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Revista Eletrônica do Curso de História Universidade Estadual Vale do Acaraú Centro de Ciências Humanas 2012

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Revista Eletrônica do Curso de HistóriaUniversidade Estadual Vale do Acaraú

Centro de Ciências Humanas

2012

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Revista Historiar

Revista Historiar [recurso eletrônico] / Universidade Estadual Vale do Acaraú – v.6.n.6 (jan/jun. 2012). Sobral-CE: UVA, 2012.

Semestral

ISSN 2176-3267

Modo de acesso: [www.uvanet.br/revistahistoriar]

1. História - periódicos. 2. Ciências - periódicos. I. Centro de Ciências Humanas. II.Universidade Estadual Vale do Acaraú.

CDD - 900

CONTATOS:

Prof. Dr. Carlos Augusto Pereira dos Santos. e-mail: [email protected] /[email protected] de História: Fone (88)3677.7858.

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EDITORES CIENTÍFICOS

EditorProf. Dr. Carlos Augusto Pereira dos Santos (UVA)

Conselho EditorialProfa. Dra. Chrislene Carvalho dos Santos (UVA)

Prof. Dr. Agenor Soares e Silva Júnior (UVA)

Conselho ConsultivoProf. M.Sc. Raimundo Nonato Rodrigues de Souza (UVA)

Profa. M.Sc. Maria Antônia Veiga Adrião (UVA)Prof. M.Sc Francisco Denis Melo (UVA)

Profa. M.Sc. Maria Edvanir Maia da Silveira (UVA)Prof. Dr. Marcos Aurélio Ferreira de Freitas (UECE)

Prof. Dr. Antonio Jorge de Siqueira (UFPE)Prof. Dr. Jean Maccole Tavares (UERN)

Prof. Dr. Luciano Mendonça de Lima (UFCG-PB)Prof. Dr. Luigi Biondi (UNIFESP)

Profa. Dra. Adelaide Gonçalves (UFC)

Revisão de textosProf. Manoel Valdeci de Vasconcelos

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SUMÁRIO

Apresentação

Artigos

ARQUIVO PESSOAL E MEMÓRIAS COLETIVAS: O ARQUIVO DO ATOR ROGÊNIO MARTINS E O MOVIMENTO TEATRAL AMADOR DE SOBRAL.

Edilberto Florêncio dos Santos

O CINEMA NOVO E O “UDIGRUDI” EM DEBATE.

Valéria Aparecida Alves

PERCORRENDO ESTANTES: CONSIDERAÇÕES ACERCA DA RELEVÊNCIA DOS ACERVOS DOS GABINETES DE LEITURA DE IPU E CAMOCIM PARA A PESQUISA HISTÓRICA.

Jorge Luiz Ferreira LimaAntonio Gilberto Ramos Nogueira

AGENCIAR O PASSADO PARA PRODUZIR O FUTURO: SOBRE AS RELAÇÕES ENTRE A ESCRITA REALISTA E FICCIONAL NO PROJETO FUNDACIONISTA DO IHGB.

Thiago Alves Nunes Rodrigues Tavares

MEMÓRIA E IDENTIDADE NA TRAJETÓRIA DOS ÓRFÃOS DE PAU DE COLHER: ACONTECIMENTOS, PESSOAS, LUGARES

Ana Lúcia Aguiar Lopes Leandro

NORMAS DE PUBLICAÇÃO

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APRESENTAÇÃO

A Revista Historiar chega ao sexto número obedecendo suas premissas

fundadoras de publicar a produção histórica em sua diversidade. Desta forma, mais uma

vez traz à luz o resultado de pesquisas locais e outras além que, dentro de nossas

potencialidades e limitações dão um panorama da historiografia ora produzida aqui e

alhures. Dito isto, o artigo de Thiago Alves Nunes Rodrigues Tavares faz um mergulho

no Brasil oitocentista e nos brinda com análises de como a escrita ficicional potencializou

a escrita da História no âmbito do IHGB através da Revista do Instituto Historico e

Geographico Brazileiro.

Seguindo nossa viagem os historiadores Jorge Luiz Ferreira Lima e Antonio Gilberto

Ramos Nogueira nos apresentam como os arquivos dos Gabinetes de Leitura das cidades

cearenses de Ipu e Camocim, fundados no início do século XX podem servir como fontes

históricas, representativas dos espaços de leitura e das sociabilidades destes lugares.

E por falar em sociabilidade, os arquivos do ator e diretor teatral Rogênio Martins

são devassados pelo neófito historiador Edilberto Florêncio dos Santos para nos

apresentar e dar conta da cena teatral sobralense. Mais uma vez os arquivos aparecem

neste número (da Revista e do teatro amador) como fonte para a história no sentido de

compreendermos o entrelaçamento da ação do ator que arquiva os materiais, as fontes , e

“a coletividade das ações e apresentações do movimento teatral amador de Sobral nas

últimas décadas.”

Saímos do teatro e adentramos no cinema nesse giro cultural. É isso que nos

proporciona Valéria Aparecida Alves que traz para nossa tela de discussão o cinema

brasileiro a partir dos anos 1950, principalmente o debate acalorado entre “cinestas,

produtores e diretores”, em torno da produção cinematográfica brasileira que, a partir

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daquele momento rompia com a “estética colonial”, produzindo filmes ligados ao que se

convencionou chamar de “Cinema Novo” e “udigrudi”. Vale a pena conferir estas sessões.

Com certeza, mm bom filme, talvez um documentário, daria a história contada por

Ana Lúcia Aguiar Lopes Leandro sobre o movimento messiânico de Pau de Colher

ocorrido no Norte da Bahia em 1938, onde se narra, pelos fios e teias da memória de trinta

e dois órfãos desse movimento, a trajetória dessas pessoas, ocultadas pelos documentos

oficiais, mas contida e retida em suas lembranças.

Só nos resta desejar uma boa leitura!

Prof. Dr. Carlos Augusto Pereira dos Santos

Coordenador da Revista Historiar.

Sobral-CE, junho de 2012.

NORMAS

Os artigos devem ser enviados observando-se as seguintes normas:1. No mínimo, 12 e, no máximo, 18 páginas.2. Fonte: Time New Roman, nº 12.3. Espaçamento 1,5.4. Resumo, de até 5 linhas, em português e em uma língua estrangeira (inglês,

espanhol, ou francês).5. Registro de 3 a 5 (quatro) “palavras-chave”.6. O texto deverá constar de um título em letra maiúscula, seguido de nota de rodapé

informando a natureza do trabalho (resultado de monografia, iniciação científica, outros).

7. Constar os nomes completos do(s) autor (es) e, em nota de rodapé os dados de sua identificação, sobretudo, sua titulação acadêmica, área de formação profissional, vínculo institucional e endereço eletrônico para fins de referência dos autores.

8. Citações, notas de rodapé, apresentação de tabelas, desenhos, gráficos, etc, devem estar de acordo com as normas da ABNT BR:6023/2002).

9. Os autores terão a responsabilidade de enviar seus artigos já revisados, sendo essa uma condição para o aceite dos textos.

10. Os trabalhos deverão ser enviados em CD-ROM e duas cópias impressas, para o seguinte endereço:

Universidade Estadual Vale do Acaraú

Centro de Ciências Humanas - Curso de História Campus do Junco

Avenida John Sanford, 1845. Bairro do Junco.

62030-000 – Sobral/CE

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ARQUIVO PESSOAL E MEMÓRIAS COLETIVAS: O ARQUIVO DO ATOR

ROGÊNIO MARTINS E O MOVIMENTO TEATRAL AMADOR DE SOBRAL.1

Edilberto Florêncio dos Santos 2

Resumo:

O recorte temático “História-Teatro” apresenta a necessidade da pesquisa junto a

referências que possam dar conta das peculiaridades da fonte teatral e as sociabilidades

produzidas pela cena. Desta forma, abordaremos o arquivo pessoal do ator e diretor

Rogênio Martins, como forma de entrelaçar sua individualidade e a coletividade das ações

e apresentações do movimento teatral amador de Sobral nas últimas décadas.

Palavras chave: História, Teatro, Arquivo Pessoal, Sobral.

Abstract

The thematic focus "History-Theater" presents the need for research with references that

can account for the peculiarities of the source and the theatrical sociability produced by

the scene. Thus, we discuss the personnel file of the actor and director Rogênio Martins,

as a way to weave his individuality and the collective actions and performances of the

amateur theater movement in the last decades in Sobral.

Keywords: History, Theater, Personnel File, Sobral.

Discutir e debater as relações entre História e as linguagens artísticas vem se

constituindo enquanto campo de possibilidades ao fazer histórico, na medida em que o

historiador alarga sua visão em direção a diferentes possibilidades de abordagem que o

aproxime dos sujeitos, diversos dentro de suas historicidades. O teatro, enquanto

1 O presente artigo foi constituído a partir do primeiro capítulo do trabalho de conclusão de curso intitulado: “Existir-fazendo, atuando”: o movimento teatral na cena sobralense (1983-1996). Monografia de Graduação. Universidade Estadual Vale do Acaraú-UVA. Sobral, 2011.2 Pós-Graduando na modalidade Especialização em Ensino de História do Ceará, pela Universidade Estadual Vale do Acaraú – UVA/Sobral. E-mail:[email protected]

Artigo recebido em 15/05/12. Aprovado em 27/06/12.

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manifestação artística abriga em si os sentidos e significações dados pelos indivíduos a

sua vida e suas experiências culturais, sociais e políticas.

Nesse sentido um estudo do teatro, enquanto fazer humano, que leve em

consideração a historicidade imbricada no processo de construção da cena, enquanto ato

artístico e também histórico, possibilita “nos colocar na plateia” e perceber o teatro como

um local de onde se vê a história; onde a história se faz e perfaz, através da catarse entre

ator e personagem, persona e público, passado e presente, vivenciada nas encenações sob

os “sois postiços” das casas de espetáculos, ou em meio ao cotidiano das praças e ruas,

transformadas em palco.

No entanto, apesar do fascínio gerado pela possibilidade de fazer história a partir

da arte e do teatro enquanto manifestação artística, questão em voga nas discussões

presentes no campo da Nova História Cultural, certas peculiaridades se tornam evidentes a

processo de pesquisa. Assim, alguns problemas se apresentam aqueles que buscam lançar

o olhar no sentido da relação entre História e Teatro: como trabalhar com uma fonte que

se compõe e se decompõe no ato mesmo de sua encenação? Como analisar e discutir a

historicidade e as implicações de um espetáculo teatral levado à cena a dez, vinte anos

atrás? Como acessar a historicidade de uma manifestação artística que é tradicionalmente

considerada como efêmera?

Em detrimento à visão geral que atribui ao teatro um caráter de manifestação

artística efêmera, a historiadora Rosangela Patriota, nos incita a possibilidade de

historicizar a fonte teatral, que como qualquer outra fonte ganha sentido(s) através do

método do historiador. Para ela, o fazer teatral se semelhança ao acontecimento histórico,

sendo ambos expressões de singularidade, pois, assim como um fato histórico, que

sabemos jamais irá se repetir; uma apresentação teatral de um mesmo espetáculo, jamais

ocorrerá de forma idêntica.

O caráter transitório de um acontecimento, de modo algum inviabiliza a produção

do conhecimento histórico e sim o enriquece de sentidos outros, impondo desafios e

possibilidades de abordagem, o mesmo se dá com a cena:

[...] a cena não é efêmera, não é passageira, não é transitória. A cena dispersa-se no tempo e no espaço. Essa dispersão acarreta um árduo trabalho para o historiador, na medida em que impõem dificuldades diferenciadas para serem lidos. Além disso, a dispersão das obras cênicas pode tomar duas conotações: a de

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dissipação ou de desaparecimento – a cena se espalha e prolifera no tempo e no espaço. Diante da dispersão, a tarefa do historiador é, através dos documentos existentes, recompor a cena, colocando-a novamente diante dos olhos dos leitores. 3

Do mesmo modo que um acontecimento histórico, a cena não se perde no vazio,

ela se engendra nos mecanismos do tempo e espaço, pois conforme afirma Patriota, “no

campo da pesquisa histórica a ‘cena’ adquire o estatuto de ‘acontecimento’” 4. Enquanto

instrumento de visibilidade, de sociabilidades e de gestação de sentidos, o fazer teatral

deixa rastros e vestígios, produzindo movimentos de ruptura e permanência, relações de

pertença, de estranhamento, de alteridade e associações.

Assim, perante o desafio imposto diante a pesquisa das manifestações teatrais, a

procura pelos sentidos e implicações históricas do fazer teatral enquanto fonte para a

historiografia encaminha-se na necessidade da busca de fontes que possam nos levar a

uma análise da produção teatral tanto em seu texto, presente nos sentidos e

intencionalidades do enredo e da cena; quanto no seu contexto, ou seja, nas condições de

sua produção, e inserção na realidade social e cultural a partir da qual se consolidou e que

do mesmo modo se destina, o que por sua vez compreende uma diversidade de tipos de

materiais, concernentes a dinâmica de produção do fazer teatral.

Pois, conforme afirma Patriota:

Estabelecer o recorte ‘História e Teatro’, como área de interesse de pesquisa e de reflexão, é estar diante de uma perspectiva muito abrangente, porque a menção ao Teatro significa evocar as seguintes áreas artísticas: dramaturgia, iluminação, cenografia, figurinos, trilha sonora, interpretação, etc.5

Por isso, em uma pesquisa a cerca do fazer teatral, no presente caso, do fazer

teatral em Sobral a partir dos primeiros anos da década de 1980, se impõe a necessidade

de aproximação e apropriação de possíveis fontes, de caráter diverso, relacionadas aos

elementos que compuseram sua existência, tais como: textos, fotografias, figurinos,

cenários, objetos e adereços de cena, folders, programas, matérias e recortes de jornais; ou

3 PATRIOTA, Rosangela. O historiador e o teatro: texto dramático, espetáculo, recepção. In: PESAVENTO, Sandra Jatahy (org.). Escrita, linguagem, objetos: leituras de história cultural. São Paulo: EDUSC, 2004. p. 240.4 Ibid., p. 241. 5 Ibid., p. 231.

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seja, toda uma coleção de vestígios deixados no processo de construção dos espetáculos

teatrais e que dão conta de uma memória e uma história acerca daquilo que se manifestou

sempre de forma única no palco, em função do olhar atento daqueles que comungaram

daquele ritual, transitório e eterno.

Arquivo: juntando lembranças individuais e memórias coletivas.

Desde muito, o arquivo se constitui como fonte privilegiada ao trabalho do

historiador: juntando, guardando, catalogando e possibilitando à pesquisa junto às fontes

documentais, premissa intrínseca ao processo de produção histórica. Na etimologia do

termo, o arquivo já traz em si o sentido de guarda e conservação. Em sua denominação

grega arché, a palavra fazia menção ao “palácio dos magistrados”, em seu desdobramento

archeion, amplia seu sentido passando a referenciar o espaço onde estavam depositados os

documentos, circunscrevendo em sua versão latina archivum, a relação do ambiente de

guarda para documentos e outros títulos compilados.

No entanto, o arquivo e o ato de arquivar foram modificando-se ao longo dos anos,

transformando-se de apenas um lugar de guarda, a espaço de e para pesquisa. Contudo,

ainda perdurou sobre os arquivos a égide de uma oficialidade até a modernidade,

ratificada pelo primado do documento, enquanto necessidade intrínseca a produção do

conhecimento. Solon Buck, arquivista norte americano, apresenta o seguinte conceito de

arquivo: “Arquivo é o conjunto de documentos oficialmente produzidos e recebidos por

um governo, organização ou firma, no decorrer de suas atividades, arquivados e

conservados por si e seus sucessores para efeitos futuros.” 6

Entretanto, elucidando as fragilidades imbricadas na assertiva a respeito do

primado do documento para a produção do conhecimento histórico, há muito as pesquisas

vem se insurgindo e pluralizando as possibilidades teóricas e metodológicas, por meio do

advento de métodos de abordagens relacionados a novas fontes e novos sujeitos, que

permitiram o trabalho com temáticas, antes indiferentes aos historiadores.

Portanto, tomando por base a temática do presente trabalho, cabe a reflexão a

respeito de como encontrar nos arquivos, os rastros deixados por uma produção artística

amadora, por isso sem grandes vínculos institucionais e legais, que de um modo geral, são

6 BUCK, Solon. Apud. PAES, Marilena Leite. Arquivo: teoria e prática. 5 reimp. Rio de Janeiro: Editora FVG, 2005. p.19

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os grandes responsáveis pela emissão dos documentos presentes nos arquivos? Como se

lançar na empreitada de tentar “recompor a cena, colocando-a novamente diante dos olhos

dos leitores”, através de documentos de cunho oficialescos que porventura estejam

presentes nos arquivos?

Nesse sentido tornou-se imperativo durante a pesquisa, um alargamento do próprio

conceito de arquivo, enveredando pela necessidade de acesso e pesquisa em torno de

fontes que possam adentrar os detalhes e o cotidiano das vivências, e no nosso caso das

vivências de atores, atrizes e diretores, dentro da experiência de fazer teatro na cidade de

Sobral nas últimas décadas do século passado. Daí a necessidade de se trabalhar com outra

categoria de arquivos, esta mais ligada a sujeitos e suas experiências, do que a instituições

e suas transações, pautada na necessidade inerente ao homem de guardar e organizar suas

memórias, construindo por esses processos, narrativas sobre sua vida e suas experiências.

Desta forma, configurou-se enquanto opção metodológica na construção do trabalho, a

pesquisa junto a arquivos privados de cunho pessoal, enquanto fonte possível a uma

história do teatro amador na cidade de Sobral.

O arquivo pessoal, segundo Heloísa Bellotto, pode ser caracterizado da seguinte

maneira:

São papeis ligados à vida familiar, civil, profissional e à produção política e/ou intelectual, científica, artística de estadistas, políticos, artistas, literatos, cientistas etc. Enfim, os papéis de qualquer cidadão que apresente interesse para a pesquisa histórica, trazendo dados sobre a vida cotidiana, social, religiosa, econômica, cultural do tempo em que viveu ou sobre sua própria personalidade e comportamento.7

Para compreender esta transição entre uma concepção clássica de arquivo, dos

grandes arquivos institucionais administrativos e seus documentos oficiais, em direção a

um processo de apropriação e crescente interesse pelos arquivos de cunho particular,

composto por materiais oriundos da seleção pessoal de seus autores, abrangendo uma

variedade bem maior de “papéis”, como: diários, fotografias, cartas, rascunhos e

anotações; se faz necessário perceber as mudanças ocorridas na forma de se conceber a

história, assim como a valorização do indivíduo em seu interior. Onde os arquivos

pessoais ao se aproximarem de dimensões da vida e da sociabilidade humana antes 7 BELLOTTO, Heloísa Liberalli. Arquivos permanentes: tratamento documental. 4 ed. Rio de Janeiro: Editora FVG, 2006. p.256

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relegadas ao esquecimento por se inscreverem, sobretudo, na fluidez espontânea do

cotidiano, nos permitem tocar o caráter individual e subjetivo das tramas, possibilitando

ao historiador “dar vida à história, enchendo-a de homens e não de nomes” 8.

O trato com fontes documentais e arquivos pessoais, assim como a incursão dos

historiadores através desta fértil seara, se fez por meio de uma mudança na própria

concepção da história enquanto ciência, inaugurada com os Annales e o diálogo com

outras áreas das ciências humanas, com a antropologia, a psicologia, a linguística, a

geografia, a economia e a sociologia; e que desemboca na concepção e produção de uma

vertente interpretativa da história denominada Nova História Cultural.9

Outra questão preponderante para compreensão desta inserção do indivíduo e seus

arquivos na produção do conhecimento histórico, se refere ao duplo movimento

apresentado pela modernidade, caracterizado pela afirmação de um paradigma pautado na

valorização do eu, presente, por exemplo, no surgimento da noção de autor, bem com no

emprego da primeira pessoa na construção de textos literários; que pode ser associado à

necessidade da produção de memórias pessoais, representadas na crescente produção e

valorização, desde a modernidade, das literaturas autobiográficas. 10

Deste modo, fomos iniciados e incitados à necessidade, quase excessiva em alguns

momentos, das práticas de resguardo do passado, suas manifestações e lembranças, e

concomitantemente suas implicações em nossas identidades presentes; manifestada

segundo Philippe Artières, sob a máxima “arquivarás tua vida”. 11

Por outro lado, esse movimento, associado ao advento de uma nova concepção de

homem, e sua inserção enquanto sujeito na história; permitem a compreensão do

“encanto” e da fecundidade dos trabalhos com os arquivos pessoais; relativo à

transformação e popularização da necessidade de resguardo das memórias, compreendido

por Renato Ribeiro enquanto um “deslocamento da ideia de glória”:

Ou seja, a memória deixou de significar a unidade nacional, para designar, agora, um fracionamento, o reconhecimento de identidades parciais e essencialmente anti-unificáveis. Mas, além

8 GOMES, Ângela de Castro. Nas Malhas do Feitiço: o historiador e os encantos dos arquivos privados. In: Revista Estudos Históricos. Vol. 11, n° 21, 1998. p.1259 Sobre História Cultural ver: PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & História Cultural. 2º ed. – Belo Horizonte: autêntica, 2005.10 FRAIZ, Priscila. A Dimensão Autobiográfica dos Arquivos Pessoais: o Arquivo de Gustavo Capanema. In: Revista Estudos Históricos. Vol. 11, n° 21, 1998.11 Ver: ARTIÈRES, Philippe. Arquivar a Própria Vida. In: Revista Estudos Históricos. Vol. 11, n° 21, 1998.

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disso, ela deixou de residir no gesto exemplar, econômico, do herói, para figurar numa multiplicidade de pequenos atos e gestos, quase anônimos.12

O direito a memória deixou de ser uma prerrogativa somente das elites, dos

“grandes homens” e heróis, extrapolando as barreiras que a mantinham fixadas no campo

do político, do econômico e do religioso, fazendo-a então figurar no social, na cultura, na

arte, no trabalho, e etc. A memória, enquanto componente elementar da identidade passou

a ser uma premissa a todos os sujeitos, saindo dos palácios, dos templos e dos campos de

batalha, para se apresentar nas ruas, nos casebres, nas fábricas, nos palcos, e no cotidiano.

Perde-se o sentido do singular, do excepcional, ganha-se a pluralidade e a polifonia do

cotidiano dos “pequenos atos e gestos, quase anônimos”, que relacionam sujeito e

sociedade, o indivíduo e seu tempo dentro dos processos históricos, em uma concepção

expressada pelo teatrólogo e poeta alemão Bertolt de Brecht, em seu clássico “Perguntas

de um leitor operário”. 13

Artières, percebendo e discutindo a proliferação deste ideal dentro das sociedades e

do próprio espírito do homem moderno, nos propõe a seguinte indagação: “por que

arquivamos nossas vidas?”. E de pronto ele responde: “Para responder a uma injunção

social”, pois:

Arquivamos portanto nossas vidas, primeiro, em resposta ao mandamento "arquivarás tua vida" - e o farás por meio de práticas múltiplas: manterás cuidadosamente e cotidianamente o teu diário, onde toda noite examinarás o teu dia; conservarás preciosamente alguns papéis colocando-os de lado numa pasta, numa gaveta, num cofre: esses papéis são a tua identidade; enfim, redigirás a tua autobiografia, passarás a tua vida a limpo, dirás a verdade. 14

Arquivar a própria vida, ou constituir “coleção de si” como propõe Ribeiro,

remete-nos a percepção da pluralidade de registros e de formas de registrar e organizar

estes arquivos. É imprescindível perceber ao lidar com arquivos, e, sobretudo, com os

arquivos pessoais, seus mecanismos de organização, a forma como os materiais e

testemunhos do passado são recolhidos e dispostos, pois tão significativo quanto o 12 RIBEIRO, Renato Janine. Memórias de si, ou... In: Revista Estudos Históricos. Vol. 11, n° 21, 1998. p.3713 “Quem construiu Tebas, a das setes portas? Nos livros vem o nome dos reis, mas foram os reis que transportaram as pedras? Babilônia, tantas vezes destruída, quem outras tantas a reconstruiu?” – Bertold Brecht.14 Ver: ARTIÈRES, Philippe. Op. cit. p.10-11

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conteúdo de um arquivo pessoal é sua organização, os mecanismo que direta ou

indiretamente forjaram suas feições. Seu sentido de organização não é institucional ou

lógico, mais que isso, ele é subjetivo, pois ao guardar memórias transfiguradas em papeis,

cartas e fotografias, estamos arquivando, nossas próprias vidas. Ordenamos, selecionamos

e organizamos este material de acordo com aquilo que queremos lembrar ou esquecer,

destacar ou camuflar, eternizar ou deixar perder no passado.

