e que move as lutas diárias pela sobrevivência física e emocional.

6 dIAloGICIdAdE E ConStrução dE ConhECIMEnto SobrE A MúSICA

Com base na experiência em andamento, aqui discutida, levanta-se, à guisa de provocação

ao debate, três questões potenciais:

1. Se, como proposto por Paulo Freire (1996), a construção de conhecimento só é concre-

tamente possível quando se parte de uma investigação temática que interrogue a reali-

dade imediatamente apreensível, talvez tenhamos que repensar o próprio tema deste

trabalho, pesquisa e educação musical, e destacar a alta relevância sociocultural, pelo

menos no contexto aqui discutido, de um contínuo de significados partindo de sons

relativamente isolados a formas sonoras mais ritualizadas tais como a fala, a música e

outros tipos de práticas e eventos sonoramente estruturados.

2. As condições de emergência e predominância da violência física (por exemplo, a estag-

nação econômica levando ao tráfico de drogas como alternativa de “sobrevivência”) po-

dem ser mais conjunturais e efêmeras que aquelas associadas à violência simbólica, que

provavelmente não desapareceria num mundo de menor desequilíbrio sócioeconômico.

3. Assumir uma postura dialógica requer ultrapassar a falsa dicotomia entre pesquisa e

ação educativa, mantendo no horizonte — contra todas as evidências do mercado, da

globalização, etc., etc. — a utopia de busca de sentido na agência simbólica sob a he-

gemonia aparentemente irresistível da forma mercadoria.

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53SaMUeL M. aRaUJO, Dialogicidade e construção do conhecimento: um encontro entre o pensamento de Paulo Freire e a etnomusicologia

Referências

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ARTIGO

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RESUMO

Este trabalho traz uma proposta de educação

musical que tem por objetivo a qualidade

musical e a emancipação social. Tal proposta

tem como centralidade a diversidade musical

brasileira e como metodologia a prática

musical, as rodas de conversa e o apoio

social. Sua ênfase pedagógico-musical está

nas atividades de performance, criatividade

e percepção, sugerindo que seu mote seja

construído por educadores e educandos.

Como resultado, espera-se que surjam

grupos musicais de excelência artística com

identidades próprias ligadas à cultura brasileira,

trazendo novos repertórios e formações

instrumentais diversas e inovadoras.

ABSTRACT

This work offers a proposal for music

education aimed at musical quality and

social emancipation. The centrality of this

proposal is in Brazilian musical diversity and

its methodology lies in the practice of music,

circles of conversation and social support. Its

teaching-musical emphasis is on the activities

of performance, creativity and perception,

suggesting that its motto be constructed by

educators and students. As a result, it is hoped

that artistically excellent musical groups with

their own identities, tied in to the Brazilian

culture, will appear, bringing new repertoires

and diverse and innovative instrumental

formations.

PALAVRAS-CHAVE

Educação musical. Instrumentos musicais.

Ensino coletivo.

KEYWORDS

Musical education. Musical instruments.

Collective teaching.

JOEL LUIS BARBOSA

Escola de Música da UFBA/DMA e-mail: [email protected]

uma proposta de educação musical social e brasileira através da prática de instrumentos musicais em“orquestras brasileiras”1

1 Texto apresentado durante o I Semi-nário Projeto Guri: Ação sociocultural e Educação musical, realizado entre 28 de novembro e 1º de dezembro de 2007 em São Paulo/SP. Inclui atualiza-ções realizadas pelo autor.

A proposal for Social and Brazilian Musical Education through the Practice of Musical Instruments in “Brazilian Orchestras”.

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55

ARTIGO

JOeL LUiS BaRBOSa, Uma proposta de educação musical social e brasileira através da prática de instrumentos musicais em“orquestras brasileiras”

1 Introdução

O que entendemos por ensinar ou aprender um instrumento musical? O processo de ensino-

aprendizagem de um instrumento é um processo de educação musical. Mas que educação

musical queremos para os alunos de instrumentos? Uma educação musical que promova impactos

positivos na qualidade de sua vida pessoal, social, política e profissional? Existe alguma educação

musical que, por si só, promova tais impactos? Se sim, como é ela? Como pode a música, enquanto

fenômeno sonoro, nos transformar? Os valores históricos, sociais e psicológicos de uma prática

musical desempenham algum papel neste processo de transformação? Se quisermos que o aluno

obtenha autoconhecimento e autocrescimento, assim como a formação de grupos musicais mais

ricos artisticamente falando, talvez uma educação musical que trabalhe os valores identitários e a

criatividade por meio da diversidade musical brasileira, fazendo uso de rodas de conversas e apoio

social aos educandos, promova esses resultados. Precisamos de uma educação musical brasileira

e social - brasileira por ter sua centralidade nos aspectos identitários musicais, culturais, sociais e

históricos do Brasil, e social por buscar libertar os educandos dos fatores históricos, econômicos e

educativos que os oprimem.

2 pArtE SoCIAl

Índices da Fundação Getulio Vargas (REBIDIA, 2001) dizem que 50 milhões de brasileiros

vivem abaixo da linha de indigência (29% da população), enquanto a Organização das Nações

Unidas (BRASIL, 2006) estima que este número deverá subir para 55 milhões em 2020. No

ranking do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), o Brasil ocupa a 75a posição, estando

entre os países cujo índice é considerado elevado. Contudo, uma pesquisa feita por Marcelo

Paixão (MILANEZ, 2001), da ONG Fase, quando o Brasil ocupava posição inferior a tais países,

afirma que o país cairia da 74a para a 108a posição se fossem analisadas apenas as condições

de vida dos afrodescendentes. Se somente a parcela de pessoas brancas fosse contabilizada,

por sua vez o país ocuparia a 48ª posição - ou seja, o Brasil “dos brancos” seria quase duas

vezes e meia mais rico do que o “dos negros”. De acordo com critérios do Instituto Brasileiro

de Geografia e Estatística (IBGE), a parcela negra da população é formada pela soma de pretos

e pardos, o que representa 45% do total populacional. Entre eles, estão 64% dos pobres e

69% dos indigentes do país (MILANEZ, 2001; NASSIF, [ca. 2007]). Certamente este quadro não

mudou significativamente nos últimos anos.

A herança social de alunos de música de projetos comunitários tem relação com os índices

apresentados. Muitos desses alunos olham ao seu redor e vêem avós, pais e familiares que

conseguiram pouco em termos de educação, profissão e renda para garantir uma qualidade

de vida digna a seus familiares. Acrescente-se a isso o discurso adotado pela mídia, durante

décadas, de que o pobre e o negro dificilmente conseguem evoluir na escala social. Desde a

época da colonização, estes dois grupos foram inferiorizados e marginalizados pelas políticas

sociais, econômicas e educativas (FANON, 2002).

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ARTIGO

Considerando a situação social do país, acredito que um projeto de educação musical com

fins sociais deve ter uma proposta idealista, no sentido de promover a libertação da opressão

social e histórica em que os educandos se encontram. Ela deve ter como ideal o crescimento

do educando em termos pessoais, sociais, artísticos e profissionais. Com isso, indaga-se: será

que a música pode cooperar neste sentido?

O educador musical John Drummond e o filósofo da educação musical David Elliott

defendem que a educação musical pode ajudar o educando em seu processo de auto-

conhecimento e autocrescimento. Drummond declara em seu artigo na International Society

for Music Education (ISME) Newsletter que:

Ela [a música] nos coloca em contato com nossa origem, nossa herança ou heranças culturais, e

não há base melhor que esta para se construir nossa visão de futuro. Ela também desenvolve nosso

entendimento estético - nossa compreensão além do mundano. A música articula nossa visão e

como a Bíblia coloca isso: ‘onde não há visão o povo perece’ (DRUMMOND, 1998, p.5, tradução

nossa).

Elliott (1995, p. 14, tradução nossa) afirma “que o fazer música e o ouvir música são formas

únicas de pensar e fontes únicas dos mais importantes tipos de conhecimentos que seres

humanos podem obter.” Ele declara também que:

Os valores primários da educação musical são os valores primários da música: autocrescimento,

autoconhecimento, prazer musical, gozo e a felicidade que vem destes – em síntese, é um certo modo

musical de viver. Educação musical é uma fonte única e principal de diversos valores fundamentais

da vida (ELLIOTT, 1995, p.308, tradução nossa).

2.1 descolonização e roda de conversa

Apesar das declarações destes educadores, cabe a seguinte pergunta: em vista da situação

social, econômica e educacional em que se encontram os educandos de baixa renda que participam

de projetos sociais, como pode se dar o crescimento integral (individual e social) deles?

Acredito que para um crescimento significativo desses jovens é necessário que eles

passem por um processo de “descolonização”. Dan Baron, em seu livro Alfabetização cultural: a

luta íntima por uma nova humanidade, define descolonização como: “O processo para entender

os efeitos psicossociais e psicoemocionais do projeto intelectual do colonialismo e como eles

se manifestam em nossas relações e organizações sociais para convertê-las em uma prática de

respeito intercultural e igualdade multicultural” (BARON, 2004, p. 420).

Assim sendo, a prática musical pode ser propícia para desencadear o processo de

descolonização do educando, pois é uma atividade que traz consigo valores históricos, culturais,

psicológicos e artísticos de um povo e de sua história. Consequentemente, por meio da prática

musical aliada à reflexão, ele pode compreender tais valores, ampliando o entendimento a

respeito das realidades do passado e do presente, de quem é o outro e, principalmente, de

quem é ele mesmo em sua sociedade. Para tal, esses valores da prática musical precisariam

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ser objetos de diálogo na aula de música, em formato de “rodas de conversa” que sigam a

metodologia dos “círculos de cultura” de Paulo Freire (1967). O pesquisador e educador Luiz

Nascimento, referindo-se aos círculos de cultura, diz que: “Essa forma de organização facilitava

o desenvolvimento do trabalho, além de favorecer uma maior aproximação entre os próprios

educandos, e entre estes e o educador. […] Evidenciava-se, assim, a força da linguagem como

processo de ‘inter-ação’ humana” (NASCIMENTO, 2005, p.44).

Feitosa (2005, p.32) acrescenta que o método de Freire “agrega a leitura do mundo a da

palavra e, por isso, auxilia o educando a ler o contexto em que vive, utilizando seus saberes

para transformá-lo.” Não ocorre o mesmo na educação musical? Não precisamos que nossos

alunos entendam a cultura da prática musical que realizam? Não necessitamos que eles leiam

e transformem o mundo em que vivem? Acrescentemos a isso o que o próprio Freire diz em

seu livro Pedagogia do Oprimido:

A existência, porque humana, não pode ser muda, silenciosa, nem tampouco pode nutrir-se de

falsas palavras, mas de palavras verdadeiras, com que os homens transformam o mundo. Existir,

humanamente, é pronunciar o mundo, é modificá-lo. O mundo pronunciado, por sua vez, se volta

problematizado aos sujeitos pronunciantes, a exigir deles novo pronunciar (FREIRE, 1987, p.78).

Quando o grupo dialoga entre si, tem maior chance de construir sua identidade artística

e resolver problemas metodológicos e de relacionamento, podendo encontrar seu caminho

para o processo de descolonização. Seus integrantes perguntam na roda de conversa: “Qual

é a minha origem e história? Quem sou eu hoje? Quem sou eu neste grupo? Quem somos

nós como grupo? O que estou/estamos fazendo neste curso? O que espero/esperamos

dele? Por que participo/participamos dele? Qual a importância dele para minha vida e para

minha comunidade? Quais os valores históricos e culturais desta prática musical para nossa

comunidade local e sociedade?” Um grupo de indivíduos que constroem seus relacionamentos

para juntos entenderem e terem consciência dos motivos e objetivos, pessoais e grupais, que

os fazem estar juntos, desenvolvendo suas atividades, pode melhor garantir a construção, a

qualidade e a consolidação do produto artístico.

Uma abordagem semelhante é utilizada por Maria Eugenia Milet na área de teatro. Ela

aplica sua metodologia dentro do CRIA (Centro de Referencia Integral de Adolescentes),

ONG de Salvador que tem obtido grande sucesso em suas atividades, recebendo premiações

nacionais e internacionais. Ali, esta abordagem é chamada de “quem sou – quem somos nós”.

Milet a define como sendo:

um método de avaliação e exercício criativo-educativo, desenvolvido durante todo o processo

– expressão escrita, oral, musical e cênica – que desafia cada jovem-ator a exercitar a expressão

poético-histórica de sua própria pessoa, através da revelação de seu momento presente. O desafio

consiste, principalmente, em cada pessoa encontrar coragem de encarar o próprio medo diante do

espaço vazio do eu desconhecido (MILET, 2002, p.82).

JOeL LUiS BaRBOSa, Uma proposta de educação musical social e brasileira através da prática de instrumentos musicais em“orquestras brasileiras”

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ARTIGO

2.2 Apoio social

O processo de emancipação social pode ser mais eficiente e extensivo se a concepção do pro-

jeto considerar a teoria de Fato social total formulada por Marcel Mauss. Ele define “o social como

real” e acrescenta que o social “não é real se não for integrado em sistema” (MAUSS, 2003, p. 23).

Maus explica que, para interpretar um fato social como total, é necessário “observar a conduta das

pessoas como um todo e não dividida em faculdades”, conectando “o físico, o fisiológico, o psíquico

e os aspectos sociais” do indivíduo (MAUSS, 2003, p. 23). Isso significa que os educandos precisam

ser considerados em sua situação social como um todo. Muitos deles deixam os projetos sociais

por necessidades financeiras, enfraquecendo seu processo de emancipação social. Sendo assim,

bolsas de monitoria e apoio para preparação ao vestibular seriam ajudas sociais significativas, prin-

cipalmente para aqueles que desejam ser músicos profissionais.

Em suma, o processo de emancipação ou libertação do educando acontece em sua mente.

Isto ocorre porque os indivíduos estão juntos, constituindo um grupo. Seria impossível para

um educando construir sozinho esse processo, sem as atividades e relacionamentos sociais do

grupo. Como escreveu Paulo Freire: “Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho:

homens se libertam em comunhão”. (FREIRE, 1987, p. 52).

3 pArtE MuSICAl

3.1 Colonização e educação musical

A colonização, que afetou também a educação musical no Brasil, ainda mantém uma forte

presença. É importante entender esta presença no momento de tomar decisões relativas à

concepção de projetos de educação musical. O conceito estético da música surgiu a partir das

idéias de Baumgarten, em 1735, e se consolidou na área musical por meio do trabalho de um

pequeno grupo de pensadores europeus brancos e do sexo masculino (ELLIOTT, 1995, p. 22-

26). Muitos músicos europeus que chegaram ao Brasil no fim do século XVIII e durante o século

XIX propagaram este conceito em suas aulas e ensinamentos. Os conservatórios brasileiros

criados em meados do século XIX passaram também a ensinar de acordo com o conceito

europeu.

Na segunda metade do século XX, aparece o conceito de educação musical como educação

estética (REIMER, 1970), que depois é absorvido no Brasil. Ainda hoje, este conceito está

presente na prática e ensino da música de concerto no país. De maneira geral, ele entende

a música como uma coleção de obras a serem apreciadas pelos seus elementos estéticos

expressivos: melodia, ritmo, harmonia, timbre, dinâmica, textura e forma (ELLIOTT, 1995, p.

28). Partindo deste conceito, muitas tradições musicais brasileiras, tais como as músicas de

trabalho, de roda de samba, frevo, maracatu, carimbó e outras, eram e ainda são consideradas

“inferiores” à música erudita européia por serem composicionalmente simples. A política de

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ARTIGO

colonização tratou o indígena e o africano, assim como suas culturas, como inferiores. Dessa

forma, o conceito estético não permite ao educando entender e valorizar tradições musicais de

nossa cultura como elas realmente são - práticas humanas que trazem relações entre padrões

musicais e valores de natureza religiosa, social, moral, cultural, histórica, política, psicossocial e

psicológica. Esta outra maneira de conceber a música está ligada à filosofia praxial da educação

musical, conceituada por David Elliot em seu livro Music matters: a new philosophy of music

education (1995, p. 33).

Manter o ensino de instrumentos focado no conceito estético é útil, quase que exclusivamente,

para formar instrumentistas e apreciadores da música de concerto. Não incluir ou não optar

pelo conceito praxial da educação musical é manter a mente de muitos educandos colonizada,

perdendo-se a oportunidade de, por meio da música, permitir que eles conheçam a riqueza de sua

cultura, entendam amplamente sua história e sociedade e compreendam mais profundamente

a si próprios e às pessoas com quem compartilham este chão chamado Brasil. Limitar-se ao

conceito estético é, por exemplo, aprender a interpretar Mozart e Brahms na clarineta, buscando

conhecer os pensamentos europeus do Classicismo e Romantismo e a sociedade de então, e

perder a oportunidade de, por meio da clarineta, entender valores históricos, sociais, ambientais

e humanos do Brasil presentes nos choros de Pixinguinha, nos frevos de Lourival Oliveira e nos

carimbós de Verequete – conhecimentos por meio dos quais os alunos poderiam se conhecer

melhor e atuar com mais qualidade como membros de um grupo musical e da sociedade.

Como se pode notar, no Brasil não existem apenas os conceitos europeus de música ou

de educação musical que vieram com o colonizador. Existiam e existem outros conceitos

presentes no modo de pensar, fazer e ensinar a música de tradição afrobrasileira, indígena, rural

e popular urbana. A música afrobrasileira, por exemplo, contém texturas musicais e estruturas

rítmicas complexas não encontradas na música européia, como exposto por Nketia (1963,

1974) e outros etnomusicólogos. Possui concepções musicais únicas que podem enriquecer

muito a formação musical do educando. Os valores da música de candomblé, ampliando o

exemplo, estão nas relações de seus padrões rítmicos e melódicos com os elementos religiosos,

psicológicos, psicossociais e de natureza humana expressos nas vestimentas e danças de seus

praticantes durante os rituais (CARDOSO, 2006).

A diversidade brasileira é desvalorizada, por um lado, pelos conceitos herdados da

colonização e, por outro, pela ganância e pressão capitalista da indústria cultural que tende a

homogeneizar o cenário musical, movida por interesses financeiros. Salles (2005), comentando

o livro Diversidade cultural: globalização e culturas locais: dimensões, efeitos e perspectivas,

organizado por Leonardo Brant, apresenta “uma nova dimensão sobre cultura ao oferecer

um panorama amplo do tema e buscar compreender a importância da diversidade como

pressuposto básico para a existência da própria vida”. A homogeneização que advém da mídia

atrapalha os processos criativos dos grupos musicais que buscam identidades próprias para

dar mais colorido aos tons da aquarela brasileira.

JOeL LUiS BaRBOSa, Uma proposta de educação musical social e brasileira através da prática de instrumentos musicais em“orquestras brasileiras”

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6060

ARTIGO

3.2 proposta de educação musical com orquestras brasileiras

A visibilidade de projetos sociomusicais deve vir da excelência dos grupos musicais e de suas

apresentações. Quando se fala de grupo musical de excelência, é importante definir a identidade

e perfil artístico-musical desejados para ele. Neste sentido, uma educação musical que tenha

como centralidade a diversidade musical brasileira e enfatize a criatividade poderá proporcionar

grupos musicais de excelência artística com identidades próprias, ligadas à cultura brasileira por

seus repertórios e formações instrumentais tradicionais, diversas e/ou inovadoras.

Considerando isso e a preocupação social exposta na primeira parte deste texto, a filosofia

praxial da educação musical de David Elliott pode muito bem nos orientar. Ele explica que

o termo praxial de sua filosofia “enfatiza que a música deve ser entendida em relação aos

significados e valores evidenciados na realidade do fazer e ouvir música de contextos culturais

específicos” (ELLIOT, 1995, p. 14, tradução nossa). Afirma ainda que todos os estudantes de

música devem ser ensinados do mesmo modo básico: executar, improvisar, compor, fazer

arranjos e memorizar a música, preferivelmente, pela percepção (Idem). Em função disso,

apresento uma proposta para um programa de educação musical com orquestras brasileiras:

Tabela – Quadro Curricular

Etapa Curso DisciplinaCarga

horáriaOrquestras brasileiras Duração

primeira

Curso el-

ementar em

instrumentos

musicais

Instrumento

de percussão120 horas

Escola de samba, mara-

catu, fanfarra, congada,

etc..

3 anos

Instrumento

harmônico120 horas

Grupos de carimbo,

cururu, siriri, roda de

samba, etc..

Instrumento

melódico120 horas

Banda de música,

orquestras de cordas

pinçadas e de cordas

friccionadas, banda de

pífanos, etc..

Segunda

Curso avan-

çado em

instrumentos

musicais

Instrumento

melódico,

harmônico ou

de percussão

360 horas

Orquestra sinfônica,

banda sinfônica, or-

questra de frevo, grupo

de bossa nova, regional

de choro, etc..

3 anos

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ARTIGO

O quadro anterior apresenta o resumo de uma proposta de educação por meio de

instrumentos musicais, formada por duas etapas - dois cursos e três disciplinas. As disciplinas da

primeira etapa são simultâneas. Já as atividades musicais ocorrem em grupos ligados às tradições

musicais brasileiras. Os instrumentos do curso são também aqueles pertencentes a elas. O foco do

repertório abordado é a música brasileira, embora inclua também músicas de outras culturas. As

aulas, por sua vez, são coletivas, abrangendo atividades transversais que incluem: executar, cantar,

ouvir, improvisar, compor, fazer arranjos, tocar “de ouvido” e memorizar.

Além dos grupos pertencentes à cultura brasileira, outros grupos podem ser organizados

a partir de nossas tradições musicais, incluindo ou não gêneros como hip hop, rap e/ou música

eletrônica.

Outra atividade pedagógica também incluída no curso é a roda de conversa mencionada

anteriormente. É importante o contato direto dos educandos com os grupos originais e mestres

das tradições musicais praticadas, organizado principalmente nos ambientes de origem destas

tradições musicais.

O Curso elementar em instrumentos musicais é formado por três disciplinas. Na disciplina

de instrumentos de percussão, o aluno pode participar de um ou mais grupos, entre eles

fanfarra, escola de samba, grupos de jongo, congada e outros, além de cantar as melodias,

quando houver. No treinamento em instrumentos harmônicos, o aluno canta e toca, por

exemplo, banjo em um grupo de carimbó, cavaquinho em uma roda de samba, viola de

coxo em um grupo de cururu e/ou sanfona em um trio de forró. A disciplina de instrumentos

melódicos inclui instrumentos de sopro, cordas friccionadas, cordas dedilhadas ou teclado,

sendo executados como melódicos e não como harmônicos. O aluno inicia-se, dessa forma,

em aulas coletivas. Depois poderá, por exemplo, tocar trompete em uma banda com repertório

tradicional (dobrados, polacas, marchas e outras), saxofone em uma orquestra de frevo, pífano

em uma banda de pífanos, rabeca em grupos de fandango, moçambique e/ou folia-de-reis ou

guitarra em um grupo de bossa nova.

As disciplinas do curso elementar ocorrem simultaneamente. O aluno pode, por exemplo,

tocar tamborim em uma escola de samba ou alfaia em um grupo de maracatu, enquanto

aprende os primeiros acordes do cavaquinho ou os rudimentos da clarineta em aulas coletivas

de instrumentos de cordas e de banda, respectivamente.

No Curso avançado em instrumentos musicais, ou segunda etapa, o aluno se concentra (se

especializa) em um instrumento, participando de grupos musicais que trabalham repertórios

mais complexos que os trabalhados na etapa anterior.

3.3 orquestras brasileiras

O que quero dizer com “orquestras brasileiras”? Digo no plural, orquestras brasileiras, porque

a diversidade musical do Brasil é tamanha que são muitas as possibilidades de formações

instrumentais que se enquadram no conceito que defino como: grupos musicais, de formações

JOeL LUiS BaRBOSa, Uma proposta de educação musical social e brasileira através da prática de instrumentos musicais em“orquestras brasileiras”

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ARTIGO

instrumentais já existentes ou inventadas, que trazem características da diversidade musical

brasileira como sua razão de ser. Dessa forma, penso em conjuntos musicais que traduzem o

som do Brasil. Um som que expressa as cores, sentimentos, paisagens, imagens, movimentos,

experiências, festas, dores, natureza, religiosidade, alegrias e esperança do povo miscigenado

e irmanado que vive nesta terra rica e bela. Um som-Brasil.

Um som-Brasil? Mas que som é este? É o conjunto único, singular e próprio de sonoridades

de nossa gente e de nossa terra. Sonoridades metropolitanas, urbanas, da periferia, rurais,

ribeirinhas, da floresta, da serra, litorâneas, do frio, do calor, da umidade, da chuva e da seca.

São sons que vêm das festas santas, civis e profanas; das procissões, desfiles, cortejos e danças;

do trabalho, do civismo e da brincadeira. São canções da criança, do adulto, do idoso, do índio,

da negra, do branco, da mulata, do cafuzo e da morena, presentes nas rodas de pata-choca, de

ciranda, de verso, de toré, de candomblé, de capoeira, de samba e de choro, com instrumentos

e danças. Estas são músicas que não se ouve e não se “vê” em outros lugares.

