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REVISTA ELETRÔNICA DE HISTÓRIA DO BRASIL
http://www.rehb.ufjf.br
ISSN 1519 - 5759 [email protected]
Publicação Semestral Universidade Federal de Juiz de Fora
Departamento de História
Arquivo Histórico da UFJF Clio Edições Eletrônicas
Juiz de Fora - MG - Brasil
Revista Eletrônica de História do Brasil Volume 9 - Número 1 - Jan.-Jul. 2007
1. História do Brasil 2.Periódicos Eletrônicos: História
UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA
Reitor: Henrique Duque de Miranda Chaves Filho Vice-Reitor: José Luiz Rezende Pereira
Pró-Reitora de Pesquisa: Profa. Dra. Marta Tavares D'Ágosto
Revista Eletrônica de História do Brasil
Editora Carla Maria Carvalho de Almeida Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)
Instituto de Ciências Humanas (ICH) Departamento de História
Campus Universitário 36036-330
Juiz de Fora - MG Fone: (32) 3229-3109
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da revista, pode ser reproduzida eletronicamente ou impressa, desde que mantida sua integridade.
Conselho Editorial Profa. Drª. Carla Maria Carvalho de Almeida (UFJF) ([email protected]) – Organizadora deste número Profa. Dra. Cláudia Maria das Graças Chaves (UFOP) ([email protected]) – Organizadora deste número Profa. Dra. Cláudia Ribeiro Viscardi (UFJF) Prof. Galba R. Di Mambro (UFJF) Profa. Dra. Patrícia Falco Genovez Prof. Dr. Renato Pinto Venâncio (UFOP)
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Revista Eletrônica de História do Brasil. Juiz de Fora: Departamento de
História e Arquivo Histórico da UFJF, 2007, volume 9, número 1, jan-jul, 2007,
236 p., http://www.rehb.ufjf.br .
ISSN 1519-5759
1. História do Brasil 2. Periódicos Eletrônicos: História
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Bolsista Bianca Portes
SUMÁRIO
DOSSIÊ: BRASIL REPÚBLICA
MINAS GERAIS E A CADEIA GLOBAL DA “COMMODITY” CAFEEIRA – 1850/1930 Anderson Pires ................................................................................................................................... 05 CERVEJA E AGUARDENTE SOB O FOCO DA TEMPERANÇA NO BRASIL, NO INÍCIO DO SÉCULO XX Teresa Cristina de Novaes Marques................................................................................................... 48 URBANIZAÇÃO E PODER: ELITES POLÍTICAS E A MODERNIZAÇÃO DE PIRACICABA NA I REPÚBLICA Eliana T. Terci.................................................................................................................................... 71 REVISITANDO O PROBLEMA DA HISTÓRIA EM OLIVEIRA VIANNA Maro Lara Martins ............................................................................................................................. 95 A FORMAÇÃO DE UM PENSAMENTO TÉCNICO-INDUSTRIAL NO EXÉRCITO DURANTE O PRIMEIRO GOVERNO VARGAS: O CÍRCULO DE TÉCNICOS MILITARES Alexandre de Sá Avelar ................................................................................................................... 109 O CRÉDITO RURAL PÚBLICO NUMA ECONOMIA EM TRANSFORMAÇÃO: CRIAÇÃO E INÍCIO DO FUNCIONAMENTO DAS ATIVIDADES DE FINANCIAMENTO AGROPECUÁRIO DA CARTEIRA DE CRÉDITO AGRÍCOLA E INDUSTRIAL (CREAI), DO BANCO DO BRASIL (BB) - 1937 A 1945 Paulo Roberto Beskow..................................................................................................................... 126 CARLOS LACERDA E O PENSAMENTO ECONÔMICO DOS GRUPOS POLÍTICOS NO BRASIL NO PÓS-1945 Marcio de Paiva Delgado................................................................................................................. 161 O REGIME MILITAR, A PREVIDÊNCIA SOCIAL E O EMPRESARIADO Ignacio Godinho Delgado ................................................................................................................ 177 EM PAUTA: O MOVIMENTO MILITAR DE 1964 - SOB A ÓTICA DE UM JORNAL JUIZFORANO Flávia Maria Franchini Ribeiro........................................................................................................ 196 JOVENS PESQUISADORES MEMÓRIA “SUBTERRÂNEA” NA CONSTITUINTE DE 1946: UM MOMENTO PARA REPENSAR O PASSADO “TRAUMÁTICO” Mayara Paiva Souza......................................................................................................................... 213
OS ARQUIVOS DA REPRESSÃO E A LUTA PELA MEMÓRIA DA DITADURA MILITAR Isabel Cristina Leite ......................................................................................................................... 224
MINAS GERAIS E A CADEIA GLOBAL DA “COMMODITY” CAFEEIRA – 1850/19301
Anderson Pires*
Resumo: O objetivo deste trabalho é o de reavaliar a importância e o significado histórico da economia agrária de exportação que se desenvolveu em Minas Gerais, especialmente naquela que foi sua principal região produtora no correr de todo o período de análise – a Zona da Mata mineira. Lançando mão de alguns instrumentos teórico-analíticos originados na obra de Innis e seus seguidores, e de outros, mais contemporâneos, como os que vêm sendo apresentados pela denominada “Global Commodity Chains” (rede ou cadeia mundial de mercadorias), tentaremos verificar devidamente a posição desta economia não apenas frente ao contexto regional e nacional no qual se desenvolveu, mas principalmente no âmbito do mercado internacional, historicamente constituído e definido no período em referência. Para isso, dividiremos o trabalho em 4 partes: na introdução faremos uma síntese genérica dos principais argumentos das tendências interpretativas utilizadas; na segunda, uma avaliação da posição da economia regional frente ao quadro internacional da economia cafeeira no período; segue-se uma investigação das transformações internas na própria economia da Mata, sua diversificação econômica e o papel das exportações e, por fim, uma conclusão onde iremos esboçar outros modelos de explicação da evolução e o papel da economia cafeeira da Mata. Palavras-Chave: Economia Cafeeira, História Financeira e Bancária, História Econômica de Minas Gerais Abstract: The aim of this work was to reassess the importance and the historical meaning of the agrarian exportation economy that developed in Minas Gerais from 1850 to 1930, especially in its main producing region during the analyzed period – the Zona da Mata. By using some theoretical-analytical tools originated in the works of Innis and its followers, among others, more contemporary, such as the concepts presented by the so-called "Global Commodity Chain", we will try to verify the proper position occupied by this economy, not only regarding the regional and national context where it developed, but mainly in the scope of the international market, historically constituted and defined in the referred period. For this purpose, the work will be divided in 4 parts: The introduction synthesizes generically the main arguments of the interpretative tendencies used; the second part assesses the regional economy's position regarding the international situation of the coffee economy in that period; then, an investigation on the internal transformations in Zona da Mata's economy is presented, along with discussions about its economical diversification and the role of exportation; to conclude, we sketch new models to explain the evolution and the role of the coffee economy of Zona da Mata. Keywords: Coffee Economy, Financial and Bank History, Economic History of Minas Gerais.
1 Trabalho publicado, com modificações, na Revista Brasileira de Gestão e Desenvolvimento Regional – RBGDR volume 03, número 02, mai/ago. 2007. * Professor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected]
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1. INTRODUÇÃO
A Teoria do Desenvolvimento Voltado para as Exportações é bem conhecida e aplicada por
parte dos economistas sobre a realidade brasileira. No entanto, outro tem sido seu destino e o
acompanhamento de sua evolução por parte dos historiadores ainda voltados para questões sobre a
formação histórica da economia brasileira. Introduzida e generalizada no país a partir da Escola da
Cepal (entre outras vertentes), teve seu destino irremediavelmente atrelado à assim chamada “teoria
dos ciclos de exportação” que, como se sabe, foi idealizada por Lúcio de Azevedo e aplicada entre
nós por Roberto Simonsen2. Se não válida para os economistas, entre nossos historiadores ocorreu
com o tempo uma espécie de “mutação” teórico-analítica reduzindo o conjunto de seu corpo teórico
aos estreitos limites da versão cepalina e à nulidade do simplismo metodológico da teoria dos
ciclos.
Mesmo com o impacto mundial das obras de Watkins, Baldwin e Hirschman, se bem
assimilado pelos economistas, a teoria continuou a ser vista como uma mera extensão da antiga e
extremamente arraigada visão dos ciclos de exportação e não seria propriamente um exagero
afirmar que nossa historiografia a desconsiderou quase que completamente e, por isso mesmo, tem
sido vista de forma extremamente inadequada e defeituosa por parte de alguns historiadores do país.
Poderíamos afirmar, neste sentido, que a Teoria do desenvolvimento voltado para as
exportações, muito além da versão estruturalista-cepalina, encontrou uma forte expressão em outros
países, em especial nos trabalhos de Harold Innis3, historiador da economia canadense cuja obra,
em seu conjunto, tem sido considerada uma das principais contribuições da economia política do
Canadá para a Teoria Econômica em geral e uma das mais poderosas críticas da modernidade que
caracterizaram sua geração (que incluía Polanyi, Luckáks, Mauss)4.
Caberia realizar uma análise mais apurada do conjunto da obra de Innis, conhecida como
“Staple Thesis” e traduzida entre nós como Teoria do Produto Principal, bem como daqueles que
deram o contorno metodológico de sua abordagem. No entanto, a ausência de espaço impede tal
empreendimento, restando a nós destacar apenas aqueles aspectos que nos interessam mais de
imediato aqui.
Dotado de um de um interesse e conhecimento que iam muito além da teoria econômica,
Innis foi um daqueles economistas cujo brilhantismo decorria exatamente de sua variedade e
2 LINHARES, M.Y. E TEIXEIRA, F.C. (1981). História da Agricultura Brasileira: Combates e Controvérsias. Ed. Brasiliense, São Paulo. 3 Ver, entre outros, “The Staple Thesis, 1920-1940”. In A History of Canadian Economic Thought., Routledge, New York and London. BARAGAR, F. (1996). “The Influence of Thorstein Veblen on the Economics of Harold Innis”. Journal of Economic Issues. Vol. 30, n. 3. DRACHE, D.(1995) “Celebrating Innis: The Man, the Legacy and Our Future.” In Id. Staple, Markets, and Cultural Change. McGill Queen’s University Press, Montreal. 4 RAY, A. (2001). “Introduction” In INNIS, H. The Fur Trade in Canadá. Toronto University Press.
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ecletismo disciplinar e metodológico; tinha forte conotação moral do fenômeno econômico, um
pensamento heterodoxo e original que o afastava definitivamente dos estreitos limites da economia
ortodoxa. Innis concebia a economia essencialmente como um fenômeno social com fortes
determinações e condicionamentos recíprocos com os universos antropológicos, políticos e culturais
das sociedades5. Apenas para ficarmos em um exemplo, sua concepção de mercado se aproxima
muito de algumas definições contemporâneas (principalmente antropológicas) e do grande debate
que tem ocorrido em torno delas6. Para ele “...os mercados surgem das relações sociais, (...) e
como principal mecanismo da vida econômica era socialmente determinado e historicamente
construído sobre diferentes condições de produção e diferentes circunstâncias históricas”.7
Desta forma, se o ponto de partida da análise constitui a base de exportação do produto
principal, são as determinações desta com a evolução dos fenômenos sociais, geográficos e
culturais, além das modificações que viriam a sofrer como parte da integração das sociedades ao
mercado mundial, que se colocavam como centro de análise8. Categorias próprias destas economias
como seus mercados internos (anteriores ou concomitantes à expansão do produto principal), as
hierarquias sociais, a organização institucional e o contexto cultural herdado, entre outros, são
considerados imanentes ao funcionamento das economias exportadoras. A confusão entre o
pensamento de Innis e a teoria dos ciclos de exportação só ocorre, assim, por pura ignorância de sua
obra (compreensível em se tratando de um historiador voltado principalmente para um país como o
Canadá), mas tem implicado em um extremo simplismo na sua avaliação e no seu arsenal conceitual
e analítico.
Outro componente essencial de sua abordagem está na consideração e importância dada à
geografia econômica e à questão da distribuição espacial dos mercados. O ponto de partida das
características físicas do produto de exportação (que lhe tem valido a crítica de “determinista
ambiental”9) abriu-lhe um espaço de análise em que os condicionantes naturais terão papel
essencial. Muitos economistas reduziram este aspecto de sua interpretação a uma mera “dotação de
recursos” e às “funções de produção”. No entanto, este componente vai permitir a inclusão de
categorias analíticas de fundamental importância ao corpo geral da abordagem, com destaque para o
condicionamento dos elementos naturais sobre as inúmeras formas de organização da produção,
relações sociais e, principalmente, pela consideração regional e distribuição espacial dos 5 É curioso perceber que Innis se autodenominava “a dirt economist” exatamente por levar em conta estes aspectos dentro do universo da economia, em contraposição aos seus colegas. DRACHE, D. (1995). Op. Cit. p.xv 6 APLLBAUM, K. “The Anthropology of Markets.” (2005). In CARRIER, A Handbook of Economic Anthropology. Edward Elgar, London. J. HUMPHREYS, S.C. (1969).“History, Economics, and Anthropology: The Work of Karl Polanyi.” History and Theory. Vol 08, n. 02. SWEDBERG, R. (1994) “Markets as Social Structures.” In SMELSER, N. and SWEDBERG, R. The Handbook of Economic Sociology. Princeton Uinversity Press. 7 DRACHE, D. (1995). Op. Cit. p. xxxii-xxxiii 8 DRACHE, D. (1995); RAY, J.A. (2001). “Introduction” In INNIS, H. The Fur Trade in Canada. University of Toronto Press. 9 DRACHE, D. (1995). Op. Cit. p. xxiv
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mercados10. A concepção regional da organização das economias de exportação se torna, assim,
quase que um pressuposto de análise e a simbiose homem/natureza, explícita ou implicitamente
presente, surge como um instrumento estratégico de explicação, antecipando várias questões da
“História Ambiental” que vem se desenvolvendo nos dias atuais.
Foi a partir deste universo que surgiram alguns conceitos extremamente caros à abordagem
de uma maneira geral, especialmente aquele dos efeitos de encadeamento (linkages). Na forma
como tem aparecido entre próprios economistas que foram responsáveis pela evolução posterior da
interpretação, ou seja, como “induções” a investimentos decorrentes das características físicas do
produto e que são determinados basicamente por distintas funções de produção11, fica encerrada
praticamente aos estreitos limites da economia stricto sensu. Mesmo Hirschman, outro economista
cujo brilhantismo decorria exatamente do ecletismo e interdisciplinaridade da concepção das
relações econômicas, pela influência marxista quando estudou o assunto12, não levou em conta a
velha tradição de Innis da compreensão das relações econômicas incorporadas ao tecido social. A
reinterpretação do conceito neste sentido ampliaria em muito sua capacidade explicativa e a
compreensão das economias agrárias de exportação.
Mais recentemente tem surgido uma outra teoria que tem como foco central as economias de
exportação e seu maior ou menor potencial de desenvolvimento econômico. Trata-se da abordagem
das Cadeias Globais de Mercadorias (Global Commodity Chains), também com o devido impacto
entre os economistas do país, mas aparentemente ainda desconsiderada pelos historiadores13.
Incorporando e superando a “Staple Thesis”, a abordagem das redes ou cadeias de
mercadorias tornou o produto primário como eixo de análise, mas o fez de uma forma tal que suas
estruturas de produção, redes de comercialização interna e externa, distribuição nos países
importadores e o próprio consumidor final conformam-se em elos de uma cadeia que se torna um
objeto em si mesmo, uma “totalidade” a ser investigada em suas partes constitutivas e
determinações recíprocas. Como são componentes permeados e contextualizados por relações
sociais e que se identificam com distintos campos das Ciências Humanas torna-se desnecessário
insistir na natureza metodológica interdisciplinar da abordagem.
10 Id. Ib. RAY, J.A. (2001). Op. Cit. 11 Ver principalmente WATKINS, M. (1977) “Teoria Primária do Crescimento Econômico”. In SCHWARTZMAN, J. Economia Regional – Textos Escolhidos. CEDEPLAR/REDE MINTER, Belo Horizonte e BALDWIN, R. (1977). “Padrões de Desenvolvimento nas Regiões de Colonização Recente.” In Id. Ib. 12 HIRSCHMAN, A. (1985). “Desenvolvimento por Efeitos em Cadeia: Uma Abordagem Generalizada.” In SORJ, B. Economia e Movimentos Sociais na América Latina. Brasiliense, São Paulo. 13 GEREFFI, G. and KORZENIEWICZ, M. (1994). Commodity Chains and Global Capitalism. Prager, Connecticut/London. TOPICK, S. and CLARENTH-SMITH, W. G. (2003). The Global Coffee Economy in Asia, Africa, and Latin America. Cambridge University Press. SAMPER K. M. (2003). “The Historical Construction of Quality and Competitiveness – A Preliminary Discussion of Coffee Commodity Chains.” In TOPICK, S. and CLARENCE-SMITH, G. op. cit.
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Concebida desta forma, há uma historicidade implícita no conceito. Como raramente estas
redes14 mantêm as mesmas características no correr do tempo, com substanciais modificações desde
a estrutura de demanda até a de produção, sua natureza dinâmica é assumida como um pressuposto
e, portanto, são consideradas em si mesmas como um “constructo” histórico15. Para além das
variações temporais, evidentes em si mesmas quando pensamos no comércio internacional do café,
também ocorrem importantes alterações nos distintos elos dessas cadeias se observarmos sua
disseminação no espaço, em um mesmo período, levando em conta a enorme diversidade em que
vão se concretizar16.
São várias as observações que podem ser feitas como decorrência desta percepção. Para
efeitos desta análise, uma das mais importantes é que ela implica na supressão da entidade Estado
Nacional como o ponto de partida da análise. São os processos de interação entre os universos
micro (aquele da produção realizada em âmbito local e regional) e macro (o próprio mercado
internacional e os países importadores), com os devidos componentes da intermediação comercial
desde a exportação até o consumo final, processos que ocorrem acima e abaixo do âmbito do
Estado Nacional17, que se colocam como o foco central da abordagem.
Em outras palavras, trata-se de ressaltar o avanço analítico da superação daquelas visões que
partiam do conjunto das economias de exportação consideradas como entidades abstratas, sem a
devida diferenciação espacial interna e, normalmente, confundidas com a região de maior
importância na produção deste ou daquele país. Assim, aquelas regiões “secundárias”, de produção
inferior e que muitas vezes se caracterizavam por importantes diferenças locais na organização da
produção, regime fundiário e formas de exploração podem ser compreendidas em toda sua
singularidade. Muitas vezes, elas próprias são percebidas como cadeias específicas uma vez que as
relações que ocorrem entre produtores e os comerciantes internos, beneficiadores do produto ou
mesmo os canais de exportação se alteram significativamente dentro de um mesmo país.
Feitas as observações iniciais para nós importantes, partiremos para uma análise da
economia exportadora cafeeira que se organizou em Minas Gerais no correr do século XIX até o
início do século XX, procurando situá-la principalmente no contexto das economias exportadoras
internacionais além, é claro, do contexto nacional.
14 O conceito foi tomado da sociologia, ressaltando os componentes interdisciplinares da abordagem. Ver Gereffi e Korzeniewicz (1994). Op. cit., p. 07 ss. 15 HOPKINS, T. e WALLERSTEIN, I. (1994). “Commodity Chains in the Capitalist World-Economy Prior 1800”. In GEREFFI, G. e KORZENIEWICZ, M. Op. cit. 16 ROSEBERRY, W., GUDMUNDSON, L. and KUTSCHBACH, M. S. (1995). Coffee, Society and Power in Latin America. The Johns Hopkins University Press, Baltimore and London. SAMPER K. M. (2003). op. cit. 17 GEREFFI e KORZENIEWICZ (1994). Op. Cit. p. 02
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2. MINAS GERAIS E A CADEIA GLOBAL DA “COMMODITY” CAFEEIRA (1850-1930)
São muito reveladores os aspectos que surgem quando tentamos aplicar sobre a economia
cafeeira de Minas Gerais alguns dos conceitos e categorias analíticas herdadas das abordagens ou
teorias que discutimos anteriormente. Em última instância, cabe verificar a forma em que se deu a
inserção da economia cafeeira da Mata mineira no comércio internacional como base produtiva de
uma cadeia específica da “commodity” cafeeira, historicamente delimitada e com a devida
intermediação da rede dos agentes responsáveis pela canalização e distribuição do produto até o
porto do Rio, principal ponto de articulação desta economia com o mercado externo.
De início é importante destacar que a delimitação espacial desta economia salta aos olhos de
imediato, bastando algumas breves observações sobre sua inserção não só no âmbito do aparato
político-administrativo do qual participava, quanto daquele referente ao conjunto da região de
produção agroexportadora do país18.
Quando avançamos neste sentido percebemos que a região aqui em referência se define por
uma série de simetrias e assimetrias, continuidades e descontinuidades, rupturas com o contexto
histórico imediato no qual surgiu e vai se desenvolver19. Se identificada pela natureza exportadora
com as principais regiões cafeeiras do país, será sua inclusão no espaço político-administrativo
mineiro que lhe fornecerá um primeiro contorno importante.
Marcado pela desintegração de seu território, o estado de Minas viveu, na medida em que se
consolidava o declínio minerador, uma reorientação econômica que implicou no surgimento de um
forte setor produtor de alimentos e outros produtos primários voltados para o consumo interno. Ao
mesmo tempo, ao contrário, formou-se e consolidou-se, na região da Zona da Mata, uma típica
economia voltada para a produção e exportação de café que vai gradualmente se tornando o espaço
econômico mais rico de estado desde o final do século XIX até pelo menos o final da década de
192020. A mesma natureza exportadora que identifica a zona da Mata com outras regiões do país
será o principal elemento delimitador de seu espaço no interior do território mineiro.
Se retomarmos a questão da desintegração econômica típica de Minas no período, estes
contornos se tornam mais nítidos ainda. Como resultado do processo já mencionado, o território
mineiro acabou se desintegrando em distintas regiões precariamente integradas entre si e muito
mais voltadas para aqueles estados com os quais mantinham fronteira (o Norte com a Bahia, o
18 PIRES, A. (2004). Café, Finanças e Bancos:Uma Análise do Sistema Financeiro na Zona da Mata de Minas Gerais (1889/1930) 19 CUNHA, A., SIMÕES, R. e PAULA, J.A. (2005). Regionalização e História: Uma Contribuição Introdutória ao Debate Teórico-Metodológico. Texto de Discussão n.26, CEDEPLAR, Belo Horizonte. LAMAS, F.G., SARAIVA, L. e ALMICO, R. (2003). A Zona da Mata Mineira: Subsídios para uma Historiografia. In V Congresso Brasileiro de História Econômica e 6ª Conferência Internacional de História de Empresas, ABPHE, Caxambu. 20 GIROLETTI, D. (1976). A Industrialização de Juiz de Fora. Fundação João Pinheiro, Belo Horizonte.
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Triângulo e o Sul com São Paulo, a Mata com o Rio de Janeiro), ao ponto da noção de “mosaico
mineiro” ser extremamente apropriada para o caso da Zona da Mata, especialmente quando ressalta
o desenvolvimento das distintas regiões do estado “...em diferentes linhas de tempo” 21.
Minas encontra suas raízes e identidade históricas em seu antigo “século do ouro”, com sua
urbanização única, do barroco e do iluminismo, dos movimentos de independência e de sólidos
impactos de integração e diversificação econômicas e de formação de mercados, mas também do
jugo colonial. Em seu período a região da Zona da Mata sequer existia como espaço econômico
uma vez que proibida sua ocupação exatamente para evitar desvios na usurpação do ouro22.
Outras são as raízes históricas da Mata mineira. Aqui temos um exemplo típico da forma em
que se deu a incorporação de diferentes regiões da América Latina ao mercado internacional no
século XIX, na base do liberalismo e do “laissez-faire”, de uma re-elaboração e metamorfose da
relação entre a Periferia e Centro do já consolidado mercado internacional capitalista. Seu processo
de desenvolvimento econômico esteve atrelado completamente à expansão capitalista que ocorreu
ao menos em parte da periferia do sistema mundial no século XIX: a industrialização, a eletricidade,
as estradas de ferro, expansão e consolidação do trabalho assalariado, urbanização capitalista,
“modernização” social e cultural. Neste sentido o desenvolvimento histórico da Zona da Mata foi,
como lembra um velho historiador, uma “...ruptura com o passado histórico de Minas Gerais.”23
Em outras palavras, a evolução histórica, o ritmo e o padrão de desenvolvimento econômico
da zona da Mata destoam significativamente daqueles que caracterizam o conjunto da “unidade”
mineira e, na ausência de seu reconhecimento como tal, a historiografia de Minas tem
desconsiderado o papel de sua região exportadora mais importante, deslocada do universo mineiro
ao ponto de não compartilhar a sua “alma”, uma “estreita faixa de terra”, mera extensão produtiva
da economia do Rio de Janeiro, uma região amorfa, destituída de identidade própria24. Diante deste
quadro algumas generalizações não podem deixar de ser percebidas.
“(...) análises recentes da história econômica de Minas Gerais têm enfatizado o singular processo de crescimento de sua economia no século XIX; e é geral o acordo de que este crescimento não foi diretamente vinculado às exportações. Minas Gerais era uma economia não exportadora, na qual o setor cafeeiro tinha a natureza de um enclave. Neste sentido, mudanças nos recursos originados nas exportações não afetariam direta ou significativamente o nível de renda da província. Como há indícios de que a indústria mineira supria principalmente mercados da própria província, segue-se que a demanda de sua produção não estaria diretamente dependente do nível
21 WIRTH, J. (1982). O Fiel da Balança: Minas Gerais na confederação brasileira – 1889/1937. Paz e Terra, São Paulo. 22 VALVERDE, O. (1958). “O Estudo Regional da Zona da Mata de Minas Gerais.” In Revista Brasileira de Geografia. 20(1) 3-82, jan./mar., Rio de Janeiro. 23 PEDROSA, M.X. (1962). “Zona Silenciosa da Historiografia Mineira – A zona da Mata”. In Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais. 9:189-230, Belo Horizonte. 24 MARTINS, R. (1982). A Economia Escravista em Minas Gerais no Século XIX. CEDEPLAR/UFMG, Belo Horizonte, p. 39; MARTINS, R. e MARTINS, A. (1983). “Slavery in a Nonexport Economy: Nineteenth-Century Minas Gerais Revisited”. Hispanic American Historical Review, 63 (3), 537-568.
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das exportações. Além disso, como uma economia não exportadora, Minas Gerais não se beneficiou de melhorias induzidas pela produção de exportação (...)”.25
Mesmo que válidas para a maior parte do território de Minas, estas afirmações simplesmente
não se enquadram ao contexto da economia da Mata. A caracterização desta economia como um
“enclave”, por exemplo, não resiste ao menor confronto com a realidade, mesmo se restringirmos
tal afirmação para o século XIX. Outro exemplo que deve ser destacado neste sentido se refere a
algumas análises relativas ao processo de industrialização de Minas Gerais e da zona da Mata: em
geral concluem, corretamente, que a indústria em Minas surgiu e se desenvolveu de forma
extremamente descentralizada, com destaque para as regiões não exportadoras, mas desconsideram
o mero fato de que se existem processos de industrialização em áreas de produção agrícola de
mercado interno, isto não significa, necessariamente, que naquelas regiões predominantemente
agroexportadoras do estado o processo de industrialização não tenha fortes vínculos com o setor
cafeeiro26.
Para retomarmos a questão da presença da região dentro do território mineiro, outros
elementos ainda são dignos de nota. A condição interiorana do estado de Minas pode ser analisada
como uma contradição com a natureza externa da economia da Mata, o que marcará definitivamente
sua posterior evolução estrutural, além de avançar na sua definição como espaço agroexportador
próprio. Assim sendo, todo o fluxo de exportação da produção da região será realizado a partir do
aparelho comercial e financeiro localizado no Rio de Janeiro pelo menos até o final do século XIX,
quando ainda era o maior porto de exportação de café do país. Este aspecto é crucial uma vez que
revela que um dos componentes mais importantes da rede de mercadorias aqui em questão (o
espaço de distribuição e comercialização externa do produto) não se definia no mesmo espaço da
produção, uma condição específica e periférica da região no interior desta rede de mercadorias.
Mais ainda se pensarmos que a estratégia utilizada pelas elites mineiras para solucionar o
grave problema de sua integração econômica passou pela criação e construção de um centro
político-administrativo também localizado fora dos limites da região, um outro condicionante
definitivo da posterior evolução de sua economia de exportação.
25 OLIVEIRA, M.T. (1991). The Cotton Textile Industry of Minas Gerais, Brazil: Beginnings and Early Development, 1868-1906. PhD. Thesis, University College, London, p. 17 26 Este é predominantemente o caso de LIMA, J.H. (1981). Café e Indústria em Minas Gerais (1870-1920). Vozes, Rio de Janeiro e de algumas análises para o caso de Juiz de Fora como GIROLETTI, D. (1980). A Industrialização de Juiz de Fora. Op. cit.; ARANTES, L.A. (1991). As Origens da Burguesia Industrial em Juiz de Fora. Op. cit. e OLIVEIRA, M.T. (1991). The Cotton Textile Industry of Minas Gerais, Brazil. Op. Op. cit. Outros vão em sentido oposto:“(...) O fato de que um grande número de indústrias fossem estabelecidas em áreas produtoras de café é uma evidência indiscutível da participação da economia cafeeira no surgimento da indústria em Minas Gerais. (...)”. BIRCHAL, S. (1994). Entrepreneurship and the Formation of a Business Environment in Nineteenth Century Brazil: the case of Minas Gerais. PhD. Dissertation, London School of Economics, London.
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Revelam-se assim dois pontos específicos e representantes da natureza periférica ou
marginal da economia exportadora localizada na zona da Mata, ambos decorrentes de sua posição
interiorana e potencialmente vinculados a espaços de absorção de excedente econômico gerados em
seu interior, ou assimetrias espaciais na distribuição de recursos que vão caracterizar
estruturalmente a economia exportadora da região. O primeiro, representado pelas funções do
capital comercial na absorção de recursos do produtor via comissão e financiamento da produção e
o segundo, representado, por sua vez, pelo núcleo do aparelho político-administrativo do estado e o
que significou na canalização de recursos via impostos sobre exportações (concentrados em sua
principal região cafeeira) e sua distribuição para outras regiões de Minas27.
Mas é o comportamento da produção da região e sua posição dentro do comportamento da
produção do país e, principalmente, dela, isoladamente, frente àquele dos principais produtores
mundiais –em mais uma aproximação com a abordagem das redes mundiais de mercadorias- que
vão se colocar, talvez, como os principais delineadores da Mata como um espaço agroexportador
próprio.
A Cadeia Global do café sofreu importantes mudanças no correr do século XIX28. Seu
espaço social de demanda vinha se transformando substancialmente desde o final do século anterior.
De uma bebida exótica e de luxo, restrita ao consumo das elites, o café gradualmente foi se
incorporando ao crescente mercado de consumo de massa inerente à expansão industrial que vinha
sofrendo o centro do sistema mundial. Este processo de “comoditização” do café só ocorreu,
contudo, devido às suas características físicas como um forte estimulante e o papel que a
generalização de seu consumo desempenhou na disciplina e rigidez típicas das linhas de montagem
do novo processo de produção. A particular combinação do café com o ritmo típico de sociedades
cada vez mais “modernas” é um componente essencial para a compreensão do comportamento
social de sua demanda no longo prazo29.
Mas também a evolução da oferta merece por nós alguma atenção. Produto típico dos
trópicos, extremamente sensível a pequenas variações de clima e solo, a distribuição mundial da
produção experimentou grandes mudanças até o final do século XIX, principalmente quando foi
27 “As taxas representando a princípio 3% do valor do produto assumiram sucessivamente as seguintes percentagens: 4%, 3,5%, 4%, 11%, 9%, 8,5%, descendo depois a 7%, a taxa que conserva ainda hoje. Além desta porcentagem ad valorem, o Estado arrecada ainda, desde 1907, a taxa fixa de 3 francos, ouro, por saca de café exportada, a taxa também fixa de 1$000, ouro, desde 1925 e a taxa de viação, representando um adicional de 1% sobre o total de todos os impostos, desde 1916. Com exceção da taxa de 1$000, ouro, que é destinada a custear as despesas de propaganda e valorização do café, e viação, que se destina ao desenvolvimento da rede de estradas de rodagem do Estado, os demais impostos entram indistintamente no orçamento público e não interessam senão indiretamente à lavoura do café.” ALVIM, A. (1929). Minas e o Bicentenário do Cafeeiro no Brasil – 1727/1927. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, p. 70 apud COSTA, (1978). Bancos em Minas Gerais. Dissertação de Mestrado, Unicamp, Campinas, p. 97 (grifo nosso). 28 SAMPER K. M. (2003). “The Historical Construction of Quality and Competitiveness – A Preliminary Discussion of Coffee Commodity Chains.” Op. cit. 29 Id. Ib. JAMIESON, R. W. (2001). “The Essence of Commodification: Caffeine Dependencies in the Early Modern World”. Journal of Social History. Vol. 35. N. 2.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 13
introduzido no Brasil30. Aí, onde encontrou condições naturais quase perfeitas, a dotação de fatores
como terra e mão de obra implicou na organização de unidades de produção e formação de
economias de escala que, junto com outros fatores, serão os principais responsáveis pela queda do
preço do produto no mercado internacional que permitiu o firme crescimento da demanda que
ocorreu no período31. Foi a proporção que a produção cafeeira do Brasil assumiu na base da cadeia
internacional do café (de longe, o principal produtor mundial), bem como as condições da
organização interna de sua economia que permitiram a verdadeira revolução que ocorreu na
reestruturação da rede global do café no correr do século XIX32.
Além disto, dada a extensão da área propícia ao cultivo, a forma de organização extensiva
do sistema agrário que vigorou, a importância das fronteiras, a distribuição do eixo principal da
produção, como se sabe, modificou-se basicamente entre duas regiões, que podem, aliás, ser
entendidas como base de duas cadeias específicas do café: o Rio de Janeiro (o Vale do Paraíba
fluminense) e São Paulo (principalmente o Oeste paulista). Minas nunca iria se colocar, pelo
volume total da produção, sequer próxima das principais regiões produtoras do país em seus
respectivos períodos de primazia; no entanto, isto não significa necessariamente que sua produção
tenha sido decadente ou insignificante, como apregoa a historiografia.
Como já observado, a economia cafeeira de exportação de Minas tem sido grosseiramente
identificada com aquela que se desenvolveu no Rio de Janeiro. Assim, entre tantos outros aspectos,
também o comportamento geral de sua produção é definido dentro dos parâmetros cronológicos
básicos em que ocorreu a produção fluminense: com um apogeu definido em meados do século XIX
e um processo de crise e declínio que começa a se delinear nos anos 1880, encontrando na abolição
e na crise dos preços do produto do início do século XX seus contornos definitivos33.
A identificação do comportamento da produção de Minas com este do Rio não encontra
qualquer fundamento na realidade, bastando para isso uma breve análise da evolução da produção
mineira nos dados disponíveis. Utilizaremos como referência de análise aqui, propositalmente, os
dados organizados por um dos principais autores representativos da tendência aqui em questão e,
com base nos mesmos números, chegarmos a conclusões completamente opostas34.
30 ROSEBERRY, W., GUDMUNDSON, L. and KUTSCHBACH, M. S. (1995). Op. cit. SAMPER K. M. (2003). Op. Cit. 31 Deve-se lembrar que entre 1820 e 1850 o preço do café caiu em 75%. LESSA, C. (2000). O Rio de Todos os Brasis. Record, Rio de Janeiro, p. 109 32 Id. Ib. 33 Ver, entre tantos, STEIN, S. (1969). Grandeza e Decadência do Café no Vale do Paraíba. Brasiliense, São Paulo. COSTA, E.V. (1982). Da Senzala à Colônia. 2 ed., Ed. Ciências Humanas, São Paulo. 34 CANO, W. (1985). “Padrões Diferenciados das Principais Regiões Cafeeiras.” In Revista Estudos Econômicos. São Paulo, 15(2): 291-306, mai/ago, tabela 1 p. 293
Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 14
Tabela 01 PRODUÇÃO EXPORTÁVEL DE CAFÉ DAS
PRINCIPAIS REGIÕES PRODUTORAS (1.000 sacas)
MÉDIA ANUAL DO PERÍODO
SÃO PAULO
RIO DE JANEIRO
MINAS GERAIS
ESPÍRITO SANTO
SOMA
VOL. % VOL. % VOL. % VOL. % VOL. % 1876-1880 925 24,3 1.987 52,2 767 20,2 124 3,3 3.803 100,01881-1890 2.138 37,1 2.176 37,8 1.200 20,8 250 4,3 5.764 100,01891-1900 4.775 60,5 911 11,5 1.787 22,7 416 5,3 7.889 100,01901-1910 9.252 68,0 995 7,3 2.772 20,4 579 4,3 13.598 100,01911-1920 9.303 70,2 812 6,1 2.446 18,4 700 5,3 13.264 100,01921-1930 11.13
1 66,5 945 5.6 3.445 20,0 1.210 7,2 16.731 100,0
Por estes dados verificamos que a produção de Minas, entre os períodos de 1876-1880 e
1921-1930, cresceu cerca de 349% (saltando de 767 mil para 3.445 mil sacas), 92% apenas entre as
décadas de 1891-1900 e 1921-1930, para ficarmos na fase do pós abolição. Frente ao Rio de Janeiro
(gráfico 1) há uma completa reversão no quadro. Do início ao fim da série este estado experimentou
um declínio de 47%, perdendo a primazia da produção e a própria posição de segundo maior
produtor do país para Minas Gerais já na década de 1890. Minas Gerais manterá a posição de
segundo maior estado produtor do país desde o final do século XIX até a segunda década do século
XX, numa média em torno dos 18 a 20%, acompanhando, aliás, o ritmo de crescimento total da
produção do Brasil no mesmo período (340% e 349% respectivamente – Gráfico 2).
Considerada em termos absolutos, com base nos dados fornecidos por Aristóteles Alvim35, o
comportamento da produção no longo prazo é nitidamente ascendente, em que pese algumas
oscilações (Gráfico 01).
35 ALVIM, A. “Confrontos e Deduções” IN: MINAS GERAIS. Secretaria da Agricultura. Minas e o Bicentenário do Cafeeiro no Brasil (1727/1927). Belo Horizonte, Imp. Oficial, 1929, pp. 73-105.
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GRÁFICO 1 Evolução da Produção de Café de Minas Gerais
Médias Qüinqüenais 1850/1924
0
2
4
6
8
10
12
14
1851
/54
1855
/59
1860
/64
1865
/69
1870
/74
1875
/79
1880
/84
1885
/89
1890
/94
1895
/99
1900
/04
1905
/09
1910
/14
1915
/19
1920
/24
mil arrobas
GRÁFICO 02 Evolução Proporcional da Produção de Café
Rio de Janeiro e Minas Gerais 1876/1930
0
10
20
30
40
50
60
70
80
90
1876/80 1881/90 1891/00 1901/10 1911/20 1921/30
RIO DE JANEIROMINAS GERAIS
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GRÁFICO 03 Evolução Proporcional da Produção de Café
S.Paulo, M.Gerais e R.de Janeiro 1876/1930
0
10
20
30
40
50
60
70
80
1876-1880 1881-1890 1891-1900 1901-1910 1911-1920 1921-1930
SÃO PAULORIO DE JANEIROMINAS GERAIS
Deve ficar claro que mesmo considerando a produção da zona da Mata frente ao conjunto da
produção estado de Minas e do Rio de Janeiro, pouco se alteram as tendências da análise aqui em
questão (tabelas 02 e 03).
Tabela 02 PARTICIPAÇÃO PROPORCIONAL DA PRODUÇÃO CAFEEIRA
DA ZONA DA MATA NA PRODUÇÃO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
(períodos selecionados) PERÍODO MINAS GERAIS ZONA DA MATA %
1847/48 745.381 743.707 99,77
1850/51 900.264 898.184 99,76
1886 5.776.866 4.316.067 74,71
1888 5.047.600 4.433.800 87,83
1903/04 9.404.136 5.993.425 63,73
1926 12.793.977 9.105.543 71,17
FONTES: 1. para 1847/48, 1850/51 e 1903/04 - GIROLETTI, D. “A Industrialização...” Op. cit. p. 152 e 156.
2. para 1886 e 1888: Zona da Mata - MELLO, P.C. Op. cit. p. 41 (apresenta os dados para Minas Gerais sem a “Zona de Santos”, ou seja, o Sul de Minas).
3. para 1926: “O Café no Segundo Centenário...” pp. 601-604 OBS.: 1. produção em arrobas
Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 17
2. para 1903/04 os dados se referem à produção de 64 municípios mineiros (19 da zona da Mata, 19 da zona Sul, 15 do Oeste, 9 do Triângulo e 2 da zona Norte)
3. para 1886 e 1888 - dados relativos à exportação; para zona da Mata os dados se referem a Minas Gerais sem a “Zona de Santos”, ou seja, o Sul de Minas; como as duas regiões são responsáveis por praticamente o total da produção do estado acreditamos que estes dados assim se aproximam muito da produção da Mata mineira.
Tabela 03 VARIAÇÃO PROPORCIONAL DA PRODUÇÃO DO
RIO DE JANEIRO E DA ZONA DA MATA DE MINAS GERAIS (períodos selecionados)
PERÍODO R. DE JANEIRO % ZONA DA
MATA
%
1847/48 6.505.712 89,74 743.707 10,25
1886 8.171.227 65,43 4.316.067 34,86
1888 7.298.533 62,20 4.433.800 37,79
1903/04 4.456.471 42,64 5.993.425 57,35
1926 3.652.668 28,62 9.105.543 71,37
FONTES: 1 Para a zona da Mata - v. tabela 02. 2 Para o Rio de Janeiro: 1848 - VIANNA, O. “Hegemonia do Vale do Paraíba - 2o Império” IN: O
Café no 2o Centenário...” vol. 2, p. 517. 3 1886 e 1888 - MELO, P.C. Op. cit. p. 41. 4 1903/04 e 1926 - “O Café no 2o Centenário...” p. 413.
Encontramos, também aqui, outro importante elemento delimitador da economia agrária de
exportação da Mata como espaço próprio, já que Minas possui um ritmo e comportamento
absolutamente singulares no conjunto da produção do país: mesmo estando distante do dinamismo
paulista, também não pode ser identificada com o declínio e decadência da região fluminense. Mais
que isto, no período em que se delimitou, o crescimento e comportamento da produção em Minas
foi “eclipsado”, “ofuscado” diríamos, pelo ritmo e proporções do crescimento do Vale Fluminense
(a primeira a assumir a primazia na base da cadeia de mercadorias identificada pelo Rio) e,
posteriormente, pelo estonteante ritmo de crescimento do Oeste Paulista (principal região produtora
da cadeia de mercadorias identificada com São Paulo). E como a produção do estado sempre fora
proporcionalmente bem inferior àquela dos estados mais importantes (em geral, como vimos, em
torno de 18 a 20% apenas) poucos deram a ela a devida atenção. Mas é importante lembrar que,
apesar de tudo, o estado se colocava como segundo produtor de um país que, sozinho, era
responsável na época por cerca de 70% em média da produção de todo o globo.
Uma vez que será o dinamismo da produção de exportação o principal componente do
potencial e de delimitação da transição capitalista, teremos aqui uma característica que vai
Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 18
diferenciar a principal região produtora de Minas principalmente em sua evolução posterior à
abolição da escravidão. Por outro lado, pela importância que assume na produção do país, pode ser
colocada na base da produção da cadeia global da “commodity” cafeeira do Rio, pelo menos a
partir do final do século XIX, com todas as conseqüências no âmbito teórico-analítico que esta
posição vai acarretar. As redes ou cadeias de mercadorias raramente se apresentam como conjuntos
estáticos na história; ao contrário, sua natureza dinâmica e contínuas modificações é que vão se
colocar como núcleo do conceito.
Sendo assim, é importante verificarmos a proporção que a produção de Minas, isoladamente,
assumirá no conjunto da produção mundial no período. Quando vista em conjunto sabemos que a
produção de São Paulo sozinha corresponde a cerca de 50% da produção mundial da rubiácea em
boa parte do período que estamos estudando36. Isto dá a este estado, bem como à rede global
cafeeira que representa, uma posição também única no mundo. A economia de São Paulo tem sido
tomada como “o modelo” para o estudo das economias agrárias de exportação de café,
principalmente no que ser refere à relação do café com a indústria e com a transição capitalista de
uma forma geral. Mas do ponto de vista da cadeia global de mercadorias pode ser entendido mais
como exceção do que propriamente uma regra37 e como existem vertentes historiográficas que
insistem em analisar o conjunto das economias agroexportadoras no Brasil meramente a partir do
ângulo paulista (o termo “paulistocêntricas” é bastante apropriado para definir estas visões38),
outras experiências nas quais o café desempenhou papel essencial na transição capitalista são ou
desconsideradas ou esvaziadas em sua importância.
Se retomarmos a questão da zona da Mata como base produtiva de uma cadeia global
específica do café e da proporção de sua produção frente à produção mundial, poderemos
compreender a posição que a região assumiu na distribuição mundial da oferta. Se retomarmos os
dados de Aristóteles Alvim, percebemos, por exemplo, que a produção mineira é maior que a de
países inteiros, como, por exemplo, a Colômbia, reconhecidamente um dos maiores produtores
mundiais de café no período aqui considerado39 (tabela 04). Supera também a produção de toda a
América Central e México reunidos no período que vai de 1881 até 1925. Além disto, excluído o
Brasil, teve produção superior a toda América Latina até o qüinqüênio de 1916-1920 (141,46 mil
36 TOPICK, S. and CLARENTH-SMITH, W. G. (2003). The Global Coffee Economy in Asia, Africa, and Latin America. Op. cit. 37 Ver também DULCI, O.S. (1999). Política e Recuperação econômica em Minas Gerais. Ed. UFMG, Belo Horizonte. 38 MENDONÇA, S. R. (1997). O Convênio de Taubaté e a Economia Agrícola Fluminense. In II Encontro Brasileiro de História Econômica e 3ª Conferência Internacional de História das Empresas, UFF, Niterói. p. 01 39 UKERS, W. (1935). All About Coffe. The Tea & Coffee Trade Company, New York, Cap. XVII. OCAMPO, J.A. and BOTERO, M.M. (2000). “Coffee and Origins of Modern Economic Development in Colombia”. In CARDENAS, E., OCAMPO, J.A. and THORPE, R. The Latin American Economies in the Late Nineteenth and Early Twentieth Centuries. Palgrave, New York. PALACIOS, M. (2002). Coffee in Colômbia (1850/1970). Cambridge University Press.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 19
toneladas para a primeira e 152,43 para Minas Gerais), sendo superada apenas no final da década de
1920 (Tabela 05).
Tabela 04 MÉDIA QÜINQÜENAL DA PRODUÇÃO DE CAFÉ
DE MINAS GERAIS EM RELAÇÃO À DA COLÔMBIA 1850/1924
QUINQUÊNIO
Produção de Café em Minas
Gerais (em arrobas)
Produção de Café em Minas Gerais (em milhares de
toneladas)
Produção da Colômbia
(em milhares de toneladas)
Porcentagem da Produção Mineira em Relação à da
Colômbia 1851/54 711.732 11.84 ----- ---- 1855/59 809.780 11.85 ----- ---- 1860/64 1.150.152 16.83 ----- ---- 1865/69 1.973.591 28.89 ----- ---- 1870/74 2.313.954 33.87 ----- ---- 1875/79 2.797.420 40.95 ----- ---- 1880/84 4.444.583 65.06 6.47 905.56 1885/89 5.477.724 80.19 10.78 643.87 1890/94 5.583.195 81.73 19.51 318.91 1895/99 8.399.271 122.96 26.78 359.14 1900/04 10.492.749 153.61 35.05 338.25 1905/09 10.791.373 157.69 37.06 325.49 1910/14 8.529.278 124.86 56.96 119.20 1915/19 10.412.385 152.43 78.42 94.37 1920/24 12.519.504 183.28 127.62 43.61
FONTES: Para Minas Gerais : Alvim, A. “Confrontos e Deduções” IN: MINAS GERAIS. Secretaria da Agricultura. Minas e o Bicentenário do Cafeeiro no Brasil (1727/1927). Belo Horizonte. Imp. Oficial, 1929, pp. 73-105. apud GIROLETTI, D. “A Industrialização...” op. Cit. P. 155. OBS: Para 1855/59 “a média foi calculada em bases da produção de 4 anos por falta de dados para o ano de 1887, na relação do autor citado”. Para a Colômbia: TOPICK, S. and SAMPER, M. Op. Cit. anexo estatístico
Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 20
Tabela 05 PRODUÇÃO MÉDIA DE CAFÉ DE MINAS GERAIS COM ALGUMAS DAS PRINCIPAIS REGIÕES
DO MUNDO (1851-1924) (em milhares de toneladas)
Qüinqüênio Produção da América Central e México1
Produção do Caribe2
Produção da América do
Sul3
Produção de Minas Gerais4
1881-1885 54.84 48.12 44.64 65.06 1886-1890 48.61 50.96 48.86 80.19 1891-1896 72.86 51.90 64.87 81.73 1896-1900 90.93 42.47 80.66 122.96 1901-1905 114.28 37.06 80.77 153.61 1906-1910 129.48 35.02 82.88 157.69 1911-1915 129.79 40.82 120.56 124.86 1916-1920 122.87 41.11 141.46 152.43 1921-1925 157.21 44.56 190.22 183.28
Notas: 1. Inclui: Costa Rica, El Salvador, Guatemala, Honduras, Nicarágua e México 2. Inclui: Haiti, Jamaica e Porto Rico 3. Exclui a produção brasileira 4. Qüinqüênios contados entre 1880-1884 e assim sucessivamente; último ano para 1924 Fonte: ver tabela 04
Estamos, portanto, entre uma das principais regiões cafeeiras do mundo, provavelmente a
segunda maior região produtora (se fizermos a proporção com países isolados), o que lhe garante
uma posição bastante singular na distribuição mundial da oferta no período aqui considerado. Por
outro lado, se lembrarmos que estamos lidando com uma das mais importantes e valiosas
“commodities” presentes no comércio internacional (da época e agora), podemos imaginar a
quantidade de recursos que esta economia conseguiu mobilizar. É de se lamentar, perante um
quadro como este, o relativo descaso com que a economia do café de Minas tem sido considerada
por parte da historiografia do país e aquela que tem sido produzida pelos próprios historiadores de
Minas Gerais. A dinâmica de sua produção e a proporção que esta assumiu no contexto
internacional lhe confere o papel de base produtiva de uma das mais importantes cadeias de
mercadoria que se organizou no país, e se pensada como um espaço próprio, crivado por
contradições e assimetrias decorrentes da natureza externa de sua produção e sua restrição a um
espaço interiorano (aqui tomadas como especificidades) se colocará como uma realidade histórica
única na compreensão geral das economias agroexportadoras e da própria forma como se deu a
consolidação capitalista no Brasil.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 21
3. Efeitos De Encadeamento, Industrialização E Finanças: A Formação Do “Complexo
Agroexportador” Em Minas Gerais
Guardadas as condições de dinâmica da produção, delimitação regional e inserção no quadro
geral da distribuição espacial da oferta no Brasil e entre os principais produtores mundiais, cabe a
esta análise verificar o universo interno e a evolução estrutural da economia agrária de exportação
da Mata mineira.
Deve ser entendido que o processo de ocupação produtiva e expansão cafeeira na zona da
Mata iniciou-se na primeira década do século XIX40, mas só encontrará sua consolidação e efetivo
desenvolvimento a partir de meados deste mesmo século, em especial devido ao aprimoramento da
rede de transportes, de início com a fundação da rodovia União e Indústria (1861) e, posteriormente,
com a chegada da estrada de Ferro (em 1875)41. Esta delimitação cronológica é importante porque,
tendo em vista a dimensão histórica e dinâmica da base produtiva desta cadeia mundial do café, será
somente a partir dela que poderemos compreender a defasagem que marca os ciclos de produção do
Rio e da Mata, fornecendo a Minas outras condições objetivas de expansão na medida em que
avançamos no século XX.
Por outro lado se sua área sul, mais próxima do Rio de Janeiro, teve expansão inicial na
região, será o último avanço da fronteira para as áreas norte e nordeste, no final do século XIX e
início do XX, que permitirá a continuidade e a elevação da produção42 que encontra, aliás, nos
planos de valorização do produto iniciados em 1906 uma importante explicação (mesmo que não a
única).
De qualquer forma, como tantas outras regiões, a expansão do café pela zona da Mata
mineira foi acompanhada pelo desenvolvimento de uma série de núcleos urbanos43,
complementares à economia de exportação, de dimensões variadas, mas que encontraram em Juiz
de Fora sua referência mais importante, uma vez que esta consolida sua função de entreposto
comercial gradualmente, na medida em que se dá a própria expansão e aprimoramento da rede de
transporte integrando a região44. Formou-se, assim, no interior da Mata uma hierarquia urbana
responsável pela colocação de Juiz de Fora como o principal núcleo regional, o espaço mais
40 OLIVEIRA, M.R. (1999). Negócios e Famílias: mercado, terra e poder na formação da cafeicultura mineira – 1780/1870. Tese de Doutorado, UFF, Niterói. 41 GIROLETTI (1976). Op. Cit. PEDROSA, M.X. (1962). “Zona Silenciosa da Historiografia Mineira – A zona da Mata”. Op. Cit. BLASENHEIM, P. (1994). “Railroads in Nineteenth Century Minas Gerais.” In Journal of Latin American Studies. 26, 347-374. 42 VALVERDE, O. (1958). “O Estudo Regional da Zona da Mata de Minas Gerais”. Op. Cit. PIRES, A. (1993). Capital Agrário, Investimentos e Crise na Cafeicultura de Juiz de Fora (1870/1929). Dissertação de Mestrado, UFF, Niterói. 43 VALVERDE, O. Op. Cit. PEDROSA, M.X. Op. Cit. 44 GIROLETTI, D. (1976). Op. Cit. BLASENHEIM, P. (1994). Op. Cit.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 22
importante em que irá se concretizar a diversificação econômica e setorial típica da transição
capitalista.
Em conseqüência, os efeitos de encadeamentos gerados na produção de café da região foram
em grande parte internalizados, mesmo que levemos em conta os limites que a zona da Mata vai
encontrar para seu desenvolvimento. São relativamente conhecidos os aspectos básicos do processo
de crescimento urbano de Juiz de Fora, em especial a partir da década de 188045. O aprimoramento
das comunicações (telégrafo e telefonia), dos transportes urbanos, serviço de eletricidade,
desenvolvimento comercial e industrial, bancos, entre outros, foram mais ou analisados por aqueles
que se debruçaram sobre passado histórico da cidade e região46. Como resultado deste processo, já
no final do século XIX, o município conta com a presença de setores como bancos, indústria e
energia elétrica, o que constituirá um trinômio relativamente incomum em municípios de seu porte
e cuja interação será fundamental apara a posterior evolução econômica da cidade47.
Dada a questão estratégica dos fluxos inter-regionais de recursos para a compreensão da
economia cafeeira da Mata, a nós aqui caberá principalmente aprofundar a análise da relação entre o
que consideramos o desenvolvimento de um sistema financeiro na própria região48 e as relações que
estabeleceu com os outros setores da economia, principalmente a indústria, sempre tendo em mente
a abordagem dos efeitos de encadeamento e da cadeia global de mercadorias como referência
teórico-analítica.
Antes de tudo, pelo contraste com a historiografia predominante, cabe ressaltar que a
abolição da escravidão implicou numa profunda e até certo ponto singular reorganização social no
universo regional da produção de exportação49. Encontramos na zona da Mata uma miríade de
relações sociais que implicaram em uma maior ou menor articulação da força de trabalho com o
mercado e a conseqüente formação de um espaço social de demanda de bens manufaturados
assalariados. A combinação entre a dinâmica da produção de exportação e a forma como se deu a
reorganização social do processo produtivo vai permitir que os efeitos de encadeamento de
consumo tenham o devido impacto na economia local e regional.
45 MIRANDA, S. (1990). Cidade, Capital e Poder: Políticas Públicas e Questão Urbana na Velha Manchester Mineira. Dissertação de Mestrado, UFF, Niterói. 46 GIROLETTI, D. (1976). A Industrialização de Juiz de Fora. Op. Cit. 47 CROCCE, M.A. (2006) O Balanço de uma Conjuntura: O Encilhamento em Juiz de Fora (1888-1898). Dissertação de Mestrado, UFF, Niterói. 48 “Um sistema financeiro constitui um universo inter-relacionado de instrumentos, instituições e mercados financeiros que operam em um determinado lugar e em um dado período, ou seja, constitui a superestrutura financeira de uma economia. Sendo assim, os sistemas financeiros podem diferir ou se assemelhar um com os outros pelas suas características, métodos de operação e a extensão de seus instrumentos, instituições e mercados.” GOLDSMITH, R. (1987). Premodern Financial Systems: A Historical Comparative Study. Cambridge University Press, p. 01. 49 SARAIVA, L.F. (2001). Um Correr de Casas, Antigas Senzalas: a transição do trabalho escravo para o livre em Juiz de Fora – 1870/1900. Dissertação de Mestrado, UFF, Niterói. PIRES, A. (1993). Op. Cit.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 23
Há estimativas de que a mobilização monetária envolvendo o pagamento de trabalhadores
na cafeicultura pode ter atingido 40% do valor total da produção em meados da década de 1890,
representando montantes próximos a 6.700:000$ (cerca de 283 mil libras) apenas no município de
Juiz de Fora50. Até mesmo referências explícitas por parte de industriais locais demonstram a
importância do mercado de consumo socialmente delineado pelos trabalhadores radicados no setor
cafeeiro. Em um relatório da diretoria da Cia. Têxtil Industrial Mineira (uma das maiores da
cidade), referente ao ano de 1905, podemos notar a seguinte afirmação:
“De acordo com o Conselho da Diretoria, o aumento no valor externo do mil-réis não apenas acarretou uma paralisação geral dos negócios como também diminuiu a demanda por têxteis na medida em que reduziu a renda dos fazendeiros em mil réis. Como afirmado pelo Conselho, esta apreciação das taxas de câmbio reduziu ‘os recursos daqueles que trabalham no setor agrícola, que são nossos principais consumidores’ ”.51
Ainda que distante dos padrões paulistas, esta reorganização social da produção na Mata
mineira provocou um notório processo de industrialização que acabou por colocar o município de
Juiz de Fora como o principal centro industrial do estado (superando inclusive sua capital) até o
final dos anos 1920. O número de empresas industriais no município cresceu de 45 em 1907 para
cerca de 186 em 1920, abrangendo uma diversificação setorial bastante complexa e que incluía
têxteis, bebidas e alimentos industrializados, materiais de construção, mecânica e metalurgia, couro,
papel, cimento, entre tantos52. Tamanha era a diversificação do setor industrial no município que
um observador local notou em 1925:
“Quer o leitor uma folha de papel para embrulho? Aqui a tem, fabricada em Juiz de Fora. Uma bandeja, um copo de metal, uma jóia delicada, seda para camisa, uma colcha, um cobertor, uma toalha, uma gravata, um colarinho, uma maleta, um motor elétrico, plaina, um copiador, um piano? De tudo encontrará, feito em Juiz de Fora.” 53
Se percebermos os dados da tabela abaixo (06), veremos que em 1907 Juiz de Fora,
isoladamente, concentrou 22% do capital e cerca de 25% de toda produção industrial do estado. As
50 PIRES, A. (1993). Op. Cit. Tabela 36 p. 130 51 Apud OLIVEIRA, M.T. (1991). Op. cit. p. 351 (grifo nosso). 52 PIRES, A. (2004). Café, Finanças e Bancos. Op. cit 53 O Dia 18/01/1925. A sofisticação da industrialização de Juiz de Fora pode ser testemunhada pelo seguinte relato, presente em um jornal local: “O abaixo assinado, diretor gerente da Companhia Nacional de Indústrias Reunidas convida a todos os que desejarem ver e examinar a construção dos dois motores elétricos de 6 HP que se acham em exposição na casa de móveis da viúva Bechtlufft à rua Halfeld, -de exclusiva fabricação das Indústrias Reunidas. Sendo os primeiros motores fabricados no Brasil [sic], com absoluta perfeição e garantia de funcionamento, constituem pois, uma grande vitória da indústria eletro-mecânica nacional, provando assim que é praticamente possível a fabricação de qualquer máquina ou aparelho em competição com similares estrangeiros, dependendo em parte de medidas patrióticas e inteligentes por parte dos governos, no sentido de auxiliar e estimular aos que se forçam na produção do que até então não se fabrica dentro do país. Apesar da construção dos dois motores ter sido de experiência, faltando ainda instalações mais amplas e mais adequadas no sentido de facilitar a execução mais rápida e por preço mais reduzido, -mesmo assim o custo dos dois motores em exposição é bem inferior ao preço atual de outros motores estrangeiros. Chamo a atenção aos competentes para confrontar os dois motores com outros tipos de procedência estrangeira, certo de que se convencerão da superioridade do tipo nacional, -quanto à estética e perfeição de acabamento. - JR Ladeira.” Diário de Minas 02/10/1919
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proporções de capital, operários e produção por estabelecimento atingem os montantes,
respectivamente, de 157, 96 e 213 pontos percentuais a mais para o município. As mesmas
comparações quando feitas para a zona da Mata tornam mais nítidos ainda os níveis de
concentração e uma dimensão média bastante superior àqueles vigentes no estado e região. Deve ser
notado que estes números provavelmente demonstrariam maiores proporções em 1920 (para o qual
não dispomos de dados distribuídos por municípios), dado o ritmo e principalmente a natureza
substancialmente diferenciada deste processo de industrialização de Minas.
Tabela 06 PARTICIPAÇÃO DA INDÚSTRIA DE JUIZ DE FORA
EM RELAÇÃO AO ESTADO E A ZONA DA MATA DE MINAS GERAIS
1907 M. GERAIS Z. DA
MATA J. DE FORA % MG % ZM
No ESTAB. 524 192 43 8,20 22,34 CAPITAL * 26.515 10.459 5.859 22,09 56,01 No OPER. 9.421 2.997 1.516 16,09 50,58 PRODUÇÃO 32.444 14.070 8.341 25,86 59,28 CAP./EST.* 53 54,47 136,25 +157 +150 OPER./EST.* 18 15,60 35,25 +96 +125 PROD./EST.*
62 73,28 193,27 +213 +164
FONTE: O Brasil, suas Riquezas Naturais, suas Indústrias. Rio de Janeiro, M. Osaso e Cia., 1909. Apud. LIMA, J.H. op. cit. pp. 96-100. Tabela XVIII. * em contos.
Como se sabe, a industrialização em Minas Gerais teve no século XIX um forte ímpeto, em
especial na indústria têxtil e com uma concentração nas regiões norte e centro do estado54. No
entanto esta industrialização, mesmo demonstrando a força e o dinamismo dos mercados locais e
não exportadores, ocorrera em função da ausência de economias externas, especialmente uma infra-
estrutura de transportes, responsável por tal elevação dos fretes que tornava a produção local viável,
mesmo que a custos superiores55. Não foi assim, no período, conseqüência de transformações
estruturais da economia, mas mais o resultado de um processo de redução dos custos gerais de
reprodução de economias regionais voltadas para o mercado interno e de diversificação de seus
circuitos próprios.
54 OLIVEIRA, M.T. (1991). The Cotton Textile Industry of Minas Gerais, Brazil. Op. cit. PAULA, R.Z. (2006). História de Juiz de Fora: da Vanguarda de Minas à “industrialização periférica”. Tese de Doutorado, Unicamp, Campinas. 55 Id. Ib.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 25
Outro foi o padrão da industrialização de Juiz de Fora, já delineado, que acompanhou de
perto as transformações estruturais de uma economia de base exportadora que vinha sofrendo
nitidamente um processo de transição capitalista, com base na diversificação de seu universo
urbano-industrial e visivelmente condicionado pela renda decorrente das exportações. Foi
exatamente como conseqüência do dinamismo deste processo que o eixo industrial do estado se
deslocou para sua região agrária de exportação já no final do século XIX, posição que mantém até o
final da década de 1920, quando Belo Horizonte assume a primazia industrial de Minas. A
correlação entre industrialização e produção agrícola de mercado interno, com toda importância que
possui, tem tido uma relevância exagerada pela historiografia mineira e a negação da interação
café/indústria para o conjunto do estado, uma constante nesta mesma produção historiográfica,
necessita ser revista, desde que levada em conta a efetiva complexidade da formação histórica de
Minas Gerais.
Além disto, visto em sua totalidade, o processo de industrialização local acompanhou o
delineamento da industrialização que vinha ocorrendo nas economias de exportação cafeeira do
Brasil. Se reunirmos informações já existentes56 com dados que obtivemos por anúncios de jornais
locais, percebemos que se até a Primeira Guerra Mundial havia um predomínio nítido daqueles
setores produtores de artigos manufaturados leves, de consumo assalariado, a partir daí começam a
surgir inúmeras indústrias de artigos intermediários e equipamentos, não estando ausentes
iniciativas visivelmente associadas à substituição de importações57. Além disto, se considerarmos a
forma de organização das firmas como critério, este processo atinge seu clímax na década de 1920,
quando temos em média a formação de mais de uma empresa industrial em sociedade anônima por
ano58.
Contudo, em que pese sua importância regional, a industrialização de Juiz de Fora vai
refletir nitidamente os limites sócio-espaciais e econômicos no interior dos quais vai se dar. Apesar
da dinâmica e do grande porte de algumas unidades fabris, a restrição de muitas aos mercados local
e regional marcou este parque industrial com fábricas que, quando comparadas aos grandes centros
industriais, lhes configura apenas dimensões pequenas e médias, algumas ainda na fase
manufatureira, o que será essencial para compreendermos seu processo de expansão e
financiamento (tabela 07).
56 ANDRADE, S.M. (1987). A Classe Operária em Juiz de Fora: Uma Historia de Lutas (1912-1924). Editora da UFJF, Juiz de Fora, Quadro 01 pp. 24-26 57 “A borracha manufaturada empregada em grande escala nas indústrias de toda a sorte são importadas dos Estados Unidos e Europa. Depois de declarada a Guerra, os diferentes utensílios de borracha subiram a preços exorbitantes, fato este que a cada dia mais se acentua. Agora porém um distinto industrial, o sr. Felippe Dilly, acaba de tomar a iniciativa de montar nesta cidade uma fábrica de manufatura de borracha.” Diário de Minas 15/12/1917 58 PIRES, A. (2004). Op. cit. Tabela 72 pp. 304-306
Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 26
Tabela 07 PARTICIPAÇÃO DA INDÚSTRIA DE JUIZ DE FORA EM RELAÇÃO A ALGUNS NÚCLEOS
INDUSTRIAIS DO PAÍS 1907 DIST.
FEDERAL S. PAULO R.JANEIRO J.FORA
CAPIT/ESTAB* 254 393 415 136,25 OPER./ESTAB. 52,6 74,2 69,8 35,25 PROD./ESTAB.*
334 362 270 193,97
FONTE: Ver tabela 04. * em contos.
Ao mesmo tempo, acompanhando a crescente mercantilização e diversificação da economia,
Juiz de Fora testemunha grandes transformações em seu setor comercial. Se notarmos os dados da
tabela 08, entre os anos de 1870 e 1925 o número de estabelecimentos comerciais cresce cerca de
300%, saltando de 190 para 716. Se ficarmos entre os anos de 1891 e 1925 esta elevação é da
ordem de 180% (algo em torno de 5,29% ao ano). Este crescimento é importante uma vez que pode
ser explicado principalmente pela multiplicação de pequenas unidades de varejo, em especial no
núcleo urbano, mas também em seus distritos agrícolas, um nítido resultado do processo de
articulação das camadas mais baixas (em especial trabalhadores agrícolas) ao mercado de consumo
de bens manufaturados59.
Tabela 08 CRESCIMENTO DOS ESTABELECIMENTOS COMERCIAIS DE JUIZ DE FORA 1870/1925
(períodos selecionados) ANO No ESTABELECIMENTOS ÍNDICE 1870 190 100 1877 310 163 1891 384 202 1904 692 364 1925 716 377
FONTE: ESTEVES, A. op. cit.; Almanaque de Juiz de Fora de 1891; Jacob, R. op. cit.
Mas, a partir dos anos 1890, merece destaque o surgimento de várias empresas atacadistas,
também de dimensões variadas, normalmente voltadas para a comercialização de alimentos, mas
não estando ausentes aquelas que negociavam com equipamentos, máquinas e produtos importados,
correspondendo em grande parte à função que o comissário desempenhava na provisão de bens
diversos para os fazendeiros de café e a população em geral. O predomínio destas empresas em
contas passivas diversas de fazendeiros de café é notório na medida em que avançamos no século
59 LESSA, C. (2000). Op. cit. pp. 117-118
Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 27
XX. O mesmo pode ser dito quando avaliamos o ativo de empresas varejistas. Quanto às próprias
unidades atacadistas, a presença invariavelmente majoritária de industriais e outros comerciantes
locais em seus débitos também pode ser detectada. Um dos principais canais de afluência de
recursos gerados na economia local para o Rio estava se rompendo paralelamente à formação de um
circuito comercial endógeno extremamente complexo, delineado regionalmente e cujos fluxos mais
importantes vão se encontrar no mesmo espaço econômico60.
É fundamental entendermos que a evolução do comércio cafeeiro do Rio de Janeiro
reorientou completamente o universo de produção e distribuição no interior da cadeia de mercadoria
do café com ele associada61. O desaparecimento de setores econômicos e grupos sociais inteiros
identificados com a estrutura anterior (como o próprio comissário e o antigo ensacador), secundado
que foi pela crise da produção do Vale Fluminense, refletiram uma transferência do seu principal
eixo produtor do próprio Vale para a Zona da Mata de Minas62.
A manutenção do porto do Rio como o principal canal de exportação da produção da Mata
tem sido avaliada a partir da idéia de “Zona Rio”63, o que implica na centralidade do porto do Rio
de Janeiro e sua importância para o escoamento daquelas áreas que são consideradas como
“satélites”. No entanto, do ponto de vista das economias regionais produtoras e da noção de base de
uma cadeia mundial específica do café, inverte-se a situação, pois o que restou dos canais de
distribuição e exportação de café no Rio de Janeiro se deve quase que exclusivamente à produção
de outros estados, em especial Minas Gerais64. Antigas e tradicionais Casas Comissárias, como
Avellar Werneck e Cia. chegaram a afirmar, no final dos anos 1920, que seus principais clientes
60 PIRES, A. (2004). Cap. 3 61 SWEIGART, J. (1980). Financing and Marketing Brazilian Export Agriculture: the coffee factors of Rio de Janeiro, 1850-1888. PhD. Thesis, University of Texas. FERREIRA, M. A Crise dos Comissários de Café do Rio de Janeiro. Dissertação de Mestrado, UFF, Niterói. 62 “A construção de estradas de ferro encorajou a produção onde o café já era plantado e trouxe sua expansão para as áreas mais novas. A província do Rio de Janeiro cresceu principalmente devido à exportação de café através da cidade do Rio. A expansão das estradas de ferro, no entanto, permitiu uma maior expansão da fronteira para a região da Zona da Mata de Minas Gerais que no final do século ultrapassaria a província do Rio em produção.” SWEIGART, J.E. (1980). Op. cit. pp. 21-23 63 LESSA, C. O Rio de Todos os Brasis. Op. Cit. MELO, H. P. (1993). O Café e a Economia do Rio de Janeiro – 1870/1920. Tese de Doutorado, UFRJ, Rio de Janeiro. 64 “A zona Rio viveu, no decorrer destas primeiras décadas republicanas, da expansão cafeeira ocorrida nas terras mineiras e em menor proporção do crescimento da produção de café do Espírito Santo, isto explica a pujança comercial da cidade do Rio de Janeiro, na medida que intermediava o comércio de café da região, além de ser o maior porto importador do país (...). A concentração da riqueza na região também pode ser demonstrada pela distribuição do PIB regionalmente. O Rio de Janeiro e Minas Gerais respondiam em 1900 por 57% deste (...). A importância da zona Rio cafeeira foi assegurada nas primeiras décadas republicanas pelo crescimento das lavouras de café dos estados de Minas Gerais e Espírito Santo. O café mineiro foi majoritariamente escoado pelo porto do Rio de Janeiro e o de Angra dos Reis (RJ) e o capixaba com a construção da ligação ferroviária de sua região produtora no sul do estado (...). No entanto, cerca de 20% da produção cafeeira capixaba continuou a ser comercializada na zona Rio. Até a Segunda Guerra Mundial o porto do Rio de Janeiro manteve embarques de café oriundos de São Paulo e Espírito Santo, além do tradicional café mineiro. Nos anos 1930 um pouco mais da metade do café embaçado pela zona Rio era mineiro, 26% em grãos fluminenses e cerca de 10%, respectivamente, paulistas e capixabas.” MELO, H.P. (1993). Op. cit. p. 78.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 28
eram fazendeiros de Minas65 e não deixa de ser curioso verificar que, em 1923, é inaugurada em
Juiz de Fora a empresa industrial têxtil “Vera Cruz” de propriedade da firma Avellar Werneck e
Cia. (propriedade dos srs. Ignácio de Avellar Werneck e Francisco de Avellar Werneck)66. Por
outro lado, também temos referências de que o Banco de Crédito Real de Minas Gerais, como parte
dos programas de valorização, chegou a financiar muitos comerciantes de café do Rio de Janeiro,
através de descontos e outras operações de crédito, em especial aqueles que negociavam com o café
mineiro67.
Reorienta-se, assim, o que era “marginal” ou “periférico” no interior desta cadeia de
mercadorias, já que do ponto de vista exclusivo das exportações de café, será o porto do Rio que vai
se colocar em função da produção da Mata, isoladamente responsável por mais de 60% de suas
exportações na década de 193068. Foi a produção de Minas, pela sua proporção na distribuição
mundial da oferta, a responsável pela manutenção do Rio como segundo maior porto de exportação
de café no mundo. Mantém-se desta forma não só a importância do Rio como ponto de escoamento
da produção de outras regiões, mas também a riqueza e complexidade das transformações internas
de suas economias regionais produtoras, respeitando devidamente todas as suas singularidades.
Manifesta-se, assim, com toda a nitidez a superioridade analítica da abordagem das redes globais de
mercadorias.
Mas é a organização do sistema bancário e sua singular articulação com o setor cafeeiro na
região que merecem nossa atenção neste momento. Quando lidamos com o universo financeiro das
economias cafeeiras, revelam-se diversos fenômenos cuja complexidade só pode ser devidamente
entendida através dos instrumentos analíticos herdados da velha tradição de Innis e, em parte, dos
formuladores de sua escola. Aqui, os componentes típicos das características físicas do produto e
sua forma de cultivo; a composição social e distribuição da renda decorrente das exportações; as
formas de poupança disponíveis na sociedade; o perfil de investimento dos produtores de café; os
canais de transmissão de informações predominantes; oportunidades de investimentos, todos estes
elementos constituirão parte do universo de análise, um conjunto a ser compreendido em toda a sua
dimensão, inter-relações e determinações recíprocas. A esta particular combinação de elementos
biológicos, agronômicos, sociais e econômicos, uma vez que condicionaram as relações e formas de
65 DEPARTAMENTO NACIONAL DO CAFÉ (1934). O Café no Segundo Centenário de sua Introdução no Brasil. DNC, Rio de Janeiro. 66 Gazeta Comercial 08/09/1925 67 “Por conta da Carteira de defesa do café foram feitos empréstimos aos lavradores de café, no ano passado, na importância de 12.517:303$000. Concomitantemente, a sucursal do Rio de Janeiro, no mesmo período, fez aos fornecedores e compradores de café adiantamentos em dinheiro, no total de 14.146:637$350, por conta do governo do estado.” Gazeta Comercial 26/07/1928 (grifo nosso) 68 MELO, H. P. (1993). Op. Cit. Pp. 77-81
Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 29
crédito na economia, chamaremos de efeitos de encadeamentos financeiros69, base da organização
do crédito em economias agroexportadoras de café.
Pelo lado da demanda, a própria natureza agrícola impunha uma contraposição entre a
sazonalidade típica dos rendimentos e as necessidades contínuas da manutenção da produção, o que
só poderia ser superado pelo crédito, neste caso o crédito comercial de curto prazo, imanente às
relações entre o fazendeiro e o fornecedor. Além disso, por ser uma cultura perene e que necessita
de um período de tempo de 4 a 5 anos entre plantio e a primeira colheita economicamente viável, a
expansão da produção só poderia ocorrer, na ausência de recursos próprios, também mediante o
crédito, desta feita o de longo prazo, realizado através de instrumentos como as hipotecas.
Já pelo lado da oferta, as grandes unidades produtoras (além das relações escravistas)
implicaram, como se sabe, numa brutal concentração de renda, o que dá a esta economia altos
índices de poupança, uma vez superados os mitos do consumo conspícuo e da eterna dependência
financeira entre os fazendeiros e os comissários de café. Além de tudo, em uma cultura que é
marcada por grandes alterações nos rendimentos anuais70, estes recursos tendem a ser aplicados em
formas de poupança seguras e/ou de retorno fixo71, o que varia em função dos instrumentos de
poupança e aplicações disponíveis: terra, escravos, gado, títulos da dívida pública, empréstimos
hipotecários, debêntures etc.72.
Delineados estes primeiros elementos gerais da dimensão financeira das economias de
exportação, podemos avançar no caso mineiro. Uma análise da dívida passiva nos inventários dos
fazendeiros de café (tabelas 09 e 10) e de sua presença nos contratos hipotecários registrados no
município (tabela 11) demonstra que se até o final do século XIX houve um nítido predomínio do
financiamento de fazendeiros locais com empresas do Rio de Janeiro, a partir da década de 1890
são os agentes locais (prestamistas e o Banco de Crédito Real) que se tornam os principais agentes
financeiros dos produtores de café73.
69 Baldwin, em especial, lidou com estes elementos em que pese não ter utilizado a noção de efeitos de encadeamentos financeiros. 70 Reflexo das variações que apresenta no volume de suas colheitas e de grandes oscilações de preços no mercado, decorrentes da defasagem entre expansão do plantio e as primeiras colheitas comercializáveis. Curiosamente, no universo do livre mercado do século XIX, o café era um produto particularmente avesso ao mecanismo do equilíbrio de preços e da oferta e procura, pelo menos no curto prazo. 71 “(...) a chave da compreensão da mentalidade do rentier é reconhecer que o lucro do cultivo dos produtos agrícolas de grande valor no mercado [staples] era extremamente irregular; o sucesso do plantador em grande parte estava em saber se reinvestia na ampliação da produção ou em ativos que representavam fluxos seguros de renda e pouco risco.” KILBOURNE, R.H. (1995). Debt, Investment, Slaves: Credit Relations in East Feliciana Parisch, Louisiana, 1825-1885. University of Alabama Press, p. 06. 72 Para o caso de Juiz de Fora ver ALMICO, R. (2001). Fortunas em Movimento: um Estudo sobre as Transformações na Riqueza Pessoal em Juiz de Fora – 1870/1914. Dissertação de Mestrado, UNICAMP, Campinas 73 PIRES. A. (1993). Op. Cit. Ver também ALMICO, R. (2001). Op. Cit.
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Tabela 09 DECOMPOSIÇÃO DAS DÍVIDAS PASSIVAS: ORIGEM DO CAPITAL DE EMPRÉSTIMO PARA AS
UNIDADES AGROEXPORTADORAS DE JUIZ DE FORA - 1879/1929 (valores em mil-réis)
DÉCADA LOCAL % R.J. % N.IDENT
.
% TOTAL
1870/79 129:488 41,79 144:477 46,63 35:854 11,57 309:819
1880/89 201:135 19,66 768:649 75.16 52:786 5,16 1.022:570
1890/99 197:998 99,39 1:211 0,60 - - 199:209
1900/09 476:373 77,58 73:868 12,03 63:755 10,38 613:996
1910/19 96:565 88,17 2:263 2,06 10:689 9.76 109:517
Fonte: Inventários – 1870/1929
Tabela 10 PARTICIPAÇÃO DO BANCO DE CRÉDITO REAL NA DISTRIBUIÇÃO DE CAPITAL PARA A
LAVOURA CAFEEIRA DE JUIZ DE FORA - 1890/1919 (valores em mil-réis)
DÉCADA DIV. TOTAL B.C.R. % R.J. % 1870 309:819 --- --- 144:477 46,63
1880/89 1.022:570 --- --- 768:649 75,16 1890/99 199:209 143:939 72,46 1:211 0,60 1900/09 613:996 438:776 71,46 73:868 12,63 1910/19 109:517 73:000 66,65 2:263 2,06
FONTE: Inventários Juiz de Fora - 1870/1929.
Fundado em 1889, o BCR tinha sua finalidade inicial na concessão de crédito de longo
prazo para a lavoura, mas já em 1891 consegue autorização para lidar com operações comerciais
típicas como descontos de títulos e depósitos, essenciais para o funcionamento e evolução estrutural
de uma economia que vinha se modernizando74. É a partir daí que efetivamente passa a exercer as
funções que qualquer instituição bancária realiza em uma economia: multiplicador de meios de
pagamentos, ponto de catalisação e redistribuição de recursos monetários e aquela de principal
fornecedora de crédito e fornecimento de liquidez imediata para operações de longo e curto prazo.
Desde o início o Banco manteve próximas relações com o governo do estado, que acaba o
utilizando como instrumento institucional de distribuição de recursos públicos para a lavoura.
Alguns, inspirados nas teses de Gerschenkron, têm visto nesta relação uma especificidade
74 ALVARENGA FILHO, J. T. (1987). “Alguns Traços da História Bancária de Juiz de Fora.” In BASTOS et alii. (1987). História Econômica de Juiz de Fora. IHGJF, Juiz de Fora. Id. (1976). A Criação do Banco de Crédito Real de Minas Gerais e o Relacionamento de seus Fundadores com D. Pedro II. s. ed., Juiz de Fora.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 31
Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 32
mineira75, mas não é este o caso, uma vez que talvez a principal solução para o crônico problema do
crédito agrícola no Brasil passou, na Republica Velha, pela catalisação dos recursos via governos
estaduais e sua redistribuição através da cadeia institucional formada pelas filiais de bancos
regionais. Foi este o caso, em diferentes períodos, de São Paulo, Rio Grande do Sul, Espírito Santo,
ou mesmo, do Piauí, entre outros76.
Em se tratando de economias exportadoras, com base fiscal na exportação cafeeira, o que
percebemos neste fenômeno é a presença de efeitos de encadeamento de natureza fiscal e diretos77,
mas com delineamentos regionais. Neste sentido, o que Minas traz de específico é a assimetria entre
o espaço regional responsável pela geração destes recursos e o seu centro de catalisação, como já
visto alheio e externo a este espaço. A transferência de recursos gerados pela Mata para outras
regiões de Minas era inevitável no contexto político-administrativo mineiro na Republica Velha e
deve ser lembrado que uma capital foi construída em um período em que o café constituía a base de
arrecadação do estado. Mas isso não significa, obviamente, que a própria região não tenha se
beneficiado destes recursos. Bem ao contrário, quando lembramos a presença do mesmo estado na
construção da infraestrutura ferroviária na região, o seu predomínio na distribuição de crédito para a
lavoura cafeeira e, especialmente, no financiamento dos planos de valorização de café,
particularmente importantes para a manutenção da produção na região de ocupação mais antiga da
Mata.
75 COSTA, F.N. (1978). Bancos em Minas Gerais. Dissertação de Mestrado, UNICAMP, Campinas 76 Ver LAGEMANN, E. (1985). O Banco Pelotense & O Sistema Financeiro Nacional. Ed. Mercado Aberto, Porto Alegre. 77 Ver HIRSCHMAN, A. (1985). Op. cit.
Tabela 11 Quadro Geral do Mercado Hipotecário
Participação dos Credores por Origem Geográfica Médias qüinqüenais
(1853-1939)
Participação de Credores de Juiz de Fora
Participação de Credores do Rio de Janeiro
Participação de Credores da zona da
Mata Participação de Credores do
Centro e Vertentes
Quinq.
Juiz de
Fora % JF
Mont JF
%Mt JF Rio % Rio
Mont Rio
%Mt Rio
Zona da Mat
a %
ZM Mont ZM
%Mt ZM
Centro
% Centr
o Mont
Centro%Mt
Centro 1853-1854 17
44,7%
511311
67,5% 4
10,53% 10301 1,36% 0
0,00% 0 0,00% 5
13,16% 22847 3,02%
1855-1859 60
65,9%
351821
78,9% 2 2,20% 17175 3,85% 0
0,00% 0 0,00% 7 7,69% 10379 2,33%
1860-1864 130
50,4%
923130
31,0% 40
15,50% 1437564
48,28% 8
3,10%
121977 4,10% 29
11,24% 90263 3,03%
1865-1869 59
60,2%
453578
30,4% 22
22,45% 839900
56,31% 5
5,10% 99757 6,69% 7 7,14% 19836 1,33%
1870-1874 60
92,3%
449430
73,8% 2 3,08% 90167
14,80% 3
4,62% 69750
11,45% 0 0,00% 0 0,00%
1875-1879 124
91,9%
2228776
84,2% 8 5,93% 179318 6,77% 0
0,00% 0 0,00% 1 0,74% 2600 0,10%
1880-1884 147
80,8%
1324480
41,6% 18 9,89% 1044674
32,81% 3
1,65% 30600 0,96% 4 2,20% 311000 9,77%
1885-1889 135
85,4%
1365978
65,1% 11 6,96% 413315
19,69% 2
1,27% 31498 1,50% 1 0,63% 9000 0,43%
1890-1894 268
94,0%
4503503
90,9% 5 1,75% 145263 2,93% 3
1,05% 65000 1,31% 2 0,70% 7450 0,15%
1895-1899 345
92,0%
4916105
87,3% 22 5,87% 503923 8,95% 4
1,07%
135000 2,40% 0 0,00% 0 0,00%
Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 33
Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 34
1900-1904 242
91,0%
3758572
81,3% 8 3,01% 260173 5,63% 6
2,26% 27500 0,59% 2 0,75% 70000 1,51%
1905-1909 255
94,1%
4554563
96,2% 6 2,21% 38866 0,82% 4
1,48% 43600 0,92% 1 0,37% 20000 0,42%
1910-1914 346
96,4%
6320187
97,1% 5 1,39% 90169 1,39% 2
0,56% 18000 0,28% 3 0,84% 41800 0,64%
1915-1919 407
94,2%
8132036
93,6% 11 2,55% 251300 2,89% 3
0,69% 81000 0,93% 3 0,69% 33000 0,38%
1920-1924 32
88,9%
1374487
82,4% 1 2,78% 70000 4,20% 2
5,56% 12500 0,75% 0 0,00% 0 0,00%
1925-1929 372
96,9%
14453466
93,6% 5 1,30% 118966 0,77% 1
0,26% 20000 0,13% 2 0,52% 166000 1,08%
1930-1934 184
94,8%
7356002
83,2% 5 2,58% 220312 2,49% 2
1,03% 50500 0,57% 0 0,00% 0 0,00%
1935-1939 23
65,7%
521250
53,2% 8
22,86% 337173
34,38% 1
2,86% 20000 2,04% 1 2,86% 50000 5,10%
TOTAL 3206 87,5%
63498675
83,2% 183 5,00% 6068559 7,96% 49
1,34%
826682 1,08% 68 1,86% 854175 1,12%
Fonte: Registros de Hipotecas – 1853/193
Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 35
Em Minas houve uma singular combinação entre os efeitos de encadeamento financeiros e
fiscais que, guardadas as especificidades de sua economia de exportação, implicou no fechamento
de um outro importante canal de evasão de recursos que era representado pela presença de
instituições e agentes financeiros localizados no Rio de Janeiro como os principais provedores de
crédito da economia local. Deve ser notado que quase todo circuito de crédito está sendo realizado
no próprio espaço da região: o de curto prazo, comercial, uma vez que a estrutura de comércio
desenvolvida na cidade foi capaz de prover, em grande parte, os produtores locais; e o de longo
prazo, que mesmo catalisado em um espaço externo àquele da produção, retornou à região como
forma de aplicação dos recursos que tinham como base a própria economia de exportação mantendo
no Banco de Crédito Real e suas agências o seu principal canal de distribuição (tabela 12).