No contato e pesquisa junto aos arquivos de caráter pessoal, cabe além de discutir

os documentos produzidos, selecionados e guardados por meio da subjetividade

individual, atentar-se as formas de organização e disposição deste material, pois à medida

que o arquivo é levado a falar pelas perguntas e pela criatividade do historiador, no seu

intento de inventar o passado, ele transmite muito de si em sua organização. A disposição

destes materiais relaciona-se com a organicidade que o indivíduo desejou dar a sua própria

existência, ao seu passado e a sua imagem perante si mesmo e os outros.

Destarte, o uso desta categoria de arquivo pressupõe um alargamento deste

conceito, pois como afirma Viana, citado por Priscila Fraiz: “o que nos interessa na ordem

original, isto é, no modo de articulação dos documentos gerado pelo processo de

acumulação [é] apreender a operação de acumulação como rede articulada de sentidos da

qual o [acumulador] é o centro lógico.” 15

Memórias do palco e da coxia: o arquivo de Rogênio Martins

Dentro da proposta de abordagem de uma historia do fazer teatral sobralense a

partir da década de 1980, mediante a inserção de novos temas e de uma nova estética na

produção cênica através da modificação dos atores componentes do cenário teatral

sobralense, nos deparamos à primeira vista, com uma aparente escassez de fontes.

Diante desta impressão, que evidencia a lacuna dentro da historiografia sobralense

no tocante ao movimento artístico teatral na cidade de Sobral deste período, o uso das

fontes orais se torna imprescindível no intento de discutir a historicidade deste

movimento. Porém, nesta empreitada em busca dos relatos dos sujeitos que vivenciaram e

compartilharam este momento de agitação da vida artística de Sobral, foi possível notar a

recorrência a identificação da figura de Rogênio Martins, enquanto sujeito referencial para

a compreensão e discussão acerca deste período da cena teatral, tanto por seu engajamento 15 VIANNA. A. Apud. FRAIZ, Priscila. Op. Cit. p.63

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desde o momento inicial dessa manifestação cênica, como por sua relação ainda hoje com

as atividades teatrais na cidade.

Francisco Rogênio Martins do Nascimento, ou simplesmente Rogênio Martins,

como ficou conhecido no universo artístico, é ator, diretor e arte educador, e um dos

percussores do momento teatral recente sobralense, com uma carreia de quase 28 anos de

dedicação as manifestações teatrais nesta cidade. Natural da cidade de Meruoca, cedo veio

morar em Sobral com a família, através da qual teve seus primeiros contatos com a arte,

devido aos irmãos e irmãs envolvidas com o fazer artístico. Viveu sua infância e

adolescência no bairro Alto da Brasília, se engajando nos movimentos religiosos no

Centro Social Rosa Gattorno, organizado pela congregação religiosa das Filhas de

Sant’ana, onde ingressou no grupo de jovens Shalon, por meio do qual foi apresentado ao

teatro. Chegou a ingressar no Seminário Diocesano de Sobral, onde permanece entre os

anos de 1983 e 1986, dividindo-se entre suas obrigações enquanto seminarista e as

atividades teatrais junto ao Grupo de Teatro Reluz, companhia que ajudou a criar, e por

meio da qual deixa o Seminário para dedicar sua vida ao teatro, participando ativamente

dos movimentos de cultura e arte dos partidos de esquerda nas décadas de 1980 e 1990.

Hoje é comum, entre as pessoas ligadas a arte e cultura da cidade, a referência a

Rogênio Martins como o “pai” da cena teatral sobralense recente, haja vista sua trajetória

de atuação, tanto ministrando aulas e formando novos atores em diversas escolas, como

coordenando ou dirigindo diversos espetáculos e projetos de cunho artístico. Assim,

podemos dizer que, de modo geral, quase todos os atores e atrizes hoje em atividade na

cidade de Sobral tenham de algum modo compartilhado com Rogênio a experiência de

“pisar no palco”, seja enquanto seus alunos em projetos artísticos, seja atuando em

montagens com sua direção, ou mesmo dividindo a cena com ele.

A constância da afirmação do discurso que elege Rogênio enquanto elemento

central no guardo da memória do teatro sobralense das últimas décadas, sobretudo por

atores e outros artistas que fizeram parte deste momento, é endossado ao se ter contato

com seu arquivo pessoal sobre o teatro sobralense, também citado por estes atores. São

fotografias, recortes de jornais, folders, cartazes e outros materiais de divulgação de

espetáculos e festivais, guardados e organizados por ele, ao longo de sua trajetória

enquanto ator e diretor, de modo que por meio do seu arquivo nos é possível acessar uma

memória das ações e manifestações artístico-teatrais da cidade nos últimos anos.

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Ao longo de suas vivências junto ao teatro local, Rogênio Martins foi por diversas

vezes responsável pela direção, quando não assumindo o papel de assistente de direção, de

diversos espetáculos montados nesse período. Tal função acabou lhe permitindo a

possibilidade de ocupar a coordenação de importantes projetos relacionados ao fazer

teatral em Sobral. Foi assim quando da instauração no ano de 1987 do Centro de Ativação

Cultural (CAC) da cidade de Sobral, quando assumiu a função de coordenador local do

projeto, e também em 1995 quando ocupa a função de coordenador de teatro junto a Pró-

Reitoria de Extensão da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA), dentro do Grupo

de Teatro da UVA.

Muito embora se tratando de um movimento teatral de cunho amador, o que

acarretava um envolvimento coletivo em todos os processos de construção dos

espetáculos, tais funções ocasionavam à Rogênio a incumbência da organização e

resguardo de todo o material gráfico, de divulgação e documentos relativos às peças. O

que de certo modo lhe permitiu e lhe aproximou do guardo e da responsabilidade sobre o

material que compõe seu arquivo pessoal.

Conforme Artières “arquivar a própria vida é querer testemunhar” 16. Assim no

contato com o arquivo de Rogênio, nos é permitido perguntar: quais testemunhos ele nos

permite acessar? Que testemunhos seu autor/ator quis perpetuar através deste arquivo?

Qual a importância deste arquivo na constante referência à Rogênio enquanto uma espécie

de “guardião da memória” do teatro sobralense, isto, levando em consideração a existência

de arquivos pessoais de outros atores e atrizes?

Segundo Walter Benjamim, para os romanos o termo texto fazia referência a

“aquilo que se tece”. Nossa compreensão do arquivo do ator e diretor Rogênio Martins se

configura na possibilidade de compreendê-lo enquanto “texto”, tecido ao longo de suas

vivências e atividades no teatro sobralense. Onde foram conjurados nesse processo de

urdidura pessoal, os fios de memória relacionados ao palco, compreendido como ponto

central do espaço de um teatro, local onde as manifestações se apresentam em seu ápice,

onde o ator cede lugar ao personagem; mas também com os fios advindos das coxias,

espaço mais periférico, onde o ator ainda não é visto por seu público, onde aguarda a

deixa e seu momento para entrar em cena, espaço de transição entre ator e personagem. Os

fios do palco nos trazem as marcas deixadas pelas montagens, como os textos, folders,

16 ARTIÈRES, Philippe. Op. cit. p.28

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cartazes, fotografias e todo o material de referência direta ao espetáculo posto em cena. Da

coxia temos os ensaios, as reuniões, os momentos de descontração, as manifestações e

reivindicações dessa classe artística.

Nas páginas de seu arquivo estão conjuradas as demandas do “Rogênio ator” e do

“Rogênio autor”, de modo a construir a possibilidade de compreensão de seu arquivo

enquanto mais uma das performances de Rogênio Martins na cena teatral local. Onde seu

ator/autor desenvolve um enredo, define papéis, organiza as falas e marcas, escolhe a

iluminação, posiciona objetos de cena, e ensaia sua forma de ler e ver a história das

manifestações teatrais da cidade de Sobral nos últimos anos.

Nos documentos do arquivo, podemos ver muitas das atividades e espetáculos do

teatro sobralense dispostos segundo a subjetividade de seu autor, apresentando-se não

somente como um relato sobre as experiências do ator e diretor Rogênio Martins na cena

teatral, mas, mais que isso, como uma representação daquilo que foi produzido e pensado

de forma coletiva por atores e atrizes na cidade de Sobral, como um mural ou uma janela

por onde pudéssemos enxergar a viva e efervescente produção teatral sobralense das

últimas décadas, saudosamente rememorada por aqueles que a compuseram, e que

emprestaram sua juventude e sua rebeldia à reflexão da realidade e da sociedade que

viviam, por meio do teatro.

Sob uma pasta, na qual estes documentos estão arranjados, e em tantos outros

fragmentos e documentos soltos, mas componentes desta mesma coleção, estão juntos de

forma quase indissociável, a individualidade daquele que os reuniu e compilou e a

coletividade da invenção teatral de um período. Deste modo, o debate em torno da

documentação arquivada por Rogênio Martins, se traça exatamente na fronteira entre a

individualidade de sua figura enquanto ator e diretor, sua atuação no fazer teatral, e o

caráter de representação de seu arquivo, enquanto memória para uma discussão em torno

da historicidade deste movimento teatral, relacionada a um sentido coletivo.

Perceber seu arquivo enquanto fonte para uma discussão da história do teatro

sobralense é, mais que legitimar a sua posição como figura central no movimento teatral

da cidade, procurar os mecanismos que forjaram essa assertiva dentro do campo das

memórias coletivas. É perceber e problematizar este arquivo enquanto uma prática

discursiva, que como tal, busca legitimar uma dada memória social sobre o teatro

sobralense e sobre aquele que uniu e organizou esta memória, na medida em que também

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é legitimado por esta produção. Ou seja, na medida em que por meio do seu arquivo

Rogênio forja um discurso que fala de si e da prática teatral sobralense, este mesmo

discurso é legitimado pela presença deste arquivo e dos materiais arquivados.

Artières trabalhando com aquilo que chamou intenção autobiográfica afirma:

“Arquivar a própria vida é se pôr no espelho, é contrapor à imagem social a imagem

íntima de si próprio, e nesse sentido o arquivamento do eu é uma prática de construção de

si mesmo e de resistência.” 17 E a ideia da arte e do teatro como forma de resistência está

intrinsecamente ligada ao conteúdo deste arquivo, bem como do seu autor, sujeito que

apesar das adversidades inerentes a produção de qualquer que seja a manifestação artística

em nosso país, mantêm-se ainda hoje em atividade no campo do teatro, na constância da

afirmação de sua figura enquanto “gente de teatro”, produzindo arte e formando artistas

em uma cidade do interior cearense ao longo de décadas.

Seu arquivo compreende um amplo período da cena teatral da cidade, nele constam

referências anteriores à década de 1980 e a inserção de Rogênio no universo teatral, bem

como, enquanto arquivo em processo, associado à prática de arquivar a própria vida,

contém representações acerca de manifestações recentes do teatro local, haja vista a

permanência de Rogênio a frente de ações relacionadas ao teatro.

Quanto seu conteúdo, o arquivo é composto basicamente de matérias que podem

ser divididos em três grandes grupos. Primeiramente os recortes e matérias oriundas de

jornais de Sobral e Fortaleza a respeito das movimentações teatrais, espetáculos, festivais,

bem como manifestações e reivindicações da classe artística local vinculada por essas

mídias. Em segundo, os panfletos, folders e programas dos espetáculos e festivais nos

quais as montagens se fizeram presente. E por último as fotografias de ensaios,

espetáculos, manifestações, e bastidores das montagens, como reuniões e momentos de

lazer dos grupos.

Todavia, tal categorização se justifica somente enquanto metodologia de apreensão

e problematização do conteúdo do arquivo, pois tal separação parece ter sido

desconsiderada por seu autor, na constituição e organização deste material. Fragmentos de

jornais, “papéis” de espetáculos e fotografias dialogam em uma mesma superfície, que

obedecendo a um sentido. Desta forma, a disposição deste material é de toda reveladora e

17 ARTIÈRES, Philippe. Op. cit. p.34

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suscetível de análise, haja vista o cuidado e até mesmo a feição artística presente no

arquivamento do acervo.

A impressão de uma intenção estética por parte de Rogênio no resguardo de suas

memórias, se evidência, sobretudo, na ausência de um padrão fixo de disposição do

material arquivado, o que pode ser relacionado ao fato de tratar-se de um arquivo

organizado por um artista e ter seu conteúdo relacionando a arte. No interior do arquivo as

imagens e recortes de jornais, estão, quase em sua totalidade, dispostos de forma não

linear. Inclinados, sem um padrão geométrico, apresentam um caráter estético no formato,

aparentando terem sido rasgados de seu local de origem, sem o trabalho de um recorte que

pudesse lhe trazer um caráter geométrico linear. Desta maneira, durante o manuseio e

pesquisa junto ao arquivo, sobressai à primeira vista a impressão de uma ausência de

organização, ou mesmo de intenção de compor um conjunto a partir daqueles inúmeros

recortes e fragmentos dispostos de forma não linear.

Outro fator bastante característico no material, diz respeito ao caráter fracionário

do acervo. Alguns elementos estão repetidos em reproduções fotocopiadas, outras folhas

estão perfuradas como se um dia tivessem sido guardados em outro suporte que

demandasse tais perfurações. Enquanto parte dos documentos, folders e panfletos das

peças, matérias e recortes de jornais colados em folhas de papel estão arquivados em uma

pasta, arranjados em suas divisórias plásticas, outros elementos estão soltos dentro desta

pasta, ou mesmo fora dela, como no caso de algumas fotografias dispostas em folhas de

cartolina cortadas ao meio, que por suas dimensões não caberia neste suporte.

Percebe-se no arquivo a ausência de uma ordem explicita na disposição do

material, seja ela cronológica ou temática, pois nos diversos momentos em que o

acessamos, podemos perceber modificações em sua ordem, aparentando a ausência de

preocupação por parte de seu autor da manutenção de uma sequência para seu acervo.

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Se por um lado, a ausência de um padrão geométrico ou de uma consecutividade,

parecem denotar certa displicência ou mesmo ausência de cuidado na composição do

arquivo, por outro tal constatação acaba por não se sustentar, bastando para tanto um olhar

mais apurado, que permita ver para além do que se apresenta em primeiro plano, pondo

como questão o próprio suporte dos elementos arquivados.

Recortes de jornais sobre a X Mostra de Teatro Amador em Sobral. Fonte: Arquivo Rogênio Martins.

Os papéis que servem de suporte ao armazenamento das imagens, fotografias,

recortes de jornais e material de divulgação dos espetáculos, não estão, salvo pequenas

exceções, com seu fundo em cor natural, recebendo rabiscos em sua superfície, ou

colagens de imagens aparentemente fortuitas e sem relação direta com o conteúdo

arquivado, quebrando a neutralidade do local onde estão acondicionadas estas memórias,

ensejando as intencionalidades de seu processo de criação.

Enquanto suporte de memória, o arquivo pessoal se relaciona com questões de

identidade, mas também de legitimidade, buscando através de algumas estratégias

autenticar o discurso ali inserido. Seu “valor de prova” não esta intrínseco em seus

documentos como se ajuizou sobre os arquivos oficiais, pois “seu valor de prova é

estabelecido de ‘fora’: é o olhar do usuário do arquivo (o pesquisador por excelência) que

capta, daquele conjunto, as ‘provas’ de que precisa para sua pesquisa.” 18

Por meio dos detalhes, nos é permitido acessar dentre os contornos do arquivo as

marcas da necessidade de prova, agregada as memórias daquele que o constitui. Desta

18 FRAIZ, Priscila. Op. cit. p.31

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forma, no arquivo de Rogênio, os documentos em sua grande maioria encontram-se com

informações relativas à data (dia, mês e ano) e local de procedência.

Fotografias e recortes de jornais, quando não contém em si referência a data e

localidade, como no caso das matérias de jornais que tem essas informações recortadas do

topo da página do jornal e dispostas nos “papéis” do arquivo; recebem manualmente ou de

forma datilografada estas informações, o que denota a necessidade ou interesse de agregar

a este corpus um caráter de prova, validação das informações arquivadas, por meio das

orientações de espaço e tempo.

Enquanto discurso tecido e organizado ao longo do tempo, o arquivo de Rogênio

fala sobre si, consolida simbologias em torno da sua figura e de sua existência, indicando-

nos um caráter testemunhal, pois como afirmar Artières: “O arquivamento do eu não é

uma prática neutra; é muitas vezes a única ocasião de um indivíduo se fazer ver tal como

ele se vê e tal como ele desejaria ser visto.” 19

Embora sutis algumas estrias no tecido do arquivo de Rogênio permitem ver a

constância das práticas de afirmação do eu, desmembrando-se da coletividade englobante.

Desta forma, muito embora sua própria figura ou seu nome, marco de individualidade, não

seja tão destacadamente o ponto central de seu arquivo, algumas marcas e sinais dão

destaque a Rogênio dentro do conjunto destas memórias, pois além de sua presença em

boa parte das fotografias reunidas, o que é normal por tratar-se de um arquivo pessoal, é

constante a presença de grifos e outras formas de destaque de seu nome sempre que

possível, em meio às matérias e recortes de jornais por ele reunidos,

Do interior do arquivo destaca-se também enquanto um agrupamento mais coeso

entre si, parecendo inclusive compor um acervo a parte, os materiais relacionadas à

atuação do Centro de Ativação Cultural de Sobral (CAC) entre os anos de 1987 a 1989, no

qual a exclusividade de elementos relacionados somente ao teatro amplia-se para a

inserção de outras categorias artísticas, como a dança, música, poesia, etc.

19 ARTIÈRES, Philippe. Op. cit. p. 31

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Contudo, mesmo com as representações artísticas ampliadas, o material que recebe

o maior relevo dentro das referências oriundas do CAC Sobral, são os documentos

alusivos à realização na cidade da X Mostra de Teatro Amador no ano de 1988. Tal mostra

fazia parte das ações perpetradas no estado pela Federação Estadual de Teatro Amador –

FESTA, que desde 1986 já contava com um núcleo no município, composto por artistas

locais. De modo que no ano de 1988, Sobral é escolhida para sediar o evento, se

configurando como o primeiro ano da realização da mostra fora do espaço da capital. Tal

mostra, co-produzida pelo CAC local, é tida entre os artistas sobralenses e por Rogênio

Martins, como um marco divisor na história da produção teatral recente, tanto por sua

influência sobre a produção artístico-teatral, como na própria visibilidade e aceitação do

fazer teatral na cidade a partir deste evento.

Espetáculo Fala Sobral - X Mostra de Teatro Amador.Fonte: Arquivo Rogênio Martins.

As diversas oficinas, shows e peças, como o espetáculo Fala Sobral, montado

através da união entre Reluz e o Resistência, os dois maiores grupos de teatro da cidade,

para representar Sobral nesta mostra, são resguardados nas páginas deste arquivo

associados a um apanhado de matérias de jornais do período. Parecendo querer atestar não

apenas a realização desta mostra, hoje legada somente à memória daqueles artistas que a

vivenciaram mais ativamente; mas também para provar a vitalidade e a força da

representatividade da cena teatral local do período no contexto cearense.

Outra presença característica dentro do guardados de Rogênio são as fotografias,

elemento de visualidade que permite perceber as sociabilidades e os aspectos estéticos do

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movimento e de suas criações. Presentes de diversas formas e disposições dentro das

páginas do arquivo, por vezes se misturam a fragmentos de jornais, folders de espetáculos,

ora parecendo funcionar como complemento ao texto escrito, ora compondo por si só um

enredo sobre as montagens e vivências sociais do período.

É bastante comum no interior do arquivo o uso de uma associação entre imagens e

textos, onde as fotografias parecem figurar como “atrizes coadjuvantes”, servindo

meramente como personagem que dão apoio a atuação dos textos dispostos no centro do

palco. Tal prática pode ser percebida tanto nos panfletos dos espetáculos que usualmente

tem agregado uma foto da montagem, assim como na frequente associação em uma

mesma página, de recortes de jornais e de imagens relacionadas ao conteúdo desta

matéria. Se por um lado tal prática é reveladora de uma valorização das imagens enquanto

elementos testemunhais e de validação dos discursos proferidos, por outro atesta o lugar

cedido às manifestações teatrais dentro dos periódicos locais, haja vista em sua maioria os

textos conservados pelos atores, serem de pequena dimensão e quase nunca contar com

uma imagem junto ao seu corpo.

Folder e fotos do espetáculo O Manual Sexual.Fonte: Arquivo Rogênio Martins.

Deste modo as fotografias postas por Rogênio Martins vão se congregando aos

textos buscando suprir, pelo menos no interior do seu arquivo, essas lacunas visuais

deixadas pelos jornais e pela ausência de recursos que permitissem as companhias

sobralenses disporem de imagens do espetáculo nos seus materiais de divulgação.

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Por outro lado, em certos momentos as fotografias apresentam-se “emancipadas”,

postas no papel principal e no centro da cena, tendo no texto o suporte para a sua atuação

nos resguardos das memórias. É desta forma que as fotografias estão no conteúdo de

referência ao Centro de Ativação Cultural de Sobral, onde no centro da página

encontramos sempre a presença de uma fotografia, associada a uma legenda que lhe

referencia a data, o local e a descrição da atividade.

Como outra perspectiva de apropriação plural desse recurso no arquivo, as

fotografias, sobretudo as fotografias de cena, apresentam-se reunidas em grupos sob uma

mesma superfície sem que para isso contenham nenhuma espécie de texto nem mesmo o

nome dos espetáculos. Reunindo, por vezes, fotografias de diferentes espetáculos, em uma

miscelânea de imagens, momentos e memórias, a exemplo das figuras de um livro

ilustrado que guardasse as reminiscências de seu criador.

Fotografias de diferentes espetáculos teatrais sobralenses.Fonte: Arquivo Rogênio Martins.

A pessoalidade está sempre contornada nestas fotografias, legando a lembrança de

Rogênio Martins enquanto sujeito atuante nas ações preservadas no arquivo. Entretanto, é

possível constatar na composição do arquivo pessoal de Rogênio, a ausência de uma

“escrita de si”, em um sentido autobiográfico mais estrito, de modo a caracterizar a

tentativa de organizar de forma escrita suas memórias e a história do teatro sobralense, a

certo modo encerradas nas páginas de seu arquivo.

O que não nos permite, afirmar a inexistência de tal material fora do conteúdo do

acervo acessado durante a pesquisa, ou a presença dessa intenção por parte de seu autor.

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Todavia, na composição do arquivo podemos encontrar alguns escritos de autoria de

Rogênio, e que se insurgem mais no campo social do que pessoal, são eles entrevistas e

textos escritos por ele para jornais locais, ratificando a ideia da existência de certo

respaldo da sua figura junto à sociedade e a imprensa local. Desta forma, mesmo enquanto

arquivo pessoal, suas demandas perpassam pela necessidade de uma legitimação exterior,

tencionando dar validade ao discurso presente nos elementos arquivados, bem como

afirmar a autenticidade não só do discurso emanado, mas de seu enunciador, junto à

sociedade.

Nos meandros dos diálogos entre memória e esquecimento, entre fazer lembrar e

deixar esquecer, estão intrinsecamente pautadas às relações de poder. Portanto, os

mecanismos que hoje permitem ver uma história do Teatro São João, mas não a história

dos artistas que deram vida a este espaço, nos apresentam o lugar social dado ao fazer

teatral na cidade, em detrimento ao que representa hoje o prédio do Teatro para Sobral e

sua história.