No Brasil, há música durante o ano todo. Do fim de dezembro até seis de janeiro, dia de Reis,

o Brasil louva o menino Jesus em casa, após abrir as portas para os foliões dos reisados vadiarem

porta adentro, indicando que é o tempo para se desmontar o presépio. Depois a Bahia canta na

rua ao Senhor do Bonfim e em fevereiro é dia de festa no mar. No calor de fevereiro o país sai

feliz para o carnaval com sambas, marchas, frevos, maracatus e caboclinhos. O povo brasileiro,

principalmente o mineiro, encerra contrito a quaresma na semana santa, em abril, com cânticos,

loas, bandas e orquestras nas missas e procissões, sobre coloridos tapetes de rua, mantendo

tradições medievais como o Ofício de Trevas. Cinqüenta dias depois, aproximadamente, vêm

os festeiros do divino e as caixeiras de Alcântara comemorando o milagre do pentecostes com

a descida do Espírito Santo. No “friozinho” de junho, os trios nordestinos começam a esquentar

o povo nas festas de São João. As quadrilhas borbulham por todos os cantos e os bois do

Maranhão se reúnem em grande celebração. Como se não bastasse, neste mesmo período

começam as marujadas e os tambores rufam, anunciando o início do ano litúrgico de religiões

afrobrasileiras, com muitas celebrações, músicas e danças. Nos dias dois de julho na Bahia e

sete de setembro em todo o país, crianças, jovens e adultos desfilam de verde-amarelo sob o

céu-azul anil com bandas e fanfarras comemorando a Independência. Os fervorosos romeiros

cantam benditos o ano inteiro nas festas santas, como na devoção ao Senhor Bom Jesus da

Lapa no Rio São Francisco; além dos cânticos no Círio de Nazaré e no caminho ao santuário

nacional de Nossa Senhora Aparecida, mãe divina, padroeira do país, em outubro. Dezembro

inicia-se com os autos pastoris e lapinhas, adorações ao Menino-Deus, e termina com o reisado

onde começamos, formando o ciclo “melodioso” brasileiro.

Mas que som brasileiro é este? É o toque da moda de viola que traz a simplicidade e

ingenuidade da vida caipira no interior. É a voz do cururueiro e do repentista no desafio. É a

batida da viola de coxo que traz o movimento colorido dos dançarinos do cururu, do siriri e do

rasqueado matogrossense. É o rufar das caixeiras da festa do Divino em Alcântara. É a matraca

da semana santa em Minas e da lamentação das almas na Bahia. É o som dos tantos bois-

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bumbás que brincam de norte a sul. É a sonoridade rural das músicas de trabalho da paneleira,

das carpideiras, dos batedores de pilão, do moinho e do carro de boi. É a marujada e a festa

do divino sobre o rio. É a voz infantil e pura que canta do “bosque solidão” e da canoa que vira.

É a suavidade da cantiga do bicho papão na voz da mamãe querida. É a cantiga de saudade

que vem da chalana “riscando o remanso do Rio Paraguai” e da “moreninha linda do meu bem

querer”. É a batida de mãos do quebrador de coco e o sapateado da catira e do fandango. É o

som da banda de pífaros. É o som da orquestra indígena com suas clarinetas, flautas, apitos,

buzinas, maracás, tambores e guizos, instrumentos feitos com bambu, osso, madeira, chifre,

cabaça, cerâmica e sementes da floresta. É a sonoridade lúgubre e rouca da flauta do Xingu.

É o canto dos pássaros. É o grupo de carimbó com a sonoridade “rasgada” no contagiante

improviso de clarineta e com a batida frenética do banjo artesanal, que evocam as paisagens

do litoral paraense. São a caixa e o macaco do marabaixo de Macapá. É o bater das espadas do

maculelê. É o agogô no afoxé e o arco e flecha no caboclinho. É o som dos mestres da rabeca.

É a orquestra do auto do cavalo marinho com seus traços africano, indígena e holandês. É o

ritmo envolvente do atabaque do tambor de crioula, do tambor de mina e do candomblé que

leva ao transe. É a batida da alfaia do maracatu rural e de baque virado com o brilho multicor

da nobreza de seu rei e rainha. É o trombone debochado na gafieira. É o regional com seu

bandolim seresteiro no choro. É a fanfarra no desfile, a viola na toada e a zabumba da congada.

É a sanfona do trio nordestino no arrasta-pé e forró com baião, coco e xote, e a gaita-ponto no

vaneirão, chamamé, milonga, rancheira e chimarrita. É o tambor do menino do “Pelô”. São o

ronco da cuíca e a marcação do surdo que trazem a imagem do samba do morro carioca. É a

suavidade da orquestra de pau e corda do frevo-de-bloco e o som efervescente e preciso dos

instrumentos de sopro da orquestra de frevo no eclodir do carnaval de Recife. É o sincopado

malandro do cavaquinho chamando a bateria para iniciar a maior festa de rua do planeta. É

o apito da escola de samba no êxtase do carnaval com suas cores, alegrias, suores, brilhos,

movimentos, gingas, belezas e sensualidades próprias de um povo - do povo brasileiro.

Quantos repertórios! Quantos ritmos! Quantos instrumentos! Quantos músicos! Quantas

cores! Quantas imagens! Quantos sentimentos! Quanta exuberância! Quantas magias! Quantas

Orquestras Brasileiras! São pluralidades de uma singularidade chamada BRASIL!

Instrumentos europeus e grupos instrumentais de cordas pinçadas, de pau e corda, de sopro

com percussão e big bands estão espalhados pelo mundo todo. Chegaram ao Brasil através dos

europeus e da mídia. Aqui se abrasileiraram. Ao se constituírem dentro da cultura nacional,

passaram a ter um modo de expressão particular, com formação instrumental enriquecida,

repertório único e linguagem musical própria. Ganharam instrumentos indígenas e africanos

e se tornaram bandas com seus dobrados, polacas, marchas e maxixes, big bands com frevos

e sambas, regionais com choros e valsas, conjuntos de pau e corda e grupos de acordeão com

seus gêneros nordestinos, nortistas e sulistas. Eles se abrasileiraram porque estiveram imersos

na cultura miscigenada das classes populares. Seus músicos ousaram interpretar o repertório

internacional de uma maneira própria. Timbre, dinâmica, articulação, prosódia, ritmo, síncopas,

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acentuações e conduções melódicas foram executados com a beleza e profundidade de nossa

expressividade. O choro, o frevo, o maxixe e o dobrado nasceram de maneiras particulares

(“chorosa”, “efervescente” e sincopada) de se tocar o repertório europeu de mazurcas, polcas,

schottiches e marchas.

O que dizer de nossa orquestra sinfônica? Que sonoridades orquestrais únicas foram

criadas por nossos compositores? Que Brasil belo e intenso se ouve no Uirapuru, no Trenzinho

Caipira, na Floresta do Amazonas e nas Bachianas Brasileiras de Villa-Lobos? Uma orquestra

sinfônica com som de Brasil!

4 ConCluSão

Talvez as orquestras brasileiras diferenciem-se de outras:

a) por se movimentarem corporalmente de maneira livre, solta e flexível no palco, com

coloridos e elegâncias brasileiras, como é nossa música e nossa gente;

b) por utilizarem instrumentos de nossa terra;

c) por buscarem sonoridade diferente dos instrumentos internacionais;

d) por terem uma interpretação singular das músicas estrangeiras; e

e) por terem repertórios próprios que expressem a nossa linguagem musical e a exuberân-

cia do país.

São orquestras de músicos que têm a tradição cultural brasileira impressa e expressa no

corpo e no “sangue”. Ou seja, elas têm a ingenuidade da criança, a simplicidade do caipira, a

ginga do jogador de futebol, o vôo do capoeirista, o balanço do sambista, o charme da porta

bandeira, o mistério da mãe de santo, a devoção da rezadeira, o colorido dos bois e dos cordões

de pássaros, o brilho do maracatu, a energia da fanfarra, a tristeza de um samba, a dor do

bandolim, o furor da “furiosa” no coreto, a sofisticação da bossa nova, o frenesi dos atabaques e

a destreza e efervescência do frevo. Elas são elegantes e arrebatadoras como nossa diversidade

cultural. São orquestras sui generis. São Orquestras Brasileiras. Será que vale a pena incluí-las

nos programas de educação musical de nosso país?

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ARTIGO

RESUMO

O presente texto, de natureza teórica, busca realizar uma discussão sobre o desenvolvimento infantil, segundo a Perspectiva Sócio-Histórica de análise e compreensão do desenvolvimento e psiquismo humano - sendo essa corrente representada pelos autores L. S. Vigotski, A. Leontiev e A. R. Luria. Segundo tal perspectiva, o desenvolvimento do ser humano é condicionado pela relação por ele estabelecida com a realidade, através da qual se concretizam os processos de mediação, apropriação e objetivação, fundando dessa forma o psiquismo humano e orientando o desenvolvimento a atingir níveis mais elevados de especialização. Esta realidade, para muitas crianças e adolescentes, está relacionada à sua inserção em projetos socioculturais que se mostram, segundo a teoria adotada, como importante ferramenta para o desenvolvimento do psiquismo, bem como para impulsionar a emersão de outros estágios de desenvolvimento.

ABSTRACT

This text, in its theoretical nature, aims to promote discussion on child development, according to the Social-Historical Perspective of the analysis and understanding of the human psyche, with this school of thought being represented by the authors L.S.Vigotski, A.Leontiev and A.R.Luria. According to this perspective, the personal human development depends on the relationship the individual establishes with the reality through which they concretize the processes of mediation, appropriation and objectification, thus creating a basis for the human psyche and guiding development to achieve higher levels of specialization. This is a reality that for many children and adolescents is related to their insertion in the Projeto Guri, which, through application of the adopted theory, has proven to be an important tool for the development of the psyche and also for providing impetus for emersion in other stages of development.

PALAVRAS-CHAVE

Desenvolvimento. Desenvolvimento Infantil. Perspectiva Sócio-Histórica. Projetos socioculturais.

KEYWORDS

Development. Child Development. Social Historical Perspective.

DANIELA EMILENA SANTIAGO

Coordenadora de Polo do Projeto Guri de Quatá -SP, Regional de Marília-SP; Assistente Social da Prefeitura

Municipal de Quatá-SP; Professora do Curso de Serviço Social da Universidade Paulista (UNIP) de Assis; Assistente

Social graduada pela Universidade Estadual de Londrina (UEL); Especialista em Violência Doméstica contra Criança

e Adolescente pela Universidade de São Paulo (USP) e Mestre em Psicologia pela Universidade Estadual Julio de

Mesquita Filho (UNESP). e-mail: [email protected]

o desenvolvimento infantil para a perspectiva sócio-histórica

SOBRE O ARTIGO

The Dalcroze method: perspectives for application in choir singing

Submetido em:

12 / 02 / 2010

Aprovado em:

23 / 04 / 2010

DanieLa eMiLena SantiaGO, O Desenvolvimento infantil para a perspectiva sócio-histórica

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ARTIGO

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1 Introdução

Esse texto foi elaborado com a finalidade de aprofundar a discussão teórica sobre o

desenvolvimento infantil. O conceito de desenvolvimento infantil aqui retratado recorre à

Perspectiva Sócio-Histórica de compreensão e análise do desenvolvimento e do psiquismo

humano e infantil retratada por autores como L. S. Vigotski, A. R. Luria e A. Leontiev1, psicólogos

russos que, a partir da década de 1970, iniciaram seus escritos buscando teorias críticas para

orientar a compreensão sobre o ser humano. Contrapondo-se sobre muitos aspectos das

teorias de compreensão do psiquismo reinantes até o período em questão, os autores buscam

o subsídio crítico junto às teorias marxistas e, partindo desse pressuposto, reelaboram uma

forma totalmente distinta de compreensão do psiquismo e do desenvolvimento humano.

Note-se que, nesse texto, será realizada menção apenas aos autores anteriormente

citados, mas é preciso pontuar que há outros que adotam o mesmo referencial e que não

serão aqui abordados – já que isso exigiria a elaboração de um documento mais específico,

comprometendo a confecção deste trabalho nos moldes adotados. Portanto, estão excluídos

dessas reflexões autores importantes que também representam essa corrente, como Elkonin e

Davidov, dentre outros. Cumpre-nos, nesse sentido, informar ainda que algumas considerações

com recorrência a autores contemporâneos de tal teoria também serão feitas. Nesse sentido,

foram adotados os autores Newton Duarte (1993, 2001, 2004), Sueli Terezinha Ferreira Martins

(2007), Ana M. Bock (2004) e Wanda Maria Junqueira Aguiar (2001), que mais se aproximam

da teoria do estudo em questão. Esses autores têm a característica de voltar o olhar para o

desenvolvimento infantil e para o desenvolvimento do processo de aprendizagem.

Dessa forma, o texto será iniciado com algumas considerações sobre o desenvolvimento

do ser humano, buscando descrever como esse processo ocorre - e trabalhando, nesse sentido,

conceitos como a mediação, a apropriação e a objetivação. Em seguida, será dedicado espaço

específico para as discussões sobre o desenvolvimento infantil, sendo enfatizado nesse

aspecto o desenvolvimento e a subjetividade constituídas pela criança durante os processos

de mediação, apropriação e objetivação.

Espera-se, com esse trabalho, colaborar para a socialização de conceitos diferenciados

sobre desenvolvimento infantil como os que são defendidos pelos autores supracitados, e

que tais conceitos possam auxiliar todos aqueles que possuem relação direta com crianças -

sobretudo os que desenvolvem atuação pedagógica e social junto a esse segmento.

2 dESEnvolvIMEnto do SEr huMAno

2.1 Conceitos iniciais sobre desenvolvimento: atividade, objetivação e apropriação

Para compreender o desenvolvimento humano dentro da perspectiva de estudo adotada,

é primordial observar o conceito de atividade, já que ele é fundamental para o entendimento

dos processos de objetivação e apropriação a que nos referimos.

1 Dá-se hoje ênfase à Psicologia Social, que seria uma Psicologia que passa a considerar a influência da realidade social no desenvolvimento das pes-soas. A Psicologia Sócio-Histórica, defendida por Vigotski e seus colabo-radores, é um das expressões da Psi-cologia Social - embora não a única.

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ARTIGO

A atividade ou ação é desempenhada pelo ser humano cada vez que ele pretende satisfazer

uma necessidade. A necessidade, por sua vez, é algo inerente a todos os seres humanos - por

exemplo, quando nascemos, apresentamos necessidades de alimentação e com o tempo essas

necessidades vão sendo alteradas. O que fazemos frente a essas necessidades é desempenhar

ações visando satisfazê-las. Durante essas ações, o homem estabelece contato com o mundo

que o cerca e, por isso, a atividade colabora no sentido da objetivação e apropriação humana.

É através desse processo de contato com a realidade, em decorrência de desempenhar uma

atividade, que o homem consegue se apropriar do conhecimento produzido pela humanidade.

À medida que o homem consegue pensar sobre a realidade que o cerca, se dá a apropriação

(LURIA, 1991a). Por extensão, quando o homem se apropria da realidade do mundo, ele

também se objetiva. Nessa relação estabelecida com o mundo, tanto este é modificado quanto

o homem se modifica.

Ao agir sobre o mundo exterior o modificam; com ele se modificam também a si mesmos. Por isso

o que os homens são está determinado por sua atividade, a qual está condicionada pelo nível já

alcançado no desenvolvimento de seus meios e formas de organização (LEONTIEV, 1978a, p. 21).

De forma que a sociedade e a realidade nas quais está inserido o ser humano traz

importantes implicações para o seu processo de objetivação e apropriação. Tudo que irá

alimentar o cérebro humano é trazido de sua realidade. Bock (2004) ressalta que o ser humano

possui poucos sentidos inatos, sendo que os sentidos que motivam as ações são, via de regra,

apreendidos de acordo com a realidade vivenciada pelo ser humano.

A apreensão desses conceitos acontece sempre de uma maneira mediada, intermediada

pelas pessoas e pelos objetos. Para compreender melhor esse aspecto, estaremos trabalhando

a seguir o conceito de mediação.

2.2 desenvolvimento e mediação

Por meio da relação estabelecida entre a objetivação e a apropriação, ocorre o chamado

processo de “mediação”. Para Duarte (1993), “[...] o processo de formação do indivíduo é o

reconhecimento da indispensável mediação, realizada por outros indivíduos, entre a pessoa

que realiza o processo de apropriação, e a significação social da objetivação a ser apropriada”

(p. 46). Essa mediação se dá, para Leontiev (1978a), por meio das relações estabelecidas pelo

ser humano com os objetos que o cercam, assim como pelo contato com outros sujeitos.

É dessa forma, por exemplo, que a criança pequena logo aprende quem é o responsável por

ela, quem são seus pais, os irmãos ou os avós e qual a função de cada pessoa em relação a ela.

É da mesma maneira, também, que aprende qual a função de seu professor, de seu educador

e dos outros profissionais que atuam no Polo. Esse é um processo contínuo que também é

vivenciado pelo adolescente, e que irá orientá-los em relação às ações que ele pode e deve

desempenhar. Portanto esses limites devem, desde sempre, estar bem claros na consciência

do adolescente - e muito mais claros para o adulto com quem será estabelecida essa relação.

DanieLa eMiLena SantiaGO, O Desenvolvimento infantil para a perspectiva sócio-histórica

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7070

ARTIGO

Leontiev (1978a) também coloca que, nesse contexto, não só as relações sociais são

importantes como também os objetos que auxiliam na elaboração de conceitos – a criança

pequena, por exemplo, apreende o significado de uma bola por meio também do contato com

esse objeto. Analogamente, é importante para a criança ou para o adolescente integrado em

instituições socioculturais o contato com os instrumentos musicais. Só por meio desse contato

eles conseguirão apreender o significado do objeto em toda sua plenitude. Ora, não adianta

apenas falar sobre um pandeiro. A criança e o adolescente precisam do contato direto e prático

para compreender amplamente como funciona o instrumento e que tipo de som pode ser

extraído dele. Todas essas informações são importantes no sentido de alimentar o cérebro da

criança e do adolescente, impulsionando seu desenvolvimento. Quanto mais aprende, mas o

ser humano se desenvolve.

Por isso, todas as relações estabelecidas pela criança são importantes - desde aquelas

estabelecidas no núcleo familiar, na escola, até as estabelecidas em projetos sócio-culturais

com outras crianças, educadores e coordenadores. Essas relações irão mediar informações tanto

para a criança quanto para o adolescente, não se restringindo apenas à aprendizagem musical,

mas podendo e devendo também transmitir outros valores à criança e ao adolescente.

Duarte (2001) nos coloca que o processo de mediação é, por excelência, um processo

educativo. Por isso, segundo o autor, todas as interações estabelecidas são importantes - o que,

segundo ele, deve ser considerado em todos os estágios de desenvolvimento. Antes, o autor

faz a ressalva da responsabilidade de educadores, sobretudo professores, no sentido de sua

importância para o desenvolvimento de crianças e adolescentes. Sua análise cabe perfeitamente

para projetos sócio-culturais, a fim de que todos os profissionais que estabelecem relação com

as crianças e com os adolescentes percebam a relevância de sua mediação e, portanto, de

colaboração em seu desenvolvimento.

Dessa forma, é através desse processo ativo que combina a objetivação, a apropriação e a

mediação, que o psiquismo vai sendo construído. Segundo Leontiev (1978b), por meio dele

o conhecimento genérico, que fora construído social e historicamente, é apreendido pelos

seres humanos. Trata-se de um conhecimento que se origina na praxis, que advém dela e que

forma assim a consciência - ou, em outras palavras, “[...] a consciência do homem depende

do seu modo de vida humano, da sua existência” (LEONTIEV, 1978b, p. 92). O conhecimento

produzido por várias gerações e acessível ao homem em sua realidade cotidiana transmitirá as

informações de que será alimentada a sua subjetividade.

A criança, observando o que fora arrolado acima, vai-se apropriando do conhecimento

produzido pelo gênero humano e, com isso, adentra a sociedade na qual está inserida. Assim,

cada vez que desempenha uma atividade visando ter uma necessidade atendida, ela vai

tomando contato com o mundo circundante. Vai-se, nesse sentido, objetivando através de suas

relações estabelecidas e se apropriando do conhecimento produzido pelo gênero humano.

Aguiar (2001), partindo desse princípio, coloca ainda que o processo de formação da

subjetividade e, por conseguinte, da consciência, é um processo social, pois acontece por

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meio da interação social; é ativo porque provém do desempenho das atividades, e é também

histórico, pois tem grande influência nele o estágio de desenvolvimento histórico-social por

que passa a sociedade. A autora coloca ainda que esse processo vem associado pela formação

do pensamento, pelo desempenho de ações e pela constituição dos sentimentos ou “estados

de espírito”, conforme também observa Leontiev (1978a).

Assim, podemos concluir que a subjetividade, o psiquismo e o desenvolvimento de uma

criança indiana, por exemplo, será totalmente diferente do psiquismo de uma criança brasileira.

Da mesma maneira será diferenciado o psiquismo ou o desenvolvimento de uma criança que

tem acesso à música, à cultura, ao esporte e ao lazer, já que o cérebro se alimenta da realidade

concreta proporcionada a ela. Da mesma forma, a criança nunca inserida em um projeto sócio-

cultural não terá a mesma subjetividade daquela que o freqüenta2.

No item seguinte, voltaremos nossa atenção ao estudo do desenvolvimento infantil,

observando como o desenvolvimento da criança acontece, quais funções são especializadas

e como esse processo se desenvolve de forma a atingir níveis cada vez mais elevados de

desenvolvimento. A compreensão do processo que acontece com a criança permite também

compreender o desenvolvimento durante a adolescência, pois, segundo a perspectiva de estudo

adotada, o desenvolvimento do ser humano é um constante devir que não se esgota nunca.

3 dESEnvolvIMEnto InfAntIl

3.1 Atividades principais ou dominantes

Como já salientado, o desenvolvimento do ser humano provém da realidade concreta que irá,

por sua vez, condicionar o desenvolvimento do psiquismo. Em relação à infância especificamente,

Leontiev (1978b, 1988) elaborou o conceito compreendido como “atividade principal” ou

“atividade dominante”, aquela que concretizará substancialmente o psiquismo da criança - ou a

mais influente nesse sentido. Segundo ele, a atividade principal está totalmente ligada à situação

concreta, à realidade concreta que a criança vivencia durante o seu desenvolvimento. Dessa forma,

as mudanças ocorridas na realidade ao seu redor têm reflexos fundamentais em sua atividade. Com

as alterações da realidade vivenciada pela criança, suas relações sociais também são modificadas

significativamente, o que traz também condicionantes à sua atividade principal:

A atividade principal é concebida como resultante das necessidades das condições concretas de

vida da criança, em seus diversos períodos de desenvolvimento, e de sua conseqüente relação

estabelecida com o mundo, incluído o manuseio dos objetos e as relações com outros seres

humanos (LEONTIEV, 1988, p. 82).

Ou seja, durante seu desenvolvimento, a criança irá se deparar com uma série de

necessidades. Quando entra na escola precisa dominar os desenhos, depois a escrita, depois

a escrita correta. Isso acontece porque a criança vai crescendo e, nesse processo, novas

necessidades são postas. Por isso, quando sua realidade muda, é gerada a demanda para

2 O ideal seria que todo ser humano tivesse acesso a artes, música e in-formações afins por meio da escola, livros, família. Entretanto, sabemos que as condições de acesso das pes-soas são diferenciadas e, por isso, grande parcela da população só tem acesso a um conhecimento específi-co como a música por meio de pro-jetos sócio-culturais instalados no território onde residem.

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ARTIGO

outras atividades que vêm a se tornar as principais para ela durante cada estágio específico

de desenvolvimento.

A cada estágio de desenvolvimento, corresponde um determinado tipo de atividade

principal. Leontiev (1988) é enfático ao afirmar que isso decorre da realidade da criança,

tendo ou não ligação com sua idade. Para ele, é incorreto estabelecer expectativas rígidas de

desenvolvimento em decorrência de determinada idade, mas há que se considerar sua vivência

no sentido de definir esse desenvolvimento. Assim, a criança pequena utiliza, sobretudo, o

brinquedo como forma de conhecimento e interação com o mundo. Já a criança pré-escolar

irá se basear na mediação do professor para a construção do conhecimento.

Assim sendo, a atividade principal é compreendida por Leontiev (1988) como aquela

em que há a emersão de outros tipos de atividade, lembrando que, por meio dela, há uma

diferenciação entre todas. Isso porque há uma mudança nas necessidades da criança,

demandando outras atividades e gerando novas necessidades cognitivas – que farão com que

surjam outras atividades aparecerão que irão se constituir em atividades principais. Há, dessa

maneira, uma diferenciação das atividades, no sentido de que cada necessidade gera um tipo

de ação na criança.