Não que o Banco tenha sido o único provedor de crédito de longo prazo para os produtores
de café. Desde meados do século XIX, quando temos registros de hipotecas para o município,
podemos vislumbrar um número bastante significativo de empréstimos realizados entre os próprios
fazendeiros, em especial até o primeiro qüinqüênio do século XX (tabela 12). Aqui a demanda e
oferta de crédito de longo prazo, condicionadas como foram pelos aspectos físicos e sociais da
produção, confluem e tornam visível o que estamos chamando de efeitos de encadeamento
financeiros. Com os desníveis na condição financeira entre os vários produtores, permeados por
relações sociais e instituições informais que serviam como canais de transmissão de informações,
formou-se um verdadeiro mercado de hipotecas na cidade e região onde o capital especificamente
agrário foi canalizado para o financiamento da própria da produção agrícola. Guardadas as
condições de garantia e confiança, os empréstimos entre os fazendeiros, que tinham retorno fixo,
não apenas eram um bom negócio, mas se adaptavam particularmente bem ao perfil de investimento
dos próprios fazendeiros de café. Talvez por tudo isso as dívidas ativas constituam um dos
componentes mais importantes na riqueza dos fazendeiros do município de Juiz de Fora78.
78 ALMICO, R. (2001). Fortunas em Movimento: um Estudo sobre as Transformações na Riqueza Pessoal em Juiz de Fora – 1870/1914. Dissertação de Mestrado, UNICAMP, Campinas.
Tabela 12 Quadro Geral do Mercado Hipotecário – Juiz de Fora
Participação dos Credores por Categoria Social Médias Qüinqüenais (1853-1939)
Participação de Credores
Agrícolas Participação do BCR
Participação dos Proprietários e
Capitalistas Participação dos
Comerciantes
Participação de “Outros”
Quinq. AG%
AG Mont Agri
% Mon
t Agri BCR
% BCR
Mont BCR
% Mt
BCR PC% PC
Mont PC
% Mon PC Com
% Com
Mont
Com% Mt Com
Outros
% Outro
s Mont Outr.
% Mt Outr
1853-1854 12
31,58
346:239
45,69 0 0,00 0 0,00 1 2,63 560 0,07 0 0,00 0 0,00 0 0,00 0 0,00
1855-1859 32
35,16
267:817
60,05 0 0,00 0 0,00 2 2,20 5604 1,26 5 5,49
36175 8,11 0 0,00 0 0,00
1860-1864 54
20,93
415:114
13,94 0 0,00 0 0,00 4 1,55 29265 0,98 37
14,34
1412585 47,44 4 1,55 5297 0,18
1865-1869 39
39,80
497:186
33,33 0 0,00 0 0,00 6 6,12 11400 0,76 28
28,57
867738 58,17 4 4,08 14700 0,99
1870-1874 33
50,77
364:665
59,85 0 0,00 0 0,00 11
16,92 66457 10,91 15
23,08
142220 23,34 2 3,08 5050 0,83
1875-1879 68
50,37
2.044:669
77,22 0 0,00 0 0,00 28
20,74
102414 3,87 30
22,22
302369 11,42 3 2,22 6000 0,23
1880-1884 63
34,62
982:667
30,86 0 0,00 0 0,00 60
32,97
690180 21,67 37
20,33
1007069 31,63 5 2,75 7868 0,25
1885-1889 38
24,05
544:943
25,96 13 8,23
326500
15,56 51
32,28
337415 16,08 29
18,35
438515 20,89 11 6,96 33692 1,61
1890-1894 62
21,75
1.154:755
23,31 104
36,49
2208700
44,59 70
24,56
563817 11,38 29
10,18
232163 4,69 7 2,46
108000 2,18
Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 36
Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 37
1895-1899 84
22,40
1.741:323
30,93 21 5,60
869500
15,44
127
33,87
1191027 21,15 87
23,20
1018525 18,09 35 9,33
478769 8,50
1900-1904 68
25,56
1.196:686
25,89 29
10,90
1296791
28,05 86
32,33
1328042 28,73 43
16,17
428101 9,26 30 11,28
208333 4,51
1905-1909 45
16,61
435:528 9,20 70
25,83
3242750
68,49
100
36,90
597912 12,63 29
10,70
224703 4,75 15 5,54
109965 2,32
1910-1914 48
13,37
539:717 8,29 66
18,38
4429055
68,04
160
44,57
1000776 15,37 27 7,52
175278 2,69 40 11,14
238486 3,66
1915-1919 50
11,57
445:250 5,12 86
19,91
5471512
62,95
170
39,35
1609736 18,52 72
16,67
703108 8,09 37 8,56
180400 2,08
1920-1924 2 5,56 8:000 0,48 17
47,22
1264937
75,83 9
25,00
163000 9,77 3 8,33
15250 0,91 3 8,33 4600 0,28
1925-1929 46
11,98
3.164:190
20,50 31 8,07
3323000
21,52
235
61,20
6618365 42,87 38 9,90
745996 4,83 23 5,99
698373 4,52
1930-1934 11 5,67
348:900 3,95 9 4,64
1663632
18,82
100
51,55
2679712 30,31 17 8,76
281000 3,18 16 8,25
274000 3,10
1935-1939 2 5,71 85:000 8,67 0 0,00 0 0,00 12
34,29
377600 38,50 5
14,29
265000 27,02 10 28,57 43150 4,40
TOTAL757
20,67
14.582:649
19,12 446
12,18
24096377
31,59
1232
33,64
17373282 22,77 531
14,50
8295795 10,87 245 6,69
2416683 3,17
Fonte: Registros de Hipotecas – 1853/1939
Mais que isto, alguns deles aparecem inúmeras vezes nos contratos, denotando certa
especialização na função e muitos como credores de empréstimos realizados com a indústria. As
forças entre oferta e procura por recursos financeiros, além de estarem confluindo e delimitando um
espaço econômico próprio, também foram responsáveis pela transferência de recursos entre os
distintos setores da economia, um primeiro aspecto, entre outros, que utilizaremos para demonstrar
que o sistema financeiro local foi um importante espaço de captação de recursos gerados
diretamente na cafeicultura para distintas formas de investimentos industriais.
Se retomarmos nossos dados, desta feita impossíveis de serem reproduzidos aqui por sua
extensão79, podemos sintetizá-los na forma em que se segue:
Tabela 13 Transferências de Recursos entre Fazendeiros e Industriais via Mercado Hipotecário
Juiz de Fora – 1887/1926 (períodos selecionados)
Períodos Número de empréstimos Valor total 1887-1899 10 251:000$ 1912-1918 17 772:825$ 1919-1926 04 248:000$
Total 31 1.271:825$ Fonte: Registros de Hipotecas – 1853/1939
Mesmo que, obviamente, não constituam o eixo do mercado hipotecário que a cidade
construíra como resultado de suas transformações econômicas, devem ser destacados o número de
empréstimos e os valores que chegaram a representar em cada período. Além disto, para uma
historiografia que tem destacado a natureza “conservadora” e “tradicional” de sua aristocracia
cafeeira, não deixa de ser elucidativo que, no conjunto do período, foram transferidos mais de mil
contos de réis diretamente entre fazendeiros de café e a indústria apenas no mercado hipotecário,
um entre vários mecanismos que vão caracterizar a presença de um sistema financeiro local e
regional.
É importante esclarecer que nossa definição de mercado passa, necessariamente, pela
conjunção das forças de oferta e procura em um mesmo espaço econômico, sempre tendo em vista o
significado da internalização destas forças para a própria delimitação regional no caso da zona da
Mata. E a utilização deste critério não foi aleatória, uma vez que o contorno regional de mercados
79 PIRES, A. (2004). Op. cit. Tabela 84, pp. 377-383.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 38
financeiros constitui parte integrante da sua própria estruturação como um mercado específico, que
lida com os desequilíbrios temporais dos atos de troca e permuta, imanentes a qualquer economia80.
Em outras palavras, como são mercados que negociam recursos no tempo, aspectos como
confiança, garantia e segurança adquirem particular importância e vão depender necessariamente do
contexto social imediato no qual estão inseridos, uma vez que são determinados pela forma como se
dá a organização dos canais de transmissão de informações no interior da sociedade81. Em se
tratando de sociedades essencialmente pré-capitalistas, ou em transição para uma economia de
mercado, normalmente estes canais são realizados através de relações sociais diversas que podem
incluir o parentesco, a amizade ou a vizinhança, instituições informais que afiançam, na base do
conhecimento recíproco, uma relação econômica que não se efetiva no mesmo período de tempo.
Como estamos lidando com uma sociedade que ainda está constituindo uma economia de
mercado é a reputação, ou seja, a forma como a sociedade vê e avalia o indivíduo, que vai se
colocar como instrumento básico da transmissão de informações. Neste sentido, o próprio crédito
“...era um meio público de comunicação social e de circulação de julgamentos sobre o valor de
outros membros da comunidade”82. Nestas sociedades, mercados financeiros não estão apenas
“inseridos” no contexto social, uma vez que as relações sociais responsáveis pela transmissão de
informações antecedem as atividades que lhe caracterizam.
Ora, foram os delineamentos local e regional das economias (ou seja, sua limitação espacial)
que tornaram viáveis e efetivos tais instrumentos de transmissão de informações, fundamentados,
em última instância, no conhecimento recíproco83. Além disso, para surpresa de muitos, o país
constituiu entre o final do império e a Primeira República um padrão de financiamento baseado em
mercados financeiros, não naquele baseado nos bancos e sua associação com aglomerados
industriais, com forte apoio dos governos centrais na condução de financiamento de setores que
consideravam estratégicos para o desenvolvimento capitalista, que seguiu o padrão de países como
a Alemanha (modelo Gerschenkroniano)84. Este último pode, sim, ser associado com as mudanças
que ocorreram no padrão de financiamento no país a partir da década de 1930, acompanhando todas
as transformações que marcaram o processo de desenvolvimento do Brasil a partir de então85.
80 O termo “regionalidade implícita” chega a ser utilizado em algumas análises sobre o processo de formação dos mercados financeiros. Ver ODDELL, K. (1992). Capital Mobilization and Regional Financial Markets: The Pacific Coast States, 1850-1920. Garland Publishing, New York/London. 81 HOFFMAN, P.T., POSTEL-VINAY, G. AND ROSENTHAL, J-L. (2000). Priceless Markets: the political economy of credit in Paris, 1660-1870. University of Chicago Press. 82 MULDREW, C. The Economy of Obligation: The Culture of Credit and Social Relations in Early Modern England. Palgrave, NY, p. 02 83 ODDELL, K. (1992). Op. cit. HOFFMAN, P.T., POSTEL-VINAY, G. AND ROSENTHAL, J-L. (2000). Op. cit. 84 GERSCHENKRON, A. (1968). El Atraso Economico en su Perspectiva Histórica. Ariel, Barcelona. 85 MUSACCHIO, A. (2005). Law and Finance in Historical Perspective: Politics, Bankruptcy Law, and Corporate Governance in Brazil, 1850-2002. PhD. Dissertation, Stanford University.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 39
Nossa historiografia ainda desconhece estes aspectos de nossa história financeira e quando
procura características do último modelo para o período da República Velha, deixa de perceber a
existência de inúmeros mercados financeiros locais e regionais (outro componente extremamente
importante das economias regionais agroexportadoras), subestimados em função dos mercados
institucionalizados como a Bolsa do Rio de Janeiro86. Mais, como confunde a importância da
participação bancária no processo de avanço industrial necessariamente com a dotação de recursos
de longo prazo, não percebe a verdadeira importância que o sistema bancário teve nas primeiras
fases de nossa industrialização.
Em um padrão de financiamento fundamentado em mercados, guardados os devidos
amparos legais87, as poupanças acumuladas individualmente serão canalizadas predominantemente
para aquelas oportunidades de investimento que a própria economia vai criar, tendo em vista seu
maior ou menor desenvolvimento e diversificação econômica, uma vez que os canais de
informações disponíveis dependem da delimitação espacial da economia. E muitas vezes estas
transações ocorrerão fora do âmbito das organizações formais de crédito e financiamento da
economia (como bancos e outras instituições financeiras, bolsas de valores etc.) se concretizando no
contato pessoal direto entre provedores e devedores. As poupanças acumuladas individualmente e
que se mantinham dispersas encontrarão assim seus devidos canais para financiamento e
transferência de recursos dentro desta mesma economia.
Estes prestadores individuais de recursos desempenharam, portanto, um papel essencial na
economia cafeeira local, uma vez que acompanharam a própria evolução da demanda financeira de
inúmeras empresas que acabaram, por seu porte, se tornando sociedades anônimas, necessitando
muito mais de recursos de longo prazo do que aqueles de curto prazo. Para isso os instrumentos que
lançaram no mercado local, especialmente as debêntures, sempre foram bem recebidas pelos
fazendeiros de café e vão compor boa parte do portfólio de alguns. Sempre lembrando a presença
dos efeitos de encadeamento financeiros (e a tendência que provocou na demanda de crédito destes
agentes), as debêntures, como se sabe, tinham remuneração fixa, garantia legal e, além do mais,
invariavelmente eram utilizadas para investimentos no parque produtivo88.
Deve ficar claro que as empresas acionárias do município lançaram mão fartamente deste
instrumento de captação de recursos de longo prazo. Como resultado de um levantamento feito para
um trabalho anterior89, percebemos que para todas as empresas acionárias do município, no período
86 TRINER, G. (1999). “Banks, Regions and Nation in Brazil, 1889-1930.” In Latin American Perspectives. Issue 104, vol. 26, n. 01, Jan. 1999. 87 MUSACCHIO, A. (2005). Op. cit. 88 Id. Ib. PIRES, A. (2004). Op. Cit. 89 Id. Ib. Tabela 80 pp. 342-349
Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 40
que compreende os anos de 1888 e 1934, o levantamento de recursos através dos instrumentos
como lançamento de ações, hipotecas e as próprias debêntures podem ser assim distribuídos:
Tabela 14 Lançamento de títulos por parte de empresas acionárias no município de Juiz de Fora
(1888/1934) Título Valor % frente ao Total Ações 19.123$772 65,22
Debêntures 8.342:000$ 28,45 Hipotecas/outros 1.851:780$ 6,31
TOTAL 29.317:552 99,98 Fonte: Jornais, Relatórios e Balanços de Empresas – 1888/1934
Mesmo longe de constituírem os principais agentes financiadores neste mercado, alguns
exemplos tópicos podem nos dar uma idéia da importância destes instrumentos para a transferência
de recursos diretamente da cafeicultura para a indústria. No inventário de Carolina de Assis90,
esposa de um dos acionistas majoritários da Companhia Mineira de Eletricidade, ele próprio grande
fazendeiro de café, a propriedade de debêntures da Companhia é extremamente alta, chegando ao
todo a 635 debêntures, atingindo um valor total de 82:944$000, um valor por si mesmo bastante
considerável. Outro inventário de fazendeiro que possui uma participação significativa em
debêntures é o do cel. João Gualberto de Carvalho91, que possuía 300 debêntures da Companhia
Fiação e Tecelagem Bernardo Mascarenhas, num total de 100:000$000, além de mais 100
debêntures da Companhia Americana (20:000$000) e 10 da Companhia Fiação e Tecelagem São
Vicente (com valor nominal de 1:000$000 cada uma), totalizando 10:000$000. No total, o valor das
debêntures de sua carteira de títulos somava 130:000$000, ou 98,48% de seus ativos financeiros.
Também no patrimônio de Pedro Procópio Rodrigues Valle92, encontramos a presença de
100 debêntures da Companhia Têxtil Bernardo Mascarenhas (19:500$), o mesmo ocorrendo para
alguns grandes capitalistas da cidade, como Gabriel Villela de Andrade. Em seu inventário93, na
relação de títulos sonegados (há inúmeros outros ativos financeiros) encontramos um total de
485:000$ empatados em debêntures, assim distribuídos: 150 da Companhia Moraes Sarmento
(150:000$); 668 da Companhia Mineira de Eletricidade (66:800$); 377 da Bernardo Mascarenhas
(186:600$); 30 da São Vicente (30:000$) e 230 da Companhia Santa Cruz (46:000$).
Na falência da Companhia Americana, ocorrida em 1937, temos outra idéia efetiva do que
pode ter representado o investimento de fazendeiros de café no financiamento de empresas
90 Inventário - Id 2389 - 1913 91 Inventário – Id. 3626 - 1928 92 Inventário – Id. 4656 - 1937 93 Inventário – Id. 4410 - 1935
Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 41
industriais. No Quadro Geral dos Credores Admitidos à sua falência94, percebemos que o Dr.
Francisco Ignácio Monteiro de Andrade, com patrimônio nitidamente vinculado à riqueza agrária
(foi proprietário da Fazenda São Luiz em Sarandira)95, possuía isoladamente 76% das debêntures da
1a série emitidos pela Companhia e 80,71% das debêntures da 2a série. Conjuntamente com um
crédito privilegiado presente na mesma falência, provavelmente hipotecário, o valor total de seus
recursos empatados na fábrica chegava a 280:799$ ou aproximadamente 75,57% do total da massa.
É importante notar que o mesmo investidor participou durante vários anos como membro do
conselho fiscal da Companhia, se tornando acionista em 1933, o mesmo ano em que é colocado
como um de seus diretores96. Além disto, tinha sido presidente da Companhia Santa Cruz e da
Companhia de Laticínios de Juiz de Fora, ainda em 191397.
Já no mercado de ações a presença dos fazendeiros é maior ainda. Transpunha o setor
industrial e sua presença nos inventários dos grandes produtores de café é bem anterior. Empresas
representativas de setores econômicos inteiros foram organizadas por fazendeiros de café, o que
inclui a rodovia União e Indústria, a fase inicial da construção de ferrovias, o próprio Banco de
Crédito Real, o fornecimento de energia elétrica etc. No setor especificamente industrial podemos
destacar empresas como: Cia. Chimico Industrial Mineira, Cia. Mechanica Mineira, Cia.
Construtora Mineira, Cia. Laticínios de Juiz de Fora, Cia. Têxtil Santa Cruz, Cia. Indústrias
Reunidas, Cia. São Vicente (têxtil), Cia. Dias Cardoso, Cia. Laticínios Santa Amélia, S.A. Fábrica
de tecidos São João Evangelista, Sociedade Brasileira de Tecidos, Fábrica Santa Maria, entre
outras. A relação dos fazendeiros de café com o mercado acionário no município sempre fora muito
próxima e o capital agrário fluiu abundantemente para ele, até pelo menos a Primeira Guerra
Mundial98.
A cafeicultura local e regional, na proporção e importância que possuía na distribuição
mundial da oferta do produto, gerou as condições mais importantes para a estruturação de um
sistema financeiro na região, na forma em que foi definido. Em primeiro lugar, porque foi esta
mesma cafeicultura que permitiu, como parte de sua evolução estrutural interna e transição
capitalista, que os inúmeros setores urbano-industriais pudessem avançar em suas escalas de
operações, reorganização institucional interna e a conseqüente transformação de sua base de
investimentos do universo de curto para aquele de longo prazo. E, em segundo lugar, como um dos
setores mais importantes de formação de recursos disponíveis para investimentos na economia, com
94 Gazeta Comercial 07/07/1937 95 PROCÓPIO FILHO, J. (1979). Salvo Erro ou Omissão: gente juiz-forana. Edição do Autor, Juiz de Fora, p. 120. 96 Gazeta Comercial 06/06/1933 97 PROCÓPIO FILHO, J. (1979). Op. cit. p. 120 98 ALMICO, R. (2001). Fortunas em Movimento: Um Estudo das Transformações da Riqueza Pessoal em Juiz de Fora – 1870/1914. Op.cit.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 42
seu delineamento social próprio condicionado pelos encadeamentos financeiros e a confluência que
manteve em relação aos novos instrumentos de poupança e investimentos que surgiam.
O capital originado por provedores individuais identificados com a cafeicultura constituiu
um dos mais importantes componentes da oferta de recursos financeiros dos diversos mercados que
vão compor o sistema financeiro local: o de hipotecas, o mercado de debêntures e outros títulos
industriais, e o mercado acionário, todos com a devida delimitação local e regional. A consideração
dos provedores individuais de recursos meramente como usurários, “rentiers” ou agiotas (que ainda
permeia boa parte de nossa historiografia) precisa ser revista, uma vez que foram responsáveis por
um importante canal de transferência direta do capital cafeeiro especificamente agrário para o setor
industrial. E o caso da Zona da Mata vem secundar aquelas visões mais recentes que têm
reinterpretado o comportamento sociológico e econômico de grandes proprietários de terra perante
processos que implicam em uma maior presença da moeda e dos mercados na sociedade99.
No entanto, o financiamento industrial por parte do Banco de Crédito Real assumiu tamanha
proporção que merece alguns comentários aqui. Para a tendência interpretativa que estamos
criticando aqui, a relação entre bancos e indústria no período é veemente negada, uma vez que
enfatizam a crônica ausência de recursos bancários de longo prazo para o financiamento industrial.
Esta posição já pode ser relativizada, ao menos para o caso de Juiz de Fora, já que entre os
inúmeros empréstimos hipotecários do Banco, alguns se destinam para o setor industrial, mesmo
que, na verdade, não constituam a tônica dos empréstimos100. Por outro lado, o acesso de empresas
industriais a recursos de longo prazo não perpassava necessariamente, como visto, pelo sistema
bancário, mas pelo mercado financeiro e os distintos instrumentos de crédito e financiamento que
negociavam.
Deve ser lembrado que estamos lidando com um centro industrial “secundário” frente aos
grandes centros do país. Juiz de Fora, como já observado, mantinha uma estrutura industrial que se
marcava pelo pequeno e médio porte de suas fábricas, em que pese o crescimento considerável de
várias empresas. Uma vez que em parques industriais marcados pelo predomínio de pequenas e
médias unidades a estrutura do capital se marca pelo maciço predomínio do capital circulante em
relação ao capital fixo, a tônica de sua demanda de financiamento está no crédito de curto prazo,
realizado através de conta corrente, letras, notas promissórias e outros instrumentos, criando uma
cadeia de débitos que muitas vezes se rompia abruptamente, com falências generalizadas101. Além
99 Ver, entre tantos, DEWALD, J. (1996). “The Ruling Class in the Marketplace: Nobles and Money in early Modern France.” In HASKEL, L. and TEICHGRAEBER, R. The Culture of the Market. Cambridge University Press. 100 PIRES, A. (2004). Op. cit. 101 COTTRELL, P.L. (1993). Industrial Finance 1830-1914: The Finance and Organization of English Manufacturing Industry, Gregg Revivals, Vermont. CAMERON, R. (1992). Financing Industrialization. Edgard Elgard/Cambridge University Press. ROTHEMBERG, W. (1985). “The Emergence of a Capital Market in Rural Massachusetts, 1730-1838.” In The Journal of Economic History. Vol. XXII, December. NEAL, L. (1997). “The
Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 43
disto, são conhecidos os problemas de liquidez e de ausência de circulação monetária na economia
do período102. Em ultima instância, o que circulava na economia seriam papéis representativos de
valor, promessas de pagamento a serem realizadas no futuro.
Em um ambiente como este, a liquidez necessária para o pleno funcionamento dos circuitos
de crédito e pagamento final das obrigações vai depender em grande parte dos bancos, que tinham,
na época, justamente no desconto de títulos de curto prazo o fundamento de suas operações103. Se
associarmos este aspecto ao padrão de acumulação industrial típico do período, que implicava na
retenção de lucros para futuros investimentos e crescimento das firmas, percebemos que as
operações de descontos bancários vão se colocar como base do financiamento e evolução industrial
do município, permitindo inclusive que muitas delas saíssem de uma escala quase manufatureira
para unidades industriais imensas 104.
Tabela 15 Evolução dos Depósitos, Letras Descontadas e Hipotecas - Banco de Crédito Real
1891-1925 ANO DEPÓSITOS LETRAS
DESCONTADAS HIPOTECAS
1891 34:900$ 14:662$ 1.216:933$ 1899 2.740:794$ 1.390:900$ 2.002:426$ 1905 11.436:716$ 1.208:497$ 2.009:047$ 1915 15.024:570$ 19.645:385$ 3.673:938$ 1920 20.972:108$ 15.833:142$ 3.182:986$ 1925 67.194:875$ 40.173:556$ 3.426:994$
Fonte: Relatórios do Banco de Crédito Real – diversos anos
Os dados das tabelas 15 e 16 demonstram, respectivamente, o crescimento brutal das
operações do Banco de Crédito Real com a operação de descontos e a amplitude e variedade que
estas operações vinham ocorrendo no mercado local e regional, em especial com firmas industriais
(muitas podendo ser consideradas de pequeno ou médio porte). É de se destacar que lidamos com
Finance of Business during Industrial Revolution.” In FLOUD, R. and McCLOSKEY, D.N. The Economic History of Britain since 1700. Cambridge University Press, Vol. 1. 102 VILLELA, A. e SUZIGAN, W. (1973). Política do Governo e Crescimento da Economia Brasileira. IPEA, Rio de Janeiro. RIDDINGS, E. (1994). Business Interest Groups in Nineteenth-Century Brazil. Cambridge University Press. 103 “(...) As notas promissórias ou letras assinadas pelos varejistas, mesmo no auge da movimentação financeira [do Encilhamento], continuaram sendo o ativo mais negociado na economia e a operação de desconto a mais importante no mercado bancário (...).”LEVY, M.B. (1994). A Indústria do Rio de Janeiro através de suas Sociedades Anônimas. Ed. UFRJ, p. 150. Ver também TRINER, G. (1996). Banks and Economic Development: 1906-1930. PhD Thesis, Columbia University; HANLEY, A.G. (1995). Capital Markets in the Coffee Economy: financial institutions and economic change in São Paulo, Brazil, 1840-1905. PhD. Dissertation, Stanford University. 104 PIRES, A. (2004). Op. Cit. Temos outros dados retirados exclusivamente do Livro de Atas das Reuniões da Diretoria do Banco de Crédito Real que também demonstram ampla articulação do Banco com o setor industrial através de operações diversas. Ver Id. Ib. Tabela 71 pp. 297-299
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fontes que forneceram informações particularmente úteis para a compreensão do passivo das
indústrias, em especial as falências105 e os bancos estão presentes na quase totalidade dos casos. Por
outro lado, em 1926, Juiz de Fora contava com uma estrutura bancária bastante diversificada, o que
incluía a matriz do Banco de Crédito Real e da Casa Bancária Dias Cardoso, além das filiais do
London and Brazilian Bank, do Banco Pelotense, Banco de Crédito Hipotecário e Agrícola de
Minas Gerais e do Banco do Brasil, demonstrando a posição do município como centro financeiro
da hierarquia urbana que caracterizava a Zona da Mata.
Tabela 16 Relação entre Bancos e Algumas Indústrias em Juiz de Fora – Períodos Selecionados
Ano Indústria Operação Banco 1891 Bernardo José de
Castro Letra Banco Territorial e
Mercantil 1891 Cia. Chímico Industrial
Mineira Conta Corrente Banco de Crédito Real
1899 C. T. Bernardo Mascarenhas
Conta Corrente Banco de Crédito Real
1899 Cia. Construtora Mineira
Conta Corrente Banco de Crédito Real
1900 Corrêa e Corrêa Letras Banco de Crédito Real 1901 Bernardino Gomes de
Figueiredo (Fábrica de Cerveja)
Letra Banco de Crédito Real
1906 José Eloy Araújo (Fábrica de Sabão)
Conta Corrente Banco de Crédito Real
1912 Pedro Antônio Freez Conta Corrente Banco de Crédito Real 1915 Antônio Meurer Nota promissória Banco de Crédito Real 1916 Costa e Irmão Conta corrente Banco de Crédito Real 1916 C.T. Bernardo
Mascarenhas Conta corrente Banco de Crédito Real
1916 Cia. Fabril de Juiz de Fora
Conta Corrente Banco de Crédito Real
1916 Cia. F. T. Moraes Sarmento
Hipoteca Banco de Crédito Real
1918 Fábrica Stiebler Conta corrente (saldo em bancos)
Banco de Crédito Real e outros (?)
1919 Viúva Tortoriello e Irmão
Conta corrente Conta Corrente
Cia. Dias Cardoso Banco de Crédito Real
1920 Jorge, Irmão e Couri Conta corrente Banco do Brasil 1920 Estamparia Universal Conta corrente Banco de Crédito Real 1920 Renato Dias e Cia. Conta Corrente
Conta corrente Cia. Dias Cardoso Banco de Crédito Real
105 Uma autora já afirmou que “(...) talvez a melhor forma de discernir a próxima conexão entre os bancos e as indústrias seja através das falências industriais...” LAMOREAUX, N. (1986). “Banks, Kinship and Economic Development: the New England Case”. In Journal of Economic History. Vol. XLVI, n. 3. p.685
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Conta corrente Conta corrente
Banco Hipotecário e Agrícola de MG Banco do Brasil
1921 Francisco Nataroberto Nota promissória Nota promissória
Banco Pelotense Banco do Brasil
1922 Oscar Rodrigues e Irmão
Conta corrente e Obrigações Obrigações
Banco de Crédito Real Banco Pelotense
1926 Indústrias de Malha São Pedro
Promissórias Promissórias Conta corrente Promissórias Conta Corrente
Banco Hipotecário e Agrícola Banco do Brasil Cia. Dias Cardoso Banco Pelotense Banco Pelotense
1927 Borges de Mattos e Cia.
Conta corrente Banco de Crédito Real
1929 Álvaro Izento Conta Corrente Banco Pelotense 1931 Jorge Miguel e Irmão Conta corrente
Conta corrente Banco Pelotense Bank of London
1931 Cia. Mercantil de Juiz de Fora
Conta corrente Conta corrente Conta corrente
Bank of London Banco Hipotecário e Agrícola de MG Banco Pelotense
Fontes: Inventários e Falências – Vários anos. Apud PIRES, A. (2004). Op. Cit. Tabela 70 p. 295
Neste contexto local e regional não é um exagero fazer uma analogia com os Bancos
Regionais e o que representaram no financiamento das primeiras fases da industrialização106: são
verdadeiros motores de crédito, sem os quais o processo de industrialização e transição capitalista
não se efetivaria na cidade e região.
106 COTTRELL, P.L. (1993). Industrial Finance 1830-1914: The Finance and Organization of English Manufacturing Industry. Op. cit. CAMERON, R. (1992). Financing Industrialization. Op. cit. NEAL, L. (1997). “The Finance of Business during Industrial Revolution.”. Op. cit.
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4. CONCLUSÃO
Esperamos ter reunido neste artigo fatos e argumentos suficientes para uma reavaliação da
posição que a economia cafeeira de Minas ocupou no contexto do país no período aqui em vigor.
Sua notória delimitação como espaço econômico (como uma região), o comportamento singular de
seu ciclo produtivo e dinâmica de produção agroexportadora, a organização das relações de
produção no pós-abolição, a natureza específica de seu processo de industrialização, de expansão
comercial e financeira, denotam uma variação estrutural e setorial que refletia, na verdade, a
internalização e retenção de boa parte dos fluxos de recursos gerados em sua produção em seu
espaço próprio.
A reinversão destes recursos na própria economia local implicou na formação de circuitos
comerciais e financeiros, que além de se completarem internamente, permitiram que esta realizasse
à sua forma a transição capitalista. Mais ainda, esta circularidade no fluxo dos recursos regionais
garante sua devida classificação como um complexo agroexportador, específico quando lembramos
suas limitações estruturais como economia exportadora interiorana (não apenas no sentido da
ausência de um porto, mas também por seu núcleo urbano não coincidir com a capital) que lhe
impõe uma condição periférica no quadro de outros complexos do país.
Já como base de uma cadeia global de mercadorias, onde a Mata se colocou como uma das
principais regiões da oferta mundial, em que pese o papel central desempenhado pelo porto do Rio,
deve ser destacada a transferência de seu eixo de produção do Vale do Paraíba para a zona da Mata,
com a devida permanência da importância deste porto na comercialização mundial de café.
Seja como for (e esta e nossa proposta fundamental), abrem-se importantes instrumentos
teórico-metodológicos para uma reavaliação historiográfica e o delineamento de um modelo que
consiga explicar a dinâmica e o comportamento da economia cafeeira de Minas, parte integrante
bem mais significativa, queiramos ou não, da formação histórica do estado e das economias
regionais de exportação existentes no país no mesmo período.
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CERVEJA E AGUARDENTE SOB O FOCO DA TEMPERANÇA NO BRASIL, NO INÍCIO DO SÉCULO XX
Teresa Cristina de Novaes Marques*
O alcoolismo brasileiro é, pois, essencialmente, o aguardentismo das classes pobres.
[jornal O Imparcial, Rio de Janeiro, 25/12/1928.] Resumo: Este ensaio explora a pluralidade dos discursos e práticas sobre as bebidas alcoólicas presentes no meio social brasileiro nas primeiras décadas do século XIX. De posições extremas condenando o consumo de álcool indistintamente, a posições de extrema tolerância, percebe-se que a cerveja superou os críticos e se afirmou simbolicamente como bebida cujo consumo é legítimo e, até mesmo, recomendável. O embate entre a cerveja e aguardente teve como pano de fundo a projeção da elite pensante de qual seria o futuro da nação, a despeito da sua notória e indesejável miscigenação. Neste futuro, a cerveja ocupou um lugar simbólico destacado, como bebida industrial, higiênica. Mesmo os mais severos críticos do consumo de álcool saudaram a difusão do consumo de cerveja como um mal menor em face do aguardentismo dos pobres a lembrar a todos, teimosamente, o passado escravista recentemente encerrado. Para isso, examinamos os componentes ideológicos dos discursos pró-temperança, a reação esboçada pelas cervejarias a esse movimento e, por fim, a presença da aguardente e da cerveja nas práticas de lazer popular na cidade do Rio de Janeiro. Palavras-chave: propaganda anti-álcool, consumo popular, cerveja. Abstract: This article examines a number of discourses and social practices on alcoholic habits present in Brazilian social milieu at the first three decades of twentieth century. Some people defended the prohibition of alcohol consume, others had tolerant position in face of the question. We understand beer surpassed alcohol critics and achieved a symbolic position of a legitimate beverage. The struggle between sugarcane alcohol and beer is inserted in a larger question of the desired future of the nation, in spite of its shaking racial mixture. Even the most severe alcohol critics praised the widespread of beer consume, while the sugarcane alcohol remained as a vivid memory of the recent slave past. Keywords: temperance propaganda, popular consume habits, beer.
1. A TEMPERANÇA E O OLHAR DA ELITE SOBRE O POVO E A CERVEJA
Entre a década de 1870 e o início dos anos 1930 o consumo de bebidas alcoólicas foi alvo de
severas críticas em várias partes do mundo ocidental. Nos EUA, o movimento pró-temperança
alcançou o ponto máximo com a proibição legal da venda e produção de bebidas alcoólicas em
* Professora do Departamento de História da Universidade de Brasília.
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1919.1 A chamada Lei Seca resultou de intensa mobilização de diversos setores da sociedade norte-
americana, inicialmente articulada por grupos religiosos e, posteriormente, disseminada por um
conjunto maior de forças políticas.2 No Brasil, a campanha pró-temperança assumiu contornos
ideológicos próprios, cerrando fogo contra os hábitos de consumo da população pobre e mestiça,
condenando especialmente o uso da aguardente de cana. O debate em defesa da temperança se
dividia entre os partidários da moderação do consumo e, para alguns poucos ativistas, a abolição
total do consumo de bebidas alcoólicas no país. A cerveja e as cervejarias também foram alvo de
críticas do movimento temperante, mas esta bebida passou a ser tratada como um mal menor em
face das bebidas destiladas, de maior teor alcoólico.
O trecho retirado do jornal carioca O Imparcial, citado na abertura deste ensaio antecipa a
idéia que pretendemos desenvolver aqui: as cervejarias no Brasil, a despeito das críticas que os
participantes do movimento pró-temperança lançaram aos seus produtos, conseguiram superar com
folga a ameaça política vinda deste grupo. Em sua defesa, foram usados argumentos acerca das
propriedades alimentares da bebida, a exemplo do que ocorria em muitos outros países, como nos
EUA. Também foi invocado o seu menor teor de álcool, comparativamente a bebidas não-
fermentadas. Entretanto, idéias ainda mais poderosas do que essas, e mais permanentes,
contribuíram para garantir a presença legítima da cerveja nos hábitos de consumo do brasileiro. As
idéias que conquistaram o consumidor apareceram revestidas, primeiro, com a imagem construída
de bebida industrial, fruto de modernas técnicas de produção desenvolvidas na Europa. Em outros
termos, a cerveja seria um produto associado simbolicamente à idéia de civilização industrial.
Segundo, formou-se a imagem da cerveja como bebida de consumo de massa desprovida do
estigma social da aguardente, lembrada como a bebida de predileção dos escravos e, naqueles dias,
apontada como o vício degradante da população pobre urbana e mestiça, razão da sua exclusão
social. Há, portanto, forte componente racial nos discursos pró-temperança, bem como a projeção
do futuro da nação, onde o progresso industrial tomaria o lugar do atraso do passado escravista.
Nessa época, o movimento temperante ganhou força no Brasil pela atuação de médicos
higienistas, advogados, jornalistas, sindicalistas, parlamentares, feministas de direita,3 feministas
1 A 16 de janeiro de 1919, a 18a. emenda à Constituição dos Estados Unidos foi ratificada por 36 estados, tornando proibida a produção e comercialização de bebidas alcoólicas em todo o país. Um ano depois, a medida entrava em vigor. [BARON, Stanley. Brewed in America. The History of Beer and Ale in the United States.Boston: Little, Brown & Co, 1963; MILLER, Carl. Breweries of Cleveland. Cleveland: Schnitzelbank Press, 1998.] 2 BARON, Stanley (1962), Op. Cit.. 3A exemplo de Jerônima Mesquita, ativa colaboradora da líder feminista Bertha Lutz e filha do Barão de Mesquita. Jerônima presidiu a União Brasileira pró-Temperança a partir de 1925 e permaneceu à frente da entidade até 1950. A União funcionou paralelamente à Liga Brasileira de Higiene Mental, tendo as duas entidades muitas vezes realizado atividades em conjunto. A União surgiu no Rio de Janeiro, no final da década de 1894, pela iniciativa de uma cidadã norte-americana, chamada Watts. Embora contasse com a colaboração de médicos associados, apenas mulheres tinham direito de voto nas assembléias da União. Qualquer reunião era precedida pela leitura do voto de compromisso dos associados, que dizia assim: Confiando no auxílio de Deus, prometo me abster do uso de todas as bebidas alcoólicas, inclusive o vinho e a cerveja, e a promover com empenho, em todo o território da minha pátria, o movimento contra o
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anarquistas.4 Foi quando a sociedade brasileira viu surgir de toda parte discursos condenando o
consumo de álcool pela população. A variedade dos discursos nos obriga a buscar traçar os matizes
ideológicos do movimento pró-temperança nos apoiando na produção histórica sobre as propostas
de controle social em disputa no campo político brasileiro na Primeira República.
A propaganda pró-temperança foi o ponto auge de um movimento intelectual que teve raízes
nos anos 1870 com a difusão do cientificismo, ou crença no papel da ciência como instrumento para
explicar o comportamento dos indivíduos e garantir as bases para a formulação de políticas de
intervenção na ordem social. As décadas seguintes acentuaram o mal estar das elites com as
mudanças em curso nas formas de convivência com o povo, fruto do crescimento da população nas
cidades. A inusitada proximidade com as multidões, conseqüência da urbanidade, causava
preocupação e desconforto.
Entre os juristas, ganhou dimensão de certeza associar alcoolismo à criminalidade; o
primeiro sendo causa necessária da segunda. No entanto, os criminalistas disputavam entre si a
forma de o Estado intervir no meio social para coibir essa, e outras práticas sociais. No tratamento
da questão do crime, prevaleceu entre nós a influência da escola criminal italiana, a qual, baseada
na antropometria, descrevia os indivíduos, suas características psicobiológicas e suas propensões
criminais. Centrava neles, e não apenas no meio social, o alvo das políticas repressivas. Assim, pela
escola italiana, alguns grupos foram descritos a partir de suas características exteriores como
potencialmente perigosos para o convívio social. Estava em curso a construção de estigmas
negativos a distinguir os indivíduos passíveis de sofrerem maior vigilância: os negros, os
estrangeiros, os alcoolistas, os epiléticos, os alienados, os sifilíticos, os toxicômanos, e as
prostitutas.5
A outra vertente do pensamento criminológico, originada na França, preconizava a atenção
sobre as práticas coletivas, em detrimento dos indivíduos. Esse modo de ver o crime resultava em
políticas de intervenção sobre o meio ambiente social, como a regulamentação sanitária da
prostituição e contou com a adesão de muitos membros da classe médica.6 No Brasil, essa forma de
intervenção teve seus simpatizantes, mas acabou perdendo espaço para as políticas fundamentadas
na escola italiana, principal inspiração para as práticas repressivas policiais. Não foi o caso da
campanha pró-temperança que foi concebida nos moldes da escola higienista francesa e pretendia
instituir mecanismos de controle mais amplo sobre o comportamento da população pobre urbana.
Este foi o fundamento ideológico que deu suporte a projetos de lei apresentados no Parlamento, à
álcool, o jogo, a loteria, o fumo e outros males sociais. [União Brasileira pró-Temperança. Seleção de contribuições anti-alcoólicas, 1925-1950. Rio de Janeiro: Rodrigues & Cia., 1954.] 4 A exemplo de Maria Lacerda de Moura. [DULLES, John F.. Anarquistas e Comunistas no Brasil, 1973, pág. 248, nota nº 27.] 5 CANCELLI, Elizabeth. A cultura do crime e da lei, 1889-1930. Brasília: Universidade de Brasília, 2001. 6 Idem, capítulo IV.
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maciça campanha na imprensa, nos locais de trabalho, nas escolas e, a partir dos anos 1930, também
no rádio.
Embora a campanha pró-temperança se dirigisse a toda a população, seu impacto foi mais
intenso sobre a população negra, na qual, por força de hábitos culturais e em decorrência da
situação de miséria a que estava confinada, grassava o consumo de álcool e a incidência elevada de
doenças. O consumo desregrado de álcool se somava a outros estigmas sociais que já
sobrecarregavam a imagem da população negra na sociedade brasileira.
A tornar mais efetivo o estigma da degenerescência que recaía sobre os negros estava a
visibilidade do comportamento desviante.7 Por certo, não há como ocultar o estigma social da cor
da pele e da pobreza, porém, se a esses traços se acrescentar o alcoolismo, a identidade de todo o
grupo objeto de estigma fica invariavelmente comprometida pela marca da distinção negativa. Esse
processo de incorporação simbólica foi tão profundo que membros da própria comunidade negra
assumiram o discurso normativo da elite branca e condenaram, na sua imprensa, os maus hábitos
atribuídos à população de origem africana: o uso profuso de bebidas alcoólicas e o jogo.8
Dois grupos sociais, em particular, se destacaram na condenação ao alcoolismo: os
advogados e os médicos. Essa bandeira da condenação ao consumo de bebidas alcoólicas foi
empunhada por numerosos juristas em seus tratados de Direito, palestras e artigos nos jornais. No
entanto, os médicos higienistas agiam de forma bastante articulada e até mais eficiente do que os
advogados, embora, por vezes, os dois grupos atuassem de forma conjunta. Entre os médicos, havia
a convicção de que o alcoolismo se associava à degeneração da raça.
Pensando dessa forma, dentre os grupos de pressão que ocuparam o campo político do
movimento pró-temperança no início do século XX os médicos higienistas tiveram maior poder
para propor políticas públicas de intervenção social buscando coibir o consumo de álcool. Já
haviam estado em evidência no auge das políticas de saneamento urbano e de combate a epidemias
implementadas na virada do século. Políticas essas que resultaram na completa transformação do
espaço urbano do Rio de Janeiro e no afastamento da população carioca do centro da cidade.
Encontraram na temperança, que se associou ao movimento pró-eugenia, uma nova motivação para
a ação política. Motivação esta que os trouxe ao centro do debate político sobre o controle social,
desta vez com um novo repertório de propostas. 9
7 GOFFMAN, Erving. Estigma. Notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: Zahar, 1978, pág. 65. 8 O historiador norte-americano George Reid Andrews chama a atenção para a regularidade com que artigos condenando vícios como o alcoolismo e o jogo apareciam na imprensa negra em São Paulo. [ANDREWS, G. R.. Blacks and Whites in São Paulo, 1888-1988, Madison: The University of Wisconsin Press, 1991, pág. 78.] 9 SCHWARCZ, Lilia. O espetáculo das raças. Cientistas, instituições e questão racial no Brasil, 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
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Dada à formação do povo brasileiro, reconhecido pelos higienistas como fruto da
mestiçagem, a redenção do povo requeria a intervenção direta do saber médico para promover
medidas de seleção social que permitissem o aprimoramento da população, uma vez que os médicos
viam a si mesmos como tutores da sociedade brasileira.10 Outra forma de aprimorar a matriz racial
do povo seria promover o ingresso de imigrantes europeus, mas a experiência com a imigração não
trouxera os resultados que a elite imaginara nos anos 1870, quando começou a discutir seriamente
como realizar esse projeto. Décadas de convivência com o movimento sindical, especialmente, com
o anarquismo trazido pelos imigrantes, arrefeceram o entusiasmo com a idéia da imigração
redentora da raça brasileira.
Entre meados da década de 1910 e os anos 1920 mais um elemento foi acrescentado à
agenda política pró-temperança: as teses em prol da eugenia da população. Propunham a
instauração de políticas públicas para limitar os casamentos como forma de depurar o estoque racial
e partilhavam com os higienistas a convicção de que era preciso promover políticas para aprimorar
a raça. Por isso vinham a público propor medidas para limitar a capacidade reprodutiva da
população, endereçadas aos mesmos grupos que já recebiam a carga de estigma negativo como
elementos degenerados e perturbadores da ordem social.11 Novamente, os negros, os estrangeiros,
os epiléticos, as prostitutas, e toxicômanos.
Alguns anos mais tarde, o pensador social conservador Oliveira Viana elaborou de forma
mais sistemática o diagnóstico sobre a incapacidade de o estoque racial brasileiro possibilitar o
surgimento de uma nação civilizada.12 Com a nacionalidade ameaçada pela degeneração psíquica
da raça, para a qual o consumo de álcool tinha sua parcela de contribuição, cabia às elites promover
políticas de intervenção na realidade mestiça do povo. Seu pensamento era claro ao estabelecer uma
correlação altamente provável entre as raças e os tipos psicobiológicos, com seus respectivos
temperamentos característicos e propensões patológicas. O homem negro, para Viana, era propenso
à instabilidade temperamental, sendo capaz de oscilar entre a extrema generosidade e solidariedade
entre seus pares, e a cólera violenta. Já o índio era propenso à esquizofrenia de modo acentuado. Os
mestiços, escreveu Viana, ainda demandavam observação atenta e científica para se encontrar seu
padrão provável de comportamento.
10 Idem. 11 GOFFMAN, E., Op. Cit. Um reflexo da discussão travada no seio da elite brasileira em torno de teses eugênicas é encontrado no projeto de lei apresentado pelo deputado Marcondes Filho, em novembro de 1928. Previa o texto que fosse exigido exame pré-nupcial aos nubentes, com propósito, sobretudo, de controlar a propagação da sífilis. Seus colegas de Parlamento argumentaram em favor da extensão do exame para os usuários de bebidas alcoólicas, embora reconhecessem as dificuldades técnicas inerentes à operação. [Diário do Congresso Nacional, 14/11/1928.] 12 Trata-se do livro Raça e assimilação, publicado em 1932, embora o assunto tenha sido explorado pelo autor em artigos publicados na imprensa nos anos anteriores. [VIANA, Oliveira. Raça e assimilação. São Paulo: Editora Nacional, 1932.]
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O pensamento de Oliveira Viana conferia sistematicidade às reflexões que diversos setores
da sociedade vinham fazendo sobre o papel da raça na construção da nacionalidade brasileira.
Estava alicerçado em teses consideradas científicas e em propostas de pensamento político de
fundamento autoritário. O movimento pró-temperança alimentou-se desse debate, e ao mesmo
tempo, colocou sob severa crítica as práticas de lazer da população pobre. Vejamos os passos dados
por seus ativistas e a reação das cervejarias à ameaça que recaía sobre a legitimidade de seus
produtos.
2. A CERVEJARIA BRAHMA EM MEIO A PRESSÕES TEMPERANTES
Encontramos a menção mais remota à existência de uma entidade civil voltada para a propaganda
anti-álcool em um pequeno livro editado pela Brahma a fim de ser distribuído ao público visitante
da Exposição Nacional de 1908, comemorativa do centenário da abertura dos portos. Esta
Exposição foi organizada junto ao morro do Pão de Açúcar, na Praia Vermelha, onde a Brahma
montou um bar em estilo art-déco. O livro fora escrito por um certo Dr. Pires de Almeida,
identificado como médico higienista, apresentado na folha de rosto do livro com amplas credenciais
de serviços prestados à saúde pública.13
Almeida se refere explicitamente a uma agremiação formada por médicos, chamada 'Liga contra o
álcool', que propunha a limitação do consumo de bebidas.14 Em resposta, o autor levantou a idéia da
baixa toxidade da cerveja, comparativamente às outras bebidas disponíveis no mercado. Descreveu
a cerveja como dotada de qualidades alimentares, atributo inexistente nas bebidas destiladas,
especialmente na cachaça.
A cervejaria Brahma surgiu no livro do Dr. Almeida como uma empresa cuja produção era baseada
em princípios científicos, cercada de amplos cuidados de higiene, em contraste com o manuseio
descuidado a que as outras bebidas eram submetidas. Reforçando a idéia do padrão científico de
13 Assim está escrito: Ex-Delegado e Vacinador da Junta Central de Higiene, nas Freguesias de Inhaúma, Irajá e Jacarepaguá; membro da extinta Junta Central de Higiene, sucessivamente Inspetoria Geral de Higiene e Assistência Pública; aposentado da atual Diretoria de Higiene Municipal; e higienista da comissão incumbida de estudar as cinco localidades indicadas para a escolha da nova capital do Estado de Minas Gerais, em 1892. [Dr. Pires de Almeida. A Companhia Cervejaria Brahma perante a indústria, o comércio e a higiene. Sem editora, 1908..] Nota técnica: este livro não apresenta data de edição. Contudo, existem elementos suficientes para afirmar que foi editado para a Exposição de 1908. Primeiro, consta dele uma lista dos produtos da Brahma, inserida em uma das partes do livro, que não contém a cerveja Fidalga. Sabe-se, com segurança, que esta marca foi lançada em julho de 1914. A segunda prova de que o livro é anterior à Guerra está em uma menção, feita pelo redator do esboço do livro do cinqüentenário, ao fato de o livro ter sido elaborado visando àquela Exposição, e distribuído no seu decorrer. [Brahma de 1894 a 1934; Arquivo Brahma, cx. 95, português.] 14 Dr. Pires de Almeida , Op. Cit.; pág. 25.
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produção, o autor lembrou que os fundamentos técnicos da produção provinham do know-how
acumulado na experiência alemã de produção de cerveja, como se lê no trecho a seguir:15
Todas estas delicadas transformações que vão aqui resumidas se guardam e observam no fabrico de diferentes marcas da Cervejaria Brahma, sendo que a elas presidem dois químicos de nomeada, ambos igualmente abalizados e um dos quais dirigiu, no caráter de diretor-técnico, uma das mais afamadas cervejarias da Alemanha.
É de fundamental importância o detalhe da menção à Alemanha, o que fazia da Brahma uma
herdeira das tradições da indústria cervejeira daquele país. Foi esta a última vez em que este
atributo foi invocado para construir a imagem positiva da empresa. Face à experiência política
vivida durante a I ª Guerra, quando sua nacionalidade foi posta em xeque em ataques vindos de
várias frentes, discursos como o do Dr. Pires de Almeida foram abandonados.
A despeito do tom otimista do folheto da Brahma, há indícios de que não era pacífica a idéia de ser
a cerveja uma bebida alcoólica inofensiva. Isso porque, no seu esforço para definir como coibir os
abusos do álcool, a polícia carioca solicitara em 1907 ao laboratório nacional de análises químicas a
classificação do teor alcoólico das bebidas vendidas na cidade. A ação da polícia tinha motivação
pragmática, movida pela necessidade de definir o que era bebida alcoólica sujeita a repressão. O
resultado da análise condenou o consumo da aguardente, do vinho ordinário, e de destilados, e
preservou a cerveja, que foi tratada como bebida cujo teor de álcool era socialmente tolerável.16 Em
1912, a questão retornou à ordem do dia com a instauração da política de limitação do horário para
a venda de bebidas. Em novembro, o chefe da polícia carioca determinou que apenas a venda de
cerveja estava permitida após as 19 horas.17 A aguardente, ou parati, deveria ser banida dos balcões
dos bares à noite.
Claro que ninguém imagina ter sido uma medida administrativa dessa ordem capaz de suprimir o
consumo de parati. Tratava-se de uma bebida elaborada por um número enorme de produtores
dispersos na zona rural, longe do alcance da fiscalização do imposto de consumo e longe até dos
recenseadores.18 Chegava ao varejo em barris, por meios informais de distribuição. Por isso, é
impossível hoje estimar o volume real de aguardente oferecida no mercado nos anos 1920, tendo em
vista que as estatísticas disponíveis não são confiáveis.
15 Idem, pág. 10. 16 O País, 8/4/1907. [Apud, CUNHA, Getúlio Neves. As noites do Rio: prazer e poder no Rio de Janeiro, 1890-1930, Brasília, Tese de Doutorado em História, 2000, pág. 65.] 17 Jornal do Brasil, A cerveja é bebida privilegiada, 8/11/1912. [Apud, Getúlio Neves Cunha (2000), Idem.] 18 Em 1920, havia 308 estabelecimentos industriais formalmente constituídos para produzir álcool e aguardente, ao passo que existiam 64 mil estabelecimentos rurais – fazendas e sítios – identificados como produtores de aguardentes. Os organizadores do censo de 1920 admitiram não terem investigado estes estabelecimentos rurais, nem mesmo os situados na Baixada Fluminense, a poucas dezenas de quilômetros de distância da Capital Federal. Esses produtores domésticos escaparam do Censo e, certamente, estavam fora do alcance dos fiscais do imposto de consumo. [MARQUES, Teresa C. N.; OLIVEIRA, Maria Teresa R.. Inovação de produto ou saída para a crise? História Econômica & História de Empresas, v.1, 2003. Apud, Recenseamento Geral do Brasil, 1º/9/1920, Agricultura e Indústrias – Distrito Federal, vol. II, 1ª parte, 1924.]
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A produção e o consumo reais de aguardente escapavam à mão repressora das autoridades policiais.
No entanto, medidas restritivas ao funcionamento do comércio muniam a polícia de legitimidade
para coibir o lazer popular. Assim, a repressão ao consumo de álcool se apresentava em várias
frentes. No dia-a-dia, a polícia carioca tomava iniciativas administrativas para dificultar a vida dos
bebedores, como a definição do horário de funcionamento dos estabelecimentos, além de
habitualmente prender os bêbados que vagassem pelas ruas, enquanto, em outro front, os ativistas
da temperança agiam, a seu modo, em prol do controle sobre o consumo do álcool. Já em 1910, os
médicos higienistas reunidos na 'Liga contra o álcool' fizeram chegar ao Congresso Nacional uma
representação contendo medidas de limitação ao alcoolismo. Segundo o médico Domingos
Jaguaribe, o deputado Eduardo Pires Ramos abraçou a idéia e apresentou um projeto de lei de
limitação ao consumo de álcool.19
Teria sido esse o primeiro projeto de lei apresentado no Congresso sobre a matéria? Possivelmente
foi, mas o assunto não morreu com a iniciativa do deputado Ramos, retornando à pauta em outubro
de 1917, quando o então deputado pelo Rio Grande do Norte, Juvenal Lamartine, primeiro
secretário da mesa da Câmara, apresentou um projeto combatendo o consumo de álcool usando
como instrumento a elevação dos tributos que incidiam sobre as bebidas alcoólicas.
Lamartine propôs aumentar em três vezes o valor do imposto que incidia sobre a aguardente e o
vinho de consumo popular, e jornais de grande circulação destacaram a iniciativa do deputado.20 O
diário O País argumentou que o projeto tinha por objetivo combater a terrível praga social que
envenena e consome a vitalidade humana, destruindo a energia, a moralidade e a inteligência. No
entanto, lamentou o articulista, a proposta de Lamartine tinha poucas chances de ter andamento na
casa, uma vez que outra proposta semelhante, apresentada no ano anterior, pelo senador Eloy de
Souza, acabara por ser arquivada. A verdade era que, em ambas as casas do Legislativo, projetos
pró-temperança encontravam forte resistência de parlamentares ligados à lavoura de açúcar.21
Na justificativa para o seu projeto, Lamartine dirigiu aos seus pares um longo discurso sobre os
males decorrentes do alcoolismo na população operária. Afirmou ter buscado um remédio eficaz
para afastar ou pelo menos atenuar um mal, que se me [lhe] afigura gravíssimo para a nossa
nacionalidade.22 Conclamou seus colegas de parlamento a legislar em favor da população pobre, ao
19 Domingos Jaguaribe, Necessidade de abolir o álcool das refeições; conferência realizada a 30 de outubro de 1915, por ocasião do VII Congresso de Cooperadores Salesianos. [União Brasileira pró-Temperança. Seleção de contribuições anti-alcoólicas, 1925-1950. Rio de Janeiro: Rodrigues & Cia., 1954.] 20 O texto do projeto, que recebeu o número de 296/1917, foi publicado nos Anais da Câmara dos Deputados, de 22 de outubro daquele ano. 21 O País, 23/10/1917. 22 Diário do Congresso Nacional, 23/10/1917.
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que ele acrescentou o atributo 'ignorante', como forma de preservar os fundamentos da
nacionalidade brasileira, como se lê no seguinte trecho de seu discurso:23
Nada temos feito, até agora, no sentido da defesa da nossa população ignorante contra o alcoolismo. Desse nosso descaso tem decorrido uma série de males verdadeiramente impressionantes. A degenerescência da nossa raça, ameaçando a própria nacionalidade enfraquecida nos seus elementos componentes, nos seus alicerces fundamentais, e cuja principal causa devemos ir buscar no abuso do álcool o grande número de desequilibrados que enchem os hospitais, a tuberculose que devasta a nossa população operária, as moléstias do fígado, dos rins, o envelhecimento prematuro das artérias tão freqüente no Brasil são, na sua maioria, efeitos de uma só causa: o álcool.
Lamartine afirmou ter sido seu desejo, a princípio, propor um projeto que proibisse totalmente o
consumo de bebidas alcoólicas no país, mas o abandonara diante da inviabilidade política da
proposta. Contudo, seu ímpeto condenatório às bebidas alcoólicas não se referia a todos os gêneros,
voltava-se contra as cervejas de alta fermentação, os vinhos ordinários e a aguardente, bebidas essas
que, a seu juízo apresentavam maior risco à saúde dos consumidores. Curiosamente, deixou as
cervejas de baixa fermentação de fora do seu projeto.
Para dar mais ênfase ao seu discurso na tribuna, Lamartine recorreu a consultas que fizera a três
destacados médicos, todos de grande visibilidade política: Fernandes Figueira e Moncorvo Filho,
ambos pediatras, além de Francisco da Rocha, psiquiatra. Submetera a eles três perguntas: 1) Qual a
influência do álcool sobre a descendência?; 2) Os descendentes de pais alcoólicos são indivíduos
normais?; 3) Qual a diferença de percentagem de mortes prematuras entre os descendentes de
indivíduos normais e o de alcoólatras?; 4) O alcoolismo deve ser combativo como medida de
profilaxia social?
Em resposta, os médicos foram unânimes em afirmar os efeitos nefastos do álcool sobre a
descendência dos seus usuários, aumentando a mortalidade infantil e o nascimento de crianças
defeituosas. Basearam-se em estudos desenvolvidos na França sobre a população de alienados e
alcoolistas. Também concordaram com a importância de serem adotadas, no Brasil, medidas de
combate ao consumo de álcool pela população.
O projeto de Lamartine, apesar de sua repercussão na imprensa, não resultou em lei. Mesmo sem
sucesso no Legislativo, os grupos que defendiam a causa da temperança encontravam abrigo seguro
no Executivo, que acolhia seus argumentos e tomava medidas concretas para conter o consumo de
álcool. No início do ano de 1920, o presidente Epitácio Pessoa aumentou a carga de impostos sobre
a venda de bebidas no Distrito Federal.24 A Presidência da República dispunha de poderes para
restringir a venda de bebidas alcoólicas no âmbito da Capital Federal por meio de medidas
administrativas, como o aumento de taxas de licença, ou a definição de zonas e horários-limite para
23 Idem. 24 Decreto nº 2.173, 1o./1/1920.
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o funcionamento deste comércio, como aconteceu em 1926, quando foram alterados os critérios de
concessão de licenças para o varejo de bebidas na cidade. Essas medidas restritivas se tornaram
usuais, embora, muitos afirmassem que elas eram constantemente burladas na prática.25
Em julho do mesmo ano de 1920, o deputado Juvenal Lamartine voltou à carga com novo projeto,
ainda mais radical, de limitação do consumo de álcool. Abrindo o leque de propostas, estabeleceu a
elevação ao dobro do imposto de importação de bebidas alcoólicas, e ao triplo o imposto de
consumo sobre as cervejas de alta fermentação, os vinhos nacionais e a aguardente de cana. Para as
cervejas de baixa fermentação, o imposto de consumo dobraria.
As medidas mais drásticas, e mais inviáveis, estavam contidas em outros artigos do projeto. Previa-
se, por exemplo, a proibição, a partir de 7 de setembro de 1922, em todo território nacional, da
importação e da fabricação de qualquer bebida com teor de álcool superior a 2%, o que eliminaria
do mercado todas as bebidas destiladas, especialmente a aguardente. No entanto, seriam
conseqüentemente atingidas a maior parte das marcas de cerveja, ou teriam as fábricas que ajustar
drasticamente o teor alcoólico de seus produtos. Mas a punição mais severa recaía sobre o
alcoólatra, sem que fizesse distinção se se tratava de bebedor eventual ou contumaz.26 Pelo projeto
de Lamartine, qualquer pessoa que fosse encontrada embriagada seria recolhida à prisão por dez
dias, além de ser multada em 200$000. Os reincidentes pagariam o dobro desta multa. Na hipótese
de o embriagado ser funcionário público a situação se agravaria, seria demitido, a bem da
moralidade pública, e permaneceria impossibilitado de exercer função no Estado por dez anos.27
No dia seguinte à apresentação do projeto, notícias a seu respeito foram veiculadas na imprensa
carioca. O Jornal do Brasil, então um jornal popular, abriu uma matéria com o título Combatendo o
alcoolismo, que reproduziu apenas o teor da proposta, sem acrescentar comentários.28 Já o diário O
País destacou o assunto no meio da página do caderno de política. Considerou oportuna a
apresentação do projeto no momento em que outros países, citando os Estados Unidos e a
Argentina, acabavam de aprovar legislação sobre o consumo de álcool; proibitiva para o primeiro, e
restritiva para o segundo.29
Uma vez mais o projeto de Juvenal Lamartine não teve prosseguimento na Câmara, mas chama
atenção a preocupação do parlamentar com o marco simbólico do Centenário da Independência que
25 Palestra do Dr. Alfredo Balena proferida durante a Semana anti-álcool, realizada pela Liga Brasileira de Higiene Mental e pela Faculdade de Medicina da Universidade de Minas Gerais.[Liga Brasileira de Higiene Mental. Palestra do Dr. Alfredo Balena, proferida na semana anti-álcool. Belo Horizonte, 1932.] Em janeiro de 1933, os varejistas de bares e botequins do Rio de Janeiro se reuniram para encaminhar ao interventor do Distrito Federal uma reclamação contra o novo aumento da taxa de abertura dos estabelecimentos após as 19 horas. Segundo informou o jornal que noticiou o evento, desde 1930, os comerciantes de bebidas vinham sendo sobre taxados pelo fisco municipal. [Correio da Manhã, 14/1/1933.] 26 Como propunha o jurista Evaristo de Moraes no livro: Ensaios de patologia social. Rio de Janeiro: Leite Ribeiro, 1921. 27 Diário do Congresso Nacional, 6/7/1920. 28 Jornal do Brasil, 7/7/1920. 29 O País, 7/7/1920.
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se avizinhava e exigia um esforço urgente de reformulação dos fundamentos da nacionalidade
brasileira.
Com tantos ataques à legitimidade social das bebidas alcoólicas, as cervejarias de baixa
fermentação ensaiaram algumas respostas. Abandonaram a ênfase na propaganda das cervejas de
primeira qualidade, justamente as de teor alcoólico mais elevado. Embora fosse verdade que, desde
o início da guerra, o mercado vinha dando preferência às cervejas de segunda qualidade, tipo Pilsen,
mais leves, mais baratas e menos alcoolizadas. Em outubro de 1920, uma propaganda da Fidalga
ressaltou justamente esta última característica.30 Outro anúncio da Brahma, mais extenso, dirigido a
varejistas, chamou atenção para a linha de cervejas de baixo teor alcoólico da empresa, como se
percebe em anúncio publicado no Almanack Laemmert de 1919/1920.
Ao se dirigirem a autoridades públicas, as grandes cervejarias repetiam em coro o discurso da baixa
toxidade de seus produtos, argumentando, por vezes, que a bebida continha propriedades
alimentares e medicinais. Tinham, contudo, o cuidado de preservar distância simbólica e política
das cervejarias de alta fermentação, suas fortes concorrentes no mercado popular. Outro argumento
recorrente era a importância econômica das cervejarias de baixa fermentação. Lembravam o peso da
arrecadação dos impostos sobre a cerveja para as finanças públicas e, de fato, a carga fiscal era
elevada, apenas menor do que a que incidia sobre o fumo. Aludiam aos efeitos benéficos de sua
atividade sobre a cadeia produtiva, resultado da aquisição de matérias-primas de produtores
nacionais (madeira, garrafas, açúcar). Destacavam sempre, também, a importância dos empregos
gerados pelas grandes fábricas do setor.31
Outra fórmula explorada pelas cervejarias para manter a cerveja em evidência no meio social e se
contrapor à propaganda pró-temperança era patrocinar produções culturais em que o consumo de
cerveja tivesse lugar de destaque. Foi o caso de uma revista musical encenada em um dos teatros de
Pascoal Segreto ao final de 1928. Chamou-se Chopp Duplo e sua trama girava em torno da
personagem Fricadella, um alemão dono de bar, os empregados do estabelecimento e seus
freqüentadores, todos tipos característicos da vida urbana carioca.32 Embora não haja prova
30 Jornal do Brasil, 10/10/1920. 31 Representação da Cia. Antártica Paulista à Câmara dos Deputados, onde se lê que nada justificava a alteração do regime alfandegário do país, à cuja sombra cresceu e se desenvolveu a indústria nacional da fabricação de cerveja, contribuindo hoje diretamente para receitas públicas da União, dos Estados e dos municípios, além da contribuição indireta. [Diário do Congresso Nacional, 21/7/1920.] 32Em dezembro de 1928 a Delegacia Auxiliar da Polícia do Distrito Federal aprovou a revista musical Chopp Duplo, proposta pela companhia teatral Zig-Zag, do teatro São José, das Empresas Pascoal Segreto. A peça, uma opereta cheia de situações de duplo sentido, apresenta personagens do cotidiano popular carioca. Usa do humor para criticar costumes. O personagem principal é Fricadella, um alemão dono de bar, enamorado da cozinheira negra Juju. Também há Virgílio, um péssimo poeta que vive de fazer versos para propaganda do bar de Fricadella; Felizardo, um funcionário público, filho de português, que envelhece à espera do célebre aumento; e Munduca, negro, malandro, cobrador de bonde, morador do bairro do Catumbi. A qualquer crítica, o personagem Fricadella responde com o bordão: Gomigas é no chopp dupal! Assim mesmo, carregando no sotaque. [Peça nº 1.439, de 11/12/1928, Delegacia Auxiliar da Polícia; SDE 022 A, cód. 6E; Arquivo Nacional]
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definitiva do envolvimento financeiro da Brahma na peça encenada no teatro de Pascoal Segreto,
pode-se supor, dadas as longas relações comerciais entre o empresário da noite e aquela empresa, a
existência de alguma forma de ligação.
Patrocinar produções culturais, pressionar o Congresso Nacional, intensificar a propaganda de seus
produtos: esses são exemplos da reação das cervejarias às críticas desferidas pelos partidários da
limitação ao consumo de bebidas alcoólicas. No campo dos partidários da temperança, a iniciativa
mais importante foi a fundação, em 1922, da Liga Brasileira de Higiene Mental, entidade criada por
um grupo de médicos higienistas do Rio de Janeiro. Surgiu com o propósito de tomar parte da
comemoração do Centenário da Independência. De sua primeira formação, fizeram parte médicos e
políticos conhecidos, como Juliano Moreira, Miguel Couto, Carlos Chagas, Edgar Roquete-Pinto,
Afrânio Peixoto e Henrique Rocha.33
Instituíram-se as célebres semanas anti-alcoólicas, quando médicos, advogados e feministas
proferiam palestras em vários locais da cidade: sindicatos, escolas, clubes e fábricas.
Coincidentemente, ou não, essas jornadas ocorriam sempre no mês de outubro, junto com a Festa da
Penha, época do ano em que o consumo abusivo de álcool era destaque na imprensa.
As tais semanas anti-alcoólicas recebiam sempre grande cobertura da imprensa, especialmente dos
grandes jornais cariocas. Com o foco das atenções do público voltado para o assunto, os líderes do
movimento chegaram a ser recebidos pelo Presidente da República para levar propostas enérgicas
contra o consumo de álcool. Foi o caso da visita que fizeram ao Presidente no Palácio do Catete, em
dezembro de 1928, quando propuseram a elevação de taxas sobre bebidas, proporcionalmente ao
teor alcoólico do produto. Deste modo, as bebidas destiladas receberiam a maior sobretaxa, mas
também bebidas fermentadas como a cerveja seriam objeto de sobretaxação, ainda que menor. Na
mesma ocasião, propuseram a formação de um fundo de propaganda anti-álcool.34
Nas palestras proferidas durante as semanas anti-álcool, os oradores expunham a sua visão sobre o
assunto, revelando tanto os pontos de convergência do pensamento dos membros da entidade, como
os pontos conflitantes. Dois tópicos cindiam a opinião dos associados: o grau de proibição, se total
ou parcial, e o tipo de bebida que deveria ser objeto de repressão. Dentre os partidários da proibição
total estavam o jurista e parlamentar Afrânio Coutinho,35 o jurista Evaristo de Moraes,36 o médico
33 SCHWARTCZ, Lilia. Op. Cit., pág. 268, nota nº 26. 34 A visita, em comissão, de representantes da Liga Brasileira de Higiene Mental, da Sociedade de Medicina e Cirurgia e da Academia Nacional de Medicina ao Palácio do Catete, ocorrida no dia 24 de dezembro de 1928, foi destaque nos seguintes jornais cariocas: O Imparcial e A Noite. 35 Em 1920, Afrânio Coutinho apresentou projeto no Congresso propondo a proibição total de bebidas. [Apud, Liga Brasileira de Higiene Mental. Palestra do Dr. Alfredo Balena, proferida na semana anti-álcool. Belo Horizonte, 1932.] 36 Palestra de Evaristo de Moraes na Associação dos Empregados do Comércio, como parte da Semana anti-álcool de 1928. Na ocasião, argumentou que a proibição total seria impraticável no Brasil, embora desejável. [Jornal do Comércio, 20/10/1928.]
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Moncorvo Filho,37 o médico Hermeto Lima38 e as integrantes da União Brasileira Pró-
Temperança.39 No entanto, muitos ativistas pró-temperança argumentavam ser inviável instituir no
Brasil a proibição total, aos moldes do que o Congresso norte-americano tinha aprovado em 1918.
A situação naquele país era lembrada como exemplo de política pública de efeitos sociais
indesejáveis, face ao aumento da criminalidade registrado nos Estados Unidos após a instituição da
Lei Seca.
Havia consenso entre os ativistas do movimento brasileiro em torno da condenação à aguardente,
mas não se pode dizer o mesmo a respeito da cerveja. Poucos, como o médico Hermeto Lima,
condenavam o seu consumo de forma explícita, classificando a bebida como álcool prejudicial à
saúde de seus apreciadores. Afirmou este médico: 40
A cerveja é pois, como as outras, uma bebida condenável, por acarretar todos os prejuízos do alcoolismo. E mais será, se sua composição não for escrupulosamente feita, como quase sempre acontece.
Reconhecia Lima que a cerveja contava com maior tolerância por parte da sociedade e usava uma
linguagem ácida para se referir à cerveja de baixa fermentação: reputada melhor porque não mata
tão depressa. Já um folheto produzido pelo Departamento de Saúde do Estado de São Paulo incluiu
a cerveja no rol das bebidas alcoólicas, mas destinou crítica severa à aguardente: todavia, a
caninha, aguardente ou pinga, a mais familiar e a mais usada pela nossa gente, merece maior
consideração sob o ponto de vista do alcoolismo (...).41
A cerveja preocupava os higienistas de duas formas: primeiro, a maior parte deles abraçava a idéia
de que era gradual o caminho do envolvimento do usuário com as bebidas e, deste modo, a cerveja
ocuparia um lugar inicial nas etapas que levariam à dependência irreversível. Segundo, juntamente
com as cervejas de alta fermentação, consideradas por vários deles como impróprias ao consumo
por serem de má qualidade, os higienistas condenavam, sobremaneira, a associação entre cerveja e
alimento. Moncorvo Filho cerrou fileiras contra essa idéia tão difundida na propaganda das
cervejarias, aqui no Brasil e no exterior. Como pediatra, defendia a maternidade higiênica, isto é,
que as mulheres amamentassem seus próprios filhos, ou que as amas de leite fossem submetidas a
controle sanitário por parte das autoridades de saúde. Em outros termos, os filhos da elite deveriam
ser mantidos distantes das raças degeneradas.
37 Conferência proferida pelo Dr. Moncorvo Filho, como parte da Semana anti-álcool de 1927. [MONCORVO FILHO, Artur. Alcoolismo infantil. Conferência realizada em 18 de outubro de 1927, na Liga de Higiene Mental. Rio de Janeiro: Departamento da Criança no Brasil/Pongetti, 1928.] 38 LIMA, Hermeto. O alcoolismo no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1914. 39União Brasileira pró-Temperança. Seleção de contribuições anti-alcoólicas, 1925-1950. Rio de Janeiro: Rodrigues & Cia., 1954. 40 LIMA, Hermeto. Op. Cit., pág. 83. 41 Estado de São Paulo. Departamento de Saúde. Seção de Propaganda e Educação Sanitária. O que se deve saber sobre o alcoolismo. São Paulo, s/d.
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O médico Moncorvo Filho escolheu palavras duras para condenar as amas de leite em um folheto
publicado em 1923: sistematicamente, preciso é que de vez se abandone o péssimo hábito de
mandar que as mães e amas bebam cerveja para que possuam abundância de leite.42
Mais eloqüente ainda são as imagens usadas para ilustrar o folheto, que mostram uma esquálida
ama de leite sentada à mesa com um bebê ao colo e uma garrafa de bebida à sua frente. A força da
imagem racista da ama de leite negra e bêbada não deve ter passada despercebida pelos
contemporâneos.
É possível que folheto de Moncorvo Filho represente uma resposta à uma propaganda da Cervejaria
Brahma, veiculada na imprensa carioca em julho de 1921 e convertida em um folheto sobre as
propriedades nutritivas da cerveja Malzbier. O destino desta peça de propaganda da Brahma é
incerto. Pode ter sido distribuído a mães, mas também deve ter sido divulgado entre médicos,
muitos deles crédulos das propriedades nutritivas da cerveja, a despeito das pesadas críticas de
Moncorvo Filho. Vem de longe, portanto, a idéia de que a cerveja escura fosse, na sua forma doce
ou amarga, um fortificante necessário para complementar a alimentação das mulheres que
amamentam.43 Sabemos, pela experiência da maternidade, que essa idéia não foi totalmente
abandonada nos dias de hoje.
Mesmo sob críticas, as cervejarias não abandonaram imediatamente veicular a propaganda de suas
cervejas com imagens de mães e bebês. Outra peça publicitária produzida pela Brahma entre finais
dos anos 1920 e meados dos anos 1930, valeu-se da força da imagem de crianças brancas e
saudáveis, de uma mulher amamentando seu filho tendo diante de si uma garrafa de cerveja
Malzbier. A sugestão era evidente: mulheres que bebem Malzbier têm filhos saudáveis. Esse
mesmo discurso estava presente em um folheto produzido pela Cervejaria Hanseática, em 1938. A
peça exalta as propriedades alimentares da cerveja escura Maltina, indicada a nutrizes. A idéia-força
da cerveja como pão líquido era destacada no texto.44
Exatamente essa associação entre a bebida e alimento foi condenada veementemente pelo médico
Alberto de Paula Rodrigues em 1936, quando estava à frente da inspetoria de alimentação do
Departamento Nacional de Saúde Pública. Na ocasião, usou seus poderes de agente público para
vetar a propaganda de uma cervejaria cujo nome não mencionou.45 A mesma iniciativa fora
42 MONCORVO FILHO, Artur. Op. Cit.. 43 Vários testemunhos revelam que os contemporâneos absorveram de forma pouco crítica a qualificação da cerveja escura como fortificante. Veja-se, por exemplo, uma pequena nota publicada no Correio da Manhã, em 15/6/1918. Nela, o jornalista agradece a um comerciante, representante da Cervejaria Corumbaense, o envio de garrafas de cerveja para a redação do jornal. Diz o texto do jornal: trata-se de um produto de agradável sabor, ao mesmo tempo que é um poderoso fortificante usado com êxito nas convalescenças. 44 Cervejaria Hanseática. Cerveja e Saúde. Da cerveja dos egípcios à Maltina da Hanseática. Rio de Janeiro, 1938. 45 União Brasileira pró-Temperança. Seleção de Contribuições anti-alcoólicas, 1925-1954. Rio de Janeiro: Rodrigues & Cia., 1954. Extrato da conferência do médico Alberto P. Rodrigues, proferida na Rádio Globo, a 12/11/1949.
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defendida pelo médico Miguel Couto, anos antes, em conferência na Academia Nacional de
Medicina.46
Ao longo do tempo, Rodrigues, Moncorvo Filho, Miguel Couto e outros tantos médicos vieram a
público condenar o consumo de cerveja por mulheres que amamentam, mas a idéia resistiu aos seus
críticos. Pode-se encontrar na influente obra do médico Reinaldo De Lamare, A vida do bebê,
mensagens contraditórias a respeito do uso de cerveja na alimentação das mães. Na sua décima
nona edição, de 1964, De Lamare nega à cerveja preta a virtude de aumentar a produção de leite,
mas aceita que as nutrizes bebam uma quantidade mínima de vinho ou de cerveja. Em outros
termos, não recomenda o uso da bebida, mas também não o condena.47
Vê-se que a cerveja se incorporou aos hábitos cotidianos brasileiros, desde inícios do século XX,
apresentando-se como uma bebida industrial, leve, propícia ao convívio social ameno, sem os
impulsos violentos provocados pela aguardente e ainda dotada de propriedades nutritivas. Se havia,
de um lado, indústrias a proferir discursos para legitimar seus produtos, havia, de outro lado, uma
sociedade receptiva à mensagem, aspirando a ingressar no universo das nações civilizadas e
industriais.
Além dos discursos dos partidários e opositores das bebidas alcoólicas, há que se examinar o uso
dessas bebidas nas práticas de lazer popular na cidade do Rio de Janeiro. Tomamos como cenário as
manifestações que tinham lugar durante o mês das festividades da igreja da Penha, pois se tratava
de uma celebração de grande importância na vida cultural da cidade naqueles dias, e um espaço de
consumo único para os fins da nossa análise.
Notoriamente, aguardente e cerveja disputavam a preferência dos freqüentadores da Penha.
Entretanto, alguns grupos proeminentes na organização da festa, além da imprensa, demonstravam
clara predileção pela segunda. Por que seria? Parece-nos que o consumo da cerveja, em detrimento
de outra bebida alcoólica qualquer, ou mesmo, o seu uso em determinados rituais de celebração,
como na Penha, pode nos informar algo mais do que as preferências do consumidor naqueles dias.
Isso lança luz sobre a organização hierárquica e de valores presente na sociedade brasileira nos anos
1920.
46 Miguel Couto, na conferência Alcoolismo, defendeu que o álcool não podia ser jamais considerado alimento. Argumentou, também, que a prole dos alcoólicos era também de alcoólicos. A palestra foi realizada na Academia Nacional de Medicina, a 30/6/1921. [Arquivos Brasileiros de Medicina, março/1932.] 47 DE LAMARE, Reinaldo. A vida do bebê. Rio de Janeiro: Borsoi, 1964. [19ª edição]
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3. AS BEBIDAS NO LAZER POPULAR DA FESTA DA PENHA
Datam do final do século XVIII as primeiras romarias à Penha, mas a igreja que está lá ainda hoje,
no alto de uma colina, foi construída na década de 1860.48 A festa da Penha era um marco
simbólico da presença portuguesa na cidade do Rio de Janeiro e o bairro que se formou em torno do
santuário, como nos dias atuais, abriga um vasto contingente de famílias de origem portuguesa. Nos
anos 1890, quando a cidade do Rio de Janeiro vivia um momento de hostilidade aos lusitanos, esta
festa foi tratada como uma relíquia de antigas tradições aldeãs de Portugal, uma permanência
indesejada no contexto da afirmação institucional do regime republicano.49
Contudo, não estava restrita ao universo da comunidade de imigrantes portugueses. Já em meados
do século dezenove o lugar se tornara um grande espaço de diversão popular. E não eram poucos os
freqüentadores. Os jornais da época costumavam estimar em até 60 mil pessoas o movimento de
romeiros à Penha nos domingos de outubro, durante as duas primeiras décadas do século vinte.
Chegavam àquele número considerando a quantidade de passagens de trem vendidas por dia,
somada ao número de presentes que para lá se dirigiam por outros meios: carroças enfeitadas,
automóveis, caminhões.50 A freqüência elevada justifica a importância da festa da Penha para os
moradores da cidade.
Paralelamente aos rituais religiosos que cercavam o santuário, envolvendo o translado da imagem
da santa, o batismo coletivo de crianças, o sacrifício dos romeiros para vencer a longa escadaria que
dá acesso à pequena igreja, transcorriam os rituais de lazer com música, brinquedos, comidas e
bebidas. Isso fazia da Festa da Penha uma celebração quase tão importante quanto o Carnaval. De
fato, a presença de compositores e musicistas negros nas primeiras décadas do século XX fazia da
Penha um campo de experimentação para as músicas que fariam o sucesso no Carnaval do ano
seguinte.
Para a comunidade portuguesa, a festa representava uma grande celebração, um momento de
visibilidade social. A parte religiosa era organizada pela Venerável Irmandade de Nossa Senhora da
Penha de França, e dela tomar parte era um sinal de prestígio social. Aos pés da escadaria instalava-
se um coreto, onde uma banda de músicos executava dobrados e trechos de ópera, sob rigorosa
observação dos membros da Irmandade, que acertavam com a polícia a execução de músicas sem
48 SOIHET, Rachel. A subversão pelo riso. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998, capt. I; Álbum da Colônia Portuguesa, 1929, pág. 48. 49 Olavo Bilac e Raul Pompéia viam a Penha como um lugar de barbárie. [VELLOSO, Mônica. As tradições populares na Belle Époque carioca. Rio de Janeiro: Funarte/Instituto Nacional do Folclore, 1988.] 50 O jornal O País, de 22 de outubro de 1917, estimou em 60 mil presentes, considerando as saídas de trens lotados de 15 em 15 minutos da estação da Praia Formosa, zona do Mangue, em direção aos subúrbios da Leopoldina. O Jornal do Comércio, de 16 de outubro de 1928, informou que haviam sido vendidas 41.423 passagens de ida e de volta nos trens. A este número, o jornal somou mais 20 mil pessoas transportadas por outros meios e finalizou estimando em 60 mil os romeiros presentes à festa no primeiro domingo de outubro daquele ano.
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apelo sensual. Em outros termos, gêneros musicais que convidassem à dança, como as polcas e os
tangos, não tinham lugar.51
Os divertimentos eram dispostos em terreno próprio, à direita do santuário, com amplo espaço
gramado para piqueniques. Era o conhecido arraial. No ano de 1917, Pascoal Segreto instalou ali
um parque de diversões com montanha russa, carrossel elétrico, jogos de argola e outras atrações.