Arquivar a própria vida é desafiar o trabalho do tempo. Assim, o arquivo do

ator/autor Rogênio Martins, enquanto suporte de suas experiências e memórias, enquanto

“tecido de sua rememoração” onde “a recordação é trama e o esquecimento a urdidura”, 20

se configura como prática de resistência, através da qual Rogênio e o teatro sobralense se

mostram como um só texto, afirmando a representatividade de uma experiência teatral que

existiu e resistiu durante anos na cidade.

Seu arquivo nos apresenta o indício de “uma falta”, relacionada à história cultural e

artística da cidade de Sobral, parecendo querer, mesmo que timidamente, romper com

espessas camadas de esquecimento que apagaram as marcas dos pés desses atores do palco

do Teatro São João, e que encobriram a marca de seus dedos em suas paredes. Almejando

fazer com que as luzes voltem a lhe pôr no foco, trazendo para o centro da cena e da

história de Sobral as cores e vozes dessa experiência de agitação teatral vivida em tempos

idos.

20 BENJAMIN, Walter. A imagem de Proust. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Vol.1. 7 ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p.37

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O CINEMA NOVO E O “UDIGRIDI” EM DEBATE. 21

Valéria Aparecida Alves.22

Resumo.

O artigo propõe a discussão sobre a produção cultural na década de 1970, a partir da análise do amplo debate entre os representantes do Cinema Novo e o Cinema Marginal. Através da imprensa, observamos as diferentes propostas de criação do cinema brasileiro no período de auge da censura, suas estratégias de divulgação e defesa de seus projetos.

Palavras-chave: Cinema Novo; Cinema Marginal; Ditadura Militar; Torquato Neto.

Abstract

The article proposes a discussion of cultural production in the 1970s, from the analysis of the debate among representatives of New Cinema and Cinema Marginal. Through the press we observed the different proposals for the creation of Brazilian cinema during the height of censorship, their outreach strategies and defend their projects.

Keywords: New Cinema, Cinema Marginal; Military Dictatorship; Torquato Neto.

A partir dos anos 50 o cinema brasileiro tornou-se alvo de amplo debate.

Cineastas, produtores e diretores discutiam os rumos da produção nacional, a falta de

21 O texto ora apresentado refere-se a um fragmento da Tese de Doutorado, intitulada “Desafinando o coro dos contentes: Torquato Neto e a produção cultural brasileira nas décadas de 1960-70”, apresentada ao Programa de História da Pontifícia Universidade Católica – PUC/SP, em 2011, sob orientação da Prof.ª Dr.ª Maria Izilda Matos de Santos.22Professora Doutora da Universidade de São Paulo – UNICID.

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investimentos e a concorrência estrangeira – identificadas como as principais dificuldades

para o setor. Dos debates e discussões em mesas-redondas, seminários e congressos,

surgiu a proposta de um novo modelo de produção, com pequenos orçamentos e prazos

curtos, com prioridade para o conteúdo – com ênfase para os temas sociais - e a qualidade

técnica, denominado de cinema independente. Um dos primeiros filmes representante da

nova proposta foi “Rio 40 graus” 23 de 1953, mas só liberado pela censura em 1955,

considerado referência para o cinema brasileiro, por abordar as favelas sem a perspectiva

folclórica, mas denunciando e propondo a reflexão sobre as causas determinantes da

miséria de seus moradores.

Durante a década de 1960 o debate foi ampliado e as propostas para a produção

cinematográfica brasileira foram múltiplas, com destaque para o jovem diretor baiano –

Glauber Rocha, que após as experiências com curtas-metragens lançou em 1961 o longa

“Barravento” 24. Neste momento, a nova proposta para o cinema brasileiro denominado,

inicialmente de “independente”, passava a ser identificado como “Cinema Novo”, termo

que abrigava cineastas de várias tendências e que não configurava, ainda, um movimento

especificamente. Porém, a partir de setembro de 1962, com a proposta explicitada por

Glauber Rocha de “romper com a estética colonial”, ou seja, não apenas explorar a

temática da miséria social, mas através da criação de uma nova linguagem estética,

23 Com roteiro, direção e produção de Nélson Pereira dos Santos. Sinopse: Num domingo carioca, a vida é retratada através de cinco pequenos vendedores de amendoim. Em Copacabana, Pão de Açúcar, Corcovado, Quinta da Boa Vista e Estádio do Maracanã, pontos turísticos da cidade, eles procuram compradores para seus produtos. O calor escaldante de 40 graus acaba por unir as aflições dos moradores humildes, que buscam algo de melhor para suas vidas. Depois de mais um dia atribulado, a alegria de viver toma conta de suas vidas, quando participam do ensaio geral das Escolas de Samba, conforme SILVA NETO, Antônio Leão da. Dicionário de filmes brasileiros. São Paulo: s.ed., 2002, p. 703.

Artigo recebido em 31/05/2012. Aprovado em 22/06/201224 Produzido por Rex Schindler, Braga Neto e David Singer, com direção, roteiro e argumento de Glauber Rocha, baseado na idéia original de Luiz Paulinho dos Santos. Sinopse: Grupo de pescadores habita uma região pobre da Bahia. Um deles, Firmino, já tendo vivido na cidade, esforça-se para livrá-los de suas velhas crenças e de sua escravidão, usando para isso os meios mais diabólicos. A presença do mar, considerado uma divindade, a música, a dança, as cerimônias e os sacrifícios rituais são os elementos essenciais da história. Ao retornar da cidade a sua aldeia natal de pescadores negros, portanto um discurso contra a exploração econômica, Firmino provoca conflitos pessoais e se indispõe contra os valores culturais representados pelo candomblé africano, conforme SILVA NETO, Antônio Leão da. Op. Cit., p.109.

Artigo recebido em10/06/12. Aprovado em 29/06/12.

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contribuir para a reflexão sobre os problemas brasileiros e para a modificação da

realidade, os cineastas que o seguiram passam a configurar um grupo – não homogêneo,

mas identificados com a mesma proposta –, ou seja, representantes de uma unidade

estética, que assumiria o termo “Cinema Novo”, e diferenciava-se das demais propostas,

pois:

[...] procuram produzir cinema de forma independente, sem preocupações com os acabamentos formais que caracterizavam a produção do tipo industrial. [...] Ao mesmo tempo, criticavam também as produções de comédias e musicais populares, conhecidos como chanchadas, características de produtores localizados no Rio de Janeiro. [...] Propunham a inovação estética, afinada com as novidades oriundas dos grandes centros cinematográficos europeus, mas também inseriam o debate político sobre a função social da produção cinematográfica. [...] 25

Foram destaques nesse momento os filmes: “Vidas Secas” de Nélson Pereira dos

Santos e “Deus e o diabo na terra do sol”, de Glauber Rocha - filme considerado por

alguns como um dos mais representativos do Cinema Novo e um clássico do cinema

nacional, alcançando reconhecimento internacional. Ambos exploravam a temática do

universo agrário brasileiro: a estrutura fundiária, a miséria do trabalhador rural e discutiam

as alternativas ou propostas de superação – migração, principalmente em Vidas Secas,

cangaço e fanatismo religioso, sem propor respostas prontas – a solução fica em “aberto”

-, provocando o espectador à reflexão. A crítica ao sistema agrário alinhava-se a proposta

do nacional-desenvolvimento. Identificados com a ideologia do Instituto Superior de

Estudos Brasileiros – ISEB observa-se que no Cinema Novo, até 1964:

[...] os personagens são os do mundo agrário. É como se houvesse um pacto tácito, certamente nunca formulado nem mesmo conscientizado, entre esse movimento cinematográfico e a burguesia ligada à industrialização, no sentido de ela não ser questionada. E também no sentido de não se valorizar, no

25 MALAFAIA, Wolney Vianna. O mal-estar na modernidade: O Cinema Novo diante da modernização autoritária (1964-1984). In: NÓVOA, Jorge e BARROS, José D´Assunção (orgs.) Cinema – História: teoria e representações sociais no cinema. 2ª ed. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008, p. 204.

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campo, os movimentos que estavam então se desenvolvendo, como as Ligas Camponesas, mas dando ao nordeste uma imagem estilo “feudal”. [...] 26

Ao mesmo tempo em que o Cinema Novo propunha uma nova estética para a

produção do cinema nacional, um grupo de jovens também discutia e apresentava suas

propostas para a produção cinematográfica brasileira, dando origem à produção do

Cinema marginal ou udigrudi, que priorizavam a filmagem no formato super-8,

tecnologia disponível a partir da década de 1960, pela Kodak. Em virtude da qualidade e

do preço acessível, a proposta tornou-se bastante popular durante a década de 1970,

principalmente entre estudantes e amadores. Os filmes tinham como característica a

experiência e visava romper com a estética não apenas do “cinema industrial”, pautado no

modelo hollywoodiano, mas, também, romper com o realismo do Cinema Novo.

Explorando temas polêmicos como: sexo, homossexualismo, violência, banditismo

e o terror – vampiros e múmias -, com linguagem experimental, os roteiros evidenciavam

a produção da contracultura brasileira e não por acaso, foram rotulados de “alienados”, ou

representantes da fase do “desbunde”. Entre os produtores, roteiristas e diretores dos

filmes em super-8, destacaram-se Rogério Sganzerla, Ivan Cardoso, Júlio Bressane, Luiz

Otávio Pimentel, Neville Duarte d’Almeida, José Mojica Marins – mais, conhecido como

“Zé do Caixão” – e Torquato Neto, entre outros.

O novo projeto resultava das críticas dirigidas ao Cinema Novo, considerado

“pequeno-burguês” e até mesmo ingênuo. Assim, os contestadores propunham uma nova

postura, marcada pelo experimentalismo em busca de nova linguagem:

26 BERNARDET, Jean-Claude. Cinema brasileiro: propostas para uma história. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p.70-71.

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[...] As infindáveis discussões sobre o Cinema Novo, acompanhando o movimento em processo, permitiram aos representantes do cinema marginal atitudes mais precisas diante do seu projeto. De imediato, o que se verifica desde as primeiras manifestações mais indicativas da virada de mesa em relação ao cinema que vinha se fazendo é a diferença de postura do autor em relação a seu filme, pela recusa de certo didatismo populista que elas próprias denunciam. Uma das acusações mais frequentes ao Cinema Novo calcava-se no intelectualismo pequeno-burguês que teriam assumido seus cineastas, às vezes ingenuamente, discutindo uma realidade popular que lhes era estranha, ainda que conhecida. [...] A novidade apresentada – e que hoje pode detectar facilmente como contribuição – foi o desnudamento maior da autoria, isto é: uma coragem praticamente inédita no oferecer-se ao público como artista-indivíduo, enfocando os problemas levantados de modo mais sincero e menos professoral. [...] 27

Em meio às discussões sobre a produção do cinema nacional, ainda, no final da

década de 1960, dois filmes evidenciaram o debate e o momento criativo que o cenário

cinematográfico brasileiro vivenciava. Em 1967, Glauber Rocha, apresentava o filme

“Terra em Transe” 28, inicialmente proibido pela censura, mas, posteriormente liberado.

Considerado filme-chave da moderna cultura brasileira, traz uma análise sobre os

principais problemas enfrentados não só no Brasil, mas em toda a América Latina. Apesar

27 MONTEIRO, Ronaldo F. Do udigrudi às formas mais recentes de recusa radical do naturalismo. In: NOVAES, Adauto (org.), Anos 70: ainda sob a tempestade. Rio de Janeiro: Aeroplano / SENAC, 2005, p. 394-395.

28 Produção executiva de Zelito Vianna, produção artística de Luiz Carlos Barreto, Carlos Diegues, Raimundo Wanderley e Glauber Rocha, responsável, também, pelo argumento, roteiro e direção. Sinopse: Porfírio Diaz, senador, odiando o povo, pretende coroar-se imperador de um país fictício chamado Eldorado, para impor aos sub-homens eldoradenses sua toda-poderosa vontade de super-homem. Mas, existem outros candidatos: Vieira, governador de Alecrim, província de Eldorado, é um demagogo populista que se elege a custa do voto dos camponeses e operários para depois, no poder, fuzilar seus líderes, e Don Júlio Fuentes, a expressão máxima da burguesia progressista em Eldorado. Dono de tudo: minério, petróleo, siderurgia, imprensa e televisão. Paulo Martins é o poeta e jornalista, a consciência em transe em Eldorado, o homem que vai lutar contra os tiranos de Eldorado, conforme Antônio Leão da. Op. Cit., p. 789.

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das inúmeras críticas recebidas, o filme influenciou a produção de peças teatrais, canções

e movimentos musicais – como a Tropicália – e filmes. Sobre a importância do filme, o

cineasta Cacá Diegues, comentou:

[...] Terra em Transe articula ao mesmo tempo análise política e delírio pessoal, inaugurando o Tropicalismo como método de abordagem da realidade brasileira. Para falar desse filme, misterioso, inspirado, revolucionário, é preciso lembrar a um só tempo James Joyce e Villa-Lobos, Jorge Lima e Buñuel, desintegração e construção, forma e anarquia [...] 29

Ainda, naquele ano (1967), foi criado o novo Instituto Nacional do Cinema – INC,

anunciando o processo de transformações e maior interferência estatal no setor. E, em

1968, Rogério Sganzerla, lançava o filme “O bandido da luz vermelha” 30, outro marco na

produção do cinema nacional.

Inspirado na trajetória do assaltante João Acácio Pereira da Costa, o filme foi

aclamado pela crítica, considerado inovador e talvez o mais representativo do cinema

marginal. Sobre a produção e as influências recebidas, Sganzerla explicou:

29 DIEGUES, Carlos. Cinema brasileiro: idéias e imagens. 2ª ed. Porto Alegre: UFRGS / MEC/ SESu / PROED, 1999, p. 21 (Série Síntese Universitária; 6).30 Com produção de José da Costa Cordeiro, José Alberto dos Reis e Rogério Sganzerla, que também, dirigiu, desenvolveu o argumento e roteiro. Sinopse: O enigmático assaltante de residências de São Paulo, Jorge, apelidado pela imprensa de O bandido da luz vermelha, desconcerta a polícia, comandada pelo delegado Cabeção, devido a sua ousadia e, principalmente por suas técnicas inusitadas de ação. Ele sempre conduz uma lanterna dessa cor e possui suas vítimas. A despeito dos esforços da polícia, ele circula sem problemas, gastando o fruto dos roubos. Na cidade de Santos ele conhece outros assaltantes, inclusive o rei da boca do lixo e se apaixona pela musa marginal Janete Jane e é esse romance que o leva a perder o controle da situação, já bastante confusa graças ao seu obscuro envolvimento com o político populista JB e com a organização criminosa Mão Negra. Traído por um dos bandidos, é perseguido, mata a amante e se suicida, conforme SILVA NETO, Antônio Leão da. Op. Cit., p. 105.

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[...] Meu filme é um far-west sobre o III Mundo. Isto é, fusão e mixagem de vários gêneros. Fiz um filme-soma; um far-west mas também musical, documentário, policial, comédia (ou chanchada?) e ficção científica. Do documentário, a sinceridade (Rossellini); do policial, a violência (Fuller); da comédia, o ritmo anárquico (Sennet, Keaton); do western, a simplificação brutal dos conflitos (Mann). Bandido da Luz Vermelha persegue, ele, a polícia, enquanto os tiras fazem reflexões metafísicas, meditando sobre a solidão e a incomunicabilidade. Quando um personagem não pode fazer nada, ele avacalha. Orson Wells me ensinou a não separar a política do crime. Jean-Luc Godard me ensinou a filmar tudo pela metade do preço. Em Glauber Rocha conheci o cinema de guerrilha feito à base de planos gerais. Fuller foi quem me mostrou como desmontar o cinema tradicional através da montagem. Cineasta do excesso e do crime, José Mojica Marins e apontou a poesia furiosa dos atores do Brás, das cortinas e ruínas cafajestes e dos seus diálogos aparentemente banais. Mojica e o cinema japonês me ensinaram a saber ser livre e – ao mesmo tempo – acadêmico. [...] 31

Em meio às discussões que ambos os filmes provocavam e diante das mudanças

ocorridas no cenário político e cultural, a dispersão do grupo representando o Cinema

Novo ampliava-se e, a partir de 1969, alguns de seus representantes, como Glauber Rocha,

Cacá Diegues, Gustavo Dahl e Ruy Guerra, já anunciavam o fim do movimento.

Na década de 1970, o cinema nacional também foi marcado pela produção das

“neochanchadas”, comédias musicais e as “pornochanchadas”, com conteúdo erótico,

além das produções históricas, com destaque para os filmes: Os inconfidentes, de Joaquim

Pedro de Andrade e Independência ou morte, de Carlos Coimbra, ambos de 1972 e Xica

da Silva, de Cacá Diegues e João Felício dos Santos, de 1978. Tais produções receberam

duras críticas, que resultaram na concepção de “decadência” do cinema brasileiro,

argumento, principalmente, utilizado pelo grupo identificado com a produção marginal.

31 SGANZERLA, Rogério. Manifesto Cinema-fora-da-lei apud BASUALDO, Carlos (org.) Tropicália: uma revolução na cultura brasileira. São Paulo: Cosac Naify, 2007, p. 254-255.

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Contudo, apesar das severas críticas, durante a década de 1970, o setor mais

produtivo do mercado de bens culturais foi o cinema, resultado, inclusive, dos

investimentos do Estado, através da criação de órgãos que deveriam orientar, e incentivar

a produção, em outras palavras, controlar a produção cinematográfica brasileira, caso da

EMBRAFILME, criada em 1973. E, enquanto alguns representantes do Cinema Novo

aproximaram-se e até defenderam a interferência do Estado na política cinematográfica,

vista como possibilidade de enfrentar a concorrência estrangeira e a falta de investimentos,

alinhando-se à política cultural estatal, o grupo do cinema “udigrudi”, por representar a

contracultura, não só afastava-se como repudiava de forma contumaz a atitude e

posicionamento dos representantes cinemanovistas.

Representando o Cinema marginal, Torquato Neto protagonizou, atuou, dirigiu e

produziu filmes no início da década de 1970. Em carta destinada a Hélio Oiticica em 29

de setembro de 1971, revelava seu entusiasmo:

[...] Nosferato do Brasil ainda está sendo filmado. Semana passada vimos os três primeiros rolos e vários slides, tudo fantástico. Ivan Cardoso é outro cara que eu estou namorando agora: filmes de vampiro, transas por aí, você acha que eu ia perder uma maravilha dessas? Quando você puder ver essas coisas vai dar pulos. O filme está incrível e as caras que providenciei para mim são inacreditáveis. Tomei um susto quando vi. Fantástico! Quero fazer filmes com Ivan e mais alguns. O que você acha? Ivan me disse que ia mandar pra você alguns stills do filme, mandou? Gostou? [...] 32

[...] Em 1971, o cineasta Ivan Cardoso lançou o filme em super-8 Nosferato no Brasil, uma paródia ao velho personagem das histórias de vampiro, que desde Murnau sempre reaparecera no cinema. Torquato interpretou o vampiro, e essa atuação ficou

32 Apud PIRES, Paulo Roberto (org.) Torquato Neto: Torquatália – do lado de dentro. Rio de Janeiro: Rocco, 2004, p. 249.

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muito colada à figura de Torquato, a ponto de tornar-se emblemática. 33

Através da coluna que assinava para o jornal Última Hora – Geléia Geral,

-Torquato Neto divulgava de forma entusiasmada a produção em super-8. Destacando os

filmes, desde a fase inicial das produções, elaboração do roteiro, seleção de atores,

locações até a apresentação, em salas de acesso restrito, como a Cinemateca ou, até

mesmo, na residência de seus produtores e diretores:

[...] Superoito é moda? É. E é também cinema. Tem gente que já está nessa firme e não está exatamente só brincando. Em minha opinião, está fazendo o possível, quando é possível. Aqui, então, nem se fala: superoito está nas bocas e Ivan Cardoso, por exemplo, vai experimentando. Bom e barato. Bom. O olho guardando: aperte da janela do ônibus, como sugeriu Luiz Otávio Pimentel, e depois veja. É bonito isso? Descubra: aperte e depois repare. As aventuras de superoito, herói sem som – e se quiser falar também tem: em Manaus, nos Estados Unidos, na Europa, mas boas lojas. Nas importadoras. [...] Planos gerais, panorâmicas, detalhes. Se eu compreendi direito, nada melhor do que curtir de superoito, vampiresco, fresco, mudo. Cinema é um projetor em funcionamento projetando imagens em movimento sobre uma superfície qualquer. É muito chato. O quente é filmar. 34

Diante das propostas e posições tão distintas, os representantes de cada tendência,

travaram, através da imprensa, amplo e polêmico debate sobre o cinema brasileiro na

década de 1970. Com discurso agressivo, troca de ofensas, inclusive pessoais, a discussão

evidencia a produção cinematográfica brasileira e a pluralidade de propostas e

encaminhamentos. Entre os protagonistas do debate, defendendo o projeto do Cinema

Novo, destacou-se Glauber Rocha, Antonio Calmon, Cáca Diegues e Gustavo Dahl e por

33 BEZERRA Filho, Feliciano José. A escritura de Torquato Neto. São Paulo: Publisher Brasil, 2004, p.64.34 TORQUATO NETO, Última Hora, 29. ago. 1971 apud PIRES, Paulo Roberto (org.) Torquato Neto Torquatália – Geléia Geral. Rio de Janeiro: Rocco, 2004, p. 71.

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outro lado, posicionaram-se Torquato Neto, Hélio Oiticica, Waly Salomão, Júlio Bressane

e Ivan Cardoso, em defesa do Cinema Marginal.

Através da leitura e análise das colunas Plug e Geléia Geral, respectivamente

publicadas pelos jornais Correio da Manhã e Última Hora, é possível acompanhar a

enorme polêmica que marcou o início da década de 1970. Nos textos, Torquato Neto

apresentava severas críticas ao Cinema Novo, em tom provocativo e ácido – características

de seus textos -, comentava o panorama do cinema nacional:

[...] Ah, eu vi. E foi tudo por aqui mesmo, enquanto as cucas fundiam e o cinema novo se desfazia em transas com a indústria barra-pesada, em transas com a história mal contada (e por que contá-la?) dos herdeiros de uma massa falida, em transas pela marginalia da grande cidade, em transas com o novo lixo do curtume nacional, em transas, transas, transas. Um barato. [...] Entre os restos de uns e glória de outros o cinema brasileiro segue o curso normal do cinema: cresce e brilha, aparecerá. E o cinema novo (alguma novidade?) caiu do galho e foi ao chão. Como se diz: já era ... [...] 35

Entre as críticas dirigidas ao Cinema Novo, destaca-se a aproximação com a

estrutura estatal e o caráter comercial das produções, o que de acordo com a lógica do

Cinema Marginal, limitava a capacidade criativa, o experimento, ou seja, a busca de uma

nova linguagem, e, portanto, sua renovação. Obviamente, a discussão entre os grupos era

acirrada e polêmica. Porém, a entrevista concedida por Antônio Calmon, publicada por

Torquato Neto na coluna Plug, em 19 de junho de 1971, deflagrou um enorme embate

entre os dois grupos, repercutindo em troca de acusações e, consequentemente, na

ampliação da polêmica. Questionado sobre o “fim” do Cinema Novo, Calmon respondeu:

35 TORQUATO NETO, Correio da Manhã, 12 jun. 1971 apud PIRES, Paulo Roberto (org.) Torquato Neto Torquatália – Geléia Geral. Rio de Janeiro: Rocco, 2004, p. 188.