Leontiev (1988) pontua ainda que, durante a realização da atividade principal, os processos

psíquicos da criança vão sendo reorganizados e reconstruídos. Isso porque, com o surgimento

de novas necessidades e atividades, o contato da criança com o mundo provoca alterações

em seu psiquismo, em sua forma de compreender o mundo, de se objetivar e se apropriar

dele. Colabora, desse modo, na formação da personalidade da criança. Esses conhecimentos,

resultantes das necessidades da criança, vão sendo apreendidos por ela e vêm a se constituir em

material importante de sua consciência sobre si mesma e sobre os outros (LEONTIEV,1988).

Essas mudanças da atividade principal, além de provocarem alterações no psiquismo da

criança e a definição de sua personalidade, colaboram ainda para uma especialização com

referência às operações que ela desempenha. O domínio da escrita e da linguagem podem ser

compreendidos nesse sentido. Note-se que a criança pequena, quando começa a dominar a

escrita, em geral faz garatujos na tentativa de imitar a escrita dos adultos. A criança pequena,

na verdade, não precisa saber escrever. Quando essa demanda surgir, aprenderá formas

diferenciadas e mais elaboradas de escrita.

Durante essas mudanças, ocorre ainda uma especialização das funções psicofisiológicas da

criança, à medida que essas operações se alteram. Leontiev (1988) atenta para uma apuração

dos órgãos do sentido por parte da criança, que atingirá níveis cada vez mais elevados de

desenvolvimento. Sempre que novas tarefas e exigências são colocadas à criança, ela busca

desempenhá-las e isso a conduz a novos níveis de desenvolvimento.

Por isso, sempre que se deseja que uma criança ou mesmo um adolescente ascenda de

um nível de desenvolvimento para outro, é preciso que lhe seja colocada uma nova atividade.

Se hoje a criança ou o adolescente consegue executar a música “Atirei o Pau no Gato” - que

pode ser considerada, em termos de aprendizagem, uma música simples - amanhã conseguirá

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executar, por exemplo, a música “Falsa Baiana”, mais complexa, e assim sucessivamente.

Entretanto, a ascensão do conhecimento e a conseqüente ampliação da capacidade de

execução de tarefas só pode ser alcançada se essa necessidade for apresentada à criança.

Portanto, a responsabilidade de todos os profissionais envolvidos com a educação musical é

grande, já que, por meio de um trabalho integrado, devem visar não apenas a aprendizagem,

mas também sua ampliação – que, com toda certeza, exercerá influência no desenvolvimento

dos alunos.

A ascensão de um estágio de desenvolvimento para outro nos leva aos conceitos de

desenvolvimento proximal e potencial, que veremos a seguir, dada a importância desses

fenômenos durante o processo de desenvolvimento do ser humano.

3.2 Zona de desenvolvimento: proximal e potencial

Vigotski (1997) elabora o conceito de desenvolvimento potencial e desenvolvimento proximal,

que têm total relação com o que foi abordado acima. O autor nos diz que o desenvolvimento

proximal corresponde a tarefas que a criança consegue resolver sozinha, enquanto o

desenvolvimento potencial corresponde a tarefas que a criança desempenha com o auxílio

do adulto, mas que a preparam para que, no futuro, ela os desenvolva de maneira autônoma.

Por isso, segundo Vigotski, (1997a) a criança precisa da mediação de terceiros para que possa

atingir outros níveis de desenvolvimento. Na verdade a criança, e mesmo o adolescente,

sempre precisarão de um adulto que medie sua ascensão a outros níveis de conhecimento.

É também por meio da atividade que a criança consegue atribuir sentidos e significação

aos fenômenos com os quais estabeleceu contato. A significação seria, segundo Leontiev

(1978b), uma generalização sobre a realidade. Está composta por uma série de informações

que a criança abstrai do mundo que a cerca e com o qual tem contato desde o nascimento.

A significação colabora no sentido de proporcionar à criança a apreensão do conhecimento

produzido pela humanidade ou, melhor dizendo,

“[...] a significação é entrada na minha consciência (mais ou menos plenamente e sob todos os seus

aspectos), do reflexo generalizado da realidade elaborado pela humanidade e fixado sob forma

de conceitos, de um saber mesmo ou de um saber-fazer (modo de ação generalizado,norma de

comportamento, etc.)” (LEONTIEV, 1978b, p. 96).

Já o sentido possui uma relação muito estreita com a significação. É, no entanto, pessoal -

de modo que cada significação abstraída pela criança possuirá para ela um sentido individual.

Portanto, “trata-se aqui da conscientização, isto é, do sentido individual que, para a criança,

toma um dado fenômeno, e não do conhecimento que ela tem deste fenômeno” (LEONTIEV,

1978b, p. 302). Esses sentidos podem ser diferenciados, dependendo da realidade concreta na

qual a criança está inserida. São também transmitidos para a criança por meio da mediação

que tanto o adulto como os objetos desempenham. A mediação faz com que os processos

inatos da criança se tornem processos psíquicos. E ela se forma essencialmente através da

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ARTIGO

comunicação, que converte tais processos em processos intrapsicológicos (LEONTIEV, 1978b).

E é por isso que, durante a inserção da criança ou do adolescente em atividades educativo-

musicais, são trabalhados conceitos além da aprendizagem musical - às vezes diretamente,

por meio da realização das atividades de eixo transversal, e às vezes indiretamente, apenas por

meio da percepção da criança ou do adolescente. Nesse sentido, a criança ou o adolescente

constrói conhecimento quando percebe um educador comprometido ou equipes de apoio

que desempenham suas atividades com compromisso, de forma integrada; e aprende, constrói

conhecimento também quando percebe o oposto.

Essa aprendizagem se dá por meio da Mediação que, por sua vez, orienta a elaboração de

conceitos, conforme poderemos observar a seguir.

3.3 Mediação e elaboração de conceitos

Na relação de mediação, é de vital importância o contato da criança com o adulto. A criança

aprende com aquele que é mais experiente do que ela sobre os objetos , sobre o meio social

no qual está inserida e sobre tudo que a rodeia: “Desde o nascimento, a criança é rodeada por

um mundo objetivo, criado pelo homem; são os objetos correntes, as roupas, os instrumentos

mais simples, a língua e as concepções, as noções, as idéias que o refletem” (LEONTIEV, 1978b,

p. 119-120).

Vigotski (1997b) destaca que a linguagem é um componente importantíssimo no sentido da

mediação. Comenta ainda que a linguagem possui quatro etapas básicas de desenvolvimento

que influenciam o pensamento e o relacionamento da criança com o meio social: a “etapa

da fala primitiva”, a que corresponde o balbuciar; a “etapa da psicologia ingênua”, na qual a

criança se utiliza dos instrumentos para direcionar a fala; a “etapa do signo externo”, quando

passa a dominar a linguagem e, por fim, a “etapa do crescimento interno”, quando a linguagem

passar a ser transplantada para a esfera do pensamento intelectual. É quando a criança torna

a linguagem um processo psíquico interno, sendo essa a fase mais importante, que forma o

psiquismo e impulsiona o desenvolvimento de um período a outro.

A especialização da linguagem corresponde também a uma especialização das funções

intelectivas. Processos como a leitura, a música, o teatro e o desenho tendem a colaborar no

desenvolvimento e na especialização da linguagem infantil - já que nesses espaços a criança e

o adolescente têm a possibilidade de enriquecer o vocabulário. Depois que a criança consegue

transferir, diga-se assim, a linguagem para o pensamento, inicia-se uma fase rica de seu

desenvolvimento, que condiciona outras áreas “intelectuais” . Ela passa a elaborar conceitos

atribuindo a eles um sentido pessoal. Vigotski (1997b) atenta para a existência de dois tipos

de conceitos, que denomina como “conceitos cotidianos” e “conceitos científicos”. Os conceitos

cotidianos, segundo ele, são formulados pela criança durante a sua atividade principal,

surgindo e se formando a partir de sua experiência pessoal na relação com a realidade concreta

na qual está inserida. Esses conceitos são caracterizados ainda pelo autor como conceitos não

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conscientes, ou seja, são informações recebidas pelas crianças, mas sobre as quais, devido ao

seu período de desenvolvimento, ainda não puderam refletir.

Já os conceitos científicos seriam aqueles constituídos durante um processo de instrução,

por meio da acumulação do conhecimento transmitido à criança em um processo educativo.

Não são simplesmente apreendidos a partir do contato com a realidade. Por isso, para serem

elaborados, pressupõem que a criança vivencie um determinado período de desenvolvimento,

conduzido, a princípio, a partir da elaboração dos conceitos cotidianos. Para Vigotski (1997b),

os conceitos cotidianos e científicos aparecem e desaparecem durante o desenvolvimento da

criança. Entretanto, seria impossível que a criança se apropriasse dos conceitos científicos sem

um mínimo de conhecimento precedente, formado pelos conceitos cotidianos.

Por conseguinte, o desenvolvimento dos conceitos científicos pressupõe a ampliação de

diversas funções intelectuais: atenção voluntária, memória lógica, abstração, comparação e

diferenciação. Essas funções são ampliadas a partir do processo de instrução, pressupondo a

intelectualização além da consciência refletida e o controle ou domínio por parte da criança

(VIGOTSKI, 1997b).

A mediação e a elaboração de conceitos condicionam o ser humano de maneira contumaz.

O contato com o mundo, com os objetos e com as pessoas auxilia no desenvolvimento da

linguagem, da memória e da imaginação da criança.

3.4 desenvolvimento da linguagem, da memória e da imaginação

Neste processo de desenvolvimento, a mediação proporciona à criança a apropriação da

linguagem, a formação dos conceitos e sua conservação na memória. A memória, como a linguagem,

tem “fases” de ampliação ligadas ao desenvolvimento da criança. Em decorrência do seu período

de desenvolvimento, a memória da criança pequena é distinta da memória da criança de maior

idade e, conseqüentemente, da memória do adulto. A criança pequena, segundo Luria (1991b), tem

dificuldades em organizar sua memória, não conseguindo ainda direcioná-la a um fim específico.

Apenas quando há demanda, ela consegue superar essa deficiência. Em decorrência,

[...] a memória de uma criança de três e quatro anos de idade também tem as suas fraquezas: é

difícil organizá-la, torná-la seletiva. Ela ainda não é, em nenhuma medida, uma memória arbitrária

capaz de memorizar o necessário, orientado para um dado fim, separando os vestígios fixáveis

dentre todos os outros. (LURIA, 1991b, p. 91-92).

A capacidade de orientar a memória por meio da instrução verbal vai se desenvolver apenas

mais tarde, juntamente com a mudança de comportamento da criança (LURIA, 1991b) no início

da vida escolar, quando o desenvolvimento infantil permite essas “conquistas”. Verifica-se,

deste modo, que o processo de desenvolvimento da memória na idade infantil “é um processo

de transformações psicológicas radicais cuja essência consiste em que as formas imediatas

naturais de memorização se convertam em processos psicológicos superiores, sociais por

origem e mediatos por estrutura...” (LURIA, 1991b, p. 96).

DanieLa eMiLena SantiaGO, O Desenvolvimento infantil para a perspectiva sócio-histórica

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ARTIGO

Luria (1991b) destaca que a memória se dividiria em “memória breve” e “memória longa”.

Como é possível supor, a “memória breve” é composta pelas impressões imediatas que a criança

tem sobre o mundo e que não se consolidam no cérebro. Já a “memória longa” faz referência

às informações que a criança consegue reter no cérebro. Segundo o mesmo autor, a fixação ou

não de determinados fatos na memória irá depender essencialmente da freqüência dos fatos

ocorridos e mesmo da intensidade, ou seja, da representação que a criança tem dos mesmos.

A “memória breve” e a “memória longa” coexistem, sendo impulsionadas também a partir da

interação da criança. Por isso, a capacidade de atingir a “memória longa” deve ser exercitada

constantemente.

Provém igualmente da realidade da criança, de sua mediação estabelecida com o adulto

e com o meio social e de sua memória, a capacidade de imaginar e criar fantasias. Vigostki

(1996) compreende a imaginação da criança como um estágio inicial da capacidade de criar

expectativas sobre sua vida futura. A criança recorre à memória, onde dispõe do material que

lhe permitirá imaginar, criar, e a memória, por sua vez, nasce da realidade social na qual está

inserida. A imaginação infantil, nesse sentido, é moldada pelos conhecimentos e por todas as

informações com as quais a criança toma contato através de sua relação com o mundo.

Resulta assim que os primeiros pontos de apoio que a criança encontra para sua futura criação

é o que vê e o que ouve, acumulando materiais cujas partes fundamentais não combina em vão,

sem sentido, de modo casual como nos sonhos e nos delírios insensatos (VIGOSTKI, 1996, p. 27- 28,

tradução nossa).

Tudo aquilo que a criança ouve, vê, sente ou com o que se relaciona acaba se constituindo

em material da memória e, por conseguinte, irá exercer influência em sua capacidade de

elaboração da imaginação. Portanto, segundo Vigotski (1996), a imaginação “não se cria do

nada”, mas necessita do material da memória. Para ele, a criança pode até mesclar informações

sobre aspectos compreendidos pelo adulto como não reais com aspectos ditos como

reais. Uma criança pode imaginar um fato assombroso, como um elefante voar, o que seria

impossível de acontecer na realidade; todavia, formulou essa possibilidade tomando como

base aspectos reais, como o elefante, e a circunstância de que alguns animais voam. De acordo

com Vigotski (1996), isso se chama “reelaboração”, que seria a junção de aspectos da realidade

e sua combinação em histórias fantásticas.

A capacidade de imaginação da criança está relacionada, pois, com a “memória precedente”,

ou seja, com as informações que ela já traz consigo. Interferem nesse processo de imaginação

também o período de desenvolvimento que a criança estiver vivenciando, assim como

as relações estabelecidas por ela. A cada período corresponde uma determinada forma

de imaginação e mesmo de expressão. A criança pequena, em geral, se utiliza com grande

freqüência dos brinquedos como forma de mediar a expressão de sua imaginação. Com o

tempo, passará a usar outros instrumentos, como o desenho (VIGOTSKI, 1996). Desse modo,

a capacidade que a criança tem de imaginar e mesmo de elaborar suas perspectivas sobre o

futuro irá depender da realidade com a qual tem contato direto.

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ARTIGO

A ampliação desse universo resulta em uma conseqüente ampliação da capacidade da criança.

Daqui a conclusão pedagógica sobre a necessidade de ampliar a experiência da criança se

queremos proporcionar-lhe base suficientemente sólida para sua atividade criadora. Quanto mais

veja, ouça e experimente, quanto mais aprenda e quantos mais elementos reais disponha em sua

experiência tanto mais considerável e produtiva será, e igualmente as circunstâncias restantes, a

atividade de sua imaginação (VIGOTSKI, 1996, p. 18).

Pensar, portanto, em uma vida futura, ou em uma vida diferente da atualmente vivida,

irá depender da realidade com a qual a criança ou o adolescente estabelece ou não contato.

Dependerá do que é posto à criança pelo adulto - seus familiares, professores e educadores.

Não há como a criança se imaginar um músico se não tem contato com essa realidade. Não é

possível uma criação partindo do vazio. Ela irá recorrer à memória que, por sua vez, provém da

realidade e dos processos já descritos.

Assim, pode-se inferir que o psiquismo da criança é forjado num processo ativo e histórico de

objetivação e apropriação, no qual a linguagem assume um papel de relevância, possibilitando,

entre outras ocorrências, o surgimento de memória, e influenciando a capacidade da criança

em imaginar e criar expectativas sobre sua vida futura. Assim as experiências vivenciadas pela

criança são armazenadas e registradas, ajudando a compor sua subjetividade, sua “consciência”,

seu psiquismo e a impulsionar o seu desenvolvimento.

Nesse sentido, o conhecimento musical e a integração social proporcionados por projetos

socioculturais são de suma importância. Por meio dessas intervenções, a criança e o adolescente

estabelecem contato com educadores e outros participantes do processo - constituindo

material que irá alimentar seu cérebro e, consequentemente, conduzir seu desenvolvimento a

estágios diferenciados que atendem ao progresso cognitivo.

4 ConSIdErAçÕES fInAIS

Após a realização desse estudo, é possível inferir que a criança demanda a intervenção

do adulto em seu processo de aprendizagem e conhecimento do mundo. É possível inferir

ainda que todo processo de aprendizagem deve ser um processo educativo, transmitindo

conhecimentos diferenciados para a criança. Conclui-se também que os estágios de

desenvolvimento alcançados pela criança irão depender também do processo de aprendizagem

e de conhecimento a que a criança tem acesso. Isso condiciona o período de desenvolvimento,

a imaginação, a perspectiva de vida futura e a subjetividade como um todo. Dessa forma, é

possível concluir que os adultos com os quais a criança tem ou estabelece relação – tanto

da família como outros relacionados à sua aprendizagem - são importantes no sentido de

legitimar e orientar o desenvolvimento infantil.

É importante enfatizar que o trabalho realizado em projetos socioculturais tem substancial

importância para ampliar o desenvolvimento dessas crianças. Quando é colocada, para

uma criança, a demanda a ser realizada dentro de um curso, há uma colaboração para seu

desenvolvimento. Quando a criança é convidada a tocar, a cantar, é na verdade convidada a

DanieLa eMiLena SantiaGO, O Desenvolvimento infantil para a perspectiva sócio-histórica

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7878

ARTIGO

utilizar sua funções intelectivas da fala, memória, leitura e assim por diante - atividades que

colaboram para a ampliação do universo da criança. Quando uma criança executa uma música

que remete a uma realidade específica, não está apenas usando a linguagem e a observação,

mas pode também imaginar sobre aquilo e reelaborar conceitos. Quanto mais atividades

forem postas às crianças de maneira planejada, maior será sua capacidade de atingir níveis

mais elevados de desenvolvimento, do que decorre a necessidade do adulto em viabilizar

esse processo.

A criança, por outro lado, não aprenderá apenas por meio da instrução, mas também por

meio do contato estabelecido com outras pessoas – e, no caso de projetos socioculturais, no

contato estabelecido com outras crianças, alunos e toda a equipe disponível. A aprendizagem

não estará restrita apenas a aspectos musicais, mas trabalhará também aspectos relacionados

à convivência interpessoal, valores e assim por diante - sempre de maneira espontânea, dadas

as diferenças de cada ser humano.

Considerando as teorias de desenvolvimento infantil aqui descritas, é possível concluir

que os projetos socioculturais têm possibilidades de ampliar sempre mais os níveis de

desenvolvimento das crianças com as quais atua. Para isso, é de vital importância um trabalho

integrado de toda equipe que, além da ampliação do desenvolvimento infantil, pode também

a colaborar com a transmissão de valores éticos e, portanto, oferecer subsídios positivos para a

constituição da subjetividade dos sujeitos atendidos.

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Page 71: Revista Espaço Intermediário

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DanieLa eMiLena SantiaGO, O Desenvolvimento infantil para a perspectiva sócio-histórica

Page 72: Revista Espaço Intermediário

8080

ARTIGO

ReViSta eSPacO inteRMeDiÁRiO, Sao Paulo, v.i, n.i, p. 80-91, maio, 2010.

RESUMO

Este artigo fala sobre o processo de

educação musical desenvolvido por Emile

Jaques-Dalcroze e tem como principal

objetivo buscar fundamentação teórica para

que o educador de canto coral enriqueça

suas estratégias utilizadas em aula. O

artigo apresenta um pequeno histórico do

educador, uma síntese de seu pensamento

metodológico e duas séries de exercícios,

que incluem atividades rítmicas e atividades

melódicas. No final do artigo, aponta-se para

a perspectiva de utilização de seu método,

com grande potencial de aplicabilidade ao

canto coral.

ABSTRACT

This article talks about the music education

process developed by Emile Jaques-Dalcroze

and its principal objective is to seek theoretical

basis for the choir teacher to enrich the

strategies used in lessons. The article presents a

brief background on the educator, a synthesis

of his methodological thinking and three series

of exercises that include: rhythmic activities;

melodic activities; and rhythmic and melodic

activities applied to the study of improvisation

on the piano. The end of the article points to

the perspective for using his method with

tremendous potential for application in choir

singing.

PALAVRAS-CHAVE

Dalcroze. Educação musical. Canto coral.

KEYWORDS

Dalcroze. Musical education. Choir singing.

JOSÉ FORTUNATO FERNANDES

Doutorando em Música pelo Departamento de Música do Instituto de Artes da UNICAMP.

Professor da Faculdade Teológica Batista de São Paulo e Assistente de Instrumento –

Coral da Associação Amigos do Projeto Guri. e-mail: [email protected]

Método dalcroze: perspectivas de aplicação no canto coral

1 Texto apresentado durante o I Semi-nário Projeto Guri: Ação sociocultural e Educação musical, realizado entre 28 de novembro e 1º de dezembro de 2007 em São Paulo/SP. Inclui atualiza-ções realizadas pelo autor.

SOBRE O ARTIGO

The Dalcroze method: perspectives for application in choir singing

Submetido em:

18 / 02 / 2010

Aprovado em:

06 / 04 / 2010

Page 73: Revista Espaço Intermediário

81

ARTIGO

1 Introdução

O assunto que permeia este artigo justifica-se pelo fato de que, muitas vezes, na educação

formal a música tem sido vivenciada como meio para atingir objetivos extramusicais - tais

como concentração, formação de conceitos ou mesmo entretenimento –, muito mais do que

uma área do conhecimento com linguagem própria capaz de conduzir o ser humano a uma

experiência estética diante do mundo que o cerca. Esse distanciamento da linguagem musical

tem sido uma constante na educação musical que se dá por meio da prática do canto coral e,

por isso, há a necessidade de se repensar o papel da música e respeitar o processo individual

de desenvolvimento musical dos alunos.

Por privilegiar a aula em grupo e tomar como ponto de partida o próprio corpo humano (e a

voz) para promover a aprendizagem na relação movimento-música, o pensamento pedagógico

de Emile Jaques-Dalcroze parece se adequar ao meio de expressão musical do canto coral, cujos

participantes geralmente se restringem a executar, reproduzir (repetir) o que já está pronto.

Assim, perde-se a chance de explorar o novo (experimentação, improvisação) e mesmo de

aprender a apreciar a música (escuta musical ativa e crítica). O método ativo desenvolvido por

Dalcroze propõe-se a ensinar pela vivência, partindo das sensações e percepções adquiridas

na experiência musical, passando pela análise dessas experiências para depois se chegar a

uma intelectualização da música.

Este artigo busca ressaltar que o processo de educação musical pode ser uma experiência

prazerosa, vivencial (sem teorização), na qual a música seja pensada de modo a proporcionar um

amadurecimento semelhante ao aprendizado de uma língua pátria. Dessa forma, respeitando

o processo contínuo de construção de cada um e com a consciência de que a música faz parte

da formação integral do ser humano, acreditamos que o sucesso na aprendizagem musical

através da prática do canto coral possa levar os alunos a um desenvolvimento mais humano.

2 EMIlE jAquES-dAlCroZE (1865-1950)

Filho de pais suíços, Emile Jaques-Dalcroze nasceu em Viena, Áustria, em 6 de julho de

1865. Em 1875 mudou-se para Genebra, Suíça. Ficou indeciso entre seguir a carreira da

arte dramática ou da música. Em 1884, com 19 anos de idade, foi para Paris, França, onde,

após estudar direção teatral, tomou a decisão de estudar música. Ali, manteve contato com

Leo Délibes. Em 1887 passou a freqüentar o Conservatório de Viena onde estudou órgão e

composição com Anton Bruckner. Em 1889, aos 24 anos de idade, voltou a Paris para trabalhar

com os compositores Leo Délibes e Gabriel Fauré. Pouco tempo depois, em 1890, tornou-se

o segundo diretor da orquestra de um teatro na capital da Argélia, Argel. Porém em 1892

regressou a Genebra onde foi nomeado professor de Solfejo e Harmonia do Conservatório

e onde começou a aplicar suas lições revolucionárias. Em 1909, mudou-se para Hellerau,

Alemanha, onde continuou o desenvolvimento de suas idéias para o ensino do solfejo, rítmica

e improvisação. Em 1914, foi surpreendido em Genebra pelo início da Primeira Guerra Mundial

JOSÉ FORtUnatO FeRnanDeS, Método Dalcroze: perspectivas de aplicação no canto coral.

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e não voltou mais para Hellerau. No ano seguinte, em 1915 fundou em Genebra o Instituto

Jaques-Dalcroze. Entre 1924 e 1926 voltou a trabalhar em Paris. Daquele momento até o início

da Segunda Guerra Mundial, em 1939, bem como após o término da Guerra, houve um grande

avanço e intensificação de seu método. Morreu em 1º de julho de 1950, aos 85 anos de idade,

em Genebra (RODRIGUES, [s.d.], p. 2, 3, 7-9).

Dalcroze expõe claramente seu conceito de educação musical:

No meu modo de ver, a educação musical deveria basear-se por completo na audição, ou em todo caso na percepção do fenômeno musical – mediante o ouvido que se acostuma a captar as relações entre notas, tonalidades e os acordes e o corpo inteiro, por meio de exercícios especiais, iniciando-se na apreciação da rítmica, a [sic; da] dinâmica e os [sic; dos] coloridos agógicos da música (DALCROZE, 1926 apud RODRIGUES, [s.d.], p. 2).

