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Revista Eletrônica do Curso de História Universidade Estadual Vale do Acaraú Centro de Ciências Humanas 2011

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Revista Eletrônica do Curso de História

Universidade Estadual Vale do Acaraú Centro de Ciências Humanas

2011

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Revista Historiar

Revista Historiar [recurso eletrônico] / Universidade Estadual Vale do Acaraú – v.5. n.5 (jul/dez. 2011). Sobral-CE: UVA, 2011. Semestral ISSN 2176-3267 Modo de acesso: [www.uvanet.br/revistahistoriar] 1. História - periódicos. 2. Ciências - periódicos. I. Centro de Ciências Humanas. II. Universidade Estadual Vale do Acaraú.

CDD - 900

CONTATOS: Prof. Dr. Carlos Augusto Pereira dos Santos. e-mail: [email protected] /[email protected] Curso de História: Fone (88)3677.7858.

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EDITORES CIENTÍFICOS

Editor Prof. Dr. Carlos Augusto Pereira dos Santos (UVA)

Conselho Editorial

Profa. Dra. Chrislene Carvalho dos Santos (UVA) Prof. Dr. Agenor Soares e Silva Júnior (UVA)

Conselho Consultivo

Prof. M.Sc. Raimundo Nonato Rodrigues de Souza (UVA) Profa. M.Sc. Maria Antônia Veiga Adrião (UVA)

Prof. M.Sc Francisco Denis Melo (UVA) Profa. M.Sc. Maria Edvanir Maia da Silveira (UVA) Prof. Dr. Marcos Aurélio Ferreira de Freitas (UECE)

Prof. Dr. Antonio Jorge de Siqueira (UFPE) Prof. Dr. Jean Maccole Tavares (UERN)

Prof. Dr. Luciano Mendonça de Lima (UFCG-PB) Prof. Dr. Luigi Biondi (UNIFESP)

Profa. Dra. Adelaide Gonçalves (UFC)

Revisão de textos Prof. Manoel Valdeci de Vasconcelos

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SUMÁRIO

Apresentação Artigos AS INCONFIDÊNCIAS MINEIRAS: DAS TRAIÇÕES AO DESEJO

LOCAL DE RECONHECIMENTO PELA COROA PORTUGUESA

Cleidimar Rodrigues de Sousa Lima BARBÁRIE DO IMPÉRIO: A POPULAÇÃO INDÍGENA NO CEARÁ

NO INÍCIO DO SÉCULO XIX

João Paulo Peixoto Costa OLHAR, OUVIR E DESVELAR: FRAGMENTOS DA CIDADE NO ÁLBUM DO CENTENÁRIO DE SOBRAL – 1941 Luciana de Moura Ferreira OS JANGADEIROS EM FOCO: REFLEXÕES ACERCA DA

RELAÇÃO DE POPULARES COM A IMPRENSA

Berenice Abreu de Castro Neves Ana Paula Pereira Costa Emilu de Sousa Lobo

OS NOVOS DOMÍNIOS DE CLIO: HISTÓRIA CULTURAL, CAMPO DE SABER, CONCEITOS E POSSIBILIDADES.

Telma Bessa Sales Francisco Diego Soares Farias

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APRESENTAÇÃO

A Revista Historiar chega ao seu quinto número conquistando um Qualis B4 pela

CAPES. Essa qualificação, sem dúvida, foi fruto do esforço de todos que direta ou

indiretamente acreditaram na proposta ousada de um pequeno corpo discente que insiste

em fazer história numa universidade encravada no sertão cearense, com todas as

limitações, mas também com potencial para alçar e conquistar outras vitórias.

Neste sentido, a diversidade de artigos que alimentaram a revista nos últimos

quatro números nos dá a certeza de que estamos prontos para prosseguir no intento de

sempre melhorar a qualidade dos mesmos e poder encetar um diálogo e debate profícuos

na área de História com outros profissionais do Brasil afora e, quiçá de outros países. Para

o próximo número, a definição de um dossiê, a ampliação e diversificação do Conselho

Consultivo e do quadro de pareceristas externos serão objetivos a serem alcançados.

Neste número, a História do Brasil é revisitada em temas tão diversos quanto

singulares que vão desde uma análise à luz do direito das várias “inconfidências” na então

Província de Minas Gerais à questão indígena no Império, vista sob o viés de como essa

população era percebida na Província do Ceará, no século XIX. Mais tarde, a bravura dos

jangadeiros cearenses em suas viagens ao sul do país é objeto de pesquisa que capta como

a imprensa da época compreendeu e inventou este evento épico. Mudando para a escala

local, as percepções da memória de velhos sobre o Álbum Comemorativo do Centenário

de Sobral em 1941, mostram, revelam e desvelam os fragmentos de uma cidade que

teimam em persistir nos documentos, em suas retinas e mentes. Por fim, um passeio pela

compreensão teórica de como a história cultural pode suscitar novos domínios para o

“reino” de Clio, no eterno diálogo com outros campos do saber.

Boa leitura e até nossa próxima viagem!

Prof. Dr. Carlos Augusto Pereira dos Santos

Coordenador da Revista Historiar.

Sobral-CE, dezembro de 2011.

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NORMAS Os artigos devem ser enviados observando-se as seguintes normas:

1. No mínimo, 12 e, no máximo, 18 páginas. 2. Fonte: Time New Roman, nº 12. 3. Espaçamento 1,5. 4. Resumo, de até 5 linhas, em português e em uma língua estrangeira (inglês,

espanhol, ou francês). 5. Registro de 3 a 5 (quatro) “palavras-chave”. 6. O texto deverá constar de um título em letra maiúscula, seguido de nota de rodapé

informando a natureza do trabalho (resultado de monografia, iniciação científica, outros).

7. Constar os nomes completos do(s) autor (es) e, em nota de rodapé os dados de sua identificação, sobretudo, sua titulação acadêmica, área de formação profissional, vínculo institucional e endereço eletrônico para fins de referência dos autores.

8. Citações, notas de rodapé, apresentação de tabelas, desenhos, gráficos, etc, devem estar de acordo com as normas da ABNT BR:6023/2002).

9. Os autores terão a responsabilidade de enviar seus artigos já revisados, sendo essa uma condição para o aceite dos textos.

10. Os trabalhos deverão ser enviados em CD-ROM e duas cópias impressas, para o seguinte endereço:

Universidade Estadual Vale do Acaraú

Centro de Ciências Humanas - Curso de História Campus do Junco

Avenida John Sanford, 1845. Bairro do Junco.

62030-000 – Sobral/CE

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AS INCONFIDÊNCIAS MINEIRAS: DAS TRAIÇÕES AO DESEJO LOCAL DE

RECONHECIMENTO PELA COROA PORTUGUESA1

Cleidimar Rodrigues de Sousa Lima2

RESUMO: Este texto pretende discutir as Inconfidências Mineiras que ocorreram entre

1760 e 1776, na Capitania das Minas Gerais, mais precisamente nas cidades de Curvelo

(duas foram registradas), Mariana e Sabará, durante o período de Reformas Pombalinas,

em que traição e falta de fidelidade ao Monarca, D.José I, foram considerados crimes

que levaram pessoas e instituições a serem questionadas e punidas. Uma característica a

ser evidenciada é que nessas Inconfidências a população local não chegou a se levantar

ou pegar em armas para defender seus interesses, mas buscou conquistar um tipo

próprio de reconhecimento pela Metrópole Portuguesa e teve como ideário comum a

insatisfação com o processo de expulsão dos jesuítas do Brasil e com a concentração de

poderes nas mãos do Marquês de Pombal. Nosso estudo, de caráter teórico-

bibliográfico, associado à reflexão dialética, terá como sustentação as contribuições de

CATÃO (2007), FURTADO (1999A), MONTESQUIEU (2004), VILLALTA (2007)

dentre outros autores que analisaram tais Inconfidências e suas repercussões na vida

colonial da época.

PALAVRAS-CHAVE: Inconfidências Mineiras. Curvelo (1760-1763). Mariana

(1769). Sabará (1775). Repercussões históricas.

1 Trabalho de Aproveitamento da Disciplina de Culturas Políticas e Emancipação Política do Brasil, ministrada pelo Prof.Dr. Luiz Carlos Villalta e solicitado pelo mesmo como requisito final para conclusão desta Disciplina no Doutorado em História- Linha de Pesquisa: História e Culturas Políticas da Universidade Federal de Minas Gerais-MG, no semestre letivo 2011.2

2 Professora Assistente do Centro de Filosofia, Letras e Educação- CONFLE, da Universidade Estadual Vale do Acaraú-UVA, Mestre em Gestão Educacional, Doutoranda em História pela UFMG e Advogada OAB/CE Nº [email protected] Artigo recebido em 25/11/2011. Aprovado em 26/12/2011.

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ABSTRACT: This paper seeks to discuss the Inconfidências Mineiras that occurred

between 1760 and 1776, in the province of Minas Gerais, more precisely in the cities of

Curvelo (two were recorded), Mariana and Sabará, during the Reformas Pombalinas, in

which betrayal and lack loyalty to the monarch, D. José I, were considered crimes that

led people and institutions to be questioned and punished. One feature to be highlighted

is that these Inconfidências local people did not stand up or take up arms to defend their

interests, but sought to gain its own kind of recognition by the Portuguese metropolis

and had the ideas common to dissatisfaction with the process of expulsion of Jesuits in

Brazil and the concentration of power in the hands of the Marquis of Pombal. Our study

of the theoretical literature, associated with the dialectical reflection, will support the

contributions of Cato (2007), Furtado (1999A), Montesquieu (2004), VILLALTA

(2007) among other authors who analyzed such Inconfidências and its impact on

colonial life at the time.

KEYWORDS: Inconfidências Mineiras,. Curvelo (1760-1763). Mariana (1769). Sabará

(1775). Historical repercussions.

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1. INTRODUÇÃO

A Capitania das Minas Gerais figura nos capítulos da História brasileira como

um lugar de reivindicações e de levantes significativos de suas diversas classes sociais

contra o jugo da Coroa Portuguesa e de suas leis em relação à Colônia. Este estudo,

enquanto uma perspectiva de análise teórico-bibliográfica e reflexivo-dialética pretende

discutir as Inconfidências Mineiras que aconteceram em Curvelo (1760-1763), Mariana

(1769) e Sabará (1775), anteriores à de 1789 (Conjuração Mineira) e suas repercussões

históricas, mediante breves olhares dos crimes cometidos, da participação dos

envolvidos, dos interesses em conflitos e das ações da Coroa Portuguesa para solucionar

tais movimentos.

O embasamento teórico será apresentado mediante as contribuições CATÃO

(2007), FURTADO (1999a), MONTESQUIEU (2004), VILLALTA (2007) que nos

permitirão tecer três incursões metodológicas básicas: a) Os Cenários Locais das

Inconfidências e suas Tramas de Interesses; b) Os Crimes e suas Punições pela Coroa

Portuguesa; c) As Teorias Corporativas: Lições de Percurso.

Embora compreendendo a complexidade do difícil esgotamento da temática

esperamos abrir novas trajetórias de sua percepção histórica, de sua projeção social e

política no sentido de observar nas classes sociais das Minas Gerais um celeiro de

combate ao poder da Metrópole, de cisão dos poderes locais e de disseminação de ideias

libertárias no Brasil Colonial.

2. OS CENÁRIOS LOCAIS DAS INCONFIDÊNCIAS E SUAS TRAMAS DE

INTERESSES

Falar das Inconfidências Mineiras que tiveram repercussão histórica antes de

1789 exige uma passagem por três locais desta Capitania: a) Curvelo (arraial

pertencente à Comarca do Rio das Velhas, canal de ligação com a Bahia e centro

econômico de abastecimento, sobretudo, alimentício, às regiões de mineração); b)

Mariana (celeiro de formação religiosa); e c) Sabará (importante região aurífera). Nestes

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locais houve a presença e divulgação de “papéis sediciosos”, atacando a pessoa do rei

D. José I, de seu Ministro Marquês de Pombal e em contraposição à saída da

Companhia de Jesus do país.

Em todos os três locais os interesses eram forjados por sentimentos de

insatisfação, sendo que em Curvelo, na primeira inconfidência o “breve papal” 3 foi

usado para combater a tirania portuguesa e, por esta atividade, foram incriminados o

franciscano Antão José de Maria e o leigo Lourenço Feliz de Jesus Cristo, considerados

inimigos do vigário local; na segunda, o padre Carlos José de Lima foi acusado de

comparar o monarca com os maiores perseguidores dos cristãos. Por sua vez, na de

Mariana, os próprios religiosos foram envolvidos em conflitos internos, de ordem

capitular por disputas de jurisdições, denunciando uns aos outros – o que resultou na

prisão do vigário Ignácio Correa de Sá. Na de Sabará, o ouvidor local, José de Goés

Ribeiro Lara de Morais e o vigário geral, José Correa da Silva, foram acusados de

inconfidência, descaminho de ouro e diamantes, manipulação de cargos públicos e ainda

de “perturbação do sossego dos povos” 4.

Como as inconfidências foram marcadas pela presença de autoridades dos

próprios locais, ocupantes de cargos e com influência no poder vigente, as devassas

foram complexas e polêmicas porque tentaram identificar os entrelaçamentos das teias

favoráveis de condições políticas dos envolvidos.

Nesses processos pode-se apurar que as denúncias eram movidas por disputas

internas nos grupos que destituídos de um lugar de poder queriam a ele retornar,

naqueles que queriam mudar o seu lugar de poder, e também naqueles que, temendo a

perda desse lugar, lutavam por sua manutenção a todo e qualquer custo.

Os populares, em alguns casos, ficavam divididos nestas disputas ou nem eram

mencionados nessas tramas que traduziam um viés colonial do que também ocorria na

Metrópole Portuguesa. Um jogo político entre os anti-pombalinos e os pró-jesuíticos.

No caso de Sabará registrou-se uma “representação” 5 contra os abusos do

ouvidor e do vigário- geral, pelos “vassalos oprimidos” ou “homens bons” da Vila, cuja

3 Era assim chamada a carta oficial escrita pelo Papa à comunidade cristã. 4 Os fatos descritivos em que figuram os crimes cometidos pelos inconfidentes foram assinalados por Catão (2007) no texto base dessa discussão intitulado “Inconfidência (a), jesuítas, e redes clientelares nas Minas Gerais”. 5 Segundo Catão (2007, p.677) a representação foi assinada por “eclesiásticos, militares pertencentes á tropa paga, altas patentes das forças auxiliares, além de bacharéis, todas as pessoas abastadas e influentes”. A representação era um documento onde se pedia ao monarca para solucionar os problemas

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interpretação recaiu sobre a História como uma defesa do povo em face dos fatos em

ocorrência.

2. OS CRIMES DOS INCONFIDENTES E SUAS PUNIÇÕES PELA

COROA PORTUGUESA

Nas Ordenações Filipinas, o Livro V, título 6, trata do crime de "lesa-

majestade"6 , que é definido como de "traição contra o rei". A punição aos que eram

acusados deste crime deveria ser exemplar para afastar da sociedade o mal advindo de

tal prática.

Assim, o governante podia tudo e os seus vassalos deveriam respeitar as leis, as

diferenças hierárquicas e todas as implicações do poder. No crime de inconfidência era

comum o uso de penas que consistiam na prisão, na perda de cargo público, no degredo

para colônias portuguesas na África, ou até mesmo na morte, com o esquartejamento

dos membros do corpo e sua exposição em locais públicos.

Após as devassas concluídas, as punições nessas Inconfidências7 - com todas

as suas dificuldades de realização pelas teias de poder que engendravam principalmente

disputas por cargos políticos – se restringiram às seguintes determinações: em Curvelo,

na primeira devassa, o franciscano Antão de Jesus Maria “fugiu para o mato” e o outro,

irmão-leigo Lourenço de Jesus Cristo foi preso e encaminhado para Vila Rica; na

segunda, o padre Carlos José de Lima foi preso e os que não o denunciaram nos seus

testemunhos também foram condenados ao mesmo crime; na de Mariana, o capitular

Ignácio Correa de Sá foi preso no Seminário da cidade e só saiu de lá com os benefícios

do perdão de 17778, quando todos os demais presos políticos foram libertos em

cumprimento de ordem de D.Maria Mariana. E na de Sabará, houve a prisão dos

da Capitania e que exaltava as virtudes do povo de Sabará ao anotar que “só agora se queixa(va), quando se vê na última ruína”. 6 O crime era tido como tão grave e abominável que era comparado à lepra. A enfermidade da lepra geralmente acometia todo o corpo humano, sem que houvesse cura para tal doença. Mesmo descendentes de leprosos, que não contraíram a doença, eram julgados socialmente pela sua incidencia na família. Como a lepra, a traição contra o rei precisava ser combatida para não se propagar na sociedade e nem inflamar os descendentes daqueles que cometiam tal crime. 7 O crime de Inconfidência, de acordo com Catão (2007) podia se referir a uma verdadeira trama subversiva ou a tão-somente o hábito, que se tornaria recorrente após a expulsão dos jesuítas do Brasil, de proferir blasfêmias, insultos ou impropérios públicos contra o monarca. No período que compreendeu o governo de D. José I em Portugal, este se viu bastante contestado pelos súditos das Minas Gerais, principalmente depois que permitiu a expulsão dos jesuítas em 1759, sendo tal fato comandado pelo marquês de Pombal. 8 AHU, Cx. 113, doc. 25, fl.6.

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acusados - José de Goés Ribeiro Lara (ouvidor local) e José Correa da Silva (vigário

geral)-, o degredo e o seqüestro de seus bens.

Nestes três casos específicos, o panorama político interferiu claramente nas

decisões tomadas pela Coroa Portuguesa, que tinha em suas mãos um dos mais

desafiantes jogos de interesses das oligarquias locais, que, por sua vez divergiam em

seus anseios no interior do mundo colonial.

Punir deveria ser o papel do Estado, representado em suas leis na Metrópole e na

Colônia; no entanto, as leis eram burladas ou redefinidas para ajustar posições, garantir

a permanência do poder ou negociá-lo, quando necessário. Citamos como exemplo o

caso do cargo de ouvidor local de Sabará José Goés Ribeiro Lara9, visto com espanto

pelos que o conheciam de Coimbra e na Corte, quando era secretário de Estado dos

Negócios do Reino Dr. José de Siebra da Silva e dos fatos que provocaram seu crime de

inconfidência, denunciado por Manuel Figueiredo, sobre sua proclamação de “injustiça”

da Coroa com o exílio do ex-secretário para Angola.

4. AS TEORIAS CORPORATIVAS: LIÇÕES DE PERCURSO

As Teorias Corporativistas da Segunda Escolástica exerceram um papel

significativo na montagem das estratégias políticas que fizeram funcionar essas

inconfidências. Elas tinham como princípios a justiça por parte dos governantes, o

respeito às leis, às diferenças sociais de direito e de hierarquias, a capacidade do povo

de honrar o pagamento de tributos, a felicidade no Reino, e a repartição, com a mesma

justiça de prêmios e castigos.

De acordo com Villalta (2007, p.4) essas teorias enunciavam que o poder,

embora tivesse a sua origem em Deus, “não transitava diretamente deste para o Rei,

passando, ao contrário, pela mediação da comunidade, cujo bem estar deveria ser objeto

de cuidado do soberano, o qual, caso se tornasse tirano, poderia ser deposto”.

Visto pelos seus vassalos como um governante tirano, por agir de forma oposta

aos princípios que deveria respeitar e às leis estabelecidas pelo seu próprio governo, o

rei deveria ser “julgado”. Tal julgamento podia significar a perda do seu direito de

governar, corroborado pelo direito de insurreição.

9 No dizer de Catão (2007, p.678) “referido magistrado não possuía nível cultural condizente com o cargo de ouvidor, nem fortaleza de espírito, qualidades tão inseparáveis de um juiz”,

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Os princípios postos nas teorias corporativas convergem com os das luzes,

quando encontramos em Montesquieu (2004, p. 31) que os ”[...] monarcas, cujo poder

parece ilimitado, são detidos pelos menores obstáculos e submetem seu orgulho natural

às lamentações e súplicas”. Nesse sentido, o governo despótico “submete tudo a sua

vontade e caprichos”10, mas sendo juiz de sua própria regra não consegue “regular o

coração de seus povos, e tampouco o seu”11.

