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REVISTA ELETRÔNICA DE HISTÓRIA DO BRASIL http://www.rehb.ufjf.br ISSN 1519 - 5759 [email protected] Publicação Semestral Universidade Federal de Juiz de Fora Departamento de História Arquivo Histórico da UFJF Clio Edições Eletrônicas Juiz de Fora - MG - Brasil Revista Eletrônica de História do Brasil Volume 9 - Número 1 - Jan.-Jul. 2007 1. História do Brasil 2.Periódicos Eletrônicos: História UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA Reitor: Henrique Duque de Miranda Chaves Filho Vice-Reitor: José Luiz Rezende Pereira Pró-Reitora de Pesquisa: Profa. Dra. Marta Tavares D'Ágosto Revista Eletrônica de História do Brasil Editora Carla Maria Carvalho de Almeida Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) Instituto de Ciências Humanas (ICH) Departamento de História Campus Universitário 36036-330 Juiz de Fora - MG Fone: (32) 3229-3109 Os direitos dos artigos publicados nesta edição são propriedade dos autores. Esta obra pode ser obtida gratuitamente no endereço web da revista, pode ser reproduzida eletronicamente ou impressa, desde que mantida sua integridade.

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REVISTA ELETRÔNICA DE HISTÓRIA DO BRASIL

http://www.rehb.ufjf.br

ISSN 1519 - 5759 [email protected]

Publicação Semestral Universidade Federal de Juiz de Fora

Departamento de História

Arquivo Histórico da UFJF Clio Edições Eletrônicas

Juiz de Fora - MG - Brasil

Revista Eletrônica de História do Brasil Volume 9 - Número 1 - Jan.-Jul. 2007

1. História do Brasil 2.Periódicos Eletrônicos: História

UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA

Reitor: Henrique Duque de Miranda Chaves Filho Vice-Reitor: José Luiz Rezende Pereira

Pró-Reitora de Pesquisa: Profa. Dra. Marta Tavares D'Ágosto

Revista Eletrônica de História do Brasil

Editora Carla Maria Carvalho de Almeida Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)

Instituto de Ciências Humanas (ICH) Departamento de História

Campus Universitário 36036-330

Juiz de Fora - MG Fone: (32) 3229-3109

Os direitos dos artigos publicados nesta edição são propriedade dos autores. Esta obra pode ser obtida gratuitamente no endereço web

da revista, pode ser reproduzida eletronicamente ou impressa, desde que mantida sua integridade.

Conselho Editorial Profa. Drª. Carla Maria Carvalho de Almeida (UFJF) ([email protected]) – Organizadora deste número Profa. Dra. Cláudia Maria das Graças Chaves (UFOP) ([email protected]) – Organizadora deste número Profa. Dra. Cláudia Ribeiro Viscardi (UFJF) Prof. Galba R. Di Mambro (UFJF) Profa. Dra. Patrícia Falco Genovez Prof. Dr. Renato Pinto Venâncio (UFOP)

Conselho Consultivo Adriano S. L. da Gama Cerqueira (UFOP) Américo Guichard Freire (CPDOC / UFRJ) Ângelo Alves Carrara (UFJF) Beatriz Helena Domingues (UFJF) Carlos Fico (UFRJ) Douglas Cole Libby (UFMG) Jairo Queiróz Pacheco (UEL) Marcelo Carlos Gantos (UENF) Manolo Florentino (UFRJ) Marco Antônio Cabral Maria de Fátima Silva Gouveia (UFF) Maria Leônia Chaves de Rezende (UFSJ) Helen Osório (UFRS) Renato Leite Marcondes (USP-FEA, Ribeirão Preto) Rodrigo P. Sá Motta (UFMG) Valéria Marques Lobo (UFJF) Vera Lúcia Puga de Souza (UFU) William Summerhill (UCLA)

Revista Eletrônica de História do Brasil. Juiz de Fora: Departamento de

História e Arquivo Histórico da UFJF, 2007, volume 9, número 1, jan-jul, 2007,

236 p., http://www.rehb.ufjf.br .

ISSN 1519-5759

1. História do Brasil 2. Periódicos Eletrônicos: História

Logo da REHB Márcio de Paiva Delgado

Bolsista Bianca Portes

SUMÁRIO

DOSSIÊ: BRASIL REPÚBLICA

MINAS GERAIS E A CADEIA GLOBAL DA “COMMODITY” CAFEEIRA – 1850/1930 Anderson Pires ................................................................................................................................... 05 CERVEJA E AGUARDENTE SOB O FOCO DA TEMPERANÇA NO BRASIL, NO INÍCIO DO SÉCULO XX Teresa Cristina de Novaes Marques................................................................................................... 48 URBANIZAÇÃO E PODER: ELITES POLÍTICAS E A MODERNIZAÇÃO DE PIRACICABA NA I REPÚBLICA Eliana T. Terci.................................................................................................................................... 71 REVISITANDO O PROBLEMA DA HISTÓRIA EM OLIVEIRA VIANNA Maro Lara Martins ............................................................................................................................. 95 A FORMAÇÃO DE UM PENSAMENTO TÉCNICO-INDUSTRIAL NO EXÉRCITO DURANTE O PRIMEIRO GOVERNO VARGAS: O CÍRCULO DE TÉCNICOS MILITARES Alexandre de Sá Avelar ................................................................................................................... 109 O CRÉDITO RURAL PÚBLICO NUMA ECONOMIA EM TRANSFORMAÇÃO: CRIAÇÃO E INÍCIO DO FUNCIONAMENTO DAS ATIVIDADES DE FINANCIAMENTO AGROPECUÁRIO DA CARTEIRA DE CRÉDITO AGRÍCOLA E INDUSTRIAL (CREAI), DO BANCO DO BRASIL (BB) - 1937 A 1945 Paulo Roberto Beskow..................................................................................................................... 126 CARLOS LACERDA E O PENSAMENTO ECONÔMICO DOS GRUPOS POLÍTICOS NO BRASIL NO PÓS-1945 Marcio de Paiva Delgado................................................................................................................. 161 O REGIME MILITAR, A PREVIDÊNCIA SOCIAL E O EMPRESARIADO Ignacio Godinho Delgado ................................................................................................................ 177 EM PAUTA: O MOVIMENTO MILITAR DE 1964 - SOB A ÓTICA DE UM JORNAL JUIZFORANO Flávia Maria Franchini Ribeiro........................................................................................................ 196 JOVENS PESQUISADORES MEMÓRIA “SUBTERRÂNEA” NA CONSTITUINTE DE 1946: UM MOMENTO PARA REPENSAR O PASSADO “TRAUMÁTICO” Mayara Paiva Souza......................................................................................................................... 213

OS ARQUIVOS DA REPRESSÃO E A LUTA PELA MEMÓRIA DA DITADURA MILITAR Isabel Cristina Leite ......................................................................................................................... 224

MINAS GERAIS E A CADEIA GLOBAL DA “COMMODITY” CAFEEIRA – 1850/19301

Anderson Pires*

Resumo: O objetivo deste trabalho é o de reavaliar a importância e o significado histórico da economia agrária de exportação que se desenvolveu em Minas Gerais, especialmente naquela que foi sua principal região produtora no correr de todo o período de análise – a Zona da Mata mineira. Lançando mão de alguns instrumentos teórico-analíticos originados na obra de Innis e seus seguidores, e de outros, mais contemporâneos, como os que vêm sendo apresentados pela denominada “Global Commodity Chains” (rede ou cadeia mundial de mercadorias), tentaremos verificar devidamente a posição desta economia não apenas frente ao contexto regional e nacional no qual se desenvolveu, mas principalmente no âmbito do mercado internacional, historicamente constituído e definido no período em referência. Para isso, dividiremos o trabalho em 4 partes: na introdução faremos uma síntese genérica dos principais argumentos das tendências interpretativas utilizadas; na segunda, uma avaliação da posição da economia regional frente ao quadro internacional da economia cafeeira no período; segue-se uma investigação das transformações internas na própria economia da Mata, sua diversificação econômica e o papel das exportações e, por fim, uma conclusão onde iremos esboçar outros modelos de explicação da evolução e o papel da economia cafeeira da Mata. Palavras-Chave: Economia Cafeeira, História Financeira e Bancária, História Econômica de Minas Gerais Abstract: The aim of this work was to reassess the importance and the historical meaning of the agrarian exportation economy that developed in Minas Gerais from 1850 to 1930, especially in its main producing region during the analyzed period – the Zona da Mata. By using some theoretical-analytical tools originated in the works of Innis and its followers, among others, more contemporary, such as the concepts presented by the so-called "Global Commodity Chain", we will try to verify the proper position occupied by this economy, not only regarding the regional and national context where it developed, but mainly in the scope of the international market, historically constituted and defined in the referred period. For this purpose, the work will be divided in 4 parts: The introduction synthesizes generically the main arguments of the interpretative tendencies used; the second part assesses the regional economy's position regarding the international situation of the coffee economy in that period; then, an investigation on the internal transformations in Zona da Mata's economy is presented, along with discussions about its economical diversification and the role of exportation; to conclude, we sketch new models to explain the evolution and the role of the coffee economy of Zona da Mata. Keywords: Coffee Economy, Financial and Bank History, Economic History of Minas Gerais.

1 Trabalho publicado, com modificações, na Revista Brasileira de Gestão e Desenvolvimento Regional – RBGDR volume 03, número 02, mai/ago. 2007. * Professor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected]

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 5

1. INTRODUÇÃO

A Teoria do Desenvolvimento Voltado para as Exportações é bem conhecida e aplicada por

parte dos economistas sobre a realidade brasileira. No entanto, outro tem sido seu destino e o

acompanhamento de sua evolução por parte dos historiadores ainda voltados para questões sobre a

formação histórica da economia brasileira. Introduzida e generalizada no país a partir da Escola da

Cepal (entre outras vertentes), teve seu destino irremediavelmente atrelado à assim chamada “teoria

dos ciclos de exportação” que, como se sabe, foi idealizada por Lúcio de Azevedo e aplicada entre

nós por Roberto Simonsen2. Se não válida para os economistas, entre nossos historiadores ocorreu

com o tempo uma espécie de “mutação” teórico-analítica reduzindo o conjunto de seu corpo teórico

aos estreitos limites da versão cepalina e à nulidade do simplismo metodológico da teoria dos

ciclos.

Mesmo com o impacto mundial das obras de Watkins, Baldwin e Hirschman, se bem

assimilado pelos economistas, a teoria continuou a ser vista como uma mera extensão da antiga e

extremamente arraigada visão dos ciclos de exportação e não seria propriamente um exagero

afirmar que nossa historiografia a desconsiderou quase que completamente e, por isso mesmo, tem

sido vista de forma extremamente inadequada e defeituosa por parte de alguns historiadores do país.

Poderíamos afirmar, neste sentido, que a Teoria do desenvolvimento voltado para as

exportações, muito além da versão estruturalista-cepalina, encontrou uma forte expressão em outros

países, em especial nos trabalhos de Harold Innis3, historiador da economia canadense cuja obra,

em seu conjunto, tem sido considerada uma das principais contribuições da economia política do

Canadá para a Teoria Econômica em geral e uma das mais poderosas críticas da modernidade que

caracterizaram sua geração (que incluía Polanyi, Luckáks, Mauss)4.

Caberia realizar uma análise mais apurada do conjunto da obra de Innis, conhecida como

“Staple Thesis” e traduzida entre nós como Teoria do Produto Principal, bem como daqueles que

deram o contorno metodológico de sua abordagem. No entanto, a ausência de espaço impede tal

empreendimento, restando a nós destacar apenas aqueles aspectos que nos interessam mais de

imediato aqui.

Dotado de um de um interesse e conhecimento que iam muito além da teoria econômica,

Innis foi um daqueles economistas cujo brilhantismo decorria exatamente de sua variedade e

2 LINHARES, M.Y. E TEIXEIRA, F.C. (1981). História da Agricultura Brasileira: Combates e Controvérsias. Ed. Brasiliense, São Paulo. 3 Ver, entre outros, “The Staple Thesis, 1920-1940”. In A History of Canadian Economic Thought., Routledge, New York and London. BARAGAR, F. (1996). “The Influence of Thorstein Veblen on the Economics of Harold Innis”. Journal of Economic Issues. Vol. 30, n. 3. DRACHE, D.(1995) “Celebrating Innis: The Man, the Legacy and Our Future.” In Id. Staple, Markets, and Cultural Change. McGill Queen’s University Press, Montreal. 4 RAY, A. (2001). “Introduction” In INNIS, H. The Fur Trade in Canadá. Toronto University Press.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 6

ecletismo disciplinar e metodológico; tinha forte conotação moral do fenômeno econômico, um

pensamento heterodoxo e original que o afastava definitivamente dos estreitos limites da economia

ortodoxa. Innis concebia a economia essencialmente como um fenômeno social com fortes

determinações e condicionamentos recíprocos com os universos antropológicos, políticos e culturais

das sociedades5. Apenas para ficarmos em um exemplo, sua concepção de mercado se aproxima

muito de algumas definições contemporâneas (principalmente antropológicas) e do grande debate

que tem ocorrido em torno delas6. Para ele “...os mercados surgem das relações sociais, (...) e

como principal mecanismo da vida econômica era socialmente determinado e historicamente

construído sobre diferentes condições de produção e diferentes circunstâncias históricas”.7

Desta forma, se o ponto de partida da análise constitui a base de exportação do produto

principal, são as determinações desta com a evolução dos fenômenos sociais, geográficos e

culturais, além das modificações que viriam a sofrer como parte da integração das sociedades ao

mercado mundial, que se colocavam como centro de análise8. Categorias próprias destas economias

como seus mercados internos (anteriores ou concomitantes à expansão do produto principal), as

hierarquias sociais, a organização institucional e o contexto cultural herdado, entre outros, são

considerados imanentes ao funcionamento das economias exportadoras. A confusão entre o

pensamento de Innis e a teoria dos ciclos de exportação só ocorre, assim, por pura ignorância de sua

obra (compreensível em se tratando de um historiador voltado principalmente para um país como o

Canadá), mas tem implicado em um extremo simplismo na sua avaliação e no seu arsenal conceitual

e analítico.

Outro componente essencial de sua abordagem está na consideração e importância dada à

geografia econômica e à questão da distribuição espacial dos mercados. O ponto de partida das

características físicas do produto de exportação (que lhe tem valido a crítica de “determinista

ambiental”9) abriu-lhe um espaço de análise em que os condicionantes naturais terão papel

essencial. Muitos economistas reduziram este aspecto de sua interpretação a uma mera “dotação de

recursos” e às “funções de produção”. No entanto, este componente vai permitir a inclusão de

categorias analíticas de fundamental importância ao corpo geral da abordagem, com destaque para o

condicionamento dos elementos naturais sobre as inúmeras formas de organização da produção,

relações sociais e, principalmente, pela consideração regional e distribuição espacial dos 5 É curioso perceber que Innis se autodenominava “a dirt economist” exatamente por levar em conta estes aspectos dentro do universo da economia, em contraposição aos seus colegas. DRACHE, D. (1995). Op. Cit. p.xv 6 APLLBAUM, K. “The Anthropology of Markets.” (2005). In CARRIER, A Handbook of Economic Anthropology. Edward Elgar, London. J. HUMPHREYS, S.C. (1969).“History, Economics, and Anthropology: The Work of Karl Polanyi.” History and Theory. Vol 08, n. 02. SWEDBERG, R. (1994) “Markets as Social Structures.” In SMELSER, N. and SWEDBERG, R. The Handbook of Economic Sociology. Princeton Uinversity Press. 7 DRACHE, D. (1995). Op. Cit. p. xxxii-xxxiii 8 DRACHE, D. (1995); RAY, J.A. (2001). “Introduction” In INNIS, H. The Fur Trade in Canada. University of Toronto Press. 9 DRACHE, D. (1995). Op. Cit. p. xxiv

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 7

mercados10. A concepção regional da organização das economias de exportação se torna, assim,

quase que um pressuposto de análise e a simbiose homem/natureza, explícita ou implicitamente

presente, surge como um instrumento estratégico de explicação, antecipando várias questões da

“História Ambiental” que vem se desenvolvendo nos dias atuais.

Foi a partir deste universo que surgiram alguns conceitos extremamente caros à abordagem

de uma maneira geral, especialmente aquele dos efeitos de encadeamento (linkages). Na forma

como tem aparecido entre próprios economistas que foram responsáveis pela evolução posterior da

interpretação, ou seja, como “induções” a investimentos decorrentes das características físicas do

produto e que são determinados basicamente por distintas funções de produção11, fica encerrada

praticamente aos estreitos limites da economia stricto sensu. Mesmo Hirschman, outro economista

cujo brilhantismo decorria exatamente do ecletismo e interdisciplinaridade da concepção das

relações econômicas, pela influência marxista quando estudou o assunto12, não levou em conta a

velha tradição de Innis da compreensão das relações econômicas incorporadas ao tecido social. A

reinterpretação do conceito neste sentido ampliaria em muito sua capacidade explicativa e a

compreensão das economias agrárias de exportação.

Mais recentemente tem surgido uma outra teoria que tem como foco central as economias de

exportação e seu maior ou menor potencial de desenvolvimento econômico. Trata-se da abordagem

das Cadeias Globais de Mercadorias (Global Commodity Chains), também com o devido impacto

entre os economistas do país, mas aparentemente ainda desconsiderada pelos historiadores13.

Incorporando e superando a “Staple Thesis”, a abordagem das redes ou cadeias de

mercadorias tornou o produto primário como eixo de análise, mas o fez de uma forma tal que suas

estruturas de produção, redes de comercialização interna e externa, distribuição nos países

importadores e o próprio consumidor final conformam-se em elos de uma cadeia que se torna um

objeto em si mesmo, uma “totalidade” a ser investigada em suas partes constitutivas e

determinações recíprocas. Como são componentes permeados e contextualizados por relações

sociais e que se identificam com distintos campos das Ciências Humanas torna-se desnecessário

insistir na natureza metodológica interdisciplinar da abordagem.

10 Id. Ib. RAY, J.A. (2001). Op. Cit. 11 Ver principalmente WATKINS, M. (1977) “Teoria Primária do Crescimento Econômico”. In SCHWARTZMAN, J. Economia Regional – Textos Escolhidos. CEDEPLAR/REDE MINTER, Belo Horizonte e BALDWIN, R. (1977). “Padrões de Desenvolvimento nas Regiões de Colonização Recente.” In Id. Ib. 12 HIRSCHMAN, A. (1985). “Desenvolvimento por Efeitos em Cadeia: Uma Abordagem Generalizada.” In SORJ, B. Economia e Movimentos Sociais na América Latina. Brasiliense, São Paulo. 13 GEREFFI, G. and KORZENIEWICZ, M. (1994). Commodity Chains and Global Capitalism. Prager, Connecticut/London. TOPICK, S. and CLARENTH-SMITH, W. G. (2003). The Global Coffee Economy in Asia, Africa, and Latin America. Cambridge University Press. SAMPER K. M. (2003). “The Historical Construction of Quality and Competitiveness – A Preliminary Discussion of Coffee Commodity Chains.” In TOPICK, S. and CLARENCE-SMITH, G. op. cit.

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Concebida desta forma, há uma historicidade implícita no conceito. Como raramente estas

redes14 mantêm as mesmas características no correr do tempo, com substanciais modificações desde

a estrutura de demanda até a de produção, sua natureza dinâmica é assumida como um pressuposto

e, portanto, são consideradas em si mesmas como um “constructo” histórico15. Para além das

variações temporais, evidentes em si mesmas quando pensamos no comércio internacional do café,

também ocorrem importantes alterações nos distintos elos dessas cadeias se observarmos sua

disseminação no espaço, em um mesmo período, levando em conta a enorme diversidade em que

vão se concretizar16.

São várias as observações que podem ser feitas como decorrência desta percepção. Para

efeitos desta análise, uma das mais importantes é que ela implica na supressão da entidade Estado

Nacional como o ponto de partida da análise. São os processos de interação entre os universos

micro (aquele da produção realizada em âmbito local e regional) e macro (o próprio mercado

internacional e os países importadores), com os devidos componentes da intermediação comercial

desde a exportação até o consumo final, processos que ocorrem acima e abaixo do âmbito do

Estado Nacional17, que se colocam como o foco central da abordagem.

Em outras palavras, trata-se de ressaltar o avanço analítico da superação daquelas visões que

partiam do conjunto das economias de exportação consideradas como entidades abstratas, sem a

devida diferenciação espacial interna e, normalmente, confundidas com a região de maior

importância na produção deste ou daquele país. Assim, aquelas regiões “secundárias”, de produção

inferior e que muitas vezes se caracterizavam por importantes diferenças locais na organização da

produção, regime fundiário e formas de exploração podem ser compreendidas em toda sua

singularidade. Muitas vezes, elas próprias são percebidas como cadeias específicas uma vez que as

relações que ocorrem entre produtores e os comerciantes internos, beneficiadores do produto ou

mesmo os canais de exportação se alteram significativamente dentro de um mesmo país.

Feitas as observações iniciais para nós importantes, partiremos para uma análise da

economia exportadora cafeeira que se organizou em Minas Gerais no correr do século XIX até o

início do século XX, procurando situá-la principalmente no contexto das economias exportadoras

internacionais além, é claro, do contexto nacional.

14 O conceito foi tomado da sociologia, ressaltando os componentes interdisciplinares da abordagem. Ver Gereffi e Korzeniewicz (1994). Op. cit., p. 07 ss. 15 HOPKINS, T. e WALLERSTEIN, I. (1994). “Commodity Chains in the Capitalist World-Economy Prior 1800”. In GEREFFI, G. e KORZENIEWICZ, M. Op. cit. 16 ROSEBERRY, W., GUDMUNDSON, L. and KUTSCHBACH, M. S. (1995). Coffee, Society and Power in Latin America. The Johns Hopkins University Press, Baltimore and London. SAMPER K. M. (2003). op. cit. 17 GEREFFI e KORZENIEWICZ (1994). Op. Cit. p. 02

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 9

2. MINAS GERAIS E A CADEIA GLOBAL DA “COMMODITY” CAFEEIRA (1850-1930)

São muito reveladores os aspectos que surgem quando tentamos aplicar sobre a economia

cafeeira de Minas Gerais alguns dos conceitos e categorias analíticas herdadas das abordagens ou

teorias que discutimos anteriormente. Em última instância, cabe verificar a forma em que se deu a

inserção da economia cafeeira da Mata mineira no comércio internacional como base produtiva de

uma cadeia específica da “commodity” cafeeira, historicamente delimitada e com a devida

intermediação da rede dos agentes responsáveis pela canalização e distribuição do produto até o

porto do Rio, principal ponto de articulação desta economia com o mercado externo.

De início é importante destacar que a delimitação espacial desta economia salta aos olhos de

imediato, bastando algumas breves observações sobre sua inserção não só no âmbito do aparato

político-administrativo do qual participava, quanto daquele referente ao conjunto da região de

produção agroexportadora do país18.

Quando avançamos neste sentido percebemos que a região aqui em referência se define por

uma série de simetrias e assimetrias, continuidades e descontinuidades, rupturas com o contexto

histórico imediato no qual surgiu e vai se desenvolver19. Se identificada pela natureza exportadora

com as principais regiões cafeeiras do país, será sua inclusão no espaço político-administrativo

mineiro que lhe fornecerá um primeiro contorno importante.

Marcado pela desintegração de seu território, o estado de Minas viveu, na medida em que se

consolidava o declínio minerador, uma reorientação econômica que implicou no surgimento de um

forte setor produtor de alimentos e outros produtos primários voltados para o consumo interno. Ao

mesmo tempo, ao contrário, formou-se e consolidou-se, na região da Zona da Mata, uma típica

economia voltada para a produção e exportação de café que vai gradualmente se tornando o espaço

econômico mais rico de estado desde o final do século XIX até pelo menos o final da década de

192020. A mesma natureza exportadora que identifica a zona da Mata com outras regiões do país

será o principal elemento delimitador de seu espaço no interior do território mineiro.

Se retomarmos a questão da desintegração econômica típica de Minas no período, estes

contornos se tornam mais nítidos ainda. Como resultado do processo já mencionado, o território

mineiro acabou se desintegrando em distintas regiões precariamente integradas entre si e muito

mais voltadas para aqueles estados com os quais mantinham fronteira (o Norte com a Bahia, o

18 PIRES, A. (2004). Café, Finanças e Bancos:Uma Análise do Sistema Financeiro na Zona da Mata de Minas Gerais (1889/1930) 19 CUNHA, A., SIMÕES, R. e PAULA, J.A. (2005). Regionalização e História: Uma Contribuição Introdutória ao Debate Teórico-Metodológico. Texto de Discussão n.26, CEDEPLAR, Belo Horizonte. LAMAS, F.G., SARAIVA, L. e ALMICO, R. (2003). A Zona da Mata Mineira: Subsídios para uma Historiografia. In V Congresso Brasileiro de História Econômica e 6ª Conferência Internacional de História de Empresas, ABPHE, Caxambu. 20 GIROLETTI, D. (1976). A Industrialização de Juiz de Fora. Fundação João Pinheiro, Belo Horizonte.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 10

Triângulo e o Sul com São Paulo, a Mata com o Rio de Janeiro), ao ponto da noção de “mosaico

mineiro” ser extremamente apropriada para o caso da Zona da Mata, especialmente quando ressalta

o desenvolvimento das distintas regiões do estado “...em diferentes linhas de tempo” 21.

Minas encontra suas raízes e identidade históricas em seu antigo “século do ouro”, com sua

urbanização única, do barroco e do iluminismo, dos movimentos de independência e de sólidos

impactos de integração e diversificação econômicas e de formação de mercados, mas também do

jugo colonial. Em seu período a região da Zona da Mata sequer existia como espaço econômico

uma vez que proibida sua ocupação exatamente para evitar desvios na usurpação do ouro22.

Outras são as raízes históricas da Mata mineira. Aqui temos um exemplo típico da forma em

que se deu a incorporação de diferentes regiões da América Latina ao mercado internacional no

século XIX, na base do liberalismo e do “laissez-faire”, de uma re-elaboração e metamorfose da

relação entre a Periferia e Centro do já consolidado mercado internacional capitalista. Seu processo

de desenvolvimento econômico esteve atrelado completamente à expansão capitalista que ocorreu

ao menos em parte da periferia do sistema mundial no século XIX: a industrialização, a eletricidade,

as estradas de ferro, expansão e consolidação do trabalho assalariado, urbanização capitalista,

“modernização” social e cultural. Neste sentido o desenvolvimento histórico da Zona da Mata foi,

como lembra um velho historiador, uma “...ruptura com o passado histórico de Minas Gerais.”23

Em outras palavras, a evolução histórica, o ritmo e o padrão de desenvolvimento econômico

da zona da Mata destoam significativamente daqueles que caracterizam o conjunto da “unidade”

mineira e, na ausência de seu reconhecimento como tal, a historiografia de Minas tem

desconsiderado o papel de sua região exportadora mais importante, deslocada do universo mineiro

ao ponto de não compartilhar a sua “alma”, uma “estreita faixa de terra”, mera extensão produtiva

da economia do Rio de Janeiro, uma região amorfa, destituída de identidade própria24. Diante deste

quadro algumas generalizações não podem deixar de ser percebidas.

“(...) análises recentes da história econômica de Minas Gerais têm enfatizado o singular processo de crescimento de sua economia no século XIX; e é geral o acordo de que este crescimento não foi diretamente vinculado às exportações. Minas Gerais era uma economia não exportadora, na qual o setor cafeeiro tinha a natureza de um enclave. Neste sentido, mudanças nos recursos originados nas exportações não afetariam direta ou significativamente o nível de renda da província. Como há indícios de que a indústria mineira supria principalmente mercados da própria província, segue-se que a demanda de sua produção não estaria diretamente dependente do nível

21 WIRTH, J. (1982). O Fiel da Balança: Minas Gerais na confederação brasileira – 1889/1937. Paz e Terra, São Paulo. 22 VALVERDE, O. (1958). “O Estudo Regional da Zona da Mata de Minas Gerais.” In Revista Brasileira de Geografia. 20(1) 3-82, jan./mar., Rio de Janeiro. 23 PEDROSA, M.X. (1962). “Zona Silenciosa da Historiografia Mineira – A zona da Mata”. In Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais. 9:189-230, Belo Horizonte. 24 MARTINS, R. (1982). A Economia Escravista em Minas Gerais no Século XIX. CEDEPLAR/UFMG, Belo Horizonte, p. 39; MARTINS, R. e MARTINS, A. (1983). “Slavery in a Nonexport Economy: Nineteenth-Century Minas Gerais Revisited”. Hispanic American Historical Review, 63 (3), 537-568.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 11

das exportações. Além disso, como uma economia não exportadora, Minas Gerais não se beneficiou de melhorias induzidas pela produção de exportação (...)”.25

Mesmo que válidas para a maior parte do território de Minas, estas afirmações simplesmente

não se enquadram ao contexto da economia da Mata. A caracterização desta economia como um

“enclave”, por exemplo, não resiste ao menor confronto com a realidade, mesmo se restringirmos

tal afirmação para o século XIX. Outro exemplo que deve ser destacado neste sentido se refere a

algumas análises relativas ao processo de industrialização de Minas Gerais e da zona da Mata: em

geral concluem, corretamente, que a indústria em Minas surgiu e se desenvolveu de forma

extremamente descentralizada, com destaque para as regiões não exportadoras, mas desconsideram

o mero fato de que se existem processos de industrialização em áreas de produção agrícola de

mercado interno, isto não significa, necessariamente, que naquelas regiões predominantemente

agroexportadoras do estado o processo de industrialização não tenha fortes vínculos com o setor

cafeeiro26.

Para retomarmos a questão da presença da região dentro do território mineiro, outros

elementos ainda são dignos de nota. A condição interiorana do estado de Minas pode ser analisada

como uma contradição com a natureza externa da economia da Mata, o que marcará definitivamente

sua posterior evolução estrutural, além de avançar na sua definição como espaço agroexportador

próprio. Assim sendo, todo o fluxo de exportação da produção da região será realizado a partir do

aparelho comercial e financeiro localizado no Rio de Janeiro pelo menos até o final do século XIX,

quando ainda era o maior porto de exportação de café do país. Este aspecto é crucial uma vez que

revela que um dos componentes mais importantes da rede de mercadorias aqui em questão (o

espaço de distribuição e comercialização externa do produto) não se definia no mesmo espaço da

produção, uma condição específica e periférica da região no interior desta rede de mercadorias.

Mais ainda se pensarmos que a estratégia utilizada pelas elites mineiras para solucionar o

grave problema de sua integração econômica passou pela criação e construção de um centro

político-administrativo também localizado fora dos limites da região, um outro condicionante

definitivo da posterior evolução de sua economia de exportação.

25 OLIVEIRA, M.T. (1991). The Cotton Textile Industry of Minas Gerais, Brazil: Beginnings and Early Development, 1868-1906. PhD. Thesis, University College, London, p. 17 26 Este é predominantemente o caso de LIMA, J.H. (1981). Café e Indústria em Minas Gerais (1870-1920). Vozes, Rio de Janeiro e de algumas análises para o caso de Juiz de Fora como GIROLETTI, D. (1980). A Industrialização de Juiz de Fora. Op. cit.; ARANTES, L.A. (1991). As Origens da Burguesia Industrial em Juiz de Fora. Op. cit. e OLIVEIRA, M.T. (1991). The Cotton Textile Industry of Minas Gerais, Brazil. Op. Op. cit. Outros vão em sentido oposto:“(...) O fato de que um grande número de indústrias fossem estabelecidas em áreas produtoras de café é uma evidência indiscutível da participação da economia cafeeira no surgimento da indústria em Minas Gerais. (...)”. BIRCHAL, S. (1994). Entrepreneurship and the Formation of a Business Environment in Nineteenth Century Brazil: the case of Minas Gerais. PhD. Dissertation, London School of Economics, London.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 12

Revelam-se assim dois pontos específicos e representantes da natureza periférica ou

marginal da economia exportadora localizada na zona da Mata, ambos decorrentes de sua posição

interiorana e potencialmente vinculados a espaços de absorção de excedente econômico gerados em

seu interior, ou assimetrias espaciais na distribuição de recursos que vão caracterizar

estruturalmente a economia exportadora da região. O primeiro, representado pelas funções do

capital comercial na absorção de recursos do produtor via comissão e financiamento da produção e

o segundo, representado, por sua vez, pelo núcleo do aparelho político-administrativo do estado e o

que significou na canalização de recursos via impostos sobre exportações (concentrados em sua

principal região cafeeira) e sua distribuição para outras regiões de Minas27.

Mas é o comportamento da produção da região e sua posição dentro do comportamento da

produção do país e, principalmente, dela, isoladamente, frente àquele dos principais produtores

mundiais –em mais uma aproximação com a abordagem das redes mundiais de mercadorias- que

vão se colocar, talvez, como os principais delineadores da Mata como um espaço agroexportador

próprio.

A Cadeia Global do café sofreu importantes mudanças no correr do século XIX28. Seu

espaço social de demanda vinha se transformando substancialmente desde o final do século anterior.

De uma bebida exótica e de luxo, restrita ao consumo das elites, o café gradualmente foi se

incorporando ao crescente mercado de consumo de massa inerente à expansão industrial que vinha

sofrendo o centro do sistema mundial. Este processo de “comoditização” do café só ocorreu,

contudo, devido às suas características físicas como um forte estimulante e o papel que a

generalização de seu consumo desempenhou na disciplina e rigidez típicas das linhas de montagem

do novo processo de produção. A particular combinação do café com o ritmo típico de sociedades

cada vez mais “modernas” é um componente essencial para a compreensão do comportamento

social de sua demanda no longo prazo29.

Mas também a evolução da oferta merece por nós alguma atenção. Produto típico dos

trópicos, extremamente sensível a pequenas variações de clima e solo, a distribuição mundial da

produção experimentou grandes mudanças até o final do século XIX, principalmente quando foi

27 “As taxas representando a princípio 3% do valor do produto assumiram sucessivamente as seguintes percentagens: 4%, 3,5%, 4%, 11%, 9%, 8,5%, descendo depois a 7%, a taxa que conserva ainda hoje. Além desta porcentagem ad valorem, o Estado arrecada ainda, desde 1907, a taxa fixa de 3 francos, ouro, por saca de café exportada, a taxa também fixa de 1$000, ouro, desde 1925 e a taxa de viação, representando um adicional de 1% sobre o total de todos os impostos, desde 1916. Com exceção da taxa de 1$000, ouro, que é destinada a custear as despesas de propaganda e valorização do café, e viação, que se destina ao desenvolvimento da rede de estradas de rodagem do Estado, os demais impostos entram indistintamente no orçamento público e não interessam senão indiretamente à lavoura do café.” ALVIM, A. (1929). Minas e o Bicentenário do Cafeeiro no Brasil – 1727/1927. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, p. 70 apud COSTA, (1978). Bancos em Minas Gerais. Dissertação de Mestrado, Unicamp, Campinas, p. 97 (grifo nosso). 28 SAMPER K. M. (2003). “The Historical Construction of Quality and Competitiveness – A Preliminary Discussion of Coffee Commodity Chains.” Op. cit. 29 Id. Ib. JAMIESON, R. W. (2001). “The Essence of Commodification: Caffeine Dependencies in the Early Modern World”. Journal of Social History. Vol. 35. N. 2.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 13

introduzido no Brasil30. Aí, onde encontrou condições naturais quase perfeitas, a dotação de fatores

como terra e mão de obra implicou na organização de unidades de produção e formação de

economias de escala que, junto com outros fatores, serão os principais responsáveis pela queda do

preço do produto no mercado internacional que permitiu o firme crescimento da demanda que

ocorreu no período31. Foi a proporção que a produção cafeeira do Brasil assumiu na base da cadeia

internacional do café (de longe, o principal produtor mundial), bem como as condições da

organização interna de sua economia que permitiram a verdadeira revolução que ocorreu na

reestruturação da rede global do café no correr do século XIX32.

Além disto, dada a extensão da área propícia ao cultivo, a forma de organização extensiva

do sistema agrário que vigorou, a importância das fronteiras, a distribuição do eixo principal da

produção, como se sabe, modificou-se basicamente entre duas regiões, que podem, aliás, ser

entendidas como base de duas cadeias específicas do café: o Rio de Janeiro (o Vale do Paraíba

fluminense) e São Paulo (principalmente o Oeste paulista). Minas nunca iria se colocar, pelo

volume total da produção, sequer próxima das principais regiões produtoras do país em seus

respectivos períodos de primazia; no entanto, isto não significa necessariamente que sua produção

tenha sido decadente ou insignificante, como apregoa a historiografia.

Como já observado, a economia cafeeira de exportação de Minas tem sido grosseiramente

identificada com aquela que se desenvolveu no Rio de Janeiro. Assim, entre tantos outros aspectos,

também o comportamento geral de sua produção é definido dentro dos parâmetros cronológicos

básicos em que ocorreu a produção fluminense: com um apogeu definido em meados do século XIX

e um processo de crise e declínio que começa a se delinear nos anos 1880, encontrando na abolição

e na crise dos preços do produto do início do século XX seus contornos definitivos33.

A identificação do comportamento da produção de Minas com este do Rio não encontra

qualquer fundamento na realidade, bastando para isso uma breve análise da evolução da produção

mineira nos dados disponíveis. Utilizaremos como referência de análise aqui, propositalmente, os

dados organizados por um dos principais autores representativos da tendência aqui em questão e,

com base nos mesmos números, chegarmos a conclusões completamente opostas34.

30 ROSEBERRY, W., GUDMUNDSON, L. and KUTSCHBACH, M. S. (1995). Op. cit. SAMPER K. M. (2003). Op. Cit. 31 Deve-se lembrar que entre 1820 e 1850 o preço do café caiu em 75%. LESSA, C. (2000). O Rio de Todos os Brasis. Record, Rio de Janeiro, p. 109 32 Id. Ib. 33 Ver, entre tantos, STEIN, S. (1969). Grandeza e Decadência do Café no Vale do Paraíba. Brasiliense, São Paulo. COSTA, E.V. (1982). Da Senzala à Colônia. 2 ed., Ed. Ciências Humanas, São Paulo. 34 CANO, W. (1985). “Padrões Diferenciados das Principais Regiões Cafeeiras.” In Revista Estudos Econômicos. São Paulo, 15(2): 291-306, mai/ago, tabela 1 p. 293

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 14

Tabela 01 PRODUÇÃO EXPORTÁVEL DE CAFÉ DAS

PRINCIPAIS REGIÕES PRODUTORAS (1.000 sacas)

MÉDIA ANUAL DO PERÍODO

SÃO PAULO

RIO DE JANEIRO

MINAS GERAIS

ESPÍRITO SANTO

SOMA

VOL. % VOL. % VOL. % VOL. % VOL. % 1876-1880 925 24,3 1.987 52,2 767 20,2 124 3,3 3.803 100,01881-1890 2.138 37,1 2.176 37,8 1.200 20,8 250 4,3 5.764 100,01891-1900 4.775 60,5 911 11,5 1.787 22,7 416 5,3 7.889 100,01901-1910 9.252 68,0 995 7,3 2.772 20,4 579 4,3 13.598 100,01911-1920 9.303 70,2 812 6,1 2.446 18,4 700 5,3 13.264 100,01921-1930 11.13

1 66,5 945 5.6 3.445 20,0 1.210 7,2 16.731 100,0

Por estes dados verificamos que a produção de Minas, entre os períodos de 1876-1880 e

1921-1930, cresceu cerca de 349% (saltando de 767 mil para 3.445 mil sacas), 92% apenas entre as

décadas de 1891-1900 e 1921-1930, para ficarmos na fase do pós abolição. Frente ao Rio de Janeiro

(gráfico 1) há uma completa reversão no quadro. Do início ao fim da série este estado experimentou

um declínio de 47%, perdendo a primazia da produção e a própria posição de segundo maior

produtor do país para Minas Gerais já na década de 1890. Minas Gerais manterá a posição de

segundo maior estado produtor do país desde o final do século XIX até a segunda década do século

XX, numa média em torno dos 18 a 20%, acompanhando, aliás, o ritmo de crescimento total da

produção do Brasil no mesmo período (340% e 349% respectivamente – Gráfico 2).