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[...] quando tudo começou, bossa nova, cinema novo, havia uma perspectiva de conjunto e a batalha de todos era mais ou menos a mesma. Agora é impossível porque a nova ordem gerou uma dispersão geral. E tem mais: a partir de certo momento o cinema novo passou a se ocupar de coisas mortas. A estrutura latifundiária de Nordeste já era. Cangaço já era. Candomblé também já era. O cinema novo morreu registrando coisas acabadas ... [...] 36

Na entrevista, Antônio Calmon apresentou seu filme “Capitão Bandeira” 37, na

época, em exibição, descrito por ele, como uma tentativa de mesclar as linguagens do

Cinema Novo e comercial. Buscava com a produção alcançar um público mais amplo, ou

seja, “adaptar-se” a nova fase – o crescente processo de industrialização dos bens

culturais. Sobre o filme comentou:

[...] Então, na verdade, O Capitão Bandeira é um filme meio misturado – quer dizer: tem todo um lado que vem da profissionalização, cinema, cinema novo, linguagem de cinema e tal. E tem um lado pelo qual eu me ligo à minha geração, porque é um filme do “plá”, mesmo, filme de curtição, um filme livre, sem literatices e com toda a armação industrial que os caras estão pedindo agora. Eles querem? A gente faz. [...] 38

36 Entrevista de Antônio Calmon concedida a Torquato Neto, Correio da Manhã, 19 jun. 1971 apud PIRES, Paulo Roberto (org.) Torquato Neto Torquatália – Geléia Geral. Rio de Janeiro: Rocco, 2004, p. 189.37 O filme O Capitão Bandeira contra o Doutor Moura Brasil de 1971 foi produzido por Antônio Calmon, Hugo Carvana e Cláudio Marzo, com direção e roteiro de Antônio Calmon. Classificado como gênero: comédia. Sinopse: Cláudio Bandeira é um empresário riquíssimo, famoso, que tem tudo para ser feliz. No auge de sua carreira, resolve abandonar tudo, devido à perseguição movida pelo misterioso e temível Dr. Moura Brasil, que lhe envia, através de uma estranha mulher, avisos de suas intenções enigmáticas. Ele terá que cumprir um pacto secreto ou morrerá à beira de um esgotamento nervoso. Bandeira interna-se num hospital para se recuperar. O mistério, todavia, permanece. Bandeira, então, decide-se a enfrentar o problema e, tendo encontrado a mulher ideal, encontra-se a si mesmo, única forma de ser feliz. Agora, as terríveis investidas do Dr. Moura Brasil, contra o capitão Bandeira são rebatidas à altura, conforme: SILVA NETO, Antônio Leão da. Op. Cit., p. 158-159.

38 Entrevista de Antônio Calmon concedida a Torquato Neto, Correio da Manhã, 19 jun. 1971 apud PIRES, Paulo Roberto (org.) Torquato Neto Torquatália – Geléia Geral. Rio de Janeiro: Rocco, 2004, p. 190.

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Na entrevista, Calmon, ainda, comentou as dificuldades enfrentadas para a

produção cinematográfica brasileira, apontando os limites impostos pela censura e

indústria cultural, além de tecer críticas ao Cinema Marginal, produzido e acessível para

um público restrito. Nos comentários, percebe-se, também, a valorização da “identidade

do povo brasileiro”. Contudo, a busca e valorização do “povo” não resultavam mais das

discussões sobre o nacional-popular, que marcou a década de 1960. A lógica de mercado

favorecia outro debate e naquele momento o popular passava a ser definido pelo consumo:

[...] De qualquer maneira posso garantir que meus filmes não serão exibidos apenas na cinemateca. Isso é um negócio fechado, é uma fossa que não me interessa. Hoje em dia, no Brasil, se você não faz um filme em cor você não distribui. Se você se liberta e manda brasa você não passa na censura. O cinema marginal não me satisfaz, parece o ritual de um grupo sempre as mesmas pessoas, o mesmo interesse, o mesmo tipo de curtição. Precisamos de uma disciplina de humildade que corte essa onda e nos faça reencontrar o povo brasileiro, do qual andamos muito afastados. É preciso redescobrir formas de contato com o público, o que eu acho um exercício intelectual da maior importância. [...] 39

Por fim, Calmon apresentou sua interpretação do panorama do cinema brasileiro,

reiterando as duras críticas ao Cinema Marginal e diante da nova realidade política e

cultural, sugeria a produção de filmes que pudessem ser aprovados pela censura e pelo

público mais amplo. Encerrava sua entrevista, portanto, reiterando a necessidade de

adaptação aos novos tempos:

[...] Eu, pessoalmente, não curto Godard. Nunca vi o cinema como exposição de problemas. Isso é uma curtição européia que predominou aqui e já era. O que temos hoje? Os últimos berros de cinema novo, já bastante sufocados, o irracionalismo doente, louco, desvairado e também colonizado do cinema marginal e um cinema comercial feito para débeis mentais. O Capitão

39 Entrevista de Antônio Calmon concedida a Torquato Neto, Correio da Manhã, 19 jun. 1971 apud PIRES, Paulo Roberto (org.) Torquato Neto Torquatália – Geléia Geral. Rio de Janeiro: Rocco, 2004, p. 190.

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Bandeira foi feito para preencher uma lacuna: a do filme brasileiro comercial e adulto. 40

Torquato Neto justificou a publicação da entrevista com Calmon, de quem

discordava totalmente, como possibilidade de ampliar o debate sobre a produção do

cinema nacional. Real motivo ou não, o fato é que a entrevista teve repercussão imediata e

foi amplamente discutida na imprensa, através dos comentários dos representantes do

Cinema Novo e Marginal – estes últimos observados na coluna Geléia Geral -, o que

possibilita a reflexão sobre o cenário cultural da época. Em 21 de julho de 1971, em

correspondência enviada a Hélio Oiticica, Torquato já evidenciava a discussão que se

estenderia por vários anos:

[...] Você não calcula como eu ainda me espanto com esse povo na beira da praia aqui do Rio. É realmente incrível. Vergara te falou que eu teria tido problemas por causa daquela entrevista idiota do Antônio Calmon. Imagine! Problema de quê, meu Deus? Antes da estréia do Capitão Bandeira eu já havia resolvido promover o filme no Plug. Calcule: eu pensava, porque as pessoas me diziam que era assim, que Calmon houvesse tido coragem de fazer um filme comercial limpo, pra ganhar realmente muito dinheiro num esquema que – você sabe muito bem – não me interessa pessoalmente em absolutamente nada; mas que poderia ser o primeiro passo, ou primeira palavra na abertura de uma discussão muito mais ampla sobre cinema brasileiro – que eu estava a fim de incentivar no Plug. Eu nem sequer conhecia Calmon pessoalmente. Fui lá todo feliz fazer a tal entrevista, liguei o gravador e deixei o boneco falar. Waly ouviu a fita inteira. Era inacreditável, Hélio. Se você leu o que eu publiquei e ficou espantado – eu queria ver tua cara escutando o monte de babaquice, maucaratice (sic) e estupidez que ele declarou no microfone. Livrei muito a cara dele, deixando de publicar declarações tais como: essa turma do cinema marginal vai de ácido, vai de tudo quanto é droga e no entanto só fazem filmes fossudos e doentes, ao contrário do que

40 Entrevista de Antônio Calmon concedida a Torquato Neto, Correio da Manhã, 19 jun. 1971 apud PIRES, Paulo Roberto (org.) Torquato Neto Torquatália – Geléia Geral. Rio de Janeiro: Rocco, 2004, p. 192.

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se espera de quem usa drogas etc, por aí. Eu sou um cara tão legal que guardei a entrevista uma semana, esperando que o filme passasse para que eu pudesse ver. [...] 41

As discussões sobre a produção do cinema nacional revelam os projetos distintos

que separavam o Cinema Novo do Cinema Super-8. Sobre o filme Capitão Bandeira de

Antonio Calmon, Torquato opinou, na mesma carta:

[...] Fui e vi – sinceramente – não pode ser pior. Calmon, pelo filme, parece uma garota do Sion que andou puxando fumo e desbundou à la mode. Minha opinião sobre o filme vai num Plug – o último que saiu conosco – que te remeto ou com esta carta ou logo depois, com as encomendas. [...] 42

Utilizando a mesma estratégia – colocar o cinema nacional em debate e expor as

ideias do grupo adversário -, os representantes do Cinema Novo, entre eles: Arnaldo Jabor

e Paulo César Saraceni e outros, convidaram Ivan Cardoso, Luciano Figueiredo, Torquato

Neto e Waly Salomão para conceder uma entrevista ao Jornal Nacional – coluna

Domingo Ilustrado. O debate polêmico era acirrado entre as duas tendências e continuava

em evidência nos textos de Torquato, na carta de nove de novembro de 1971, dizia a Hélio

Oiticica:

[...] Eu quero saber onde vamos: os caras do Cinema Novo chamaram Waly e eu, além de Ivanzinho e Luciano, para uma entrevista sobre o underground brasileiro. Foi uma verdadeira loucura, Hélio: Jabor, Mário Carneiro, Paulo César Sarraceni e Fontoura querendo saber das transas: foi uma loucura essa entrevista (para o Domingo Ilustrado) e estou certo que nem Jabor terá coragem de publicar nada do que dissemos pra eles;

41 TORQUATO NETO apud PIRES, Paulo Roberto. (org.) Torquato Neto: Torquatália – do lado de dentro. Rio de Janeiro: Rocco, 2004, p. 234-235.

42 Idem, ibidem.

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uma verdadeira batalha; Waly brilhou e eu saí esculhambando os caras durante a entrevista inteira: de onze da noite às quatro da manhã, com gravador e tudo. Um verdadeiro ninho de ratos, ratinhos, covardia e falta de caráter até por lá, geral. Você vai ouvir falar desse papo, sim. [...] 43

As críticas feitas por Torquato Neto, durante a entrevista, foram rebatidas por

Antônio Calmon, publicada com o provocativo título “Pau no burro”, revela o clima

polêmico e os ânimos exaltados:

Passei cinco meses na Bahia e quando voltei encontrei muita coisa mudada no Rio de Janeiro. A vida é isso mesmo, mudança constante. E na mudança as máscaras caem, os santos viram picaretas, os mendigos iluminados resolvem faturar. Chega de mistificação, esse ripismo (sic) de butique não engana mais ninguém. Tá na hora de dar nome aos bois, e aos burros também. Não dá mais pé aturar nigrinhagem e baixo nível. 44

Em resposta às críticas, Antônio Calmon, ainda, avaliava e depreciava a coluna de

Torquato Neto:

[...] E tá na hora de denunciar os picaretas. O Sr. Geléia Geral, por exemplo, medíocre e recalcado, me convocou para uma entrevista para depois deturpá-la, omitindo conceitos que talvez ele não tivesse coragem de publicar. E quando gente recalcada obtém uma coluna de jornal descobre a melhor maneira de descontar os filmes, livros, peças etc., que não teve capacidade de fazer. 45

Sobre os projetos para o cinema brasileiro e a polêmica entre o Cinema Novo e o

Marginal, Calmon, também se posicionou:43 Idem, ibidem, p. 258. 44 CALMON, Antônio. Jornal Nacional - domingo, 30 de janeiro de 1972 – Domingo Ilustrado apud PEREIRA, Carlos Alberto M. e HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Patrulhas ideológicas: arte e engajamento em debate. São Paulo: Brasiliense, 1980, p. 146.45 Idem, ibidem, p. 147.

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[...] Não me venha falar de Júlio Bressane e Rogério Sganzerla. Os dois devem muito ao cinema novo. Júlio estreou com o filme mais cinemanovista que já vi, se ele esqueceu o nome eu lembro: Cara a Cara. O Anjo nasceu é legal, o resto é lixo. E tem mais, amizade: nós do cinema brasileiro que ficamos e compramos a barra tamos aqui no meio da lama, não tamos em Londres curtindo uma de subdesenvolvido deslumbrado. [...] E não me venha de Dziga Vertov e Mojica Marins. Isso a gente curtiu nos anos 60, é vestibular de cinema. Quanto a seus filmes subterrâneos que você cita tanto, já vi todos. Você não é o primeiro sub-Sganzerla que anda pintando por aí a fim de se promover. O resto já se mandou pra Londres e adjacências, o que é que você está esperando? Sganzerla tem talento e viu filmes paca. E é exatamente isso que eu não suporto nos filmes dele, não suporto colagens de cinéfilo. King Vidor, Welles, esses caras já deram o recado deles e pronto. Eu tô a fim do novo, gente boa, o cinema e a poesia que vieram antes não me interessam. E quanto à jogada de Rogério, não entre nela não que sempre foi muito pessoal. Rogério Sganzerla é seu teórico? Há, há. [...] Não confunda Capitão Bandeira com Os Deuses e os Mortos e principalmente com Barão Otelo. Não confunda Calmon com Simonal nem com Vera Cruz. Não dê essa bandeira de burrice amizade, depois você vai se arrepender. Pode confundir Gustavo Dahl com Antônio Calmon sim, é elogio. E fique no seu açougue, talvez você um dia chegue a Mondrian. Esses concretistas são uns gozadores.46

No trecho descrito acima, percebe-se que o conflito entre os representantes do

cinema nacional acentuava-se e o discurso ficava cada vez mais agressivo. O debate

continuou a ser explorado na coluna de Torquato Neto, que não apenas utilizava-a para

responder às críticas, mas, também, cedendo espaço para os demais defensores do cinema

marginal posicionarem-se, como Ivan Cardoso, que respondeu diretamente às críticas de

Calmon, no mesmo tom:

46 Idem, ibidem.

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[...] Capitão Bandeira, Os deuses e os mortos, Barões Otelos, Calmons, Simonais, Gustavos, Vera Cruz, índios, carneiros, bodes, ah ah ah ah ah ah ah ah ah, estou acendendo as velas para ver o desfile de fracassos. Eis umas verdades: nenhum desses filmes dará dinheiro. Nenhum desses filmes deu dinheiro. Nenhum desses filmes presta. Todos esses filmes dão sono. Nenhum desses diretores fará bons filmes. Rogério, amizade, está muito mais vivo que esses fantasmas que circulam por Ipanema. Espere, ainda para esse mês: Sentença de Deus. Não tenho medo de ser forte culturalmente. (Caetano Veloso). 47

Torquato manteve o debate acirrado em sua coluna até o encerramento, em março

de 1972. Com discurso menos agressivo e mais irônico, provocava explicitamente:

[...] Alô, Antônio Calmon, bom dia: já está mais calminho? Então vá fazer filmes e deixe de frescuras. Ora. Ou será que também os filmes já foram curtidos nos anos sessenta? Hum? [...] E até logo, Antônio Calmon. Vá fazer filmes em cinemascope, já que é assim que você pode. Mas essa história de fazer cinema PRU futuro ... Me diga: é um gênio incompreendido ou também já curtiu o presente nos anos sessenta? 48

Porém, mesmo com o encerramento da coluna de Torquato Neto, o debate, a

polêmica e a troca de acusações e ofensas prevaleceram, durante a década de 1970. Em

agosto de 1978, o cineasta Cacá Diegues, argumentava que tal disputa não era produtiva e

não teria vencedores. Rebatendo as críticas sobre a “comercialização” do cinema, em

busca de maior público, argumentou: “Assim como não há democracia sem povo, não

pode existir cinema democrático sem público” 49. Acusando os representantes do cinema

marginal de autoritários e preconceituosos, defendeu a liberdade de criação como única

47 CARDOSO, Ivan. Jornal Última Hora, 11 jan 1972 apud PIRES, Paulo Roberto (org.) Torquato Neto Torquatália – Geléia Geral. Rio de Janeiro: Rocco, 2004, p. 345.48 TORQUATO NETO. Jornal Última Hora, 26 jan 1972 apud PIRES, Paulo Roberto (org.) Torquato Neto Torquatália – Geléia Geral. Rio de Janeiro: Rocco, 2004, p. 361.49 DIEGUES, Carlos. Alguma coisa acontece em meu coração, Cinema brasileiro: ideias e imagens. 2ª ed. Porto Alegre: UFRGS / MEC/ SESu / PROED, 1999. (Série Síntese Universitária; 6), p. 28.

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possibilidade para o desenvolvimento do cinema nacional. Criticando, também, a situação

política do país, que impunham limites à produção, mas repudiando a censura, que de

acordo com sua análise, era imposta pelos representantes do “udigrudi”, considerados por

ele, intransigentes. Defendendo a liberdade, tanto política como de criação, a pluralidade

de projetos e sua coexistência, afirmou:

[...] Quero, para o Brasil, um cinema livre de preconceitos. Que não precise ser um fenômeno de bilheteria, mas que tenha existência social. Ou seja, que encontre seu público, seja ele qual for, e sirva para fazer alguém feliz, posto que o bode é a manifestação mais vulgar do conformismo conservador que pretende nos fazer amar a morte. Quero, para o Brasil, um cinema que absorva de Glauber Rocha a Arnaldo Jabor, de Bruno Barreto a Júlio Bressane, todas essas manifestações que servem ao Outro a que foram apaixonadamente dirigidas. Quero, para o Brasil, um cinema em que nada seja proibido, já que a liberdade é o único instrumento viável para a construção da felicidade, no novo e grande barbarismo brasileiro que o professor Darcy Ribeiro profetizou genialmente. Quero, para o Brasil, um cinema em que tudo, mas TUDO mesmo, possa pintar. [...] 50

Enfim, o debate sobre os rumos do cinema nacional, travado desde o final da

década de 1950, marcando as décadas posteriores e seu acirramento com a polêmica entre

o Cinema Novo e o “udigrudi”, revela a intensa produção e momento criativo que a

produção nacional conheceu naquele período. As diversas propostas, mesmo que

contrárias e em disputa, afirmam que a década de 70 não pode ser entendida como a fase

do “vazio cultural”, pois mesmo que o discurso explicitamente político tenha sido

esvaziado pelos limites impostos pelo autoritarismo a reflexão e a crítica continuaram a

pontuar parte da produção cinematográfica, com linguagem estética comercial ou

transgressora, o cinema nacional brasileiro se desenvolvia, reiterando a afirmação de que

“Criar é resistir”.

50 DIEGUES, Carlos. Alguma coisa acontece em meu coração Cinema brasileiro: ideias e imagens. 2ª ed. Porto Alegre: UFRGS / MEC/ SESu / PROED, 1999. (Série Síntese Universitária; 6), p. 28-29.

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PERCORRENDO ESTANTES: CONSIDERAÇÕES ACERCA

DA RELEVÊNCIA DOS ACERVOS DOS GABINETES DE

LEITURA DE IPU E CAMOCIM PARA A PESQUISA

HISTÓRICA51

Jorge Luiz Ferreira Lima52

Antonio Gilberto Ramos Nogueira53

Resumo:

Este artigo apresenta algumas discussões acerca da situação atual dos

acervos dos gabinetes de leitura fundados em Ipu e Camocim durante a

segunda década do século XX. Busca ainda apontar novas possibilidades de

pesquisa tomando-os como fonte, esforço este que se conjuga com o segundo

objetivo deste trabalho, o qual consiste em discutir a relevância dos acervos

enquanto fontes históricas.

Palavras-chave: gabinetes de leitura, arquivo, memória, livro.

Summary:

This article presents some discussions about the current status of collections

of reading offices based in Ipu and Camocim during the second decade of the

twentieth century. Search also new possibilities of research taking them as a

source, that this effort is coupled with the second objective of this work, which

is to point to the importance of collections as historical sources.

51Este trabalho é resultado da adaptação de parte do terceiro capítulo da dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Ceará em junho de 2011, sob a orientação do prof. Dr. Antonio Gilberto Ramos Nogueira.52Mestre em História Social pela Universidade Federal do Ceará. Professor da rede estadual de ensino. Email: [email protected] Doutor do Departamento de História da Universidade Federal do Ceará.

Artigo recebido 10/04/12. Aprovado em 14/05/12.

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Keywords: Reading offices, file, memory, book.

Os gabinetes de leitura de Ipu e Camocim.

O Gabinete de Leitura Ipuense foi fundado em 1886. Constituia-se de

uma associação voltada para a promoção de ações recreativas, incluindo a

leitura, motivo pelo qual os sócios fundadores empreenderam certo esforço no

sentido de organizar uma biblioteca. A duração desta instituição, no entanto,

foi curta. Logo os sócios apresentaram a sugestão de uma mudança de

atividade para associação, abandonando as atividades de cunho literário e

concentrando-se na promoção de bailes dançantes54.

A sugestão foi aceita pela maioria dos sócios e a biblioteca caiu em

desuso. Os livros, por sua vez, foram acomodados em um salão cedido pelo

vigário Padre Máximo Feitosa de Castro e ali permaneceram, ao que tudo

indica, até a retomada do projeto do gabinete de leitura em 191955. Daí por

diante, o Gabinete de Leitura Ipuense se manteve em atividade por tempo

indeterminado, até o encerramento de suas atividades e a transferência de

parte do acervo para a Biblioteca Francelina Martins, acomodada esta no

prédio que atualmente serve de sede à Escola de Ensino Médio Coronel Auton

Aragão.

O Gabinete de Leitura Camocinense foi fundado em 1913 e, da mesma

maneira que o seu congênere em Ipu, também teve duração indeterminada56.

Após a sua desativação, os livros foram transferidos para o patrimônio da

Associação Comercial de Camocim, com quem o Gabinete havia

compartilhado o mesmo prédio.

54SOUSA, Eusébio de. Um pouco de história: chronica do Ipu. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza, t. XXIX, p. 223-225.55ARAUJO, Antonio Marrocos. Gabinete de Leitura Ipuense. Revista dos Muncipios, Fortaleza, Ano I, n. 1, fev. 1929, p. 41-42.56Gabinete de Leitura Camociense. Nortista , Sobral, 13 jul 1913, p.1. Disponível para consulta na Biblioteca Governador Menezes Pimentel (Fortaleza/CE), Setor de Periódicos, Consulta de Microfilmes, rolo M114.

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A situação atual dos acervos dos gabinetes de leitura de Ipu e

Camocim

O trabalho de pesquisa histórica junto aos acervos dos gabinetes de

leitura de Ipu e Camocim suscitou uma questão cuja importância foi

crescendo à medida em que a investigação avançou: qual o estatuto que

melhor se aplicaria a estes corpos documentais? Poderiam ser qualificados

como “bibliotecas públicas”? Ou seria melhor tratá-los como “arquivos”?

A resposta a esta questão se mostrava difícil de encontrar quando

tomávamos em consideração o estado e as condições de arranjo e

preservação em que os referidos acervos foram encontrados.

No caso do Gabinete de Leitura Ipuense, seu patrimônio foi doado à

Biblioteca Francelina Martins Araújo, a qual se acha instalada no prédio onde

atualmente funciona a Escola Estadual de Ensino Médio Coronel Auton

Aragão57. Na estante onde estão acondicionados os livros do Gabinete

encontra-se um catálogo com os títulos do acervo. O exame revelou ser ele

fruto do trabalho de um bibliotecário amador, o qual se limitou a colher uma

bibliografia básica, sem interferir na arrumação ou disposição dos livros na

estante. Juntou ainda a estes os didáticos adquiridos pela escola.

O Gabinete de Leitura Camocinense teve seu acervo doado à

Associação Comercial de Camocim. Ambos dividiam o mesmo prédio, um

sobrado à Rua Dr. João Thomé, no centro da cidade. O prédio e a Associação

ainda existem, mas o Gabinete foi encerrado em algum momento do século

passado. As informações obtidas nas fontes não permitem precisar a data em

que ele pôs fim às suas atividades e fez a transmissão de seu patrimônio à

Associação Comercial.

O prédio serve atualmente às várias atividades desenvolvidas pela CDL

– Câmara de Dirigentes Lojistas – de Camocim e para a seção do SEBRAE –

Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas – emprestando seu

57O sistema de ensino público do estado do Ceará está organizado da seguinte forma: a Secretaria Estadual de Educação – SEDUC – comanda vinte coordenadorias regionais para o desenvolvimento da educação – CREDEs – as quais comandam, por sua vez, as escolas estabelecidas nas cidades de sua área de abrangência. A cidade de Ipu, juntamente com todas as cidades da Serra da Ibiapaba, está sob a jurisdição da 5ª CREDE, com sede em Tianguá. A Escola de Ensino Fundamental e Médio Auton Aragão, por sua vez, localiza-se em Ipu, à Praça São Sebastião, 1029 – Centro.

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espaço para a realização de congressos, cursos, conferências e reunião de

empresários locais.