Em todas as inconfidências aqui estudadas pode se constatar o cerne entranhado

da insatisfação com os desmandos e negligências da Coroa Portuguesa, cujo governante

era quem menos respeitava suas próprias leis. Sua forma de fazer justiça era

diferenciada entre as categorias sociais; seus prêmios e seus castigos eram direcionados

e suas cobranças, exacerbadas.

Para Portugal era preciso combater os “jesuítas encobertos” 12 nas Minas Gerais,

antes que a Coroa ficasse incapaz de governar. No entanto como as “[...] Redes

clientelares, em muitos casos, extrapolavam os limites da América Portuguesa,

atingindo o Reino e [...] freqüentemente acabavam por infringir as leis do Império

português” (FURTADO, (1999A, P. 46-47) tornava-se difícil combater a política

interna da colônia e suas conexões com as tramas de privilégios da Coroa Portuguesa.

Aos inconfidentes restavam os difíceis papéis de inconformidade, resistência e

luta, com as estratégias políticas possíveis, para deter a extensão do poder da Coroa e a

sua influencia na Colônia.

Ainda no dizer de Montesquieu (2004, p. 32) “nos Estados despóticos, onde não

existem leis fundamentais, não existe também repositário das leis”. Por esse motivo,

nascem e proliferam os corruptos e as corrupções, a preguiça, a pobreza, a ambição e a

morte dos valores morais, ficando o povo na desgraça, entregue a sua própria sorte.

Tais Inconfidências guardavam no seu bojo o desejo de liberdade que aí se

traduzia na compreensão de que as leis, quando justas e bem aplicadas, fomentam a

harmonia social.

10 MONTESQUIEU. (2004, p. 23) 11 MONTESQUIEU. (2004, p. 71) 12 Eram os que não aceitaram a expulsão dos padres da Companhia de Jesus do Império português em 1759. Também foram chamados de pró-jesuíticos. Na assertiva de Catão (2007), de acordo com a documentação contida no AHU (Cx, 91, doc. 29, fl. 1-2) já em 1767, Luis Diogo Lobo da Silva, então governador das Minas Gerais, informou à Corte Portuguesa que havia “jesuítas encobertos” nessa Capitania, e das providências tomadas para combatê-los.

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As idéias das Luzes estiveram presentes nessas Inconfidências, servindo para

combater a política repressora do Estado e suas arenas de perpetuação do poder (as

amizades, os parentescos, os cargos públicos e as corrupções).

5. À GUISA DE POSSÍVEIS CONCLUSÕES

Quando o poder do Rei cai em desgraça, as formas de contraposição a ele se

manifestam e se proliferam, caso não sejam detidas a tempo. No entanto, mesmo

detidas, a História nos mostra que algumas dores ou chagas ainda abertas ressurgem em

outras épocas e com novos fatos como uma “ferida de Narciso” 13, pronta para

reivindicar suas necessidades no seio do poder.

As Inconfidências Mineiras, anteriores à Conjuração de 178914 nos acenam para

o panorama histórico, político e cultural acima descrito. É importante destacar, diante

das dimensões desse panorama, que do ponto de vista histórico criaram um conjunto

preliminar de estratégias para combater o poder monárquico (“papéis sediciosos”); do

político, usaram as armas de troca ou de barganha de influências que eram comuns na

Metrópole, forçando Portugal a ceder para não perder mais em seu próprio terreno de

tramas e intrigas; do cultural, estabeleceram interfaces com as idéias das Luzes, de uma

sociedade que buscava sua liberdade e seu desejo de emancipação.

Os “jesuítas encobertos” em Minas Gerais reconheciam as teorias corporativistas

de poder e agiam de forma a manter em suas práticas uma dinâmica de convergência

com elas. Preceitos retóricos à parte, tais Inconfidências estabeleceram críticas ao

despotismo de Portugal e buscaram deduzir do binômio tirania-despotismo as

possibilidades do direito à resistência.

13 Termo usado no Livro intitulado Ferida de Narciso, um ensaio de História Regional, em que o autor Evaldo Cabral de Melo analisa o domínio holandês em Pernambuco, buscando compreender e explicar as guerras e as negociações com a Coroa Portuguesa e com os Holandeses nessa Capitania, seus desdobramentos sociais, políticos e históricos na formação do nativismo pernambucano e da Historiografia Brasileira. 14 Foram levantadas pelos inconfidentes de 1789 discussões que envolviam aspectos intrigantes e entrelaçados das relações sociais da Metrópole Portuguesa com a Colônia, da propriedade e de uma nova ordem política, embora as aspirações tivessem conotações mais amplas e, em alguns casos, diversas das que foram anteriores a ela.

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Segundo Berstein (1998) as noções de uma possível cultura política estão ligadas

à cultura global da sociedade, sem se confundir totalmente com ela, porque o seu campo

de aplicação incide exclusivamente sobre o político. Ela também determina a

representação que uma sociedade faz de si mesma, do seu passado e do seu futuro. Sua

ação é variada e por vezes, contraditória, fruto da composição de influências diversas,

resultantes de uma mensagem com caráter unívoco.

As Inconfidências mineiras em análise, numa dimensão de culturas políticas,

foram tecendo fios que não desapareceram no tempo e no espaço contra o jugo

português, e embora não se possa asseverar no seu todo e nas suas fragmentações locais

que foram o nascedouro da mais famosa Conjuração das Minas Gerais, elas podem ter

servido para germinar progressivamente o solo mais fecundo de 1789, abrindo os

caminhos necessários aos processos na Colônia de dessacralização da Coroa

Portuguesa.

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AHA- Arquivo Histórico Ultramarino. Caixa 91, documento 29, fl.1-2.

AHA- Arquivo Histórico Ultramarino. Caixa 113, documento 25, fl.6.

CATÃO, Leandro Pena. Inconfidências, jesuítas e redes clientelares nas Minas

Gerais. In: VILLALTA, Luiz Carlos; RESENDE, Maria Efigênia Lage de. História de

Minas Gerais: As Minas setecentistas. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.

____________. As outras Inconfidências Mineiras. Revista História da Biblioteca

Nacional, São Paulo, n. 31, 01 abr. 2008. Mensal. Disponível em:

http://www.revistadehistoria.com.br/v2/home/?go=detalhe&id=1517. Acessada em:

03/12/2011.

BERSTEIN, Serge. A Cultura Política. In Giroux e Sirinelli (orgs). Para uma História

Cultural. Lisboa. Estampa, 1998.

FURTADO, Júnia Ferreira. Homens de negócios: a Interiorização da Metrópole e do

Comércio nas Minas Setecentistas. São Paulo: Hucitec, 1999a

MONTESQUIEU. Do Espírito das Leis. 2ªed. São Paulo: Martin Claret, 2004.

_______________. Cartas Persas. Um Estudo de Abel Grenier. Tradução e Notas de

Mário Barreto. 1ªed. Belo Horizonte: Itatiaia Limitada. Coleção Clássicos Itatiaia.

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VILLALTA, Luiz Carlos. As origens intelectuais e políticas da Inconfidência

Mineira. In: VILLALTA, Luiz Carlos; RESENDE, Maria Efigênia Lage de. História de

Minas Gerais: As Minas setecentistas. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.

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BARBÁRIE DO IMPÉRIO: A POPULAÇÃO INDÍGENA NO CEARÁ NO INÍCIO DO

SÉCULO XIX1

João Paulo Peixoto Costa2

Resumo

Nosso objetivo neste artigo é esboçar um quadro da população indígena no Ceará

oitocentista, por meio de relatos produzidos sobre esta região e seus habitantes no início deste

século. Das condições das vilas e povoações que habitavam, até as leis que os geriam,

buscaremos caracterizar em que medida índios, governo e outros grupos e setores sociais,

através de suas relações, criaram imagens e categorias para esses nativos num lugar onde

ocupavam, ao mesmo tempo, posições culturalmente inferiores e fundamentais para a

economia e desenvolvimento dessa região.

Palavras chave: Índios, Ceará, século XIX.

Resumé

Notre objectif dans cet article est d'esquisser un portrait de la population indigène dans

le Ceará du XIXe siècle, grâce aux rapports produits à partir de cette région et de ses habitants

au début de ce siècle. Des conditions des villes et des villages oú ils habitaient, jusqu’à les

lois qui les geraient, nous chercheront à caractériser la mesure dans laquelle les Indiens, le

gouvernement et l'autres groupes sociaux, par leurs relations, créées les images et les

catégories pour ces indigènes dans un lieux oú ils occupaient, à la même temps, des positions

culturellement inférieures et fondamentaux pour la économies et le développement dans cette

region.

Mots-clés: Indiens, Ceara, XIXe siècle.

1 Este trabalho faz parte da pesquisa “Disciplina e invenção: o processo de civilização e o cotidiano indígena no Ceará (1812 – 1820)”, desenvolvida no Programa de Pós-graduação em História do Brasil na Universidade Federal do Piauí. 2Graduado em História pela Universidade Federal do Ceará. Mestrando do Programa de Pós-graduação em História do Brasil na Universidade Federal do Piauí. Bolsista do programa REUNI de assistência ao ensino. Orientadora: Juliana Lopes Elias. Email: [email protected]. Artigo recebido em 30/11/2011. Aprovado em 12/12/2011.

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Distribuição geográfica

A dispersão populacional entre os índios no Ceará da passagem do século XVIII para

o XIX, provocada pela institucionalização do Diretório Pombalino, tornou bastante difícil

identificar em termos quantitativos e geográficos os grupos indígenas que lá habitavam. Além

disso, o fato da documentação oitocentista ter deixado de utilizar os etnônimos ancestrais dos

grupos nativos constituiu-se como um obstáculo a mais ao trabalho do pesquisador que visa

analisar esses povos a partir de suas organizações étnicas3. Mas as aparentes obscuridades

relativas a esta documentação relevam a enorme quantidade de referências acerca da

importância da participação dos índios na formação social e econômica do Ceará.

De maneira geral, as principais localidades no início do século XIX com significativa

porcentagem dessa população eram os antigos aldeamentos religiosos que, com a instituição

do Diretório, passaram a ser comandados por leigos. Formavam, ao todo, 5 vilas e 3

povoações de índios4: vila Viçosa Real (antiga aldeia da Ibiapaba, atual município de Viçosa

do Ceará), e povoação de Baepina (atual município de Ibiapina), localizadas na serra da

Ibiapaba; vila de Soure (antiga aldeia da Caucaia e atual município de Caucaia), vila de

Arronches (antiga aldeia da Parangaba e atual bairro da Parangaba, em Fortaleza), vila de

Mecejana (antiga aldeia da Paupina e atualmente bairro em Fortaleza), vila de Monte-mor o

Novo da América (antiga aldeia da Palma e atual município de Baturité) e a povoação Monte-

mor o Velho da América (antiga aldeia do Paiacú e atual município de Pacajús), todos estes

localizados dentro ou próximo da atual região metropolitana de Fortaleza; e, por fim, a

povoação de Almofala (atual aldeia da etnia tremembé, no município de Itarema), localizada

no litoral norte da capitania5.

Notemos que a maior parte destas localidades se encontrava nos arredores da capital, a

vila da Fortaleza. Tal observação é um dos indicadores que mostram a grande necessidade

desta mão de obra nativa para a economia da região, principalmente com trabalhos de aluguel

em propriedades agrícolas. Além dos lugares que listamos, havia outras vilas e povoações

com significativa presença indígena, como Aquiraz, Maranguape, Santa Cruz de Uruburetama 3 As atuais análises indigenistas a partir das etnias e troncos lingüísticos têm como influência a sistematização proposta por NIMUENDAJÚ, Curt. Mapa étno-histórico de Curt Nimuendajú. Rio de Janeiro: IBGE / Fundação Cultural Pró-Memória, 1982. 4Vide mapa 01, p. 00. 5 Cf. MACHADO, José de Almeida. Noticia das freguesias do Ceará visitadas pelo P.e José de Almeida Machado no annos de 1805 e 1806, extrahida d’um livro de Devassa que serviu na Visita. In: Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: tomo XVI, p. 191 – 205, 1902.

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(atual município de Itapajé), Parasinho (atualmente distrito de Granja) etc. Somava-se ainda a

essa população os grupos de “gentios” (índios não aldeados) que vagavam na região do Cariri,

nas fronteiras entre as capitanias da Paraíba e de Pernambuco, próximo às vilas do Crato,

Missão Velha e Jardim, e o grande número de índios dispersos, ou seja, que se encontravam

fora de suas vilas de nascimento e, por isso, fora da contabilidade populacional e de um

controle mais minucioso por parte do governo.

Um olhar sobre as vilas e povoações de índios no Ceará

A imagem da capitania aos olhos de viajantes e intelectuais, em se tratando das vilas

de índios, parecia ser bastante lastimosa. Além de pobres, tinham esses lugares, segundo o

engenheiro militar Silva Paulet, as piores condições em termos de edificações, e suas

economias eram tão insignificantes que, para ele, seria melhor extingui-las. Autores como o

antigo governador Barba Alardo de Menezes e o padre José de Almeida Machado, em seu

relatório sobre as freguesias do Ceará em 1805 e 1806, também confirmaram a extrema

pobreza em que se encontravam essas localidades.

Descrevendo cada uma das vilas desta capitania, Paulet também produziu alguns

comentários sobre as de índios. A vila de Mecejana, segundo o autor, era tão carente que “o

escrivão serve quazi por favor, não tirando provisão do governo, porque os emolumentos não

lhe dão para pagar”. Das 59 casas do lugar, 17 não tinham portas e 15 estavam “arruinadas”.

Para ele “seria melhor extinguir a denominação de villa e unir a povoação à villa da

Fortaleza” 6. A de Arronches tinha situação semelhante, já que a casa de câmara de cadeia não

tinha patrimônio, e o escrivão “corre a sorte do de Mecejana, porque o fôro é igual”. E

concluiu: a “villa está arruinada”, contendo 25 casas, e apenas 13 “em estado de habitação

[...]. Seria melhor unil-a com a villa de Fortaleza”. Em Soure a situação se repetia, pois o

“escrivão e o foro estão nas mesmas circunstâncias das duas antecedentes, e a villa seria

melhor extinguil-a” 7.

Já Vila Viçosa Real não tinha nem “caza de camara, nem cadeia, nem patrimônio o

conselho, e nem se póde imaginar principios de que provenha, porque não tem commercio

algum”. Das 148 casas da vila “a maior parte estão arruinadas”, e os “negócios forenses n’esta

6PAULET, Antonio Jozé da Silva. Descrição geográfica abreviada da capitania do Ceará. In: Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: tomo XII, p. 5 – 33, 1898, p. 16. 7 Idem, p. 18.

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villa, e o escrivão, pouca diferença tem das outras villas de Indios” 8. E por fim Monte-mor o

Novo, que a essa época era “quazi toda habitada de extra-naturaes, nome que se dá a todo o

que não é Indio”. Mesmo assim, não tinha “caza de camara, nem cadeia, nem o conselho

patrimônio”, contendo “84 cazas muito arruinadas, muitas cobertas de palha, e muito

insignificantes” 9.

Como vimos, era impossível à elite político-intelectual do império pensar em

desenvolvimento para lugares como estes, onde nem mesmos equipamentos e renda tinham

para se manterem e gerirem. A situação das casas dos moradores era uma mostra da grande

necessidade na qual viviam os índios e outros habitantes dessas povoações, cuja situação era

bem pior que a de outras vilas. Além disso, suas economias pareciam ser insignificantes e os

rendimentos que possuíam mal davam (ou não davam) para suprir as atividades de

funcionários e do próprio funcionamento das câmaras.

Sobre as vilas e povoações de índios, o ex-governador Barba Alardo de Menezes

também traçou algumas considerações, cujo teor não diferia muito da Descripção de Paulet.

Em Soure, disse que seus índios eram “muito pobres”; Arronches tinha uma “soffrivel casa de

camara”; e Mecejana se assemelharia a essas outras em termos de precariedade, tendo em

vista que as “rendas dos conselhos destas trez villas são de pouca entidade” 10. Acerca desta

última, o padre José de Almeida Machado fez questão de frisar, em seu sucinto relatório

produzido a partir de suas visitas feitas às freguesias da capitania, que a sua “Matriz situada

no meio da villa [...] está de todo arruinada em servidão” 11. O relato de Menezes ainda

continuou, e sobre Monte-mor o Novo falou de sua organização militar, que tinha “duas

companhias de ordenanças a Cavallo tão somente, o que prova ainda a sua decandencia” 12.

Além das precárias situações de seus prédios públicos de governo, essas últimas

considerações acrescentam mais dados a esse quadro decadente de “ruína” das vilas de índios.

Os nativos, muito pobres, eram senhores de espaços tão miseráveis e carentes que já nesse

período estavam ameaçados de perderem sua autonomia, com rendas de “pouca entidade”,

igrejas “arruinadas” e companhias de ordenanças “decadentes”.

8 Idem, p. 20 e 21. 9 Idem, p. 29. 10MENEZES, Luiz Barba Alardo de. “Memória sobre a capitania independente do Ceará grande escripta em 18 de abril de 1814 pelo governador da mesma, Luiz Barba Alardo de Menezes.” In: Documentação Primordial sobre a capitania autônoma do Ceará. Coleção Biblioteca Básica Cearense. Fortaleza: Fundação Waldemar Alcântara, 1997, p. 42 e 43. 11 MACHADO, 1907, p. 199. 12 MENEZES, 1997, p. 45.

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Nessas localidades, onde nem mesmo havia casa de câmara, cadeia pública ou

patrimônio que as sustentassem, imperava de forma mais acentuada, em comparação com

outras vilas da capitania, os atos arbitrários, o ingerenciamento político e a falta de execução

das leis, já que não possuíam nem mesmo os equipamentos institucionais para tal. No entanto,

os anseios relativos ao desenvolvimento – que só seria possível, segundo os autores aqui

estudados, através de uma radical reforma administrativa – não partiam dos índios, seus

principais habitantes, e sim do português. Ao mesmo tempo, o próprio governo, que percebia

e nomeava essa “decadência”, não fornecia todos esses elementos que possibilitariam a

esperada renovação. Como mostra a historiografia que trabalha a realidade indígena no Ceará

do século XIX13, a tendência em relação aos projetos políticos indigenistas era, ao invés de

executar uma reforma institucional nas vilas de índios, extingui-las e vincular estes espaços a

Fortaleza, como já havia proposto Paulet no início dos oitocentos. Tais direcionamentos

possibilitaram uma crescente ocupação destas terras por parte da elite fundiária cearense e

uma conseqüente desapropriação, expulsão e perda dos grupos indígenas de seus lugares

ancestrais.

Relatos do cotidiano a partir da visão de Henry Koster

Por não ter um compromisso científico em suas observações, o comerciante anglo-

lusitano Henry Koster produziu um dos mais ricos relatos sobre os índios no Ceará do início

do século XIX, com detalhes sobre seus hábitos, costumes e cotidianos, a partir daquilo que

viu ou ouviu falar sobre eles. Mesmo sem uma cientificidade exacerbada, o texto do viajante

partiu de um lugar social específico14, ao produzir uma imagem do índio que foi “construída a

partir de referências que lhes são estrangeiros”, advindos de uma Europa oitocentista e

“vinculados a opiniões e interesses específicos” 15. Muitas (ou todas) situações descritas

partiram de uma ótica europeizada e profundamente carregada de juízos negativos ou

excêntricos, e nunca de uma visão de total respeito àqueles grupos ditos periféricos, mesmo

quando o autor se esforçou em cobrir-se de certa compreensão ou proximidade. 13LEITE NETO, João. Índios e Terras: Ceará: 1850 – 1880. Tese de doutorado, Universidade Federal de Pernambuco, 2006; VALLE, Carlos Guilherme Octaviano do. Aldeamentos indígenas no Ceará do século XIX: revendo argumentos históricos sobre desaparecimento étnico. In: PALITOT, Estevão Martins (Org.) Na mata do sabiá: contribuições sobre a presença indígena no Ceará. Fortaleza: Secult / Museu do Ceará / Imopec, 2009; XAVIER, Maico Oliveira. “Cabôcullos são os brancos”: dinâmicas das relações sócio-culturais dos índios do Termo da Vila Viçosa Real – século XIX. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Ceará, 2010. 14CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007, p. 66. 15PAIVA, Diego de Souza. Um espelho em construção: o índio na crônica de Jean de Léry (século XVI). Natal: Sebo Vermelho, 2008, p. 95.