Considerada em termos absolutos, com base nos dados fornecidos por Aristóteles Alvim35, o

comportamento da produção no longo prazo é nitidamente ascendente, em que pese algumas

oscilações (Gráfico 01).

35 ALVIM, A. “Confrontos e Deduções” IN: MINAS GERAIS. Secretaria da Agricultura. Minas e o Bicentenário do Cafeeiro no Brasil (1727/1927). Belo Horizonte, Imp. Oficial, 1929, pp. 73-105.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 15

GRÁFICO 1 Evolução da Produção de Café de Minas Gerais

Médias Qüinqüenais 1850/1924

0

2

4

6

8

10

12

14

1851

/54

1855

/59

1860

/64

1865

/69

1870

/74

1875

/79

1880

/84

1885

/89

1890

/94

1895

/99

1900

/04

1905

/09

1910

/14

1915

/19

1920

/24

mil arrobas

GRÁFICO 02 Evolução Proporcional da Produção de Café

Rio de Janeiro e Minas Gerais 1876/1930

0

10

20

30

40

50

60

70

80

90

1876/80 1881/90 1891/00 1901/10 1911/20 1921/30

RIO DE JANEIROMINAS GERAIS

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 16

GRÁFICO 03 Evolução Proporcional da Produção de Café

S.Paulo, M.Gerais e R.de Janeiro 1876/1930

0

10

20

30

40

50

60

70

80

1876-1880 1881-1890 1891-1900 1901-1910 1911-1920 1921-1930

SÃO PAULORIO DE JANEIROMINAS GERAIS

Deve ficar claro que mesmo considerando a produção da zona da Mata frente ao conjunto da

produção estado de Minas e do Rio de Janeiro, pouco se alteram as tendências da análise aqui em

questão (tabelas 02 e 03).

Tabela 02 PARTICIPAÇÃO PROPORCIONAL DA PRODUÇÃO CAFEEIRA

DA ZONA DA MATA NA PRODUÇÃO DO ESTADO DE MINAS GERAIS

(períodos selecionados) PERÍODO MINAS GERAIS ZONA DA MATA %

1847/48 745.381 743.707 99,77

1850/51 900.264 898.184 99,76

1886 5.776.866 4.316.067 74,71

1888 5.047.600 4.433.800 87,83

1903/04 9.404.136 5.993.425 63,73

1926 12.793.977 9.105.543 71,17

FONTES: 1. para 1847/48, 1850/51 e 1903/04 - GIROLETTI, D. “A Industrialização...” Op. cit. p. 152 e 156.

2. para 1886 e 1888: Zona da Mata - MELLO, P.C. Op. cit. p. 41 (apresenta os dados para Minas Gerais sem a “Zona de Santos”, ou seja, o Sul de Minas).

3. para 1926: “O Café no Segundo Centenário...” pp. 601-604 OBS.: 1. produção em arrobas

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 17

2. para 1903/04 os dados se referem à produção de 64 municípios mineiros (19 da zona da Mata, 19 da zona Sul, 15 do Oeste, 9 do Triângulo e 2 da zona Norte)

3. para 1886 e 1888 - dados relativos à exportação; para zona da Mata os dados se referem a Minas Gerais sem a “Zona de Santos”, ou seja, o Sul de Minas; como as duas regiões são responsáveis por praticamente o total da produção do estado acreditamos que estes dados assim se aproximam muito da produção da Mata mineira.

Tabela 03 VARIAÇÃO PROPORCIONAL DA PRODUÇÃO DO

RIO DE JANEIRO E DA ZONA DA MATA DE MINAS GERAIS (períodos selecionados)

PERÍODO R. DE JANEIRO % ZONA DA

MATA

%

1847/48 6.505.712 89,74 743.707 10,25

1886 8.171.227 65,43 4.316.067 34,86

1888 7.298.533 62,20 4.433.800 37,79

1903/04 4.456.471 42,64 5.993.425 57,35

1926 3.652.668 28,62 9.105.543 71,37

FONTES: 1 Para a zona da Mata - v. tabela 02. 2 Para o Rio de Janeiro: 1848 - VIANNA, O. “Hegemonia do Vale do Paraíba - 2o Império” IN: O

Café no 2o Centenário...” vol. 2, p. 517. 3 1886 e 1888 - MELO, P.C. Op. cit. p. 41. 4 1903/04 e 1926 - “O Café no 2o Centenário...” p. 413.

Encontramos, também aqui, outro importante elemento delimitador da economia agrária de

exportação da Mata como espaço próprio, já que Minas possui um ritmo e comportamento

absolutamente singulares no conjunto da produção do país: mesmo estando distante do dinamismo

paulista, também não pode ser identificada com o declínio e decadência da região fluminense. Mais

que isto, no período em que se delimitou, o crescimento e comportamento da produção em Minas

foi “eclipsado”, “ofuscado” diríamos, pelo ritmo e proporções do crescimento do Vale Fluminense

(a primeira a assumir a primazia na base da cadeia de mercadorias identificada pelo Rio) e,

posteriormente, pelo estonteante ritmo de crescimento do Oeste Paulista (principal região produtora

da cadeia de mercadorias identificada com São Paulo). E como a produção do estado sempre fora

proporcionalmente bem inferior àquela dos estados mais importantes (em geral, como vimos, em

torno de 18 a 20% apenas) poucos deram a ela a devida atenção. Mas é importante lembrar que,

apesar de tudo, o estado se colocava como segundo produtor de um país que, sozinho, era

responsável na época por cerca de 70% em média da produção de todo o globo.

Uma vez que será o dinamismo da produção de exportação o principal componente do

potencial e de delimitação da transição capitalista, teremos aqui uma característica que vai

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 18

diferenciar a principal região produtora de Minas principalmente em sua evolução posterior à

abolição da escravidão. Por outro lado, pela importância que assume na produção do país, pode ser

colocada na base da produção da cadeia global da “commodity” cafeeira do Rio, pelo menos a

partir do final do século XIX, com todas as conseqüências no âmbito teórico-analítico que esta

posição vai acarretar. As redes ou cadeias de mercadorias raramente se apresentam como conjuntos

estáticos na história; ao contrário, sua natureza dinâmica e contínuas modificações é que vão se

colocar como núcleo do conceito.

Sendo assim, é importante verificarmos a proporção que a produção de Minas, isoladamente,

assumirá no conjunto da produção mundial no período. Quando vista em conjunto sabemos que a

produção de São Paulo sozinha corresponde a cerca de 50% da produção mundial da rubiácea em

boa parte do período que estamos estudando36. Isto dá a este estado, bem como à rede global

cafeeira que representa, uma posição também única no mundo. A economia de São Paulo tem sido

tomada como “o modelo” para o estudo das economias agrárias de exportação de café,

principalmente no que ser refere à relação do café com a indústria e com a transição capitalista de

uma forma geral. Mas do ponto de vista da cadeia global de mercadorias pode ser entendido mais

como exceção do que propriamente uma regra37 e como existem vertentes historiográficas que

insistem em analisar o conjunto das economias agroexportadoras no Brasil meramente a partir do

ângulo paulista (o termo “paulistocêntricas” é bastante apropriado para definir estas visões38),

outras experiências nas quais o café desempenhou papel essencial na transição capitalista são ou

desconsideradas ou esvaziadas em sua importância.

Se retomarmos a questão da zona da Mata como base produtiva de uma cadeia global

específica do café e da proporção de sua produção frente à produção mundial, poderemos

compreender a posição que a região assumiu na distribuição mundial da oferta. Se retomarmos os

dados de Aristóteles Alvim, percebemos, por exemplo, que a produção mineira é maior que a de

países inteiros, como, por exemplo, a Colômbia, reconhecidamente um dos maiores produtores

mundiais de café no período aqui considerado39 (tabela 04). Supera também a produção de toda a

América Central e México reunidos no período que vai de 1881 até 1925. Além disto, excluído o

Brasil, teve produção superior a toda América Latina até o qüinqüênio de 1916-1920 (141,46 mil

36 TOPICK, S. and CLARENTH-SMITH, W. G. (2003). The Global Coffee Economy in Asia, Africa, and Latin America. Op. cit. 37 Ver também DULCI, O.S. (1999). Política e Recuperação econômica em Minas Gerais. Ed. UFMG, Belo Horizonte. 38 MENDONÇA, S. R. (1997). O Convênio de Taubaté e a Economia Agrícola Fluminense. In II Encontro Brasileiro de História Econômica e 3ª Conferência Internacional de História das Empresas, UFF, Niterói. p. 01 39 UKERS, W. (1935). All About Coffe. The Tea & Coffee Trade Company, New York, Cap. XVII. OCAMPO, J.A. and BOTERO, M.M. (2000). “Coffee and Origins of Modern Economic Development in Colombia”. In CARDENAS, E., OCAMPO, J.A. and THORPE, R. The Latin American Economies in the Late Nineteenth and Early Twentieth Centuries. Palgrave, New York. PALACIOS, M. (2002). Coffee in Colômbia (1850/1970). Cambridge University Press.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 19

toneladas para a primeira e 152,43 para Minas Gerais), sendo superada apenas no final da década de

1920 (Tabela 05).

Tabela 04 MÉDIA QÜINQÜENAL DA PRODUÇÃO DE CAFÉ

DE MINAS GERAIS EM RELAÇÃO À DA COLÔMBIA 1850/1924

QUINQUÊNIO

Produção de Café em Minas

Gerais (em arrobas)

Produção de Café em Minas Gerais (em milhares de

toneladas)

Produção da Colômbia

(em milhares de toneladas)

Porcentagem da Produção Mineira em Relação à da

Colômbia 1851/54 711.732 11.84 ----- ---- 1855/59 809.780 11.85 ----- ---- 1860/64 1.150.152 16.83 ----- ---- 1865/69 1.973.591 28.89 ----- ---- 1870/74 2.313.954 33.87 ----- ---- 1875/79 2.797.420 40.95 ----- ---- 1880/84 4.444.583 65.06 6.47 905.56 1885/89 5.477.724 80.19 10.78 643.87 1890/94 5.583.195 81.73 19.51 318.91 1895/99 8.399.271 122.96 26.78 359.14 1900/04 10.492.749 153.61 35.05 338.25 1905/09 10.791.373 157.69 37.06 325.49 1910/14 8.529.278 124.86 56.96 119.20 1915/19 10.412.385 152.43 78.42 94.37 1920/24 12.519.504 183.28 127.62 43.61

FONTES: Para Minas Gerais : Alvim, A. “Confrontos e Deduções” IN: MINAS GERAIS. Secretaria da Agricultura. Minas e o Bicentenário do Cafeeiro no Brasil (1727/1927). Belo Horizonte. Imp. Oficial, 1929, pp. 73-105. apud GIROLETTI, D. “A Industrialização...” op. Cit. P. 155. OBS: Para 1855/59 “a média foi calculada em bases da produção de 4 anos por falta de dados para o ano de 1887, na relação do autor citado”. Para a Colômbia: TOPICK, S. and SAMPER, M. Op. Cit. anexo estatístico

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 20

Tabela 05 PRODUÇÃO MÉDIA DE CAFÉ DE MINAS GERAIS COM ALGUMAS DAS PRINCIPAIS REGIÕES

DO MUNDO (1851-1924) (em milhares de toneladas)

Qüinqüênio Produção da América Central e México1

Produção do Caribe2

Produção da América do

Sul3

Produção de Minas Gerais4

1881-1885 54.84 48.12 44.64 65.06 1886-1890 48.61 50.96 48.86 80.19 1891-1896 72.86 51.90 64.87 81.73 1896-1900 90.93 42.47 80.66 122.96 1901-1905 114.28 37.06 80.77 153.61 1906-1910 129.48 35.02 82.88 157.69 1911-1915 129.79 40.82 120.56 124.86 1916-1920 122.87 41.11 141.46 152.43 1921-1925 157.21 44.56 190.22 183.28

Notas: 1. Inclui: Costa Rica, El Salvador, Guatemala, Honduras, Nicarágua e México 2. Inclui: Haiti, Jamaica e Porto Rico 3. Exclui a produção brasileira 4. Qüinqüênios contados entre 1880-1884 e assim sucessivamente; último ano para 1924 Fonte: ver tabela 04

Estamos, portanto, entre uma das principais regiões cafeeiras do mundo, provavelmente a

segunda maior região produtora (se fizermos a proporção com países isolados), o que lhe garante

uma posição bastante singular na distribuição mundial da oferta no período aqui considerado. Por

outro lado, se lembrarmos que estamos lidando com uma das mais importantes e valiosas

“commodities” presentes no comércio internacional (da época e agora), podemos imaginar a

quantidade de recursos que esta economia conseguiu mobilizar. É de se lamentar, perante um

quadro como este, o relativo descaso com que a economia do café de Minas tem sido considerada

por parte da historiografia do país e aquela que tem sido produzida pelos próprios historiadores de

Minas Gerais. A dinâmica de sua produção e a proporção que esta assumiu no contexto

internacional lhe confere o papel de base produtiva de uma das mais importantes cadeias de

mercadoria que se organizou no país, e se pensada como um espaço próprio, crivado por

contradições e assimetrias decorrentes da natureza externa de sua produção e sua restrição a um

espaço interiorano (aqui tomadas como especificidades) se colocará como uma realidade histórica

única na compreensão geral das economias agroexportadoras e da própria forma como se deu a

consolidação capitalista no Brasil.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 21

3. Efeitos De Encadeamento, Industrialização E Finanças: A Formação Do “Complexo

Agroexportador” Em Minas Gerais

Guardadas as condições de dinâmica da produção, delimitação regional e inserção no quadro

geral da distribuição espacial da oferta no Brasil e entre os principais produtores mundiais, cabe a

esta análise verificar o universo interno e a evolução estrutural da economia agrária de exportação

da Mata mineira.

Deve ser entendido que o processo de ocupação produtiva e expansão cafeeira na zona da

Mata iniciou-se na primeira década do século XIX40, mas só encontrará sua consolidação e efetivo

desenvolvimento a partir de meados deste mesmo século, em especial devido ao aprimoramento da

rede de transportes, de início com a fundação da rodovia União e Indústria (1861) e, posteriormente,

com a chegada da estrada de Ferro (em 1875)41. Esta delimitação cronológica é importante porque,

tendo em vista a dimensão histórica e dinâmica da base produtiva desta cadeia mundial do café, será

somente a partir dela que poderemos compreender a defasagem que marca os ciclos de produção do

Rio e da Mata, fornecendo a Minas outras condições objetivas de expansão na medida em que

avançamos no século XX.

Por outro lado se sua área sul, mais próxima do Rio de Janeiro, teve expansão inicial na

região, será o último avanço da fronteira para as áreas norte e nordeste, no final do século XIX e

início do XX, que permitirá a continuidade e a elevação da produção42 que encontra, aliás, nos

planos de valorização do produto iniciados em 1906 uma importante explicação (mesmo que não a

única).

De qualquer forma, como tantas outras regiões, a expansão do café pela zona da Mata

mineira foi acompanhada pelo desenvolvimento de uma série de núcleos urbanos43,

complementares à economia de exportação, de dimensões variadas, mas que encontraram em Juiz

de Fora sua referência mais importante, uma vez que esta consolida sua função de entreposto

comercial gradualmente, na medida em que se dá a própria expansão e aprimoramento da rede de

transporte integrando a região44. Formou-se, assim, no interior da Mata uma hierarquia urbana

responsável pela colocação de Juiz de Fora como o principal núcleo regional, o espaço mais

40 OLIVEIRA, M.R. (1999). Negócios e Famílias: mercado, terra e poder na formação da cafeicultura mineira – 1780/1870. Tese de Doutorado, UFF, Niterói. 41 GIROLETTI (1976). Op. Cit. PEDROSA, M.X. (1962). “Zona Silenciosa da Historiografia Mineira – A zona da Mata”. Op. Cit. BLASENHEIM, P. (1994). “Railroads in Nineteenth Century Minas Gerais.” In Journal of Latin American Studies. 26, 347-374. 42 VALVERDE, O. (1958). “O Estudo Regional da Zona da Mata de Minas Gerais”. Op. Cit. PIRES, A. (1993). Capital Agrário, Investimentos e Crise na Cafeicultura de Juiz de Fora (1870/1929). Dissertação de Mestrado, UFF, Niterói. 43 VALVERDE, O. Op. Cit. PEDROSA, M.X. Op. Cit. 44 GIROLETTI, D. (1976). Op. Cit. BLASENHEIM, P. (1994). Op. Cit.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 22

importante em que irá se concretizar a diversificação econômica e setorial típica da transição

capitalista.

Em conseqüência, os efeitos de encadeamentos gerados na produção de café da região foram

em grande parte internalizados, mesmo que levemos em conta os limites que a zona da Mata vai

encontrar para seu desenvolvimento. São relativamente conhecidos os aspectos básicos do processo

de crescimento urbano de Juiz de Fora, em especial a partir da década de 188045. O aprimoramento

das comunicações (telégrafo e telefonia), dos transportes urbanos, serviço de eletricidade,

desenvolvimento comercial e industrial, bancos, entre outros, foram mais ou analisados por aqueles

que se debruçaram sobre passado histórico da cidade e região46. Como resultado deste processo, já

no final do século XIX, o município conta com a presença de setores como bancos, indústria e

energia elétrica, o que constituirá um trinômio relativamente incomum em municípios de seu porte

e cuja interação será fundamental apara a posterior evolução econômica da cidade47.

Dada a questão estratégica dos fluxos inter-regionais de recursos para a compreensão da

economia cafeeira da Mata, a nós aqui caberá principalmente aprofundar a análise da relação entre o

que consideramos o desenvolvimento de um sistema financeiro na própria região48 e as relações que

estabeleceu com os outros setores da economia, principalmente a indústria, sempre tendo em mente

a abordagem dos efeitos de encadeamento e da cadeia global de mercadorias como referência

teórico-analítica.

Antes de tudo, pelo contraste com a historiografia predominante, cabe ressaltar que a

abolição da escravidão implicou numa profunda e até certo ponto singular reorganização social no

universo regional da produção de exportação49. Encontramos na zona da Mata uma miríade de

relações sociais que implicaram em uma maior ou menor articulação da força de trabalho com o

mercado e a conseqüente formação de um espaço social de demanda de bens manufaturados

assalariados. A combinação entre a dinâmica da produção de exportação e a forma como se deu a

reorganização social do processo produtivo vai permitir que os efeitos de encadeamento de

consumo tenham o devido impacto na economia local e regional.

45 MIRANDA, S. (1990). Cidade, Capital e Poder: Políticas Públicas e Questão Urbana na Velha Manchester Mineira. Dissertação de Mestrado, UFF, Niterói. 46 GIROLETTI, D. (1976). A Industrialização de Juiz de Fora. Op. Cit. 47 CROCCE, M.A. (2006) O Balanço de uma Conjuntura: O Encilhamento em Juiz de Fora (1888-1898). Dissertação de Mestrado, UFF, Niterói. 48 “Um sistema financeiro constitui um universo inter-relacionado de instrumentos, instituições e mercados financeiros que operam em um determinado lugar e em um dado período, ou seja, constitui a superestrutura financeira de uma economia. Sendo assim, os sistemas financeiros podem diferir ou se assemelhar um com os outros pelas suas características, métodos de operação e a extensão de seus instrumentos, instituições e mercados.” GOLDSMITH, R. (1987). Premodern Financial Systems: A Historical Comparative Study. Cambridge University Press, p. 01. 49 SARAIVA, L.F. (2001). Um Correr de Casas, Antigas Senzalas: a transição do trabalho escravo para o livre em Juiz de Fora – 1870/1900. Dissertação de Mestrado, UFF, Niterói. PIRES, A. (1993). Op. Cit.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 23

Há estimativas de que a mobilização monetária envolvendo o pagamento de trabalhadores

na cafeicultura pode ter atingido 40% do valor total da produção em meados da década de 1890,

representando montantes próximos a 6.700:000$ (cerca de 283 mil libras) apenas no município de

Juiz de Fora50. Até mesmo referências explícitas por parte de industriais locais demonstram a

importância do mercado de consumo socialmente delineado pelos trabalhadores radicados no setor

cafeeiro. Em um relatório da diretoria da Cia. Têxtil Industrial Mineira (uma das maiores da

cidade), referente ao ano de 1905, podemos notar a seguinte afirmação:

“De acordo com o Conselho da Diretoria, o aumento no valor externo do mil-réis não apenas acarretou uma paralisação geral dos negócios como também diminuiu a demanda por têxteis na medida em que reduziu a renda dos fazendeiros em mil réis. Como afirmado pelo Conselho, esta apreciação das taxas de câmbio reduziu ‘os recursos daqueles que trabalham no setor agrícola, que são nossos principais consumidores’ ”.51

Ainda que distante dos padrões paulistas, esta reorganização social da produção na Mata

mineira provocou um notório processo de industrialização que acabou por colocar o município de

Juiz de Fora como o principal centro industrial do estado (superando inclusive sua capital) até o

final dos anos 1920. O número de empresas industriais no município cresceu de 45 em 1907 para

cerca de 186 em 1920, abrangendo uma diversificação setorial bastante complexa e que incluía

têxteis, bebidas e alimentos industrializados, materiais de construção, mecânica e metalurgia, couro,

papel, cimento, entre tantos52. Tamanha era a diversificação do setor industrial no município que

um observador local notou em 1925:

“Quer o leitor uma folha de papel para embrulho? Aqui a tem, fabricada em Juiz de Fora. Uma bandeja, um copo de metal, uma jóia delicada, seda para camisa, uma colcha, um cobertor, uma toalha, uma gravata, um colarinho, uma maleta, um motor elétrico, plaina, um copiador, um piano? De tudo encontrará, feito em Juiz de Fora.” 53

Se percebermos os dados da tabela abaixo (06), veremos que em 1907 Juiz de Fora,

isoladamente, concentrou 22% do capital e cerca de 25% de toda produção industrial do estado. As

50 PIRES, A. (1993). Op. Cit. Tabela 36 p. 130 51 Apud OLIVEIRA, M.T. (1991). Op. cit. p. 351 (grifo nosso). 52 PIRES, A. (2004). Café, Finanças e Bancos. Op. cit 53 O Dia 18/01/1925. A sofisticação da industrialização de Juiz de Fora pode ser testemunhada pelo seguinte relato, presente em um jornal local: “O abaixo assinado, diretor gerente da Companhia Nacional de Indústrias Reunidas convida a todos os que desejarem ver e examinar a construção dos dois motores elétricos de 6 HP que se acham em exposição na casa de móveis da viúva Bechtlufft à rua Halfeld, -de exclusiva fabricação das Indústrias Reunidas. Sendo os primeiros motores fabricados no Brasil [sic], com absoluta perfeição e garantia de funcionamento, constituem pois, uma grande vitória da indústria eletro-mecânica nacional, provando assim que é praticamente possível a fabricação de qualquer máquina ou aparelho em competição com similares estrangeiros, dependendo em parte de medidas patrióticas e inteligentes por parte dos governos, no sentido de auxiliar e estimular aos que se forçam na produção do que até então não se fabrica dentro do país. Apesar da construção dos dois motores ter sido de experiência, faltando ainda instalações mais amplas e mais adequadas no sentido de facilitar a execução mais rápida e por preço mais reduzido, -mesmo assim o custo dos dois motores em exposição é bem inferior ao preço atual de outros motores estrangeiros. Chamo a atenção aos competentes para confrontar os dois motores com outros tipos de procedência estrangeira, certo de que se convencerão da superioridade do tipo nacional, -quanto à estética e perfeição de acabamento. - JR Ladeira.” Diário de Minas 02/10/1919

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 24

proporções de capital, operários e produção por estabelecimento atingem os montantes,

respectivamente, de 157, 96 e 213 pontos percentuais a mais para o município. As mesmas

comparações quando feitas para a zona da Mata tornam mais nítidos ainda os níveis de

concentração e uma dimensão média bastante superior àqueles vigentes no estado e região. Deve ser

notado que estes números provavelmente demonstrariam maiores proporções em 1920 (para o qual

não dispomos de dados distribuídos por municípios), dado o ritmo e principalmente a natureza

substancialmente diferenciada deste processo de industrialização de Minas.

Tabela 06 PARTICIPAÇÃO DA INDÚSTRIA DE JUIZ DE FORA

EM RELAÇÃO AO ESTADO E A ZONA DA MATA DE MINAS GERAIS

1907 M. GERAIS Z. DA

MATA J. DE FORA % MG % ZM

No ESTAB. 524 192 43 8,20 22,34 CAPITAL * 26.515 10.459 5.859 22,09 56,01 No OPER. 9.421 2.997 1.516 16,09 50,58 PRODUÇÃO 32.444 14.070 8.341 25,86 59,28 CAP./EST.* 53 54,47 136,25 +157 +150 OPER./EST.* 18 15,60 35,25 +96 +125 PROD./EST.*

62 73,28 193,27 +213 +164

FONTE: O Brasil, suas Riquezas Naturais, suas Indústrias. Rio de Janeiro, M. Osaso e Cia., 1909. Apud. LIMA, J.H. op. cit. pp. 96-100. Tabela XVIII. * em contos.

Como se sabe, a industrialização em Minas Gerais teve no século XIX um forte ímpeto, em

especial na indústria têxtil e com uma concentração nas regiões norte e centro do estado54. No

entanto esta industrialização, mesmo demonstrando a força e o dinamismo dos mercados locais e

não exportadores, ocorrera em função da ausência de economias externas, especialmente uma infra-

estrutura de transportes, responsável por tal elevação dos fretes que tornava a produção local viável,

mesmo que a custos superiores55. Não foi assim, no período, conseqüência de transformações

estruturais da economia, mas mais o resultado de um processo de redução dos custos gerais de

reprodução de economias regionais voltadas para o mercado interno e de diversificação de seus

circuitos próprios.

54 OLIVEIRA, M.T. (1991). The Cotton Textile Industry of Minas Gerais, Brazil. Op. cit. PAULA, R.Z. (2006). História de Juiz de Fora: da Vanguarda de Minas à “industrialização periférica”. Tese de Doutorado, Unicamp, Campinas. 55 Id. Ib.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 25

Outro foi o padrão da industrialização de Juiz de Fora, já delineado, que acompanhou de

perto as transformações estruturais de uma economia de base exportadora que vinha sofrendo

nitidamente um processo de transição capitalista, com base na diversificação de seu universo

urbano-industrial e visivelmente condicionado pela renda decorrente das exportações. Foi

exatamente como conseqüência do dinamismo deste processo que o eixo industrial do estado se

deslocou para sua região agrária de exportação já no final do século XIX, posição que mantém até o

final da década de 1920, quando Belo Horizonte assume a primazia industrial de Minas. A

correlação entre industrialização e produção agrícola de mercado interno, com toda importância que

possui, tem tido uma relevância exagerada pela historiografia mineira e a negação da interação

café/indústria para o conjunto do estado, uma constante nesta mesma produção historiográfica,

necessita ser revista, desde que levada em conta a efetiva complexidade da formação histórica de

Minas Gerais.

Além disto, visto em sua totalidade, o processo de industrialização local acompanhou o

delineamento da industrialização que vinha ocorrendo nas economias de exportação cafeeira do

Brasil. Se reunirmos informações já existentes56 com dados que obtivemos por anúncios de jornais

locais, percebemos que se até a Primeira Guerra Mundial havia um predomínio nítido daqueles

setores produtores de artigos manufaturados leves, de consumo assalariado, a partir daí começam a

surgir inúmeras indústrias de artigos intermediários e equipamentos, não estando ausentes

iniciativas visivelmente associadas à substituição de importações57. Além disto, se considerarmos a

forma de organização das firmas como critério, este processo atinge seu clímax na década de 1920,

quando temos em média a formação de mais de uma empresa industrial em sociedade anônima por

ano58.

Contudo, em que pese sua importância regional, a industrialização de Juiz de Fora vai

refletir nitidamente os limites sócio-espaciais e econômicos no interior dos quais vai se dar. Apesar

da dinâmica e do grande porte de algumas unidades fabris, a restrição de muitas aos mercados local

e regional marcou este parque industrial com fábricas que, quando comparadas aos grandes centros

industriais, lhes configura apenas dimensões pequenas e médias, algumas ainda na fase

manufatureira, o que será essencial para compreendermos seu processo de expansão e

financiamento (tabela 07).

56 ANDRADE, S.M. (1987). A Classe Operária em Juiz de Fora: Uma Historia de Lutas (1912-1924). Editora da UFJF, Juiz de Fora, Quadro 01 pp. 24-26 57 “A borracha manufaturada empregada em grande escala nas indústrias de toda a sorte são importadas dos Estados Unidos e Europa. Depois de declarada a Guerra, os diferentes utensílios de borracha subiram a preços exorbitantes, fato este que a cada dia mais se acentua. Agora porém um distinto industrial, o sr. Felippe Dilly, acaba de tomar a iniciativa de montar nesta cidade uma fábrica de manufatura de borracha.” Diário de Minas 15/12/1917 58 PIRES, A. (2004). Op. cit. Tabela 72 pp. 304-306

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 26

Tabela 07 PARTICIPAÇÃO DA INDÚSTRIA DE JUIZ DE FORA EM RELAÇÃO A ALGUNS NÚCLEOS

INDUSTRIAIS DO PAÍS 1907 DIST.

FEDERAL S. PAULO R.JANEIRO J.FORA

CAPIT/ESTAB* 254 393 415 136,25 OPER./ESTAB. 52,6 74,2 69,8 35,25 PROD./ESTAB.*

334 362 270 193,97

FONTE: Ver tabela 04. * em contos.

Ao mesmo tempo, acompanhando a crescente mercantilização e diversificação da economia,

Juiz de Fora testemunha grandes transformações em seu setor comercial. Se notarmos os dados da

tabela 08, entre os anos de 1870 e 1925 o número de estabelecimentos comerciais cresce cerca de

300%, saltando de 190 para 716. Se ficarmos entre os anos de 1891 e 1925 esta elevação é da

ordem de 180% (algo em torno de 5,29% ao ano). Este crescimento é importante uma vez que pode

ser explicado principalmente pela multiplicação de pequenas unidades de varejo, em especial no

núcleo urbano, mas também em seus distritos agrícolas, um nítido resultado do processo de

articulação das camadas mais baixas (em especial trabalhadores agrícolas) ao mercado de consumo

de bens manufaturados59.

Tabela 08 CRESCIMENTO DOS ESTABELECIMENTOS COMERCIAIS DE JUIZ DE FORA 1870/1925

(períodos selecionados) ANO No ESTABELECIMENTOS ÍNDICE 1870 190 100 1877 310 163 1891 384 202 1904 692 364 1925 716 377

FONTE: ESTEVES, A. op. cit.; Almanaque de Juiz de Fora de 1891; Jacob, R. op. cit.

Mas, a partir dos anos 1890, merece destaque o surgimento de várias empresas atacadistas,

também de dimensões variadas, normalmente voltadas para a comercialização de alimentos, mas

não estando ausentes aquelas que negociavam com equipamentos, máquinas e produtos importados,

correspondendo em grande parte à função que o comissário desempenhava na provisão de bens

diversos para os fazendeiros de café e a população em geral. O predomínio destas empresas em

contas passivas diversas de fazendeiros de café é notório na medida em que avançamos no século

59 LESSA, C. (2000). Op. cit. pp. 117-118

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 27

XX. O mesmo pode ser dito quando avaliamos o ativo de empresas varejistas. Quanto às próprias

unidades atacadistas, a presença invariavelmente majoritária de industriais e outros comerciantes

locais em seus débitos também pode ser detectada. Um dos principais canais de afluência de

recursos gerados na economia local para o Rio estava se rompendo paralelamente à formação de um

circuito comercial endógeno extremamente complexo, delineado regionalmente e cujos fluxos mais

importantes vão se encontrar no mesmo espaço econômico60.

É fundamental entendermos que a evolução do comércio cafeeiro do Rio de Janeiro

reorientou completamente o universo de produção e distribuição no interior da cadeia de mercadoria

do café com ele associada61. O desaparecimento de setores econômicos e grupos sociais inteiros

identificados com a estrutura anterior (como o próprio comissário e o antigo ensacador), secundado

que foi pela crise da produção do Vale Fluminense, refletiram uma transferência do seu principal

eixo produtor do próprio Vale para a Zona da Mata de Minas62.

A manutenção do porto do Rio como o principal canal de exportação da produção da Mata

tem sido avaliada a partir da idéia de “Zona Rio”63, o que implica na centralidade do porto do Rio

de Janeiro e sua importância para o escoamento daquelas áreas que são consideradas como

“satélites”. No entanto, do ponto de vista das economias regionais produtoras e da noção de base de

uma cadeia mundial específica do café, inverte-se a situação, pois o que restou dos canais de

distribuição e exportação de café no Rio de Janeiro se deve quase que exclusivamente à produção

de outros estados, em especial Minas Gerais64. Antigas e tradicionais Casas Comissárias, como

Avellar Werneck e Cia. chegaram a afirmar, no final dos anos 1920, que seus principais clientes

60 PIRES, A. (2004). Cap. 3 61 SWEIGART, J. (1980). Financing and Marketing Brazilian Export Agriculture: the coffee factors of Rio de Janeiro, 1850-1888. PhD. Thesis, University of Texas. FERREIRA, M. A Crise dos Comissários de Café do Rio de Janeiro. Dissertação de Mestrado, UFF, Niterói. 62 “A construção de estradas de ferro encorajou a produção onde o café já era plantado e trouxe sua expansão para as áreas mais novas. A província do Rio de Janeiro cresceu principalmente devido à exportação de café através da cidade do Rio. A expansão das estradas de ferro, no entanto, permitiu uma maior expansão da fronteira para a região da Zona da Mata de Minas Gerais que no final do século ultrapassaria a província do Rio em produção.” SWEIGART, J.E. (1980). Op. cit. pp. 21-23 63 LESSA, C. O Rio de Todos os Brasis. Op. Cit. MELO, H. P. (1993). O Café e a Economia do Rio de Janeiro – 1870/1920. Tese de Doutorado, UFRJ, Rio de Janeiro. 64 “A zona Rio viveu, no decorrer destas primeiras décadas republicanas, da expansão cafeeira ocorrida nas terras mineiras e em menor proporção do crescimento da produção de café do Espírito Santo, isto explica a pujança comercial da cidade do Rio de Janeiro, na medida que intermediava o comércio de café da região, além de ser o maior porto importador do país (...). A concentração da riqueza na região também pode ser demonstrada pela distribuição do PIB regionalmente. O Rio de Janeiro e Minas Gerais respondiam em 1900 por 57% deste (...). A importância da zona Rio cafeeira foi assegurada nas primeiras décadas republicanas pelo crescimento das lavouras de café dos estados de Minas Gerais e Espírito Santo. O café mineiro foi majoritariamente escoado pelo porto do Rio de Janeiro e o de Angra dos Reis (RJ) e o capixaba com a construção da ligação ferroviária de sua região produtora no sul do estado (...). No entanto, cerca de 20% da produção cafeeira capixaba continuou a ser comercializada na zona Rio. Até a Segunda Guerra Mundial o porto do Rio de Janeiro manteve embarques de café oriundos de São Paulo e Espírito Santo, além do tradicional café mineiro. Nos anos 1930 um pouco mais da metade do café embaçado pela zona Rio era mineiro, 26% em grãos fluminenses e cerca de 10%, respectivamente, paulistas e capixabas.” MELO, H.P. (1993). Op. cit. p. 78.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 28

eram fazendeiros de Minas65 e não deixa de ser curioso verificar que, em 1923, é inaugurada em

Juiz de Fora a empresa industrial têxtil “Vera Cruz” de propriedade da firma Avellar Werneck e

Cia. (propriedade dos srs. Ignácio de Avellar Werneck e Francisco de Avellar Werneck)66. Por

outro lado, também temos referências de que o Banco de Crédito Real de Minas Gerais, como parte

dos programas de valorização, chegou a financiar muitos comerciantes de café do Rio de Janeiro,

através de descontos e outras operações de crédito, em especial aqueles que negociavam com o café

mineiro67.

Reorienta-se, assim, o que era “marginal” ou “periférico” no interior desta cadeia de

mercadorias, já que do ponto de vista exclusivo das exportações de café, será o porto do Rio que vai

se colocar em função da produção da Mata, isoladamente responsável por mais de 60% de suas

exportações na década de 193068. Foi a produção de Minas, pela sua proporção na distribuição

mundial da oferta, a responsável pela manutenção do Rio como segundo maior porto de exportação

de café no mundo. Mantém-se desta forma não só a importância do Rio como ponto de escoamento

da produção de outras regiões, mas também a riqueza e complexidade das transformações internas

de suas economias regionais produtoras, respeitando devidamente todas as suas singularidades.

Manifesta-se, assim, com toda a nitidez a superioridade analítica da abordagem das redes globais de

mercadorias.

Mas é a organização do sistema bancário e sua singular articulação com o setor cafeeiro na

região que merecem nossa atenção neste momento. Quando lidamos com o universo financeiro das

economias cafeeiras, revelam-se diversos fenômenos cuja complexidade só pode ser devidamente

entendida através dos instrumentos analíticos herdados da velha tradição de Innis e, em parte, dos

formuladores de sua escola. Aqui, os componentes típicos das características físicas do produto e

sua forma de cultivo; a composição social e distribuição da renda decorrente das exportações; as

formas de poupança disponíveis na sociedade; o perfil de investimento dos produtores de café; os

canais de transmissão de informações predominantes; oportunidades de investimentos, todos estes

elementos constituirão parte do universo de análise, um conjunto a ser compreendido em toda a sua

dimensão, inter-relações e determinações recíprocas. A esta particular combinação de elementos

biológicos, agronômicos, sociais e econômicos, uma vez que condicionaram as relações e formas de

65 DEPARTAMENTO NACIONAL DO CAFÉ (1934). O Café no Segundo Centenário de sua Introdução no Brasil. DNC, Rio de Janeiro. 66 Gazeta Comercial 08/09/1925 67 “Por conta da Carteira de defesa do café foram feitos empréstimos aos lavradores de café, no ano passado, na importância de 12.517:303$000. Concomitantemente, a sucursal do Rio de Janeiro, no mesmo período, fez aos fornecedores e compradores de café adiantamentos em dinheiro, no total de 14.146:637$350, por conta do governo do estado.” Gazeta Comercial 26/07/1928 (grifo nosso) 68 MELO, H. P. (1993). Op. Cit. Pp. 77-81

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 29

crédito na economia, chamaremos de efeitos de encadeamentos financeiros69, base da organização

do crédito em economias agroexportadoras de café.