O princípio básico do processo de educação musical de Dalcroze é sentir, viver, analisar e

intelectualizar, tomando como ponto de partida a relação entre movimentação corporal e ritmo.

Dessa forma, em seu método a prática musical antecede ao aprendizado da teoria, da mesma

forma como uma criança aprende a língua materna: primeiro a fala e depois seus símbolos.

Na minha experiência com canto coral, a prática musical tem antecedido ao aprendizado

da teoria tornando-se um meio propício para a aplicação desse método. Para Dalcroze, a

educação musical pode ser usufruída por todos, de forma coletiva, e sua finalidade é mais do

que permitir que os alunos acumulem conhecimentos ou desenvolvam qualidades que não

possuem: é operar sobre a vontade para coordenar as diversas funções vitais e desenvolver as

qualidades que já possuem por meio de atividades que aperfeiçoem a visão, a audição e o tato

e sua interação com as sensações e emoções.

As matérias básicas do processo de educação musical proposto por Dalcroze são: 1) rítmica

(movimento e ritmo): utiliza os movimentos do corpo para desenvolver tanto o sentido

rítmico corporal quanto o sentido auditivo dos ritmos; 2) solfejo: utiliza a voz para desenvolver

o sentido dos graus e suas relações entre as diferentes tonalidades e o reconhecimento de

timbres; 3) improvisação: com base no aprendizado da rítmica e do solfejo, desenvolve a

expressão musical, o sentido táctil-motriz e a tradução de idéias musicais rítmicas, melódicas

e harmônicas (RODRIGUES, [s.d.], p. 21-22). Tenho aplicado essas três matérias à prática do

canto coral de forma sistemática através da utilização de percussão corporal ou coreografias

(rítmica), o canto propriamente dito (solfejo) e a composição/improvisação de pequenas frases

rítmicas ou melódicas (improvisação).

O princípio básico do processo de educação musical de Dalcroze é explorar, experimentar,

descobrir, aprender e analisar. Através de estímulos sensoriais, geralmente auditivos, mas

que também podem ser de outra natureza (por exemplo, visual, na execução de ritmos ou

gestos expressivos, e tátil na exploração de instrumentos para experimentação de timbres),

conseguimos um desencadeamento de respostas mentais e físicas por meio de movimentos

corporais. O estudo de tais movimentos desperta o organismo inteiro, pois segundo Jerome

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Bruner, psicologista educacional, quando o sistema neuro-muscular é solicitado há uma

resposta motora a um estímulo sensorial, os movimentos criam imagens (conceitos) e

através das palavras e outros símbolos a intelectualização ganha espaço (WAX, 2007, p. 12-

13). Assim, a precisão rítmica torna-se o resultado da rápida comunicação entre o cérebro

e o corpo.

Com a repetição de movimentos conscientes chegamos ao automatismo, que é o

funcionamento muscular a partir de um reflexo rápido inconsciente. Dessa forma acontece

a expansão do ritmo natural e os primeiros resultados dos exercícios que levam ao

desenvolvimento das funções musculares e do pensamento aparecem: conhecimento e

domínio próprio e posse da personalidade. As respostas mentais e físicas tornam-se mais

evidentes no ensino coletivo devido ao encorajamento e imitação mútua, por isso a formação

de grupos é necessária para o desenvolvimento do processo de educação musical de Dalcroze.

A prática do canto coral, coletiva por natureza, torna-se propícia para a aplicação do método

Dalcroze visando seu desenvolvimento rítmico, melódico e expressivo.

Para justificar a importância de se conjugar práticas tão distintas como a ginástica (ou

movimentação corporal) e a música, a fim de se conseguir um equilíbrio desejável, um

desenvolvimento harmonioso no ser humano, Platão dizia que “os que praticam exclusivamente

a Ginástica tornam-se por demais abrutalhados, e os dedicados unicamente à Música

amolecem-se mais do que lhes convém” (PLATÃO, [s.d.], p. 73). Assim também o objetivo do

processo de educação musical de Dalcroze é criar uma perfeita harmonia entre mente e

corpo. Pelo fato de a música ser uma atividade muito mais voltada para a mente do que para

o corpo, a prática corporal sempre precede a teoria, pois se aprende a fazer, fazendo: “[...] a

atividade é crucial e precede o entendimento” (WAX, 2007, p. 14). A ginástica, na concepção

de Dalcroze como a coordenação rítmica do movimento, revigora o sentimento e o instinto do

ritmo apesar da facilidade de alguns e dificuldade de outros (WAX, 2007, p. 14). O equilíbrio

entre a prática corporal e vocal no canto coral é muito importante, pois devemos ter o cuidado

de não deixar a execução do grupo estática, sem movimento, e nem transformá-la em uma

execução coreográfica. O foco da prática do canto coral é a voz.

O processo de educação musical de Dalcroze é adaptado para diferentes faixas etárias.

Alunos com dois anos de idade podem iniciar seu aprendizado com atividades de treino

auditivo, movimento rítmico, canto e improvisação melódica. Desenvolve-se em todas as

faixas etárias, além da sensibilização musical, conceitos, ferramentas e vocabulário para serem

aplicados na leitura e escrita musical. Conforme os alunos vão adquirindo conceitos, as respostas

surgirão espontaneamente através da análise dos movimentos. Embora o canto coral não seja

praticado com a faixa etária de dois anos, podem ser realizadas atividades preparatórias para

um posterior ingresso nesse grupo com faixa etária adequada.

Quando o aluno deseja o aprendizado de um instrumento, o desenvolvimento da

sensibilidade musical precede o desenvolvimento da coordenação motora necessária para o

instrumentista, pois não só o instrumentista, mas o músico de forma geral, necessita de um

JOSÉ FORtUnatO FeRnanDeS, Método Dalcroze: perspectivas de aplicação no canto coral.

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bom preparo: “Antes de se lançar a semente é preciso preparar o terreno” (DALCROZE, 1925,

p. 93-94, tradução nossa). O processo de educação musical de Dalcroze atende a idades,

interesses e necessidades diversificadas: crianças, jovens e adultos, músicos ou não.

Emile Jaques-Dalcroze “[...] foi quem primeiro se preocupou com o corpo como meio para

o desenvolvimento não só musical, mas também da personalidade da criança. Ele criou uma

disciplina chamada euritmia [...]” (BRITO, 2003, p. 145). A euritmia pode ser definida como o

treinamento rítmico musical através do corpo ou a educação do corpo para resolver problemas

rítmicos musicais. Para Dalcroze, o ritmo é o elemento mais ligado à vida, portanto os ritmos do

corpo – respiração, coração, caminhar, etc. – devem ser conectados com a música para que o

movimento corporal seja utilizado sempre para desenvolver o senso rítmico em qualquer estágio

de complexidade. O estudo do ritmo por meio do movimento desperta a sensação rítmica

corporal e desenvolve a expressão, a concentração e a execução do movimento rítmico, como

também desperta a sensação auditiva e desenvolve a expressão, a apreciação, a concentração e

a espontaneidade na realização vocal. No canto coral, a execução vocal espontânea refletirá a

percepção - que ocorre através dos sentidos da audição, da visão e do tato - do ritmo, da pulsação,

da métrica e da frase de forma expressiva. A consciência rítmica surge a partir da análise das

experiências com o movimento e por meio destas se desenvolve a aquisição de um vocabulário

de movimentos para a expressão rítmica. “Deste modo, todos os exercícios são voltados para o

crescimento do corpo e da mente, tanto como coordenação e harmonia entre os dois” (WAX, 2007,

p. 6). Dalcroze estabelece os seguintes objetivos da rítmica:

Todos os exercícios da ‘rítmica’ têm por objetivo reforçar a faculdade de concentrar-se, de habituar o corpo a manter-se, por assim dizer, sob pressão esperando as ordens da zona superior, de fazer penetrar o consciente no inconsciente, e de aumentar a faculdade inconsciente de todo o contributo de uma cultura especial, que tem por resultado o respeito a ela. Além disso, esses exercícios tendem a criar hábitos motrizes mais numerosos e novos reflexos para obter-se com o mínimo esforço o máximo efeito, portanto a tranqüilizar o espírito, a revigorar a vontade e a estabelecer a ordem e a clareza no organismo (DALCROZE, 1925, p. 93, tradução nossa).

Dalcroze inovou a forma de estudo da teoria musical fundamentando-a na prática:

“Teoria musical é muito freqüentemente o estudo de sinais musicais ao invés de ser a experiência

e a análise na própria música” (apud WAX, 2007, p. 6). A rítmica se desenvolve por meio da força

e da energia. Para a execução do ritmo musical devemos atentar para o inter-relacionamento

de três elementos essenciais: tempo, espaço e energia. A audição determinará a sensibilidade

para a resposta física do movimento que utiliza as corretas proporções entre os três elementos.

No canto coral esses três elementos são aplicados, especificamente na execução vocal, à correta

utilização dos articuladores - dentes, lábios, língua, mandíbula e palato - visando a precisão

rítmica e uma boa dicção. Há uma nítida relação entre os exercícios elementares e os avançados,

pois algumas questões rítmicas estudadas no processo de educação musical de Dalcroze são

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sempre recorrentes – embora adaptadas à idade e ao estágio de complexidade –, tais como

pulsação, dinâmica, duração das notas, métrica, fraseado e polirritmia. O processo de

educação musical de Dalcroze também desenvolve a prática da improvisação rítmica através

do movimento, mas para isso é necessário que o educador tenha o treinamento adequado

para a sua aplicação.

Para o desenvolvimento do solfejo, o processo de educação musical de Dalcroze utiliza a

voz como instrumento natural tonal: “Dalcroze tem por fim desenvolver o senso de afinação,

relativa e absoluta. [...] O objetivo é treinar as pessoas a ouvir melhor, desenvolver uma escuta

apurada” (WAX, 2007, p. 8). O estudo do solfejo desperta a sensação dos graus, das relações

de elevação e abaixamento dos sons, a faculdade de reconhecer os seus timbres e desenvolve

a representação mental da melodia, do contraponto e da harmonia em atividades de leitura,

improvisação, notação e composição. Os exercícios para o desenvolvimento do solfejo

incluem escalas, acordes, cadências, intervalos, inversões, modulações, tons, semitons, etc.,

mas “seja qual for o assunto, nunca é desvinculado da experiência rítmica do Método Dalcroze

(Eurhythmics)” (WAX, 2007, p. 9). Esses exercícios podem ser retirados de trechos do repertório

e aplicados com o objetivo de relacioná-los aos conteúdos estudados e alcançar uma execução

mais musical. A prática do canto coral torna-se, repito, um meio bastante adequado para a

aplicação desse processo de educação musical desenvolvido por Dalcroze, na qual podemos

vivenciar o estudo do solfejo a partir de atividades técnicas que contribuam para o bom

desempenho de habilidades vocais. Assim também, além das atividades já sugeridas, podem

ser realizadas atividades de apreciação que venham a complementar a expressividade na

execução do repertório (SWANWICK, 2003, p. 70-72).

A leitura e a escrita estão vinculadas ao ouvido e ao desenvolvimento da audição interna:

“A pessoa verdadeiramente musical precisa ser capaz de ouvir internamente o que está impresso

na folha de papel” (WAX, 2007, p. 10). Dessa forma, depois de um ano de exercícios rítmicos,

o aluno passa pela classe de solfejo onde desenvolve a audição interior para a realização e

criação da sonoridade. Os exercícios de solfejo correspondem aos de rítmica e, além disso, os

alunos podem estudar vocalmente as tonalidades, a harmonia, os andamentos, percebendo

como os sons se reproduzem em seu corpo. Assim como a improvisação rítmica, a melódica

também é desenvolvida vocalmente no estudo do solfejo e tem seu ponto de partida em

palavras, movimentos, símbolos, gráficos e idéias. Uma das vantagens da aplicação do estudo

do solfejo idealizado por Dalcroze na prática do canto coral é que o aluno será levado a atingir

um nível em que consiga relacionar a leitura, a escrita e a audição interna através da execução

musical e não apenas por meio de exercícios.

Para Dalcroze, a improvisação é vista como a manifestação do conhecimento e, além do

desenvolvimento da improvisação rítmica (com o corpo) e melódica (com a voz), ele escolheu

o piano para aprofundar a prática da improvisação como meio de expressão, pois o estudo

da improvisação ao piano desenvolve a exteriorização musical mediante o tato. Dalcroze diz

que a virtuosidade é erroneamente associada à velocidade e que seu objetivo é desenvolver a

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técnica, que deve ser entendida como um conjunto de habilidades expressivas. Esse é um

conceito que deve ser aplicado não só à aplicação da técnica ao instrumento, mas também ao

canto coral.

A improvisação tem uma relação estreita com o tempo, pois é o elemento mais importante

nessa prática pelo fato de ser uma criação que podemos chamar de instantânea. A prática da

improvisação no canto coral pode ser desenvolvida desde a criação de ruídos - com a voz ou

objetos sonoros - que podem preparar uma atmosfera para a execução musical, passando pela

criação de ritmos por meio de percussão corporal ou instrumental, até a criação de melodias

contrapontísticas e harmonias. A partir da prática da improvisação qualquer pessoa pode

realizar música: “Dalcroze ensina que todas as pessoas [...] podem ser treinadas para tocar [e

cantar] música espontaneamente” (WAX, 2007, p. 10).

Para conhecer um pouco mais acerca do processo de educação musical desenvolvido

por Dalcroze e, ao mesmo tempo, facilitar sua aplicação, seguem-se duas séries de exercícios,

agrupados em atividades rítmicas e atividades melódicas. Eles não são seqüenciais, podem ser

escolhidos aleatoriamente e adaptados conforme a necessidade do grupo.

2.1 Atividades rítmicas

1) Descontração muscular e respiração: deitar de costas, ficar atento à respiração, contrair

um só membro, contrair dois membros, opor contração e descontração entre os dois

membros do corpo. “Este estudo da descontração é a base de todos os exercícios deste

método” (DALCROZE, 1925, p. 97, tradução nossa). O aluno se dá conta de suas resistên-

cias musculares e elimina as inúteis.

2) Divisão e acentuação métrica: marcar o pulso com os pés e o acento com os braços com

completa contração destes no 1º tempo. Ao ouvir hop - palavra utilizada por Dalcroze

para as mudanças de ação - o aluno impede a contração do braço (acento) ou ao pé de

tocar o solo (pulso), ou a bater o pé sem pressa ou sem lentidão (mudança de anda-

mento), ou a substituir o movimento do braço pelo do pé.

3) Memorização métrica: depois de ter feito movimentos especiais determinados pelo

hop, colocá-los na ordem em que foram executados. Depois da análise, explicá-los e

anotá-los na pauta.

4) Concepção rápida do compasso por meio da visão e da audição: os comandos hop

irão substituir as imagens auditivas pelas visuais e vice-versa. O aluno vai imitar por

audição a sequência de sons ou pela visão a realização dos movimentos ou pela leitura

no quadro negro.

5) Concepção dos ritmos mediante a sensação muscular: ao ouvir durações, o aluno de-

verá calcular a amplitude do movimento no espaço para preenchê-las através das sen-

sações das tensões e extensões dos músculos e dos dobramentos e desdobramentos

dos membros.

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6) Desenvolvimento da vontade espontânea e da faculdade de inibição: exercícios para

parar brusca ou lentamente, a trocar a direção da caminhada para frente, para trás, para

os lados, a saltar, a deitar, a levantar, sem perder a pulsação.

7) Concentração e criação da audição interior dos ritmos: andar, parar durante alguns pul-

sos, contá-los mentalmente e voltar a andar. Esse exercício prepara para a execução do

silêncio e ensina as leis do fraseado musical.

8) Equilíbrio corporal e continuidade dos movimentos: as concepções das durações são

asseguradas pela continuidade do movimento que deve ser executada com gradações

diversas de energia e interrompida por um comando.

9) Aquisição dos numerosos automatismos e sua combinação e alternância com atos de

vontade espontânea: os automatismos devem ser executados em velocidades difer-

entes e interrompidos com facilidade para serem substituídos por outros, devendo estar

combinados com várias partes do corpo, com palavras ou com o canto.

10) Realização das durações musicais: realização da semínima com um passo à frente; da

mínima, com um passo à frente e uma flexão no lugar.

11) Divisão das durações métricas: a semínima deve ser subdividida em dois passos breves

à frente para duínas, três para tercinas, quatro para quartinas, etc. Nas síncopes, os pas-

sos que representam as figuras de maior duração são substituídos por um passo breve

seguido de uma flexão no lugar.

12) Realização corporal imediata de um ritmo musical: com movimentos espontâneos para

representar as durações, substituir os ritmos sonoros por ritmos plásticos: “Durante a

execução de um automatismo, se prepara um outro automatismo” (DALCROZE, 1925, p.

105, tradução nossa).

13) Dissociação dos movimentos: contrair um dado músculo de um braço enquanto o

mesmo músculo do outro braço estiver descontraído. Executar, simultaneamente, mo-

vimentos com velocidades diferentes em membros diferentes do corpo.

14) Interrupções e paradas do movimento: a partir do fraseado e nuances do discurso musi-

cal, parar o próprio movimento ou interrompê-lo. “Equilíbrio e pontuação dos períodos

e frases do ‘discurso corporal’ segundo as leis do fraseado musical – As oposições e os

contrastes – Estudo da anacruse – Vários modos de respiração – Vários modos de parada

e interrupção do passo e do gesto” (DALCROZE, 1925, p. 106, tradução nossa).

15) Dupla e tripla rapidez e lentidão dos movimentos: a duplicação ou triplicação da rapidez

ou lentidão dos movimentos que representam um ritmo relaciona-se aos procedimen-

tos de “aumentação” e “diminuição” utilizados para desenvolvimento de um tema.

16) Contraponto plástico e polirritmia: é feita uma transposição dos exercícios de cada es-

pécie do contraponto (nota contra nota, duas notas contra uma, quatro - aumentado

para incluir três, ou seis etc. por outros - notas contra uma, notas deslocadas em relação

a cada outra - como suspensões -, e todas as quatro espécies juntas, como contraponto

ornamentado) para os membros do corpo. A polirritmia é desenvolvida através dos au-

tomatismos, pois enquanto um braço executa automaticamente um ritmo, outro mem-

bro executa um ritmo diferente.

JOSÉ FORtUnatO FeRnanDeS, Método Dalcroze: perspectivas de aplicação no canto coral.

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17) Acentuações patéticas: matizes dinâmicos e agógicos (expressão musical): “Todos os exer-

cícios precedentes têm o escopo de desenvolver o sentimento da medida e do ritmo. Estes

exercícios que seguem têm por fim despertar o temperamento dos alunos, de incitar o seu

corpo a vibrar de acordo com a música escutada” (DALCROZE, 1925, p. 107, tradução nossa).

Os matizes são representados pelas várias amplitudes dos movimentos, que devem passar

rapidamente de um matiz a outro.

18) Notação dos ritmos: anotar o ritmo que sente ou que vê sendo executado.

19) Improvisação (educação da faculdade imaginativa): ao comando do educador o aluno deve

improvisar uma série de compassos a 2, 3, 4, 5 ou 6 tempos (a noção de compasso simples

ou composto não deve ser abordada, mas apenas a quantidade de tempos a ser impro-

visada dentro dos compassos), ou inventar ritmos utilizando elementos já aprendidos.

20) Direção dos ritmos (comunicação rápida a outros, solistas ou grupos, de sensações e senti-

mentos individuais): um aluno conduz, através de gestos expressivos, os matizes dinâmicos

e agógicos de um ritmo memorizado por todos.

21) Execução dos ritmos por vários grupos de alunos (imitação de frases musicais): “Cada perío-

do de uma frase rítmica é realizada por um grupo de alunos” (DALCROZE, 1925, p. 109), ou

seja, as frases musicais serão executadas alternadamente por cada grupo.

2.2 Atividades melódicas

1) Contração e descontração dos músculos do pescoço, dos músculos relacionados à re-

spiração e ginástica pulmonar ritmada: experimentar vários ataques do som vocal e

enunciação das consoantes acompanhados de movimentos opostos dos braços, om-

bros e diafragma. Sincronizar o ataque do som com o início da caminhada. Reconhecer

as várias gradações de intensidade sonora. Relacionar a respiração com a emissão vocal.

Perceber e estudar os registros da voz.

2) Divisão e acentuação métrica: diferenciar os compassos por meio das acentuações dos

sons vocais. Atacar um som em um tempo estabelecido com ou sem comando. Substituir

um movimento corporal por um ataque vocal.

3) Memorização métrica: com o hop o educador provoca uma série de ataques vocais medi-

dos e acentuados regularmente que são memorizados e repetidos pelos alunos.

4) Concepção rápida do tempo mediante a visão e a audição: estudar os sinais musicais. Re-

alizar a métrica com os movimentos respiratórios ou com sons vocais de uma série de notas

medidas, escritas no quadro ou entoadas pelo educador.

5) Percepção da “elevação dos sons cantados” mediante a sensação dinâmica muscular: re-

conhecer os diversos graus de tensão da prega vocal e localizar as vibrações sonoras com

a mão apoiada sobre o alto do peito, o pescoço, a mandíbula, as paredes nasais, a testa,

controlando a elevação (altura) e a ressonância (intensidade) da nota emitida. Perceber e

estudar as relações entre a intensidade e a elevação do som. Perceber e estudar tonalidades

maiores e menores. Reconhecer e reproduzir as notas escolhidas na escala. Propor ritmos

diferentes para uma série de notas. Ler melodias.

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6) Aplicação dos exercícios de vontade espontânea e de inibição à voz: ao comando do edu-

cador, substituir uma melodia por movimentos corporais e vice-versa. Acentuar e pontuar

espontaneamente ao sinal do educador. Prontidão para parar e reiniciar o canto ao coman-

do do educador.

7) Concentração e criação da audição interior da sonoridade: cantar uma melodia ou uma

escala e, ao hop do educador, parar de cantar e continuá-la somente em pensamento. Ouvir

a harmonia de um som. Reconhecer timbres.

8) Associação dos movimentos corporais contínuos com os sons vocais sustentados. Explorar

suas combinações com movimentos interrompidos.

9) Aquisição de automatismos vocais, suas combinações e revezamentos com atos vocais de

volição espontânea: cantar uma escala com um ritmo dado e ao comando hop do educa-

dor, continuar cantando com ritmo diferente. Cantar uma escala e saltar uma ou mais notas

de acordo com o sinal do educador.

10) Aplicação dos exercícios de rítmica às realizações vocais: cadeia de ritmos - como a imitação

em cânone, compasso por compasso – de uma melodia cantada pelo educador. Estudar as

pausas.

11) Dissociação: cantar em fortíssimo enquanto o corpo executa um movimento em pianís-

simo e vice-versa. Cantar em crescendo enquanto o corpo executa um movimento em de-

crescendo. Cantar em fortíssimo enquanto um membro se move em crescendo e um outro

em decrescendo e vice-versa. Cantar em crescendo e decrescendo enquanto um membro se

move em fortíssimo e um outro em pianíssimo. Cantar 3 notas enquanto os braços ou os pés

fazem 2, 4 ou 5 movimentos e vice-versa.

12) Estudo dos silêncios e do fraseado: “Silêncios preenchidos por um canto interior. Períodos

e frases. Leis dos contrastes e das oposições. Duplos fraseados” (DALCROZE, 1925, p. 113,

tradução nossa).

13) Dupla e tripla rapidez ou lentidão dos movimentos: cantar uma melodia e, ao comando

hop, executá-la com o dobro de rapidez ou lentidão do compasso (ou do tempo), enquanto

o braço continua marcando o pulso inicial. Combinar e opor a dupla ou tripla rapidez ou

lentidão do som com os membros do corpo.

14) Polirritmia e contraponto plástico: cantar uma melodia e executar um outro ritmo através

de movimentos corporais. Executar um cânone utilizando a voz, as mãos e os pés. Escutar

o ritmo duplo de um compasso, cantar primeiro a voz superior e depois a inferior. Escutar

uma sucessão de acordes e reproduzir cada linha vocal, uma depois da outra.

15) Acentuação patética - matizes dinâmicos e agógicos (a expressão musical): acentuar notas

importantes dos ritmos, acelerar e reduzir a velocidade, fazer os crescendo e decrescendo,

primeiro por instinto e depois por análise. Estudar as relações entre a elevação e a acentua-

ção dos sons.

16) Notação de melodias, polifonias e sucessões harmônicas.

17) Improvisação vocal: criar melodias para um ritmo dado e criar um ritmo para uma melodia

dada com durações iguais.

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18) Direção dos ritmos: o grupo aprende uma melodia e a colore de acordo com as indicações

de um dos alunos.

3 ConCluSão

O processo de educação musical de Dalcroze é fundamentado na vivência, sensação e interiorização da música. Utiliza o movimento corporal como meio para desenvolver os automatismos necessários à execução musical em suas três vertentes principais: o ritmo, o solfejo e a improvisação. Esse processo de educação musical é perfeitamente aplicável ao canto coral.