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Passando pelas vilas de Arronches, Mecejana e “uma terceira outra, nas vizinhanças,

da qual esqueci o nome [provavelmnete, Soure]” 16, o viajante registrou o dia-dia de uma

população que, mesmo com algumas prerrogativas, vivia numa escala bastante inferior nesta

sociedade. Desprezados até pelos afro-descendentes, os mulatos se consideravam “superiores

aos indígenas, e mesmo os negro-crioulos os olham de alto a baixo” 17.

Em se tratando da organização administrativa, Koster anotou que em cada vila havia

“dois Juízes Ordinários, com função anual. Um Juiz é branco18 e o outro é indígena, e é lógico

supor que o primeiro tem, realmente, o comando” 19. Ou seja, mesmo tendo direito a ocupar

tal cargo, os índios ainda assim ficavam submetidos à diferença social dos brancos.

Sobre os hábitos alimentares e familiares dos índios, os pontos descritos por Koster

mostram detalhes de um cotidiano ainda distante do ideal civilizado que a elite política e

intelectual almejava para aquela região. Percebemos que, em diversos aspectos, os índios

viviam com suas regras e práticas distintas do mundo ocidental disciplinado, economicamente

produtivo, e com seus hábitos e comportamentos sociais definidos. Em relação aos trabalhos

agrícolas, por exemplo, o autor colocou que o “indígena raramente planta para si, e quando o

faz, dificilmente espera a colheita, vendendo o milho ou a mandioca pela metade do preço” 20,

revelando quão distinto era a visão de mundo destes povos quando comparado com o europeu.

Enquanto este mobilizava todo seu cabedal para gerar riqueza e lucro, para o índio a riqueza

não se relacionava com o valor pecuniário, mas a outros elementos que significavam valores

importantes a serem considerados e buscados. “As ocupações favoritas são a caça e a pesca.

Um largo rio pode induzi-lo a ficar por mais tempo” 21, observação de um cotidiano onde o

tempo era percebido de maneira bastante diferenciada no mundo normativo, que entendia

esses costumes como característicos de vadiagem.

16 KOSTER, Henry. Viagens ao nordeste do Brasil. Rio de Janeiro, São Paulo, Fortaleza: ABC Editora, 2003, p. 175 e 176. 17 Idem, p. 178. 18Tal dado é contestável, já que a quantindade de brancos étnicos nesses sertões, cuja ancestralidade não havia passado por misturas com elementos afro-descendentes e indígenas, era escassa. Como conta o próprio relato de Koster, os brancos eram, muitas vezes, mestiços – geralmente pardos, ou recebendo qualquer outra denominação – que havia ascendido socialmente pela posse de algum título político ou militar: “conversando numa ocasião com um homem de cor que estava ao meu serviço, perguntei-lhe se certo capitão-mor era mulato. Respondeu-me: era, porém já não é! E como lhe pedisse eu uma explicação, concluiu: pois senhor, um capitão-mor pode ser mulato?”. Cf. KOSTER, 2003, p. 598. Pelas próprias exigências legais do império português, que “fixavam as condições do homem branco”, criava-se o artifício que possibilitava o recrutamento de mestiços. Logo, mais que um traço étnico, o branco era, muitas vezes, um identificador social. Cf. ELIAS, Juliana Lopes. Militarização indígena na capitania de Pernambuco no século XVII: caso Camarão. Tese de doutorado, Universidade Federal de Pernambuco, 2005, p. 128. 19KOSTER, 2003, p. 177. 20Idem, p. 177 e 178. 21 Idem, p. 178.

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As diferenças também faziam parte de outros aspectos da vida dos índios, como nos

hábitos familiares e na alimentação, mostrando, da mesma forma, uma enorme incompreensão

por parte do observador, fruto desta mesma perplexidade e negação:

São vilmente impassíveis quanto à conduta de suas mulheres e filhas. Parecem ter mediocrilmente os sentimentos afetivos, tendo menos ânsia pela vida e bem-estar dos filhos que qualquer outro homem morador nessa região. As mulheres, mesmo vivendo com homens semibárbaros, não fazem trabalhos pesados. Enquanto a mulher está em casa, ele busca água no rio e lenha no mato, construindo sua cabana, ficando a esposa num refugio pelas redondezas. Viajando, ela carrega os filhos pequeninos, o pote, o cesto, as cabaças, enquanto o marido leva o saco de pele de cabra, sua rede enrolada nos ombros, seu aparelho de pesca, suas armas, e caminha atrás. A criança é banhada, no mesmo dia do nascimento, no riacho ou no poço mais próximo. Homem e mulher são asseados em muito de seus hábitos e, particularmente opostos. Não rejeitam espécie alguma de alimento, devorando a maior parte sem cozinhar, ratos, vermes, cobras, jacarés, tudo é bem vindo22.

Os pontos descritos por Koster acerca da relação de um pai indígena com suas famílias

são exemplares nessa falta de entendimento. Interesses, costumes e prioridades diferentes

eram tidos pelo autor como vil impassividade em relação à conduta das mulheres (que não

tinham o mesmo recato das ocidentais), mediocridade afetiva ou até falta de ânsia pelo “bem

estar dos filhos”. Porém, mesmo admitindo um estado “semibárbaro” entre eles, percebeu

uma diferenciação em relação às tarefas diárias, onde a mulher não fazia “trabalhos pesados”.

Outro ponto importante deste trecho é em relação à higiene dos índios, que mesmo sendo

“asseados em muito de seus hábitos”, não rejeitavam “espécie alguma de alimento, devorando

a maior parte sem cozinhar”.

De acordo com o que foi descrito pelo viajante, tais costumes poderiam ser

interpretado pelos ocidentais desse período como frutos de uma índole inconstante.

Remetiam, porém, a práticas culturais anteriores aos contatos, num universo distante dos

meios urbanos, das doenças europeias e com outras maneiras de gerir os elementos que os

rodeavam. Uma visão europeia, de um ocidente cujas concepções de mundo estavam

fortemente ligadas à disciplina cotidiana e à civilização dos costumes, de cunho científico ou

não – como era a de Koster – que percebia estas ações e relações indígenas enquanto um

estado de “barbárie”, de um povo que, mesmo colonizado havia séculos, não teria o seu

22 Idem, p. 178 e 179.

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processo civilizatório concluído. Tal choque cultural expresso no relato, carregado de

diferenças e incompreensões, resultava numa inferiorização do outro, por não conceber ou

compreender as suas atitudes e manifestações, e que por isso justificava a dominação

ocidental sobre estes grupos ameríndios, em sua missão de transformar estes povos, refinar

suas maneiras e, consequentemente, pacificar o império23.

Os índios desse Ceará oitocentista, por outro lado, não eram a decorrência de um

processo civilizador mal-sucedido ou incompleto, mas agentes mestiços cujas leituras do

mundo lhes possibilitavam, de forma persistente, resistir culturalmente num mundo que lhes

demandava mudanças cotidianas radicais, através da permanência de hábitos cuja lógica

remetia a tempos e vivências ancestrais. Não se trata de defender uma utópica dicotomia entre

um estado aculturado e uma pureza original (já que esta não existia, nem mesmo no período

pré-cabralino): ao contrário, é preciso analisar estes grupos enquanto protagonistas de uma

lógica mestiça que se inseria, a seu modo, no universo colonial – ao apropriar-se de seus

elementos, ao mesmo tempo em que resistia em suas próprias práticas cotidianas – e que

nunca se “civilizou” ou “disciplinou” da forma idealizada pelo colonizador24.

Em relação às características físicas dos índios, o autor traçou diversos comentários

relativos à estatura, cor de pele e cabelos, formato de membros etc. Eram fortes, mas sem

“muita robustez” 25, e possuidores de uma extrema destreza, “acima dos outros viventes, para

encontrar seu caminho através da floresta e chegar a lugar certo sem marcas e estradas [...].

Encontram pegadas impressas nas folhas murchas, tombadas das árvores”. Por conta dessas

habilidades, os indígenas eram requisitados em uma série de serviços pelas autoridades, como

no caso da busca de algum criminoso, onde os índios eram “enviados em sua perseguição

como um último recurso” 26.

Outras atividades para as quais os nativos eram recrutados eram as de guias e

carregadores, pois estariam “exelentemente adaptados, pelos seus hábitos de vida errante que

essas ocupações exigiem”. Todavia, estavam segundo o autor...

...comumente inclinados a trapaçar [...]. Jamais pude confiar por muito tempo em sua presença no trabalho. [...] Quando tinha algum serviço com tempo marcado para terminar, o meu feitor contava sempre com

23 ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Volume 1: uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994, p. 62. 24BOCCARA, Guillaume. Antropologia diacrónica. In: Nuevo Mundo Mundos Nuevos. 2005. Disponível em: <http://nuevomundo.revues.org>, p. 07. 25 KOSTER, 2003, p. 181. 26Idem, p. 179.

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os negros e mulatos, não incluindo na relação os índios que serviam comigo, e quando lhes observava, respondiam: caboclo é só para hoje, mostrando que não é possível ter-se confiança27.

Por mais que o contato e a dominação europeia já se faziam havia mais de 150 anos no

Ceará, a população indígena de então continuava a praticar e manter certas características do

modo de vida de seus ancestrais. Mesmo que requisitados a exercerem serviços dentro de uma

lógica completamente diferente do universo anterior à chegada dos portugueses, as noções

relativas ao tempo e à urgência do trabalho por parte dos índios ainda não estava dentro do

idealidado pelo projeto civilizador do império. Este aparente “marasmo”, “indisciplina” ou

“falta de compromisso” por parte dos índios vinha de sua própria capacidade de resistir ao

mundo normativo onde eram forçados a viver. A sociedade disciplinar, que a elite política

portuguesa pretendia instalar no Ceará oitocentista, convivia constantemente com a invenção

cotidiana dos índios – e existia por conta dela – que se apropriavam deste universo e resistiam

a ele de diversas maneiras.

Por conta desse contexto, a população indígena no Ceará se encontrava no centro dos

dilemas em torno dos projetos de desenvolvimento da capitania. Se, por um lado, era – ou

poderia ser – a maior força de trabalho dentre os grupos sociais dessa região, estava longe de

estar plenamente controlada e disciplinada pelo governo. Por essa situação, a capitania do

Ceará foi a que por mais tempo se utilizou do Diretório Pombalino como legislação base para

gerenciar e controlar os índios de seu território

A lei do trabalho: o Diretório Pombalino no Ceará do século XIX

Instituído por iniciativa do Marquês de Pombal em maio de 1757, o Diretório marcou

o fim do poder temporal dos religiosos – em sua maioria jesuítas – sobre os índios no Brasil.

Ao abolindo e substituir o chamado Regimento das Missões, essa nova legislação pretendeu

agir de forma mais intensa na civilização dos povos nativos e na sua conseqüente integração

na sociedade portuguesa. Atacando em diversas frentes, o Diretório dos Índios, como também

era chamado, foi um projeto “ambicioso” e “extremamente abrangente, pois cobre o plano

religioso, cultural, administrativo e sobretudo econômico” 28.

27 Idem, p. 180 e 181. 28 BEOZZO, José Oscar. Leis e regimentos das missões: política indigenista no Brasil. São Paulo: Edições Loyola, 1983, p. 127.

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Na busca de acentuar as transformações culturais já intentadas pelos jesuítas, os novos

direcionamentos indigenistas entendiam que era preciso uma interação mais profunda dos

povos indígenas no meio social ocidental, algo que não seria possível com o isolamento dos

nativos nas aldeias e com o “monopólio” dos religiosos. Não só o contato com brancos foi

estimulado, como também os casamentos interétnicos29, além da obrigatoriedade da mudança

dos nomes dos indivíduos e dos grupos para o português30.

A determinação legal de ocidentalização das nomenclaturas estava diretamente

relacionada à negação cultural e identitária dos grupos indígenas por parte do governo.

Segundo Marcus Carvalho, o “interesse em distinguir as nações por suas raízes étnicas

perdera-se na primeira metade do século dezenove”, quando os índios “passaram a ser

identificados apenas pelo local onde estavam aldeados”31. Os nomes dos indivíduos, ao serem

batizados em português, também eram utilizados com o objetivo de diluir etnicamente esses

povos, na busca de desvinculá-los cada vez mais intensamente de suas manifestações e

tradições ancestrais. Com estas ações, se intentava sistematicamente absorvê-los enquanto

súditos da coroa lusitana, com o fim de misturá-los com a “massa geral da população”,

mesmo que em longo prazo. Do início ao fim do século XIX podemos constatar alguns

resultados, mesmo que arbitrários e imprecisos, destas ações populacionais: enquanto na

contabilização de Barba Alardo de Menezes, de 1814, os índios representariam menos 10% da

população na capitania cearense32, os registros eclesiásticos das localidades indígenas na

Ibiapaba deixaram de referenciar a denominação nativa em 188833.

No campo administrativo, as aldeias foram elevadas a vilas – mesmo sem as

necessárias condições populacionais ou comerciais – e, no lugar da administração dos

missionários, surge a figura do diretor, responsável pelo controle dos habitantes, pela boa

convivência, pela prática dos “bons costumes” e da moral, e não menos importante, pelo

incentivo ao trabalho e ao comércio34.

29 Cf. DIRECTORIO, que se deve observar nas povoações dos indios do Pará, e Maranhão, Em quanto sua Magestade naõ mandar o contrario. In: BEOZZO, José Oscar. Leis e regimentos das missões: política indigenista no Brasil. São Paulo: Edições Loyola, 1983, §80 e §88, p. 34 e 36. 30 Isso é claramente notado nos documentos oficiais do início do século XIX, onde os etnônimos tribais desaparecem – como potiguaras ou paiacús – dando lugar às referências ligadas às vilas. Por exemplo: “o índio de Soure”, “os índios de Monte-mor o Velho” etc. Cf. Idem, §06, p. 03 e 04. 31CARVALHO, Marcus J. M. de. Os índios e o Ciclo das Insurreições Liberais em Pernambuco (1817-1848): Ideologias e Resistências. In. ALMEIDA, Luiz Sávio de. GALINDO, Marcos. Índios do Nordeste: Temas e Problemas – III. Maceió: EDUFAL, 2002, p. 76. 32MENEZES, 1997. 33XAVIER, Maico Oliveira. “Cabôcullos são os brancos”: dinâmicas das relações sócio-culturais dos índios do Termo da Vila Viçosa Real – século XIX. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Ceará, 2010, p. 221. 34Cf. DIRECTORIO, 1983, §02 e §01, p. 01 e 02.

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Desde a instituição do Diretório Pombalino, e o processo de laicização dos espaços

indígenas, o governo procurou, de forma mais intensa, regular a utilização dessa população

como mão de obra em diversos setores de produção e serviço. De acordo com Koster, por

mais que um diretor “possa dar, ocasionalmente, maus-tratos ao indígena, essa raça não está

escravizada. O índio não é obrigado a trabalhar, para qualquer pessoa, sem querer, e não pode

ser vendido” 35. De fato, essa legislação reforçou a interdição da escravidão indígena –

inclusive proibindo a utilização do termo “negro” para se referir a eles – e o incentivo ao

trabalho livre36. Na análise de Beozzo, o objetivo primeiro do Diretório era o

“estabelecimento e fortalecimento do Estado”, sendo que o comércio seria o “instrumento

fundamental desta política”, com a contribuição da “expansão agrícola para garanti-lo e

municiá-lo” 37. Para Silva, trabalho e comércio eram “matérias centrais” dessa legislação,

onde os “princípios do liberalismo comercial estão explicitados e é a partir deles que são

estabelecidas as normas para o desenvolvimento da atividade comercial” 38.

Podemos concluir que, no entender do governo português, a atividade comercial,

baseada nos trabalhos agrícolas, agiria como um bem ao império de duas maneiras:

desenvolveria a sua colônia americana e traria a civilização aos índios. Seria pelo trabalho,

com a devida remuneração e disciplina, que os nativos poderiam sair definitivamente do

gentilismo e ingressar no mundo ocidental como vassalos dignos e fiéis. A história da política

indigenista no Ceará colonial e joanino é um exemplo da intensa associação do Diretório com

o comércio, a agricultura, e a tentativa de transformação dos nativos em mão de obra: ao

mesmo tempo em que estava “arruinada” em diversos aspectos – inclusive econômicos – esta

capitania tinha uma forte presença de índios em sua composição social. Ou seja, a questão do

trabalho indígena era tão latente em território cearense que o Diretório foi utilizado até

meados do século XIX, enquanto que a nível imperial, foi revogado em 1798.

Por conta dessas necessidades comerciais e civilizatórias, este “liberalismo” presente

nos artigos desta legislação não instituiu uma plena liberdade para os índios. Mesmo não

podendo ser vendidos e tratados como escravos, os índios não estavam isentos de coerção e

maus-tratos por parte de diretores e proprietários. Na verdade, longe de “protegê-los contra o

trabalho forçado”, o regimento pombalino “obrigava os Principais das Povoações a entregar

quantos índios fossem requisitados pelos moradores para servir aos seus interesses

35 KOSTER, 2003, p. 181. 36 Cf. DIRECTORIO, 1983, §10, p. 05. 37BEOZZO, 1983, p. 126. 38SILVA, Isabelle Braz Peixoto da. Vilas de Índios no Ceará Grande: Dinâmicas locais sob o Diretório Pombalino. Campinas: Pontes Editores, 2005, p. 82.

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particulares”. No entender de Beozzo, ao invés de “suprimir o sistema de repartição da mão-

de-obra”, o Diretório “tornou-o mais duro, áspero e isento de qualquer limite” 39.

O Ceará do início do século XIX continuou a usar da coerção sobre a força de trabalho

indígena para continuar sustentando sua incipiente economia através do aval do Diretório.

Mais do que um “vazio de legislação” 40, a aplicação das leis pombalinas nesta capitania se

deu muito mais pela continuação da importância e necessidade da mão de obra indígena. E

como desdobramento, a reação por parte dos índios também prosseguiu, com as contínuas

fugas e tentativas de saída das vilas e dos olhares dos diretores. Tendo sido “prática bastante

comum durante o período em que estiveram vigorando as Leis do Diretório”, a chamada

“dispersão populacional” pelo território representou, para muitos nativos, um dos meios de

“livrarem-se da submissão ao trabalho compulsório e ao cruel jugo das leis”, tidos pela elite

política do império como “caminhos mais indicados para a consolidação do processo de

civilização entre esses povos” 41.

Diante desse quadro geo-populacional, é complexo avaliar, mesmo que de forma

aproximada, qual seria a porcentagem de índios na população do Ceará desse período. O

mapa produzido por Lígio Maia, a partir dos apontamentos presentes no relato de Barba

Alardo de Menezes42, por exemplo, mostra que a população indígena no Ceará era de apenas

9,77% do total, bem inferior a quantidades de pretos (18,62%) e mulatos (37,01%)43, numa

capitania onde a “utilização do trabalho escravo [...] foi historicamente insignificante” 44.

Conclusão

O cenário de enfraquecimento econômico, “ruína” em diversos outros aspectos,

necessidade de mão de obra, urgência em civilizar a população, encaminharam os

governadores do Ceará do início do século XIX a agir de forma intensiva com políticas de

controle e monitoramento dos habitantes, especialmente sobre os índios. Com uma enorme e

imprecisa quantidade de nativos habitando fora de suas vilas e circulando pelos sertões – com

39 BEOZZO, 1983, p. 66. 40CUNHA, Maria Manuela Ligeti Carneiro da. Política indigenista no século XIX. In: CUNHA, Maria Manuela Ligeti Carneiro da (Org). História dos índios no Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 1998, p. 138; LEITE NETO, 2006, p. 99. 41LEITE NETO, 2006, p. 101. 42MENEZES, 1997. 43Cf. MAIA, Lígio José de Oliveira. Serras de Ibiapaba. De adeia à vila de índios: vassalagem e identidade no Ceará colonial – século XVIII. Tese de doutorado, Universidade Federal Fluminense, 2010, p. 385. 44 PINHEIRO, Francisco José. Notas sobre a formação social do Ceará: 1680 – 1820. Fortaleza: Fundação Ana Lima, 2008, p. 200.

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destaque para os grupos de “gentios” que vagavam nas fronteiras com Pernambuco e Paraíba

– as lideranças políticas procuraram, com fortes influências das idéias iluministas, transformar

esse inóspito rincão do império português em um local adequado ao projeto explorador

metropolitano.