Pelo lado da demanda, a própria natureza agrícola impunha uma contraposição entre a

sazonalidade típica dos rendimentos e as necessidades contínuas da manutenção da produção, o que

só poderia ser superado pelo crédito, neste caso o crédito comercial de curto prazo, imanente às

relações entre o fazendeiro e o fornecedor. Além disso, por ser uma cultura perene e que necessita

de um período de tempo de 4 a 5 anos entre plantio e a primeira colheita economicamente viável, a

expansão da produção só poderia ocorrer, na ausência de recursos próprios, também mediante o

crédito, desta feita o de longo prazo, realizado através de instrumentos como as hipotecas.

Já pelo lado da oferta, as grandes unidades produtoras (além das relações escravistas)

implicaram, como se sabe, numa brutal concentração de renda, o que dá a esta economia altos

índices de poupança, uma vez superados os mitos do consumo conspícuo e da eterna dependência

financeira entre os fazendeiros e os comissários de café. Além de tudo, em uma cultura que é

marcada por grandes alterações nos rendimentos anuais70, estes recursos tendem a ser aplicados em

formas de poupança seguras e/ou de retorno fixo71, o que varia em função dos instrumentos de

poupança e aplicações disponíveis: terra, escravos, gado, títulos da dívida pública, empréstimos

hipotecários, debêntures etc.72.

Delineados estes primeiros elementos gerais da dimensão financeira das economias de

exportação, podemos avançar no caso mineiro. Uma análise da dívida passiva nos inventários dos

fazendeiros de café (tabelas 09 e 10) e de sua presença nos contratos hipotecários registrados no

município (tabela 11) demonstra que se até o final do século XIX houve um nítido predomínio do

financiamento de fazendeiros locais com empresas do Rio de Janeiro, a partir da década de 1890

são os agentes locais (prestamistas e o Banco de Crédito Real) que se tornam os principais agentes

financeiros dos produtores de café73.

69 Baldwin, em especial, lidou com estes elementos em que pese não ter utilizado a noção de efeitos de encadeamentos financeiros. 70 Reflexo das variações que apresenta no volume de suas colheitas e de grandes oscilações de preços no mercado, decorrentes da defasagem entre expansão do plantio e as primeiras colheitas comercializáveis. Curiosamente, no universo do livre mercado do século XIX, o café era um produto particularmente avesso ao mecanismo do equilíbrio de preços e da oferta e procura, pelo menos no curto prazo. 71 “(...) a chave da compreensão da mentalidade do rentier é reconhecer que o lucro do cultivo dos produtos agrícolas de grande valor no mercado [staples] era extremamente irregular; o sucesso do plantador em grande parte estava em saber se reinvestia na ampliação da produção ou em ativos que representavam fluxos seguros de renda e pouco risco.” KILBOURNE, R.H. (1995). Debt, Investment, Slaves: Credit Relations in East Feliciana Parisch, Louisiana, 1825-1885. University of Alabama Press, p. 06. 72 Para o caso de Juiz de Fora ver ALMICO, R. (2001). Fortunas em Movimento: um Estudo sobre as Transformações na Riqueza Pessoal em Juiz de Fora – 1870/1914. Dissertação de Mestrado, UNICAMP, Campinas 73 PIRES. A. (1993). Op. Cit. Ver também ALMICO, R. (2001). Op. Cit.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 30

Tabela 09 DECOMPOSIÇÃO DAS DÍVIDAS PASSIVAS: ORIGEM DO CAPITAL DE EMPRÉSTIMO PARA AS

UNIDADES AGROEXPORTADORAS DE JUIZ DE FORA - 1879/1929 (valores em mil-réis)

DÉCADA LOCAL % R.J. % N.IDENT

.

% TOTAL

1870/79 129:488 41,79 144:477 46,63 35:854 11,57 309:819

1880/89 201:135 19,66 768:649 75.16 52:786 5,16 1.022:570

1890/99 197:998 99,39 1:211 0,60 - - 199:209

1900/09 476:373 77,58 73:868 12,03 63:755 10,38 613:996

1910/19 96:565 88,17 2:263 2,06 10:689 9.76 109:517

Fonte: Inventários – 1870/1929

Tabela 10 PARTICIPAÇÃO DO BANCO DE CRÉDITO REAL NA DISTRIBUIÇÃO DE CAPITAL PARA A

LAVOURA CAFEEIRA DE JUIZ DE FORA - 1890/1919 (valores em mil-réis)

DÉCADA DIV. TOTAL B.C.R. % R.J. % 1870 309:819 --- --- 144:477 46,63

1880/89 1.022:570 --- --- 768:649 75,16 1890/99 199:209 143:939 72,46 1:211 0,60 1900/09 613:996 438:776 71,46 73:868 12,63 1910/19 109:517 73:000 66,65 2:263 2,06

FONTE: Inventários Juiz de Fora - 1870/1929.

Fundado em 1889, o BCR tinha sua finalidade inicial na concessão de crédito de longo

prazo para a lavoura, mas já em 1891 consegue autorização para lidar com operações comerciais

típicas como descontos de títulos e depósitos, essenciais para o funcionamento e evolução estrutural

de uma economia que vinha se modernizando74. É a partir daí que efetivamente passa a exercer as

funções que qualquer instituição bancária realiza em uma economia: multiplicador de meios de

pagamentos, ponto de catalisação e redistribuição de recursos monetários e aquela de principal

fornecedora de crédito e fornecimento de liquidez imediata para operações de longo e curto prazo.

Desde o início o Banco manteve próximas relações com o governo do estado, que acaba o

utilizando como instrumento institucional de distribuição de recursos públicos para a lavoura.

Alguns, inspirados nas teses de Gerschenkron, têm visto nesta relação uma especificidade

74 ALVARENGA FILHO, J. T. (1987). “Alguns Traços da História Bancária de Juiz de Fora.” In BASTOS et alii. (1987). História Econômica de Juiz de Fora. IHGJF, Juiz de Fora. Id. (1976). A Criação do Banco de Crédito Real de Minas Gerais e o Relacionamento de seus Fundadores com D. Pedro II. s. ed., Juiz de Fora.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 31

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 32

mineira75, mas não é este o caso, uma vez que talvez a principal solução para o crônico problema do

crédito agrícola no Brasil passou, na Republica Velha, pela catalisação dos recursos via governos

estaduais e sua redistribuição através da cadeia institucional formada pelas filiais de bancos

regionais. Foi este o caso, em diferentes períodos, de São Paulo, Rio Grande do Sul, Espírito Santo,

ou mesmo, do Piauí, entre outros76.

Em se tratando de economias exportadoras, com base fiscal na exportação cafeeira, o que

percebemos neste fenômeno é a presença de efeitos de encadeamento de natureza fiscal e diretos77,

mas com delineamentos regionais. Neste sentido, o que Minas traz de específico é a assimetria entre

o espaço regional responsável pela geração destes recursos e o seu centro de catalisação, como já

visto alheio e externo a este espaço. A transferência de recursos gerados pela Mata para outras

regiões de Minas era inevitável no contexto político-administrativo mineiro na Republica Velha e

deve ser lembrado que uma capital foi construída em um período em que o café constituía a base de

arrecadação do estado. Mas isso não significa, obviamente, que a própria região não tenha se

beneficiado destes recursos. Bem ao contrário, quando lembramos a presença do mesmo estado na

construção da infraestrutura ferroviária na região, o seu predomínio na distribuição de crédito para a

lavoura cafeeira e, especialmente, no financiamento dos planos de valorização de café,

particularmente importantes para a manutenção da produção na região de ocupação mais antiga da

Mata.

75 COSTA, F.N. (1978). Bancos em Minas Gerais. Dissertação de Mestrado, UNICAMP, Campinas 76 Ver LAGEMANN, E. (1985). O Banco Pelotense & O Sistema Financeiro Nacional. Ed. Mercado Aberto, Porto Alegre. 77 Ver HIRSCHMAN, A. (1985). Op. cit.

Tabela 11 Quadro Geral do Mercado Hipotecário

Participação dos Credores por Origem Geográfica Médias qüinqüenais

(1853-1939)

Participação de Credores de Juiz de Fora

Participação de Credores do Rio de Janeiro

Participação de Credores da zona da

Mata Participação de Credores do

Centro e Vertentes

Quinq.

Juiz de

Fora % JF

Mont JF

%Mt JF Rio % Rio

Mont Rio

%Mt Rio

Zona da Mat

a %

ZM Mont ZM

%Mt ZM

Centro

% Centr

o Mont

Centro%Mt

Centro 1853-1854 17

44,7%

511311

67,5% 4

10,53% 10301 1,36% 0

0,00% 0 0,00% 5

13,16% 22847 3,02%

1855-1859 60

65,9%

351821

78,9% 2 2,20% 17175 3,85% 0

0,00% 0 0,00% 7 7,69% 10379 2,33%

1860-1864 130

50,4%

923130

31,0% 40

15,50% 1437564

48,28% 8

3,10%

121977 4,10% 29

11,24% 90263 3,03%

1865-1869 59

60,2%

453578

30,4% 22

22,45% 839900

56,31% 5

5,10% 99757 6,69% 7 7,14% 19836 1,33%

1870-1874 60

92,3%

449430

73,8% 2 3,08% 90167

14,80% 3

4,62% 69750

11,45% 0 0,00% 0 0,00%

1875-1879 124

91,9%

2228776

84,2% 8 5,93% 179318 6,77% 0

0,00% 0 0,00% 1 0,74% 2600 0,10%

1880-1884 147

80,8%

1324480

41,6% 18 9,89% 1044674

32,81% 3

1,65% 30600 0,96% 4 2,20% 311000 9,77%

1885-1889 135

85,4%

1365978

65,1% 11 6,96% 413315

19,69% 2

1,27% 31498 1,50% 1 0,63% 9000 0,43%

1890-1894 268

94,0%

4503503

90,9% 5 1,75% 145263 2,93% 3

1,05% 65000 1,31% 2 0,70% 7450 0,15%

1895-1899 345

92,0%

4916105

87,3% 22 5,87% 503923 8,95% 4

1,07%

135000 2,40% 0 0,00% 0 0,00%

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 33

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 34

1900-1904 242

91,0%

3758572

81,3% 8 3,01% 260173 5,63% 6

2,26% 27500 0,59% 2 0,75% 70000 1,51%

1905-1909 255

94,1%

4554563

96,2% 6 2,21% 38866 0,82% 4

1,48% 43600 0,92% 1 0,37% 20000 0,42%

1910-1914 346

96,4%

6320187

97,1% 5 1,39% 90169 1,39% 2

0,56% 18000 0,28% 3 0,84% 41800 0,64%

1915-1919 407

94,2%

8132036

93,6% 11 2,55% 251300 2,89% 3

0,69% 81000 0,93% 3 0,69% 33000 0,38%

1920-1924 32

88,9%

1374487

82,4% 1 2,78% 70000 4,20% 2

5,56% 12500 0,75% 0 0,00% 0 0,00%

1925-1929 372

96,9%

14453466

93,6% 5 1,30% 118966 0,77% 1

0,26% 20000 0,13% 2 0,52% 166000 1,08%

1930-1934 184

94,8%

7356002

83,2% 5 2,58% 220312 2,49% 2

1,03% 50500 0,57% 0 0,00% 0 0,00%

1935-1939 23

65,7%

521250

53,2% 8

22,86% 337173

34,38% 1

2,86% 20000 2,04% 1 2,86% 50000 5,10%

TOTAL 3206 87,5%

63498675

83,2% 183 5,00% 6068559 7,96% 49

1,34%

826682 1,08% 68 1,86% 854175 1,12%

Fonte: Registros de Hipotecas – 1853/193

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 35

Em Minas houve uma singular combinação entre os efeitos de encadeamento financeiros e

fiscais que, guardadas as especificidades de sua economia de exportação, implicou no fechamento

de um outro importante canal de evasão de recursos que era representado pela presença de

instituições e agentes financeiros localizados no Rio de Janeiro como os principais provedores de

crédito da economia local. Deve ser notado que quase todo circuito de crédito está sendo realizado

no próprio espaço da região: o de curto prazo, comercial, uma vez que a estrutura de comércio

desenvolvida na cidade foi capaz de prover, em grande parte, os produtores locais; e o de longo

prazo, que mesmo catalisado em um espaço externo àquele da produção, retornou à região como

forma de aplicação dos recursos que tinham como base a própria economia de exportação mantendo

no Banco de Crédito Real e suas agências o seu principal canal de distribuição (tabela 12).

Não que o Banco tenha sido o único provedor de crédito de longo prazo para os produtores

de café. Desde meados do século XIX, quando temos registros de hipotecas para o município,

podemos vislumbrar um número bastante significativo de empréstimos realizados entre os próprios

fazendeiros, em especial até o primeiro qüinqüênio do século XX (tabela 12). Aqui a demanda e

oferta de crédito de longo prazo, condicionadas como foram pelos aspectos físicos e sociais da

produção, confluem e tornam visível o que estamos chamando de efeitos de encadeamento

financeiros. Com os desníveis na condição financeira entre os vários produtores, permeados por

relações sociais e instituições informais que serviam como canais de transmissão de informações,

formou-se um verdadeiro mercado de hipotecas na cidade e região onde o capital especificamente

agrário foi canalizado para o financiamento da própria da produção agrícola. Guardadas as

condições de garantia e confiança, os empréstimos entre os fazendeiros, que tinham retorno fixo,

não apenas eram um bom negócio, mas se adaptavam particularmente bem ao perfil de investimento

dos próprios fazendeiros de café. Talvez por tudo isso as dívidas ativas constituam um dos

componentes mais importantes na riqueza dos fazendeiros do município de Juiz de Fora78.

78 ALMICO, R. (2001). Fortunas em Movimento: um Estudo sobre as Transformações na Riqueza Pessoal em Juiz de Fora – 1870/1914. Dissertação de Mestrado, UNICAMP, Campinas.

Tabela 12 Quadro Geral do Mercado Hipotecário – Juiz de Fora

Participação dos Credores por Categoria Social Médias Qüinqüenais (1853-1939)

Participação de Credores

Agrícolas Participação do BCR

Participação dos Proprietários e

Capitalistas Participação dos

Comerciantes

Participação de “Outros”

Quinq. AG%

AG Mont Agri

% Mon

t Agri BCR

% BCR

Mont BCR

% Mt

BCR PC% PC

Mont PC

% Mon PC Com

% Com

Mont

Com% Mt Com

Outros

% Outro

s Mont Outr.

% Mt Outr

1853-1854 12

31,58

346:239

45,69 0 0,00 0 0,00 1 2,63 560 0,07 0 0,00 0 0,00 0 0,00 0 0,00

1855-1859 32

35,16

267:817

60,05 0 0,00 0 0,00 2 2,20 5604 1,26 5 5,49

36175 8,11 0 0,00 0 0,00

1860-1864 54

20,93

415:114

13,94 0 0,00 0 0,00 4 1,55 29265 0,98 37

14,34

1412585 47,44 4 1,55 5297 0,18

1865-1869 39

39,80

497:186

33,33 0 0,00 0 0,00 6 6,12 11400 0,76 28

28,57

867738 58,17 4 4,08 14700 0,99

1870-1874 33

50,77

364:665

59,85 0 0,00 0 0,00 11

16,92 66457 10,91 15

23,08

142220 23,34 2 3,08 5050 0,83

1875-1879 68

50,37

2.044:669

77,22 0 0,00 0 0,00 28

20,74

102414 3,87 30

22,22

302369 11,42 3 2,22 6000 0,23

1880-1884 63

34,62

982:667

30,86 0 0,00 0 0,00 60

32,97

690180 21,67 37

20,33

1007069 31,63 5 2,75 7868 0,25

1885-1889 38

24,05

544:943

25,96 13 8,23

326500

15,56 51

32,28

337415 16,08 29

18,35

438515 20,89 11 6,96 33692 1,61

1890-1894 62

21,75

1.154:755

23,31 104

36,49

2208700

44,59 70

24,56

563817 11,38 29

10,18

232163 4,69 7 2,46

108000 2,18

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 36

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 37

1895-1899 84

22,40

1.741:323

30,93 21 5,60

869500

15,44

127

33,87

1191027 21,15 87

23,20

1018525 18,09 35 9,33

478769 8,50

1900-1904 68

25,56

1.196:686

25,89 29

10,90

1296791

28,05 86

32,33

1328042 28,73 43

16,17

428101 9,26 30 11,28

208333 4,51

1905-1909 45

16,61

435:528 9,20 70

25,83

3242750

68,49

100

36,90

597912 12,63 29

10,70

224703 4,75 15 5,54

109965 2,32

1910-1914 48

13,37

539:717 8,29 66

18,38

4429055

68,04

160

44,57

1000776 15,37 27 7,52

175278 2,69 40 11,14

238486 3,66

1915-1919 50

11,57

445:250 5,12 86

19,91

5471512

62,95

170

39,35

1609736 18,52 72

16,67

703108 8,09 37 8,56

180400 2,08

1920-1924 2 5,56 8:000 0,48 17

47,22

1264937

75,83 9

25,00

163000 9,77 3 8,33

15250 0,91 3 8,33 4600 0,28

1925-1929 46

11,98

3.164:190

20,50 31 8,07

3323000

21,52

235

61,20

6618365 42,87 38 9,90

745996 4,83 23 5,99

698373 4,52

1930-1934 11 5,67

348:900 3,95 9 4,64

1663632

18,82

100

51,55

2679712 30,31 17 8,76

281000 3,18 16 8,25

274000 3,10

1935-1939 2 5,71 85:000 8,67 0 0,00 0 0,00 12

34,29

377600 38,50 5

14,29

265000 27,02 10 28,57 43150 4,40

TOTAL757

20,67

14.582:649

19,12 446

12,18

24096377

31,59

1232

33,64

17373282 22,77 531

14,50

8295795 10,87 245 6,69

2416683 3,17

Fonte: Registros de Hipotecas – 1853/1939

Mais que isto, alguns deles aparecem inúmeras vezes nos contratos, denotando certa

especialização na função e muitos como credores de empréstimos realizados com a indústria. As

forças entre oferta e procura por recursos financeiros, além de estarem confluindo e delimitando um

espaço econômico próprio, também foram responsáveis pela transferência de recursos entre os

distintos setores da economia, um primeiro aspecto, entre outros, que utilizaremos para demonstrar

que o sistema financeiro local foi um importante espaço de captação de recursos gerados

diretamente na cafeicultura para distintas formas de investimentos industriais.

Se retomarmos nossos dados, desta feita impossíveis de serem reproduzidos aqui por sua

extensão79, podemos sintetizá-los na forma em que se segue:

Tabela 13 Transferências de Recursos entre Fazendeiros e Industriais via Mercado Hipotecário

Juiz de Fora – 1887/1926 (períodos selecionados)

Períodos Número de empréstimos Valor total 1887-1899 10 251:000$ 1912-1918 17 772:825$ 1919-1926 04 248:000$

Total 31 1.271:825$ Fonte: Registros de Hipotecas – 1853/1939

Mesmo que, obviamente, não constituam o eixo do mercado hipotecário que a cidade

construíra como resultado de suas transformações econômicas, devem ser destacados o número de

empréstimos e os valores que chegaram a representar em cada período. Além disto, para uma

historiografia que tem destacado a natureza “conservadora” e “tradicional” de sua aristocracia

cafeeira, não deixa de ser elucidativo que, no conjunto do período, foram transferidos mais de mil

contos de réis diretamente entre fazendeiros de café e a indústria apenas no mercado hipotecário,

um entre vários mecanismos que vão caracterizar a presença de um sistema financeiro local e

regional.

É importante esclarecer que nossa definição de mercado passa, necessariamente, pela

conjunção das forças de oferta e procura em um mesmo espaço econômico, sempre tendo em vista o

significado da internalização destas forças para a própria delimitação regional no caso da zona da

Mata. E a utilização deste critério não foi aleatória, uma vez que o contorno regional de mercados

79 PIRES, A. (2004). Op. cit. Tabela 84, pp. 377-383.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 38

financeiros constitui parte integrante da sua própria estruturação como um mercado específico, que

lida com os desequilíbrios temporais dos atos de troca e permuta, imanentes a qualquer economia80.

Em outras palavras, como são mercados que negociam recursos no tempo, aspectos como

confiança, garantia e segurança adquirem particular importância e vão depender necessariamente do

contexto social imediato no qual estão inseridos, uma vez que são determinados pela forma como se

dá a organização dos canais de transmissão de informações no interior da sociedade81. Em se

tratando de sociedades essencialmente pré-capitalistas, ou em transição para uma economia de

mercado, normalmente estes canais são realizados através de relações sociais diversas que podem

incluir o parentesco, a amizade ou a vizinhança, instituições informais que afiançam, na base do

conhecimento recíproco, uma relação econômica que não se efetiva no mesmo período de tempo.

Como estamos lidando com uma sociedade que ainda está constituindo uma economia de

mercado é a reputação, ou seja, a forma como a sociedade vê e avalia o indivíduo, que vai se

colocar como instrumento básico da transmissão de informações. Neste sentido, o próprio crédito

“...era um meio público de comunicação social e de circulação de julgamentos sobre o valor de

outros membros da comunidade”82. Nestas sociedades, mercados financeiros não estão apenas

“inseridos” no contexto social, uma vez que as relações sociais responsáveis pela transmissão de

informações antecedem as atividades que lhe caracterizam.

Ora, foram os delineamentos local e regional das economias (ou seja, sua limitação espacial)

que tornaram viáveis e efetivos tais instrumentos de transmissão de informações, fundamentados,

em última instância, no conhecimento recíproco83. Além disso, para surpresa de muitos, o país

constituiu entre o final do império e a Primeira República um padrão de financiamento baseado em

mercados financeiros, não naquele baseado nos bancos e sua associação com aglomerados

industriais, com forte apoio dos governos centrais na condução de financiamento de setores que

consideravam estratégicos para o desenvolvimento capitalista, que seguiu o padrão de países como

a Alemanha (modelo Gerschenkroniano)84. Este último pode, sim, ser associado com as mudanças

que ocorreram no padrão de financiamento no país a partir da década de 1930, acompanhando todas

as transformações que marcaram o processo de desenvolvimento do Brasil a partir de então85.

80 O termo “regionalidade implícita” chega a ser utilizado em algumas análises sobre o processo de formação dos mercados financeiros. Ver ODDELL, K. (1992). Capital Mobilization and Regional Financial Markets: The Pacific Coast States, 1850-1920. Garland Publishing, New York/London. 81 HOFFMAN, P.T., POSTEL-VINAY, G. AND ROSENTHAL, J-L. (2000). Priceless Markets: the political economy of credit in Paris, 1660-1870. University of Chicago Press. 82 MULDREW, C. The Economy of Obligation: The Culture of Credit and Social Relations in Early Modern England. Palgrave, NY, p. 02 83 ODDELL, K. (1992). Op. cit. HOFFMAN, P.T., POSTEL-VINAY, G. AND ROSENTHAL, J-L. (2000). Op. cit. 84 GERSCHENKRON, A. (1968). El Atraso Economico en su Perspectiva Histórica. Ariel, Barcelona. 85 MUSACCHIO, A. (2005). Law and Finance in Historical Perspective: Politics, Bankruptcy Law, and Corporate Governance in Brazil, 1850-2002. PhD. Dissertation, Stanford University.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 39

Nossa historiografia ainda desconhece estes aspectos de nossa história financeira e quando

procura características do último modelo para o período da República Velha, deixa de perceber a

existência de inúmeros mercados financeiros locais e regionais (outro componente extremamente

importante das economias regionais agroexportadoras), subestimados em função dos mercados

institucionalizados como a Bolsa do Rio de Janeiro86. Mais, como confunde a importância da

participação bancária no processo de avanço industrial necessariamente com a dotação de recursos

de longo prazo, não percebe a verdadeira importância que o sistema bancário teve nas primeiras

fases de nossa industrialização.

Em um padrão de financiamento fundamentado em mercados, guardados os devidos

amparos legais87, as poupanças acumuladas individualmente serão canalizadas predominantemente

para aquelas oportunidades de investimento que a própria economia vai criar, tendo em vista seu

maior ou menor desenvolvimento e diversificação econômica, uma vez que os canais de

informações disponíveis dependem da delimitação espacial da economia. E muitas vezes estas

transações ocorrerão fora do âmbito das organizações formais de crédito e financiamento da

economia (como bancos e outras instituições financeiras, bolsas de valores etc.) se concretizando no

contato pessoal direto entre provedores e devedores. As poupanças acumuladas individualmente e

que se mantinham dispersas encontrarão assim seus devidos canais para financiamento e

transferência de recursos dentro desta mesma economia.

Estes prestadores individuais de recursos desempenharam, portanto, um papel essencial na

economia cafeeira local, uma vez que acompanharam a própria evolução da demanda financeira de

inúmeras empresas que acabaram, por seu porte, se tornando sociedades anônimas, necessitando

muito mais de recursos de longo prazo do que aqueles de curto prazo. Para isso os instrumentos que

lançaram no mercado local, especialmente as debêntures, sempre foram bem recebidas pelos

fazendeiros de café e vão compor boa parte do portfólio de alguns. Sempre lembrando a presença

dos efeitos de encadeamento financeiros (e a tendência que provocou na demanda de crédito destes

agentes), as debêntures, como se sabe, tinham remuneração fixa, garantia legal e, além do mais,

invariavelmente eram utilizadas para investimentos no parque produtivo88.

Deve ficar claro que as empresas acionárias do município lançaram mão fartamente deste

instrumento de captação de recursos de longo prazo. Como resultado de um levantamento feito para

um trabalho anterior89, percebemos que para todas as empresas acionárias do município, no período

86 TRINER, G. (1999). “Banks, Regions and Nation in Brazil, 1889-1930.” In Latin American Perspectives. Issue 104, vol. 26, n. 01, Jan. 1999. 87 MUSACCHIO, A. (2005). Op. cit. 88 Id. Ib. PIRES, A. (2004). Op. Cit. 89 Id. Ib. Tabela 80 pp. 342-349

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 40

que compreende os anos de 1888 e 1934, o levantamento de recursos através dos instrumentos

como lançamento de ações, hipotecas e as próprias debêntures podem ser assim distribuídos:

Tabela 14 Lançamento de títulos por parte de empresas acionárias no município de Juiz de Fora

(1888/1934) Título Valor % frente ao Total Ações 19.123$772 65,22

Debêntures 8.342:000$ 28,45 Hipotecas/outros 1.851:780$ 6,31

TOTAL 29.317:552 99,98 Fonte: Jornais, Relatórios e Balanços de Empresas – 1888/1934

Mesmo longe de constituírem os principais agentes financiadores neste mercado, alguns

exemplos tópicos podem nos dar uma idéia da importância destes instrumentos para a transferência

de recursos diretamente da cafeicultura para a indústria. No inventário de Carolina de Assis90,

esposa de um dos acionistas majoritários da Companhia Mineira de Eletricidade, ele próprio grande

fazendeiro de café, a propriedade de debêntures da Companhia é extremamente alta, chegando ao

todo a 635 debêntures, atingindo um valor total de 82:944$000, um valor por si mesmo bastante

considerável. Outro inventário de fazendeiro que possui uma participação significativa em

debêntures é o do cel. João Gualberto de Carvalho91, que possuía 300 debêntures da Companhia

Fiação e Tecelagem Bernardo Mascarenhas, num total de 100:000$000, além de mais 100

debêntures da Companhia Americana (20:000$000) e 10 da Companhia Fiação e Tecelagem São

Vicente (com valor nominal de 1:000$000 cada uma), totalizando 10:000$000. No total, o valor das

debêntures de sua carteira de títulos somava 130:000$000, ou 98,48% de seus ativos financeiros.

Também no patrimônio de Pedro Procópio Rodrigues Valle92, encontramos a presença de

100 debêntures da Companhia Têxtil Bernardo Mascarenhas (19:500$), o mesmo ocorrendo para

alguns grandes capitalistas da cidade, como Gabriel Villela de Andrade. Em seu inventário93, na

relação de títulos sonegados (há inúmeros outros ativos financeiros) encontramos um total de

485:000$ empatados em debêntures, assim distribuídos: 150 da Companhia Moraes Sarmento

(150:000$); 668 da Companhia Mineira de Eletricidade (66:800$); 377 da Bernardo Mascarenhas

(186:600$); 30 da São Vicente (30:000$) e 230 da Companhia Santa Cruz (46:000$).

Na falência da Companhia Americana, ocorrida em 1937, temos outra idéia efetiva do que

pode ter representado o investimento de fazendeiros de café no financiamento de empresas

90 Inventário - Id 2389 - 1913 91 Inventário – Id. 3626 - 1928 92 Inventário – Id. 4656 - 1937 93 Inventário – Id. 4410 - 1935

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 41

industriais. No Quadro Geral dos Credores Admitidos à sua falência94, percebemos que o Dr.

Francisco Ignácio Monteiro de Andrade, com patrimônio nitidamente vinculado à riqueza agrária

(foi proprietário da Fazenda São Luiz em Sarandira)95, possuía isoladamente 76% das debêntures da

1a série emitidos pela Companhia e 80,71% das debêntures da 2a série. Conjuntamente com um

crédito privilegiado presente na mesma falência, provavelmente hipotecário, o valor total de seus

recursos empatados na fábrica chegava a 280:799$ ou aproximadamente 75,57% do total da massa.

É importante notar que o mesmo investidor participou durante vários anos como membro do

conselho fiscal da Companhia, se tornando acionista em 1933, o mesmo ano em que é colocado

como um de seus diretores96. Além disto, tinha sido presidente da Companhia Santa Cruz e da

Companhia de Laticínios de Juiz de Fora, ainda em 191397.

Já no mercado de ações a presença dos fazendeiros é maior ainda. Transpunha o setor

industrial e sua presença nos inventários dos grandes produtores de café é bem anterior. Empresas

representativas de setores econômicos inteiros foram organizadas por fazendeiros de café, o que

inclui a rodovia União e Indústria, a fase inicial da construção de ferrovias, o próprio Banco de

Crédito Real, o fornecimento de energia elétrica etc. No setor especificamente industrial podemos

destacar empresas como: Cia. Chimico Industrial Mineira, Cia. Mechanica Mineira, Cia.

Construtora Mineira, Cia. Laticínios de Juiz de Fora, Cia. Têxtil Santa Cruz, Cia. Indústrias

Reunidas, Cia. São Vicente (têxtil), Cia. Dias Cardoso, Cia. Laticínios Santa Amélia, S.A. Fábrica

de tecidos São João Evangelista, Sociedade Brasileira de Tecidos, Fábrica Santa Maria, entre

outras. A relação dos fazendeiros de café com o mercado acionário no município sempre fora muito

próxima e o capital agrário fluiu abundantemente para ele, até pelo menos a Primeira Guerra

Mundial98.

A cafeicultura local e regional, na proporção e importância que possuía na distribuição

mundial da oferta do produto, gerou as condições mais importantes para a estruturação de um

sistema financeiro na região, na forma em que foi definido. Em primeiro lugar, porque foi esta

mesma cafeicultura que permitiu, como parte de sua evolução estrutural interna e transição

capitalista, que os inúmeros setores urbano-industriais pudessem avançar em suas escalas de

operações, reorganização institucional interna e a conseqüente transformação de sua base de

investimentos do universo de curto para aquele de longo prazo. E, em segundo lugar, como um dos

setores mais importantes de formação de recursos disponíveis para investimentos na economia, com

94 Gazeta Comercial 07/07/1937 95 PROCÓPIO FILHO, J. (1979). Salvo Erro ou Omissão: gente juiz-forana. Edição do Autor, Juiz de Fora, p. 120. 96 Gazeta Comercial 06/06/1933 97 PROCÓPIO FILHO, J. (1979). Op. cit. p. 120 98 ALMICO, R. (2001). Fortunas em Movimento: Um Estudo das Transformações da Riqueza Pessoal em Juiz de Fora – 1870/1914. Op.cit.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 42

seu delineamento social próprio condicionado pelos encadeamentos financeiros e a confluência que

manteve em relação aos novos instrumentos de poupança e investimentos que surgiam.

O capital originado por provedores individuais identificados com a cafeicultura constituiu

um dos mais importantes componentes da oferta de recursos financeiros dos diversos mercados que

vão compor o sistema financeiro local: o de hipotecas, o mercado de debêntures e outros títulos

industriais, e o mercado acionário, todos com a devida delimitação local e regional. A consideração

dos provedores individuais de recursos meramente como usurários, “rentiers” ou agiotas (que ainda

permeia boa parte de nossa historiografia) precisa ser revista, uma vez que foram responsáveis por

um importante canal de transferência direta do capital cafeeiro especificamente agrário para o setor

industrial. E o caso da Zona da Mata vem secundar aquelas visões mais recentes que têm

reinterpretado o comportamento sociológico e econômico de grandes proprietários de terra perante

processos que implicam em uma maior presença da moeda e dos mercados na sociedade99.

No entanto, o financiamento industrial por parte do Banco de Crédito Real assumiu tamanha

proporção que merece alguns comentários aqui. Para a tendência interpretativa que estamos

criticando aqui, a relação entre bancos e indústria no período é veemente negada, uma vez que

enfatizam a crônica ausência de recursos bancários de longo prazo para o financiamento industrial.

Esta posição já pode ser relativizada, ao menos para o caso de Juiz de Fora, já que entre os

inúmeros empréstimos hipotecários do Banco, alguns se destinam para o setor industrial, mesmo

que, na verdade, não constituam a tônica dos empréstimos100. Por outro lado, o acesso de empresas

industriais a recursos de longo prazo não perpassava necessariamente, como visto, pelo sistema

bancário, mas pelo mercado financeiro e os distintos instrumentos de crédito e financiamento que

negociavam.

Deve ser lembrado que estamos lidando com um centro industrial “secundário” frente aos

grandes centros do país. Juiz de Fora, como já observado, mantinha uma estrutura industrial que se

marcava pelo pequeno e médio porte de suas fábricas, em que pese o crescimento considerável de

várias empresas. Uma vez que em parques industriais marcados pelo predomínio de pequenas e

médias unidades a estrutura do capital se marca pelo maciço predomínio do capital circulante em

relação ao capital fixo, a tônica de sua demanda de financiamento está no crédito de curto prazo,

realizado através de conta corrente, letras, notas promissórias e outros instrumentos, criando uma

cadeia de débitos que muitas vezes se rompia abruptamente, com falências generalizadas101. Além

99 Ver, entre tantos, DEWALD, J. (1996). “The Ruling Class in the Marketplace: Nobles and Money in early Modern France.” In HASKEL, L. and TEICHGRAEBER, R. The Culture of the Market. Cambridge University Press. 100 PIRES, A. (2004). Op. cit. 101 COTTRELL, P.L. (1993). Industrial Finance 1830-1914: The Finance and Organization of English Manufacturing Industry, Gregg Revivals, Vermont. CAMERON, R. (1992). Financing Industrialization. Edgard Elgard/Cambridge University Press. ROTHEMBERG, W. (1985). “The Emergence of a Capital Market in Rural Massachusetts, 1730-1838.” In The Journal of Economic History. Vol. XXII, December. NEAL, L. (1997). “The

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 43

disto, são conhecidos os problemas de liquidez e de ausência de circulação monetária na economia

do período102. Em ultima instância, o que circulava na economia seriam papéis representativos de

valor, promessas de pagamento a serem realizadas no futuro.

Em um ambiente como este, a liquidez necessária para o pleno funcionamento dos circuitos

de crédito e pagamento final das obrigações vai depender em grande parte dos bancos, que tinham,

na época, justamente no desconto de títulos de curto prazo o fundamento de suas operações103. Se

associarmos este aspecto ao padrão de acumulação industrial típico do período, que implicava na

retenção de lucros para futuros investimentos e crescimento das firmas, percebemos que as

operações de descontos bancários vão se colocar como base do financiamento e evolução industrial

do município, permitindo inclusive que muitas delas saíssem de uma escala quase manufatureira

para unidades industriais imensas 104.

Tabela 15 Evolução dos Depósitos, Letras Descontadas e Hipotecas - Banco de Crédito Real

1891-1925 ANO DEPÓSITOS LETRAS

DESCONTADAS HIPOTECAS

1891 34:900$ 14:662$ 1.216:933$ 1899 2.740:794$ 1.390:900$ 2.002:426$ 1905 11.436:716$ 1.208:497$ 2.009:047$ 1915 15.024:570$ 19.645:385$ 3.673:938$ 1920 20.972:108$ 15.833:142$ 3.182:986$ 1925 67.194:875$ 40.173:556$ 3.426:994$

Fonte: Relatórios do Banco de Crédito Real – diversos anos

Os dados das tabelas 15 e 16 demonstram, respectivamente, o crescimento brutal das

operações do Banco de Crédito Real com a operação de descontos e a amplitude e variedade que

estas operações vinham ocorrendo no mercado local e regional, em especial com firmas industriais

(muitas podendo ser consideradas de pequeno ou médio porte). É de se destacar que lidamos com

Finance of Business during Industrial Revolution.” In FLOUD, R. and McCLOSKEY, D.N. The Economic History of Britain since 1700. Cambridge University Press, Vol. 1. 102 VILLELA, A. e SUZIGAN, W. (1973). Política do Governo e Crescimento da Economia Brasileira. IPEA, Rio de Janeiro. RIDDINGS, E. (1994). Business Interest Groups in Nineteenth-Century Brazil. Cambridge University Press. 103 “(...) As notas promissórias ou letras assinadas pelos varejistas, mesmo no auge da movimentação financeira [do Encilhamento], continuaram sendo o ativo mais negociado na economia e a operação de desconto a mais importante no mercado bancário (...).”LEVY, M.B. (1994). A Indústria do Rio de Janeiro através de suas Sociedades Anônimas. Ed. UFRJ, p. 150. Ver também TRINER, G. (1996). Banks and Economic Development: 1906-1930. PhD Thesis, Columbia University; HANLEY, A.G. (1995). Capital Markets in the Coffee Economy: financial institutions and economic change in São Paulo, Brazil, 1840-1905. PhD. Dissertation, Stanford University. 104 PIRES, A. (2004). Op. Cit. Temos outros dados retirados exclusivamente do Livro de Atas das Reuniões da Diretoria do Banco de Crédito Real que também demonstram ampla articulação do Banco com o setor industrial através de operações diversas. Ver Id. Ib. Tabela 71 pp. 297-299

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 44

fontes que forneceram informações particularmente úteis para a compreensão do passivo das

indústrias, em especial as falências105 e os bancos estão presentes na quase totalidade dos casos. Por

outro lado, em 1926, Juiz de Fora contava com uma estrutura bancária bastante diversificada, o que

incluía a matriz do Banco de Crédito Real e da Casa Bancária Dias Cardoso, além das filiais do

London and Brazilian Bank, do Banco Pelotense, Banco de Crédito Hipotecário e Agrícola de

Minas Gerais e do Banco do Brasil, demonstrando a posição do município como centro financeiro

da hierarquia urbana que caracterizava a Zona da Mata.