Encontramos o acervo depositado em uma pequena estante/armário

com os livros desprovidos das capas e alguns com a encadernação

comprometida. A ausência de capas foi precariamente suprida por cobertura

em papel madeira, na qual os títulos foram escritos com pincel atômico,

resultado da intervenção de algum funcionário preocupado com a

identificação dos livros e sua conservação. O resultado comprometeu seu

aspecto físico, deixando-os monotonamente iguais, retirando todo o prazer

visual que experimentamos ao contemplar as belas lombadas antigas

enfileiradas nas prateleiras58.

Tais situações contribuíram para certificar-nos da necessidade de

estabelecer um tratamento a ser dado aos acervos. O primeiro passo foi

definir-lhes um estatuto, tomando em consideração a situação atual.

Percebemos não se tratar de uma simples bibliotecas públicas. Talvez tenham

se aproximado desta condição no passado, quando existiam efetivamente

enquanto instituição e abriam suas portas para o público. Mesmo assim,

traziam suas peculiaridades. Embora parecessem públicas no sentido de

franquear o acesso à comunidade, não o faziam gratuitamente. E nunca foram

públicas no sentido de serem mantidas pelo governo. Mesmo tendo recebido

subvenções, suas iniciativas estão ligadas a particulares. Além do mais, suas

atividades não se vinculam a nenhum tipo de política cultural.

O estatuto de bibliotecas públicas não se mostra suficiente para

comportar o caráter de iniciativa privada no sentido de prover um espaço

social da leitura. A constituição dos acervos a partir de doações angariadas

por sócios pioneiros revela um esforço de caráter notadamente privado, onde

o poder público figurava como colaborador. Os gabinetes de leitura de Ipu e

Camocim aparecem como fruto do esforço de pequeno grupo de letrados

interessados em prover suas cidades de um espaço destinado à leitura,

esperando que os frequentadores de tal espaço viessem a colher os frutos

construtivos de tal prática.58É provável que os livros encontrados na sede da Associação Comercial tenham tido suas capas danificadas durante o rigoroso inverno de 1924, quando goteiras no teto do prédio teriam danificado parte do acervo. De Camocim. Correio do Norte, Ipu, 15 fev. 1924, p. 1. Este fato será comentado mais adiante.

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Em seu estudo sobre as bibliotecas públicas brasileiras, Schapochnik

apresenta uma interessante definição dos gabinetes de leitura no trecho a

seguir:

“Uma segunda modalidade de biblioteca é aquela constituída pelos gabinetes de leitura ou bibliotecas associativas. Elas eram sociedades de caráter privado, implicando no pagamento de jóia ou na aquisição de ações.”59.

Os gabinetes de leitura surgiam a partir da composição de associações

com fins vários além da constituição de um acervo. A biblioteca significava,

para além de um dos principais cômodos de suas sedes, um item entre os

objetivos destas associações. Promover bailes, reuniões literárias, seções

ordinárias entre os sócios para discutir temas políticos, históricos e cívicos

compunha a lista de finalidades previstas pelos fundadores dos gabinetes,

confirmando as palavras de Schapochnik quando diz que os gabinetes

“também se converteram em espaços de convivialidade e de reiteração dos

vínculos identitários”60.

Tratando com pequenas cidades da região norte do Ceará, logo

percebemos que os gabinetes de leitura funcionavam para muito além de sua

função de promotor da leitura. Atividades diversas como bailes em datas

comemorativas, reuniões políticas e as aulas dos cursos noturnos tomavam a

atenção dos sócios e chamavam mais a atenção do público do que a leitura

em si, demonstrando que eles se constituem diante da sociedade como

instituições com uma presença e atuação muito mais incisiva em termos

políticos e culturais do que as simples bibliotecas públicas.

Os acervos que encontramos guardam vestígios, pois, de uma pequena

parcela do que foram e representaram, de fato, os gabinetes de leitura no

cenário político e social das cidades.

59SCHAPOCHNIK, Nelson. A leitura no espaço e o espaço da leitura. In: ABREU, Marcia e SCHAPOCHNIK, Nelson (orgs). Cultura letrada no Brasil: objetos e práticas. Campinas/SP: Mercado de Letras/Associação de Leitura do Brasil (ALB)/FAPESP, 2005, p. 236. 60Id. Ibidem.

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Isto se explica a partir do exame da trajetória e da abrangência da

atuação de seus fundadores e sócios. Trata-se de homens envolvidos na

política, detentores de certo prestígio no âmbito econômico e cultural. A partir

dos sujeitos, percebe-se o grau de complexidade do objeto. Os gabinetes

representam muito mais do que um simples esforço no sentido de consolidar

práticas de leitura na cidade, mas um espaço onde se podia mergulhar no

fascinante mundo do livro. Desta forma, a organização do acervo em si, sua

disposição e os títulos e autores apresentados dizem muito a respeito da

proposta daquelas instituições.

Olhando a variada tipologia dos livros encontrados nos acervos dos

gabinetes de leitura pesquisados, um grupo chama a atenção: os romances.

Sua presença denuncia muito do gosto literário dos organizadores dos

acervos, mas também sinaliza para aspectos mais sutis em torno de seus

propósitos.

Referindo-se aos acervos dos gabinetes de leitura da Província de São

Paulo durante o período imperial, Ana Luiza Martins os qualificou como “casa

de livros proibidos”61. Preocupada com a censura, a autora afirma ter

encontrado nos catálogos dos gabinetes paulistanos títulos que evidenciam a

intenção de seus fundadores de criar espaços destinados a uma leitura que

viesse se contrapor àquela das bibliotecas públicas tradicionais do Império,

marcadas pelo “perfil religioso”, com acervos compostos por “livros religiosos

e de ciências naturais”62.

Seguindo os sujeitos fundadores dos gabinetes paulistanos, Ana Luiza

Martins identifica-os a estudantes da Faculdade de Direito e conclui que os

gabinetes constituem uma forma de contraposição por parte destes ao tipo de

leitura dogmatista e clericalista proposta pelo acervo caduco da biblioteca da

Faculdade. Os gabinetes, ao incluírem romances de autores franceses e

portugueses, uns em língua estrangeira, outros traduzidos, apresentavam a

possibilidade de novas leituras, consideradas inovadoras, inauguradoras de

61MARTINS, Ana Luiza. Gabinetes de leitura do Império: casas esquecidas da censura? In: ABREU, Márcia. Leitura, história e história da leitura. Campinas/SP: Mercado de Letras, 1999, p. 404.62Id. Ibidem.

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valores liberais, contrários ao conservadorismo das bibliotecas públicas do

Império63.

Os gabinetes de leitura aqui estudados, no entanto, seguem uma outra

direção. Se eles se contrapõem a algum outro tipo de leitura, é difícil saber.

Nos dois casos em questão, notamos ter sido eles as primeiras bibliotecas

abertas à consulta pública em suas respectivas cidades. Após eles é que

surgiram outras e nos é impossível aqui precisar o tipo de relação

estabelecida entre os gabinetes e estas bibliotecas posteriores.

Sobressai o fato de que, para além de nossas considerações, os acervos

constituem massas documentais cuja organização obedeceu a

intencionalidades da parte dos responsáveis pela sua montagem. A pesquisa

ora apresentada, a partir de seus resultados em termos de produção

acadêmica, acabou representando um esforço de enfrentamento do

esquecimento a que se encontravam relegados.

Um dos fatos que mais nos despertou a atenção foi o de que os

gabinetes de leitura estão ausentes da memória das cidades. Seus acervos

permaneceram no esquecimento, foram fracionados, dispersos entre possíveis

herdeiros materiais dos seus fundadores, ou mesmo foram condenados ao

desaparecimento. A destruição de acervos, seja por meio de sua dispersão,

rapinagem ou queima, infelizmente não constitui fato raro nas cidades64.

De acordo com Ulpiano José Bezerra de Menezes, “sem o esquecimento,

a memória humana é impossível”65. Compreender a razão pela qual os

gabinetes de leitura não figuram entre os lugares de memória das cidades da

região norte do Ceará requer um olhar atento ao presente destas cidades,

onde as mudanças políticas e econômicas convivem com incômodas

permanências de práticas e configurações sociais e culturais.

Os acervos dos gabinetes de leitura de Ipu e Camocim permanecem

quase totalmente ignorados pelas populações das duas cidades, não sendo

63Id. Ibidem.64Na cidade de Ipu, tivemos notícia da queima de parte do acervo deixado por Abdoral Timbó, antigo bibliotecário do Gabinete de Leitura Ipuense, por parte de seus herdeiros. Outra parte teria sido repartida entre amigos do falecido e da família. Tal fato nos foi narrado por José Matias Costa, contador, 58 anos. 65MENEZES, Ulpiano José Bezerra. A história, cativa da memória? Rev. Inst. Est. Bras. São Paulo, nº 34, p. 16, 1992.

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alvo de políticas de preservação nem incluídos entre os bens aos quais se

atribui estatuto de patrimônio histórico. Neste âmbito, predominam as

edificações.

O tratamento dado aos acervos pela memória local mostra-se marcado

pelo silêncio e o esquecimento. Entre episódios, sujeitos e instituições

incluídos no panteão histórico das cidades em questão, os gabinetes de

leitura não aparecem. Os memorialistas costumam não mencioná-los ou,

quando o fazem, os classificam como bibliotecas públicas, não conseguindo

enxergar sua complexidade.

Parece-nos, à primeira vista, que os gabinetes de leitura, dentro do

imbricado complexo formador da memória local, foram escolhidos para

descarte, permitindo à memória sua existência a partir da reunião de uma

sequência de fatos e perfis de pessoas consideradas fundamentais para as

cidades.

Neste sentido, esbarramos no encontro sempre inevitável entre história

e memória. Na perspectiva de Le Goff, “a história deve esclarecer a memória

e ajudá-la a retificar seus erros”66. A memória, a cuja construção o

esquecimento é imprescindível, é construída e reconstruída constantemente

no presente. O trabalho da memória dirige-se ao presente, não ao passado.

Desta forma, percebe-se a ausência dos gabinetes de leitura na memória local

a partir de seu quase completo esquecimento no presente.

As fontes contemporâneas aos gabinetes já sinalizavam para sua parca

inserção no contexto sociocultural das cidades. A baixa frequência e certo

abandono para com tais instituições são mencionados de forma lamentosa,

buscando recuperar para estes espaços a dimensão de portadores de uma

proposta de leitura formativa, capaz de elevar o caráter de seus

frequentadores.

O esquecimento, de certa maneira, funciona como um fator de proteção

aos acervos contra possíveis rapinadores. Nas pequenas cidades percorridas

por esta pesquisa, a relação de alguns sujeitos qualificados como

memorialistas com artefatos antigos mostra-se diversa daquela que o

66LE GOFF, Jacques. História e Memória. 5 ed. Campinas/SP: Editora da UNICAMP, 2003, p. 29.

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pesquisador estabelece com suas fontes. O desejo de posse em relação a

objetos antigos leva a expropriações de acervos e à retenção de documentos.

Não raro percebe-se, ao consultar acervos particulares, uma postura de

apropriação de documentos públicos, em detrimento do interesse de

profissionais de pesquisa. A ausência de arquivos públicos, além de contribuir

para a perda irremediável, contribui ainda para a permanência de

documentos de grande relevância historiográfica nas mãos de pessoas

propensas a desenvolver para com estes uma relação de posse motivada pelo

vínculo afetivo com seus produtores. Tal situação as leva a se colocar no lugar

de protetoras daquela massa documental, o que equivale a proteger a

memória de seu antepassado.

Um dos fatores que favoreceu esta pesquisa foi o fato de os acervos

dos gabinetes de leitura estarem sob a guarda de instituições, ao invés de

pessoas físicas, o que poderia dificultar grandemente o acesso aos livros.

Os acervos como fontes documentais

Os gabinetes de leitura de Ipu e Camocim legaram pouquíssimos

documentos relativos à sua trajetória institucional. Para além de notas

publicadas nos jornais do período, restou apenas parte dos acervos. Nesta

situação, a pesquisa não teve outra alternativa a não ser constituí-los como

principal corpo documental.

Em meio às dificuldades que foram surgindo, uma ocupou lugar de

destaque entre nossas preocupações: que destino teriam tomado os livros

atualmente ausentes nos acervos? À primeira vista, é fácil deduzir. Foram

extraviados, tomados de empréstimo e não devolvidos. Os indícios recolhidos

junto às fontes levam a considerar esta possibilidade como a principal forma

de desvio dos livros dos gabinetes durante o intervalo de tempo em que se

mantiveram em atividade.

Outras maneiras de se perder os livros existiam, e não passaram

despercebidas à nossa investigação. O Gabinete de Leitura Camocinense teve

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parte de seus livros danificados durante o inverno de 1924. O jornal Correio

do Norte, publicado em Ipu, trazia notas enviadas de Camocim por Júlio Cícero

Monteiro, as quais davam conta da intensidade e volume das chuvas que

banharam a cidade durante aquele ano. O teto do prédio que servia de sede

ao Gabinete de Leitura e à Associação Comercial apresentava problemas de

goteiras no teto, o que teria provocado danos aos livros67.

Por compartilhar a sede com a Associação Comercial, não houve

translado dos livros por ocasião da passagem de sua posse para esta última.

Desta forma, o extravio de parte do acervo deu-se pelo acesso direto, ou seja,

foram retirados das estantes por motivos os mais diversos. Também nos é

difícil precisar o momento em que tal extravio teria ocorrido, sendo mais

coerente aceitar que tenha sido fruto de um processo lento, simultâneo à

própria decadência do Gabinete. Desta forma, pressupomos que ao longo da

segunda metade do século XX, os livros daquele acervo foram sendo retirados

e tomando destinos variados.

O desafio que este acervo propõe ao pesquisador consiste,

principalmente, em partir do presente em busca de um mapeamento dos

caminhos percorridos no passado, compreendendo o processo de sua

constituição enquanto corpo documental portador de grande importância para

o historiador.

Para além da condição de patrimônio local, de parte da memória, o

acervo em questão constitui uma importante fonte de pesquisa, necessitando,

para tanto, de receber tratamento adequado da parte de quem vier a acessá-

lo. A ausência de trato arquivístico não significa ser impossível extrair alguma

forma de lógica organizativa em seu atual estado de arrumação.

O primeiro contato revelou um amontoado de livros antigos,

organizados num pequeno armário de madeira composto de três prateleiras

fechadas de portas que deixavam-nos à vista por meio de vidraças. As capas,

como já foi mencionado, foram recobertas por papel madeira e os títulos

transcritos com pincel. Tal iniciativa revela o tipo de esforço feito no sentido

de conservar os livros.

67De Camocim. Correio do Norte, Ipu, 15 fev. 1924, p. 1

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De fato, o que se percebe é que o esforço de pesquisa desenvolvido em

torno dos gabinetes de leitura teve como consequência a descoberta destes

acervos, trazendo-os à luz e dando-os a ver. Mais do que lamentar a sorte que

tiveram, compreendemos que a atitude do historiador diante de uma fonte

desta natureza deve ser empreender uma reflexão acerca das perspectivas de

exploração do material e das problemáticas concernentes ao seu atual

estado.

Neste sentido, e partindo da realidade do acervo, adotamos o

procedimento de mapear os caminhos dos livros a partir da recolha dos

indícios neles contidos. Tal esforço teve como fim a compreensão do processo

de constituição dos acervos, entendendo-os como uma reunião de volumes

provenientes das mais diversas origens, situação diretamente ligada à

realidade do mercado editorial e livreiro do Brasil da virado do século XIX para

o XX.

O exame dos livros também revelou a proveniência de praças

comerciais e portuárias brasileiras tanto da região norte – Amazonas,

Maranhão e Pará – como da região sudeste – São Paulo. A reunião de livros

chegados à cidade de Camocim a bordo dos navios, nas bagagens dos

viajantes, dos estivadores em regresso após temporadas de trabalho em

outros portos mais movimentados, de caixeiros viajantes, representantes

comerciais, estudantes, padres, profissionais liberais e funcionários públicos

acabou por colaborar para a constituição de um acervo para uma instituição

voltada para a promoção da leitura. Desta forma, compreendemos que a

própria intencionalidade presente na constituição dos acervos esteve

influenciada pelas possibilidades de acesso ao livro por parte dos sujeitos

envolvidos direta e indiretamente na sua montagem ao longo do período em

que o Gabinete de Leitura esteve em atividade.

Ao discutir a constituição do acervo do Gabinete de Leitura

Camocinense enquanto massa documental relevante para a pesquisa

histórica, não podemos negar a importância de se procurar identificar a

intencionalidade do responsável – ou dos responsáveis – pela sua

organização, como afirma Ariane Ducrot quando diz que “quanto aos livros, é

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fato que a composição de uma biblioteca dá indicações preciosas sobre a

personalidade daquele que a constituiu”68.

Uma possibilidade de abordagem dos acervos enquanto fontes

documentais consistiria em tomá-los como pista para inquirir a respeito do

perfil dos responsáveis pela sua organização. Tal possibilidade carrega alguns

riscos, sendo, porém, o principal deles o tomar o acervo em sua condição

atual como meio de se chegar à personalidade de seus organizadores,

negligenciando o processo de rapinagem que o atingiu, esquecendo que os

livros restantes representam apenas parte – menos da metade, no caso do

Gabinete de Leitura Camocinense – do montante original.

Não se pode, por outro lado, contornar o fato de os acervos

encontrarem-se desfalcados. Nem é possível reconstituí-los em sua dimensão

original uma vez que os catálogos se perderam ou mesmo nunca foram

confeccionados. Resta ao pesquisador pensar uma possibilidade de

abordagem partindo da situação atual do acervo podendo, dentre outras

coisas, buscar entender-lhe a trajetória a partir de sua constituição e

organização, identificando os responsáveis e colaboradores neste esforço.

Um outro caminho pode ser traçado tomando em consideração a

aspecto literário, onde se tentaria chegar às preferências de leitura dos

frequentadores dos gabinetes a partir da análise da recorrência dos títulos. O

sucesso de tal esforço dependerá da disponibilidade de acesso aos acervos e

do cruzamento do resultado de suas catalogações, de onde poderia se ver

quais os títulos mais presentes, aqueles que se repetem em mais de um

gabinete, sinalizando para uma possível identificação dos livros mais lidos do

período ou, ao menos, daqueles cuja presença era considerada mais

importante.

Quando encontramos o acervo do Gabinete de Leitura Ipuense, à

primeira vista chamou-nos a atenção o fato de os livros encontrarem-se

acondicionados numa estante em separado. A Escola de Ensino Médio Coronel

Auton Aragão, responsável atualmente pela guarda do acervo, mantém os

68DUCROT, Ariane. A classificação dos arquivos pessoais e familiares. Seminário Internacional sobre Arquivos Pessoais. Rio de Janeiro, CPDOC/FGV/IEB-USP, 17 a 21 de novembro de 1997, p. 158.

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livros numa estante de madeira com portas corrediças envidraças, enquanto

os demais itens de sua biblioteca – livros e material didático em geral – está

acomodado e organizado em estantes de aço, procedimento padrão nas

escolas públicas do Ceará.

Apesar do inegável despreparo técnico por parte dos funcionários que,

até o momento, têm lidado com o acervo, é difícil não perceber a intenção de

dispensar um tratamento especial aos livros do acervo do Gabinete de

Leitura, embora com isso não estejamos querendo dizer que o mesmo é

objeto de cuidados ou zelo adequados do ponto de vista técnico. O citado

despreparo ajuda a explicar algumas negligências.

O que verificamos é a existência, da parte dos funcionários

responsáveis pela biblioteca escolar, de uma consciência do fato de se tratar

de material antigo, raro, portador de algum valor histórico. Ninguém parece

atentar para o real valor do acervo no que tange à memória local. Nas

condições em que se encontra, o risco de rapinagem ainda é grande.

Um detalhe curioso nos remete a um ponto ainda obscuro na trajetória

do Gabinete de Leitura Ipuense: uma placa de metal afixada na face externa

de uma das paredes da biblioteca onde encontra-se gravado em letras

brancas sobre fundo azul a inscrição “Biblioteca Francelina Martins”. Tal

artefato traz à tona o silêncio em torno da desativação do Gabinete de Leitura

e a transferência de seu acervo à instituição citada na placa.

Francelina Martins de Araújo era filha do deputado ipuense Abílio

Martins, tido pelas fontes como um dos principais responsáveis pela

organização do acervo do Gabinete. Teria sido às custas de sua influência e

amizade junto a políticos cearenses e de sua vasta circulação pela Capital e

outras zonas do interior que as primeiras doações teriam sido feitas69. Em

suas memórias publicadas em livro, Francelina relembra o convite que

recebeu para a inauguração de uma biblioteca que recebeu seu nome em Ipu,

mas silencia sobre a proveniência dos livros nela reunidos, não mencionando

o fato de a mesma ter recebido parte do acervo do Gabinete de Leitura

Ipuense70, o qual permite, em sua atual situação, várias abordagens. Uma

69ARAUJO, Antonio Marrocos. Id. Ibidem, p. 41-42. 70ARAUJO, Francelina Martins. Cascata de cristais. Fortaleza: FIEC/SENAI, 1994.

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delas pode dar-se a partir da constatação dos silêncios impostos à certos

momentos de sua trajetória, como verificamos em relação à sua transferência

do Gabinete para a Biblioteca Francelina Martins.

Outro ponto obscuro no que se refere à composição dos acervos diz

respeito à presença de jornais e revistas, colocados à disposição dos

frequentadores do Gabinete. Junto aos livros nenhum exemplar de jornal foi

encontrado. Porém, o exame de parte da coleção do jornal Correio do Norte

revelou a existência, em parte das edições, da anotação “Gabinete de

Leitura” no cabeçalho da primeira página, indicando tal indício aponta para a

possibilidade de estes exemplares um dia terem feito parte do acervo do

Gabinete.

Um inventário dos indícios revela ao pesquisador os vários caminhos a

serem trilhados no interior do acervo, seja tomando como fio condutor a

questão da dicotomia presença/ausência dos gabinetes, a partir da reflexão

acerca do atual estado, de sua guarda, conservação e destinação. As

dedicatórias gravadas em alguns volumes sugerem a investigação acerca do

perfil dos doadores, sempre levando em conta o fato de termos condições,

graças ao cruzamento de fontes, de identificar um dos principais responsáveis

pelo angariamento destas doações: o deputado Abílio Martins. Se ele foi um

dos organizadores, parte de seu círculo social pode ser encontrado nas

páginas dos volumes doados, o que constatamos a partir do exame das

dedicatórias assinadas por vários deputados do Partido Republicano

Conservador – PRC – do Ceará71.

Investigar o acervo tomando-o como uma massa documental

constituída a partir da atuação dos membros de uma instituição fundada na

segunda década do século XX, mencionada de forma breve na imprensa da

época para depois cair no esquecimento até ser dada a ver por meio de

pesquisa acadêmica recente é uma outra possibilidade que o acervo sugere72.

71Encontramos livros com dedicatórias assinadas por Armando Monteiro, Leonel Chaves e Manoel Sátiro.72A primeira pesquisa historiográfica dedicada a investigar o Gabinete de Leitura Ipuense foi realizada por Jorge Luiz Ferreira Lima e resultou na elaboração da monografia intitulada Livro, homens, uma cidade: uma discussão sobre o Gabinete de Leitura Ipuense, apresentada ao Curso de História da Universidade Estadual Vale do Acaraú em setembro de 2007.

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Conclusão

Os acervos dos gabinetes de leitura de Ipu e Camocim carregam

expressiva potencialidade a partir de sua caracterização como fontes de

pesquisa. As possibilidades de reflexão abertas a partir de seu exame

demonstram a sua relevância para a historiografia, podendo levar o

historiador a enveredar por qualquer dos caminhos representados pelas várias

vertentes atualmente em voga.

O exame atento de sua constituição e a investigação a respeito do

processo de organização, incluindo a identificação dos sujeitos envolvidos,

pode conduzir ao repensar aquilo que se costuma afirmar a respeito da

constituição social, cultural e econômica das cidades da região norte do

Ceará.