Para o desenvolvimento do ritmo Dalcroze criou a euritmia, que é a utilização do movimento

corporal para a execução dos ritmos musicais, numa integração entre tempo, espaço e energia.

O solfejo é desenvolvido através de sua vinculação aos movimentos corporais trabalhados na

euritmia e busca o aperfeiçoamento da audição interior. A improvisação, embora abordada

pelo pedagogo com maior profundidade no estudo do piano, também está integrada nas

práticas relacionadas ao ritmo e ao solfejo, o que sinaliza seu grande potencial de aplicação

também no canto coral. Entretanto, para ser bem sucedido na aplicação dos ensinamentos de

Dalcroze, necessita-se de educadores bem preparados para tal.

Defendendo a idéia de que a música é possível para todos, Dalcroze elaborou seu processo

de educação musical para ser aplicado coletivamente, para diversas faixas etárias, atendendo a

diversos interesses, inclusive não musicais. Eis aí outros dois pontos de afinidade com a rotina

do canto coral.

No processo de educação musical de Dalcroze há uma íntima relação entre a música e o

movimento, que parte da exploração rítmica deste, acrescenta elementos melódicos através da voz

e culmina a plasticidade do movimento na busca de expressividade, unindo-se música e dança.

Assim, acredita-se que a aplicação desse processo de educação musical num grupo de canto

coral pode trazer muitos benefícios, não só por conceber a música como algo mais completo e

profundo, dotada de expressividade – para além de ritmos, melodias e harmonias – mas, acima

de tudo, por permitir ao ser humano uma vivência musical mais ampla e integrada – para além

da repetição (mecânica, parcial e intuitiva) dos sons e do individualismo que predomina nas

sociedades atuais.

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Referências

BRITO, Teca Alencar de. Música na educação infantil. São Paulo: Peirópolis, 2003.

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JOSÉ FORtUnatO FeRnanDeS, Método Dalcroze: perspectivas de aplicação no canto coral.

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9292

ARTIGO

ReViSta eSPacO inteRMeDiÁRiO, Sao Paulo, v.i, n.i, p. 92-105, maio, 2010.

RESUMO

Camargo Guarnieri (1907–1993), destacado

compositor paulista no cenário musical

brasileiro, sempre esteve envolvido com

o ensino musical. Além da atuação em

Conservatórios e Universidades, em 1956

foi nomeado Assessor Técnico em Música do

Ministério de Educação e Cultura, ocasião em

que tentou empreender a reforma do ensino

musical. Criou também, no início da década

de 1950, sua Escola de Composição, por onde

passaram dezenas de compositores. A partir

de revisão bibliográfica e da pesquisa em

matérias publicadas nos jornais da época,

este artigo tem como objetivo apresentar

um panorama do percurso de Camargo

Guarnieri em sua constante busca por um

ensino de qualidade, voltado para a música

brasileira em seus desafios e contradições.

ABSTRACT

Camargo Guarnieri (1907–1993), an important,

São Paulo born composer of significant stature

within the Brazilian music scene, has always

been involved in the teaching of music. Besides

his work in Conservatories and Universities, in

1956 he was nominated Technical Advisor for

Music to the Ministry of Education and Culture,

on which occasion he attempted to implement

a music teaching reform. At the beginning

of the 1950s, he also founded the Escola de

Composição (School of Composition), which

was home to dozens of composers. Based on

bibliographical study and research in articles

published in newspapers from that time, this

article seeks to present a broad view of Camargo

Guarnieri´s journey in his incessant quest for

good quality teaching, aimed at Brazilian music

with all its challenges and contradictions.

PALAVRAS-CHAVE

Camargo Guarnieri. Ensino musical.

Nacionalismo.

KEYWORDS

Camargo Guarnieri and music teaching.

Nationalism.

ANA LúCIA kOBAyASHI

Mestre em musicologia pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). e-mail: analucia.

[email protected]

Camargo Guarnieri e o ensino musical1

The Dalcroze method: perspectives for application in choir singing

1 Este artigo é parte da dissertação A Escola de Composição de Camargo Guarnieri (KOBAYASHI, 2009), e tem por objetivo apresentar o trabalho do compositor relacionado ao ensino musical, mostrando suas principais concepções. Por meio de pesquisa bibliográfica (livros, dissertações e, principalmente, artigos de jornais da época), mostra-se um panorama de seu envolvimento com a área.

SOBRE O ARTIGO

Submetido em:

17 / 02 / 2010

Aprovado em:

14 / 04 / 2010

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ARTIGO

ana Lúcia KOBayaShi, camargo Guarnieri e o ensino musical.

1 IníCIo dA CArrEIrA CoMo profESSor

Em 2007, comemorou-se o centenário de nascimento do compositor paulista Camargo

Guarnieri (1907–1993), cuja produção musical, segundo o pianista José Eduardo Martins, tem

sido um dos temas de estudo mais procurados por alunos dos Programas de Pós-graduação

em Música no Brasil - e “isto se deve ao fato de, em pertencendo à trindade nacionalista -

junto a Villa-Lobos e Francisco Mignone -, Guarnieri ter-se destacado pela profunda ciência

composicional, prevalecendo sobre os seus ilustres colegas no segmento do esmero da feitura

criativa” (MARTINS, 1993, p. 34). No entanto, além de sua atuação como compositor, Camargo

Guarnieri preocupou-se também com o ensino musical desde o início de sua carreira.

Camargo Guarnieri iniciou sua carreira de professor aos 21 anos. Ingressou no corpo

docente do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo como professor de piano e de

acompanhamento. Três anos depois, assumiu também a classe de composição do maestro

italiano Lamberto Baldi (1895–1979), que havia se transferido para o Uruguai para assumir o

cargo de diretor do Serviço Oficial de Difusão da Rádio Elétrica (VERHAALEN, 2001, p. 25). No

ano seguinte, Guarnieri foi nomeado chefe do Departamento de Piano.

O Conservatório Dramático e Musical de São Paulo surgiu num momento de efervescência

cultural, social e econômica, devido ao enriquecimento do Estado de São Paulo graças ao cultivo

do café. Segundo Elizabeth Azevedo, “todo tipo de iniciativa comercial, industrial ou cultural

tinha o seu lugar, desde as mais populares até aquelas direcionadas a uma elite segura de si

e desejosa de deixar sua marca na paisagem da cidade” (2006, p. 1). O Conservatório paulista

foi criado em 1906, nos moldes do Conservatório de Paris - tido, na época, como uma das

melhores referências em formação musical. No início, esteve sediado à Rua Brigadeiro Tobias e

posteriormente, em 1909, mudou-se para a Avenida São João. A instituição ganhou prestígio e

contou com alunos como Francisco Mignone (1987-1986) e Mário de Andrade (1893-1945).

Camargo Guarnieri desligou-se do Conservatório em 1931, mas para lá retornaria em 1960 como

professor de piano, orquestração e composição. Nesse mesmo ano, a cúpula do Conservatório

Dramático e Musical de São Paulo reuniu-se e o elegeu, por unanimidade, diretor da instituição.

Entretanto, Guarnieri permaneceria apenas dez meses no cargo. Seu pedido de exoneração

deveu-se à incompatibilidade da estrutura da instituição com sua vontade de estabelecer um

currículo que preparasse, de forma mais equilibrada, tanto instrumentistas quanto compositores

(VERHAALEN, 2001, p. 50). Em seu discurso de exoneração, Guarnieri declarou que:

Hoje, após dez meses de administração, concluo que não é mais possível prosseguir a menos que

ponha em jogo minha dignidade de cidadão e minha honorabilidade de artista. [...] O Conservatório

Dramático e Musical de São Paulo, em suas atuais condições, é simplesmente inadmissível. Vícios

de origem corroem-lhe as entranhas. A indisciplina, o desrespeito são seus esteios. Intrigas,

maquinações as mais estúpidas povoam os seus corredores (apud ABREU, 2001, p. 48).

Os “vícios de origem” mencionados por Guarnieri referiam-se à grande ênfase dada ao

ensino de piano naquela instituição, à qual o compositor denominava “pianomania” ou, como

2 Proveniente de Isernia (Itália), Luigi Chiafarelli transferiu-se para o Brasil em 1880. Foi um dos mais importantes professores de piano no país, tendo formado pianistas como Guiomar Novaes e Antonieta Rudge.

3 À frente do Departamento de Cultura de São Paulo entre 1936 e 1939, Mário de Andrade concedeu a direção do Coral Paulistano a Ca-margo Guarnieri.

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ARTIGO

dizia Mário de Andrade, “pianolatria”. A ênfase sobre o ensino desse instrumento não era

recente: vinha desde o início da fundação do Conservatório, com a criação do departamento

de piano por Luigi Chiafarelli (1856–1923) 2. No início do século XX, o instrumento passou a

ocupar lugar cada vez mais importante, seja no surgimento de professores, na promoção de

recitais, no comércio especializado ou na criação de conservatórios, desempenhando, assim,

um significativo papel sócio-histórico (FUCCI AMATO, 2007, p. 3). Na ótica de uma sociedade

de classes, o piano tornou-se símbolo de status social, indicador de boa formação das moças

da época que, em busca do casamento, teriam, entre suas habilidades, além de cozinhar e

costurar, tocar o instrumento.

Segundo Márcia Camargos, o Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, ao invés

de investir na formação de instrumentistas de cordas e cantores líricos para “possibilitar a

constituição de uma orquestra e fornecer intérpretes às produções do Teatro Municipal,

inaugurado em 1911 na mesma área, [...] rendeu-se à pianolatria” (CAMARGOS, 2006). Todavia,

é questionável atribuir a ausência de músicos de outros instrumentos a uma escolha do

Conservatório pelo ensino do piano. A grande demanda de alunos por esse instrumento

parece dever-se mais ao momento de prestígio do mesmo, tendência que o Conservatório

acompanhou.

Surgiu então, em 1938, uma oportunidade para que Guarnieri estudasse na França, por

meio de uma bolsa de estudos oferecida pelo governo brasileiro. Esse período, porém, não

foi muito longo. Devido à Segunda Guerra Mundial, Guarnieri foi forçado a retornar ao Brasil

no ano seguinte. Agora, no entanto, sem seu posto de regente do Coral Paulistano3 e sem o

cargo anterior no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, o compositor enfrentou

uma situação financeira difícil. Assim, em 1942, esteve prestes a aceitar o convite que recebera

do diretor do Conservatório Dramático e Musical do Panamá, Alfredo de Saint-Malo (1898 –

1984), para lecionar composição durante dois anos naquele país (VERHAALEN, 2001, p. 39). Em

entrevista ao Diário de Notícias, Guarnieri relatou que:

Foi uma verdadeira surpresa para mim. E é difícil explicar a satisfação que tive. Confesso que se

o aceitar, faço-o bastante constrangido. Compreenda que é duro a gente abandonar, talvez para

sempre, a terra em que nasceu, onde se viveu a maior parte da vida, onde realizamos nossa obra.

[...] Quando se vive como eu, premido pelos imperativos econômicos, uma proposta como esta é

como um presente do céu (apud DANTAS, 1942).

É interessante observar a reação da imprensa brasileira acerca desse convite. A Folha da Noite

aproveitou a notícia para manifestar seu desagrado com a partida de outros artistas brasileiros

para o exterior, como Guiomar Novaes, Francisco Mignone e Dinorá de Carvalho - declarando

que, “nesse andar, a grande música brasileira se transferirá definitivamente para o norte do

Continente” (apud VERHAALEN, 2001, p. 40). João Itiberê da Cunha manifestou sua indignação

em artigo publicado pelo Correio da Manhã em 16 de abril de 1942, declarando que:

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Camargo Guarnieri é um padrão de glória para o Estado em que nasceu e para a Pátria a que

pertence. Mereceria tratamento carinhoso. Devia ter pelo menos garantida a subsistência na sua

terra de nascimento. Não a tem. Sua vida é aleatória. Cheia de pontos de interrogação no que

concerne às questões financeiras...

[...] Mas, se os governos de São Paulo e o Federal nada fazem pelo ilustre artista patrício – que já fez jus à

proteção de ambos – é o menos que ele se vingue levando para o Panamá toda a experiência das suas luz

es, toda a sutileza da sua erudição de profissional e de virtuose. O que nós perdemos por imprevidência e

falta de patriotismo, ganham os panamenhos à nossa custa (apud VERHAALEN, 2001, p. 39).

Basílio Itiberê da Cunha culpava o governo por não fornecer o suporte financeiro

necessário ao compositor. Afirmações como essa eram comuns entre músicos e artistas em

geral, que consideravam justo receberem auxílio governamental para darem expressão a sua

arte. O “projeto nacionalista”, que estava em conflito com a preferência do público pela música

e cultura européias, visava à criação de uma linguagem artística nacional. Para a divulgação

desta música, porém, os nacionalistas acreditavam ser primordial o apoio do Estado, assim

como no custeio dos gastos e na criação de um circuito de música nacional, que “deveria

incluir conservatórios, teatros, corais, orquestras e público” (EGG, 2004, p. 11). Dentro dessa

visão, caberia ao Estado a responsabilidade sobre a criação artística, fornecendo ao artista

subsistência, a divulgação de suas obras e enviando-o, preferencialmente, para o exterior,

arcando com sua manutenção.

O ano de 1930 marcava a transição entre uma política caracterizada pela autonomia das

províncias e a centralização do poder, com a ascensão de Getúlio Vargas. Alessandra Lisboa

afirmou que:

Essa ruptura dos moldes administrativos tradicionais fez-se acompanhar de uma revolução cultural

que guiou a idéia de construção da Nação Brasileira, pautada por idéias de identidade, coletividade

e progresso. Esse conjunto de idéias, que aos poucos tomou forma no país a partir da implantação

do regime republicano, acabou por se tornar a forma ideológica que expressava o contexto da

época. Essas idéias, que a historiografia cunha de ideologia nacionalista, manifestaram-se na

política, economia e cultura nacionais, com força e influência (LISBOA, 2005, p. 13).

Segundo Egg, com a Revolução de 1930,

Os nacionalistas tenderam a associar a noção de Brasil novo, criada com a revolução, à de música

nova – que corresponderia ao modernismo nacionalista que deveria ser apoiado pelo novo regime.

Vários nacionalistas passaram a ocupar cargos ou assessorar o governo Vargas, que viam como um

marco da atuação do Estado em favor da música nacional (EGG, 2004, p. 24).

Assim, de um Estado centralizado e forte podia-se esperar medidas de caráter nacional que

refletissem as novas condições sociais e econômicas. No governo Vargas, a educação revestiu-

se da idéia de universalidade – a educação como um direito de todos – e a música passou a

ter um papel de destaque, pois, enquanto produção artística ligada à coletividade, poderia ser

usada como um fator de coesão nacional.

ana Lúcia KOBayaShi, camargo Guarnieri e o ensino musical.

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Uma das primeiras medidas tomadas pelo governo foi a reforma do Instituto Nacional

de Música. Luciano Gallet (1893-1931), nomeado diretor do Instituto, tinha como objetivo

transformar o ensino musical, até então voltado para a formação de intérpretes da música

romântica européia, em prol da formação de músicos capacitados para a criação de “música

brasileira”.

O momento histórico correspondente à Revolução de 1930 trouxe também uma

oportunidade para Villa-Lobos. Em 1931, o compositor fora convidado por Anísio Teixeira,

secretário de educação do Distrito Federal, para coordenar a implantação do canto orfeônico4

que, mais tarde, passaria a ser obrigatório em todas as escolas brasileiras.

Segundo alguns autores, a implantação de iniciativas como o ensino do canto orfeônico

era um “modo de inculcar na população uma consciência cívico-patriótica, com a intenção de

transformar as multidões tumultuosas em massas disciplinadas e ordeiras” (EGG, 2004, p. 27).

Mas o projeto nacionalista tinha um custeio alto, que o governo Vargas não estava disposto a

cobrir totalmente,

Por seu custo mais elevado, pelas dificuldades práticas de implementação e pelo pouco resultado

político que ele daria no curto prazo. Era muito mais fácil para o governo viabilizar um projeto

cultural mais superficial capaz de satisfazer os modernistas sem causar grandes mudanças

estruturais, ao mesmo tempo em que dava asas à nascente música comercial (EGG, 2004, p. 31).

Camargo Guarnieri, por fim, não deixou o Brasil. Recusou o convite de Alfredo de Saint-Malo

e aceitou outro, da União Pan-Americana. Passou seis meses nos Estados Unidos, com o apoio

do Departamento de Estado Norte-Americano5, o que considerou ser uma boa oportunidade

de conhecer o meio musical e divulgar suas obras naquele país. Nos Estados Unidos, teve a

oportunidade de reger a Orquestra Sinfônica de Boston e ver executadas algumas de suas

composições. Também nesse período, recebeu seu primeiro prêmio internacional pelo Concerto

nº. 1 para violino e orquestra (1940), premiado no concurso The Edwin A. Fleischer Music Collection.

2 ASSESSor téCnICo dE MúSICA do MInIStérIo dE EduCAção E CulturA

Transcorridos 14 anos de sua ida para os Estados Unidos, a atividade seguinte de Guarnieri

relacionada ao ensino musical seria sua nomeação, em 1956, para o cargo de Assessor Técnico

de Música do Ministério de Educação e Cultura, durante o governo de Juscelino Kubitschek,

pelo então Ministro Clóvis Salgado6 (1906 – 1978). Sua função seria a de auxiliar ou assessorar

o Ministro nas questões referentes à música, incluindo seu ensino.

Essa nomeação teve grande repercussão na imprensa, que publicou diversos artigos

discutindo os problemas que Camargo Guarnieri teria que enfrentar. Com relação ao Ministro

e as razões pelas quais aceitou o cargo, o compositor colocou que:

O ministro [...] é um homem esclarecido e de grande cultura. Gosta muito de música e está

altamente interessado em efetuar uma grande melhora no ensino musical e no desenvolvimento

4 “[...] modalidade de canto coletivo surgida na Europa [...] pensado para ser um alfabetizador musical de grandes massas populares, em con-trapartida ao ensino profissionali-zante ministrado em conservatórios, escolas de música especializadas e também em instituições de ensino regular particular, como liceus e colé-gios ligados a ordens religiosas” (LIS-BOA, 2005, p. 12).

5 Destaca-se que, durante os anos de 1933 e 1945, o governo norte-amer-icano caracterizava-se pela Política da Boa Vizinhança (Good Neighbor Policy), que consistia na troca de in-vestimentos e tecnologia por apoio à política norte-americana.

6 O Ministro Clóvis Salgado foi o re-sponsável pela inclusão da educa-ção no Plano de Metas (1956/61) do governo do presidente Juscelino Ku-bitschek. Para a educação, meta de número 30, foram previstas diversas medidas administrativas relaciona-das a todos os níveis de ensino, con-sideradas essenciais para “viabilizar a formação de mão-de-obra e a criação de um ambiente favorável ao projeto desenvolvimentista” (ROTTA, 2007, p. 130).

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e aperfeiçoamento do bom gosto artístico no Brasil. Aliás, foi somente porque vi seu real interesse

e uma grande oportunidade de contribuir para o progresso de nossa arte, que resolvi aceitar o

convite, embora já sobrecarregado de trabalho (apud BRISOLLA, 1956).

A imprensa da época manifestou-se favorável quanto à decisão do Ministro Clóvis Salgado

em nomear um compositor para o cargo - e não um político, diplomata, médico ou engenheiro.

Em artigo publicado no Jornal do Brasil, Renzo Massarani fez um apelo: “Não pediremos ao

ministro e a Camargo uma imediata revolução, mas um trabalho em profundidade, severamente

estudado e corajosamente realizado” (MASSARANI, 1956).

Em entrevistas aos jornais Correio do Povo, A Gazeta e Correio da Manhã, Guarnieri apontou,

no seu modo de ver, os principais problemas da educação musical no país. Mesmo tendo sido

nomeado para um cargo relacionado ao ensino público, Guarnieri não criticou somente este,

mas também o ensino particular de música.

Com relação à iniciação musical, Guarnieri julgava que esta deveria ser oferecida desde

a escola primária e somente por professores especializados - pois, segundo ele, o ensino de

crianças era muito mais complexo do que o de adultos. Fez também uma crítica severa às

bandas rítmicas formadas nas escolas, porque, segundo ele, as crianças somente poderiam tocar

depois de adquirirem um conhecimento prévio de solfejo rítmico, teoria e desenvolvimento do

senso auditivo. No artigo Crítica sincera da situação do ensino musical no Brasil, publicado em

1956 no jornal A Gazeta, afirmou que não acreditava que as crianças fossem verdadeiramente

iniciadas musicalmente por meio das bandas rítmicas, mas que apenas repetiriam os padrões

rítmicos por imitação. Dessa forma, a criança, segundo o compositor, ficaria fatigada e passaria

a não gostar mais de música.

Ao fazer tais declarações, porém, Guarnieri esquecia-se da própria iniciação musical. Ao

recordar suas aulas com Benedito Flora, declarou que:

Na primeira semana, Benedito Flora nos ensinou a desenhar uma semibreve e passamos a aula

toda fazendo semibreves. Na semana seguinte aprendemos a mínima. Muito fácil! Na terceira

semana ele ensinou a semínima. Que trabalho difícil! Na quarta semana ele misturou tudo... Não

voltei mais e durante o horário das aulas ficava brincando em um grande jardim perto de sua casa

[...] (apud VERHAALEN, 2001, p. 20).

É interessante observar que, nessa fala, o próprio Guarnieri alertava o quanto as aulas

teóricas poderiam se tornar excessivamente enfadonhas, com o risco de conduzirem a

um resultado inverso ao desejável. Isto é, ao ser submetida às aulas de solfejo, teoria e

percepção, sem atividades práticas, é provável que a criança desista ou perca o interesse

pela música.

Guarnieri julgava necessária a abolição do manossolfa7 e a tendência a se praticar

exclusivamente obras de caráter patriótico. Nesses aspectos, pode-se perceber que as críticas

do compositor referiam-se à prática do canto orfeônico. De acordo com suas convicções,

Guarnieri acreditava que:

ana Lúcia KOBayaShi, camargo Guarnieri e o ensino musical.

7 “[...] sistema que alia sinais manuais às notas musicais”. (FONTERRADA, 2005, p. 144).

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[...] a educação musical tem a finalidade de desenvolver o amor pela música e não criar falsos

teóricos que, embora conheçam os valores das notas, nunca ouviram um Beethoven ou um Mozart,

quanto mais um compositor recente (apud BRISOLLA, 1956).

A fim de evitar a rejeição da música pelo aluno em conseqüência das práticas docentes,

a solução apontada por ele seria dar maior atenção aos processos de ensino, promovendo

audições de obras comentadas pelos próprios alunos com a orientação do professor, seguindo

a idéia de que “a participação ativa do aluno é o fator mais importante do aprendizado”

(BRISOLLA, 1956).

Ao referir-se a Beethoven e Mozart, por exemplo, Guarnieri parecia aderir à tradição

musical européia, destacando a importância do ensino da “música culta” e dos mais recentes

compositores que a cultivavam.

Quanto às escolas especializadas, Guarnieri criticou a existência da grande quantidade

de conservatórios e escolas de música, principalmente em São Paulo. De acordo com ele,

esses conservatórios fariam do ensino apenas um comércio. O compositor acreditava que

o país estaria sofrendo de “pianomania”, ou seja, só se estudava piano, enquanto os outros

instrumentos eram deixados de lado.

Mário de Andrade posicionou-se de modo similar em um discurso de paraninfo em 1935,

contrário à “[...] miserável mutação de música em comércio, pois o freguês pede virtuosidade, o

ensino musical tem se preocupado em nos dar virtuoses. Não se ensina música no Brasil, vende-

se virtuosidade” (ANDRADE, 1975, p. 189). Mário de Andrade acreditava que a “virtuosidade”,

tida como o domínio de habilidades técnicas, garantia de aplausos e dinheiro, chegava a se

sobrepor ao valor da própria obra musical e seu compositor. Dessa maneira, o virtuosismo não

implicaria necessariamente uma formação musical de qualidade.

Segundo Guarnieri, quanto à admissão de novos alunos, os conservatórios apenas se

preocupavam com critérios quantitativos - e não qualitativos. Muitos ali estavam somente

interessados em obter um diploma, e não em se dedicar ao estudo da música. A obtenção

do diploma seria uma forma de ascensão social, uma maneira de se destacar dos demais.

Guarnieri, no entanto, parecia assumir uma postura diferente, segundo a qual somente os que

demonstrassem maior interesse deveriam ter acesso ao estudo da música.

O compositor era contundente acerca dos compêndios de solfejo utilizados nos

conservatórios. Apontou a ausência de interesse artístico desses compêndios e uma lacuna

de abordagem quanto aos problemas rítmicos que a música mais recente apresentava. Ainda

quanto ao currículo, defendeu que as escolas deveriam adotar um programa mais flexível, de

acordo com as necessidades de cada aluno e, contraditoriamente, propôs que a teoria viesse

antes da prática, ao afirmar que o aluno só deveria ser iniciado no instrumento depois que

fosse capaz de escrever um ditado melódico de duas, três ou quatro vozes. Todavia, essa

concepção de currículo flexível, com a teoria antecedendo a prática, não parecia adaptável às

necessidades de cada aluno. Eis a contradição.