Nesses projetos, a importância da população indígena foi marcante, e a documentação

oficial revela esse fato. A análise que desenvolvemos em nossa pesquisa dos registros

relativos ao governo Sampaio no Ceará, entre 1812 e 1820, tornou possível tecer a complexa

rede que se entrançou neste período através da política indigenista, em busca de fazer dos

índios que lá habitavam súditos disciplinados, que pudessem servir ao rei e desenvolver a

capitania por meio de sua força de trabalho. Por outro lado, mesmo sendo diretamente

afetados por esse tecido, os índios também foram seus artesãos, manipulando os elementos –

novos e antigos – que se desenhavam ao seu redor. Ainda que não pudessem eleger

livremente os elementos formadores de suas culturas e cotidianos, os grupos nativos se

utilizaram desses mesmos elementos, frutos da coerção legal e política, para criarem espaços

de negociação e reivindicação45. As investidas do governo, em suas idas e vindas,

dependeram e se comportaram a partir das ações indígenas, que manipularam, ao seu modo,

aquilo que lhes era imposto em prol de seus próprios interesses. Essa complexa história, de

disciplina e invenções, foi feita pelos choques, convivências e agregações de todos os lados,

tanto do governo, como também dos índios.

Fontes impressas

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MENEZES, Luiz Barba Alardo de. “Memória sobre a capitania independente do Ceará grande

escripta em 18 de abril de 1814 pelo governador da mesma, Luiz Barba Alardo de Menezes.”

45 BOCCARA, 2005, p. 02.

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OLHAR, OUVIR E DESVELAR: FRAGMENTOS DA CIDADE NO ÁLBUM DO CENTENÁRIO DE SOBRAL – 19411

Luciana de Moura Ferreira2

RESUMO

Este artigo visa discutir as comemorações do Centenário de Sobral – CE, a partir de

duas imagens representadas no “Álbum Comemorativo do Primeiro Centenário da

Cidade de Sobral”, no ano de 1941, buscando compreender como os habitantes da

cidade apreendiam as representações da cidade, que eram produzidas e veiculadas por

seus ordenadores. Nesse sentido, optamos pela utilização das fotografias como fonte

desencadeadora das memórias. A escolha de apenas duas das imagens veiculadas no

álbum, nos permitiu compreender a multiplicidade de sentidos que a cidade assumiu na

memória social de seus habitantes. Portanto, buscamos compreender como dentro das

narrativas sobre a trajetória de suas vidas esses espaços, fixados pelas lentes dos

fotógrafos, são referenciados nas narrativas de nossos depoentes, ressaltando que os

mesmos não fazem parte de uma classe única, mas sim de lugares distintos dentro da

sociedade do período.

PALAVRAS – CHAVES: Imagens. Memória social. Centenário de Sobral.

1O texto é parte de uma discussão feita em nossa dissertação de mestrado, “Imaginário e representação no álbum do Centenário de Sobral - 1941”, junto ao Mestrado Acadêmico em História da Universidade Estadual do Ceará – UECE.

2 Luciana de Moura Ferreira. Mestre em História pela Universidade Estadual do Ceará – UECE/ Prof. Colaboradora do Curso de História da Universidade Estadual Vale do Acaraú – UVA.

Artigo recebido em 15/12/2011. Aprovado em 22/12/2011.

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ABSTRACT

This article aims to discuss the celebrations of the Centenary of Sobral-CE from two

images represented in the "Memorial Album of the First Centenary of the City of

Sobral," in 1941, seeking to understand how the inhabitants of the city seizing the

representations of the city, that were produced and aired by their officers. Accordingly,

we chose to use the photographs as a source of triggering memories. The choice of only

two of the images broadcast on the album, allowed us to understand the multiplicity of

meanings that the city took on the social memory of its inhabitants. Therefore, we seek

to understand how within the narratives about the trajectory of their lives these spaces,

fixed by the lenses of photographers, are referenced in the narratives of our

interviewees, emphasizing that they are not part of a single class, but from different

locations within the society of the period.

KEY - WORDS: Images. Social memory. Centenary of Sobral

Nesse artigo, buscamos compreender como dentro das narrativas sobre a

trajetória de suas vidas os espaços, fixados pelas lentes dos fotógrafos, são referenciados

nas narrativas de nossos depoentes, ressaltando que os mesmos não fazem parte de uma

classe única, mas sim de lugares distintos dentro da sociedade do período. Assim,

pensamos ser possível captar a memória social desses narradores, a partir das

experiências e das vivências que mantiveram com os espaços da cidade de Sobral,

gerando uma fusão das narrativas de pessoas de lugares sociais distintos, sobre a cidade.

Além de pensar essas imagens como um processo, devemos pensá-las não como um

repositório de fatos ou semelhanças, mas sim como uma linguagem, uma memória

social que “torna-se concreta apenas quando mentalizada ou verbalizada pelas

pessoas”3.

Pensando a partir de Portelli, compreendemos que cada individuo constrói suas

memórias a partir das suas experiências, e ao serem verbalizadas elas vão sendo

organizadas e ganhando sentidos que ao serem relacionadas com a memória de outros

3 PORTELLI, A. Tentando aprender um pouquinho. Algumas reflexões sobre a ética na História Oral. Projeto História: Ética e História oral, 15. P.13-33, 1997. p.16.

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grupos ou mesmo com a memória oficial, nos permite estabelecer relações entre a

memória social e a memória coletiva dos habitantes de Sobral.

Reconhecendo que a memória é fruto das experiências vivenciadas por seus

narradores, pensamos ser ela um espelho do indivíduo ou do grupo em que este está

inserido, sendo dessa forma construída a partir de seus valores. Desse modo

justificamos a presença de indivíduos de classes diferentes nessa pesquisa, forma de

captar a cidade de Sobral, na década de quarenta do século passado, a partir do

entrecruzamento das visões de seus habitantes.

Afinal, o intuito do historiador é desconstruir as narrativas da memória oficial,

é desconfiar das representações e dos discursos por elas proferidos, “é buscar revelar,

mesmo que á custa de algum mal estar, as redes de poder, as relações de imposição, os

processos de ocultamento” 4, para dessa forma lançar novas discussões sobre os

processos de construção das memória oficiais da cidade.

A ativação da memória é um olhar sobre o passado de uma outra forma, é

trazer para o presente as experiências vividas, é produzir um discurso, nesse sentido nos

colocamos como psicanalistas5 de nossos depoentes, reativando emoções e intimidades

das experiências coletivas dos narradores, assim “ a memória modifica os objetos, as

investigações, as abordagens e, também a escrita da história”6

O trabalho com as narrativas nos fez perceber momentos de tensão entre

fragmentos e totalidades das experiências dos depoentes. Os mesmos revelavam em

alguns momentos a existência de minúsculas vivências em alguns espaços, mas que

ganhavam extensão espacial, ao serem reativadas pelo ato de lembrar, como se

reunissem fragmentos na constituição de suas percepções sobre seu cotidiano

relacionando-as com as experiências da coletividade na cidade. O Sr. Raimundo Xerez,

4ARAUJO; FERNANDES. Maria Paula &Tania Maria. O diálogo da História Oral com a historiografia contemporânea. IN:VISCARDI, Claúdia M. R. História oral: teoria, educação e sociedade. Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2006, p.29.

5 Sobre psicanalistas e a produção historiográfica ver: SANTOS. Nádia Maria Weber, Histórias de vidas ausentes: a tênue fronteira entre a saúde e a doença mental. Passo Fundo: Ed. Universidade de Passo Fundo, 2005.

6D’ALÉSSIO, Márcia Mansor. Intervenções da memória na historiografia: Identidades, subjetividades, fragmentos, poderes.IN: Proj. História, São Paulo, (17), nov. 1998, p. 275.

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é um desses narradores do cotidiano de Sobral, nascido no seio da sociedade, gostava de

quebrar regras, e por isso circulava por todos os espaços da cidade, conhecendo seus

sentidos e deles absorvendo experiências, as quais são descritas por ele como ‘diversão’,

essas sensibilidades do cotidiano da cidade são expressas na sua fala;

Olha, eu nasci em quarenta e oito, minha mãe teve dessesete filhos, mas só eu me criei, ela era professora, daquelas que ensinava em casa. Era uma das melhores, a gente morava ali, num casarão onde hoje é a praça da Meruoca. A sociedade era boa, as festas no Pallace eram um luxo só! Lembro que as mulheres mandavam vir as roupas e as jóias lá do Rio de Janeiro, usavam perfume francês, tinha até um jornalista, não lembro o nome dele, mas ele dizia que só ia pra festas no pallace pra sentir o perfume das mulheres. Só entrava a sociedade, o resto do povo não podia entrar, mesmo se tivesse dinheiro, ai ficavam tudo no sereno, olhando as pessoas chegar, vendo as roupas, os carros (...) os pobres não entravam mesmo, tinha o clube deles, O clube dos Vinte, eu ia pros dois, mais lá eles ficavam me olhando, não gostavam também que a gente fosse pra lá, mais eu não me importava eu ia mesmo! Eu gostava era de me divertir, então eu ia mesmo, mesmo que eles não gostassem, nem que as pessoas da sociedade também não gostasse(...)7

Um ponto perceptível na narrativa de Xerez é o fato de quebrar as regras

impostas silenciosamente pela sociedade. A existência de espaços distintos para

públicos específicos, fazia com que nele, membro do grupo denominado de ‘os

brancos’, despertasse o desejo de ruptura das regras, era preciso vivenciar as diversas

experiências que a cidade lhe oferecia, mesmo não sendo bem aceito no “Clube dos

Vinte”, por ser ‘branco’, era lá que ele quebrava as regras, mesmo não sendo aceito.

A ação do narrador de quebrar as regras estabelecidas pela cidade, revela a

festas dos “brancos”, ele como branco podia circular em ambos os espaços, mesmo não

sendo bem aceito. As percepções que o mesmo relata apontam para um distanciamento

do que as imposições da época pregavam para alguém que fazia parte dos “brancos”, ou

7 Narrativa de Raimundo Xerez, 62 anos, comerciante. Entrevista realizada em janeiro de 2010, Sobral.

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seja o mesmo aceitava os costumes, no entanto acreditava que a diversão estava fora dos

espaços a ele reservado.

O clube dos vinte era assim, um clube num era tão bonito como o Pallace, mas tinha banda de musica, as mulheres iam todas bem arrumadas e bem perfumadas, ficavam lá dançando. Tinha aqueles que não entravam ficavam na porta só olhando, mas não entravam porque não queriam! Os comerciante iam pra lá, os que não pudia entrar no Pallace! Então todo mundo era bem arrumado também e divertido, eu sempre gostava de ir pra lá! No Pallace eu só ia quando tinha aquelas operas, ou os cantores importantes, mais eu sempre ficava olhando o povo entrar, gostava de ver era todos tão bem arrumados (...) Quando queria me divertir de verdade eu ia pros cabarés, era lá que se encontrava o povo de verdade, sabe aqueles que gostavam de brincar mesmo, lá ia todo mundo, os brancos e os pobres(...) Mas também tinha os melhor, aqueles que só ia quem tinha dinheiro pra gastar com as mulheres, mas ai a sociedade não dizia nada, porque todo mundo ia, mas ninguém falava(...)8

O narrador, em questão, fazia parte do grupo privilegiado da cidade, dispunha

de boas condições econômicas, viveu a vida toda em Sobral. Percebe-se, através de sua

narrativa, seu gosto pela diversão e pouco respeito às distinções sociais impostas pela

classe, freqüentava a cidade em busca de experiências e de aventuras. Através de seu

depoimento podemos depreender a cristalização de sensibilidades na forma como

entendia a cidade, ou seja, conhecia as imposições sociais, mas não se prendia a elas.

Dessa forma, foi testemunha ocular de muitas transformações pelas quais a cidade

passou, mas também personagem de experiências múltiplas, já que circulava por todos

os espaços da cidade. Sua experiência pode ser pensada como a de um observador dos

costumes da cidade, já que por vivenciá-los sem preconceitos ou julgamentos prévios,

conta a sua vida cotidiana na cidade sem julgamentos ou defesas de discursos oficiais.

Pensar sobre a trajetória de Xerez na cidade, é pensar na percepção do narrador

sobre a heterogeneidade da cidade e de seus discursos, é compreender a formação de

uma memória sobre a cidade, onde são respeitados os diversos discursos produzidos

sobre ela, e ao mesmo tempo, referenciar a importância da sua experiência como

8 Narrativa de Raimundo Xerez, 62 anos, comerciante. Entrevista realizada em janeiro de 2010, Sobral.

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narrador, ou seja, a atualização das memórias faz com que o mesmo aponte para as

pluralidades das formas de vivenciar Sobral.

Importa aqui destacar que o espaço responsável por essas lembranças, por

trazer-lhe, a mente e aos sentidos, visão e emoções, por essa revelação de sensibilidades

relacionadas há aproximadamente cinco décadas. O espaço responsavel pelo ativamento

dessas lembranças está fixado numa fotografia, essa entendida por nós como

representação, fruto da escolha de um grupo e cristalizada numa fotografia do álbum do

centenário.

A utilização das imagens na pesquisa histórica, foi amplamente difundida a

partir da decada de 1970, com o aprofundamento da história cultural, que possibilitou

aos historiadores uma série de possibilidades de uso das imagens e do cinema não

apenas como objeto de estudo das artes, mas como possibilidade de compreensão dos

papéis que estas assumiam na sociedade em que eram produzidas. Nesse sentido, essas

passaram a ser compreendidas como parte das experiências de seus produtores, como

uma representação das suas ideologias, levando assim a uma compreensão critica dos

sentidos latentes que essas carregam em suas formas, destacando as escolhas que seus

produtores fazem, ao selecionar temáticas e espaços, para representarem ideologias e

vivências do grupo social em que estão inseridos.

Dessa forma, as imagens, oferecem ao historiador e a seus observadores

“aspectos da visualidade de uma cidade em muito da sua pulsação em uma determinada

época histórica”9 apontam seus costumes, seus hábitos, suas gentes e suas

sociabilidades, apontam os desejos vinculados como representações de seus anseios de

transformação.

As imagens como objeto de representação despertam percepções adormecidas

pelo tempo, reativam experiências e sentidos adormecidos pelo cotidiano, atualizam

experiências, pois “o fato narrado torna ser vivenciado, reinterpretado”10, portanto

reconstruído, nesse sentido passa a ser entendido como contemporâneo da narração e

9CABRAL FILHO, Severino. Da fotografia e da lembrança de velhos: a cidade revelada. In: SAECULUM- Revista de História (18); João Pessoa, jan/jun.2008, p.47-54, p. 48.

10ARAÙJO, Op. cit, p.25.

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não apenas do acontecimento. Concluímos assim que o desencadeamento das memórias

a partir das imagens, ocasiona uma rearticulação das experiências, que são

resignificadas pela temporalidade, e pela a relação que os narradores desenvolveram ao

reativar essas memórias.

A imagem como objeto de memória traz a tona experiências e espaços que não

estão nela representados, reativa a memória para os costumes de Sobral, na década de

1940, época em que os espaços de sociabilidade eram divididos por leis nunca

instauradas, mais conhecida por todos os habitantes da cidade. Essa capacidade da

imagem de revelar o não representado na imagem é a riqueza oferecida pelo cruzamento

entre imagem e memória.

Zuleica Viana11 nasceu em Sobral, pertencente a ‘elite de Sobral’, como a

mesma afirma, passou a infância em meio as convenções sociais que a cidade lhe

permitia. Participava da vida social e cultural da cidade ativamente, fez teatro,

freqüentou os cinemas e as praças mais em voga no período, além de freqüentar as

festas no Pallace Club. Como funcionária da prefeitura e depois concursada do Banco

Comercial, considera-se privilegiada, pois tivera acesso a uma boa educação e a

melhores condições de trabalho, em uma cidade onde a pobreza não foi excluída pelo

decantado progresso.

Suas narrativas sobre a cidade apontam para o saudosismo de uma “idade de

ouro” por que a cidade passou, em suas narrativas parece reviver aqueles momentos de

glória que costuma narrar, deixando nítido em suas falas a diferenciação dos espaços e

das classes que os ocupavam.

No meu tempo, as festas no Pallace era um acontecimento, havia uma entrada assim, com umas cordas por onde as pessoas entravam, vinham todas de vestidos lindos, com luva e perfume francês. O povo se vestia muito bem, tudo era importado, tinha dinheiro e mandava vir de fora! As festas lá no Pallace eram só pra quem era sócio, mesmo que tivesse dinheiro, não entrava! 12

11Narrativa de Zuleica Viana, secretária. Entrevista realizada em fevereiro de 2010, Sobral.

12 Narrativa de Zuleica Viana, secretária. Entrevista realizada em fevereiro de 2010, Sobral.

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Palace Club13

Para a narradora, a cidade era o espaço da riqueza e da diversão, o povo só

aparece como espectador das ações dos “brancos”, o requinte e o luxo são as marcas que

mais ficaram em sua memória. Das lembranças dos bailes que frequentava, ainda é

capaz de sentir o cheiro do perfume francês que as mulheres usavam, gostava de

vislumbrar a vida na cidade, como enfatiza em suas narrativas. É capaz de lembrar

situações que talvez passassem despercebidas por outrem, mas para ela que estavam

13 Fachada do Palace Club publicada no Album Comemorativo do Centenário de Sobral.

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imersas do sentido de orgulho e de sobralidade, ainda são fragmentos nítidos na

memória, que marca o real sentido, das relações de poder mantidas naquele espaço.

Uma vez uma moça negra mesmo, o pai dela tendo dinheiro, ela era doida pra ir pras festas lá, mais não podia só podia quem era sócio, ela decidiu que ia, se arrumou toda, com jóias e vestido, botou perfume francês e entrou! Quando ela tava lá no meio do salão vieram os segurança e levaram ela pra fora! O clube dos pobres, era o clube dos vinte, depois passou a ser o clube dos artistas, lá ia o povo que não podia freqüentar as Festas no Pallace.(...) Do lado de fora ficava muita gente, eles ficavam no sereno, era assim que era chamado quem não entrava na festa, ficavam vendo a gente entrar, todos muito bem vestidos (...) Naquele tempo não vendiam bebida do lado de fora não, depois foi que apareceu as bancas de café! Ficava muita gente lá fora, ouvindo as músicas e olhando a gente entrar (...) depois o Pallace fechou e as festas passaram a ser no Derby e na AABB, nas festa do carnaval, tinha o baile tradicional, nesse dia todos iam de mascara e fantasia, ai as mulheres de vida fácil que moravam ali na beira do rio, se vestiam todas e entravam escondidas, ninguém as reconhecia (...) Sobral era uma sociedade muito granfina, muito fechada, era por isso que Fortaleza tinha tanta raiva da gente...14

A referência a temporalidade, feita pela narradora, leva-nos a refletir sobre a

atualização da memória realizada por ela. Atualmente a cidade para ela não apresenta

mais o esplendor e a glória que tinha durante a sua juventude, “eu não reconheço mais

Sobral”, com essa fala a autora inicia uma narrativa sobre a atual realidade da cidade,

onde não mas existem os grupos e espaços fechados, mas sim uma rede de relações que

ultrapassam as convenções sociais e promovem uma interação entre as diversas classes

sociais.15

Eu não conheço mais Sobral, antigamente o carnaval aqui era uma beleza, sabe a Nice, ela era linda! Ela e o marido dela saiam fantasiados no bloco dos sujos, era uma lindeza só, todo mundo brincando, se divertindo. Os pais nem se preocupavam porque era tudo gente boa, que só saia pra brincadeiras! Esse ano fui olhar ali da calçada o bloco dos sujos, mais que coisa horrível, hoje tá tudo misturado, não há mais diferença, ninguém sabe o que é brincar! As mulheres vestida de homem e os homens

14 Narrativa de Zuleica Viana, secretária. Entrevista realizada em fevereiro de 2010, Sobral. 15Cabe ressaltar que hoje a cidade é compreendida como uma cidade universitária, devido a isso tem uma população heterogênea, de pessoas oriundas das regiões vizinhas e mesmo devido à Empresa Grendene, que contribuiu para a migração de riograndense para a cidade.

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vestido de mulher, é uma bagunça só! Nem se compara com antigamente(...)16

Foi a visualização da imagem acima reproduzida, Pallace Club, que manifestou

na narradora essa evocação do passado e a construção dessa relação passado/presente.

Ela reativa seus sentidos e evoca emocionalmente uma cidade que era desejada por seu

lugar social, uma cidade que buscava o progresso e a modernização, que por seus

costumes ‘elitizados’ atraía a raiva da capital, que achava a cidade um espaço fechado.