Tabela 16 Relação entre Bancos e Algumas Indústrias em Juiz de Fora – Períodos Selecionados

Ano Indústria Operação Banco 1891 Bernardo José de

Castro Letra Banco Territorial e

Mercantil 1891 Cia. Chímico Industrial

Mineira Conta Corrente Banco de Crédito Real

1899 C. T. Bernardo Mascarenhas

Conta Corrente Banco de Crédito Real

1899 Cia. Construtora Mineira

Conta Corrente Banco de Crédito Real

1900 Corrêa e Corrêa Letras Banco de Crédito Real 1901 Bernardino Gomes de

Figueiredo (Fábrica de Cerveja)

Letra Banco de Crédito Real

1906 José Eloy Araújo (Fábrica de Sabão)

Conta Corrente Banco de Crédito Real

1912 Pedro Antônio Freez Conta Corrente Banco de Crédito Real 1915 Antônio Meurer Nota promissória Banco de Crédito Real 1916 Costa e Irmão Conta corrente Banco de Crédito Real 1916 C.T. Bernardo

Mascarenhas Conta corrente Banco de Crédito Real

1916 Cia. Fabril de Juiz de Fora

Conta Corrente Banco de Crédito Real

1916 Cia. F. T. Moraes Sarmento

Hipoteca Banco de Crédito Real

1918 Fábrica Stiebler Conta corrente (saldo em bancos)

Banco de Crédito Real e outros (?)

1919 Viúva Tortoriello e Irmão

Conta corrente Conta Corrente

Cia. Dias Cardoso Banco de Crédito Real

1920 Jorge, Irmão e Couri Conta corrente Banco do Brasil 1920 Estamparia Universal Conta corrente Banco de Crédito Real 1920 Renato Dias e Cia. Conta Corrente

Conta corrente Cia. Dias Cardoso Banco de Crédito Real

105 Uma autora já afirmou que “(...) talvez a melhor forma de discernir a próxima conexão entre os bancos e as indústrias seja através das falências industriais...” LAMOREAUX, N. (1986). “Banks, Kinship and Economic Development: the New England Case”. In Journal of Economic History. Vol. XLVI, n. 3. p.685

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Conta corrente Conta corrente

Banco Hipotecário e Agrícola de MG Banco do Brasil

1921 Francisco Nataroberto Nota promissória Nota promissória

Banco Pelotense Banco do Brasil

1922 Oscar Rodrigues e Irmão

Conta corrente e Obrigações Obrigações

Banco de Crédito Real Banco Pelotense

1926 Indústrias de Malha São Pedro

Promissórias Promissórias Conta corrente Promissórias Conta Corrente

Banco Hipotecário e Agrícola Banco do Brasil Cia. Dias Cardoso Banco Pelotense Banco Pelotense

1927 Borges de Mattos e Cia.

Conta corrente Banco de Crédito Real

1929 Álvaro Izento Conta Corrente Banco Pelotense 1931 Jorge Miguel e Irmão Conta corrente

Conta corrente Banco Pelotense Bank of London

1931 Cia. Mercantil de Juiz de Fora

Conta corrente Conta corrente Conta corrente

Bank of London Banco Hipotecário e Agrícola de MG Banco Pelotense

Fontes: Inventários e Falências – Vários anos. Apud PIRES, A. (2004). Op. Cit. Tabela 70 p. 295

Neste contexto local e regional não é um exagero fazer uma analogia com os Bancos

Regionais e o que representaram no financiamento das primeiras fases da industrialização106: são

verdadeiros motores de crédito, sem os quais o processo de industrialização e transição capitalista

não se efetivaria na cidade e região.

106 COTTRELL, P.L. (1993). Industrial Finance 1830-1914: The Finance and Organization of English Manufacturing Industry. Op. cit. CAMERON, R. (1992). Financing Industrialization. Op. cit. NEAL, L. (1997). “The Finance of Business during Industrial Revolution.”. Op. cit.

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4. CONCLUSÃO

Esperamos ter reunido neste artigo fatos e argumentos suficientes para uma reavaliação da

posição que a economia cafeeira de Minas ocupou no contexto do país no período aqui em vigor.

Sua notória delimitação como espaço econômico (como uma região), o comportamento singular de

seu ciclo produtivo e dinâmica de produção agroexportadora, a organização das relações de

produção no pós-abolição, a natureza específica de seu processo de industrialização, de expansão

comercial e financeira, denotam uma variação estrutural e setorial que refletia, na verdade, a

internalização e retenção de boa parte dos fluxos de recursos gerados em sua produção em seu

espaço próprio.

A reinversão destes recursos na própria economia local implicou na formação de circuitos

comerciais e financeiros, que além de se completarem internamente, permitiram que esta realizasse

à sua forma a transição capitalista. Mais ainda, esta circularidade no fluxo dos recursos regionais

garante sua devida classificação como um complexo agroexportador, específico quando lembramos

suas limitações estruturais como economia exportadora interiorana (não apenas no sentido da

ausência de um porto, mas também por seu núcleo urbano não coincidir com a capital) que lhe

impõe uma condição periférica no quadro de outros complexos do país.

Já como base de uma cadeia global de mercadorias, onde a Mata se colocou como uma das

principais regiões da oferta mundial, em que pese o papel central desempenhado pelo porto do Rio,

deve ser destacada a transferência de seu eixo de produção do Vale do Paraíba para a zona da Mata,

com a devida permanência da importância deste porto na comercialização mundial de café.

Seja como for (e esta e nossa proposta fundamental), abrem-se importantes instrumentos

teórico-metodológicos para uma reavaliação historiográfica e o delineamento de um modelo que

consiga explicar a dinâmica e o comportamento da economia cafeeira de Minas, parte integrante

bem mais significativa, queiramos ou não, da formação histórica do estado e das economias

regionais de exportação existentes no país no mesmo período.

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Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 48

CERVEJA E AGUARDENTE SOB O FOCO DA TEMPERANÇA NO BRASIL, NO INÍCIO DO SÉCULO XX

Teresa Cristina de Novaes Marques*

O alcoolismo brasileiro é, pois, essencialmente, o aguardentismo das classes pobres.

[jornal O Imparcial, Rio de Janeiro, 25/12/1928.] Resumo: Este ensaio explora a pluralidade dos discursos e práticas sobre as bebidas alcoólicas presentes no meio social brasileiro nas primeiras décadas do século XIX. De posições extremas condenando o consumo de álcool indistintamente, a posições de extrema tolerância, percebe-se que a cerveja superou os críticos e se afirmou simbolicamente como bebida cujo consumo é legítimo e, até mesmo, recomendável. O embate entre a cerveja e aguardente teve como pano de fundo a projeção da elite pensante de qual seria o futuro da nação, a despeito da sua notória e indesejável miscigenação. Neste futuro, a cerveja ocupou um lugar simbólico destacado, como bebida industrial, higiênica. Mesmo os mais severos críticos do consumo de álcool saudaram a difusão do consumo de cerveja como um mal menor em face do aguardentismo dos pobres a lembrar a todos, teimosamente, o passado escravista recentemente encerrado. Para isso, examinamos os componentes ideológicos dos discursos pró-temperança, a reação esboçada pelas cervejarias a esse movimento e, por fim, a presença da aguardente e da cerveja nas práticas de lazer popular na cidade do Rio de Janeiro. Palavras-chave: propaganda anti-álcool, consumo popular, cerveja. Abstract: This article examines a number of discourses and social practices on alcoholic habits present in Brazilian social milieu at the first three decades of twentieth century. Some people defended the prohibition of alcohol consume, others had tolerant position in face of the question. We understand beer surpassed alcohol critics and achieved a symbolic position of a legitimate beverage. The struggle between sugarcane alcohol and beer is inserted in a larger question of the desired future of the nation, in spite of its shaking racial mixture. Even the most severe alcohol critics praised the widespread of beer consume, while the sugarcane alcohol remained as a vivid memory of the recent slave past. Keywords: temperance propaganda, popular consume habits, beer.

1. A TEMPERANÇA E O OLHAR DA ELITE SOBRE O POVO E A CERVEJA

Entre a década de 1870 e o início dos anos 1930 o consumo de bebidas alcoólicas foi alvo de

severas críticas em várias partes do mundo ocidental. Nos EUA, o movimento pró-temperança

alcançou o ponto máximo com a proibição legal da venda e produção de bebidas alcoólicas em

* Professora do Departamento de História da Universidade de Brasília.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 49

1919.1 A chamada Lei Seca resultou de intensa mobilização de diversos setores da sociedade norte-

americana, inicialmente articulada por grupos religiosos e, posteriormente, disseminada por um

conjunto maior de forças políticas.2 No Brasil, a campanha pró-temperança assumiu contornos

ideológicos próprios, cerrando fogo contra os hábitos de consumo da população pobre e mestiça,

condenando especialmente o uso da aguardente de cana. O debate em defesa da temperança se

dividia entre os partidários da moderação do consumo e, para alguns poucos ativistas, a abolição

total do consumo de bebidas alcoólicas no país. A cerveja e as cervejarias também foram alvo de

críticas do movimento temperante, mas esta bebida passou a ser tratada como um mal menor em

face das bebidas destiladas, de maior teor alcoólico.

O trecho retirado do jornal carioca O Imparcial, citado na abertura deste ensaio antecipa a

idéia que pretendemos desenvolver aqui: as cervejarias no Brasil, a despeito das críticas que os

participantes do movimento pró-temperança lançaram aos seus produtos, conseguiram superar com

folga a ameaça política vinda deste grupo. Em sua defesa, foram usados argumentos acerca das

propriedades alimentares da bebida, a exemplo do que ocorria em muitos outros países, como nos

EUA. Também foi invocado o seu menor teor de álcool, comparativamente a bebidas não-

fermentadas. Entretanto, idéias ainda mais poderosas do que essas, e mais permanentes,

contribuíram para garantir a presença legítima da cerveja nos hábitos de consumo do brasileiro. As

idéias que conquistaram o consumidor apareceram revestidas, primeiro, com a imagem construída

de bebida industrial, fruto de modernas técnicas de produção desenvolvidas na Europa. Em outros

termos, a cerveja seria um produto associado simbolicamente à idéia de civilização industrial.

Segundo, formou-se a imagem da cerveja como bebida de consumo de massa desprovida do

estigma social da aguardente, lembrada como a bebida de predileção dos escravos e, naqueles dias,

apontada como o vício degradante da população pobre urbana e mestiça, razão da sua exclusão

social. Há, portanto, forte componente racial nos discursos pró-temperança, bem como a projeção

do futuro da nação, onde o progresso industrial tomaria o lugar do atraso do passado escravista.

Nessa época, o movimento temperante ganhou força no Brasil pela atuação de médicos

higienistas, advogados, jornalistas, sindicalistas, parlamentares, feministas de direita,3 feministas

1 A 16 de janeiro de 1919, a 18a. emenda à Constituição dos Estados Unidos foi ratificada por 36 estados, tornando proibida a produção e comercialização de bebidas alcoólicas em todo o país. Um ano depois, a medida entrava em vigor. [BARON, Stanley. Brewed in America. The History of Beer and Ale in the United States.Boston: Little, Brown & Co, 1963; MILLER, Carl. Breweries of Cleveland. Cleveland: Schnitzelbank Press, 1998.] 2 BARON, Stanley (1962), Op. Cit.. 3A exemplo de Jerônima Mesquita, ativa colaboradora da líder feminista Bertha Lutz e filha do Barão de Mesquita. Jerônima presidiu a União Brasileira pró-Temperança a partir de 1925 e permaneceu à frente da entidade até 1950. A União funcionou paralelamente à Liga Brasileira de Higiene Mental, tendo as duas entidades muitas vezes realizado atividades em conjunto. A União surgiu no Rio de Janeiro, no final da década de 1894, pela iniciativa de uma cidadã norte-americana, chamada Watts. Embora contasse com a colaboração de médicos associados, apenas mulheres tinham direito de voto nas assembléias da União. Qualquer reunião era precedida pela leitura do voto de compromisso dos associados, que dizia assim: Confiando no auxílio de Deus, prometo me abster do uso de todas as bebidas alcoólicas, inclusive o vinho e a cerveja, e a promover com empenho, em todo o território da minha pátria, o movimento contra o

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anarquistas.4 Foi quando a sociedade brasileira viu surgir de toda parte discursos condenando o

consumo de álcool pela população. A variedade dos discursos nos obriga a buscar traçar os matizes

ideológicos do movimento pró-temperança nos apoiando na produção histórica sobre as propostas

de controle social em disputa no campo político brasileiro na Primeira República.

A propaganda pró-temperança foi o ponto auge de um movimento intelectual que teve raízes

nos anos 1870 com a difusão do cientificismo, ou crença no papel da ciência como instrumento para

explicar o comportamento dos indivíduos e garantir as bases para a formulação de políticas de

intervenção na ordem social. As décadas seguintes acentuaram o mal estar das elites com as

mudanças em curso nas formas de convivência com o povo, fruto do crescimento da população nas

cidades. A inusitada proximidade com as multidões, conseqüência da urbanidade, causava

preocupação e desconforto.

Entre os juristas, ganhou dimensão de certeza associar alcoolismo à criminalidade; o

primeiro sendo causa necessária da segunda. No entanto, os criminalistas disputavam entre si a

forma de o Estado intervir no meio social para coibir essa, e outras práticas sociais. No tratamento

da questão do crime, prevaleceu entre nós a influência da escola criminal italiana, a qual, baseada

na antropometria, descrevia os indivíduos, suas características psicobiológicas e suas propensões

criminais. Centrava neles, e não apenas no meio social, o alvo das políticas repressivas. Assim, pela

escola italiana, alguns grupos foram descritos a partir de suas características exteriores como

potencialmente perigosos para o convívio social. Estava em curso a construção de estigmas

negativos a distinguir os indivíduos passíveis de sofrerem maior vigilância: os negros, os

estrangeiros, os alcoolistas, os epiléticos, os alienados, os sifilíticos, os toxicômanos, e as

prostitutas.5

A outra vertente do pensamento criminológico, originada na França, preconizava a atenção

sobre as práticas coletivas, em detrimento dos indivíduos. Esse modo de ver o crime resultava em

políticas de intervenção sobre o meio ambiente social, como a regulamentação sanitária da

prostituição e contou com a adesão de muitos membros da classe médica.6 No Brasil, essa forma de

intervenção teve seus simpatizantes, mas acabou perdendo espaço para as políticas fundamentadas

na escola italiana, principal inspiração para as práticas repressivas policiais. Não foi o caso da

campanha pró-temperança que foi concebida nos moldes da escola higienista francesa e pretendia

instituir mecanismos de controle mais amplo sobre o comportamento da população pobre urbana.

Este foi o fundamento ideológico que deu suporte a projetos de lei apresentados no Parlamento, à

álcool, o jogo, a loteria, o fumo e outros males sociais. [União Brasileira pró-Temperança. Seleção de contribuições anti-alcoólicas, 1925-1950. Rio de Janeiro: Rodrigues & Cia., 1954.] 4 A exemplo de Maria Lacerda de Moura. [DULLES, John F.. Anarquistas e Comunistas no Brasil, 1973, pág. 248, nota nº 27.] 5 CANCELLI, Elizabeth. A cultura do crime e da lei, 1889-1930. Brasília: Universidade de Brasília, 2001. 6 Idem, capítulo IV.

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maciça campanha na imprensa, nos locais de trabalho, nas escolas e, a partir dos anos 1930, também

no rádio.

Embora a campanha pró-temperança se dirigisse a toda a população, seu impacto foi mais

intenso sobre a população negra, na qual, por força de hábitos culturais e em decorrência da

situação de miséria a que estava confinada, grassava o consumo de álcool e a incidência elevada de

doenças. O consumo desregrado de álcool se somava a outros estigmas sociais que já

sobrecarregavam a imagem da população negra na sociedade brasileira.

A tornar mais efetivo o estigma da degenerescência que recaía sobre os negros estava a

visibilidade do comportamento desviante.7 Por certo, não há como ocultar o estigma social da cor

da pele e da pobreza, porém, se a esses traços se acrescentar o alcoolismo, a identidade de todo o

grupo objeto de estigma fica invariavelmente comprometida pela marca da distinção negativa. Esse

processo de incorporação simbólica foi tão profundo que membros da própria comunidade negra

assumiram o discurso normativo da elite branca e condenaram, na sua imprensa, os maus hábitos

atribuídos à população de origem africana: o uso profuso de bebidas alcoólicas e o jogo.8

Dois grupos sociais, em particular, se destacaram na condenação ao alcoolismo: os

advogados e os médicos. Essa bandeira da condenação ao consumo de bebidas alcoólicas foi

empunhada por numerosos juristas em seus tratados de Direito, palestras e artigos nos jornais. No

entanto, os médicos higienistas agiam de forma bastante articulada e até mais eficiente do que os

advogados, embora, por vezes, os dois grupos atuassem de forma conjunta. Entre os médicos, havia

a convicção de que o alcoolismo se associava à degeneração da raça.

Pensando dessa forma, dentre os grupos de pressão que ocuparam o campo político do

movimento pró-temperança no início do século XX os médicos higienistas tiveram maior poder

para propor políticas públicas de intervenção social buscando coibir o consumo de álcool. Já

haviam estado em evidência no auge das políticas de saneamento urbano e de combate a epidemias

implementadas na virada do século. Políticas essas que resultaram na completa transformação do

espaço urbano do Rio de Janeiro e no afastamento da população carioca do centro da cidade.

Encontraram na temperança, que se associou ao movimento pró-eugenia, uma nova motivação para

a ação política. Motivação esta que os trouxe ao centro do debate político sobre o controle social,

desta vez com um novo repertório de propostas. 9

7 GOFFMAN, Erving. Estigma. Notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: Zahar, 1978, pág. 65. 8 O historiador norte-americano George Reid Andrews chama a atenção para a regularidade com que artigos condenando vícios como o alcoolismo e o jogo apareciam na imprensa negra em São Paulo. [ANDREWS, G. R.. Blacks and Whites in São Paulo, 1888-1988, Madison: The University of Wisconsin Press, 1991, pág. 78.] 9 SCHWARCZ, Lilia. O espetáculo das raças. Cientistas, instituições e questão racial no Brasil, 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

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Dada à formação do povo brasileiro, reconhecido pelos higienistas como fruto da

mestiçagem, a redenção do povo requeria a intervenção direta do saber médico para promover

medidas de seleção social que permitissem o aprimoramento da população, uma vez que os médicos

viam a si mesmos como tutores da sociedade brasileira.10 Outra forma de aprimorar a matriz racial

do povo seria promover o ingresso de imigrantes europeus, mas a experiência com a imigração não

trouxera os resultados que a elite imaginara nos anos 1870, quando começou a discutir seriamente

como realizar esse projeto. Décadas de convivência com o movimento sindical, especialmente, com

o anarquismo trazido pelos imigrantes, arrefeceram o entusiasmo com a idéia da imigração

redentora da raça brasileira.

Entre meados da década de 1910 e os anos 1920 mais um elemento foi acrescentado à

agenda política pró-temperança: as teses em prol da eugenia da população. Propunham a

instauração de políticas públicas para limitar os casamentos como forma de depurar o estoque racial

e partilhavam com os higienistas a convicção de que era preciso promover políticas para aprimorar

a raça. Por isso vinham a público propor medidas para limitar a capacidade reprodutiva da

população, endereçadas aos mesmos grupos que já recebiam a carga de estigma negativo como

elementos degenerados e perturbadores da ordem social.11 Novamente, os negros, os estrangeiros,

os epiléticos, as prostitutas, e toxicômanos.

Alguns anos mais tarde, o pensador social conservador Oliveira Viana elaborou de forma

mais sistemática o diagnóstico sobre a incapacidade de o estoque racial brasileiro possibilitar o

surgimento de uma nação civilizada.12 Com a nacionalidade ameaçada pela degeneração psíquica

da raça, para a qual o consumo de álcool tinha sua parcela de contribuição, cabia às elites promover

políticas de intervenção na realidade mestiça do povo. Seu pensamento era claro ao estabelecer uma

correlação altamente provável entre as raças e os tipos psicobiológicos, com seus respectivos

temperamentos característicos e propensões patológicas. O homem negro, para Viana, era propenso

à instabilidade temperamental, sendo capaz de oscilar entre a extrema generosidade e solidariedade

entre seus pares, e a cólera violenta. Já o índio era propenso à esquizofrenia de modo acentuado. Os

mestiços, escreveu Viana, ainda demandavam observação atenta e científica para se encontrar seu

padrão provável de comportamento.

10 Idem. 11 GOFFMAN, E., Op. Cit. Um reflexo da discussão travada no seio da elite brasileira em torno de teses eugênicas é encontrado no projeto de lei apresentado pelo deputado Marcondes Filho, em novembro de 1928. Previa o texto que fosse exigido exame pré-nupcial aos nubentes, com propósito, sobretudo, de controlar a propagação da sífilis. Seus colegas de Parlamento argumentaram em favor da extensão do exame para os usuários de bebidas alcoólicas, embora reconhecessem as dificuldades técnicas inerentes à operação. [Diário do Congresso Nacional, 14/11/1928.] 12 Trata-se do livro Raça e assimilação, publicado em 1932, embora o assunto tenha sido explorado pelo autor em artigos publicados na imprensa nos anos anteriores. [VIANA, Oliveira. Raça e assimilação. São Paulo: Editora Nacional, 1932.]

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O pensamento de Oliveira Viana conferia sistematicidade às reflexões que diversos setores

da sociedade vinham fazendo sobre o papel da raça na construção da nacionalidade brasileira.

Estava alicerçado em teses consideradas científicas e em propostas de pensamento político de

fundamento autoritário. O movimento pró-temperança alimentou-se desse debate, e ao mesmo

tempo, colocou sob severa crítica as práticas de lazer da população pobre. Vejamos os passos dados

por seus ativistas e a reação das cervejarias à ameaça que recaía sobre a legitimidade de seus

produtos.

2. A CERVEJARIA BRAHMA EM MEIO A PRESSÕES TEMPERANTES

Encontramos a menção mais remota à existência de uma entidade civil voltada para a propaganda

anti-álcool em um pequeno livro editado pela Brahma a fim de ser distribuído ao público visitante

da Exposição Nacional de 1908, comemorativa do centenário da abertura dos portos. Esta

Exposição foi organizada junto ao morro do Pão de Açúcar, na Praia Vermelha, onde a Brahma

montou um bar em estilo art-déco. O livro fora escrito por um certo Dr. Pires de Almeida,

identificado como médico higienista, apresentado na folha de rosto do livro com amplas credenciais

de serviços prestados à saúde pública.13

Almeida se refere explicitamente a uma agremiação formada por médicos, chamada 'Liga contra o

álcool', que propunha a limitação do consumo de bebidas.14 Em resposta, o autor levantou a idéia da

baixa toxidade da cerveja, comparativamente às outras bebidas disponíveis no mercado. Descreveu

a cerveja como dotada de qualidades alimentares, atributo inexistente nas bebidas destiladas,

especialmente na cachaça.

A cervejaria Brahma surgiu no livro do Dr. Almeida como uma empresa cuja produção era baseada

em princípios científicos, cercada de amplos cuidados de higiene, em contraste com o manuseio

descuidado a que as outras bebidas eram submetidas. Reforçando a idéia do padrão científico de

13 Assim está escrito: Ex-Delegado e Vacinador da Junta Central de Higiene, nas Freguesias de Inhaúma, Irajá e Jacarepaguá; membro da extinta Junta Central de Higiene, sucessivamente Inspetoria Geral de Higiene e Assistência Pública; aposentado da atual Diretoria de Higiene Municipal; e higienista da comissão incumbida de estudar as cinco localidades indicadas para a escolha da nova capital do Estado de Minas Gerais, em 1892. [Dr. Pires de Almeida. A Companhia Cervejaria Brahma perante a indústria, o comércio e a higiene. Sem editora, 1908..] Nota técnica: este livro não apresenta data de edição. Contudo, existem elementos suficientes para afirmar que foi editado para a Exposição de 1908. Primeiro, consta dele uma lista dos produtos da Brahma, inserida em uma das partes do livro, que não contém a cerveja Fidalga. Sabe-se, com segurança, que esta marca foi lançada em julho de 1914. A segunda prova de que o livro é anterior à Guerra está em uma menção, feita pelo redator do esboço do livro do cinqüentenário, ao fato de o livro ter sido elaborado visando àquela Exposição, e distribuído no seu decorrer. [Brahma de 1894 a 1934; Arquivo Brahma, cx. 95, português.] 14 Dr. Pires de Almeida , Op. Cit.; pág. 25.

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produção, o autor lembrou que os fundamentos técnicos da produção provinham do know-how

acumulado na experiência alemã de produção de cerveja, como se lê no trecho a seguir:15

Todas estas delicadas transformações que vão aqui resumidas se guardam e observam no fabrico de diferentes marcas da Cervejaria Brahma, sendo que a elas presidem dois químicos de nomeada, ambos igualmente abalizados e um dos quais dirigiu, no caráter de diretor-técnico, uma das mais afamadas cervejarias da Alemanha.

É de fundamental importância o detalhe da menção à Alemanha, o que fazia da Brahma uma

herdeira das tradições da indústria cervejeira daquele país. Foi esta a última vez em que este

atributo foi invocado para construir a imagem positiva da empresa. Face à experiência política

vivida durante a I ª Guerra, quando sua nacionalidade foi posta em xeque em ataques vindos de

várias frentes, discursos como o do Dr. Pires de Almeida foram abandonados.

A despeito do tom otimista do folheto da Brahma, há indícios de que não era pacífica a idéia de ser

a cerveja uma bebida alcoólica inofensiva. Isso porque, no seu esforço para definir como coibir os

abusos do álcool, a polícia carioca solicitara em 1907 ao laboratório nacional de análises químicas a

classificação do teor alcoólico das bebidas vendidas na cidade. A ação da polícia tinha motivação

pragmática, movida pela necessidade de definir o que era bebida alcoólica sujeita a repressão. O

resultado da análise condenou o consumo da aguardente, do vinho ordinário, e de destilados, e

preservou a cerveja, que foi tratada como bebida cujo teor de álcool era socialmente tolerável.16 Em

1912, a questão retornou à ordem do dia com a instauração da política de limitação do horário para

a venda de bebidas. Em novembro, o chefe da polícia carioca determinou que apenas a venda de

cerveja estava permitida após as 19 horas.17 A aguardente, ou parati, deveria ser banida dos balcões

dos bares à noite.

Claro que ninguém imagina ter sido uma medida administrativa dessa ordem capaz de suprimir o

consumo de parati. Tratava-se de uma bebida elaborada por um número enorme de produtores

dispersos na zona rural, longe do alcance da fiscalização do imposto de consumo e longe até dos

recenseadores.18 Chegava ao varejo em barris, por meios informais de distribuição. Por isso, é

impossível hoje estimar o volume real de aguardente oferecida no mercado nos anos 1920, tendo em

vista que as estatísticas disponíveis não são confiáveis.

15 Idem, pág. 10. 16 O País, 8/4/1907. [Apud, CUNHA, Getúlio Neves. As noites do Rio: prazer e poder no Rio de Janeiro, 1890-1930, Brasília, Tese de Doutorado em História, 2000, pág. 65.] 17 Jornal do Brasil, A cerveja é bebida privilegiada, 8/11/1912. [Apud, Getúlio Neves Cunha (2000), Idem.] 18 Em 1920, havia 308 estabelecimentos industriais formalmente constituídos para produzir álcool e aguardente, ao passo que existiam 64 mil estabelecimentos rurais – fazendas e sítios – identificados como produtores de aguardentes. Os organizadores do censo de 1920 admitiram não terem investigado estes estabelecimentos rurais, nem mesmo os situados na Baixada Fluminense, a poucas dezenas de quilômetros de distância da Capital Federal. Esses produtores domésticos escaparam do Censo e, certamente, estavam fora do alcance dos fiscais do imposto de consumo. [MARQUES, Teresa C. N.; OLIVEIRA, Maria Teresa R.. Inovação de produto ou saída para a crise? História Econômica & História de Empresas, v.1, 2003. Apud, Recenseamento Geral do Brasil, 1º/9/1920, Agricultura e Indústrias – Distrito Federal, vol. II, 1ª parte, 1924.]

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A produção e o consumo reais de aguardente escapavam à mão repressora das autoridades policiais.

No entanto, medidas restritivas ao funcionamento do comércio muniam a polícia de legitimidade

para coibir o lazer popular. Assim, a repressão ao consumo de álcool se apresentava em várias

frentes. No dia-a-dia, a polícia carioca tomava iniciativas administrativas para dificultar a vida dos

bebedores, como a definição do horário de funcionamento dos estabelecimentos, além de

habitualmente prender os bêbados que vagassem pelas ruas, enquanto, em outro front, os ativistas

da temperança agiam, a seu modo, em prol do controle sobre o consumo do álcool. Já em 1910, os

médicos higienistas reunidos na 'Liga contra o álcool' fizeram chegar ao Congresso Nacional uma

representação contendo medidas de limitação ao alcoolismo. Segundo o médico Domingos

Jaguaribe, o deputado Eduardo Pires Ramos abraçou a idéia e apresentou um projeto de lei de

limitação ao consumo de álcool.19

Teria sido esse o primeiro projeto de lei apresentado no Congresso sobre a matéria? Possivelmente

foi, mas o assunto não morreu com a iniciativa do deputado Ramos, retornando à pauta em outubro

de 1917, quando o então deputado pelo Rio Grande do Norte, Juvenal Lamartine, primeiro

secretário da mesa da Câmara, apresentou um projeto combatendo o consumo de álcool usando

como instrumento a elevação dos tributos que incidiam sobre as bebidas alcoólicas.

Lamartine propôs aumentar em três vezes o valor do imposto que incidia sobre a aguardente e o

vinho de consumo popular, e jornais de grande circulação destacaram a iniciativa do deputado.20 O

diário O País argumentou que o projeto tinha por objetivo combater a terrível praga social que

envenena e consome a vitalidade humana, destruindo a energia, a moralidade e a inteligência. No

entanto, lamentou o articulista, a proposta de Lamartine tinha poucas chances de ter andamento na

casa, uma vez que outra proposta semelhante, apresentada no ano anterior, pelo senador Eloy de

Souza, acabara por ser arquivada. A verdade era que, em ambas as casas do Legislativo, projetos

pró-temperança encontravam forte resistência de parlamentares ligados à lavoura de açúcar.21

Na justificativa para o seu projeto, Lamartine dirigiu aos seus pares um longo discurso sobre os

males decorrentes do alcoolismo na população operária. Afirmou ter buscado um remédio eficaz

para afastar ou pelo menos atenuar um mal, que se me [lhe] afigura gravíssimo para a nossa

nacionalidade.22 Conclamou seus colegas de parlamento a legislar em favor da população pobre, ao

19 Domingos Jaguaribe, Necessidade de abolir o álcool das refeições; conferência realizada a 30 de outubro de 1915, por ocasião do VII Congresso de Cooperadores Salesianos. [União Brasileira pró-Temperança. Seleção de contribuições anti-alcoólicas, 1925-1950. Rio de Janeiro: Rodrigues & Cia., 1954.] 20 O texto do projeto, que recebeu o número de 296/1917, foi publicado nos Anais da Câmara dos Deputados, de 22 de outubro daquele ano. 21 O País, 23/10/1917. 22 Diário do Congresso Nacional, 23/10/1917.

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que ele acrescentou o atributo 'ignorante', como forma de preservar os fundamentos da

nacionalidade brasileira, como se lê no seguinte trecho de seu discurso:23

Nada temos feito, até agora, no sentido da defesa da nossa população ignorante contra o alcoolismo. Desse nosso descaso tem decorrido uma série de males verdadeiramente impressionantes. A degenerescência da nossa raça, ameaçando a própria nacionalidade enfraquecida nos seus elementos componentes, nos seus alicerces fundamentais, e cuja principal causa devemos ir buscar no abuso do álcool o grande número de desequilibrados que enchem os hospitais, a tuberculose que devasta a nossa população operária, as moléstias do fígado, dos rins, o envelhecimento prematuro das artérias tão freqüente no Brasil são, na sua maioria, efeitos de uma só causa: o álcool.

Lamartine afirmou ter sido seu desejo, a princípio, propor um projeto que proibisse totalmente o

consumo de bebidas alcoólicas no país, mas o abandonara diante da inviabilidade política da

proposta. Contudo, seu ímpeto condenatório às bebidas alcoólicas não se referia a todos os gêneros,

voltava-se contra as cervejas de alta fermentação, os vinhos ordinários e a aguardente, bebidas essas

que, a seu juízo apresentavam maior risco à saúde dos consumidores. Curiosamente, deixou as

cervejas de baixa fermentação de fora do seu projeto.

Para dar mais ênfase ao seu discurso na tribuna, Lamartine recorreu a consultas que fizera a três

destacados médicos, todos de grande visibilidade política: Fernandes Figueira e Moncorvo Filho,

ambos pediatras, além de Francisco da Rocha, psiquiatra. Submetera a eles três perguntas: 1) Qual a

influência do álcool sobre a descendência?; 2) Os descendentes de pais alcoólicos são indivíduos

normais?; 3) Qual a diferença de percentagem de mortes prematuras entre os descendentes de

indivíduos normais e o de alcoólatras?; 4) O alcoolismo deve ser combativo como medida de

profilaxia social?

Em resposta, os médicos foram unânimes em afirmar os efeitos nefastos do álcool sobre a

descendência dos seus usuários, aumentando a mortalidade infantil e o nascimento de crianças

defeituosas. Basearam-se em estudos desenvolvidos na França sobre a população de alienados e

alcoolistas. Também concordaram com a importância de serem adotadas, no Brasil, medidas de

combate ao consumo de álcool pela população.

O projeto de Lamartine, apesar de sua repercussão na imprensa, não resultou em lei. Mesmo sem

sucesso no Legislativo, os grupos que defendiam a causa da temperança encontravam abrigo seguro

no Executivo, que acolhia seus argumentos e tomava medidas concretas para conter o consumo de

álcool. No início do ano de 1920, o presidente Epitácio Pessoa aumentou a carga de impostos sobre

a venda de bebidas no Distrito Federal.24 A Presidência da República dispunha de poderes para

restringir a venda de bebidas alcoólicas no âmbito da Capital Federal por meio de medidas

administrativas, como o aumento de taxas de licença, ou a definição de zonas e horários-limite para

23 Idem. 24 Decreto nº 2.173, 1o./1/1920.

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o funcionamento deste comércio, como aconteceu em 1926, quando foram alterados os critérios de

concessão de licenças para o varejo de bebidas na cidade. Essas medidas restritivas se tornaram

usuais, embora, muitos afirmassem que elas eram constantemente burladas na prática.25

Em julho do mesmo ano de 1920, o deputado Juvenal Lamartine voltou à carga com novo projeto,

ainda mais radical, de limitação do consumo de álcool. Abrindo o leque de propostas, estabeleceu a

elevação ao dobro do imposto de importação de bebidas alcoólicas, e ao triplo o imposto de

consumo sobre as cervejas de alta fermentação, os vinhos nacionais e a aguardente de cana. Para as

cervejas de baixa fermentação, o imposto de consumo dobraria.

As medidas mais drásticas, e mais inviáveis, estavam contidas em outros artigos do projeto. Previa-

se, por exemplo, a proibição, a partir de 7 de setembro de 1922, em todo território nacional, da

importação e da fabricação de qualquer bebida com teor de álcool superior a 2%, o que eliminaria

do mercado todas as bebidas destiladas, especialmente a aguardente. No entanto, seriam

conseqüentemente atingidas a maior parte das marcas de cerveja, ou teriam as fábricas que ajustar

drasticamente o teor alcoólico de seus produtos. Mas a punição mais severa recaía sobre o

alcoólatra, sem que fizesse distinção se se tratava de bebedor eventual ou contumaz.26 Pelo projeto

de Lamartine, qualquer pessoa que fosse encontrada embriagada seria recolhida à prisão por dez

dias, além de ser multada em 200$000. Os reincidentes pagariam o dobro desta multa. Na hipótese

de o embriagado ser funcionário público a situação se agravaria, seria demitido, a bem da

moralidade pública, e permaneceria impossibilitado de exercer função no Estado por dez anos.27

No dia seguinte à apresentação do projeto, notícias a seu respeito foram veiculadas na imprensa

carioca. O Jornal do Brasil, então um jornal popular, abriu uma matéria com o título Combatendo o

alcoolismo, que reproduziu apenas o teor da proposta, sem acrescentar comentários.28 Já o diário O

País destacou o assunto no meio da página do caderno de política. Considerou oportuna a

apresentação do projeto no momento em que outros países, citando os Estados Unidos e a

Argentina, acabavam de aprovar legislação sobre o consumo de álcool; proibitiva para o primeiro, e

restritiva para o segundo.29

Uma vez mais o projeto de Juvenal Lamartine não teve prosseguimento na Câmara, mas chama

atenção a preocupação do parlamentar com o marco simbólico do Centenário da Independência que

25 Palestra do Dr. Alfredo Balena proferida durante a Semana anti-álcool, realizada pela Liga Brasileira de Higiene Mental e pela Faculdade de Medicina da Universidade de Minas Gerais.[Liga Brasileira de Higiene Mental. Palestra do Dr. Alfredo Balena, proferida na semana anti-álcool. Belo Horizonte, 1932.] Em janeiro de 1933, os varejistas de bares e botequins do Rio de Janeiro se reuniram para encaminhar ao interventor do Distrito Federal uma reclamação contra o novo aumento da taxa de abertura dos estabelecimentos após as 19 horas. Segundo informou o jornal que noticiou o evento, desde 1930, os comerciantes de bebidas vinham sendo sobre taxados pelo fisco municipal. [Correio da Manhã, 14/1/1933.] 26 Como propunha o jurista Evaristo de Moraes no livro: Ensaios de patologia social. Rio de Janeiro: Leite Ribeiro, 1921. 27 Diário do Congresso Nacional, 6/7/1920. 28 Jornal do Brasil, 7/7/1920. 29 O País, 7/7/1920.

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se avizinhava e exigia um esforço urgente de reformulação dos fundamentos da nacionalidade

brasileira.

Com tantos ataques à legitimidade social das bebidas alcoólicas, as cervejarias de baixa

fermentação ensaiaram algumas respostas. Abandonaram a ênfase na propaganda das cervejas de

primeira qualidade, justamente as de teor alcoólico mais elevado. Embora fosse verdade que, desde

o início da guerra, o mercado vinha dando preferência às cervejas de segunda qualidade, tipo Pilsen,

mais leves, mais baratas e menos alcoolizadas. Em outubro de 1920, uma propaganda da Fidalga

ressaltou justamente esta última característica.30 Outro anúncio da Brahma, mais extenso, dirigido a

varejistas, chamou atenção para a linha de cervejas de baixo teor alcoólico da empresa, como se

percebe em anúncio publicado no Almanack Laemmert de 1919/1920.