Também foram autorizadas a funcionar 29 barracas de comida e de bebida, cujos nomes sugerem
filiação a grupos étnicos. Dentre as barracas que se pode associar à comunidade portuguesa havia as
que evocavam conotação religiosa — como a Nossa Senhora da Penha de Irajá e Santa Cecília.
Outras eram apelidadas com o nome de algum membro notável da comunidade — Guerra
Junqueira, Aliados de Silvestre Nunes. Também havia barracas institucionais, como a do Recreio
dos Democráticos. Havia algumas, cujos nomes nos permitem identificar de imediato a origem
européia de seus freqüentadores: a Portuguesa, a Lusitana e a Triestina.52
Dentre os nomes de barracas que sugerem a freqüência de afro-brasileiros, havia a Cabana do Pai
Thomás e a União Carnavalesca. Não resta dúvida de que havia um vasto contingente de
freqüentadores da Penha que tinham origem africana. A história de Tia Ciata, e sua família
ampliada, confirma isso. A baiana Ciata era quituteira de ofício e líder espiritual de sua
comunidade, por reconhecimento. Como a dela, outras tantas barracas de comida africana existiam
na Penha.53
No entanto, os portugueses se consideravam os verdadeiros devotos, legítimos representantes da
festa. A imprensa reforçava essa idéia e a memória da comunidade lusitana cristalizou a imagem de
devoção cristã de seu povo, marca de sua contribuição à civilização brasileira. Encontramos essa
idéia, claramente, na edição de 22 de outubro de 1906 do Jornal do Comércio. Na reportagem, os
romeiros de origem portuguesa eram descritos como os verdadeiros e pios devotos de Nossa
Senhora da Penha, contrastando com os freqüentadores negros, tratados como os desordeiros e de fé
duvidos.54 O samba era tratado pela imprensa como elemento perturbador, ora tolerado sob
vigilância, ora proibido; a depender do humor da autoridade policial. Observado em perspectiva, ao
longo das primeiras décadas do século XX, o tratamento dado pela imprensa à música afro-
brasileira na Penha oscilou entre a repulsa e o encantamento. Em outubro de 1917, por exemplo, o
jornal O País comentou a presença de quartetos e quintetos musicais entoando músicas sugestivas,
relembrando o tempo de antanho, dos sambas, dos cordões carnavalescos, que tão tristes
51 O País, 22/10/1917. Neste ano, afirmou o jornal, a polícia proibira a execução de músicas sincopadas para que os romeiros não se entregassem aos prazeres das danças. Músicas mais animadas foram permitidas no arraial, mas não foi tolerado a formação de cordões e sambas. Em outros termos, proibiram-se rodas de samba durante a festa daquele ano. 52 SOIHET, Rachel. Op.Cit.; O País, 22/10/1917; Jornal do Brasil, 19/10/1926. 53 MOURA, Roberto. Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Cultura, 1995. 54 Jornal do Comércio, 22/10/1906. [Citado por Rachel Soihet (1998), Op.Cit., pág. 40.]
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recordações deixaram à Festa da Penha. Na mesma matéria, lia-se que a polícia proibira cordões e
sambas, ainda assim, os grupos presentes à festa naquele ano em nada pareciam com os perigosos
sambas e davam animação e alegria à festa.55 Sinal de que a chamada circulação cultural se deu a
custa de permanente atrito.
Entre historiadores da cultura popular carioca, o espaço de convivência da Penha vem sendo visto
como um local de contato entre a cultura popular e a cultura dominante. Teria havido ali uma troca
de valores e de modelos estéticos entre a tradição européia, portuguesa, e a tradição africana. Sendo
os negros os detentores da verdadeira cultura popular, representantes da autêntica manifestação
artística dos moradores do Rio de Janeiro, a exposição de sua arte naquele espaço privilegiado de
grande afluência de público resultou na difusão de seus valores estéticos para o resto da cidade. A
identidade musical dos cariocas ficou, irreversivelmente, marcada pela influência artística da
população de origem africana.56
O problema dessas leituras do fenômeno reside na noção estreita de povo adotado pelos autores
mencionados. Exclui o expressivo contingente de imigrantes europeus, no caso do Rio de Janeiro,
em sua maioria composto por portugueses recém-emigrados. Ora, se representavam os portugueses
uma importante parcela do operariado empregado na cidade, compunham o maior contingente de
empregados no comércio, habitavam moradias populares e se casavam com mulheres brasileiras,
uma vez que o grosso dos imigrantes chegava solteiro ao Brasil, como tratar os portugueses como
não pertencentes ao povo? Por que também havia entre eles alguns que se envolviam em atividades
de pequeno comércio, quando e se traziam algum capital de seu país?
É possível ir além dessa concepção e perceber que o lazer das classes populares era marcado pelo
confronto entre modelos estéticos, fruto da especificidade cultural de cada grupo étnico que
compunha a massa trabalhadora no Rio de Janeiro.57 No campo musical, a Penha, de fato,
representou um espaço de divulgação do samba. Lembremos, no entanto, que nesse processo de
construção da ordem simbólica, ocorrido no interior das classes populares, estiveram em exposição
outras formas de manifestação cultural, ao lado da música, havia também a comida e a bebida. Em
outros termos, cabe discutir de que forma as práticas de consumo que emergiam dos rituais de lazer
funcionavam como eficientes instrumentos de demarcação social e de exercício de poder entre os
grupos.
55 O País, 22/10/1917. 56 Sobre o assunto, veja-se: Mônica Velloso (1988), As tradições populares na Belle Époque carioca, Roberto Moura (1995), Tia Ciata e a Pequena África, Rachel Soihet (1998), A subversão pelo riso. Estes três autores têm em comum conceber a festa da Penha como um local de contato entre a cultura popular e a cultura dominante, sendo que, a despeito da repressão cotidiana, a cultura popular, leia-se a cultura negra, acabou por prevalecer sobre a estética tradicional, européia. 57 Toma-se o conceito de classe na forma elaborada por: THOMPSON, E. P.. The Making of the English Working Class, Harmondsworth: Penguin Books, 1979.
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Como, quando e com que conotação a cerveja participava do consumo ritual que tinha lugar nos
dias da festa? É possível encontrar o eco das críticas dirigidas ao uso de bebidas alcoólicas no lazer
popular? Beber cerveja era considerado mais legítimo do que beber aguardente?
A eleição do domínio do consumo como objeto de observação se justifica porque nele homens e
mercadoria são postos em contato. É quando a mercadoria adquire dimensões simbólicas que
ultrapassam a função para qual foi concebida pelo produtor.
A partir dessa sugestão, identificamos os discursos emanados pelos atores sociais acerca das
práticas de consumo de bebidas alcoólicas usuais no arraial da Penha. Poder-se-ia identificar
mecanicamente a preferência da comunidade negra pela aguardente, e a comunidade imigrante pela
cerveja e vinho barato. Considerando-se o nível de renda, dada a situação do mercado de trabalho
da Capital Federal, que favorecia os imigrantes e relegava aos afro-brasileiros os empregos braçais
e de pior remuneração, é razoável supor que a maior capacidade aquisitiva dos portugueses os
habilitasse a beber cerveja.58 Mas esse jogo era mais embaralhado, pois negros também consumiam
cerveja e portugueses, aguardente, conforme a situação.
Sabemos que havia por toda a cidade um sem número de cervejarias de alta fermentação, mais em
conta que a bebida produzida pelas grandes indústrias. Nos salões dessas pequenas cervejarias os
trabalhadores encontravam diversão barata e animada. Dona Carmem Teixeira da Conceição,
membro da comunidade de Tia Ciata recordou, em entrevista, os hábitos de seu marido, falecido em
1917:59
Meu marido cantava, tocava violão muito bem, ele ia para suas farras, os colegas vinham pegar ele. Tinha uma cervejaria ali na praça Onze, que ele sentava e bebia duas cervejas, daqui a pouco a mesa estava cheia de mulheres e homens e tudo.
De fato, bastavam atravessar a rua e os operários da fábrica da Brahma chegavam à uma cervejaria,
certamente, a mesma mencionada por Dona Carmem, localizada na praça Onze.60
Longe do centro, nos subúrbios, a cerveja barbante também era vendida nas barracas da Penha.
Aliás, vendia-se de tudo. Os imigrantes portugueses que levavam a família para passar o dia no
arraial bebiam vinho, ou mesmo cachaça. Mas a preferência dos imigrantes portugueses pela
cerveja industrial, particularmente pela marca Cascatinha, produzida pela Hanseática, cresceu junto
58 A má situação dos trabalhadores negros no mercado de trabalho do Rio de Janeiro permaneceu guardada na memória dos membros desta comunidade, como se lê no depoimento de Dona Carmem Teixeira da Conceição, irmã-de-santo do terreiro de Tia Ciata: (...) quem trabalhava mais era português, essa gente, espanhóis, era mais essa gente mesmo. Não era fácil não, eles não gostavam de dar emprego pro pessoal assim que era preto, da África, que pertencia à Bahia, eles tinham aquele preconceito. Mas mulher baiana arranjava emprego. [Citado por Roberto Moura (1995), Op. Cit., pág. 159.] Sobre imigração e mercado de trabalho no Rio de Janeiro, veja-se: MARQUES, Teresa C. N.; ARAÚJO, João Lizardo; MELO, Hildete P.. Raça e nacionalidade no mercado de trabalho carioca. Revista Brasileira de Economia. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, vol. 57, nº 3, jul/set, 2003. 59 Citado por Roberto Moura (1995), Idem, pág. 158. 60 Entrevista de Luiz Q. Zoega e de Alberto Thielen à autora, 29/8/1999. Ambos são funcionários aposentados da Cervejaria Brahma.
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com esta empresa, cujos proprietários integrava a comunidade de negócios lusa existente na cidade.
Ganhou força simbólica com a tensão política experimentada durante a Primeira Guerra, quando a
imprensa carioca se dividiu entre os partidários dos Aliados e de Portugal, e os poucos defensores
da Alemanha.
Perdurou no tempo a identificação da comunidade lusitana com a cerveja Cascatinha, mesmo após a
cervejaria que a fabricava ter sido comprada pela Brahma em 1941, lembrou Luiz Zoega, cervejeiro
aposentado da Brahma:61
– A Hanseática tinha uma aceitação muito grande na colônia portuguesa, mas ela também participava de festas populares? Luiz Zoega: Da famosa festa da Penha, com barraquinhas e tudo. E a cerveja Cascatinha... Tanto que, anos depois, a Brahma começou a fazer também a festa da Penha, depois que comprou a Hanseática. Então, nós tínhamos que rotular a Brahma Chopp com o nome Cascatinha. Nós pegávamos aquelas rolhas totalmente lisas, brancas e rotulávamos a Brahma Chopp, batizada, evidentemente. E aquela portuguesada toda tomava. Mas tinha português que comprava aquilo em engradado para fazer festa em casa, daqui a não sei quantos meses. Então, era a Cascatinha.
Se, como já comentamos, a imprensa tratou com ambigüidade o samba, em um ponto todos os
jornais consultados convergiam: o tratamento benévolo do consumo de cerveja. Em 1917, o jornal
O País comentou a intensa movimentação no setor das barracas: em todas elas, a par da finas
iguarias, eram apregoados os excelentes vinhos e as magníficas cervejas de afamadas marcas
nacionais, cariocas e paulistas. Qual das barracas a melhor? Qual a preferida? Difícil responder,
difícil distinguir.62 Os casos de embriaguez com outras bebidas eram tratados com menor
tolerância. Naquele primeiro domingo de outubro, informou o mesmo O País, que quatro homens
foram detidos pela polícia por abuso de bebidas e excesso de entusiasmo.
Na edição de 4 de outubro de 1920 do Jornal do Brasil é mais evidente o contraste entre os pesos e
as medidas no que diz respeito a bebidas. Noticiou-se excesso policial na Penha, o que não
representava grande novidade. O problema surgiu quando um guarda, embriagado, agredira um
repórter do jornal. O incidente rendeu matérias críticas ao longo de toda a semana seguinte. Nos
termos do jornal, o guarda exalava álcool. Em compensação, lê-se na mesma edição do dia 4 que a
barraca dos Aliados de Silvestre Nunes oferecera chope em profusão aos jornalistas que cobriam a
festa.63
Em 1926, a edição de 5 de outubro do Jornal do Brasil noticiou que a barraca do Recreio dos
Democráticos servira bebidas da Antártica a convidados da imprensa, reunidos sob o motivo de
homenagear o presidente do Penha Clube. Segundo o repórter: os rapazes do jornal foram alvo das
maiores atenções e antárticamente tratados pela família popular recreativista. Por sua vez, na
61 Há que se fazer reparos à memória do Sr. Zoega. Existem registros de a Brahma fazer a festa da Penha desde 1909, pelo menos, e a Cia. Hanseática só foi comprada em 1941. [Entrevista de Luiz Q. Zoega e de Alberto Thielen à autora, 29/8/1999.] 62 O País, 22/10/1917. 63 Jornal do Brasil, 4 e 10/10/1920.
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cobertura do aspecto policial da festa, registrou-se a prisão de alcoolizados e mendigos que
infestavam o arraial.64 Em outros termos, para a imprensa, a cerveja não era bebida alcoólica.
Com os elementos já apresentados podemos comentar a peculiar dinâmica das relações entre os
membros notáveis da comunidade portuguesa e a imprensa. Num misto de interesse comercial e
demonstração de prestígio, os organizadores das barracas ou membros da Irmandade se revezavam
em churrascos e almoços, cujos convidados principais eram os muitos repórteres que cobriam a
festa da Penha e autoridades públicas. Com freqüência, os promotores dessas reuniões eram
propagandistas de alguma cervejaria, ou nisso se convertiam durante os dias da festa. Os exemplos
dessa prática são numerosos. Durante a festa do ano de 1921, a barraca Recreio dos Romeiros
comemorou o aniversário de um certo Luís Chaves Góes, representante da Cervejaria Hanseática na
Penha, desnecessário dizer que a imprensa tomou parte ativa na comemoração. Naquele mesmo
ano, a barraca Aliados de Silvestre promoveu uma recepção ao pessoal do Arsenal de Marinha,
outra recebeu os empregados da municipalidade.65
No segundo domingo de outubro de 1926, a barraca dos Aliados de Silvestre Nunes ofereceu
sanduíches e cerveja da Hanseática a jornalistas. Na semana seguinte, o mesmo Silvestre Nunes e
sua mulher prepararam um abundante repasto aos jornalistas, conforme informou o Jornal do
Brasil. O redator da matéria prosseguiu comentando o aspecto etílico da comemoração:66
Várias saudações foram erguidas com meúdo entusiasmo. O popular Cascatinha, vulgo Fausto Gomes, não faltou, tendo mandado para a barraca dos Aliados um barril de delicioso chope.
O Baiano, velho propagandista da Hanseática, também ofereceu, em sua residência, opíparo repasto à imprensa e às autoridades civis e militares do serviço do arraial da Penha. Serviu-se cabrito assado com farofa, regado com abundância.
A descrição do jornal dá mostras do entusiasmo reinante nas festas oferecidas aos repórteres.
Enquanto isso, a polícia montada distribuía bordoadas no arraial e recolhia à prisão os alcoolizados.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Eis alguns exemplos do olhar da imprensa carioca sobre as práticas de lazer dos freqüentadores da
Festa da Penha. Revelou-se uma atitude tolerante e, mesmo, favorável dos jornais em relação à
cerveja. No entanto, seria enganoso atribuir exclusivamente à imprensa o tratamento privilegiado às
bebidas fermentadas, e o desprezo às destiladas. Embora houvessem interesses, inclusive
financeiros, na forma de propaganda, que serviriam de motivação para a imprensa neutralizar o
64 Jornal do Brasil, 5/10/1926. 65 Jornal do Brasil, 23/10/1921. 66 Jornal do Brasil, 19/10/1926.
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aspecto alcoólico da cerveja, uma análise mecanicamente econômica, além de conspiratória e
equivocada, não daria conta do fenômeno cultural mais profundo que está em jogo. Poder
econômico e político, os usineiros de açúcar e de aguardente também tinham. Sua força era sentida
na sociedade e no Parlamento, mas nem por isso, conseguiram construir uma imagem positiva da
aguardente. Limitaram-se a deter as iniciativas de parlamentares que pretendiam sobretaxar a
aguardente, de modo a desestimular os consumidores contumazes do produto. Aliás, no campo da
repressão ao consumo de álcool, as medidas da polícia se mostraram sempre mais eficientes.
Sem aprovar projetos de lei apresentados no Congresso com o propósito de reverter o quadro de
alcoolismo social, restou aos ativistas do movimento pró-temperança continuar se dirigindo ao
público, com insistência, para condenar o consumo de bebidas alcoólicas, especialmente as
reputadas como mais tóxicas. O discurso proferido por médicos, feministas e juristas penetrou no
meio social e seus ecos são encontrados na imprensa e, mais interessante, no discurso de construção
da auto-imagem de categorias funcionais, como os motoristas de praça do Rio de Janeiro.
No início de janeiro de 1926, a União Brasileira dos Chauffeurs, por intermédio do Centro Político
dos Chauffeurs, promoveu uma semana de atividades que incluiu uma campanha contra o consumo
de álcool e a prática do jogo. O jornal da entidade, A Voz do Chauffeur, criticou o fato de a
proibição da venda de bebidas após as 19 horas não estar sendo cumprida. Segundo o jornal: (...) aí
que se vende mais parati e se joga mais nos bares. Esta menção negativa às doses cotidianas de
aguardente consumidas pelos freqüentadores dos bares contrasta com o anúncio da Brahma
publicado na mesma edição, cujos dizeres eram: Vós que pertenceis a uma classe laboriosa e
Fidalga, deveis beber exclusivamente Cerveja Fidalga!67
Ao divulgar a propaganda da cervejaria e, mais, ao colocá-la em destaque na paginação em um
número dedicado ao registro das atividades associativas da União Brasileira dos Chauffeurs, os
editores do jornal dos motoristas revelavam encarar o ato de beber cerveja com normalidade. Em
outros termos, na auto-imagem que os motoristas, uma categoria de trabalhadores organizados e
engajados em um projeto político maior, buscavam construir para si não havia lugar para a
aguardente. O vinho e a cerveja haviam deslocado a velha parati para um lugar inferior no universo
dos sinais de distinção social com os quais as pessoas interagiam socialmente. Na cotação dos
valores simbólicos atribuídos às mercadorias, a cerveja suplantara a aguardente. Como, então, a
teoria social vê esse problema?
No âmbito do pensamento social marxiano, o consumo é um dos principais recursos ideológicos
que perpetuam a ordem social capitalista. Se a consciência de classe é adquirida na ação coletiva
dos trabalhadores em defesa dos seus interesses, o ato de consumir os aliena da participação política
e oblitera nos homens a visão das contradições sociais.
67 A Voz do Chauffeur, Rio de Janeiro, 04/01/1926.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 70
No entanto, essa forma de pensar nos parece não esgotar a questão, pois as estratégias de consumo
também podem ser tomadas como parte das estratégias de poder e do desejo de se diferenciar dos
outros grupos sociais. Imigrantes e afro-descentes pertenciam à massa trabalhadora e, como tal,
estariam irmanados na experiência de classe. Há, porém, uma notória cisão simbólica entre esses
trabalhadores, manifesta em pequenas estratégias de consumo cotidianas que criavam sinais de
demarcação entre os grupos sociais. Sob o manto do consumo, os imigrantes encontraram mais
alguns elementos para traçar fronteiras entre si e os demais trabalhadores da cidade.
Assim, no mundo privado das relações interpessoais, o consumo de bens contribuiu para diferenciar
homens que, no mundo público, poderiam se unir em prol de seus interesses comuns. Imigrantes e
trabalhadores nacionais, negros ou quase negros, buscavam avidamente se distinguir uns dos outros,
ainda que fosse pela preferência por cerveja ou aguardente. A indústria de cerveja só se beneficiou
disso.
URBANIZAÇÃO E PODER: Elites políticas e a modernização de Piracicaba na I República
Eliana T. Terci*
Resumo: O neo-colonialismo decorrente da II Revolução Industrial integra o Brasil, um país escravista e agrário, às correntes do comércio internacional. A conjuntura modernizadora que se inaugura é propícia aos ideais republicanos - o abolicionismo, a descentralização política e o liberalismo - e torna as cidades o locus privilegiado da institucionalização desse fazer histórico. Piracicaba vivencia essa transição: a "administração modelo" do PRP nos primeiros decênios e o "bairrismo piracicabano", versão local do nacionalismo dos anos 20, são ilustrativos da estruturação do poder dos republicanos que reordena o espaço urbano, redefine suas funções e segrega a população. Palavras chaves: Piracicaba, republicanos, cana-de-açúcar, urbanização, modernidade Abstract: The neo-colonialism as a result of II Industry Revolution includes Brazil, a slavery and agricultural country in international trade. The begining of this modern period promotes the republican idéas such as the abolicionism, the politic descentralization and the liberalism and turn the cities the locus to a institucionalization of historical made. Piracicaba experiences this transition: the "model administration" of the PRP in the first decades and the "bairrismo piracicabano", domestic version of the nacionalism wage of the 20 years, ilustrating the formation of the republican power, reordering the public space, defining funtions and people's segregation. Keywords: Piracicaba, republican, sugarcane, urbanization, modernity
A historiografia explorou com riqueza de detalhes a história política da I República,
demonstrando que a ordem republicana não implicou a instauração de um regime democrático no
Brasil, mas sim a constituição de um novo pacto oligárquico fundado, no campo político, na
exclusão social não somente das camadas pobres da população, como também dos segmentos
radicais das elites, quer monarquistas, quer republicanos. Já na esfera econômica, o regime
republicano representou a afirmação do progresso como sinônimo de enriquecimento e
prosperidade material.
Ao permitir a ingerência dos interesses privados na esfera pública, a descentralização
republicana define uma das características centrais da ordem liberal brasileira. De outra parte,
* Doutora em História pela Universidade de São Paulo (USP), pesquisadora do Núcleo de Pesquisa e Documentação Regional (NPDR) e professora da Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP).
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também confirma aquela fonte de prestígio e de poder das elites para a sua ascensão política no
cenário nacional, a saber, a intervenção na modernização dos núcleos urbanos construindo o
prestígio político local. Na verdade, o localismo constitui uma das principais estratégias políticas do
Partido Republicano Paulista. Quando de sua criação em 1873, o PRP já declarava como princípio a
sua própria defesa e autonomia frente ao centro estabelecido na corte. Casalecchi considera o
localismo dos republicanos uma reação ao centralismo do poder imperial, pois “eram conhecidas as
lamúrias de presidentes da província a respeito das ‘providências municipais’ a prejudicar-lhes a
administração. Por isso, o ideário republicano só medraria se desse lugar seguro para o poder e
influências locais.”1
É nesse sentido que a afirmação de um projeto de desenvolvimento para a cidade constitui o
alicerce para a afirmação dos grupamentos políticos locais, bem como sua principal fonte de
intervenção na esfera pública. Piracicaba é emblemática neste sentido, foi a cidade em que Prudente
de Morais iniciou sua carreira como advogado e político.
1- PIRACICABA ANTIGA: OS ANTECEDENTES DA MODERNIDADE
Os republicanos ilustres chegam a Piracicaba na metade do século XIX, quando a então Vila
Constituição passa à condição de cidade2 O núcleo urbano, à semelhança das demais cidades
interioranas do período, constituía um espaço meramente administrativo, do qual constavam: “o
prédio da cadeia, que abrigava ao mesmo tempo a cadeia, a escola primária e a Câmara
Municipal. Compunham ainda o núcleo urbano o Mercado Municipal, as chamadas casinhas,
construídas em 1858, utilizando-se de uma das paredes do Teatro que serviu de gigante, compondo
com divisões de taipa.”3
Quando em 1956 Piracicaba é emancipada à condição de cidade, possuía 1.600 casas, 4.000
habitantes urbanos e 22.000 pessoas em todo o município, incluindo 5.000 escravos.4
A preocupação central da edilidade local residia na comercialização da produção local com
outras localidades, através da construção e melhoria das estradas, da vinda da estrada de ferro e da
melhoria dos transportes fluviais. Um dos mais sérios problemas enfrentados referia-se à ponte 1 CASALECCHI, José Ênio. O Partido Republicano Paulista (1889-1926). 1ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1987, pp.51-52. 2 O nome “Constituição” foi atribuído a Piracicaba quando foi emancipada à condição de Vila, em 1821, em homenagem à Constituição Portuguesa (Cf. GUERRINI, Germano. História de Piracicaba em quadrinhos. Piracicaba: Ed. do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba, 1970) 3 CASALECCHI, José Ênio. O Partido Republicano Paulista (1889-1926). 1ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1987. Ver pag.
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sobre o rio Piracicaba, que permitia a ligação dos dois lados da cidade e que, “construída sem
altura suficiente, com as contínuas chuvas e enchentes, oferecia sério perigo aos que por ela
transitassem5". O transporte fluvial, por sua vez, era a alternativa à má situação das estradas e às
dificuldades com a ponte: era feito em canoas e destinava-se a estabelecer comunicação com
Cuiabá e transportar as canas dos engenhos de açúcar. Não arrefeceu mesmo com a chegada da
Estrada de Ferro Ituana, em 1877, ao contrário, modernizou-se com o "lançamento às águas do
vaporzinho Explorador", da Companhia de Navegação Fluvial Paulista, que se ocupava da
navegação comercial do rio Piracicaba. A extensão de um ramal da estrada de ferro para Piracicaba
representou outra, senão a mais importante, conquista da edilidade local na segunda metade do
século XIX, pois permitia à cidade o acesso ao principal evento da I Revolução Industrial.
O aprimoramento dos meios de comunicação e transportes eram condições fundamentais
para que as cidades interioranas não caíssem na condição de cidade morta a que estariam sujeitas
caso não se engajassem nos mercados de exportação. Piracicaba buscava a todo custo superar os
entraves às exportações, cuidando de viabilizar as diversas formas de escoamento da produção de
suas 14 fazendas de café e 28 engenhos de açúcar e fazer parte da divisão regional e internacional
do trabalho.
As dificuldades financeiras, no entanto, mantinham-se na dianteira dos entraves ao
progresso da cidade. As construções feitas à taipa e barro não resistiam ao tempo das chuvas e
exigiam consertos constantes. Tais dificuldades tinham relação direta com a tutela que a
administração imperial impunha aos municípios. Ainda sob os auspícios da lei imperial de 1828, os
municípios gozavam de estreitíssima autonomia financeira: não havia nesta lei, “especificação de
quaisquer impostos cuja criação lhes competisse (às Câmaras municipais). Alude não obstante à
venda, aforamento, troca, arrendamento e exploração direta de bens dos conselhos, e permite às
Câmaras impor multas por violação de suas posturas, fixando-lhes o limite máximo.”6
Um novo momento, entretanto, se anuncia nessa segunda metade do século XIX: se a escrita
física que desenha os monumentos e símbolos materiais do progresso da cidade e a arquitetura
urbana ainda se ressentem das mesmas dificuldades, as dimensões econômica e política começam a
se alterar com a entrada em cena de novos atores sociais e políticos.7
Os progressos da lavoura cafeeira e, principalmente, as necessidades de melhoria da
produtividade da cultura no sentido da redução dos custos, já a partir dos anos finais da década de
4 VITTI, Guilherme. Manual de História Piracicabana. Piracicaba: Jornal de Piracicaba, 1966. 5 GUERRINI, Leandro. História de Piracicaba em quadrinhos. Piracicaba: Ed. do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba, 1970, p. 383. 6 LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto. 3ª ed. São Paulo: Alfa-Ômega, 1976, p. 138. 7 Sobre a analogia entre a escrita e a construção das cidades ver ROLNIK, Rachel. O que é cidade. 2ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1988.
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1860, acabam por impulsionar o desenvolvimento das atividades urbanas de caráter industrial,
além, evidentemente, daquelas voltadas à comercialização e exportação do produto.
Nessas circunstâncias os irmãos Manuel e Prudente de Moraes Barros chegam a Piracicaba
para se estabelecerem como advogados, os primeiros advogados a fixarem escritório em Piracicaba
e constituir família. Chegam recém-formados pela Academia de Direito de São Paulo portando os
ideais republicanos emergentes.
Enquanto a Câmara conservadora se envolvia com os problemas de infra-estrutura urbana,
como o calçamento das ruas, a numeração e o emplacamento das casas, o abastecimento de água
etc, os liberais vão tratar de organizar a luta republicana: em 1870 Manoel de Moraes Barros e
outros aderem ao Manifesto de 3 de Dezembro para a fundação do Partido Republicano. Não
contam de imediato com a adesão de Prudente de Moraes que mantém-se fiel ao Partido Liberal,
Desiludido, porém, torna-se ferrenho organizador do novo partido e inaugura uma intervenção no
sentido da construção daquelas instituições que viabilizariam uma intervenção social, alterando aos
poucos a ordenação do espaço urbano, afinal:
A cidade, nesse momento, ainda que incipiente núcleo urbano, passa a ser o locus privilegiado do exercício dessa transição, inaugurando outros pontos de convívio além da Igreja, edificando monumentos laicos, possibilitando o surgimento de novos grupos sociais, abraçando projetos de educação e saber secularizados, em clara obediência às luzes do pensamento liberal.8
O ano de 1876 será destinado à grandes investidas nesse sentido: é inaugurado o Gabinete
de Leitura e criada a Loja Maçônica Piracicaba, ambos sob a direção de Manoel e Prudente de
Moraes Barros. É reativado O Piracicaba, jornal editado em 1874, sob a redação de Antonio Gomes
Escobar e são dadas as primeiras iniciativas para a construção de um Colégio Metodista em
Piracicaba. Ainda como vereador, Prudente de Moraes, juntamente com os oposicionistas, desfere
uma derrota simbólica aos conservadores: em sessão da Câmara de 11/03/77, por indicação sua, é
endereçada à Assembléia Legislativa Provincial uma solicitação para que fosse restituído à cidade
seu antigo nome Piracicaba. Em 13 de abril do mesmo ano, através da lei n.º 21, a Assembléia
Legislativa Provincial atendia a solicitação.
Nota-se, assim, a estreita relação entre a construção dos símbolos dos novos tempos como
obra desses novos atores. Mas não eram somente para a construção dos espaços para o exercício da
cidadania que a cidade abria espaço de intervenção, outros chegam para fazer dela o "espaço de
aplicação do capital".
Os méritos dessa forma de intervenção na cidade cabem principalmente a Luis Vicente de
Souza Queiroz. Herdeiro da fortuna de seu pai Vicente de Souza Queiroz, chega em Piracicaba para
8 MARTINS, Ana Lúcia .A invenção e/ou eleição dos símbolos urbanos: história e memória da cidade paulista In BRESCIANI, Maria Stella (org.), Imagens da cidade - séculos XIX e XX. São Paulo: ANPUH-SP/Marco Zero/FAPESP, 1994, p. 184
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tomar posse de seus bens em 1872, quando do falecimento de Vicente, dentre os quais constava a
Fazenda Engenho D’Água, situada às margens do rio Piracicaba. Em 1874 já são inaugurados os
trabalhos para a construção no local da Fábrica de Tecidos Santa Francisca, com grande festa na
cidade, incluindo banda de música e merecendo destaque nas páginas da imprensa local.
Luiz de Queiroz potencializou a oportunidade que o momento proporcionava. A imigração
norte-americana para a cidade vizinha de Santa Bárbara D’Oeste e o desenvolvimento da lavoura
algodoeira como atividade principal dos imigrantes criavam expectativas promissoras ao
desenvolvimento da indústria têxtil. Assim, em 1878, a Fábrica de Tecidos Santa Francisca,
operava com 50 teares, e empregava além da maioria de trabalhadores nacionais, outros de
nacionalidade diversa (ingleses, belgas, franceses e italianos), sua produção destinava-se às cidades
vizinhas, mas também ao Paraná e Rio de Janeiro9.
A cultura algodoeira, de fato, não vingou em Piracicaba, porém, a enorme demanda por
sacos para embalagem do açúcar permitiu a sobrevivência dessa única indústria têxtil no município.
E não foi essa a única iniciativa que fez de Luiz de Queiroz o pioneiro nos empreendimentos
modernos em Piracicaba: em 1860 importou da França um carro de tração animal, em 1882 instalou
uma linha telefônica entre sua fábrica de tecidos e sua fazenda Santa Genebra; em 1893, já na
República, foi responsável pela iluminação elétrica da cidade, para o quê havia constituído a
Empresa Elétrica dois anos antes.
A obra que o imortalizaria e que projetaria seu nome nacional e internacionalmente, porém,
seria, sem sombra de dúvida, a constituição da Escola Prática de Agricultura, atual Escola Superior
de Agricultura Luiz de Queiroz, da Universidade de São Paulo, viabilizada somente com a
República em 1901.
Os monarquistas reagem a essa crescente intervenção dos republicanos. Em 1881, o então
Barão de Rezende funda o Engenho Central de Piracicaba, apoiando-se na lei imperial, num
momento em que a produção cafeeira superava a açucareira no município (300 mil arrobas de café
contra 30 mil de açúcar).10
Outro indício bastante significativo dessa reação provém da Igreja Católica. No mesmo mês
de fevereiro de 1883, quando se realizam as anunciadas cerimônias de lançamento da pedra
fundamental do Colégio Piracicabano metodista, a Igreja Católica lança a pedra fundamental para a
construção do Colégio Assunção.
A Câmara Municipal também buscava reagir e dotar Piracicaba dos melhoramentos que a
cidade necessitava. Exemplo disso foram as iniciativas no sentido de implantar a iluminação
9 TORRES, Maria Celestina Teixeira Mendes. Aspectos da expansão urbana de Piracicaba nos primeiros anos do século XX. Revista do IHGP, Ano I, n.º 1, dez/1991. 10 Gazeta de Piracicaba, 21/9/1883.
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pública: em 1873, através de uma solicitação ao governo da Província para a doação de lampiões e
a cobrança de um imposto às casas situadas nas ruas beneficiadas com a iluminação, a Câmara traz
tal benefício a Piracicaba.
A partir de 1877, porém, estando a Câmara integrada pelos republicanos, torna-se prática a
abertura de concorrência pública para a realização dos serviços urbanos, alterando substancialmente
o cenário. Fortalecia-se desta maneira a posição dos republicanos e tornava a reação monarquista
inócua, principalmente na presença de aventureiros ávidos por estabelecer negócios voltados aos
serviços públicos. Em Piracicaba vários deles foram viabilizados desta forma, como o
abastecimento de água, luz, esgoto etc.
Coroando todas as iniciativas mencionadas no sentido da construção dessa intervenção
alternativa na vida urbana, os republicanos fundaram em 1882 o seu órgão de imprensa, o jornal
Gazeta de Piracicaba, que lhes garante um espaço de atuação para formar a opinião pública,
propagandear a sua ação social e política e construir uma nova ordem social.
A abolição da escravidão destaca-se como a principal campanha dos republicanos desde a
fundação da Gazeta de Piracicaba. A estratégia central dessa empreitada consistia em evitar o
confronto político com os escravocratas, cujo antagonismo abolicionismo/escravismo, poderia
inevitavelmente incorrer. A proposta dos republicanos era a de que se promovesse a abolição
gradualmente, contemplando o temor dos conservadores quanto à perda do patrimônio representado
pelos escravos: “a libertação com a cláusula de prestação de serviços durante certo prazo é a mais
pertinente forma de operar a transição11."
Apesar da adesão de inúmeros fazendeiros à proposta republicana, em 1887 havia ainda
3.416 escravos matriculados na coletoria da cidade. Os fatos, no entanto, mais uma vez
corroboravam a posição republicana:
Com freqüência, noticiava-se na cidade fugas de escravos dos municípios vizinhos e do município de Piracicaba. Era a idéia da abolição em marcha, pois as autoridade nada faziam para impedir tais fugas. Pelas ruas da cidade já se notavam grupos de escravos fugidos, carregando sacos de roupas, foices e cacetes. Os próprios fazendeiros já não tinham forças para coibir a deserção12.
Esse estado de coisas culminou com o registro de apenas 40 escravos pela Coletoria local
em 1988, até porque os fazendeiros já se empenhavam na atração de imigrantes para suas fazendas
no município. A imigração é precoce na região, remontando aos idos de 1840, quando o Senador
Vergueiro inicia o movimento de substituição da mão-de-obra escrava pelo trabalhador livre,
instituindo o sistema de parceria. Assim, em 1872, a população estrangeira de Piracicaba somava
11 Gazeta de Piracicaba, 19/out./1887. 12 GUERRINI, Leandro. História de Piracicaba em quadrinhos. Piracicaba: Ed. do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba, 1970, p. 143.
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1.733 indivíduos, representando 8,6% da população total13 e, entre dezembro de 1887 e 1888,
entrariam no município cerca de 1.600 novos imigrantes.14
Assim, já a 11 de maio daquele ano o Clube Piracicabano organizava uma Comissão de
Festejos Pró-Abolição e, em 13 de maio:
Mal se soube na cidade da extraordinária nova, imediatamente a alegria tomou conta de Piracicaba, cujas atividades foram totalmente paralisadas, na expansão do contentamento. Foguetes, bandas de música, oradores improvisados, grupos de populares por todos os cantos. À noite, realizou-se imponente "marche aux flambeaux", (grande número de tochas acesas conduzidas por populares, processionalmente), com iluminação em todas as fachadas de casas e um número sem fim de oradores15.
Os negros também puderam comemorar sua libertação exatamente um mês após a assinatura
da Lei Áurea sob a orientação de alguns cavalheiros, pois é de forma vigiada que os despossuídos
participarão da vida em público. É claramente perceptível o sentido que imprimiam às suas ações,
no sentido da ampliação da esfera pública, a saber, a laicização e a secularização do espaço público
para a atuação das elites letradas e empreendedoras. Ou seja, não implicou a democratização da
sociedade, sequer garantiu a cidadania civil ao contingente dos despossuídos.
A proclamação de República vem coroar o êxito da empreitada dos liberais piracicabanos,
bem como selar o reconhecimento de sua força política com a nomeação de Prudente de Moraes
para compor o triunvirato que governaria São Paulo, ao lado de Francisco Rangel Pestana e
Joaquim de Souza Mursa.
Estando no domínio do Poder Público, os republicanos tratarão de consolidar a sua
concepção de cidade, tendo na imprensa um instrumento fundamental de militância política na
construção e propaganda da cidade moderna, fazendo da Gazeta de Piracicaba seu órgão oficial. No
seu encalço, porém, já no ano que anuncia o novo século, surge na cidade um outro jornal para
“garantir os interesses locais”, com o firme propósito de fazer da ação na vida pública cotidiana a
sua militância no espaço urbano, o Jornal de Piracicaba.16
A partir daí tem-se uma nova forma de apreender a história social e política de Piracicaba,
aquela levada a efeito pelos jornalistas e seus colaboradores. Antes, porém, cabe enunciar os
principais traços deixados pela escrita da cidade marcada por esse momento de transição, visto que
a cidade política e a cidade como mercado já eram outras.
O principal traçado da cidade, no entanto, permanecia sendo aquele dos tempos da fundação
do povoado, tendo como referência o rio Piracicaba, a rua Moraes Barros (antigo Picadão do Mato
13 MALUF, Renato Sérgio Jamil. Aspectos da constituição e desenvolvimento do mercado de trabalho urbano e rural em Piracicaba. Piracicaba: Ed. UNIMEP, 1984. 14 Gazeta de Piracicaba, 23/2/1888. 15 GUERRINI, Leandro. História de Piracicaba em quadrinhos. Piracicaba: Ed. do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba, 1970, p. 151 16 Jornal de Piracicaba, 4/8/1900, Editorial de lançamento do 1º número.
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Grosso), e o Largo da Matriz, outrora, o centro dos poderes constituídos. Isso revela uma
peculiaridade das cidades interioranas em relação às metrópoles. Nessas últimas, a Modernidade faz
com que a penetração do tijolo altere o traçado montado pela paisagem natural, inaugurando o
novo: o centro novo, a cidade nova e tornando o outrora belo em ultrapassado. Em Piracicaba, o
crescimento urbano preserva minimamente esse traçado inicial e a cidade se expande a partir dele.
E é num tom bastante saudosista que o memorialista despede-se do século XIX, contagiado
pelo romantismo dos piracicabanos de que nos fala Perecin em suas obras:
Ai belezas brancas, translúcidas de inocência e amor discreto! Pedaços de morenas dengosas e italianinhas de peitaria criadora! Só se via de seus corpos, o rosto e as mãos diáfanas. Pernas?...Só as das lavadeiras do rio, e olhe lá, quando não se era corrido a pedradas. − Sem vergonha, era o grito de alarme. Que elegantes os troles de quatro rodas, puxados por parelhas luzidias! Lá na frente, o cocheiro todo empertigado, como se fosse ele o dono das preciosidades vivas que levava! De tempos a tempos, apresentação de peças no teatro. Era uma das poucas ocasiões em que as mulheres, aparecendo em público, mostravam seus colos níveos, ornados de colares e pedrarias, patrimônios de família. Namoro, só na sala de visitas, com a infalível presença de uma testemunha carrancuda. Nada de bondes, nada de transportes rápidos e confortáveis, nada de passeios no jardim público. Os moços divertiam-se assistindo a corridas de cavalos, com caçadas e pescarias. Nem cinema, nem futebol. Isso no comecinho do século17.”
2 - PIRACICABA MODERNA: “A CIDADE NA SENDA DO PROGRESSO”
2.1 - A Economia e a Construção da Imagem de Progresso
A base econômica da Piracicaba moderna era predominantemente agrícola, como era
comum nessa primeira fase de desenvolvimento urbano do Estado de São Paulo. Em 1900, contava
com 2.252 prédios e 14.000 habitantes urbanos: “o café continuava sendo sua principal riqueza,
seguido da cana que alimentava o Engenho Central e o Monte Alegre; em terceiro lugar o algodão
que abastecia a Fábrica Santa Francisca”18. A cidade guardava uma especificidade em relação ao
restante do interior do Estado de São Paulo, a presença da cana-de-açúcar, enquanto predominava
no estado a monocultura cafeeira. A produção açucareira de Piracicaba persistiu mesmo com a
difusão da cafeicultura em São Paulo, passando inclusive por um processo de modernização na
década de 1890, com a construção dos engenhos centrais.
Na verdade, a não substituição da cana pelo café, bem como a estrutura produtiva histórica
do município, consolidam-se no momento de transição do trabalho escravo para o trabalho livre e
das crises cíclicas das culturas de exportação. O propalado temor das crises da grande lavoura
cafeeira levou os proprietários piracicabanos a incentivar e explorar não somente a produção
17 VITTI, Guilherme. Manual de História Piracicabana. Piracicaba: Jornal de Piracicaba, 1966, p. 81. 18 PERECIN, Marly Therezinha Germano. A síntese urbana (1822-1930). Piracicaba: Ed. IHGP, 1989, p. 40.
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canavieira, como todas as possibilidades de diversificação da produção agrícola. Isso vai conferir a
Piracicaba uma economia agrícola essencialmente policultora, tendo-se ao lado dos cafezais e
canaviais toda sorte de produtos agrícolas, principalmente a produção de alimentos. O destino dessa
produção, excetuando-se o café, era basicamente o mercado interno local e estadual. Pode-se
mesmo dizer que os produtores locais definitivamente se recusaram a abandonar de vez aquelas
atividades a que se dedicaram desde os primórdios da fundação do povoado, atividades estas que
lhes proporcionaram um mercado certo e que lhes conferiram algum grau de prosperidade.
Vejamos, então, como a imprensa apresentava a realidade do município e a partir dela construía a
imagem de progresso:
PRODUÇÃO DO MUNICÍPIO O município de Piracicaba nunca teve fama de rico. Entretanto, a resumida estatística que vamos apresentar aos leitores demonstra que, se não existem aqui os latifúndios e a espantosa produção, temos uma lavoura variada e intensiva, temos as terras subdivididas − constituindo elementos de incontestável progresso e reconhecido equilíbrio econômico. Além dos cereais, produzidos em grande abundância, por uma infinidade de pequenos lavradores − milho, feijão, arroz − temos como principais culturas a cana-de-açúcar, o café e o algodão. Este último produto vai tomando incremento com o regular funcionamento da Fábrica de Tecidos "Arethusina", onde dele deram entrada, durante o ano de 1904, 31.205 arrobas. Da cana se faz o açúcar e a aguardente, montando a produção daquele ano findo, a 347.162 ar. e desta a 1413 pipas ou 706.500. Sendo que só a ‘Sucrerie’ produziu 281.784 ar. e o E.C. Monte Alegre 57.988 ar., as 7.390 ar. foram produzidas por outros 28 engenhos menores e a aguardente por 63 engenhos. A Fábrica de Tecidos "Arethusina" e a "Sucrerie" contribuem em grande escala para dar a cidade movimento e aspecto acentuadamente industriais. A produção de café para o ano foi de 257.236 ar. Ao maior produtor cabem 24.000 arrobas; vem em seguida um com 12.000 e outro com 10.000; depois 13 produtores de 5.000 a 9.000; 40 de 1.000 e 109 de menos de 1.000 arrobas. As terra do município são em geral terras férteis e conservam ainda muitas florestas. Em alguns pontos existem campos, com boas águas e pastagens, onde se fazem criações de gado bovino e cavalar, embora em pequena escala. A criação de suínos é também explorada. Vê-se por estas rápidas informações que o município está sob regime franco da policultura e dispondo de elementos próprios de vida, tem assegurado seu progresso".19
Este artigo confirma sobremaneira o argumento: o peso relativo do café numa estrutura
produtiva predominantemente policultora e a intencionalidade de construir a imagem de progresso
assentada em outros patamares. Cabe destacar que o artigo insinua, ainda que de maneira tímida, a
integração agricultura-indústria que seria a marca do processo de desenvolvimento do município.
É exatamente esse aspecto que chama a atenção, pois, se o desenvolvimento urbano-
industrial da cidade de São Paulo é marcado a partir dos anos 20 pela intensificação das atividades
ligadas ao mercado interno, com a indústria ocupando paulatinamente papel de destaque, Piracicaba
consolida seu processo de industrialização fortemente vinculado à atividade agroindustrial, voltada,
portanto, ao desenvolvimento de um importante núcleo metal-mecânico que tem relação direta e
umbilical com a consolidação da produção açucareira.
19 Gazeta de Piracicaba, 3/3/1905.
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As agroindústrias, de maneira geral, são caracterizadas por reunirem numa mesma unidade
produtiva as atividades agrícola, de extração da matéria-prima, industrial, de processamento e
fabricação do produto final. Especificamente no caso da agroindústria canavieira, a unidade de
processamento e fabricação do açúcar desenvolveu, desde o período colonial, uma estrutura
produtiva avançada, com acentuada divisão do trabalho, aproximando-as de um verdadeiro sistema
de fábrica, daí a não casual denominação de engenho, cuja evolução tecnológica deu lugar às
usinas.
O fato dessas unidades constituírem verdadeiras fábricas exigia uma mão-de-obra
especializada e afeta aos modernos padrões exigidos pela racionalidade do trabalho industrial. E
mais: durante o processo de fabricação do açúcar, o desgaste dos equipamentos é tal que ao final de
cada safra faz-se necessário o total reparo e desmonte das peças, o que deve ser feito em oficinas
especializadas, valendo o mesmo procedimento também para os engenhos antigos.
Evidentemente tal estrutura tem forte impacto sobre o processo de desenvolvimento urbano,
tanto no que se refere à demanda de mão-de-obra disciplinada e especializada com o advento dos
engenhos centrais e usinas, quanto no desenvolvimento de atividades de caráter urbano-industrial
pesado para o reparo dos equipamentos. Em outras palavras, o advento das usinas demanda das
cidades a construção de uma estrutura que dê suporte ao seu funcionamento, tanto para a
reprodução da força de trabalho, quanto para as demandas do próprio capital. Na verdade,
guardadas as devidas proporções, pode-se dizer que produção canavieira na região de Piracicaba
teve a capacidade de impulsionar a formação de um complexo agro-industrial, nos moldes do que o
café possibilitou no Oeste Paulista.
Ressalte-se que, em 1909, segundo dados da Gazeta de Piracicaba, o Engenho Central
empregava somente na fabricação do açúcar 320 operários distribuídos em dois turnos, diurno e
noturno, além da destilaria de álcool e da oficina mecânica, montada no estabelecimento para
fabricação dos utensílios necessários à empresa. Nem todos os engenhos possuíam as oficinas de
reparos de equipamentos. Nesse sentido, já a partir do final do século passado vão se constituindo
na cidade inúmeras oficinas dessa natureza, constituindo o embrião do que mais tarde seria um
importante núcleo metal-mecânico paulista. As pioneiras desse processo são as Oficinas
Krähenbuhl − fabricante de tílburis e troles, fundada por Pedro Krähenbuhl em 1870 −, tida como a
primeira grande indústria metalúrgica de São Paulo, com “40 operários, número elevado para a
época, esse estabelecimento se constituiu em um dos pioneiros na introdução de carroças e carros à
tração animal, chegando a exportar carros para todo o Estado”20
20 SAMPAIO, Silvia Selingard. Geografia industrial de Piracicaba - um exemplo de integração indústria-agricultura. São Paulo: EDUSP, 1976, p. 84.
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Além desta, registram-se a fábrica de arados e troles de João Martins, fundada em 1900; a
Funilaria e Caldeiraria Vesúvio, fundada em 1907 por Victorio Furlani; e as Oficinas e Fundição
Teixeira Mendes & Cia.
O acontecimento de maior significação para a consolidação desse embrião manufatureiro
metal-mecânico, porém foi a fundação da Oficina Dedini, em 1920. Fundada inicialmente com o
objetivo de fabricar e consertar veículos e utensílios agrícolas,
Inscrevia-se na tradição que viera se formando desde o final do século XIX (...) Aceitar encomendas para reparar e fabricar as peças mais simples para os inúmeros engenhos de açúcar e destilarias de aguardente existentes na região, constituía-se numa ocorrência natural para oficinas desse tipo. A Oficina Dedini não fugiu à regra21.
Esse expediente garantiu a ampliação do empreendimento com a instalação de uma seção de
mecânica e uma pequena fundição de ferro. Negri (1977) destaca a importância dessa iniciativa e a
pertinência em termos das demandas existentes para a Dedini e que serve perfeitamente às outras
oficinas do tipo. O grande salto dado pela Dedini em relação às outras oficinas similares foi a
dedicação desta ao fabrico de moendas. Através do desmonte das peças, foi possível copiar e
modificar os modelos iniciando-se no ramo. Tal empreendimento requereu a ampliação da Oficina,
fazendo-a saltar para a condição de pequena indústria. E mais do que isso, permitiu-lhe voltar-se a
um outro tipo de clientela, basicamente as usinas da região. Há que se destacar, no entanto, que uma
das razões do sucesso da Dedini foi o seu relacionamento com os usineiros. Segundo Negri22,
Mário Dedini, proprietário da oficina, induzia os usineiros a modernizarem suas empresas,
requerendo, em troca dos equipamentos mais modernos que se dispunha a fornecer, os
equipamentos usados e menores, o que reduzia os custos do investimento. Mais eficaz era a
disposição de Mário Dedini em associar-se aos empresários açucareiros para viabilizar a
modernização ou mesmo fundar outro engenho23.
Dessa forma, a Dedini foi se consolidando no ramo acompanhando e até impulsionando o
processo de modernização das usinas de açúcar, permitindo-lhe tornar-se o grande complexo
industrial e único produtor da maior parte dos equipamentos das usinas. Isso também contribui para
explicar, em parte, porque as outras oficinas do gênero existentes em Piracicaba não tiveram a
mesma sorte. De fato, com o processo de concentração de capital a partir dos anos 30, o sucesso dos
empreendimentos industriais dependiam de uma certa sagacidade para aproveitar as oportunidades
que a conjuntura oferecia. Além do mais, encerrava-se a fase de gestação da indústria e a 21 MALUF, Renato Sérgio Jamil. Aspectos da constituição e desenvolvimento do mercado de trabalho urbano e rural em Piracicaba. Piracicaba: Ed. UNIMEP, 1984, p. 29. 22 NEGRI, Barjas. Um estudo de caso da indústria nacional de equipamentos: uma análise do Grupo Dedini (1920-1975). Dissertação de mestrado, Deptº de Economia e Planejamento Econômico do IFCH-UNICAMP, mimeo, 1977.
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consolidação das empresas exigia agora um porte maior e mais moderno: esse espaço a Dedini
soube ocupar e assegurar.
Uma outra atividade de caráter industrial existente no período que o artigo citado
anteriormente chama a atenção é a Fábrica de Tecidos Arethusina - a Santa Francisca, fundada por
Luiz de Queiroz. Em 1912, o montante do capital da empresa era de 1.940 contos de reis, e 300
operários. Com esse capital, a Arethusina figura entre os 102 maiores empreendimentos industriais
do Brasil naquele ano, representado 1,1% do total dos empreendimentos e em termos de pessoal
ocupado, figura entre os 163 maiores empreendimentos industriais, representando 1,6% do total24.
A contratação de mão-de-obra para as tarefas rotineiras não oferecia maiores problemas, pois, de
seus 300 operários, 191 eram mulheres e 75 menores, “excetuando o dos empregados superiores, o
serviço é de empreitada nas principais seções”.25
A presença dessa fábrica, porém, em que pese o seu porte moderno, não foi suficiente para
dinamizar a cultura algodoeira no município e destinar sua produção à demanda da agroindústria
açucareira, foi a saída para sua sobrevivência futura: produção de tecido rústico para uso dos
lavradores e para fazer a sacaria dos engenhos de açúcar.
Com esse quadro, são indicadas as principais características econômicas das atividades
urbanas de Piracicaba no período. Cabe agora apontar as principais traços do desenho urbano que se
construía.
2.2 A construção do urbano e dos símbolos do progresso
No limiar do século XX Piracicaba ainda apresentava um processo de expansão urbana
bastante irregular: “alguns bairros mantinham um certo aspecto rural, diferente do centro-urbano.
Enormes terrenos cercados de pau-a-pique, às vezes meio desmantelados, ruas enlameadas pela
chuva ou envolvidas em nuvens de poeira na época de seca26.” O desenvolvimento urbano,
portanto, não era uniforme e delineava-se a partir de elementos potencializadores da urbanização,
aspectos estes eleitos como significativos do progresso e da modernidade naqueles tempos: “o
advento da ferrovia, em fins do século XIX, e a abertura de ruas entre esta e o Cemitério
contribuíram para a urbanização do Bairro Alto, mas, ao se iniciar o século XX, as chácaras ainda
seriam seu traço característico27.”
23 NEGRI, Barjas. Um estudo de caso da indústria nacional de equipamentos: uma análise do Grupo Dedini (1920-1975). Dissertação de mestrado, Deptº de Economia e Planejamento Econômico do IFCH-UNICAMP, mimeo, 1977, p. 30. 24 DEAN, Warren. A industrialização de São Paulo. São Paulo: DIFEL, 1971. 25 Gazeta de Piracicaba, 18/9/1912. A fábrica está em funcionamento até hoje sob a firma Cia Industrial Boyes. 26 TORRES, Maria Celestina Teixeira Mendes. Aspectos da expansão urbana de Piracicaba nos primeiros anos do século XX. Revista do IHGP, Ano I, n.º 1, dez/1991, p. 22. 27 Idem.
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Segundo recenseamento de 1899, Piracicaba possuía 2.092 casas; 11.060 habitantes, dos
quais 8.054 brasileiros e 3.006 estrangeiros (dentre os quais 2.064 italianos); 5.555 alfabetizados e
5.505 analfabetos.28 À ação empreendedora dos piracicabanos que deu a Piracicaba aquele perfil
econômico vêm se somar a ação da administração pública e das elites políticas no sentido da
construção de infra-estrutura urbana que projetasse a cidade.
A imprensa da época reconhecia nessa interação a fonte para o desenvolvimento industrial
dos municípios paulistas, na qual “iniciativa privada e incentivos públicos têm garantido a
prosperidade das localidades”, permitindo-se profetizar então que “a Piracicaba está reservado um
lugar de destaque entre os municípios que marcham na senda do progresso.”29
A verdade é que a República e a descentralização vinham consolidar o tino empreendedor
das elites paulistas com a maximização do enriquecimento que os negócios do café propiciavam.
Esse movimento, que Saliba30 denominou paulistismo, cujo slogan “São Paulo é a locomotiva que
puxa os vagões velhos e atrasados da Federação”, atinge seu auge nos anos 20 com a emergência de
um projeto modernizador para o país, o qual colocava São Paulo na vanguarda graças à sua
condição de unidade mais rica da nação. Seu ponto de partida, porém, localiza-se muito antes, na
busca das elites dominantes por uma política econômica independente para os estados,
principalmente pela autonomia no acesso ao sistema de crédito internacional.
É nas cidades que tais propósitos empreendedores e políticos das elites se materializam e o
empenho de um projeto de desenvolvimento para a cidade constitui o alicerce para a afirmação dos
grupamentos locais, bem como sua principal fonte de intervenção na I República.
É no processo de construção da imagem de administração modelo, conquistada pelos
republicanos nas primeiras décadas do século XX, que se encontram as bases da construção da
Piracicaba Moderna. A marca da intervenção da administração modelo tinha estreita relação com a
idéia sanitária, momento "em que a cidade se problematiza atravessada pela questão da técnica e
pela questão social, quando se pretendeu resolver os problemas da sujeira, da peste, das sublevações
possíveis, imaginárias ou verdadeiras31.” Tendo à frente da Câmara Municipal (1896-1910) nada
menos que o médico formado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, Dr. Paulo de Moraes
Barros, filho de Manoel de Moraes Barros, o saneamento manteve-se como a marca da sua
administração, dando continuidade aos intentos de seu pai, desde os tempos do Império:
Percorrei a nossa cidade em qualquer direção, vós que a conhecestes há vinte anos, e fazei o confronto da − Noiva da Colina, de então, com a Piracicaba engalanada de hoje. A sua população
28 Gazeta de Piracicaba, 30/jan./1902. 29 Jornal de Piracicaba, 24/mar./1920. 30 SALIBA, Elias Tomé. Ideologia liberal e oligarquia paulista; a atuação e as idéias de Cincinato Braga, 1891/1930. Tese de doutoramento, Deptº de História FFLCH-USP, mimeo, 1981. 31 BRESCIANI, Maria Stella. As sete portas da cidade. Espaço & Debate: Revista de Estudos Regionais e Urbanos, n.º 34, ano XI. São Paulo: NERU, 1991, p. 14.
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mais que duplicou; a sua área urbana dilatou-se conquistando as capoeiras e terrenos cultivados das cercanias; suas ruas preparadas de extremo a extremo, convidam ao salutar e aprazível exercício que nos dá energia e força; suas praças e largos, onde se apascentava a alimária, são hoje virentes parques e jardins onde os pulmões sorvem o ar puro que lhes vitaliza o organismo e o espirito repousa suavemente na labuta diária. (...) O Itapeva, antes foco de miasmas e embaraço à viação até de pedestres, hoje saneado, melhorado o seu curso, oferece essa série de pontes de alvenaria que pôs em comunicação fácil os pontos extremos da cidade. A antiga e deficiente iluminação à querosene foi substituída pela elétrica que derrama a sua luz profusa e sã.(...) Recordais vos do que eram antigamente as habitações com as suas cloacas, e os recantos da cidade como pontos de despejo das imundícies?! Recordais vos das epidemias de varíola, como das epidemias de tifo maláricas?! Recordais vos dos angustiosos tempos em que a nossa cidade, sitiada pela febre amarela, como por essa mesma varíola, recebia às dezenas os míseros fugitivos já enfermos, que em aflição abandonavam os seus lares assolados e cobertos de luto?! (...) Qual a Providência que salvou Piracicaba, quando suas irmãs mais próximas eram impiedosamente flageladas? (...) Essa Providência foi a providência da administração pública local, que ao par de outras medidas sanitárias conseguia a construção do − Hospital do Isolamento − e corajosamente metia ombros ao maior, ao mais custoso, ao mais necessário, ao mais útil de todos os seus empreendimentos, a construção da rede de esgotos, o único capaz de opor uma barreira eficiente à formidável calamidade que afligia o Estado de S. Paulo 32
Evidencia-se o discurso do reformador e planejador urbano na fala de Paulo de Moraes
Barros, que se inscreve na denominada ciência urbana surgida no início do século, qual seja, a
cidade como possível fator de progresso, com funções diversas, cabendo aos planejadores definir e
normatizar suas funções tendo como método de experimentação o modelo da medicina33. Esse
método embasa as ações saneadoras, bem como normatiza as construções. E é a técnica o
instrumento capaz de modificar o meio para construir o progresso. A compreensão que permeia
toda proposição saneadora é a de que a reforma substancial dos ambientes insalubres é a maneira
mais eficiente para se criar uma conduta civilizada para os pobres. Tal concepção, cuja origem é
européia, deita raízes entre os reformadores urbanos no Brasil34.
Higiene e estética são, na verdade, os elementos norteadores do pensamento urbanístico de
São Paulo do período, os quais orientam a intervenção dos reformadores urbanos e não deixa de
influenciar as elites políticas piracicabanas:
A discussão e implementação de uma cidade higiênica e a associação entre salubridade física e
social será uma das formas fundamentais de generalização dos valores burgueses, de controle desta
população móvel, instável. A criação de um novo espaço físico para a cidade será a construção e
imposição de uma nova cultura para o trabalho e trabalhadores35.
32 Discurso de Paulo de Moraes Barros, proferido em 04/maio/1910, no Club Republicano, em resposta à homenagem a ele prestada pelos correligionários do Partido Republicano de Piracicaba, quando de sua volta da Europa onde fora acompanhar a esposa que estava gravemente enferma. Apud CAPRI, 1914, pp. 12-19. 33 TOPALOV, Christian. Os saberes sobre a cidade: tempos de crise. Espaço & Debate: Revista de Estudos Regionais e Urbanos, n.º 34, ano XI. São Paulo: NERU, 1991. 34 BEGUIN, François. As maquinarias inglesas do conforto. Espaço & Debate: Revista de Estudos Regionais e Urbanos, n.º 34, Ano XI. São Paulo: NERU, 1991. 35 LANNA, Ana Luiza D. Santos - transformações urbanas e mercado de trabalho livre, 1870-1914 In SILVA, S. S. e SZMERECSÁNYI, Tamás. (orgs.). História econômica da Primeira República. São Paulo: HUCITEC/FAPESP, 1996, p. 298.
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A lei sobre construções decretada pela Câmara Municipal na ocasião em que Paulo de
Moraes a presidia sintetizava a proposição saneadora. Estabelecendo total controle sobre as
construções dentro do perímetro urbano e exigindo a solicitação de autorização da Câmara para
edificações e reedificações, estabelecia uma série de regulamentos e condições para aprovação dos
projetos: o alinhamento deveria ser aprovado pelo fiscal arruador; definia-se dimensões mínimas
para as construções tendo em vista as condições de arejamento, luminosidade e nivelamento do
terreno para permitir escoamento das chuvas; proibia construções em lugares possíveis para a
abertura de ruas; condicionava as construções de fundos às que fossem muradas, assim como
proibia o aproveitamento de muros feitos no alinhamento de ruas e praças para construções que
ficassem visíveis de fora; obrigava a demolição das construções em ruína; condicionava as
construções em terreno que outrora serviram para depósito de lixo à sua completa limpeza anterior
à edificação; dispunha sobre toda sorte de questões referentes às condições da construção definindo
o material a ser usado, proibindo o uso de madeira e barro, obrigando o reboque e caiação externos
e o calçamento; dispunha ainda sobre as condições para a manutenção das cocheiras e estábulos,
estabelecendo prazo de seis meses para que os existentes se enquadrassem no disposto pela lei;
estabelecia o prazo de um ano para o cumprimento da lei; definia comissão de inspeção para
averiguação das construções e estabelecia multa de 25$000 reis para os que, nesse prazo, não se
enquadrassem e 50$000 reis para os reincidentes.36
Como afirma Beguin “a arquitetura é reduzida às aptidões físicas das formas utilizadas na
habitação e dos efeitos produzidos por estas formas sobre os fluidos ou sobre um modo de
distribuição de pessoas e de serviços37.” Em outras palavras, a racionalidade que prescreve a
preocupação estética e que permeia a proposição é aquela da ordem e da visibilidade, aquela do
planejamento urbano.
Num outro sentido, sanear e higienizar representava construir uma nova imagem da cidade
que permitisse apresentá-la como urbe civilizada, numa microversão da obsessão progressista que
tomava conta das elites políticas. Isso ocorre porque acompanhar o progresso significava alinhar-se
com os padrões e o ritmo economia européia. Perseguia-se, pois, o ideal de cidade urbanizada,
industrializada, com um ritmo de vida ditado pela fábrica ou pelo escritório. Num sentido mais
amplo, essa obsessão pelo progresso era uma das manifestações do modernismo do limiar do século
XX, da Belle Époque, cujo sentido estava
Impregnado por uma fé confiante no progresso social, por uma pronta disposição em acreditar que o desmascaramento dos abusos era um passo para a sua eliminação, que a rejeição do passado
36 Arquivo da Câmara Municipal de Piracicaba, Livro de Leis e Resoluções, vol. 5, fl. 71 e seguintes. 37 BEGUIN, F. As maquinarias inglesas do conforto. Espaço & Debate: Revista de Estudos Regionais e Urbanos, n.º 34, Ano XI. São Paulo: NERU, 1991, p. 39.
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convencional era a preparação do caminho para um crescimento moral saudável, para ideais desejados. O trabalho duro, a visão clara, a coragem, a determinação − tais eram as chaves do futuro, para a evolução de novos tipos de homens, de sociedades, de artes38
Assim, resgatar a credibilidade do Brasil no exterior parecia fundamental para desfazer a
imagem negativa que o país conquistara externamente em função das sucessivas crises políticas do
período imediatamente subsequente à proclamação da República, o que comprometera as reservas
nacionais e dificultara a entrada de capitais e mesmo a imigração. Nessa perspectiva, as grandes
cidades deveriam ser os cartões de visita do Brasil moderno: saneadas, higienizadas, produtivas,
disciplinadas, desobstruídas da pobreza itinerante, enfim, civilizadas, desfazendo a imagem
cultuada no estrangeiro de povo preguiçoso e indolente. Sevcenko39 chama a atenção para o fato de
que somente as cidades grandes poderiam se valer dessa redenção, o que permitiu a construção da
idéia do Brasil dicotomizado na oposição cidade industrializada-campo indolente, o país próspero e
o atrasado. É certo, porém, que as elites políticas piracicabanas não se conformaram em deixar
Piracicaba na segunda categoria, tratando logo de emancipá-la. O discurso de Paulo de Moraes
Barros, transcrito anteriormente, representa bem esse recorte que separa a cidade moderna da
antiga, a cidade planejada da expontânea, que situa no tempo a racionalidade.
Nos anos 20 um outro olhar é lançado sobre a cidade, cobrando a manutenção dessa
proposição saneadora. Um olhar que reconhecia os feitos da administração modelo, mas que
identificava novos e velhos problemas. O olhar da oposição ao Poder Local, articulada no Jornal de
Piracicaba e que se autonominava independente em função de sua pretensa independência política
em relação aos governos estadual e federal e de ser o JP um jornal empresa. Vejamos então como o
Homem que acha tudo ruim, personagem criado por Pedro Krähenbuhl, diretor do JP, percebia a
cidade. Antes, convém esclarecer que essa coluna, bem como seu principal personagem,
personificam as principais críticas dos independentes à administração pública local:
Recordei-me saudoso, daqueles bons tempos de 10 anos atrás, em que as famílias ocupavam o Centro do Jardim, o pessoal de segunda se espalhava pelos caminhos do arrabalde e a gente de cor se encostava nas grades, pelo lado de fora, em seleção natural, onde ninguém a importunava e nem era por ela importunado. Hoje as boas famílias escasseiam naquele logradouro, outrora preferido; mas eu vi bem a razão: ao passo que em outras cidades como S. Paulo, as meretrizes são obrigadas a residir em pontos determinados e, mesmo assim, são impedidas de sair às janelas, na nossa tão formosa e invejada Piracicaba tem a regalia de ombrear com a "elite" em todos os logradouros públicos e não raro dirigem aos transeuntes olhares arrogantes ou gracejos atrevidos. Que faz a nossa polícia que nada disto vê? Será ela, porventura, orientada pelo Homem Que Acha Tudo Bom?...” 40
38 BRADBURY, M. e McFARLANE, J. (orgs.). Modernismo - Guia Geral 1890 -1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 31. 39 SEVCENKO, Nicolau. Literatura como Missão - tensões sociais e criação cultural na Primeira República. 4ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1995. 40 Jornal de Piracicaba, 27/maio/1922.
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É justamente este o conteúdo da defesa e preservação da estética pleiteado pela oposição ao
governo municipal: a segregação, o questionamento quanto à permanência das populações pobres
nas habitações centrais da cidade, que fora um dos princípios fundamentais do processo
Regenerador. Referindo-se a tais residências como casebres que enfeiam e empestam as ruas,
chama a atenção da Câmara e do fiscal de higiene para o fato, responsabilizando-os "pela enchente
de pedintes e indigentes que propiciam devido ao baixíssimo aluguel que lhes são cobrados".
A administração pública do prefeito Fernando Febeliano da Costa reage, então, aos apelos
modernizantes. O que é especialmente significativo dessa reação higienista e estética é a Lei
Municipal N.º 165 de 1922, a qual “concede vantagens e regalias ás edificações que obedecerem ás
disposições desta lei.”41 As vantagens e regalias referidas previam a isenção do imposto predial e
da taxa sanitária, além da concessão de prêmios em dinheiro aos proprietários de prédios de aluguel
construídos no perímetro urbano central ou sub-central destinados à moradia. O valor locativo anual
do imóvel era o parâmetro para a participação no concurso e para suas categorias: quanto mais alto,
maior era a isenção.
Em seu artigo 5º, a lei ampliava a participação dos prédios destinados à moradia de seus
proprietários e aos estabelecimentos comerciais. Já o artigo 8º isentava do imposto predial os
proprietários que reformassem seus prédios "construindo fachadas modernas, de acordo com a
prefeitura". A lei esclarecia (art. 6º) que o valor locativo seria calculado à razão de 10% sobre o
capital investido na construção, para o quê exigia o orçamento das construções, permitindo-se
realizar novo orçamento, caso julgasse necessário. A previsão para a concessão de tais prêmios (art.
4º) seria anual, mediante comissão nomeada pela Prefeitura. As despesas com a distribuição dos
prêmios seria orçada na conta Obras Públicas. Não foi possível encontrar qualquer referência na
imprensa sobre os efeitos da lei. O seu registro denota, contudo, o empenho da Câmara no
ordenamento urbano, principalmente no que se referia ao saneamento da pobreza. Responde
também à campanha promovida pela imprensa independente que, nestes anos 20, acompanhando os
bons ventos do progresso e das construções, reforma o prédio do JP.
Os anos 20, entretanto, anunciavam um novo tempo. A conjuntura catastrófica dos anos
anteriores parecia superada. Especialmente a guerra teve um efeito singular nessa conjuntura,
sendo, de alguma forma, responsável por pelo menos dois outros dos principais problemas
enfrentados: a gripe espanhola, originária das condições adversas dos campos de batalha, e as
greves de 1917 a 1919, deflagradas como reação à carestia provocada pela crise das exportações,
pela contração das importações e pelo aumento dos preços dos alimentos. Na verdade, o fim da I
Guerra colocava o movimento modernista sob novas bases, diferenciando-se substancialmente da 41 Arquivo da Câmara Municipal de Piracicaba, livro N.º 247, Leis da Câmara Municipal (1915-1926), 3º vol., fls. 124-126.
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conjuntura do início da República. O resgate do passado era condição para a construção do novo
num movimento distintamente inclusivo. Foi essa conjuntura que despertou as atenções da elite
ilustrada brasileira para a situação do Brasil no cenário internacional, bem como para seus
problemas internos. O movimento nacionalista que absorve grande parcela da intelectualidade
paulista tinha um cunho essencialmente político: buscava colocar o país no rumo do
desenvolvimento através da regeneração da política, pois eram a corrupção e a má administração os
obstáculos para o progresso do país42.
Os paulistas buscam ganhar a cena depositando todas as esperanças de grandeza para o país
no estado de São Paulo e em sua principal fonte de riquezas, o café. Esse sonho de grandeza
conquistou as elites piracicabanas, principalmente os independentes, traduzindo o movimento
nacionalista e a luta por São Paulo no bairrismo piracicabano. Respondendo à menção ao bairrismo
piracicabano num jornal do Rio de Janeiro, o editorial do JP elucida sobremaneira as ações da
oposição nestes tempos: "Bairristas somos todos nós que acordamos para o mundo ouvindo o
adorável tan-tan do salto, esse fator inexpugnável de forças que desabrocham dia a dia em usinas
florescentes. Gabamo-nos com razão de nossa terra. Podemos dizer como o Andrada glorioso: da
América, o Brasil; do Brasil, S. Paulo; de S. Paulo, Piracicaba".43
A referência no seu mais caro recurso natural, sua energia pura − o salto do rio Piracicaba -,
credenciava a elite oposicionista para o sonho de grandeza e a autorizava a adotar uma postura mais
ofensiva no que se referia à discussão dos problemas urbanos, bem como lhe permitia assumir uma
série de iniciativas no sentido da implementação de obras importantes para a cidade. Através do seu
órgão de imprensa, buscou delegar à sociedade civil algumas atribuições, reivindicando para si o
papel de principal coadjuvante. Exemplo disso foi a iniciativa dos independentes em constituir uma
sociedade anônima para a construção de um teatro popular. Identificando a ausência de um teatro
que respondesse às atuais necessidades da cidade, “fruto do amadurecimento intelectual que não se
satisfaz mais com o circo”, o Jornal de Piracicaba lançou uma campanha pela constituição da
Sociedade Anônima Cinema Popular, com o objetivo de construí-lo.44
Além da constituição de sociedades para determinados empreendimentos, outras iniciativas
foram propostas e assumidas pela sociedade civil para a efetivação de obras consideradas
fundamentais para a cidade. Assim se deu a construção do prédio da Santa Casa, e assim foi o
procedimento para a construção de um Monumento a Moraes Barros e também para a alteração dos
nomes das ruas da cidade. Já se discutia há muito a necessidade de Piracicaba erigir monumentos
para homenagear os grandes vultos da sua história. Era uma forma da elite projetar a cidade através 42 SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na metrópole: São Paulo sociedade e cultura nos frementes anos 20. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. 43 Jornal de Piracicaba, 17/jan./1922.
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de seus representantes ilustrados e resguardar para si o papel de sujeitos da história, pois são elas as
detentoras de uma noção de progresso que dá suporte racional à sua ação.
A polêmica instaurada em torno da questão e o envolvimento dos segmentos ilustrados das
elites indicam também a intenção em acompanhar o movimento modernizante. Sevcenko chama a
atenção para a campanha de embelezamento urbano que se inaugura em São Paulo, liderada pelo
prefeito Washington Luiz. Respondendo às críticas dos artistas, encomenda-lhes uma infinidade de
monumentos e esculturas, cabendo a aprovação das obras a diversas comissões julgadoras,
iniciativa que “nas condições de um concurso, estimulava vasta visitação e interesse geral, os
jornais organizando enquetes, o público se dividindo em partidos rivais; faziam-se apostas,
visitantes acorriam do interior, o movimento era frenético45. Esse clima eufórico acaba envolvendo
as entidades de classe, que disputam a fixação de sua marca como símbolo coletivo de sua
distinção.
Piracicaba, a pretensa cidade referência de grandeza, não podia ficar alheia à comoção
instaurada. As discussões tiveram início quando algumas pessoas, na sua maioria vereadores
ligados ao grupo dominante na política local, convocaram uma reunião para discutir a formação de
uma comissão para erigir um monumento em homenagem a Carlos Gomes. Alguns dias depois de
noticiada aquela intenção, João Silveira Mello vem a público através do JP considerar que a
homenagem se prestasse a pessoas que tivessem alguma contribuição para a história da cidade e
defende a memória de Moraes Barros que considera o grande benemérito desta terra: sugere que os
alunos do Grupo Moraes Barros solicitem à Câmara a autorização para tirarem o busto de bronze
que existe na escola para o colocarem na praça. Polêmica instaurada, o JP abre espaço a outros
posicionamentos, criando a coluna "Bronzes em Debate" para permitir a discussão ampla. Num dos
artigos desta coluna, um colaborador, que assina P.S., criticando a postura bairrista de João Silveira
Mello, aponta uma proposta que, burilada, consegue o consenso geral, demovendo até mesmo a
Comissão do Monumento a Carlos Gomes. Constitui-se uma comissão que, tendo à frente os
estudantes da Escola Moraes Barros, encarrega-se de levar a termo a proposta, entendendo que o
busto de bronze era pequeno, solicitou o empenho público de 5 contos de réis para a abertura de
uma subscrição popular para levar a efeito o intento. O editorial do JP reconhecia, tendo a
inauguração do monumento ocorrido por ocasião do Centenário da Independência.
Destaque-se enfaticamente o significado desses “templos cívicos a céu aberto”, de modo que
“fixados na magnificência suntuosa do mármore, granito bronze ou concreto funcionavam como um
cenário simbólico-político a estimular, salientar e confirmar disposições emocionais, regularizadas
44 Jornal de Piracicaba, 06/maio/1923. 45 SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na metrópole: São Paulo sociedade e cultura nos frementes anos 20. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 98.
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na interação dos habitantes com o espaço público46.” Daí a importância da homenagem a uma
personagem que identificasse a coletividade permitindo a comunhão com a história da cidade,
principalmente considerando-se as origens diversas dos habitantes. 47
O monumento não foi o único símbolo dessa comunhão exacerbada com o Centenário. Uma
outra forma mais singela de consagrar os vultos do passado foi lembrada por aqueles que tinham
sonhos mais modestos para Piracicaba. Em sua coluna no Jornal de Piracicaba, P.P.D. reproduz a
solicitação:
Os abaixo assinados não pedem para glorificá-los, a construção de monumentos, a ereção de
custosas estátuas ou bustos: tais distinções em se tratando de grandes servidores da nação, só
devem ser prestadas na Capital da República ou nas dos respectivos Estados. Pedem somente a
modesta homenagem que devem ser, e é em regra geral, prestada por outras cidades do interior, que
sejam dados os nomes dessas grandes figuras a ruas de nossa terra.48
A proposta não foi aceita na íntegra, mas por ocasião do Centenário, a rua Municipal passa
a denominar-se D. Pedro II, e outras dentre aquelas ruas passam a receber as denominações
propostas pela Representação.
Mas ainda era pouco! Faltava a Piracicaba o espetáculo moderno. Nas palavras de O.S.,
articulista do JP, algo que deixasse às gerações futuras o registro da comemoração da data, pois,
“nada há ainda que diga aos pósteros que o povo de Piracicaba espontaneamente comemorou com
festa a grande data centenária e quis perpetuá-la aos seus vindouros.”49 Era esse mesmo o sentido
dos rituais modernos. Eles se identificavam com os monumentos à medida que buscavam a
comoção geral a partir de um símbolo transcendente. Mas diferiam deles à medida que o festival
trazia o público para a cena no papel de ator e espectador. E mais: a sua transcendência “não se
dirigia para uma dimensão atemporal ou para o momento fundador das origens. Sua orientação era
antes a de traduzir o presente como o sinal profético do futuro. Em suma: produzir o transe do
futuro permanente50.”
Assim que, em resposta ao alerta de O.S., o Esporte Clube XV de Novembro resolve
promover um festival futebolístico no domingo, dia 03/09, e reverter a renda em prol da Santa Casa
de Misericórdia para ser aplicado na construção do novo Hospital Central. Para tal, formou-se uma
comissão organizadora, à qual aderiram as entidades de maior prestígio na cidade através de seus
diretores, como a Escola Agrícola, o Círculo Italiano e a Associação Atlética Sucrerie da Vila 46 Idem, p. 99. 47 Jornal de Piracicaba, 25/mar./1922. O maior empenho para a confecção do busto foi mesmo dos alunos da Escola Moraes Barros, erigindo-o na praça da escola, onde permanece até hoje. 48 Jornal de Piracicaba, 18/jul./1922. 49 Idem, 15/jun./1922.
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Rezende. A diretoria da Societá Italiana di Mutuo Socorso se compromete a promover uma tômbola
revertendo a renda também à Santa Casa.51 Tais iniciativas despertam a atenção da Irmandade da
Santa Casa, que adere às comemorações em função do caráter filantrópico que assumiram e
resolvem organizar uma quermesse. Contando com o apoio do JP, várias comissões são formadas
envolvendo cerca de 200 pessoas só na organização dos festejos. Cada barraca tem o nome de um
personagem ligado à Independência, abolição ou à República e está a cargo de uma comissão
específica: são ao todo 14 barracas, que conseguem arrecadar a soma de 104:809$770 durante as
comemorações.
O sucesso foi tal que ainda em novembro do mesmo ano de 1922 o espírito das
comemorações não havia deixado os piracicabanos, principalmente a perspectiva de produzir o
futuro no presente. É assim que o diretor da Escola Normal, Honorato Faustino, mobiliza os alunos
para reunirem a documentação histórica da escola (fotos, utensílios, jornais "enfim, tudo o que
pudesse revelar às gerações futuras o que é Piracicaba em 1922"), colocarem-na numa caixa de
cobre a ser entranhada na parede do anfiteatro e aberta em 2022 por ocasião do 2º Centenário da
Independência. Houve festa para a realização do intento e é o próprio Honorato Faustino quem
revela a intenção última da sua proposta: “a mocidade da Escola Normal vai ter hoje uma lição
intuitiva da instituição de uma fonte indireta como auxiliar do penoso e nobre trabalho dos
historiadores.”52
O ano de 1922 mostrava-se realmente promissor aos piracicabanos, quando finalmente seria
inaugurado o ramal da Cia. Paulista de Estradas de Ferro, ligando Piracicaba aos caminhos do
comércio culminando na capital paulista. A inauguração, datada de 29 de setembro, se fez antes da
mobilização para a comemoração do Centenário, mas certamente serviu como inspiração para o
festival moderno, até porque era o acalanto que faltava ao sonho dos piracicabanos. A ausência
dessa via de acesso desestimulava o comércio e a indústria, afinal “a única estrada que nos punha
em comunicação com a capital do Estado se achava no seu máximo estado de desorganização.”53
Abrir caminhos, baratear os custos de transporte de mercadorias, encurtar distâncias, era o
legado do mais fantástico invento do século XIX. Do ponto de vista do imaginário moderno, era o
símbolo maior do progresso tecnológico. Esse espírito levou os vereadores a cuidarem do assunto,
pedindo à Cia. Paulista a construção de um ramal que, partindo de sua linha tronco, entre as
estações de Vila Americana e Pombal, viesse a esta cidade, passando por Santa Bárbara.54
50 SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na metrópole: São Paulo sociedade e cultura nos frementes anos 20. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 99. 51 Jornal de Piracicaba, 18/jul./1922. 52 Idem. 53 Jornal de Piracicaba, 29/jul./1922. 54 Jornal de Piracicaba, 29/jul./1922. O histórico é transcrito pelo JP em sua edição de 1902.
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Em 1902, o presidente da Câmara, Dr. Paulo de Moraes Barros, fez então a solicitação e o
contrato foi assinado no mesmo ano. Porém, para grande frustração dos piracicabanos, os trabalhos
recém iniciados foram suspensos por 12 anos, até que Paulo de Moraes Barros fosse nomeado
Secretário da Agricultura no governo de Rodrigues Alves e desse reinício aos trabalhos, congelando
a obra novamente, desta feita em função da guerra. Somente finda a I Guerra, a construção seria
iniciada, para ser finalmente inaugurada em 29/07/22, com festejos na mesma data e no dia
seguinte. No dia 29, às 14h00 saía de São Paulo o trem inaugural, chegando a Piracicaba às 18h40,
sendo recebido por enorme multidão, que, entre vivas a Paulo de Moraes Barros, números musicais
pelas bandas União Operária e Saltense, execução do Hino Nacional e pronunciamentos.
Em seguida houve um banquete para 130 pessoas no salão de festas do Hotel Central,
oferecido pela Câmara Municipal. Durante o banquete foi organizado um sarau musical pela
orquestra Perfetti, com início às 21h00, garantindo um espaço para a confraternização exclusiva das
elites. Concomitantemente, a Banda da Força Pública tocava no coreto da Matriz e ainda acontecia
um baile na Escola Agrícola.
O dia 30 foi reservado ao festival esportivo, também ao gosto da Modernidade com parada
de escoteiros saindo do Grupo Moraes Barros indo até o centro da cidades; festa de atletismo com
competições olímpicas no Clube Regatas; festa veneziana no rio Piracicaba, oferecida ao povo pela
Câmara Municipal com queima de fogos e desfile de embarcações que se enfeitaram para concorrer
a uma taça oferecida pela Prefeitura.
De fato, o ano do Centenário da Independência configurou um marco para a história da
cidade. A comoção coletiva despertada pelas ações da sociedade civil acabou por instaurar um
clima promissor ao debate sobre todas as questões da administração pública. Serviu também para
credenciar a oposição − os independentes, articuladores do Jornal de Piracicaba − para a disputa
pelo poder com os perrepistas, principalmente para interferir nas decisões sobre as questões
urbanas. A polêmica instaurada por ocasião do início das obras para o calçamento da cidade é
elucidativo desse novo clima que tomaria conta da cidade. Os principais argumentos contra e a
favor referem-se principalmente a defesa da manutenção dos parâmetros históricos de um lado e da
necessidade de se considerar o crescimento futuro da cidade, o que exigiria maiores estudos
técnicos, de outro.55
O debate demarca a influência que o urbanismo moderno exerce sobre os posicionamentos
das elites piracicabanas. Essa preocupação com o futuro − na perspectiva de preparar a cidade para
o crescimento que se anuncia com a industrialização e a urbanização, aparece no discurso de Victor
Freire já em 1911:
55 Jornal de Piracicaba, 1923.
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Aos princípios defendidos pelos higienistas de garantir a boa distribuição do ar e da luz, ele acrescenta a necessidade da antecipação e da previsão. Esta constatação de similaridade entre processos urbanos e formas de atuação é uma das marcas do urbanismo moderno − um determinado saber tido como universal56.