Pensar sobre o passado leva a depoente a caracterizar o crescimento da cidade

como amortecimento do sentimento de sobralidade, chegando ela a conclusão que os

forasteiros invadem não apenas os espaços sociais mas até mesmo os espaços antes

reservados aos sobralenses naturais, ou seja os altos cargos de trabalho. Naquela época,

as funções privilegiadas eram exclusivas de membros das melhores famílias locais. Para

a narradora a modernidade apresenta-se como algo bom, porém ela ressalta a

importância maior da manutenção da tradição e dos costumes. “Tá certo, o modernismo

é uma beleza, ninguém pode fugir, ave Maria graças a Deus que as coisas estão se

modernizando e é muito bom, mas se tratando de um prédio histórico eu acho que devia

ser conservado”.

A revitalização das memórias traz, a partir da utilização dos objetos como as

fotografias, sentimentos e emoções que não estão representados no enquadramento feito

pelo fotografo, mas que se encontram submersos nas memórias daqueles a quem estas

imagens estão ligados, nesse sentido, compreendemos a variedade de informações que

nos são oferecidas, pelo trabalho que explora as imagens na reconstituição de saberes

históricos.

Enlaçado em meio a estas reflexões, fomos percorrendo a cidade e seus

espaços mais significativos para os entrevistados, que seja por recordações próprias ou

por aquelas que lhes embalaram a infância, em forma de narrativas sobre a cidade.

Narrativas que eram contadas por suas mães ou avós e que levavam a imaginação a voar

solta por entre ruas e praças da cidade, que entrava nos casarões sem pedir licença e

flutuavam por entre seus quartos e salas, ativando a imaginação e fazendo sonhar com

16 Narrativa de Zuleica Viana, secretária. Entrevista realizada em fevereiro de 2010, Sobral.

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as festas que não podiam frequentar ou mesmo em quebrar as regras locais, que

permitiriam andar livremente por entre as praças e ruas da cidade, sem preocupar-se

com as convenções ou com as normas não estabelecidas, porém conhecidas por todos,

como um pacto silencioso, quando não se usam palavras ou leis, apenas sentidos

sociais.

Praça São João17

Paulo Silva nasceu em Sobral no ano de 1930, na rua da Estação. Como ele

nos conta, sua mãe era dona de casa e seu pai era pedreiro. Era o sexto filho de onze, no

meio dos quais havia apenas três mulheres. Não teve grandes avanços na escola. Afinal,

tinha que trabalhar para ajudar em casa, ou seja, “os filhos home logo que iam ficando

durinho ia aprender o oficio com o pai, a gente tinha que ajudar pra mode botar comida

na mesa”, ficando a escola para depois, quando as coisas ficassem melhores. O pai

ensinou a profissão a todos os filhos, e trabalhavam muito e pesado para poderem

sobreviver em meio as agruras de uma família grande e carente de bens.

17 O Teatro São João foi construído no século XIX, por iniciativa da Sociedade Cultural União Sobralense, com o intuito de trazer benefícios culturais a cidade. O teatro tem inspiração italiana e estilo Neoclássico, fazendo parte da tríade teatro Monumento juntamente com o teatro José de Alencar, em Fortaleza, e o Teatro da Ribeira dos Icós, em Icó. Sua inauguração foi em setembro de 1860.

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Devido a isso Paulo18 cresceu com uma idéia, “eu num queria ter uma vida tão

dura quanto a do meu pai! Então quando fiquei rapazinho, lá pros ano de cinqüenta

comecei a procurar outros trabalho”, iria arranjar uma outra profissão e ter uma vida

menos difícil, isso levou Paulo para Santarém-PA, onde encontrou a oportunidade que a

cidade não lhe oferecia, partiu de Sobral no ano de sessenta e quatro, periodicamente

vinha visitar a cidade, os amigos e a família. O norte não lhe deu a prosperidade que

buscava, mas mesmo assim lá casou e teve um único filho, viveu com uma idéia fixa na

cabeça “quando tiver velho e me aposentar, volto pra minha cidade”, e assim fez há

mais ou menos catorze anos voltou para a cidade, sem a mulher e sem o filho que não

quiseram acompanhá-lo.

Olha, a gente era menino e brincava lá na rua mesmo, jogava bola, soltava pião! Quando a gente ficou rapazinho íamos passear pela cidade. Víamos a corrida de cavalo (...) O teatro são João funcionava como cinema, e a gente as veze ia pra lá! Lá era o lugar das famílias, dos brancos e dos pobres! A gente pagava e ficava na geral! Os brancos sentavam na frente ou nas casinhas, depois as pessoas iam passear na praça, eu não gostava de ficar lá, porque a gente ficava do outro lado! Depois o falb botou lá uma radiadora, e as vezes eu ficava pra ouvir musica!(...) não eu num lembro de nenhuma musica não, mais lembro que eles butavam mensagem e fazia reclame também(...)19

A praça São João pode ser entendida como o espaço que mostrava os

enfrentamentos das forças sociais. Então devido a esses confrontos silenciosos de

forças, nos remetemos a Foucault 20“As forças que se encontram em jogo na história não

obedecem nem a uma destinação, nem a uma mecânica, mas ao acaso da luta”. Era o

espaço onde as forças eram mediadas por ambos os lados. Talvez por isso as lembranças

sobre esse espaço sejam mais fortes e significativas para os depoentes, que apontam em

suas narrativas a separação entre as classes sociais, da mesma forma que abordam as

diferenças entre o vestir, e os lugares reservados a cada um deles.

18Narrativa de Paulo José Souza, 76 anos, comerciante. Entrevista realizada em Setembro de 2009, Sobral.

19Narrativa de Paulo José Souza,76 anos, comerciante. Entrevista realizada em Setembro de 2009, Sobral.

20FOUCAULT, Michel. A microfisica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979, p.28.

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Ao falar sobre a geral, o lugar destinado aos pobres no teatro, mais tarde no

cinema, seu Paulo aponta para as especificidades de ser jovem em Sobral, sobre o peso

que o trabalho impunha a um jovem que além de passar por dificuldades financeiras,

ainda acabava sendo observador das diferenças sociais que tanto o incomodavam, talvez

por isso não gostasse de freqüentar a Praça.

As narrativas de Paulo nos levam a refletir sobre como se desenvolviam as

relações sociais nesse período, pois o cinema era frequentado pela elite e pelo povo,

com suas diferenciações e regras de conduta. No entanto, observamos o lado emocional

desses narradores que preferiam aceitar aquelas diferenças como naturais, do que reagir

a elas. Talvez, por isso todos eles, façam coro ao falar que naquela época não havia

marginal.

Ao observar a fotografia da Praça São João, seu Paulo21 logo questionou a

ausência do Teatro: “por que o teatro não tá aqui?”, Era o seu ponto de referência, tanto

emocional como narrativo. No espaço cristalizado pela câmera, passam todos pelo

Teatro, sendo a praça apenas um objeto complementar. É curioso perceber como analisa

a imagem, procurando vestígios de suas experiências na mesma, fala detalhadamente

sobre os bancos, sobre a radiadora, mais especialmente sobre os filmes que assistia no

teatro.

Eu adorava cinema, assisti lá os filme do “buc Jones”, “últimos dias de Pompéia”, ah tinha também os seriados que passavam lá! Todo dia tinha cinema, mais eu só ia às vezes (...) depois abriram um cinema novo, o cine Alvorada, ali bem pertinho da Igreja do Rosário você sabe onde é? (...) Pois é, então todo o povo branco passou pra lá, os filme passava primeiro lá e depois vinha pro são João (...) O povo todo ia pra lá assistir lá, mas depois vinha passear aqui na Praça (...) Aqui oh, desse lado que eles ficavam (...)22

As memórias de Paulo refletem seus sentimentos quanto ao espaço, um espaço

que ganha materialidade em suas narrativas ao procurar na imagem, os vestígios de sua

vida ali passados. Lembra detalhadamente os bancos, a posição deles, fala sobre a 21Narrativa de Paulo José Souza,76 anos, comerciante. Entrevista realizada em Setembro de 2009, Sobral

22Idem..

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radiadora e até sobre os filmes que assistia, aponta para a imagem como se estivesse ali,

naquele exato momento, vivenciando o tempo em que frequentava o cine e sonhava em

prosperar na vida. Por uns instantes parece deslocar-se temporalmente.

A chegada do Cine Teatro Rangel, uma instituição moderna e com os últimos

lançamentos do cinema, fez com que o cine Teatro São João perdesse parte de seu

público, pois aqueles que detinham melhores condições financeiras foram assistir aos

filmes no novo cinema. A presença desse novo cine modificou a atividade cultural do

Teatro, pois os lançamentos eram exibidos primeiro no Alvorada e depois no São João,

onde havia alguns cortes realizados nas fitas, deixando o seu público em desvantagem.

No entanto, é importante verificar que mesmo com a mudança espacial do

“ponto de encontro das famílias sobralenses”, a praça continuou sendo o espaço comum

de sociabilidades, como nos referencia seu Paulo em sua narrativa que se coaduna com

as afirmações de Dona Zuleica23.

O espaço noturno era no teatro São João, nessa avenida ai em frente. Agente ia para o cinema, ou mesmo no São João que era cine teatro e quando saia ficava andando pela avenida, namorando passeando. Era uma beleza, ficava assim de gente . Depois mesmo quando o cinema ai ficou ruim e inauguraram o cine Teatro Rangel, e vinha passear ai. Tinham muitos bancos era aprazível, muito gosto, agente sentava nos bancos e ficava conversando. Era uma beleza. Não vínhamos todas as noites não porque a gente estudava a noite, e quem não estudava não podia sair toda noite né, ficava a noite em casa, quem tinha piano ficava tocando piano, ficava em casa lendo, a maioria das casas tinha roda de calçada, as rodas de calçada era muito boas, ave Maria.

A importância de não sair todos os dias de casa justificava-se não apenas pelas

obrigações como o estudo, mas também como necessidade de preservar a imagem da

mulher honesta e dócil, que era pregada pela ordem da “Moral e dos Bons Costumes” da

cidade. Enquanto algumas moças ficavam em casa, tocando piano ou mesmo nas rodas

de calçada, algumas não freqüentavam esses espaços de lazer, devido as questões

sociais de trabalho ou mesmo de falta de dinheiro.

23Narrativa de Zuleica Viana, secretária. Entrevista realizada em fevereiro de 2010, Sobral.

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O lazer era algo admitido aos finais de semana, quando do trabalho

descansavam e aproveitavam para gastar as parcas economias nas diversões oferecidas

pela cidade. As rodas de calçada eram costume nas ruas de Sobral, onde durante as

noites reuniam-se as famílias. Enquanto os adultos trocavam informações sobre o dia-a-

dia e a cidade, as crianças brincavam livremente pelas ruas. Segundo Antonio Torres24:

No meu tempo todo mundo ficava na calçada, as vezes vinha os amigos de outras ruas para conversar, e a gente corria solto pelas ruas, era muito bom! Num tinha violença, então num tinha preocupação de brincar na rua. Hoje em dia você só ver gente na calçada nus bairro e é cedo! No Centro quase num tem mais nem casa, só os prédio (...) Tudo é perigoso hoje, num se confia em ninguém! Também Sobral cresceu demais, eu nunca acreditei que fosse ficar assim tão grande (...)

As relações construídas com a cidade e com os vizinhos eram símbolo de

tranquilidade e segurança que rodeavam os espaços de Sobral. Enquanto os carros

aparecem como raros e ocasionais, contrastando com as idéias de progresso almejadas

pelos ordenadores da cidade, que buscavam a modernização e as transformações dos

costumes de Sobral.

Nesse período, década de quarenta, emergiam na cidade as várias

transformações e reformas das ruas, principalmente, as ruas do Centro da cidade. As

reformas transformavam a cidade provinciana, numa cidade moderna, com o

alargamento das ruas e arborização, além das modificações realizadas nas praças e

espaços sociais, como no caso do Mercado, e da construção da Praça Coluna da Hora.

Enfim, o grande desafio da utilização das imagens como desencadeadoras da

memória vem a ser transmitir os sentimentos inenarráveis, despertados pelo contato dos

narradores com esses fragmentos do passado, as imagens, afinal, esses contatos

propiciam o desvelamento de sentidos e possibilidades de perceber a cidade a partir da

visão de seus consumidores, independente de que classe social estejam ligados.

24 Entrevista realizada com Antonio Torres, 96 anos, carpinteiro Setembro de 2009, Sobral.

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Referências bibliográficas:

ARAUJO; FERNANDES. Maria Paula &Tania Maria. O diálogo da História Oral com a historiografia contemporânea. IN:VISCARDI, Claúdia M. R. História oral: teoria, educação e sociedade. Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2006, p.29.

CABRAL FILHO, Severino. Da fotografia e da lembrança de velhos: a cidade revelada. In: SAECULUM- Revista de História (18); João Pessoa, jan/jun.2008, p.47-54, p. 48.

D’ALÉSSIO, Márcia Mansor. Intervenções da memória na historiografia: Identidades, subjetividades, fragmentos, poderes. In: Projeto História, São Paulo, (17), nov. 1998, p. 275.

FOUCAULT, Michel. A microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979, p.28.

PORTELLI, A. Tentando aprender um pouquinho. Algumas reflexões sobre a ética na História Oral. Projeto História: Ética e História oral, 15. P.13-33, 1997. p.16.

SANTOS. Nádia Maria Weber, Histórias de vidas ausentes: a tênue fronteira entre a saúde e a doença mental. Passo Fundo: Ed. Universidade de Passo Fundo, 2005.

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OS JANGADEIROS EM FOCO: REFLEXÕES ACERCA DA RELAÇÃO DE

POPULARES COM A IMPRENSA.1

Berenice Abreu de Castro Neves.2

Ana Paula Pereira Costa.3

Emilu de Sousa Lobo.4

Resumo

Esse artigo visa tentar entender as mudanças ocorridas no trato das viagens reivindicatórias dos jangadeiros cearenses pela Imprensa, o que significa investigar o lugar que esses populares, vão ocupando nos meios de comunicação. Para a compreensão dessas modificações é levado em consideração os diferentes contextos em que essas viagens se realizam. Para tal, a análise do jornal “Unitário” dos anos 1941, 1951 e 1958 torna-se de fundamental importância.

Palavras-chave: Viagens reivindicatórias. Jangadeiros. Imprensa.

Abstract.

This article aims at trying to understand the changes occurred in dealing with claim’s travel of Ceará's raftsmen the press, which means investigate the place which these popular, are holding in the media. To understand these changes is taken into account the different contexts in which these trips are made. To this end, the analysis of the newspaper “Unitário” of the years 1941, 1951 and 1958 becomes of paramount importance.

Keywords: Claim’s travel. Raftsmen. Press.

A história que se faz nos últimos quarenta anos no Brasil vem utilizando a

Imprensa de modo bastante significativo. Em alguns desses trabalhos ela aparece como

fonte, em outros se torna o objeto central da discussão. Em grande parte dessas

produções, entretanto, pode-se constatar a preocupação em problematizar a fonte o que

significa considerar os condicionamentos aos quais, essa mídia está submetida, tais

como os interesses dos grupos que a patrocinam, sejam eles os proprietários dos jornais,

sejam os anunciantes, a pressão do governo, dependendo da conjuntura analisada, as 1 Este artigo resulta do projeto “Navegar é preciso: experiências de vida, trabalho e luta de jangadeiros cearenses” financiado pela FUNCAP, a qual está em andamento. 2 Professora adjunta do curso de História da UECE. Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense. ([email protected]) 3 Graduanda do curso de História da UECE. Bolsista ICT- FUNCAP. ([email protected]). 4 Graduanda do curso de História da UECE ([email protected]). Artigo recebido em 28/11/2011. Aprovado em 15/12/2011.

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expectativas do público ao qual ela se destina, dentre outros5. Em outros termos isso

significa buscar na imprensa informações sem desconsiderar as suas implicações, o que

significa problematizá-la, também, enquanto objeto.

Tendo em mente essas questões, nos propomos a investigar o lugar e o

tratamento conferido aos jangadeiros cearenses, por ocasião das viagens reivindicatórias

realizadas em jangadas em 1941, 1951 e 1958, pela Imprensa local. Optamos por focar,

em especial, o Jornal Unitário, pertencente ao grupo empresarial do então magnata das

comunicações Assis Chateaubriand, que possuía também no Ceará, o jornal Correio do

Ceará. Analisar esse lugar e o tratamento conferido à ação desses trabalhadores do mar

contribui para refletir sobre a relação da imprensa com os populares e ao mesmo tempo

perceber a circularidade cultural6 que é parte da vivência de segmentos de oralidade

mista7, como é o caso dos “viajantes” em questão.

É opinião corrente entre aqueles que analisam a feição dos jornais locais nas

décadas de 1940 e 1950 a identificação do marco operado com os jornais Unitário e

Correio do Ceará, no que se refere a uma postura mais “noticiosa/informativa”, em

oposição a um comportamento mais partidário, mais político, ou seja, partidário dos

interesses das facções políticas locais, exemplificados pelo jornal O Povo, de Paulo

Sarasate e Demócrito Rocha, que representava interesses identificados com a UDN e O

Nordeste, vinculado a ideologia católica8.

Isso não significa, entretanto, considerar que havia uma absoluta independência

e imparcialidade do jornal, haja vista que a posição do proprietário do jornal, bem como

a dependência em relação aos financiadores, de algum modo, interfira no conteúdo e no

modo como as notícias são selecionadas e tratadas. Fato exemplar dessa questão pode 5 Tania Regina De Lucca em “Fontes Impressas: história dos, nos e por meio dos periódicos” faz um rigoroso balanço sobre essa questão, finalizando por sugerir uma metodologia de utilização de fontes impressas. Cf. PINSK, Carla Bassanezi (organizadora). Fontes Históricas. São Paulo: Conte1xto, 2005. P. 11 a 153. 6 Por circularidade cultural estou entendendo a complexa relação que existe entre a cultura erudita e popular, que significa pensar que os populares ao receber influências da cultura erudita operam um trabalho de apropriação criativa e não de mera transmissão e recepção. Essa ideia, extraída de Bakhtin e Carlo Ginzburg, pode ser resumida do seguinte modo: “uma influência recíproca entre a cultura das classes subalternas e a cultura dominante”. Cf. Carlo Ginzburg. O queijo e os vermes. O cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, 1987, p. 24. 7 Sobre oralidade mista Cf ZUNTHOR, Paul. A Letra e a voz: a literatura medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. 8 Sobre isso conferir as entrevistas dos jornalistas Blanchard Girão, Eduardo Campos e Geraldo Nobre em PONTE, Sebastião Rogério. História e Memória do Jornalismo Cearense. Fortaleza: NUDOC/UFC/Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado do Ceará/Secretaria de Cultura-SECULT, 2004 e NOBRE, Geraldo da Silva. Introdução à História do Jornalismo Cearense. Fortaleza: Gráfica Editorial Cearense, 1975.

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ser dado por episódio, contado pelo jornalista Blanchard Girão, em que os Jornais

Associados divulgavam de modo exaustivo as obras do “Abrigo Central”, iniciativa do

Prefeito Acrisio Moreira da Rocha, em virtude de matérias pagas pela Prefeitura, e

quando chegou o final do ano, com o peso de todas as despesas próprias da época a

Prefeitura não pagava suas faturas com o jornal. Eis que Girão assiste, meio por acaso, a

uma conversa de um dos diretores do jornal com o prefeito, em que o primeiro

ameaçava o prefeito, nos seguintes termos: “Se você não mandar liberar esse recurso

imediatamente, essa verba, de amanhã em diante, nós vamos combater essa porcaria desse

Abrigo, porque isso é um monstrengo9.”

Os jornais dos Diários Associados, juntamente com O Povo, eram responsáveis

por 80% da tiragem dos jornais que circulavam no Ceará nos anos de 1940 e 1950,

segundo Geraldo Nobre,10 que também destaca a ênfase dos jornais daqueles idos com

matérias locais, com a exceção do período da Guerra, que fazia com que nos jornais

estivessem estampadas notícias relativas às ações bélicas11.