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Ainda no artigo Crítica sincera da situação do ensino musical no Brasil, o compositor abordou

outro aspecto que considerava um problema do ensino musical: a sobrevivência das orquestras.

O esforço que estas realizavam para se manterem ativas devia-se, segundo Guarnieri, a dois

fatores: a falta de auxílio oficial e a falta de instrumentistas. Como se privilegiava o estudo do

piano, faltavam outros instrumentistas, principalmente de sopro. A solução para esse problema

seria estabelecer a gratuidade do ensino desses instrumentos e estimular o estudo por meio

de professores especializados, visto que no Brasil, segundo ele, era muito comum “um flautista

ensinar clarinete, ou um clarinetista ensinar fagote ou corno” (FRANÇA, 1956). Mais uma vez,

pode-se observar a expectativa de que o governo fosse o responsável pela manutenção e

disseminação da cultura musical no meio das orquestras.

Pode-se dizer, também, que sua preocupação com essa questão ia além da formação

genérica de intérpretes. Guarnieri esperava que a formação do instrumentista contemplasse,

em especial, a “música nacionalista”, o que até então não acontecia. Os intérpretes eram

formados de maneira a perpetuarem a tradição da música européia.

Quanto ao ensino da composição, Guarnieri declarou-se muito insatisfeito. Não compreendia

que um professor de composição que não fosse compositor, já que sua assistência seria de grande

importância por ser “capaz de sugerir diversos caminhos, quando um aluno está em dificuldades

com alguns problemas e é capaz de esquecer as regrinhas rançosas de velhos tratados, em favor de

uma solução de ordem estética. [...] Um mau professor destrói um futuro compositor, embotando-

lhe as idéias, atrofiando-lhe a fantasia” (GUARNIERI apud FRANÇA, 1956).

Outro curso ineficiente para Guarnieri era o de regência. Visto que os conservatórios ou

escolas raramente possuíam um conjunto orquestral, o compositor questionava como seria

possível um aluno adquirir a técnica de regência orquestral sem ter à sua frente uma orquestra

com a qual pudesse praticar. A regência orquestral era ensinada com um professor ao piano

e o aluno imaginando a orquestra. Segundo o compositor, “o equilíbrio da sonoridade e

a expressão do gesto, que são tão importantes ao regente, nunca, dessa maneira, serão

alcançados” (GUARNIERI, 1956).

As amplas críticas de Camargo Guarnieri ao ensino musical no Brasil tomaram como base

seu próprio percurso profissional – e, naquele momento, nem poderiam apresentar dados mais

precisos, assim como nenhum problema novo, parecendo apenas dar voz ao que era corrente

entre os músicos da época. Suas opiniões, por diversas vezes, beiraram o senso comum e não

diferiram substancialmente das críticas que ainda hoje perduram.

Muitos dos problemas citados por Guarnieri emergiam, principalmente, do modelo de

ensino adotado no Brasil, baseado nos conservatórios europeus, com disciplinas voltadas para

o ensino de instrumentos. As modificações propostas não visavam propriamente a mudança

do modelo institucional já existente, mas sua reforma interna, alterando aspectos curriculares.

No íntimo, pretendiam dar continuidade e sedimentar o “projeto nacionalista” propugnado

por Mário de Andrade: a criação de uma arte brasileira, a partir do desenvolvimento da arte

culta e com apoio do Estado.

ana Lúcia KOBayaShi, camargo Guarnieri e o ensino musical.

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Alguns aspectos apontados por Guarnieri ainda estão presentes em discussões a respeito

da educação musical no Brasil nos dias de hoje. Como exemplo, pode-se citar o retorno da

música nas escolas, tanto particulares como públicas, que traz novamente o debate sobre a

formação do professor de educação musical, o conteúdo a ser abordado e a função da música

na escola, a fim de buscar propostas que a tornem uma experiência relevante na formação

escolar.

3 rEforMA do EnSIno MuSICAl

Como parte dos afazeres de seu cargo – Assistente Técnico de Música do Ministério de

Educação e Cultura -, Camargo Guarnieri apresentou um plano de ação inicial: a reforma do

ensino musical superior. A fim de adotar um sistema utilizado em outros países, o compositor

elaborou um projeto apresentado ao Ministro Clóvis Salgado, assim descrito:

Aqui no Brasil, infelizmente os estudantes apenas conseguem um diploma em música depois

de completado o colegial, pois os Conservatórios não possuem cursos de humanidades. Então,

o aluno é obrigado a terminar o segundo grau para depois entrar na Faculdade de Música, e

isso demora muito. Propus, em meu projeto, que os estudantes fizessem o que é costumeiro

nos Estados Unidos, Europa e Rússia. Freqüentariam o Conservatório das 7 da manhã às 6 da

tarde, estudando música e todas as outras matérias do currículo escolar (GUARNIERI apud

VERHAALEN, 2001, p. 28).

Antes de enviar o projeto ao Congresso, porém, foi nomeada uma comissão de reforma

do ensino musical designada pelo Ministério de Educação e Cultura, da qual faziam parte

Camargo Guarnieri, Andrade Muricy (1895 – 1984)8, Otavio Bevilacqua (1887 – 1959)9 e Moacyr

Liserra (1905 – 1971)10. O objetivo dessa comissão foi avaliar e melhorar o projeto por meio da

análise dos currículos dos conservatórios. Em artigo publicado pelo Correio do Povo, em 18 de

Julho de 1957, anunciou-se que, a partir daquela data, a comissão de reforma passaria a contar

com a participação do pianista Arnaldo Estrela (1908 – 1980)11.

Após o aperfeiçoamento do projeto, Guarnieri sugeriu que o documento fosse enviado

a todas as escolas de música, a fim de receber sugestões. Segundo o compositor, “[...] os

resultados foram desanimadores – recebemos apenas duas respostas, ambas negativas” (apud

VERHAALEN, 2001, p. 49).

Questionado sobre sua atuação no cargo, Guarnieri declarou que “fiz pouco, pois o plano que

elaborei dirigia-se às escolas. E estas, cujos professores e diretores estão sempre plenamente

satisfeitos com seu desempenho, não se deram ao trabalho de pensar sobre o assunto” (apud

ABREU, 2001, p. 47). A permanência de Camargo Guarnieri como Assessor Técnico em Música

terminou em 1960, sem que a sua pretendida reforma se realizasse. Não foi possível encontrar

mais notícias sobre o andamento do projeto que, provavelmente, foi deixado de lado.

8 Crítico musical e literário, José Cândido de Andrade Muricy es-creveu para os jornais A Folha e Jornal do Commercio. Lecionou História da Música e Estética Mu-sical na Escola Nacional de Música, atual Escola de Música da Universi-dade Federal do Rio de Janeiro. Foi também professor no Conservató-rio Nacional de Canto Orfeônico e ministrou aulas de Estética Musical no Conservatório Brasileiro de Mú-sica.

9 Professor e crítico musical, le-cionou no Instituto Nacional de Música, hoje Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Ja-neiro. Comissionado, viajou pela Europa a fim de conhecer os méto-dos utilizados no ensino musical.

10 Flautista, foi membro fundador da Orquestra Sinfônica Brasileira e da Orquestra Sinfônica Nacional. Entre suas obras didáticas encon-tra-se o livro A flauta – Origem, evolução e arte de tocá-la (1944).

11 Pianista brasileiro de renome, lecionou na Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Ja-neiro.

ReViSta eSPacO inteRMeDiÁRiO, Sao Paulo, v.i, n.i, p. 92-105, maio, 2010.

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101

ARTIGO

4 AtuAção nAS unIvErSIdAdES

Guarnieri também lecionou no Conservatório de Santos (SP) e em duas universidades

públicas: Universidade Federal de Goiás e Universidade Federal de Uberlândia (MG).

É importante destacar que a incorporação dos cursos de música às universidades brasileiras

deu-se, em sua maioria, na década de 1960, época da implantação de um modelo de universidade

em que ensino e pesquisa estavam associados. No entanto, o currículo adotado nos cursos

superiores de música não era muito diferente dos utilizados pelos conservatórios, ou seja,

Disciplinas estanques, aulas particulares de instrumentos, ênfase no adestramento musical, crença

na idéia de que aprendizado musical resume-se à capacidade de adquirir manejo da linguagem

musical, ausência de pesquisa – conforme tradição advinda do ensino de música da tradição

centro-européia (KERR et al., 2006, p. 2).

Os professores que passaram a atuar no ensino superior de música foram selecionados

com base em suas atividades profissionais como instrumentistas, solistas ou docentes em

geral, possuindo ou não diploma de curso superior – e, quando o possuíam, esse poderia ser

de qualquer modalidade, isto é, de outras áreas do conhecimento.

Assim, mesmo sem formação acadêmica, Camargo Guarnieri integrou o corpo docente da

Universidade Federal de Uberlândia12 entre 1965 e 1990. Nessa instituição, lecionou Harmonia,

Composição, História da Música e Piano.

Paralelamente, desde 1967, foi também professor na Universidade Federal de Goiás, cujo

Instituto de Artes fora criado em 1960. Ali, deu aulas de piano, análise formal das invenções

de Bach, contraponto e apreciação musical. Em 1974, tornou-se professor titular do quadro

permanente da Universidade. Segundo Rosa, mesmo após completar 70 anos de idade,

Guarnieri continuou a freqüentar a Universidade, ministrando os cursos de contraponto e

organização do conjunto de cordas (ROSA, 2005, p. 23).

É importante mencionar que, em 1987, a Universidade Federal de Goiás concedeu

a Camargo Guarnieri – então com 80 anos de idade – o título de Doutor honoris causa. No

documento Justificativa da proposta para a concessão do título de doutor honoris causa ao

maestro Camargo Guarnieri, Dalva Albernaz do Nascimento, diretora do Instituto de Artes da

Universidade Federal de Goiás, ao apresentar uma breve biografia do músico, ressalta o fato de

ser ele “o único compositor brasileiro que mantém um curso de composição com o intuito de

formar artistas conscientes da problemática da música nacional quanto à estética, às formas, à

linguagem e aos meios de realização” (apud ROSA, 2005, p. 117).

5 A ESColA dE CoMpoSIção

Ao mesmo tempo em que se dedicava a diversas atividades - como compositor, regente,

professor de diversas instituições e assessor técnico -, Guarnieri também ministrava aulas

particulares de composição. Convicto de seus ideais estéticos e de sua responsabilidade

ana Lúcia KOBayaShi, camargo Guarnieri e o ensino musical.

12 O Conservatório Musical de Uber-lândia foi criado em 1957 e surgiu como a primeira faculdade isolada no processo de criação da Univer-sidade Federal de Uberlândia.

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102102

ARTIGO

como compositor, estabeleceu sua Escola de Composição13 baseada nas teorias de Mário de

Andrade e em sua própria experiência musical, com o intuito de formar artistas conscientes da

problemática da música brasileira e de fornecer meios para que jovens compositores pudessem

se expressar musicalmente.

Camargo Guarnieri acreditava que a música deveria se basear no estudo e no aproveitamento

do folclore nacional, noção que refletia a influência do pensamento nacionalista de

Mário de Andrade, com quem manteve contato durante 17 anos. Entretanto, Guarnieri se

autodenominava um compositor nacional, afirmando seu desejo de compor música brasileira

desde antes mesmo de conhecer o escritor. Tendo sido aluno de Ernani Braga (1888-1948),

Sá Pereira (1888-1966) e Lamberto Baldi (1895-1979), também envolvidos com o movimento

nacionalista, fortaleceu seus conceitos no posterior encontro com Mário de Andrade (SILVA,

2001, p. 3).

Segundo Antonio Ribeiro, ex-aluno de Guarnieri, o próprio compositor não se lembrava

da data exata de início da sua Escola de Composição - e nem quem teria sido seu primeiro

aluno -, mas pode-se acreditar que mais de 30 compositores passaram por suas mãos, entre os

quais podemos citar Achille Picchi, Alceo Bocchino, Adelaide Pereira da Silva, Antonio Ribeiro,

Ascentino Theodoro Nogueira, Aylton Escobar, Domenico Barbieri, Eduardo Escalante, José

Antonio de Almeida Prado, Júlio César Figueiredo, Kilza Setti, Marlos Nobre, Nilson Lombardi,

Oliver Toni, Osvaldo Lacerda, Raul do Valle e Sérgio Vasconcellos Corrêa.

Apesar da imprecisão da data, atribui-se o início das atividades da Escola de Composição de

Camargo Guarnieri aos primeiros anos da década de 1950. Embora tenha lecionado composição

antes desta data14, a intensificação dessa atividade deu-se após a publicação da Carta Aberta

aos Músicos e Críticos do Brasil, em novembro de 1950. Nesse documento, Guarnieri manifestou

violentamente seu descontentamento com a difusão da técnica de composição dodecafônica.

Seu intuito, segundo Abreu, era o de “impedir que a música brasileira viesse a se diluir num

universalismo impessoal” (ABREU, 2001, p. 47).

Com a publicação da Carta Aberta aos Músicos e Críticos do Brasil, Guarnieri alertava aos

jovens compositores quanto ao que considerava o “perigo” da técnica dodecafonista. Segundo

ele, ao ser utilizada sem uma boa base musical, essa técnica composicional poderia conduzir

a obras resultantes de mera manipulação de notas, destituídas de propostas estéticas

(VERHAALEN, 2001, p. 48).

A “orientação atual dos jovens compositores” (GUARNIERI apud SILVA, 2001, p. 143),

mencionada na Carta, referia-se aos ensinamentos propagados por Hans-Joachim Koellreutter

(1915–2005), compositor e professor alemão que chegou ao Brasil em 1937 fugido do nazismo.

A partir das atividades que veio a desenvolver, Koellreutter tornou-se um grande agitador do

meio musical brasileiro, atuando no ensino da música, apresentando novas idéias musicológicas

e disseminando novas técnicas da música contemporânea. Foi fundador e líder do movimento

Música Viva, criado em 1939, que atuou principalmente no Rio de Janeiro e em São Paulo com

o objetivo principal de movimentar a atividade musical por meio da divulgação da música

13 Quando se fala em Escola de Com-posição de Camargo Guarnieri, é necessário que se faça distinção entre os dois significados do termo escola apontados por dicionários e enciclo-pédias. O significado mais comum designa um estabelecimento de ensi-no, com lugar físico e institucional-izado; o segundo remete a um grupo de discípulos que, em torno de um professor, se esforça para propagar, desenvolver e difundir a doutrina de seu mestre. A Escola de Composição de Camargo Guarnieri encaixa-se na segunda definição do termo, ou seja, foi formada por alunos que seguiram, durante espaços variados de tempo, os seus ensinamentos sobre como a composição da música brasileira de-veria ser feita.

14 Como professor de Eunice Catun-da e Dinorá de Carvalho.

ReViSta eSPacO inteRMeDiÁRiO, Sao Paulo, v.i, n.i, p. 92-105, maio, 2010.

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ARTIGO

contemporânea, “principalmente brasileira, e a música ainda pouco conhecida do passado. Ou

seja, valorizar a música nova, ainda não ouvida, tenha sido composta recentemente ou não”

(EGG, 2005, p. 61).

A repercussão da Carta Aberta aos Músicos e Críticos do Brasil foi grande. Sua divulgação

deu-se em âmbito nacional, em uma época em que a música erudita tinha espaço na imprensa.

O que se seguiu foi uma forte divisão de opiniões no meio musical a respeito do documento,

tanto por parte de compositores como de intérpretes e críticos.

As conseqüências da publicação não foram sentidas por Guarnieri de imediato. Até o final

da década de 1950, o nacionalismo se manteve como tendência dominante na composição

brasileira. Porém, segundo Neves, com o falecimento de Villa-Lobos em 1959 e a introdução

de novos movimentos de renovação musical, o nacionalismo começou a perder forças (NEVES,

1981, p. 145-146). Assim,

[...] aparece na música brasileira um sincronismo claro com a pesquisa criativa desenvolvida nos

diferentes países do mundo: os jovens compositores brasileiros seguirão praticando o serialismo

integral, a aleatoriedade, a arte-total, a eletroacústica (NEVES, 1981, p. 147).

A partir desse momento, e segundo as idéias dos que procuravam percorrer o caminho

dessas novas tendências, Guarnieri passou a representar o que havia de mais retrógrado na

música brasileira, afirma Lutero Rodrigues (1993).

Porém, mesmo sendo duramente criticado, o compositor manteve suas convicções e

prosseguiu, durante mais de 40 anos - e de forma ininterrupta -, com o trabalho em sua Escola

de Composição, formando compositores bastante atuantes no cenário musical brasileiro.

6 ConSIdErAçÕES fInAIS

A partir do panorama apresentado, destaca-se o fato de que algumas das questões

apontadas por Camargo Guarnieri ainda estão presentes no ensino musical brasileiro. Questões

como o conteúdo a ser ensinado e a preocupação com os profissionais de educação musical

serão sempre atuais. Por isso, seu exemplo segue como importante referência, seja como

mestre, por seu compromisso com um ensino musical de qualidade, seja por seu olhar crítico,

sempre em busca de melhorias no campo da música.

ana Lúcia KOBayaShi, camargo Guarnieri e o ensino musical.

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104104

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ana Lúcia KOBayaShi, camargo Guarnieri e o ensino musical.

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RELATOS DE EXPERIÊNCIA

ReViSta eSPacO inteRMeDiÁRiO, Sao Paulo, v.i, n.i, p. 106-115, maio, 2010.

RESUMO

O texto apresenta fatos, idéias e questionamen-

tos sobre Educação Musical, Arte-Educação

e Inserção Cultural, apoiado na experiência

no NEAE (Núcleo Experimental de Arte-

Educação) e no CIEP (Centro Integrado de

Educação Pública) Antoine Magarinos Torres

Filho, na comunidade do morro do Borel, RJ.

Além de pontuar o histórico e a filosofia de

trabalho do NEAE, o artigo propõe sugestões

metodológicas a serem avaliadas e discutidas

no âmbito de Instituições, Ongs, Pontos de

Cultura e afins - ambientes em que a música

exerça papel primordial junto aos indivíduos

atendidos. Em conclusão, o relato aponta para a

questão de que a formação do profissional que

atende ao público dessas organizações, em sua

maioria marginalizado culturalmente, deve ser

ampla e contínua.

ABSTRACT

This text presents facts and ideas and raises questions

regarding Music Education, Art-Education and Cultural

Insertion founded on the experience of Sidney Mattos

as Director, for the last seventeen years, of the Núcleo

Experimental de Arte-Educação - NEAE (Experimental

Center for Art-Education) and also as a Teacher for

the Municipal Region of Rio de Janeiro, acting at

the CIEP Antoine Magarinos Torres Filho (Integrated

Public Education Center) -, which is part of the Morro

do Borel (RJ) slum community. Besides delineating

the historical actions of the group and its working

philosophy, a number of methodological suggestions

are proposed for evaluation and discussion within the

ambit of Institutions, NGOs, Cultural Centers and the

like, ambiences where music can exercise a primordial

role in the relationship with the individuals attended. It

is my understanding that training of the professionals

that attend these people, most of whom are culturally

marginalized, needs to be extensive and on-going.

PALAVRAS-CHAVE

Música; Arte-educação; “Timbrar”.

KEYWORDS

Music. Art-Education. Timbrar-se (Take pride).

SIDNEy MATTOS

Músico / Diretor do Núcleo Experimental de Arte-Educação (NEAE)

e-mail: [email protected] e [email protected]

o musical e o social: algumas reflexões sobre as experiências no nEAE e no CIEp do morro do borel (rj)The Musical and the Social

1 Texto apresentado durante o I Semi-nário Projeto Guri: Ação sociocultural e Educação musical, realizado entre 28 de novembro e 1º de dezembro de 2007 em São Paulo/SP. Inclui atualiza-ções realizadas pelo autor.

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RELATOS DE EXPERIÊNCIA

o musical e o social: algumas reflexões sobre as experiências no nEAE e no CIEp do morro do borel (rj)

SIDNEY MATTOS, O musical e o social: algumas reflexões sobre as experiências no NEAE e no CIEP do morro do Borel (RJ)

1 rElAto 1: A ExpErIênCIA no nEAE (núClEo ExpErIMEntAl dE ArtE-EduCAção)

O NEAE (Núcleo Experimental de Arte-Educação) foi criado no Rio de Janeiro a partir de um

Seminário no Instituto de Educação para Professores de Alfabetização, em 1991, no qual foram

oferecidas oficinas envolvendo as áreas de artes cênicas e plásticas, música e dança. A principal

discussão do Seminário evidenciou a importância da arte na formação do ser humano e da

cultura dentro do espaço escolar. Cabe ressaltar que, até a década de 1990, poucas propostas

que tratassem da cultura popular e folclórica das diversas regiões do Brasil chegavam às

escolas do Rio de Janeiro. Vivia-se nessa época uma “febre” de “teatrinhos de shopping”, que

consistiam em adaptações bem questionáveis dos contos tradicionais. A partir da dinâmica de

avaliação realizada no Seminário, Sidney Mattos, juntamente com Henrique Santiago, criaram

um grupo que pudesse oferecer às escolas públicas e privadas do Rio de Janeiro um trabalho

que contemplasse os resultados e conclusões nascidos no evento, trazendo, em sua essência,

o cuidado de envolver o educando em atividades lúdicas e pedagógicas que reforçassem os

conteúdos desenvolvidos pelas instituições de ensino.

Dessa proposta nasceu o NEAE, que hoje, registra, com orgulho, a realização de aproximadamente

800 shows em mais de 300 escolas e instituições, atingindo cerca de 550.000 crianças da Educação

Infantil (até a 4ª série do primeiro grau). O grupo apresentou-se também em diversas unidades do

SESC (Serviço Social do Comércio), além da Fundação Parques e Jardins e em várias Secretarias de

Educação e Cultura no Estado do Rio de Janeiro. Em 2000, o NEAE lançou o CD “Cantos do Brasil”,

com temporada no teatro do SESC - Tijuca em comemoração aos 500 anos do Brasil, e o CD “Cantar,

cantar, cantar”, no Parque das Ruínas e na Fundação Rio-Zôo. Em 2005, o grupo lançou seu terceiro

CD “Elementar - Terra, Fogo, Água e Ar”, no Dia Mundial do Meio Ambiente, com um grande show

no Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Entre as distinções que o grupo recebeu, estão o “Prêmio

Educação 96” e o “Prêmio Cultura 97”, conferidos pelo Lions Clube do Brasil.

1.1 filosofia

O trabalho do NEAE se move sobre dois conceitos básicos: desenvolver a criatividade e es-

timular a imaginação. O grupo trabalha buscando a excelência em propostas, projetos e ações,

utilizando as várias formas de expressão artística e adaptando, distribuindo e graduando os

conteúdos de seus projetos de acordo com as faixas etárias de seus públicos-alvo: alunos da

Educação Infantil e da 1ª à 5ª séries do Ensino Fundamental.

Intercalando canções, “brincadeiras” e histórias, buscamos vivenciar, ao lado das crianças,

momentos que possam nos levar a uma verdadeira sensibilização para os conteúdos desen-

volvidos em cada trabalho sugerido, abrangendo os mais diversos temas - folclore brasileiro,

amizade, natureza, relações interpessoais, sentimentos, entre outros – priorizando sempre o

caráter musical do projeto. Entendemos que o espaço mais adequado para a Educação para as

Artes é a Escola e esta é a nossa bandeira: cantar, tocar, brincar, fazer eclodir em cada criança,

em cada olhar, a alegria, a vida, a emoção!