É o sonho de grandeza para Piracicaba que alerta os independentes para os problemas que a
administração pública deve enfrentar em função dos novos tempos que se anunciam. Enxergam a
inaptidão das condições atuais para a consolidação do progresso, apontando principalmente a falta
de ousadia para enfrentar a empreitada que se tem pela frente, sugerindo como alternativa para
aumentar as receitas municipais o recurso ao endividamento e à reforma tributária:
Procure aumentar as rendas remodelando seus impostos em bases eqüitativas e justas; criando novas fontes de riqueza para o erário municipal, de conformidade com a capacidade contribuidora das nossas classes conservadoras, facilitando o intercâmbio comercial com os municípios vizinhos e entre os centros de produção existentes entre nós, por meio da conservação perfeita de nossas estradas carroçáveis; evitando a criminosa continuidade do fornecimento do lodo, que escorre há tantos anos das torneiras, imposto à população, a título de água potável por preços exorbitantes − e tantas outras medidas que requerendo uma despesa inicial, se transformariam, logo após, num inexaurível manancial de riqueza municipal.57
Fica patente a defesa da ampliação da esfera de atuação da administração pública no que se
refere aos serviços públicos. A historiografia sobre a formação do pensamento urbanístico de São
Paulo identifica a defesa da crescente ampliação das áreas de intervenção da administração pública
a partir da década de 20, principalmente em função da necessidade de revisão das relações
contratuais mantidas pela Prefeitura com as empresas prestadoras de serviços públicos que
incorriam na formação de monopólios. Essa preocupação marca a intervenção de Victor Freire,
diretor do setor de obras da Prefeitura de São Paulo (1988 a 1925), tendo como referência principal
a experiência americana.
O mesmo posicionamento assumem os liberais piracicabanos, ressalvando, entretanto,
Não somos dos que aplaudem a intervenção do poder público nos domínios econômicos. Tudo o que é criado ou produzido pela indústria do Estado ou da municipalidade o é de uma maneira muito mais custosa. A intervenção do poder público, estadual ou municipal no campo econômico, acaba sempre por destruir nos cidadãos os seus sentimentos de iniciativa e responsabilidade. É um mal. Depois, faltam ao Estado ou à municipalidade, para os resultados felizes da indústria que explora, estes três requisitos: a mola do interessa individual, o estímulo e o freio da concorrência. Porém, no caso da Hidráulica, que tem o privilégio e, portanto, não atua o freio da concorrência, a municipalidade, através da Câmara deve ter uma ingerência direta na empresa para, em defesa dos cidadãos, colocar limites às manifestações do empresariado em buscar apenas interesses particulares. 58
56 LEME, Maria Cristina da Silva. A formação do pensamento urbanístico em São Paulo, no início do século XX In Espaço & Debate: Revista de Estudos Regionais e Urbanos, n.º 34, ano XI. São Paulo: NERU, 1991, p. 65. 57 Jornal de Piracicaba, 07/jul./1920. 58 Jornal A Tarde, 31/out./1918.
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Dessa forma, combinada a idéia de progresso com as ações possíveis em meio a um clima
de debates e de disputas políticas, a cidade foi construída na I República como espaço público
privilegiado para o fazer histórico das elites.
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REVISITANDO O PROBLEMA DA HISTÓRIA EM OLIVEIRA VIANNA
Maro Lara Martins*
“Diante de todo e qualquer sistema de doutrinas, social, jurídico ou político, a minha atitude é sempre pragmatista. Estes sistemas, estas doutrinas só me valem pelos resultados: se bons, a doutrina é boa; se maus, a doutrina é má. Nunca me preocupo com saber se uma doutrina é teoricamente boa. Em regra, toda doutrina, considerada teoricamente, é boa. Mas, um problema social não pode ser resolvido teoricamente; há de estar preso pelos seus elementos equacionais á realidade da vida social.”1
Resumo: Neste texto, sublinhamos na obra de Oliveira Vianna as relações efetuadas entre a concepção de história, de política e sociedade, cunhados como pressupostos para a organização do Estado. Os textos escolhidos para a nossa interpretação sobre o pensamento de Vianna referem-se aos textos publicados em torno dos anos vinte, como Populações Meridionais do Brasil (1920), Pequenos estudos de psicologia social (1921), O idealismo na evolução política do Império e da República (1922), Evolução do povo brasileiro (1923), O Ocaso do Império (1925), O idealismo na Constituição (1927) e Problemas de Política Objetiva (1930). Palavras-chave: Pensamento Brasileiro – Historia das Idéias – Brasil República. Abstract: This paper, argue the relationship between history, politics and society, contends in Oliveira Vianna’s argument, as precondition to Estate organization. The texts analyzed in my interpretation about Vianna´s ideas was published at twenties in Brazil, like Populações Meridionais do Brasil (1920), Pequenos estudos de psicologia social (1921), O idealismo na evolução política do Império e da República (1922), Evolução do povo brasileiro (1923), O Ocaso do Império (1925), O idealismo na Constituição (1927) e Problemas de Política Objetiva (1930). Key-words: Brazilian thougth – History of Ideas – Brazil Republic.
Inventariando contra o que chamou de páginas mortas do documento, Oliveira Vianna viria
a conceber a história, de utilidade pragmática, uma perspectiva que se apoiaria num método
comparativo e interdisciplinar, a finalidade de desvendamento das idiossincrasias das diversas
organizações sociais e políticas. Em seus primeiros livros, clamava pelo início dos estudos
sistemáticos acerca da nossa história, pois “nós somos um dos povos que menos estudam a si
*Doutorando em Sociologia - Iuperj / Bolsista Capes / Professor Substituto de História Contemporânea ICHS – UFOP. 1 VIANNA, O. Pequenos Estudos de Psicologia Social. São Paulo: Revista do Brasil, 1921. p.113.
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mesmo: quase tudo ignoramos em relação à nossa terra, à nossa raça, às nossas regiões, às nossas
tradições, à nossa vida, enfim, como agregado humano independente.”2 Esta intensa preocupação o
levará, assim como a Sílvio Romero, Euclides da Cunha e Alberto Torres, a uma incursão ao tempo
histórico para definir a caracterização do tipo de sociedade que se desenvolveu nesta parte do
continente americano. “Uma coisa é estudar as instituições políticas como elas existem na
sociedade, no viver prático e habitual dos homens. Outra coisa é estudar as instituições políticas
como elas aparecem abstratamente, nos sistemas de leis e das Constituições.”3
Assim seria que o Brasil social, o Brasil profundo e real se descortinaria para o estudioso.
Quanto ao nosso passado, o latifúndio e a adaptação do português gerariam uma disparidade entre
uma pequena elite de possuidores e proprietários enquanto o grosso da população nada possuíam.
Nesta dualidade entre o litoral e o sertão, exemplificava-se a antinomia entre a elite intelectual
“principalmente na capital e nas grandes cidades, e o imensíssimo número dos analfabetos ou
incultos que constituem a nação por toda parte.”4
Desta singularidade latino-americana, agravada no Brasil, adviria que não conseguimos
formar ainda um povo devidamente organizado de alto a baixo, nos faltando a hierarquização social,
o encadeamento das classes, a solidariedade geral, a integração consensual, a disciplina consciente
de um ideal comum, a homogeneidade íntima, a radicação à terra pela propriedade espalhada
largamente, pelo cultivo, pela produção autônoma da riqueza nacional, pois, “o nosso povo está em
geral desenraizado do solo ou nele subsiste como uma vegetação estranha. Faltam-nos o aferro ao
trabalho, a base econômica livre, ampla e segura, e, mais, a masculinidade da vontade, o espírito da
iniciativa, a audácia do esforço, do empreendimento, da luta pelo progresso e bem-estar.”5
A existência de um tempo histórico recente, incapaz de conduzir a um tempo social cuja
solidariedade nacional, associar-se-ia a caracteres homogêneos de identificação, tornar-se-ia o
fundamento para a elaboração do tempo político, e este traduziria através de um método
racionalmente estruturado, a formação de um tempo social adequado. Tratava-se de uma posição
interventora no tempo social e político das “nações novas” da América em geral e do Brasil em
particular.
Posição interventora teve Oliveira Vianna, na medida em que,
o ator procura afirmar o seu protagonismo sobre os fatos, deixando de confiar na cumplicidade do tempo, a essa altura já tendo por que temer a possibilidade de se ver ultrapassar pelo movimento da
2 VIANNA,O. Populações Meridionais do Brasil. Volume I - Populações do Centro-Sul. 7ª edição. Belo Horizonte: Itatiaia; Niterói: Universidade Federal Fluminense, 1987. p.15. 3 Ibid. p.283. 4 ROMERO, S. “O Brasil Social de Euclides da Cunha”. In: O Brasil Social e outros estudos sociológicos. Brasília Senado Federal, 1998. p.175. 5 Ibid.p.176.
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sua sociedade. Não há mais lugar para o quietismo que apostava no futuro: o “destino” se tornou uma tarefa a ser cumprida no tempo presente.6
A matriz do chamado idealismo constitucional, tanto no Império como na República, na sua
relação entre tempo social e tempo político procurava criar uma nação para o Estado, o que de fato,
vai de encontro às teses de Sílvio Romero, Euclides da Cunha, Alberto Torres e Oliveira Vianna, os
quais diziam que era preciso criar um Estado adequado para a nação. Para eles, este seria um dos
dilemas constitutivos da modernidade brasileira: a separação entre o tempo político e o tempo social
promovido pelo nosso peculiar tempo histórico, fato não encontrado por eles, nos paradigmas
clássicos do Ocidente, como o modelo anglo-saxão. De certo, as conclusões destes autores
apontavam para a idéia de que o tempo social transposto no tempo histórico, interferiria diretamente
no tempo político. Por sua vez, seria neste mesmo tempo político que se daria a solução, pela
intervenção no presente, para o nosso futuro. Um novo tempo histórico se fazia necessário.
Como lembrava Vicente Licínio Cardoso, se esboçava por esta época uma “geração de
críticos republicanos”, justamente aqueles que foram capazes de formular uma estratégia de
contraposição, do ponto de vista político, ao modelo Campos Sales, e, do ponto de vista conceitual,
à geração dos “republicanos históricos”.7 Os críticos republicanos, como Alberto Torres e Oliveira
Vianna, opuseram-se à via estrita da política, colocando o fulcro das questões pertinentes no tempo
social. Retomariam com vigor a exigência da matriz republicana de incorporação do povo para a
legitimação do poder, opondo-se aos mecanismos meramente formais da representação e do
sufrágio, colocando-os sob um fundamento “sociológico”. Além de ressaltarem os problemas
cruciais da nação, os consideravam a partir da complexificação da ordem social moderna: o êxodo
rural e o conseqüente inchaço urbano, as políticas industriais e agrícolas, o capital estrangeiro e o
problema do imperialismo, as políticas de imigração e a ocupação do solo, a questão educacional e
o domínio oligárquico. Daí a relevância do tempo social e não o do político, que deve apenas
expressá-lo.
Oliveira Vianna e o caso brasileiro
No prefácio à quarta edição da obra Evolução do povo brasileiro, Oliveira Vianna expôs sua
concepção evolucionista reagindo contra a forma unilinear de entender a evolução das sociedades a
6 VIANNA, L. W. “Caminhos e Descaminhos da Revolução à Brasileira”.Dados – Revista de Ciências Sociais,v.39, nº3 Rio de Janeiro,1996. 7 CARDOSO, V. À Margem da República. Recife: FJN/Editora Massangana, 1990. (1ª ed. de 1924)
Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 97
partir das supostas leis gerais que a comandam. Acolhendo os conceitos de Gabriel Tarde, Vianna
considerava que existiriam múltiplas tendências na evolução das sociedades, e que é impossível
reduzi-las a um único esquema.8 No estudo das sociedades podemos encontrar, segundo Oliveira
Vianna, uma multiplicidade de linhas de evolução e de fatores que interviriam nessas linhas.
Para essa multiplicidade de tipos para essa variedade de linhas de evolução, para este heterogenismo inicial contribui um formidável complexo de fatores de toda ordem, vindos da Terra, vindos do Homem, vindos da Sociedade, vindos da História: fatores étnicos, fatores econômicos, fatores geográficos, fatores históricos, fatores climáticos, que a ciência cada vez mais apura e discrimina, isola e classifica. Estes predominam mais na evolução de tal agregado; aqueles, mais na evolução de outro, mas, qualquer grupo humano é sempre conseqüência da colaboração de todos eles; nenhum há que não seja a resultante da ação de infinitos fatores, vindos, a um tempo, da Terra, do Homem, da sociedade e da História. Todas as teorias, que faziam depender a evolução das sociedades da ação de uma causa única, são hoje teorias abandonadas e peremptas: não há atualmente monocausalistas em ciências sociais.9
Posto nestes termos, a evolução à brasileira constituiria um desafio que deveria ser
elucidado desde as origens da formação colonial no período vicentista. Contra a idéia da
homogeneidade de nossa formação, Vianna traçou três tipos de sociedade diferentes: a dos sertões
(norte), a das matas (centro-sul) e a dos pampas (sul), com seus respectivos “ambientes sociais
fixos.”10 Entretanto, era a sociedade do centro-sul que mais lhe interessava pois dela derivaria o
substratum de nossa cultura política. Para ele, esta era a matriz da nacionalidade, “do seu espírito,
da sua laboriosidade, de seu afluxo humano, é que vivem as cidades do hinterland ou da costa, e
crescem, e se desenvolvem. Silenciosa, obscura, subterrânea a sua influência hoje, é no passado,
principalmente nos três primeiros séculos, poderosa, incontestável, decisiva.”11 Por outro lado, do
isolamento do interior viria a mestiçagem que “é o centro de convergência das três raças formadoras
do nosso povo. (...) O latifúndio os concentra e os dispõe na ordem mais favorável à sua mistura.
Pondo em contato imediato e local as três raças, ele faz um esplêndido núcleo de elaboração do
mestiço.”12 Do latifúndio pois viria a gênese e a formação da própria nacionalidade.
Seguindo o argumento de Vianna, nos primeiros tempos prevaleceu a tendência européia
centrada nos hábitos aristocráticos e urbanos do litoral, interrompida pelo dilema imperioso do
duplo domicílio por interesses materiais: “ou optam pelo campo, onde estão os seus interesses
principais; ou pela cidade, centro apenas de recreio e dissipação”13, processo intensificado pela
8 VIANNA,O. Evolução do povo brasileiro. 4ª ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 1956. 9 Ibid.pp.29-30. Oliveira Vianna apostava também na idéia de um “conhecimento total”, advindo de uma síntese entre cada caso estudado, uma espécie de mosaico que aos poucos se completaria. Neste sentido é taxativo: “Só depois desse formidável trabalho de investigações e análises, consubstanciadas em monografias exaustivas sobre cada agrupamento humano, e do estudo meditado dessa massa colossal de dados e conclusões locais, vinda de todos os pontos do globo, será possível à ciência social elevar-se às grandes sínteses gerais sobre a evolução do homem e das sociedades.” (p.33-34.) 10 VIANNA,O. Populações Meridionais do Brasil. Op.cit. p.18. 11 Idem. 12 Ibid, p.68. 13 Ibid, p.20
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colaboração de outros fatores como a busca dos índios, a expansão pastoril nos planaltos e a
conquista das minas. Dando início assim, a obra de adaptação rural ou conformismo rural da
aristocracia ao domínio do latifúndio: “a obra de ruralização da população colonial, durante o
século III” possibilita a formação do homo rusticus que depois da Independência começa a dominar
a política do país, “desce das suas solidões rurais para, expulso o luso dominador, dirigir o país.”14
Assim, o ardor aventureiro do luso que transmudara-se na atividade do bandeirante, no século IV se
extinguiria pelo sedentarismo agrícola.
O deserto e o trópico, a escravidão e o domínio independente: sob a ação dessas quatros forças transmutadoras, o laço feudal, a hierarquia feudal transportada para aqui nos primeiros dias da colonização se desarticula, desintegra, dissolve e uma nova sociedade se forma com uma estrutura inteiramente nova. O feudalismo é a ordem, a dependência, a coesão, a estabilidade: a fixidez do homem à terra. Nós somos a incoerência, a desintegração, a indisciplina, a instabilidade: a infixidez do homem à terra. Em nosso meio histórico e social, tudo contraria, pois, a aparição do regime feudal.”15 “Daí o traço fundamental de nossa psicologia nacional. Isto é, pelos costumes, pelas maneiras, em suma, pela feição mais íntima do seu caráter, o brasileiro é sempre, sempre se revela, sempre se afirma um homem do campo, à maneira antiga. O instinto urbano não está na sua índole; nem as maneiras e os hábitos urbanos.16
A formação de uma nobreza territorial geradora de um processo no qual o viver rural
passaria a ser distinto, sinal de existência nobre “perfeitamente rural na sua quase totalidade, pelos
hábitos, pelos costumes e, principalmente, pelo espírito e pelo caráter,”17 triunfa por concentrar a
maior soma de autoridade social e “é a que mais legitimamente representa o nosso povo e a sua
mentalidade social.”18
A grande propriedade rural, o latifúndio e conseqüentemente a noção do exclusivo agrário e
da função simplificadora dos latifúndios, tornaram-se fundamentais no modelo explicativo de
Vianna, sobre as condições nas quais a solidariedade e os interesses foram constituídos no peculiar
caso brasileiro, na medida em que, “o grande domínio, tal como se vê da sua constituição no
passado, é um organismo completo, perfeitamente aparelhado para uma vida autônoma e própria.”19
Quanto à produção, estes possuíam uma capacidade poliforme, auto-sustentável em sua circulação
interna de produtos, fazendo com que alcancem “uma plena independência econômica. Nem há que
recear qualquer crise de subsistência, por mesquinhez ou insuficiências de produção.”20
Esta função simplificadora impediria o comércio e a emersão de uma burguesia comercial
ou uma classe industrial, que se concentraria nas pequenas cidades do interior, mas sem nenhuma
força política, pois “falta-lhes o espírito corporativo, que não chega a formar-se. São meros
14 Ibid, p.37. 15 Ibid, p.130. 16 Ibid, p.36. 17 Ibid, p.33. 18 Ibid, p.47. 19 Ibid, p.116. 20 Ibid, p.115.
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conglomerados, sem entrelaçamento de interesses e sem solidariedade moral.”21 Assim, entre a
classe dos trabalhadores livres e a aristocracia senhorial os laços não se constituem solidamente,
acentuada pela inexistência de uma classe média do tipo européia. “Ora, só da vitalidade dos
pequenos domínios, da multiplicidade deles, da solidariedade deles, resultaria a constituição, entre
nós, de uma classe média, forte, abastada, independente, prestigiosa, com capacidade para exercer,
defronte da grande propriedade, a ação admirável dos yomen saxônios ou dos burgueses da Idade
Média.”22
Disto resultaria a nossa vocação rural, na medida em que “o meio rural é, em toda parte, um
admirável conformador de almas.”23 A partir do latifúndio e da vida rural, o tipo de solidariedade
que se formava, segundo Vianna, era fragmentária e incipiente, a estabilidade giraria em torno dos
grupos familiares, os quais permitiriam que se formasse uma trama de relações sociais estáveis,
permanente e tradicionais, tendo na figura do pater famílias a ascendência patriarcal e a posição de
chefe. Tal predomínio da classe fazendeira pela agregação patriarcal, revelaria, no fundo, um
espírito de corpo, e portanto, uma solidariedade interna e uma consciência social correspondente.
Sendo assim, no Brasil não há elementos de solidariedade externa, e “no ponto de vista da sua
psicologia social ficam, por isso, em plena fase patriarcal – a fase da solidariedade parental e
gentílica.”24
Todas as instituições locais são sempre, como vimos, posteriores á ação do poder geral – porque são criações dele. Dada a insolidariedade geral, a ausência de interesses comuns, a rudimentariedade dos laços de interdependência social, necessidade alguma imperiosa impôs às nossas populações rurais um movimento de organização política semelhante ao das comunas medievais.25
Deste tipo de solidariedade interna, exarcebaria a ação da capanagem senhorial, elementos
vindos da plebe rural, que “nada a prende à terra: nem a organização do trabalho, nem a
organização da propriedade, nem a organização social. Tudo a torna incoesa, flutuante e nômade”26,
a serviço dos caudilhos territoriais que exercem uma autoridade maior do que os delegados da
metrópole, fruto da disparidade entre o poder público e a expansão colonial. Resultando daí, “uma
discordância, ainda hoje subsistente, entre a área da população e o campo de eficiência da
autoridade pública.”27 Ao contrário do Ocidente onde o tempo político e o tempo social seguiriam o
mesmo compasso, pois seria da organização societal que emanaria a política.
É geral, aliás, em toda a nossa evolução nacional, essa sorte de heterocronia entre a marcha territorial da sociedade e a marcha territorial do poder, essa sorte de discordância entre os dois
21 Ibid, p.119. 22 Ibid, p.128. 23 Ibid, p.48. 24 Ibid, p.158. 25 Ibid. P.222. 26 Ibid, p.161. 27 Ibid, p.178.
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perímetros, o social e o político; de modo que este é sempre incomparavelmente menor que aquele. Grande parte, senão todas as anomalias constitucionais do nosso povo, explicam-se racionalmente por esta grande causa geral. Neste fato – de que, em nossa história e em nosso povo, a expansão geográfica da sociedade tem sido sempre maior do que a expansão geográfica do Estado – é que está a origem do banditismo, do cangaceirismo, do caudilhismo, do fanatismo, dominantes no seio das nossas populações do interior.28
Daí, esta particularidade da nossa formação social, na qual “todas as classes rurais, que
vemos, no ponto de vista dos interesses econômicos, separadas, desarticuladas, pulverizadas,
integram-se na mais íntima interdependência, para os efeitos políticos. O que nem o meio físico,
nem o meio econômico podem criar de uma forma estável, à semelhança do que acontece no
Ocidente, cria-o a patronagem política, a solidariedade entre as classes inferiores e a nobreza
rural.”29 A mentalidade do povo, sua consciência coletiva associar-se-ia ao mundo clânico, “em
suma: fora da pequena solidariedade do clã rural, a solidariedade dos moradores, especialmente a
solidariedade do clã rural, a solidariedade dos moradores, especialmente a solidariedade dos
grandes chefes do mundo rural – os fazendeiros – jamais se faz necessária.”30
A autoridade pública na colônia “se mostra frágil, reduzida, circunscrita. (...) Três são, por
esse tempo, os inimigos da ordem pública: os selvagens; os quilombolas; os potentados. (...) Cada
domínio rural avançando no deserto é uma vendeta contra a selvageria.”31 O aparelho judiciário
colonial como os capitanatos, as judicaturas, as corporações municipais e a fobia (repulsa do
trabalho militar) pelo recrutamento acabariam gerando no Brasil, nos primeiros séculos, a
emergência da corrupção e dos interesses pessoais, a parcialidade e o facciosismo. O Estado
apareceria então para esta classe da população como um usurpador, estranho aos seus interesses, ao
contrário do clã rural que o protegeria e que de certa forma satisfazia o seu interesse.
No fundo, Oliveira Vianna apontou a insuficiência de instituições sociais tutelares, no ponto
em que a miserabilidade do moderno campônio brasileiro fez com que carecesse de força
pecuniária, material e social contra o arbítrio que o oprime, na medida em que “tudo concorre para
fazê-lo um desiludido histórico, um descrente secular na sua capacidade pessoal para se afirmar por
si mesmo.”32 Assim, o nosso homem do povo, seria ele mesmo um homem de clã, necessitando
sempre de um chefe para orientar suas ações.
Da singular modalidade de nossa expansão colonizadora desorganizada, intermitente e
descontínua: “bandeiras sertanistas, explorações mineradoras, fundações pastoris e agrícolas, tudo é
feito por movimentos descoordenados, independentes uns dos outros, salteadamente, ao léu dos
impulsos individuais, tendo apenas como uma única força de propulsão o interesse ou a cobiça dos
28 VIANNA, O. Pequenos Estudos de Psicologia Social. Op. Cit. p.171-72. 29 VIANNA, O. Populações Meridionais do Brasil. Op.cit, p.144. 30 Ibid, p.152. 31 Ibid, p.159. 32 Ibid. p.146.
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poderosos chefes de clã.”33 Entretanto, a partir do século III, “a máquina do sincretismo colonial,
aumentando cada vez mais a sua potência compressora, realiza, com igual eficiência, a sua obra de
legalização e de ordem”, visando sobretudo, a centralização pela burocracia estatal com o duplo
objetivo de “aproximar dos caudilhos a autoridade pública; centralizar num poder supremo todos os
órgãos do governo da colônia.”34 E mais, “é que os velhos princípios europeus são inteiramente
relegados pelos estadistas coloniais, e que é com elementos novos que eles formulam e resolvem o
problema formidável da nossa organização política e administrativa.”35 Desta forma, os “os homens
do estado colonial compõem para o Brasil, uma obra admirável de senso prático, de senso social, de
senso político.”36 Esta obra de centralização, de legalização e de ordem sofrerá revezes durante o IV
século. É pois o tema a que se passa a discutir: a obra da monarquia e a inadequação do liberalismo
ao caso brasileiro.
Para Oliveira Vianna, os problemas do liberalismo no IV século, são a princípio de ordem prática,
como nos efeitos gerados pelo Código do Processo de 32 que promoveria um sistema de
descentralização ao modo americano, sendo a justiça, a polícia e a administração locais de
incumbência das autoridades locais, movimento ao qual se juntaria o Ato Adicional da Regência,
que priorizava a centralização provincial, definindo a hegemonia do poder público a nível
provincial.
O que as experiências do Código do Processo e do Ato Adicional demonstram, entretanto, é que essas instituições liberais, fecundíssimas em outros climas, servem aqui, não à democracia, à liberdade e ao direito, mas apenas aos nossos instintos irredutíveis, de caudilhagem local, aos interesses centrífugos do provincialismo, à dispersão, à incoerência, à dissociação, ao isolamento dos grandes patriarcas territoriais do período colonial. Esta é, em suma, a tendência incoercível das nossas gentes do norte e do sul, todas as vezes que adquirem a liberdade da sua própria direção.37 Entre nós, liberalismo significa, praticamente e de fato, nada mais do que caudilhismo local ou provincial.38
A essa inadequação do liberalismo gerador do centrifuguismo deveria ser contraposto um
movimento de centralização, realizado por Estadistas como Olinda, Paraná, Sepetiba, Uruguay e
Itaboraí, a fina flor do partido conservador do início do Segundo Reinado, os verdadeiros
construtores da nacionalidade, que pela Lei da Interpretação fundavam a supremacia do poder
central. O principal foco estaria na desintegração dos clãs rurais por fatores políticos (centralização
administrativa), policiais (ataque a capangagem), jurídicos (partilha patrimonial intrafamiliar) e
econômicos (ação psicológica do trabalho agrícola na índole meiga e doméstica).
Os grandes construtores políticos da nossa nacionalidade, os verdadeiros fundadores do poder civil, procuram sempre, como o objetivo supremo da sua política, consolidar e organizar a nação
33 Ibid. p.179. 34 Ibid. p.186-7. 35 VIANNA,O, Evolução do Povo Brasileiro. Op. Cit. p.241. 36 Ibid. p.242. 37 Ibid, p.192. 38 Ibid, p.212.
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por meio do fortalecimento sistemático da autoridade nacional. Os apóstolos do liberalismo nos dão, ao contrário, o municipalismo, o federalismo, a democracia como última palavra do progresso político.39
A Monarquia realizava a sua obra, ao promover a integridade nacional, a centralidade
administrativa, a ordem e a legalidade. O parlamentarismo à brasileira na predominância do poder
moderador “equivale a uma adaptação genial do instituto europeu ao nosso clima partidário, a
melhor garantia da liberdade política num povo, em que, do município à província, da Província à
Nação, domina exclusivamente a política de clã, a política das facções, organizadas em partidos.”40
Seria na verdade um golpe contra a política da colméia e da mentalidade de chefe de clã na
política41. O imperador, pela imparcialidade e uso da prerrogativa constitucional do Poder
Moderador seria capaz de impedir que o mérito, o talento e a cultura, fossem sacrificadas à habitual
intolerância e ao desdém dos nossos mandões politicantes que aparelhavam o estado em busca da
satisfação de seus interesses clânicos.
Entre nós, essa paz interior, esse império do direito, essa ordem pública, mantida e difundida por todo o país, é a obra excelente e suprema do II Império, como a “pax romana” foi a do século dos Augustos. É nesse período da história nacional que a autoridade pública se revela na sua plena eficiência: acatada, considerada, obedecida, cheia de prestígio e ascendência.42
A monarquia teria esta finalidade prática ajustada a nossa condição por um lado, e por outro,
uma finalidade também “simbólica”. Pois da fidelidade ao monarca viria mais um elemento
centrípeto contra as tendências separatistas do provincialismo, pela rotinização da autoridade
nacional e do direito entre a população. D. Pedro II encarnaria o idealismo latino, com as
características da verdade, bondade e justiça, na rotatividade dos partidos no poder.
Entretanto, esta benéfica obra da monarquia não duraria muito a ser contestada, é o que se
observa das proposições que Oliveira Vianna fez em o Ocaso do Império. Nesta obra, Vianna
objetivava procurar e isolar as causas da dissolução da monarquia, tendo por objeto de estudo as
forças políticas e a história das idéias. “O meu objetivo neste volume é, por isso, definir, de uma
maneira precisa, o papel exercido na queda da monarquia pela idéia liberal, pela idéia abolicionista,
pela idéia federativa, pela idéia republicana e pelas fermentações morais que determinaram as
chamadas “questões militares”.”43 O ponto inicial estaria na queda do gabinete Zacarias em 1868,
cujas idéias dominantes no nosso ambiente político seriam reflexo das idéias dominantes no mundo.
A interferência do Imperador ao nomear Itaborahy (conservador) para substituir Zacarias (liberal)
num Parlamento com maioria liberal provocou mudanças no sistema de crenças e idéias dos
39 Ibid, p.191. 40 Ibid, p.213. 41 VIANNA,O. O Ocaso do Império. 4ª edição. Recife, Fundaj, Editora Massangana, 1990. 42 VIANNA,O. Populações Meridionais do Brasil. Op. Cit. p.196. 43 VIANNA,O. O Ocaso do Império. Op. Cit. p.17.
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políticos à época, gerando a descrença nas virtudes do sistema monárquico-parlamentar e a
crescente aspiração por mudanças, a partir dos temas do poder pessoal, da descentralização e da
federação. A obra da monarquia começava a ser colocada em cheque pela reação liberal, como em
Nabuco ao propor a monarquia federativa e Rui Barbosa na exasperação pela federação com ou sem
coroa, e pelos republicanos que associavam o binômio federação-república. Desta forma, as noções
de federação e liberalismo da América e Europa, idéias antimonárquicas, quando transpostas ao
Brasil viriam carregadas de espírito republicano. Desta forma, a desilusão do monarca era a
desilusão da própria monarquia44.
O Abolicionismo, cuja gênese provinha das Academias, também possuía raízes exógenas, e
sobre uma raça imaginativa, suscetível ao idealismo e dotada para o entusiasmo foi mais um fator
eficiente na generalização da idéia republicana. Exógena e inadequada, pois os escravos formavam
a tribo patriarcal nos latifúndios, eram integrantes da família fazendeira, constituindo uma relação
recíproca com os senhores.
Segundo Vianna, foram três as fases do Abolicionismo: (1) abolição gradual, pela liberdade
dos nasciturnos, caracterizada pela moderação. (2) Uma feição radical, cuja proposta era a abolição
completa do elemento servil, como nos casos de Dantas e Nabuco de Araújo, pela Lei dos
sexagenários e do fundo de emancipação. (3) A Abolição imediata distinguida pela incoercibilidade,
irresistibilidade e fatalidade (popularidade), passando de questão partidária à questão nacional, com
a adesão do exército e da igreja, fase na qual os oradores e publicistas promoveriam o
desarmamento moral; o Parlamento, o desarmamento jurídico; e o exército, o desarmamento
material. O fato era que a oposição ao movimento abolicionista viria dos grandes fazendeiros e
chefes políticos, sendo o principal propulsor da abolição, D. Pedro II que era gradualista. Desta
forma a classe fazendeira desamparou a monarquia e passou a se interessar como os paulistas pelo
trabalho imigrante.
Quanto ao ideal republicano sua gênese também se encontraria na queda do gabinete
Zacarias e na conseqüente cisão do antigo Partido Liberal e a sua conseqüente inclinação ao
americanismo, no movimento de aproximação dos liberais exaltados com o ideal republicano.
os homens de partido do tempo, com os olhos fitos na Inglaterra, na França e nos Estados Unidos – salvo uma pequena elite, com a intuição exata da nossa realidade – não pensavam assim, não compreendiam assim, e viam no predomínio dessa política centralizadora e pessoal a inteira negação do seu ideal político. Sonhavam utopicamente um governo do povo, um governo da opinião, à maneira anglo-saxônica, num país em que a opinião, à maneira anglo-saxônica, não existe – não pode existir, e, como não poderiam realizar o seu ideal nem compreender exatamente a causa dessa impossibilidade, irritavam-se, impacientavam-se, desesperavam e, invadidos afinal pelo ceticismo, acabavam –como se dizia – perdendo a fé nas instituições.45
44 Ibid. p.58. 45 Ibid, p.84.
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Os pontos comuns entre os principais republicanos, os positivistas e os democratas eram o
princípio da liberdade civil e a preocupação federativa. A influência do positivismo se daria na
Escola Militar, na Escola Politécnica, enquanto nos cursos de Medicina e Direito prevaleceriam as
teorias de Haeckel e Spencer. Os positivistas entendiam a república por seu caráter autoritário, cuja
sólida base filosófica desembocava na oligarquia dos sábios e filósofos propostos por Augusto
Comte. O que lhes repugnaria na monarquia era a hereditariedade de sangue. Por sua vez, os
republicanos democratas propuseram a eletividade, curtos mandatos e a renovação dos cargos
eletivos. Os positivistas entretanto foram falhos na capacidade evangelizadora devido a intolerância
e a ausência de tática na propaganda das idéias, bem como a ineficácia da imprensa republicana dos
democratas e dos clubes e agremiações do partido republicano antes de 1888. O que permitiu ao
positivismo gozar de influência na república foi acidental: a coincidência de serem desse credo
alguns membros prestigiosos na organização do novo regime.
O Manifesto Republicano de 1870, apresentava-se para Oliveira Vianna como exemplo
maior de uma política silogística. “Não havia tal generalização de sentimento republicano, quando
se deu a queda do Império. Por essa época (...) o sentimento mais generalizado não era o da
“crença” na República, mas sim a “descrença” nas instituições monárquicas.”46 A idéia de república
no Brasil seria então a intervenção de uma variável externa ao jogo das elites tradicionais.
Por fim, Oliveira Vianna destacou a função política do exército na queda da monarquia. Para
ele, o exército nacional servira de mero instrumento das ambições civis, politicamente orientado
pela elite política. Nosso exército, continua Vianna, nunca teve a consciência de uma missão
política qualquer, nunca agiu por impulso próprio, como objetivação do pensamento de uma política
de classe. A partir de 1870 (pós-guerra do Paraguai) iniciava-se o processo, promovido pela elite
política, objetivando estimular conflitos entre a classe militar e os gabinetes. A chamada teoria do
cidadão fardado justificaria a participação dos militares na política como cidadãos, entretanto, as
características dos militares como o pundonor profissional, o espírito de corpo, a honestidade, o
patriotismo, o senso de hierarquia e a bravura, geravam imensas incompatibilidades entre a
psicologia do militar e a atividade partidária. O político civil se basearia no combate moral e no
ataque pessoal, elementos contrários à psicologia dos militares. Fato este exemplificado na Questão
Militar: a revolta contra os políticos do governo, revoltam-se (os militares) contra o próprio
governo.
Desta forma, seguindo os passos de Oliveira Vianna, o objetivo inicial do movimento de 15
de Novembro não era republicano, era derrubar o Gabinete Ouro Preto. A impossibilidade do III
reinado e a impopularidade do Conde D’Eu, a divisão dentro do exército entre “colarinhos de
couro” e “cadetes filosóficos”, a moléstia do Imperador e a popularização de sua incapacidade
46 Ibid, p.89.
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governativa, o isolamento de D. Pedro na sua queda, pois a luz do trono só iluminava aqueles que
não se aproximavam demasiadamente do foco luminoso, e a fraqueza do sentimento monárquico
nas tradições do nosso povo, na medida em que a monarquia foi um sentimento de elite,
contribuíram decisivamente para o advento da República no Brasil. Desta forma, do ocaso do
Império viria o acaso da República.
Ora, reuni nesta convicção de que o cetro já não se achava nas mãos do monarca, débil e quase moribundo; e mais as repugnâncias pelo 3º Reinado; e mais a ação das grandes influências gerais: a desilusão do ideal monárquico, o descontentamento pela Abolição, a relativa difusão do ideal republicano: e é fácil compreender agora as oscilações de Deodoro, a relativamente recalcitrância com que ele cedeu a sugestão e ao arrastamento de Benjamin com a falange dos “cadetes filosóficos”. É fácil compreender também porque o grupo numeroso dos “colarinhos de couro” não quis fazer a contra-revolução e aceitou o fato consumado da República.47
Com o advento da República e a Carta de 1891, chamada por Vianna de regime da federação
centrífuga, o princípio dominante passaria a ser o predomínio dos poderes estaduais frente ao poder
central. Entretanto, os Estados não estariam preparados para a autonomia apregoada pela federação,
pela sua incapacidade de formação de novos quadros dirigentes, pelo papel assumido pelos
adesistas, pela elite local incapaz de assumir a direção dos negócios locais e pelo erro da simetria e
da uniformidade dos estados. Nestes termos, a tendência comum na evolução dos Estados deu-se
pelas causas:
1.ª absorção crescente do poder municipal pelo poder estadual, isto é, redução crescente da autonomia dos municípios. 2.ª hegemonia crescente do poder executivo estadual sobre os dois outros poderes, o legislativo e o judiciário, os quais vão perdendo cada vez mais a sua necessária independência.48
Com Campos Salles e a exacerbação da chamada “política dos governadores”, segundo
Vianna, iniciar-se-ia um processo de usufruto da máquina eleitoral para a expressão da vontade e
dos interesses dos ocupantes dos cargos dito eletivos. “Em suma, a superestrutura política dos
estados se vai modelando num duplo sentido: de centralização e de aumento do ‘poder pessoal’ dos
presidentes.”49 Desta forma, com a política de reciprocidade entre o Estado e a União, “os
presidentes da República transigem com as situações estaduais e deixam de exercer sobre as
unidades federadas esse grande poder de disciplina e fiscalização, essa grande ação moderadora e
corretora, que era, no velho regime, uma das maiores garantias da liberdade dos cidadãos.” 50 As
elites estaduais controlariam a República, pois dominariam o aparato administrativo e político local,
influenciariam o poder legislativo através das eleições para o Senado e a Câmara, e influenciariam
indiretamente o poder executivo da União.
47 Ibid, p.161. 48 VIANNA, O. Evolução do Povo Brasileiro. Op. Cit. p.292. 49 Ibid. p.292. 50 Ibid. p.293.
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Enfraquecido pela federação, o poder central não tem, portanto, outro caminho racional para recobrar o seu antigo prestígio senão o do desenvolvimento da circulação geral. Ou esta, ou então a fragmentação federativa do poder, como recurso único para manter a integridade do país. Há dois meios de atacar, entre nós, o problema da circulação. Há o meio direto: pela articulação ferroviária do país; pelo desdobramento das nossas linhas de navegação interior; pela multiplicação dos meios de circulação interespiritual: correios, telégrafos, telefones, etc. Há o meio indireto: pelo desenvolvimento dos centros de povoamento; pela elevação do coeficiente de nossa densidade demográfica; em suma, pela redução da dispersão social por meio da colonização intensiva e sistemática.51
Como no final do III século e início do IV século, com o “acidente” da vinda da família real
para o Brasil, o processo de contraponto à obra da monarquia, interrompera o processo lento e
contínuo da organização do nosso tempo social via estatismo. “Uns e outros inspiram-se em dados
concretos e experimentais – mantêm um contato permanente com as nossas realidades.”52 Era
preciso o retorno a essas raízes de usufruto eficaz de finalidade alcançada pelo Estado: a única
solução pragmática no mundo dos fatos observáveis em nosso tempo histórico, daí a utilidade da
história53, associava-se ao processo de centralização do Estado, um arquétipo de estatismo em nossa
política dando conta das peculiaridades de nosso tempo social.54 A princípio, a obra de Oliveira
Vianna gravitará neste prognóstico sobre nossa formação colonial, sobre a obra do império, sobre
nosso passado, pelo menos até os anos 30, onde alteraria um pouco o teor de suas propostas para o
tempo político, com o aparecimento de novos elementos teóricos inseridos neste estatismo, como a
concepção de sindicalismo e de democracia corporativa.
Sua intenção era:
de corrigir – pela ação disciplinar de uma organização política centralizadora e unitária – os inconvenientes da nossa excessiva base física, da nossa dispersão demográfica e da ação centrífuga
51 Ibid. p.295. Oliveira Vianna apontou ainda a tendência para o que chamou de federação centrípeta, presente nas constituições de 1934 e 37 com o predomínio da União sobre os Estados: “De maneira que da ‘federação centrífuga’, de Jefferson, estamos sensivelmente evoluindo para a ‘federação centrípeta’, de Webster. Tolhida no terreno político, pela força dos textos constitucionais, a sua ação intervencionista, a União a dilata cada vez mais no terreno econômico e social dos Estados.” Ibid.p.309 52 Ibid. p.274. 53 Nunca é demais lembrar que na concepção de história de Oliveira Vianna estava embutido a idéia da história como mestra da política, e que seus estudos possuíam uma função pragmática, no sentido mesmo de utilidade. “Nunca será demais insistir na urgência da reação contra esse preconceito secular; na necessidade de estudarmos o nosso povo em todos os seus aspectos; no imenso valor prático destes estudos: somente eles nos poderão fornecer os dados concretos de um programa nacional de reformas políticas e sociais, sobre cujo êxito nos seja possível contar com segurança.” Ibid. p.39 Além é claro das noções de objetividade e desprendimento intelectual com que se referia às suas conclusões, pois segundo Vianna: “o que me inspira é o mais absoluto sentimento de objetividade: somente os fatos me preocupam e somente trabalhando sobre eles é que infiro e deduzo. Nenhuma idéia preconcebida. Nenhuma preocupação de escola. Nenhuma limitação de doutrina. Nenhum outro desejo senão o de ver as coisas como as coisas são – e dizê-las como realmente as vi.” Ibid. p.50. 54 Cabe lembrar que o projeto dos estadistas da colônia foi eficaz quanto aos fins almejados naquele determinado contexto. A solução dos estadistas do Império, também sucesso quanto aos fins se deu de forma diferente. “Os estadistas coloniais haviam chegado à fórmula: integridade da colônia pela fragmentação do poder. Os estadistas imperiais são levados a uma conclusão contrária: integridade do país pela unificação do poder. Os estadistas republicanos voltam à conclusão colonial: integridade da nação pela fragmentação do poder.” Ibid. p.279. Entretanto, “os estadistas coloniais agiam antes por ação preventiva; os da república procedem, de preferência, por ação repressiva. O método colonial levava legalidade aos altos sertões de modo permanente; o método republicano a leva de modo violento e transitório. Os estadistas da Colônia eram incomparáveis construtores da ordem; os da república são apenas destruidores da desordem.” VIANNA, O. Pequenos Estudos de Psicologia Social. Op. Cit. p.178.
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dos agentes geográficos. Não é só. Dois fatos novos, de caráter social um e político outro, surgidos o primeiro em 1931 e o segundo em 1937, vão concorrer, da forma mais decisiva, para assegurar melhores e mais seguras condições de êxito a este pensamento centralizador, velho de duzentos anos. O primeiro é a organização sindical e o segundo é a organização corporativa.55
Desta forma,
Enfraquecido pela federação, o poder central não tem, portanto, outro caminho racional para recobrar o seu antigo prestígio senão o do desenvolvimento da circulação geral. Ou esta, ou então a fragmentação federativa do poder, como recurso único para manter a integridade do país. Há dois meios de atacar, entre nós, o problema da circulação. Há o meio direto: pela articulação ferroviária do país; pelo desdobramento das nossas linhas de navegação interior; pela multiplicação dos meios de circulação interespiritual: correios, telégrafos, telefones, etc. Há o meio indireto: pelo desenvolvimento dos centros de povoamento; pela elevação do coeficiente de nossa densidade demográfica; em suma, pela redução da dispersão social por meio da colonização intensiva e sistemática.56
Para Oliveira Vianna, tornava-se necessário avaliar o modo como se efetivaria a
reestruturação rumo ao iberismo, e uma vez mais, estava colocado o dilema do nosso passado, e se
este seria um obstáculo ou um suporte à criação de um mundo diferente. Uma vez mais, o peso da
herança ibérica se fazia sentir: de um lado, se imputava ao passado marcado pelo iberismo, as
circunstâncias por todas as dificuldades com que se defrontava o americanismo republicano. De
outro lado, se procurava utilizar esse passado para construir o futuro, ou ainda, atribuía-se uma
valoração positiva a esse mesmo passado. Qualquer que fosse o caminho a ser percorrido, o passado
era o ponto central de onde qualquer solução precisaria ser encontrada. Em Oliveira Vianna, esta
carga atávica apareceu sempre como ponto de partida para se construir o futuro.
Dentro desta lógica, essa inversão do nosso tempo social teria de ser considerada dentro da
historicidade do nosso passado, e agora o “quem somos” deveria ser entendido dentro de uma
contingência da historicidade, portanto, resgatar o valor dessa tese do “quem somos” e sairmos em
construção da superação da antítese do “não somos”, e assim, sermos “outro”, a necessidade do
idealismo orgânico está pois em definir a nossa modernidade como um lugar existente, possível,
inadiável e peculiar.
55 VIANNA,O. Evolução do Povo Brasileiro. Op. Cit. p.11-12. 56 Ibid. p.295. Oliveira Vianna apontou ainda a tendência para o que chamou de federação centrípeta, presente nas constituições de 1934 e 37 com o predomínio da União sobre os Estados: “De maneira que da ‘federação centrífuga’, de Jefferson, estamos sensivelmente evoluindo para a ‘federação centrípeta’, de Webster. Tolhida no terreno político, pela força dos textos constitucionais, a sua ação intervencionista, a União a dilata cada vez mais no terreno econômico e social dos Estados.” Ibid. p.309
Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 108
A FORMAÇÃO DE UM PENSAMENTO TÉCNICO-INDUSTRIAL NO EXÉRCITO DURANTE O PRIMEIRO GOVERNO VARGAS: O CÍRCULO
DE TÉCNICOS MILITARES
Alexandre de Sá Avelar*
L’individu est important surtout en tant que lieu d’une activité intense et spécifiquement humaine de lecture, d’interprétation et de construction du ‘réel’
(Gribaudi 1987:123) Resumo: O presente trabalho pretende abordar a constituição de um projeto de modernização desenvolvimentista no interior do Exército durante o Estado Novo. O núcleo central deste projeto residia na idéia de que as Forças Armadas deveriam se tornar prioritariamente uma instituição a serviço do desenvolvimento industrial, subordinando a este objetivo os ditames da defesa nacional. Os militares que defendiam esta posição se agruparam numa organização denominada Círculo de Técnicos Militares, que se tornou o locus principal de divulgação de suas idéias. O ideário defendido pelo Círculo confunde-se com o pensamento e a trajetória do seu mais expressivo intelectual, o Major Edmundo de Macedo Soares. Palavras-chave: Edmundo de Macedo Soares; Círculo de Técnicos Militares; desenvolvimentismo. Abstract: This research intends to approach the constitution of a development modernization project inside the Army during "Estado Novo" period. This project central nucleus was the idea that the Military Forces should become primly an institution in service of industrial development, subordinating the national defense rules to that objective. The militaries who defended that position formed a group in an organization called "Círculo de Técnicos Militares" (Military Technicians Circle), which became the main locus for the divulgation of their ideas. The ideas defended by the Circle were mixed with the thoughts and the trajectory made by its most expressive intellectual, the Major Edmundo de Macedo Soares. Key-words: Edmundo de Macedo Soares; Círculo de Técnicos Militares; industrial modernization.
1. INTRODUÇÃO
A desarticulação da economia agrário-exportadora a partir da década de trinta reestruturou a
acumulação capitalista no Brasil, tendo como novo eixo o setor urbano-industrial. Tornou-se quase
um consenso entre os historiadores a afirmação de que o novo bloco histórico recém-chegado ao
poder conseguiu dinamizar um processo de industrialização que, embora não tenha se concretizado
* Doutor em História pela UFF
Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 109
em sua totalidade, ao menos propiciou um novo padrão de crescimento econômico. Mesmo
discordando quanto à real eficácia dos instrumentos de política econômica na promoção desse
crescimento industrial, não parece persistir dúvida quanto à ocorrência de uma transformação
qualitativa na ordem capitalista do Brasil.
O choque entre os diversos projetos de mudança econômica propostos na década de trinta
tem recebido pouca atenção dos especialistas no período. Na maioria dos casos, as idéias
econômicas são desvinculadas da dinâmica da luta de classes e dos conflitos de interesses para
serem analisadas exclusivamente sob o prisma da sua adequação ou não à realidade que pretendem
explicar ou, o que não é uma grande diferença, a partir da possibilidade ou não de que as
transformações ocorridas tenham se dado em virtude da aplicação correta daquelas idéias. Em
ambas as perspectivas, perdem-se os movimentos de construção de espaços de poder e de consenso
hegemônico e os conflitos ideológicos daí decorrentes tanto na sociedade civil quanto na sociedade
política.
O trabalho aqui apresentado faz parte de uma pesquisa mais ampla que resultou numa tese
de doutorado defendida na Universidade Federal Fluminense em 2006, que procurou dar conta da
trajetória do major Macedo Soares, entendendo-o como um intelectual orgânico de um projeto
industrialista de caráter autoritário, cuja difusão ultrapassou as fileiras militares, às quais nosso
personagem pertencia, para atingir espaços dentro da sociedade civil e política.1 Sua trajetória
intelectual neste momento decisivo, as décadas de trinta e quarenta, é fundamental para os nossos
propósitos neste texto. O aparecimento do Círculo de Técnicos Militares, no início do Estado
Novo, representou um importante locus difusor de um pensamento desenvolvimentista autoritário,
centrado no protagonismo do Estado, na liderança do Exército e na força da ciência e da tecnologia,
tendo no nosso personagem um dos seus mais proeminentes defensores.
2. OS ANOS DE FORMAÇÃO DE MACEDO SOARES
Ainda quando estudante da Escola Militar do Rio de Janeiro, Macedo Soares percebera o
descontentamento das Armas em relação ao estado do desenvolvimento econômico do país. A
insuficiência do setor industrial era seguidamente debatida entre os alunos.
1 Convém registrar que Macedo Soares chegou ao posto de General do Exército. À época da formação do Círculo de Técnicos Militares, contudo, era ainda Major. Ocupou importantes cargos públicos ( ministros nos governos Dutra e Costa e Silva, governador do Estado do Rio de Janeiro, presidente da Companhia Siderúrgica Nacional ) e privados (presidente da CNI, diretor da Mercedes, entre outros ), além de ter produzido uma extensa obra intelectual, entre livros, artigos, aulas e conferências.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 110
(...) O que desejávamos era o desenvolvimento do Brasil, porque achávamos que na República Velha o desenvolvimento foi muito pequeno. Ele não se fazia na área industrial: indústria, só de tecidos. O pessoal do café nunca empregou dinheiro, a não ser em tecidos. Ninguém do café, com exceção do Roberto Simonsen.2
Alguns números relativos à economia brasileira durante a década de 20 revelam um
panorama próximo àquele descrito por nosso personagem. As estatísticas da época demonstram a
relativa marginalização do setor industrial em contraste com a importância do eixo primário-
exportador. Os dados mais seguros são os do recenseamento industrial de 1920. Eles apontam para
o predomínio da pequena unidade industrial. Os 13.366 estabelecimentos existentes empregavam
um total de 275. 512 operários. Do número total de indústrias, apenas 482 tinham mais de cem
trabalhadores. O setor que poderia ser caracterizado como burguês-industrial constituía uma faixa
quantitativamente reduzida e incapaz de “apresentar qualquer projeto industrialista como alternativa
a um sistema cujo eixo central era formado pelos interesses cafeeiros”3. Além de apontar para a
precariedade da produção industrial brasileira, a fala de Macedo Soares nos permite verificar que os
problemas do desenvolvimento econômico brasileiro já eram discutidos entre os jovens militares.
Os anos vinte se mostrariam decisivos para a futura trajetória de Macedo Soares. O
envolvimento com as conspirações militares de 1922 e 1924 representou para o jovem tenente a
possibilidade de uma intervenção saneadora na política nacional, ainda que de vestes autoritárias, o
que fica evidenciado pela sua avaliação a posteriori daquela conjuntura:
Estava o país estagnado no tempo, desde a abolição da escravatura e proclamação da Primeira República. Não se sentia o pulso de estadistas capazes de ver suficientemente longe para tirar o Brasil do marasmo em que jazia. (...) Economicamente, dominava o café que, junto a alguns outros produtos primários, nos rendia umas poucas centenas de milhões de dólares. (...) A mocidade sentia isso. Compreendia que alguma coisa de anormal ocorria e que precisava ser corrigida. (...) Nosso objetivo era ‘limpar a política’, chamando ao Poder homens de melhor gabarito. (...) Esse era o nosso ideal: formar um grupo de técnicos e procurar mudar a estrutura econômica do país.4
Após ser preso e obter um visto no exterior através da embaixada peruana no Brasil, Macedo
Soares exilou-se em Paris, onde iniciou os estudos de engenharia metalúrgica, vindo a ser um dos
mais respeitados profissionais deste campo, que no Brasil contava apenas com uma escola de
formação, em Ouro Preto. Estudou em prestigiosas escolas de metalurgia na França. Matriculou-se
inicialmente no Conservatoire des Arts et Métiers. No Institut de Chimie Appliquée fez um curso de
química inorgânica ao mesmo tempo em que freqüentou aulas de física e matemática. O curso de
metalurgia foi concluído entre 1926 e 1928, com a apresentação de uma tese na concorrida
Academia de Ciências, cuja publicação em 1927 garantiu ao jovem militar brasileiro algum
2 Arquivo de Macedo Soares. Depoimento oral. Rio de Janeiro. CPODC/FGV. 3 FAUSTO, Bóris A Revolução de 30: historiografia e história.. São Paulo: Brasiliense, 1986, p.23. 4 SILVA, Edmundo de Macedo Soares e. A revolução de 30: a razão do seu desencadeamento, exemplo da nova orientação na formação técnica do povo. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. n.341, Rio de Janeiro, pp.77-79, 1983.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 111
reconhecimento no meio técnico francês Em seguida, Macedo Soares ingressou na École de
Chauffage Industriel, aperfeiçoando-se na construção de fornos metalúrgicos, ficando mais quatro
meses. A formação sólida já recebida no Conservatoire foi ampliada com um curso sobre fundição
na École Supérieure de Fonderie, prolongando sua permanência na Europa por mais um ano. Os
períodos de estudo foram intercalados com pequenos trabalhos em projetos metalúrgicos que
auxiliaram em sua formação, além de render-lhe importante ajuda financeira. Ainda realizou
estágios em usinas francesas ( Choisy-le Roi e Chambéry) e italiana ( Brenda ).
Os anos passados na Europa foram decisivos para os rumos que Macedo Soares tomaria a
partir de 1930. Com uma sólida formação em metalurgia e estágios em grandes siderúrgicas, o
futuro general acertou sua volta ao Brasil em agosto de 1930 por intermédio do embaixador
brasileiro em Paris, Souza Dantas, amigo do seu primo, José Carlos de Macedo Soares, homem
influente na vida política paulista e futuro ministro de Vargas. Tendo acompanhado os movimentos
políticos que conduziriam à Revolução de 30, Macedo Soares planejava atuar de alguma forma nas
conspirações que pretendiam derrubar o governo de Washington Luís. Seus planos futuros incluíam
alguma forma de intervenção na realidade brasileira, cujos males poderiam ser solucionados,
segundo acreditava, pelos caminhos seguros da ciência e da indústria. A formação em engenharia
assegurava-lhe o capital intelectual para se tornar um ator social ativo na construção de um projeto
de aprofundamento do capitalismo nacional, retirando as amarras que impediam o Brasil de se
tornar uma nação industrial. Para este papel, assim se pretende demonstrar, a organização do CTM
representou um momento decisivo.
3. A FORMAÇÃO DO CÍRCULO DE TÉCNICOS MILITARES E A ENGENHARIA
BRASILEIRA NOS ANOS 30:
A crise dos primeiros anos da década de trinta abalou as antigas convicções a respeito da
“vocação agrícola” do Brasil. Os graves desequilíbrios econômicos que o país enfrentava eram
agora relacionados à posição subalterna ocupada por nossa economia mercantil-exportadora na
configuração do capitalismo mundial. A decorrência natural dessa forma de inserção dependente era
a impossibilidade endógena de reprodução ampliada do capital. A industrialização mantinha-se
restrita aos meios de consumo popular, inexistindo as bases materiais de produção de bens de
capital.5
5 DRAIBE, Sônia. Rumos e metamorfoses: um estudo sobre a constituição do Estado e as alternativas da industrialização no Brasil ( 1930 – 1960 ). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985, p.12.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 112
Durante a República Velha, as sucessivas políticas de valorização do café foram decisivas
para assegurar os lucros das elites latifundiárias, socializando as eventuais perdas para todo o
conjunto da sociedade. Tais programas de sustentação da lavoura cafeeira baseavam-se na
manipulação cambial e nos volumosos empréstimos externos para a compra e estocagem do
produto. Ao mesmo tempo em que se garantiam os preços externos do café em níveis satisfatórios,
havia o grande risco de crises de superprodução. Isso ocorria devido à crescente expansão da área
de cultivo do produto, certamente estimulada pelos lucros obtidos pelo setor. Em estudo clássico,
Celso Furtado analisa essa contradição da economia brasileira.
Os empresários das economias exportadoras de matérias-primas, ao realizarem suas inversões, tinham de escolher dentre um número limitado de produtos requeridos pelo mercado internacional. No caso do Brasil, o produto que apresentou maior vantagem relativa era o café. Enquanto o preço desse artigo não baixasse a ponto de que aquela vantagem desaparecesse, os capitais formados no país continuariam acorrendo para a cultura do mesmo. Portanto, era inevitável que a oferta do café tendesse a crescer, não em função do crescimento da procura, mas sim da disponibilidade de mão-de-obra e terras sub-ocupadas, e da vantagem relativa que apresentasse esse artigo de exportação.6
O excesso de oferta sem absorção, garantida pelos mercados externos, era indício de que
uma grave crise no setor ocorreria independente do colapso da economia mundial em 1929. Com a
Depressão, tornou-se cada mais evidente que as grandes praças financeiras mundiais teriam poucas
possibilidades de manter os empréstimos que auxiliavam no financiamento da lavoura. A
conseqüência imediata foi a queda no preço externo do café; ao final de 1929, estava abaixo de 7
pence por libra-peso, contra os 11 pence de antes da Depressão. A curva descendente persistia e,
em 1931, atingia-se a cotação de 4 pence.7
O declínio dos preços do maior produto de exportação do país e a forte redução no fluxo de
capitais externos provocaram o rápido esgotamento das reservas cambiais. Vargas alegou que o
regime deposto havia remetido 26,5 milhões de libras para o exterior na defesa do câmbio. Assim,
as reservas, que eram de 31, 1 milhões de libras em setembro de 1929, caíram para 14, 1 milhões
em agosto de 1930 e desapareceram no início de 1931.
Outro setor da economia nacional duramente atingido pelo crash foi o comércio exterior.
Exportações e importações caíram em 1931-32, respectivamente, metade e um terço dos seus
valores de pico de 1928, medidos em libras. O volume de importações decresceu continuamente
entre 1932 e 1939, quando se chegou a um volume mínimo em relação ao pico de 1928; o quantum
de exportações, porém, cresceu até 1931, tendo 1932 sido o único ano em que sofreu um declínio,
medido em 16% em relação a 1928 e em 30% em relação a 1931. O preço das importações em mil-
réis sofreu um aumento de 6%, enquanto o preço das exportações caiu aproximadamente 25%. Isso
6 FURTADO,Celso. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Editora Nacional, 1997, p.198.
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significa que ocorreu uma deterioração de cerca de 30% nos termos de troca e uma redução de
40% na capacidade de importar.
Outros dados atestam a gravidade da crise. A queda do Produto Nacional Bruto em 1930 e
no ano seguinte atingiu, aproximadamente, 18, 7 e 11,75%. A paralisia econômica trouxe a
desocupação para cerca de 2 milhões de trabalhadores; só na cidade de São Paulo, calculava-se em
cem mil o número de pessoas em busca de emprego. Outro grave problema foi a redução na
atividade industrial, sendo que várias fábricas optaram por funcionar apenas três dias da semana.
Em 1930, o setor de tecidos finos registrou queda de 40% na produção e a de tecidos grossos cerca
de 70%; a indústria metalúrgica e de papel apresentaram baixa de 60% e, no ramo de madeiras e
móveis, o declínio atingiu 50%.8
Os efeitos da crise econômica estenderam-se ao jogo político-institucional contribuindo, de
forma decisiva, para a derrocada das oligarquias tradicionais e seus sócios no poder. A ascensão de
novas forças políticas deslocou o peso específico dos antigos grupos dominantes – ainda que estes
não fossem totalmente alijados do novo bloco histórico no poder – e reforçou a convicção de certos
grupos urbanos e das oligarquias dissidentes da urgência de um novo projeto de hegemonia
capitalista que dependesse menos do setor agrícola na composição da dominação burguesa.
Emergia daí um “Estado de Compromisso”, cuja gênese assim foi descrita por Bóris Fausto:
Em síntese, a crise de hegemonia da burguesia cafeeira possibilita a rápida aglutinação das oligarquias não vinculadas ao café, de diferentes áreas militares onde a oposição à hegemonia tem características específicas. Estas forças contam com o apoio das classes médias e com a presença difusa das massas populares.9
O processo desencadeado com a crise no setor oligárquico-exportador não refletiu, de
imediato, numa clara hegemonia da burguesia industrial. A crise era também uma crise de
hegemonia, o que favoreceu a proeminência do Estado na “tarefa de assegurar os requisitos de
coerção, deixando de lado os procedimentos típicos do convencimento e da democracia”.10 Não
obstante, a síntese histórica deste processo apontou, segundo Luís Werneck Vianna, para um
caráter transformista das relações econômicas do capitalismo brasileiro:
(...) a generalização das revolução burguesa (...) realizava-se independentemente de uma hegemonia burguesa. (...) Pretendemos acentuar que a modernização como “revolução pelo alto” não se associa à idéia de que tal processo tenha levado a burguesia industrial ao poder político, e sim que os interesses específicos da industrial tenham encontrado apoio e estímulo eficaz na nova configuração estatal. 11
7 ABREU, Marcelo de Paiva. O Brasil e a economia mundial ( 1930 – 1945 ). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999, p.74. 8 CORSI, Francisco Luiz. Estado Novo: política externa e projeto nacional. São Paulo: Editora da UNESP/FAPESP, 2000, p.37. 9 FAUSTO, Boris. Op.cit., p.103. 10 FONTES, Virgínia. Que hegemonia? Peripécias de um conceito no Brasil. In: ____. Reflexões im-pertinentes: História e capitalismo contemporâneo. Rio de Janeiro: Bom Texto, 2005, p.206. 11 VIANNA, Luís Werneck. Liberalismo e sindicato no Brasil. 4.ed. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1999, p.172.
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Os novos ajustes econômicos feitos a partir de 30 também foram fruto das percepções das
novas elites políticas que representavam a diversidade político-ideológica da Aliança Liberal,
bloco que levou Vargas ao poder. Vivendo o turbilhão dos acontecimentos, esses homens não
hesitaram em produzir análises e apontar as causas dos problemas da economia nacional, bem
como em propor soluções para a crise. Essas visões são importantes na medida em que nos
oferecem elementos para a compreensão das transformações ocorridas durante a década. As
diferentes interpretações e propostas são cruciais para acompanharmos o processo histórico que
desencadeou a expansão do capitalismo industrial no Brasil. Entre as diversas leituras realizadas a
respeito da situação econômica e dos meios de enfrentamento da crise, uma delas cristalizou-se no
interior das Forças Armadas, congregando diversos militares em torno de um projeto de corte
nacional-desenvolvimentista com fortes apelos autoritários. Principal porta-voz deste projeto,
Edmundo de Macedo Soares e Silva, emergiu como um dos mais destacados participantes do
debate econômico nacional até sua morte, em 1989. A formação de militar-engenheiro não o
manteve restrito aos meios militares. Sua vasta produção intelectual e os diversos cargos ocupados,
tanto na sociedade civil como política, possibilitam tomá-lo como intelectual orgânico de um certo
projeto econômico-social abraçado por uma elite burguesa industrial em vias de se consolidar
como uma das frações mais expressivas da classe dominante.
Ao longo de toda a década de trinta, um projeto nacional de base industrialista foi tomando
forma nos aparelhos privados da burguesia industrial e conquistando espaços cada vez maiores no
interior da burocracia varguista a partir da construção de um consenso em torno da necessidade do
país de romper com sua tradição de produtor de bens primários para exportação. Obviamente não
podemos atribuir a esse projeto nacional um caráter acabado e definitivo desde a chegada de
Vargas à presidência. A deterioração do sistema internacional, as graves crises políticas internas,
as dificuldades de financiamento e as reações dos setores ruralistas obrigavam o governo a
redefinir a todo o momento os rumos do projeto industrializante. O norte permanecia, entretanto, o
mesmo: a construção do capitalismo industrial no Brasil.
Emergia, dessa forma, um Estado intervencionista e controlador das atividades econômicas.
Individualizando-se do conjunto da sociedade, a administração federal passou a impor políticas
públicas a partir de sua percepção dos interesses nacionais. A criação de uma série de órgãos
burocráticos a partir de 1930 demonstra o novo paradigma de relacionamento entre Estado e
economia. Esses novos veículos de acesso dos grupos setoriais ao aparelho estatal representavam o
primeiro ensaio de uma burocracia típica do capitalismo moderno. Pretendia-se estudar, coordenar,
proteger e incentivar a expansão das atividades produtivas no país. Embora muitos desses órgãos
não tivessem função deliberativa ou executiva, eles funcionavam como formuladores de pareceres,
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tornando-se instâncias de informação e formação de opiniões, exercendo igualmente o papel de
canais de expressão das demandas da sociedade civil.12
O debate sobre a necessidade da rápida industrialização e os estudos que visavam a acelerar
sua implementação ganharam novos rumos com o advento do Estado Novo. Sem a interferência do
poder legislativo, Vargas pôde fazer avançar o andamento de problemas considerados vitais, como,
por exemplo, a construção de uma grande usina siderúrgica. A proliferação das comissões de estudo
foi um importante sintoma desse novo formato de tratamento dos problemas econômicos
brasileiros, vistos cada vez mais como problemas técnicos, cuja solução deveria ser buscada em um
conjunto de burocratas especializados e portadores de saberes qualificados para tal.
Essa dimensão estritamente técnica, com a qual Vargas pretendeu investir as discussões das
questões econômicas, favoreceu a valorização dos engenheiros enquanto ideólogos de um projeto
industrialista13 e portadores de soluções técnicas e saberes científicos capazes de promover as
transformações requeridas pela crise então vivida. Nosso estudo sobre o pensamento econômico de
Edmundo de Macedo Soares e suas articulações no interior da sociedade civil e do Estado não pode
ser desvinculado de uma apreciação analítica a respeito do seu lugar de fala. A condição de
engenheiro investia-o de um saber cientificamente reconhecido como detentor de condições para a
intervenção na realidade social. Estabelece-se, assim, uma forma de relacionamento entre sua
atividade profissional e o aparelho econômico, processo esse intermediado pelas escolas de
formação, pois, segundo Lili K. Kawamura,
A categoria profissional do engenheiro no capitalismo consiste em determinada parcela social com qualificação técnico-científica, especialmente voltada para atividades de utilização da ciência no processo produtivo. Tal qualificação tem-lhe sido historicamente outorgada de modo sistemático pelo aparelho escolar, em nível de ensino superior.14
12 A lista desses órgãos, comissões e conselhos, além de um Congresso, criados pelo governo entre 1930 e 1945, era extensa e revela a preocupação estatal em realizar debates, promover análises e criar instrumentos para a tomada de decisões: 1930: Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio; 1931: Conselho Nacional do Café, Instituto do Cacau da Bahia; 1932: Ministério da Educação e Saúde Pública; 1933: Departamento Nacional do Café, Instituto do Açúcar e do Álcool; 1934: Conselho Federal do Comércio Exterior, Instituto Nacional de Estatística, Código de Minas, Código de Águas, Plano Geral de Viação Nacional; 1937: Conselho Brasileiro de Geografia, Conselho Técnico de Economia e Finanças; 1938: Conselho Nacional do Petróleo, Departamento Administrativo do Serviço Público ( DASP ), Instituto Nacional do Mate, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística ( IBGE ); 1939: Plano de Obras Públicas e Aparelhamento da Defesa; 1940: Comissão de Defesa da Economia Nacional, Instituto Nacional do Sal; 1941: Instituto Nacional do Pinho; 1942: Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI); 1943: Coordenação da Mobilização Econômica, Consolidação das Leis do Trabalho, Serviço Social da Indústria (SESI), Plano de Obras e Equipamentos, I Congresso Brasileiro de Economia; 1944: Conselho Nacional de Política Industrial Comercial, Serviço de Expansão do Trigo; 1945: Superintendência da Moeda e do Crédito ( SUMOC ). 13 Ao pensarmos o termo “industrialista, estamos pensando nas mesmas categorias conceituais contidas na reflexão de Sônia Regina de Mendonça em relação ao termo “ruralismo” e que compreende a seguinte definição: “movimento político de organização e institucionalização de determinadas frações da classe dominante agrária no Brasil – tanto em nível de sociedade civil – bem como aos conteúdos discursivos produzidos e veiculados pelos agentes e agências que dele participaram”. Cf. MENDONÇA, Sônia Regina de. O ruralismo brasileiro. São Paulo: Hucitec, 1997, p.10. 14 KAWAMURA, Lili Katsuco. Engenheiro: trabalho e ideologia. São Paulo: Ática, 1991, p. 50.
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A diversificada atuação de Macedo Soares junto à sociedade civil, sem deixar de ser um
homem da sociedade política, representa um exemplo da inserção cada vez mais ampla dos
engenheiros nos diversos ramos industriais e nos próprios aparelhos estatais a partir de 1930..
Acreditamos que o conceito gramsciano de intelectual orgânico seja a categoria central de análise.
Donos de uma formação especializada essencial para que determinada classe alcance e mantenha o
papel dirigente, o intelectual orgânico organiza a função econômica e detém a direção hegemônica
que a classe dominante exerce nos níveis da sociedade civil e da sociedade política. Segundo Lili K.
Kawamura,
na medida em que o engenheiro, nas formações capitalistas, vem sendo formado como um especialista em dada área técnica orientada para os interesses da burguesia industrial e vem exercendo funções intelectuais, em seus diversos graus, principalmente no âmbito da produção industrial, pode ser analisado como intelectual orgânico.15
A criação do Círculo de Técnicos Militares foi, portanto, a resposta institucional de um
grupo de militares às crescentes demandas de industrialização, confiadas a um envolvimento cada
vez maior dos engenheiros com os mecanismos de expansão do capital industrial. Protagonistas de
um drama histórico no qual buscavam alcançar uma modernidade de feições autoritárias16, os
engenheiros militares pressentiram o momento oportuno para uma intervenção mais decidida nos
rumos do desenvolvimento capitalista para além da sociedade política.17
4. O PROJETO DO CÍRCULO DE TÉCNICOS MILITARES:
Cumpre-nos advertir que, ao defendermos a existência de um projeto desenvolvimentista
dentro das Forças Armadas, institucionalizado no Círculo de Técnicos Militares e cuja liderança era
exercida por Edmundo de Macedo Soares, estamos nos valendo das formulações de Ricardo
Bielschowsky, para quem o desenvolvimentismo apresenta as seguintes idéias-força:
15 Idem, p. 87. 16 Para uma discussão a respeito dos engenheiros como ideólogos de um projeto modernizador autoritário, conferir HERF, Jeffrey. O modernismo reacionário: tecnologia, cultura e política na República de Weimar e no 3.Reich. São Paulo, Editora Ensaio; Campinas: Editora da UNICAMP, 1993. 17 Muitos dos integrantes do Círculo ocuparam cargos importantes no mundo civil, especialmente em cargos de direção de empresas, cuja criação contou com a participação decisiva. Tais eram os casos do próprio Edmundo de Macedo Soares e Sílvio Raulino de Oliveira, protagonistas de todo o processo de constituição da Companhia Nacional, e ocupantes da presidência da empresa. Segundo Maria Ana Quaglino, esse deslocamento para a sociedade civil causou grande mal-estar entre os chamados “oficias combatentes” que não aceitavam o fato desses militares técnicos não permanecerem exclusivamente nos quadros do Exército. Conferir QUAGLINO, Maria Ana. O Exército e seus técnicos: o projeto do Círculo de Técnicos Militares ( 1937 – 1956 ). Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: IFCS/UFRJ, 1992, p. 50.
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a) a industrialização integral é a via de superação da pobreza e do subdesenvolvimento
brasileiro.
b) não há meios de alcançar uma industrialização eficiente e racional, no Brasil, através das
forças espontâneas de mercado; por isso, é necessário que o Estado a planeje.
c) o planejamento deve definir a expansão planejada dos setores econômicos e os
instrumentos de promoção dessa expansão.
d) o Estado deve ordenar também a execução da expansão, captando e orientando recursos
financeiros e promovendo investimentos diretos naqueles setores em que a iniciativa privada seja
insuficiente.18
A proposta do Círculo de Técnicos Militares apresentava-se como um dos pólos de uma luta
intelectual travada no interior das Forças Armadas, opondo as concepções de Edmundo de Macedo
Soares às de Góis Monteiro, principal líder militar do governo Vargas. Como as duas vertentes de
pensamento entendiam caber às Forças Armadas uma missão nacional, um papel de direção moral e
intelectual, podemos apontar claramente para a existência de dois projetos nacionais
institucionalizados, cujos conflitos e contradições concorreram para a consolidação de uma certa
identidade militar a partir da vitória da linha defendida por Góis Monteiro, cuja proposta entendia
que às Forças Armadas deveria ser reservado um papel essencialmente bélico, sendo a preparação
para a guerra a sua maior preocupação. Esses “militares combatentes” acenavam também com a
possibilidade de incremento da atividade industrial, desde que inteiramente subordinada às
necessidades militares. Não causava surpresa, portanto, que durante a Segunda Guerra Mundial
Góis Monteiro tenha defendido a ampliação da produção da indústria civil nacional, dando
preferência às matérias-primas e máquinas nacionais. As indústrias receberiam incentivos, tais
como garantias de compras, adiantamento de recursos e assistência técnica. Ao mesmo tempo, a
formação dos técnicos militares foi aumentada, especialmente para atender a urgência de
qualificação para o manejo do armamento importado. As especializações da principal escola
formadora de engenheiros militares, a Escola Técnica do Exército ( ETE ), deveriam nortear-se para
as necessidades brasileiras nos campos de batalha.19
Pretendemos apresentar o projeto do CTM tendo como base dois trabalhos de Edmundo de
Macedo Soares produzidos entre 1939 e 1940. Trata-se de um discurso reproduzido no Boletim do
Círculo de Técnicos Militares, principal meio divulgador das propostas dos técnicos militares,
intitulado “A estruturação técnica de nossas elites dirigentes” e de um artigo publicado na revista
18 BIELSCHOWSKY, Ricardo. Pensamento econômico brasileiro: o ciclo ideológico do desenvolvimentismo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000, p. 7. 19 Sobre o pensamento do General Góis Monteiro, conferir PINTO, Sérgio Murillo. A doutrina Góis: síntese do pensamento militar do Estado Novo. In: PANDOLFI, Dulce (org). Repensando o Estado Novo. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1999 e SUANO, Marcelo José Ferraz .O pensamento político e militar do general Góis Monteiro. Dissertação de Mestrado. São Paulo, USP/FFLCH, 1997.
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Nação Armada, sob o título “As indústrias de base como elemento do progresso econômico”. Os
principais elementos que nortearam as propostas dos militares técnicos estão presentes nesses dois
textos, razão pela qual procedemos a sua escolha.
A meta fundamental de transformar o Exército em uma instituição voltada prioritariamente
para o desenvolvimento industrial fundamentou-se em uma proposta articulada em três grandes
linhas de análise:
1) uma avaliação da situação geopolítica internacional e das novas modalidades de conflito
armado.
2) um diagnóstico da situação da indústria e da técnica no país, tendo em vista a precária
inserção externa do Brasil em um cenário mundial marcado pela emergência de um conflito de
dimensões planetárias.
3) os meios para a superação do atraso tecnológico, científico e industrial, incluindo a
necessidade de instituição de aparelhos escolares específicos para a formação de “elites dirigentes
técnicas”.
A noção de “guerra total” oferece o referencial teórico para a reflexão a respeito da ordem
internacional. Este conceito colocava com pesos iguais a força dos grandes exércitos e a produção
industrial. No atual estágio dos conflitos bélicos, não basta a ação humana. Esta se liga de tal forma
ao material que se torna imperiosa a sua produção em larga escala e “com as qualidades e nas
quantidades exigidas pela guerra moderna”20 o que só seria possível com a montagem de uma
poderosa retaguarda, “onde se assegura a fabricação desse material e se obtém os outros elementos
indispensáveis à vida dos Exércitos.”21
A mobilização das forças nacionais em um momento de perturbações na ordem
internacional era uma tarefa que cabia aos técnicos militares. Possuidores do domínio da técnica e
da ciência, deveriam “enquadrar, desde o tempo de paz, os técnicos civis normais da Nação,
acompanhando-lhes as atividades, adaptando-as às necessidades militares de acordo com as
instruções do Comando, ou orientando-os, dentro de um quadro geral”.22
A superioridade científica e tecnológica das nações mais avançadas servia de impulso para
que estas estabelecessem relações de tipo imperialista com países em estágio inferior de
desenvolvimento industrial-militar. Para estes últimos, a ameaça em sua segurança interna era
constante e apenas o rápido desenvolvimento dos seus recursos e a sua transformação em meios de
20 SOARES, Edmundo de Macedo. As indústrias de base como elemento do progresso econômico e da preparação militar do País. Nação Armada. n.2. Rio de Janeiro, pp.50, janeiro de 1940. 21 Idem, p.51. 22 SOARES, Edmundo de Macedo. A estruturação técnica das nossas elites dirigentes. Boletim do Círculo de Técnicos Militares. n.1 Rio de Janeiro, pp.167, janeiro de 1939.
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guerra poderiam evitar a exploração das grandes potências.23 Estabelecia-se, dessa forma, a
associação fundamental entre desenvolvimento industrial e desenvolvimento militar e todas as
atividades econômicas deveriam estar voltadas para a consecução desse duplo desenvolvimento.
A guerra moderna, em seus vínculos com as atividades industriais, havia deixado clara a
preocupação dominante dos Estados modernos: a obtenção de uma independência econômica tão
completa quanto possível. Os países de desenvolvimento mais antigo, ao produzirem mais do que
podiam absorver, enfrentavam a necessidade de mercados externos, ao passo que países de poucos
recursos naturais tinham tendência à autarquia. 24
A precária coexistência, no plano internacional, entre práticas liberalizantes e protecionistas
de comércio internacional aumentava as incertezas para os países subdesenvolvidos e provocava
tensões entre as principais potências. Novamente a análise de Macedo Soares recai sobre a urgência,
para as nações periféricas, de estimular o crescimento técnico-científico e industrial. Essa
preocupação marcou os militares do Círculo desde o início das suas atividades, como fica claro na
apresentação do número inaugural do Boletim, quando, alarmados, entendem que “sem a técnica
nunca teremos artes nem indústrias que nos permitam transformar essas riquezas latentes na seiva
que vitalizará o organismo econômico brasileiro e sem a ciência nunca poderemos possuir a técnica
a isso indispensável”.25
O segundo item do projeto do CTM reside na análise da situação técnico-industrial do
Brasil, considerando a sua inserção dependente em uma conjuntura externa marcada pelo conflito
militar e pela competição econômica.
Para Macedo Soares, a razão mais profunda da dependência econômica do Brasil residia na
importação de idéias e modelos alheios à nossa realidade social.
Vivemos séculos a olhar para fora, a sentir irresistível atração pela Europa, onde vivíamos presos pelo espírito. Raciocinávamos à européia, líamos apenas livros europeus (...) de lá nos vinham os homens de ciência para o estudo dos nossos problemas.26
Os brasileiros eminentes eram impedidos de produzir plenamente, em função da falta de
apoio a iniciativas que rompessem com o estado de letargia reinante entre nossas elites. O Barão de
Mauá é citado como exemplo de empreendedor tolhido por medíocres interesses políticos,
incapazes de compreender o alcance e grandeza das transformações e inovações que propunha.
A preferência pelo tradicionalismo à inovação encontrava respostas em nossa colonização de
matriz lusitana. Sendo “oriundos de povos de pouco pendor associativo em que o culto da
23 SOARES, Edmundo de Macedo. As indústrias de base como elemento do progresso econômico e da preparação militar do País. Op.cit., pp.52. 24 Idem, pp.53. 25 Boletim do Círculo de Técnicos Militares. n.01 Rio de Janeiro, pp.3, janeiro de 1939. 26 SOARES, Edmundo de. A estruturação técnica das nossas elites dirigentes. Op.cit., pp.159.
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personalidade humana constituía o traço mais característico”27, pouco desenvolvemos esse espírito
associativo necessário às atividades de transformação industrial. Daí decorre nossa natural
inclinação para o estudo das letras e humanidades, atividades intelectuais essencialmente
individuais.28 Assim, o brasileiro atua com brilhantismo em atividades ditas liberais, onde se exige
trabalho solitário. Isso explica ainda o fato de que as primeiras associações industriais tenham sido
estrangeiras. Por esse mesmo motivo, não era considerado como prioridade pelas elites a formação
de quadros técnicos para as atividades industriais. “Se organizávamos uma escola industrial técnica,
nossa mentalidade individualista achava um meio de inverter os objetivos e, ao invés de formarmos
operários, formavam-se artistas”, lamentava Macedo Soares.29
A continuidade histórica desse “pecado original” explicava a dependência da economia
brasileira em relação às exportações de gêneros primários ainda em 1933. Neste ano, o café
contribuía com 46% do total das exportações. As principais associações industriais ainda eram de
estrangeiros e os derivados de ferro lideravam as importações, fato este que demonstrava a
precariedade da indústria metalúrgica brasileira, considerada por Macedo Soares como mola
propulsora do desenvolvimento.30
A insuficiência industrial e técnica não representava apenas atraso interno. No concerto
internacional, a situação era igualmente desvantajosa frente aos países de capitalismo avançado,
possuidores de reservas econômicas privilegiadas em suas colônias.
Não possuímos, com efeito, elementos de troca suficientes para assegurarmos a nós mesmos um nível de vida elevado: isso exigia, dentro do sistema atual de nossa economia, um aumento das quantidades de produtos importados e, portanto, exportação maior de mercadorias brasileiras, o que não é possível, porque, possuindo em suas colônias ou regiões sob sua influência econômica, climas e terras semelhantes aos do Brasil, as grandes potências européias se esforçam para produzirem as mercadorias em que baseamos nosso comércio internacional; os mercados consumidores são, destarte, disputados por essas potências européias e pelos outros países sul-americanos.31
O avanço da corrida armamentista e o protecionismo praticado pela maioria das potências
econômicas não deixavam alternativas ao Brasil. O dilema era assim resumido por Macedo Soares:
“ou produzir os elementos básicos para a constituição de uma economia diversificada, ou definhar,
pela insuficiência dos seus meios de troca.32
O terceiro ponto do projeto do CTM residia exatamente nas possibilidades e caminhos para
a implementação de uma economia industrial diversificada, que se traduzisse na redução da
dependência econômica e militar. Não se tratava, contudo, da simples escolha da melhor política
27 Idem, pp.160. 28 Idem, Ibidem. 29 Idem, ibidem. 30 SOARES, Edmundo de Macedo.. As indústrias de base como elemento do progresso econômico e da preparação militar do País. Op.cit., pp.55. 31 Idem, Ibidem.
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econômica ou de decisões governamentais corretas. Igualmente importante era a constituição de
aparelhos escolares capazes de formar o proletariado industrial e, especialmente, as elites técnicas
dirigentes, investidas de saber técnico-científico altamente qualificado para o exercício de uma
direção econômica e intelectual durante todo o processo de consolidação do capitalismo industrial
no Brasil.
No que toca ao aparelhamento industrial do país, o entrosamento entre necessidades
econômicas e militares, característica indisfarçável dos novos tempos, exigia o rápido
desenvolvimento das indústrias de base. Estas, no entender de Macedo Soares, eram:
a) – a exploração racional das fontes de energia;
b) – a grande indústria química: produção dos ácidos e das bases minerais; fabricação dos
adubos, destilação da hulha e do petróleo, etc...;
c) – a metalurgia: produção de ferro ou siderurgia, produção do cobre, do alumínio, do
zinco, do níquel, do estanho, etc.33
A importação dos produtos dessas indústrias era o mais claro sinal de dependência
econômica que uma nação poderia apresentar, pois sobre as indústrias de base “se forjam os
instrumentos de trabalho e as armas de defesa e conquista”.34 A falta de uma economia
verdadeiramente independente era o prelúdio da dependência política.
O estímulo às indústrias de base não significava o estabelecimento de uma economia
autárquica. Seguindo o raciocínio desenvolvimentista, Macedo Soares creditava à industrialização
básica um esforço fundamental de substituição de importações. A indústria de transformação,
grande importadora de matérias-primas, era apontada como importante na medida em que criava um
mercado para as indústrias de base e preparava uma certa “mentalidade industrial”. Sem as
indústrias básicas, corríamos o risco da eterna fraqueza econômica e militar. O esforço de
industrialização não deveria ser de exclusividade estatal. A participação privada, inclusive
estrangeira, jamais deixou de ser aceita por Macedo Soares, tendo em vista a especificidade de
nossa formação capitalista, com um setor agrário hegemônico e escassez crônica de poupança
interna.35
Ao Estado caberia a função básica de coordenação e fiscalização das atividades econômicas,
respeitando as regras do mercado e não praticando qualquer modalidade de concorrência desleal. O
correto manejo das políticas cambial e tributária era visto como uma garantia de estabilidade para o
setor privado.36 Em setores considerados estratégicos, como a siderurgia, a presença estatal deveria
32 Idem, Ibidem. 33 Idem, pp.56. 34 Idem, Ibidem. 35 Idem, pp.57. 36 Conferência intitulada “Presença da empresa no desenvolvimento nacional”. Arquivo Macedo Soares. EMS 0000.00.00/3 . CPDOC/FGV.