Bibliografia

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AGENCIAR O PASSADO PARA PRODUZIR O FUTURO: SOBRE AS RELAÇÕES ENTRE A ESCRITA REALISTA E FICCIONAL NO PROJETO FUNDACIONISTA DO IHGB

Thiago Alves Nunes Rodrigues Tavares73

Resumo

Temos por objetivo ao longo deste trabalho, o desenvolvimento de reflexões acerca das relações entre a produção historiográfica do Brasil oitocentista com a escrita ficcional, com vistas a potencializar a escrita da História no processo de constituição da nação brasileira. Para o desenvolvimento do presente trabalho, foram desenvolvidas análises em torno da formação do campo historiográfico brasileiro, que nos são dadas a ler nos primeiros volumes da Revista do Instituto Historico e Geographico Brazileiro (IHGB), e na monografia apresentada Como se deve escrever a História do Brazil, escrita por Carl Friedrich Phillip von Martius.

Palavras-chaves: Historiografia, Brasil, Império, IHGB, Nação

Abstract

We aim throughout this work, the development of reflections on the relations between the historiography of nineteenth-century Brazil with fictional writing, in order to optimize the writing of history in the process of formation of the Brazilian nation. For the development of this study, analyzes were developed around the formation of the Brazilian historiographical field, we are given to read in the early volumes of the Revista do Instituto Historico e Geographico Brazileiro (IHGB), and presented in the monograph Como se deve escrever a Historia do Brazil by Carl Friedrich Phillip von Martius.

Key-words: Historiography, Brazil, Empire, IHGB, Nation

73 Professor Doutor/ Coordenador do Curso de História – Faculdades INTA. Sobral-CE. E-mail:[email protected]

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Nunca esqueça, pois, o historiador do Brazil, que para prestar um verdadeiro serviço à sua pátria deverá escrever como autor Monarchico-Constitucional, como unitário no mais puro sentido da palavra. D’aqui resulta que a obra, a qual não podia exceder a um so forte volume, deverá ser escripta em um estylo popular, posto que nobre. Deverá satisfazer não menos ao coração que à

intelligencia. 74

Quando em 18 de agosto de 1838, na cidade do Rio de Janeiro, por iniciativa

da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional (SAIN), representada nesta oportunidade

pelo Marechal Raymundo José da Cunha Mattos Januário da Cunha Barboza, foi proposta

a criação do Instituto Historico e Geographico Brazileiro (IHGB), não se desejou,

somente, salvar da voragem dos tempos os feitos dos grandes homens. Fossem estes

nativos, brancos, negros ou sua síntese, o mestiço. Vislumbramos, ao longo de nossas

investigações, que tanto a criação do IHGB, assim como os trabalhos ali desenvolvidos,

inseriam-se num projeto maior: a soma de esforços para a criação de uma narrativa

Histórica capaz de somar-se ao projeto de construção da comunidade nacional, e

instituição do sentimento de pertença à referida comunidade; sentimento este, considerado

de fundamental relevância para viabilizar a existência de uma nação brasileira. O que

entendemos apresentar-se, segundo nos informa Manoel Salgado Guimarães, atentando

não somente para o Império do Brasil, mas, numa perspectiva mais ampla, como “tema

prioritário na agenda política nas sociedades do século XIX”75

74 VON MARTIUS, Carl Friedich Philipp. Como se deve escrever a história do Brasil. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Tomo VI, 1844, p.410-11.

Artigo recebido em 01/06/2012. Aprovado em 25/06/2012.

75 Cf. GUIMARÃES, Manoel Luis Salgado. Escrever a História, domesticar o passado. In. PESAVENTO, Sandra Jatahy; LOPES, Antonio Herculano; VELLOSO, Monica Pimenta (orgs). História e Linguagens: texto, imagem, oralidade e representações. Rio de Janeiro: 7Letras, 2006. p.51.I ndicamos ainda a leitura de Manoel Luis Salgado Guimarães, “Usos da História: refletindo sobre identidade e sentido”. In Revista História em Revista, Pelotas, V.6. p.21-36, 2000. Chamamos a atenção neste sentido, para o papel a ser desempenhado pela produção historiográfica oitocentista, interessante neste aspecto, são as ponderações de Arno Wehling, que estendeu às mentalidades a valorização da história, vista como “amalgama da sociedade, tanto quanto a língua, e como expressão da identidade nacional. Estabeleceu-se, então, um fenômeno de causação circular, em que intelectuais e massa, tão frequentemente distanciados em momentos anteriores, passaram a interagir tendo a comunhão histórica como elo” .Cf. WEHLING, Arno. Estado, História e Memória. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.p.29.

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Assim como que um manual de civilidade aos quais se refere Norbert Elias em

Processo Civilizador76, o livro de História, conforme aponta o excerto à monografia

Como se deve escrever a História do Brasil, nos apresenta algumas orientações no que diz

respeito a escrita de uma História do (e para) o Brasil. Ora, a monografia apresentada em

concurso através do qual, haveria de ser escolhida a forma mais acertada de se escrever a

História do Brasil, para além das preocupações com o salvar da voragem dos tempos, com

o pretérito, haveria de equacionar uma lacuna no projeto de instituição do sentimento de

pertença a uma comunidade, e desta forma, viabilizar a realização de uma nação brasileira

–para além de um conceito caro as discussões políticas e historiográficas do oitocentos.

Historiografia que deveria funcionar, portanto, junto ao projeto de construção nacional

que entendemos, conforme apontaram nossas pesquisas, tivesse a sua frente, o Instituto

Historico e Geographico Brazileiro (IHGB); o que é passível de ser perscrutado em

análises desenvolvidas no periódico trimestral da Casa da Memória Nacional77, a Revista

IHGB.

A análise do periódico publicado pelo IHGB, desde a sua fundação aos nossos

dias, tem se apresentado como fonte de inesgotável valor para as reflexões que temos

desenvolvido acerca do processos de formação do campo historiográfico no Brasil

oitocentista, bem como, dos trabalhos em prol da formação da nação brasileira. Nos é

possível nestas análises, o mapeamento de alguns elementos para os quais se apresentava

aberta a comunidade de imaginação78, para com uma narrativa Histórica. Dentre tais

apontamentos, é manifesto o desejo pela produção de um livro de História capaz de

corroborar ao projeto de construção nacional. Livro este, que haveria de apresentar

algumas características capazes de credenciá-lo para a empresa de somar-se aos esforços

de uma prática cara a historiografia do século XIX, apresentar-se como que uma Máquina

de Estado na construção da nação brasileira, o que se colocava, em se tratando do Império

do Brasil, numa tarefa hercúlea79, produção historiográfica em combate às Máquinas de

Guerra representadas pelo separatismo, pelo localismo, pelo outro; por tudo e todo que se

76 ELIAS, Norbert. O processo civilizador: formação do Estado e civilização. V.2. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1993

77 GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal. Debaixo da Proteção de Sua Majestade Imperial. Revista do IHGB, Rio de Janeiro, 156 (388), jul.-set. 1995.

78 BACZKO, Bronislaw. Les imaginaires sociaux: mémoires et espoirs collectifs. Paris: Payot, 1984.

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colocasse em oposição aos civilizados e civilizadores padrões emanados do mundo

europeu. Tal obra, deveria, portanto, ser materializada maquinicamente por aquele que se

propusesse a efetivar tal empreitada – a de escrita de uma História para o Brasil. Narrativa

que haveria de se apresentar, então, como discurso potencialmente capaz de formatar o

indivíduo, numa performance de influir em sua prática cotidiana através da inoculação de

valores, sensibilidades e sensações. Elementos que entendemos, capazes de inspirar o

indivíduo às práticas úteis ao engrandecimento do Estado e que se somassem desta forma,

à efetivação de um projeto de construção nacional. Narrativa sobre o passado que

satisfizesse ao coração e à mente, conforme orientou Martius em sua monografia intitulada

Como se deve escrever a História do Brasil, com vistas à cooptação e agenciamento do

indivíduo ao projeto civilizacional, que o era também de fabricação da nação, daí,

entendermos como profícuo o desenvolvimento de nossas ponderações apoiados nas de

Norbert Elias, apresentadas em O Processo Civilizador.

Supomos que a produção do conhecimento histórico, kultur, conforme pondera

Elias, não seria capaz por si só de produzir indivíduos kultiviert. Não seria capaz de

fabricar sujeitos estimulados ao desempenho de práticas tidas, conforme o pensamento do

Sociólogo, por kulturelle, e a partir das quais, seria exequível a construção da nação80.

79 Refletindo sobre a criação do IHGB e o projeto de construção nacional, Lucia Paschoal Guimarães, em entrevista ao Prof. Valdei Lopes Araújo, pondera que a empreitada do IHGB seria muito mais árdua que a de associações congêneres europeias, haja vista a necessidade de, no Brasil oitocentista, o campo historiográfico desenvolve-ser pari passu às necessidades da construção nacional, conforme aponta a entrevistada tendo por referência o desenvolvimento de um paralelo entre o Instituto Brasileiro e a Academia de Lisboa. Daí acreditar que o IHGB se diferencia da Academia de Lisboa; a qual tentava equacionar problemas de uma já constituída nação portuguesa, dentre os quais a perda da hegemonia imperial frente à França e à Inglaterra, ao passo que o IHGB estava inserido num processo de dar forma, somar-se à construção da nação brasileira. Ressalta-se ainda a imbricação desta produção historiográfica com a necessidade de dotar o Brasil, o Estado que se desejava Nação, de um passado comum, assim como das tarefas mais difíceis: um passado capaz de despertar na população, o sentimento de pertencimento à comunidade nacional. Cf. ARAÚJO, Valdei. Entrevista com Lucia Maria Paschoal Guimarães. Historia da Historiografia. Ouro Preto, n.03, set/2009, p.242-3. Disponível em < http://www.ichs.ufop.br/rhh/index.php/revista/article/viewFile/79/52> acessado em 07/08/2012.

80 Para o melhor entendimento da discussão proposta por Norbert Elias acerca do conceito civilização e seus derivados, seja no uso francês ou alemão, sugere-se a leitura ELIAS, Norbert. O processo civilizador: uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1995.

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Diante de tais desafios colocados à produção historiográfica em tempos de formação de

seu campo, bem como do que haveria de ser realizado, a nação81, impõe-se a invenção de

estratégias através das quais, um agenciamento maquínico do passado, fosse

potencialmente capaz de contribuir para a realização de um presente, um estar no mundo,

e um futuro –como nação e aos moldes tidos por civilizados. Como que uma profecia às

avessas pela qual o aleatório, o caótico da existência, o consumado no pretérito deve ser

domesticado na escrita da História com vistas ao controle do presente e do futuro,

conforme reflete Fernando Catroga em torno dos processos de produção historiográfica

imbricada aos processos fundacionistas, sejam europeus, sejam americanos

A mesmidade do eu tende a preencher os vazios da amnésia, como se o percurso autobiográfico fosse um continuum, cuja coerência existencial unifica os buracos negros da caminhada, isto é, como se, desde as suas primícias o individuo transportasse em si o cumprimento de uma vocação especifica. Daí, também o cariz totalizador e teleológico da recordação, pois a retrospectiva urde um enredo finalistico que domestica o aleatório, o casual, os efeitos perversos e descontínuos do real passado quando este foi presente. Em certa medida, ela é – como outras narrativas que exprimem a consciência histórica – uma previsão ao

contrário.82

Ainda que a cientifização da produção do conhecimento, a formação do campo

historiográfico no oitocentos orientasse para a assepsia, o desprovimento das paixões e

subjetividades do campo da produção do conhecimento do pretérito, que em meios às

indefinições se estabilizava ao longo do XIX, aqueles que se propuseram a pensar uma

narrativa histórica no rizoma saber-poder, com vistas à realização de seus desejos, não

poderiam agenciar de forma fria, desapaixonada, o pretérito. A preocupação com a escrita

da História colocava-se para além do passado, extrapolava o fugidio do presente e se

projetava no eterno do futuro em consonância aos anseios da comunidade de imaginação

81 O problema é que, assim como a nação estava sendo construída, a história enquanto disciplina científica estava ainda dando seus primeiros passos. Tal como para o projeto nacional, também não era clara a ideia da história, nem do historiador. O que ele devia mesmo fazer? E mais, como fazer? Algumas palestras proferidas no IHGB são, notadamente, tentativas de normatizar e criar regras para o ofício desse historiador da nação. Não exatamente o que deve ser – não havia tanta clareza assim – mas, sobretudo, o que ele não deve ou não pode fazer. Cf. CEZAR, Temístocles. Lição sobre a escrita da história: historiografia e nação no Brasil do século XIX. Diálogos: Revista do Departamento de História da Universidade Estadual de Maringá. V.8, n.1. 2004. p.12.82 Cf. CATROGA, Fernando. Memória, História e Historiografia. Coimbra: Editora Quarteto, 2001.

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agrupada no IHGB, projeções nas quais o Brasil haveria de se constituir como uma nação;

mas uma nação da qual, se sabia apenas o que ela nãohaveria de ser. O ser, nação, ainda

apresentando-se como que uma incógnita. Temos desta forma, que a invenção de

estratégias narrativas e a atribuição de sentido ao pretérito apresentaram-se como uma

demanda imperativa à realização dos fins dos ilustrados associados ao establishment.

Com vistas à efetivação dos objetivos que se delineavam ao longo dos

trabalhos sociaes engendrados no Instituto, a produção do conhecimento deveria seguir

linhas de fuga, um ordenamento discursivo (FOUCAULT, 2008)83 pelo qual o

conhecimento histórico havia de se submeter aos processos de des-re-territorialização

com vistas a sua potencialização e efetivação de sua teleologia. Consideramos, neste

aspecto, profícuas as palavras de Durval Muniz Albuquerque Júnior, ao se referir às

características e relações de gênero existente entre a narrativa realista e a ficcional:

Talvez a diferença entre a história e a literatura seja mesmo uma questão de gênero. Não apenas de gênero discursivo, pois pertencem a ordens diversas do discurso, seguem regras e normas diferenciadas; mas de gênero no sentido de que o discurso historiográfico pertenceria ao que na cultura ocidental moderna se define como sendo o masculino, enquanto a literatura estaria colocada ao lado do que se define como sendo o feminino. A história seria discurso que fala em nome da razão, da consciência, do poder, do domínio e da conquista. A literatura estaria mais identificada com as paixões, com a sensibilidade, com a dimensão poética e subjetiva da existência, com a prevalência do intuitivo, do epifânico. Só com a literatura ainda se pode chorar. A história masculinamente escavaria os mistérios do mundo exterior, iria para a rua ver o que se passa, a literatura ficaria em casa, perscrutando a vida íntima, o mundo interior, femininamente preocupando-se com a alma, um mundo informe que está

próximo do inumano.84

As palavras de Durval Muniz são boas para pensarmos os tênues limites entre

a historiografia e a literatura ao longo do século XIX, assim como a necessidade de

apropriação de elementos da narrativa ficcional pela produção historiográfica do

oitocentos, no sentido de potencializar a ação de uma Máquina de Estado para fazer a

nação, conforme temos proposto ao longo de nossas reflexões. Se pensarmos então a

História e a Literatura como gêneros discursivos com características que lhes atribuem sua

83 FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 18.ed. São Paulo: Edições Loyola, 2008.

84 ALBUQUERQUE JUNIOR. Durval Muniz. História: a arte de inventar o passado. Bauru: EDUSC, 2007.p.47.

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alteridade, diante das circunstâncias e objetivos que eram postos à produção

historiográfica brasileira relacionada à criação da comunidade nacional, fazia-se

impreterível ao discurso “masculino”, apropriar-se de elementos do “feminino” com vistas

à efetivação de seus fins, ao menos, teoricamente. Ainda que ambos, “masculino” e

“feminino”, estivessem, a partir da década de 1830, inseridos no processo de criação das

nações, cada qual elegia a sua maneira de fazê-lo. Enquanto a escrita literária preocupou-

se em emocionar, envolver o leitor, apresentando epopeias da construção nacional, tendo

por protagonistas os nativos, bem como a iconografia, conforme nossas pesquisas

indicam, a historiografia dividia esta epopeia em dois momentos, e tendo por ator

principal deste fazer o homem civilizado. Branco, portanto. Divisão esta entre um projeto

literário indianista e um historiográfico europeu e europeizante que denotam a indefinição

do que era e/ou havia de ser a nação brasileira. Para isso atenta José Murilo de Carvalho,

apontando para outra possibilidade de leitura da formação da nação brasileira

As imagens da nação brasileira variaram ao longo do tempo, de acordo com a visão da elite ou de seus setores dominantes. Desde 1822, data da independência, até 1845, ponto final da grande transformação iniciada em 1930, pelo menos três imagens da nação foram construídas pelas elites políticas e intelectuais. A primeira poderia ser caracterizada pela ausência do povo, a segunda, pela visão negativa do povo, a terceira pela visão paternalista do povo. Em nenhuma o povo fez parte da construção da imagem nacional. Eram nações

apenas imaginadas.85

Em estudos em torno da produção historiográfica e literária do oitocentos,

observa-se que os processos de des-re-territorialização não se apresentam como prática

imanentes à produção historiográfica. A própria literatura passa por tais processos. É o

que se pode observar na literatura romântica que hibridiza a fruição do espírito, o

devaneio literário às contingências mundanas, os projetos políticos ao projeto de

construção nacional, cooptando questões postas pelo presente –assim como a História,

toda Literatura seria filha de seu tempo?, onde são produzidas as suas sensibilidades e a

imaginação do autor. O mesmo acontece com a produção historiográfica em seus já

referidos processos de re-des-territorialização desenvolvido na referida relação rizomática.

85 CARVALHO, José Murilo de. Pontos e Bordados: escritos de História e Política. Belo Horizonte: UFMG, 2008.p.233.

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Ora, a racionalidade da produção de um conhecimento que se pretende

científico, como se via num movimento epistemológico a historiografia do século XIX,

vê-se impelida a lançar mão de elementos caros à literatura para a efetivação de seus

objetivos. Daí a necessidade de emocionar, cooptar o consumidor deste discurso ao

projeto ao qual temos nos referido desde o início de nossas reflexões. Se a Literatura o faz

através da apresentação do espalhamento europeu no Novo-mundo com a roupagem de

uma epopeia, a produção historiográfica utilizar-se-á, de um híbrido de tragédia e epopeia,

conforme podemos observar na obra maior de Francisco Adolfo de Varnhagen86.

Hibridização com o que se busca a potencialização da capacidade de afetar o leitor e

estimulá-lo a tomar parte de um determinado projeto. Jogo retórico de reconhecimento e

negação que Varnhagen sutilmente ao longo de sua História Geral, busca fazer com que

seu leitor se posicione diante do que narra. É através, então, desta relação entre os estilos

literários que supomos o estabelecimento de linhas de fuga pelas quais a História, o

discurso másculo, seguindo as reflexões de Durval Muniz, se desterritorializa de sua

pretensa frialdade, e deve se reterritorializar, através de um agenciamento maquínico, nos

afetos, nas estruturas narrativas da escrita ficcional, feminina, com vistas à efetivação dos

anseios dos integrantes do Instituto. Processos viabilizados pela indefinição de fronteiras

entre a historiografia e a literatura87 que ainda não estavam devidamente delimitadas,

conforme nos é dado ler no discurso proferido em virtude da 1ª Sessão Pública

Anniversária do Instituto por seu Primeiro Secretário Perpétuo pelo Cônego Januario da

Cunha Barboza:

Um anno apenas se tem passado da fundação do Instituto Histórico e Geographico Brazileiro e já temos, Senhores, que apresentar ao publico, em cumprimento dos nossos estatutos, alguns trabalhos que, posto não sejam

86 Cf. VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. Historia Geral do Brazil. VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. Historia Geral do Brazil isto é do seu descobrimento, colonisação, legislação, desenvolvimento e da declaração de independencia do imperio, escripta em presença de muitos documentos ineditos recolhidos nos archivos do Brazil, de Portugal, da Hespanha e da Hollanda, e dedicada a Sua majestade imperial o senhor Pedro II. Rio de Janeiro: E e H Laemmert. 1854; VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. Historia Geral do Brazil. isto é do seu descobrimento, colonisação, legislação, desenvolvimento e da declaração de independencia do imperio, escripta em presença de muitos documentos ineditos recolhidos nos archivos do Brazil, de Portugal, da Hespanha e da Hollanda, e dedicada a Sua majestade imperial o senhor Pedro II. Rio de Janeiro: E e H Laemmert, Tomo II, 1857.87O Dicionário Moraes e Silva, de 1813, assim define litterário: “adj. Que respeita ás lettras, sciencias, estudos, erudições. § Orbe litterario: os homens doutos, M. Lus. todo o edifício litterario; actos, certames, vida, fadigas litterarias”.

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completos, são, todavia, esperançosos desenvolvimentos do largo plano

litterario a que nos compromettemos.88

Diante de tal necessidade de re-des-territorialização da produção do

conhecimento que informa sobre o pretérito, entende-se como imprescindível a

reterritorialização da narrativa histórica nas sensibilidades e sensações que podem ser

viabilizadas pelos elementos ficcionais associados à escrita pela qual se deseja eternizar os

feitos dos homens em dada sinconia. Sendo, então, com a literatura, que a produção

historiográfica há de se relacionar para a maior eficácia do projeto de fabricação da nação

brasileira. Mas, como haveria a História de se relacionar com a escrita ficcional? Com que

elementos? O excerto ao discurso de Januário da Cunha Barboza aponta-nos indícios do

matiz da produção literária em que uma “historia bem organizada do Brazil” havia de se

relacionar para ter maior eficácia na efetivação de seus objetivos:

D’além mar partiram sem duvida os primeiros navegantes conquistadores, nos primitivos tempos foram os primeiros viajantes; mercadores audazes os primeiros exploradores; úteis cruzadas, aquelles com a espada, estes com o caduceu em punho, trouxeram melhoramento social: assim a civilização brotou

do commércio e da guerra.89

Apresenta-se, então, na visão de Barboza, a obra de trazer para estas partes do

mundo o “melhoramento social” e os “cômodos da civilização”, como realização de

mercadores audazes, excerto em que nos é dado a ler, uma nota do gênero épico e que

deveria se apresentar como norte aquele que se propusesse a levar a cabo a empresa da

escrita da história pátria, e entendemos que fosse de ser também em tom épico que havia

de ser narrado o fazer Brasil - para se fazer nação, e é passível de ser observado no

agenciamento maquínico do passado executado por Francisco Adolfo de Varnhagen em

sua História Geral do Brasil, notadamente, em edição publicada em 1854 e 1857.

88 Revista do Instituto Histórico e Geográphico do Brazil. Breve notícia sobre a criação do Instituto Histórico e Geographico Brazileiro. Tomo I – 1º Trimestre de Trimestre de 1839 – n.1 p.212.89 Revista do Instituto Histórico e Geográphico do Brazil. Breve noticia sobre a creção do Instituto Histórico e Geographico Brazileiro. Tomo I – 1º Trimestre de Trimestre de 1839 – n.1, p.210.

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Em se tratando do pretérito do Brasil, de sua construção como Estado, e sua inserção

numa tradição ocidental de civilização e progresso, tem-se o desdobramento da

empreitada lusa pelos mares tenebrosos; sua civilização também havia de se apresentar

como que em, desdobramento desta mesma epopeia. Feitos heroicos realizados por varões

preclaros e que, agenciados maquinalmente, haviam de iluminar e auxiliar na vagaroza

marcha da civilização do Brasil e de seus povos, conforme apontou Januário da Cunha

Barboza em fala proferida no establishment:

vagaroza em sua marcha, necessita de um guia esclarecido e seguro que acelere seus passos. O talento dos geógraphos e dos historiadorres é só quem pode offerecer-nos essa galeria de factos, que sendo bem ordenados por suas relações de tempo e de logar, levam-nos a conhecer na antiguidade a fonte dos grandes

acontecimentos, que muitas vezes se desenvolverão em remoto futuro.90

Ainda que a marcha da civilização se apresentasse aos olhos do Secretário Perpétuo

do Instituto, o cônego Cunha Barboza de forma vagaroza, ele supunha que fosse possível

a aceleração desta marcha, possibilidade diante da qual se valorizava a historiografia aos

moldes da História maestra vitae, fosse ela desenvolvida pelo trabalho patriótico em

honra da pátria realizado tanto pelo historiador como pelo geógrafo, ao apresentarem,

como fruto de suas investigações, quadros bem organizados dos objetos de cada um desses

conhecimentos. Daí considerarmos, embasados nas palavras dadas a ler na Revista do

Instituto, que elementos caros ao gênero épico se apresentassem como estruturação

discursiva potencialmente propícia à efetivação dos trabalhos daqueles que se propuseram

a engendrar produções que dessem a ver e fazer sentir uma História do Brasil. Neste

sentido, consideramos emblemáticas as palavras proferidas pelo revolucionário francês

Honoré Gabriel Riqueti, o conde de Mirabeau, tomadas de empréstimo por Bronislaw

Baczko, para quem o homem, na qualidade de ser sensível, é muito menos guiado pela

generosidade do que por objetos imponentes, imagens chamativas e fortes, grandes

espetáculos, emoções91; enfim, aquilo que potencialmente fosse capaz de tocar, ferir a sua

sensibilidade, o que nos leva a refletir ainda, na esteira do pensamento de Pierre Nora ao

90 Revista do Instituto Histórico e Geográphico do Brazil. Breve noticia sobre a creção do Instituto Histórico e Geographico Brazileiro. Tomo I – 1º Trimestre de Trimestre de 1839 – n.1 p.12.91 BACZKO, Bronislaw. Les imaginaires sociaux: mémoires et espoirs collectifs. Paris: Payot, 1984.