Ao se dirigirem a autoridades públicas, as grandes cervejarias repetiam em coro o discurso da baixa

toxidade de seus produtos, argumentando, por vezes, que a bebida continha propriedades

alimentares e medicinais. Tinham, contudo, o cuidado de preservar distância simbólica e política

das cervejarias de alta fermentação, suas fortes concorrentes no mercado popular. Outro argumento

recorrente era a importância econômica das cervejarias de baixa fermentação. Lembravam o peso da

arrecadação dos impostos sobre a cerveja para as finanças públicas e, de fato, a carga fiscal era

elevada, apenas menor do que a que incidia sobre o fumo. Aludiam aos efeitos benéficos de sua

atividade sobre a cadeia produtiva, resultado da aquisição de matérias-primas de produtores

nacionais (madeira, garrafas, açúcar). Destacavam sempre, também, a importância dos empregos

gerados pelas grandes fábricas do setor.31

Outra fórmula explorada pelas cervejarias para manter a cerveja em evidência no meio social e se

contrapor à propaganda pró-temperança era patrocinar produções culturais em que o consumo de

cerveja tivesse lugar de destaque. Foi o caso de uma revista musical encenada em um dos teatros de

Pascoal Segreto ao final de 1928. Chamou-se Chopp Duplo e sua trama girava em torno da

personagem Fricadella, um alemão dono de bar, os empregados do estabelecimento e seus

freqüentadores, todos tipos característicos da vida urbana carioca.32 Embora não haja prova

30 Jornal do Brasil, 10/10/1920. 31 Representação da Cia. Antártica Paulista à Câmara dos Deputados, onde se lê que nada justificava a alteração do regime alfandegário do país, à cuja sombra cresceu e se desenvolveu a indústria nacional da fabricação de cerveja, contribuindo hoje diretamente para receitas públicas da União, dos Estados e dos municípios, além da contribuição indireta. [Diário do Congresso Nacional, 21/7/1920.] 32Em dezembro de 1928 a Delegacia Auxiliar da Polícia do Distrito Federal aprovou a revista musical Chopp Duplo, proposta pela companhia teatral Zig-Zag, do teatro São José, das Empresas Pascoal Segreto. A peça, uma opereta cheia de situações de duplo sentido, apresenta personagens do cotidiano popular carioca. Usa do humor para criticar costumes. O personagem principal é Fricadella, um alemão dono de bar, enamorado da cozinheira negra Juju. Também há Virgílio, um péssimo poeta que vive de fazer versos para propaganda do bar de Fricadella; Felizardo, um funcionário público, filho de português, que envelhece à espera do célebre aumento; e Munduca, negro, malandro, cobrador de bonde, morador do bairro do Catumbi. A qualquer crítica, o personagem Fricadella responde com o bordão: Gomigas é no chopp dupal! Assim mesmo, carregando no sotaque. [Peça nº 1.439, de 11/12/1928, Delegacia Auxiliar da Polícia; SDE 022 A, cód. 6E; Arquivo Nacional]

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definitiva do envolvimento financeiro da Brahma na peça encenada no teatro de Pascoal Segreto,

pode-se supor, dadas as longas relações comerciais entre o empresário da noite e aquela empresa, a

existência de alguma forma de ligação.

Patrocinar produções culturais, pressionar o Congresso Nacional, intensificar a propaganda de seus

produtos: esses são exemplos da reação das cervejarias às críticas desferidas pelos partidários da

limitação ao consumo de bebidas alcoólicas. No campo dos partidários da temperança, a iniciativa

mais importante foi a fundação, em 1922, da Liga Brasileira de Higiene Mental, entidade criada por

um grupo de médicos higienistas do Rio de Janeiro. Surgiu com o propósito de tomar parte da

comemoração do Centenário da Independência. De sua primeira formação, fizeram parte médicos e

políticos conhecidos, como Juliano Moreira, Miguel Couto, Carlos Chagas, Edgar Roquete-Pinto,

Afrânio Peixoto e Henrique Rocha.33

Instituíram-se as célebres semanas anti-alcoólicas, quando médicos, advogados e feministas

proferiam palestras em vários locais da cidade: sindicatos, escolas, clubes e fábricas.

Coincidentemente, ou não, essas jornadas ocorriam sempre no mês de outubro, junto com a Festa da

Penha, época do ano em que o consumo abusivo de álcool era destaque na imprensa.

As tais semanas anti-alcoólicas recebiam sempre grande cobertura da imprensa, especialmente dos

grandes jornais cariocas. Com o foco das atenções do público voltado para o assunto, os líderes do

movimento chegaram a ser recebidos pelo Presidente da República para levar propostas enérgicas

contra o consumo de álcool. Foi o caso da visita que fizeram ao Presidente no Palácio do Catete, em

dezembro de 1928, quando propuseram a elevação de taxas sobre bebidas, proporcionalmente ao

teor alcoólico do produto. Deste modo, as bebidas destiladas receberiam a maior sobretaxa, mas

também bebidas fermentadas como a cerveja seriam objeto de sobretaxação, ainda que menor. Na

mesma ocasião, propuseram a formação de um fundo de propaganda anti-álcool.34

Nas palestras proferidas durante as semanas anti-álcool, os oradores expunham a sua visão sobre o

assunto, revelando tanto os pontos de convergência do pensamento dos membros da entidade, como

os pontos conflitantes. Dois tópicos cindiam a opinião dos associados: o grau de proibição, se total

ou parcial, e o tipo de bebida que deveria ser objeto de repressão. Dentre os partidários da proibição

total estavam o jurista e parlamentar Afrânio Coutinho,35 o jurista Evaristo de Moraes,36 o médico

33 SCHWARTCZ, Lilia. Op. Cit., pág. 268, nota nº 26. 34 A visita, em comissão, de representantes da Liga Brasileira de Higiene Mental, da Sociedade de Medicina e Cirurgia e da Academia Nacional de Medicina ao Palácio do Catete, ocorrida no dia 24 de dezembro de 1928, foi destaque nos seguintes jornais cariocas: O Imparcial e A Noite. 35 Em 1920, Afrânio Coutinho apresentou projeto no Congresso propondo a proibição total de bebidas. [Apud, Liga Brasileira de Higiene Mental. Palestra do Dr. Alfredo Balena, proferida na semana anti-álcool. Belo Horizonte, 1932.] 36 Palestra de Evaristo de Moraes na Associação dos Empregados do Comércio, como parte da Semana anti-álcool de 1928. Na ocasião, argumentou que a proibição total seria impraticável no Brasil, embora desejável. [Jornal do Comércio, 20/10/1928.]

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Moncorvo Filho,37 o médico Hermeto Lima38 e as integrantes da União Brasileira Pró-

Temperança.39 No entanto, muitos ativistas pró-temperança argumentavam ser inviável instituir no

Brasil a proibição total, aos moldes do que o Congresso norte-americano tinha aprovado em 1918.

A situação naquele país era lembrada como exemplo de política pública de efeitos sociais

indesejáveis, face ao aumento da criminalidade registrado nos Estados Unidos após a instituição da

Lei Seca.

Havia consenso entre os ativistas do movimento brasileiro em torno da condenação à aguardente,

mas não se pode dizer o mesmo a respeito da cerveja. Poucos, como o médico Hermeto Lima,

condenavam o seu consumo de forma explícita, classificando a bebida como álcool prejudicial à

saúde de seus apreciadores. Afirmou este médico: 40

A cerveja é pois, como as outras, uma bebida condenável, por acarretar todos os prejuízos do alcoolismo. E mais será, se sua composição não for escrupulosamente feita, como quase sempre acontece.

Reconhecia Lima que a cerveja contava com maior tolerância por parte da sociedade e usava uma

linguagem ácida para se referir à cerveja de baixa fermentação: reputada melhor porque não mata

tão depressa. Já um folheto produzido pelo Departamento de Saúde do Estado de São Paulo incluiu

a cerveja no rol das bebidas alcoólicas, mas destinou crítica severa à aguardente: todavia, a

caninha, aguardente ou pinga, a mais familiar e a mais usada pela nossa gente, merece maior

consideração sob o ponto de vista do alcoolismo (...).41

A cerveja preocupava os higienistas de duas formas: primeiro, a maior parte deles abraçava a idéia

de que era gradual o caminho do envolvimento do usuário com as bebidas e, deste modo, a cerveja

ocuparia um lugar inicial nas etapas que levariam à dependência irreversível. Segundo, juntamente

com as cervejas de alta fermentação, consideradas por vários deles como impróprias ao consumo

por serem de má qualidade, os higienistas condenavam, sobremaneira, a associação entre cerveja e

alimento. Moncorvo Filho cerrou fileiras contra essa idéia tão difundida na propaganda das

cervejarias, aqui no Brasil e no exterior. Como pediatra, defendia a maternidade higiênica, isto é,

que as mulheres amamentassem seus próprios filhos, ou que as amas de leite fossem submetidas a

controle sanitário por parte das autoridades de saúde. Em outros termos, os filhos da elite deveriam

ser mantidos distantes das raças degeneradas.

37 Conferência proferida pelo Dr. Moncorvo Filho, como parte da Semana anti-álcool de 1927. [MONCORVO FILHO, Artur. Alcoolismo infantil. Conferência realizada em 18 de outubro de 1927, na Liga de Higiene Mental. Rio de Janeiro: Departamento da Criança no Brasil/Pongetti, 1928.] 38 LIMA, Hermeto. O alcoolismo no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1914. 39União Brasileira pró-Temperança. Seleção de contribuições anti-alcoólicas, 1925-1950. Rio de Janeiro: Rodrigues & Cia., 1954. 40 LIMA, Hermeto. Op. Cit., pág. 83. 41 Estado de São Paulo. Departamento de Saúde. Seção de Propaganda e Educação Sanitária. O que se deve saber sobre o alcoolismo. São Paulo, s/d.

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O médico Moncorvo Filho escolheu palavras duras para condenar as amas de leite em um folheto

publicado em 1923: sistematicamente, preciso é que de vez se abandone o péssimo hábito de

mandar que as mães e amas bebam cerveja para que possuam abundância de leite.42

Mais eloqüente ainda são as imagens usadas para ilustrar o folheto, que mostram uma esquálida

ama de leite sentada à mesa com um bebê ao colo e uma garrafa de bebida à sua frente. A força da

imagem racista da ama de leite negra e bêbada não deve ter passada despercebida pelos

contemporâneos.

É possível que folheto de Moncorvo Filho represente uma resposta à uma propaganda da Cervejaria

Brahma, veiculada na imprensa carioca em julho de 1921 e convertida em um folheto sobre as

propriedades nutritivas da cerveja Malzbier. O destino desta peça de propaganda da Brahma é

incerto. Pode ter sido distribuído a mães, mas também deve ter sido divulgado entre médicos,

muitos deles crédulos das propriedades nutritivas da cerveja, a despeito das pesadas críticas de

Moncorvo Filho. Vem de longe, portanto, a idéia de que a cerveja escura fosse, na sua forma doce

ou amarga, um fortificante necessário para complementar a alimentação das mulheres que

amamentam.43 Sabemos, pela experiência da maternidade, que essa idéia não foi totalmente

abandonada nos dias de hoje.

Mesmo sob críticas, as cervejarias não abandonaram imediatamente veicular a propaganda de suas

cervejas com imagens de mães e bebês. Outra peça publicitária produzida pela Brahma entre finais

dos anos 1920 e meados dos anos 1930, valeu-se da força da imagem de crianças brancas e

saudáveis, de uma mulher amamentando seu filho tendo diante de si uma garrafa de cerveja

Malzbier. A sugestão era evidente: mulheres que bebem Malzbier têm filhos saudáveis. Esse

mesmo discurso estava presente em um folheto produzido pela Cervejaria Hanseática, em 1938. A

peça exalta as propriedades alimentares da cerveja escura Maltina, indicada a nutrizes. A idéia-força

da cerveja como pão líquido era destacada no texto.44

Exatamente essa associação entre a bebida e alimento foi condenada veementemente pelo médico

Alberto de Paula Rodrigues em 1936, quando estava à frente da inspetoria de alimentação do

Departamento Nacional de Saúde Pública. Na ocasião, usou seus poderes de agente público para

vetar a propaganda de uma cervejaria cujo nome não mencionou.45 A mesma iniciativa fora

42 MONCORVO FILHO, Artur. Op. Cit.. 43 Vários testemunhos revelam que os contemporâneos absorveram de forma pouco crítica a qualificação da cerveja escura como fortificante. Veja-se, por exemplo, uma pequena nota publicada no Correio da Manhã, em 15/6/1918. Nela, o jornalista agradece a um comerciante, representante da Cervejaria Corumbaense, o envio de garrafas de cerveja para a redação do jornal. Diz o texto do jornal: trata-se de um produto de agradável sabor, ao mesmo tempo que é um poderoso fortificante usado com êxito nas convalescenças. 44 Cervejaria Hanseática. Cerveja e Saúde. Da cerveja dos egípcios à Maltina da Hanseática. Rio de Janeiro, 1938. 45 União Brasileira pró-Temperança. Seleção de Contribuições anti-alcoólicas, 1925-1954. Rio de Janeiro: Rodrigues & Cia., 1954. Extrato da conferência do médico Alberto P. Rodrigues, proferida na Rádio Globo, a 12/11/1949.

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defendida pelo médico Miguel Couto, anos antes, em conferência na Academia Nacional de

Medicina.46

Ao longo do tempo, Rodrigues, Moncorvo Filho, Miguel Couto e outros tantos médicos vieram a

público condenar o consumo de cerveja por mulheres que amamentam, mas a idéia resistiu aos seus

críticos. Pode-se encontrar na influente obra do médico Reinaldo De Lamare, A vida do bebê,

mensagens contraditórias a respeito do uso de cerveja na alimentação das mães. Na sua décima

nona edição, de 1964, De Lamare nega à cerveja preta a virtude de aumentar a produção de leite,

mas aceita que as nutrizes bebam uma quantidade mínima de vinho ou de cerveja. Em outros

termos, não recomenda o uso da bebida, mas também não o condena.47

Vê-se que a cerveja se incorporou aos hábitos cotidianos brasileiros, desde inícios do século XX,

apresentando-se como uma bebida industrial, leve, propícia ao convívio social ameno, sem os

impulsos violentos provocados pela aguardente e ainda dotada de propriedades nutritivas. Se havia,

de um lado, indústrias a proferir discursos para legitimar seus produtos, havia, de outro lado, uma

sociedade receptiva à mensagem, aspirando a ingressar no universo das nações civilizadas e

industriais.

Além dos discursos dos partidários e opositores das bebidas alcoólicas, há que se examinar o uso

dessas bebidas nas práticas de lazer popular na cidade do Rio de Janeiro. Tomamos como cenário as

manifestações que tinham lugar durante o mês das festividades da igreja da Penha, pois se tratava

de uma celebração de grande importância na vida cultural da cidade naqueles dias, e um espaço de

consumo único para os fins da nossa análise.

Notoriamente, aguardente e cerveja disputavam a preferência dos freqüentadores da Penha.

Entretanto, alguns grupos proeminentes na organização da festa, além da imprensa, demonstravam

clara predileção pela segunda. Por que seria? Parece-nos que o consumo da cerveja, em detrimento

de outra bebida alcoólica qualquer, ou mesmo, o seu uso em determinados rituais de celebração,

como na Penha, pode nos informar algo mais do que as preferências do consumidor naqueles dias.

Isso lança luz sobre a organização hierárquica e de valores presente na sociedade brasileira nos anos

1920.

46 Miguel Couto, na conferência Alcoolismo, defendeu que o álcool não podia ser jamais considerado alimento. Argumentou, também, que a prole dos alcoólicos era também de alcoólicos. A palestra foi realizada na Academia Nacional de Medicina, a 30/6/1921. [Arquivos Brasileiros de Medicina, março/1932.] 47 DE LAMARE, Reinaldo. A vida do bebê. Rio de Janeiro: Borsoi, 1964. [19ª edição]

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3. AS BEBIDAS NO LAZER POPULAR DA FESTA DA PENHA

Datam do final do século XVIII as primeiras romarias à Penha, mas a igreja que está lá ainda hoje,

no alto de uma colina, foi construída na década de 1860.48 A festa da Penha era um marco

simbólico da presença portuguesa na cidade do Rio de Janeiro e o bairro que se formou em torno do

santuário, como nos dias atuais, abriga um vasto contingente de famílias de origem portuguesa. Nos

anos 1890, quando a cidade do Rio de Janeiro vivia um momento de hostilidade aos lusitanos, esta

festa foi tratada como uma relíquia de antigas tradições aldeãs de Portugal, uma permanência

indesejada no contexto da afirmação institucional do regime republicano.49

Contudo, não estava restrita ao universo da comunidade de imigrantes portugueses. Já em meados

do século dezenove o lugar se tornara um grande espaço de diversão popular. E não eram poucos os

freqüentadores. Os jornais da época costumavam estimar em até 60 mil pessoas o movimento de

romeiros à Penha nos domingos de outubro, durante as duas primeiras décadas do século vinte.

Chegavam àquele número considerando a quantidade de passagens de trem vendidas por dia,

somada ao número de presentes que para lá se dirigiam por outros meios: carroças enfeitadas,

automóveis, caminhões.50 A freqüência elevada justifica a importância da festa da Penha para os

moradores da cidade.

Paralelamente aos rituais religiosos que cercavam o santuário, envolvendo o translado da imagem

da santa, o batismo coletivo de crianças, o sacrifício dos romeiros para vencer a longa escadaria que

dá acesso à pequena igreja, transcorriam os rituais de lazer com música, brinquedos, comidas e

bebidas. Isso fazia da Festa da Penha uma celebração quase tão importante quanto o Carnaval. De

fato, a presença de compositores e musicistas negros nas primeiras décadas do século XX fazia da

Penha um campo de experimentação para as músicas que fariam o sucesso no Carnaval do ano

seguinte.

Para a comunidade portuguesa, a festa representava uma grande celebração, um momento de

visibilidade social. A parte religiosa era organizada pela Venerável Irmandade de Nossa Senhora da

Penha de França, e dela tomar parte era um sinal de prestígio social. Aos pés da escadaria instalava-

se um coreto, onde uma banda de músicos executava dobrados e trechos de ópera, sob rigorosa

observação dos membros da Irmandade, que acertavam com a polícia a execução de músicas sem

48 SOIHET, Rachel. A subversão pelo riso. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998, capt. I; Álbum da Colônia Portuguesa, 1929, pág. 48. 49 Olavo Bilac e Raul Pompéia viam a Penha como um lugar de barbárie. [VELLOSO, Mônica. As tradições populares na Belle Époque carioca. Rio de Janeiro: Funarte/Instituto Nacional do Folclore, 1988.] 50 O jornal O País, de 22 de outubro de 1917, estimou em 60 mil presentes, considerando as saídas de trens lotados de 15 em 15 minutos da estação da Praia Formosa, zona do Mangue, em direção aos subúrbios da Leopoldina. O Jornal do Comércio, de 16 de outubro de 1928, informou que haviam sido vendidas 41.423 passagens de ida e de volta nos trens. A este número, o jornal somou mais 20 mil pessoas transportadas por outros meios e finalizou estimando em 60 mil os romeiros presentes à festa no primeiro domingo de outubro daquele ano.

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apelo sensual. Em outros termos, gêneros musicais que convidassem à dança, como as polcas e os

tangos, não tinham lugar.51

Os divertimentos eram dispostos em terreno próprio, à direita do santuário, com amplo espaço

gramado para piqueniques. Era o conhecido arraial. No ano de 1917, Pascoal Segreto instalou ali

um parque de diversões com montanha russa, carrossel elétrico, jogos de argola e outras atrações.

Também foram autorizadas a funcionar 29 barracas de comida e de bebida, cujos nomes sugerem

filiação a grupos étnicos. Dentre as barracas que se pode associar à comunidade portuguesa havia as

que evocavam conotação religiosa — como a Nossa Senhora da Penha de Irajá e Santa Cecília.

Outras eram apelidadas com o nome de algum membro notável da comunidade — Guerra

Junqueira, Aliados de Silvestre Nunes. Também havia barracas institucionais, como a do Recreio

dos Democráticos. Havia algumas, cujos nomes nos permitem identificar de imediato a origem

européia de seus freqüentadores: a Portuguesa, a Lusitana e a Triestina.52

Dentre os nomes de barracas que sugerem a freqüência de afro-brasileiros, havia a Cabana do Pai

Thomás e a União Carnavalesca. Não resta dúvida de que havia um vasto contingente de

freqüentadores da Penha que tinham origem africana. A história de Tia Ciata, e sua família

ampliada, confirma isso. A baiana Ciata era quituteira de ofício e líder espiritual de sua

comunidade, por reconhecimento. Como a dela, outras tantas barracas de comida africana existiam

na Penha.53

No entanto, os portugueses se consideravam os verdadeiros devotos, legítimos representantes da

festa. A imprensa reforçava essa idéia e a memória da comunidade lusitana cristalizou a imagem de

devoção cristã de seu povo, marca de sua contribuição à civilização brasileira. Encontramos essa

idéia, claramente, na edição de 22 de outubro de 1906 do Jornal do Comércio. Na reportagem, os

romeiros de origem portuguesa eram descritos como os verdadeiros e pios devotos de Nossa

Senhora da Penha, contrastando com os freqüentadores negros, tratados como os desordeiros e de fé

duvidos.54 O samba era tratado pela imprensa como elemento perturbador, ora tolerado sob

vigilância, ora proibido; a depender do humor da autoridade policial. Observado em perspectiva, ao

longo das primeiras décadas do século XX, o tratamento dado pela imprensa à música afro-

brasileira na Penha oscilou entre a repulsa e o encantamento. Em outubro de 1917, por exemplo, o

jornal O País comentou a presença de quartetos e quintetos musicais entoando músicas sugestivas,

relembrando o tempo de antanho, dos sambas, dos cordões carnavalescos, que tão tristes

51 O País, 22/10/1917. Neste ano, afirmou o jornal, a polícia proibira a execução de músicas sincopadas para que os romeiros não se entregassem aos prazeres das danças. Músicas mais animadas foram permitidas no arraial, mas não foi tolerado a formação de cordões e sambas. Em outros termos, proibiram-se rodas de samba durante a festa daquele ano. 52 SOIHET, Rachel. Op.Cit.; O País, 22/10/1917; Jornal do Brasil, 19/10/1926. 53 MOURA, Roberto. Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Cultura, 1995. 54 Jornal do Comércio, 22/10/1906. [Citado por Rachel Soihet (1998), Op.Cit., pág. 40.]

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recordações deixaram à Festa da Penha. Na mesma matéria, lia-se que a polícia proibira cordões e

sambas, ainda assim, os grupos presentes à festa naquele ano em nada pareciam com os perigosos

sambas e davam animação e alegria à festa.55 Sinal de que a chamada circulação cultural se deu a

custa de permanente atrito.

Entre historiadores da cultura popular carioca, o espaço de convivência da Penha vem sendo visto

como um local de contato entre a cultura popular e a cultura dominante. Teria havido ali uma troca

de valores e de modelos estéticos entre a tradição européia, portuguesa, e a tradição africana. Sendo

os negros os detentores da verdadeira cultura popular, representantes da autêntica manifestação

artística dos moradores do Rio de Janeiro, a exposição de sua arte naquele espaço privilegiado de

grande afluência de público resultou na difusão de seus valores estéticos para o resto da cidade. A

identidade musical dos cariocas ficou, irreversivelmente, marcada pela influência artística da

população de origem africana.56

O problema dessas leituras do fenômeno reside na noção estreita de povo adotado pelos autores

mencionados. Exclui o expressivo contingente de imigrantes europeus, no caso do Rio de Janeiro,

em sua maioria composto por portugueses recém-emigrados. Ora, se representavam os portugueses

uma importante parcela do operariado empregado na cidade, compunham o maior contingente de

empregados no comércio, habitavam moradias populares e se casavam com mulheres brasileiras,

uma vez que o grosso dos imigrantes chegava solteiro ao Brasil, como tratar os portugueses como

não pertencentes ao povo? Por que também havia entre eles alguns que se envolviam em atividades

de pequeno comércio, quando e se traziam algum capital de seu país?

É possível ir além dessa concepção e perceber que o lazer das classes populares era marcado pelo

confronto entre modelos estéticos, fruto da especificidade cultural de cada grupo étnico que

compunha a massa trabalhadora no Rio de Janeiro.57 No campo musical, a Penha, de fato,

representou um espaço de divulgação do samba. Lembremos, no entanto, que nesse processo de

construção da ordem simbólica, ocorrido no interior das classes populares, estiveram em exposição

outras formas de manifestação cultural, ao lado da música, havia também a comida e a bebida. Em

outros termos, cabe discutir de que forma as práticas de consumo que emergiam dos rituais de lazer

funcionavam como eficientes instrumentos de demarcação social e de exercício de poder entre os

grupos.

55 O País, 22/10/1917. 56 Sobre o assunto, veja-se: Mônica Velloso (1988), As tradições populares na Belle Époque carioca, Roberto Moura (1995), Tia Ciata e a Pequena África, Rachel Soihet (1998), A subversão pelo riso. Estes três autores têm em comum conceber a festa da Penha como um local de contato entre a cultura popular e a cultura dominante, sendo que, a despeito da repressão cotidiana, a cultura popular, leia-se a cultura negra, acabou por prevalecer sobre a estética tradicional, européia. 57 Toma-se o conceito de classe na forma elaborada por: THOMPSON, E. P.. The Making of the English Working Class, Harmondsworth: Penguin Books, 1979.

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Como, quando e com que conotação a cerveja participava do consumo ritual que tinha lugar nos

dias da festa? É possível encontrar o eco das críticas dirigidas ao uso de bebidas alcoólicas no lazer

popular? Beber cerveja era considerado mais legítimo do que beber aguardente?

A eleição do domínio do consumo como objeto de observação se justifica porque nele homens e

mercadoria são postos em contato. É quando a mercadoria adquire dimensões simbólicas que

ultrapassam a função para qual foi concebida pelo produtor.

A partir dessa sugestão, identificamos os discursos emanados pelos atores sociais acerca das

práticas de consumo de bebidas alcoólicas usuais no arraial da Penha. Poder-se-ia identificar

mecanicamente a preferência da comunidade negra pela aguardente, e a comunidade imigrante pela

cerveja e vinho barato. Considerando-se o nível de renda, dada a situação do mercado de trabalho

da Capital Federal, que favorecia os imigrantes e relegava aos afro-brasileiros os empregos braçais

e de pior remuneração, é razoável supor que a maior capacidade aquisitiva dos portugueses os

habilitasse a beber cerveja.58 Mas esse jogo era mais embaralhado, pois negros também consumiam

cerveja e portugueses, aguardente, conforme a situação.

Sabemos que havia por toda a cidade um sem número de cervejarias de alta fermentação, mais em

conta que a bebida produzida pelas grandes indústrias. Nos salões dessas pequenas cervejarias os

trabalhadores encontravam diversão barata e animada. Dona Carmem Teixeira da Conceição,

membro da comunidade de Tia Ciata recordou, em entrevista, os hábitos de seu marido, falecido em

1917:59

Meu marido cantava, tocava violão muito bem, ele ia para suas farras, os colegas vinham pegar ele. Tinha uma cervejaria ali na praça Onze, que ele sentava e bebia duas cervejas, daqui a pouco a mesa estava cheia de mulheres e homens e tudo.

De fato, bastavam atravessar a rua e os operários da fábrica da Brahma chegavam à uma cervejaria,

certamente, a mesma mencionada por Dona Carmem, localizada na praça Onze.60

Longe do centro, nos subúrbios, a cerveja barbante também era vendida nas barracas da Penha.

Aliás, vendia-se de tudo. Os imigrantes portugueses que levavam a família para passar o dia no

arraial bebiam vinho, ou mesmo cachaça. Mas a preferência dos imigrantes portugueses pela

cerveja industrial, particularmente pela marca Cascatinha, produzida pela Hanseática, cresceu junto

58 A má situação dos trabalhadores negros no mercado de trabalho do Rio de Janeiro permaneceu guardada na memória dos membros desta comunidade, como se lê no depoimento de Dona Carmem Teixeira da Conceição, irmã-de-santo do terreiro de Tia Ciata: (...) quem trabalhava mais era português, essa gente, espanhóis, era mais essa gente mesmo. Não era fácil não, eles não gostavam de dar emprego pro pessoal assim que era preto, da África, que pertencia à Bahia, eles tinham aquele preconceito. Mas mulher baiana arranjava emprego. [Citado por Roberto Moura (1995), Op. Cit., pág. 159.] Sobre imigração e mercado de trabalho no Rio de Janeiro, veja-se: MARQUES, Teresa C. N.; ARAÚJO, João Lizardo; MELO, Hildete P.. Raça e nacionalidade no mercado de trabalho carioca. Revista Brasileira de Economia. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, vol. 57, nº 3, jul/set, 2003. 59 Citado por Roberto Moura (1995), Idem, pág. 158. 60 Entrevista de Luiz Q. Zoega e de Alberto Thielen à autora, 29/8/1999. Ambos são funcionários aposentados da Cervejaria Brahma.

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com esta empresa, cujos proprietários integrava a comunidade de negócios lusa existente na cidade.

Ganhou força simbólica com a tensão política experimentada durante a Primeira Guerra, quando a

imprensa carioca se dividiu entre os partidários dos Aliados e de Portugal, e os poucos defensores

da Alemanha.

Perdurou no tempo a identificação da comunidade lusitana com a cerveja Cascatinha, mesmo após a

cervejaria que a fabricava ter sido comprada pela Brahma em 1941, lembrou Luiz Zoega, cervejeiro

aposentado da Brahma:61

– A Hanseática tinha uma aceitação muito grande na colônia portuguesa, mas ela também participava de festas populares? Luiz Zoega: Da famosa festa da Penha, com barraquinhas e tudo. E a cerveja Cascatinha... Tanto que, anos depois, a Brahma começou a fazer também a festa da Penha, depois que comprou a Hanseática. Então, nós tínhamos que rotular a Brahma Chopp com o nome Cascatinha. Nós pegávamos aquelas rolhas totalmente lisas, brancas e rotulávamos a Brahma Chopp, batizada, evidentemente. E aquela portuguesada toda tomava. Mas tinha português que comprava aquilo em engradado para fazer festa em casa, daqui a não sei quantos meses. Então, era a Cascatinha.

Se, como já comentamos, a imprensa tratou com ambigüidade o samba, em um ponto todos os

jornais consultados convergiam: o tratamento benévolo do consumo de cerveja. Em 1917, o jornal

O País comentou a intensa movimentação no setor das barracas: em todas elas, a par da finas

iguarias, eram apregoados os excelentes vinhos e as magníficas cervejas de afamadas marcas

nacionais, cariocas e paulistas. Qual das barracas a melhor? Qual a preferida? Difícil responder,

difícil distinguir.62 Os casos de embriaguez com outras bebidas eram tratados com menor

tolerância. Naquele primeiro domingo de outubro, informou o mesmo O País, que quatro homens

foram detidos pela polícia por abuso de bebidas e excesso de entusiasmo.

Na edição de 4 de outubro de 1920 do Jornal do Brasil é mais evidente o contraste entre os pesos e

as medidas no que diz respeito a bebidas. Noticiou-se excesso policial na Penha, o que não

representava grande novidade. O problema surgiu quando um guarda, embriagado, agredira um

repórter do jornal. O incidente rendeu matérias críticas ao longo de toda a semana seguinte. Nos

termos do jornal, o guarda exalava álcool. Em compensação, lê-se na mesma edição do dia 4 que a

barraca dos Aliados de Silvestre Nunes oferecera chope em profusão aos jornalistas que cobriam a

festa.63

Em 1926, a edição de 5 de outubro do Jornal do Brasil noticiou que a barraca do Recreio dos

Democráticos servira bebidas da Antártica a convidados da imprensa, reunidos sob o motivo de

homenagear o presidente do Penha Clube. Segundo o repórter: os rapazes do jornal foram alvo das

maiores atenções e antárticamente tratados pela família popular recreativista. Por sua vez, na

61 Há que se fazer reparos à memória do Sr. Zoega. Existem registros de a Brahma fazer a festa da Penha desde 1909, pelo menos, e a Cia. Hanseática só foi comprada em 1941. [Entrevista de Luiz Q. Zoega e de Alberto Thielen à autora, 29/8/1999.] 62 O País, 22/10/1917. 63 Jornal do Brasil, 4 e 10/10/1920.

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cobertura do aspecto policial da festa, registrou-se a prisão de alcoolizados e mendigos que

infestavam o arraial.64 Em outros termos, para a imprensa, a cerveja não era bebida alcoólica.

Com os elementos já apresentados podemos comentar a peculiar dinâmica das relações entre os

membros notáveis da comunidade portuguesa e a imprensa. Num misto de interesse comercial e

demonstração de prestígio, os organizadores das barracas ou membros da Irmandade se revezavam

em churrascos e almoços, cujos convidados principais eram os muitos repórteres que cobriam a

festa da Penha e autoridades públicas. Com freqüência, os promotores dessas reuniões eram

propagandistas de alguma cervejaria, ou nisso se convertiam durante os dias da festa. Os exemplos

dessa prática são numerosos. Durante a festa do ano de 1921, a barraca Recreio dos Romeiros

comemorou o aniversário de um certo Luís Chaves Góes, representante da Cervejaria Hanseática na

Penha, desnecessário dizer que a imprensa tomou parte ativa na comemoração. Naquele mesmo

ano, a barraca Aliados de Silvestre promoveu uma recepção ao pessoal do Arsenal de Marinha,

outra recebeu os empregados da municipalidade.65

No segundo domingo de outubro de 1926, a barraca dos Aliados de Silvestre Nunes ofereceu

sanduíches e cerveja da Hanseática a jornalistas. Na semana seguinte, o mesmo Silvestre Nunes e

sua mulher prepararam um abundante repasto aos jornalistas, conforme informou o Jornal do

Brasil. O redator da matéria prosseguiu comentando o aspecto etílico da comemoração:66

Várias saudações foram erguidas com meúdo entusiasmo. O popular Cascatinha, vulgo Fausto Gomes, não faltou, tendo mandado para a barraca dos Aliados um barril de delicioso chope.

O Baiano, velho propagandista da Hanseática, também ofereceu, em sua residência, opíparo repasto à imprensa e às autoridades civis e militares do serviço do arraial da Penha. Serviu-se cabrito assado com farofa, regado com abundância.

A descrição do jornal dá mostras do entusiasmo reinante nas festas oferecidas aos repórteres.

Enquanto isso, a polícia montada distribuía bordoadas no arraial e recolhia à prisão os alcoolizados.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Eis alguns exemplos do olhar da imprensa carioca sobre as práticas de lazer dos freqüentadores da

Festa da Penha. Revelou-se uma atitude tolerante e, mesmo, favorável dos jornais em relação à

cerveja. No entanto, seria enganoso atribuir exclusivamente à imprensa o tratamento privilegiado às

bebidas fermentadas, e o desprezo às destiladas. Embora houvessem interesses, inclusive

financeiros, na forma de propaganda, que serviriam de motivação para a imprensa neutralizar o

64 Jornal do Brasil, 5/10/1926. 65 Jornal do Brasil, 23/10/1921. 66 Jornal do Brasil, 19/10/1926.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 69

aspecto alcoólico da cerveja, uma análise mecanicamente econômica, além de conspiratória e

equivocada, não daria conta do fenômeno cultural mais profundo que está em jogo. Poder

econômico e político, os usineiros de açúcar e de aguardente também tinham. Sua força era sentida

na sociedade e no Parlamento, mas nem por isso, conseguiram construir uma imagem positiva da

aguardente. Limitaram-se a deter as iniciativas de parlamentares que pretendiam sobretaxar a

aguardente, de modo a desestimular os consumidores contumazes do produto. Aliás, no campo da

repressão ao consumo de álcool, as medidas da polícia se mostraram sempre mais eficientes.

Sem aprovar projetos de lei apresentados no Congresso com o propósito de reverter o quadro de

alcoolismo social, restou aos ativistas do movimento pró-temperança continuar se dirigindo ao

público, com insistência, para condenar o consumo de bebidas alcoólicas, especialmente as

reputadas como mais tóxicas. O discurso proferido por médicos, feministas e juristas penetrou no

meio social e seus ecos são encontrados na imprensa e, mais interessante, no discurso de construção

da auto-imagem de categorias funcionais, como os motoristas de praça do Rio de Janeiro.

No início de janeiro de 1926, a União Brasileira dos Chauffeurs, por intermédio do Centro Político

dos Chauffeurs, promoveu uma semana de atividades que incluiu uma campanha contra o consumo

de álcool e a prática do jogo. O jornal da entidade, A Voz do Chauffeur, criticou o fato de a

proibição da venda de bebidas após as 19 horas não estar sendo cumprida. Segundo o jornal: (...) aí

que se vende mais parati e se joga mais nos bares. Esta menção negativa às doses cotidianas de

aguardente consumidas pelos freqüentadores dos bares contrasta com o anúncio da Brahma

publicado na mesma edição, cujos dizeres eram: Vós que pertenceis a uma classe laboriosa e

Fidalga, deveis beber exclusivamente Cerveja Fidalga!67

Ao divulgar a propaganda da cervejaria e, mais, ao colocá-la em destaque na paginação em um

número dedicado ao registro das atividades associativas da União Brasileira dos Chauffeurs, os

editores do jornal dos motoristas revelavam encarar o ato de beber cerveja com normalidade. Em

outros termos, na auto-imagem que os motoristas, uma categoria de trabalhadores organizados e

engajados em um projeto político maior, buscavam construir para si não havia lugar para a

aguardente. O vinho e a cerveja haviam deslocado a velha parati para um lugar inferior no universo

dos sinais de distinção social com os quais as pessoas interagiam socialmente. Na cotação dos

valores simbólicos atribuídos às mercadorias, a cerveja suplantara a aguardente. Como, então, a

teoria social vê esse problema?

No âmbito do pensamento social marxiano, o consumo é um dos principais recursos ideológicos

que perpetuam a ordem social capitalista. Se a consciência de classe é adquirida na ação coletiva

dos trabalhadores em defesa dos seus interesses, o ato de consumir os aliena da participação política

e oblitera nos homens a visão das contradições sociais.

67 A Voz do Chauffeur, Rio de Janeiro, 04/01/1926.

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No entanto, essa forma de pensar nos parece não esgotar a questão, pois as estratégias de consumo

também podem ser tomadas como parte das estratégias de poder e do desejo de se diferenciar dos

outros grupos sociais. Imigrantes e afro-descentes pertenciam à massa trabalhadora e, como tal,

estariam irmanados na experiência de classe. Há, porém, uma notória cisão simbólica entre esses

trabalhadores, manifesta em pequenas estratégias de consumo cotidianas que criavam sinais de

demarcação entre os grupos sociais. Sob o manto do consumo, os imigrantes encontraram mais

alguns elementos para traçar fronteiras entre si e os demais trabalhadores da cidade.

Assim, no mundo privado das relações interpessoais, o consumo de bens contribuiu para diferenciar

homens que, no mundo público, poderiam se unir em prol de seus interesses comuns. Imigrantes e

trabalhadores nacionais, negros ou quase negros, buscavam avidamente se distinguir uns dos outros,

ainda que fosse pela preferência por cerveja ou aguardente. A indústria de cerveja só se beneficiou

disso.

URBANIZAÇÃO E PODER: Elites políticas e a modernização de Piracicaba na I República

Eliana T. Terci*

Resumo: O neo-colonialismo decorrente da II Revolução Industrial integra o Brasil, um país escravista e agrário, às correntes do comércio internacional. A conjuntura modernizadora que se inaugura é propícia aos ideais republicanos - o abolicionismo, a descentralização política e o liberalismo - e torna as cidades o locus privilegiado da institucionalização desse fazer histórico. Piracicaba vivencia essa transição: a "administração modelo" do PRP nos primeiros decênios e o "bairrismo piracicabano", versão local do nacionalismo dos anos 20, são ilustrativos da estruturação do poder dos republicanos que reordena o espaço urbano, redefine suas funções e segrega a população. Palavras chaves: Piracicaba, republicanos, cana-de-açúcar, urbanização, modernidade Abstract: The neo-colonialism as a result of II Industry Revolution includes Brazil, a slavery and agricultural country in international trade. The begining of this modern period promotes the republican idéas such as the abolicionism, the politic descentralization and the liberalism and turn the cities the locus to a institucionalization of historical made. Piracicaba experiences this transition: the "model administration" of the PRP in the first decades and the "bairrismo piracicabano", domestic version of the nacionalism wage of the 20 years, ilustrating the formation of the republican power, reordering the public space, defining funtions and people's segregation. Keywords: Piracicaba, republican, sugarcane, urbanization, modernity

A historiografia explorou com riqueza de detalhes a história política da I República,

demonstrando que a ordem republicana não implicou a instauração de um regime democrático no

Brasil, mas sim a constituição de um novo pacto oligárquico fundado, no campo político, na

exclusão social não somente das camadas pobres da população, como também dos segmentos

radicais das elites, quer monarquistas, quer republicanos. Já na esfera econômica, o regime

republicano representou a afirmação do progresso como sinônimo de enriquecimento e

prosperidade material.