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ser mais ativa, cabendo-lhe inclusive as funções de produtor direto. A direção de tais setores não
implicaria em restrições totais ao capital estrangeiro. Os investimentos internacionais eram
considerados benéficos desde que não tivessem a intenção de assegurar o controle e a direção das
indústrias básicas. O exemplo das negociações envolvendo o financiamento para a construção de
Volta Redonda nos fornece um claro exemplo desse tipo de estratégia, pois os capitais norte-
americanos empregados na usina vieram sob a forma de empréstimo ao governo brasileiro e a
empresa manteve-se estatal. A combinação entre uma ação estatal fiscalizadora e criadora de
condições para a realização plena da empresa privada aproxima Macedo Soares do que Ricardo
Bielschowsky qualificou como “desenvolvimentismo do setor privado”.37
O ensino técnico, formador de uma elite dirigente com alto saber científico, ocupava um
papel de destaque no pensamento dos militares técnicos. Com efeito, ao longo de toda sua trajetória
intelectual, o tema do ensino foi um dos mais discutidos por Macedo Soares em diversas
conferências, livros, artigos, aulas, etc. A magnitude das transformações exigidas ao Brasil não
poderia ser posta em prática sem uma intervenção firme de uma elite esclarecida e técnica ao
mesmo tempo. O “desequilíbrio técnico” na estrutura das nossas elites deveria ser revertido a partir
da expansão dos técnicos militares, os verdadeiros líderes do desenvolvimento industrial, aqueles
capazes de organizar toda a mobilização nacional requerida em momentos dramáticos, como o que
se vivia em 1939.
Macedo Soares teve desempenho de destaque na consolidação da Escola Técnica do
Exército e na instituição da carreira de técnico militar, dois momentos formadores de um campo
científico que, além de criar fortes sentimentos de identidade e solidariedade entre os militares
técnicos, favoreceu a expansão restrita da formação científica tida como indispensável a uma
intervenção segura nos rumos da economia brasileira.
A importância da constituição de aparelhos escolares que atuem como veículos de formação
científica e construção de identidades sociais foi bem analisada por Pierre Bourdieu, para quem
os homens formados em uma dada disciplina ou em uma determinada escola partilham um certo “espírito” literário ou cientifico. (...) A escola, incumbida de transmitir esta cultura, constitui o fator fundamental do consenso cultural, nos termos de uma participação de um senso comum entendido como condição da comunicação. O que os indivíduos devem à escola é, sobretudo, um repertório de lugares comuns, não apenas um discurso e uma linguagem comuns, mas também terrenos de encontro e acordo, problemas comuns de abordar tais problemas comuns.38
Fiel à sua crença no caráter indispensável da formação de elites técnicas, Macedo Soares foi
responsável, juntamente com o Coronel Amaro Bittencourt, pela reestruturação dos cursos da ETE
em 1937, com base nas seguintes linhas mestras: 1) o desmembramento dos cursos de engenheiro
rádio-eletricista e de engenheiro industrial em novos cursos: engenheiro eletricista, engenheiro de
37 BIELSCHOWSKY, Ricardo. Op. cit.,p.79.
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transmissões, engenheiro de armamentos e engenheiro metalúrgico; 2) maior ênfase na dimensão
experimental dos cursos, numa crítica à tendência predominantemente teórica da Escola. Além dos
citados, eram também oferecidos os cursos de engenharia química e engenharia de construções,
todos previstos para três anos, precedidos por um ano de revisão dos conteúdos , comum a todos.39
A passagem de uma formação excessivamente teórica para outra mais pragmática e atenta às
aplicações das inovações científicas no processo produtivo revelava uma crescente confluência de
interesses entre a engenharia e a burguesia industrial. Para dotar o engenheiro militar de melhor
preparo técnico, a reforma da ETE previa: preleções; trabalhos em laboratórios e gabinetes de
ensaio; trabalhos em salas de desenho; projeções cinematográficas; exercícios no terreno e na carta;
excursões e estágios orientados pelos professores e biblioteca especializada.
Quando em 1941, uma nova mudança nos regulamentos da ETE determinou a transformação
dos cursos de metalurgia, armamentos, eletricidade e transmissões em apenas dois cursos, Macedo
Soares demonstrou grande contrariedade. Em carta ao General Pedro Cavalcante, inspetor geral de
ensino, criticava a fusão afirmando que “o oficial que tendo por dever saber tudo, não se especializa
em coisa alguma”. Combatia, portanto, “a velha concepção do engenheiro de muitos títulos e
poucos conhecimentos, de muita ciência e pouco espírito de realização prática. A ETE deveria,
“para sermos fieis ao seu nome que exprime seus fins (...) formar o engenheiro de poucos títulos e
conhecimentos profundos numa dada especialidade”.40
Mesmo com a extinção da carreira de técnico militar, em 1956, a filosofia de ensino
defendida por Macedo Soares ganhou projeção no Instituto Militar de Engenharia (IME), sucessor
da ETE. Como professor desta instituição, o principal líder da corrente desenvolvimentista do
Exército continuou a manter uma vasta produção a respeito da importância do ensino técnico para o
desenvolvimento brasileiro, contribuindo decisivamente para sua consolidação, fato que lhe valeu
títulos e convites para lecionar em diversas universidades, como a Universidade de São Paulo, a
PUC-RJ e a Universidade Federal Fluminense.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS:
Ao longo deste trabalho, buscamos apresentar como determinados militares do Exército
construíram um projeto contra-hegemônico no interior das Forças Armadas, através do qual
pretendiam a transformação da instituição em um organismo voltado ao problema do
38 BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1974, p.206-207. 39 QUAGLINO, Maria Ana. Op.cit., p.42.
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desenvolvimento industrial. Proclamadores de uma verdadeira missão nacional, os militares
técnicos estabeleceram uma ação ideológica em prol dos interesses da ascendente burguesia
industrial, configurando um campo de conflitos de interesses com repercussões intensas no aparelho
estatal. Exerceram também uma decidida direção intelectual, ao intervirem de forma direta na
institucionalização do ensino técnico militar e na organização do processo de trabalho no aparelho
econômico com vistas à formação de uma elite dirigente de caráter técnico-científico e
mobilizadora do esforço de modernização do país. A combinação entre meios e força de trabalho
voltava-se para os objetivos de acumulação, favorecendo a preservação das relações capitalistas de
produção no âmbito de uma formação econômica periférica e que apenas começava a dar os
primeiros passos em direção ao desenvolvimento do núcleo urbano-industrial.
A formação do engenheiro militar aproximava-o da função de intelectual orgânico da
burguesia industrial. Além disso, contribuía para a difusão do valor do conhecimento tecnológico,
atuando na cooptação dos intelectuais tradicionais. Funcionava como o elo entre a infra e a
superestrutura, na medida em que colocava em execução as decisões e valores imprescindíveis para
a realização do processo produtivo dentro do capitalismo.
O projeto do Círculo deve ainda ser entendido como um movimento político, pois
reivindicava a organização e institucionalização de determinados interesses da burguesia industrial.
Produziu certos conteúdos discursivos que foram abraçados por “agências e agentes dotados de uma
inserção determinada na estrutura social e sustentados por canais específicos de organização,
expressão e difusão de demandas”.41
A escolha de Edmundo de Macedo Soares como fio condutor da nossa trama representou,
nos propósitos deste trabalho, o reconhecimento de sua destacada trajetória político-intelectual
como o caminho para que pudéssemos apreender, em sua totalidade, os elementos que constituíam o
projeto do CTM. Sua destacada atuação como professor de escolas militares, planejador econômico
e homem de Estado42 torna-o um intelectual orgânico de um projeto desenvolvimentista autoritário,
cujas linhas de ação nosso militar procurou expandir no interior da sociedade civil e política.
Ainda que se considere a relativa marginalização dos militares técnicos na disputa político-
ideológica existente no interior das Forças Armadas durante o primeiro governo Vargas, é forçoso
reconhecer que muitas das metas do projeto do Círculo de Técnicos Militares foram implementadas
ao longo de toda a chamada era desenvolvimentista: o país consolidou um núcleo básico de
indústrias, o ensino técnico conheceu expressivo crescimento e a influência e participação dos
militares nos aparelhos decisórios de Estado não cessou de aumentar.
40 Apud QUAGLINO, Maria Ana. Op.cit., p.47. 41 MENDONÇA, Sônia Regina de. Op.cit.,p.13. 42 Ver nota 1.
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O CRÉDITO RURAL PÚBLICO NUMA ECONOMIA EM TRANSFORMAÇÃO: CRIAÇÃO E INÍCIO DO FUNCIONAMENTO DAS ATIVIDADES DE FINANCIAMENTO AGROPECUÁRIO DA CARTEIRA
DE CRÉDITO AGRÍCOLA E INDUSTRIAL (CREAI), DO BANCO DO BRASIL (BB) - 1937 A 1945*
Paulo Roberto Beskow**
Resumo: Durante o período da Monarquia e em grande parte do período da República, até a década de 1930, o Estado brasileiro não teve um papel importante na promoção do desenvolvimento econômico do país. Particularmente, depois da abolição da escravatura e da Proclamação da República houve um maior envolvimento governamental sobre a resolução dos problemas enfrentados pelo setor rural da economia, também em matéria de crédito. Esta tendência tornou-se mais importante após a Crise Mundial de 1929, na qual a principal conseqüência econômica foi a substituição das exportações agrícolas como atividade mais importante da economia – basicamente de café – pelos crescentes setores ligados ao mercado interno – urbanos – de produção industrial. Ao longo do período republicano até 1930, foram várias iniciativas governamentais relacionadas à agricultura e crédito hipotecário. Contudo, quase todas iniciativas não se desenvolveram. A marca definitiva neste tema foi a fundação da Carteira de Crédito Agrícola e Industrial (CREAI), do Banco do Brasil, no ano de 1937. A fundação e funcionamento do CREAI devem ser analisados num contexto de um amplo projeto de modernização econômica, relacionados com o apoio do Estado no processo de industrialização e diversificação da produção rural, sem a rejeição da agricultura de exportação e não colocando em risco a hegemonia dos grandes proprietários de terras das maiores terras agrícolas – latifúndios. Neste sentido, o CREAI pode ser considerado como a primeira agência nacional da política agrícola. Palavras-Chave: Carteira de Crédito Agrícola e Industrial (CREAI) do Banco do Brasil; Política Agrícola; Desenvolvimento Rural; Economia Brasileira em 1937 até 1945. Abstract: During the Monarchy age and in a large period of the Republic time, until the decade of 1930, the brazilian State did not have an important role in the promotion of the economic development of the country. Particularlly after the abolishment of the slavery and the Proclamation of the Republic did have a larger governmental envolvement on the resolution of the problems faced by the rural sector of the economy, also in the matter of the credit. This tendency became more important after the World Crisis of 1929, which principal economic consequence was the displacement of the agriculture exports as more important activity of the economy – basically cofee
* Este artigo corresponde a uma versão ligeiramente modificada do capítulo III – Fases e Características da Atuação Agrícola da Carteira, item 3.1 – O Início do Funcionamento da CREAI (1938-1945) e de uma parte da Recapitulação e Conclusões da minha Tese de Doutorado “O Crédito Rural Público numa Economia em Transformação: Estudo Histórico e Avaliação Econômica das Atividades de Financiamento Agropecuário da CREAI/BB, de 1937 a 1965”, orientada pelo prof. Tamás Szmrecsányi e defendida em 1994 no Instituto de Economia da UNICAMP. ** Economista , Doutor em Economia (UNICAMP), Professor Adjunto, Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Departamento de Tecnologia Agroindustrial e Sócio-Economia Rural (DTAISER), Centro de Ciências Agrárias (CCA), Campus de Araras. E-mail: [email protected]
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- by the increasing sectors connected to the domestic markets – urban-industrial production. Along the republican period until 1930, was several governmental initiatives related to agricultural and hypothecary credit. However, almost all these initiatives did not developed. The definitive mark in this theme was the foundation of the “Carteira de Crédito Agrícola e Industrial (CREAI)”, of the “Banco do Brasil”, in the year of 1937. The foundation and the functioning of the CREAI must be analysed in a context of a larger project of economic modernization, related to the support of the State to the process of industrialization and the diversification of the rural production, without the rejection of the export agriculture and do not taking in risk the hegemony of the big farmers ownners of the larger agricultural lands – the “latifúndios”. In this sense, the CREAI also be considered the first national agricultural policy agency. Keywords: “Carteira de Crédito Agrícola e Industrial” (CREAI) do Banco do Brasil, Agricultural Policy, Rural Development, Brazilian Economy from 1937 to 1945.
1. INTRODUÇÃO
Durante o Império e boa parte da República, até a década de 1930, o Estado brasileiro não
teve um papel importante na promoção do desenvolvimento econômico do país. Devido à
predominância da ideologia liberal e da doutrina do padrão-ouro na condução da política
econômica, os governos preocupavam-se basicamente com o equilíbrio das finanças públicas e com
a estabilidade cambial. Contudo, já a partir do final do período monárquico, devido às dificuldades
enfrentadas pela agricultura exportadora, passou a haver um maior envolvimento governamental na
resolução de problemas enfrentados pelo setor agropecuário, especialmente através da política
imigratória baseada na subvenção total das despesas de transporte dos trabalhadores vindos do
exterior. Particularmente após a abolição do trabalho escravo e a Proclamação da República, este
maior envolvimento também ocorreu no campo do crédito.
Por causa disso, a abolição formal do trabalho escravo em 1888 – e a proclamação da
República pouco mais de um ano depois – podem ser tomadas como marcos significativos da
formação da moderna agricultura brasileira, tanto em termos da crescente diversificação de seus
produtos, como no que se refere à gradativa institucionalização de uma política agrícola
governamental de âmbito nacional. Foi no contexto destes dois processos que se consolidou o
instrumento de política agrícola que foi o principal objeto desta investigação: o crédito rural
público.
O crédito rural público começou a surgir em 1888, ao término da Monarquia, no bojo da
reforma monetária dos Viscondes de Ouro Preto e de Cruzeiro, através de um acordo do Banco do
Brasil com o Tesouro Nacional para favorecer os ex-proprietários de escravos na forma de crédito,
cabendo ao primeiro a distribuição seletiva do crédito fornecido pelo segundo. Entretanto, parcela
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considerável desses recursos foi repassada pelo Tesouro a um grupo de bancos particulares para que
emprestassem à agricultura.
Com o advento da República, foi aprovada em 1890 legislação que reorganizou o sistema
bancário e monetário, a qual embora tivesse semelhanças com a reforma bancária de 1888, avançou
numa série de questões, dentre as quais a do crédito rural hipotecário. No entanto, depois do
Encilhamento, teve início, a partir de 1898, uma contra-reforma econômico-financeira cuja
principal finalidade era situar o País no sistema do padrão-ouro liderado mundialmente pela
economia britânica.
Em conseqüência dessa contra-reforma, o sistema bancário brasileiro foi praticamente
destruído, com a liquidação de vários bancos e a quase falência do Banco do Brasil, o qual foi
obrigado a suspender os seus pagamentos. Por causa disso, a política de crédito rural não teve
continuidade, e o próprio Ministério da Agricultura acabou sendo extinto em 1892, só vindo a
ressurgir em 1906. Durante esse intervalo, as políticas agrícolas vigentes foram determinadas a
nível estadual, e giravam basicamente em torno de alguns produtos de exportação – particularmente
o café – e dos interesses das elites agrárias e governamentais de alguns estados mais desenvolvidos
– notadamente as de São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul.
A partir da mencionada crise bancária, que reforçou ainda mais o predomínio dos bancos
estrangeiros na economia brasileira, o sistema bancário nacional foi sendo reformulado com o
objetivo de fortalecer os bancos nacionais, todos particulares como o Banco da República do Brasil
– este era na época o nome do Banco do Brasil –, o qual, após ter sido socorrido pelo Tesouro
nacional devido à sua quase-falência, foi reorganizado em 1905 sob a atual denominação de Banco
do Brasil.
A grande expansão da agricultura exportadora entre o começo da República e o início da I
Guerra Mundial, bem como a sua coexistência com uma elevada, porém decrescente, importação de
produtos alimentares, foram fortemente determinadas pela preocupação central da política agrícola
de permanente incentivo à expansão da cafeicultura, com o seu maior exemplo cabendo ao
Convênio de Taubaté, em 1906.
Ao longo do processo substitutivo de importações e da crescente internalização e
diversificação da produção agropecuária e agroindustrial nas duas décadas iniciais do século XX,
não houve qualquer utilização de instrumentos específicos da política agrícola para estimular a
produção doméstica, seja a do crédito rural (mesmo a partir de 1905, quando voltou a efetuar
financiamentos diretos à agricultura, o Banco do Brasil dispunha de recursos bastante limitados),
seja a dos preços mínimos ou mesmo o da assistência técnica. Apenas a elevação geral da proteção
tarifária (para fins tributários) chegou a favorecer a partir de 1905 a produção de alimentos nas
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regiões agrícolas de São Paulo e de Minas Gerais, nas áreas liberadas pela crise cafeeira do final do
século XIX, e nas do Rio Grande do Sul.
O fortalecimento do Banco do Brasil prosseguiu com a criação, em 1920, da Carteira de
Redescontos (CARED) – a qual ampliou bastante a participação dos bancos privados nacionais no
total dos empréstimos e dos títulos descontados – com o estabelecimento, em 1921, da Câmara de
Compensação de Cheques, e com a instituição da Caixa de Estabilização, em 1926, a qual foi o
principal instrumento da execução de uma reforma monetária ainda inspirada no padrão-ouro.
Contudo, ao final dos anos vinte o Banco do Brasil ainda não possuía uma rede de agências
distribuídas pelo País como um todo, e não operava de maneira especializada na área de crédito
agropecuário, apenas efetuando alguns empréstimos rurais hipotecários, tendo como principal
objetivo a resolução dos problemas das finanças federais, com o reforço, portanto, de seu papel de
banqueiro do Governo.
Durante o período republicano até 1930, a política econômica do País esteve voltada
essencialmente para a defesa do café. Por causa disso, durante esse período, os créditos bancários
destinados à agricultura atenderam basicamente à lavoura de café e às necessidades do seu comércio
exportador, e nunca ao conjunto do setor agropecuário. Devido a isso, ao longo da década de 1920,
enquanto a agricultura exportadora cafeeira atingia o auge de sua expansão, a agricultura de
mercado interno tinha um desempenho bem mais modesto.
Esse comportamento diferenciado explica-se pela inoperância do Ministério da Agricultura,
pela inexistência e ineficácia das políticas agrícolas federais destinadas ao conjunto da produção
agrícola, e pela total ausência de qualquer crédito agrícola. Além disso, até o final dos anos vinte, as
referidas políticas continuaram sendo formuladas e implementadas basicamente pelos governos
estaduais – não por todos indistintamente, mas, sem dúvida, pelo menos por aqueles que
comandavam as unidades federativas economicamente mais prósperas e/ ou administrativamente
mais articuladas. Tal era o caso principalmente de São Paulo de um lado, e do Rio Grande do Sul do
outro.
Foi o dinamismo da produção agrícola dessas regiões que impulsionou mais fortemente o
processo de crescente internalização e diversificação da produção agrícola, através da substituição
de importações, aumentando o comércio inter-regional de mercadorias e diminuindo o isolamento
econômico das várias regiões do País. Nessa nova situação, podemos distinguir, de um lado, os
Estados exportadores de produtos agrícolas de consumo interno – como o Rio Grande do Sul e
Minas Gerais – e, de outro, os Estados importadores desses mesmos produtos, que incluíam não
apenas os do Norte e do Nordeste, mas também o do Rio de Janeiro e o então Distrito Federal.
Apenas o Estado de São Paulo mantinha-se parcialmente numa categoria à parte, pelo fato de só
Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 129
importar açúcar e algodão do Nordeste, além de trigo do exterior, e de ser virtualmente
autosuficiente no que se refere a todos os demais produtos agrícolas de abastecimento interno.
A principal conseqüência da Crise Mundial de 1929 na estrutura econômica do País foi o
definitivo deslocamento do centro dinâmico da economia brasileira das atividades agroexportadoras
(basicamente representadas pelo café) para as atividades voltadas ao mercado interno e
crescentemente urbano-industriais. Por sua vez, a forma como foi enfrentada a Crise de 1929/ 30,
através da crescente intervenção do Estado nas atividades econômicas, constituiu-se no principal
marco econômico da transição do chamado modelo primário-exportador para outro baseado no
processo da industrialização substitutiva de importações.
A crise de 1929/ 30 também acarretou significativas transformações na estrutura produtiva
da agricultura do País. Uma das mais notáveis foi a intensa substituição do café por outros produtos,
tanto por alimentos como por matérias-primas agroindustriais. Esse processo de substituição do café
por outros produtos deu-se mais acentuadamente no Estado de São Paulo, que assim passou também
a aumentar a produção de gêneros alimentícios importados de outros Estados. Esse processo de
diversificação da produção agropecuária nacional provocou a adoção de uma série de medidas
governamentais, que por sua vez, vieram reforçar essa tendência.
Depois de um breve interregno marcado por um maior dinamismo – a gestão de Juarez
Távora, entre 1933 e 1934, em que houve uma reorganização do Ministério da Agricultura, a qual,
no entanto, ficou incompleta devido à escassez de recursos que imperava na época – o referido
ministério voltou à situação anterior, caracterizada por uma atuação bastante limitada em relação ao
desenvolvimento do setor agropecuário. Basta lembrar neste sentido que duas das principais
autarquias vinculadas ao citado setor – o Departamento Nacional do Café e o Instituto do Açúcar e
do Álcool – não tinham qualquer vínculo administrativo com o Ministério da Agricultura, e até os
cotonicultores procuravam outras instâncias governamentais para encaminhar suas reivindicações
ao Governo.
Entre as novas políticas de apoio à produção agropecuária, cumpre mencionar a criação da
Comissão de Financiamento da Produção (CFP), em 1942, com o objetivo de desenvolver a política
de garantia de preços mínimos. No entanto, a CFP não chegou a ter de imediato qualquer impacto
sobre a produção agropecuária, pois foi desativada após a deposição de Vargas, só vindo a ressurgir
em 1951, quando efetivamente se iniciou no País a política de preços mínimos. Por outro lado, entre
1936 e 1945, particularmente durante a II Guerra Mundial, devido às freqüentes crises na
disponibilidade de produtos fortemente dependentes de importações (por exemplo, o trigo e a
farinha de trigo), foram criados vários órgãos governamentais na área do abastecimento alimentar.
No período de 1930 a 1945, uma das principais mudanças da política agrícola foi a sua
passagem do âmbito estadual para o federal. Embora ainda de uma forma muito incipiente, foi nessa
Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 130
época que surgiu pela primeira vez no País uma estratégia para o conjunto do setor agrícola, em
contraposição a medidas voltadas exclusivamente para a defesa de certos produtos de exportação.
Isso começou a ocorrer mais nitidamente a partir de 1937, com o Estado Novo, e devido às novas
circunstâncias criadas pela II Guerra Mundial.
Já no primeiro ano do Governo Provisório chefiado por Getúlio Vargas foi reforçado o papel
do Banco do Brasil no sistema monetário-financeiro do País, particularmente com o
restabelecimento de sua Carteira de Redescontos em dezembro de 1930. Posteriormente, com a
posse de Osvaldo Aranha no Ministério da Fazenda, no ano de 1931, que significou um ponto de
inflexão na política econômica, acelerou-se o processo de fortalecimento da presença do banco do
Brasil na economia do País, tanto pela monopolização da compra de letras de importação, como
pela transformação de sua Carteira de Câmbio em órgão exclusivamente governamental, e bem
como pelo poder de descontar ou redescontar os títulos emitidos pelo Conselho Nacional do Café
(CNC) garantidos pelos recursos arrecadados pelo café exportado, medida tomada depois da
decisão de não mais adquirir os estoques de café.
Prosseguindo na política de reforço institucional do Banco do Brasil, em 1932 foi criada a
sua Caixa de Mobilização Bancária (CAMOB), a qual tornou-se a emprestadora de última instância
do sistema financeiro, e ampliou os níveis de redesconto dos títulos destinados ao financiamento da
indústria, da agricultura e da pecuária. Por outro lado, a principal medida governamental relativa à
produção agropecuária foi o chamado “Reajustamento Econômico” (1933 e 1934), que reduziu em
50% as dívidas dos agricultores (basicamente cafeicultores), além de criar a Câmara de
Reajustamento Econômico para a sua execução.
Ao longo do período republicano que vai até 1930, tinham havido várias iniciativas
governamentais relativas ao crédito agrícola e hipotecário, tais como a criação de bancos estaduais e
federais rurais, e a multiplicação das caixas rurais e cooperativas de crédito agrícola. A maioria
dessas medidas, no entanto, ficaram no papel e nunca foram concretizadas. O marco definitivo neste
sentido foi a criação da Carteira de Crédito Agrícola e Industrial do Banco do Brasil, em 1937.
Até o surgimento deste órgão, praticamente só os agricultores com patrimônio tinham acesso
ao crédito rural, já que este era quase exclusivamente hipotecário. Além disso, o financiamento
bancário da agricultura era feito como se tratasse de uma operação comercial qualquer. Além disso,
antes da criação do CREAI nunca houve uma estratégia econômica governamental para a
agricultura como um todo, e muito menos para a agricultura destinada ao mercado interno e
produtora de gêneros alimentícios de consumo generalizado.
Um dos fatores que contribuiu para a criação da CREAI foi a necessidade do Governo
Federal instituir mecanismos para enfrentar as conseqüências da super-produção cafeeira e os
efeitos destrutivos da crise econômica mundial de 1929-1930 sobre a agricultura exportadora. Mas,
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a criação da CREAI também decorreu da preocupação governamental com a recuperação e a
sustentação do crescimento industrial e agrícola em geral que se deu a partir do início dos anos
trinta, o qual decorreu tanto da reestruturação das atividades econômicas internas afetadas pela crise
de 1929, como da adoção de políticas econômicas anti-cíclicas.
Por causa disso, a criação e o funcionamento da CREAI devem ser analisados no contexto
de um projeto mais amplo de modernização econômica, voltado para o apoio estatal à
industrialização e à diversificação da produção agropecuária, sem o abandono da agricultura
exportadora e não colocando em risco a hegemonia da grande propriedade rural (capitalista ou não)
no campo, e dentro de uma visão econômica autarquizante, a qual procurava internalizar ao máximo
as atividades econômicas consideradas estratégicas.
Por sua vez, a preocupação de dotar a CREAI de fontes próprias de recursos para assegurar
internamente as condições financeiras para os seus empréstimos estava relacionada à estrutura dos
depósitos do Banco do Brasil, a qual, no período 1933/ 38, caracterizava-se por um amplo
predomínio dos depósitos à vista, o que impossibilitava a existência de uma política de crédito
agropecuário. Desse modo, a estrutura do passivo do Banco do Brasil contribuía fortemente no
sentido da CREAI de contar com fontes próprias de recursos, consubstanciadas através da emissão
de bônus, os quais deveriam ser adquiridos obrigatoriamente pelo Instituto Nacional de Previdência
e pelas Caixas e Institutos de Aposentadorias e Pensões numa proporção de seus depósitos ou
fundos.
Tendo cumprido essas condições, a CREAI, além de ter sido a primeira experiência de
crédito rural público especializado para o conjunto do setor agropecuário, pode ser considerada
também a primeira agência de política agrícola voltada para o conjunto da agricultura. Ela pode ser
vista igualmente como um instrumento de acomodação à estrutura de poder dos setores ligados à
chamada “reação oligárquica”.
Nunca é demais lembrar a este propósito a participação vitoriosa na Revolução de 1930 de
dissidências oligárquicas regionais vinculadas a estruturas produtivas voltadas ao mercado interno,
e à própria cafeicultura. Tratava-se de interesses de peso na coalizão de forças políticas do pacto de
poder no pós-30. Isto serve para explicar em parte a destinação dos recursos creditícios da CREAI,
que sempre teve um claro predomínio de produtos e atividades como o café, o algodão, a cana-de-
açúcar, o arroz irrigado e a pecuária bovina.
Apesar disto, a CREAI teve uma natureza bastante diversa da de outros órgãos públicos
federais do setor agrícola, os quais possuíam forte poder político e institucional, e eram estruturados
em torno de alguns produtos agrícolas considerados estratégicos, particularmente mas não apenas
no setor agroexportador. Este era o caso do Departamento Nacional do Café (DNC), do Instituto do
Açúcar e Álcool (IAA), do Instituto do Cacau na Bahia, do Instituto Nacional do Mate, do Instituto
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Nacional do Pinho, do Instituto Paulista do Café e do Instituto Rio-Grandense do Arroz (IRGA),
entre outros.
A viabilidade do funcionamento da CREAI foi garantida pela aprovação de uma extensão
legislação entre 1937 e 1942, a qual praticamente lhe deu o monopólio do crédito rural no País. Já
em 1939 foi feita a primeira reforma do regulamento da CREAI, mediante a qual os seus objetivos
foram aumentados e reduzidos os juros de seus financiamentos de 9% a. a. para 7% a. a.
Em 1942, no contexto das medidas econômicas tomadas pelo Governo para enfrentar a
situação criada pela II Guerra Mundial, foram reformulados os estatutos do Banco do Brasil. A
partir dessa reformulação, ele passou a contar com cinco carteiras: (1) a Carteira de Câmbio; (2) a
Carteira de Crédito Geral (CREGE); (3) a Carteira de Exportação e Importação (CEXIM), (4) a
Carteira de Crédito Agrícola e Industrial (CREAI), e (5) a Carteira de Redesconto (CARED). Além
disso, em 1994 foram ampliadas as funções da caixa de Mobilidade Bancária.
Nesse mesmo contexto foi feita a segunda reforma do Regulamento da CREAI em 1942.
Essa reforma alongou os prazos dos empréstimos, elevou o limite dos empréstimos, elevou o limite
dos empréstimos em relação às garantias, aumentou as possibilidades de financiamento para
máquinas agrícolas, aumentou os prazos dos financiamentos à pecuária, e iniciou os empréstimos
para o melhoramento das unidades produtivas. Por outro lado e numa outra direção, no início de
1945 foi criada a Superintendência da Moeda e do Crédito (SUMOC), com o objetivo de
regulamentar e controlar o mercado financeiro e preparar a criação de um futuro banco central, o
qual deveria absorver uma série de funções do Banco do Brasil. Ao final do Estado Novo, as
discussões no âmbito da CREAI refletiam uma diversidade de interesses econômicos setoriais entre
vários ramos produtivos que disputavam os financiamentos públicos. Além disso, havia um forte
conflito no interior do Banco do Brasil entre duas visões sobre a sua natureza: uma, que privilegiava
a atuação do Banco a partir do crédito especializado às atividades produtivas nos moldes do
concedido pela CREAI, e outra, que enfatizava a maior importância do crédito comercial, nos
moldes dos antigos bancos de descontos e depósitos, que efetuavam empréstimos a curto prazo e a
juros altos, e que constituíam organizações bancárias dissociadas das atividades produtivas. Outra
fonte de conflitos referia-se à diversidade de interesses econômicos regionais a nível da produção
agropecuária. Como exemplo, o privilegiamento da pecuária do Triângulo Mineiro não era bem
visto em outras regiões do País.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 133
2. FASES E CARACTERÍSTICAS DA ATUAÇÃO DA CARTEIRA DE CRÉDITO
AGRÍCOLA E INDUSTRIAL (CREAI), DO BANCO DO BRASIL (BB)
Analisando a evolução do valor dos empréstimos concedidos pela CREAI, entre 1938 e
1965, e levando em conta as transformações introduzidas nos seus regulamentos, nas estratégias
governamentais de desenvolvimento econômico e nas políticas agrícolas e de desenvolvimento
agropecuário, pode-se distinguir quatro fases em sua atuação: de 1938 a 1945, 1946 a 1960 (com os
subperíodos 1946/1947 e 1947-1950), 1951 a 1960 e 1961 a 1965.
2.1 O Início do Funcionamento da CREAI (1938-1945)
A primeira fase de existência da CREAI foi marcada pelo início de seu efetivo
funcionamento. Já nessa fase, o seu primeiro regulamento, aprovado em 2 de outubro de 1937, teve
duas significativas alterações, em 1939 e 1942.
Ao final de 1938, com pouco mais de dez meses de funcionamento, o número dos
empréstimos realizados pela CREAI alcançava 1.050, num valor total de 98.316 contos de réis.
Nada menos que 1.021 dessas operações foram rurais (97,2% do total), no valor de 80.424 contos
(81,8% do total), e apenas 29 industriais (2,8% do total), no valor de 17.892 contos (18,2% do
total). Naquele mesmo ano, os produtos de maior participação no valor total dos empréstimos rurais
foram: o café, com 39%; a cana-de-açúcar, com 31%; o algodão, com 9%; o arroz, com 8%; a
fruticultura, com 5%; e produtos diversos, com 8%. Relativamente às várias regiões do País1, esses
mesmos empréstimos tiveram a seguinte distribuição: Norte/ Nordeste com 39%; Centro com 54%
e Sul com 7%. A evolução por produtos até 1945 é apresentada a seguir na Tabela 1.
Por meio dela, verifica-se que a participação dos principais produtos agrícolas financiados
pela CREAI – algodão, café e cana-de-açúcar – no total de seus créditos foi aumentando ao longo
dessa fase, passando de 44,3% para 54,9%. Acrescentando-se a eles a pecuária, os totais aumentam
ainda mais – de 74,1% para 94,8%.
Na verdade, nessa primeira fase, a política de financiamento da CREAI direcionou-se com
maior vigor para apenas dois segmentos – o algodão e a pecuária. A participação conjunta de ambos
no total aumentou de 38,2% para 82,9%. Conseqüentemente, houve uma diminuição no
financiamento destinado aos produtos alimentares de mercado interno. O total destes produtos sem
a pecuária - batata, feijão, frutas, mandioca, milho, tomate, cana-de-açúcar, arroz e trigo – diminuiu
de 24,4% para apenas 6,7%. Por outro lado, cabe destacar também a forte redução do apoio da
1 A região Norte/ Nordeste, denominada Norte no Relatório do Banco, abrangia os Estados de Pernambuco, Rio Grande do Norte, Sergipe, Alagoas, Ceará, Pará e Paraíba; a região Centro compreendia o Distrito Federal e os Estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo; e a região Sul era composta dos Estados do Paraná, Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Cf. Relatório do Banco do Brasil de 1938, Rio de Janeiro, 1939, p. 37.
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CREAI ao café, o qual diminuiu de 15,7% para 5,9%, o mesmo ocorrendo com a cana-de-açúcar,
que teve uma diminuição de 11,1% para 2,8% –, e com o arroz, cuja diminuição foi de 9,1% para
3,2%.
TABELA 1 CREAI: Distribuição dos Créditos Concedidos por Produtos e Ramos, 1938/41 – 1945 (%)
Anos Produtos e Ramos 1938/41 1942 1943 1944 1945
Média 1938/41-
1945 Algodão 8,4 24,2 21,7 18,8 43,0 17,7 Arroz 9,1 6,3 8,1 6,2 3,2 7,5 Café 15,7 12,4 11,1 5,5 5,9 12,2 Cana-de-açúcar 11,1 5,4 7,1 6,5 2,8 8,3 Subtotal Algodão + Arroz + Café + Cana-de-açúcar
44,3 48,3 48,0 37,0 54,9 45,7
Batata (0,06) (0,03) (0,03) (0,06) 0,1 (0,06) Feijão (0,01) (0,007) (0,01) (0,01) (0,02) (0,01) Frutas 0,3 (0,07) (0,01) (0,008) 0,1 0,2 Mandioca 1,4 0,3 0,4 0,1 (0,08) 0,8 Milho 1,4 (0,0001) 0,2 0,2 0,4 0,8 Tomate 1,0 0,3 0,3 0,1 (0,004) 0,6 Cacau 0,3 0,5 3,3 0,2 0,1 0,7 Trigo (0,07) (0,03) (0,004) (0,0006) (0,0002) (0,04) Outros Produtos Agrícolas Financiados* 1,1 0,9 0,7 0,7 0,6 0,9
Babaçu (0,01) (0,07) 0,3 0,2 0,3 0,1 Cera de Carnaúba (0,08) 0,3 0,2 (0,07) (0,04) 0,1 Outros produtos da Indústria Vegetal** (0,02) 0,4 0,1 (0,006) (0,01) (0,07)
Adubo (0,06) - - (0,003) - (0,008) Máquinas Agrícolas - (0,02) (0,06) (0,04) 0,3 (0,05) Melhoramentos Agrícolas – Irrigação de Culturas de Arroz
- - - - (0,001) (0,0001)
Pecuária 29,8 37,8 32,4 57,1 39,9 35,8 Agropecuária 0,6 0,6 0,4 0,2 0,2 0,5 Agrícolas 48,8 51,4 53,7 38,6 57,0 49,5 Rurais 79,2 89,8 86,5 95,9 97,1 85,8 Industriais 20,8 10,2 13,5 4,1 2,9 14,2 Total em Mil Cr$ Correntes 1.767.494 1.443.427 1.746.874 3.452.576 5.253.592
Fonte: Relatório do Banco do Brasil de 1946, Rio de Janeiro, 1947, p. 77
* Acácia negra, agave, alfafa, alho, amendoim, aveia, carvão vegetal, cebola, cevada, chá, coco, erva-mate, erva-doce, ervilha, fumo, gergelim, guaxima, juta, lenha, linhaça, linho, lúpulo, mamona, menta, rami, repolho, sericultura, trigo, uva e outros produtos. Em 1938, a participação se refere a “Produtos Diversos”. ** Borracha, castanha, madeiras, oiticica, piaçava e tungue.
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Segundo o Relatório do Banco do Brasil de 1938,
“A nova modalidade de crédito, como era de prever-se, encontrou as naturais dificuldades de compreensão, adaptação e interpretação de textos legais e regulamentares, além das materiais, de organização dos serviços. Eis porque só tardiamente, quando já decorrera o período de entre-safra propriamente dito de diferentes produtos, ficou a Carteira convenientemente aparelhada para exercer suas atividades. Nessa ocasião, porém, muitos produtores, principalmente cafeicultores, já haviam empenhado suas colheitas em garantia de recursos obtidos em outras fontes. Em conseqüência, e também porque vários empréstimos solicitados não puderam ser concedidos, por não terem renunciado os credores hipotecários dos proponentes, em favor do Banco, ao seu direito de prelação – o obstáculo somente removido com o decreto-lei número 1.003, de 29/12/1938 – a assistência a alguns ramos da agricultura se deteve aquém do quantum normalmente atingível”2.
Logo no início do funcionamento da Carteira, houve a regulamentação das condições de
financiamento de algumas culturas consideradas prioritárias para a economia nacional, tanto nas
suas fases de cultura e colheita como nas de beneficiamento e escoamento. Estes produtos eram o
café, a cana-de-açúcar (açúcar de usina, de engenho e derivados), o algodão, o arroz, a fruticultura,
o feijão e o milho. E, conforme as semelhanças nos processos produtivos, também foram aplicados
alguns daqueles critérios de financiamento para o trigo, batata, tomate, mamona, entre outros, e isto
significou que, na prática, também esses produtos ficaram regulamentados. E, relativamente à
pecuária, foram ainda estabelecidas algumas condições para a concessão dos financiamentos para o
custeio da criação e a aquisição de reprodutores destinados à melhora do rebanho, bem como à
engorda e aos trabalhos rurais.
Ainda segundo o Relatório do Banco do Brasil de 1938,
“Além de prescrições ajustadas às peculiaridades de cada produto, determinou-se a orientação a seguir nas avaliações, afim de que os financiamentos, nelas baseados, correspondessem às justas necessidades, admitindo-se, como princípios gerais, a utilização dos adeantamentos contratados conforme a oportunidade de sua aplicação – sistema tão conveniente ao produtor como à produção – e a liquidação, mediante remissão, em base razoável, do produto apenhado na medida de sua colocação nos mercados, regime que, não só, facilita e suaviza o pagamento, mas também, proporciona disponibilidades ao financiamento”3.
A operação de compra e retenção dos estoques de café pelo Governo, a qual foi dinamizada
sobretudo depois da criação da CREAI, pode ser considerada um dos principais fatores explicativos
da definitiva perda de importância dos comissários, tanto no financiamento da produção cafeeira,
como na sua comercialização, armazenamento e transporte até os centros exportadores. Num
sentido mais geral, a criação da CREAI significou a perda de importância do capital comercial-
beneficiador da produção agrícola numa série de regiões do País, particularmente nas mais
desenvolvidas economicamente. Foi por causa disso que, durante o Estado Novo, o grande
comércio – representado, por exemplo, pela Associação Comercial e pelo Centro do Café do Rio de
2 Idem, p. 32/33. 3 Idem, p.34.
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Janeiro – sempre se opôs ao intervencionismo estatal na produção e comercialização do café,
defendendo o restabelecimento do livre jogo das forças do mercado como forma de enfrentar e
solucionar a crise cafeeira.
Naquele primeiro ano, os financiamentos industriais foram destinados à aquisição de
matérias-primas, ao aperfeiçoamento da aparelhagem e a obras de irrigação em estabelecimentos
agroindustriais, destacando-se os empréstimos às usinas açucareiras do Nordeste4. Cabe ressaltar
que até 31 de dezembro de 1942, de um total de mais de cento e quatro tipos de indústrias
financiadas pela Carteira, a maioria esmagadora era integrante do segmento do segmento
agroindustrial5.
Até o final do ano de 1938, além daqueles 1.050 empréstimos realizados, foram rejeitadas
841 propostas, num total de 162.265 contos. Esse elevado número de rejeições foi devido às
exigências regulamentares, e ao elevado número de solicitações.
“(...) resultado natural da atração exercida pela instituição de nova de crédito – feitas com inteiro desconhecimento dos seus objetivos e disposições regulamentares, ou visando expansões, que não podiam fazer jus ao auxílio de crédito instituído para determinados fins, reconhecidamente produtivos, e proporcionado racionalmente – com base em garantia especial, mas sempre em função da capacidade de produção – a fim de evitar o congelamento das operações, que provocaria, com a desmoralização do novo organismo, mais um insucesso do crédito agrícola”6.
O primeiro diretor da CREAI foi Antonio Luiz de Mello, que permaneceu no cargo de 1938
a 1944. Boa parte de sua vida profissional, quase toda desenvolvida no Banco do Brasil, estivera
ligada ao café, a partir de sua passagem por agências do Banco situadas em importantes regiões
cafeeiras do País. Depois de trabalhar em Ribeirão Preto, Franca e Jaú no Estado de São Paulo, e
em Três Corações e Barbacena, no Estado de Minas Gerais, presidiu o Departamento Nacional do
Café nos de 1935 e 1936. No Banco do Brasil, depois de dirigir a CREAI, foi diretor da Carteira de
Redescontos e, em 1946 chegou a ocupar interinamente a sua presidência, após a deposição de
Getúlio Vargas e a derrubada do Estado Novo em outubro daquele ano7.
4 O financiamento à indústria deixou de atingir maior expressão devido à pouca “(...) tradição efetiva da cousa apenhada, essencial no penhor mercantil”, tornando irrealizáveis muitas operações cuja garantia deveria ser de máquinas, levando o Governo a remover este obstáculo através de legislação especial. Cf. Relatório do Banco do Brasil de 1938, p. 34/35. 5 Essas industrias, em ordem alfabética, era, as seguintes: álcool e aguardente; amido; artefatos de borracha; artefatos de lã; artigos para montaria; banha; barris; bebidas; beneficiamento de algodão, de arroz, de borracha e de café; caixas para laranjas; carvão vegetal; celulose; cervejaria; charqueadas; charutos; chocolate e caramelos; cigarros; coco nucífera; cordoaria; curtumes; doces; farinha de mandioca, de milho e diversas; fiação de algodão e de seda; frigoríficos; fubá; irrigação; laticínios; leite de coco; massas alimentícias; material agrário; óleo de algodão, de babaçu, de laranja, de oiticica e de vegetais diversos; produtos bovinos; raspa de mandioca; refinaria de açúcar; sabão; serrarias; tanino; tecelagem de algodão, de lã, e de seda; tigelinhas para colheita de látex; torrefação de café e vinicultura. Cf. Relatório do Banco do Brasil de 1942, Rio de Janeiro, 1943, p. 77/9. 6 Cf. Relatório do Banco do Brasil de 1938, p. 35. 7 Antonio Luiz de Souza Mello, nascido em 1890, ingressou no Banco do Brasil por concurso em 1916, tendo sido sucessivamente contador, sub-gerente, gerente e inspetor. C. informações levantadas nos arquivos históricos sediados no Centro Cultural do banco do Brasil, Rio de Janeiro. Sua passagem pelo DNC é registrada por Israel e Alzira Alves de
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A reforma do Regulamento da CREAI, já em 1939, revela uma constante ampliação dos
seus objetivos, abrangendo um número cada vez maior de modalidades de financiamento. Essas
alterações foram aprovadas pelo Ministro da Fazenda em 24 de abril de 1939 e publicadas dois dias
depois no Diário Oficial. As mais importantes foram:
1) A abertura de linha de empréstimos para a aquisição de imóveis, ou instalação inicial de
aparelhagem industrial em caráter excepcional, quando a indústria interessar diretamente à defesa
nacional, com a aprovação do projeto pelo Estado Maior do Exército ou da Armada e pelo
Presidente da República8;
2) O estabelecimento de linhas de financiamento para o custeio da criação de gado;
3) O aumento do limite máximo dos empréstimos agrícolas e pecuários para até um terço
da estimativa da safra ou do rendimento da criação, e dos empréstimos industriais para até 40% do
valor das reformas, aperfeiçoamentos e aquisições; e
4) A ampliação dos prazos de pagamento dos empréstimos de um para dois anos casos de
aquisição de gado destinado à criação e à melhora de rebanho, bem como nos da aquisição de
animais de serviço para os trabalhos rurais.
Este último item reflete a importância que ainda tinham os animais de serviço, e, portanto, o
baixo grau de mecanização ou tratorização ou das atividades agropecuárias do País naquela época.
Entre 1920 e 1940, enquanto o número de arados de aiveca (utilizados principalmente na tração
animal) aumento de 141.196 para 408.101 unidades (multiplicando-se por 2,89), o de tratores teve
um ritmo de crescimento bastante inferior, crescendo de 1.706 para 3.380 unidades (multiplicando-
se por 1,98)9.
Um estudo da época, ao analisar o baixo grau de mecanização agrícola do País apontava
para o predomínio dos velhos processos produtivos manuais, exceto em alguns casos isolados da
produção de café, da cana-de-açúcar e do algodão cultivado em São Paulo10 e registrava duas
iniciativas do Ministério da Agricultura para modificar essa situação: a primeira da Gestão de
Odilon Braga e a segunda na de Fernando Costa: (a) um curso para aradores e tratoristas, realizado
em Santa Cruz, no antigo Distrito Federal, e que deixou de se estender a outras regiões do País
Abreu (Coords.), Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro, 1930-1983, (forense Universitária, FINEP, Rio de Janeiro, 1984), vol. III, p. 2179. 8 Neste sentido, cabe destacar a instalação de uma grande usina de alumínio, em Ouro Preto, e a abertura, em fevereiro de 1941, de um crédito de 60 mil contos para a compra e a instalação da aparelhagem destinada à produção de celulose em grande escala, no Estado do Paraná. Cf. Relatório do Banco do Brasil de 1941, Rio de Janeiro, 1942, p. 67. 9 Cf. IBGE, Estatísticas Históricas do Brasil, Séries Estatísticas Retrospectivas, vol. 3, Séries Econômicas, Demográficas e Sociais 1550 a 1985, Rio de Janeiro, 1987, p. 282. 10 A essas culturas, eu acrescentaria as lavouras de arroz irrigado e de trigo do Rio Grande do Sul.
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devido à escassez de recursos, e (b) um concurso oficial entre os fabricantes de aparelhos e
máquinas agrícolas, para a determinação dos produtos mais adequados às condições nacionais11.
Durante a gestão de Souza Mello também houve o fortalecimento dos cooperativas
agrícolas, com as cédulas rurais passando a ser recebidas em penhor mercantil. Este fato foi
registrado da seguinte forma pelo Relatório de 1939:
“As organizações cooperativas – que o Governo vem incentivando como meio de racionalizar as atividades do pequeno produtor – foram prestigiadas e também orientadas sobre como deveriam exercer sua atuação para ajustá-la às normas de operar da Carteira”12.
Pelo Decreto-lei número 2.611, de 20 de setembro de 1940, a Carteira passou a ter novas
fontes de recursos e os juros dos novos financiamentos rurais limitados em 7% a. a. (os
financiamentos anteriormente concedidos também tiveram os juros reduzidos de 9 para 7% a. a.), e
pelo Decreto número 2.612, do mesmo ano, foram disciplinadas as custas dos contratos de
financiamento, com a isenção de selos nas operações com terceiros que envolvessem instrumentos
de depósitos de depósitos relacionados aos produtos gravados de penhor rural13.
Por outro lado, relativamente ao arroz, cabe destacar o seguinte: (1) devido às chuvas
torrenciais e enchentes no Rio Grande do Sul, que acarretaram a perda da maior parte da colheita de
arroz, foi expedido o Decreto-lei número 3.379, de primeiro de julho de 1941, que regulou o
financiamento das safras de 1941/42 e de 1943/44, e possibilitou a liquidação parcelada das dívidas
da safra frustrada de 1940/41, efetuada de acordo com o Decreto número 98, de 21 de julho de
1941, mediante o recolhimento de uma taxa por saco de arroz produzido nas lavouras dos
devedores; (2) um empréstimo de 30 milhões de cruzeiros para o Instituto Rio Grandense do Arroz
(IRGA), em 1942, para o financiamento da compra do arroz em casca; e (3) a organização pelo
IRGA e pela CREAI de “colônias”, agrupando diversos rizicultores que ficaram em situação muito
precária devido às cheias, sob uma forma semi-cooperativista14.
Cabe salientar ainda a preocupação da Carteira com o aperfeiçoamento da técnica do crédito
agrícola. Segundo o Relatório do Banco do Brasil de 1941,
“A observação do curso dos financiamentos, para custeio de entre-safras, aconselhou subordinar a utilização dos créditos a regime de retiradas mensais, correspondentes aos impostos, salários e despesas com os serviços efetivamente executados, bem como disciplinar o exercício da
11 “Mechanização da Agricultura”. O Observador Econômico e Financeiro, XXV, p. 67-71. 12 Cf. Relatório do Banco do Brasil de 1938, Rio de Janeiro, 1939, p. 35. Havia uma diretriz governamental de apoiar os pequenos produtores agrícolas através de suas cooperativas, que estava inscrita tanto na Lei número 454, de 9/7/1937, como no Regulamento da Carteira, havendo para a consecução deste objetivo uma colaboração permanente entre o Serviço de Economia Rural do Ministério da Agricultura e a Carteira. Ainda com relação às cooperativas, dizia o Relatório de 1940: “A muitas delas, também, têm sido facultados recursos para a compra e instalação de aparelhagem destinada ao beneficiamento da produção dos associados, o que permite eliminar os intermediários, e vem concorrendo para convencer os produtores das reais vantagens do cooperativismo”. Cf. Relatório do Banco do Brasil de 1940, Rio de Janeiro, 1941, p. 68. 13 Cf. Relatório do Banco do Brasil de 1941, Rio de Janeiro, 1942, p. 54/5; Idem, 1942, p. 67/8; e Idem, 1943, p. 45. 14 Cf. Relatório do Banco do Brasil de 1941, Rio de Janeiro, 1942, p.56; Idem, 1942, p. 71/72; Idem, 1943, p. 48; e Idem, 1944, p. 44.
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fiscalização. Tal medida veio permitir eficiente controle da aplicação dos adiantamentos e acompanhar a evolução dos trabalhos financiados. Verificou-se, em conseqüência, maior aperfeiçoamento da técnica do crédito agrícola (...)”15.
Numa conferência proferida em 1942, Souza Mello referiu-se ao novo regulamento da
CREAI, enfatizando as seguintes alterações relacionadas ao crédito agrícola:
(1) a adoção de prazos maiores para os empréstimos, com a elevação do seu limite até o
máximo de 60% do valor das garantias oferecidas;
(2) a ampliação para dois anos dos prazos de custeio de entre-safra dos empréstimos
concedidos sob a garantia de penhor agrícola, que passaram a considerar o ciclo completo
de produção e um maior número de produtos – esse aumento do prazo de reembolso
possibilitou a incorporação ao sistema creditício de importantes culturas cuja formação e
maturação levam mais de um ano, como é o caso da cana-de-açúcar;
(3) a ampliação do prazo de financiamento para a aquisição de máquinas agrícolas e de
animais de serviço destinados aos trabalhos rurais;
(4) o aumento do prazo de financiamento destinado à compra de reprodutores de gado
destinados à criação e melhora de rebanho (para três anos, podendo ser prorrogado em
determinados casos) com efeitos positivos sobre a pecuária bovina, eqüina, asinina, ovina,
caprina e suína, bem como no desenvolvimento dos ramos industriais de laticínios e de
carnes; e
(5) a disponibilidade de recursos para financiar melhoramentos nas condições das explorações
agrícolas e pecuárias, para a concessão de empréstimos aos produtores rurais,
individualmente ou em cooperativas e interessados na industrialização de produtos
agrícolas ou pecuários, no limite máximo de 60% do valor das garantias oferecidas16.
A reforma de 1942 do Regulamento da Carteira também deve ser vinculada às medidas
econômicas e outras iniciativas do Governo adotadas em função da entrada do País na II Guerra
Mundial, com destaque para: (a) a criação da nova unidade monetária, o “cruzeiro”; (b) o
lançamento de “Obrigações de Guerra”, no valor de três bilhões de cruzeiros; (c) a emissão de
“Letras do Tesouro”, até o limite de um bilhão de cruzeiros; (d) a partir de abril daquele ano, as
restrições ao consumo de gasolina e óleo mineral; (e) o racionamento e o tabelamento de
determinados produtos básicos de subsistência; (f) a intensificação da produção alcooleira. Através
da revogação de antigas restrições à expansão da produção canavieira, e o controle quase total do
15 Cf. Relatório do Banco do Brasil de 1941, Rio de Janeiro, 1942, p. 51/52. 16 Cf. MELLO, A. L. de S., Conferência Pronunciada na Associação Comercial de Minas, Belo Horizonte, 17 de outubro de 1942. Fonte: Arquivo do Banco do Brasil, Centro Cultural do Banco do Brasil, trabalho impresso no Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 1942.
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Governo sobre o carvão – tinha a garantia de preferência de 75% de sua produção; (g) o Decreto-lei
número 4.792, de 5 de outubro de 1942, pelo qual as reservas metálicas passaram, também, a
constituir lastro de garantia da circulação monetária; e (h) os acordos celebrados em Washington,
que garantiram a venda de produtos, particularmente agrícolas, de grande significado para a balança
comercial, como o café, o cacau, os óleos e as fibras, entre outros, e forneceram recursos para o
financiamento da produção de borracha no País (no montante de cinco milhões de dólares, pela
Rubber Reserve Company)17.
O Relatório do Banco de 1942, ao comentar os efeitos negativos da Guerra sobre as
exportações de cacau, sem desconsiderar a melhora nos negócios cacaueiros que houvera com o
acordo de compra realizado pelos Estados Unidos (da ordem de um milhão e trezentos mil sacas),
enfatizava a importância da concessão de créditos para a instalação de novas fábricas processadoras
de cacau (basicamente preparadoras da massa do cacau e extratoras da manteiga das amêndoas) e/
ou a ampliação e aperfeiçoamento das existentes. Além disso, preconizava as seguintes medidas: (1)
o financiamento dos investimentos aos cacauicultores e às cooperativas de produção, com o
objetivo de melhorar as condições de rendimento das explorações agrícolas (construção de estufas e
depósitos nas fazendas); e (2) adiantamento ao Instituto do Cacau e a cooperativas, no tocante aos
contratos de empréstimos para custeio. Neste mesmo sentido, foi também significativo o Decreto-lei
número 5.513, de 24 de maio de 1943, determinando que o Estado da Bahia contratasse com a
Carteira, através do Instituto do Cacau, operações de crédito até o máximo de 50 milhões de
cruzeiros, para melhorar as condições de comercialização do cacau (através de ações relacionadas a
armazéns, fábricas e aparelhamentos em geral), e para o financiamento da manteiga e da torta de
cacau, mediante o adiantamento aos produtores sobre o cacau que vendessem ou entregasse ao
Instituto18. Em função disto, no ano de 1943, os créditos da CREAI para o cacau atingiram a sua
maior participação em todo o período estudado, chegando a 3,3% do total.
Com relação à borracha, cabe destacar a criação pelo Governo Federal, através do Decreto-
lei número 4.451, de 9 de julho de 1942, do Banco de Crédito da Borracha, o qual no início
funcionava através da Carteira, que destinava financiamentos a produtores e outras pessoas e firmas
interessadas na produção de borracha na Amazônia. Posteriormente, o referido Banco concordou
que a Carteira financiasse a produção de borracha em outras regiões do País, com a garantia ou por
conta da Rubber Reserve Company19. É provável que a elevada participação do segmento “Outros
Produtos da Indústria Vegetal” no total da CREAI comparativamente a todo o período – 0,4% e
0,1% em 1942 e 1943 respectivamente – esteja associada à mencionada preocupação 17 Cf. Relatório do Banco do Brasil de 1942, Rio de Janeiro, 1943, p. 15-31. 18 Cf. Relatório do Banco do Brasil de 1942, Rio de Janeiro, 1943, p. 72/3; e Idem, p. 48/49. 19 Cf. Relatório do Banco do Brasil de 1942, Rio de Janeiro, 1943, p. 73/4. Com relação às origens do referido banco, veja-se o trabalho de N. P. Alves Pinto, Política da Borracha no Brasil – A Falência da Borracha Vegetal, Editora Hucitec, São Paulo, 1982.
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governamental, durante os anos iniciais da Segunda Guerra Mundial, com a reativação da economia
da borracha na Amazônia.
Ainda nessa mesma direção, os relatórios do Banco também comentavam as dificuldades
enfrentadas pela produção de laranja, ocasionadas pela Guerra, com a perda dos mercados europeus
e o agravamento das dificuldades de transporte para os mercados do Uruguai e da Argentina. E
ainda mencionava a piora dos transportes rurais pela falta de combustível, as dificuldades de
distribuição do produto nos principais centros de consumo do País, como fatores explicativos
adicionais para a queda de seus preços. Acrescentavam que, embora a instalação de indústrias
processadoras e compradoras de laranja tivesse melhorado as condições dos produtores, a questão
fundamental residia na remoção das barreiras à ampliação das vendas para o exterior. A persistência
da crise da citricultura levou o Governo a criar, pelo Decreto-lei número 5.032, de 4 de dezembro
de 1942, posteriormente refundido no de número 5.532, de 28 de maio de 1943, a Comissão
Executiva das Frutas, para a qual foi ajustado um empréstimo de 50 milhões de cruzeiros com a
Carteira, destinado a financiar ações para a defesa e a organização racional de frutas cítricas20.
Sobre este aspecto, cabe destacar, no entanto, que a CREAI não foicapaz de reverter a crise
pela qual passava a produção citrícola, expressa na forte queda de sua participação no total do valor
da produção agropecuária, que diminui de 4,2% para 1,9% entre 1930-1937 e 1938-1945. Com
efeito, entre 1938/ 41 e 1945, a participação dos créditos da CREAI para frutas, dentre as quais as
mais importantes eram laranja e banana, caíram de 0,3% no quadriênio inicial, para 0,1% em 1945,
atingindo os reduzidíssimos níveis de 0,007% em 1942, 0,01% em 1943, e 0,008% em 1944.
Por sua vez, a queda dos preços do algodão a partir da safra 1940/ 41 também ensejou uma
intervenção da CREAI, conforme análise de periódico especializado e de vários relatórios do
Banco21. O apoio da CREAI ao algodão foi de tal ordem que ele se tornou o principal produto
financiado nesta fase inicial, tendo atingido em 1945 a participação máxima anual do conjunto dos
produtos agrícolas em todo o período estudado, de 43%.
É importante destacar que, nessa ampliação do âmbito de atuação da CREAI, as hipotecas
passaram a acrescentar uma garantia especial às operações de financiamento destinadas ao
melhoramento das condições de exploração econômica das unidades produtivas agrícolas e
20 Cf. Relatório do Banco do Brasil de 1942, Rio de Janeiro, 1943, p. 75/6; e Idem, 1943, p. 49/50. 21 Procurando enfrentar as baixas cotações atingidas pelo algodão, “(...) em princípios de 1944, dirigia-se a União dos Lavradores de Algodão ao Governo Federal, fazendo sentir a necessidade imperiosa de se dar ao produto amparo financeiro mais eficiente. E, como nos anos anteriores, somente o financiamento do produto através do Banco do Brasil, seria capaz de assegurar-lhe cotações acima das que os especuladores desejassem. Proporcionando-se ao lavrador recursos para solver seus compromissos assumidos para produzir o algodão, permite-se-lhe, por outro lado, aguardar melhores dias, para dispor da sua mercadoria. Dos próprios entendimentos anteriormente havidos com os responsáveis pela nossa política algodoeira, surgiu o financiamento como único elemento capaz de impedir que os manipuladores da baixa atirassem o produto a um nível de preços incompatíveis até mesmo com o interesse nacional”. Cf. GUIMARÃES, A. Prado, “O Financiamento do Algodão”, O Observador Econômico e Financeiro, CXXIV, 1946. Veja-se ainda a respeito os relatórios do Banco do Brasil de 1941, p. 55/6; de 1942, p. 68/71; de 1943, p. 46/7; e de 1944, p. 43/4.
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pecuárias. E, finalmente, outro dado que demonstra o aumento do grau de abrangência e de
diversificação das atividades da CREAI refere-se à ampliação de sua estrutura administrativa.
Enquanto o Regulamento de 1939 havia criado apenas mais uma gerência, o de 1942 acrescentou
mais três subgerências ao organograma da CREAI. Um documento interno posterior da Carteira
sintetiza muito bem as mudanças que acabam de ser descritas:
“O primeiro Regulamento da Carteira de Crédito Agrícola e Industrial entrou em vigor a 27 de novembro de 1937, data de sua publicação no Diário Oficial. Em abril de 1939 teve lugar sua primeira reforma, objetivando principalmente: a) fixar o limite máximo dos empréstimos em 1/3 da estimativa da safra ou do rendimento da criação, para os agrícolas e pecuários, e em 40% do valor das reformas, aperfeiçoamentos ou aquisições, para os industriais; b) possibilitar o financiamento da instalação inicial de indústrias, quando indispensável à defesa nacional se autorizada pelo Presidente da República; c) e instituir os empréstimos em letras hipotecárias. Em maio de 1942 fez-se a segunda reforma e, além de outras melhoras (ampliação de prazos, etc.), elevou-se o limite máximo dos empréstimos em geral a 60% do valor das garantias – segundo Relatório do Banco do Brasil”22.
No período de 1938 a 1945 foi notável a crescente participação dos recursos da CREAI no
total dos financiamentos concedidos às atividades econômicas pelo Banco do Brasil – aumentou de
5,1% em 1938, para 16,1% em 1939; para 25,7% em 1940; para 34,4% em 1941; para 46,0% em
1942; para 51,0% em 1943; para 57,1% em 1944 e para 62,2% em 1945. desse modo, em apenas
sete anos, a importância relativa da CREAI no Banco aumentou mais de doze vezes. Por sua vez, a
participação dos setores agrícola e industrial no total dos empréstimos concedidos pelo Banco do
Brasil às atividades produtivas, nesse mesmo período, cresceu de 38,2% para 74,2%23. Devido a
isso, entre 1938 e 1945, o ritmo de crescimento dos empréstimos destinados às atividades
econômicas foi bastante superior aos dos direcionados ao Tesouro Nacional, às Outras Entidades
Públicas e aos Bancos – os seus índices (1939 = 100) cresceram de 72,6 para 716,7, de 102,3 para
475,6, de 104,3 para 171,5 e de 101,8 para 169,9 respectivamente24.
Contudo, como foi visto anteriormente, a distribuição por carteiras no total dos empréstimos
a entidades públicas, bancos, à produção (agricultura e indústria), ao comércio e a particulares entre
1938 e 1945, revelava o amplo predomínio da Carteira de Crédito Geral (CREGE), com a sua
participação média atingindo 85,5%, e a da Carteira de Crédito Agrícola e Industrial (CREAI)
sendo de 14,5%. No entanto, não levando em conta as entidades públicas, a importância relativa da
CREAI aumentava bastante, atingindo 34,7%, contra 65,3% da CREGE. (Cf. Tabela 2)
A partir da entrada em vigor do Regulamento de 1942, a CREAI passou a conceder um
nítido favorecimento à pecuária, particularmente à pecuária zebuína de origem indiana que se
22 Cf. SILVA, J. L. da, “Relatório do Diretor da CREAI José Loureiro da Silva”, Rio de Janeiro, 26 de junho de 1945, Documentos para a História do Banco do Brasil, Período Contemporâneo 1930-1945 (Da Ascensão à Queda de Getúlio Vargas), Carteira de Crédito Agrícola e Industrial, Expansão dos financiamentos à pecuária, 23 p. 23 Cf. MALAN, P. S. et al., Política Econômica Externa Industrialização no Brasil (1939/52), IPEA/ INPES, Rio de Janeiro, 1977, p. 244. 24 Idem, p. 486.
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concentrava no Triângulo Mineiro. Os financiamentos a essa atividade foram se avolumado e
acabaram assumindo características bastante irregulares, gerando um intenso debate na imprensa
especializada. Esse debate permitiu que aflorassem uma série de importantes questões, como: o
privilegiamento da política de crédito rural a esse ramo da pecuária; o favorecimento a certos ramos
da produção agropecuária (produção algodoeira) e a determinados beneficiários do crédito rural em
alguns ramos produtivos; e o favorecimento de determinadas regiões do País25.
TABELA 2
Banco do Brasil: Empréstimos por Carteiras a Entidades Públicas, a Bancos, à Produção (Agrícola e Industrial), ao Comércio e a Particulares, 1938-1945 (Saldos Médios em Milhões de Cruzeiros)
CREAI
Carteira de Crédito
Agrícola e Industrial
CREGE
Carteira de Crédito Geral
Anos Valores
Correntes (%)
Valores
Correntes (%)
1938
1939
1940
1941
1942
1943
1944
1945
Médias
1938-1945
24
124
326
608
1.074
1.416
2.476
4.823
-
3,2
12,1
22,4
12,1
13,7
11,5
14,5
26,2
14,5
735
904
1.130
4.427
6.782
10.859
14.649
13.570
-
96,8
87,9
77,6
87,9
86,3
88,5
85,5
73,8
85,5
Fonte: Relatório do Banco do Brasil, vários anos. A partir de 1941, a Carteira de Crédito Geral (CREGE) incluiu empréstimos do Tesouro Nacional destinados a operações de câmbio.
Em termos setoriais pode-se observar o grau extremamente diferenciado do apoio
25 No algodão, os maiores beneficiários eram os comerciantes-processadores do algodão em pluma e não os cotonicultores e na pecuária zebuína, parcela considerável dos recursos foi destinada a empresas e pessoas sem a mínima experiência neste tipo de atividade. A discussão desta questão está registrada em vários documentos, tais como: A Crise Pecuária e o Novo reajustamento, sem data e autoria desconhecida; Considerações Relativas ao Projeto de Moratória à Pecuária, em Andamento no Congresso Nacional, Sindicato dos Bancos de Minas Gerais, julho de 1949; Telegrama enviado ao Presidente da República Eurico Gaspar Dutra pelo Sindicato dos Bancos no Rio Grande do Sul, assinado por Jorge Bento (presidente) e Pedro Schmitt (secretário), Porto Alegre, 18 de junho de 1949; Telegrama Enviado ao Presidente da República Eurico Gaspar Dutra pela Federação das Associações Comerciais do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 17 de junho de 1949; Carta do Pecuarista Joaquim Nunes de Assumção ao Diretor da CREAI, Prata, Minas Gerais, 2 de dezembro de 1948; Abaixo-Assinado de Pecuaristas à Câmara Federal, Itumbiara, Goiás, 15 de março de 1947; Trechos do Despacho do Diretor da CREAI ao Parecer Número 379, de 31/01/1939; “O Decreto-Lei Núm. 4.709 e a Pecuária do Brasil Central (Exposição que faz a Comissão dos Pecuaristas do Centro Pastoril do País), Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 02/10/1942.
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governamental à produção agropecuária do País. O produto relativamente mais financiado era o
açúcar na base de 5,5 contos de réis por tonelada, vindo a seguir o arroz com um conto de réis por
tonelada, o feijão com 800 mil-réis por tonelada, a batata com 500 mil-réis por tonelada, o milho
com 350 mil-réis por tonelada, e o trigo com apenas 72 mil-réis por tonelada26.
Em setembro de 1944, o cargo de diretor de CREAI passou para José Loureiro da Silva, que
nele se manteve até o final do Estado Novo, após a deposição de Getúlio Vargas, em outubro de
1945. Ao contrário de seu antecessor, Loureiro da Silva não era funcionário do Banco do Brasil.
Havia ocupado vários cargos públicos de destaque no Rio Grande do Sul antes de assumir a
Carteira, tendo atuado na área judiciária estadual, como promotor; na polícia estadual, como
delegado em Porto Alegre; e no executivo municipal, como interventor na prefeitura de Porto
Alegre, do início do Estado Novo até 1943. Entre sua saída da interventoria de Porto Alegre, em
1943, e o início de sua gestão na CREAI em 1944, foi fazendeiro e rizicultor em Tapes, município
pertencente a uma das regiões rizícolas mais importantes do Rio Grande do Sul. Tratava-se,
portanto, de uma pessoa com vivência prática na agricultura27.
Essa primeira gestão de Loureiro da Silva (a outra se daria no Segundo Governo Vargas, no
início da década de 1950), foi marcada pelo impacto da reforma do Regulamento da CREAI em
1942, a qual, como já mencionado, ampliou consideravelmente suas possibilidades de
financiamento, pela alteração da legislação pignoratícia em vigor (Lei número 492 de 1937 e outras
que a completavam), e por intensos debates no âmbito da diretoria do Banco do Brasil.
Tais debates geraram modificações nas características do financiamento destinado à pecuária
zebuína do Triângulo Mineiro, o qual havia se tornado desproporcionalmente elevado devido a um
aceleradíssimo crescimento que se dera de forma bastante irregular. Como já foi visto, de 1938 a
1944, a participação da pecuária no total do financiamento da Carteira aumentou de 5,1% para
57,1% (o número dos empréstimos aumentou de 103 em 1938 para 17.167 em 1945). Desde o início 26 Cf. “A Campanha do Trigo”, O Observador Econômico e Financeiro, XXX, p. 61-66. 27 José Loureiro da Silva, nascido em 1902, foi também prefeito de Garibaldi em 1929, de Taquara em 1930, e de Gravataí, em 1932. Em 1935 elegeu-se deputado estadual constituinte. A sua gestão na prefeitura de Porto Alegre foi marcada por obras de saneamento e modernização da cidade. Cf. “Novo Diretor do Banco do Brasil”, Publicação da Associação Atlética do Banco do Brasil (AABB), s/d, Arquivo do Banco do Brasil, Centro Cultural do Banco do Brasil, RJ; e também SILVA, J. L. da, “Crédito Especializado, Amparo à Produção, Educação Rural”, trabalho impresso no Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 1944, p. 16-19. O significado da CREAI como agência de financiamento às atividades produtivas pode ser avaliado pela importância que tiveram na vida nacional alguns dos seus diretores, inclusive José Loureiro da Silva. Numa homenagem que lhe foi prestada na década de 50, faziam parte da Mesa as seguintes personalidades: Lourival Fontes como representante do Presidente da República Getúlio Vargas; o Ministro da Agricultura Apolônio Sales; o Ministro da Fazenda Oswaldo Aranha; o Ministro da Justiça Tancredo Neves; o Ministro da Aeronáutica Nero Moura; e o Ministro da Saúde M. Pinotti. Também estiveram presentes governadores e representantes dos Estados do Amazonas, Pará, Maranhão, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Alagoas, Espírito Santo, Santa Catarina e Rio Grande do Sul bem como dos territórios federais do Amapá e de Guaporé, além do presidente do Banco do Brasil Marcos de Souza Dantas. A idéia dessa homenagem partira das classes empresariais e de seus representantes classistas. Após a sua morte, Loureiro da Silva foi também homenageado pelo Congresso Nacional em 1964. Cf. Diário do Congresso Nacional, Seção I, sexta-feira, 05/06/1964, num. 3.881. Fonte: Arquivo do Banco do Brasil, Centro Cultural do Banco do Brasil, Rio de Janeiro, RJ.
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de sua gestão, em 1944, Loureiro da Silva adotou uma postura fortemente crítica em relação à
política de crédito destinada à pecuária zebuína. Essa postura é registrada pela obra semi-oficial que
analisa a história do Banco do Brasil de 1808 até 1951, ao referir-se à sua exposição para a diretoria
do Banco, em 19 de junho de 1945, baseada nos seguintes termos:
“(...) Primeiro – o crédito à pecuária, da maneira como se processava, estava fundamentalmente errado; Segundo – o Banco do Brasil abria mão de preliminares princípios de garantia às suas operações; Terceiro – o Banco não fomentara a produção ganadeira nacional, criando riquezas, mas, ao contrário, vinha empobrecendo uma imensa região do país, com a circulação de moeda destinada a um só produto; Quarto – o crédito especializado deixou de exercer, na referida região, a sua função disciplinadora e social, estabelecendo níveis de custo de vida jamais atingidos em quaisquer outras partes; Quinto – a produção agrícola foi abandonada e o valor da terra atingira preços exorbitantes; Sexto – o financiamento do Banco do Brasil, na pecuária, propiciara o negocismo, a especulação, a aventura e a pirataria, com a intervenção de elementos de todas as procedências e profissões, inclusive a de homens de Estado, banqueiros, profissionais liberais, etc., numa corrida para a fortuna fácil; Sétimo – o Banco do Brasil estimulara a criação de valores artificiais que estavam enriquecendo os mais ricos, deixando aqueles que exerciam legitimamente a profissão rural; Oitavo – nesse sentido,estava desorganizando uma classe tradicional, dando oportunidade a todos os arrivistas; Nono – o Banco do Brasil, ao invés de distribuir eqüitativamente, em todo o país, o seu crédito pecuário, empregara só na região em apreço cerca de 2 bilhões de cruzeiros, num total de 2 bilhões e 300 mil, isto é, um quarto da receita nacional”28.
A mesma obra também registra a reação a estas críticas pelo ex-diretor da carteira Souza
Mello:
“(...) procurou o Diretor Souza Melo demonstrar que não houvera desleixo no tocante às garantias exigidas para as operações. (...) O Diretor Loureiro manteve estes limites máximos de valores e até aumentou o prazo dos empréstimos de mais um ano (...) Não se podia dizer que esse crédito estava “fundamentalmente errado” (...) Até mesmo a última resolução da Diretoria em coisa alguma modificara os fundamentos básicos adotados para o crédito pecuário (...) No caso do Triângulo Mineiro, a predominância da pecuária sobre a agricultura resultou antes de que ali pequenas manchas de terra eram prestáveis para a agricultura (...) Se houve abandono da produção agrícola, isso não resultava do crédito especializado, não cabendo culpa à Carteira. (...) A assistência financeira à pecuária importava em pouco mais de 1.970 milhões de cruzeiros a 30 de novembro de 1944 e chegou a Cr$ 2.479.571.856,30 em abril de 1945. Nas mesmas datas, essas operações realizadas no Estado de Minas Gerais, importaram, respectivamente, em Cr$ 853.754.134,40 e em Cr$ 727.427.620,70. Idênticas operações foram feitas por todo o território nacional. (...) Alguns casos de gerentes que se excederam em liberalidades ou interpretaram erroneamente as instruções da Sede não aprovavam a inconveniência do critério em apreço, mas apenas a urgente necessidade de serem assessorados por perto por inspetores especializados. (...) Admitiu que ocorreram irregularidades e senões, mas objetou que seria absurdo pretender realizar, em uma tarefa de tal magnitude, como a do crédito especializado, uma obra perfeita no primeiro ato (...)”29.
As posições divergentes que eram defendidas pelo então diretor da CREAI e por sue
antecessor parecem refletir uma diversidade de interesses econômicos setoriais entre vários ramos
produtivos que disputavam os financiamentos públicos: a indústria em contraposição ao setor
28 Cf. PACHECO, C., História do Banco do Brasil (História Financeira do Brasil Desde 1808 Até 1951), vol. V, 1979, p. 74/75. 29 Idem, p. 76-78.
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agropecuário; a agricultura contra a pecuária; e disputas entre os distintos ramos da agricultura. Por
trás delas também estavam as contradições entre o financiamento ao setor público e o financiamento
às atividades privadas, bem como as discussões da missão prioritária que deveria caber ao Banco do
Brasil: a de banco financiador da produção ou de agente controlador da liquidez. Devido à ausência
na época de um Banco Central no País, cabia ao Banco do Brasil um papel fundamental no combate
à inflação, então crescente devido à situação internacional causada pela Guerra.
Outra fonte de conflitos que surgiu com nitidez nessa discussão entre Loureiro da Silva e
Souza Mello, refere-se à diversidade de interesses econômicos regionais a nível da produção
agropecuária30. O privilegiamento da pecuária do Triângulo Mineiro não era bem visto em outras
regiões do País. Nu discurso pronunciado em Porto Alegre31, Loureiro da Silva apresentou algumas
sugestões com vistas à modificação do Regulamento de 1942, tais como: (1) a adoção da cédula
pignoratícia em caráter compulsório, transformando-a num verdadeiro “warrant” rural – ou seja,
num título de crédito negociável, inicialmente na própria Carteira; e (2) o acompanhamento de
todas as aplicações dos empréstimos pelos fiscais da Carteira, estimulando
“(...) o produtor a organizar uma contabilidade baseada em elementos financeiros positivos, que lhe Dara a noção dos seus gastos e dos resultados obtidos. Doutra parte, a assistência periódica dos fiscais removerá obstáculos supervenientes, ajudando a dirimi-los com a suplementação de verbas e auxílio efetivo das Agências do Banco”.
No mesmo discurso, Loureiro da Silva apresentou uma série de considerações relativas a
questões locais da agropecuária gaúcha, cujo teor ajuda a compreender a visão que tinha sobre a
missão da CREAI. Entre elas merecem ser destacadas as que se referem:
( I ) aos pequenos produtores, em relação aos quais “Já se adotou até a dispensa das avaliações e
certidões negativas para as operações não superiores a dez mil cruzeiros”. Loureiro da Silva
expressou o desejo de melhor apoiá-los, tanto através do auxílio da Carteira às 210 cooperativas de
produção e consumo existentes no RS, e às de crédito conhecidas como “Caixas de Raiffeisen” e
“Bancos Luzzatti”, como por meio da ajuda do Estado à criação de novas cooperativas. Esta última
contraria com a assistência da Secretaria de Agricultura e da fiscalização do Banco do Brasil –
refere-se a projeto do Ministério da Agricultura relativo às Caixas de Crédito Cooperativista, que
acabara de ser apresentado para sanção do Presidente da República; e ( II ) à sua preocupação com a
pecuária, especificamente com a criação de gado, buscando encontrar
30 Entre 1938 e 1941, a evolução da distribuição média do valor dos empréstimos rurais por regiões foi a seguinte: a do Sul (São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul) foi de 58,3%; a do Leste Meridional (Minas Gerais, Espírito Santo, Rio de Janeiro e Distrito Federal) foi de 7%; a do Leste Setentrional (Sergipe e Bahia) foi de 13,5%; a do Nordeste Ocidental (Maranhão e Piauí) foi praticamente nula; a do Nordeste Oriental (Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e Alagoas) foi de 22%; a do Centro-Oeste (Goiás e Mato Grosso) foi de 3,7% e a do Norte (Amazonas e Pará) também foi praticamente nula. 31 – Cf. SILVA, J. L da, “Crédito Especializado, Amparo Financeiro à Produção, Educação Rural”, trabalho impresso no Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 1944, 25 p. Cf. Discurso de agradecimento no banquete que lhe foi oferecido por diversas associações e entidades, em 3/11/1944, no Palácio do Comércio, em Porto Alegre.
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“(...) uma maneira suave de financiamento para o gado de cria, com o fito de se repovoarem os campos, dando-se mais tempo e mais eqüitativos ensejos aos criadores. Assim, o prazo de financiamento seria dilatado para cinco anos, começando o pagamento a partir do segundo ano, em progressão crescente de 10, 20, 30 e 40%. Outro aspecto da questão, que merecerá meu estudo, é o do povoamento com garantia da terra, por parte dos que a possuem”;
e ( III ) à redução do custo de produção agrícola do arroz irrigado, a fim de aumentar o seu grau de
competitividade no mercado internacional, através da construção de barragens e açudes pelo IRGA
(Instituto Rio-Grandense do Arroz, autarquia estadual), com a finalidade de reduzir as dispendiosas
operações de recalque e levante realizadas através de máquinas que imobilizam um elevado
investimento32.
E, concluindo sua exposição, ressaltava que:
“O caminho da Carteira Agrícola está traçado, tendo o meu ilustre antecessor, sr. Antonio Luiz de Souza Mello, desbravado as rotas árduas e agrestes. Cabe-me agora ampliá-lo, adaptando às contingências do momento que atravessamos, por intermédio de uma legislação refundida pelo estudo acurado dos técnicos especializados em crédito rural, de modo a se imprimir mais mobilidade, mais elasticidade, mais plasticidade aos negócios, no sentido de propiciar crédito barato e fácil aos pequenos e grandes produtores”.
É importante registrar que desde a criação da CREAI até 31 de julho de 1945, o Banco do
Brasil havia aumentado de oitenta para mais de duzentas o total de suas agências espalhadas pelo
País. Essa criação de várias dezenas de novas agências pode ser diretamente atribuída à expansão
dos financiamentos da CREAI, num ritmo bastante superior ao da Carteira de Crédito Geral
(CREGE), de crescimento reduzido33.
Ao final desta primeira e relativamente curta gestão de Loureiro da Silva, tornou-se bastante
nítido um forte conflito no interior do Banco do Brasil entre duas visões: a que privilegiava o
crédito especializado às atividades produtivas nos moldes do concedido pela CREAI, e a que
enfatizava o crédito comercial, nos moldes dos antigos bancos de descontos e depósitos, que
basicamente efetuavam empréstimos a curto prazo e a juros altos, constituindo-se em organizações
bancárias totalmente desvinculadas das atividades econômicas propriamente produtivas.
32 A adoção dessa medida pode ser melhor compreendida a partir das principais medidas de urgência solicitadas pelo Congresso do Arroz, realizado em 1939, na cidade gaúcha de Cachoeira do Sul: (1) exclusão do arroz do tabelamento oficial de gêneros de primeira necessidade; (2) fixação do preço mínimo para o arroz, que assegure ao produtor lucro razoável, a partir de um cálculo baseado no custo médio de produção, e a aquisição por preço compensador pelo Governo Federal dos estoques de arroz da safra passada ainda em mãos do produtor; e (3) o suprimento de crédito pelo Governo Federal para o Instituto Rio-Grandense do Arroz (IRGA), para lhe possibilitar permanente intervenção como comprador no mercado. As principais sugestões relacionadas ao crédito agrícola propostas por este congresso, foram as seguintes: (a) a elevação do crédito para o nível de 50% do valor estimado da produção, o qual estava fixado em 1/3 pelo Regulamento da Carteira; (b) a redução dos juros de financiamento para 6% a. a.; (c) a dilatação dos prazos para os créditos destinados à aquisição de material agrário; e (D) a criação de agências do Banco do Brasil em zonas de produção de arroz distantes das regiões rizícolas pioneiras do estado. Cf. “O Congresso do Arroz”, O Observador Econômico e Financeiro, LI, 1939, p. 12-14. 33 Cf. CREAI, “Relatório Lido pelo Diretor Dr. José Loureiro da Silva em sessão de 31/07/1945 da Diretoria do Banco do Brasil”. Fonte: Arquivo do Banco do Brasil, Centro Cultural do Banco do Brasil, Rio de Janeiro.
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Esse conflito acentuou-se a partir de uma proposta da Presidência do Banco do Brasil, feita
no bojo da “crise do crédito à pecuária zebuína”, cujo objetivo era reduzir os empréstimos da
CREAI, através das seguintes medidas: (1) o congelamento dos financiamentos da CREAI, no total
daquela data, que não deveria ser ultrapassado até segunda ordem; (2) a concessão de novos
empréstimos somente a firmas cadastralmente idôneas, dentro do limite de 80% das operações
liquidadas da mesma espécie; (3) a proibição de destinar à pecuária os recursos obtidos através da
liquidação de empréstimos agrícolas; e (4) a punição dos gerentes de agências que transgredissem
essas normas.
Apesar de concordar integralmente com a crítica feita à expansão acelerada e irregular do
crédito pecuário, Loureiro da Silva não aceitou as limitações de financiamento propostas pela
CREAI como um todo. Fazendo uma ampla análise crítica do funcionamento da Carteira, procurou,
no entanto, defendê-la, propondo apenas algumas mudanças no seu funcionamento.
Inicialmente, observava que os dispositivos legais relativos ao recolhimento no Banco do
Brasil dos fundos específicos para a CREAI não estavam sendo integralmente cumpridos. Tais
fundos, como se sabe, eram constituídos em parte pelos depósitos dos Institutos de Previdência e de
Assistência dos Servidores do Estado e das Caixas e Institutos de Aposentadoria e Pensões.