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ponderar em Lieux de Memóire, que Plus le origenes étaient grandes, plus elles nous

grandissaient. Car c'est nous que nous véneirons à traivers le passé92.

Analisando a formação do campo historiográfico no Brasil oitocentista, tomando de

empréstimo as lentes as reflexões de Michel Foucault acerca dos procedimentos de

interdição93, entendemos que as possibilidades de escolha — no que diz respeito ao mito

literário sobre o qual havia de ser agenciada uma História do Brasil — apresentem-se de

forma limitada. Ora, como narrar, frente às necessidades do presente, o pretérito como a

sátira ou uma comédia? Seriam tais estilos adequados ao estabelecimento de afinidades e

afetos entre indivíduos e regiões, que se colocavam diametralmente em oposição à

formação da comunidade imaginada94, e não a repulsa o escárnio entre tais elementos?

Acreditamos que não. Havia de ser respeitado aquele que se coloca, conforme informa

Foucault, como um procedimento de interdição discursiva: o ritual da circunstância. Ora,

não se tratava apenas de escrever a História, mas de realizar a nação, e em meio de tal

projeto, a produção historiográfic colocava-se como que apenas, um meio. Daí acredita-se

que dificilmente seria vista com bons olhos, ao menos pelos integrantes do establishment,

uma narrativa urdida sobre o solo linguístico da sátira ou da tragédia – ainda que

acreditemos que os elementos caros ao gênero trágico tenham, conforme aponta o

agenciamento da História Geral do Brasil, suma importância na obra de Francisco Adolfo

de Varnhagen.

Nestas relações estabelecidas entre a historiografia e a literatura, havia de ser

agenciado maquinicamente um livro de História capaz de viabilizar a existência do

sentimento de pertença à comunidade nacional. Narrativa potencialmente capaz de tocar a

sensibilidade do ledor, impelindo-o a práticas úteis e a desdobramentos do projeto

civilizacional e de construção da nação, que timidamente se delineava dentre os

integrantes do IHGB.

Portanto, compreende-se que, na anamnese, a história e a ficção se misturem, a verdade factual se miscigene com conotações estéticas e éticas, e que já Halbwachs encontrasse na narrativa memorial uma “lógica em acção” cujos

92 NORA, Pierre. Entre mémoire et Históire. In: NORA, Pierre (org.). Les lieux de mémoire. I. La République. Paris: Gallimard, 1984.p.XXXI.

93 FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 18.ed. São Paulo: Edições Loyola, 2008.

94ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

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pontos de partida e de chegada são escolhidos pelo próprio evocador (fale este em nome individual, ou em nome de um grupo – família, associação, partido,

igreja, nação, humanidade).95

Para além de narrar então o pretérito, tal agenciamento havia de ser narrado

maquinicamente, consoante às necessidades do presente. A escrita da História havia de

atuar, portanto, de forma direta na instituição daquilo que Fernando Catroga, pensando

com Jean Jacques Rousseau, chamou de Religião Civil:

De acordo com vários antropólogos e sociólogos (Frazer, Durkheim, Radcliffe-Brown, Mauss, Cazeneuve, Spiro, Parsons etc.), a religião tem igualmente de ser compreendida pelo papel religador que desempenha na reprodução social. E não será necessário aceitar-se todas as consequências da tese de Durkheim, segundo a qual a Divindade é a sociedade transfigurada e pensada simbolicamente, para se reconhecer que os seus efeitos se objectivam na produção e no reforço de sentimentos de comunhão e de identificação, de modo a que os indivíduos possam constituir-se como sociedade, ou, talvez melhor,

como comunidade96.

O estudo da Revista do IHGB aponta no sentido de que era a este tipo de

sentimento que se desejava instituir: o de ligação entre as partes constitutivas do Império.

No caso em específico do IHGB, através do consumo, disseminação e leitura de uma

História do Brasil, criar, fortalecer (onde já houvesse), amalgamar a nacionalidade

brasileira. Fazia-se imprescindível, com vistas à forja da nação, criar um sentimento de

pertença à comunidade nacional — assim como no religare a que objetivam as religiões.

Uma História nacional haveria de criar tais laços, bem como o sentimento de

comunhão e identificação, conforme nos informa Catroga. Ora, lançamos, mais uma vez, a

seguinte indagação para que possamos entender a primazia da obra de Varnhagen: caso

realmente Catroga tenha razão ao referir-se ao potencial fazer com que o indivíduo se

reconheceria numa narrativa, como fazer com que o cidadão da futura nação brasileira se

reconhecesse no outro, no elemento não europeu?

Ainda no sentido de pensar a nação como uma comunidade baseada em

solidariedades e sentimentos, como no que seria uma “Religião Civil”, temos as reflexões

95 CATROGA, Fernando. Memória, História e Historiografia. Coimbra: Editora Quarteto, 2001.p.21.96 CATROGA, Fernando. Nação, Mito e Rito: religião civil e comemoracionismo (EUA, França e Portugal). Fortaleza: Edições NUDOC/Museu do Ceará, 2005. p.09-10.

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propostas por Ernest Renan como apropriadas para pensarmos o projeto de construção

nacional decalcado pelos integrantes do Instituto. Em sua obra clássica sobre o estudo das

Nações intitulada Qu’est-ce Qu’une nation?, Renan atribui suma importância ao tocar a

sensibilidade para a realização de uma nação. Conforme nos informa, les intérêts

cependant, suffisent-ils à faire une nation? Je ne le crois pás. La communauté dês interêta

fait lês trités de commerce. Il y a dans nationalité um cote de sentiment; elle est ame et

corps à la fois”97

Com o que o autor pretende informar, a ação do Estado, fosse através da

realização de tratados, da elaboração de leis, fosse mesmo através de sua ação legítima(da)

frente às Máquinas de Guerra que se colocavam à união do império e sua constituição

como nação não seria o bastante. A comunidade seria tão somente uma comunidade

literalmente imaginada ou nada além de um elemento do discurso.

Une nation est une ame, un principe spiritual. Deux choses qui, à vrai dire, nén font quúne constituent cette ame, ce príncipe spirituel. L’une est La possession em commum dún riche legs de souveniers; l’autre est Le consentiment actuel, Le desir de vivre ensembl; la volonté de continuer à faire valoir l´hèritage qu’on a reçu indivis. L’homme meussieurs, ne s’improvise pás. La nation, comme líndividu est le aboutissant dún long passé d’eefforts, de sacrifices et de devouements. Le culte des ancéstres est de tous le plus légitime; les ancêtres nous ont faits ce que nous sommes. Un passé héroique, des grasnds homes, de la gloire (j’entends de la véritable) voilá le capital social sur le on assied une idée nationale. Avoir des glories communes dans le passé, une volonté commune dans le present; avoir fait de grandes choses ensemble vouloir en faire encore,

viola les conditions essentielles pour être un people.98

Ainda que as refexões de Renan sejam posteriores aos primeiros trabalhos do

Instituto, haja vista terem sido proferidas em conferência na Sorbonne em 1882, elas são

imprescindíveis para pensar os trabalhos do IHGB em seu projeto de construção nacional.

Se tanto Januário da Cunha Barboza como Martius e Varnhagen já haviam se referido à

importância do sentimento para a realização da nação, Renan irá teorizar de forma

sistemática acerca deste ente caro ao oitocentos. Conforme podemos observar em análise

ao último excerto, o autor apresenta-se enfático ao informar que a nação nasce não de um

97RENAN, Ernest. Qu’est-ce Qu’une nation? Paris: Le mot et le reste, 2007.p.32.98 RENAN, Ernest. Qu’est-ce Qu’une nation? Paris: Le mot et le reste, 2007.p.33-4.

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ato de vontade do soberano – ou do IHGB. Mas de um processo, e constitui-se como que

um princípio espiritual embasado em longo legado de lembranças, sacrifícios e

devotamentos, assim a caracterizando o autor “Une nation est donc une grande solidarité,

constituée par le sentiment des sacrifices par le sentiment des sacrifices qu’on a faits et de

ceux qu’on est desposé à faire encore”99

Frente tais preceitos para a forja da nação, qual seria o elemento mais

adequado para a constituição da nação brasileira senão um longo legado de lembranças

agenciado de forma maquínica num suporte livro em devir Máquina de Estado que

objetiva não somente o agenciamento das práticas de seus povos, mas também de seus

amores, rancores e sentimentos? Era mister então que tal narrativa histórica tocasse as

sensibilidades do ledor em seu ato de consumo da obra, em jogos de repulsa, escarnio,

negação, reconhecimento e identificação. Procedimentos através do quais, conforme

apontam nossas leituras, pretendeu-se através da constituição do rizoma estabelecido entre

a escrita realista e elementos inerentes a escrita ficcional, como uma demanda imperiosa

com vistas a potencializar a performance da narrativa historiográfica, e desta forma, fazer

com que a mesma se somasse de forma efetiva ao projeto de construção nacional, onde o

Instituto Historico e Geographico Brazileiro coloca-se como peça chave para a sua

realização das aspirações que se delineavam ao longo dos trabalhos sociaes desenvolvidos

pela comunidade de imaginação consorciada ao establishment.

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99 RENAN, Ernest. Qu’est-ce Qu’une nation? Paris: Le mot et le reste, 2007. p.34.

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_____. Historia Geral do Brazil. isto é do seu descobrimento, colonisação, legislação, desenvolvimento e da declaração de independencia do imperio, escripta em presença de muitos documentos ineditos recolhidos nos archivos do Brazil, de Portugal, da Hespanha e da Hollanda, e dedicada a Sua majestade imperial o senhor Pedro II. Rio de Janeiro: E e H Laemmert, Tomo II, 1857

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MEMÓRIA E IDENTIDADE NA TRAJETÓRIA DOS ÓRFÃOS DE PAU DE

COLHER: ACONTECIMENTOS, PESSOAS, LUGARES 100

Ana Lúcia Aguiar Lopes Leandro101

Resumo

Este artigo alude ao movimento messiânico de Pau de Colher ocorrido no Norte da Bahia em 1938. A trajetória de desagregação do sertão, após a morte de seus pais, evento ocultado nos documentos oficiais, foi reconstruída através do trabalho da memória dos trinta e dois órfãos levados pelo Estado, para o Instituto de Preservação e Reforma, em Salvador.

Abstract

This article refers to the messianic movement of Pau de Colher that occurred in the north of Bahia in 1938. The trajectory of disaggregation of the bachwoods, after the death of their parents, event hidden in official documents, was rebuilt through the work of memory of the thirty and two orphans brought by the State, for the Institute of Preservation and reform, in Salvador.

100 Fundamentado nas pesquisas e estudos de minha tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal da Paraíba/Base Campina Grande intitulada Morte, drama e vida dos órfãos de Pau de Colher: Rito, memória e identidade - uma história do percurso de voltar à terra.

101 Doutora em Sociologia pela Universidade Federal da Paraíba, Mestra em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco e graduada em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Professora do Departamento de Educação da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, [email protected]

Artigo recebido em 08/05/12. Aprovado em 13/06/12.

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Introdução

Este artigo trata da história dos órfãos do movimento de Pau de Colher

desconhecida, até hoje, pela historiografia brasileira. É possível que o predomínio da

memória oficial sobre o evento responda essa questão.102 Essa memória, julgou o

movimento de Pau de Colher com foco no conceito de messianismo entendendo-o como

consequência da perda de identidade dos indivíduos em decorrência de uma anomia social.

Atribui, a esse movimento, o caráter de fanatismo.

A história oficial limita o estudo, sobre Pau de Colher, aos acontecimentos apenas

em sua origem sem demonstrar preocupação com o processo para além da “extinção” do

mesmo após a repressão policial. Esse julgamento acreditamos, se constitui em um forte

prejuízo para a historiografia, em particular e, em especial, para seu estudo do ponto de

vista sócio antropológico. Trazem uma análise linear de seus acontecimentos e abordam o

evento na perspectiva da história oficial.

Do lugar onde essa orfandade passou a ser prescrita pelo Estado, ocultada nos

documentos oficiais, mas levantada, neste artigo, através da memória das trinta e duas

crianças órfãs do movimento. Procuramos colocar o contexto histórico dos

acontecimentos geradores do consequente drama inscrito na trajetória dos órfãos de Pau

de Colher, as razões do seu deslocamento dos povoados de origem, separação do seu lugar

de memória, os lugares da memória, a memória dos lugares da separação.

A preocupação é focalizar o movimento de Pau de Colher partindo do que

sentimos ter sido uma lacuna na História de Pau de Colher. Nessa referida lacuna, em

nossa leitura, estão os acontecimentos, as pessoas, os lugares na memória das crianças,

hoje idosos, dos dias de separação do seu lugar de pertencimento em direção ao Instituto

de Preservação e Reforma, em Salvador. Fatos acontecidos após a repressão policial e

morte de seus pais quando da invasão à Pau de Colher pelas tropas da Brigada Militar de

Pernambuco comandada pelo Capitão Optato Gueiros em 1938.

Estudo a memória dos órfãos sobre os componentes que fizeram parte do processo

de separação de seu lugar de origem, o deslocamento, após a chegada a Casa Nova, até

102 Pau de Colher, localizada no município de Casa Nova, é a denominação do povoado onde se concentraram durante 28 dias os seguidores do Beato José Senhorinho. O povoado recebeu esse nome devido à abundância, no lugar, da árvore Pau de Colher.

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Juazeiro da Bahia, e o internamento no Instituto de Preservação e Reforma, em Salvador.

Esses momentos foram vivenciados pelas crianças em meio à solidão, à ausência de seus

familiares e ao isolamento do seu lugar de pertencimento. Os elementos materiais e

emocionais desse processo de separação se constituíram em marcas alimentadoras e

sustentadoras do sentimento de identidade no momento posterior: o da liminaridade.

Quadros marcante ligados a esse processo. As cenas do dia e situação norteadores

da separação das meninas do grupo dos meninos, o embarque no vapor que os conduziria

à Escola de Menores, a chegada a Salvador, enfim, o cotidiano da separação. Dois grupos;

dois destinos. As meninas espalhadas, por meio da “adoção”, por várias famílias da cidade

de Casa Nova e outras cidades da região; os meninos levados para um internato. Os órfãos

tiveram suas irmãs retiradas do convívio com o grupo e as meninas não conseguiram

reatar, muitas delas, até hoje, os laços de família.

Tratamos da memória da ruptura o que denominamos de liminaridade (TURNER,

1974). Os órfãos foram separados dos seus povoados? Que decisões foram tomadas pela

prefeitura de Casa Nova e o Coronel Tito Lamengo, comandante da Brigada Militar da

Bahia? Como foi a retirada e a travessia das crianças de Casa Nova até Salvador? Para

onde foram os órfãos? Que cenários levaram na memória? Que quadros materiais e

emocionais compuseram a fase de separação? A “adoção” das meninas, e o internamento

dos meninos, tiveram que significado nesse processo?

Antecedentes: memória do tempo e do lugar do massacre

Em janeiro de 1938 a Brigada Militar de Pernambuco penetra na região fronteiriça

que liga os Estados de Pernambuco, do Piauí e da Bahia. As tropas policiais militares

caminham horas apreensivas, por entre picadas desconhecidas, à caça de homens

“ferozes”, “bandoleiros”, “fanatizados”. Noventa e seis homens obedecem a ordens do

Capitão Optato Gueiros, comandante da Brigada Militar de Pernambuco.

Casa Nova, sede do município, estava em polvorosa. Grupos ligados à prefeitura

local haviam realizado, antes da ação do governo da Bahia, incursões frustradas ao lugar

dos “religiosos”. Aguardavam-se, agora, providências mais “eficientes” do Governo

Federal, pois “urgiam medidas determinadas e detentoras do mal que se espalhava pelo

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sertão”.103 O pequeno “reduto” de Pau de Colher foi ocupado, definitivamente, no dia 19

de janeiro perdendo cerca de quatrocentas pessoas durante o “fogo” que durou três dias.

Homens, mulheres e crianças foram mortos pelas metralhadoras Thompson de

cinquenta tiros acionadas pelos soldados pernambucanos. Crianças e adultos circulavam

por entre cadáveres, na esperança de encontrar algum parente ainda vivo. Em meio ao

fogo muitos fugiram pelo mato em busca de um lugar que os colocassem a salvo dos

soldados do Piauí e da Bahia. A Brigada Militar do Piauí juntara-se à pernambucana para

as buscas. A tarefa era cumprir a missão primeira: livrar a região de “bandidos” trazendo

de volta a ordem pública.104 Pelas estradas de chão da região circunvizinha, todos se

escondiam, abrigavam-se por dentro do mato alto, abandonavam seus sítios em busca de

lugares mais seguros do alcance dos “caceteiros e da polícia.

Pensada pelas lideranças políticas de Casa Nova, inicialmente, como uma reunião

de pessoas que “só estavam rezando”, conforme afirmou Antonio Honorato, transforma-

se, em seguida, na preocupação de não se transformar em uma “nova Canudos”.105 A meta,

então, de “livrar o sertanejo da perdição”, impedindo que a desordem se instalasse na

região, faz com que o Governo Federal determine a formação do Destacamento do Vale

do São Francisco com a missão de extinguir Pau de Colher a todo preço.106

Casa Nova, o sítio Pau de Colher, o “adjunto”, o cerco da Brigada Militar ao lugar

da esperança, o sufocamento do lugar e do tempo, a invasão das tropas policiais militares,

a morte dos pais, a morte dos parentes e dos amigos, a demolição de cabanas, o cheiro

103 Os jornais da época, A Tarde, Estado da Bahia, Diário da Tarde, o Pharol trazem, em suas reportagens, essa opinião. Destacamos o Pharol, jornal de Petrolina à época, com as reportagens de Cid Carvalho cuja pesquisa foi realizada no Museu do Sertão, na mesma cidade. O acervo é escasso sobre o evento de Pau de Colher.

104 “Naquela época a ordem era matar. Dava um prazer enorme quando a gente pegava um bandido daquele e descarregava todas as balas. O que importava era cumprir as ordens dos comandantes. Eu matei muito bandido”. Entrevista realizada em 23, 24 e 25 de março de 2007, em Serra Talhada, no Sítio Barra dos Souza com um dos soldados da tropa do Capitão Optato Gueiros.

105 Antonio Honorato de Castro, “seu Tonho como chamavam, era o líder Político local na época que Raimundo Santos era prefeito de Casa Nova. Os dois foram presos, após o movimento de Pau de Colher, acusados de protegerem comunistas no local do movimento” afirma sua filha Genilda Viana de Castro Dantas Campos que tinha 19 anos na época. (Entrevista feita em Casa Nova, em 20 de março de 2007).

106 Infere-se dos documentos constantes nos arquivos das Brigadas Militares que os mesmos sugerem articulações que foram organizadas como uma ação preventiva para evitar qualquer situação crítica de manifestações religiosas que pudessem ameaçar o regime autoritário recém–inserido. Ver sobre o assunto, no livro de Luiz Henrique Tavares, História da Bahia, 10a. ed., Editora da EDUFBA- Ed. UNESP.

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forte dos corpos caídos ao chão, as valas coletivas nas quais os corpos foram jogados, o

momento da ocupação do acampamento, as prisões efetuadas pelos soldados, as armas nas

mãos dos soldados, o ruído do mato na caçada aos “fugitivos”, os umbuzeiros que os

abrigaram alimentando-os nos dias de fuga, são cenas vivas em suas mentes. É, portanto,

uma memória criada e preservada por eles, sobreviventes do evento, e ancorada no luto,

no que perderam de sua vida pessoal e do grupo. Essa memória nega qualquer idéia de

terem sido seus pais bandoleiros, como, também, responsabiliza os soldados de terem

provocado a morte de seus pais e destruído seus sonhos, narra um dos órfãos: “minha mãe,

meu pai, o que eles estavam fazendo de errado? Nada. Nós não somos desocupados. Nós

tínhamos um trabalho, casa, comida, plantio, criatório. Nós estávamos rezando e não

matando”. Cada detalhe, cada aspecto, cada emoção, e ações vividas pelo grupo de Pau de

Colher, têm um sentido para os órfãos.

Pollak (1989, p.4) vai indicar, neste momento, a possibilidade de uma abordagem

sobre a memória dos excluídos, pelo caminho das memórias subterrâneas, prosseguindo

seu trabalho de subversão no silêncio e de maneira quase imperceptível aflorando em

momentos de crise em sobressaltos bruscos e exacerbados.

O “fogo do Pau de Colher” é uma expressão presente em todas as narrativas. O que

significa o “fogo”? Ao que leva os órfãos quando se referem ao “fogo do Pau de Colher”?

Que imagens são evocadas? Um dos órfãos relata assim:

Quando acabou o fogo, acabou não, porque ele não se acaba. Vai ficar vivo. E ele deu força pra viver. O fogo era as bala, o povo caindo, correndo, gritando, chorando, a prisão do meu pai. Tiro pra todo lado e a gente pequeno no meio do redemoinho. Isso é o fogo pra mim. O fogo do Pau de Colher. Isso não contam não. Nós saímos para os mato, passamos quase um mês nos mato. Quando a polícia chegou nos prendeu.107

Os acontecimentos, as pessoas, os lugares, os ditos e não ditos ajudaram-lhes a

manter a história viva mesmo que correndo num discurso paralelo.

Memória do vapor Barão de Cotegipe e do “trem enorme”

107 Transcrito literalmente, respeitando seus saberes.

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Após decisões oficiais sobre o destino dos menores, com a “adoção” de algumas

meninas e distribuição de outras, o grupo de meninos é conduzido ao vapor. É o início da

viagem que os arrancaria do lugar de seus costumes. Foi um embarque marcado por choro,

mãos estendidas dos familiares na tentativa de ainda conseguir que as autoridades

deixassem as crianças permanecer com seus parentes.

O Vapor Barão de Cotegipe está, até hoje, na memória dos órfãos celebrando o

momento definitivo da separação. As águas do rio os levariam. O vapor os conduziria para

terras estranhas. Gennep (1977) fala do embarque e desembarque como rito de separação

material. A travessia de um rio, o ato de subir acompanha os ritos de separação na partida.

A cerimônia, para esse momento, no dia em que os órfãos de Pau de Colher embarcaram

no vapor Barão de Cotegipe, foi marcada pelo olhar desesperado dos familiares, a

admiração dos presentes a esse ato principalmente das autoridades locais. Uma escolta

leva os meninos e prisioneiros até o vapor sem a possibilidade do carinho, do beijo, do

aperto de mão componentes da despedida. Sem uma palavra, rito verbal para Gennep.