Ao permitir a ingerência dos interesses privados na esfera pública, a descentralização

republicana define uma das características centrais da ordem liberal brasileira. De outra parte,

* Doutora em História pela Universidade de São Paulo (USP), pesquisadora do Núcleo de Pesquisa e Documentação Regional (NPDR) e professora da Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP).

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também confirma aquela fonte de prestígio e de poder das elites para a sua ascensão política no

cenário nacional, a saber, a intervenção na modernização dos núcleos urbanos construindo o

prestígio político local. Na verdade, o localismo constitui uma das principais estratégias políticas do

Partido Republicano Paulista. Quando de sua criação em 1873, o PRP já declarava como princípio a

sua própria defesa e autonomia frente ao centro estabelecido na corte. Casalecchi considera o

localismo dos republicanos uma reação ao centralismo do poder imperial, pois “eram conhecidas as

lamúrias de presidentes da província a respeito das ‘providências municipais’ a prejudicar-lhes a

administração. Por isso, o ideário republicano só medraria se desse lugar seguro para o poder e

influências locais.”1

É nesse sentido que a afirmação de um projeto de desenvolvimento para a cidade constitui o

alicerce para a afirmação dos grupamentos políticos locais, bem como sua principal fonte de

intervenção na esfera pública. Piracicaba é emblemática neste sentido, foi a cidade em que Prudente

de Morais iniciou sua carreira como advogado e político.

1- PIRACICABA ANTIGA: OS ANTECEDENTES DA MODERNIDADE

Os republicanos ilustres chegam a Piracicaba na metade do século XIX, quando a então Vila

Constituição passa à condição de cidade2 O núcleo urbano, à semelhança das demais cidades

interioranas do período, constituía um espaço meramente administrativo, do qual constavam: “o

prédio da cadeia, que abrigava ao mesmo tempo a cadeia, a escola primária e a Câmara

Municipal. Compunham ainda o núcleo urbano o Mercado Municipal, as chamadas casinhas,

construídas em 1858, utilizando-se de uma das paredes do Teatro que serviu de gigante, compondo

com divisões de taipa.”3

Quando em 1956 Piracicaba é emancipada à condição de cidade, possuía 1.600 casas, 4.000

habitantes urbanos e 22.000 pessoas em todo o município, incluindo 5.000 escravos.4

A preocupação central da edilidade local residia na comercialização da produção local com

outras localidades, através da construção e melhoria das estradas, da vinda da estrada de ferro e da

melhoria dos transportes fluviais. Um dos mais sérios problemas enfrentados referia-se à ponte 1 CASALECCHI, José Ênio. O Partido Republicano Paulista (1889-1926). 1ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1987, pp.51-52. 2 O nome “Constituição” foi atribuído a Piracicaba quando foi emancipada à condição de Vila, em 1821, em homenagem à Constituição Portuguesa (Cf. GUERRINI, Germano. História de Piracicaba em quadrinhos. Piracicaba: Ed. do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba, 1970) 3 CASALECCHI, José Ênio. O Partido Republicano Paulista (1889-1926). 1ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1987. Ver pag.

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sobre o rio Piracicaba, que permitia a ligação dos dois lados da cidade e que, “construída sem

altura suficiente, com as contínuas chuvas e enchentes, oferecia sério perigo aos que por ela

transitassem5". O transporte fluvial, por sua vez, era a alternativa à má situação das estradas e às

dificuldades com a ponte: era feito em canoas e destinava-se a estabelecer comunicação com

Cuiabá e transportar as canas dos engenhos de açúcar. Não arrefeceu mesmo com a chegada da

Estrada de Ferro Ituana, em 1877, ao contrário, modernizou-se com o "lançamento às águas do

vaporzinho Explorador", da Companhia de Navegação Fluvial Paulista, que se ocupava da

navegação comercial do rio Piracicaba. A extensão de um ramal da estrada de ferro para Piracicaba

representou outra, senão a mais importante, conquista da edilidade local na segunda metade do

século XIX, pois permitia à cidade o acesso ao principal evento da I Revolução Industrial.

O aprimoramento dos meios de comunicação e transportes eram condições fundamentais

para que as cidades interioranas não caíssem na condição de cidade morta a que estariam sujeitas

caso não se engajassem nos mercados de exportação. Piracicaba buscava a todo custo superar os

entraves às exportações, cuidando de viabilizar as diversas formas de escoamento da produção de

suas 14 fazendas de café e 28 engenhos de açúcar e fazer parte da divisão regional e internacional

do trabalho.

As dificuldades financeiras, no entanto, mantinham-se na dianteira dos entraves ao

progresso da cidade. As construções feitas à taipa e barro não resistiam ao tempo das chuvas e

exigiam consertos constantes. Tais dificuldades tinham relação direta com a tutela que a

administração imperial impunha aos municípios. Ainda sob os auspícios da lei imperial de 1828, os

municípios gozavam de estreitíssima autonomia financeira: não havia nesta lei, “especificação de

quaisquer impostos cuja criação lhes competisse (às Câmaras municipais). Alude não obstante à

venda, aforamento, troca, arrendamento e exploração direta de bens dos conselhos, e permite às

Câmaras impor multas por violação de suas posturas, fixando-lhes o limite máximo.”6

Um novo momento, entretanto, se anuncia nessa segunda metade do século XIX: se a escrita

física que desenha os monumentos e símbolos materiais do progresso da cidade e a arquitetura

urbana ainda se ressentem das mesmas dificuldades, as dimensões econômica e política começam a

se alterar com a entrada em cena de novos atores sociais e políticos.7

Os progressos da lavoura cafeeira e, principalmente, as necessidades de melhoria da

produtividade da cultura no sentido da redução dos custos, já a partir dos anos finais da década de

4 VITTI, Guilherme. Manual de História Piracicabana. Piracicaba: Jornal de Piracicaba, 1966. 5 GUERRINI, Leandro. História de Piracicaba em quadrinhos. Piracicaba: Ed. do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba, 1970, p. 383. 6 LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto. 3ª ed. São Paulo: Alfa-Ômega, 1976, p. 138. 7 Sobre a analogia entre a escrita e a construção das cidades ver ROLNIK, Rachel. O que é cidade. 2ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1988.

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1860, acabam por impulsionar o desenvolvimento das atividades urbanas de caráter industrial,

além, evidentemente, daquelas voltadas à comercialização e exportação do produto.

Nessas circunstâncias os irmãos Manuel e Prudente de Moraes Barros chegam a Piracicaba

para se estabelecerem como advogados, os primeiros advogados a fixarem escritório em Piracicaba

e constituir família. Chegam recém-formados pela Academia de Direito de São Paulo portando os

ideais republicanos emergentes.

Enquanto a Câmara conservadora se envolvia com os problemas de infra-estrutura urbana,

como o calçamento das ruas, a numeração e o emplacamento das casas, o abastecimento de água

etc, os liberais vão tratar de organizar a luta republicana: em 1870 Manoel de Moraes Barros e

outros aderem ao Manifesto de 3 de Dezembro para a fundação do Partido Republicano. Não

contam de imediato com a adesão de Prudente de Moraes que mantém-se fiel ao Partido Liberal,

Desiludido, porém, torna-se ferrenho organizador do novo partido e inaugura uma intervenção no

sentido da construção daquelas instituições que viabilizariam uma intervenção social, alterando aos

poucos a ordenação do espaço urbano, afinal:

A cidade, nesse momento, ainda que incipiente núcleo urbano, passa a ser o locus privilegiado do exercício dessa transição, inaugurando outros pontos de convívio além da Igreja, edificando monumentos laicos, possibilitando o surgimento de novos grupos sociais, abraçando projetos de educação e saber secularizados, em clara obediência às luzes do pensamento liberal.8

O ano de 1876 será destinado à grandes investidas nesse sentido: é inaugurado o Gabinete

de Leitura e criada a Loja Maçônica Piracicaba, ambos sob a direção de Manoel e Prudente de

Moraes Barros. É reativado O Piracicaba, jornal editado em 1874, sob a redação de Antonio Gomes

Escobar e são dadas as primeiras iniciativas para a construção de um Colégio Metodista em

Piracicaba. Ainda como vereador, Prudente de Moraes, juntamente com os oposicionistas, desfere

uma derrota simbólica aos conservadores: em sessão da Câmara de 11/03/77, por indicação sua, é

endereçada à Assembléia Legislativa Provincial uma solicitação para que fosse restituído à cidade

seu antigo nome Piracicaba. Em 13 de abril do mesmo ano, através da lei n.º 21, a Assembléia

Legislativa Provincial atendia a solicitação.

Nota-se, assim, a estreita relação entre a construção dos símbolos dos novos tempos como

obra desses novos atores. Mas não eram somente para a construção dos espaços para o exercício da

cidadania que a cidade abria espaço de intervenção, outros chegam para fazer dela o "espaço de

aplicação do capital".

Os méritos dessa forma de intervenção na cidade cabem principalmente a Luis Vicente de

Souza Queiroz. Herdeiro da fortuna de seu pai Vicente de Souza Queiroz, chega em Piracicaba para

8 MARTINS, Ana Lúcia .A invenção e/ou eleição dos símbolos urbanos: história e memória da cidade paulista In BRESCIANI, Maria Stella (org.), Imagens da cidade - séculos XIX e XX. São Paulo: ANPUH-SP/Marco Zero/FAPESP, 1994, p. 184

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tomar posse de seus bens em 1872, quando do falecimento de Vicente, dentre os quais constava a

Fazenda Engenho D’Água, situada às margens do rio Piracicaba. Em 1874 já são inaugurados os

trabalhos para a construção no local da Fábrica de Tecidos Santa Francisca, com grande festa na

cidade, incluindo banda de música e merecendo destaque nas páginas da imprensa local.

Luiz de Queiroz potencializou a oportunidade que o momento proporcionava. A imigração

norte-americana para a cidade vizinha de Santa Bárbara D’Oeste e o desenvolvimento da lavoura

algodoeira como atividade principal dos imigrantes criavam expectativas promissoras ao

desenvolvimento da indústria têxtil. Assim, em 1878, a Fábrica de Tecidos Santa Francisca,

operava com 50 teares, e empregava além da maioria de trabalhadores nacionais, outros de

nacionalidade diversa (ingleses, belgas, franceses e italianos), sua produção destinava-se às cidades

vizinhas, mas também ao Paraná e Rio de Janeiro9.

A cultura algodoeira, de fato, não vingou em Piracicaba, porém, a enorme demanda por

sacos para embalagem do açúcar permitiu a sobrevivência dessa única indústria têxtil no município.

E não foi essa a única iniciativa que fez de Luiz de Queiroz o pioneiro nos empreendimentos

modernos em Piracicaba: em 1860 importou da França um carro de tração animal, em 1882 instalou

uma linha telefônica entre sua fábrica de tecidos e sua fazenda Santa Genebra; em 1893, já na

República, foi responsável pela iluminação elétrica da cidade, para o quê havia constituído a

Empresa Elétrica dois anos antes.

A obra que o imortalizaria e que projetaria seu nome nacional e internacionalmente, porém,

seria, sem sombra de dúvida, a constituição da Escola Prática de Agricultura, atual Escola Superior

de Agricultura Luiz de Queiroz, da Universidade de São Paulo, viabilizada somente com a

República em 1901.

Os monarquistas reagem a essa crescente intervenção dos republicanos. Em 1881, o então

Barão de Rezende funda o Engenho Central de Piracicaba, apoiando-se na lei imperial, num

momento em que a produção cafeeira superava a açucareira no município (300 mil arrobas de café

contra 30 mil de açúcar).10

Outro indício bastante significativo dessa reação provém da Igreja Católica. No mesmo mês

de fevereiro de 1883, quando se realizam as anunciadas cerimônias de lançamento da pedra

fundamental do Colégio Piracicabano metodista, a Igreja Católica lança a pedra fundamental para a

construção do Colégio Assunção.

A Câmara Municipal também buscava reagir e dotar Piracicaba dos melhoramentos que a

cidade necessitava. Exemplo disso foram as iniciativas no sentido de implantar a iluminação

9 TORRES, Maria Celestina Teixeira Mendes. Aspectos da expansão urbana de Piracicaba nos primeiros anos do século XX. Revista do IHGP, Ano I, n.º 1, dez/1991. 10 Gazeta de Piracicaba, 21/9/1883.

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pública: em 1873, através de uma solicitação ao governo da Província para a doação de lampiões e

a cobrança de um imposto às casas situadas nas ruas beneficiadas com a iluminação, a Câmara traz

tal benefício a Piracicaba.

A partir de 1877, porém, estando a Câmara integrada pelos republicanos, torna-se prática a

abertura de concorrência pública para a realização dos serviços urbanos, alterando substancialmente

o cenário. Fortalecia-se desta maneira a posição dos republicanos e tornava a reação monarquista

inócua, principalmente na presença de aventureiros ávidos por estabelecer negócios voltados aos

serviços públicos. Em Piracicaba vários deles foram viabilizados desta forma, como o

abastecimento de água, luz, esgoto etc.

Coroando todas as iniciativas mencionadas no sentido da construção dessa intervenção

alternativa na vida urbana, os republicanos fundaram em 1882 o seu órgão de imprensa, o jornal

Gazeta de Piracicaba, que lhes garante um espaço de atuação para formar a opinião pública,

propagandear a sua ação social e política e construir uma nova ordem social.

A abolição da escravidão destaca-se como a principal campanha dos republicanos desde a

fundação da Gazeta de Piracicaba. A estratégia central dessa empreitada consistia em evitar o

confronto político com os escravocratas, cujo antagonismo abolicionismo/escravismo, poderia

inevitavelmente incorrer. A proposta dos republicanos era a de que se promovesse a abolição

gradualmente, contemplando o temor dos conservadores quanto à perda do patrimônio representado

pelos escravos: “a libertação com a cláusula de prestação de serviços durante certo prazo é a mais

pertinente forma de operar a transição11."

Apesar da adesão de inúmeros fazendeiros à proposta republicana, em 1887 havia ainda

3.416 escravos matriculados na coletoria da cidade. Os fatos, no entanto, mais uma vez

corroboravam a posição republicana:

Com freqüência, noticiava-se na cidade fugas de escravos dos municípios vizinhos e do município de Piracicaba. Era a idéia da abolição em marcha, pois as autoridade nada faziam para impedir tais fugas. Pelas ruas da cidade já se notavam grupos de escravos fugidos, carregando sacos de roupas, foices e cacetes. Os próprios fazendeiros já não tinham forças para coibir a deserção12.

Esse estado de coisas culminou com o registro de apenas 40 escravos pela Coletoria local

em 1988, até porque os fazendeiros já se empenhavam na atração de imigrantes para suas fazendas

no município. A imigração é precoce na região, remontando aos idos de 1840, quando o Senador

Vergueiro inicia o movimento de substituição da mão-de-obra escrava pelo trabalhador livre,

instituindo o sistema de parceria. Assim, em 1872, a população estrangeira de Piracicaba somava

11 Gazeta de Piracicaba, 19/out./1887. 12 GUERRINI, Leandro. História de Piracicaba em quadrinhos. Piracicaba: Ed. do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba, 1970, p. 143.

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1.733 indivíduos, representando 8,6% da população total13 e, entre dezembro de 1887 e 1888,

entrariam no município cerca de 1.600 novos imigrantes.14

Assim, já a 11 de maio daquele ano o Clube Piracicabano organizava uma Comissão de

Festejos Pró-Abolição e, em 13 de maio:

Mal se soube na cidade da extraordinária nova, imediatamente a alegria tomou conta de Piracicaba, cujas atividades foram totalmente paralisadas, na expansão do contentamento. Foguetes, bandas de música, oradores improvisados, grupos de populares por todos os cantos. À noite, realizou-se imponente "marche aux flambeaux", (grande número de tochas acesas conduzidas por populares, processionalmente), com iluminação em todas as fachadas de casas e um número sem fim de oradores15.

Os negros também puderam comemorar sua libertação exatamente um mês após a assinatura

da Lei Áurea sob a orientação de alguns cavalheiros, pois é de forma vigiada que os despossuídos

participarão da vida em público. É claramente perceptível o sentido que imprimiam às suas ações,

no sentido da ampliação da esfera pública, a saber, a laicização e a secularização do espaço público

para a atuação das elites letradas e empreendedoras. Ou seja, não implicou a democratização da

sociedade, sequer garantiu a cidadania civil ao contingente dos despossuídos.

A proclamação de República vem coroar o êxito da empreitada dos liberais piracicabanos,

bem como selar o reconhecimento de sua força política com a nomeação de Prudente de Moraes

para compor o triunvirato que governaria São Paulo, ao lado de Francisco Rangel Pestana e

Joaquim de Souza Mursa.

Estando no domínio do Poder Público, os republicanos tratarão de consolidar a sua

concepção de cidade, tendo na imprensa um instrumento fundamental de militância política na

construção e propaganda da cidade moderna, fazendo da Gazeta de Piracicaba seu órgão oficial. No

seu encalço, porém, já no ano que anuncia o novo século, surge na cidade um outro jornal para

“garantir os interesses locais”, com o firme propósito de fazer da ação na vida pública cotidiana a

sua militância no espaço urbano, o Jornal de Piracicaba.16

A partir daí tem-se uma nova forma de apreender a história social e política de Piracicaba,

aquela levada a efeito pelos jornalistas e seus colaboradores. Antes, porém, cabe enunciar os

principais traços deixados pela escrita da cidade marcada por esse momento de transição, visto que

a cidade política e a cidade como mercado já eram outras.

O principal traçado da cidade, no entanto, permanecia sendo aquele dos tempos da fundação

do povoado, tendo como referência o rio Piracicaba, a rua Moraes Barros (antigo Picadão do Mato

13 MALUF, Renato Sérgio Jamil. Aspectos da constituição e desenvolvimento do mercado de trabalho urbano e rural em Piracicaba. Piracicaba: Ed. UNIMEP, 1984. 14 Gazeta de Piracicaba, 23/2/1888. 15 GUERRINI, Leandro. História de Piracicaba em quadrinhos. Piracicaba: Ed. do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba, 1970, p. 151 16 Jornal de Piracicaba, 4/8/1900, Editorial de lançamento do 1º número.

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Grosso), e o Largo da Matriz, outrora, o centro dos poderes constituídos. Isso revela uma

peculiaridade das cidades interioranas em relação às metrópoles. Nessas últimas, a Modernidade faz

com que a penetração do tijolo altere o traçado montado pela paisagem natural, inaugurando o

novo: o centro novo, a cidade nova e tornando o outrora belo em ultrapassado. Em Piracicaba, o

crescimento urbano preserva minimamente esse traçado inicial e a cidade se expande a partir dele.

E é num tom bastante saudosista que o memorialista despede-se do século XIX, contagiado

pelo romantismo dos piracicabanos de que nos fala Perecin em suas obras:

Ai belezas brancas, translúcidas de inocência e amor discreto! Pedaços de morenas dengosas e italianinhas de peitaria criadora! Só se via de seus corpos, o rosto e as mãos diáfanas. Pernas?...Só as das lavadeiras do rio, e olhe lá, quando não se era corrido a pedradas. − Sem vergonha, era o grito de alarme. Que elegantes os troles de quatro rodas, puxados por parelhas luzidias! Lá na frente, o cocheiro todo empertigado, como se fosse ele o dono das preciosidades vivas que levava! De tempos a tempos, apresentação de peças no teatro. Era uma das poucas ocasiões em que as mulheres, aparecendo em público, mostravam seus colos níveos, ornados de colares e pedrarias, patrimônios de família. Namoro, só na sala de visitas, com a infalível presença de uma testemunha carrancuda. Nada de bondes, nada de transportes rápidos e confortáveis, nada de passeios no jardim público. Os moços divertiam-se assistindo a corridas de cavalos, com caçadas e pescarias. Nem cinema, nem futebol. Isso no comecinho do século17.”

2 - PIRACICABA MODERNA: “A CIDADE NA SENDA DO PROGRESSO”

2.1 - A Economia e a Construção da Imagem de Progresso

A base econômica da Piracicaba moderna era predominantemente agrícola, como era

comum nessa primeira fase de desenvolvimento urbano do Estado de São Paulo. Em 1900, contava

com 2.252 prédios e 14.000 habitantes urbanos: “o café continuava sendo sua principal riqueza,

seguido da cana que alimentava o Engenho Central e o Monte Alegre; em terceiro lugar o algodão

que abastecia a Fábrica Santa Francisca”18. A cidade guardava uma especificidade em relação ao

restante do interior do Estado de São Paulo, a presença da cana-de-açúcar, enquanto predominava

no estado a monocultura cafeeira. A produção açucareira de Piracicaba persistiu mesmo com a

difusão da cafeicultura em São Paulo, passando inclusive por um processo de modernização na

década de 1890, com a construção dos engenhos centrais.

Na verdade, a não substituição da cana pelo café, bem como a estrutura produtiva histórica

do município, consolidam-se no momento de transição do trabalho escravo para o trabalho livre e

das crises cíclicas das culturas de exportação. O propalado temor das crises da grande lavoura

cafeeira levou os proprietários piracicabanos a incentivar e explorar não somente a produção

17 VITTI, Guilherme. Manual de História Piracicabana. Piracicaba: Jornal de Piracicaba, 1966, p. 81. 18 PERECIN, Marly Therezinha Germano. A síntese urbana (1822-1930). Piracicaba: Ed. IHGP, 1989, p. 40.

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canavieira, como todas as possibilidades de diversificação da produção agrícola. Isso vai conferir a

Piracicaba uma economia agrícola essencialmente policultora, tendo-se ao lado dos cafezais e

canaviais toda sorte de produtos agrícolas, principalmente a produção de alimentos. O destino dessa

produção, excetuando-se o café, era basicamente o mercado interno local e estadual. Pode-se

mesmo dizer que os produtores locais definitivamente se recusaram a abandonar de vez aquelas

atividades a que se dedicaram desde os primórdios da fundação do povoado, atividades estas que

lhes proporcionaram um mercado certo e que lhes conferiram algum grau de prosperidade.

Vejamos, então, como a imprensa apresentava a realidade do município e a partir dela construía a

imagem de progresso:

PRODUÇÃO DO MUNICÍPIO O município de Piracicaba nunca teve fama de rico. Entretanto, a resumida estatística que vamos apresentar aos leitores demonstra que, se não existem aqui os latifúndios e a espantosa produção, temos uma lavoura variada e intensiva, temos as terras subdivididas − constituindo elementos de incontestável progresso e reconhecido equilíbrio econômico. Além dos cereais, produzidos em grande abundância, por uma infinidade de pequenos lavradores − milho, feijão, arroz − temos como principais culturas a cana-de-açúcar, o café e o algodão. Este último produto vai tomando incremento com o regular funcionamento da Fábrica de Tecidos "Arethusina", onde dele deram entrada, durante o ano de 1904, 31.205 arrobas. Da cana se faz o açúcar e a aguardente, montando a produção daquele ano findo, a 347.162 ar. e desta a 1413 pipas ou 706.500. Sendo que só a ‘Sucrerie’ produziu 281.784 ar. e o E.C. Monte Alegre 57.988 ar., as 7.390 ar. foram produzidas por outros 28 engenhos menores e a aguardente por 63 engenhos. A Fábrica de Tecidos "Arethusina" e a "Sucrerie" contribuem em grande escala para dar a cidade movimento e aspecto acentuadamente industriais. A produção de café para o ano foi de 257.236 ar. Ao maior produtor cabem 24.000 arrobas; vem em seguida um com 12.000 e outro com 10.000; depois 13 produtores de 5.000 a 9.000; 40 de 1.000 e 109 de menos de 1.000 arrobas. As terra do município são em geral terras férteis e conservam ainda muitas florestas. Em alguns pontos existem campos, com boas águas e pastagens, onde se fazem criações de gado bovino e cavalar, embora em pequena escala. A criação de suínos é também explorada. Vê-se por estas rápidas informações que o município está sob regime franco da policultura e dispondo de elementos próprios de vida, tem assegurado seu progresso".19

Este artigo confirma sobremaneira o argumento: o peso relativo do café numa estrutura

produtiva predominantemente policultora e a intencionalidade de construir a imagem de progresso

assentada em outros patamares. Cabe destacar que o artigo insinua, ainda que de maneira tímida, a

integração agricultura-indústria que seria a marca do processo de desenvolvimento do município.

É exatamente esse aspecto que chama a atenção, pois, se o desenvolvimento urbano-

industrial da cidade de São Paulo é marcado a partir dos anos 20 pela intensificação das atividades

ligadas ao mercado interno, com a indústria ocupando paulatinamente papel de destaque, Piracicaba

consolida seu processo de industrialização fortemente vinculado à atividade agroindustrial, voltada,

portanto, ao desenvolvimento de um importante núcleo metal-mecânico que tem relação direta e

umbilical com a consolidação da produção açucareira.

19 Gazeta de Piracicaba, 3/3/1905.

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As agroindústrias, de maneira geral, são caracterizadas por reunirem numa mesma unidade

produtiva as atividades agrícola, de extração da matéria-prima, industrial, de processamento e

fabricação do produto final. Especificamente no caso da agroindústria canavieira, a unidade de

processamento e fabricação do açúcar desenvolveu, desde o período colonial, uma estrutura

produtiva avançada, com acentuada divisão do trabalho, aproximando-as de um verdadeiro sistema

de fábrica, daí a não casual denominação de engenho, cuja evolução tecnológica deu lugar às

usinas.

O fato dessas unidades constituírem verdadeiras fábricas exigia uma mão-de-obra

especializada e afeta aos modernos padrões exigidos pela racionalidade do trabalho industrial. E

mais: durante o processo de fabricação do açúcar, o desgaste dos equipamentos é tal que ao final de

cada safra faz-se necessário o total reparo e desmonte das peças, o que deve ser feito em oficinas

especializadas, valendo o mesmo procedimento também para os engenhos antigos.

Evidentemente tal estrutura tem forte impacto sobre o processo de desenvolvimento urbano,

tanto no que se refere à demanda de mão-de-obra disciplinada e especializada com o advento dos

engenhos centrais e usinas, quanto no desenvolvimento de atividades de caráter urbano-industrial

pesado para o reparo dos equipamentos. Em outras palavras, o advento das usinas demanda das

cidades a construção de uma estrutura que dê suporte ao seu funcionamento, tanto para a

reprodução da força de trabalho, quanto para as demandas do próprio capital. Na verdade,

guardadas as devidas proporções, pode-se dizer que produção canavieira na região de Piracicaba

teve a capacidade de impulsionar a formação de um complexo agro-industrial, nos moldes do que o

café possibilitou no Oeste Paulista.

Ressalte-se que, em 1909, segundo dados da Gazeta de Piracicaba, o Engenho Central

empregava somente na fabricação do açúcar 320 operários distribuídos em dois turnos, diurno e

noturno, além da destilaria de álcool e da oficina mecânica, montada no estabelecimento para

fabricação dos utensílios necessários à empresa. Nem todos os engenhos possuíam as oficinas de

reparos de equipamentos. Nesse sentido, já a partir do final do século passado vão se constituindo

na cidade inúmeras oficinas dessa natureza, constituindo o embrião do que mais tarde seria um

importante núcleo metal-mecânico paulista. As pioneiras desse processo são as Oficinas

Krähenbuhl − fabricante de tílburis e troles, fundada por Pedro Krähenbuhl em 1870 −, tida como a

primeira grande indústria metalúrgica de São Paulo, com “40 operários, número elevado para a

época, esse estabelecimento se constituiu em um dos pioneiros na introdução de carroças e carros à

tração animal, chegando a exportar carros para todo o Estado”20

20 SAMPAIO, Silvia Selingard. Geografia industrial de Piracicaba - um exemplo de integração indústria-agricultura. São Paulo: EDUSP, 1976, p. 84.

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Além desta, registram-se a fábrica de arados e troles de João Martins, fundada em 1900; a

Funilaria e Caldeiraria Vesúvio, fundada em 1907 por Victorio Furlani; e as Oficinas e Fundição

Teixeira Mendes & Cia.

O acontecimento de maior significação para a consolidação desse embrião manufatureiro

metal-mecânico, porém foi a fundação da Oficina Dedini, em 1920. Fundada inicialmente com o

objetivo de fabricar e consertar veículos e utensílios agrícolas,

Inscrevia-se na tradição que viera se formando desde o final do século XIX (...) Aceitar encomendas para reparar e fabricar as peças mais simples para os inúmeros engenhos de açúcar e destilarias de aguardente existentes na região, constituía-se numa ocorrência natural para oficinas desse tipo. A Oficina Dedini não fugiu à regra21.

Esse expediente garantiu a ampliação do empreendimento com a instalação de uma seção de

mecânica e uma pequena fundição de ferro. Negri (1977) destaca a importância dessa iniciativa e a

pertinência em termos das demandas existentes para a Dedini e que serve perfeitamente às outras

oficinas do tipo. O grande salto dado pela Dedini em relação às outras oficinas similares foi a

dedicação desta ao fabrico de moendas. Através do desmonte das peças, foi possível copiar e

modificar os modelos iniciando-se no ramo. Tal empreendimento requereu a ampliação da Oficina,

fazendo-a saltar para a condição de pequena indústria. E mais do que isso, permitiu-lhe voltar-se a

um outro tipo de clientela, basicamente as usinas da região. Há que se destacar, no entanto, que uma

das razões do sucesso da Dedini foi o seu relacionamento com os usineiros. Segundo Negri22,

Mário Dedini, proprietário da oficina, induzia os usineiros a modernizarem suas empresas,

requerendo, em troca dos equipamentos mais modernos que se dispunha a fornecer, os

equipamentos usados e menores, o que reduzia os custos do investimento. Mais eficaz era a

disposição de Mário Dedini em associar-se aos empresários açucareiros para viabilizar a

modernização ou mesmo fundar outro engenho23.

Dessa forma, a Dedini foi se consolidando no ramo acompanhando e até impulsionando o

processo de modernização das usinas de açúcar, permitindo-lhe tornar-se o grande complexo

industrial e único produtor da maior parte dos equipamentos das usinas. Isso também contribui para

explicar, em parte, porque as outras oficinas do gênero existentes em Piracicaba não tiveram a

mesma sorte. De fato, com o processo de concentração de capital a partir dos anos 30, o sucesso dos

empreendimentos industriais dependiam de uma certa sagacidade para aproveitar as oportunidades

que a conjuntura oferecia. Além do mais, encerrava-se a fase de gestação da indústria e a 21 MALUF, Renato Sérgio Jamil. Aspectos da constituição e desenvolvimento do mercado de trabalho urbano e rural em Piracicaba. Piracicaba: Ed. UNIMEP, 1984, p. 29. 22 NEGRI, Barjas. Um estudo de caso da indústria nacional de equipamentos: uma análise do Grupo Dedini (1920-1975). Dissertação de mestrado, Deptº de Economia e Planejamento Econômico do IFCH-UNICAMP, mimeo, 1977.

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consolidação das empresas exigia agora um porte maior e mais moderno: esse espaço a Dedini

soube ocupar e assegurar.

Uma outra atividade de caráter industrial existente no período que o artigo citado

anteriormente chama a atenção é a Fábrica de Tecidos Arethusina - a Santa Francisca, fundada por

Luiz de Queiroz. Em 1912, o montante do capital da empresa era de 1.940 contos de reis, e 300

operários. Com esse capital, a Arethusina figura entre os 102 maiores empreendimentos industriais

do Brasil naquele ano, representado 1,1% do total dos empreendimentos e em termos de pessoal

ocupado, figura entre os 163 maiores empreendimentos industriais, representando 1,6% do total24.

A contratação de mão-de-obra para as tarefas rotineiras não oferecia maiores problemas, pois, de

seus 300 operários, 191 eram mulheres e 75 menores, “excetuando o dos empregados superiores, o

serviço é de empreitada nas principais seções”.25

A presença dessa fábrica, porém, em que pese o seu porte moderno, não foi suficiente para

dinamizar a cultura algodoeira no município e destinar sua produção à demanda da agroindústria

açucareira, foi a saída para sua sobrevivência futura: produção de tecido rústico para uso dos

lavradores e para fazer a sacaria dos engenhos de açúcar.

Com esse quadro, são indicadas as principais características econômicas das atividades

urbanas de Piracicaba no período. Cabe agora apontar as principais traços do desenho urbano que se

construía.

2.2 A construção do urbano e dos símbolos do progresso

No limiar do século XX Piracicaba ainda apresentava um processo de expansão urbana

bastante irregular: “alguns bairros mantinham um certo aspecto rural, diferente do centro-urbano.

Enormes terrenos cercados de pau-a-pique, às vezes meio desmantelados, ruas enlameadas pela

chuva ou envolvidas em nuvens de poeira na época de seca26.” O desenvolvimento urbano,

portanto, não era uniforme e delineava-se a partir de elementos potencializadores da urbanização,

aspectos estes eleitos como significativos do progresso e da modernidade naqueles tempos: “o

advento da ferrovia, em fins do século XIX, e a abertura de ruas entre esta e o Cemitério

contribuíram para a urbanização do Bairro Alto, mas, ao se iniciar o século XX, as chácaras ainda

seriam seu traço característico27.”

23 NEGRI, Barjas. Um estudo de caso da indústria nacional de equipamentos: uma análise do Grupo Dedini (1920-1975). Dissertação de mestrado, Deptº de Economia e Planejamento Econômico do IFCH-UNICAMP, mimeo, 1977, p. 30. 24 DEAN, Warren. A industrialização de São Paulo. São Paulo: DIFEL, 1971. 25 Gazeta de Piracicaba, 18/9/1912. A fábrica está em funcionamento até hoje sob a firma Cia Industrial Boyes. 26 TORRES, Maria Celestina Teixeira Mendes. Aspectos da expansão urbana de Piracicaba nos primeiros anos do século XX. Revista do IHGP, Ano I, n.º 1, dez/1991, p. 22. 27 Idem.

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Segundo recenseamento de 1899, Piracicaba possuía 2.092 casas; 11.060 habitantes, dos

quais 8.054 brasileiros e 3.006 estrangeiros (dentre os quais 2.064 italianos); 5.555 alfabetizados e

5.505 analfabetos.28 À ação empreendedora dos piracicabanos que deu a Piracicaba aquele perfil

econômico vêm se somar a ação da administração pública e das elites políticas no sentido da

construção de infra-estrutura urbana que projetasse a cidade.

A imprensa da época reconhecia nessa interação a fonte para o desenvolvimento industrial

dos municípios paulistas, na qual “iniciativa privada e incentivos públicos têm garantido a

prosperidade das localidades”, permitindo-se profetizar então que “a Piracicaba está reservado um

lugar de destaque entre os municípios que marcham na senda do progresso.”29

A verdade é que a República e a descentralização vinham consolidar o tino empreendedor

das elites paulistas com a maximização do enriquecimento que os negócios do café propiciavam.

Esse movimento, que Saliba30 denominou paulistismo, cujo slogan “São Paulo é a locomotiva que

puxa os vagões velhos e atrasados da Federação”, atinge seu auge nos anos 20 com a emergência de

um projeto modernizador para o país, o qual colocava São Paulo na vanguarda graças à sua

condição de unidade mais rica da nação. Seu ponto de partida, porém, localiza-se muito antes, na

busca das elites dominantes por uma política econômica independente para os estados,

principalmente pela autonomia no acesso ao sistema de crédito internacional.

É nas cidades que tais propósitos empreendedores e políticos das elites se materializam e o

empenho de um projeto de desenvolvimento para a cidade constitui o alicerce para a afirmação dos

grupamentos locais, bem como sua principal fonte de intervenção na I República.

É no processo de construção da imagem de administração modelo, conquistada pelos

republicanos nas primeiras décadas do século XX, que se encontram as bases da construção da

Piracicaba Moderna. A marca da intervenção da administração modelo tinha estreita relação com a

idéia sanitária, momento "em que a cidade se problematiza atravessada pela questão da técnica e

pela questão social, quando se pretendeu resolver os problemas da sujeira, da peste, das sublevações

possíveis, imaginárias ou verdadeiras31.” Tendo à frente da Câmara Municipal (1896-1910) nada

menos que o médico formado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, Dr. Paulo de Moraes

Barros, filho de Manoel de Moraes Barros, o saneamento manteve-se como a marca da sua

administração, dando continuidade aos intentos de seu pai, desde os tempos do Império:

Percorrei a nossa cidade em qualquer direção, vós que a conhecestes há vinte anos, e fazei o confronto da − Noiva da Colina, de então, com a Piracicaba engalanada de hoje. A sua população

28 Gazeta de Piracicaba, 30/jan./1902. 29 Jornal de Piracicaba, 24/mar./1920. 30 SALIBA, Elias Tomé. Ideologia liberal e oligarquia paulista; a atuação e as idéias de Cincinato Braga, 1891/1930. Tese de doutoramento, Deptº de História FFLCH-USP, mimeo, 1981. 31 BRESCIANI, Maria Stella. As sete portas da cidade. Espaço & Debate: Revista de Estudos Regionais e Urbanos, n.º 34, ano XI. São Paulo: NERU, 1991, p. 14.

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mais que duplicou; a sua área urbana dilatou-se conquistando as capoeiras e terrenos cultivados das cercanias; suas ruas preparadas de extremo a extremo, convidam ao salutar e aprazível exercício que nos dá energia e força; suas praças e largos, onde se apascentava a alimária, são hoje virentes parques e jardins onde os pulmões sorvem o ar puro que lhes vitaliza o organismo e o espirito repousa suavemente na labuta diária. (...) O Itapeva, antes foco de miasmas e embaraço à viação até de pedestres, hoje saneado, melhorado o seu curso, oferece essa série de pontes de alvenaria que pôs em comunicação fácil os pontos extremos da cidade. A antiga e deficiente iluminação à querosene foi substituída pela elétrica que derrama a sua luz profusa e sã.(...) Recordais vos do que eram antigamente as habitações com as suas cloacas, e os recantos da cidade como pontos de despejo das imundícies?! Recordais vos das epidemias de varíola, como das epidemias de tifo maláricas?! Recordais vos dos angustiosos tempos em que a nossa cidade, sitiada pela febre amarela, como por essa mesma varíola, recebia às dezenas os míseros fugitivos já enfermos, que em aflição abandonavam os seus lares assolados e cobertos de luto?! (...) Qual a Providência que salvou Piracicaba, quando suas irmãs mais próximas eram impiedosamente flageladas? (...) Essa Providência foi a providência da administração pública local, que ao par de outras medidas sanitárias conseguia a construção do − Hospital do Isolamento − e corajosamente metia ombros ao maior, ao mais custoso, ao mais necessário, ao mais útil de todos os seus empreendimentos, a construção da rede de esgotos, o único capaz de opor uma barreira eficiente à formidável calamidade que afligia o Estado de S. Paulo 32

Evidencia-se o discurso do reformador e planejador urbano na fala de Paulo de Moraes

Barros, que se inscreve na denominada ciência urbana surgida no início do século, qual seja, a

cidade como possível fator de progresso, com funções diversas, cabendo aos planejadores definir e

normatizar suas funções tendo como método de experimentação o modelo da medicina33. Esse

método embasa as ações saneadoras, bem como normatiza as construções. E é a técnica o

instrumento capaz de modificar o meio para construir o progresso. A compreensão que permeia

toda proposição saneadora é a de que a reforma substancial dos ambientes insalubres é a maneira

mais eficiente para se criar uma conduta civilizada para os pobres. Tal concepção, cuja origem é

européia, deita raízes entre os reformadores urbanos no Brasil34.