Loureiro da Silva mostrou que, em 31 de maio de 1945, as disponibilidades oriundas das várias
fontes de recursos da CREAI, assunto disciplinado pelos Decretos-lei número 2.611, de 20 de
setembro de 1941, distribuíram-se da seguinte maneira: 63,7% do total provenientes dos Depósitos
Judiciais à Vista e de Aviso Prévio de Menos de 90 Dias; 2,0% dos Depósitos Judiciais a Prazo e de
Aviso Prévio de 90 Dias ou mais; 7,4% dos Depósitos de Empresas Concessionárias de Serviços
Públicos; 7,0% dos bônus em Circulação e apenas 19,9% provenientes dos Depósitos Obrigatórios a
Prazo Fixo dos Institutos de Previdência, Assistência dos Servidores do Estado e Caixas e Institutos
de Aposentadorias e Pensões, acima referidos.
É importante notar que nesse cálculo não foram consideradas as fontes não-específicas,
representadas pelos recursos oriundos do encaixe geral do Banco e do Redesconto de Contratos de
Financiamento, os quais, como será demonstrado posteriormente, passariam a ser cada vez mais
importantes, tornando-se praticamente inexpressivas as fontes específicas.
Tomando como exemplo o ano de 1945, verifica-se que enquanto os recursos próprios da
Carteira representaram apenas 22,5%, aqueles provenientes de fontes não-específicas ou
extraordinárias (nesse ano, apenas oriundos da Carteira de Redescontos) somaram 77,5% do total.
Neste sentido, cabe registrar a elevada participação da CARED no total da emissão de papel-moeda
no período de 1939 a 1945. Levando em conta os demais órgãos emissores – o Tesouro Nacional, a
Caixa de Mobilização Bancária e a Caixa de Estabilização -, a sua participação média atingiu 38,0%
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do total da emissão líquida de papel-moeda34. Em 1945, os recursos da CARED destinados à
CREAI representaram 1,3 vezes o total das emissões líquidas daquela carteira e 77,5% do total dos
recursos da CREAI, o que já revelava a elevada dependência da CREAI ao suprimento de recursos
da Carteira de redescontos (CARED), através de operações normais de redesconto ou de operações
de redesconto baseadas na emissão primária de meios de pagamento35.
Prosseguindo, Loureiro da Silva criticava a sugestão da Presidência do Banco de fixar um
limite máximo às operações da CREAI:
“Teoricamente, dada a natureza específica do crédito rural (...) Tendo por finalidade primordial o amparo e o fomento da produção em todos os seus ramos de indiscutível interesse econômico, evidente é que a sua limitação viria cercear o desenvolvimento das atividades agrárias (...) notadamente no momento atual, quando associações de classe e o Governo Federal convergem esforços para o aumento da produção, necessário e indeclinável no período de após-guerra, não só em benefício do consumo interno, já tão sacrificado, como também do consumo externo, ora pressuroso pela compra dos produtos de exportação. Não se diga que o aumento crescente das operações poderia tornar impraticável a tese da não limitação dos financiamentos a um máximo de disponibilidades, dados os recursos restritos do Banco, ora encarregado da distribuição desse crédito, e também da subordinação do redesconto aos lastros do Tesouro. Porque, se ocorresse essa hipótese, haveria apenas aparente insuficiência de meios, visto como ao volume de empréstimos deveria corresponder o volume maior da produção e, conseqüentemente, da riqueza criada, que só, por si, daria ao Governo recursos para suprir o redesconto, então indispensável a esse surto expansionista. Praticamente, porém, é forçoso reconhecer que o Banco, como distribuidor do crédito rural e industrial, não pode e não deve agir sem disciplina e sem freios coercitivos (...) Desse modo, harmonizando o princípio da não limitação com as necessidades de ordem material e prática, uma única orientação se impõe ao Banco – a de submeter os seus financiamentos a um critério seletivo, equânime e equilibrado, prestando a sua assistência dentro de sistema distributivo capaz de atender às reais necessidades da produção econômica e em gradação correspondente às necessidades do consumo em geral. Assim, o montante do crédito especialmente destinado a auxiliar o fomento da produção rural, ou industrial, não comporta limites definidos”36.
Mais adiante, respondeu à crítica de que “(...) a Carteira de Crédito Agrícola e Industrial
constitui um pesado ônus para a organização do Banco do Brasil”, enfatizando que o lucro líquido
apurado pelo balanço do segundo semestre de 1944, que correspondeu a 82,3% do total das
despesas da Carteira constituía uma das formas de se comprovar a lucratividade das operações da
Carteira, proveniente da diferença entre a taxa mínima de juros de 7% que era cobrada de seus
mutuários e a de 5% a. a. que correspondia ao custo de captação de recursos pelo Banco.
Finalmente, ao analisar a atuação da CREAI em quatro níveis – gerência e sub-gerência de
agências; fiscais e avaliadores; inspetores e assistência técnica –, Loureiro da Silva atribuiu os
problemas então enfrentados pela Carteira a três fatores: ao fator “surpresa” ou alto grau de
imprevisibilidade das decisões governamentais relativas aos financiamentos oficiais; às deficiências 34 MALAN, P. S. et alii, Op. Cit., p. 237. 35 Idem, p. 247. Outra demonstração cabal da limitação dos recursos para empréstimos à produção provenientes unicamente dos depósitos, era a total preponderância dos depósitos à vista sobre o total dos depósitos – entre 1938 e 1945, a participação dos depósitos à vista do público sobre o total dos depósitos do público foi de 85,5% e 72,8% respectivamente. Cf. Relatório do Banco do Brasil de 1946, Rio de Janeiro, 1947, p. 152. 36 Cf. CREAI, “Relatório Lido pelo Diretor Dr. José Loureiro da Silva em Sessão de 31/07/1945 da Diretoria do Banco do Brasil”. Fonte: Arquivo do Banco do Brasil, Centro Cultural do Banco do Brasil, Rio de Janeiro.
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de sua organização administrativa, e à “falta de medida e objetividade” na concessão dos
financiamentos.
Com relação ao fator “surpresa” a à “falta de medida e objetividade” na concessão de
financiamentos, exemplifica com a solicitação de crédito do Banco para o algodão, sem qualquer
consulta à CREAI, no montante de 4 bilhões de cruzeiros quando o seu encaixe se encontrava ao
redor de apenas 1,5 bilhão de cruzeiros, estendendo a crítica à política da Carteira de conceder
financiamento para o capital comercial-beneficiador e comprador da produção agrícola e não
diretamente para o cotonicultor. Isto porque
“(...) não se trata de genuínos financiamentos à produção mas, sim, ao intermediário, a quem se garante o preço da mercadoria, independentemente de qualquer vantagem, direta ou indireta, para os que trabalharam a terra e colheram o produto, no árduo labor campesino. O próprio planejamento de emergência, em grande parte, terá essa fisionomia (...) Possivelmente garantirá a retenção na mão do comerciante ou do exportador, para o jogo da alta. Não desconheço que é também função do crédito especializado adotar medidas capazes de garantir os preços de consumo, sem as quais sua assistência à produção seria incompleta. Mas, a orientação econômica dessas medidas não deve e não pode ser unilateral, indo apenas ao encontro dos intermediários, compradores ou maquinistas, porque então não se alcançaria o objetivo tão anelado de se livrar o produtor das garras da especulação aquisitiva. (...) São muito conhecidos os termos do decreto que manda financiar o algodão. Não se financia propriamente ao plantador, ao trabalhador da terra: garante-se apenas aos maquinistas nacionais ou estrangeiros um preço mínimo. Segue-se que o produtor se vê jungido ao dono da máquina de benefício e o penhor que se efetua não é um penhor rural, mas sim, tipicamente, um penhor mercantil do produto colhido, tratado, enfardado e posto em armazéns gerais, ou particulares recebidos em comodato. O último decreto, como amparo à produção algodoeira, de nada serviu ao legítimo produtor: favoreceu tão somente aos negociantes e exportadores, propiciando um tremendo jogo bolsista, em prejuízo do Tesouro, responsável por toda essa produção, financiada e ainda não exportada. (...) Receio muito que o recente plano de amparo à lavoura de cereais, consubstanciado no decreto-lei número 7.774, de 24 de julho de 1945, exatamente nos moldes dos financiamentos do algodão, caminhe para o mesmo rumo. O fato estranho em tudo isto é que, calcada a produção no trinômio Terra, Trabalho e Capital, a Comissão de Financiamento à Produção exclua sistematicamente das suas deliberações o órgão executivo ou realizador dos seus planos, que é o capital, representado pela Carteira de Crédito Agrícola e Industrial. (...) Enquanto os financiamentos do algodão absorvem a maior parte da verba atribuída à agricultura, toca à lavoura de cereais parcela tão exígua que chega a ser ridícula, face ao montante dos empréstimos gerais do mesmo tipo (...) calculando a percentagem sobre a massa global dos empréstimos da Carteira (...) vemos que ela é apenas de 3,5%, aproximadamente, isso num país que vive à míngua de alimentação!”37.
O referido documento destaca outra distorção que demonstra a política irregular de
financiamento à pecuária de gado indiano, apontada por um inspetor do Banco:
“Sente-se que os mutuários transformaram o organismo em apreço em mero instrumento de especulação e de jogo de negócio”; segundo laudo de Randolfo Abreu, “Casos há – e são comuns – em que, liquidado um financiamento com grande antecipação, no empréstimo que se segue, no intervalo de poucos dias, aparecem os animais, geralmente os mesmos que figuraram no financiamento anterior, cotados a preços duas ou três vezes superiores, possibilitando assim negócios de muito maior vulto. (...) Que é conhecido o fato de serem freqüentemente desviados os recursos fornecidos pelo Banco, empregados em alguns casos na aquisição de imóveis, liquidação de dívidas em outros bancos e para os mais diferentes fins; Que os comprovantes fornecidos às
37 Cf. SILVA, J. L. da, Op. Cit., 26 de junho de 1945. A criação da Comissão de Financiamento da Produção (CFP), foi abordada no capítulo I deste trabalho.
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agências são graciosos (...) existindo casos em que, ou o mutuário que fornece o documento não possui o gado que declara haver vendido, ou, em hipótese positiva, dele não poderia se desfazer sem conhecimento prévio do Banco, visto a este estar empenhado. (...) Tem-se a impressão de que se estabeleceu na praça um ciclo especial de transações: o Banco do Brasil empresta ao criador de gado, este liquida débitos em outros bancos com o produto do empréstimo e aumenta o seu rebanho com o saldo da operação; posteriormente, pratica-se o inverso: os outros bancos emprestam apara a liquidação do contrato existente com o Banco do Brasil; liquidado este e, a seguir, conseguido novo financiamento em bases elevadas, devido à constante alta dos preços de gado, obtém o mutuário recursos com que saldar a dívida”.
Relativamente à dinâmica da produção de algodão na primeira metade dos anos quarenta,
cabe destacar o seguinte:
(a) devido às pressões para a baixa das cotações, depois de conferência entre o Ministro da
Fazenda e representantes dos estados cotonicultores, em 1942, o Banco do Brasil, através
da Fiscalização Bancária, tomou as seguintes medidas: (1) o não fornecimento de guias de
exportação quando o preço declarado fosse inferior a certos níveis; (2) o financiamento
rural passou a ser feito sob as seguintes condições: 90% da base mínima fixada para a
exportação, com a dedução das despesas até o embarque (armazenagem, transporte, taxas
e impostos), e dos impostos estaduais de exportação; e para os algodões classificados em
outros portos de embarque, seriam levadas em consideração as despesas de transporte
desses locais até os portos de exportação; e (3) os financiamentos somente seriam feitos
para o algodão do tipo 6 e de qualidade superior;
(b) o Decreto-lei número 5.360, de 30 de março de 1943, autorizou o financiamento da safra
de 1943 mediante o penhor mercantil do algodão;
(c) o Decreto-lei número 5.582, de 17 de junho de 1943, que criou a quota especial de 30
centavos por quilo de algodão em pluma, tanto cobrada sobre o algodão destinado ao
consumo interno como ao externo, a qual destinava-se para a formação de um fundo para
cobrir os riscos do financiamento especial do produto; e
(d) o prosseguimento, em 1944, dos financiamentos em bases especiais, devido aos efeitos da
Guerra, que provocaram aa queda de suas exportações.
Para darmos uma idéia do amplo favorecimento concedido por este decreto governamental
ao grande capital comercial-beneficiador da produção algodoeira, basta lembrar que os seus
principais beneficiários foram as seguintes empresas: (1) a Anderson, Clayton & Cia. Ltda., que
além de seus empréstimos “em ser” de 36 milhões de cruzeiros, recebeu abertura de crédito de mais
de 150 milhões e cruzeiros; (2) a Cia. Nacional de Anilinas e Comércio e Indústria, cujas
responsabilidades já ultrapassavam este último montante; (3) a S. A. Indústrias Reunidas Francisco
Matarazzo; e (4) outras grandes empresas como a S. A. Warton Pedrosa, Prado & Sodré Ltda., S. A.
Cafeeira da Noroeste, F. F. Saad & Cia., Edson Leite de Moraes, Buchalla & Irmão, Auttaris F.
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Nogueira, Comércio e Indústria Brasileiras “Coimbra” S. A., Exportadora e Comissária Paulista
Ltda., Cia. Leme Ferreira Comissária Exportadora, Cia. Paulista de Exportação, Silveira, Freire &
Cia., Souza Dantas Forbes & Cia. Ltda. e Sociedade Algodoeira do Nordeste Brasileiro S. A.
(SANBRA)38.
Cumpre observar no mesmo sentido, que também a participação média dos empréstimos
ao comércio por ramos econômicos vinculados à produção agropecuária no total dos empréstimos
ao comércio entre 1940 e 1945, apontava para a grande importância desse segmento, tendo
atingido o nível de 72,2% e distribuindo-se do seguinte modo: o algodão em rama, participando
com 21,8%; o café em grão, com 26,8%; o gado, com 10,4%; os cereais, com 3,9%; os produtos
alimentares, cigarros e bebidas, com 3,6%; as matérias oleaginosas, com 2,7%; o açúcar e
aguardente, com 2,3%, e a borracha, com 0,7%. Cabe salientar que a participação média do
crédito destinado ao comércio no total do crédito atingiu 24,0%, conforme se pode verificar na
Tabela 3 apresentada a seguir.
38 Cf. SILVA, J. L. da, Op. Cit.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 153
TABELA 3 Banco do Brasil: Empréstimos ao Comércio por Ramos, 1940 – 1945
(Saldos em final do ano) Anos
Ramos 1940 %
1941 %
1942 %
1943 %
1944 %
1945 %
Média 1940-1945
Aldodão em rama Café em grão Gado Cereais Produtos Alimentares, Cigarros e Bebidas Matérias Oleaginosas Açúcar e Aguardente Borracha Subtotal do Comércio de Origem Rural Em Cr$ Milhões Diversos (Tecidos e Artigos de Vestuário; Máquinas, Ferragens, Tintas e Louças; Produtos Químicos e Farmacêuticos; Automóveis e Acessórios e Outros Produtos) Subtotal do Comércio de Origem Rural e Não-Rural Em Cr $ Milhões Total do Crédito ao Comércio sobre o Total do Crédito
9,4 27,2 7,1 3,4 4,8
4,0 2,5 -
58,3
305
41,7
100,0
523
30,9
12,7 30,4 7,7 3,5 4,1
2,3 3,6 1,4
65,7
435
34,5
100,0
664
28,0
21,0 24,2 11,5 5,7 2,9
1,4 1,8 2,6
71,2
512
28,8
100,0
719
24,9
28,5 20,8 11,3 3,8 3,4
3,4 1,7 0,1
72,9
522
27,1
100,0
716
21,7
26,4 23,1 15,4 3,2 3,0
2,4 1,8 0,3
75,6
901
24,3
99,9
1.191
19,4
32,6 35,2 9,1 3,9 3,6
2,9 2,2 -
89,5
1.115
10,5
100,0
1.657
18,8
21,8 26,8 10,4 3,9 3,6
2,7 2,3 0,7
72,2
27,8
27,8
24,0
Fonte: De 1940 a 1943, Relatório do Banco do Brasil de 1945, Rio de Janeiro, 1944; de 1944 a 1947, Relatório do Banco do Brasil, vários anos.
Com relação às demais modalidades de financiamento da CREAI, o documento registra o
seguinte: (1) a pouca importância dos empréstimos agropecuários, devido à ausência de um maior
desenvolvimento das indústrias ligadas à pecuária; (2) o reduzido volume atingido pelos
empréstimos industriais, com predomínio dos empréstimos de maior valor, com uma pequena
participação das pequenas indústrias; e (3) o predomínio das usinas de açúcar nos empréstimos
agroindustriais, cabendo-lhes 75% do total, correspondentes a quinze empresas.
Loureiro da Silva também exemplificava com o mencionado caso de expansão acelerada e
irregular do financiamento destinado à pecuária:
Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 154
“É o calcanhar de Aquiles dos empréstimos da Carteira. Afora os razoáveis financiamentos destinados ao gado de corte, os do gado fino continuam em progressão crescente. (...) E, segundo notícias que me chegam, transmitidas pelos inspetores, só em Uberaba e Uberlândia esperam na fila mais de 300 candidatos ao financiamento do gado fino (...) Como afirmei em relatório anterior, tais financiamentos estão propiciando valorizações artificiais e prejudicial inflação de crédito numa extensa área do país”39.
Ao tratar do financiamento administrativo da CREAI, o documento destacava o seguinte:
(a) no que se refere à gerência e à sub-gerência, a demora na aprovação dos créditos era
devida aos procedimentos burocráticos, ao elevado número de solicitações de crédito e à
falta de pareceristas especializados, bem como ao fato de que muitos gerentes estavam
muito mais habituados ao tipo de crédito fornecido pela Carteira de Crédito Geral
(basicamente crédito comercial), do que ao da CREAI (crédito produtivo);
(b) com relação aos fiscais da Carteira, havia o fato de muitos terem sido nomeados
exclusivamente por indicação política:
“(...) na maioria das vezes, não têm aptidão alguma para o exercício das funções. Alguns há que pouco sabem ler e escrever; outros, que se aproveitam do cargo para locupletamento ilícito. Assim, se vai criando, sem a mínima prova prévia de eficiência, ou exame de habilitação, uma extensa classe de servidores do Banco, com prerrogativas e direitos que os demais funcionários conseguiram através de anos de trabalhos e sacrifícios”;
(c) quanto aos servidores, são “(...) de certo modo mais aptos, ainda se ressentem da falta de
uma orientação segura nos seus encargos. Irresponsáveis perante o banco, ocasionam,
não raro, sérios transtornos à boa marcha das operações”, podendo-se atribuir a eles
grande parte do exagero dos financiamentos à pecuária e aos empreendimentos
industriais; e
(d) finalmente, com relação aos inspetores do Banco, embora reconhecendo os seus
conhecimentos sobre as transações bancárias, adquiridos a partir de longa vida funcional, muitas
vezes lhes são atribuídas zonas de inspeção com um número excessivo de agências.
Em vista de tudo isso, o documento sugeria a adoção de medidas para corrigir os
financiamentos irregulares, concedidos sem obedecer critérios técnicos e em progressão crescente
(casos do gado fino indiano e do algodão), propondo uma dotação especial governamental para o
último. Não aceita limitações às atividades de financiamento da Carteira, sendo contrário ao critério
de se fixar uma quota-parte destinada à Carteira, propondo uma distribuição eqüitativa às diferentes
carteiras sob a forma de verbas fixas.
Outro relatório do diretor da CREAI listava dezesseis críticas ao seu funcionamento,
concluindo que:
39 Ibidem.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 155
“O financiamento do Banco do Brasil na pecuária, propiciou o negocismo, a especulação, a aventura e a pirataria, com a intervenção de todas as procedências e profissões, inclusive a de homens de Estado, banqueiros, profissionais liberais, etc., numa corrida para a fortuna fácil”;
Nunca é demais chamara a atenção para a mencionada elevada participação do crédito à
pecuária no período de 1940/ 45, atingindo uma média de 40%, bastante superior à média de 19%
de todo o período abrangido por este estudo (1938 a 1965).
Um fator que reforçou o caráter nacional da política de crédito rural da CREAI, foi o de
financiar uma ampla variedade de produtos em praticamente todo o País, e não apenas aqueles de
maior significado na economia do País, uma tendência que se manifestou desde a sua criação. Este
caráter crescentemente nacional da atuação da CREAI pode ser demonstrado pela extensíssima
relação dos produtos rurais financiados no sue primeiro período já entre 1938/ 1941-1945, a saber:
produtos agrícolas – acácia negra; agave; alfafa; algodão; algodão em pluma; alho; amendoim;
arroz; aveia; batata; cacau; café; café especial; cana-de-açúcar; carvão vegetal; cebola; cevada; chá;
coco; erva-mate; erva-doce; ervilha; feijão; frutas; fumo; gergelim; guaxima; juta; lenha; linhaça;
linho; lúpulo; mamona; mandioca; menta; milho; rami; repolho; sericultura; tomate; trigo; uvas; e
outros produtos agrícolas; produtos extrativos vegetais – babaçu; borracha; castanha; cera de
carnaúba; madeiras; oiticica; piaçava e tungue; e, por último, a pecuária. (Cf. Tabela 1)
Neste sentido, a 4 de dezembro de 1942, pelo Decreto-lei número 5.031, o Governo Federal
criou a Comissão Executiva dos Produtos de Mandioca, e de acordo com o Decreto-lei 5.407, de 14
de abril de 1943, foi autorizada a contratar com o Banco do Brasil, através da CREAI, operações de
crédito destinadas à ampliação e ao aperfeiçoamento das usinas necessárias à industrialização da
mandioca40. Reforçando esse caráter de agência governamental orientada para a diversificação da
produção agropecuária, relatório do Banco destaca as seguintes iniciativas de financiamento no ano
de 1942: para a produção de menta (inclusive aos interessados na sua industrialização); de seda
animal (particularmente através de créditos para a montagem de instalações para o preparo do fio);
e de tomate, babaçu, e de agave41.
Outra importante característica dessa primeira fase da CREAI foi o total predomínio do
crédito de custeio comparativamente ao de investimento – por exemplo, no subperíodo 1942-1944,
a participação média daquele chegou a 99,3%. (Cf. Tabela 4) A participação quase nula do crédito
de investimento nas aplicações rurais da CREAI constituiu-se em uma evidência adicional do
caráter predominantemente extensivo da produção rural do País nesse período – exceto para alguns
poucos produtos que já desenvolviam a sua produção em bases capitalistas (via intensificação do
suo de capital na forma de investimentos em insumos, máquinas e implementos agrícolas, bem
40 Cf. Relatório do Banco do Brasil de 1943, Rio de Janeiro, 1944, p. 51. 41 Cf. Idem, p. 51/2.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 156
como nos gastos em mão-de-obra assalariada) e que necessitavam de importar a quase totalidade
dos seus principais meios de produção de origem industrial.
A inexpressiva participação do financiamento da CREAI destinado a investimentos refletia o
baixo grau de mecanização da agricultura brasileira naquela época:
“Verificamos que, de 1920 a 1940, foi moderado o progresso as mecanização da lavoura no Brasil. Pois bem, de 1940 a 1946, a situação piorou consideravelmente por causa da guerra. Os países produtores de maquinaria agrícola, em especial de tratores, restringiram suas exportações, especialmente entre 1940 e 1945, e há os que admitem que, neste último ano o Brasil possuía em funcionamento menos tratores do que em 1940. (...) A partir de 1945, à medida que aumentaram as disponibilidades de maquinaria agrícola nos mercados exportadores e as quotas cedidas ao Brasil se ampliaram, aumentaram também as importações, estimuladas por uma demanda acumulada durante a guerra e por uma crescente tendência para a mecanização em certos ramos da agricultura. (...)” 42.
A preocupação governamental com a elevação do grau de mecanização da agricultura
brasileira, refletiu-se na adoção de uma política de destinar créditos favorecidos do Banco do Brasil
para a importação de máquinas e ferramentas, e de facilidades cambiais para a importação de
máquinas agrícolas (para o caso específico do trigo e para os anos posteriores, essas importações
deixaram de pagar direitos aduaneiros). Analisando-se a distribuição do crédito rural de
investimento entre 1942 e 1944 (exceto para o último ano, quando foram destinados 25% para
investimentos em açudagem), a totalidade do financiamento destinou-se à compra de máquinas
agrícolas.
Nesse primeiro período, a situação da CREAI teve um papel nitidamente expansionista,
contribuindo fortemente para o processo de recuperação econômica do País, iniciado já no início da
década de 1930, principalmente mas não apenas através da política de sustentação econômica da
cafeicultura. Esta continuava sendo fundamental na época na medida que tanto as atividades
industriais como as agrícolas em geral e as próprias finanças públicas se mantiveram atreladas ao
desempenho da economia exportadora cafeeira.
Embora tivesse concentrado os seus empréstimos em cinco produtos (café, cana-de-açúcar,
algodão, arroz e pecuária), a CREAI promoveu uma disseminação dos financiamentos rurais para
quase todas as regiões do País, conforme mostra a Tabela 5, e para um número relativamente grande
de produtos. Isto nos permite caracterizá-la como uma primeira tentativa de política agrícola
nacional voltada para as atividades agropecuárias em geral, e não apenas para alguns produtos,
como era a situação anteriormente prevalecente.
Antes da criação da CREAI, nunca chegou a haver uma estratégia geral para a agricultura
como um todo, e muito menos para a agricultura destinada ao mercado interno, voltada para a
produção de gêneros alimentícios de amplo consumo. Referindo-se à questão da crescente
42 “Mecanização da Lavoura”. O Observador Econômico e Financeiro, Outubro de 1951, Ano XVI, Num. 189, p. 75.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 157
importância das atividades relacionadas ao mercado interno, um relatório do Banco do Brasil
afirmava:
“O ano de 1940 teve, pois, aspectos diferentes dos que o antecederam, como decorrência da projeção da guerra sobre a nossa economia. Um desses aspectos a considerar é a aceleração do ritmo industrial, significativa da profunda transformação que se opera desde algum tempo na economia brasileira. O fato essencial a destacar consiste, como deixamos expresso, no revigoramento intensivo das condições de nossos mercados internos, como base de uma radical mutação econômica. A monocultura constituiria hoje regime obsoleto e, portanto, totalmente incompatível com a nossa posição dentro do próprio continente. Fizemos, pois, da policultura e da industrialização um programa de incessantes iniciativas com os resultados mais proveitosos. Foi uma segunda etapa, como prenúncio da terceira, que é a implantação da grande siderurgia” 43.
Por último, cabe observar a reduzida participação dos pequenos contratos no total do valor
dos financiamentos concedidos pela Carteira entre 1938 e 1941, cuja média foi de 11,4%, contra
24,9% para os médios contratos e 63,7% para os grandes contratos. (Cf. Tabela 6)
Nesse sentido, cabe salientar que os Relatórios do Banco do Brasil consideravam
empréstimos a pequenos produtores os não superiores a 30 contos de réis, o que na verdade
constituía um pequeno empréstimo, que também poderia ser concedido para um médio ou grande
produtor. Portanto, a política de crédito rural da CREAI não estratificava os produtores por tamanho
– área de propriedade, área da lavoura, valor bruto da produção, etc. –, pelo contrário, os seus
empréstimos eram classificados em pequenos, médios (de 30 a 100 contos de réis) e grandes (acima
de 100 contos de réis), o que subestima o grau de concentração creditícia, a não ser que
provássemos que todos os pequenos empréstimos eram destinados a pequenos produtores (definidos
a partir de determinados critérios), e assim por distante, tarefa impossível face à inexistência de
dados para tal nos relatórios do Banco. Da mesma forma, pode-se mostrar a existência de um
elevado grau de concentração creditícia favorecendo os maiores mutuários, caso admitíssemos, algo
que parece bastante razoável, que os grandes empréstimos, pelo seu tamanho relativo, eram
concedidos exclusivamente aos grandes mutuários 44.
43 Cf. Relatório do Banco do Brasil de 1940, Rio de Janeiro, 1941, p. 22. 44 A definição de “empréstimos a pequenos produtores” está no Relatório do Banco do Brasil de 1949, Rio de Janeiro, 1950, p. 132.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 158
TABELA 4 CREAI: Empréstimos Rurais, de Custeio e de Investimento,
1942-1944 (%) Investimento
Ano Custeio Máquinas
Agrícolas
Acuda-
gem Animais
Melhora-
mentos
Total
Total
Geral
(Cr$ 1.000
correntes)
1942
1943
1944
Média
1942-
1944
99,91
99,94
99,95
99,93
0,02
0,06
0,04
0,04
-
-
0,01
0,003
-
-
-
-
-
-
-
-
0,02
0,06
0,06
0,04
1.296,30
1.510,00
3.311,10
2.039,10
Fonte: Relatório do Banco do Brasil, vários anos.
TABELA 5 CREAI: Participação do Valor dos Empréstimos Rurais e Industriais por
Regiões do Brasil, 1938-1941 (em percentagem) Regiões 1938 1939 1940 1941 Média
Sul (1) 56 63 56 58 58,2
Leste Meridional (2) - - 7 7 3,5
Leste Setentrional (3) 5 11 18 20 13,5
Nordeste Oriental (4) 39 25 14 10 22,0
Centro-Oeste (5) - 1 5 5 2,8
Fonte: Relatório do Banco do Brasil, vários anos. Notas: (1) São Paulo, Paraná, Santa Catarina e rio Grande do Sul;
(2) Minas Gerais, Espírito Santo, Rio de Janeiro e Distrito Federal; (3) Sergipe e Bahia; (4) Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e Alagoas;
Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 159
TABELA 6 CREAI: Número e Valor dos Empréstimos, por Tamanho do Contrato, 1938-1945 (%)
Pequenos Contratos
Médios
Contratos Grandes Contratos
Anos
Número Valor Número Valor Número Valor
1938
1939
1940
1941
Média 1938-1941
1942
1943
1944
1945
Médias 1938-1945
51,7
57,7
63,1
60,8
58,3
50,6
49,0
39,1
36,3
51,0
8,5
10,4
13,9
12,9
11,4
-
-
-
-
-
32,1
28,0
26,1
27,3
28,4
30,6
30,3
32,7
32,2
29,9
23,3
22,7
26,5
26,9
24,9
-
-
-
-
-
16,2
14,2
10,9
12,0
13,3
18,8
20,7
28,2
31,6
19,1
68,3
66,9
59,5
60,2
63,7
-
-
-
-
-
Fonte: Relatórios do Banco do Brasil, Rio de Janeiro, 1941;Idem ,1942, p. 51; Idem, 1945, p. 40.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 160
CARLOS LACERDA E O PENSAMENTO ECONÔMICO DOS GRUPOS POLÍTICOS NO BRASIL NO PÓS-19451
Marcio de Paiva Delgado*
Resumo: Este artigo busca localizar o jornalista e político Carlos Lacerda no debate econômico dos grupos políticos no pós-1945. Percebemos que a despeito de seu declarado alinhamento ao ideário liberal, Lacerda adotou em alguns momentos posições consideradas nacionalistas e desenvolvimentistas. Também desenvolvemos uma breve análise da formação dos principais grupos ideológicos em relação ao pensamento econômico da época no Brasil. Palavras-chaves: Carlos Lacerda, Lacerdismo, Nacionalismo, Liberalismo, Nacional-Desenvolvimentimo, Pensamento Econômico Brasileiro. Abstract: This article aims to locate the journalist and politician Carlos Lacerda in the economic debate of post-1945's political groups. We noticed that in spite of his liberal affiliation, Lacerda aligned at some moments to positions usually recognized as "nacionalista" (nationalist) and "desenvolvimentista" (developmental). We also developed a brief analysis of the emergence of the main ideological groups related to the economic thought in Brazil at that moment. Keywords: Carlos Lacerda, Lacerdism, Nacionalism, Liberalism, National-Desenvolvimentism, Brazilian Economic Thought.
1. INTRODUÇÃO
O presente artigo aborda a composição dos principais grupos políticos no Brasil durante a
Experiência Democrática (1945-1964), de acordo com a sua posição ideológica na economia e com
destaque para a atuação de um dos principais líderes políticos da denominada “direita liberal
conservadora”: o jornalista e político Carlos Lacerda.
Buscaremos mostrar que, a despeito de seu inegável alinhamento aos grupos defensores do
ideário liberal, Carlos Lacerda adotou, em determinados momentos, posições consideradas
contrárias a sua original orientação ideológica. Tais posições podem ser identificadas como
Nacionalistas e Desenvolvimentistas. Para tal, iremos, num primeiro momento, traçar um quadro
1 Este artigo é adaptação ampliada e revista de um capítulo de nossa dissertação de mestrado defendida em outubro de 2006 pelo programa de pós-graduação do Departamento de História da UFJF, intitulada: O “GOLPISMO DEMOCRÁTICO”. CARLOS LACERDA E O JORNAL TRIBUNA DA IMPRENSA NA QUEBRA DA LEGALIDADE (1949 - 1964). * Mestre em História pela UFJF.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 161
geral da economia brasileira no período. Posteriormente, veremos quais são os grupos de
pensamento econômico mais representativos no Brasil, suas principais diretrizes e características.
De posse disso abordaremos, ao final do artigo, como Carlos Lacerda inseriu-se naquele
grupo que comumente é chamado de “liberal-conservador”2 (lembrando o passado de militância
socialista do jovem Lacerda antes do Estado Novo) e como este se comportou em determinados
momentos, expondo as contradições do pensamento liberal brasileiro, do qual ele próprio era um
representante de expressão junto à opinião pública brasileira.
2. BREVE QUADRO ECONÔMICO SOCIAL BRASILEIRO NOS ANOS ANTERIORES
AO GOLPE DE 1964
Entre 1950 e 1964, o Brasil atravessou inúmeras crises políticas onde o regime de 1946 foi
colocado em xeque por diversos grupos de diferentes orientações ideológicas e programáticas.
Alguns destes grupos eram ligados a partidos políticos, a setores das Forças Armadas (tanto de alta
como de baixa patente), a empresas privadas e estrangeiras, a setores da Igreja Católica, a
estudantes e a movimentos operários e camponeses.
Tais crises políticas – à exceção, talvez, da que encerra o período - estão longe de
representar uma crise orgânica do bloco histórico instaurado em 19303. Dizemos que as crises são
de caráter político institucional porque neste período, apesar do Brasil estar inserido num contexto
de profunda desigualdade social e com problemas sérios de distribuição de renda e terra, o país não
atravessou sérias crises econômicas, com exceção àquela vivida a partir de 1963. As crises são,
portanto, “crises conjunturais”, que ao opor diferentes atores em torno de aspectos superficiais na
esfera política, deveriam tender ao esvaziamento. Não está estabelecido, portanto, que a
combinação de uma crise econômica com a crise política do inicio dos anos 1960 tornasse
inevitável o colapso da “Terceira República” e do pacto de dominação em que esta se sustentava.
2 Não é objetivo deste artigo discutir a fundo os conceitos de “conservador” e “liberal”. Mas consideramos importante deixar claro que, a despeito de suas semelhanças que possibilitam que estes convivam de maneira relativamente pacífica no Brasil, existem diferenças importantes entre os dois conceitos que precisam ser apontadas. Ambos partem do principio da crença do sistema capitalista como o modelo ideal para a sociedade, tendo como elementos básicos a defesa da propriedade privada, a livre iniciativa e o mercado laissez-fair. Além disto, tanto conservadores, quanto liberais, colocam-se diametralmente contra as doutrinas socialistas. Entretanto, os ditos conservadores se remetem também a valores considerados “tradicionais” com forte teor moral e religioso, muitas vezes exprimindo um discurso autoritário, antidemocrático e, pelo menos no Brasil, não tão avessos a intervenções estatais quando estas possam ser utilizadas para a manutenção do status quo. Já no caso dos liberais, num sentido mais amplo, estes se preocupam com questões acerca de valores iluministas, como os direitos e liberdades individuais, os direitos civis, o Estado de direito, a divisão dos Poderes e a democracia representativa. 3 PORTELLI, H. Gramsci e o bloco histórico, São Paulo: Paz e Terra, 1983.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 162
José Serra observa que a crise econômica do início dos anos 1960 representava uma crise cíclica,
típica de uma ordem capitalista consolidada, o que se verificara, no Brasil, em meados da década
anterior, com a implantação da indústria pesada4.
Não se trata de negar o crescente antagonismo entre o projeto nacional-estatista e as
perspectivas que defendiam o aprofundamento do desenvolvimento capitalista no Brasil a partir do
incremento da associação com o capital estrangeiro. São relevantes para a elucidação da crise do
início da década de 1960 as contradições que se avolumam no interior da aliança que sustentou os
governos liderados pela coalizão getulista, seja por força da acentuação da participação dos
trabalhadores urbanos e a emergência política dos trabalhadores rurais, seja pela deserção crescente
dos setores agrários e a aproximação do empresariado industrial do pólo liberal conservador, em
virtude tanto da intensificação da associação entre empresas brasileiras e multinacionais, quanto do
temor à ameaça comunista, num contexto de Guerra Fria. O que se pretende enfatizar é que tais
circunstâncias não deveriam conduzir necessariamente à saída golpista, se preponderassem
condições que favorecessem a colaboração – e não a desconfiança recíproca permanente – entre os
atores políticos.
Na verdade, durante todo o período, o Brasil atravessou um constante quadro de
crescimento econômico. De posse de indicadores como o PIB, entre os anos de 1946 e 1963, a taxa
de crescimento anual da economia brasileira foi, em média, de 7,1%, o que representa uma taxa
bastante dilatada se comparada com a taxa de crescimento do PIB durante as décadas de 80 e 90 do
mesmo século, que foi de apenas 2,1%5. Se recuarmos ainda mais sobre período republicano,
segundo o economista e professor da UFRJ Reinaldo Gonçalves, o Brasil vinha apresentando uma
taxa de crescimento ininterrupto maior que a média mundial desde 1939. Mesmo no conturbado ano
de 1961, o Brasil crescera 4,6% acima da média mundial6.
Mas este mesmo desenvolvimento econômico foi marcado por um período de crescimento
inflacionário. Durante toda a década de 40 a inflação acumulada foi de 13%, saltando para 21% na
década de 507. Mas se novamente compararmos estas taxas de crescimento do PIB e de inflação
com as taxas das décadas de 80 e 90 até 1995 (inflação de 605% e 1270% respectivamente),
perceberemos facilmente que, economicamente, as décadas de 40 e 50 foram marcadas por um
quadro extremamente mais estável e sustentável8.
4 SERRA, José. Ciclos e Mudanças Estruturais na Economia Brasileira de Após-Guerra in Revista de Economia Política, Vol 2/2, Número 6, abril-junho, 1982. 5 GREMAUD, Amary Patrick, et alli. Economia Brasileira Contemporânea. São Paulo: Atlas, 2002, p. 326. 6 UTZERI, Fritz. País na ‘segundona’ do crescimento. http://www.abi.org.br/colunistas.asp?id=407. Acessado em 11 de março de 2007.7 Idem, ibidem, p. 333. 8 Idem, ibidem.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 163
Apenas em 1963, a crise institucional foi simultânea com aquela que se configurou como a
primeira crise econômica brasileira em sua fase industrial. Neste ano, em virtude do desequilíbrio
gerado pelo Plano de Metas do governo Kubitscheck e pela instabilidade política advinda da
renúncia de Jânio Quadros em 1961, o crescimento do PIB (Produto Interno Bruto) foi de apenas
0,6%, aliado a uma inflação de 72,6% e uma queda de -0,2% a produção industrial9. O resultado
social foi um quadro de inúmeras greves (430 nos três primeiros anos10), aumento do desemprego e
do custo de vida, que custou ao governo de João Goulart parte de seu apoio junto aos trabalhadores
urbanos e rurais. O quadro de instabilidade se confirma com o alto índice de inflação em 1964, que
atingiria os 90%.
A economia brasileira também apresentou transformações no perfil dessas atividades
econômicas com o avanço da industrialização. Se em 1950, a indústria representava
aproximadamente 25% do PIB, em 1963 ela girava em torno de 35%, em detrimento da
agropecuária que cairia de 25% para aproximadamente 15% no mesmo período11. Essa
transformação da economia brasileira é coerente com a crescente urbanização da população, que
saltaria de 31,24% em 1940 para 55,92% em 196012.
Tal industrialização, aliada à maior urbanização da população brasileira, proporcionou
mudanças nas relações políticas entre setores da sociedade, como o crescimento do movimento
operário aliado a partidos políticos como o Partido Comunista Brasileiro (PCB) e o Partido
Trabalhista Brasileiro (PTB). Contudo, temos que destacar que o êxodo rural e o declínio da
participação da agropecuária no PIB não mantiveram a estagnação nos movimentos sociais ligados
ao campo, muito pelo contrário. O aparecimento das Ligas Camponesas de Francisco Julião em
meados dos anos 50 no nordeste brasileiro demonstra que a politização de setores da sociedade
brasileira no período aumentara fora dos grandes centros urbanos.
3. ORIENTAÇÃO ECONÔMICA DOS GRUPOS POLÍTICOS NO BRASIL DO PÓS-1945
Conforme afirmamos, se as crises institucionais brasileiras no período não foram marcadas
por acentuadas e longas crises econômicas, elas foram fomentadas e vividas por setores da
sociedade que se organizavam em tornos de projetos econômicos distintos. Como Bielschowsky 9 Idem, ibidem, p. 385. 10 TOLEDO, Caio Navarro. 1964: Golpe contra as reformas e a democracia. In: REIS, Daniel Aaarão, Marcelo Ridenti e Rodrigo Patto Sá Motta (orgs). O golpe e a ditadura militar: 40 anos depois (1964-2004). Bauru: EDUSC, 2004, p. 71. 11 GREMAUD, Amary Patrick. Op. cit., p. 28. 12 Idem, ibidem, p. 333.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 164
descreve, as principais correntes do pensamento econômico no Brasil entre 1945 e 1964 foram as
chamadas “Neoliberal” (também designada simplesmente como “Liberal”), “Desenvolvimentista” e
“Socialista”13.
De maneira bastante resumida, definimos a corrente Liberal como aquela que defendia um
equilíbrio financeiro e monetário, diminuindo os gastos públicos para controle da inflação. Defendia
nesse sentido, medidas que visassem à diminuição de impostos e a não intervenção Estatal na
economia, admitindo, contudo, uma discreta participação para ajustes em caso de deformações
comuns em economias subdesenvolvidas. A corrente Liberal, além de ser evidentemente anti-
socialista, era antinacionalista e antitrabalhista e defendia ainda a entrada livre de capitais
estrangeiros no Brasil e o livre comércio.
A corrente dita Desenvolvimentista, principal corrente econômica no Brasil no período pós-
Revolução de 1930, segundo Bielschowsky, pode ser dividida em três grupos: uma ligada ao setor
privado, e duas ligadas ao setor público. A ligada ao setor privado era antiliberal e admitia a
participação do Estado na economia como financiador e parceiro do processo de industrialização.
Uma das correntes ligadas ao setor público, mesmo sendo Desenvolvimentista, não era
necessariamente nacionalista, aceitando a entrada de capital estrangeiro associado ao capital público
e privado. Uma outra do setor público, era nacionalista, sobretudo àquelas atividades econômicas
ligadas aos chamados “setores estratégicos”, como os de mineração, petróleo e recursos hídricos. A
corrente Desenvolvimentista era fundamentada por núcleos de intelectuais e de estudos econômicos,
tendo como destaque o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) que seguia a tradição da
Comissão Econômica para América Latina e Caribe (CEPAL).
A última delas, a corrente Socialista, também com representantes do ISEB, é aquela
comprometida com a socialização dos meios de produção e o fim da propriedade privada. Porém,
no período estudado, ela assumiu um caráter nitidamente desenvolvimentista e nacionalista e
terminantemente contrária à entrada de capital estrangeiro14.
Todavia, essas correntes não eram estanques. Em alguns momentos, tanto a corrente
Desenvolvimentista relacionava-se com a Liberal – no que tange à manutenção do desenvolvimento
e consolidação do capitalismo industrial no Brasil – como também se relacionava com a corrente
Socialista em questões nacionalistas e reformistas, como a Reforma Agrária, e em defesa de direitos
e garantias Trabalhistas.
Segundo Bielschowsky, o Nacionalismo foi o principal tema político e econômico dos anos
50 no Brasil. A questão da exploração do Petróleo, por exemplo, contou não apenas com um intenso
13 BIELSCHOWSKY, Ricardo. Pensamento Econômico Brasileiro: o ciclo ideológico do desenvolvimentismo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000, p. 33-34. 14 Idem, Ibidem.
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debate político, como também atingiu a imprensa e a sociedade como a campanha nacionalista “O
Petróleo é Nosso” que mobilizou diversos setores da sociedade civil em torno do projeto. Esse
debate também esteve presente dentro das Forças Armadas, através de grupos antagônicos que se
alinhavam em torno de projetos políticos, econômicos e estratégicos. Neste período de Guerra Fria,
o setor militar defensor de um alinhamento ideológico e político aos EUA também foi o mesmo a
seguir a corrente Liberal na economia, que defendia a participação do capital estrangeiro, inclusive
na questão do Petróleo, o que acabou lhe rendendo a pecha de “entreguista” junto à esquerda.
Porém, ao mesmo tempo em estes militares defendiam um Estado pouco atuante no
planejamento e na intervenção econômica, o mesmo grupo defendia um governo central forte e
autoritário, com severas restrições à participação política de setores populares, seguindo aquilo que
José Murilo de Carvalho destacou como “tenentismo de Juarez Távora”15. Este grupo, reunido em
torno da Escola Superior de Guerra (ESG), contou, além de Juarez Távora, com Golbery do Couto e
Silva, Humberto de Alencar Castelo Branco e Bizarria Mamede. Formada por oficiais intelectuais,
que receberiam o apelido de “Coronéis da Sorbonne” (a maioria fez curso na Escola Superior de
Guerra Francesa)16 a ESG buscava propor “projetos para o Brasil”. Por exemplo, já no primeiro
número da Tribuna da Imprensa, em 27 de dezembro de 1949, começou a ser publicada uma série
de pequenos artigos acompanhados por quadros explicativos, sob o título “Um projeto para o
Brasil”, de autoria de Juarez Távora. Nestes quadros, Távora, de maneira didática, discutia e
apontava os principais “gargalos” para o desenvolvimento do Brasil e propunha soluções, sempre
seguindo a doutrina liberal e modernizadora.
Para aqueles oficiais que colocaram a luta ideológica como sua principal bandeira, a chapa
denominada Cruzada Democrática foi a resposta aos setores “esquerdistas” dentro das Forças
Armadas nas disputas pelo controle do Clube Militar. A vitória do grupo nacionalista em 1950,
encabeçado pelo General Newton Estillac Leal, iria acirrar ainda mais a divisão ideológica dentro
das Forças Armadas. Em maio de 1955, com a morte de Leal, então no cargo de Inspetor Geral do
Exército, o General Zenóbio da Costa assumiria seu posto e a liderança da ala nacionalista do
Exército. Seu gabinete formaria o Movimento Militar Constitucionalista (MMC)17 que seria de
grande importância na resistência à articulação golpista da União Democrática Nacional (UDN) e
da ESG na eleição presidencial de 1955, e seria a principal articuladora do golpe preventivo
comandado pelo Ministro da Guerra, Henrique Teixeira Lott em 11 de novembro18.
Mas, é necessário deixar claro que a maioria dos oficiais das Forças Armadas, a despeito de
naturalmente terem suas convicções políticas e ideológicas individuais, não fazia parte de qualquer
15 CARVALHO, José Murilo. Forças Armadas e Política no Brasil. Op. cit., p. 130. 16 WILLIAM, Wagner. O Soldado Absoluto, uma biografia do Marechal Henrique Lott. RJ: Record, 2005, p. 22. 17 Idem, Ibidem, p. 58. 18 Idem, ibidem, p. 123 -124.
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movimento político, assumindo como sua principal obrigação a defesa da hierarquia, da disciplina e
da legalidade. O próprio General Henrique Lott, nomeado para o Ministério da Guerra por Café
Filho, logo após o suicídio de Vargas, fazia parte desse grupo de oficiais legalistas e profissionais
que não tinham por vocação, a política. Segundo Wagner William, Lott só assumiria uma postura
nitidamente política durante o governo Kubitscheck, quando, ainda Ministro da Guerra, passou a
defender o nacionalismo (mas sem abandonar seu anticomunismo baseado em critérios cristãos),
sendo inclusive candidato à presidência da República em 196019.
Nos partidos políticos, de maneira geral, podemos dizer que a UDN e o PCB (mesmo na
clandestinidade) eram as faces mais definidas na divisão do pensamento econômico, representando
os defensores das correntes Liberal e Socialista, respectivamente. O PTB era majoritariamente
Desenvolvimentista, mas a sua aproximação com o PCB no final dos anos 50 e início dos anos 60
rendeu-lhe um caráter reformista que se aproximava das demandas socialistas. O Partido Social
Democrata (PSD) era o partido com posições mais fluidas, transitando entre o Liberalismo e o
Desenvolvimentismo, mas raramente adotava bandeiras Socialistas, a não ser aquelas que eram
divididas com o PTB, ou seja, Trabalhistas.
Entretanto, assim como destaca Lucilia de Almeida Neves Delgado, no politicamente
dinâmico final dos anos 50, começam aparecer “frentes parlamentares” alinhadas a diferentes visões
econômicas, políticas e sociais, as quais eram formadas por parlamentares de diversas legendas
partidárias para garantir ou evitar mudanças, sobretudo constitucionais, o que representa dizer que
os partidos não detinham o monopólio ideológico sobre cada demanda20.
Dentre essas frentes parlamentares, destacou-se, para o lado nacionalista e progressista, a
Frente Parlamentar Nacionalista (FPN) cujas atividades compreenderam os anos de 1956 e 1964.
Formada principalmente por deputados do PTB, a FPN ligou-se à sociedade civil através de
entidades de caráter reformista como a União Nacional dos Estudantes (UNE), Confederação Geral
dos Trabalhadores (CGT) e as Ligas Camponesas. Sua orientação ideológica e econômica era
fortemente ligada ao ISEB, sobretudo à ala nacional-desenvolvimentista. Além da defesa do
nacionalismo e da participação estatal na gerência da economia brasileira, a FPN também se
destacou como uma das principais defensoras do legado Trabalhista, lutando pela sua ampliação e
pelas Reformas de Base durante o governo de João Goulart21.
19 Idem, Ibidem. Passim. 20 DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. Partidos Políticos e frentes parlamentares: projetos, desafios e conflitos na democracia. In: FERREIRA, Jorge e DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (org.) O Brasil Republicano, o tempo da experiência democrática. Op. cit., p. 147-149. 21 Idem, ibidem, p. 150.
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No lado liberal-conservador, tivemos a Ação Democrática Parlamentar (ADP ou ADEP),
nascida em setembro de 196122, formada por deputados da UDN, PR (Partido Republicano), PDC
(Partido Democrata Cristão), e do PSD, mas também contando com alguns deputados dissidentes do
PTB23.
A ADP era ligada ao Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), criado em 1959,
patrocinado por empresas nacionais e estrangeiras como uma organização anticomunista, que
financiaria diversos políticos da ADP nas eleições de 1962. Junto com o Instituto de Pesquisas e
Estudos Sociais (IPÊS), criado em 1962, o IBAD financiou, produziu e divulgou vários programas
radiofônicos, televisivos, campanhas publicitárias, folhetos, palestras, eventos, cursos e matérias
jornalísticas com conteúdo fortemente anticomunista, conservador e moralista, em defesa da dita
“civilização ocidental e cristã”, conseguindo assim apoio de setores da Igreja Católica. Aliado ao
complexo IPÊS-IBAD, nasceram outras agremiações civis de cunho político anticomunista como a
União Cívica Feminina e a Campanha da Mulher pela Democracia (CAMDE)24.
4. CARLOS LACERDA, UM LIBERAL-CONSERVADOR DE ARROUBOS
NACIONALISTAS E DESENVOLVIMENTISTAS
O lacerdismo não se destacou por propor profundos debates acerca da condução econômica
do Brasil. Seu discurso era pautado principalmente na defesa do moralismo ascético na
administração pública, no seu antiesquerdismo, no antigetulismo e na defesa dos valores morais
cristãos.
Evidentemente, no que diz respeito ao seu posicionamento econômico – que como
acabamos de afirmar na primeira parte deste artigo, era o maior delimitador de grupos políticos na
época –, sua proximidade ideológica e política com os liberais da UDN e com os militares da Escola
Superior de Guerra (ESG), sobretudo a Aeronáutica, colocaram Carlos Lacerda e os lacerdistas
junto aos ditos “liberal-conservadores”: defensores da propriedade privada, da livre iniciativa, da
redução do Estado nas atividades econômicas, da entrada de capital estrangeiro e da incondicional
inserção do Brasil no mundo ocidental capitalista alinhado aos EUA.
22 Idem, ibidem, p. 149-152. 23 Ação Democrata Parlamentar, suplemento especial da Revista Ação Democrática, março de 1962, p. 21-23. 24 DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. Partidos Políticos e frentes parlamentares: projetos, desafios e conflitos na democracia. In: FERREIRA, Jorge e DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (org.) O Brasil Republicano, o tempo da experiência democrática. Op. cit., p. 150-151.
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Apesar de ter marcado sua atuação política entre setores liberais e conservadores, é
importante ressaltar o passado “esquerdista” do jovem Carlos Lacerda. Sua rápida passagem pela
Aliança Nacional Libertadora (ANL) e pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB) nos anos 30
(nunca foi oficialmente filiado) terminou com um rompimento traumático em 1939. Lacerda, que
desde 1938 trabalhava como jornalista para as revistas Observador Econômico e Financeiro e para
a revista Diretrizes (de seu futuro inimigo político e pessoal, Samuel Wainer), publicou um artigo
encomendado pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) do Estado Novo intitulado “A
Exposição Anticomunista” publicado na revista Observador Econômico e Financeiro, nº. 36, de
janeiro de 1939.
A matéria gerou uma séria acusação de delação e traição por parte de seus antigos amigos e
companheiros de ANL. Esse rompimento faria com que, segundo Marina Gusmão, esse evento
fomentasse um grande rancor e um sentimento de revanche contra os comunistas25. Décadas mais
tarde, em seu Depoimento, Lacerda ainda lembrava com rancor do acontecido:
Essa é uma fase realmente muito triste da minha vida, porque amigos de infância, amigos de todo dia, amigos de café, amigos de confidência, amigos desde os tempos de namoro, amigos de tomar chope [...] me voltavam a cara na rua.26
Desde então, já durante o Estado Novo e trabalhando para Assis Chateaubriant no Diário
Carioca e posteriormente na Agência Meridional, Lacerda dá a sua “guinada para a Direita” e passa
a professar a orientação liberal na política e na economia. Ao filiar-se à UDN ao final da Ditadura
Vargas no início de 1945, Lacerda apóia com entusiasmo a candidatura do Brigadeiro Eduardo
Gomes, deixavando claro que sua opção política inicial seria aquela que assumiria o antigetulismo
como principal bandeira. Mas do antigetulismo radical inicial, Lacerda logo se colocaria também
contra o nacionalismo e o trabalhismo. As ligações do PTB e dos nacionalistas com setores da
esquerda, dentre eles o PCB, como aconteceu durante o Movimento Queremista em 1945, também
reafirmariam em Carlos Lacerda o seu antiesquerdismo.
Conforme dissemos, a ESG tornou-se um núcleo intelectual importante na formação de
quadros, militares ou civis, em torno do ideário liberal e anticomunista. A ligação própria de Carlos
Lacerda com os Militares, após o Estado Novo, ficou fortalecida tanto na prática, como no
imaginário popular, com seu apoio às candidaturas do Brigadeiro Eduardo Gomes, do General
Juarez Távora em 1955 (pelo PDC, mas com o apoio da UDN), e com a trágica morte do Major-
aviador Rubem Vaz no atentado da Rua Tonelero.
A amizade pessoal de Lacerda com o General Canrobert Pereira da Costa - membro da
Cruzada Democrática27, presidente do Clube Militar (1954-1955), chefe do Estado-Maior das
25 Idem, ibidem Op. cit., p. 44-56. 26 LACERDA, Carlos. Depoimento. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978, p. 49-50.
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Forças Armadas durante o governo Café Filho e um dos líderes do “Manifesto dos Generais” que
pediu a renúncia de Vargas em agosto de 1954 -, seria notória e destacada nos editoriais na Tribuna
da Imprensa28.
Seria com a criação da Escola Superior de Guerra em 1949 que o Exército, sobretudo sua
linha mais conservadora, iria criar maior consciência e organização política29. Em 1954, o General
Juarez Távora, então na direção da ESG, assinala que os cursos oferecidos pela instituição estavam:
[...] iniciando passos decisivos, [para] constituir-se um centro de entrosamento efetivo de nossa elite, civil e militar, preparando-lhes os caminhos por que poderia conduzir o Brasil aos rumos político-administrativos que, por circunstâncias várias, se abririam, para o país, dez anos mais tarde, em 196430.
Dentre os participantes civis do Curso Superior de Guerra, ou Curso Superior de Segurança
Nacional iniciado em março de 1954, estava o jornalista Carlos Lacerda, indicado pela Associação
Brasileira de Imprensa31. Os cursos ministrados pela ESG, orientados pela doutrina de Segurança
Nacional, geralmente eram de caráter anticomunista, antinacionalista e preventivo a agitações
contra a ordem interna, características encontradas tanto no discurso da UDN como no
lacerdismo32.
Mas a ligação de Carlos Lacerda com os militares não se baseou somente em sua rede de
alianças pessoais. Segundo o General Octávio Costa, em depoimento cedido a Maria Celina
D’Araujo e Gláucio Soares, naquele período, muitos militares tinham “fascínio” por Carlos
Lacerda: “As Forças Armadas ainda eram messiânicas [...] Preocupam-se em salvar o país. E elas
sempre foram muito sensíveis ao moralismo [...] Lacerda era um dos espadachins do moralismo”33.
Marcando sua posição “antifascista”, anos depois, o fenômeno Peronismo na Argentina
durante os anos 50 – que também era identificado por grande parte dos liberais brasileiros como um
regime fascista e “populista” (assim como fôra o Estado Novo segundo estes críticos) –, seria outro
alvo das críticas e acusações de Lacerda contra Getulio Vargas e João Goulart, alimentando a
oposição com supostas conspirações contra a pátria em favor de um acordo secreto com o regime
argentino. De fato, o antinacionalismo de Lacerda e da Tribuna da Imprensa, era
primordialmente identificado como um discurso para atingir Vargas e seus aliados, e não uma
doutrina econômica seguida pelo jornalista.
27 Movimento organizado em 1952 por militares conservadores antigetulistas com o objetivo de derrotar a vertente nacionalista dentro do Clube Militar. 28 LACERDA, Carlos. Depoimento. Op. cit. , p. 155. 29 MARTINS FILHO, João Roberto. Op. cit. p. 105. 30 TÁVORA, Juarez. Uma vida e muitas lutas - Memórias. Vol. 2, Rio de Janeiro: BIBLIEX1976, p. 233. 31 Idem, ibidem. 32 MARTINS FILHO, João Roberto. Op. cit. p. 121. 33 D’ARAUJO, Maria Celina; SOARES, Gláucio Dilon; CASTRO, Celso. Visões do Golpe. A memória militar de 1964. São Paulo: Ediouro, 1994, p. 81-82
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Em assuntos econômicos, percebemos que Lacerda adotava discursos não tão rígidos e que,
portanto, variavam de acordo com o contexto. Na realidade, a despeito de sua ligação política e
ideológica com os Liberais, Lacerda apresentava “arroubos” nacionalistas e desenvolvimentistas.
Seja ainda como jornalista nos anos 50, seja no cargo de governador do Estado da Guanabara nos
anos 60, em determinados momentos Lacerda iria defender iniciativas “não liberais” para a
condução da economia.
O episódio mais emblemático de tais “surtos” nacionalistas é aquele que diz respeito ao
Projeto do Petróleo. No final do governo Dutra, Lacerda pediu sua demissão do jornal Correio da
Manhã (onde assinava a coluna “Na Tribuna da Imprensa”) em maio de 1949 em função dos atritos
provocados por vários de seus artigos agressivos34 contra dois grupos interessados na questão do
refino do petróleo no Brasil: o Peixoto de Castro e o Soares Sampaio (representante do Grupo
Gulf). Os Soares Sampaio, cuja família era amiga íntima de Paulo Bittencourt, proprietário do
jornal que chegou inclusive a censurar alguns artigos35. Na ocasião Lacerda defendia um possível
monopólio estatal caso o processo de licitação e abertura ao capital privado não fosse totalmente
claro: “Eu sustentava que ou se abria uma concorrência pública para as refinarias ou se fazia as
refinarias estatais”36.
Já no segundo governo Vargas, a UDN e a Tribuna da Imprensa de Lacerda colocaram-se
radicalmente contra o projeto apresentado pelo presidente em relação a uma possível participação
de capital estrangeiro na produção petrolífera brasileira, acusando-o de ser, inclusive, “entreguista”.
Sobre isso, em 7 de setembro de 1951, o jornal de Lacerda estampava na primeira página: “Colossal
Mistificação a Fórmula Vargas sobre o Projeto do Petróleo”. No artigo da página quatro, de autoria
de Lacerda, encontramos um discurso bastante estranho à tradição udenista: “O Sr. Getúlio Vargas
conseguiu esta perfeição: o povo vai ajudar os trustes estrangeiros a montarem o seu negócio com
petróleo brasilero”37.
Segundo Ana Maria de Abreu Laurenza, essa postura “antiliberal” de Lacerda e da UDN era
motivada não só pelo apelo popular do projeto nacionalista em torno do projeto do Petróleo, mas
também pela vontade de manter uma inflexível e radical oposição a tudo aquilo que fosse iniciativa
do governo federal38.
O “desenvolvimentismo” do governo Juscelino Kubitscheck – que sofrera pesadas críticas e
acusações de corrupção através da Tribuna da Imprensa e em sua atuação como deputado federal
no Congresso Nacional –, recebeu elogios (mesmo que de maneira velada) de Carlos Lacerda em
34 MENDONÇA, Marina Gusmão de. Op. cit., p. 100. 35 Apesar da demissão, Lacerda conseguiu os direitos sobre o título “Na Tribuna da Imprensa”. 36 LACERDA, Carlos. Depoimento. Op. cit., p. 74. 37 Tribuna da Imprensa, 07/11/1951. 38 LAURENZA, Ana Maria de Abreu. Op. cit., p. 113.
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suas memórias: “A verdade é que com desenvolvimento ‘às caneladas’ ou não, o governo do
Juscelino, com a criação, por exemplo, da industria automobilística, tinha começado a dar uma
grande esperança no Brasil”39.
A administração de Carlos Lacerda no Estado da Guanabara, entre 1961 e 1965, foi marcada
por uma pesada participação estatal na infra-estrutura do Estado. A historiografia tradicional acerca
do governo Lacerda aponta que as inúmeras obras realizadas foram possíveis graças à “Lei San
Tiago Dantas” que destinaria novas verbas e obrigações federais a título de compensação pela perda
da capital federal para Brasília40 e aos Empréstimos da “Aliança para o Progresso” do governo dos
Estados Unidos da América que destinaria verbas aos países a fim de barrar a penetração comunista
na América Latina41. Além destas duas fontes, são comuns as referências a um severo aumento da
carga tributária no Estado e a uma suposta ajuda do governo Castelo Branco nos anos seguintes ao
golpe de 196442.
Maurício Dominguez Perez, abordando a administração de Carlos Lacerda no Estado da
Guanabara, refuta essa visão tradicional da historiografia. Baseado em vasta documentação de
origem técnica e administrativa, afirma que apenas 5% das verbas gastas nas obras do governo
vieram de empréstimos estrangeiros43. A pesquisa também mostrou, de maneira surpreendente, que
durante o governo Castelo Branco as verbas repassadas à Guanabara foram menores do que as feitas
durante o governo Goulart44, e que a nova “dupla tributação” não representou nenhum aumento
efetivo, já que ela era praticada desde os tempos de Distrito Federal45. Derrubando as versões
tradicionais, Maurício Dominguez explica que as fontes das verbas foram possíveis graças a uma
profunda reestruturação na administração da cidade46, a melhoria substancial no combate a
sonegação de impostos e modernização da fiscalização fazendária47, o aumento da “taxa da água”
(que não apresentava qualquer reajuste desde 1947)48 e do Imposto de Verbas e Consignação
(IVC)49. Dominguez aponta que mesmo feito esses aumentos nas taxas, o Estado continuou tendo
uma das menores cargas tributárias do país50. O Banco do Estado da Guanabara, substituindo o
39 LACERDA, Carlos. Depoimento. Op. cit., p. 230. 40 MOTTA. Marly Silva da. Saudades da Guanabara. Rio de Janeiro: FGV, 2004, p. 59-60. 41 Idem, ibidem. 42 PEREZ, Maurício Dominguez. Lacerda na Guanabara. A reconstrução do Rio de Janeiro nos anos 1960. Rio de Janeiro: Odisséia Editorial, 2007, p. 132-142. 43 Idem, ibidem, p.144. 44 Idem, ibidem, p.140. 45 Idem, ibidem, p.135. 46 Idem, ibidem, 142-145. 47 Idem, ibidem, 143. 48 Idem, ibidem, p. 130-131. 49 O IVC correspondia ao atual ICMS, sendo, portanto, a principal fonte arrecadadora do Estado. 50 Idem, ibidem, 143.
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antigo Banco da Prefeitura, também é apontado como um importante fator de financiamento para as
obras do governo51.
De posse desses recursos e de uma equipe formada de técnicos, Lacerda iniciou um “Plano
de Ação” que abrangia enormes e onerosas obras públicas, além da criação de diversas estatais e
autarquias como a Superintendência de Urbanização e Saneamento (Sursan), o Departamento de
Estradas e Rodagem (DER), a Superintendência de Serviços Médicos (Suseme), o Banco do Estado
da Guanabara (BEG), a Companhia de Progresso do Estado das Guanabara (Copeg), a Companhia
Estadual de Telefone (Cetel), a Companhia de Habitação (COHAB) e a Companhia de Transportes
Coletivos (CTC). Lacerda empenhou-se também num verdadeiro “Plano de Metas” de vultosos
investimentos estatais aos moldes desenvolvimentistas de Juscelino Kubitscheck: a ampliação do
sistema escolar, o abastecimento de água e a ordenação do espaço urbano (a polêmica política de
remoção de favelas).52
Seguindo agora uma cartilha desenvolvimentista, Lacerda apostaria na criação de duas zonas
industriais: uma ao longo da Avenida Brasil, e outra em Santa Cruz, onde era prevista a instalação
de indústrias pesadas, como a Companhia Siderúrgica da Guanabara (COSIGUA), considerada pelo
próprio Lacerda como a “menina dos meus olhos, porque eu só acreditava na viabilidade econômica
da Guanabara como Estado, se ela tivesse uma industria de base que servisse de espinha dorsal para
sua industrialização”53. Sobre o parcial fracasso dessa iniciativa estatal, Lacerda lamenta em
depoimento:
[...] tínhamos desapropriado 600 hectares de terra junto à Base Aérea de Santa Cruz para implantar ali a zona industrial do Estado. Eu queria fazer lá a COSIGUA, que afinal só foi feita [...] quando o grupo Gerdau, de Porto Alegre, se associou ao grupo Thyssen. Conseguimos trazer o terminal da Central do Brasil até lá e também a licença para fazer o porto [de Sepetiba], mas não conseguimos fazer a COSIGUA. Primeiro porque acabou o governo, segundo, porque, com aquelas lutas todas, evidentemente o Governo Federal ficou contra54.
Ainda durante o governo João Goulart, o governador Lacerda teria novamente um “arroubo”
nacionalista. Desta vez, em relação à Light & Power Company, que além de eletricidade, prestava
serviços de telefonia nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo55. O próprio Lacerda em suas
memória atesta que chegou a ameaçar Antonio Gallotti, presidente da Light no Brasil, com um
decreto de desapropriação da Companhia Telefônica da Light, caso esta não melhorasse o serviço
telefônico. Lacerda diz também em suas memórias que a desapropriação só não foi consumada por
51 Idem, ibidem, 144. 52 MOTTA. Marly Silva da. Op. cit., p. 58. 53 LACERDA, Carlos. Depoimento. Op. cit., p. 306. 54 Idem, ibidem, p. 232-233. 55 A partir de um “consórcio alemão”, a Light adquire também concessões de serviço telefônico, passando a controlar as comunicações nas duas principais cidades do país, Rio de Janeiro e São Paulo até o ano de 1966, quando passa o serviço para o governo federal. In: Site do Grupo Light. Acessado em 18 de março de 2007. <http://www.light.com.br/web/institucional/cultura/seculolight/teseculo.asp?mid=8687942772267226>
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uma manobra política de Gallotti com o governo federal por intermédio do Ministro San Tiago
Dantas que acabou federalizando a questão telefônica no Brasil56.
Logo após o golpe civil-militar de 1964, Lacerda teria novamente um arroubo nacionalista,
que não seria o último, no mesmo ano e que o afastaria cada vez mais dos “revolucionários”. A
primeira crítica foi um protesto público contra o decreto presidencial de Castelo Branco que
devolvia refinarias de petróleo aos antigos proprietários57. Estas haviam sido desapropriadas por
João Goulart durante o comício da Central em 13 de maio de 1964.
Ainda neste contexto identificamos um outro momento nacionalista de Lacerda. Desta vez,
criticando o Plano de Ação Econômica do Governo (PAEG)58 elaborado pelo Ministro do
Planejamento e Coordenação Econômica do governo Castelo Branco, Roberto Campos, Lacerda
adotaria novamente uma postura nacionalista, sobretudo na defesa de diversas siderúrgicas pelo
país, e até mesmo uma “cartilha heterodoxa”, que admitia a manutenção de índices moderados de
inflação para garantir o desenvolvimento econômico59.
Em artigo defendendo sua candidatura à presidência em 1965, Lacerda ataca Roberto
Campos e adota um discurso nacionalista, talvez acenando ao eleitoral Trabalhista:
É pena que se julgue que a revolução foi para o Fundo Monetário Internacional, contra o qual nada temos, mas que também nada tem com o Brasil. Estimaria que os círculos financeiros de Nova Iorque estivessem menos satisfeitos com a nossa revolução, e os trabalhadores de São Bernardo do Campo mais confiantes nela60.
É importante ressaltar que ao mesmo tempo em que critica Roberto Campos por não destinar
apoio governamental à indústria nacional e as novas siderúrgicas estatais, Lacerda entra em
contradição ao acusar o Ministro do Planejamento de promover com o PAEG uma “planificação
estatista” da economia brasileira, assumindo novamente um discurso liberal lembrando que aqueles
“tecnocratas” nada mais eram do que “autores do Plano de Metas do governo Kubitschek”61. Chega
a ser curioso o então governador da Guanabara usar estes termos para atacar os idealizadores do
56 Idem, ibidem, p. 385-386. 57 LACERDA, Cláudio. Carlos Lacerda e os anos sessenta: oposição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p. 117. 58 O PAEG tinha como principais objetivos: (i) a retomada do crescimento econômico, interrompido pela crise de 1962/1963, (ii) controle do processo inflacionário, (iii) diminuir as desigualdades regionais e setoriais do país, (iv) redução do desemprego, (v) inverter a tendência de déficit na balança de pagamentos. Para atingir tais metas, o PAEG previa corte de gastos governamentais, a manutenção de uma política de responsabilidade fiscal e abertura ao capital estrangeiro, mas sem, contudo, adotar uma política de redução fiscal no setor produtivo, um processo de privatizações de estatais e sem abandonar programas que previam uma forte intervenção estatal com investimentos em infra-estrutura e prestação de serviços. REZENDE, André Lara. A Ordem do Progresso. Cem anos de política econômica Republicana, 1889-1989. Rio de Janeiro: Campus, 1990, p. 213-215. 59 LACERDA, Carlos. Depoimento. Op. cit., p. 306. 60 LACERDA, Carlos. Por que sou candidato. Artigo de 7/11/1964, publicado na Revista Manchete. In: PICALUGA, Izabel Fontenelle. Partidos políticos e classes sociais: a UDN na Guanabara. Petrópolis: Vozes, 1980, p. 109. 61 No caso, pode-se argumentar também que Lacerda estava, de fato, expondo as contradições do Governo e do Ministro Roberto Campos.
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PAEG durante uma gestão que, conforme foi apontado por Marly Silva da Motta, também se propôs
a empreender um “Plano de Metas” com vultosos investimentos estatais62.
Durante os debates públicos em torno do PAEG, como a carta aberta endereçada ao
Presidente Castelo Branco em 17 de maio de 1965 e publicada sob forma de livro “Brasil, entre a
verdade e a mentira”63, Lacerda vai à televisão, em 18 de maio de 1965, e ataca frontalmente
Roberto Campos:
É preciso que alguém tenha a coragem de dizer, no Brasil de hoje – no qual o Ministério do Planejamento se tornou um superministério e seu ministro, de fato, primeiro ministro – que esse Ministério foi criado e teve cabimento exatamente para estatizar a economia brasileira e que, portanto, não faz sentido numa Revolução que veio para libertá-la dessa terrível ameaça. É preciso dizer: a planificação global da economia é incompatível com uma sociedade democrática, baseada na livre empresa64.
Ainda sobre suas críticas ao PAEG, Lacerda, criticava a “estatização” como forma de
combater a inflação:
O processo inflacionário, no Brasil, tem seu ponto central no elevado grau de estatização da
economia. O combate à inflação, portanto, tem de ser concentrado nos setores que não prejudicam a
produção e não, exatamente o oposto, como está fazendo o Governo. O governo reforça o setor
estatal da economia – mais de 50% e sempre crescendo. E enfraquece o setor livre a ponto de
estrangulá-la (sic)65
Roberto Campos, em sua autobiografia, comenta as críticas que o PAEG recebeu:
(...) Ao longo da gestação do PAEG, abriram-se duas controvérsias. Uma, de muito maior respeitabilidade, provinha das observações do professor Gudin66, que via na idéia do planejamento uma das grandes idiossincrasias da CEPAL: a propensão ao intervencionismo estatal e ao dirigismo planificador. Para Gudin, cultor da Escola Austríaca67, a ciência econômica não tinha outro propósito senão “explicar” as conseqüências não-intencionais da ação humana. [...]
A outra linha de objeção era de caráter político e seu arauto principal era o governador Carlos Lacerda. Especialista em criar bonecos de palha para depois destruí-los, Lacerda descrevia o PAEG como um “código de intervencionismo e dirigismo estatal”, aplicado a uma economia
62 MOTTA. Marly Silva da. Saudades da Guanabara. Rio de Janeiro: FGV, 2004, p. 59-60. 63 LACERDA, Carlos. Brasil entre a verdade e a mentira. Rio de Janeiro: Bloch, 1965. 64 LACERDA, Carlos. Apud. LACERDA, Cláudio. Op. cit., p. 121-122. 65 Idem, ibidem, p. 63. 66 Engenheiro de formação, Eugênio Gudin foi Ministro da Fazenda do Governo Café Filho e Vice-presidente da Fundação Getúlio Vargas na ocasião de suas críticas ao PAEG. Foi um dos maiores defensores do liberalismo econômico no Brasil. 67A chamada Escola Austríaca, desenvolvida a partir da década de 40 e 50 do século XX, é aquela formada por economistas neoclássicos conservadores, defensores daquilo que E. K. Hunt chamou de capitalismo de “laissez-faire extremado”. Defensores de uma radical redução do Estado e contra qualquer intervenção estatal na economia, inclusive em se tratando de políticas públicas previdenciárias e sociais, seus principais pensadores foram Ludwig von Mises e Friederich A. Hayek. Ambos lecionaram na Universidade de Chicago por vários anos, ajudando a formar uma geração de economistas que ficaria conhecida como “Chicago Boys” ou simplesmente, Escola de Chicago. Destes, o Nobel de Economia de 1976, Milton Friedman seria o economista mais influente para o Neoliberalismo dos anos 80 e 90. HUNT, E. K. História do Pensamento Econômico. Rio de Janeiro: Elsevier/Campos, 2005, p. 435-442.
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“socializante sem ser socialista, com um palavreado liberal e atos intervencionistas”. Achava o PAEG comprometido pelo vício original de tomar o complexo econômico, numa sociedade democrática, como algo que pode e deve ser objeto de um planejamento ou programa global. E pleiteava a adoção de uma “política de soluções práticas, adaptável às circunstâncias”. Em vez do planejamento, caberia perseguir um “oportunismo econômico”, capaz de aproveitar os fatores favoráveis que viessem a surgir e não sofrer, por sua rigidez, os desgastes dos fatores contrários. 68
Segundo Marina Gusmão, as criticas ao Ministro do Planejamento, chamado por Lacerda de
maneira pejorativa de “tecnocrata” era motivada por questões eleitoreiras. Virtual candidato da
UDN à presidência em 1965, Lacerda temia que o nome de Roberto Campo fosse indicado pelo
presidente Castelo Branco para ser o seu substituto69.
O fato de Lacerda ser um político que se posicionava como um liberal-conservador, mas que
tinha momentos de discursos nacionalistas e desenvolvimentistas não deixa de ser algo ordinário na
política brasileira. Raramente encontramos em setores da política brasileira um posicionamento
“fechado” em relação a qualquer uma das vertentes econômicas. Por exemplo, Getúlio Vargas, que
era comumente classificado com um nacionalista nato, nunca recusou ou deixou de ver com bons
olhos a entrada de capital estrangeiro para o desenvolvimento industrial.
Em relação a outros presidentes do período democrático, o mesmo pode ser dito em relação
a Eurico Dutra e a Juscelino Kubitschek. Nacionalismo, desenvolvimentismo com participação
estatal e abertura ao capital estrangeiro, várias vezes caminhavam de mãos dadas, variando de
intensidade de acordo com a conjuntura nacional e mundial.
O próprio presidente João Goulart, em entrevista a jornalistas estrangeiros na ONU,
enquanto explicava as recentes desapropriações de empresas americanas, deixava claro que
parceiros e investidores de outros países seriam bem-vindos ao Brasil desde que seus lucros fossem
“justos” e não representassem o “empobrecimento do país” 70. Longe de ser uma postura liberal,
essa posição de João Goulart não se aproximava em nada ao socialismo de que era acusado.
68 CAMPOS, Roberto, A Lanterna na Popa. Rio de Janeiro: Ed. Topbooks, 1a Edição, 2002, p. 620-621. 69 MENDONÇA, Marina Gusmão. Op. cit., p. 330-331. 70 De um trecho da entrevista proferida na ONU reproduzida no documentário “Jango”. Direção: Silvio Tendler, Brasil/RJ - 1984.
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O REGIME MILITAR, A PREVIDÊNCIA SOCIAL E O EMPRESARIADO
Ignacio Godinho Delgado*
Resumo: O artigo descreve as iniciativas dos governos militares brasileiros em relação à proteção social, conducentes, por um lado, à centralização burocrática do sistema previdenciário e à ampliação de sua cobertura, enquanto, na direção oposta, verifica-se o fortalecimento do setor privado na oferta de serviços sociais, notadamente a saúde. Apresenta, ainda, o posicionamento desenvolvido pelos empresários em relação à previdência social, num período em que esta já consolidara sua conversão ao regime de repartição simples, ao passo que a proteção social brasileira, como um todo, direciona-se no sentido de sua americanização. Palavras chave: regime militar, previdência social, empresariado. Abstract: The article describes the initiatives of Brazilian military governments in relation to social protection, leading, on one hand, to bureaucratic centralization of the pension system and broader coverage while, in the opposite direction, the private sector is strengthened in the offering of social services, especially health assistance. It also presents the position developed by the business sector in relation to the pension system, in a period in which it had already consolidated its conversion to a regime of simple partition, while Brazilian social protection, as a whole, headed towards Americanization. Keywords: military regime, welfare, business.
1. APRESENTAÇÃO
Neste artigo, apresentamos, num primeiro momento, as iniciativas tomadas pelos governos
militares em relação à previdência social, que conduzem, por um lado, à centralização burocrática
do sistema previdenciário e à incorporação de novos segmentos sociais à proteção social, enquanto
que, na direção oposta, verifica-se o fortalecimento do setor privado na oferta de serviços sociais,
notadamente a saúde. Em seguida, relatamos o posicionamento desenvolvido pelos empresários em
relação à previdência social, num período em que esta já consolidara sua transformação em direção
ao regime de repartição simples, ao passo que a proteção social brasileira, em seu conjunto,
direciona-se no sentido de sua americanização. O artigo encerra-se com um pequeno sumário das
questões tratadas e as considerações finais.
* Doutor em Sociologia e Política. Professor do Departamento de História e do Programa de Pós Graduação em História da UFJF.
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2. O REGIME MILITAR E A PREVIDÊNCIA SOCIAL
A instalação do regime burocrático-autoritário no Brasil, com a vitória do movimento de 31
de março de 1964, desfez os nós da paralisia decisória em que se enredara o governo Goulart no
crepúsculo da República Trabalhista. Para tanto, foram alteradas as regras do jogo político e
excluídos da cena atores de peso na situação anterior, notadamente o movimento operário. No plano
político, as cassações, intervenções em sindicatos, a limitação ao exercício pleno das franquias
democráticas, a restrição ao direito de greve e a reformulação do sistema partidário criavam o
cenário adequado para a efetivação de um programa de “racionalização” da vida econômica do país,
pavimentando o caminho para o aprofundamento daquilo que Fernando Henrique Cardoso e Enzo
Falleto chamaram, um dia, de desenvolvimento capitalista dependente e associado1.
As medidas iniciais tomadas pelo regime, ainda no governo Castelo Branco, sinalizavam a
direção que seria seguida. Eliminava-se a legislação referente à estabilidade no emprego e as
restrições à remessa de lucros das empresas, ao passo que eram impostos mecanismos de reposição
salarial essencialmente “técnicos”, que favoreciam o achatamento dos salários e reduziam a
possibilidade de os sindicatos, já manietados em sua capacidade de mobilização, recorrerem à
Justiça do Trabalho2. Simultaneamente, reorganizava-se o sistema financeiro brasileiro, com a
criação do Banco Central, a instituição da correção monetária, a definição de novos fundos de
investimento e a mudança nos mecanismos de financiamento do déficit do governo, por via da
tentativa de substituir o recurso às emissões pelo lançamento de títulos no mercado3. O sentido
1 CARDOSO, F. H. e FALLETO, E. CARDOSO, F.H. & FALLETO, E. Dependência e desenvolvimento na América Latina. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. As formulações de O’Donnel sobre o aprofundamento das economias latino-americanas, notadamente a brasileira que lhe serve de modelo, e sua relação com a instauração do “Estado Burocrático-autoritário” foram objeto de críticas variadas. José Serra demonstrou que o aprofundamento, associado à instalação de um departamento de bens de capital, não se inscreve nos objetivos perseguidos pelos primeiros governos militares no pós-64, enquanto Hirschman salientou que a adoção de políticas de racionalização, em alguns países da América Latina, não exigiu a instalação de regimes autoritários. De qualquer forma, é inegável, no Brasil, após 1964, o aprofundamento da industrialização pesada, com a expansão da produção de bens duráveis e da própria indústria de bens de capital, com o declínio da participação relativa dos bens de consumo leves na produção industrial. Consolida-se a base para a implantação, desta maneira, dos ramos industriais associados ao modelo fordista, ainda que a instalação deste, no Brasil, não venha conectado o predomínio da norma salarial fordista, caracterizada pela participação progressiva dos salários nos ganhos de produtividade das empresas, assegurada por contratos coletivos de trabalho. O’Donnel, G. (1976); SERRA, J. “Três Teses Equivocadas relativas à ligação entre Industrialização e Regimes Autoritários” e HIRSCHMAN, Albert. “A Mudança para o Autoritarismo na América Latina e a Busca de suas Determinantes Econômicas”. In: COLLIER, David (org). O Novo Autoritarismo na América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. Sobre o fordismo no Brasil ver MATTOSO, J.,A. Desordem do Trabalho. São Paulo: Scritta, 1995 e FERREIRA, C. G. “O Fordismo, sua Crise e o Caso Brasileiro”. In: Cadernos do CESIT Texto para Discussão. Nº 13. Campinas: CESIT/UNICAMP, S. D. 2 Sobre as medidas “saneadoras” tomadas no governo Castelo Branco, conferir ALVES, M. H. M. Estado e Oposição no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1984 e CRUZ, S. V. e MARTINS, C. E., “De Castelo a Figueiredo: uma incursão na pré-História da ‘Abertura’”. In: SORJ, B. e ALMEIDA, M. H. T. de. Sociedade e Política no Brasil pós-64. São Paulo: Brasiliense, 1983. 3 REZENDE, A. L. "Estabilização e Reforma" e LAGO, L. A. C. "A Retomada do Crescimento e as Distorções do Milagre (1967-1973). In: ABREU, M.P. A Ordem do Progresso: cem anos de política republicana - 1889-1989. Rio de Janeiro: Campus, 1992.
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geral de tais iniciativas era o controle da inflação e o estabelecimento de condições favoráveis à
retomada dos investimentos industriais, especialmente através da atração do capital externo.
Na dimensão institucional, não obstante as fases do regime, as diferentes configurações de
força estabelecidas entre as facções militares que o comandam e a presença de níveis diversos de
liberalização em cada governo, consolidou-se um arranjo institucional que articulava o núcleo
autoritário em que era confinado o processo decisório a um sistema eleitoral e partidário mitigado,
mantido para conferir legitimação eleitoral ao regime4. O processo decisório era contido em arenas
restritas e, no limite, realizava-se em meio a uma divisão de trabalho entre os militares e a
tecnoburocracia civil - cuja emergência remonta ao início da transição à industrialização pesada,
ainda sob o populismo -, bem como através dos diversos mecanismos de intermediação que ligam o
Estado e as elites econômicas. A condução da política econômica era confiada a setores
tecnoburocráticos vinculados ao grande capital e aos projetos de modernização que privilegiavam a
associação com o capital estrangeiro. Aos militares cabia a direção dos organismos de informação e
segurança, bem como aqueles ligados ao planejamento estratégico vinculado aos “objetivos
nacionais” da Doutrina de Segurança Nacional. A definição de uma estratégia global era efetuada
através do Conselho de Segurança Nacional, órgão que servia à compatibilização das orientações
dos dois setores de governo5. No que se refere às elites empresariais, o regime constituiu
mecanismos de intermediação que o tornavam poroso aos seus interesses. Tais mecanismos iam
desde o assento formal de lideranças empresariais em organismos como o Conselho Monetário
Nacional, à disseminação de “anéis burocráticos” entre a burocracia estatal e elites empresariais, ao
lado da multiplicação de agências estatais que tratam de políticas setoriais6.