Após a separação das meninas, “adotadas” em Casa Nova, o grupo segue até as margens

do rio São Francisco onde o vapor Barão de Cotegipe os aguardava.108 Da casa onde

estavam seguiram em cortejo até o vapor aquele que os separaria de sua terra. Seus corpos

cansados e alquebrados seguiam para um destino obedecendo às ordens dos comandantes

das operações de Pau de Colher. Foi um embarque escoltado pelo ritual da vitória dos

“bons” contra a derrota dos “ruins”. Da casa onde ficaram até o rio São Francisco onde

estava o vapor era muito próximo. Por entre a porta da casa, onde haviam passado aqueles

dias, saia, um a um, nada levando nas mãos ou às costas. Eram, todavia, acompanhados,

de um lado, pelos olhares curiosos dos moradores e, por outro, pelos olhares desesperados

e mãos estendidas de suas mães, sobreviventes, e parentes que apontavam pedindo seus

filhos de volta.

No determinado vapor, sobem, e se organizam em bancos de madeira, no chão,

lugares que acolheriam um silêncio carregado de significados, completo da dimensão do

sufocamento do sentimento. Sentam. Sobre o que conversaram? Perguntei a um dos

órfãos. Nada, disse ele, afirmando: “ninguém sabia conversar nada. A gente só se olhava e

olhava tudo. Não era para conversar. Conversar o que a gente nem sabia”. Embarcam

todos sobre os olhares esticados dos que ficaram. O que tinham nesse momento, os

108 Um grupo de meninas seguiu com os meninos para adoção em Salvador.

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órfãos? Seus corpos. Suas mãos para apertar uma na outra. Sua cabeça para escorar entre

os braços que, por sua vez, descansavam sobre as pernas dobradas. O cansaço, o sono, a

fome, a sede ia tomando conta de suas lembranças e, como um bálsamo, rendia-os ao

sono. Sono que os anestesiou, durante a travessia, e os fortaleceu ao mesmo tempo. Em

seguida, aqueles corpos seguiam embalados pelas águas do rio São Francisco. Ao redor, a

paisagem que viam ainda das casas, ficava para trás, seus familiares que nem imaginavam

o quanto longe ou perto seria esse novo lugar que “diziam que era para o melhor para

eles”. As águas os levavam, paulatinamente, ao encontro de outra terra. Os órfãos olhavam

do vapor sua terra ficar cada vez mais distante dos seus olhos até desaparecerem. Agora,

seguiam, em silêncio. Nada disseram. Sentimos em suas narrativas cada momento e, como

Caldeira (1980, p. 15) defende na lembrança ou no esquecimento o tom de cada um deles.

“O que diz não é um depoimentos que vai ter um significado apenas para quem o solicita a

fim de descobrir algo; ele é significativo e, em certo sentido, também, uma descoberta

para quem o fornece para quem o vive (e revive)”.

Após algumas horas, chegou outro destino, também desconhecido para eles, mas

ainda não era o lugar “definitivo”. Era Juazeiro, na Bahia, e, daquele lugar, a viagem seria

de trem. Na Estação Ferroviária Leste Oeste, localizada à beira do rio, o vapor

“descarrega” aquelas crianças. “Era aqui que a gente ia ficar”? Naquele lugar, as casas

eram maiores e mais numerosas, o rio era enorme parecia se juntava com outro, as casas

eram juntas, muito juntas das outras. Onde estavam seus sítios, seus criatórios, a cacimba,

a carroça, seus jumentos? “Ave Maria, era tudo diferente!” disse um dos órfãos.

Finalmente, o desembarque acompanhado de olhares espantados. Do vapor seguem para

um depósito da estação e, em seguida, para um dos vagões do trem.

Durante essa travessia, ainda contavam com a presença dos adultos prisioneiros

que estavam seguindo para a Vila Militar, em Salvador. Ainda não se consumira a

separação total. Os prisioneiros de Pau de Colher também estavam alí. Por seu turno,

seguiam para cumprir a pena, não imaginada de quantos anos, por terem sido entendidos

como “malfeitores” e “perigosos” para a ordem pública. Seus braços, suas pernas, sua

cabeça, suas mãos concedidas aos carrascos que os esperavam em Salvador. Seus corpos

estavam machucados, doentes, baleados. Curativos feitos às pressas. Corpos jogados lá

dentro do vapor para serem, em seguida, sacrificados sem pena, pelos seus sacrificadores

fardados para o sacrifício. Como se configura esse sacrifício? Era a pena de ficarem lá, ao

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léu, uma vez que, em suas celas, podiam chorar, gritar, sentir dor e esperar quando viesse

o socorro ou seus nomes ostentados nos livros de relatório do serviço de saúde no item

“Alta de fanático: por haver falecido em 1º. deste mês teve alta do Hospital da Polícia

Militar o fanático S. R. E., que ali se encontrava em tratamento, conforme ordem

superior”.109

Embarcaram no trem. Quanto tempo durou a viagem? Perguntamos R.L. um dos

órfãos. “Eu não me lembro disso não, mas não foi muito tempo não”. Não tinham noção

do tempo que levaram para a chegada a Salvador. Perguntei quantas refeições fizeram. “A

gente não lembra, mas a gente comeu. Eles davam lá pão, bolacha, feijão, farinha era essas

coisas. A gente nem pensava nisso. O que a gente pensava era onde tudo ia acabar”.

Os trinta e dois órfãos chegaram a Salvador e, na calçada, da estação já estava um

caminhão da Brigada Militar da Bahia esperando. Subiram no caminhão e, ali naquela

outra cidade, tudo era completamente diferente do que haviam deixado para trás. Era

como se tudo tivesse pelo avesso, na cabeça deles. Na calçada, onde os aguardava o

caminhão, a primeira diferença: o calçamento. Nunca tinham visto um “chão daquele

jeito”. As pessoas chamavam também a atenção, pelas roupas que usavam, e eles olhavam

para as suas roupas, que ainda eram as do sertão, sem saber que iriam se separar desse

vestígio do passado, logo em seguida.

Os passos apressados dos que transitavam pela rua também despertou a

curiosidade dos meninos. Eram muitos carros, ou melhor, eram carros que muito ou pouco

faziam um movimento diferente do seu lugar onde só aparecia um carro “um dia na vida,

outro na morte” como no dia que vivenciaram as “balas do Capitão Optato Gueiros”.

Eram marcadores de um lugar diferente. Elementos que lembravam os sofrimentos dos

dias que antecederam à viagem, a saber, “muita gente fardada, muitos carros de policiais,

muitas falas apressadas, muito vai e vem e armas penduradas à cintura dos policiais” nos

relata N.D. Pensaram, então, em seus corpos marcados pelas balas, pelos arranhões e

ferimentos, dos dias de fuga pelo mato, e se aparavam uns aos outros para seguir o

percurso. Sobem no caminhão e, agora, seria a separação entre crianças e adultos para

locais diferentes.

109 Livro da Chefia do Serviço de Saúde e Diretoria do Hospital da Polícia Militar do Estado da Bahia, em 4 de maio de 1938, Boletim nº 97, página nº 125., assinado pelo Major Dr. Oscar M. de Freitas, chefe do Serviço de Saúde e Diretor do Hospital Militar.

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Pollak (1989) vai indicar, neste momento, a possibilidade de uma abordagem sobre

a memória dos excluídos, pelo caminho das memórias subterrâneas, prosseguindo seu

trabalho de subversão no silêncio e de maneira quase imperceptível aflorando em

momentos de crise em sobressaltos bruscos e exacerbados.

A memória da separação, levada para o lugar do depositário do ethos, memória

coletiva e do seu pertencimento, memória do que era comum, apresentaram-se como

quadros de referência. O material fornecido para esse enquadramento da memória, ou

quadros sociais da memória, foi o vivido pelos órfãos e fornecido por sua história desde

suas vidas antes de Pau de Colher e durante Pau de Colher.

Memória do “mercado” de meninas e chegada ao Instituto de Preservação e

Reforma.

Novo mercado de meninas se instala nesse momento e, ali, recebidas por senhoras

de Salvador que esperavam pela “mercadoria”. Ao chegarem “à capital, ali mesmo na

Estação Leste em Calçada nova oferta de criança fora feita”.110 A despedida com um ritual

silencioso, só de olhares, afastou-os definitivamente daqueles que foram, durante a

travessia, sua âncora sentimental, seu ponto de apoio na qualidade de adultos, sua

referência e possibilidade de pensarem protegidos por quem representava seus ancestrais.

Colocadas no bagageiro do caminhão, trinta e duas crianças órfãs seguiram para a Escola

de Menores. Um dos órfãos diz, procurando suas lembranças: “não sei quanto tempo

durou até chegar na Escola de Menores, não”. Estavam longe de seus familiares por dias

seguidos. Quanto tempo eles passariam nesse “lugar diferente” não tinham a mínima ideia.

O que levavam em suas memórias, sim, sabiam: “Aquilo tudo não saia da minha cabeça,

foi pior do que a guerra. Você sabe, menina, sabe o que é ver seus pais mortos, assim bem

juntinho, e a gente pedindo para acordar, se deitar em cima do corpo e chorar porque ele

não falava com a gente”? Diz um dos órfãos, N. D.

Subitamente o caminhão deixa de funcionar. Os órfãos não sentiram o balanço do

caminhão. Ao contrário de suas carroças, conduzido por jumentos, que os levantavam, às

vezes bem no alto, em decorrência de caminhos de chão tortuosos, embelezados por

terreno ora pedregosos, ora adornados por gravetos que se estiravam em sua passagem

110 Programa apresentado por V. L. em Casa Nova, narrando os acontecimentos. O programa foi ao ar no dia 25 de agosto de 1983.

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como um tapete que os conduzia aos seus “matos”, provaram o gosto amargo de um

caminhão enorme. O caminhão estaciona e, aquelas cabecinhas todas abaixadas, começam

a se levantar por ordem de “um soldado”. “Meu Deus! Era um lugar enorme! Tinha um

portão grande, mas o que era a gente não sabia”, recorda um dos órfãos, R.M. No interior

da Escola de Menores, depois Instituto de Preservação e Reforma, hoje, FUNDAC, os

órfãos não imaginavam o que os aguardava. Entraram perfilados e esperaram em uma sala,

de tamanha normal, nem pequena e nem grande, uns sentados, outros em pé, para uma

conversa com o diretor. Souberam então que era uma escola.

Na sala de espera havia uma mesa pequena, algumas cadeiras, um quadro e uma

bandeira. Olharam sem saber quem era o “homem do retrato”. Esse cenário os leva de

volta para os componentes da sala de suas moradas, recheadas de seus santos padroeiros,

seus oratórios, lugares sagrados de cantos e rezas, nos quais seus pais reúnem os vizinhos

para, em frente às imagens, pedir proteção e chuva.

Na sala de espera muitos preferiram ficar de cócoras, esperando e olhando tudo ao

redor. O silêncio tomou conta do lugar da espera, olhos procuravam olhos “a gente olhava

um para o outro”. O soldado anuncia: “vocês vão falar com o diretor que vai conhecer

cada um”. Entraram um de cada vez, e saia ainda sem saber o que significava tudo aquilo,

o que iam fazer ali de fato, quanto tempo ficariam, quem eram os outros meninos que

viviam naquela escola e o que tinham feito para estarem ali.

Naquela sala da Escola de Menores, o que estava por trás da porta “sagrada” era

alguém que estavam prestes a conhecer. Naquele lugar, faltava o cheiro da terra, o balanço

do vento, o juazeiro, o umbuzeiro, as águas das chuvas de inverno, seu jumentinho

esperando “no terreiro” a hora de conduzir seu parceiro sertanejo até o criatório, o plantio

ou à casa do vizinho. Eram outros os marcadores daquele lugar. Era outro o tempo:

“parecia que tudo tinha sido parado para esperar que alguém botasse a gente para se mexer

de novo. E parecia que o tempo tinha passado rápido demais de tanta coisa que passou

pelas vistas da gente”, completa um dos órfãos, R.A. Outra expectativa tomou conta dos

meninos, qual seja, a de quando iriam tirar suas roupas. Era o que faltava para arrancarem

materialmente o sertão de seus corpos. Repentinamente, a porta se abre. Entre! Entre!

Levanta-se e entra, diz ele. Caminha, R. L. uns passos, e passa pela grande porta que o

introduz à sala do diretor. A porta se fecha para ir, em seguida, abrindo-se,

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alternativamente, a cada um que entrava conduzido pelo guarda. Que segredo ficou

fechado entre as quatro paredes da sala do diretor Edson Tenório?

Memória do ritual de internamento dos meninos: a voz de um dos órfãos de Pau de

Colher111

Após a chegada a Salvador eles foram transportados em viaturas da polícia para a

Rua Pitangueiras, nº 26, Brotas, Piranga, Cidade Alta, Salvador/BA, onde ficaram entre

três e oito anos, aproximadamente.112

Deixaram roupas, sandálias, terço, benditos tudo o que tinham, separando-se da

sua cultura, ao entrarem no Instituto de Preservação e Reforma. Nos termos de Gennep a

pessoa se separa do mundo exterior tirando sapatos, manto, cobertura da cabeça e se

agrega comendo, bebendo junto com as outras mesmo que seja apenas durante um

momento.

Iniciei pelo que chamei aqui, dentro desse ritual, pela fase da separação,

beneficiando-me das narrativas de um dos órfãos do sítio Pau de Colher, R.D.

A escolha dessa narrativa, dentre os órfãos entrevistados, deve-se menos a um

critério de hierarquia, entre as narrativas, e mais pelo conjunto de informações trazidas em

sua fala, a diversidade de lugares e cenários por ele vividos, desde o início do “adjunto”,

em 1938, até o “naufrago” de Pau de Colher e a marcha para a separação.113

Evidentemente, ao longo do texto, outros órfãos somaram fragmentos de suas

experiências, pois estão em entrecruzamentos dos tempos e lugares sociais vividos em

comum, como instrui Halbwachs (1994). Dor pelo cotidiano da ruptura sofrida e que

permitirá, ao leitor, uma tentativa de visualizar os sentimentos, vividos pelos órfãos, nessa

primeira fase da viagem de deslocamento forçado.

111 O internamento dos órfãos de Pau de colher foi no Instituto de Preservação e Reforma chamada na época de Escola de Menores, estava ligado à Secretaria do Interior e Justiça. Hoje funciona o prédio da FUNDAC. O diretor chamava-se Edson Tenório e a orientadora pedagógica Glaphyra Gil Bellazzi. (documento encontrado no arquivo do SDI da Fundac, em 10/05/2006).

112 O retorno dos órfãos de Pau de Colher ao seu lugar de pertença foi paulatino.

113 “Adjunto” juntamente com “mafuá”, “circo”, “redemoinho”, “balaio”, “ajuntamento” são expressões que aparecem nas narrativas e que nomeiam o lugar onde os religiosos ficaram no sítio Pau de Colher. São termos usados pelos que não participaram efetivamente do movimento e soam como se quisessem demonstrar crítica ao acontecido.

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Lembra, R. D., que a chegada ao Instituto de Preservação e Reforma, para onde

foram levados em janeiro de 1938, após ver seus parentes enterrados em valas coletivas, a

Casa Nova, acontece em meio a presença de pessoas que saiam às ruas para verem aquele

desfile de corpos esfarrapados seguindo como para uma sentença de morte.

Após o atendimento aos ferimentos físicos, ele recebe água, pão e café, pois era

noite e ficou aguardando, junto aos demais, num salão grande organizado, alguém para

dizer o que fariam de suas vidas. A noite, naquela casa grande e fria, foi longa e quase não

conseguiu dormir a não ser pelo cansaço da caminhada que antecedera a chegada à cidade.

Cedo da manhã, iniciam-se os preparativos para a “arrumação” de suas vidas. O que

estava acontecendo é que, algumas meninas iriam ficar em Casa Nova “adotadas” por

algumas famílias da região. O destino das outras não se sabia ao certo, apenas que iriam

viajar. Nas horas que se seguiram ao amanhecer do dia 24 de janeiro daquele ano, as

crianças menores começaram a chorar, ficaram inquietas, agitadas e todos num canto

esperando, segundo ele, a decisão do destino de suas vidas. Antes do meio dia chegou um

soldado que os conduziria até Salvador e, em seguida, tomaram conhecimento que os

trinta e dois meninos iriam para uma escola: o Instituto de Preservação e Reforma, na

época, Escola de Menores.

Durante a separação, os órfãos de Pau de Colher vão acumulando uma longa

memória. Foram recordando como única via de sustentação de sua história. Foram

reunindo os fragmentos, juntando os pedaços. Mesmo atravessando situações distintas das

vividas em seus povoados a memória de seu lugar permanece presente em suas

lembranças. Seria preciso uma mudança sensível para que o contrário acontecesse, mas os

tempos e situações plurais, vivenciadas pelos órfãos, foram como diz Halbwachs, sempre

um tempo contínuo [que se tornou] (grifo nosso) acessível em toda sua extensão. Quando

se transforma é que um novo tempo começa para ele, assegura:

Mas o tempo antigo pode subsistir ao lado do tempo novo, e mesmo nele, para aqueles de seus membros, para quem uma tal transformação tenha abalado menos, como se o antigo grupo recusasse a se deixar absorver inteiramente pelo novo grupo que nasceu de sua substância. (HALBWACHS, 1994, p. 123).

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Experimentam nessa primeira vivência da saída de seu lugar de memória, de

tradição de afetividades, o afastamento desse lugar e a aproximação a outro lugar e, assim,

vão acumulando dois quadros de pensamento. Foi em cada um deles que se colocaram

para encontrar as lembranças dos quadros em que estavam localizados. Assim, para

encontrar seus lugares de vida, seus povoados, suas moradas, a saber, Pau de Colher,

Queimadas, Proeza, Lagoa do Alegre, Lagoa Comprida, Castanheira, Batateira, no

labirinto dos novos cenários, eles se transportaram, em pensamentos, durante toda a

travessia, até aqueles lugares que alojavam ao significado de suas vidas.

Halbwachs (1994, p. 129) afirma que, “nos novos cenários encontramos

particularidades do antigo, pois só temos pensamento somente para estes”. Os órfãos de

Pau de Colher levaram em seus pensamentos os traços de seus lugares e a subsistência

desses traços, continua o autor, “basta para explicar a permanência e a continuidade do

próprio tempo e que seja [é] possível nela penetrar, a qualquer momento, através do

pensamento”.

Para Halbwachs (ibid. p.143) “não há memória coletiva que não se desenvolva

num quadro espacial”. O espaço, durante a viagem de desagregação, foi para os órfãos de

Pau de Colher fundamental. O espaço é uma realidade dura e nossas impressões se

sucedem uma à outra, nada permanece em nosso espírito e não seria possível compreender

que pudéssemos recuperar o passado, se ele não se conservasse, com efeito, no meio

natural que nos cerca. Os órfãos de Pau de Colher foram reconstruindo esses lugares

durante aquela viagem. Não queriam esquecer. Lutavam para não esquecer. Cenas afetivas

do convívio familiar, cenas fortes do “fogo de Pau de Colher”, sentimento de abandono,

de desespero, de separação, da liminaridade.

Nossas roupas não eram mais roupas. A gente corria pelos lugares que fosse. O que a gente tinha na mente é que tinha um soldado atrás de nós. E a gente sem proteção. A proteção nessa idade quem é? Os pais”. N. D. relembra, demonstrando seu abandono, até hoje.

Assim, o conjunto de situações e elementos da natureza que rodeavam os órfãos de

Pau de Colher, antes da separação, constitui-se em objetos que confeccionavam com o que

a natureza oferecia. Passado que não passou. O sentido do passado que é uma dimensão

permanente da consciência humana, um componente inevitável das instituições, valores e

outros padrões da sociedade humana (HOBSBAWM, 1998). Um passado como um

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processo de tornar-se presente. Atração forte desse passado como continuidade e tradição,

como nossos antepassados, é forte assevera o autor.

Esses dias de meninice são guardados em sua memória e, em silêncio, no vapor, no

trem, e na calçada onde seriam separados das meninas que os acompanharam naquela

travessia, estabelecem a representação do seu passado que é convocado pelos “quadros

sociais” daquele momento da separação. Mas do que um sentimento estético ou de

utilidade, os objetos nos dão um sentimento à nossa posição no mundo, à nossa

identidade. Como afirma Bosi (1994, p. 441) “Mais que da ordem e da beleza, falam à

nossa alma em sua doce língua natal. É uma ordem que os unia e os separava. Unia ao

mundo da sua tradição, defendendo-os de outra ordem”. Acrescenta, ainda, a autora de

Memória de Velhos, citando Vitória Morin, serem objetos biográficos, pois envelhecem

com o possuidor e se incorporam à sua vida. Digo, para o caso dos órfãos de Pau de

Colher, ser objetos e situações que representam a experiência vivida por eles em seu grupo

de origem.

Sobre a importância da memória, coisas e sentimentos, diz Bosi (1994, p. 452): “À

resistência muda das coisas, à teimosia das pedras, une-se a rebeldia da memória que as

repõe em seu lugar antigo”. A liminaridade dos órfãos de Pau de Colher será revestida de

resistência, teimosia, rebeldia, conformação, dissimulação.

Considerações

O narrado pelos órfãos foi de uma realidade vivida diretamente. De certa forma

estamos dentro da história, pois é recorrente na história do país. Acredito ter escrito o que

era preciso escrever para esse momento. Ele não acabará nem que queiramos. Fios do rolo

estão quilometricamente juntos esperando que outros pesquisadores continuem a desfiá-lo.

O realizado, por ora, foi possível pelo narrado. Pela generosidade dos que passaram por

esse drama na pele. Fui lendo, pensando, escrevendo, juntando o partido, cortando,

costurando, descosturando, alinhavando. Pontos maiores, outros menos. Às vezes a linha

soltava-se da agulha.

Acredito que, cada cena da história da separação dos órfãos de Pau de Colher dos

seus lugares de origem, cada recorte, cada “pecinha de fuxico” foi artesanalmente erguido.

Trazida à tona, penso. Claro que não é melhor do que o tecido dessa história.

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Com os órfãos de Pau de Colher, a memória dos acontecimentos, os lugares, os

tempos vividos foram, com eles, para a liminaridade, alimentando suas forças de ação,

fazendo-os agir sobre o cotidiano no Instituto de Preservação e Reforma o que levou à

viagem de retorno ao seu lugar de origem, afirmo.

Os lugares e tempos do vivido, pelos órfãos de Pau de Colher, colaboraram para

fornecer à sua memória material para nutri-la. No interior desses lugares cenas se

desenrolaram. Relataram sobre lugares, tempos, objetos, Casa Nova, Pau de Colher, o

“adjunto”, os santos, os rosários, o cheiro dos cadáveres, o barulho das metralhadoras, os

gritos de medo, o choro por ver o corpo de seus pais estendidos no chão, o pavor do

soldado carregando uma arma nas mãos, as marcas das balas no corpo dos que

sobreviveram, a travessia pelo rio São Francisco e a chegada ao Instituto de Preservação e

Reforma.

Abrimos oportunidade para que trinta e dois órfãos tivessem voz, além dos demais

remanescentes não órfãos importantes para erguer esse artigo. Gente de carne e ossos,

nossos vizinhos, conhecidos, nordestinos, brasileiros. Foi possível vê-los concretizando

sua humanidade, ao contrário de se pensarem como filhos de “insandissados”, de

“fanáticos”, de “desumanos”, de “gente do outro mundo” necessitando de civilização.

As narrativas dos órfãos de Pau de Colher saíram de um drama da vida real e isso

nos ajuda a entender a riqueza da vida cotidiana, principalmente em seus momentos de

suspensão, da liminaridade, como é o caso dos órfãos.

Entendo ser uma consideração que faço, a partir das várias narrativas construídas

conjuntamente. São construções erguidas em suas moradas, em seus povoados, na relação

com eles, no dia a dia, em suas histórias de vida, em suas experiências autobiográficas, em

observações o que exigiu muitos dias, meses, anos de pesquisa.

Há muito mais o que escrever. Faremos em outros momentos.

Referências

BOSI, Eclea. Memória e Sociedade. Lembranças de velhos. 3ª ed. – São Paulo:

Companhia das Letras, 1994.

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CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Antropologia e Poder: Uma resenha de Etnografias

Americanas Recentes. In Boletim Informativo e Bibliográfico de Ciências Sociais, BIB,

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