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RELATOS DE EXPERIÊNCIA

1.2 As oficinas e projetos

A preocupação do NEAE com a qualidade da educação, privilegiando a cultura, a

criatividade e a cidadania, faz com que estejamos sempre atualizando nosso conhecimento

no desenvolvimento de novos projetos. Além dos shows, também oferece os Projetos de

Construção, como as oficinas, concertos, palestras sobre arte-educação, gravação personalizada

de CDs temáticos, cursos de formação continuada para professores, festas temáticas (festas

juninas, autos de natal, eventos folclóricos, festas de pais, mães e avós), seminários, atividades

em colônias de férias, consultoria ou assessoria pedagógica para escolas e/ou instituições,

entre outras atividades. Tem seis espetáculos pedagógicos fundamentados nas diretrizes

da Arte-Educação, que envolvem de quatro a seis arte-educadores, além de um motorista e

um operador de áudio, e utilizam equipamento de som profissional visto que as obras são

cantadas e tocadas ao vivo, além de apresentar também manipulação de bonecos, dramaturgia

e coreografias. Além destas, desenvolve Oficinas sobre:

Brincadeiras e brinquedos cantados – Resgate e criação livre de brincadeiras e brinque-•dos utilizando o canto.Expressão Musical - Contato com os parâmetros do som: altura, timbre, intensidade e •duração. Vivência do ritmo: “Eu e minha música”; Vivência da melodia: “Eu e o outro”; Vivência da harmonia: “Eu e o mundo”.Instrumentos de percussão - Manipulação de instrumentos de percussão (conceitos de •som aberto e som fechado), variações de intensidade (fraco e forte), agógica (anda-mento) e pulsação, entre outros.Apostila musical-pedagógica - Tem como eixo principal a utilização didático-pedagógi-•ca de atividades artístico-expressivas baseadas no CD “Cantar, Cantar, Cantar” gravado pelo NEAE.Reciclarte – Oficina exclusiva para professores. Aborda o trabalho lúdico, o cantar, ativi-•dades com ritmo e som, pesquisa sonora, improvisação, papelagem, criação literária expressão corporal e o trabalho com o sensível e o imaginário, entre outras atividades.Artes Integradas - Jogos de movimentos, de observação, dramáticos e sonoros.•

Outros Projetos desenvolvidos são:

Tem NEAE no arraiá - projeto idealizado exclusivamente para a pré-escola. Consiste na •realização, em conjunto com a instituição de ensino, de uma festa junina criativa com a participação de alunos, pais e professores.Férias com Arte – Colônia de férias com quatro oficinas nos seguintes temas: música, •teatro, corpo e criação de texto, além de aulas de capoeira. As oficinas são intercaladas por faixa etária, possibilitando a freqüência das crianças em até duas delas.Auto de Natal - adaptação livre do • Auto do Pastoril realizado no Nordeste, idealizada exclusivamente para a pré-escola. Também desenvolvida em conjunto com a institu-ição de ensino.

ReViSta eSPacO inteRMeDiÁRiO, Sao Paulo, v.i, n.i, p. 106-115, maio, 2010.

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RELATOS DE EXPERIÊNCIA

Concertos didáticos - recitais de educação estética ilustrados com a execução de obras •do repertório de concerto e comentários sobre a história dos instrumentos, seus princi-pais compositores e intérpretes.

2 rElAto 2: CIEp (CEntro IntEGrAdo dE EduCAção públICA)

O outro relato que aqui descrevo refere-se ao trabalho realizado, há 15 anos, em um

CIEP (Centro Integrado de Educação Pública) Antoine Magarinos Torres Filho, localizado na

comunidade do morro do Borel, no Rio de Janeiro. Este CIEP atende a crianças de Educação

Infantil e de 1ª à 5ª séries do Ensino Fundamental - público muito particular em seus aspectos

culturais e sociais.

No início das atividades, o trabalho era voltado a 12 grupos que se revezavam no

“espaço musical”, tendo aulas de música que se caracterizavam por trabalhos corporais com

a utilização de métodos ativos, brinquedos cantados e outros. As aulas eram intercaladas

com a manipulação de objetos sonoros, envolvendo pesquisa e improvisação, assim como

instrumentos de percussão. Resumidamente, os objetivos principais eram cantar, tocar e fazê-

los se expressar.

Aos poucos me especializei na linguagem infantil, voltada à faixa etária entre 4 e 8 anos.

As aulas com crianças acima desta idade eram prejudicadas por problemas disciplinares

e pelo pouco engajamento dos professores com o trabalho. A partir dessa constatação,

sugeri à Direção da Escola que fizéssemos oficinas das quais os alunos maiores poderiam

participar voluntariamente. Foram estabelecidas três oficinas: flauta doce, pelo baixo custo

e pelo imediatismo sonoro; coral, devido à facilidade de montar um repertório que pudesse

eventualmente ser apresentado em atividades culturais; e percussão, pela própria característica

da comunidade, que tem a representá-la a Escola de Samba Unidos da Tijuca.

Tudo mudou! As aulas se tornaram mais interessantes e a participação dos alunos foi

aumentando gradativamente. O ponto mais positivo é que os alunos passaram a participar

sem a obrigatoriedade da aula em si. A sala de música passou a ser muito mais freqüentada,

até mesmo fora do horário estabelecido para tal.

Mais à frente, misturei as turmas, selecionando alunos das três oficinas e criando grupos

musicais diversificados. Estavam instalados os principais processos e objetivos da Educação

formal (trabalhar a partir do interesse dos educandos) e da Educação Musical (despertar o

interesse pela música). Essa “fórmula” bem-sucedida permite, entre outras coisas: liberação

de energia através de catarses rítmicas; socialização entre diferentes níveis de escolaridade;

melhora da auto-estima, já que as crianças vêem os resultados de seu trabalho; musicalização

objetivada e centrada no aluno; e resultados tangíveis que são reconhecidos pelo corpo

discente, pela direção e pelos pais.

SIDNEY MATTOS, O musical e o social: algumas reflexões sobre as experiências no NEAE e no CIEP do morro do Borel (RJ)

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RELATOS DE EXPERIÊNCIA

3 A forMAção E A AtuAção do profISSIonAl dE EduCAção MuSICAl EM projE-

toS SoCIoCulturAIS

A Cultura não é somente a herança histórica da trajetória vital dos nossos antepassados, nem as

manifestações artísticas mais destacadas. Muito mais que isso, a Cultura é o próprio fazer humano,

inteligente e criativo, frente a cada exigência ou desafio. (DIDONET, 1986, p.4)

Os relatos aqui apresentados levam a várias reflexões sobre a formação e a atuação do

profissional da educação musical. Os educadores musicais são os grandes responsáveis pelo

bom andamento dos processos de ensino e de aprendizagem. Devem estar plenamente

conscientes do desenvolvimento infantil, além de aptos e capacitados para o bom desempenho

da função. Quanto mais ampla sua cultura, melhor será seu ensinamento, deixando de focar

apenas aspectos técnicos para assumir características voltadas a uma educação integrada e

abrangente. “Vocês não ensinam o que sabem, mas o que são” (MARTENOT, 1939).

A maior qualidade de um educador, além do completo domínio de seu objeto de trabalho,

está na capacidade de compreender e perceber as necessidades do outro – seja ele criança

ou jovem. Esse outro precisa de liberdade para se expressar e manifestar sua originalidade.

Só assim poderá desenvolver sua criatividade. Dentro desta área, o convencionalismo é

totalmente descartável. O educador musical deve ter atitudes despojadas: se sentar no chão,

brincar de roda, se pintar. Deve, sempre que necessário, se transformar num “ator”, uma vez

que o instinto infantil percebe e sente nossas alegrias, tristezas, mau humor, ou seja, nossos

sentimentos. O fato de estar disposto e alegre, por si só, já inspira confiança, contribuindo

muito para o estabelecimento de interrelações e se tornando base para o desenvolvimento do

processo ensino-aprendizagem.

O educador deve cultivar a confiança de seus alunos e estar atento para não traí-la

jamais. Problemas afetivos ou emocionais bloqueiam a percepção, a emissão de mensagens

e o comportamento espontâneo. Deve também valorizar sempre os bons resultados e as

condições que favoreceram o sucesso das tarefas: “Fulano fez bem porque está concentrado”;

“Porque a voz de sicrano está mais limpa?”; “Quem fez bem estava com os olhos fechados,

prestou atenção”, evitando criticar negativamente um aluno na frente dos outros.

Além da preocupação com os conteúdos, com a disciplina e com outros elementos presentes

no ambiente de aprendizagem, ele deve manter aceso o interesse dos alunos. O ensino

vocacional de qualquer arte – seja ela música, pintura, teatro ou outra - objetiva resultados

estéticos e artísticos. A educação pela arte colabora significativamente para a formação geral

dos indivíduos, desenvolvendo no ser humano potenciais internos que, por meio dela, são

expressos livremente. Podemos conhecer melhor nosso aluno, manter seu interesse e promover

o seu desenvolvimento quando utilizamos práticas pedagógicas envolvendo situações de

aprendizagem que o levem: a um processo reflexivo e prático sobre as atitudes em situações

lúdicas; a conhecer suas possibilidades e limitações corporais; a aprender e criar jogos e

brincadeiras; ao conhecimento e a pluralidade de manifestações culturais do Brasil e do mundo,

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RELATOS DE EXPERIÊNCIA

e a ser participante da transmissão de diferentes manifestações culturais presentes no cotidiano.

Desta forma ele se tornará um sujeito ativo na produção de seu próprio conhecimento.

3.1 o ”timbrar-se”

O profissional da educação musical está quase sempre procurando o equilíbrio entre “ser

Educador” e o “ser Artista”, ao lidar tanto com propostas e resultados tangíveis - medidos e

rapidamente percebidos – como com os imponderáveis, que só serão percebidos com o tempo,

tais como recepção, afinamento, disponibilidade, potencial físico e mnêmico, entre outros.

Um instrumento musical precisa de tempo e uso para estar em condições ideais de ser

utilizado profissionalmente. Para confeccionar um violão, por exemplo, primeiro selecionamos

a madeira, depois a cortamos, lixamos, prensamos, envernizamos... depois precisamos tocar

muito com o instrumento, para que ele “amacie”. Chamamos a este processo de “timbrar” o

instrumento. O procedimento é muito semelhante com as pessoas. Conforme a vida vai se

mostrando e nos colocando diante de conflitos e opções, na maioria das vezes, somos nós a

decidir o que fazer com ela. Que caminho seguir? Que música ouvir e tocar? Que filme assistir,

que profissão escolher?

“Timbrar-se” é viver intensamente. É rir, cantar, dançar, chorar, brincar, se desgastar física

e espontaneamente, viver sensorialmente, diretamente. É tomar consciência da própria sua

inteligência, vivenciar sensações, classificá-las e compará-las. É aprender a se situar no espaço

e no tempo a fim de melhor representar e melhor comunicar, descobrindo o prazer de observar

e escutar. Existe grande subjetividade no ato de julgar. Ao “timbrarmo-nos”, estaremos sempre

mais “sensíveis” às comunicações inconscientes transmitidas individualmente pelos colegas

de trabalho, ou coletivamente pelos alunos. Podemos, assim, inferir normas e condutas mais

próximas da realidade.

Para tanto, os relatos aqui descritos permitem inferir que a formação cultural seja

fundamental para o bom desempenho da função de educador. Para isso, o profissional deve,

entre outras competências: possuir amplo domínio do seu material de trabalho; possuir a

capacidade de aplicar pessoalmente todas as propostas; ter uma vida cultural presente: ouvir,

dançar, ler, visitar museus, pesquisar desenvolver sua expressão pessoal, instigar, estimular;

e desenvolver toda a originalidade do seu ser no mundo através de atitudes propositivas e

proativas para si e para o outro. Ou seja, deve “timbrar-se”.

3.2 Aplicações práticas

Qualquer metodologia musical, hoje, deve levar em consideração os avanços na área da

Música, não se restringindo a apenas um modelo ou sistema - como o tonal, por exemplo.

Devemos lutar por um currículo escolar contínuo e graduado, por um programa abrangente

e diversificado - ilimitado quanto à pesquisa musical, à audição e à improvisação, que possa,

dessa forma, desenvolver a criatividade e a percepção musical.

SIDNEY MATTOS, O musical e o social: algumas reflexões sobre as experiências no NEAE e no CIEP do morro do Borel (RJ)

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RELATOS DE EXPERIÊNCIA

Essa nova metodologia deve facilitar e estimular os trabalhos em grupo por meio de diversas

oficinas de musicalização – envolvendo percussão, flauta doce e violão, entre outros instrumentos.

Deve também propiciar ambientes em que se desenvolva a manipulação do som com a utilização

de computadores e softwares livres, mostrando aos jovens a quantidade infinita de possibilidades

de se brincar com o som e organizá-lo em composições. Adiante, relaciono alguns objetivos que

podem fazer a diferença em projetos sociais ligados ao ensino musical:

Integ• rar equipe técnica e pedagógica, professores, alunos, funcionários e comunidade

por meio de atividades que desenvolvam a criatividade, a escuta e o pensamento

musical, utilizando a voz e o corpo.

Criar dinâmicas interdisciplinares promovendo encontros ritualísticos, envolvendo os •conceitos de ritmos simples, pulsação, parlendas, brinquedos cantados, rituais indíge-

nas e outros.

Confeccionar instrumentos com material de sucata como latas de cerveja ou refriger-•ante; copos de iogurte, plásticos ou de sorvete; bobinas; embalagens com tampa; PVC;

vassouras; garrafas e outros.

Estimular a pesquisa do objeto sonoro com brincadeiras e jogos rítmicos.•Deixar sempre espaço livre entre as atividades para a improvisação.•Compor em grupo utilizando a voz, o corpo, objetos sonoros e instrumentos.•Tratar o ensino musical para além do tonalismo, ampliando e registrando escutas inter-•nas e externas (paisagem sonora).

Aprender a utilizar programas de música via computadores e softwares livres (midi-áudio).•Convidar músicos e grupos musicais para audições e eventos.•Elaborar eventos culturais – temáticos ou não – com apresentações abertas à comunidade.•Visitar ensaios de orquestras, bandas, corai• s e afins.

Ressalto que as estratégias adotadas devem ser bem variadas. É fundamental que

entendamos a prática musical como um processo. Para que qualquer projeto educativo/

musical dê certo, precisamos de crença, qualidade e principalmente constância. A música

nos oferece uma gama riquíssima de opções didáticas e pedagógicas que complementam

e enriquecem a formação dos alunos. Por isso, no planejamento das atividades, não podem

faltar a manipulação livre de instrumentos de percussão, os brinquedos cantados, a ênfase na

expressão corporal, a audição de variadas formas musicais, a informática musical e o espaço livre

e soberano para as improvisações. Tanta riqueza, no entanto, não pode ser desperdiçada. Cabe

ao profissional distribuir bem esses conteúdos em sua grade e perseguir com determinação

seus resultados – lembrando que nada acontece de uma hora para outra. Este é um processo

gradual e constante que carece de avaliação periódica.

As oficinas podem ser ministradas em horários especiais. Devem ser voluntárias, atendendo

a classes mistas. Seu perfil pode variar de acordo com o perfil de cada instituição, incluindo

voz, flauta, violão, grupos musicais e/ou orquestrais, gêneros musicais diversos, atividades com

o corpo e outros. Nos relatos apresentados, as oficinas de canto e percussão foram as mais

proveitosas quanto ao aspecto da socialização.

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RELATOS DE EXPERIÊNCIA

Atividades extras complementam todo o trabalho descrito, tendo por finalidade o

enriquecimento cultural do aluno e, se possível, da comunidade. Por meio dessas atividades,

incluindo saídas para visitas a ensaios e concertos ou apresentações internas e temáticas,

conseguimos chegar mais perto da produção artística a que o trabalho proposto e oferecido

culminará.

Por fim, para que o trabalho alcance os objetivos propostos, é fundamental que se

planeje antecipadamente, que disponha com racionalidade dos recursos didáticos e escolha

as atividades e/ou tarefas dentro de um nível favorável. A realização das atividades deve ser

documentada para posterior aperfeiçoamento dentro de critérios específicos de avaliação. A

avaliação do trabalho é fundamental para nortear, a médio e longo prazo, as ações propostas

e executadas. Ela filtrará o que deu certo ou errado e apontará possíveis e novas estratégias.

Neste processo, é fundamental ainda que o professor realize a sua auto-avaliação. Grande

parte dos resultados negativos de uma ação acontece devido à acomodação e desinteresse

desse profissional que, em tese, é o facilitador do aprendizado.

4 ConCluSão

A música, além de sensibilizar, educar e socializar, tem características ritualísticas que

remontam ao início da nossa ancestralidade. Costumo dizer que “antes, era o som e não o

verbo”. Todas as manifestações folclóricas e religiosas, dentre outras, têm na música aliada

indispensável em sua execução. O ritmo constante e minimalista, ao lado das melodias

simples e das expressões individuais, proporciona rituais inerentes ao ser humano. No âmbito

pedagógico não poderia ser diferente.

Baseamos nossa prática em estudos e pesquisas do passado, mas nem sempre construímos

e inovamos no presente. Essa realidade nos embota, estabelecendo, conseqüentemente, certa

“acomodação” a nossas ações e reflexões. Ora, a música acontece no tempo, formada por

produção, criação e intuição agindo, às vezes, simultaneamente. Estas características deveriam

nos mover e nos remeter a desafios. O Músico ou Educador tem o dever de respirar música o

tempo todo. Essa é sua função e seu objeto de trabalho.

Todos nós, seres humanos, temos um compromisso com a realidade social que nos cerca.

Não dá para se isolar. Não se pode pensar que somente que o amor pelo próximo, a vontade de

ajudar o outro ou as chamadas “boas intenções” sejam suficientes para essa missão. Temos que

evoluir, transformar, reavaliar posições e questionar as instituições, exercendo uma criticidade

consequente.

Nossa personalidade é constituída por um complexo de fatores intervenientes.

Dialeticamente falando: bem/mal, sim/não, leve/pesado, arsis/tesis, fluxo/refluxo. A música,

constituída de tensão/repouso com característica predominantemente sensorial – a audição

-, desperta sentimentos e encontros com o nosso “eu”. Consegue abrir canais e portas,

desbravando o silêncio, a pergunta, o amor, a alegria. Oferece, dessa forma, uma gama

SIDNEY MATTOS, O musical e o social: algumas reflexões sobre as experiências no NEAE e no CIEP do morro do Borel (RJ)

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RELATOS DE EXPERIÊNCIA

riquíssima de interferências afetivas! Assim podemos “tocar” as pessoas nas suas principais

faculdades humanas: o amor, a vontade, a inteligência e a imaginação criativa. Com práticas

conseqüentes, podemos estabelecer relações afetivas a partir do exercício da memória

musical.

Qualquer abordagem musical, pedagógica ou social deve se nortear pela necessidade

de unirmos aspectos artísticos e afetivos-relacionais. Seus promotores devem harmonizar

empiricamente o saber com a sensibilidade e a prática. Não precisamos ser mestres na exatidão

expressiva ou escutar e discriminar internamente sons absolutos. Tampouco conceber a

simultaneidade dos sons, dos acordes ou agregados, analisando encadeamentos harmônicos

ou polifônicos para sermos bons educadores. Mas, indo além da não alienação destes e de

outros tópicos teóricos, temos que nos “timbrar” o tempo todo. Parafraseando Paulo Freire:

É neste sentido que, para mulheres e homens, estar no mundo necessariamente significa estar

com o mundo e com os outros. Estar no mundo sem fazer história, sem por ela ser feito, sem

fazer cultura, sem “tratar” [timbrar?] sua própria presença no mundo, sem sonhar, sem cantar,

sem musicar, sem pintar, sem cuidar da terra, das águas, sem sujar as mãos, sem esculpir, sem

filosofar, sem pontos de vista sobre o mundo, sem fazer ciência ou tecnologia, sem assombro

em face do mistério, sem aprender, sem ensinar, sem idéias de formação e sem politizar não é

possível. É na inconclusão do ser, que se sabe como tal, que se funda a educação como processo

permanente. (FREIRE, 1996, p. 74)

Precisamos estar atentos para propiciar espaços onde o jovem possa expressar seu fazer

artístico a partir da valorização da sua cultura e da sua identidade, ampliando sua capacidade

imaginativa a fim de que se sinta sujeito-apreciador-autor da produção artística. Temos que

viver, sentir, denunciar, produzir, dirigir, sublinhar, corresponder, associar... são muitos fatores

para pouquíssimo tempo de vida. Cabe à própria pessoa, dessa forma, a responsabilidade de

“timbrar-se”. Então, mãos à obra!

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RELATOS DE EXPERIÊNCIA

Referências

MARTENOT, Maurice. Principes pedagogiques de la musique. Paris: Leduc, 1939.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1996.

DIDONET, Vital. Infância e cultura. Rio de Janeiro: Departamento Geral de Educação da Prefeitura do Rio de Janeiro, 1986.

SIDNEY MATTOS, O musical e o social: algumas refl exões sobre as experiências no NEAE e no CIEP do morro do Borel (RJ)

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ReViSta eSPacO inteRMeDiÁRiO, Sao Paulo, v.i, n.i, p. 116-125, maio, 2010.

RESUMO

O texto apresenta algumas reflexões de cenas das práticas pedagógicas de alunos do Curso de Licenciatura em Música do Centro Universitário Metodista/IPA, na cidade de Porto Alegre/RS. Ao ministrar as disciplinas Didática do Ensino da Música (2008/II) e Prática Pedagógica IV (2009/II), organizou-se uma articulação com as práticas pedagógico-musicais desenvolvidas durante a disciplina de Estágio Supervisionado I, por meio do diálogo com autores das áreas da Educação Musical, entre eles Silvia Sobreira, Jusamara Souza, Maura Penna, Maria Cecilia Torres, Guilherme Romanelli, Leila Sugahara e Cecília França, além de autores da área da Educação. Estes materiais foram significativos para a socialização das propostas e para a análise das práticas e concepções musicais desses alunos e professores em sua atuação como educadores musicais.

ABSTRACT

This text presents a number of reflections from moments in the teaching practices of students from the Music Licentiate Course offered by the Centro Universitário Metodista/IPA, in the city of Porto Alegre/RS. While ministering the courses on The Didactics of Music Teaching (2008/II) and Teaching Practices IV (2009/II), an articulation was formed with the music-teaching practices carried out during the Supervised Internship I course, via dialogue with authors from the field of Music Education, including Silvia Sobreira, Jusamara Souza, Maura Penna, Maria Cecilia Torres, Guilherme Romanelli, Leila Sugahara and Cecília França, as well as authors from the field of Education. These materials were significant for the socialization of the proposals and for analysis of the musical practices and conceptions of these students and teachers in their work as music educators.

PALAVRAS-CHAVE

Didática da música. Práticas pedagógicas.

Licenciatura em música.

KEYWORDS

The Didactics of music. Teaching practices.

Licentiate in music.

MARIA CECÍLIA DE ARAUJO RODRIGUES TORRES

Centro Universitário Metodista/IPA/ Doutorado em Educação

e-mail: [email protected]

didática de ensino da música e prática pedagógica Iv: reflexões sobre práticas musicais em um curso de licenciatura em músicaThe didactics of music teaching and teaching practices IV: reflections on musical practices in a music licentiate course

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RELATOS DE EXPERIÊNCIA

MaRia cecÍLia De aRaUJO RODRiGUeS tORReS, Didática de ensino da música e prática pedagógica IV: reflexões sobre práticas musicais em um curso de licenciatura em música.

1 Introdução

Este texto é um relato de experiência que apresenta reflexões sobre duas disciplinas

ministradas no Curso de Licenciatura em Música do Centro Universitário Metodista/IPA, ao

longo dos semestres 2008/II e 2009/II, na cidade de Porto Alegre/RS. Como professora das

disciplinas de Didática do Ensino da Música, que ocorre durante o terceiro semestre do Curso,

e de Prática Pedagógica IV, oferecida a alunos do quarto semestre, selecionei algumas cenas,

temas e atividades musicais desenvolvidos ao longo das mesmas, no sentido de refletir sobre

as ações dos alunos da perspectiva de uma professora formadora.

2 nA AulA dE dIdátICA do EnSIno dA MúSICA

Trago alguns pontos e questionamentos que auxiliaram e delinearam a composição e

estruturação do Plano de Ensino de Didática do Ensino da Música e, posteriormente, deste relato.

Quais tópicos e leituras selecionar para o trabalho nesta disciplina, que antecede ao semestre

do Estágio I em um Curso de Licenciatura em Música? Este certamente foi meu primeiro desafio ao

organizar o Plano de Ensino da disciplina, que estreava no currículo novo deste Curso no primeiro

semestre de 2009. A partir da ementa da disciplina, organizei os seguintes objetivos:

1. Situar aspectos da Didática para o ensino de música no campo da Didática geral;

2. Exercitar a observação de questões relacionadas às práticas e à didática, que embasam as

concepções de aulas de música do ensino fundamental e médio;

3. Conhecer e analisar parte dos métodos e propostas de Educação Musical adotados no Bra-

sil;

4. Organizar planos de aula, executá-los e produzir textos articulando a revisão bibliográfica

com a produção escrita;

5. Promover o contato dos alunos com experiências musicais diversificadas, além da re-

flexão acerca de questões pedagógico-musicais.

Preparei o Plano de Ensino a partir destes objetivos, englobando as atividades, formas de

avaliação e bibliografias básica e complementar. Organizei ainda uma relação de oito textos

básicos para a leitura ao longo do semestre, com o intuito de contemplar diferentes temas,

paradigmas e concepções de planejamento, aula e música:

1º) Didactica Magna – Saudações aos leitores (COMENIUS, Jan; 1633-38)

2º) Pedagogia Musical Brasileira no século XX – Introdução (PAZ, Ermelinda; 2000)

3º) Reflexões sobre a obrigatoriedade da música em escolas públicas (SOBREIRA, Silvia; 2008)

4º) Aula de música: do planejamento e avaliação à prática educativa (HENTSCHKE, Liane e DEL

BEN, Luciana; 2003)

5º) Música Popular Brasileira na escola (TORRES, Maria Cecília; 2000)

6º) A fala como recurso na Educação Musical: possibilidades e relações (PENNA, Maura; 2008)

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RELATOS DE EXPERIÊNCIA

7º) A aula de música na escola: reflexões a partir do filme Mudança de hábito 2: mais loucuras no

convento (GONÇALVES, Lilia Neves; 2008)

8º) Desafios para a Educação Musical: ultrapassar oposições e promover diálogo (PENNA,

Maura; 2006)

Alguns dos textos foram lidos e discutidos em sala de aula, enquanto outros foram

recomendados como sugestão de bibliografia para embasar a organização de planos de

aulas e propostas musicais para os estágios. Destaco que os textos sobre a obrigatoriedade

da música nas escolas, sobre a fala como recurso e sobre o planejamento para aulas de música

geraram diversas discussões e questionamentos por parte do grande grupo.