O regime, entretanto, manteria uma relação ambígua com as instituições da democracia
representativa, o que se evidenciava na busca de legitimação eleitoral, ainda que às expensas da
proscrição do sistema partidário presente no antigo regime e da instituição de um bipartidarismo
4 Para um balanço das controvérsias na literatura referentes ao regime militar brasileiro ver FICO, C. Além do Golpe – Versões e controvérsias sobre 1964 e o regime militar. Rio de Jeneiro/São Paulo: Record, 2004; REIS, D. A ., RIDENTI, M.; MOTTA, R. P. S. (orgs.). O golpe e a ditadura militar: quarenta anos depois (1964-2004). Bauru: EDUSC, 2004; FICO, Carlos.et alli (orgs.). 1964-2004: 40 anos do golpe: ditadura militar e resistência no Brasil. Rio de Janeiro: 7Letras, 2004. 5 Cf. DULCI, O . e DREYFUSS, R. “As Forças Armadas e a Política”. In: SORJ, B. e ALMEIDA, M. H. op. cit. Ver também LAFER, C. O Sistema Político Brasileiro. São Paulo: Editora Perspectiva, 1975. 6 CARDOSO, Fernando Henrique. Autoritarismo e Democratização. Rio de Janeiro:Paz e Terra, 1975. Além do Conselho Monetário Nacional, merecem destaque organismos como o Conselho Ministerial de Preços e o Comissão de Desenvolvimento Industrial. A relação do Estado com o empresariado realiza-se de forma setorializada, o que dificulta a articulação horizontal deste ator em torno de políticas globais. Entretanto, não impede tal articulação para ações de veto, como se verifica na campanha contra a estatização da economia, detonada em função da transferência do PIS-PASEP da Caixa Econômica Federal para o BNDE e da ausência empresarial no Conselho de Desenvolvimento Econômico criado pelo governo Geisel. Tais medidas estão associadas à implementação do projeto de desenvolvimento previsto no II PND. A campanha contra a estatização reuniu setores significativos do empresariado. Uma das exceções de destaque foi ramo de bens de capital, que alimentara, num primeiro momento, expectativa positiva em relação ao seu papel dentro da estratégia industrial prevista no II PND . Conferir, BOSCHI, R. Elites industriais e democracia. Rio de Janeiro: Graal, 1979; VELASCO E CRUZ, S. Empresariado e Estado na Transição Brasileira.Campinas:Editora da UNICAMP/FAPESP, 1995.
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manietado pela redução das prerrogativas do parlamento e pelas intervenções freqüentes do
Executivo. Não obstante, a crise do regime, a partir de 1974, estaria associada à crescente afirmação
eleitoral do MDB, a legenda de oposição, que canalizaria os sinais difusos de insatisfação com os
governos militares, assegurando à dinâmica partidária e eleitoral crescente autonomia e conferindo
ao Congresso papel decisivo no processo de transição democrática7.
Em relação à proteção social, o regime militar caminhou em três direções: a busca da
despolitização e racionalização burocrática do sistema previdenciário, o alargamento de sua
cobertura, além da abertura de espaços para a afirmação do provimento privado de benefícios e,
principalmente, serviços8. Inicialmente, sob Castelo Branco, procurou-se purgar a previdência
social da influência político-partidária e da presença dos sindicatos, reforçando a dimensão técnica
do sistema, em consonância com a intenção saneadora que instruía as ações do governo no plano
político e econômico. Retomava-se, neste sentido, o propósito da unificação administrativa e da
centralização burocrática, conforme a formulação desenvolvida pelos técnicos da Previdência desde
19419. Mais adiante, seria buscada, durante o governo Médici, a universalização da cobertura, que
era associada à perspectiva militar da integração nacional, entendida, no caso em tela, como a
incorporação ao seguro social daqueles grupos não contemplados na estrutura previdenciária em
vigor10. Esta perspectiva foi, no entanto, acompanhada da redução do papel do Estado no
provimento dos serviços ligados à previdência social, notadamente no que se refere à saúde11.
Configurava-se, pois, um movimento ambíguo: por um lado, acentuava-se a universalização da
cobertura previdenciária, no que se refere aos benefícios, por outro, a iniciativa privada ganhava
importância na oferta de serviços previdenciários, favorecendo um processo que foi designado por
Maria Lúcia Werneck Vianna de americanização perversa do sistema de proteção social
brasileiro12. Em parte, tal processo seria ainda fortalecido pela regulamentação da previdência
7 DINIZ, E., “Transição, Partidos e Regimes Políticos”. In:CAMARGO, A. e DINIZ, E. (orgs) Continuidade e Mudança no Brasil da Nova República. São Paulo: Vértice, 1989. No desencadeamento do processo de transição, tem destaque a própria perspectiva de desengajamento militar, evidenciada na relação ambígua que estes estabelecem com a democracia representativa e acentuada em virtude do que Dulci e Dreyfuss denominam “síndrome de tensão-pressão”, referindo-se aos custos para a instituição militar da ampliação de seus papéis quando assume o governo. DULCI, O. e DREYFUSS, R. “As Forças Armadas e a Política”. In: SORJ, B. e ALMEIDA, M. H. Op. Cit.. 8 DELGADO, I. G. Previdência Social e Mercado no Brasil. São Paulo: LTr, 2001. 9 MALLOY, J. Política de Previdência Social no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1986; HOCHMAN, G. “Lógica da Ação Burocrática e Políticas Públicas - O Caso dos Cardeais da Previdência Social”.In: ANPOCS. Ciências Sociais Hoje. Rio Fundo, 1992. Pp 102-139 10 MALLOY, Op. Cit. 11TEIXEIRA, S. M. e OLIVEIRA, J. A. (Im)previdência Social - 60 anos de história da Previdência Social no Brasil. Petrópolis:Vozes, 1986. WERNECK VIANNA, M. L. T. Articulação de Interesses, Estratégias de Bem-Estar e Políticas Públicas: A americanização (Perversa) da Seguridade Social no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1998 Embora esta possibilidade estivesse contida na LOPS, é inegável que sob o regime militar ela se aprofunda. Além disto, com a restrição extremada à ação dos trabalhadores, o regime militar acentuava o processo de industrialização assentado em baixos salários, o que representava uma ruptura com as perspectivas redistributivistas que ganhavam fôlego ao final do regime populista. 12 WERNECK VIANNA, M. L. Op. Cit.
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privada suplementar, ao final dos anos 70, que abria uma primeira brecha no caráter público do
seguro social brasileiro13.
O primeiro passo desta trajetória efetivou-se com a criação do Instituto Nacional de
Previdência Social (INPS), pelo Decreto 72 de novembro de 1966. Após uma primeira tentativa
frustrada, sob comando de Arnaldo Sussekind, em 1965, a criação de um instituto único de
previdência foi efetuada na gestão de Luiz Gonzaga Nascimento e Silva no Ministério do Trabalho
e Previdência Social, que reuniu em torno de si os antigos técnicos do IAPI, sob comando de José
Dias Corrêa Sobrinho14. Junto à unificação administrativa, eliminar-se-ia a representação classista
na gestão da previdência, no início de 1967. Por outro lado, depois de décadas, em setembro de
1967, através da Lei 5.316, seriam absorvidas no seguro social as indenizações por acidentes de
trabalho, dobrando-se antiga resistência das seguradoras privadas que controlavam o setor desde
191915.
Fora dos marcos formais do sistema previdenciário, ainda no governo Castelo Branco, foi
criado o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), através da Lei 5.107, de novembro de
1966. Instituído para substituir a estabilidade no emprego, definida, a partir dos anos 30, como um
direito do trabalhador após 10 anos de serviço, o FGTS operava como a “contrafação de um seguro-
desemprego inexistente no país”16. Atendia, por um lado, à postulação das empresas, especialmente
as internacionais, que se dispunham a investir no Brasil, e por outro, servia à constituição das
reservas do Banco Nacional da Habitação (BNH), destinado ao enfrentamento dos dilemas
habitacionais das camadas de baixa renda. A rigor, como posteriormente se demonstrou, o FGTS
favoreceria a intensificação da rotatividade da mão de obra nas empresas, contribuindo para a
manutenção de níveis salariais baixos, ao passo que a política habitacional, sob a direção do BNH,
acabaria por servir fundamentalmente ao financiamento das construções de classe média, com
pequeno impacto na resolução do problema de moradia das camadas de baixa renda17.
Outro fundo também criado fora dos marcos formais da previdência social foi o Programa
de Integração Social (PIS), instituído por via da Lei Complementar Número 7, de setembro de 1970,
no governo Médici18. O regime militar apresentava sua resposta à questão da participação dos
empregados nos lucros das empresas, postulação que fora formulada pela primeira vez em 1919.
13 MENICUCCI, T. M. G. Previdência Privada : a Negação/Complementação da Previdência Social Pública. Belo Horizonte: Departamento de Sociologia da UFMG), 1990. ( Dissertação de Mestrado). 14 MALLOY, J. Op. Cit. 15 Id. Ibid. 16 SANTOS, V. G. Cidadania e justiça. Rio de Janeiro: Campus, 1979. pp 35.. 17 Id. Ibid. Ver também MELO, M. A. B. C. “A Formação de Políticas Públicas e a Transição Democrática: o Caso da Política Social”. In: Dados. Nº 3. V. 3. Rio de Janeiro: IUPERJ, 1990. 18 SANTOS, W. G. Op. Cit.. Ao PIS, constituído com vistas aos trabalhadores do setor privado, corresponderia o PASEP, criado pela Lei Complementar número 8, de dezembro de 1970, para formação de patrimônio do servidor público. Em 1975, através da Lei Complementar Número 26, de 11 de setembro, os programas seriam unificados.
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Medida essencialmente redistributiva, foi incorporada à Constituição de 1946. Ao longo do regime
populista, entretanto, as tentativas para sua regulamentação foram reiteradamente vetadas pelos
empresários, que se opunham ao princípio da participação direta, tal como se previa no texto
constitucional. O formato definido pela legislação que criou o PIS excluiu a participação direta e
converteu a participação dos trabalhadores nos lucros das empresas na “participação da força de
trabalho urbana no processo de acumulação como um todo”19. Os recursos do programa derivavam
de contribuição dos empregadores em função do faturamento das empresas. O acesso dos
trabalhadores ao benefício, por seu turno, era diretamente proporcional ao número de anos
trabalhados e na razão inversa dos salários percebidos. A possibilidade de poder contar com tais
recursos dependia, entretanto, do desempenho global da economia e não dos lucros de uma empresa
específica20.
A importância do FGTS e do PIS-PASEP não se limita à redefinição das normas que
regulavam o mercado de trabalho no Brasil - no sentido da configuração de um perfil mais liberal,
com o fim da estabilidade no emprego - e ao enfretamento de um problema - a participação dos
trabalhadores nos lucros das empresas - que, embora presente na agenda da política social brasileira
durante décadas, não encontrara solução nas situações políticas anteriores. A rigor, com o FGTS e o
PIS-PASEP o regime militar buscava restabelecer mecanismos de poupança compulsória à
disposição do poder público e das demandas de financiamento dos setores privados, na medida em
que a conversão do sistema do seguro social brasileiro ao regime de repartição simples fizera
escassear, para este fim, os recursos advindos do seguro social. Este, por seu turno, apresentaria um
desempenho financeiro estável até o final dos anos 70, em face da retomada da expansão econômica
na segunda metade dos anos 60, que acarretou o ingresso de novos contingentes de trabalhadores
assalariados na população economicamente ativa e o aumento no volume de contribuições21.
Após a unificação administrativa, efetuada no governo Castelo Branco, no âmbito do
sistema previdenciário, stricto sensu, teve destaque, nos anos 70, a criação da previdência social
para os trabalhadores rurais, autônomos e empregadas domésticas, que se efetivou no governo
Médici. Com Geisel, o sistema passou por uma nova reformulação em sua estrutura. Além disto, em
1977 foi regulamentada a previdência suplementar privada.
A previdência social para os trabalhadores rurais foi instituída em 1971, num primeiro
momento como um programa separado do INPS. Rompia-se com quase três décadas de postergação
na incorporação do mais vasto contingente de trabalhadores do país à rede pública de proteção 19 Id. Ibid,. p. 118. 20 Id. Ibid. 21 Como já apontado, verifica-se entre 1967 e 1979 um crescimento expressivo das despesas previdenciárias em relação às receitas do sistema, as primeiras alcançando 93% das segundas, em média. No entanto, o crescimento das receitas é expressivo. No mesmo período cresce 13% na média anual, acima dos 9% de crescimento do PIB. Ver ANDRADE,E.G.(Des)Equilíbrio da Previdência Social Brasileira - 1945-1997. Belo Horizonte:CEDEPLAR/FACE/UFMG, 1999.(Tese de Doutoramento).
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social. O programa rural foi montado em bases diversas do seguro social urbano, ao romper com o
caráter contratual característico deste22. Seu financiamento era assegurado por recursos advindos de
taxações efetuadas sobre a comercialização dos produtos rurais, além de uma contribuição de 2,5%
incidente sobre a folha de pagamento das indústrias. Como o segurado não contribuía para o
programa, ele dispunha de caráter redistributivo, embora seus custos pudessem ser transferidos para
toda a sociedade23. Era prevista a concessão de aposentadoria por idade e velhice - mas não por
tempo de serviço -, num valor correspondente à metade do salário-mínimo nacional, além de
assistência médica, através de rede contratada pelo programa24. Já a incorporação das empregadas
domésticas e trabalhadores autônomos ao INPS far-se-ia, respectivamente, em 1972 e 1973, através
das leis 5.859 e 5.89025. Com ela dava-se um importante passo no processo de universalização da
cobertura, ainda que permanecessem de fora os assalariados absorvidos no mercado informal, isto é,
não regidos pela CLT.
O processo de universalização da cobertura previdenciária não significava, entretanto, uma
mudança na estrutura de distribuição de renda cuja concentração era determinada
fundamentalmente pela política de arrocho salarial praticada no período26. Sob o governo Geisel, a
presença mais ativa do Congresso Nacional na denúncia deste quadro e a divulgação de relatórios
de agências internacionais sobre as desigualdades sociais no Brasil favoreceram o desenvolvimento
de uma postura reformista conservadora por parte de setores das Forças Armadas, marcada pelo
propósito de combinar desenvolvimento econômico com a atenuação da concentração da renda,
através principalmente da ampliação da oferta de serviços sociais27. As reformas empreendidas por
Geisel na previdência social, entre 1974 e 1978, inscreviam-se nesta perspectiva.
Em 1974, através da Lei 6.025 de 25 de junho, foi criado o Ministério da Previdência e
Assistência Social (MPAS), que ficava, então, desvinculado do Ministério do Trabalho. A
instituição do MPAS permitia, outrossim, que as áreas de competência do Ministério da Saúde e da
Previdência fossem definidas com mais clareza, cabendo ao primeiro o desenvolvimento de ações
normativas e orientadas para “as medidas e os atendimentos de interesse coletivo, inclusive a
22 SANTOS, Op. Cit. 23 Id. Ibid. 24 MALLOY, Op. Cit. 25 SANTOS, Op. Cit.; TEIXEIRA e OLIVEIRA, Op. Cit. 26FARIA, V. “Desenvolvimento, Urbanização e Mudanças na Estrutura de Emprego: a Experiência Brasileira dos Últimos Trinta Anos”. In: SORJ. e ALMEIDA. Op. Cit. 27 MELO, M. A. B. C. “A Formação de Políticas Públicas e a Transição Democrática: o Caso da Política Social” in Dados. Nº 3. V. 3. Rio de Janeiro: IUPERJ, 1990. A percepção do impacto negativo da acentuação da desigualdade social sobre os propósitos militares de integração nacional era parte de uma reação mais ampla do ethos militar à própria desnacionalização da economia, acentuada nos anos do milagre. Esta reação manifesta-se fundamentalmente no II PND, um programa que envolvia a ampliação da produção de bens de capital e de insumos diversos, de modo a reduzir a dependência de importações no processo da industrialização brasileira. Sobre o II PND conferir CASTRO, A. B. e SOUZA, F. E. P. A Economia Brasileira em Marcha Forçada. São Paulo/Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988; VELASCO E CRUZ, S. C. “Estado e Planejamento Econômico no Brasil: 1974-1976”. In:VELASCO E CRUZ, S. C. O Presente como História : Economia e Política no Brasil Pós-64. Campinas:UNICAMP/IFCH, 1997.
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vigilância sanitária”, ao passo que a previdência social tinha sua “atuação voltada principalmente
para o atendimento médico-assistencial individualizado”28. Vinculado ao MPAS, foi constituído o
Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social (SINPAS), cujo formato seria definido em
1978 . O SINPAS era integrado pelo INPS, pelo Instituto Nacional de Assistência Médica da
Previdência Social (INAMPS), pela Fundação Legião Brasileira de Assistência (LBA), pela
Fundação Nacional do Bem Estar do Menor (FUNABEM), pela Empresa de Processamento de
Dados da Previdência Social (DATAPREV) e pelo Instituto de Administração Financeira da
Previdência Social (IAPAS). Integrado ao SINPAS, como órgão autônomo do MPAS, estaria ainda
a Central de Medicamentos (CEME). A criação do MPAS, bem como do Conselho de
Desenvolvimento Social (CDS) tinha, nos termos da perspectiva reformista conservadora apontada
acima, o objetivo de estabelecer um controle mais centralizado sobre o INPS e o BNH, agências
sobre as quais acentuavam-se denúncias de operação inadequada, seja em função dos ganhos
obtidos pelos hospitais privados com os mecanismos de pagamento dos serviços prestados à
previdência pública, seja por conta do privilégio concedido à classe média em um organismo que
deveria precipuamente atender às demandas das camadas de renda mais baixa29.
A perspectiva de reorientar os diversos organismos responsáveis pela condução das políticas
sociais no Brasil para uma atuação que fosse mais efetivamente redistributiva não se chocava,
entretanto, no âmbito da perspectiva reformista conservadora de Geisel, com a ampliação dos
espaços de atuação da iniciativa privada em áreas da política social que permaneciam sob controle
quase exclusivo do Estado. Em 1977 foi regulamentada, através das leis 6.435 e 6.462, a operação
das instituições de previdência privada. Ficava estabelecida a possibilidade de criação de entidades
de previdência privada abertas, com ou sem fins lucrativos, acessíveis ao público em geral, e as
entidades de previdência privada fechadas, acessíveis apenas aos trabalhadores de uma empresa ou
grupo de empresas. As primeiras, consideradas uma extensão do seguro privado, foram ligadas ao
Sistema Nacional de Seguros Privados, tendo como órgão normativo o Conselho Nacional de
Seguros Privados, criado em 1966. O órgão fiscalizador era a Superintendência de Seguros
Privados, vinculada ao Ministério da Indústria e do Comércio até 1979, quando foi incorporada ao
Ministério da Fazenda30. As entidades fechadas de previdência privada, por seu turno, consideradas
complementares à previdência pública, ficavam sob supervisão do Conselho de Previdência
Complementar (CPC), de caráter normativo, e da Secretaria de Previdência Complementar, ligada
ao MPAS31.
28 TEIXEIRA e OLIVEIRA. Op. Cit. .pp 239. 29 MELO, Op. Cit. . 30 Menicucci destaca que a vinculação do órgão de fiscalização da previdência privada aberta aos ministérios da área econômica evidencia o propósito de buscar em sua instituição a criação de novos fundos de investimento, por parte do governo Geisel. MENICUCCI, Op. Cit. 31 Id. Ibid.
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A regulamentação da previdência privada vinha acentuar a participação da iniciativa
particular dentro do sistema brasileiro de proteção social, cuja presença ampliara-se com o
fortalecimento do complexo médico-industrial, a partir dos anos 60, em decorrência dos
mecanismos de contratação de serviços aos hospitais privados pela previdência social32. Desde a
LOPS ficara estabelecida a obrigatoriedade da assistência médica na previdência social. Entretanto,
a extensão da cobertura que ela acarretava não se efetuaria pela ampliação da rede hospitalar
pública, cujo crescimento é significativamente inferior àquele verificado na rede privada33. Assim,
acentuou-se o credenciamento de hospitais privados junto ao INPS, que pagava o atendimento
médico individualizado dos segurados, fornecido pela rede particular, por unidade de serviço
prestado. O mecanismo favoreceu a expansão da rede hospitalar privada e prestava-se a formas
variadas de fraude, na medida em que induzia à opção por serviços mais caros34.
No âmbito das iniciativas de reforma tentadas no governo Geisel, buscaram-se alternativas
ao modelo em vigor, sem, entretanto, que isto redundasse em fortalecimento da rede pública. De
1974 a 1978 foram acentuados os convênios, envolvendo o INPS, empresas e outras instituições35.
A previdência social participava com dispêndios globais e/ou a redução parcial das contribuições
previdenciárias devidas pelas instituições e empresas conveniadas, evitando-se o pagamento por
unidade de serviço. No limite, tal procedimento fortaleceria a medicina de grupo, que fornecia seus
serviços às empresas conveniadas36. Outras medidas importantes, ainda no governo Geisel, são o
reforço do atendimento ambulatorial, no âmbito do Plano de Pronta Ação (PPA), que buscava
aumentar a coordenação das atividades de saúde e desburocratizar o atendimento de emergência.
Em relação ao atendimento hospitalar, o PPA permitia cobrança pelos atos médicos nos hospitais
contratados, quando o segurado optasse por serviços mais sofisticados37.
No início dos anos 80, as dificuldades financeiras da previdência, derivadas da retração da
economia no período, foram acompanhadas da intensificação dos protestos veiculados por diversos
atores no sentido de reverter a parceria estabelecida entre o Estado e o sistema privado de saúde38.
Entretanto, conforme Maria Lúcia Werneck Vianna, tais protestos ganham força num momento em
32TEIXEIRA, e OLIVEIRA, Op. Cit.; WERNECK VIANNA, Op. Cit. 33 TEIXEIRA, e OLIVEIRA, Op. Cit.; WERNECK VIANNA, Op. Cit 34 TEIXEIRA, e OLIVEIRA, Op. Cit.; WERNECK VIANNA, Op. Cit 35A realização de convênios entre o INPS e empresas é, evidentemente, muito anterior a 1974. O primeiro convênio desta natureza é firmado em 1964, entre o IAPI e a Wolksvagen. Entretanto, é a partir de meados da década de 1970 que esta prática busca se firmar como alternativa ao mecanismo de contratação de unidades de serviço aos hospitais credenciados. TEIXEIRA, e OLIVEIRA, Op. Cit.; WERNECK VIANNA, Op. Cit. 36 TEIXEIRA, e OLIVEIRA, Op. Cit.; WERNECK VIANNA, Op. Cit. 37 TEIXEIRA, e OLIVEIRA, Op. Cit. 38 Em que pese as iniciativas de reforma de Geisel não se verifica alteração na prioridade concedida à medicina privada no provimento dos serviços médicos. O principal protagonista da crítica à forma de relação entre o Estado e o setor privado na área de saúde seria o “movimento sanitarista”, que reunia profissionais de saúde, em especial médicos, favoráveis à acentuação do caráter preventivo da assistência à saúde e ao reforço do setor público no provimento dos serviços. Ver MELO, M. A. C. “Anatomia de um Fracasso: Intermediação de Interesses e a Reforma das Políticas Sociais na Nova República” in Dados, Nº 1. V. 36. Rio de Janeiro: IUPERJ, 1993.
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que se acentuava a autonomia do setor hospitalar privado em relação ao Estado. Com a deterioração
dos serviços públicos, a classe média buscava crescentemente o setor privado, dentro de um
processo em que, nos anos seguintes, teria ainda destaque o crescimento dos planos de saúde
oferecidos por cooperativas médicas ou empresas particulares. O roteiro da previdência social
brasileira rumo à sua americanização ficava nítido, portanto, exatamente naquela área, a saúde, em
que o sistema de proteção social dos EUA revelava mais tipicamente o predomínio da iniciativa
particular: ao lado da medicina privada mantinha-se um sistema público que atendia apenas à
parcela mais pobre da população. Segundo Maria Lúcia Werneck Vianna, ao contrário dos EUA,
entretanto, onde 20% da população se valem destes serviços, que são financiados por impostos
gerais, no Brasil 80% da população ainda dependem do sistema público de saúde, cujo
financiamento é garantido fundamentalmente pelas contribuições da previdência social, situação
que colabora para a corrosão da sustentabilidade financeira do sistema previdenciário e não garantia
à assistência à saúde recursos necessários ao cumprimento adequado de suas atribuições39.
3. O EMPRESARIADO E A PREVIDÊNCIA SOCIAL SOB O REGIME MILITAR
Ainda que até os anos 60 o empresariado compartilhasse com os sindicatos dos
trabalhadores a defesa da presença das “classes interessadas” na gestão da previdência, não se
verificam manifestações importantes deste ator, no governo Castelo Branco, contra a centralização
burocrática do sistema40. Da mesma forma, seja em virtude do fechamento do sistema político, que
limita a utilização de instrumentos de articulação horizontal da classe, seja por força da redução da
importância da previdência social na criação de fundos de investimento para as empresas - em face
de sua conversão ao sistema de repartição - reduzem-se substancialmente os pronunciamentos
empresariais sobre o sistema previdenciário como um todo, até o início dos anos 8041.
39 WERNECK VIANNA, M. L. Op. Cit. A deterioração dos serviços, as restrições orçamentárias e o rebaixamento dos benefícios previdenciários através de mecanismos de indexação colaboram para os processos de privatização implícita que acompanham a americanização da proteção social no Brasil. Sobre os mecanismos de privatização implícita, utilizados em processo de retração (retrenchment) das políticas de bem estar ver PIERSON, P. Dismantling The Welfare State?, Cambridge University Press, 1994. 40 Em certa medida, a perda de influência na gestão da previdência era mais do que compensada pela exclusão dos sindicatos e do PTB, associados à prodigalidade que favorecera a redução siginificativa das reservas da previdência no período populista. 41 Além disto, com o declínio do valor dos salários, reduz-se, na mesma medida, o impacto das contribuições previdenciárias no custo de produção, uma vez que corresponde a um percentual sobre os salários pagos. A rigor, a previdência social deixava de ser um “problema”, em virtude dos níveis elevados de expansão econômica. O debate acadêmico sobre o peso dos encargos sociais para o custo do trabalho suportado pelas empresas brasileiras, de grande importância no discurso empresarial dos anos 90, é delineado neste período. De um lado, Edmar Bacha que, em 1972, assinalava serem os adicionais legais um fator que conduzia a um aumento expressivo do custo do trabalho no Brasil, apesar dos salários baixos. Numa perspectiva diversa, Roberto Santos, em 1973, apontava o pequeno peso dos
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Antes disto, a questão previdenciária fora tratada de forma pouco destacada na IV
Conferência Nacional das Classes Produtoras (IV CONCLAP), realizada em outubro de 1977 no
Rio de Janeiro42. No documento final do encontro foi feito um diagnóstico da situação da
previdência, em que era ressaltado seu fortalecimento, evidenciado no aumento da participação no
PIB e no fato de que “praticamente a totalidade da população brasileira está coberta”43. Louvavam-
se, da mesma forma, os esforços do governo Geisel na reorganização administrativa do sistema,
assinalando, entretanto, a precariedade persistente da assistência médica previdenciária. Como
sugestões “para o futuro” eram indicadas a necessidade de elevação dos recursos públicos para a
saúde, de dinamização de programas institucionais de planejamento familiar, de ampliação da
presença da iniciativa privada na solução dos problemas da saúde - com a criação do “seguro-
saúde” para as camadas de renda média, ainda que cobrindo apenas parcialmente suas demandas - e
de redução da gratuidade da assistência médica no INAMPS, que deveria ficar limitada aos que
percebem menos de 3 salários mínimos. Sugeria-se, ainda, a expansão dos fundos de pensão
privados, com parte dos recursos destinados ao pagamento da previdência pública44.
Em 1980 e 1981, a previdência social apresentou déficits expressivos e o governo
Figueiredo propôs o aumento das alíquotas para o enfrentamento do problema45. A reação das
entidades empresariais foi contrária ao aumento e diversos estudos de seus departamentos técnicos
encargos, exatamente por incidirem sobre salários deprimidos. A propósito deste debate ver SANTOS, A. L. e POCHMAN, M. “Encargos Sociais no Brasil : uma nova abordagem metodológica e seus resultados”. In: Cadernos CESIT, Nº 26. Campinas: CESIT/UNICAMP, 1998. 42 Infelizmente não encontramos documentação referente ao III CONCLAP, realizado no início de 1972 no Rio de Janeiro. Ocorrido sob o governo mais autoritário do regime militar, sua importância parece ter sido reduzida, considerando a pequena repercussão que consegue nas publicações da CNI e a ausência de referências a ele em momentos posteriores. Segundo a revista da CNI, a preocupação central revelada pela Carta da Guanabara, documento final do encontro, foi a crescente concentração da propriedade das grandes empresas nas mãos do Estado e do capital estrangeiro. Ver “Conclusões do III CONCLAP”. In: CNI, Indústria e Produtividade, Nº47, Abril de 1972. 43 A utilização das conclusões da IV CONCLAP como representativas da opinião empresarial em 1977 deve ser feita com reservas. O encontro evidencia as dificuldades para a articulação dos empresários em torno de uma agenda positiva, o que se revela na própria apresentação do documento final, em que aparece a advertência de que “as opiniões expressas nestes trabalhos refletem exclusivamente o consenso da Coordenação Técnica, não representando necessariamente a posição oficial de qualquer das entidades de classe participantes”. CNI/IV CONCLAP. Síntese Panorâmica e Sugestões de Caráter Geral, Rio de Janeiro: CNI, 1977 Pp. 1. 44 CNI/IV CONCLAP, Op. Cit. Pp. 40-43. 45 Sobre a crise financeira da Previdência no período ver BARROS SILVA, P. L. e MÉDICI, A. C. “Seguridade Social : Velhos Problemas, Novos Desafios”. In: Revista de Administração Pública. Rio de Janeiro, 25(4): 69-134, out/dez, 1991e ANDRADE, Op. Cit. O Decreto Lei 1.910 de 29/12/1981 eleva alíquotas de importação de alguns bens supérfluos, institui-se a contribuição (entre 3% e 5%) de aposentados e pensionistas, eleva-se de 5% para 6% a contribuição de funcionários estatutários, eleva-se de 8% para 25% sobre a folha de pagamantos a contribuição das empresas, de 8,5% para 10% a dos empregados, além da emissão de uma série especial de títulos (ORTNs) para cobrir o déficit previsto para 1982. Em face, entretanto, da recessão e do declínio dos salários, as medidas têm fôlego curto e, em 1983, após um ano de recuperação, verifica-se nova queda nas receitas. Em 1982, o governo Figueiredo criava, ainda, o FINSOCIAL, através do Decreto-Lei 1940, incidindo em 0,5% sobre a receita bruta das empresas. O governo Figueiredo instituiria, ainda o Conselho Consultivo de Administração da Saúde Previdenciária (CONASP), com a presença de representantes do governo e de entidades da sociedade civil, para acentuar o controle sobre os gastos com a saúde, aos quais se atribui, no discurso governamental, a principal responsabilidade pelas dificuldades financeiras da previdência. Não obstante, ao final dos anos 70, a participação da saúde nos dispêndios da previdência encontrava-se em queda. De um percentual máximo de 31,6% em 1976, eles alcançaram 27,3% em 1980. TEIXEIRA e OLIVEIRA, Op. cit. Pp.281.
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buscaram salientar a inoportunidade de sua decretação, pelo impacto no custo das empresas e no
preço dos produtos.
Em agosto de 1981, documento do Departamento Econômico da CNI, apresentado como
posição oficial da entidade, apontava a dívida da União com o sistema e os débito das empresas
como responsáveis principais pelo déficit da previdência, o que tornava desnecessário o aumento
das alíquotas. Simultaneamente, sugeria diversas medidas de racionalização do sistema
previdenciário. Propunha-se que fosse efetivamente implementado dispositivo da Lei 6439/77 que
autorizava o Executivo a instituir esquema de participação dos segurados no custeio dos serviços
médicos, conforme seu nível de renda. Sugeria-se, ainda, que os recursos do salário-família de
segurados de renda mais elevada fossem utilizados para custeio do sistema. Destacava-se a
necessidade de limitação das despesas administrativas a um teto compatível com a contribuição da
União. Ademais, propunha-se a elevação da contribuição da União, com a definição de fonte de
receita específica com destinação vinculada, além das parcelas do imposto de importação, recursos
de loterias, tributo sobre combustíveis, que já participavam na composição da cota da previdência
devida pela União ao sistema46.
Em maio de 1982, novo estudo do Departamento Econômico da CNI apresentou um
diagnóstico detalhado do comportamento das receitas e despesas do sistema previdenciário,
admitindo que suas dificuldades financeiras tinham relação com a redução do nível de emprego
determinado pela recessão, mas destacando principalmente o comportamento das despesas,
especialmente no âmbito do INPS. Sugeria, então, diversas medidas de reforma, tais como a
redefinição dos critérios para concessão de aposentadorias - especialmente com fixação de uma
idade mínima e a revisão da aposentadoria por tempo de serviço -, bem como elevados os prazos de
carência para concessão dos benefícios. No que se refere à assistência médica, sugeria-se sua
transferência para o Ministério da Saúde, bem como fortalecidos os convênios firmados entre o
INAMPS e as empresas, além de, em face da elevação progressiva das receitas em relação às
despesas, acelerada a privatização efetiva dos serviços médicos da previdência. Por fim, propunha-
se que o custeio da FUNABEM e da LBA fosse coberto com recursos orçamentários da União47.
Nos pronunciamentos de lideranças empresariais, por seu turno, a “crise da previdência” era
associada à ruptura com o regime de capitalização e à utilização política de suas reservas. Em artigo
publicado na revista da CNI, em maio de 1984, Mário Amato, então vice-presidente da FIESP,
observava que a “contribuição para a Previdência não passa, na prática, de um imposto, pois o
46 CNI- DEPARTAMENTO ECONÔMICO. Considerações Sobre o Déficit Orçamentário do Sistema Nacional da Previdência e Assistência Social e a Proposta de Elevação da Contribuição Previdenciária - a Posição da CNI. Rio de Janeiro: CNI, agosto de 1981. 47 CNI- DEPARTAMENTO ECONÔMICO, Comportamento das receitas e despesas do Sistema de Previdência e Assistência Social: Conclusões Preliminares Sobre o Déficit Observado em Período Recente e Proposições Tendentes à sua Correção. Rio de Janeiro: CNI: maio de 1982.
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sistema há muito deixou de operar em bases atuariais para operar em bases orçamentárias”(grifo do
autor)48. Salientava, por seu turno, que o “excesso de arrecadação da Previdência, no seu início,
deveria ser teoricamente aplicado em bens e atividades que garantissem rentabilidade compatível
com o futuro crescimento dos dispêndios”. Entretanto, parte deste excedente foi utilizada para
“compra ou construção de imóveis”, alugados ou vendidos em parcelas de valor fixo, em meio a um
ambiente inflacionário. Nestas condições, alguns “felizardos brasileiros que por injunções políticas
ou acaso administrativo conseguiram alugar ou comprar imóveis da Previdência obtiveram lucro ou
aumentaram seu patrimônio à custa do sistema”. Desta forma,
o sistema funcionou, nesta área, como um mecanismo de transferência de renda de toda a população assalariada, das empresas e do próprio Governo, para um punhado de felizes afilhados de caciques políticos ou sorteados da fila de inscrição.
Em seguida, Amato trazia à memória a percepção da derrota sentida pelos empresários
brasileiros quando, na República Trabalhista, a expansão dos benefícios e serviços contribuiu para
a conversão da previdência brasileira ao sistema de repartição. Diz o então vice-presidente da
FIESP que
foi relativamente fácil para todos que apreciam fazer sua carreira política às custas do erário público, introduzir a idéia de que a Previdência - inicialmente um sistema destinado a garantir apenas aposentadorias e pensões - poderia usar seus na época vastos) recursos para ministrar assistência médica, sanitária e dentária gratuita: primeiro a todos os seus contribuintes, independente de poderem ou não pagar; depois a todos os brasileiros indiscriminadamente, mesmo que não fossem contribuintes.
Por outro lado, seguia Amato, o controle público dos gastos do sistema era impossível, na
medida “em que quem assina o cheque está a milhares de quilômetros de quem recebe o
atendimento, e ninguém é realmente proprietário do dinheiro” Com isto, “os custos tendem a
inchar”.
Na descrição do processo de elevação das despesas Amato salientava que “os custos da
assistência médica são excepcionalmente crescentes” e uma vez “iniciada a assistência gratuita sua
tendência natural é expandir-se extraordinariamente se não houver controle adequado”. Além disto,
“o Governo lançou mão de recursos da Previdência para financiar obras públicas com retorno não
apenas incerto como discutível”, ao passo que “ele próprio deixou de fazer sua contribuição ao
sistema”. Observava ainda que os dispêndios do sistema eram “na sua maioria politicamente
incomprimíveis”, enquanto “os recolhimentos flutuam de acordo com a marcha da economia e a
situação dos contribuintes”. Relembrava, por fim, que na crise de 1981, “o Governo não apenas
48 AMATO, M. “Previdência Social : Solução ou Caos”. In: CNI. Indústria e Produtividade. Nº181. Rio de Janeiro: CNI: Maio de 1984.Pp 22-24. Reproduziremos de forma mais extensa trechos do artigo de Amato porque ilustra bem a memória dos empresários a respeito das raízes históricas da “crise da previdência”.
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revirou os bolsos dos contribuintes elevando as alíquotas como, literalmente, passou um calote na
rede bancária emitindo, para cobrir o saldo negativo, ORTNs inegociáveis”.
Não obstante a acidez de seu diagnóstico, Amato sugeria medidas de reforma ainda vagas e
relativamente tímidas - no que se refere ao controle da previdência pela iniciativa privada - se
compararmos com as proposições que seriam desenvolvidas pela FIESP dez anos à frente e a
experiência chilena de reforma, em curso desde 1982. Propunha a separação “completa e definitiva”
da previdência da assistência médico-social, com a primeira voltando a operar no regime de
capitalização e a segunda custeada por recursos orçamentários. Sugeria, sem precisar através de
quais mecanismos, que a administração dos serviços - “tanto os previdenciários como os
assistenciais” -, fosse desvinculada do governo, que, entretanto, continuaria a participar de sua
gestão, mas “sem o arbítrio que hoje lhe permite, é certo, dar unidade ao sistema e até agilizar sua
gerência, mas também ceder à tentação de malbaratar recursos”. Por fim, assinalava a necessidade
de se acentuar a descentralização da “parte assistencial do sistema”, atribuindo-se maiores
responsabilidades - e “recursos correspondentes” - às prefeituras e governos estaduais.
Ao final de 1984, já definidos os termos do processo de transição do regime militar à Nova
República, foi realizado no Rio de Janeiro, a partir de convocação da CNI e federações industriais,
o Encontro Nacional da Indústria (ENIND), num esforço de definição das posições do setor ante a
nova ordem que se avizinhava. Sobre a previdência social, os Anais do ENIND admitiam que
“houve um aumento considerável dos usuários do sistema sem uma contrapartida financeira para
fazer face ao acréscimo de serviços”49. Observavam, entretanto, que a Previdência sofreu “os
efeitos da política econômica e as deficiências na administração da coisa pública”. Assim ,
a crise pela qual passa o país com os elevados níveis de desemprego que lhe são característicos, de um lado aumentou a despesa com benefícios e. de outro, reduziu a receita pela queda nas contribuições. Acrescente-se a este fato a malversação de recursos, amplamente divulgada pela imprensa, e os desvios para a construção de grandes obras como a hidrelétrica de Itaipu e a Usina Nuclear de Angra dos Reis50.
Desta forma, “admitir que a crise da previdência se resolveria com o aumento das alíquotas
de contribuição seria procurar atingir os efeitos sem combater as causas”51. Propunha-se, então,
como medidas para enfrentar a os dilemas financeiros da previdência, a fixação da idade mínima de
65 anos para gozo da aposentadoria por tempo de serviço; a modificação da carência e cálculo do
valor dos benefícios de prestação continuada (com definição de um mínimo de 10 anos de
contribuição e de uma parte fixa de 70% do valor pago nas aposentadorias, com os restantes 25%
percebidos conforme os anos de contribuição); a descentralização e desestatização da assistência
médica previdenciária; a permissão para que o seguro de acidentes de trabalho pudesse ser 49 CNI – ENIND. Anais. Rio de Janeiro: CNI, Novembro de 1984. Pp. 60-61. 50 Id. Ibid. pp 61. 51 Id. Ibid.
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novamente garantido mediante seguro privado feito pelo empregador; o desligamento da LBA,
FUNABEM e CEME do SINPAS; a alteração da base de cálculo das contribuições devidas pelas
empresas, de modo a reduzir o percentual cobrado sobre a folha de pagamentos, introduzindo-se a
taxação incidente sobre o faturamento das empresas; a fixação de um teto de contribuição e o
escalonamento desta de acordo com o tamanho das empresas. Por fim, sugeria-se a redefinição da
base de cálculo do valor pago nas aposentadorias por velhice, fixando-se a média dos últimos 36
salários recebidos52.
4. AUTORITARISMO E AMERICANIZAÇÃO DA PROTEÇÃO SOCIAL NO BRASIL
Em sua origem, as políticas sociais modernas, em especial a previdência social, têm seu
caráter definido pelas coalizões - envolvendo o Estado, trabalhadores assalariados e empresários -
que dão sustentação a um regime ativo que as instaura em determinadas condições contextuais, a
saber, a forma de inserção da economia nacional no mercado mundial, o perfil da ordem política
vigente e a natureza da presença política dos trabalhadores na cena nacional, que é, em certa
medida, afetada pela configuração de mercado em que se estrutura o sistema de classes no ambiente
nacional53. Uma vez estabelecidas, as políticas sociais modernas têm seu curso também
determinado pelos efeitos institucionais derivados de sua própria operação. Assim, no caso
específico do seguro social, seu funcionamento determina o aparecimento de novos atores
comprometidos com sua existência (burocracias públicas e clientelas), ao passo que são alteradas as
afinidades dos empresários e trabalhadores com o sistema. Sob um regime público de seguro social
ainda não maduro – isto é, antes de sua conversão de um sistema de capitalização coletiva à
repartição simples – empresários, trabalhadores e o Estado buscam influenciar na destinação das
reservas da previdência, parte principal do fundo público associado á presença da política social.
Sob um sistema maduro, desfaz-se tal interesse e acentuam-se as pressões – dos titulares do poder
de Estado e dos empresários – para redução de seu impacto no gasto público, frequentemente em
oposição às burocracias previdenciárias, às clientelas e, em parte, aos trabalhadores, que
desencadeiam iniciativas para a defesa do caráter público do sistema. A intensidade destas ações,
52 Id. Ibid. pp 61-62.A formulação referente ao financiamento da previdência propunha “o estabelecimento de um limite de contribuição com base na folha de pagamento que seja independente do faturamento da empresa, ou seja, uma contribuição fixa” e o escalonamento das “contribuições variáveis, com base no faturamento, de acordo com o tamanho da empresa”. Id. Ibid. p. 62. 53 DELGADO, I. G. Previdência Social e Mercado no Brasil. São Paulo: LTr, 2001.
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entretanto, é influenciada pelas condições contextuais e institucionais acima indicadas e pelos
recursos de poder de que podem dispor os atores envolvidos54.
A previdência pública no Brasil, surgiu, na década de 1930, sob um formato publico
corporativo, liderada pelo Estado em coalizão com as principais entidades empresariais, num
ambiente de crescente fechamento da economia brasileira ao mercado mundial, sob uma situação
política predominantemente autoritária, sem que os trabalhadores assalariados, com exígua presença
na estrutura social, evidenciassem a articulação de uma identidade política de âmbito nacional. O
perfil segmentado e acanhado de seus benefícios e a definição, entre seus objetivos, de que suas
reservas deveriam custear o processo de acumulação e os investimentos públicos, estão associados a
tais condições contextuais, num quadro em que o custeio do seguro social, baseado em
contribuições efetuadas sobre a folha de pagamentos das empresas e em deduções sobre os salários,
podia ser transferido ao preço dos produtos e ao conjunto dos consumidores55.
Sob a Republica Trabalhista, a coalizão entre o Estado e os trabalhadores – evidenciada no
controle do PTB e dos sindicatos sobre o regime previdenciário desde o início da década de 1950 -,
reduziu a influência empresarial sobre as reservas da previdência e favoreceu, nos marcos de uma
economia fechada e de operação de um sistema político aberto e competitivo, com forte presença
dos trabalhadores assalariados, a expansão e uniformização dos benefícios e serviços
previdenciários, ainda que nos limites da cidadania regulada de que fala Wanderley Guilherme dos
Santos, uma vez que não contemplados os trabalhadores rurais, autônomos, empregadas domésticas
e o conjunto dos trabalhadores não inscritos no mercado formal56. O amadurecimento do sistema, a
expansão dos benefícios, a utilização das reservas da previdência em investimentos públicos e a
desaceleração da economia ao início da década de 1960 conduziram ao virtual esgotamento das
reservas da previdência e às primeiras proclamações sobre a existência de uma crise no sistema57.
É neste quadro que se desencadeiam as ações do regime militar relativas à previdência
social. O estabelecimento de um regime autoritário aumentava a capacidade do Estado para efetuar
reformas no sistema previdenciário e nas políticas de proteção social brasileiras, que não puderam
ser efetivadas sob a República Trabalhista. A unificação administrativa e a centralização
burocrática da previdência social obedeciam ao propósito de reduzir a influência do PTB e dos
sindicatos sobre o sistema, dentro da política de racionalização levada adiante no governo Castelo
Branco. No âmbito de tal política, e associado à reformulação do sistema financeiro brasileiro, foi
ainda criado o FGTS, que eliminava, na prática, a estabilidade no emprego após 10 anos de serviço, 54 DELGADO, I. G. “Trajetória e Contra-Reforma da Política Social Brasileira”. In: SALGADO, Gilberto. (Org.). Cultura e Instituições Sociais. Juiz de Fora: EDUFJF, 2006,. Pp. 07-42. 55 DELGADO, I. G.”Empresariado e Política Social no Brasil”. In: Ana Maria Kirschner; Eduardo R. Gomes. (Org.). Empresa, empresários e sociedade. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1999. Pp. 146-163. 56 SANTOS, Op. Cit. 57 DELGADO, I. G. “Atores Sociais e Coalizões na Trajetória da Política Social Brasileira (1945-1964)”. In: Locus. Juiz de Fora: Departamento de História/EDUFJF, 2004. V. 18. Pp. 129-150.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 192
intocada na República Trabalhista. Criava, outrossim, a “contrafação de um seguro-desemprego
inexistente no país”, ao mesmo tempo em que favorecia a rotatividade no emprego, que acentuava o
declínio dos salários, imposto pela política de estabilização em curso.
A ação do regime em relação à política social não foi, entretanto, apenas racionalizadora.
Associada à meta da integração nacional, presente no ideário militar, foi estendida a previdência
social aos trabalhadores autônomos, empregadas domésticas e trabalhadores rurais, o que também
não se efetivara no regime populista. O FUNRURAL, por assentar-se em mecanismo de
financiamento não contributivo, e o PIS, por definir uma forma para a participação dos
trabalhadores no lucro das empresas, aparecia como uma políticas redistributiva, cujo impacto foi,
entretanto, mitigado - especialmente para os trabalhadores urbanos - pela política de arrocho salarial
imposta pelo regime.
A política de universalização da cobertura - desenvolvida pelos militares e pelos setores
técnicos que ganham evidência com a unificação administrativa e a centralização burocrática do
seguro social brasileiro - foi acompanhada, entretanto, da acentuação da presença do setor privado
no provimento dos serviços previdenciários, notadamente a saúde. A influência da categoria médica
e a natureza privatista da coalizão que dá sustentação ao regime favoreciam a preservação dos
mecanismos liberais na concessão da assistência médica, definidos na própria LOPS em 1960, e o
fortalecimento dos hospitais privados no atendimento médico previdenciário. As reformas de
Geisel, empreendidas em meio à reação do ethos militar diante do aprofundamento da
desnacionalização da economia brasileira e da acentuação das desigualdades sociais, não alteraram
este quadro. Sua permanência engendrou reações diferenciadas. De um lado, setores reformistas que
emergiam em meio aos profissionais da área de saúde defenderiam o reforço do provimento e do
controle públicos da assistência médica, combinada à acentuação das medidas de caráter preventivo.
De outro, apareciam os defensores da privatização pura e simples da assistência médica, reservando
o setor público para a assistência aos pobres, a exemplo do modelo estadunidense. Neste campo,
estavam setores da medicina empresarial e, progressivamente, as entidades do empresariado.
Concretamente, a segunda alternativa, independente de medidas legislativas, tenderia a firmar-se,
dado o êxodo crescente da classe média dos serviços públicos de saúde, em estado de progressiva
deterioração, e a expansão de formas variadas de mercantilização da saúde.
As entidades empresariais, ao contrário da postura desenvolvida durante a República
Trabalhista, ficaram relativamente alheias ao processo de unificação administrativa e centralização
burocrática da previdência social efetivada com Castelo Branco. A conversão do sistema ao regime
de repartição simples reduzia a importância dos recursos previdenciários para o financiamento da
acumulação e o declínio dos salários reduzia seu impacto nos custos das empresas. Além disto, num
quadro de vigorosa expansão econômica nos marcos de uma economia fechada, prevalecia a
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possibilidade de transferência dos custos das políticas sociais ao preço dos produtos, sem que isto
acarretasse retração da capacidade de consumo. Desta forma, no IV CONCLAP, realizado em 1977,
salientavam-se os elogios à universalização da cobertura previdenciária. Por seu turno, se o impacto
do crescimento dos dispêndios com a saúde até 1976, no âmbito das despesas da previdência, é
recebido com sugestões para introdução do pagamento da assistência médica no INAMPS e de
criação do “seguro-saúde” para as faixas de renda mais alta, apareciam também sugestões de
reforço do Ministério da Saúde e de ampliação de suas dotações por via de outras fontes tributárias.
A recessão do início dos anos 80 conduziu ao aparecimento de déficits expressivos na
previdência social, acompanhada da imposição, pelo governo Figueiredo, de um aumento das
alíquotas. Neste quadro, acentuaram-se as proposições empresariais para a reforma do sistema. Os
aspectos mais importantes são a defesa da aceleração da privatização da assistência médica, do
aumento da participação dos fundos privados de previdência, da revisão de dispositivos para a
concessão de aposentadorias - com a elevação dos prazos de carência e definição de uma idade
mínima para sua concessão. Ao lado disto, sugeriam-se mudanças na contribuição patronal, de
modo a complementar a taxação sobre a folha de pagamentos - a incidir sobre uma base mínima -
com percentuais relativos ao faturamento, a serem definidos de forma diferenciada, conforme o
tamanho das empresas.
No limite, as proposições empresariais buscavam estabelecer o predomínio de critérios
atuariais no funcionamento da previdência, sem colocar em questão a prevalência da gestão pública
do seguro social, com pequenas alterações em seu financiamento. As sugestões de Mário Amato,
indicadas acima, sobre a desvinculação da previdência social do governo, permaneciam vagas e
parecem retomar a demanda, comum aos empresários no período anterior a 1964, de participação
das “classes interessadas” na gestão do sistema. As formulações empresariais, pois, não
ultrapassavam os limites do processo de americanização já em curso. Assegurada por um regime
autoritário, baseado numa coalizão modernizante e conservadora - que exclui a participação política
dos trabalhadores -, nos marcos de uma economia fechada, a americanização da proteção social no
Brasil ficaria ainda restrita à esfera da saúde, não alcançando, nos anos 80, a previdência social
stricto sensu, apesar de já se encontrar regulamentada a operação do seguro social privado.
Na década de 1980, a noção de seguridade social será inscrita na Carta de 1988 como
princípio regulador do conjunto da política social brasileira58. A notável expansão da presença dos
assalariados na estrutura social, o fortalecimento das correntes políticas que os interpelavam no
sentido da construção de uma identidade classista, a emergência do movimento sanitarista nas
universidades e burocracias públicas, a abertura do sistema político brasileiro favoreceram este
58 DELGADO, I. G.. ”Empresariado e Direitos Sociais na Constituição de 1988”. In: Locus . Juiz de Fora: Departamento de História/EDUFJF, 2000. V. 10. Pp. 55-70.
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resultado. Por seu turno, no marcos de uma economia fechada, ainda que acuados, os empresários
não apresentaram uma proposta alternativa de reforma, tal como será feito na década de 1990. O
passado, entretanto, pesa como um pesadelo. Não obstante as normas definidas em 1988, as
escolhas efetuadas sob o regime militar consolidaram a oferta privada de serviços de saúde e
criaram condições para a cristalização de um sistema dual de proteção social, marcado pelo
provimento público – sempre difícil, nas condições legadas pela busca do ajuste fiscal permanente –
de benefícios e serviços para os mais pobres, ao passo que ricos e remediados buscam benefícios,
serviços e, até, segurança privados, num movimento que põe em risco a comunidade de sentimento
que emoldura o status compartilhado, sob o Estado Nacional, que define o conteúdo básico da
cidadania moderna59. Na década de 1990 tal legado reforça as pressões no sentido redefinição das
formas de custeio e do alcance da proteção social, as primeiras tematizadas na rubrica do Custo
Brasil, com o qual os empresários demandam a mitigação das contribuições incidentes sobre a folha
de pagamentos das empresas, supostamente conducentes à redução da competitividade da indústria
brasileira sob uma economia aberta60.
59 DELGADO, I. J. G. Mercado, Nação e Proteção Social. In: Revista Tempo e Presença. Rio de Janeiro: Koinonia, 2002. V. 24. Nº 325. Pp. 11-15. 60 DELGADO, I. G. “Abertura Econômica e Política Social : a perspectiva empresarial”. In: Teoria & Sociedade. Belo Horizonte: FAFICH/UFMG, 2000. V. 5. Pp. 82-122.
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EM PAUTA: O MOVIMENTO MILITAR DE 1964 - sob a ótica de um jornal juizforano - 1
Flávia Maria Franchini Ribeiro*
Resumo: O artigo realiza uma análise das abordagens do regime militar, enfocando a transição de referência ao movimento militar instalado em 1964 como “revolução” ou “golpe militar”, baseada no jornal Tribuna de Minas dos anos 1984, 1994 e 2004. Palavras-chave: 1964; revolução; golpe; Tribuna de Minas. Abstract: This articles does an analysis of approaches about the military junta, instaled in 1964, as “revolution” or “military coup” and based on Tribuna de Minas newspaper of 1984, 1994 and 2004. Key-words: 1964; revolution; coup; Tribuna de Minas.
1. INTRODUÇÃO
Transformações sócio-culturais podem ser observadas através do noticiário quotidiano que
nos fornece as informações, influenciado pelo próprio contexto que as produziu. Esse elemento é
patente na abordagem de setores formadores de opinião sobre o 31 de março de 1964, que resultou
na deposição do Presidente da República João Goulart por um golpe civil-militar tendo por
conseqüência 21 anos de ditadura no país.
Juiz de Fora é a cidade de onde partiram as tropas militares, comandadas pelo General
Olympio de Mourão Filho que se definiu “uma vaca fardada”2 após a tomada do poder. À época, o
fato foi festejado na imprensa local. Manchete do Diário da Tarde, em 1964, anunciava: “Minas
mais uma vez sai em defesa da liberdade restituindo ao Brasil, em 36 horas, a paz e a democracia”.3 1 Este artigo foi originalmente produzido como trabalho de aproveitamento para a disciplina História de Minas Gerais, lecionada pela profa. Dra. Mônica Ribeiro de Oliveira, no curso de História do Instituto de Ciências Humanas da UFJF, e permaneceu inédito até o momento. A data de sua confecção foi o primeiro semestre letivo de 2004, cabendo aqui esclarecer que seu conteúdo refere-se àquele período, no contexto de rememoração dos 40 anos do golpe militar. Para fins práticos, visando esta publicação, realizamos uma pequena revisão em seu conteúdo, mantendo porém, a sua proposta original. * Mestre em História, Cultura e Poder pela UFJF 2 GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 139. 3 DIAS, Renato. “Minas mais uma vez sai em defesa da liberdade restituindo aos Brasil, em 36 horas, a paz e a democracia”. Tribuna de Minas, Juiz de Fora, 28/03/84, Especial 64: 20 anos depois, p. 08.
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Chamada naquele período de a “capital revolucionária”,4 a cidade adotou mais recentemente um
posicionamento inverso com relação aos acontecimentos de 31 de março de 1964.
Através das páginas de um jornal publicado nesta cidade, a Tribuna de Minas, buscamos
verificar como um periódico abordou este acontecimento e as suas conseqüências na sociedade, em
um diálogo com as transformações históricas ocorridas nas últimas décadas. A postura crítica diante
dos eventos permaneceu a mesma, mas ao acompanharmos a materialização desta visão, com o
passar dos anos, verificamos que o termo utilizado para definir o 31 de março de 1964 sofreu
mudanças.
Se em 1984 utilizou-se em larga escala a expressão “revolução” nas páginas desse jornal, já
em 2004 o termo “golpe” foi senso-comum para definir o movimento militar. Essa transformação,
não exclusiva do município mineiro, mas em escala nacional e sentida pelos militares, levou em
determinada ocasião, segundo nos informa o historiador Carlos Fico, um dos integrantes daqueles
governos a afirmar que foi perdida por eles a “batalha da comunicação”.5
Para a verificação empírica desta análise nas páginas de Tribuna de Minas, o ponto de
partida foi a série de reportagens intitulada “64: 20 anos depois”, desenvolvida em oito partes de
uma página inteira publicadas diariamente entre os dias 27 de março e quatro de abril de 1984.6
Com vistas a realizar um apanhado geral do movimento e de suas conseqüências, os textos
abordavam a memória de setores favoráveis e daqueles que foram perseguidos pelo regime, a
postura de políticos locais à época frente ao movimento militar, o ambiente local às vésperas do 31
de março, a opinião dos jovens nascidos durante a Ditadura, a cobertura da imprensa local, a
repressão e, ainda trazia um histórico do movimento e seu impacto na educação e economia
nacionais.
Fixamo-nos, para fins deste artigo, na postura analítica adotada pelo periódico sobre os
acontecimentos, tratando o assunto como um reflexo conjuntural. A partir deste material, nosso
objetivo foi analisar as leituras de 1964 pela sociedade local, expressas pelas páginas deste jornal.
Para tanto, relacionamos as abordagens sobre o aniversário do golpe de 31 de março de 1964 pela
Tribuna de Minas, ao longo de três décadas: 1984, 1994 e 2004.7 A data de fundação do jornal, 4 “Aqui fala Juiz de Fora, capital revolucionária do país”. Noticiarista T9, na manhã de 01 de abril de 1964, de um alto falante no prédio das rádios Difusora e Industrial. Cf. MIRANDA, Ricardo. “Decisão isolada em JF dá início a golpe e abre caminho para a ditadura no país”. Tribuna de Minas, Juiz de Fora, 28-29/03/2004, Política, pp. 04 e 05. 5 Afirmação de Jarbas Passarinho em 2003: “vencemos a luta armada dos comunistas, mas perdemos a batalha da comunicação”. Apud: FICO, C. A Ditadura mostra a sua cara: imagens e memória do período (1964-1985). Disponível em <www.history.umd.edu/HistoryCenter/2004-05/con/Brazil64/papers/cficoport.pdf.>, em 25 de maio de 2005, p. 07. 6 Exceto dia 02 de abril de 1984, segunda-feira, quando a Tribuna de Minas não circula. 7 Os recortes com o especial da Tribuna de Minas “!964: 20 anos depois”, encontram-se no Arquivo Histórico da UFJF na caixa intitulada “Coleção de Recortes de Jornais sobre Juiz de Fora” que contém variadas reportagens sobre a cidade mineira. A Tribuna de Minas de 1984 está preservada no Setor de Memória da Biblioteca Municipal Murilo Mendes. O Jornal de 2004 encontra-se no Setor de Periódicos da mesma biblioteca.
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1983, impediu-nos analisar o objeto em 1974 – ano em que completou a primeira década da
implantação do regime.
De toda a forma, permanecem as interpretações dos acontecimentos de 1964 pelas páginas
de um jornal, que nos oferece uma visão dos discursos construídos sobre um mesmo fato, ao longo
do tempo, com as interferências de fatores variados. Assim, visto que o ato de rememorar será
sempre uma interpretação da realidade pela testemunha, conforme afirmou o historiador italiano
Alessandro Portelli,8 o material publicado na Tribuna de Minas fornece aos estudiosos campo para
o estudo sobre a adequação de certas argumentações presentes na opinião pública, como o fruto de
um diálogo, tomando por base a época em que foram produzidas.
2. AS MOTIVAÇÕES DO GOLPE
A República brasileira é marcada por constantes intervenções sob o argumento de assegurar
a ordem, porém segundo os interesses de classe, e por dois longos períodos sob o regime ditatorial9,
sendo o mais recente o resultado do golpe civil-militar de 1964.
2.1. Prelúdios do golpe
O golpe resultou da montagem de uma complexa coalizão heterogênea e contraditória.
Incluía as frações das classes dominantes, parcelas da pequena-burguesia, profissionais liberais e a
nova classe média burocratizada aliados aos grupos militares.10
O período anterior a 1964 foi marcado pela união de interesses de industriais e banqueiros,
inseridos no aparelho burocrático nacional, com o capital transnacional. Articulou-se um rearranjo
do Estado, de caráter golpista, segundo os interesses multinacionais e associados. Dessa forma, a
política populista não era mais viável. Exigia-se a participação direta desses setores em órgãos
burocráticos da administração.11
Em 25 de agosto de 1961, o presidente Jânio Quadros renunciou, numa tentativa golpista de
retornar ao poder por aclamação popular. O vice-presidente João Goulart encontrava-se naquele 8 PORTELLI, Alessandro. A Filosofia e os Fatos: Narração, interpretação e significado nas memórias e nas fontes orais. TEMPO. Dossiê Teoria e Metodologia. Departamento de História da Universidade Federal Fluminense, Ed. Relume-Dumará, Volume 1, n. 2, dezembro, 1996, p. 60. 9 Na primeira metade do século foi instituído, em 1937, o Estado Novo sob o comando de Getúlio Vargas, que durou até 1945. 10 CRUZ, Sebastião C. Velasco & MARTINS, Carlos Estevam. De Castello a Figueiredo: uma incursão na pré-história da abertura. IN: SORJ, Bernardo & ALMEIDA, Maria Hermínia T. (org.). Sociedade e Política no Brasil no pós-64. São Paulo: Brasiliense, 1983, pp. 13-61. 11 DREIFUSS, René Armand. 1964: A conquista do Estado. Ação política, poder e golpe de classe. 3ª ed. Petrópolis: Vozes, 1981, p. 38.
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momento em viagem à China. A partir daí teve início a articulação de uma série de setores
conservadores da sociedade com o intuito de impedir a posse de Jango, como era popularmente
conhecido.
João Goulart era visto como ameaça por esses setores. Mesmo com um histórico político
construído nos governos populistas, em que “(...) contribuía objetivamente para um melhor controle
do Estado burguês sobre as atividades sindicais”,12 segundo Caio Navarro de Toledo. No entanto,
sua defesa do capitalismo não convencia os setores mais conservadores da sociedade, estes com um
perfil golpista histórico, e que freqüentemente associavam-no à ameaça da instituição de uma
“república sindicalista”.
Imediatamente após a renúncia de Jânio Quadros, os ministros militares, com o apoio da
UDN e de setores conservadores, articularam-se numa manobra para impedir a posse do vice-
presidente da República. Em contrapartida, o governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola,
com apoio do III Exército e de ampla mobilização popular, organizou a “Rede da Legalidade”
exigindo o cumprimento da Constituição.13
João Goulart foi finalmente empossado, mas sob o controle conservador através da emenda
constitucional que instituiu o Parlamentarismo. Quando, em 1963, a emenda foi revogada, o país
atravessava uma crise econômico-financeira e estava sob tensões sociais e crise política que
desgastavam a administração pública. Wanderley Guilherme dos Santos atribui o desencadeamento
do Golpe a uma “crise de paralisia decisória”. Segundo ele, houve um processo de fragmentação e
radicalização do Legislativo gerando uma espécie de imobilismo político. A relação entre o
Executivo e o Legislativo ficou tensa devido à falta de apoio por uma coalizão parlamentar
majoritária.14
2.2. A ação precipitada resulta na vitória militar
O estilo conciliador do Governo Goulart seria, pois, fracassado. O presidente utilizava-se de
instrumentos populistas em um período onde eles não eram mais considerados eficazes para os
setores com interesses econômicos específicos. Assim, “embora agitasse as bandeiras do
nacionalismo e das reformas sociais, o governo, porém, protelava indefinidamente a realização de
medidas populares e nacionalistas que independiam de aprovação legislativa”.15 Elas serviam como
ameaça ao equilíbrio político e hegemônico de forças conservadoras e de direita, embora não
contivessem “nenhum sentido revolucionário”. Algumas medidas econômicas desagradavam 12 TOLEDO, Caio Navarro de. O Governo Goulart e o Golpe de 64. 7ª ed. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1986. (Coleção Tudo é História, 48), p. 16. 13 GORENDER, Jacob. Combate nas trevas. 6ª ed. São Paulo: Editora Ática, 1999, p. 21. 14 SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Sessenta e quatro: anatomia da crise. São Paulo: Vértice, 1986, pp. 134-135.
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trabalhadores e empresários. No entanto, ao mesmo tempo em que se desenhava uma ameaça
revolucionária com João Goulart, aos olhos da direita, o Presidente postergava a realização de
medidas populares enfraquecendo-se com a esquerda. O governo João Goulart estava isolado
politicamente.16
Diante do quadro, o Presidente voltaria a buscar o apoio popular com atitudes que
indicavam uma ameaça comunista, para os setores conservadores da sociedade. Essa ameaça num
contexto de Guerra Fria comprometeria posições estratégicas, caso ocorresse num país com as
dimensões do Brasil. Havia o medo da influência cubana, com a crescente propagação das ações de
Fidel Castro e seus companheiros na ilha caribenha, e um sentimento na imprensa de que “João
Goulart perdeu o controle do País”.17
Artigo de Carlos Castello Branco, intitulado ‘Em colapso o sistema militar anti-Goulart’,
publicado no Jornal do Brasil, em 29 de março de 1964, às vésperas do deslocamento das tropas da
IV Região Militar, dizia: “A impressão das correntes oposicionistas (...) é a de que, se não ocorrer
um milagre, nos próximos dias, se não nas próximas horas, o Sr. João Goulart, ainda que não
queira, cobrirá os objetivos que lhe são atribuídos de implantar um novo tipo de República (...).”.18
Esse “novo tipo de República” seria a temida “república sindicalista”.
A Tribuna de Minas publicaria em 1984 uma reportagem sob o título “O comunismo:
ameaça ou vítima em 1964?”, exatos 20 anos após o início do deslocamento das tropas, onde dois
entrevistados associam o período a uma “confusão” e seu desfecho como fruto do desejo popular,
embora a análise das conseqüências do movimento refletisse a contrariedade com os seus efeitos.
Segundo o arcebispo de Juiz de Fora na época do Golpe, D. Geraldo Maria de Morais
Penido, o deslocamento das tropas foi acompanhado de mobilização popular. Relembrou na
entrevista ter visto “(...) o povo sair pelas ruas e praças embandeiradas, festivas, a receber seus
filhos e irmãos soldados, que voltavam de uma conquista que tinha sido fácil. A Revolução vencia
sem derramamento de sangue.” Para depois completar que logo após a vitória das tropas, “(...)
recomeçavam dias amargos”, referindo-se às prisões e torturas. Apenas Milton Fernandes - que se
disse “barbeiro, comunista e nacionalista” – considerou, na matéria, o movimento como “um golpe
de estado por uma minoria”. 19
15 TOLEDO, Caio Navarro de (org.). 1964: Visões Críticas do Golpe. Democracias e reformas no populismo. Campinas: Editora da Unicamp, 1997, (Coleção Momento), p. 36. 16 TOLEDO, C. N. O Governo Goulart e o Golpe de 64, pp. 55-56 e 60. 17 GUILHERMINO, Luiz Alberto e PAIVA, Raquel. “Eu sabia até a data da Revolução”. Tribuna de Minas, Juiz de Fora, 29/03/1984, Especial: 64: 20 anos depois, p. 08. 18 BRANCO, Carlos Castello Branco. “Em colapso o sistema militar anti-Goulart”, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 29/03/64, p. 4. APUD:GASPARI, E. Op. Cit., p. 52. 19 MUANIS, Geraldo. “O comunismo: ameaça ou vítima em 1964?”. Tribuna de Minas, Juiz de Fora, 31/03/1984, Especial: 64: 20 anos depois, p. 08.
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A atitude precipitada do General Olympio de Mourão Filho, em relação às intenções
golpistas do comando militar, ocorreu após assistir pela TV ao discurso de João Goulart no comício
da Central do Brasil, em 13 de março de 1964. O líder do movimento pretenderia livrar o País dos
soviets.20 A tradicional preocupação dos militares em conter o comunismo era “maior do que a
existência de um programa coerente de reformas e mudanças”.21
Os partidários do movimento militar afirmaram que ele foi fruto do anseio popular.22 De
fato, setores da sociedade civil se organizavam àquela época em manifestações anti-comunistas,
como as Marchas da Família com Deus pela Liberdade. Os anos que prenunciaram o movimento
civil-militar de 31 de março foram de intensas manifestações, desenhando um novo contexto
político-social. O historiador Jacob Gorender analisa que os grupos dominantes possuíam razões
concretas para o temor que sentiam, pois a luta de classes vivia seu momento mais ativo ameaçando
a estabilidade burguesa diante do fracasso coercitivo do Estado. O Brasil vivia um quadro pré-
revolucionário que foi sufocado por um golpe preventivo. “Houve a possibilidade de vencer, mas
foi perdida.”.23
No entanto, o tempo demonstraria que à vitória militar, não bastaria depor João Goulart:
João Goulart caiu dia 1o. de abril. O regime de 1946, nos dias seguintes. Por conta da radicalização que leva ao conflito para fora do círculo estrito das cúpulas política e militar, a vitória não podia extinguir-se com a deposição do presidente. Fosse qual fosse o lado vitorioso, ao seu triunfo corresponderia um expurgo político, militar e administrativo. O levante se apresentara como um movimento em defesa da ordem constitucional, mas a essência dos acontecimentos negava-lhe esse caminho.24
O movimento afundaria o país numa ditadura que durou 21 anos, quando então, foram
realizadas eleições indiretas para Presidente da República. Esse período foi marcado pela intensa
repressão política e a censura contra as vozes discordantes, que posteriormente seriam elementos
para a associação da sociedade civil aos governos militares. Em depoimento ao jornalista Hélio
Contreiras, o general Newton Cruz, instrutor da Escola de Comando e estado-Maior do Exército,
em 1964, revelaria: “Cometemos tantos erros que o Brasil acabou não sendo, nos anos 90, o País
que a sociedade brasileira desejava.”. Às palavras do militar juntam-se os vários depoimentos na
Tribuna de Minas de pessoas que apoiaram a deposição de João Goulart em 1964, decepcionadas
vinte anos depois.
20 MIRANDA, Ricardo. “Entrevista: Laurita Mourão. ‘O Governo estava para a esquerda e os generais não toleravam isso’”, Tribuna de Minas, Juiz de Fora, 28-29/03/2004, Política, p. 04. 21 MUANIS, G. “Impasse na economia atual gera nostalgia. Entrevista com André Gaio.”, Tribuna de Minas, Juiz de Fora, 31/03/94, Política, p. 04. 22 GUILHERMINO, L. A e PAIVA, R. “Eu sabia até a data da Revolução”. Tribuna de Minas, Juiz de Fora, 29/03/1984, Especial: 64: 20 anos depois, p. 08. 23 GORENDER, J. Op. Cit., pp. 72-73. 24 GASPARI, E. Op. Cit., p. 121.
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3. FATOS E VERSÕES
As referências a 1964, no jornal Tribuna de Minas, por nós analisadas, foram produzidas em
três momentos específicos. Os anos 1984, 1994 e 2004 refletem conjunturas diferentes, embora
possuam elementos de continuidade em relação ao período do Golpe. No entanto, a particularidade
dos acontecimentos que caracterizavam particularmente esses períodos refletiu-se nas abordagens
sobre o movimento militar.
3.1. Breve contextualização dos anos
3.1.1. 1984
O ano de 1984 é marcado pela Campanha ‘Diretas Já’, lançada no ano anterior com o
comício de Goiânia.25 O Brasil ainda vivia sob o poder militar sendo governado por João Baptista
Figueiredo, o último general presidente. Os brasileiros iam para as ruas em comícios e passeatas
pedir eleições com o slogan “Eu quero votar para presidente”26.
Em janeiro, comícios na Praça da Sé em São Paulo e em Belo Horizonte, reuniram 300 mil
pessoas cada um. O movimento era de agregação popular, após anos marcados pelo medo dos
encontros públicos. No dia 10 de abril foram um milhão de pessoas na Candelária, no Rio de
Janeiro, clamando eleições diretas para Presidente da República.27
O Brasil atravessava grave crise econômico-financeira e social, associada pela maioria dos
entrevistados pela Tribuna de Minas, em 1984, ao cenário vivido pelos brasileiros às vésperas do
movimento de 1964. Com o desastre do milagre econômico, houve queda do ritmo de crescimento e
recessão. A inflação estava elevada e com tendência de maior alta. A taxa anual de crescimento do
PIB era de apenas 1,5% em comparação com o período do milagre (1968-73) que foi de 11,1%.28
Havia a esperança de transformação do quadro de crise com as eleições diretas para
Presidente da República, representando o fim dos governos militares, e a possibilidade de uma nova
Constituinte para a redação da nova carta brasileira, em substituição à de 1967, redigida sob a égide
da ditadura.
3.1.2. 1994
Itamar Franco era então o terceiro civil a governar o Brasil após o fim do regime militar.
Antes de Itamar Franco foram presidentes: José Sarney e Fernando Collor. 25 ASCENSÃO e queda do Regime Militar. Retrato do Brasil. São Paulo: Política Editora, 1985, p. 515. 26 Frase estampada em camisetas e bottons. Arquivo pessoal da autora. 27 KOSHIBA, Luiz. História do Brasil. São Paulo: Atual, 1987, p. 374.
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Sarney tornou-se o primeiro civil presidente da República após os governos militares, em
substituição a Tancredo Neves do PMDB, eleito indiretamente pelo Colégio Eleitoral. Em 14 de
março de 1985, um dia antes de ser empossado, Tancredo foi submetido às pressas a uma cirurgia e
faleceu em 21 de abril de 1984. Assim, o seu vice, José Sarney, assumiu o cargo.
Em 1989 o Brasil elegeria o primeiro presidente da República por eleições diretas, após a
Ditadura. Fernando Collor de Mello venceu Luís Inácio Lula da Silva no segundo turno das eleições
com um discurso de combate aos “marajás”. Mas as denúncias de corrupção, associadas ao seu
governo, mobilizaram a mídia nacional e a sociedade civil para pressionar o Congresso a cassar o
mandato do Presidente. Após o impeachment de Fernando Collor de Mello, seu vice, Itamar Franco,
assumiu a presidência da República.
Já no governo Itamar, às vésperas do Plano Real (implementado em 1o de julho de 1994), o
cenário econômico brasileiro era de desconfiança. Em oito meses de governo, o Presidente já havia
demitido três ministros da Fazenda. A perspectiva naquele ano era uma inflação de 5.500%.29
A democracia estava frágil. Segundo análises, a herança dos anos militares ainda se fazia
presente numa organização que “compromete o funcionamento do Legislativo”, devido à dinâmica
que se instalara a partir de 1964.30
O País vivia uma onda de tumultos devido à conversão de salários baseada na URV -
Unidade Real de Valor. “Mistura de moeda e indexador, a URV coexistia com o cruzeiro real, valia
US$ 1 e corrigia salários e contratos. Aos poucos, trabalhadores e empresários passaram a calcular
em URV.”31
Acontece que os militares e os membros do STF discordavam da base para o cálculo de seus
rendimentos. Os últimos se valeram de um recurso considerado “legal mas não ético”32 para
aumentar seus salários acima do valor fixado segundo a URV. Tal atitude gerou uma crise entre os
poderes, o que repercutiu numa série de boatos sobre as possibilidades de outro Golpe.
Esse sentimento era agravado pelo descontentamento dos militares. O tenente- brigadeiro
Mauro José Granda acusaria o governo e a sociedade civil de não reconhecerem o mérito das Forças
Armadas.33 Isso porque a conversão dos salários em URV, pela mesma fórmula dos servidores do
Executivo, implicava um prejuízo de 32% para os militares da ativa e da reserva. A medida era 28 ASCENSÃO e queda do Regime Militar. Op. Cit., p. 515. 29 PATU, Gustavo. “Plano nasce da mistura de economia e política”, Folha de São Paulo. São Paulo, 27/06/04, Dinheiro, Dez anos de Real, p. B3. 30 MUANIS, G. “Impasse da economia atual geral nostalgia. Entrevista com André Gaio.”, Tribuna de Minas, Juiz de Fora, 31/03/94, Política, p. 04. 31 PATU, G. “Plano nasce da mistura de economia e política”. Folha de São Paulo, São Paulo, 27/06/04, Dinheiro, Dez anos de Real, p. B3. 32 FERREIRA, José de Castro. “O golpe de Estado”, Tribuna de Minas, Juiz de Fora, 29/03/94, Política, p. 03. 33 “BRIGADEIRO reclama de ingratidão”, Tribuna de Minas, Juiz de Fora, 26/03/94, O País, p. 04.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 203
contestada no STF pela FAMIR - Federação de Associações de Militares da Reserva Remunerada,
de Reformados e de Pensionistas das Forças Armadas.
Ao mesmo tempo, a sociedade buscava reagir contra o seu passado recente. O País
presenciava protestos isolados relembrando o aniversário de “30 anos do golpe de 1964”, como o da
Lagoa Rodrigo de Freitas, organizado por estudantes cariocas.34 Acontecia ainda o movimento em
favor do reconhecimento pelo Estado dos mortos e desaparecidos durante a repressão política. Em
dezembro de 1995 foi aprovada a Lei 9.140, fruto de reivindicações iniciadas ainda na Ditadura,
pela apuração da culpabilidade do Estado nas mortes ocorridas durante o regime militar.35
3.1.3. 2004
O ex-metalúrgico Luís Inácio Lula da Silva estava no segundo ano de seu primeiro mandato
como Presidente da República. A vitória do Partido dos Trabalhadores nas eleições de 2002 foi
impressa sob o signo da mudança.
Com o Plano Real, a inflação foi controlada e era prevista a taxa de 6,4% em 2004 pelo
Banco Central.36 Porém, seus efeitos, associados aos oito anos de governo neoliberal conduzido por
Fernando Henrique Cardoso, produziram o corte de 2,6 milhões de vagas de trabalho e o reajuste de
255% nas tarifas públicas.37
Se muitos consideram que o País encontrou o equilíbrio econômico, podemos afirmar que
ainda permanece a crise social presente nos outros aniversários do Golpe. A taxa de desemprego no
mês de maio de 2004 ficou em 12,2%.38 O brasileiro amargava uma queda mensal em seus
rendimentos enquanto aumentava a concentração de renda.39
A avaliação de Lula nas pesquisas daquele ano revelava queda na sua popularidade. O
Governo advogava ter realizado feitos na área social e no combate à corrupção,40 mas a população
apresentava seu desgosto diante da permanência de baixa oferta de empregos e do aumento do custo
de vida.
Relembrando os 40 anos do Golpe, estudiosos do País se reuniram num evento, realizado
em março, no Rio de Janeiro, para debater o tema na academia. O Seminário teve por título “1964-
2004: Seminário 40 anos do Golpe: Ditadura Militar e Resistência no Brasil” e foi organizado pela 34 “ALTO comando do Exército tem reunião em Brasília”, Idem. Ibidem. 35 Para mais informações: MIRANDA, Nilmário & TIBÚRCIO, Carlos. Dos filhos deste solo: Mortos e desaparecidos políticos durante a ditadura militar: a responsabilidade do Estado. São Paulo: Boitempo Editorial, 1999. 36 Cf. REUTERS Investor. “Previsão BC aumenta projeções de inflação em 2004”. Invertia, site de economia do Terra, < http://br.invertia.com/>, em 30/06/04. 37 Seg. dados do Dieese, IBPT, IPC-Fipe, Ipea e Anbid. IN: “QUEM ganhou ... e quem perdeu com o Real”, Folha de São Paulo, São Paulo, 27/06/04, Dinheiro, p. B1. 38 Cf. PESQUISA Mensal de Emprego do IBGE, < www.ibge.gov.br>, em 30/06/04. 39 Segundo dados DIEESE <www.dieese.org.br>, em 30/06/2004. 40 “Governo Lula completa 18 meses tentando reverter queda na imagem”. Estadão, 04/07/04, Política, <www.estadao.com.br/agestado/noticias/2004/jul/04/73.htm>, em 07/07/2004.
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UFRJ, UFF, CPDOC/FGV e APERJ. O assunto foi trabalhado sob variadas vertentes em mesas de
debates, palestras e comunicações.41
3.2. Três décadas após o 31 de março, três abordagens
3.2.1. Enfoques
Nas três datas, 1984, 1994 e 2004, a Tribuna de Minas propiciou aos leitores três maneiras
de falar do movimento militar de março de 1964.
Em 1984, o material foi tratado em forma de grande reportagem num especial intitulado
“64: 20 anos depois”. O texto de abertura buscava relacionar o trabalho jornalístico, então iniciado
pela Tribuna de Minas, à reunião que teria deflagrado o deslocamento das tropas da IV Região
Militar, sediada em Juiz de Fora, quatro dias depois. Dizia o trecho inicial:
Há exatamente 20 anos, em Juiz de Fora, reuniam-se o marechal Odílio Denys, o general Mourão Filho e o governador Magalhães Pinto. O motivo do encontro: marcar a data do levante militar contra o Governo Federal, contra João Goulart, então presidente da República. Esta é a primeira parte de uma série de reportagens sobre a Revolução de 64.42
Ao final concluía que “(...) a Tribuna de Minas acredita ter concretizado um pequeno perfil
sobre o movimento revolucionário que completou 20 anos no sábado passado(...)”, reiterando que o
“assunto não está esgotado”.43
Durante estas publicações o regime militar estava em vigor e a Tribuna de Minas ainda
chamou o período de “revolução” ou “movimento revolucionário”. Mesmo algumas pessoas
perseguidas a partir de 1964, referiam-se à “revolução”, como é o caso de Nery da Mendonça,
vereador do PTB, preso e cassado pela Câmara de Vereadores.44
Já em 1994, o mesmo ex-vereador, novamente entrevistado, denominou o movimento de “a
pretendida revolução”, com o termo escrito entre aspas pelo Jornal.45 Novamente entrevistado em
2004 pela Tribuna de Minas, Nery da Mendonça foi ainda mais enfático ao afirmar que a “dita
Revolução” (aqui também a palavra aparecia escrita entre aspas) trouxera apenas a escravidão
financeira para o país.46 41 Foram publicados os anais do encontro com a referência: SEMINÁRIO 40 Anos do Golpe de 1964 (2004: Niterói e Rio de Janeiro). 1964 – 2004: 40 anos de golpe: ditadura militar e resistência no Brasil. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2004. (Trabalhos apresentados no Seminário 40 anos do Golpe de 1964, realizado no Rio de Janeiro, de 22 a 26 de março de 2004 no IFCS/UFRJ, ICHF/UFF e na FGV). 42 MUANIS, G. “Tropas na estrada. Vai começar a Revolução.”. Tribuna de Minas, Juiz de Fora, 27/03/1984, Especial: 64: 20 anos depois, p. 08. 43 MUANIS, G., SALGADO, Guilherme e GUILHERMINO, L. A “Editorial do Especial 64: 20 anos depois”, Tribuna de Minas, Juiz de Fora, 04/04/84, p. s/n. 44 “Nery Mendonça: “As classes trabalhadoras estavam começando a entrar para o Poder. Aí surgiu a Revolução”. Idem. Ibidem. 45 MUANIS, G. “Império da miséria causa temor e golpe”, Tribuna de Minas, Juiz de Fora, 31/03/94, Política, p. 04. 46 MIRANDA, R. “Silêncio marca a passagem dos 40 anos em JF”, Tribuna de Minas, Juiz de Fora, 01/04/04, p. 06.
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De fato, o jornal juizforano em 1994 já denotava maior liberdade para um posicionamento
crítico em relação ao regime militar. O mesmo jornalista de 1984, Geraldo Muanis, assinou o texto
da reportagem intitulada “Herança política do golpe de 64 é negativa”. Afirmava tratar-se de uma
“triste data” e apontava os “que sofreram com a instalação dos militares no poder”.47
No entanto, em 94, ficaria um vácuo com relação ao espaço dedicado ao tema, se esta
publicação for comparada à da década precedente. Em 1994 somente duas páginas foram dedicadas
à data em que as tropas se deslocaram da IV Região Militar, em Juiz de Fora, rumo ao Rio de
Janeiro. A matéria foi publicada somente no dia 31 de março.
A única outra referência feita ao período, nesta época, data do dia 26 de março, no
“Editorial” do periódico, ao ser comentada a crise entre os poderes, ocasionada pela conversão dos
salários, segundo cálculo baseado na URV. Mas, neste caso, ele não representava um espaço
dedicado especificamente à memória de 1964, mas era o resultado da comparação de fatos em uma
determinada conjuntura. Dizia o texto:
O desfecho da crise entre os poderes - não importa qual seja ele - pode demonstrar à nação o quanto a democracia é importante para cada cidadão, que hoje se sente mal à simples menção da palavra ‘golpe’. Uma palavra, por sinal, ainda não completamente exorcizada da vida nacional e que nos últimos dias provocou sonhos ou pesadelos de praticamente toda a sociedade.48
Porém, o texto refletiu um amadurecimento de posições sobre o 31 de março e as suas
conseqüências. Enquanto falava-se abertamente do temor ao “golpe” e sobre a data caracterizada
por “triste”, a IV Região Militar convocou militares e civis para a cerimônia comemorativa dos 30
anos da “Revolução Democrática de 31 de março de 1964”.49 As opiniões ainda estavam divididas
e havia um clima de “nostalgia”50 em relação ao poder militar.