Em 1941 sob o Patrocínio jornalístico dos jornais dos Diários Associados em

Fortaleza representados pelo Unitário e Correio do Ceará, quatro jangadeiros, Jacaré,

Jerônimo, Mané Preto e Tatá, empreendem uma arriscada viagem de jangada com vistas

a levar ao conhecimento das autoridades brasileiras o desamparo e a miséria em que

vivia a categoria dos pescadores artesanais12, a qual pertencia.

Esse patrocínio significou uma cobertura exaustiva de todos os momentos

daquilo que passou a ser chamado de raid, desde os preparativos, mobilizando a

sociedade para auxiliar materialmente as famílias dos pescadores enquanto esses

estivessem fora, pressionando as autoridades a autorizar oficialmente a viagem13,

cobrindo a chegada dos jangadeiros em cada localidade, designando repórteres para 9 Idem. 10 NOBRE, Op. Cit. 11Essas notícias da Guerra em grande parte eram demandadas por segmentos da sociedade que cobravam dos jornais e dos jornalistas mais notícias. “Sobre isso, ver, dentre outras obras, a monografia de Carlos Renato Araújo Freire, O Quebra-Quebra de 1942 em Fortaleza: Entre o Silêncio e as Lembranças”, especialmente o capítulo três: “Entre o Silêncio, o evento”. Universidade Estadual do Ceará, 2011. P. 61 a 91. 12Sobre essa categoria e da complexa inserção desses segmentos na vida das cidades, Cf. Antonio Carlos Diegues, Pescadores, Camponeses e Trabalhadores do Mar. São Paulo: Ática, 1983; La Pesca Artesanal em Brasil. Ancona: mayo de 1993; e Povos e Mares: leituras em sócio-antropologia marítimas. São Paulo: NUPAUB-USP, 1995. 13Houve um impasse em relação a essa autorização chegando a Marinha Mercante a desautorizá-la. Após pressão da Imprensa e intervenção das autoridades a autorização foi dada mediante a assinatura de um documento pelos pescadores de que se responsabilizavam inteiramente por tudo que ocorresse. A esse respeito cf. ABREU, Berenice. O raid da Jangada São Pedro: pescadores, Estado Novo e Luta por Direitos. Tese de Doutorado: Universidade Federal Fluminense, 2007.

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acompanhar, enfim, os jangadeiros em sua estada no Rio de Janeiro, destino almejado,

além de cobrir o retorno desses trabalhadores à Fortaleza. As notícias referentes aos

jangadeiros apareciam com freqüência nas primeiras páginas, com continuação nas

últimas, sendo constantemente acompanhadas de fotografias. É ilustrativo da proporção

da cobertura jornalística o fato de que de 10 a 13 de setembro de 1941 o jornal carioca

Diário da Noite, dos Diários Associados, tenha publicado várias matérias sobre a

indefinição da viagem dos pescadores. Ilustra esse fato texto de autoria de Austragésilo

de Athaide, intitulado “Deixem vir os jangadeiros”, publicado nesse periódico em 11 de

setembro de 1941. Dir-se-ia que de toda a parte viessem os aplausos e os estímulos a essa viagem desportiva destinada a demonstrar a fibra da nacionalidade num dos seus povos mais caracterizados pela ousadia, a generosidade e o civismo. Pois houve quem embargasse. Para tal feito, simples e alto nas razões de sua finalidade, são exigidas as licenças burocráticas. É necessário que se pronunciem comissões, que se ouçam técnicos administrativos, que se dê a expontaneidade da idéia o toque sansoborão das licenças oficiais. Fio, no entanto, que todas as formalidades cumpridas, pagos os emolumentos e selos, deixem vir os jangadeiros para exaltar a grandesa do Brasil.

Mas a proximidade dos jangadeiros com jornalistas e com a Imprensa não se

efetivou apenas por ocasião da viagem reivindicatória à Capital Federal. Em 1939, cerca

de cem pescadores, procuraram as redações dos jornais locais para protestar acerca de

uma lei baixada pelas autoridades municipais que fixava o preço do pescado e os pontos

para sua comercialização, que deveria ficar restrito aos mercados municipais. A venda

na praia, a beira mar, só seria permitida àquelas jangadas que chegassem à noite e só

poderia ser feita por ambulantes. Essa lei, segundo leitura dos pecadores exposta ao

jornalista, subordinava-os ainda mais aos odiados atravessadores, aqueles que

intermediavam os pescadores com o mercado. A base do protesto era o costume, que

fundamentava-se, ainda, na noção de economia moral14. Segundo explicação do redator

do Unitário15, os pescadores aceitavam a tabela fixada, mas discordavam: (...) da medida que lhes extorquiu a liberdade de comércio, e que vem afetar profundamente à economia de cada um. Afirmam que a ação da polícia tem manifestado alem da energia, a ponto de não permitir que um pescador forneça um peixe a um amigo, mesmo gratuitamente. Pedem, por tudo isto, que a prefeitura determine a venda livre do

14 Cf. E.P. Thompson. Costumes em Comum. Estudos sobre cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. 15Um apelo dos pescadores: em nossa redação uma comissão da Colônia Z1. Pleiteando a venda livre do peixe. Unitário, Fortaleza, 10.04. 1939, p. 1.

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peixe, para que os marchantes interessados não venham a explorar o produto do trabalho que eles, os pescadores, desenvolveram.

Interessante observar que esses trabalhadores, a exemplo do que observou o E.P.

Thompson acerca dos camponeses ingleses do período pré-industrial, protestavam

amparados pela ideia de uma referência moral, fundamentada no trabalho e na

comunidade, que por sua vez remetia a um costume do qual não queriam abrir mão.

Sabiam utilizar essa estratégia quando a nova “lei” contrariava seus interesses. Na base

dessa argumentação, como um capital simbólico16 a seu dispor, estava a condição de

trabalhador miserável, explorado, apesar da sua bravura enfrentando o mar em busca de

seu sustento e de seus familiares. Era esse seu trunfo, que os pescadores utilizavam com

muita habilidade, nas estratégias de luta, protesto e pressão que desenvolviam. Os

jornalistas pareciam convencidos e sensibilizados com essa argumentação, tanto que um

jornalista d’O Povo colocou que tal medida visou apenas atender aos interesses dos

consumidores, sendo os principais beneficiados, no final das contas, os atravessadores.

Falando sobre o “antigo sistema” o jornalista esclarece que o pescador poderia vender

um pouco do pescado diretamente, na beira da praia, sem ter que entregar tudo aos

comerciantes.17

De volta a Fortaleza, nos discursos públicos proferidos por jacaré, consagrado

pelos jornais, como O Pero Vaz de Caminha da Jangada São Pedro, o pescador elencava

com destaque entre aqueles que contribuíram para o sucesso do raid, os jornais dos

Diários Associados e seus jornalistas, a quem chamava de “amigos de todos os tempos”.

Novos tempos, em outras águas os jangadeiros do Ceará: O “raid” Fortaleza –

Porto Alegre (1951)

O “raid” de 1951 que teve a participação de três remanescentes do “raid” de

1941, Jerônimo André de Souza, Raimundo Correia Lima, vulgo Tatá, Manuel Pereira

da Silva, conhecido como Manuel Preto, e os dois novatos, Manuel Lopes Martins,

apelidado de Manuel Frade e João Batista Pereira, sobrinho de Jerônimo, “inicia-se” na

imprensa antes de sua partida com uma campanha visando angariar recursos conforme

16Noção emprestada de Pierre Bourdieu, O Poder Simbólico. Lisboa: DIFEL, 1989. 17Queixam-se os pescadores: cativos dos intermediários não podem vender o produto de seus labores. O Povo, Fortaleza, 10. 04.1939.p.1

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noticia o jornal Unitário de Fortaleza do dia 16 de setembro daquele ano18 e onde

podemos perceber o apoio da população, das autoridades e da própria imprensa no

sentido de dar voz a esses trabalhadores que mais uma vez empreenderam uma arriscada

viagem em uma frágil embarcação para cobrar as promessas feitas, em 1941, e que não

foram cumpridas, além da solução da questão envolvendo a indicação de um pescador

para a Delegacia de Pesca no Ceará, como mostra o trecho da reportagem do dia 14 de

outubro do referido jornal: (...) Jeronimo, autentico lider dos praieiros de Fortaleza, fala, com magua, das promessas feitas no “raid” Fortaleza-Rio de 1941e, infelizmente, jamais cumpridas. O velho pescador do Meireles fala, tambem, no total desamparo em que seus companheiros vivem. Refere a situação de seus filhos, sem nenhuma assistencia medica, sem escolas, entregues a toda sorte de doenças, sob o perigo constante da morte (...)Mostrou tambem a situação das casas dos jangadeiros, quase sempre de palha e taipa, com piso de areia, pintando, enfim, todo o quadro de miséria em que se encontram os homens do mar do litoral cearense. Um ponto, porem, ele refere com destaque, o que demonstra que os jangadeiros de nosso Estado já estão convictos da necessidade associativa para a resolução de muitos de seus problemas. É o ponto da substituição do agente da Fiscalização da Pesca, que os jangadeiros querem um elemento saido da classe, conhecedora dos problemas da classe. Para isso, Jeronimo e seus quatro companheiros advogarão no Rio o cumprimento do que lhes prometera o presidente da República.19

O dia 14 de outubro de 1951 marca o começo do “raid” Fortaleza-Porto Alegre20

acompanhado de perto pela imprensa tanto aqui do Ceará como dos lugares por onde

passaram nossos intrépidos jangadeiros, devido ao fato de ser o jornal Unitário parte

integrante dos “Diários Associados”, pertencente ao visionário Assis Chateaubriand, um

dos primeiros homens no Brasil a ter em mente o ramo das comunicações como um

poderoso e rentável filão empresarial, o qual adquiriu vários jornais em muitos Estados

do país, quando não os fundou ele próprio.

A primeira parada deu-se em Natal duas semanas após a partida na Praia do

Náutico em Fortaleza21, percurso este como até o de Recife feito bem longe da costa.

Ao chegarem a Salvador, exaustos e alguns doentes, disseram “que estão

18Movimento popular visando angariar donativos para os jangadeiros que vão ao R. Grande do Sul. Unitário, Fortaleza. 16.09.1951. p. 08. 19“Raid” heroico sobre quatro paus de uma jangada. Unitário, Fortaleza, 14.10.1951. p. 08. 20Idem. 21Bem dispostos os jangadeiros e Em Natal os jangadeiros cearenses. Unitário, Fortaleza. 28.10.1951. p. 01, 06 e 12.

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impressionados com a recepção que tiveram aqui, bem como em Natal, João Pessoa e

Recife22”. Fato noticiado com destaque na primeira página do Unitário foi o dos cinco

“raid-men” estarem perdidos no trecho entre a Bahia e o Espírito Santo23, contudo,

felizmente, na tarde do dia seguinte, ou melhor, às 16 horas do dia primeiro de

dezembro, sob um forte temporal os destemidos homens do mar aportaram em Vitória24.

As notícias referentes aos preparativos da recepção para Jerônimo, Tatá, Manuel

Preto, Manuel Frade e João Batista no Rio de Janeiro, como também a permanência

deles no Distrito Federal, tiveram muito destaque no Unitário ocupando quase todas

elas a primeira página durante o mês de dezembro. Dentre tais notícias não podemos

deixar de considerar a manchete do dia 13 de dezembro que traz o seguinte –

“Repercute nos Estados Unidos a chegada dos jangadeiros no Rio” o que demonstra a

repercussão obtida pelo feito heróico, nem a do dia 25 que aborda a enfermidade pela

qual é acometido um de nossos protagonistas, no caso Tatá, que teve de permanecer

internado no Rio de Janeiro devido a ter contraído malária, apesar desta não figurar na

primeira, mas na última página, entretanto com bastante evidência.

No Rio de Janeiro nossos protagonistas puderam entregar um dos dois

memoriais preparados ao então presidente, agora eleito, Getúlio Vargas, onde traziam

suas cobranças referentes às promessas feitas, como dito acima, no “raid” de 1941 e não

cumpridas, além de novas reivindicações da classe dos pescadores.

A segunda etapa considerada a mais perigosa, pois o trecho é desconhecido dos

tripulantes da “Nossa Senhora da Assunção”, onde se inclui um repórter, inicia-se no

dia 03 de janeiro de 195225quando se dirigem finalmente em direção a Porto Alegre.

Em uma entrevista concedida pelo almirante Frederico Vilar à sucursal dos

“Diários Associados” do Rio de Janeiro ele deixa claro como é perigoso os mares do sul

ao telegrafar ao presidente tentando impedir que os cinco navegantes prossigam sua

viagem, pois os mesmos já demonstraram bastante bravura e patriotismo em várias

outras ocasiões, tornando-se desnecessário por a prova as preciosas vidas desses

valentes pescadores26.

22Exaustos e doentes os jangadeiros cearenses. Unitário, Fortaleza. 21.11.1951. p. 01. 23Perdidos os cinco jangadeiros. Unitário, Fortaleza. 30.11.1951. p. 01. 24 Chegaram a Vitória os jangadeiros. Unitário, Fortaleza. 01.12.1951. p. 06. 25 Partiram os jangadeiros. Unitário, Fortaleza. 04.01.1952. p. 01. 26Enfrentar os mares do Sul em simples jangada é temeridade. Unitário, Fortaleza. 08.01.1952. p. 01 e 02.

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Já na região sul do país, a aclamação continua com notícias afirmando o

prestígio conseguido pelos jangadeiros, como temos a oportunidade de observar na

leitura da notícia da chegada deles no Porto de Paranaguá: Informa-se que verdadeira sensação causou ali a chegada da jangada “Nossa Senhora da Assunção”, com os jangadeiros cearenses. Grande massa popular compareceu ao porto quando a jangada singrou as aguas de Paranaguá. O prefeito da cidade e o capitão dos portos receberam os bravos nordestinos27.

De Florianópolis chega à notícia que a jangada “Nossa Senhora da Assunção”

estava avariada devido à forte tempestade enfrentada durante 24 horas, mas que os

jangadeiros estavam todos bem de saúde28.

A chegada de nossos intrépidos pescadores foi toda preparada para ser

transmitida via rádio diretamente de Porto Alegre para a P.R.E.-9 em Fortaleza pelo

repórter associado Stênio Azevedo. Então, no dia 18 de fevereiro de 1952, chegaram ao

destino final desta valorosa aventura, onde foram ovacionados pela multidão e

autoridades presentes na Praia de Belas e foram literalmente carregados nos braços do

povo até o palanque onde se encontravam o governador Ernesto Dornelles e o prefeito

Hildo Menegheti29.

Um segundo memorial foi entregue ao governador Ernesto Dornelles contendo

as reivindicações da classe dos pescadores que eles representavam. No Rio Grande do

Sul eles tiveram, como na maioria dos estados em que aportaram a oportunidade de

visitar diversas colônias de pescadores, e a cidade natal de Getúlio Vargas, São Borja. A

jangada “Nossa Senhora da Assunção” durante a permanência dos jangadeiros em Porto

Alegre ficou exposta na praça defronte à Prefeitura sendo depois transferida para o

Museu Júlio de Castilhos.

A volta que seria num avião da FAB foi proporcionada pela Cruzeiro do Sul

Linhas Aéreas, a qual teve escala no Rio para buscarem Tatá que ficara para tratar da

malária e em Recife, antes de pousarem no Aeroporto do Cocorote onde foram

recebidos também como herois recebendo medalhas oferecidas pelo Governo do Estado

27 Causou sensação em Paranaguá a chegada dos jangadeiros cearenses. Unitário, Fortaleza. 22.01.1952. p. 01. 28 Em Florianópolis os jangadeiros. Unitário, Fortaleza. 02.02.1952. p 01. 29 Chegaram a Porto Alegre os jangadeiros. Unitário, Fortaleza. 19.02.1952. p. 06.

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e pela Prefeitura, fazendo o percurso do aeroporto até a Praça do Ferreira em carro

aberto ao som das palmas da grande massa que os acompanharam no trajeto.

Como podemos considerar o jornal Unitário deu grande evidência a este

empreendimento de enorme coragem realizado por esses cinco jangadeiros dando ampla

cobertura ao “raid”, sem esquecer a imensa ajuda que tiveram de vários rádio-amadores,

como eles mesmos fizeram questão de deixar claro em algumas das diversas matérias

escritas. Grande parte destas matérias saiu na primeira ou na última página, as quais

eram as que traziam as notícias mais importantes, as mais destacadas pelo referido

jornal.

O próprio jornal Unitário fez uma homenagem aos nossos valorosos

protagonistas com um caderno dedicado a eles contendo diversos artigos e poesias

escritos por cearenses e gaúchos que foi veiculada no dia 30 de março de 1952 no

Caderno Letras & Artes.

Entre o Desenvolvimentismo e o Trabalhismo: a Jangada Maria Teresa Goulart

(1958).

Para analisarmos a viagem dos jangadeiros para Buenos Aires pesquisamos o

jornal Unitário desde o início do ano de 1958 até o final do ano de 1959. Pudemos

perceber que nos meses que antecedem e sucedem a viagem existem reportagens que se

referem aos homens que trabalham no mar, mas seus conteúdos tratam não do

jangadeiro tido como o representante da cultura cearense, mas como o homem vítima de

vícios, como a embriaguez, vítima do próprio trabalho, morrendo afogados durante as

pescarias, ou ainda vítimas da violência urbana. É interessante perceber que nessas

reportagens os jornalistas se referem aos trabalhadores do mar denominando-os de

pescadores, maneira diferente pelo qual são tratados os homens que possuem o mesmo

trabalho, a pescaria, mas que se lançaram ao mar na viagem no final do ano de 1958.

Estes homens são denominados de jangadeiros, ou seja, é como se a imagem do

jangadeiro fosse à do homem de coragem, o homem das grandes causas e não o homem

trabalhador, que tem como sustento a pesca. Essa dicotomia pode nos ajudar a

compreender melhor o fato de que o jornal parece não perceber as implicações políticas

e trabalhistas decorridas da viagem, porque esse mesmo jornal diferencia esses

personagens, afastando os jangadeiros de seu mundo do trabalho.

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A praia também se apresenta de modo diferente das sentimentais lembranças dos

poetas ou das rememorações de pescadores. Quando as praias aparecem nos noticiários

são focalizadas como local de problemas: os roubos, o futebol que atrapalha o banho de

mar, um local sujo, um local marcado pela violência. A praia também é apresentada

como local de lazer como podemos perceber na reportagem do jornal Unitário de 04 de

maio de 1958, página quatro, em que podemos ler: “A vida social de Fortaleza, durante

domingos e feriados, cada vez mais, se dirige às varias praias que circundam a cidade”.

Em outras reportagens sobre esse assunto percebemos que existe certa indignação por

parte do jornal, pois este informa que essas praias estão sendo ocupadas somente pela

população rica de Fortaleza em detrimento da população mais pobre que não tem meios

de locomoção para chegar à praia, o jornal chama a atenção dos governantes para que

tentem solucionar a falta de transporte para as praias. Nesse momento a praia se

apresenta através das páginas do jornal como um espaço não ocupado, a vida das

comunidades de pescadores não é citada quando se discute a praia como um espaço de

lazer, ela não é vista como local de moradia, como um lar, em outras palavras, a praia

nos é apresentada de modo diferente das lembranças dos pescadores.

Encontramos ainda nas reportagens do jornal Unitário visões tão discrepantes

sobre a vida dos jangadeiros que torna complicado tentar demonstrar qual a percepção

que o jornal tinha da relevância do jangadeiro para a sociedade e consequentemente sua

visão sobre os objetivos da viagem dos jangadeiros à Buenos Aires, levando-os a não

entendê-la como uma viagem de cunho político. Exemplos desses pontos discrepantes

são, por exemplo, as reportagens de 12 de janeiro de 1958 e a de 13 de março do mesmo

ano. Na primeira, escrita na seção Idéias e Livros30, na página um do jornal, intitulada O

poeta dos Jangadeiros, João Clímaco Bezerra escreve apresentando o mar e os

jangadeiros como fonte inspiradora para os poetas litorâneos, do mesmo modo que

cordelistas e rabequeiros do interior do estado têm como fonte de inspiração o cotidiano

do vaqueiro. Ambos os personagens seriam os representantes do Nordeste. João

Clímaco ainda destaca que as viagens dos jangadeiros são sua maneira de buscar

socorro. Essa imagem é totalmente o oposto da descrita por Brasílio Machado Neto,

autor da segunda reportagem intitulada Pesca no Japão, que trata das técnicas de pesca

do Japão que deveriam ser seguidas pelos brasileiros para que se deixasse “a idade

média da pesca, onde (se) vive, com todos os aspectos negativos, tanto do ponto vista 30 Escrita mantida conforme a grafia original.