Higiene e estética são, na verdade, os elementos norteadores do pensamento urbanístico de

São Paulo do período, os quais orientam a intervenção dos reformadores urbanos e não deixa de

influenciar as elites políticas piracicabanas:

A discussão e implementação de uma cidade higiênica e a associação entre salubridade física e

social será uma das formas fundamentais de generalização dos valores burgueses, de controle desta

população móvel, instável. A criação de um novo espaço físico para a cidade será a construção e

imposição de uma nova cultura para o trabalho e trabalhadores35.

32 Discurso de Paulo de Moraes Barros, proferido em 04/maio/1910, no Club Republicano, em resposta à homenagem a ele prestada pelos correligionários do Partido Republicano de Piracicaba, quando de sua volta da Europa onde fora acompanhar a esposa que estava gravemente enferma. Apud CAPRI, 1914, pp. 12-19. 33 TOPALOV, Christian. Os saberes sobre a cidade: tempos de crise. Espaço & Debate: Revista de Estudos Regionais e Urbanos, n.º 34, ano XI. São Paulo: NERU, 1991. 34 BEGUIN, François. As maquinarias inglesas do conforto. Espaço & Debate: Revista de Estudos Regionais e Urbanos, n.º 34, Ano XI. São Paulo: NERU, 1991. 35 LANNA, Ana Luiza D. Santos - transformações urbanas e mercado de trabalho livre, 1870-1914 In SILVA, S. S. e SZMERECSÁNYI, Tamás. (orgs.). História econômica da Primeira República. São Paulo: HUCITEC/FAPESP, 1996, p. 298.

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A lei sobre construções decretada pela Câmara Municipal na ocasião em que Paulo de

Moraes a presidia sintetizava a proposição saneadora. Estabelecendo total controle sobre as

construções dentro do perímetro urbano e exigindo a solicitação de autorização da Câmara para

edificações e reedificações, estabelecia uma série de regulamentos e condições para aprovação dos

projetos: o alinhamento deveria ser aprovado pelo fiscal arruador; definia-se dimensões mínimas

para as construções tendo em vista as condições de arejamento, luminosidade e nivelamento do

terreno para permitir escoamento das chuvas; proibia construções em lugares possíveis para a

abertura de ruas; condicionava as construções de fundos às que fossem muradas, assim como

proibia o aproveitamento de muros feitos no alinhamento de ruas e praças para construções que

ficassem visíveis de fora; obrigava a demolição das construções em ruína; condicionava as

construções em terreno que outrora serviram para depósito de lixo à sua completa limpeza anterior

à edificação; dispunha sobre toda sorte de questões referentes às condições da construção definindo

o material a ser usado, proibindo o uso de madeira e barro, obrigando o reboque e caiação externos

e o calçamento; dispunha ainda sobre as condições para a manutenção das cocheiras e estábulos,

estabelecendo prazo de seis meses para que os existentes se enquadrassem no disposto pela lei;

estabelecia o prazo de um ano para o cumprimento da lei; definia comissão de inspeção para

averiguação das construções e estabelecia multa de 25$000 reis para os que, nesse prazo, não se

enquadrassem e 50$000 reis para os reincidentes.36

Como afirma Beguin “a arquitetura é reduzida às aptidões físicas das formas utilizadas na

habitação e dos efeitos produzidos por estas formas sobre os fluidos ou sobre um modo de

distribuição de pessoas e de serviços37.” Em outras palavras, a racionalidade que prescreve a

preocupação estética e que permeia a proposição é aquela da ordem e da visibilidade, aquela do

planejamento urbano.

Num outro sentido, sanear e higienizar representava construir uma nova imagem da cidade

que permitisse apresentá-la como urbe civilizada, numa microversão da obsessão progressista que

tomava conta das elites políticas. Isso ocorre porque acompanhar o progresso significava alinhar-se

com os padrões e o ritmo economia européia. Perseguia-se, pois, o ideal de cidade urbanizada,

industrializada, com um ritmo de vida ditado pela fábrica ou pelo escritório. Num sentido mais

amplo, essa obsessão pelo progresso era uma das manifestações do modernismo do limiar do século

XX, da Belle Époque, cujo sentido estava

Impregnado por uma fé confiante no progresso social, por uma pronta disposição em acreditar que o desmascaramento dos abusos era um passo para a sua eliminação, que a rejeição do passado

36 Arquivo da Câmara Municipal de Piracicaba, Livro de Leis e Resoluções, vol. 5, fl. 71 e seguintes. 37 BEGUIN, F. As maquinarias inglesas do conforto. Espaço & Debate: Revista de Estudos Regionais e Urbanos, n.º 34, Ano XI. São Paulo: NERU, 1991, p. 39.

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convencional era a preparação do caminho para um crescimento moral saudável, para ideais desejados. O trabalho duro, a visão clara, a coragem, a determinação − tais eram as chaves do futuro, para a evolução de novos tipos de homens, de sociedades, de artes38

Assim, resgatar a credibilidade do Brasil no exterior parecia fundamental para desfazer a

imagem negativa que o país conquistara externamente em função das sucessivas crises políticas do

período imediatamente subsequente à proclamação da República, o que comprometera as reservas

nacionais e dificultara a entrada de capitais e mesmo a imigração. Nessa perspectiva, as grandes

cidades deveriam ser os cartões de visita do Brasil moderno: saneadas, higienizadas, produtivas,

disciplinadas, desobstruídas da pobreza itinerante, enfim, civilizadas, desfazendo a imagem

cultuada no estrangeiro de povo preguiçoso e indolente. Sevcenko39 chama a atenção para o fato de

que somente as cidades grandes poderiam se valer dessa redenção, o que permitiu a construção da

idéia do Brasil dicotomizado na oposição cidade industrializada-campo indolente, o país próspero e

o atrasado. É certo, porém, que as elites políticas piracicabanas não se conformaram em deixar

Piracicaba na segunda categoria, tratando logo de emancipá-la. O discurso de Paulo de Moraes

Barros, transcrito anteriormente, representa bem esse recorte que separa a cidade moderna da

antiga, a cidade planejada da expontânea, que situa no tempo a racionalidade.

Nos anos 20 um outro olhar é lançado sobre a cidade, cobrando a manutenção dessa

proposição saneadora. Um olhar que reconhecia os feitos da administração modelo, mas que

identificava novos e velhos problemas. O olhar da oposição ao Poder Local, articulada no Jornal de

Piracicaba e que se autonominava independente em função de sua pretensa independência política

em relação aos governos estadual e federal e de ser o JP um jornal empresa. Vejamos então como o

Homem que acha tudo ruim, personagem criado por Pedro Krähenbuhl, diretor do JP, percebia a

cidade. Antes, convém esclarecer que essa coluna, bem como seu principal personagem,

personificam as principais críticas dos independentes à administração pública local:

Recordei-me saudoso, daqueles bons tempos de 10 anos atrás, em que as famílias ocupavam o Centro do Jardim, o pessoal de segunda se espalhava pelos caminhos do arrabalde e a gente de cor se encostava nas grades, pelo lado de fora, em seleção natural, onde ninguém a importunava e nem era por ela importunado. Hoje as boas famílias escasseiam naquele logradouro, outrora preferido; mas eu vi bem a razão: ao passo que em outras cidades como S. Paulo, as meretrizes são obrigadas a residir em pontos determinados e, mesmo assim, são impedidas de sair às janelas, na nossa tão formosa e invejada Piracicaba tem a regalia de ombrear com a "elite" em todos os logradouros públicos e não raro dirigem aos transeuntes olhares arrogantes ou gracejos atrevidos. Que faz a nossa polícia que nada disto vê? Será ela, porventura, orientada pelo Homem Que Acha Tudo Bom?...” 40

38 BRADBURY, M. e McFARLANE, J. (orgs.). Modernismo - Guia Geral 1890 -1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 31. 39 SEVCENKO, Nicolau. Literatura como Missão - tensões sociais e criação cultural na Primeira República. 4ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1995. 40 Jornal de Piracicaba, 27/maio/1922.

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É justamente este o conteúdo da defesa e preservação da estética pleiteado pela oposição ao

governo municipal: a segregação, o questionamento quanto à permanência das populações pobres

nas habitações centrais da cidade, que fora um dos princípios fundamentais do processo

Regenerador. Referindo-se a tais residências como casebres que enfeiam e empestam as ruas,

chama a atenção da Câmara e do fiscal de higiene para o fato, responsabilizando-os "pela enchente

de pedintes e indigentes que propiciam devido ao baixíssimo aluguel que lhes são cobrados".

A administração pública do prefeito Fernando Febeliano da Costa reage, então, aos apelos

modernizantes. O que é especialmente significativo dessa reação higienista e estética é a Lei

Municipal N.º 165 de 1922, a qual “concede vantagens e regalias ás edificações que obedecerem ás

disposições desta lei.”41 As vantagens e regalias referidas previam a isenção do imposto predial e

da taxa sanitária, além da concessão de prêmios em dinheiro aos proprietários de prédios de aluguel

construídos no perímetro urbano central ou sub-central destinados à moradia. O valor locativo anual

do imóvel era o parâmetro para a participação no concurso e para suas categorias: quanto mais alto,

maior era a isenção.

Em seu artigo 5º, a lei ampliava a participação dos prédios destinados à moradia de seus

proprietários e aos estabelecimentos comerciais. Já o artigo 8º isentava do imposto predial os

proprietários que reformassem seus prédios "construindo fachadas modernas, de acordo com a

prefeitura". A lei esclarecia (art. 6º) que o valor locativo seria calculado à razão de 10% sobre o

capital investido na construção, para o quê exigia o orçamento das construções, permitindo-se

realizar novo orçamento, caso julgasse necessário. A previsão para a concessão de tais prêmios (art.

4º) seria anual, mediante comissão nomeada pela Prefeitura. As despesas com a distribuição dos

prêmios seria orçada na conta Obras Públicas. Não foi possível encontrar qualquer referência na

imprensa sobre os efeitos da lei. O seu registro denota, contudo, o empenho da Câmara no

ordenamento urbano, principalmente no que se referia ao saneamento da pobreza. Responde

também à campanha promovida pela imprensa independente que, nestes anos 20, acompanhando os

bons ventos do progresso e das construções, reforma o prédio do JP.

Os anos 20, entretanto, anunciavam um novo tempo. A conjuntura catastrófica dos anos

anteriores parecia superada. Especialmente a guerra teve um efeito singular nessa conjuntura,

sendo, de alguma forma, responsável por pelo menos dois outros dos principais problemas

enfrentados: a gripe espanhola, originária das condições adversas dos campos de batalha, e as

greves de 1917 a 1919, deflagradas como reação à carestia provocada pela crise das exportações,

pela contração das importações e pelo aumento dos preços dos alimentos. Na verdade, o fim da I

Guerra colocava o movimento modernista sob novas bases, diferenciando-se substancialmente da 41 Arquivo da Câmara Municipal de Piracicaba, livro N.º 247, Leis da Câmara Municipal (1915-1926), 3º vol., fls. 124-126.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 87

conjuntura do início da República. O resgate do passado era condição para a construção do novo

num movimento distintamente inclusivo. Foi essa conjuntura que despertou as atenções da elite

ilustrada brasileira para a situação do Brasil no cenário internacional, bem como para seus

problemas internos. O movimento nacionalista que absorve grande parcela da intelectualidade

paulista tinha um cunho essencialmente político: buscava colocar o país no rumo do

desenvolvimento através da regeneração da política, pois eram a corrupção e a má administração os

obstáculos para o progresso do país42.

Os paulistas buscam ganhar a cena depositando todas as esperanças de grandeza para o país

no estado de São Paulo e em sua principal fonte de riquezas, o café. Esse sonho de grandeza

conquistou as elites piracicabanas, principalmente os independentes, traduzindo o movimento

nacionalista e a luta por São Paulo no bairrismo piracicabano. Respondendo à menção ao bairrismo

piracicabano num jornal do Rio de Janeiro, o editorial do JP elucida sobremaneira as ações da

oposição nestes tempos: "Bairristas somos todos nós que acordamos para o mundo ouvindo o

adorável tan-tan do salto, esse fator inexpugnável de forças que desabrocham dia a dia em usinas

florescentes. Gabamo-nos com razão de nossa terra. Podemos dizer como o Andrada glorioso: da

América, o Brasil; do Brasil, S. Paulo; de S. Paulo, Piracicaba".43

A referência no seu mais caro recurso natural, sua energia pura − o salto do rio Piracicaba -,

credenciava a elite oposicionista para o sonho de grandeza e a autorizava a adotar uma postura mais

ofensiva no que se referia à discussão dos problemas urbanos, bem como lhe permitia assumir uma

série de iniciativas no sentido da implementação de obras importantes para a cidade. Através do seu

órgão de imprensa, buscou delegar à sociedade civil algumas atribuições, reivindicando para si o

papel de principal coadjuvante. Exemplo disso foi a iniciativa dos independentes em constituir uma

sociedade anônima para a construção de um teatro popular. Identificando a ausência de um teatro

que respondesse às atuais necessidades da cidade, “fruto do amadurecimento intelectual que não se

satisfaz mais com o circo”, o Jornal de Piracicaba lançou uma campanha pela constituição da

Sociedade Anônima Cinema Popular, com o objetivo de construí-lo.44

Além da constituição de sociedades para determinados empreendimentos, outras iniciativas

foram propostas e assumidas pela sociedade civil para a efetivação de obras consideradas

fundamentais para a cidade. Assim se deu a construção do prédio da Santa Casa, e assim foi o

procedimento para a construção de um Monumento a Moraes Barros e também para a alteração dos

nomes das ruas da cidade. Já se discutia há muito a necessidade de Piracicaba erigir monumentos

para homenagear os grandes vultos da sua história. Era uma forma da elite projetar a cidade através 42 SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na metrópole: São Paulo sociedade e cultura nos frementes anos 20. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. 43 Jornal de Piracicaba, 17/jan./1922.

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de seus representantes ilustrados e resguardar para si o papel de sujeitos da história, pois são elas as

detentoras de uma noção de progresso que dá suporte racional à sua ação.

A polêmica instaurada em torno da questão e o envolvimento dos segmentos ilustrados das

elites indicam também a intenção em acompanhar o movimento modernizante. Sevcenko chama a

atenção para a campanha de embelezamento urbano que se inaugura em São Paulo, liderada pelo

prefeito Washington Luiz. Respondendo às críticas dos artistas, encomenda-lhes uma infinidade de

monumentos e esculturas, cabendo a aprovação das obras a diversas comissões julgadoras,

iniciativa que “nas condições de um concurso, estimulava vasta visitação e interesse geral, os

jornais organizando enquetes, o público se dividindo em partidos rivais; faziam-se apostas,

visitantes acorriam do interior, o movimento era frenético45. Esse clima eufórico acaba envolvendo

as entidades de classe, que disputam a fixação de sua marca como símbolo coletivo de sua

distinção.

Piracicaba, a pretensa cidade referência de grandeza, não podia ficar alheia à comoção

instaurada. As discussões tiveram início quando algumas pessoas, na sua maioria vereadores

ligados ao grupo dominante na política local, convocaram uma reunião para discutir a formação de

uma comissão para erigir um monumento em homenagem a Carlos Gomes. Alguns dias depois de

noticiada aquela intenção, João Silveira Mello vem a público através do JP considerar que a

homenagem se prestasse a pessoas que tivessem alguma contribuição para a história da cidade e

defende a memória de Moraes Barros que considera o grande benemérito desta terra: sugere que os

alunos do Grupo Moraes Barros solicitem à Câmara a autorização para tirarem o busto de bronze

que existe na escola para o colocarem na praça. Polêmica instaurada, o JP abre espaço a outros

posicionamentos, criando a coluna "Bronzes em Debate" para permitir a discussão ampla. Num dos

artigos desta coluna, um colaborador, que assina P.S., criticando a postura bairrista de João Silveira

Mello, aponta uma proposta que, burilada, consegue o consenso geral, demovendo até mesmo a

Comissão do Monumento a Carlos Gomes. Constitui-se uma comissão que, tendo à frente os

estudantes da Escola Moraes Barros, encarrega-se de levar a termo a proposta, entendendo que o

busto de bronze era pequeno, solicitou o empenho público de 5 contos de réis para a abertura de

uma subscrição popular para levar a efeito o intento. O editorial do JP reconhecia, tendo a

inauguração do monumento ocorrido por ocasião do Centenário da Independência.

Destaque-se enfaticamente o significado desses “templos cívicos a céu aberto”, de modo que

“fixados na magnificência suntuosa do mármore, granito bronze ou concreto funcionavam como um

cenário simbólico-político a estimular, salientar e confirmar disposições emocionais, regularizadas

44 Jornal de Piracicaba, 06/maio/1923. 45 SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na metrópole: São Paulo sociedade e cultura nos frementes anos 20. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 98.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 89

na interação dos habitantes com o espaço público46.” Daí a importância da homenagem a uma

personagem que identificasse a coletividade permitindo a comunhão com a história da cidade,

principalmente considerando-se as origens diversas dos habitantes. 47

O monumento não foi o único símbolo dessa comunhão exacerbada com o Centenário. Uma

outra forma mais singela de consagrar os vultos do passado foi lembrada por aqueles que tinham

sonhos mais modestos para Piracicaba. Em sua coluna no Jornal de Piracicaba, P.P.D. reproduz a

solicitação:

Os abaixo assinados não pedem para glorificá-los, a construção de monumentos, a ereção de

custosas estátuas ou bustos: tais distinções em se tratando de grandes servidores da nação, só

devem ser prestadas na Capital da República ou nas dos respectivos Estados. Pedem somente a

modesta homenagem que devem ser, e é em regra geral, prestada por outras cidades do interior, que

sejam dados os nomes dessas grandes figuras a ruas de nossa terra.48

A proposta não foi aceita na íntegra, mas por ocasião do Centenário, a rua Municipal passa

a denominar-se D. Pedro II, e outras dentre aquelas ruas passam a receber as denominações

propostas pela Representação.

Mas ainda era pouco! Faltava a Piracicaba o espetáculo moderno. Nas palavras de O.S.,

articulista do JP, algo que deixasse às gerações futuras o registro da comemoração da data, pois,

“nada há ainda que diga aos pósteros que o povo de Piracicaba espontaneamente comemorou com

festa a grande data centenária e quis perpetuá-la aos seus vindouros.”49 Era esse mesmo o sentido

dos rituais modernos. Eles se identificavam com os monumentos à medida que buscavam a

comoção geral a partir de um símbolo transcendente. Mas diferiam deles à medida que o festival

trazia o público para a cena no papel de ator e espectador. E mais: a sua transcendência “não se

dirigia para uma dimensão atemporal ou para o momento fundador das origens. Sua orientação era

antes a de traduzir o presente como o sinal profético do futuro. Em suma: produzir o transe do

futuro permanente50.”

Assim que, em resposta ao alerta de O.S., o Esporte Clube XV de Novembro resolve

promover um festival futebolístico no domingo, dia 03/09, e reverter a renda em prol da Santa Casa

de Misericórdia para ser aplicado na construção do novo Hospital Central. Para tal, formou-se uma

comissão organizadora, à qual aderiram as entidades de maior prestígio na cidade através de seus

diretores, como a Escola Agrícola, o Círculo Italiano e a Associação Atlética Sucrerie da Vila 46 Idem, p. 99. 47 Jornal de Piracicaba, 25/mar./1922. O maior empenho para a confecção do busto foi mesmo dos alunos da Escola Moraes Barros, erigindo-o na praça da escola, onde permanece até hoje. 48 Jornal de Piracicaba, 18/jul./1922. 49 Idem, 15/jun./1922.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 90

Rezende. A diretoria da Societá Italiana di Mutuo Socorso se compromete a promover uma tômbola

revertendo a renda também à Santa Casa.51 Tais iniciativas despertam a atenção da Irmandade da

Santa Casa, que adere às comemorações em função do caráter filantrópico que assumiram e

resolvem organizar uma quermesse. Contando com o apoio do JP, várias comissões são formadas

envolvendo cerca de 200 pessoas só na organização dos festejos. Cada barraca tem o nome de um

personagem ligado à Independência, abolição ou à República e está a cargo de uma comissão

específica: são ao todo 14 barracas, que conseguem arrecadar a soma de 104:809$770 durante as

comemorações.

O sucesso foi tal que ainda em novembro do mesmo ano de 1922 o espírito das

comemorações não havia deixado os piracicabanos, principalmente a perspectiva de produzir o

futuro no presente. É assim que o diretor da Escola Normal, Honorato Faustino, mobiliza os alunos

para reunirem a documentação histórica da escola (fotos, utensílios, jornais "enfim, tudo o que

pudesse revelar às gerações futuras o que é Piracicaba em 1922"), colocarem-na numa caixa de

cobre a ser entranhada na parede do anfiteatro e aberta em 2022 por ocasião do 2º Centenário da

Independência. Houve festa para a realização do intento e é o próprio Honorato Faustino quem

revela a intenção última da sua proposta: “a mocidade da Escola Normal vai ter hoje uma lição

intuitiva da instituição de uma fonte indireta como auxiliar do penoso e nobre trabalho dos

historiadores.”52

O ano de 1922 mostrava-se realmente promissor aos piracicabanos, quando finalmente seria

inaugurado o ramal da Cia. Paulista de Estradas de Ferro, ligando Piracicaba aos caminhos do

comércio culminando na capital paulista. A inauguração, datada de 29 de setembro, se fez antes da

mobilização para a comemoração do Centenário, mas certamente serviu como inspiração para o

festival moderno, até porque era o acalanto que faltava ao sonho dos piracicabanos. A ausência

dessa via de acesso desestimulava o comércio e a indústria, afinal “a única estrada que nos punha

em comunicação com a capital do Estado se achava no seu máximo estado de desorganização.”53

Abrir caminhos, baratear os custos de transporte de mercadorias, encurtar distâncias, era o

legado do mais fantástico invento do século XIX. Do ponto de vista do imaginário moderno, era o

símbolo maior do progresso tecnológico. Esse espírito levou os vereadores a cuidarem do assunto,

pedindo à Cia. Paulista a construção de um ramal que, partindo de sua linha tronco, entre as

estações de Vila Americana e Pombal, viesse a esta cidade, passando por Santa Bárbara.54

50 SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na metrópole: São Paulo sociedade e cultura nos frementes anos 20. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 99. 51 Jornal de Piracicaba, 18/jul./1922. 52 Idem. 53 Jornal de Piracicaba, 29/jul./1922. 54 Jornal de Piracicaba, 29/jul./1922. O histórico é transcrito pelo JP em sua edição de 1902.

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Em 1902, o presidente da Câmara, Dr. Paulo de Moraes Barros, fez então a solicitação e o

contrato foi assinado no mesmo ano. Porém, para grande frustração dos piracicabanos, os trabalhos

recém iniciados foram suspensos por 12 anos, até que Paulo de Moraes Barros fosse nomeado

Secretário da Agricultura no governo de Rodrigues Alves e desse reinício aos trabalhos, congelando

a obra novamente, desta feita em função da guerra. Somente finda a I Guerra, a construção seria

iniciada, para ser finalmente inaugurada em 29/07/22, com festejos na mesma data e no dia

seguinte. No dia 29, às 14h00 saía de São Paulo o trem inaugural, chegando a Piracicaba às 18h40,

sendo recebido por enorme multidão, que, entre vivas a Paulo de Moraes Barros, números musicais

pelas bandas União Operária e Saltense, execução do Hino Nacional e pronunciamentos.

Em seguida houve um banquete para 130 pessoas no salão de festas do Hotel Central,

oferecido pela Câmara Municipal. Durante o banquete foi organizado um sarau musical pela

orquestra Perfetti, com início às 21h00, garantindo um espaço para a confraternização exclusiva das

elites. Concomitantemente, a Banda da Força Pública tocava no coreto da Matriz e ainda acontecia

um baile na Escola Agrícola.

O dia 30 foi reservado ao festival esportivo, também ao gosto da Modernidade com parada

de escoteiros saindo do Grupo Moraes Barros indo até o centro da cidades; festa de atletismo com

competições olímpicas no Clube Regatas; festa veneziana no rio Piracicaba, oferecida ao povo pela

Câmara Municipal com queima de fogos e desfile de embarcações que se enfeitaram para concorrer

a uma taça oferecida pela Prefeitura.

De fato, o ano do Centenário da Independência configurou um marco para a história da

cidade. A comoção coletiva despertada pelas ações da sociedade civil acabou por instaurar um

clima promissor ao debate sobre todas as questões da administração pública. Serviu também para

credenciar a oposição − os independentes, articuladores do Jornal de Piracicaba − para a disputa

pelo poder com os perrepistas, principalmente para interferir nas decisões sobre as questões

urbanas. A polêmica instaurada por ocasião do início das obras para o calçamento da cidade é

elucidativo desse novo clima que tomaria conta da cidade. Os principais argumentos contra e a

favor referem-se principalmente a defesa da manutenção dos parâmetros históricos de um lado e da

necessidade de se considerar o crescimento futuro da cidade, o que exigiria maiores estudos

técnicos, de outro.55

O debate demarca a influência que o urbanismo moderno exerce sobre os posicionamentos

das elites piracicabanas. Essa preocupação com o futuro − na perspectiva de preparar a cidade para

o crescimento que se anuncia com a industrialização e a urbanização, aparece no discurso de Victor

Freire já em 1911:

55 Jornal de Piracicaba, 1923.

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Aos princípios defendidos pelos higienistas de garantir a boa distribuição do ar e da luz, ele acrescenta a necessidade da antecipação e da previsão. Esta constatação de similaridade entre processos urbanos e formas de atuação é uma das marcas do urbanismo moderno − um determinado saber tido como universal56.

É o sonho de grandeza para Piracicaba que alerta os independentes para os problemas que a

administração pública deve enfrentar em função dos novos tempos que se anunciam. Enxergam a

inaptidão das condições atuais para a consolidação do progresso, apontando principalmente a falta

de ousadia para enfrentar a empreitada que se tem pela frente, sugerindo como alternativa para

aumentar as receitas municipais o recurso ao endividamento e à reforma tributária:

Procure aumentar as rendas remodelando seus impostos em bases eqüitativas e justas; criando novas fontes de riqueza para o erário municipal, de conformidade com a capacidade contribuidora das nossas classes conservadoras, facilitando o intercâmbio comercial com os municípios vizinhos e entre os centros de produção existentes entre nós, por meio da conservação perfeita de nossas estradas carroçáveis; evitando a criminosa continuidade do fornecimento do lodo, que escorre há tantos anos das torneiras, imposto à população, a título de água potável por preços exorbitantes − e tantas outras medidas que requerendo uma despesa inicial, se transformariam, logo após, num inexaurível manancial de riqueza municipal.57

Fica patente a defesa da ampliação da esfera de atuação da administração pública no que se

refere aos serviços públicos. A historiografia sobre a formação do pensamento urbanístico de São

Paulo identifica a defesa da crescente ampliação das áreas de intervenção da administração pública

a partir da década de 20, principalmente em função da necessidade de revisão das relações

contratuais mantidas pela Prefeitura com as empresas prestadoras de serviços públicos que

incorriam na formação de monopólios. Essa preocupação marca a intervenção de Victor Freire,

diretor do setor de obras da Prefeitura de São Paulo (1988 a 1925), tendo como referência principal

a experiência americana.

O mesmo posicionamento assumem os liberais piracicabanos, ressalvando, entretanto,

Não somos dos que aplaudem a intervenção do poder público nos domínios econômicos. Tudo o que é criado ou produzido pela indústria do Estado ou da municipalidade o é de uma maneira muito mais custosa. A intervenção do poder público, estadual ou municipal no campo econômico, acaba sempre por destruir nos cidadãos os seus sentimentos de iniciativa e responsabilidade. É um mal. Depois, faltam ao Estado ou à municipalidade, para os resultados felizes da indústria que explora, estes três requisitos: a mola do interessa individual, o estímulo e o freio da concorrência. Porém, no caso da Hidráulica, que tem o privilégio e, portanto, não atua o freio da concorrência, a municipalidade, através da Câmara deve ter uma ingerência direta na empresa para, em defesa dos cidadãos, colocar limites às manifestações do empresariado em buscar apenas interesses particulares. 58

56 LEME, Maria Cristina da Silva. A formação do pensamento urbanístico em São Paulo, no início do século XX In Espaço & Debate: Revista de Estudos Regionais e Urbanos, n.º 34, ano XI. São Paulo: NERU, 1991, p. 65. 57 Jornal de Piracicaba, 07/jul./1920. 58 Jornal A Tarde, 31/out./1918.

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Dessa forma, combinada a idéia de progresso com as ações possíveis em meio a um clima

de debates e de disputas políticas, a cidade foi construída na I República como espaço público

privilegiado para o fazer histórico das elites.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 94

REVISITANDO O PROBLEMA DA HISTÓRIA EM OLIVEIRA VIANNA

Maro Lara Martins*

“Diante de todo e qualquer sistema de doutrinas, social, jurídico ou político, a minha atitude é sempre pragmatista. Estes sistemas, estas doutrinas só me valem pelos resultados: se bons, a doutrina é boa; se maus, a doutrina é má. Nunca me preocupo com saber se uma doutrina é teoricamente boa. Em regra, toda doutrina, considerada teoricamente, é boa. Mas, um problema social não pode ser resolvido teoricamente; há de estar preso pelos seus elementos equacionais á realidade da vida social.”1

Resumo: Neste texto, sublinhamos na obra de Oliveira Vianna as relações efetuadas entre a concepção de história, de política e sociedade, cunhados como pressupostos para a organização do Estado. Os textos escolhidos para a nossa interpretação sobre o pensamento de Vianna referem-se aos textos publicados em torno dos anos vinte, como Populações Meridionais do Brasil (1920), Pequenos estudos de psicologia social (1921), O idealismo na evolução política do Império e da República (1922), Evolução do povo brasileiro (1923), O Ocaso do Império (1925), O idealismo na Constituição (1927) e Problemas de Política Objetiva (1930). Palavras-chave: Pensamento Brasileiro – Historia das Idéias – Brasil República. Abstract: This paper, argue the relationship between history, politics and society, contends in Oliveira Vianna’s argument, as precondition to Estate organization. The texts analyzed in my interpretation about Vianna´s ideas was published at twenties in Brazil, like Populações Meridionais do Brasil (1920), Pequenos estudos de psicologia social (1921), O idealismo na evolução política do Império e da República (1922), Evolução do povo brasileiro (1923), O Ocaso do Império (1925), O idealismo na Constituição (1927) e Problemas de Política Objetiva (1930). Key-words: Brazilian thougth – History of Ideas – Brazil Republic.

Inventariando contra o que chamou de páginas mortas do documento, Oliveira Vianna viria

a conceber a história, de utilidade pragmática, uma perspectiva que se apoiaria num método

comparativo e interdisciplinar, a finalidade de desvendamento das idiossincrasias das diversas

organizações sociais e políticas. Em seus primeiros livros, clamava pelo início dos estudos

sistemáticos acerca da nossa história, pois “nós somos um dos povos que menos estudam a si

*Doutorando em Sociologia - Iuperj / Bolsista Capes / Professor Substituto de História Contemporânea ICHS – UFOP. 1 VIANNA, O. Pequenos Estudos de Psicologia Social. São Paulo: Revista do Brasil, 1921. p.113.

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mesmo: quase tudo ignoramos em relação à nossa terra, à nossa raça, às nossas regiões, às nossas

tradições, à nossa vida, enfim, como agregado humano independente.”2 Esta intensa preocupação o

levará, assim como a Sílvio Romero, Euclides da Cunha e Alberto Torres, a uma incursão ao tempo

histórico para definir a caracterização do tipo de sociedade que se desenvolveu nesta parte do

continente americano. “Uma coisa é estudar as instituições políticas como elas existem na

sociedade, no viver prático e habitual dos homens. Outra coisa é estudar as instituições políticas

como elas aparecem abstratamente, nos sistemas de leis e das Constituições.”3

Assim seria que o Brasil social, o Brasil profundo e real se descortinaria para o estudioso.

Quanto ao nosso passado, o latifúndio e a adaptação do português gerariam uma disparidade entre

uma pequena elite de possuidores e proprietários enquanto o grosso da população nada possuíam.

Nesta dualidade entre o litoral e o sertão, exemplificava-se a antinomia entre a elite intelectual

“principalmente na capital e nas grandes cidades, e o imensíssimo número dos analfabetos ou

incultos que constituem a nação por toda parte.”4

Desta singularidade latino-americana, agravada no Brasil, adviria que não conseguimos

formar ainda um povo devidamente organizado de alto a baixo, nos faltando a hierarquização social,

o encadeamento das classes, a solidariedade geral, a integração consensual, a disciplina consciente

de um ideal comum, a homogeneidade íntima, a radicação à terra pela propriedade espalhada

largamente, pelo cultivo, pela produção autônoma da riqueza nacional, pois, “o nosso povo está em

geral desenraizado do solo ou nele subsiste como uma vegetação estranha. Faltam-nos o aferro ao

trabalho, a base econômica livre, ampla e segura, e, mais, a masculinidade da vontade, o espírito da

iniciativa, a audácia do esforço, do empreendimento, da luta pelo progresso e bem-estar.”5

A existência de um tempo histórico recente, incapaz de conduzir a um tempo social cuja

solidariedade nacional, associar-se-ia a caracteres homogêneos de identificação, tornar-se-ia o

fundamento para a elaboração do tempo político, e este traduziria através de um método

racionalmente estruturado, a formação de um tempo social adequado. Tratava-se de uma posição

interventora no tempo social e político das “nações novas” da América em geral e do Brasil em

particular.

Posição interventora teve Oliveira Vianna, na medida em que,

o ator procura afirmar o seu protagonismo sobre os fatos, deixando de confiar na cumplicidade do tempo, a essa altura já tendo por que temer a possibilidade de se ver ultrapassar pelo movimento da

2 VIANNA,O. Populações Meridionais do Brasil. Volume I - Populações do Centro-Sul. 7ª edição. Belo Horizonte: Itatiaia; Niterói: Universidade Federal Fluminense, 1987. p.15. 3 Ibid. p.283. 4 ROMERO, S. “O Brasil Social de Euclides da Cunha”. In: O Brasil Social e outros estudos sociológicos. Brasília Senado Federal, 1998. p.175. 5 Ibid.p.176.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 96

sua sociedade. Não há mais lugar para o quietismo que apostava no futuro: o “destino” se tornou uma tarefa a ser cumprida no tempo presente.6

A matriz do chamado idealismo constitucional, tanto no Império como na República, na sua

relação entre tempo social e tempo político procurava criar uma nação para o Estado, o que de fato,

vai de encontro às teses de Sílvio Romero, Euclides da Cunha, Alberto Torres e Oliveira Vianna, os

quais diziam que era preciso criar um Estado adequado para a nação. Para eles, este seria um dos

dilemas constitutivos da modernidade brasileira: a separação entre o tempo político e o tempo social

promovido pelo nosso peculiar tempo histórico, fato não encontrado por eles, nos paradigmas

clássicos do Ocidente, como o modelo anglo-saxão. De certo, as conclusões destes autores

apontavam para a idéia de que o tempo social transposto no tempo histórico, interferiria diretamente

no tempo político. Por sua vez, seria neste mesmo tempo político que se daria a solução, pela

intervenção no presente, para o nosso futuro. Um novo tempo histórico se fazia necessário.

Como lembrava Vicente Licínio Cardoso, se esboçava por esta época uma “geração de

críticos republicanos”, justamente aqueles que foram capazes de formular uma estratégia de

contraposição, do ponto de vista político, ao modelo Campos Sales, e, do ponto de vista conceitual,

à geração dos “republicanos históricos”.7 Os críticos republicanos, como Alberto Torres e Oliveira

Vianna, opuseram-se à via estrita da política, colocando o fulcro das questões pertinentes no tempo

social. Retomariam com vigor a exigência da matriz republicana de incorporação do povo para a

legitimação do poder, opondo-se aos mecanismos meramente formais da representação e do

sufrágio, colocando-os sob um fundamento “sociológico”. Além de ressaltarem os problemas

cruciais da nação, os consideravam a partir da complexificação da ordem social moderna: o êxodo

rural e o conseqüente inchaço urbano, as políticas industriais e agrícolas, o capital estrangeiro e o

problema do imperialismo, as políticas de imigração e a ocupação do solo, a questão educacional e

o domínio oligárquico. Daí a relevância do tempo social e não o do político, que deve apenas

expressá-lo.

Oliveira Vianna e o caso brasileiro

No prefácio à quarta edição da obra Evolução do povo brasileiro, Oliveira Vianna expôs sua

concepção evolucionista reagindo contra a forma unilinear de entender a evolução das sociedades a

6 VIANNA, L. W. “Caminhos e Descaminhos da Revolução à Brasileira”.Dados – Revista de Ciências Sociais,v.39, nº3 Rio de Janeiro,1996. 7 CARDOSO, V. À Margem da República. Recife: FJN/Editora Massangana, 1990. (1ª ed. de 1924)

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partir das supostas leis gerais que a comandam. Acolhendo os conceitos de Gabriel Tarde, Vianna

considerava que existiriam múltiplas tendências na evolução das sociedades, e que é impossível

reduzi-las a um único esquema.8 No estudo das sociedades podemos encontrar, segundo Oliveira

Vianna, uma multiplicidade de linhas de evolução e de fatores que interviriam nessas linhas.

Para essa multiplicidade de tipos para essa variedade de linhas de evolução, para este heterogenismo inicial contribui um formidável complexo de fatores de toda ordem, vindos da Terra, vindos do Homem, vindos da Sociedade, vindos da História: fatores étnicos, fatores econômicos, fatores geográficos, fatores históricos, fatores climáticos, que a ciência cada vez mais apura e discrimina, isola e classifica. Estes predominam mais na evolução de tal agregado; aqueles, mais na evolução de outro, mas, qualquer grupo humano é sempre conseqüência da colaboração de todos eles; nenhum há que não seja a resultante da ação de infinitos fatores, vindos, a um tempo, da Terra, do Homem, da sociedade e da História. Todas as teorias, que faziam depender a evolução das sociedades da ação de uma causa única, são hoje teorias abandonadas e peremptas: não há atualmente monocausalistas em ciências sociais.9

Posto nestes termos, a evolução à brasileira constituiria um desafio que deveria ser

elucidado desde as origens da formação colonial no período vicentista. Contra a idéia da

homogeneidade de nossa formação, Vianna traçou três tipos de sociedade diferentes: a dos sertões

(norte), a das matas (centro-sul) e a dos pampas (sul), com seus respectivos “ambientes sociais

fixos.”10 Entretanto, era a sociedade do centro-sul que mais lhe interessava pois dela derivaria o

substratum de nossa cultura política. Para ele, esta era a matriz da nacionalidade, “do seu espírito,

da sua laboriosidade, de seu afluxo humano, é que vivem as cidades do hinterland ou da costa, e

crescem, e se desenvolvem. Silenciosa, obscura, subterrânea a sua influência hoje, é no passado,

principalmente nos três primeiros séculos, poderosa, incontestável, decisiva.”11 Por outro lado, do

isolamento do interior viria a mestiçagem que “é o centro de convergência das três raças formadoras

do nosso povo. (...) O latifúndio os concentra e os dispõe na ordem mais favorável à sua mistura.