O mesmo já não ocorreu em 2004. A intenção jornalística de imparcialidade continuava
mantida. O jornal apresentou entrevistas com representantes dos dois lados do processo. O primeiro
volume da série narrou a iniciativa isolada do General Mourão Filho e, que precipitou a deposição
de João Goulart, tramada entre setores conservadores da sociedade brasileira.51
Mas o tom de crítica ao movimento foi explicitado em títulos de reportagens como “Decisão
isolada em JF dá início a golpe e abre caminho para ditadura no país”. Aqui a matéria já estava
bastante influenciada por uma bibliografia que visou analisar sistematicamente os fatos, em 47 MUANIS, G. “Herança política do golpe de 64 é negativa”, Tribuna de Minas, Juiz de Fora, 31/03/94, Política, p. 03. 48 “SOMBRA Militar”, Tribuna de Minas, Juiz de Fora, 26/03/94, Opinião, p. 02. 49 “CONVITE.” Anúncio pago publicado na Tribuna de Minas, Juiz de Fora, 29/03/94, p. 05. 50 Cf. professor da UFJF, o cientista político André Gaio. IN: MUANIS, G. “Impasse da economia atual gera nostalgia. Entrevista com André Gaio”, Tribuna de Minas, JF, 31/03/94, p. 04. 51 Sobre o assunto ver: GASPARI, Elio. Op. Ct., p. 63 (sobre a decisão do General Mourão Filho), p. 69 (sobre a reação de Castello Branco à decisão de Mourão Filho) e p. 81 (sobre o golpe premeditado, entre setores conservadores, marcado para outra data). Ver ainda: MUANIS, G. “Primeira data para o golpe: dois de abril”, Tribuna de Minas, Juiz de Fora, 27/03/84, Especial 64: 20 anos depois, p. 08.
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especial, publicações do jornalista Elio Gaspari: “As ilusões Armadas” e “O Sacerdote e o
Feiticeiro”.52
O espaço dispensado a 1964 ocupou duas páginas da edição dominical e uma no dia
seguinte ao aniversário do movimento, data definitiva da queda de João Goulart. A primeira
reportagem trouxe entrevistas com uma vítima do regime, o ex-presidente do DCE Arnaldo Pereira,
e com a filha e biógrafa de Olympio Mourão Filho, Laurita Mourão. As perguntas do jornalista
foram feitas a ela, durante todo o tempo, mencionando o termo “golpe”. Nesse momento, numa
revisão histórica da figura do presidente deposto, João Goulart foi poupado até mesmo pela
entrevistada, que declarou considerá-lo “encantador”.53 Uma grande transformação de posição se
compararmos a 1984, quando João Goulart ainda era relacionado à ameaça ou fraqueza. No entanto,
persistiu a alusão ao medo do comunismo como elemento desencadeador do golpe.
3.2. Espectro da sociedade
O Jornal, na tentativa de relatar os fatos, acabou por expressar conjunturas específicas. Não
deixou também de reportar uma transformação na abordagem sobre os acontecimentos
desencadeados em 31 de março de 1964.
A imprensa local em 1964, pertencente ao Grupo Diários Associados, que sempre fez
oposição a João Goulart, defendeu o movimento conclamando “todos os homens de bem no sentido
de se unir em defesa das tradições democráticas do nosso povo”.54 Nesse momento a “democracia”
significava a marcha contra a ameaça comunista, tendo sido interpretada como incorporada às ações
de João Goulart.
No entanto, em entrevista ao “Especial 64: 20 anos depois”, de 1984, o deputado estadual à
época do golpe, José de Castro Ferreira, preso pela repressão e submetido a Inquéritos Policial-
Militares, associou a deposição de João Goulart ao temor por uma atitude de transformação, pois
Jango “(...) desafiou dogmas e tentou desatar nós políticos e econômicos”. A reportagem deste dia,
datada de 29 de março, iniciaria com o sugestivo título “JF paga até hoje”, relatando também que
mesmo os órgãos de comunicação simpáticos ao governo seriam “enquadrados” após o golpe.55
20 anos depois do deslocamento das tropas de Juiz de Fora, a realidade é outra. A proposta
se revelou fracassada mesmo para aqueles que a apoiaram. A Tribuna de Minas coletou uma série 52 Ambos referem-se ao conjunto de obras de autoria de Elio Gaspari. “As ilusões Armadas” é composta por: A Ditadura Envergonhada. op cit.; e A Ditadura Escancarada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. Já “O Sacerdote e o Feiticeiro” é composto por A Ditadura Derrotada. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.; e A Ditadura Encurralada. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. 53 MIRANDA, R. “Entrevista: Laurita Mourão. “O Governo estava para a esquerda e os generais não toleravam isso”. Tribuna de Minas, Juiz de Fora, 28 e 29/03/04, p.04. 54 DIAS, R. “Minas mais uma vez sai em defesa da liberdade restituindo aos Brasil, em 36 horas, a paz e a democracia”. Tribuna de Minas, Juiz de Fora, 28/03/84, Especial 64: 20 anos depois, p. 08. 55 INTIMADOS e marcados. Tribuna de Minas, Juiz de Fora, 29/03/84, Especial 64: 20 anos depois, p. 08.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 207
desses depoimentos de pessoas que se consideraram traídas com as mudanças de rumo do
movimento militar. O texto de abertura revelou que muitas pessoas procuradas se negaram a dar seu
depoimento, mas que outras o fizeram como forma de justificar uma posição política adotada no
passado.
Dentre os mais significativos destes, o depoimento de Tarcísio Delgado, prefeito de Juiz de
Fora em 1984 e em 2004. Sob o título “Eu aceitei o golpe de 1964”, a matéria é ilustrada com uma
foto do ex-Prefeito encobrindo o rosto. Afirmava ele que fora contra o Golpe naquele momento,
“baseado numa visão de legalidade”, mas que depois passou a defendê-lo, pois João Goulart havia
sido eleito vice e não o Presidente do Brasil. Segundo Tarcísio Delgado, sua posição mudaria após
o AI-2, ao perceber que os militares não deixariam logo o poder. Tornou-se então “símbolo da
oposição juizforana” pelo MDB. Sua mudança de postura, pelo menos em 1984, é bem evidenciada
no próprio uso do termo “golpe” ao falar do período. O que aconteceu, conforme revelou o próprio
entrevistado, foi que muitos apoiaram o Golpe, e já em 1984, faziam oposição aos militares.56
Para o Prefeito da cidade em 1964, Adhemar de Andrade, a “revolução” foi apoiada por
manifestações populares, pois todos estavam favoráveis à queda de João Goulart. Caracterizou o
período por um clima de descontentamento geral, principalmente na área social.57
Manifestando a voz da imprensa da época, Lonir Cardoso comparou o período precedente
ao 31 de março de 64 ao de 1984, dizendo-os iguais. Segundo a redatora do Diário Mercantil em
1964, a sua decepção atual era justificada pelo não cumprimento pela “revolução” dos seus
“princípios”. Os princípios do movimento, porém, não foram relacionados por ela, ou por nenhum
outro entrevistado, como algo que ia além da “ameaça comunista”.
Já a decepção com o processo, desencadeado pelo deslocamento das tropas de Juiz de Fora,
seria freqüentemente associada às denúncias de tortura contra presos políticos e à censura. O tema
da censura estaria relacionado a um aspecto prejudicial para a própria imprensa. Não foram raros os
casos de jornais circulando com espaços destinados a notícias políticas, preenchidos por
amenidades, por determinação dos setores que se faziam cada vez mais presentes nas redações,
durante o regime. No entanto, cabe ressaltar, o silêncio sobre determinados assuntos também esteve
relacionado a uma “miopia política da imprensa”, ávida pelo furo de reportagem e pelo rigor
técnico do trabalho jornalístico, com alguns setores permitindo a ausência de uma visão crítica da
realidade brasileira naquele momento.58 56 GUILHERMINO, L A e PAIVA, R. “Tarcísio: “eu aceitei o golpe de 1964”. Tribuna de Minas, Juiz de Fora, 29/03/84, Especial 64: 20 anos depois, p. 08. 57 Idem. “Comício de 18 de março no Cine Popular”, Tribuna de Minas, Juiz de Fora, 30/03/84, Especial 64: 20 anos depois, p. 08. 58 ALMEIDA, Maria Hermínia Tavares e WEIS, Luiz. Carro-zero e pau-de-arara:o cotidiano da oposição de classe média ao regime militar. IN: SCHWARCZ, Lilia M. (org.). História da Vida Privada no Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 1998, pp. 358-359. Sobre o assunto, ver também: KUSHNIR, Beatriz. De ordem superior...Os bilhetinhos das
Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 208
De fato, a própria imprensa local ignorou a morte de um preso político sob a
responsabilidade da Auditoria Militar sediada na IV Região Militar, simulada como suicídio. O
assassinato de Milton Soares de Castro, guerrilheiro preso na Serra de Caparaó, em 1967, seria
definitivamente esclarecido anos depois, a partir de um trabalho jornalístico realizado pela própria
Tribuna de Minas.59
As denúncias de torturas que batiam à porta dos brasileiros desde o imediato pós-golpe,
como o calvário vivido por Gregório Bezerra, espancado, queimado com ácido de bateria e
arrastado pelas ruas do interior de Pernambuco,60 não faziam eco na sociedade. Apesar das
denúncias empreendidas por Márcio Moreira Alves, desde 1964, com tentativas para publicar
Torturas e Torturados que somente pôde circular em 1967.61
Ainda em 1964, Ernesto Geisel, então chefe do Gabinete Militar, foi enviado ao Nordeste,
juntamente com o general Olympio de Mourão Filho, a mando do governo, para investigar torturas.
Mas os acontecimentos dessa espécie foram considerados, pelo general Geisel, como “excessos
naturais que se seguem à vitória de qualquer movimento armado”, amainando as denúncias.62
No entanto, em 1981, o mesmo Ernesto Geisel, que então fora presidente, declarou sobre o
movimento militar que depôs João Goulart:
O que houve em 1964 não foi uma revolução. As revoluções fazem-se por uma idéia, em favor de uma doutrina. Nós simplesmente fizemos um movimento para derrubar João Goulart. Foi um movimento contra, e não por alguma coisa. Era contra a subversão, contra a corrupção. Em primeiro lugar, nem a subversão nem a corrupção acabam. Você pode reprimi-las, mas não as destruirá. Era algo destinado a corrigir, não a construir algo novo, e isso não é uma revolução.63
Comunismo, república sindicalista, João Goulart. Os motivos são os mesmos para todos
aqueles que apoiaram o movimento militar chamando-o “revolução”, mas que, na década de 1980,
já começavam a reformulá-lo diante do momento histórico em que viviam, e em alguns casos, de
suas próprias perspectivas pessoais.
De “revolução” à “golpe”, o termo foi se redesenhando ao longo do tempo. Está expresso,
ainda que timidamente nas páginas do jornal Tribuna de Minas em 1984, delineia-se em 1994
caracterizado como período “triste” para, em 2004, ser definido definitivamente como o “golpe”
que vitimou várias pessoas. censuras e os rostos das vozes. IN: GOMES, Ângela de Castro (org.). Escrita de Si, Escrita da História. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2004. 59 ARBEX, D. TM encontra cova de desaparecido, e termina drama da família sem corpo para velar. Fim de um segredo de 35 anos. Tribuna de Minas, 28/04/2002, capa e, Arquivos secretos: Cova de militante desaparecido é encontrada em JF, p. 03. (Setor de Memória da Biblioteca Municipal Murilo Mendes) 60 BEZERRA, Gregório. Memórias (segunda parte: 1946 – 1969). Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1980, pp. 193 – 204. 61 ALVES, Márcio Moreira. Torturas e torturados. Rio de Janeiro, 1967. 62 CARVALHO, Luis Maklouf & SERRA, Cristina. “Anos de Terror: A repressão política no Brasil (1964 a 1976)”. IN: RETRATO do Brasil. São Paulo: Ed. Política, 1984, p. 194.
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Segundo análise de depoimentos dos militares, estes atestam que o “vencido tornou-se o
dono da história”. Referem-se ao fato de que o regime sufocou a ‘subversão’, a luta armada, mas
que “foram derrotados na luta pela memória histórica do período”.64
Essa posição de julgamento dos militares está bem expressa em todas as três séries de
reportagens sobre o período aqui estudadas. Se ainda sob os auspícios dos governos militares
encobertava-se o termo “golpe” e permitia-se a palavra a seus defensores, 40 anos depois a
abordagem jornalística é pelo direito de voz às críticas ao regime.
Da luta pelas ‘Diretas Já’ ao primeiro mandato de Lula, muito se caminhou para a
interpretação do movimento militar, ao sistematizar uma terminologia para definir o período. Os
acontecimentos de 31 de março já se apresentam, para a maioria dos brasileiros, como um golpe,
período com graves conseqüências para toda a sociedade. Porém o fato é que ainda há muito para se
conhecer, pois o período da ditadura militar deve ser esclarecido. O acesso às fontes, ainda
dificultado pelo Executivo, denota que há muito para se compreender sobre o desenrolar do
processo histórico entre 1964 e 1985.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao analisarmos a cobertura da Tribuna de Minas, jornal juizforano, sobre o movimento
militar em reportagens de 20, 30 e 40 anos após 1964, percebemos variadas abordagens de acordo
com a conjuntura. Nesse sentido, a transformação mais visível no tratamento ao período está na
utilização do termo “revolução” em 1984 para “golpe” em 2004. Naquele ano ainda vigorava o
regime militar e há maior cautela ao se abordar o assunto, enquanto que, nesse ano o assunto já
começa a ser sistematizado como objeto de pesquisas acadêmicas.
No entanto, percebe-se também a diferença de espaço do jornal, dedicada ao período, com o
passar das décadas. A série especial de 1984 transmite subliminarmente o desejo pelas ‘Diretas Já’.
O movimento é extremamente abordado, em seus vários aspectos, para que sejam detectados os
seus pontos negativos e a mudança aconteça. Já o quase silêncio de 1994 sobre o tema, reflete o
temor de um novo golpe que se vivia à época. Rememorá-lo poderia ser perigoso num contexto de
“nostalgia” para certos setores, mesmo que ela fosse enganosa. 63 APUD: GASPARI, Elio. Op. Cit., p. 138. 64 D’ARAÚJO, Maria Celina; SOARES, Gláucio Ary Dillon; CASTRO, Celso (Int. e Org.). Os anos de chumbo: a memória militar sobre a repressão. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994, p. 13.
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Em 2004 a busca de uma análise sistematizada, que pretendia dar voz aos dois lados, mas
que definiu o movimento como golpe, também foi o reflexo do presente. O tema invadiu as
universidades e passou a ser encarado como objeto de pesquisa acadêmica, ao invés de um simples
relato de pessoas que dele participaram. No entanto, a principal lição que pôde ser tirada dessa nova
experiência é que ainda há muito para ser investigado sobre 1964 e as suas conseqüências.
O interesse acadêmico pelo assunto foi obstruído pelo decreto 4.553 de 2002, quando o
governo Fernando Henrique chegou a ampliar “por tempo indeterminado” a divulgação de certos
documentos sigilosos. Arquivos que ainda guardavam segredos do regime militar continuariam
afastados do conhecimento público.65
O Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro denunciou, em artigo intitulado
“Perpetuando desaparecimentos: desaparecendo com a história”, a postura arbitrária do Governo
Federal mediante a situação dos arquivos das Forças Armadas sobre a Guerrilha do Araguaia:
Tal procedimento, que consideramos abominável, acoberta todos aqueles que foram responsáveis por um dos mais cruéis episódios da nossa história recente. No momento atual, em que outros países latino-americanos, que também passaram por ditaduras sanguinárias, revogam “leis de anistia”, elaboradas pelos responsáveis pelas mortes, desaparecimentos e torturas de opositores políticos para se auto-anistiarem, o Brasil caminha na contra-mão da história.66
Mas os fatos que ainda não haviam se tornado conhecidos eram incentivados, em 2004, a
serem apagados da memória, como o meio para a superação de um trauma. O presidente Lula
afirmou na época que o golpe seria um “episódio encerrado”.67 Tarcísio Delgado, prefeito de Juiz
de Fora, disse que “quanto mais esquecermos melhor”,68 referindo-se à data. Como se ignorá-la
fosse a melhor forma de superá-la.
Porém, em 2005 foi sancionada a Lei 11.111, gerando expectativas para o acesso público
aos arquivos da Ditadura, mas ainda citando o Tortura Nunca Mais, a lei possui “artimanhas para a
liberação de documentos tidos como sigilosos; somente aqueles pouco significativos para resgatar a
história desse período virão à público.”69 Enquanto isso, a União anuncia que os arquivos da
ditadura podem ser declarados “arquivos históricos patrimônio da memória da humanidade”,
visando assegurar sua preservação.70 65 MELO, Murilo Fiuza de & CARIELLO, Rafael. “Sigilo eterno inviabiliza pesquisa no Rio”, Folha de São Paulo, São Paulo, 08/02/04, Brasil, p. A13. 66 GRUPO Tortura Nunca Mais, “Perpetuando desaparecimentos: desaparecendo com a história”, Rio de Janeiro, 28/08/03, <www.torturanuncamais-rj.org.br/Noticias> 67 MIRANDA, R. “Episódio está encerrado para Lula”, Tribuna de Minas, Juiz de Fora, 01/04/04, Política, p. 06. 68 MIRANDA, R. “Silêncio marca passagem dos 40 anos em JF”, Tribuna de Minas, Juiz de Fora, 01/04/2004, Política, p.06. 69 MAGALHÃES, Mário. ONU pede, mas União veta acesso a arquivos. Folha de São Paulo, São Paulo, 19/11/2006, p.A-19. 70 BARBOSA, Bia. Banco de DNA vai ajudar na identificação. Agência Carta Maior, Direitos Humanos, 26/09/2006. <http://agenciacartamaior.uol.com.br/templates/materiaImprimir.cfm?materia_id=12356>, em 27/11/2006.
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A história da ditadura militar em Juiz de Fora ainda é um episódio a ser amplamente
desvendado, processo que vem se concretizando nos últimos anos com iniciativas de pesquisas
acadêmicas e a mobilização de setores interessados. O início dessa pesquisa coincidiu com o
aniversário de 40 anos do movimento militar. Passadas quatro décadas, o período já possui análises
mais sistemáticas, sendo incorporado como objeto de estudo e debates. Mas este é apenas o início.
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Jovem Pesquisador:
MEMÓRIA “SUBTERRÂNEA” NA CONSTITUINTE DE 1946: UM MOMENTO PARA REPENSAR O PASSADO “TRAUMÁTICO”
Mayara Paiva Souza*
Resumo: O texto discute a experiência política de um dos membros da elite derrotada e condenada ao silêncio após a Revolução de 1930 e 1932, tentando reconstruir e discutir a ação parlamentar do Deputado Euclides Figueiredo (1946-51) um dos maiores responsáveis pela articulação da oposição liberal contra o regime varguista. Partimos da relação entre história e memória para que possamos compreender aquilo que foi dado como histórico e resgatar o que foi condenado ao silêncio pela historiografia em sua função “tranqüilizadora”. Palavras-chave: memória, história, Euclides Figueiredo. Abstract: The objective of the text is to discuss the politic experience of a member of the defeated group after the “Revolução de 1930 e 1932”, trying to analyse the action of the deputy Euclides Figueiredo (1946-1951) one of the biggest “Era Vargas” 's opponent. The relation between history and memory help us to understand the formation of the historic knowledge and to recover the subject silence. Key words: memory, history, Euclides Figueiredo.
INTRODUÇÃO
Ao analisar a atuação parlamentar de Euclides Figueiredo durante o governo Dutra, visamos
refletir sobre a experiência política da elite derrotada em 1930 e 32, elite esta que partilha a
experiência das traições, derrotas, perseguições e exílio. Essa experiência de um passado comum
permite a formação de uma identidade marcada pelo antigetulismo. Desse modo, a partir de 1945
esse grupo de derrotados políticos se reúne em torno da União Democrática Nacional (UDN) que
empunhará daí por diante, a bandeira antigetulista. Os discursos de Euclides Figueiredo entre 1946
a 1951 são marcados por essa identidade de rejeição a Vargas e representam os sentimentos e
ressentimentos do grupo deposto e silenciado pelo regime varguista. Apesar de sua atuação
parlamentar representar um período pós-Estado Novo, percebemos que seus discursos são marcados
* Discente do 4º ano de História pela Universidade Federal de Goiás Faculdade de Ciências Humanas e Filosofia - Departamento de História Integrante do grupo de pesquisa financiado pelo CNPq: Literatura, História e Imaginário.E-mail: [email protected]
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pela ferrenha e, muitas vezes, quixotesca oposição a Getúlio Vargas e pela luta contra os resquícios
desse governo.
A análise dos discursos parlamentares de um dos membros da elite derrotada pode
apresentar um novo ângulo à história política brasileira ressaltando a subjetividade dos personagens
históricos que fizeram parte do grupo de exilados da Velha República. O ressurgimento das vozes
dos vencidos demonstra o que a “memória histórica” do governo Vargas deixou escapar em suas
entrelinhas. Nesse sentido, discutir a memória desse período implica em discutir a historiografia e o
lugar ocupado pelos personagens históricos, dando voz aos derrotados que também apresentavam
um projeto político, projeto este fundado sob a bandeira anti-varguista.
Em A teia do fato Carlos Alberto Vesentini (1997)1 ressalta que a historiografia situa os
lugares de reflexão fazendo recortes sobre o passado e eliminando “contingências”. Para o autor, a
história como conhecimento metódico, torna simplificado e unitário o conhecimento, apenas um
discurso é reforçado e toma o “ar” de verdade simplificando temas complexos. Entretanto, a
recolocação de questões e problemas supõe a necessidade de enfrentar o geral já dado e os fatos já
aceitos como um passado comum, pois ecos dos vencidos oferecem a diversidade de efetivação da
própria história.
As Revoluções de 1930 e 32 são tidas como fatos dados e herdados. Nesse sentido, a ótica
do vencedor cinde o tempo e instaura um passado capaz de caracterizar um vencido, garante-lhe
legitimidade que abre o futuro e situa o realizado. O adversário transparece como oligarquia e o
vencedor define-se como nova consciência, como marco que apresenta lineamentos para a memória
histórica. O movimento de 30 encerra uma etapa e começa outra, o “novo” exorciza o “velho”
estabelecendo sua realização efetiva como o momento a ser lembrado. Esse marco criado pela
memória e história oficial é assumido pela historiografia que caracteriza o período anterior como
República Velha, como um período marcado pelo poder de uma “elite” e de políticos “carcomidos”.
Porém, entender a obra do vencedor supõe perceber o não-efetivado, pois a vitória não se deu sem
lutas, sem derrotas, frustrações e exílios.
As décadas de 1920 e 30 são marcadas por crises que levam à profundas transformações.
Um Estado centralizador surge em detrimento do Liberalismo. As transformações mundiais atingem
a economia brasileira e geram um conflito entre as classes sociais. Há um deslocamento do poder
dos grandes estados (em especial São Paulo) que perdem espaço e o grande desafio será retomar o
governo. Entretanto, o mundo complicara-se, não havia mais as linhas rígidas da Primeira
República. Acelerava-se a industrialização e a urbanização. É nesse contexto que inserimos
Euclides Figueiredo, um coronel que se recusa a participar do golpe de 1930 e, a partir desse
1 VESENTINI, Carlos Alberto. A teia do fato. São Paulo: Hucitec: USP, 1997.
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episódio, traça sua carreira de oposição a Vargas. Para Figueiredo a vitória da Revolução “foi um
tormentoso acontecimento da vida nacional.” Considerou ilegítimo e indigno de respeito o Governo
Provisório, iniciando uma oposição cerrada e duradoura ao novo presidente da República. A
princípio, Figueiredo manifesta sua oposição como um dos líderes militares da Revolução
Constitucionalista deflagrada em São Paulo em 1932. Com a derrota do movimento Figueiredo
parte para o exílio, porém não deixa de articular resistência ao governo Vargas. Anistiado, tem
importante participação na redemocratização do país em 1945 como um dos fundadores da União
Democrática Nacional, partido pelo qual Figueiredo chega ao parlamento como um dos Deputados
mais votados do Distrito Federal em 1946. É sua atuação parlamentar no período de 1946-51 que
aparece como momento salutar para a compreensão de como o grupo derrotado na década anterior,
que se reunia em torno de uma identidade e de uma coesão marcada por uma memória comum,
pensava a dimensão temporal e inseria-se na disputa pela memória.
Pensar a atuação parlamentar de Euclides Figueiredo supõe enfatizar outros instantes,
recolocar questões tentando saber o que foi deixado e porque se perdeu na memória. Além disso,
supõe evocar a subjetividade dos sujeitos históricos, atentando para os sentimentos e ressentimentos
de um grupo que se sentia deslocado e sem lugar na nova sociedade que emergia. Essa elite
derrotada em 1930 e 32 tenta inserir-se no presente restaurando o passado, entretanto, o seu mundo
já não tem coerência. Dentro desse quadro, a atuação parlamentar de Euclides Figueiredo contribui
para a compreensão da subjetividade dessa elite derrotada e aloca questões acerca do diálogo entre
história e memória que tanto tem sido debatido contemporaneamente pelas ciências humanas.
A ATUAÇÃO PARLAMENTAR DE EUCLIDES FIQUEIREDO
Cada época mantém relações diferentes com seu passado e futuro, cada presente constrói
ritmos históricos diferenciados2. Cabe-nos analisar como em 1946 as dimensões temporais do
passado e futuro foram postas em relação; como o parlamentar Euclides Figueiredo pensou o seu
tempo movido por ecos de ressentimentos, derrotas e traições que marcaram a sua trajetória desde a
Revolução de 1930. Neste ponto incluímos a memória em sua conflituosa relação com a
historiografia. O grupo derrotado em 1930 e 32 representa uma memória subterrânea, o fim do
Estado Novo, as eleições de 1945 e a Constituinte de 1946 representam um momento fecundo para
que essa memória marginalizada viesse à superfície. 2 KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC – Rio, 2006.
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O ano de 1946 é um ano fértil, de intensa importância para a história do Brasil em termos de
amplitude que pode assumir o debate ideológico. Com a vitória dos aliados na Segunda Guerra
Mundial, as decisões internacionais iam impondo ao Brasil um reexame de sua situação: lutar
contra ditaduras pedia que se começasse combatendo a própria3. A Constituinte de 1946 proveio da
vitória das Nações Unidas contra os regimes opressores, foi um momento de repensar o passado,
presente e futuro da nação. Esse foi um momento de debate sobre a democracia, sobre a passagem
de uma regra a outra.
Segundo João Almino (1980)4 aquele era o momento de repensar e reformular os
fundamentos sobre os quais se assentava o velho edifício carcomido e começar tudo de novo,
liberando as energias criadoras reprimidas e colocando-as a serviço da regeneração do organismo
enfermo. Pensar a Constituinte de 1946 é pensar a noção de tempo: um presente que exigia urgência
de soluções; um futuro repositório de todos os sonhos libertários; futuro democrático em que todos
os brasileiros seriam livres. O presente era um tempo intermediário entre a ditadura e a democracia,
a função desse “agora” era resolver os problemas sociais e econômicos do país para que, assim, o
futuro se tornasse presente.
As experiências vividas e as expectativas dos parlamentares refletem-se no agora. As
experiências recolhidas pelos integrantes da União Democrática Nacional (UDN) focalizavam o
passado como o Estado Novo, o passado era Vargas, e esse precisava ser eliminado do cenário
político, uma vez que se constituía uma ameaça para os liberais da UDN. Vargas era ao mesmo
tempo passado e presente. Os constituintes viviam, assim, um tempo intermediário em que o futuro
ainda não estava estabelecido e em que o presente não conseguiu romper com o passado.
A recuperação do passado desempenhou um papel importante no debate sobre as ameaças
presentes. Os riscos e temores eram parte integrante do vivido. Para os udenistas era necessário
romper com esse passado (Estado Novo) monolítico e arbitrário e proteger o país da repetição do
golpe de 1937 que havia suspendido o sistema democrático. O tema constante da UDN era a
denúncia da ordem política anterior e a construção de uma democracia. Em seu discurso havia a
idéia de um projeto para o futuro democrático do Brasil, projeto de ruptura com o passado do
Estado Novo, e que reinstalaria no futuro do país a democracia de seu passado.
Os discursos e projetos do parlamentar Euclides Figueiredo, possuem um ponto de
referência externo comum ao grupo deposto na década de 1930. A identidade desse grupo reunido
sob a bandeira udenista caracterizava-se pelo antigetulismo. A UDN era um grupo heterogêneo que
tinha como ponto comum entre os seus partidários, simplesmente a oposição a Getúlio Vargas, era
uma “comunhão de ódios”. O ódio recalcado criou uma solidariedade afetiva que, extrapolando as 3 SALDANHA, Nelson. História das idéias políticas no Brasil. Brasília, Senado Federal, Conselho Editorial, 2001. 4 ALMINO, João. Os Democratas Autoritários. São Paulo: Brasiliense, 1980.
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rivalidades internas, permitiu a reconstituição de uma coesão, de uma forte identificação de cada um
com seu grupo5. A memória comum reforçou a coesão e marcou a identidade do grupo. Os pontos
de contato dessa memória eram a traição, derrota e exílio.
A sobrevivência das lembranças traumatizantes, de uma memória clandestina que destoa da
“memória oficial”, acumula ressentimentos e sofrimentos que não foram expressos publicamente6.
A grande produção memorialística logo após a Revolução de 1930 e 32 marca uma tentativa de
explicar os acontecimentos e justificar a derrota, entretanto, somente em 1946 o momento parecerá
propício para a erupção dessa memória marginalizada que destoava do discurso modernizador de
Vargas. Essa disputa de memória marca reivindicações múltiplas traduzidas nos discursos e projetos
dos constituintes daquele ano que possuem diferentes formas de apreensão do passado.
O trauma foi “abafado” pela história em sua função tranqüilizadora e geradora de sentido. A
história eliminou os caminhos obscuros e complexos da memória, mas os fatos traumáticos,
relegados a um plano secundário, podem assombrar o presente e manifestar-se de maneira perigosa.
Temos uma história dos vencedores. A pluralidade que parte dos vencidos foi relegada a uma zona
de sombras, à errância. Mas, silêncio não significa esquecimento, e os fatos traumáticos podem ter
como efeito o seu retorno, uma vez que as lembranças permanecem vivas, esperando a oportunidade
para emergirem. Com isso percebemos que a escrita da História se caracteriza como um espaço de
conflito e de disputas de memória.
Diz-se muitas vezes que a história é escrita pelos vencedores. Eles podem dar-se ao luxo de
esquecer, enquanto os perdedores não conseguem aceitar o que aconteceu e são condenados a
remoê-lo, revivê-lo, refletir sobre como poderia ter sido diferente7. Figueiredo não esquecia a
derrota de 1932, e mesmo no Parlamento continuou relembrando e explicando os acontecimentos
pretéritos. Na sessão de 08 de julho de 1949, o deputado discursa acerca de sua fidelidade à
Revolução Constitucionalista de 1932 e afirma que seu pronunciamento é para acentuar as
intenções daquele movimento. Contudo, ao longo do discurso, Figueiredo apresenta uma série de
justificativas para explicar a derrota e a legitimidade dos acontecimentos de 1932.
Percebemos em seus pronunciamentos que Euclides Figueiredo reinterpreta o passado em
função dos combates do presente e do futuro, e tenta dar sentido a sua identidade e do grupo
udenista. Além disso, notamos a construção da persona de Vargas que aparece nos discursos da
oposição como traidor e escorregadio. A oposição traça um personagem que desde o início
mostrou-se paradoxal, despistador e ilusionista. Getúlio Vargas é caracterizado como um mágico
5 SEIXAS, Jacy Alves de. Percursos de memória em terras de história: problemáticas atuais. In: BRESCIANI, Stella & NAXARA, M. Memória (res) sentimento. Indagações sobre uma questão sensível. São Paulo: Editora da UNICAMP, 2001. 6 POLLAK, M. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos _ Memória, CPDOC/FGV, n. 3, 1989. 7 BURKE, Peter. A escrita da História: novas perspectivas. São Paulo: Unesp, 1992.
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com palco e platéia imensa que aplaudia. Getúlio tinha um “poder magnético”, o que torna a
Revolução de 30 getuliana8. Essa Revolução getuliana cria uma imagem do novo que rompe com as
velhas oligarquias de políticos profissionais, os “cartolas que oprimiam o povo”. Nesse sentido,
1930 aparece como marco fundador de uma nova era de modernização.
No entanto esse discurso oficial entra em crise no ano de 1945 com a deposição de Vargas, e
o período conhecido como “redemocratização” torna-se um momento propício para a emergência
das memórias subterrâneas. É o momento em que Figueiredo reinterpreta o passado e tenta
apresentá-lo como um período autoritário, atrasado, “fascista” e distante das exigências dos novos
tempos. Era necessário apagar os últimos resquícios desse passado, julgá-lo e puni-lo. O presente
era o momento fértil para que se eliminasse o passado e projetasse um futuro democrático. Porém, o
presente também era um momento de medo e apreensão, pois Vargas ainda estava à porta e muitos
clamavam pelo seu retorno ao governo através do movimento “queremista”.
Cabia aos parlamentares da oposição defender o país contra a repetição do golpe de 1937,
repetição que parecia iminente. Para Euclides Figueiredo e muitos udenistas, a desordem pública
era reflexo da manipulação do ex-ditador, que teria conseguido, a despeito de 29 de outubro, manter
viva a agitação queremista. Para o deputado, era necessário apagar o passado e criar meios que
impedissem o seu retorno.
O Deputado Euclides Figueiredo destacou-se pelo passado e posições fazendo da tribuna da
Assembléia Nacional Constituinte sua nova trincheira contra Vargas, nesse sentido seus principais
projetos buscam a eliminação dos resquícios do governo Vargas. Seus discursos parlamentares
revelam os ressentimentos de uma das vítimas das arbitrariedades do Estado Novo, pois durante
esse período esteve preso por quatro anos, perdeu posições e, além disso, foi dado oficialmente
como morto.
Em discurso na Assembléia Nacional Constituinte em 1946, Figueiredo frisa que não existe
separação entre sua ação civil, Deputado e militar também democrata, sua posição de Deputado
Federal seria um prolongamento de sua atuação como homem público na qual deveria prosseguir na
linha de suas atitudes. Atitudes definidas desde o golpe de 1930.
No parlamento, o deputado udenista propôs a extinção da Polícia Especial, herança do
estadonovismo, após vários discursos arrasadores consegue que esse órgão seja extinto, pois,
segundo ele, a Polícia Especial era uma ameaça à democracia. Além disso, encaminhou a lei dos
direitos autorais, elaborada pela Associação Brasileira dos Escritores que tinha a frente seu filho
Guilherme.
8 NOGUEIRA, Paulo (Filho). Ideais e lutas de um burguês progressista. O Partido Democrático e a Revolução de 1930. Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1965.
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Como não poderia ser diferente, o seu itinerário de Deputado esteve marcado pela ferrenha
oposição a Vargas. O incidente envolvendo a posse de Vargas como senador em 1946, demonstrou
os ressentimentos e exaltação que persistiam entre as vítimas e algozes do Estado Novo eleitos para
a Constituinte de 1946. Várias vezes a posse do ex-ditador foi adiada devido à exaltação dos
Constituintes. Figueiredo foi naturalmente um dos principais envolvidos no incidente. Vargas
recusara-se, logo em seu primeiro discurso parlamentar, a discutir e remoer o passado recente do
estadonovismo, isso era inadmissível para aqueles Constituintes que não podiam esquecer o passado
“traumático”.
Logo no início da Constituinte, Figueiredo requereu que fosse criada uma Comissão de
inquérito que julgasse os atos delituosos do Estado Novo. O Deputado pedia profundas
investigações no Departamento de Segurança Pública “no sentido de conhecer e denunciar à nação
os responsáveis pelo tratamento dado a presos políticos”. Segundo Figueiredo “a matéria não é
daquelas que podem ser esquecidas. Trata-se de fazer justiça, descobrir e apontar os responsáveis
por crimes inomináveis, praticados com a responsabilidade do governo; e mais que isso defender
nossos foros de povo civilizado”. O que o deputado intencionava era um verdadeiro julgamento do
Estado Novo, uma vez que este sentira de perto as arbitrariedades e perseguições do regime. Em 7
de maio de 1946 foi criada a comissão encarregada de examinar os serviços do Departamento
Federal de Segurança Pública e o tratamento dado aos presos políticos no período de 1934 a 45.
Porém, a freqüente falta de quorum encerra as atividades sem grandes avanços. O fracasso não foi
conseqüência da falta de perseverança e interesse de Figueiredo, pois, este compareceu à todas as
reuniões e lutou por suas mais profundas convicções, sem nenhum receio de beirar o quixotismo9.
Na linha coerente de eliminação das seqüelas do Estado Novo, Euclides Figueiredo se
pronunciou sempre pela anistia ampla e irrestrita. Aprovada anistia restrita, lutou para abolir as
limitações e as comissões nomeadas para examinar cada caso. Seu objetivo era que as vítimas,
geralmente funcionários civis ou militares, pudessem aguardar os resultados exercendo seus cargos,
pois muitos estavam na miséria.
A marca da Constituinte de 1946 era a democracia, no entanto o Decreto-lei n. 7.474 de 18
de abril de 1945, que concedeu anistia a todos quantos tinham cometido crimes políticos, desde 16
de julho de 1934 até a data de sua publicação, ainda não lograra entrar em plena vigência, devido às
restrições ou exclusões que foram estabelecidas nos artigos segundo e terceiro. Esses artigos
apresentavam restrições que deixavam os anistiados a critério de comissões criadas segundo a
conveniência do regime. As soluções governamentais não eram imediatas e gerais, mas “pingavam
uma a uma” e, quase um ano após a promulgação da lei da anistia, aqueles que deviam ser 9 FIGUEIREDO, Euclides. Discursos Parlamentares. Seleção e introdução de Vamireh Chacon. Brasília: Câmara dos Deputados, 1982. (perfis parlamentares, v. 23).
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beneficiados por ela ainda não sentiam seus efeitos. Para Figueiredo não havia dúvidas que
restrições como as visadas pelo Decreto-lei n. 7.474, não poderiam subsistir em um país
democrático e liberal. Era necessária a supressão dos dois artigos, pois anistia significava
esquecimento e não perdão.
Em seu discurso à Assembléia Nacional Constituinte na sessão de 18 de março de 1946,
Figueiredo afirma que o Brasil estava “diante de um novo ambiente de esperança, cheio de
vibrações de patriotismo, sob o influxo da verdade e da igualdade de direitos em que sopravam os
bons ventos que varreriam os últimos resquícios do estadonovismo”. O ano de 1946 é a transição de
um passado de “atraso e ditadura” para um futuro de “progresso e democracia”. Portanto, cabia aos
constituintes estabelecer essa tão almejada democracia e “apagar o passado traumático”.
Seus discursos acerca da anistia causam grande alvoroço, recebendo telegramas e
agradecimentos de anistiados que ainda sofriam restrições. Isso revela as inquietações e ânsia de um
país que acabava de sair de um governo autoritário em que muitos foram exilados e perseguidos.
Nesse sentido, percebemos que a anistia era algo almejado por muitos civis e militares. Em 1946,
“para felicidade do Brasil, as portas da libertação começavam a ser abertas e comunistas e não-
comunistas já não sofriam restrições”10.
Figueiredo fez questão de ler alguns telegramas que recebeu e que, segundo o deputado,
traduziam a ânsia do país para que se estabelecesse o apaziguamento, que só poderia vir com o
esquecimento dos crimes e sem cogitação da imposição de novas penas. O primeiro telegrama era
da Comissão de Anistiados Civis que ainda aguardavam o cumprimento do Decreto-lei 7.474. Esses
“anistiados” agradeciam e felicitavam o deputado pelo oportuno requerimento. Outro telegrama lido
por Figueiredo, era de um Sargento “jogado ao léu e que aguardava justiça”. Nesse mesmo dia, o
deputado foi chamado aos corredores da Câmara para ouvir mais um apelo, desta vez, de um
médico da Armada, Dr. Rodrigo de Araújo Jorge Filho, reformado pelo Decreto 838 de 4 de junho
de 1936, sob a acusação de envolvimento com comunistas. O médico teve seu requerimento de
reconsideração do ato do Governo recusado sem mais considerações. Segundo Figueiredo, o
“anistiado”, ao não poder exercer suas funções, andava de porta em porta e em estado de
necessidade: Não é apelo de um, mas de muitos anistiados, que, além de não poderem reverter às funções que a lei
lhes assegurou, se vêem inteiramente desamparados __ pode-se dizer__ porque nem empregos públicos, nem colocações particulares podem procurar, em face das leis vigentes, porque o Serviço de Recrutamento, uma vez que a anistia não foi executada, lhes nega a caderneta de reservistas, principal instrumento com o qual podem ganhar a vida lá fora. (...) Mas, senhores, não estou aqui servindo de eco de clamores; porque, se fosse revolver todo o meu arquivo a este respeito e quisesse citar desta tribuna, os nomes de todos os companheiros do Exército, de todos os companheiros da Armada, de todos os companheiros da Aeronáutica e dos civis que
10 ANAIS DA ASSEMBLÉIA NACIONAL CONSTITUINTE. Disponível em: <http/.imagem.camara.gov.br/publicações > Acessado em: 13 de março de 2007.
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me têm procurado, certamente perderia algumas horas, o que não lamentaria por mim, pois que elas não são preciosas, mas pela atenção que roubaria dos Srs. representantes.11
Euclides Figueiredo tinha a consciência de vítima das arbitrariedades do Estado Novo.
Perseguido e preso, devido suas constantes e incansáveis conspirações contra Vargas, esteve
encarcerado durante o período ditatorial e sua morte foi oficialmente divulgada cabendo à sua
“viúva” uma pensão e aos seus filhos, Euclides e Diogo, o ingresso no colégio militar como
estudantes órfãos. O então coronel é libertado em 1942 e é anistiado no posto de general no período
da presidência de Eurico Dutra. Entretanto, sua primeira anistia foi em 1905 devido ao seu
envolvimento na revolta contra a vacina obrigatória em 1904, medida decretada pelo governo
Rodrigues Alves.12 Em 18 de março de 1946 Figueiredo enfatiza sua trajetória, entretanto, afirma
que não advoga em causa própria, pois quase nada aproveitaria da anistia, salvo como reparação
moral. Esta reparação, segundo ele, veio-lhe com a eleição de 1945. Reparação que teve
sobejamente nos votos de seus concidadãos Embora não importe minha situação pessoal, porque, como disse, a grande generosidade de meus
concidadãos se elevou muito acima daquilo que me tiraram e muitíssimo acima daquilo a que poderia aspirar. Subsistirá, sim, o fato estranho, ilógico, incompreensível de ter assento nesta Assembléia um ex-soldado expulso do Exército, cidadão sem qualidade militar definida em lei, proscrito de sua própria classe, considerado morto por decreto. 13
A Anistia foi um ponto bastante enfatizado em sua carreira parlamentar. A Constituinte
termina sendo Euclides Figueiredo o parlamentar a insistir mais na ampliação e regulamentação da
anistia. Sua preocupação com a legalidade foi uma constante. Em fins do governo militar na década
de 80, com toda a movimentação pela anistia ampla, geral e irrestrita, sua figura emerge com a
publicação do volume 23 da série Perfis Parlamentares. Diante dos acontecimentos e da anistia
concedida em 1979 pelo seu filho João Batista Figueiredo, então presidente do Brasil, notamos que
a obra tenta ligar pai e filho. João Batista aparece como o continuador de suas lutas democráticas
em prol de um país livre e soberano. Perfis Parlamentares tende a mostrar que o governo do filho
representa os ideais pelos quais viveu e lutou o General Euclides Figueiredo.
Esse discurso ideológico que tenta mostrar o filho como concretização dos ideais do pai,
supriu simbolicamente as deficiências do presente. Entretanto, destacaram-se somente seus projetos
pela anistia, enquanto sua posição contra o arbítrio e a tortura comandados pelo governo, sua
posição a favor de eleições populares, por uma força armada a serviço da garantia das liberdades
públicas, foram relegadas a um plano secundário, uma vez que não correspondiam aos interesses do
presente o qual o país encontrava-se sob o período de ditadura militar. 11 idem. 18 de março de 1946, pág 92. 12 ABREU, Alzira Alves. Dicionário Histórico-Biográfico brasileiro. Rio de Janeiro: Ed. FGV, CPDOC, 2001. 13 FIGUEIREDO, Euclides. Discursos Parlamentares. Seleção e introdução de Vamireh Chacon. Brasília: Câmara dos Deputados, 1982. (perfis parlamentares, v. 23).
Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 221
Para concluir, o itinerário do Deputado Euclides Figueiredo foi marcado por convicções que
vinham de longa data. Figueiredo foi fiel em sua oposição a Vargas até mesmo quando esse não
estava no poder. Suas atitudes e discursos marcam a identidade antigetulista de um grupo derrotado
em 1930 e 32 que busca, incessantemente, retomar o poder, entretanto, o mundo que tentam
restaurar é incoerente com as transformações que se operam na sociedade e na política. Os discursos
de Figueiredo revelam os ressentimentos desse grupo que se sente apeado do poder e tenta retomá-
lo. Porém, a história reservava-lhes outra sorte.
CONCLUSÃO
A partir da leitura acerca da relação entre história e memória assumimos a perspectiva de
que esses conceitos não podem ser vistos como campos opostos, pois há um vínculo entre eles.
Embora a relação da história com a memória seja complicada, uma não pode prescindir da outra na
construção do conhecimento histórico.
A história, por muito tempo, foi um discurso criador do passado. Entretanto, hoje os
historiadores têm consciência de que são eles que selecionam o que se tornará histórico. A partir das
inquietações do presente, os historiadores ancoram em determinados pontos do passado
estabelecendo o que será lembrado e o que será esquecido e abrindo uma perspectiva para o
futuro.14 Neste processo, além do contexto atual influenciar a percepção do passado, o próprio
presente é influenciado pelos acontecimentos pretéritos; é necessário analisar o que os homens de
cada tempo conheciam do passado, e como eles se percebiam, pois há uma relação transcendental
entre passado e presente.15 Nesse sentido, é a partir das questões atuais que revisitamos o passado
construindo visões retrospectivas que o organizam de forma proveitosa para a luta política do
presente. Fato e memória se unem, assim, a memória decide onde se deve colocar as interrogações
excluindo ângulos em que sua coerência poderia ser colocada em questão.
Para se compreender o outro ângulo das interpretações, devemos reelaborar os agentes
suprimidos no movimento da memória, restabelecendo os termos daquilo que o poder e o vencedor
absorveram, pois os vencidos comparecem à memória como ponto de referência de relevância
14 RÜSEN, Jörn. Perda de sentido e construção de sentido no pensamento histórico na virada do milênio. In: História: debates e tendências. Passo Fundo, v. 2, n. 1, 2002. 15 MASTROGREGORI, Massimo. Historiografia e tradição das lembranças. In: A História escrita: teoria e história da historiografia. São Paulo: Editora Contexto, 2006.
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secundária, sua luta esvai-se para ceder lugar ao realizado. Assim, ficam excluídos do tempo e da
História instantes relevantes que são silenciados.
Ao relacionar os elementos teóricos com os discursos de Euclides Figueiredo, percebemos
que a memória é ação política, é um espaço de disputa e negociação. Sua relação com a história
deve ser problematizada, uma vez que a memória apresenta múltiplas percepções do vivido, e ao
aproximar-se da historiografia se submete a uma negociação e seleção. Parafraseando Halbwachs
(2004)16, a história assemelha-se a um cemitério onde o espaço é medido e onde é preciso, a cada
instante, achar lugar para novas sepulturas.
16 HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2004.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 223
Jovem Pesquisador:
OS ARQUIVOS DA REPRESSÃO E A LUTA PELA MEMÓRIA DA DITADURA MILITAR1
Isabel Cristina Leite *
“A memória é o absoluto e a história o relativo”.2
Resumo: Os arquivos da ditadura militar são um importantíssimo lugar de memória e a discussão acerca da necessidade da facilitação ao acesso a estes documentos sigilosos é um tema polêmico e que se atualiza constantemente. Desde o aparecimento do chamado Orvil – “O livro negro do terrorismo”, escrito pelos militares, ficou explicito o quanto há muito que ser revelado nos documentos sigilosos das Forças Armadas. A legislação brasileira em nada auxilia para a reconstrução histórica do período e existem movimentos pontuais na sociedade civil fazendo pressão para que se mudem as leis de arquivo. Palavras-chave: Arquivos – Memória – Ditadura Militar. Abstract: The military dictatorship's files are a very important memory depot and the discussion concerning the need of facilitation to the open access to these secret documents is a controversial theme wich is constantly updated. Since emergence of the call Orvil – “The terrorism's black book”, written by the military ones, it was explicit all there is a lot to be revealed in the armed force's secret documents. The Brazilian legislation in anything aids for the historical reconstruction of the period and few movements exist in the civil society wishing changes in the laws about ditatorial period files. Keyword: Files–Memory–Military Dictatorship.
A partir de Nora, começamos a discussão acerca da importância da facilitação do acesso aos
documentos referentes à ditadura militar brasileira. Sem dúvida, um tema polêmico e que se atualiza
constantemente. Estes arquivos são lugares da memória absoluta, que nos ajudam a reconstituir,
sob diferentes prismas (o que a faz relativa), a história recente do país.
Trataremos de questões referentes à história/ memória/ arquivos relacionadas ao período
proposto. Procuramos buscar apontamentos sobre: O que são os arquivos da ditadura militar e
quais fontes podemos aliar a elas para a pesquisa histórica? Qual é a memória hegemônica do
período? Existem vencedores e vencidos? Como facilitar o acesso a estas fontes? Qual a melhor
1 Agradecimentos sinceros: Professora Dra. Heloisa "Bizoca" Greco e Gilcéia Magalhães. * Mestranda UFMG/ Bolsista CNPq 2NORA, Pierre.Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História. São Paulo: PUC-SP. N° 10, p. 9. 1993.
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maneira de usá-las? A quem pertencem estes documentos? Qual o limite entre o público e o privado
na documentação existente? Como a legislação dificulta o acesso a eles e o que vem sendo feito no
sentido de forçar a abertura destes arquivos?
Estes serão os eixos principais deste texto.
1. História/ Memória/ Arquivos
Estudar o tempo presente é desafiador, pois, conforme afirma Chartier, trata-se de “uma
pesquisa que não é a busca desesperada de almas mortas, mas um encontro com seres de carne e
osso que são contemporâneos daquele que lhes narra as vidas”3. A sensação que dá é de angústia
com a proximidade imediata que nos une ao objeto e com a problemática da aspiração à verdade
presente nesta história recente. Implica o grande risco de situação de desconforto entre
pesquisador/pesquisado em determinadas situações, pois, ao contrário da história tradicional, o
objeto, muitas vezes, acompanha o que fazemos com as lembranças. E, não raras vezes, crêem na
apropriação um tanto quanto equivocada de sua história, em casos de estudos sobre militância à
esquerda ou militares.
Para Halbwachs, a lembrança é reconstrução do passado influenciado pelo presente, a
memória individual está sempre remetida a um determinado grupo como forma de uma construção
de identidade4. A memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva e este ponto se
desloca à medida que são recebidas novas informações. A memória é, assim, re-significada. Este
processo remete à referência ao “espaço da experiência (passada) no presente”5, ou melhor, “toda
memória é mais uma reconstrução que uma recordação”6.
Para Le Goff, história e memória têm relacionamento tão próximo, que uma alimenta-se da
outra, chegando a ponto de se confundirem7, apesar das suspeitas que a primeira levanta sobre a
segunda. Nora estabelece diferenciações entre elas, quando escreve que a história é “laicizante”, que
demanda análises por todo o tempo; ao contrário da memória, alimenta-se de lembranças vagas,
sensíveis a cenas, censuras e projeções8. A memória precisa de lugares por estar sempre em
movimento nas vivências cotidianas, podem ser lugares materiais, simbólicos ou funcionais; o lugar
3 CHARTIER, Roger. A visão do historiador modernista. IN: AMADO & MORAIS. Os usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: GV, 2000. pp. 215. 4 HALBWACHS, Maurice. La memoire collective.Paris: Presses Universitaires de France, 1950 pp.47. 5 JELÍN, Elizabeth. Los trabajos de la memoria.Madrid: Siglo XXI, 2000. pp.13. 6 Idem. pp.21. 7 LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas, Editora Unicamp, 1990 8 NORA, Pierre.op.cit.
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pode estar numa carta, numa colcha feita na prisão, numa fotografia, num pedaço de jornal, pode ser
a penitenciária, um inquérito policial, ou seja, pode constituir-se em rastros. Ainda para este autor:
“desde que haja rastro, distância, mediação, não estamos mais dentro da verdadeira memória, mas
dentro da história”9.
A própria idéia de arquivo está ligada à idéia de preservar os rastros do passado. Podemos
ressaltar duas funções distintas para um arquivo, ou, mas especificamente, para os que guardam
documentos produzidos pelos militares durante as ditaduras do Cone Sul. Uma, sendo o arquivo
como lugar de “ordenamento de registros”, que fornecerá dados para o presente. A outra é a função
“para a história”, esta mesmo a que nós pesquisadores estamos habituados, para podermos construir
nossas narrativas10. Estas duas funções puderam ser claramente vislumbradas quando da abertura
dos primeiros arquivos do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), ainda na década de
1990. O público que acessava tal acervo, em sua maioria, havia sido vítimas do regime militar que
procuravam informações necessárias para conseguire indenizações, ou estavam à procura de pistas
acerca de algum desaparecido político. Após este período de busca dos militantes, foi a vez dos
pesquisadores começarem a adentrar estes arquivos na tentativa da reconstituição e entendimento do
que foi e como agiu o governo militar. Outra fonte de valia, foi a fonte oral, ainda que àquela época
os pesquisadores não dispunham destas com tanta facilidade quanto hoje. A partir do final dos
anos 90 começa o boom de livros memorialísticos e os ex- guerrilheiros começam a relatar suas
experiências, mesmo com alguns silenciamentos11.
Ludmila Catela fez um trabalho muito interessante acerca da relação arquivo público / vida
privada, tomando como caso uma ex-presa política do Rio de Janeiro. Denominada Maria, citada
no Projeto Brasil:Nunca Mais12, sabia da existência de uma pasta inteira sobre ela no arquivo do
DOPS, presente no Arquivo Publico do Estado do Rio de Janeiro; contudo, até então, nunca quis
tomar nota do que existe sobre ela em tal arquivo. Em seu depoimento à pesquisadora, contou da
dificuldade em enfrentar seu passado. Ela sabia que, entre processos policiais e demais documentos
burocráticos, existiam cartas e outras recordações pessoais. Isso poderia trazer à tona lembranças e
ativar memórias que afetariam sua vida no presente; não sabia ao certo se aliviaria ou aumentaria
9Idem.pp.9. 10 JELIN, Elizabeth. Gestión política, gestión administrative y gestión histórica: ocultamientos y descubrimientos de los archivos de la repressión. IN:JELIN,Elizabeth & CATELA,Ludmila. Los archivos de la repression:Documetos, memoria y verdad. Madrid: Siglo XXI, 2002. 11 O silenciamento (por-se em silencio) mostra uma produção de sentidos silenciados que faz entender a dimensao do “não dito”, principalmente quando se trata de memorias traumáticas de situações-limite, como a tortura. Segundo Orlandi “o silêncio não interpretável, mas sim compreensível” e “fala por si mesmo, é explicativo”. Cf. ORLANDI, Eni.As fomas do silencio no movimento dos sentidos.Campinas: UNICAMP,1995. pp. 63. 12 Trataremos deste Projeto ao longo do texto.
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seu sofrimento. Ela acreditava que, um dia, iria tomar conta da “papelada” existente, mas sabia que
não seria bom ativar esta memória13.
A entrevistada, de fato, teve acesso aos documentos em 2000, quando da abertura dos
arquivos no Rio. Como historiadora, Maria levantou questões fundamentais para a pesquisa
histórica nestes arquivos, que devem ser dilemas do historiador: Que valor têm estes papéis como
fonte histórica? O que acontece se um pesquisador os toma como verdadeiros e não os confronta
com os testemunhos dos perseguidos pelo regime?14 Estas questões somente reafirmam o arquivo
como lugar da memória, mas de uma determinada memória, com determinada verdade. Bem
sabemos que quem escreve, escreve de um lugar específico. Se não há o confronto entre as partes,
não há uma problemática, tampouco, pesquisa histórica.
Em Aguero e Hershberg, buscamos uma interrogação relevante para a construção da
memória do período ditatorial: “quais são os mecanismos que os atores sociais e políticos intervêm
nas disputas sobre a memória e como terminam estas canalizando-se e refletindo-se em instituições,
normas e políticas em que se molda a memória coletiva?15 Em parte buscaremos responder isto
agora, no que se refere `a memória coletiva. A questão referente `as leis será discutida mais adiante.
Pode-se perceber que a memória do período é, sobretudo, aquela reivindicada pelos orgãos
de direitos humanos – principalmente, os grupos Tortura Nunca Mais16 que apontam pessoas e
instituições ligadas à violação de leis ligadas a esta área pedindo reparação e retratação dos
acusados. Não raras vezes são chamados de revanchistas. Este tipo de memória deve-se ao fato
que, ao contrário dos que foram vítimas do regime, os que o instituíram ficaram em silêncio, ou, se
justificavam afirmando seus atos heróicos em defesa da "revolução vitoriosa", o golpe de 1964. Na
disputa por esta memória, os militares crêem que os vencidos tornaram-se “donos da história”.
Conforme nos mostra um dos trabalhos referentes à memória militar17, há certo ressentimento de
tais agentes em relação ao esquecimento e `a pouca valorização da história deles. A lógica do
pensamento militar é: se venceram a guerra contra os terroristas , foram derrotados na luta pela
memória histórica do período. Alguns acham que não foi apresentada uma versão deles sobre a
repressão que fosse legitimada pela sociedade. Se é habito esquecermos da história dos vencidos,
no caso da ditadura brasileira, onde a guerrilha foi derrotada, a história dos militares, vencedores,
foi ignorada.
13 Cf. CATELA, Ludmila.Territorios de La memória política. Los archivos de La repression em Brasil. IN: ELIN,Elizabeth & CATELA,Ludmila (comps). Los archivos de la repression:Documetos, memoria y verdad. Madrid: Siglo XXI, 2002. pp.16. 14 Idem. pp.77. 15 AGUERO,Felipe& HERSHBERG,Eric.Las fuerzas armadas y las memorias de La represión en El Cono Sur. IN: AGUERO,Felipe& HERSHBERG,Eric(comps.).Memorias militares sobre La repression em El Cono Sur:visiones em disputa em dictadura y deocracia Madrid: Siglo XXI, 2005.pp.5 16 www.torturanuncamais.org 17 D’ARAÚJO, Maria Celina; SOARES, Glaucio & CASTRO, Celso.Os anos de chumbo: a memória militar sobre a repressão. Rio de Janeiro:Relume-Dumará, 1994.pp.13.
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2. O acesso às informações
Após a aprovação da lei de Anistia (n. 6683/79)18, os advogados dos presos políticos
começaram a trabalhar para encaixarem seus clientes dentro da lei. Para tanto, tinham acesso livre
ao arquivo ao Supremo Tribunal Militar. Ao entrarem em contato com tais documentos notaram ter
em mãos uma sistematização de como o governo agia e de como a tortura tornou-se prática
sistemática, por mais que, por muito tempo, o aparato publicitário montado atingiu uma grande
parcela da sociedade e a convenceu de que éramos o país do “futuro”, o país do “milagre
econômico” e que tudo ia dentro da normalidade. É a “cultura do simulacro19”.
Estes advogados procuraram o pastor protestante James Wright20 e lhe relataram o que
haviam lido, sugerindo, então, a reprodução destes documentos. Wright procurou Dom Paulo
Evaristo Arns e estes foram pedir financiamento no Conselho Mundial e Igrejas que, ao todo,
contribuiu com 350.000 dólares. Foram custeados , assim, a fotocópia destes documentos o
pagamento de pesquisadores que trabalhavam todo o tempo, clandestinamente, na reprodução do
material. O que seria somente uma mostra para ilustrar como funcionavam os mecanismos de
violação de direitos humanos, transformou-se na duplicação completa do arquivo do STM. Como
afirma Ludmila Catela: “ironia do destino, o grande segredo dos militares havia se transformado no
grande segredo dos direitos humanos”.21 Resultado disso foi o chamado Projeto A Brasil:Nunca
Mais composto por 12 tomos, sendo:
I. O regime militar: contém análise do regime implantado a partir de 1964.
II. volume 1. A pesquisa BNM: descreve o projeto e as fontes.
II. volume 2. Os atingidos: mostra, em ordem alfabética, os processados, torturados,
denunciados, etc.
II. volume 3. Os funcionários : contém lista alfabética de nomes de todos os envolvidos
direta ou indiretamente na violação de direitos humanos.
III. O perfil dos atingidos: mostra dados gerais sobre os processos realizados contra 7.367
pessoas.Separados por organizações de esquerda, setores sociais e outras atividades.
IV. As leis repressivas.
V. A tortura: 3 volumes: contém nome dos torturados, tipos de tortura, idade, descrição
dos métodos e locais onde aconteciam.
18 Tal lei anistiou tanto militares quanto presos políticos. Abarcava todos os crimes cometidos entre 1961 e 1979, contudo excluía os condenados por “terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal”. http://www010.dataprev.gov.br/sislex/paginas/42/1979/6683.htm 19 Cf. CARDOSO, Irene. O arbítrio transfigurado em lei e a tortura política. IN: FREIE et. all.Tiradentes:um presídio na ditadura. pp.474. 20 James Wrigth esteve junto com Henri Sobel e Dom Paulo Arns no culto ecumênico em São Paulo quando da morte do jornalista Vladimir Herzog em 1975. 21 CATELA,Ludmila.op.cit.pp.33.
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V. volume 4. Os mortos: contém nome dos mortos, descrição da morte, lugar onde
aonteceu e nome dos medico que deram aos atestados de óbito.
VI. volume 1. Índice dos anexos: sobre o material roubado das vítimas
VI. vol.2 Inventário dos anexos: descrição dos documentos roubados (cartas pessoais e
folhetos).
Tal projeto possui 25 cópias, algumas passadas para o inglês e enviadas para o exterior
.Qualquer pessoa pode ter acesso. Em 1985, foi lançado o Projeto B, em livro, para que tivesse
maior divulgação. Chamado: Um relato para a história – Brasil:Nunca Mais. O prefacio é de Dom
Evaristo Arns22. Quando do término do projeto e lançamento do livro acreditou-se que havia “toda
a verdade” sobre o que aconteceu nos anos que se seguiram a 1964, ali . Antes do habeas data, de
1988, esta foi a única referência oficial que os atingidos pelo regime tinham para buscar
informações e reparações.
"É o individuo que o detém e o faz de maneira privada. A sociedade não participa dessa transação nem se apropria das informações obtidas.(...)A instituição que determina a quantidade e o conteúdo que deve liberar" .23
Em 1992, os arquivos começaram a ser transferidos das instituições militares para os
arquivos públicos, sendo assim, mais uma forma de se conseguir informações tanto sobre o
indivíduo, quanto sobre o conjunto de ações do governo. Os arquivos da repressão contêm
documentos pessoais, declarações individuais, inquéritos, fotos, correspondências, enfim, tem-se o
monitoramento diário por parte dos inimigos internos. Apesar disto, em relação aos desaparecidos
políticos, as lacunas ainda persistem, o que ficou claro sobretudo a partir da descoberta da Vala de
Perus em 199024.
Eis que em abril deste ano de 2007 (mês propício para a rememoração do golpe, ou,
revolução,dada a relatividade da história), o que somente alguns reservistas sabiam e alguns
pesquisadores sobre militares “ouviram falar” , aparece o chamado Livro Negro do Terrorismo no
Brasil, conhecido no meio militar como ORVIL ( “livro”, de trás para frente). Neste livro de 966
páginas está toda a “verdade” sobre a luta armada brasileira escrita pelo exército. Apenas 40
22 Projeto A Brasil: Nunca Mais, em Minas há uma cópia disponível para consulta no Instituto Helena Greco. Projeto B, foi lançado pela editora Vozes, em 1985. 23 GRECO, Heloisa. A dimensão trágica da luta pela anistia. IN:Cadernos da Escola do legislativo.Belo Horizonte, vol. 8. n.13.2005.pp.85-111. 24 Esta vala encontra-se no Cemitério Dom Bosco, em São Paulo, construído em 1971, sob governo de Paulo Maluf. Mais de 1049 ossadas foram encontradas entre indigentes, desaparecidos políticos e vítimas do Esquadrão da Morte. A UNICAMP ficou com a responsabilidade identificar os corpos. Neste ano, o governo resolveu voltar à identificação do restante das ossadas (147 ativistas). Em Minas e São Paulo já ocorreram, atos de coleta para o banco de DNA de familiares de desaparecidos. Segundo dados da Comissão Especial e a Secretaria de Direitos Humanos (ambas ligadas ao Ministério da Justiça), existem 147 ativistas políticos mortos pelo regime ainda não identificados. Cf: FIGUEIREDO, Lucas .À procura dos corpos. Estado de Minas.Caderno Política.22 de abril de 2007.pp.22. Para mais informações: http://www.desaparecidospoliticos.org.br/perus/perus.html e documentário premiado : “Vala comum”. Direção:João Godoy.32 min. 1994.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 229
páginas circulam pela internet25, mas, até então, não se sabia a origem das informações contidas no
site. A história do ORVIL está ligada à do Brasil: Nunca Mais. Seria uma “resposta” ao projeto
assumido pela Arquidiocese de São Paulo, lançado em 1985.
Em 1986, o Ministro de Exército do governo de José Sarney , Leônidas Pires Gonçalves, dá
ordem a cerca de 30 oficiais do CIE (Centro de Informações do Exército) para trabalharem de forma
sigilosa no Projeto Orvil. Levou dois anos para ser concluído e seria lançado em livro, com o título:
As tentativas de tomada de poder. Aconteceu que o ex-ministro decidiu não publicá-lo e o
documento ficou circulando entre os oficiais da reserva. Segundo relato de Leônidas Pires , a
decisão de não publicar foi, na verdade, uma precaução contra um possível revanchismo contra as
Forças Armadas por parte de “quem perdeu a guerra”.
“Naquele tempo (em que o livro foi feito) não havia o que acontece agora, um revanchismo sem propósito. (...) No meu período como ministro (1985-1990), não houve nenhum problema essa natureza, essas ‘mães não-sei-do-quê’, Tortura Nunca Mais”.26
O livro cita mais de 1,7 mil pessoas, desde guerrilheiros até Chico Buarque. Todos os dados
foram retirados dos arquivos secretos militares. A importância deste tipo de documento está na
comprovação de que o Exército sempre soube do destino de pelo menos 23 desaparecidos, ao
contrário do que têm repetido ao longo de mais de 30 anos. São integrantes do PC do B (Araguaia),
MOLIPO , ALN e VPR. Há detalhes das mortes, circunstâncias, local e até a qual batalhão
pertencia o assassino. Por duas vezes o governo pediu dados dos mortos e desaparecidos e o
Exército não revelou coisa alguma. A primeira vez em 1993, e a segunda entre 1995-1998. O ex-
ministro da justiça, Maurício Correa, afirma que os dados fornecidos pelo Exército em 1993 foram
evasivos, foram sonegadas informações e que não havia nada de concreto, os relatórios eram apenas
noticias retiradas de jornais, sem dizer quem fez o quê27.
O aparecimento deste livro reanimou o debate acerca da abertura dos arquivos da ditadura e
da reabertura de alguns processos para a indenização de famílias. O ministro-chefe da Secretaria
Especial de Direitos Humanos, Paulo Vanucchi, se manifestou dizendo que haveria uma “pressão
diferente” para a abertura dos arquivos sigilosos. E que chamaria o General Leonidas Pires para
depor28. Ainda não foi tomada atitude alguma. Os familiares dos desaparecidos reivindicam a
abertura dos arquivos que embasaram o livro para que se possa t localizar os corpos.
25 Na pagina do grupo de extrema direita: Terrorismo Nunca Mais. www.ternuma.com.br 26 FIGUEIREDO, Lucas. O Livro era uma arma, diz general. Estado de Minas. Reportagem Especial.12 de abril de 2007.pp.4. 27 FIGUEIREDO,Lucas. Omissão de militares pode ser investigada. Reportagem Especial.16 de abril de 2007. 28___. Câmara vai chamar general para depôr. Estado de Minas. Reportagem Especial. 17 de abril de 2007. pp 1.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 230
Segundo Lucas Figueiredo29, o Ministério Público, em Brasília, possui uma cópia do livro,
cedida por ele. Outra cópia irá, em breve, para o Arquivo Público Mineiro. Ele crê que este livro
deva sim ser divulgado, mas com cautela. Há, de acordo com o jornalista, um capítulo intitulado
“Os cachorros”, onde é citado o nome dos militantes que entregaram companheiros. Hoje já se sabe
que, muitas das vezes, as informações (verbais ou escritas) foram retiradas sob tortura, contudo, isto
não está descrito no livro. Essas informações, se liberadas à revelia, podem causar transtornos e
ativar memórias desnecessárias. Assim como temos direito à memória, temos direito ao
esquecimento. Muitas famílias, ainda hoje, preferem não tocar no assunto e saber “quem entregou
quem”, mesmo porque, atualmente, não faz diferença. Aí aparece o limite público/privado. Se não
querem parte da sua história revelada, o que fazemos? Quem mqot cicumstaciw....
Esta “história em verde-oliva”, fala da “revolução feita em defesa da democracia”, que a
tortura não passou de “propaganda político-ideológica” da esquerda para "denegrir"(sic) a imagem
do país, a censura serviu para tranqüilizar a sociedade, pois, por mais que soubessem das ações
guerrilheiras, não puderam avaliar os riscos reais que ela (a sociedade) correu e nem do sacrifício
feito pelo exército para este combate. Além, claro,de tornar Sergio Fleury um “incansável lutador
contra o terrorismo no Brasil” e alguns religiosos tratados como “comunistas infiltrados”. 30
Carlos Brilhante Ustra, pertencente ao Exército, afirma que o Orvil:
“Seria a palavra oficial do Exército. Foi um trabalho profundo, junto a delegacias, a arquivos do STM. Foram pesquisados milhares de documentos, entre eles, declarações do próprio punho de presos, com confissões de crimes e delações de companheiros. Tenho, cópias de parte desse material, espalhadas com companheiros, até no exterior.Existe material para outro livro (...)Alguns dados do meu livro foram baseados no Orvil. Outros, na minha vivência como comandante do DOI. O general Del Nero foi o coordenador do Projeto Orvil.”31
Previsivelmente, o general Pires, acha que o “livro negro” não tinha que ser divulgado e que
“é passado”. Ele afirma: “Vamos olhar para frente”32. Em tese, não é assim que deve ser feito. Foi
um livro financiado com dinheiro público e dentro de um governo dito democrático. Eis uma das
facetas do enclave autoritário de nossa transição. Várias questões acerca do livro precisam ser
respondidas. Suzana Lisboa33 chama a atenção para elas: Onde estão os documentos que foram base
para o livro? Quem colaborou? Quanto custou?
29 Audiência Publica na Assembléia Legislativa em 13 de junho de 2007 para maiores esclarecimentos sobre o Orvil. Estavam na mesa: Durval Ângelo (Comissão de Direitos Humanos da Assembléia) Gilse Consensa (Comissão de mortos e desaparecidos), Heloísa Greco (Instituto Helena Greco)e Lucas Figueiredo (jornalista, quem primeiro teve acesso ao livro). 30 FIGUEIREDO,Lucas. Omissão de militares pode ser investigada. Reportagem Especial.16 de abril de 2007. 31 Para a entrevista completa: http://www.usinadeletras.com.br/exibelotexto.phtml?cod=3162&cat=Discursos em 24/06/2007. O livro a que ele se refere é:USTRA, Carlo Alberto. "A Verdade Sufocada - A história que a esquerda não quer que o Brasil conheça", Editora Ser, Brasília, 2006 32 ___. O Livro era uma arma, diz general. Estado de Minas. Reportagem Especial.12 de abril de 2007.pp.4. 33Integrante da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos.
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Sem dúvida, esta não é uma luta somente dos atingidos pelo governo, mas de toda a
sociedade e muito pouco tem sido feito por ambos os lados – governo e sociedade – em prol da
abertura destes arquivos. Se existe mais material para outro ORVIL, isto deve ser apurado e tornado
público.
3. A legislação referente aos arquivos
O que analisaremos abaixo é a evolução das leis referentes aos arquivos sigilosos e quais as
medidas vêm sendo tomadas por parte do governo e da sociedade no sentido de liberalização da
documentação.
Um passo importante para a transição política foi dado em 1988, com a nova carta
constitucional, em substituição àquela de 1967 . Além de garantir a liberdade de expressão, proibir a
pena de morte e a tortura, está garantido também o direito de habeas- data, para que esteja
assegurado o direito da pessoa tomar conhecimento do que existe sobre ela em registros de
entidades governamentais ou públicas34. No que se refere à ditadura militar,a documentação ainda
se encontrava nas instituições policiais/militares. A referência documental para a construção da
memória do período continuava sendo ao Brasil: Nunca Mais.
O projeto de lei de arquivos aprovado em 1990 , transformando-se em lei em 8 de janeiro de
199135, trouxe a discussão acerca do acesso a estes arquivos da ditadura. A noção de arquivo nesta
lei é a de “conjunto de documentos produzidos e recebido por órgãos públicos, instituições de
caráter publico e entidades privadas”. Esta lei, de numero 8.159/91, reafirma o direito de acesso `a
informação garantido pela constituição federal.
Ela estabelece que todos têm direito a receber informações de seu interesse particular
presente em órgãos públicos, exceto aqueles cujo sigilo seja imprescindível para a segurança da
nação (artigo 4). Há um capítulo inteiro (cap.5) sobre os arquivos privados de interesse público. Por
arquivo privado entende-se “o conjunto de documentos produzidos ou recebidos por pessoas físicas
ou jurídicas, em decorrência de suas atividades” (artigo 11). A partir daí, o poder público passa a ter
direito de: identificar o arquivo privado como de interesse público se forem considerados em
conjunto como fontes importantes para o desenvolvimento cientifico nacional (artigo 12); uma vez
considerados de interesse social, não poderão ser transferido para exterior (artigo 13); o acesso a
estes documentos poderá ser franqueado mediante autorização de seu proprietário ou possuidor
34 https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao em 24/06/2007. 35 http://www81.dataprev.gov.br/sislex/paginas/42/1991/8159 em 24/06/2007.
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(artigo 14); se considerados de interesse público, poderão ser doados a instituições arquivísticas
publicas (artigo 15).
Um ponto importante está no capítulo V, que é referente ao acesso aos arquivos sigilosos.
Determina-se o direito de acesso pleno aos documentos públicos (artigo 22). Houve a categorização
do sigilo que deverá ser obedecido pelos órgãos públicos na classificação dos documentos
produzidos por eles (artigo 23). Tal classificação ficou da seguinte maneira: documentos que
ponham em risco a segurança o Estado ou sociedade ou viole a intimidade/honra/imagem de alguém
é sigiloso.(§ 1º); o acesso aos documentos sigilosos referentes à segurança da sociedade e do Estado
será restrito por um prazo máximo de 30 (trinta) anos, a contar da data de sua produção, podendo
esse prazo ser prorrogado, por uma única vez, por igual período (§ 2º) e, o acesso aos documentos
sigilosos referentes à honra e à imagem das pessoas será restrito por um prazo máximo de 100
(cem) anos, a contar da data de sua produção (§ 3º). Vê-se, portanto, que esta lei já é severa o
bastante, dificultando sobremaneira a construção da chamada “história do tempo presente”.
Em termos comparativos, até o ano de 2005, a Argentina ainda estava a busca de uma
organização arquivística neste sentido. A lei 15.930, que trata do Archivo General de la Nación, é
de 1961 e está “obsoleta e inadequada para a regulação dos arquivos sensíveis à segurança do
Estado e da sociedade”, de acordo com a pesquisadora Patrícia Funes36. Somente em 2001 os
arquivos da repressão daquele país foram transferidos da Dirección de Inteligencia de la Policia de
la Provincia de Buenos Aires (Dipba) para a Comisión Provincial por la Memória. Tal comissão
vem elaborando normas de acesso aos arquivos sigilosos baseando-se num documento da
UNESCO, elaborado por especialistas mundiais chamado: Los Archivos de la Seguridad de Estado
de los Desaparecidos Regímenes Represivos.
Este documento, datado de 1995, visa dar orientacões gerais aos arquivistas dos países há
pouco saídos de ditaduras cuja documentacão ainda é uma icógnita:
Sin ánimo de ofrecer un conjunto de recetas aplicables a todo caso, pues cada proceso de transición política es distinto de los demás, sí persigue ese debate abierto en el Grupo de Trabajo exponer a los archiveros de los países en proceso de democratización, el conjunto de los problemas con que habrán de enfrentarse y, al mismo tiempo, dejar constancia de las actuaciones que en unos y otros países, con procesos similares, acabados o más o menos avanzados, se han desarrollado(...)Teniendo en cuenta, por otra parte, que el archivero destinado a trabajar con estos documentos va a manejar una información enormemente sensible, se ha considerado muy importante plantear una propuesta de código deontológico para el tratamiento de esta documentación, código que se aporta también en el texto de este estudio37.
Voltando ao caso brasileiro, outro ganho para a sistematização e gerência dos arquivos foi a
criação da Conarq - Conselho Regional de Arquivos (artigo 26), órgão vinculado ao Arquivo
Nacional, que define a política de arquivos. 36 http://www.usp.br/jorusp/arquivo/2005/jusp720/pag1213.htm em 24/06/2007. 37 Documento na íntegra pode ser visto em : portal.unesco.org .
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Para Célia Leite Costa, apesar de ser generalizada:
“A Lei de Arquivos representou um enorme avanço, preenchendo a situação lacunar em que se encontrava o país, até então, do ponto de vista da legislação arquivística. Contudo, ela foi apenas o primeiro passo de uma longa caminhada”38.
A autora ainda afirma que várias questões abordadas na lei, como o acesso à informação e a
proteção à privacidade, tiveram que ser regulamentadas por meio de decretos ou outros
instrumentos legais, tais como portarias do Arquivo Nacional e resoluções do Conarq.O Conarq, até
o ano 2000, era integrante do Ministério da Justiça. No ano seguinte, assim como o Arquivo
Nacional, foi para a Casa Civil da Presidência da República.
No primeiro governo de Fernando Henrique foi decretada a lei n.9.140/95, que reconhece
como mortas as pessoas desaparecidas em razão de participação ou acusação de participação em
atividades políticas entre 1961-1979. Uma vez reconhecido o desaparecimento político pelo Estado,
teoricamente ficaria menos complicada a tentativa de localizar corpos e cobrar reparação.
Em 1997, duas medidas governamentais referentes aos documentos sigilosos: foi lançado o
decreto nº2134, que determina: instituições de caráter público custodiadores de documentos
sigilosos, deverão constituir Comissões Permanentes de Acesso. Esta comissão é responsável por:
analisar, periodicamente, os documentos sigilosos sob custódia, submetendo-os à autoridade
responsável pela classificação, a qual, no prazo regulamentar, efetuará, se for o caso, sua
desclassificação; liberar os documentos cuja divulgação comprometa a intimidade, a vida privada, a
honra e a imagem das pessoas após cem anos de acesso restrito ou desde que previamente
autorizado pelo titular ou por seus herdeiros; autorizar o acesso a documentos públicos de natureza
sigilosa a pessoas devidamente credenciadas, mediante apresentação por escrito, dos objetivos da
pesquisa39. O que não fica claro é como se dá a criação desta comissão e quem são as pessoas aptas
a integrá-la.
Em novembro, do mesmo ano, a lei 9.507 age como reguladora do direito de acesso ao
habeas-data.
O decreto mais polêmico no que diz respeito os arquivos veio no apagar das luzes do
governo de Fernando Henrique. Em 27 de dezembro de 2002 é baixado o decreto n.4.55340, onde
amplia os limites de todas as categorias de arquivo (reservado, confidencial secreto e ultra-secreto).
Se a lei de arquivos de 1991, prévia revogação do prazo até no máximo 60 anos, a nova
regulamentação criou o prazo de mais 50 anos, prorrogáveis para a eternidade. Há uma ordem
hierárquica, referente a quem classifica os documentos a começar pelo o Presidente da República; 38 COSTA, Célia Leite. Acesso `a informacao nos arquivos brasileiros: retomando a questão. Estudos Históricos.Rio de Janeiro, n 32. 2003. pp.2. Retirado de http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/358.pdf em 24/06/2007. 39Cf. HONÓRIO, Cristiane et. al. Política e arquivologia: algumas considerações sobre a legislação de sigilo. http://www.aargs.com.br/cna/anais/cristiane_honorio1.pdf em 24/06/2007. 40 http://www81.dataprev.gov.br/sislex/paginas/23/2002/4553.htm
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Vice- presidente; Ministros;Comandantes das três forças e por último, Chefes de missões
diplomáticas. As mudanças não se restringem a estas.O decreto de 1997 estipulava que a
classificação de ultra-secreto era restrita aos presidentes da República, do Congresso e do Supremo
Tribunal Federal. O novo vetou os chefes do legislativo e judiciário e estendeu as outras categorias
já descritas.
Em 2004, foi baixada a medida provisória n. 228 do que trazia algumas modificações em
relação ao direito de acesso aos documentos, regulamentadas pelo Decreto n. 5.301: instituiu-se
uma Comissão de Averiguação e Análise de Informações Sigilosas, integrada pelos Chefes da Casa
Civil e do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, pelos Ministros da
Justiça, da Defesa e das Relações Exteriores, pelo Advogado-Geral da União e pelo Secretário
Especial dos Direitos Humanos; os prazos de restrição dos documentos ultra-secretos, secretos,
confidenciais e reservados baixaram para 30, 20, 10 e 5 anos, respectivamente, com uma única
prorrogação por idêntico período; os responsáveis pela classificação dos documentos ultra-secretos
somaram os chefes de missões diplomáticas e consulares permanentes no exterior.Apesar das
mudanças, as mesmas disposições quanto ao material classificado no mais alto grau de sigilo,
mantiveram-se. O acesso permaneceria restrito enquanto tal medida fosse imprescindível à
segurança da sociedade e do Estado.
Não se pode deixar de citar a Lei n. 11.111, de 5 de maio de 2005, que reafirmou a
disposição de atribuir à Comissão de Averiguação e Análise de Informações Sigilosas,
anteriormente criada, o poder de administrar os documentos ultra-secretos e de “manter a
permanência da ressalva ao acesso pelo tempo que estipular”41.
Assim sendo, é o Estado que decide a duração do sigilo dos documentos confidenciais,
negando à sociedade o direito a informação. E a decisão dele continua sendo pelo sigilo eterno.
Outro aspecto diz respeito a manutenção deste sigilo, que ficou sob a exclusividade de
representantes do governo. “Se é o próprio governo que quer ter sua 'vida privada' distante dos
olhares dos cidadãos, como não suspeitar de interesses escusos? Como conferir legitimidade às
decisões tomadas por uma comissão assim formada?”42
Com este decreto, todos os arquivos de interesse do Estado poderão ficar secretos para
sempre. Uma atitude completamente antidemocrática e que foi reiterada pelo governo atual. O que
se discute é, em relação à abertura da documentação da ditadura militar, há menos um acordo tácito
entre governo e forças armadas , tendo em vista que o presidente da Republica é o Comandante-em-
chefe das Forças Armadas e a ele tais Forças devem obediência. Uma ordem para a abertura dos
arquivos não poderia ser contestada. 41 Boletim n. 1. Movimento Desarquivando o Brasil. Julho de 2005. Retirado do site: http://www.desaparecidospoliticos.org.br/noticias/nt_desarquivando.html em 15/06/2007 42Idem.
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4. A busca continua....
Há uma certa mobilização por parte da sociedade para pressionar o governo no sentido de
que se mude as leis de arquivo e o acesso seja facilitado. Um dos movimentos de maior respaldo
tem sido o Desarquivando o Brasil.
Em 28 de abril de 2005, na PUC-SP ocorreu o ato Desarquivando o Brasil, marcado por
uma série de eventos, como palestras, debates e documentários, sob a coordenação da professora
Dra. Vera Vieira com participação de ex-guerrilheiros, pessoas ligadas aos direitos humanos,
pesquisadores e estudantes. O objetivo foi tornar pública a discussão acerca do “sigilo eterno” sobre
todas as suas implicações e dimensões: histórico, jurídico e familiar. O que se problematiza é que
tal sigilo subverte a constituição e uma das bases do Estado democrático: o direito `a informação.
No ato, foi criada uma comissão para a elaboração de um projeto de lei que inclua membros da
sociedade civil na Comissão que decide sobre os sigilos.
Do ato, foi criado o Movimento Desarquivando o Brasil, composto por professores,
estudantes da graduação e pós-graduação da PUC-SP, USP, a Comissão de Familiares de Mortos e
Desaparecidos Políticos e os Centros Acadêmicos de História, Ciências Sociais, Direito, Relações
Internacionais e Jornalismo da PUC-SP. Para a ampliação do Movimento foram organizadas
atividades temáticas em conjunto com outras instituições, como a dos arquivistas e a ANPUH
(Associação Nacional dos Professores Universitários de História) – a qual incluiu uma mesa sobre o
tema no encontro de julho de 2005, em Londrina. Outras universidades e entidades já se dispuseram
a levar o debate para o âmbito nacional. Há um abaixo-assinado disponível para donwload no site43
que pede o reconhecimento por parte do governo da inconstitucionalidade da lei n 11.111/05 e que
medidas sejam tomadas para abertura de tais arquivos. O próximo passo do Desarquivando, será
um livro lançado no segundo semestre deste ano.
A busca pela reconstituição do período é marcada por ganhos e retrocessos. Esperamos que
mais documentos apareçam e que esse debate continue presente, e não se restrinja a determinados
setores. Os arquivos e a memória são uma evocação do passado.A liberação destes arquivos é uma
forma de saldar contas com o passado que não passa44.
43 http://www.desaparecidospoliticos.org.br/noticias/abaixoassinado.html 44. JELIN, Elizabeth. Los trabajos de la memoria.Madrid: Siglo XXI. 2002.pp.2.
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