A seguir apresento algumas das atividades realizadas durante a disciplina:

2.1 lembranças de uma cena musical da infância como professor ou aluno

PROPOSTA

Descrever a cena de uma aula de música, como aluno ou professor, destacando aspectos

dos conteúdos musicais abordados, assim como das estratégias e metodologias

aplicadas. Explicitar se a aula foi individual ou em grupo, se envolveu algum instrumento

musical, o conteúdo trabalhado e como foi o trabalho musical. Boa escrita!

Esta proposta está centrada nas narrativas dos alunos a respeito das memórias musicais

de aulas das quais participaram como alunos ou professores, como um momento de reflexão

sobre sua ação e formação. É um tema que está entrelaçado em nossas vidas, seja através da

formação nos cursos de graduação, seja dentro dos múltiplos espaços de formação continuada,

em uma constante articulação com nossas práticas pedagógico-musicais.

No campo da Educação Musical, e envolvendo as lembranças musicais e narrativas

biográficas, trago algumas pesquisas como as de Barret e Stauffer (2009), que discutem

aspectos das investigações com narrativas no campo da música, a de Louro (2008), sobre

narrativas de docentes universitários-professores de instrumento, e a de Torres (2008), com

narrativas de si e memórias musicais de professoras do ensino fundamental. Estes são alguns

dos autores que promovem reflexões a respeito das memórias e narrativas musicais de alunos

e professores em diferentes espaços e tempos.

No campo da Educação, trago dois autores, dentre outros, que desenvolvem pesquisas

sobre os saberes e a formação de professores: Cunha (2002) e Tardif (2002), no que se refere

aos estudos que envolvem a reflexão dos professores sobre sua formação e ação, sobre o “ser

um bom professor” e sobre outros aspectos constitutivos da identidade deste profissional,

através de narrativas e discursos. Tardif argumenta, em sua obra, dentre vários temas referentes

ao trabalho docente, que é importante levar em conta os conhecimentos do cotidiano do

professor em seu trabalho – perspectiva também discutida no presente relato de experiência.

ReViSta eSPacO inteRMeDiÁRiO, Sao Paulo, v.i, n.i, p. 116-125, maio, 2010.

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RELATOS DE EXPERIÊNCIA

2.2 o trabalho com “trava-língua”

Outra proposta que levei para esta disciplina foi a de que cada grupo da turma, composta

por 42 alunos, trabalhasse com um exercício de “trava-língua” baseado em uma letra do alfabeto

- material retirado do livro Quem lê com pressa, tropeça, de autoria de Elias José (1992). A partir

do texto original, os grupos tiveram a tarefa de organizar uma proposta pedagógico-musical a

ser desenvolvida em sala de aula. Destaco que alguns alunos tiveram dúvidas sobre o objetivo

e significado musical desta proposição, o que certamente foi um desafio para mim, pois já

havia desenvolvido atividades com trava-língua junto a alunos de um Curso de Pedagogia,

mas nunca em um Curso de Licenciatura em Música. Após explicar cada passo da tarefa,

começamos a organizar dos trabalhos. A proposta inicial foi de que cada grupo mantivesse

o texto original, explorando a percussão corporal e sons vocais para acompanhamento. Na

perspectiva de Souza (2006),

transformar textos em música tem larga tradição na área da educação musical. Talvez tenham sido Carl

Orff e Murray Schafer quem definitivamente introduziu de uma forma mais sistemática a necessidade

de improvisar e criar música a partir de parlendas como trava-línguas, fórmulas de escolhas e

mnemônicas, assim como rimas, quadrinhos e ditos populares. Aos textos advindos da literatura oral

foram dados alturas, timbres, ritmos e, assim, as palavras passaram a cantar (SOUZA, 2006, p.9).

Após a apresentação das propostas musicais dos colegas, cada grupo organizou sua

atividade por escrito, detalhando as etapas do desenvolvimento do trabalho. Esta fase durou

quatro aulas e cada dupla ou trio teve 15 minutos para a apresentação de sua atividade, com

mais alguns minutos para perguntas e sugestões. Ao final do seminário, houve um momento

de avaliação em que os alunos destacaram diversos aspectos musicais abordados durante o

planejamento, tais como ritmo corporal, melodias, células rítmicas, timbres diversos, trabalho

com prosódia, composição, leitura musical, interpretação, improvisação, prática musical em

conjunto e escrita musical analógica. As letras escolhidas do livro do “trava-língua” foram as

seguintes: A, B, C, D, G, I, J, L, N, T, U, X, Z.

Seguem dois exemplos de letras retiradas do livro para a criação e organização da

atividade: Um bode bravo

É uma barraE o bode berraE o bode baba

Na barba.

O gaiteiro GaribaldiGuarda a gaita

E gargalha com graçaSe vê a graça, da Graça

Engraçando toda a praça.

MaRia cecÍLia De aRaUJO RODRiGUeS tORReS, Didática de ensino da música e prática pedagógica IV: reflexões sobre práticas musicais em um curso de licenciatura em música.

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RELATOS DE EXPERIÊNCIA

O material organizado com as propostas do “trava-língua” foi socializado entre os colegas e,

posteriormente, utilizado e adaptado por alguns deles nas práticas musicais realizadas durante

os estágios supervisionados nas escolas, conforme relatos dos mesmos.

Trabalhamos ainda com “lengas–lengas” (BEINEKE e FREITAS, 2006), parlendas e provérbios

populares, buscando ressaltar a musicalidade das palavras nestes textos. Dessa maneira, foi

possível dialogar com idéias e fundamentos de educadores musicais como Carl Orff, que, por

meio do uso de palavras com ritmos e formatos diversos, buscou transformá-las em música.

Em relação a esta temática, destaco o trabalho de Penna (2008), intitulado “A fala como recurso

na Educação Musical: possibilidades e relações”, o qual foi lido e comentado em sala de aula,

desencadeando reflexões e questionamentos nos alunos.

3 prátICA pEdAGóGICA Iv: IníCIo do EStáGIo I

Ao desenvolver esta disciplina no segundo semestre de 2009, tive a intenção de dar continuidade

a certos questionamentos dos alunos a respeito das práticas musicais em sala de aula, além de

reorganizar as sugestões dos alunos que haviam cursado a disciplina no semestre anterior. A seguir,

descrevo e analiso duas propostas realizadas com esta turma, composta por quarenta e um alunos

do turno da noite, que renderam muitas reflexões, criatividade, planejamentos, leitura e dúvidas.

A primeira proposição foi a elaboração de Planos de aulas de música para a escola: entre

planejamentos e práticas pedagógicas, fundamentava na perspectiva de destacar a necessidade

dos planejamentos, como ressalta Sugahara (2007):

Organizar as atividades das aulas de música nem sempre é tarefa fácil, dada a diversidade de

métodos, estratégias de ensino e abordagens de conteúdos existentes. Então, por onde começar?

Se, por um lado, dar aula sem nenhum planejamento é missão quase impossível, um bom

planejamento pode oferecer ao professor a segurança necessária para que sua atuação seja

eficiente, justamente por delimitar o que será desenvolvido em sala de aula. É aí que entra em ação

o plano de aula (SUGAHARA, 2007, p.41).

A primeira parte da tarefa consistiu na escolha e seleção de uma peça musical para trabalhar

com os alunos em sala de aula. Após esta etapa do trabalho, os alunos se dividiram grupos

por interesse, a partir de cinco eixos temáticos: execução vocal; execução vocal e instrumental;

execução instrumental; apreciação musical e composição/improvisação.

A segunda etapa da atividade teve como objetivo a organização de um plano de aula

contendo fases detalhadas e referencial teórico coerente para subsidiar a atividade prática que

seria desenvolvida em sala de aula. Uma das características da proposta foi dar a cada grupo

um tempo para conhecer as músicas trazidas pelos colegas, e, juntos, escolherem três delas

para trabalhar em aula. Cada grupo teve 25 minutos para sua prática e, após as apresentações,

houve tempo para avaliação e análise das propostas. Tivemos a formação de oito grupos e as

apresentações aconteceram em forma de Seminário de Práticas pedagógicas.

ReViSta eSPacO inteRMeDiÁRiO, Sao Paulo, v.i, n.i, p. 116-125, maio, 2010.

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RELATOS DE EXPERIÊNCIA

Dentre o repertório selecionado, listo as seguintes músicas:

Tabela 1 – Musicas listadas

1. Olá (Maurine Benson Ozment) 2. Vou-me embora Prenda minha (Folclore do Rio Grande do Sul)

3. Lá no frio do Sul (Renate e Ieda Moura) 4. Bambalalão (Domínio público)

5. A pulga (Vinícius de Morais/Toquinho/ Sérgio Bardotti)

6. Las manzanas (Rubem Rada)

7. The Lion sleeps tonight (G.Weiss/H.Pereti/ L.Creatore)

8. Alegria – 9ª. Sinfonia de Beethoven

9. Tema de flauta doce (Giovane Pasqualito) 10. Asa Branca (Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira)

11. Modinha (Folclore de São Paulo) 12. Sereia (Roda de verso: arranjo Viviane Beineke/Sérgio Freitas)

13. Adeste Fideles (J. Reading: arranjo de Larry Yester)

14. Dó-ré-mi (Richard Rodgers)

15- A galinha do vizinho (Domínio público) 16. Cai, cai, balão (Domínio público)

Outro tópico que merece destaque é concernente aos procedimentos ou metodologias

selecionados pelos alunos, envolvendo desde exercícios de concentração com os olhos fechados até

a identificação de timbres de instrumentos, passando pela execução rítmica da canção com sílaba

“ta”; leitura à primeira vista; realização da música em forma de cânone; aquisição de habilidades

aurais; divisão das turmas em grupos; atividades com mescla de voz, flauta doce e percussão

corporal; aquecimento vocal; e improvisação e criação de arranjos para determinada melodia. É

importante enfatizar a diversidade de propostas musicais que emergiu através das práticas, além

do retorno dos colegas por meio de sugestões, complementações e questionamentos.

É importante, também, ressaltar a diversidade do repertório selecionado, no qual estão

inseridas peças do folclore brasileiro e de outros países, além de trilhas sonoras de filmes,

peças do repertório clássico ou erudito – como Alegria, da Nona Sinfonia de Beethoven - dentre

outros estilos e compositores.

Um último ponto que ressalto nesta atividade está ligado aos objetivos organizados pelos

grupos, que focalizam aspectos como:

“desenvolver técnicas básicas e conhecimento de conjunto vocal”;•“trabalhar com a identificação de instrumentos dentro de uma música”;•“apresentar as músicas com um integrante do grupo cantando, outro tocando flauta e •outro fazendo percussão corporal”;

MaRia cecÍLia De aRaUJO RODRiGUeS tORReS, Didática de ensino da música e prática pedagógica IV: reflexões sobre práticas musicais em um curso de licenciatura em música.

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RELATOS DE EXPERIÊNCIA

“vivenciar a experiência de execução instrumental junto ao grande grupo, identifican-•do e avaliando a dinâmica utilizada”;“explorar uma melodia de várias formas, usando diversos instrumentos”.•

Finalizo este tópico ressaltando o entrelaçamento que aconteceu entre os planejamentos e as

práticas dos alunos desta disciplina e as idéias de França (2009), nas quais a autora defende que

aula de música não é aula de sons. Aula de música é aula de música, com música e por meio

da música. Muitos programas de ensino adotam como princípio organizador os conhecidos

parâmetros do som (especialmente altura e duração) [...] Nas minhas visitas e pesquisas em

escolas regulares e especializadas tenho observado que, muitas vezes, estímulos poderosos como

canções, brinquedos cantados ou histórias são subaproveitados devido àquele modelo de ensino

fragmentário (FRANÇA, 2009, p.25).

Analiso que o ponto principal de união destas práticas e reflexões foi o fazer musical de

múltiplas maneiras, em uma mescla de formas e sentidos que envolvem a musicalidade de

diferentes pessoas, em tempos e contextos diversos.

3.1 vamos construir instrumentos em aula?

Esta parte do texto trata de um projeto de construção de instrumentos musicais que surgiu

durante o semestre através de conversas com os alunos, com o objetivo fazer uma ponte entre

o conteúdo das aulas e as práticas musicais nos estágios. Tornou-se concreto a partir da leitura

de reflexão de dois textos: “Materiais didáticos na aula de música do ensino fundamental”

(OLIVEIRA, 2007) e “Construção de instrumentos musicais a partir de objetos do cotidiano

“(TORRES, 2000)1. Estes materiais foram instigantes e desencadearam afirmações como: “Na

minha escola não tem nada para trabalhar com música”; “Eu fiz este material com meus alunos”

ou “Quais materiais utilizar ou comprar para a aula de música?”.

Entre perguntas, dúvidas e materiais levados pelos alunos para ilustrar as práticas musicais

realizadas durante os estágios, decidi propor o projeto de construção de instrumentos musicais,

a partir de uma ficha preenchida e discutida em sala, e da posterior apresentação das etapas

de seleção e construção dos mesmos.

No que tange ao processo de construção de instrumentos a partir de objetos do cotidiano,

destaco o excerto de Torres (2000) que ressalta que uma proposta como esta:

[...] além de estimular a pesquisa sonora, a criatividade, a improvisação musical, a socialização e a

oratória, está inserida nos territórios do cotidiano do aluno. A título do material que foi produzido,

pode-se indicar a criação de composições musicais, com a grafia de partituras analógicas, a

gravação e apresentação das peças em um grande grupo (TORRES, 2000, p.149).

Esta atividade teve a aceitação do grupo composto por quarenta alunos neste semestre, os

quais, ao final, apresentaram seus projetos com as fichas, os instrumentos e as possibilidades

1 Para mais informações sobre a temá-tica da construção de instrumentos musicais, ver “Construindo instrumen-tos musicais no Curso de Pedagogia: entre chocalhos e ganzás” (TORRES, 2000).

ReViSta eSPacO inteRMeDiÁRiO, Sao Paulo, v.i, n.i, p. 116-125, maio, 2010.

Page 115: Revista Espaço Intermediário

123

RELATOS DE EXPERIÊNCIA

sonoras, inclusive com a gravação de improvisações criadas por três alunos a partir de seus

instrumentos. Dentre os instrumentos confeccionados, prevaleceram aqueles da família da

percussão rítmica, além de outros de cordas e sopro.

Certamente, atividade oportunizou a socialização das idéias dos alunos para o grupo,

com perspectivas de inserirem os materiais em suas práticas musicais nas escolas. O exercício

explorou a musicalidade de alunos e professores de muitas maneiras: pela percussão de um

tambor ou pandeiro, no soprar da flauta de Pan construída de tubos de metal ou no sacudir e

tocar nas cordas de um berimbau de taquara.

4 AMAlGAMAr SonorIdAdES E propoStAS: fInAlIZAção

O exercício de mesclar o planejamento de aulas de música com a construção de

instrumentos musicais, aliado ao trabalho com “trava-línguas” e parlendas, foi uma

oportunidade para todos nós, professora e alunos, aprendermos uns com os outros,

experimentarmos atividades musicais, cantarmos, gravarmos e refletirmos sobre os desafios

que envolvem o “ser professor de música” em diferentes espaços.

Uma das propostas das duas disciplinas incluiu a leitura e discussão de textos, como os

citados no quadro da Didática do Ensino da Música (vide item 2). A partir destas leituras,

emergiram perguntas, dúvidas e questionamentos relacionados às práticas musicais na sala

de aula, com destaque para o período dos estágios supervisionados em Música.

Cabe ressaltar que, ao longo do semestre da disciplina Prática pedagógica IV, organizei uma

atividade de escrita reflexiva com os alunos a partir de quatro questões: “Qual é a escola ideal?”;

“Quem é o aluno ideal? ”; “Qual é o professor de música ideal? ”; e “Como é a aula de música ideal? ”

Meu objetivo, ao propor estas perguntas a partir do termo “ideal”, foi o de conhecer

algumas concepções dos alunos sobre a escola, seus alunos, professores e aulas de música na

perspectiva do que imaginam e idealizam e, desta maneira, desencadear estranhamentos e

reflexões no grupo. Estas questões perpassavam os aspectos constituintes da identidade do

professor de música que atua na escola de educação básica e estão também amalgamadas

com os ideais, projetos e concepções de música e aulas de música na escola.

Feitas estas considerações, finalizo este texto e destaco que as reflexões, avaliações e

proposições dos grupos de alunos ao longo das disciplinas - tanto de Didática do Ensino da

Música quanto de Prática pedagógica IV, foram fundamentais para minhas reflexões sobre o

trabalho como professora formadora em um Curso de Licenciatura em Música, no constante

processo de ensinar-aprender. Acredito que tenham sido, também, momentos importantes

de reflexão e aprendizagem para este grupo de alunos em processo de formação e de

organização de atividades e planejamentos de aula para os estágios supervisionados no

campo da Educação Musical.

MaRia cecÍLia De aRaUJO RODRiGUeS tORReS, Didática de ensino da música e prática pedagógica IV: reflexões sobre práticas musicais em um curso de licenciatura em música.

Page 116: Revista Espaço Intermediário

124124

Referências

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BEINEKE, Viviane; FREITAS, Sérgio Paulo. Lenga La Lenga: jogos de mãos e copos. Florianópolis: Ciranda Cultural, 2006.

CUNHA, M. I. O bom professor e sua prática. São Paulo: Papirus, 2002.

FRANÇA, C. C. Sozinha eu não danço, não canto, não toco. Música na Educação Básica, Porto Alegre, v. 1, n. 1, 2009.

JOSÉ, Elias. Quem lê com pressa, tropeça. Belo Horizonte: Lê, 1992.

LOURO, Ana Lúcia. Narrativas de docentes universitários-professores de instrumento sobre mídia: da relação “um para um” ao “grande link”. In: SOUZA, Jusamara (Org.). Aprender e fazer música no cotidiano. Porto Alegre: Sulina, 2008.

OLIVEIRA, Fernanda de A. Materiais didáticos nas aulas de música do ensino fundamental: um mapeamento das concepções dos professores de música da rede municipal de ensino de Porto Alegre. Revista da ABEM, Porto Alegre, n. 17, set., p. 77-86. 2007.

PENNA, M. A fala como recurso na Educação Musical: possibilidades e relações. In: PENNA, Maura. Música(s) e seu ensino. Porto Alegre: Sulina, 2008.

ROMANELLI, G. Planejamento na aula de música In: MATEIRO, Teresa; SOUZA, Jusamara (Org.). Práti-cas de ensinar Música. Porto Alegre: Sulina, 2008.

SOBREIRA, S. Refl exões sobre a obrigatoriedade da música em escolas públicas. Revista da ABEM, Porto Alegre, n. 20, set. 2008.

SOUZA, J. et. al. (Orgs.). Palavras que cantam. Porto Alegre: Sulina, 2006.

SOUZA, J; TORRES, M. C. A. R. Maneiras de ouvir música: uma questão para a educação musical com jovens. Música na Educação Básica, Porto Alegre, v. 1, n. 1, 2009.

SUGAHARA, L. Y. Musicalização - Plano de aula para crianças de três a seis anos de idade: o estágio do personalismo. Revista Cenário Musical, São Paulo, n. 5, 2007.

ReViSta eSPacO inteRMeDiÁRiO, Sao Paulo, v.i, n.i, p. 116-125, maio, 2010.

Page 117: Revista Espaço Intermediário

125

RELATOS DE EXPERIÊNCIA

TARDIF, M. Saberes docentes e formação profi ssional. Petrópolis: Vozes, 2002.

TORRES, M. C. A. R. Construção de instrumentos musicais a partir de objetos do cotidiano. In: SOUZA, Jusamara (Org.). Música, cotidiano e educação. Porto Alegre: PPG/Música/UFRGS, 2000.

TORRES, M. C. A. R. Músicas do cotidiano e memórias musicais: narrativas de si de professoras do ensino fundamental. In: SOUZA, Jusamara (Org.). Aprender e fazer música no cotidiano. Porto Alegre: Sulina, 2008.

MaRia cecÍLia De aRaUJO RODRiGUeS tORReS, Didática de ensino da música e prática pedagógica IV: refl exões sobre práticas musicais em um curso de licenciatura em música.

Page 118: Revista Espaço Intermediário

126126

RESENHA

ELIZABETH CARRASCOSA MARTINEZ

Assistente de Instrumento-madeiras e de Iniciação musical da Associação Amigos do

Projeto Guri. e-mail: [email protected]

Manual ilustrado dos instrumentos musicais

Este livro é um guia completo de instrumentos musicais, descrevendo a origem, evolução,

características e modos básicos de execução de uma grande variedade de instrumentos

acústicos, eletrônicos e digitais, oriundos de diferentes partes do mundo. Com linguagem

simples, de fácil leitura, inclui fotografias coloridas que facilitam a identificação dos

instrumentos, constituindo-se em referência ideal para quem quer conhecer mais sobre

instrumentos de diversas partes do mundo.

O livro está dividido em duas seções. A primeira é dedicada à descrição dos instrumentos,

enquanto a segunda, de referência, inclui um panorama cronológico do desenvolvimento dos

instrumentos e sua utilização em conjuntos instrumentais, além de tabelas com as intensidades

sonoras aproximadas dos principais instrumentos e suas extensões. Ao final do livro, há um

glossário explicativo de 145 termos necessários para aprofundar a compreensão do texto.

Os instrumentos estão organizados no livro por “famílias” - de percussão, metais, madeiras,

cordas, teclados e instrumentos elétricos e eletrônicos. Dentro de cada “família” os instrumentos

se ordenam segundo o modo de execução (os instrumentos de cordas se subdividem em

cordas harpejadas, dedilhadas e tangidas e friccionadas, por exemplo).

Junto a cada “família” de instrumentos, há uma introdução com informações sobre a

evolução histórica e as técnicas de construção destes. A descrição individual dos instrumentos

inclui características sonoras, história e técnicas de execução, abrangendo desde um simples

tambor até um telharmonium.

O panorama cronológico da segunda seção do livro se centra no desenvolvimento dos

instrumentos eruditos mais utilizados na Europa Ocidental até o século XX. Os autores

relacionam esta evolução ao contexto histórico-musical de cada época, citando os principais

inventores e inovadores de cada período, bem como destacando as diferenças de uso e

construção de cada instrumento. O livro oferece ainda indicações sobre as funções dos

instrumentos dentro dos conjuntos musicais.

ReViSta eSPacO inteRMeDiÁRiO, Sao Paulo, v.i, n.i, p. 126-127, maio, 2010.

Page 119: Revista Espaço Intermediário

127

RESENHA

JENKINS, Lucien (Org.). Manual ilustrado dos

instrumentos musicais: tradução de Denis

Koishi e Danica Zugic. São Paulo: Irmãos Vi-

tale, 2009. 416 p.

Há, no mercado internacional, outros livros dedicados à descrição dos instrumentos

musicais e sua evolução, como The History of Musical Instruments, de Curt Sach, o Atlas de los

Instrumentos Musicales, de Klaus Maersch ou Les instruments de musique dans le monde, de

François-René Tranchefort. Porém, todos são destinados a um público especializado, que possui

conhecimento prévio de música. Esta enciclopédia ilustrada dos instrumentos musicais possui

mais de 400 fotografi as e não somente descreve aspectos históricos ou teóricos, mas oferece

também informações práticas de como se executam e de como soam os instrumentos.

Este guia é altamente recomendado a um público amplo, que engloba desde estudantes

iniciantes, escolas de música, músicos profi ssionais, compositores, como aos afi ccionados que

querem adentrar no maravilhoso mundo da música. Com exemplos, fatos curiosos, sugestões

de leituras adicionais e indicações de sites correlacionados, é uma ótima ferramenta para

ampliar nosso conhecimento sobre como escolher e usar os instrumentos de várias regiões

do mundo.

O Manual Ilustrado dos Instrumentos Musicais é organizado por Lucien Jenkins, fundador

da revista Early Music Today, autor do livro Laying out the Body e co-autor da Collins Classical

Music Encyclopedia. Entre os consultores da obra destacam-se Rebecca Berkley, Leon Botstein

(presidente do Bard College de Nova York e diretor musical da American Symphony Orquestra),

Richard Buskin e Rusty Cutchin. O prefácio foi escrito pela célebre percussionista escocesa

Evelyn Glennie.

eLiZaBeth caRRaScOSa MaRtineZ, Manual ilustrado dos instrumentos musicais