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econômico como humano e social”. Brasílio vê, portanto, os jangadeiros como símbolos

do atraso que a sociedade deveria superar, para ele “a figura do pescador em nosso país

ainda está simbolizada no jangadeiro. Bonita para canções tristes como problema

humano e social, e negativo como fator econômico, amarrada a bases inteiramente

empíricas”,

É a partir do dia 17 de outubro de 1958 que começam a surgir as reportagens que

vão tratar especificamente sobre o “raid”. De maneira geral, as reportagens são esparsas,

a maioria na última página do jornal e de conteúdo extremamente reduzido. Após a

partida dos jangadeiros, as reportagens se resumem em informar o local onde os

jangadeiros aportaram e se estão aparentemente bem de saúde. A viagem é realizada

inicialmente por cinco jangadeiros: Jerônimo André de Sousa, José de Lima, Samuel

André de Sousa, Luis Carlos de Sousa, José Mariano da Silva, este último desistiu da

viagem, por motivos de saúde em 11 de janeiro de 1959 quando os jangadeiros já

estavam em Vitória. O “raid” foi intitulado Kubitschek-Frondizi em homenagem aos

presidentes em exercício do Brasil e da Argentina, respectivamente, e a jangada recebeu

como nome e madrinha Maria Teresa Goulart em homenagem a esposa do vice-

presidente, João Goulart, ligado às causas trabalhistas, sendo que essa relação nem

sequer foi tratada no jornal.

Nas reportagens do jornal percebemos que os jangadeiros se apresentam como

personagens distantes, nunca aparecem tomando a palavra. Os repórteres, não raras

vezes, estão distantes da realidade e dos anseios dos jangadeiros. Nas reportagens não é

possível sequer perceber que o texto fora produzido depois de uma conversa com os

jangadeiros. Esse aspecto nos faz perceber que o jornal Unitário deixou de ser um meio

de comunicação ao qual a população mais humilde se dirigia na tentativa de ser ouvida,

expondo suas condições de dificuldade e miséria, seu abandono por parte das

autoridades. O Unitário que se apresenta descrevendo o “raid” de 1958 é um jornal

distante da população mais humilde, que desconhece o cotidiano, as expectativas e as

inquietações dos personagens envolvidos no “raid”.

O jangadeiro Jerônimo apesar de ter recebido grande destaque durante as

reportagens sendo sempre apresentado como o mestre, comandante da façanha, pouco

se fala no jornal sobre sua vida, sua família, sobre seu trabalho. Ele é instantaneamente

esquecido, junto com seus companheiros. Parece que todos foram tragados pelo mar

quando do regresso à Fortaleza, assim como de fato aconteceu com Jerônimo.

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Os objetivos da viagem não são compreendidos pelo jornal que publica em 07 de

abril de 1959, na quarta página, uma reportagem intitulada Jangadeiro All Right na qual

podemos ler “uma aventura cujo objetivo prático não consigo perceber (...) É preciso

dar aos pescadores, que são milhares, instrumentos modernos de trabalho, aposentando

de vez as jangadas”. Se os objetivos não são compreendidos, seus limites tornam-se

reduzidos quando o presidente Juscelino Kubitschek, sem também, aparentemente,

entender o significado político da viagem oferece aos jangadeiros um barco de pesca,

sem aparecer nas reportagens do jornal nada que trate sobre conversas entre o presidente

e os jangadeiros em que o tema fosse a melhoria das condições de vida e de trabalho dos

pescadores.

Apesar de a viagem ser tratada em algumas reportagens como uma espécie de

continuação das viagens de 1941 e de 1951, num único momento é lembrado o caráter

de reivindicação que essas viagens possuíram e que esta última também teria, mas num

plano secundário. É na primeira reportagem que se refere à chegada dos jangadeiros ao

Rio de Janeiro, em 15 de janeiro de 1959, que podemos ler: “os jangadeiros pretendem,

como sempre, pedir maior assistencia do Governo aos pescadores do Ceará”.

Em três outras reportagens podemos ter notícias da situação dos familiares dos

pescadores que ficaram em Fortaleza. Na primeira, em 23 de dezembro de 1958 temos o

registro das dificuldades que passam as famílias dos jangadeiros pela falta de recursos

para se manterem, e em reportagens dos dias 21 e 25 de janeiro de 1959 aparecem

notícias de que a Caixa de Crédito da Pesca iria ajudar as famílias, mas não especificam

quanto dinheiro foi entregue ou quanto tempo duraria essa ajuda. Essa é, pois, a

característica geral das reportagens sobre os personagens envolvidos no “raid”, sempre

vagas e distantes.

Há, entretanto, um ponto que recebe bastante destaque, sendo repetido em várias

reportagens, o de que a jangada iria ser oferecida como presente pelos jangadeiros ao

presidente argentino e que esta ficaria sob a guarda de um museu. Essa informação é

explicitada na reportagem do dia 24 de abril de 1959, reportagem que está na quinta

página do jornal, quando (...) o senhor Hernán Girault, intendente municipal resolveu decretar determinando que a embarcação seja colocada em exposição no ponto mais visitado da cidade, que é a Avenida 9 de julho. Assim sendo, mesmo depois de que seja simbolicamente entregue ao Presidente Frondizi, a jangada, antes de ser recolhida ao Museu do Governo, permanecerá ainda durante vários dias em exposição.

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Depois dessa reportagem que fala da chegada dos jangadeiros em Buenos Aires

temos apenas duas reportagens que vão tratar do retorno dos jangadeiros. Para esse

retorno a única preocupação não eram as melhorias alcançadas para os trabalhadores do

mar, nem o alcance ou o cumprimento de exigências feitas para a melhoria de vida e

trabalho dos mesmos, a única coisa que importava era como prestar as devidas

homenagens aos homens que realizaram o feito de bravura, coragem e prova física que

teria sido o “raid” Kubitschek-Frondizi, esquecendo todo e qualquer vestígio das

implicações políticas que faziam parte do “raid”.

A história do “raid” Kubitschek-Frondizi é uma pesquisa que nos instiga a ir

sempre mais a fundo, porque sempre nos surpreende por ser repleta de exageros, seja de

grandezas, seja de ausências. Foi uma viagem de seis mil quilômetros num mar

turbulento, cheio de tempestades e diante da grandiosidade do trajeto nos

surpreendemos com a embarcação frágil que faz esse percurso: uma embarcação

simples, sem proteção, sem tecnologias, como radares ou cartas náuticas, sem rádio, e

com seus simples tripulantes que levavam uma única muda de roupa e suas experiências

da lida cotidiana, desde a infância, com o mar.

E também nos surpreendemos que mesmo diante de tal façanha, parece existir

nos jornais uma ausência de informações, um aparentemente desinteresse pela vida

desses singulares aventureiros e pelos mais variados motivos que os instigavam a se

lançarem ao mar, arriscando as próprias vidas. É esse ponto específico que nos dá cada

vez mais a certeza de que é preciso ir além, nas pesquisas, avançando no sentido de

demonstrar as possibilidades que as fontes hemerográficas podem nos fornecer, mas

também, senão principalmente, perceber os seus limites enquanto um meio de

comunicação que modifica sua relação com os mais humildes, que utiliza as páginas de

seus jornais de maneira nada inocente (e não poderia), mas reservando espaços de

tamanhos e destaques específicos para determinadas reportagens nos fazendo perceber

não só as informações da viagem, mas também que os espaços reservados a ela tem tudo

a ver com a percepção que os meios de comunicação tiveram do “raid” e do limite que

queriam impor aos jangadeiros e seus feitos.

Os jangadeiros em foco: algumas considerações finais

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Concluindo, ainda que parcialmente, essa pesquisa, consideramos que o papel e

o tratamento conferido aos jangadeiros cearenses nas três viagens ocorridas em 1941,

1951 e 1958 sofreram profundas modificações. Responde por elas, em grande parte, o

contexto político em que se realizaram, bem como o perfil da Imprensa nos diferentes

momentos.

Em 1941, vivíamos sobre a ditadura do Estado Novo (1937-1945), estando à

frente do Governo Brasileiro o gaúcho Getúlio Vargas. Nessa ditadura os órgãos de

censura, os Departamentos de Imprensa e Propaganda (DIP) e os Departamentos

Estaduais de Imprensa e Propaganda (DEIP) buscavam orientar e controlar aquilo que

fosse divulgado pelos meios de comunicação, em especial a Imprensa. É claro,

entretanto, que a intensidade desse controle era diferente nos grandes centros, em

relação a áreas mais afastadas dos centros de poder.

A viagem de Tatá, Manuel Preto, Jerônimo e Jacaré foi realizada com o

consentimento das autoridades estadonovistas31. Não é demais enfatizar que a proposta

político/cultural do Getulismo colocava na centralidade o trabalhador brasileiro, tão

bem representado pelos jangadeiros da São Pedro. Além da questão da censura, que por

si só, não explica o comportamento de grande parte dos jornais à época, havia, ainda a

adesão dos jornalistas ao nacionalismo pregado pelas autoridades do Estado Novo32.

Estava sendo gestado naquele momento aquilo que a historiografia chamará de

Trabalhismo33. Chateaubriand, por ocasião dessa primeira viagem, estava travando

ótimas relações com Vargas, fato que repercutirá no apoio dos veículos de comunicação

a ele vinculados as iniciativas do governo34.

Em 1951, com Vargas novamente no poder, em um regime democrático, não é

mais os jornais dos Diários Associados o patrocínio jornalístico da viagem e sim do

jornal O Globo, de propriedade de Roberto Marinho. Apesar disso, ainda é bastante

destacada a viagem dos jangadeiros, apesar de transparecer certa descrença dos

jornalistas com a ação do governo em relação às demandas, o que reflete a difícil

31 Cf. a esse respeito ABREU, Berenice. O raid da Jangada São Pedro: pescadores, Estado Novo e Luta por direitos. Op. Cit. 32 Sobre os Intelectuais e o Estado Novo Cf VELLOSO, Mônica Pimenta. Os Intelectuais e a Política do Estado Novo In FERREIRA, Jorge e DELGADO, L. A. N. (orgs) O Brasil Republicano. V. 2: O tempo do nacional-estatismo. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 145-179; GOMES, Ângela de Castro. A invenção do Trabalhismo. Rio de Janeiro: IUPERJ. São Paulo: Vértice, 1988. 33 Cf. FERREIRA, Jorge. O Imaginário trabalhista. Op. Cit. GOMES, Ferreira. A Invenção do Trabalhismo. Op. Cit. 34Cf. MORAIS, Fernando. Chatô, o Rei do Brasil. Companhia das Letras, 1994.

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relação de Vargas com figuras influentes do meio empresarial brasileiro, como era o

caso, naquele contexto, com Chateaubriand. Com certa freqüência é enfatizado o fato de

que os jangadeiros vão “cobrar” promessas anteriormente feitas e não cumpridas. Mas a

figura do jangadeiro, como bravo, destemido, etc. ainda é enfatizada. Essas reportagens

referentes ao raid ainda ocupam as primeiras páginas, sendo ilustradas, no mais das

vezes, com fotografias.

Em 1958, entretanto, essa situação muda. O nome da jangada, da esposa de João

Goulart, vice-presidente da República nem sequer é explicado ou comentado pelos

jornalistas, que não conseguiram, ou não quiserem, perceber a relação que os

jangadeiros estabeleceram com Vargas e com o trabalhismo35, consolidado com o

herdeiro político de Vargas, o também gaúcho João Goulart.

Aqui situamos um momento em que esses trabalhadores já não encontram mais

na imprensa um canal de denuncia e de mediação com a sociedade. As matérias falam

dos jangadeiros e de sua viagem, mas com pouca ênfase, relegando para eles,

normalmente, as últimas páginas. Além disso, não aparece mais a voz desses

trabalhadores comentando sua vida, a miséria em que vivem suas demandas, enfim. Se

fala sobre eles, para, inclusive, decretar-lhes sua “morte”, tendo em vista os métodos

tidos como “ultrapassados” com que trabalham. O tempo da velocidade e do

desenvolvimentismo não concedia mais espaço para práticas “arcaicas” como aquela.

Ao invés da voz dos jangadeiros, é dada voz a especialistas que, por ocasião da viagem,

ocupam as páginas do jornal com suas opiniões sobre as “verdadeiras” soluções para o

problema da pesca no Brasil. Na perspectiva desses novos “ilustrados” a jangada e o

jangadeiro estavam condenados a figurar bucolicamente nas telas de nossas pinturas e

nas páginas da literatura.

Mas, essa sentença de morte não é exclusiva do desenvolvimentismo dos anos de

1950. Por ocasião da viagem de 1941, enquanto a jangada São Pedro era visitada na

Cinelândia, na capital da República, várias matérias veiculadas em jornais locais e na

cidade do Rio de Janeiro, já sinalizavam para o fim próximo da jangada. Discuti essa

questão em minha tese de doutorado36.

35 Sobre o trabalhismo e João Goulart, Cf. FERREIRA, Jorge. O Imaginário Trabalhista. Getulismo, PTB e Cultura Política Popular: 1945-1964. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. 36ABREU, Berenice. O raid da Jangada São Pedro. Op. Cit.

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Apesar dessa previsão de morte37, os jangadeiros do Ceará persistem em

assombrar a sociedade brasileira com suas viagens. Em plena ditadura militar, o mestre

Eremilson, também poeta como Jacaré, arruma sua jangada e vai à luta, conseguindo

finalmente para os pescadores a aposentadoria. Nos anos de 1990 é a vez de uma

jangada partir dos mares da Prainha do Canto Verde para denunciar38. E os “amigos de

todos os tempos”, seguiram as trilhas abertas pelas jangadas cearenses, a quem

imaginavam estarem definitivamente enterradas? Mas essas são outras histórias, em

velhos mares, que deixamos para outro momento da pesquisa.

Bibliografia.

ABREU, Berenice. O raid da Jangada São Pedro: pescadores, Estado Novo e Luta por

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OS NOVOS DOMÍNIOS DE CLIO: HISTÓRIA CULTURAL, CAMPO DE SABER, CONCEITOS E POSSIBILIDADES.

Telma Bessa Sales1

Francisco Diego Soares Farias2

Resumo: Nessa ocasião apresentamos uma discussão sobre as transformações ocorridas

no seio da constituição da disciplina História na segunda metade do século XX. Neste

processo foram propostas novas problemáticas, outros olhares, interpretações e, por que

não dizer, uma “nova” forma de fazer a História, abordar e narrar o passado,

culminando com a promoção da famosa ”Nova História Cultural.” Contudo, nos

debruçaremos de início na tentativa de desvendar, ir mais ao fundo e portanto, escavar

mais o campo de saber de nossa disciplina, objetivando explicitar o por quê dessas

transformações; como se deram e suas conseqüências. Partimos nesse trabalho de

alguns apontamentos levantados de início por Sandra Jatahy Pesavento em seu livro

História & História Cultural, no entanto, tentamos aprofundar algumas das questões

levantas pela autora indo além de seu texto.

Palavras-chaves: Clio. História. Cultura.

Abstract: On this occasion a discussion of the changes occurring within the constitution

of the History in the second half of the twentieth century. In this process, new problems

have been proposed, other viewpoints, interpretations, and, for that matter, a "new" way

of doing history, address and narrating the past, culminating in the promotion of the

famous "New Cultural History." However, we will lean start trying to figure out, go to

the bottom and therefore dig the field of knowledge of our discipline, aiming to explain

why these transformations, as given and its consequences. We started this work at first

raised some notes by Sandra Jatahy Pesavento in his book História & História Cultural,

however, try to delve into some of the issues rise up beyond the author of your text.

1 Professora Efetiva do Curso de História da Universidade Estadual Vale do Acaraú – Sobral-CE. 2 Graduando em História na Universidade Estadual Vale do Acaraú – Sobral-CE. Artigo recebido em 02/12/2011. Aprovado em 16/12/2011

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Keywords: Clio. History. Culture.

INTRODUÇÃO

“Para que haja disciplina é preciso, pois, que haja possibilidade de formular, e de formular indefinidamente, proposições novas” (Michel Foucault) 3

O Monte Parnaso, onde residem as Musas, vive um momento ímpar no decorrer

de toda sua história: nunca nesse lugar se vivenciou, epistemologicamente falando, a

efervescência das transformações do saber histórico. Nem mesmo Clio, a musa da

História, e principalmente seus pais Zeus e Mnenósine, poderiam imaginar como os

domínios de sua filha estavam tão em alta e bem diversificado entre as ciências. Sua

mãe Mnenória (memória) confirma isso, ao relatar no Monte Parnaso que as coisas

mudaram, que os domínios de sua filha se entenderam mundo a fora e que novos

objetos, temáticas e olhares vieram a tona, apaixonando os seres humanos, levando-os a

elegerem Clio como rainha das ciências legitimando-a diante das outras musas na

autoridade de registrar o passado e narrar sua historicidade.

Contudo leva-nos de imediato a questionarmos porque o Monte Parnaso vive um

momento singular? Quais motivos contribuíram para essa situação? Por que Clio foi

promovida? Que transformações foram estas? E quais suas conseqüências? Para isso

nos transportamos ao Monte Parnaso, e por conseguinte também historicizamos os

domínios de Clio, problematizando seus atributos e explicitando seu raio de ação

atualmente.

Nada mais salutar do que começarmos com a epígrafe acima citada, que nas

palavras de seu autor enuncia: o fio condutor de um campo disciplinar, seja qual for,

sempre será histórico. Assim foi se desenvolvendo e se colocando como novo campo de

saber e como tal, em todos seus momentos e contexto, não pára de se atualizar,

objetivando sempre se aproximar com as verdades, uma vez que, seus construtores (os

homens) a todo tempo buscam suas verdades e utilizam a ciência em prol destas. Dessa

forma definem e redefinem seus objetos de estudos tentando sempre responder suas 3 FOUCAULT,Michel. A ordem do discurso. 7º Ed- São Paulo: Loyola, 1996.

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dúvidas e inquietações, e conseqüentemente colocando em xeque verdades ou esquemas

e estruturas absolutas na explicitação da realidade.

A História como qualquer disciplina está circunstanciada por um movimento

dialético inerente ao seu campo do saber, que por sua vez, inclui e exclui para fora ou

para dentro de seus domínios, conjuntos de saberes, proposições e interpretações. Estes

almejam sempre dar conta de inquietações, na busca incessantemente de

convencimentos para com os homens e suas verdades, e principalmente, com intuito de

explicitar seus objetos de estudo, no caso, o passado:

Redistribuições recorrentes que fazem aparecer vários passados, várias formas de encadeamento, várias hierarquias de importância, várias redes de determinações, várias teologias, para uma única e mesma ciência, à medida que seu presente se modifica: assim, as descrições históricas se ordenam necessariamente pela atualidade do saber, se multiplicam com suas transformações e não deixam por sua vez, de romper com elas próprias. 4

Não podemos negar que todo campo de saber está produzindo continuamente

olhares sobre si mesmo, em conformidade com as metamorfoses inerentes ao seu

interior e exterior, aproximando ou expelindo verdades. Talvez Clio nunca tenha

pesnado que seus domínios se estenderiam tanto a ponto de eles próprios (campo

disciplinar ou produção de saberes) seres problematizados, ao ponto de questionarem se

a História tem ou não compromisso com a verdade e por conseguinte, se é ou não uma

ciência. Embates e conflitos surgem aí dentro dos domínios de Clio, o que, segundo

José d’Assunção Barros, chama de “campos intradisciplinares: divisões dentro do

campo disciplinar que se especializam em outras áreas na História: história das

mentalidades, cultural, econômica, etc”5. Estas mesmas peculiaridades são o ‘carro

chefe’ que contribuem para uma discussão que pode ser positiva ou negativa dentro da

disciplina, à medida que problematiza o real sentido dos embates. Segundo este autor:

Mediante esta regularidade as disciplinas acabam assumindo formas para se estabeleceram frente a outras: dessa maneira, pode se dizer que o processo de surgimento de um novo campo

4 FOUCAULT, Michel. A arqueologia do Saber. 6ª ed. – Rio de Janeiro: Forense Universidade. 2002. 5 BARROS, José D’Assunção. Teoria da História: Princípios e conceitos fundamentais. Petrópolis – Rio de Janeiro: Vozes, 2011.

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disciplinar adquire, por vezes, muito mais a aparência de uma verdadeira luta que se dá no interior da arena científica do que a aparência de um parto.6

É nesse sentido que podemos de início analisar as transformações nos domínios

de Clio e o advento de novos paradigmas de explicação da realidade: 1º) como bem

demonstrou Michel Foucault existe certos números de procedimentos que têm a função

de controlar os discursos e por conseguinte, o saber institucionalizado; 2º) não podemos

estudar as mudanças epistemológicas em uma ciência, no nosso caso a História,

negligenciando os aspectos inerentes ao seu campo de saber, que por sua vez são

invariavelmente atrelados à disciplina e que, de certa forma, são a razão de sua

existência; 3º) é fundamental esclarecer o seguinte ponto: quem cria as ciências é o

homem, e por sua vez, este lhe dá o poder de verdade, pois como bem demonstrou

Nietzshe, “a verdade não é descoberta, ela é inventada pelos homens”7. Não podemos

analisar os domínios de Clio sem primeiro refletir sobre as peculiaridades de uma

disciplina, que, por conseguinte, é de suma importância para nos ajudar a entender e

explicitar o jogo de elaboração de um campo de saber, uma vez que tal exercício nos

possibilitará a elucidar o porquê de suas transformações.

Clio e o saber: uma arqueologia de sua natureza e seus domínios.

Considerando essas explicitações das disciplinas (que consideramos

substancialmente importantes para começar uma discussão sobre as transformações no

domínio de Clio) podemos nos debruçar agora na contemporaneidade da disciplina

História.

Como bem aponta Sandra Jatahy Pesavento a História cultural está em alta,

nunca se produziu e se leu tanta produção cultural em nosso país. Uma ‘virada’,

segunda a autora, localizada a partir dos anos 90 do ultimo século com a tão comentada

crise dos grandes paradigmas explicativos. Atrelado, também ao contexto mundial de

um conturbado mundo pós-guerra que, por sua vez instalara um novo regime de

verdades com o fim de certezas normativas.

6 BARROS.José D’ Assunção.Op.Cit.p.23. 7 MACHADO, Roberto. Foucault, a ciência e o saber.-3ºed.rev e apliada.Rio de Janeiro/;Jorge Zahar Ed, 2006.

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Esse processo interferiu profundamente no âmbito das ciências, em seus

respectivos campos de saberes, proporcionando novos olhares e novas proposições

anteriormente não trabalhadas pelos historiadores, que por conseguinte, culminaram

com o surgimento de novos paradigmas de explicação da realidade. Dentre eles, como

denomina Lynn Hunt a “Nova História Cultural” que se propõe a ler e interpretar o

passado de um prisma culturalista. Os pós-modernistas, assim denominados esses

autores, que contribuíram substancialmente para consolidação das novas propostas,

encaram ou olham para o passado com olhos diferentes, ou porque não dizer duvidosos,

mas que, no entanto, coerentes com o que propõem.

Estudiosos como Antonio Gramsci, Walter Benjamin, Michel Foucault, Michel

de Certeau, Paul Veyne, Bacherlard, Paul Ricoeur contribuíram para as rupturas de

paradigmas, como aponta Sandra Pesavento, são considerados precursores da História

Cultural. Apresentam uma insatisfação aos modelos explicativos da realidade e

alternadamente delinearam novos rumos para a constituição de uma nova forma de

saber. Este processo pode ser caracterizado como uma busca de respostas a

complexidade da realidade hoje, “A era das dúvidas” na intenção da reinvenção do

passado, do resgate dos sentidos conferidos ao mundo através de discursos, imagens.

“Novos olhares” é um termo que exprime bem a nova História cultural, no

entanto cabe uma indagação: como se dá esse novo olhar? As fontes e os fatos não são

os mesmos? Sim! Contudo, o ângulo que esse olhar é incidido sobre esse passado

transformou-se. Uma vez que, com a História cultural, o historiador pode ler suas fontes

são só amparado pela sua empiria, mas também amparado por uma gama de saberes

interdisciplinares que levam a conceber a realidade por vários ângulos, principalmente,

cultural. Levando-se em conta principalmente o lugar social em que este historiador está

inserido, que maneira explícita seu olhar está atrelado, entende-se a complexidade de

relações que se cruzam na historicidade de suas fontes:

O documento, pois, não é mais, para a história, essa matéria de inerte através da qual ela tenta reconstituir o que os homens fizeram ou disseram, o que é passado e o que deixa apenas rastros: ela procura definir, no próprio tecido documental, unidades, conjuntos, sérias, relações. 8

8 FOUCAULT,Michel.Op.Cit.p.7.

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A “nova História cultural” trouxe em seu bojo a complexidade do passado e

principalmente dos textos, não como imagem absoluta do passado, mas como

representação do mesmo. Dessa forma, subjetivou-o seu entendimento, culminando com

um olhar duvidoso, por parte do historiador, que já o concebe como enigmático e opaco,

que as fontes são indícios representativos de uma realidade que foi registrada.

É nessa perspectiva que autores como Paul Veyne, Paul Recouer, Haydem White

dentre outros, afirmaram que a História é uma forma de ficção, tal como o romance, e,

portanto literatura. É nesse sentido que Paul Ricoeur lançou, entre 1983 e 1985, os três

volumes de sua obra tempo e narrativa. Para ele a ficção é quase história, assim como a

História é quase uma ficção.9

É nesse ângulo e principalmente com a contribuição desses autores que os

domínios de Clio foram se constituindo com novas interpretações e indagações. Um dos

maiores responsáveis por essas transformações para a História foi a sua aproximação

com outras disciplinas ou outras formas de saberes, como por exemplo, a antropologia,

nesse sentido, como bem demonstrou Gramsci “nada e ninguém é o mesmo depois de

um contato”10, o que indiscutivelmente aconteceu com Clio. A “nova História Cultural”

ao abrir um leque de novos objetos de estudo também se municiou de novos saberes

para melhor diagnosticar a realidade e, por conseguinte, se aproximar melhor da

historicidade do passado. É nessa perspectiva que os principais diálogos que se deram

no seio da História Cultural foram: a História com a arquitetura (ou ao urbanismo); a

História a Arte e imagens; a História e a Literatura e principalmente entre a História e

Antropologia/Filosofia e Sociologia.

Foi com esses instrumentos que seu discurso ganhou força dentro do mundo

epistemológico, o que, por sua vez, possibilitou, por conseguinte, novos campos de

atuação para o historiadores, com novos objetos de pesquisas, tais como: a escrita e a

literatura, pois o historiador passou questionar sobre quem fala e de onde fala, como os

discursos são forjados na construção do real ou na representação deste. Uma outra

questão é uma nova leitura do político pelo cultural na análise de discursos que

9 PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & História Cultutal. 2º Ed.reimp-Belo Horizonte: Autêntica, 2005. 10 GRAMSCI, Antonio. Concepção Dialética da História. 7ºed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.S.A,1995

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objetivam representar, e estabelecer relações de força e poder. As cidades passam a ser

um campo inesgotável de possibilidade para o historiador, uma vez que permite a

interdisciplinaridade tanto com sociólogos, urbanistas, antropólogos e etc. Assim como

abre uma gama de problemática, (imaginário, representação, cultural, etc).

Outra dimensão que podemos enunciar diz respeito às relações entre a História e

a Literatura, uma vez que esta última tenta dar conta daquilo que o real não consegue

formular, segundo Pesavento “Clio e calíope participam da criação do mundo, como

narrativas que falam do acontecido e do não acontecido, tendo a realidade como

referente a confirmar, a negar, a ultrapassar, a deformar”. 11. Um outro campo de

pesquisa da História Cultural diz respeitos as imagens, que não deixam de ser conjunto

de enunciados como os discursos na (des)construção da realidade. A memória e

historiografia se constituem outro fértil campo para o historiador cultural a medida que

representam algo sem precisar de instrumento sólido ou escrito.

Como podemos perceber, Clio mais do que nunca saiu revitalizada de sua crise,

conseguiu renovar suas forças e fortalecer suas bases e suas propostas frente as questões

levando por um novo contexto pós-moderno que emergiu. Como por exemplo, os novos

métodos que foram desenvolvidos dentro do seio da “nova História cultural” que

permitiram, até certo ponto, propor que a “História é uma ficção controlada pelas

fontes.” Esta pode se prestar à testagem, ou análise desse passado, segundo Pesavento:

“a História é a ficção controlada pelo recurso ao extratexto, que é também registro e

marca que revelam a exemplaridade do método segundo, a compor, estabelecer

analogias, contrastar, superar, enunciados anexos.”12

Nesta nova empreitada seus métodos foram sendo lapidados para melhor dar

conta de seus objetos de estudos, a medida que novos olhares e descobertas foram

sendo apontadas. De certo modo, diferentes tipos de análise foram sendo elucidadas e

colonizadas de outras disciplinas, na busca de uma compreensão e análise dos materiais

empíricos a partir de um prisma cultural. Clio, portanto, se definiu e se redefiniu

inovando em seus domínios e forjando novos conceitos explicativos para seus objetos

de estudos e temáticas propostas. Dentre elas podemos aqui citar quatro principais

11 PESAVENTO,Sandra Jatahy.Op.Cit.p.80. 12 _______________________.Op.Cit.p.67.

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instrumentos que Clio trouxe para o seu metier que foram de suma importância para sua

revitalização e triunfo no Monte Parnaso: Representação, imaginário, narrativa e

sensibilidades que trataremos nas próximas linhas.

Clio e seus novos parceiros.

Um dos primeiros conceitos que Clio trouxe aos seus domínios foi o da

representação, que por sua vez, está atrelado aos processos de legitimação, exclusão,

reconhecimento, identificação, classificação, identidade etc...Com esse conceito a “nova

História cultural” pode analisar como os homens estabelecem ou projetam tanto a si

mesmo como o mundo, identificando e construindo sentidos para os objetos e suas

respectivas realidades. Sobre isso comente Pesavento:

Construídas sobre o mundo não só se colocam no lugar deste mundo, como fazem com que os homens percebam a realidade e pautem a sua existência. São matrizes geradoras de condutas e práticas sociais, dotadas de força integradora bem como explicativa do real.13

As representações constroem o real, isto é, a partir deste se consolida dando

sentido a uma certa realidade, assume o poder de se colocar frente a esta.

Tal conceito veio para a História cultural como um poderoso instrumento que

melhor se aproxima dos estudos culturais, que sua vez, deseja entender as concepções

de como a sociedade em cada momento organiza seus símbolos, concebe-os e decifra

seu mundo, ou melhor dizendo, lêem e interpretam as coisas. Podemos citar, a titulo de

exemplo dois belos trabalhos que se enquadram nessa linha de pesquisa e que trabalham

exclusivamente com as representações. O primeiro deles é o livro de Serge Gruzinski:

“A guerra das imagens: de Cristovão Colombo, a Blade Runner (1492 – 2019). Nada

mais interessante de que estudar a forma como o homem branco representou a América

e conseqüentemente os povos ameríndios. Dentro dessa linha culturalista permitiu

Gruzinski analisar o processo de nomeação, por parte do colonizador, da população

americana projetando uma identidade tanto para os nativos quanto para seu mundo, por

meio, principalmente, do confronto simbólico.14 É nessa linha da representação o

13 PESAVENTO,Sandra Jatahy.Op.Cit.p.39. 14 GRUZINSKI, Serge. A guerra das imagens: de Cristovão Colombo a Blade Runner (1492-2019) – São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

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espetacular trabalho de Edward Said: “Orientalismo: O Oriente como invenção do

Ocidente”. Com o conceito de representação este autor analisa e estuda o orientalismo,

conceito que para ele estabelece uma relação de poder que ,por sua vez legitima e

codifica relações sociais, econômicas e de dominação. O processo de construção de uma

representação do oriente para ocidente forjada a partir de um prisma cultural.15 A

representação aí é um conceito riquíssimo nesse estudo, à medida que através dela pode-

se analisar o jogo de construção dos sentidos e significados da realidade.

O imaginário passou a fazer parte das ferramentas utilizadas para Clio estender

mais seus domínios e se consolidar entre as musas. Conceito este que, ao nosso

entender, se diferencia da História das mentalidades de Jacques Le Goff, uma vez que,

o imaginário trabalha em uma perspectiva dialética em que “formula o real e o pólo real

é trabalhado, num constante movimento de circularidade”.16

Nessa medida a “nova História cultural,” através desse conceito, estuda como os

homens a cada tempo constroem e projetam sentidos aos seus mundos. Como

representam a si mesmos e a realidade: através de uma rede de símbolos forjam as

conjunturas e formações sociais. Dotam, por sua vez, os significados vazios de sentidos,

atualizando sempre a reversibilidade das imagens. Elucidando ressonâncias que

camuflam por instantes sua infinita polifonia:

O imaginário trabalha um horizonte psíquico habitado por representações e imagens canalizadoras de afetos, desejos, emoções, esperanças, emulações, o próprio tecido social é urdido pelo imaginário suas cores, matrizes, desenhos reproduzem a trama do fio que os engendrou. 17

Dessa forma o imaginário é de suma importância para os estudos culturais, uma

vez que nenhuma sociedade pode ser estudada fora dessa categoria. Porque os homens

constroem sistemas de referencias ou representações coletivas na trama de forjarem um

mundo paralelo de sinais e símbolos, que por sua vez constroem a realidade de maneira,

15 SAID,E dward W. Orientalismo: o Oriente como invenção. São Paulo: Companhia das Letras.1990. 16 SÔNIA et all. Org. Tânia Navarro.História no plural. Swain-Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1994. 17 ____________.Op.Cit.p.48.

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até certo ponto, coesa. Articulam e vão dando dessa forma, sentidos a mesma e dotam

de significados os objetos a sua volta.

A narrativa passa a ser outro elemento incluído para dentro do campo de saber

histórico. Esta por sua vez traz consigo mesma uma forte discussão nos domínios de

Clio. Uma vez que, é exatamente a partir desse conceito que Clio vai ser questionada

ou problematizada quanto ao seu caráter cientifico ou literário e, portanto ficcional.

Pois, a História enquanto narrativa não teria a potencialidade de explicitar verdades ou

totalidades, mas, assim com a literatura a narrativa histórica seria atrelada com uma

intriga, que por sua vez, deveria ser esmiuçada tendo em vista a aproximação com o

passado e principalmente representá-lo. No entanto, com uma diferença crucial: o

literato inventa seus fatos, que para ele é sua matéria prima de produção, o que difere do

historiador, que deve debruçar-se em cima de seu material empírico. Contudo, ambas as

operações estão circunstanciadas pela organização de um enredo na composição de uma

narrativa.

O passado morto, ou seja, encerrado como tal, através da narrativa pode ser

representado e substituído pelo sentido que o historiador lhe dá. É exatamente nesse

sentido que as palavras, ou melhor, o discurso atrelado a um saber, que por sua vez,

exerce poder de nomeação, mostra a sua potencialidade.

A narrativa consegue ocupar o lugar do passado, trazer a tona uma população de

mortos, “coloca os estranhos num lugar útil ao discurso, dá inteligibilidade exorcizando

o incompreendido para ele fazer o meio de uma compreensão”18 e dessa forma consegue

exteriorizar seus sentidos para o presente:

A escrita tem como alvo uma eficácia social. Atua sobre sua exterioridade. O laboratório da escritura tem como função “estratégica” ou fazer que uma informação recebida da tradição ou de fora se encontre aí coligida, classificada, imbricada num sistema e assim transformada, ou fazer que as regras e os modelos elaborados neste lugar excepcional permitam agir sobre o meio e transformá-los. 19

18 CERTEAU, Michel. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense, 1982.

19 ________________. A invenção do cotidiano. Petrópolis, RJ. Trad: Ephraim Ferreira Alves: Vozes, 1994.

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Os textos sejam historiográficos ou propriamente as textualidades das fontes

tornam-se aí um campo de muitas interrogações, uma vez que, pressupõe de imediato o

vazio impreenchível que existe entre as palavras e as coisas, estas primeiras não

conseguem expressar absolutamente as últimas, pois são sempre pobres e vazios de

significados na exteriorização da realidade e de algo.

As mesmas palavras, ou melhor, o conjunto delas e portanto os enunciados, ou

seja, o discurso já se encontra “articulado nesse meio-silêncio que lhe é prévio [...] a

presença repressiva do que ele não diz: e esse não-dito seria um vazio minando, do

interior, tudo que se diz.”20 Tornando, por conseguinte a escrita escorregadia, isto é,

fazendo com que ela fuja do nosso controlo, como demonstrou Ítalo Calvino “não

existe linguagem sem engano.” Portanto, o texto passa a ser um lugar de possibilidades,

interpretações e, dessa forma, perdemos a sua direção, tornando-se um poderoso animal

indomável.

Um outro conceito nos domínios de Clio ainda se impõe: as sensibilidades:

“uma esfera primária das percepções humanas no mundo”. Tal conceito trouxe para o

seio da História o estudo das subjetividades humanas, pois a História caberia estudar os

homens e, portanto sua experiência. Entendemos que esta é formada tanto por seus

sonhos, fantasias, angustia e esperanças quanto por seu trabalho, leis e organização

social. Pois o processo mental que codificamos é como a capacidade de criar e projetar

imagens ou representações, é um lugar comum, em que todas as nossas ações

antecipadamente são concebidas e, por conseguinte, efetivadas. Essa conjuntura deve

ser levada em conta ao estudarmos o contexto de ação de nossos personagens, pois

segundo Pesavento:

As sensibilidades seriam, pois, as formas pelas quais indivíduos e grupos se dão a perceber, comparecendo como um redutor de tradução da realidade por meio das emoções e dos sentidos. Nessa medida, as sensibilidades não só comparecem no cerne do processo de representação do mundo, como correspondem, para o historiador da cultura, aquele objeto a capturar no passado, à própria energia da vida. 21

20 FOUCAULT,Michel.Op.Cit.p.28 . 21 PESAVENTO,Sandra Jahy.Op.Cit.p.57.

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Nessa medida caberia ao historiador descobrir a inteligibilidade das

subjetividades, dos sentimentos e emoções circunscritos nas materialidades, que por sua

vez, desempenham a função de exteriorização das experiências dos indivíduos em todo

o tempo. As sensibilidades exprimem o imaginário culturalmente, e portanto

historicamente construído, que os homens utilizam para se perceberem a si mesmos e o

mundo a sua volta, estabelecendo significados para a realidade e dessa forma forjando

também esta.

Considerações

Como podemos perceber Clio saiu mais revitalizada do que nunca de sua crise,

conseguiu a partir de seus momentos de decadências, por parte de alguns de seus

paradigmas, forjar novos e, por conseguinte atualizar suas ferramentas de

desvendamento da realidade. Se pensarmos como estas últimas são dialéticas que quase

sempre não saem da moda, entendemos o porquê de todas estas renovações e

atualizações que Clio proporcionou aos seus domínios.

Clio trouxe a cena instrumentos poderosos para atender as suas necessidades

frente as outras ciências na busca de construção de verdades. Gestando, ou melhor,

apontando questões que muitos investigadores não percebiam ou negligenciaram por

muitos tempos, detendo-se exclusivamente a análises fechadas e ao “pé da letra,”

esquecendo ou ignorando as sensibilidades simbólicas inerente aos seres humanos e a

sociedade. Deixando de lado pequenos ou “meros” ritos, símbolos e representações que

não serviam de quase nada, mas que, para Clio hoje e seus paradigmas culturalistas,

tornaram-se um campo inesgotável de historicidades como um abismo que quanto mais

se cava mais distante ficamos de seu fim.

No entanto, é importante perceber que a “Nova História Cultural” não é a única

ramificação da História com resultados positivos para a disciplina, todos nós sabemos

dos ganhos obtidos com História social, marxista e positivista. Ou ainda, que a História

Cultural seja a forma ou metodologia mais eficaz no estudo do passado. Sabemos de

seus limites e fragilidades, e daqui algum tempo, como afirmou Peter Burke “acontecerá

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uma reação a cultura,”,22 porém, importa reconhecer e preservar os resultados

alcançados pelos estudos culturalistas mundo a fora.

Clio certamente registrou em seus Anais e nas folhas do monte Parnaso, forjando

sua memória para as gerações seguintes também experimentarem o momento de seu

triunfo, assim como, mais uma vez, sua contextualização com o presente, não perde seu

status e título, apesar de estudar e narrar o passado, é também hoje, musa da moda.

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