Pondo em contato imediato e local as três raças, ele faz um esplêndido núcleo de elaboração do

mestiço.”12 Do latifúndio pois viria a gênese e a formação da própria nacionalidade.

Seguindo o argumento de Vianna, nos primeiros tempos prevaleceu a tendência européia

centrada nos hábitos aristocráticos e urbanos do litoral, interrompida pelo dilema imperioso do

duplo domicílio por interesses materiais: “ou optam pelo campo, onde estão os seus interesses

principais; ou pela cidade, centro apenas de recreio e dissipação”13, processo intensificado pela

8 VIANNA,O. Evolução do povo brasileiro. 4ª ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 1956. 9 Ibid.pp.29-30. Oliveira Vianna apostava também na idéia de um “conhecimento total”, advindo de uma síntese entre cada caso estudado, uma espécie de mosaico que aos poucos se completaria. Neste sentido é taxativo: “Só depois desse formidável trabalho de investigações e análises, consubstanciadas em monografias exaustivas sobre cada agrupamento humano, e do estudo meditado dessa massa colossal de dados e conclusões locais, vinda de todos os pontos do globo, será possível à ciência social elevar-se às grandes sínteses gerais sobre a evolução do homem e das sociedades.” (p.33-34.) 10 VIANNA,O. Populações Meridionais do Brasil. Op.cit. p.18. 11 Idem. 12 Ibid, p.68. 13 Ibid, p.20

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colaboração de outros fatores como a busca dos índios, a expansão pastoril nos planaltos e a

conquista das minas. Dando início assim, a obra de adaptação rural ou conformismo rural da

aristocracia ao domínio do latifúndio: “a obra de ruralização da população colonial, durante o

século III” possibilita a formação do homo rusticus que depois da Independência começa a dominar

a política do país, “desce das suas solidões rurais para, expulso o luso dominador, dirigir o país.”14

Assim, o ardor aventureiro do luso que transmudara-se na atividade do bandeirante, no século IV se

extinguiria pelo sedentarismo agrícola.

O deserto e o trópico, a escravidão e o domínio independente: sob a ação dessas quatros forças transmutadoras, o laço feudal, a hierarquia feudal transportada para aqui nos primeiros dias da colonização se desarticula, desintegra, dissolve e uma nova sociedade se forma com uma estrutura inteiramente nova. O feudalismo é a ordem, a dependência, a coesão, a estabilidade: a fixidez do homem à terra. Nós somos a incoerência, a desintegração, a indisciplina, a instabilidade: a infixidez do homem à terra. Em nosso meio histórico e social, tudo contraria, pois, a aparição do regime feudal.”15 “Daí o traço fundamental de nossa psicologia nacional. Isto é, pelos costumes, pelas maneiras, em suma, pela feição mais íntima do seu caráter, o brasileiro é sempre, sempre se revela, sempre se afirma um homem do campo, à maneira antiga. O instinto urbano não está na sua índole; nem as maneiras e os hábitos urbanos.16

A formação de uma nobreza territorial geradora de um processo no qual o viver rural

passaria a ser distinto, sinal de existência nobre “perfeitamente rural na sua quase totalidade, pelos

hábitos, pelos costumes e, principalmente, pelo espírito e pelo caráter,”17 triunfa por concentrar a

maior soma de autoridade social e “é a que mais legitimamente representa o nosso povo e a sua

mentalidade social.”18

A grande propriedade rural, o latifúndio e conseqüentemente a noção do exclusivo agrário e

da função simplificadora dos latifúndios, tornaram-se fundamentais no modelo explicativo de

Vianna, sobre as condições nas quais a solidariedade e os interesses foram constituídos no peculiar

caso brasileiro, na medida em que, “o grande domínio, tal como se vê da sua constituição no

passado, é um organismo completo, perfeitamente aparelhado para uma vida autônoma e própria.”19

Quanto à produção, estes possuíam uma capacidade poliforme, auto-sustentável em sua circulação

interna de produtos, fazendo com que alcancem “uma plena independência econômica. Nem há que

recear qualquer crise de subsistência, por mesquinhez ou insuficiências de produção.”20

Esta função simplificadora impediria o comércio e a emersão de uma burguesia comercial

ou uma classe industrial, que se concentraria nas pequenas cidades do interior, mas sem nenhuma

força política, pois “falta-lhes o espírito corporativo, que não chega a formar-se. São meros

14 Ibid, p.37. 15 Ibid, p.130. 16 Ibid, p.36. 17 Ibid, p.33. 18 Ibid, p.47. 19 Ibid, p.116. 20 Ibid, p.115.

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conglomerados, sem entrelaçamento de interesses e sem solidariedade moral.”21 Assim, entre a

classe dos trabalhadores livres e a aristocracia senhorial os laços não se constituem solidamente,

acentuada pela inexistência de uma classe média do tipo européia. “Ora, só da vitalidade dos

pequenos domínios, da multiplicidade deles, da solidariedade deles, resultaria a constituição, entre

nós, de uma classe média, forte, abastada, independente, prestigiosa, com capacidade para exercer,

defronte da grande propriedade, a ação admirável dos yomen saxônios ou dos burgueses da Idade

Média.”22

Disto resultaria a nossa vocação rural, na medida em que “o meio rural é, em toda parte, um

admirável conformador de almas.”23 A partir do latifúndio e da vida rural, o tipo de solidariedade

que se formava, segundo Vianna, era fragmentária e incipiente, a estabilidade giraria em torno dos

grupos familiares, os quais permitiriam que se formasse uma trama de relações sociais estáveis,

permanente e tradicionais, tendo na figura do pater famílias a ascendência patriarcal e a posição de

chefe. Tal predomínio da classe fazendeira pela agregação patriarcal, revelaria, no fundo, um

espírito de corpo, e portanto, uma solidariedade interna e uma consciência social correspondente.

Sendo assim, no Brasil não há elementos de solidariedade externa, e “no ponto de vista da sua

psicologia social ficam, por isso, em plena fase patriarcal – a fase da solidariedade parental e

gentílica.”24

Todas as instituições locais são sempre, como vimos, posteriores á ação do poder geral – porque são criações dele. Dada a insolidariedade geral, a ausência de interesses comuns, a rudimentariedade dos laços de interdependência social, necessidade alguma imperiosa impôs às nossas populações rurais um movimento de organização política semelhante ao das comunas medievais.25

Deste tipo de solidariedade interna, exarcebaria a ação da capanagem senhorial, elementos

vindos da plebe rural, que “nada a prende à terra: nem a organização do trabalho, nem a

organização da propriedade, nem a organização social. Tudo a torna incoesa, flutuante e nômade”26,

a serviço dos caudilhos territoriais que exercem uma autoridade maior do que os delegados da

metrópole, fruto da disparidade entre o poder público e a expansão colonial. Resultando daí, “uma

discordância, ainda hoje subsistente, entre a área da população e o campo de eficiência da

autoridade pública.”27 Ao contrário do Ocidente onde o tempo político e o tempo social seguiriam o

mesmo compasso, pois seria da organização societal que emanaria a política.

É geral, aliás, em toda a nossa evolução nacional, essa sorte de heterocronia entre a marcha territorial da sociedade e a marcha territorial do poder, essa sorte de discordância entre os dois

21 Ibid, p.119. 22 Ibid, p.128. 23 Ibid, p.48. 24 Ibid, p.158. 25 Ibid. P.222. 26 Ibid, p.161. 27 Ibid, p.178.

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perímetros, o social e o político; de modo que este é sempre incomparavelmente menor que aquele. Grande parte, senão todas as anomalias constitucionais do nosso povo, explicam-se racionalmente por esta grande causa geral. Neste fato – de que, em nossa história e em nosso povo, a expansão geográfica da sociedade tem sido sempre maior do que a expansão geográfica do Estado – é que está a origem do banditismo, do cangaceirismo, do caudilhismo, do fanatismo, dominantes no seio das nossas populações do interior.28

Daí, esta particularidade da nossa formação social, na qual “todas as classes rurais, que

vemos, no ponto de vista dos interesses econômicos, separadas, desarticuladas, pulverizadas,

integram-se na mais íntima interdependência, para os efeitos políticos. O que nem o meio físico,

nem o meio econômico podem criar de uma forma estável, à semelhança do que acontece no

Ocidente, cria-o a patronagem política, a solidariedade entre as classes inferiores e a nobreza

rural.”29 A mentalidade do povo, sua consciência coletiva associar-se-ia ao mundo clânico, “em

suma: fora da pequena solidariedade do clã rural, a solidariedade dos moradores, especialmente a

solidariedade do clã rural, a solidariedade dos moradores, especialmente a solidariedade dos

grandes chefes do mundo rural – os fazendeiros – jamais se faz necessária.”30

A autoridade pública na colônia “se mostra frágil, reduzida, circunscrita. (...) Três são, por

esse tempo, os inimigos da ordem pública: os selvagens; os quilombolas; os potentados. (...) Cada

domínio rural avançando no deserto é uma vendeta contra a selvageria.”31 O aparelho judiciário

colonial como os capitanatos, as judicaturas, as corporações municipais e a fobia (repulsa do

trabalho militar) pelo recrutamento acabariam gerando no Brasil, nos primeiros séculos, a

emergência da corrupção e dos interesses pessoais, a parcialidade e o facciosismo. O Estado

apareceria então para esta classe da população como um usurpador, estranho aos seus interesses, ao

contrário do clã rural que o protegeria e que de certa forma satisfazia o seu interesse.

No fundo, Oliveira Vianna apontou a insuficiência de instituições sociais tutelares, no ponto

em que a miserabilidade do moderno campônio brasileiro fez com que carecesse de força

pecuniária, material e social contra o arbítrio que o oprime, na medida em que “tudo concorre para

fazê-lo um desiludido histórico, um descrente secular na sua capacidade pessoal para se afirmar por

si mesmo.”32 Assim, o nosso homem do povo, seria ele mesmo um homem de clã, necessitando

sempre de um chefe para orientar suas ações.

Da singular modalidade de nossa expansão colonizadora desorganizada, intermitente e

descontínua: “bandeiras sertanistas, explorações mineradoras, fundações pastoris e agrícolas, tudo é

feito por movimentos descoordenados, independentes uns dos outros, salteadamente, ao léu dos

impulsos individuais, tendo apenas como uma única força de propulsão o interesse ou a cobiça dos

28 VIANNA, O. Pequenos Estudos de Psicologia Social. Op. Cit. p.171-72. 29 VIANNA, O. Populações Meridionais do Brasil. Op.cit, p.144. 30 Ibid, p.152. 31 Ibid, p.159. 32 Ibid. p.146.

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poderosos chefes de clã.”33 Entretanto, a partir do século III, “a máquina do sincretismo colonial,

aumentando cada vez mais a sua potência compressora, realiza, com igual eficiência, a sua obra de

legalização e de ordem”, visando sobretudo, a centralização pela burocracia estatal com o duplo

objetivo de “aproximar dos caudilhos a autoridade pública; centralizar num poder supremo todos os

órgãos do governo da colônia.”34 E mais, “é que os velhos princípios europeus são inteiramente

relegados pelos estadistas coloniais, e que é com elementos novos que eles formulam e resolvem o

problema formidável da nossa organização política e administrativa.”35 Desta forma, os “os homens

do estado colonial compõem para o Brasil, uma obra admirável de senso prático, de senso social, de

senso político.”36 Esta obra de centralização, de legalização e de ordem sofrerá revezes durante o IV

século. É pois o tema a que se passa a discutir: a obra da monarquia e a inadequação do liberalismo

ao caso brasileiro.

Para Oliveira Vianna, os problemas do liberalismo no IV século, são a princípio de ordem prática,

como nos efeitos gerados pelo Código do Processo de 32 que promoveria um sistema de

descentralização ao modo americano, sendo a justiça, a polícia e a administração locais de

incumbência das autoridades locais, movimento ao qual se juntaria o Ato Adicional da Regência,

que priorizava a centralização provincial, definindo a hegemonia do poder público a nível

provincial.

O que as experiências do Código do Processo e do Ato Adicional demonstram, entretanto, é que essas instituições liberais, fecundíssimas em outros climas, servem aqui, não à democracia, à liberdade e ao direito, mas apenas aos nossos instintos irredutíveis, de caudilhagem local, aos interesses centrífugos do provincialismo, à dispersão, à incoerência, à dissociação, ao isolamento dos grandes patriarcas territoriais do período colonial. Esta é, em suma, a tendência incoercível das nossas gentes do norte e do sul, todas as vezes que adquirem a liberdade da sua própria direção.37 Entre nós, liberalismo significa, praticamente e de fato, nada mais do que caudilhismo local ou provincial.38

A essa inadequação do liberalismo gerador do centrifuguismo deveria ser contraposto um

movimento de centralização, realizado por Estadistas como Olinda, Paraná, Sepetiba, Uruguay e

Itaboraí, a fina flor do partido conservador do início do Segundo Reinado, os verdadeiros

construtores da nacionalidade, que pela Lei da Interpretação fundavam a supremacia do poder

central. O principal foco estaria na desintegração dos clãs rurais por fatores políticos (centralização

administrativa), policiais (ataque a capangagem), jurídicos (partilha patrimonial intrafamiliar) e

econômicos (ação psicológica do trabalho agrícola na índole meiga e doméstica).

Os grandes construtores políticos da nossa nacionalidade, os verdadeiros fundadores do poder civil, procuram sempre, como o objetivo supremo da sua política, consolidar e organizar a nação

33 Ibid. p.179. 34 Ibid. p.186-7. 35 VIANNA,O, Evolução do Povo Brasileiro. Op. Cit. p.241. 36 Ibid. p.242. 37 Ibid, p.192. 38 Ibid, p.212.

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por meio do fortalecimento sistemático da autoridade nacional. Os apóstolos do liberalismo nos dão, ao contrário, o municipalismo, o federalismo, a democracia como última palavra do progresso político.39

A Monarquia realizava a sua obra, ao promover a integridade nacional, a centralidade

administrativa, a ordem e a legalidade. O parlamentarismo à brasileira na predominância do poder

moderador “equivale a uma adaptação genial do instituto europeu ao nosso clima partidário, a

melhor garantia da liberdade política num povo, em que, do município à província, da Província à

Nação, domina exclusivamente a política de clã, a política das facções, organizadas em partidos.”40

Seria na verdade um golpe contra a política da colméia e da mentalidade de chefe de clã na

política41. O imperador, pela imparcialidade e uso da prerrogativa constitucional do Poder

Moderador seria capaz de impedir que o mérito, o talento e a cultura, fossem sacrificadas à habitual

intolerância e ao desdém dos nossos mandões politicantes que aparelhavam o estado em busca da

satisfação de seus interesses clânicos.

Entre nós, essa paz interior, esse império do direito, essa ordem pública, mantida e difundida por todo o país, é a obra excelente e suprema do II Império, como a “pax romana” foi a do século dos Augustos. É nesse período da história nacional que a autoridade pública se revela na sua plena eficiência: acatada, considerada, obedecida, cheia de prestígio e ascendência.42

A monarquia teria esta finalidade prática ajustada a nossa condição por um lado, e por outro,

uma finalidade também “simbólica”. Pois da fidelidade ao monarca viria mais um elemento

centrípeto contra as tendências separatistas do provincialismo, pela rotinização da autoridade

nacional e do direito entre a população. D. Pedro II encarnaria o idealismo latino, com as

características da verdade, bondade e justiça, na rotatividade dos partidos no poder.

Entretanto, esta benéfica obra da monarquia não duraria muito a ser contestada, é o que se

observa das proposições que Oliveira Vianna fez em o Ocaso do Império. Nesta obra, Vianna

objetivava procurar e isolar as causas da dissolução da monarquia, tendo por objeto de estudo as

forças políticas e a história das idéias. “O meu objetivo neste volume é, por isso, definir, de uma

maneira precisa, o papel exercido na queda da monarquia pela idéia liberal, pela idéia abolicionista,

pela idéia federativa, pela idéia republicana e pelas fermentações morais que determinaram as

chamadas “questões militares”.”43 O ponto inicial estaria na queda do gabinete Zacarias em 1868,

cujas idéias dominantes no nosso ambiente político seriam reflexo das idéias dominantes no mundo.

A interferência do Imperador ao nomear Itaborahy (conservador) para substituir Zacarias (liberal)

num Parlamento com maioria liberal provocou mudanças no sistema de crenças e idéias dos

39 Ibid, p.191. 40 Ibid, p.213. 41 VIANNA,O. O Ocaso do Império. 4ª edição. Recife, Fundaj, Editora Massangana, 1990. 42 VIANNA,O. Populações Meridionais do Brasil. Op. Cit. p.196. 43 VIANNA,O. O Ocaso do Império. Op. Cit. p.17.

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políticos à época, gerando a descrença nas virtudes do sistema monárquico-parlamentar e a

crescente aspiração por mudanças, a partir dos temas do poder pessoal, da descentralização e da

federação. A obra da monarquia começava a ser colocada em cheque pela reação liberal, como em

Nabuco ao propor a monarquia federativa e Rui Barbosa na exasperação pela federação com ou sem

coroa, e pelos republicanos que associavam o binômio federação-república. Desta forma, as noções

de federação e liberalismo da América e Europa, idéias antimonárquicas, quando transpostas ao

Brasil viriam carregadas de espírito republicano. Desta forma, a desilusão do monarca era a

desilusão da própria monarquia44.

O Abolicionismo, cuja gênese provinha das Academias, também possuía raízes exógenas, e

sobre uma raça imaginativa, suscetível ao idealismo e dotada para o entusiasmo foi mais um fator

eficiente na generalização da idéia republicana. Exógena e inadequada, pois os escravos formavam

a tribo patriarcal nos latifúndios, eram integrantes da família fazendeira, constituindo uma relação

recíproca com os senhores.

Segundo Vianna, foram três as fases do Abolicionismo: (1) abolição gradual, pela liberdade

dos nasciturnos, caracterizada pela moderação. (2) Uma feição radical, cuja proposta era a abolição

completa do elemento servil, como nos casos de Dantas e Nabuco de Araújo, pela Lei dos

sexagenários e do fundo de emancipação. (3) A Abolição imediata distinguida pela incoercibilidade,

irresistibilidade e fatalidade (popularidade), passando de questão partidária à questão nacional, com

a adesão do exército e da igreja, fase na qual os oradores e publicistas promoveriam o

desarmamento moral; o Parlamento, o desarmamento jurídico; e o exército, o desarmamento

material. O fato era que a oposição ao movimento abolicionista viria dos grandes fazendeiros e

chefes políticos, sendo o principal propulsor da abolição, D. Pedro II que era gradualista. Desta

forma a classe fazendeira desamparou a monarquia e passou a se interessar como os paulistas pelo

trabalho imigrante.

Quanto ao ideal republicano sua gênese também se encontraria na queda do gabinete

Zacarias e na conseqüente cisão do antigo Partido Liberal e a sua conseqüente inclinação ao

americanismo, no movimento de aproximação dos liberais exaltados com o ideal republicano.

os homens de partido do tempo, com os olhos fitos na Inglaterra, na França e nos Estados Unidos – salvo uma pequena elite, com a intuição exata da nossa realidade – não pensavam assim, não compreendiam assim, e viam no predomínio dessa política centralizadora e pessoal a inteira negação do seu ideal político. Sonhavam utopicamente um governo do povo, um governo da opinião, à maneira anglo-saxônica, num país em que a opinião, à maneira anglo-saxônica, não existe – não pode existir, e, como não poderiam realizar o seu ideal nem compreender exatamente a causa dessa impossibilidade, irritavam-se, impacientavam-se, desesperavam e, invadidos afinal pelo ceticismo, acabavam –como se dizia – perdendo a fé nas instituições.45

44 Ibid. p.58. 45 Ibid, p.84.

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Os pontos comuns entre os principais republicanos, os positivistas e os democratas eram o

princípio da liberdade civil e a preocupação federativa. A influência do positivismo se daria na

Escola Militar, na Escola Politécnica, enquanto nos cursos de Medicina e Direito prevaleceriam as

teorias de Haeckel e Spencer. Os positivistas entendiam a república por seu caráter autoritário, cuja

sólida base filosófica desembocava na oligarquia dos sábios e filósofos propostos por Augusto

Comte. O que lhes repugnaria na monarquia era a hereditariedade de sangue. Por sua vez, os

republicanos democratas propuseram a eletividade, curtos mandatos e a renovação dos cargos

eletivos. Os positivistas entretanto foram falhos na capacidade evangelizadora devido a intolerância

e a ausência de tática na propaganda das idéias, bem como a ineficácia da imprensa republicana dos

democratas e dos clubes e agremiações do partido republicano antes de 1888. O que permitiu ao

positivismo gozar de influência na república foi acidental: a coincidência de serem desse credo

alguns membros prestigiosos na organização do novo regime.

O Manifesto Republicano de 1870, apresentava-se para Oliveira Vianna como exemplo

maior de uma política silogística. “Não havia tal generalização de sentimento republicano, quando

se deu a queda do Império. Por essa época (...) o sentimento mais generalizado não era o da

“crença” na República, mas sim a “descrença” nas instituições monárquicas.”46 A idéia de república

no Brasil seria então a intervenção de uma variável externa ao jogo das elites tradicionais.

Por fim, Oliveira Vianna destacou a função política do exército na queda da monarquia. Para

ele, o exército nacional servira de mero instrumento das ambições civis, politicamente orientado

pela elite política. Nosso exército, continua Vianna, nunca teve a consciência de uma missão

política qualquer, nunca agiu por impulso próprio, como objetivação do pensamento de uma política

de classe. A partir de 1870 (pós-guerra do Paraguai) iniciava-se o processo, promovido pela elite

política, objetivando estimular conflitos entre a classe militar e os gabinetes. A chamada teoria do

cidadão fardado justificaria a participação dos militares na política como cidadãos, entretanto, as

características dos militares como o pundonor profissional, o espírito de corpo, a honestidade, o

patriotismo, o senso de hierarquia e a bravura, geravam imensas incompatibilidades entre a

psicologia do militar e a atividade partidária. O político civil se basearia no combate moral e no

ataque pessoal, elementos contrários à psicologia dos militares. Fato este exemplificado na Questão

Militar: a revolta contra os políticos do governo, revoltam-se (os militares) contra o próprio

governo.

Desta forma, seguindo os passos de Oliveira Vianna, o objetivo inicial do movimento de 15

de Novembro não era republicano, era derrubar o Gabinete Ouro Preto. A impossibilidade do III

reinado e a impopularidade do Conde D’Eu, a divisão dentro do exército entre “colarinhos de

couro” e “cadetes filosóficos”, a moléstia do Imperador e a popularização de sua incapacidade

46 Ibid, p.89.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 105

governativa, o isolamento de D. Pedro na sua queda, pois a luz do trono só iluminava aqueles que

não se aproximavam demasiadamente do foco luminoso, e a fraqueza do sentimento monárquico

nas tradições do nosso povo, na medida em que a monarquia foi um sentimento de elite,

contribuíram decisivamente para o advento da República no Brasil. Desta forma, do ocaso do

Império viria o acaso da República.

Ora, reuni nesta convicção de que o cetro já não se achava nas mãos do monarca, débil e quase moribundo; e mais as repugnâncias pelo 3º Reinado; e mais a ação das grandes influências gerais: a desilusão do ideal monárquico, o descontentamento pela Abolição, a relativa difusão do ideal republicano: e é fácil compreender agora as oscilações de Deodoro, a relativamente recalcitrância com que ele cedeu a sugestão e ao arrastamento de Benjamin com a falange dos “cadetes filosóficos”. É fácil compreender também porque o grupo numeroso dos “colarinhos de couro” não quis fazer a contra-revolução e aceitou o fato consumado da República.47

Com o advento da República e a Carta de 1891, chamada por Vianna de regime da federação

centrífuga, o princípio dominante passaria a ser o predomínio dos poderes estaduais frente ao poder

central. Entretanto, os Estados não estariam preparados para a autonomia apregoada pela federação,

pela sua incapacidade de formação de novos quadros dirigentes, pelo papel assumido pelos

adesistas, pela elite local incapaz de assumir a direção dos negócios locais e pelo erro da simetria e

da uniformidade dos estados. Nestes termos, a tendência comum na evolução dos Estados deu-se

pelas causas:

1.ª absorção crescente do poder municipal pelo poder estadual, isto é, redução crescente da autonomia dos municípios. 2.ª hegemonia crescente do poder executivo estadual sobre os dois outros poderes, o legislativo e o judiciário, os quais vão perdendo cada vez mais a sua necessária independência.48

Com Campos Salles e a exacerbação da chamada “política dos governadores”, segundo

Vianna, iniciar-se-ia um processo de usufruto da máquina eleitoral para a expressão da vontade e

dos interesses dos ocupantes dos cargos dito eletivos. “Em suma, a superestrutura política dos

estados se vai modelando num duplo sentido: de centralização e de aumento do ‘poder pessoal’ dos

presidentes.”49 Desta forma, com a política de reciprocidade entre o Estado e a União, “os

presidentes da República transigem com as situações estaduais e deixam de exercer sobre as

unidades federadas esse grande poder de disciplina e fiscalização, essa grande ação moderadora e

corretora, que era, no velho regime, uma das maiores garantias da liberdade dos cidadãos.” 50 As

elites estaduais controlariam a República, pois dominariam o aparato administrativo e político local,

influenciariam o poder legislativo através das eleições para o Senado e a Câmara, e influenciariam

indiretamente o poder executivo da União.

47 Ibid, p.161. 48 VIANNA, O. Evolução do Povo Brasileiro. Op. Cit. p.292. 49 Ibid. p.292. 50 Ibid. p.293.

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Enfraquecido pela federação, o poder central não tem, portanto, outro caminho racional para recobrar o seu antigo prestígio senão o do desenvolvimento da circulação geral. Ou esta, ou então a fragmentação federativa do poder, como recurso único para manter a integridade do país. Há dois meios de atacar, entre nós, o problema da circulação. Há o meio direto: pela articulação ferroviária do país; pelo desdobramento das nossas linhas de navegação interior; pela multiplicação dos meios de circulação interespiritual: correios, telégrafos, telefones, etc. Há o meio indireto: pelo desenvolvimento dos centros de povoamento; pela elevação do coeficiente de nossa densidade demográfica; em suma, pela redução da dispersão social por meio da colonização intensiva e sistemática.51

Como no final do III século e início do IV século, com o “acidente” da vinda da família real

para o Brasil, o processo de contraponto à obra da monarquia, interrompera o processo lento e

contínuo da organização do nosso tempo social via estatismo. “Uns e outros inspiram-se em dados

concretos e experimentais – mantêm um contato permanente com as nossas realidades.”52 Era

preciso o retorno a essas raízes de usufruto eficaz de finalidade alcançada pelo Estado: a única

solução pragmática no mundo dos fatos observáveis em nosso tempo histórico, daí a utilidade da

história53, associava-se ao processo de centralização do Estado, um arquétipo de estatismo em nossa

política dando conta das peculiaridades de nosso tempo social.54 A princípio, a obra de Oliveira

Vianna gravitará neste prognóstico sobre nossa formação colonial, sobre a obra do império, sobre

nosso passado, pelo menos até os anos 30, onde alteraria um pouco o teor de suas propostas para o

tempo político, com o aparecimento de novos elementos teóricos inseridos neste estatismo, como a

concepção de sindicalismo e de democracia corporativa.

Sua intenção era:

de corrigir – pela ação disciplinar de uma organização política centralizadora e unitária – os inconvenientes da nossa excessiva base física, da nossa dispersão demográfica e da ação centrífuga

51 Ibid. p.295. Oliveira Vianna apontou ainda a tendência para o que chamou de federação centrípeta, presente nas constituições de 1934 e 37 com o predomínio da União sobre os Estados: “De maneira que da ‘federação centrífuga’, de Jefferson, estamos sensivelmente evoluindo para a ‘federação centrípeta’, de Webster. Tolhida no terreno político, pela força dos textos constitucionais, a sua ação intervencionista, a União a dilata cada vez mais no terreno econômico e social dos Estados.” Ibid.p.309 52 Ibid. p.274. 53 Nunca é demais lembrar que na concepção de história de Oliveira Vianna estava embutido a idéia da história como mestra da política, e que seus estudos possuíam uma função pragmática, no sentido mesmo de utilidade. “Nunca será demais insistir na urgência da reação contra esse preconceito secular; na necessidade de estudarmos o nosso povo em todos os seus aspectos; no imenso valor prático destes estudos: somente eles nos poderão fornecer os dados concretos de um programa nacional de reformas políticas e sociais, sobre cujo êxito nos seja possível contar com segurança.” Ibid. p.39 Além é claro das noções de objetividade e desprendimento intelectual com que se referia às suas conclusões, pois segundo Vianna: “o que me inspira é o mais absoluto sentimento de objetividade: somente os fatos me preocupam e somente trabalhando sobre eles é que infiro e deduzo. Nenhuma idéia preconcebida. Nenhuma preocupação de escola. Nenhuma limitação de doutrina. Nenhum outro desejo senão o de ver as coisas como as coisas são – e dizê-las como realmente as vi.” Ibid. p.50. 54 Cabe lembrar que o projeto dos estadistas da colônia foi eficaz quanto aos fins almejados naquele determinado contexto. A solução dos estadistas do Império, também sucesso quanto aos fins se deu de forma diferente. “Os estadistas coloniais haviam chegado à fórmula: integridade da colônia pela fragmentação do poder. Os estadistas imperiais são levados a uma conclusão contrária: integridade do país pela unificação do poder. Os estadistas republicanos voltam à conclusão colonial: integridade da nação pela fragmentação do poder.” Ibid. p.279. Entretanto, “os estadistas coloniais agiam antes por ação preventiva; os da república procedem, de preferência, por ação repressiva. O método colonial levava legalidade aos altos sertões de modo permanente; o método republicano a leva de modo violento e transitório. Os estadistas da Colônia eram incomparáveis construtores da ordem; os da república são apenas destruidores da desordem.” VIANNA, O. Pequenos Estudos de Psicologia Social. Op. Cit. p.178.

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dos agentes geográficos. Não é só. Dois fatos novos, de caráter social um e político outro, surgidos o primeiro em 1931 e o segundo em 1937, vão concorrer, da forma mais decisiva, para assegurar melhores e mais seguras condições de êxito a este pensamento centralizador, velho de duzentos anos. O primeiro é a organização sindical e o segundo é a organização corporativa.55

Desta forma,

Enfraquecido pela federação, o poder central não tem, portanto, outro caminho racional para recobrar o seu antigo prestígio senão o do desenvolvimento da circulação geral. Ou esta, ou então a fragmentação federativa do poder, como recurso único para manter a integridade do país. Há dois meios de atacar, entre nós, o problema da circulação. Há o meio direto: pela articulação ferroviária do país; pelo desdobramento das nossas linhas de navegação interior; pela multiplicação dos meios de circulação interespiritual: correios, telégrafos, telefones, etc. Há o meio indireto: pelo desenvolvimento dos centros de povoamento; pela elevação do coeficiente de nossa densidade demográfica; em suma, pela redução da dispersão social por meio da colonização intensiva e sistemática.56

Para Oliveira Vianna, tornava-se necessário avaliar o modo como se efetivaria a

reestruturação rumo ao iberismo, e uma vez mais, estava colocado o dilema do nosso passado, e se

este seria um obstáculo ou um suporte à criação de um mundo diferente. Uma vez mais, o peso da

herança ibérica se fazia sentir: de um lado, se imputava ao passado marcado pelo iberismo, as

circunstâncias por todas as dificuldades com que se defrontava o americanismo republicano. De

outro lado, se procurava utilizar esse passado para construir o futuro, ou ainda, atribuía-se uma

valoração positiva a esse mesmo passado. Qualquer que fosse o caminho a ser percorrido, o passado

era o ponto central de onde qualquer solução precisaria ser encontrada. Em Oliveira Vianna, esta

carga atávica apareceu sempre como ponto de partida para se construir o futuro.

Dentro desta lógica, essa inversão do nosso tempo social teria de ser considerada dentro da

historicidade do nosso passado, e agora o “quem somos” deveria ser entendido dentro de uma

contingência da historicidade, portanto, resgatar o valor dessa tese do “quem somos” e sairmos em

construção da superação da antítese do “não somos”, e assim, sermos “outro”, a necessidade do

idealismo orgânico está pois em definir a nossa modernidade como um lugar existente, possível,

inadiável e peculiar.

55 VIANNA,O. Evolução do Povo Brasileiro. Op. Cit. p.11-12. 56 Ibid. p.295. Oliveira Vianna apontou ainda a tendência para o que chamou de federação centrípeta, presente nas constituições de 1934 e 37 com o predomínio da União sobre os Estados: “De maneira que da ‘federação centrífuga’, de Jefferson, estamos sensivelmente evoluindo para a ‘federação centrípeta’, de Webster. Tolhida no terreno político, pela força dos textos constitucionais, a sua ação intervencionista, a União a dilata cada vez mais no terreno econômico e social dos Estados.” Ibid. p.309

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 108

A FORMAÇÃO DE UM PENSAMENTO TÉCNICO-INDUSTRIAL NO EXÉRCITO DURANTE O PRIMEIRO GOVERNO VARGAS: O CÍRCULO

DE TÉCNICOS MILITARES

Alexandre de Sá Avelar*

L’individu est important surtout en tant que lieu d’une activité intense et spécifiquement humaine de lecture, d’interprétation et de construction du ‘réel’

(Gribaudi 1987:123) Resumo: O presente trabalho pretende abordar a constituição de um projeto de modernização desenvolvimentista no interior do Exército durante o Estado Novo. O núcleo central deste projeto residia na idéia de que as Forças Armadas deveriam se tornar prioritariamente uma instituição a serviço do desenvolvimento industrial, subordinando a este objetivo os ditames da defesa nacional. Os militares que defendiam esta posição se agruparam numa organização denominada Círculo de Técnicos Militares, que se tornou o locus principal de divulgação de suas idéias. O ideário defendido pelo Círculo confunde-se com o pensamento e a trajetória do seu mais expressivo intelectual, o Major Edmundo de Macedo Soares. Palavras-chave: Edmundo de Macedo Soares; Círculo de Técnicos Militares; desenvolvimentismo. Abstract: This research intends to approach the constitution of a development modernization project inside the Army during "Estado Novo" period. This project central nucleus was the idea that the Military Forces should become primly an institution in service of industrial development, subordinating the national defense rules to that objective. The militaries who defended that position formed a group in an organization called "Círculo de Técnicos Militares" (Military Technicians Circle), which became the main locus for the divulgation of their ideas. The ideas defended by the Circle were mixed with the thoughts and the trajectory made by its most expressive intellectual, the Major Edmundo de Macedo Soares. Key-words: Edmundo de Macedo Soares; Círculo de Técnicos Militares; industrial modernization.

1. INTRODUÇÃO

A desarticulação da economia agrário-exportadora a partir da década de trinta reestruturou a

acumulação capitalista no Brasil, tendo como novo eixo o setor urbano-industrial. Tornou-se quase

um consenso entre os historiadores a afirmação de que o novo bloco histórico recém-chegado ao

poder conseguiu dinamizar um processo de industrialização que, embora não tenha se concretizado

* Doutor em História pela UFF

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 109

em sua totalidade, ao menos propiciou um novo padrão de crescimento econômico. Mesmo

discordando quanto à real eficácia dos instrumentos de política econômica na promoção desse

crescimento industrial, não parece persistir dúvida quanto à ocorrência de uma transformação

qualitativa na ordem capitalista do Brasil.

O choque entre os diversos projetos de mudança econômica propostos na década de trinta

tem recebido pouca atenção dos especialistas no período. Na maioria dos casos, as idéias

econômicas são desvinculadas da dinâmica da luta de classes e dos conflitos de interesses para

serem analisadas exclusivamente sob o prisma da sua adequação ou não à realidade que pretendem

explicar ou, o que não é uma grande diferença, a partir da possibilidade ou não de que as

transformações ocorridas tenham se dado em virtude da aplicação correta daquelas idéias. Em

ambas as perspectivas, perdem-se os movimentos de construção de espaços de poder e de consenso

hegemônico e os conflitos ideológicos daí decorrentes tanto na sociedade civil quanto na sociedade

política.

O trabalho aqui apresentado faz parte de uma pesquisa mais ampla que resultou numa tese

de doutorado defendida na Universidade Federal Fluminense em 2006, que procurou dar conta da

trajetória do major Macedo Soares, entendendo-o como um intelectual orgânico de um projeto

industrialista de caráter autoritário, cuja difusão ultrapassou as fileiras militares, às quais nosso

personagem pertencia, para atingir espaços dentro da sociedade civil e política.1 Sua trajetória

intelectual neste momento decisivo, as décadas de trinta e quarenta, é fundamental para os nossos

propósitos neste texto. O aparecimento do Círculo de Técnicos Militares, no início do Estado

Novo, representou um importante locus difusor de um pensamento desenvolvimentista autoritário,

centrado no protagonismo do Estado, na liderança do Exército e na força da ciência e da tecnologia,

tendo no nosso personagem um dos seus mais proeminentes defensores.

2. OS ANOS DE FORMAÇÃO DE MACEDO SOARES

Ainda quando estudante da Escola Militar do Rio de Janeiro, Macedo Soares percebera o

descontentamento das Armas em relação ao estado do desenvolvimento econômico do país. A

insuficiência do setor industrial era seguidamente debatida entre os alunos.

1 Convém registrar que Macedo Soares chegou ao posto de General do Exército. À época da formação do Círculo de Técnicos Militares, contudo, era ainda Major. Ocupou importantes cargos públicos ( ministros nos governos Dutra e Costa e Silva, governador do Estado do Rio de Janeiro, presidente da Companhia Siderúrgica Nacional ) e privados (presidente da CNI, diretor da Mercedes, entre outros ), além de ter produzido uma extensa obra intelectual, entre livros, artigos, aulas e conferências.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 110

(...) O que desejávamos era o desenvolvimento do Brasil, porque achávamos que na República Velha o desenvolvimento foi muito pequeno. Ele não se fazia na área industrial: indústria, só de tecidos. O pessoal do café nunca empregou dinheiro, a não ser em tecidos. Ninguém do café, com exceção do Roberto Simonsen.2

Alguns números relativos à economia brasileira durante a década de 20 revelam um

panorama próximo àquele descrito por nosso personagem. As estatísticas da época demonstram a

relativa marginalização do setor industrial em contraste com a importância do eixo primário-

exportador. Os dados mais seguros são os do recenseamento industrial de 1920. Eles apontam para

o predomínio da pequena unidade industrial. Os 13.366 estabelecimentos existentes empregavam

um total de 275. 512 operários. Do número total de indústrias, apenas 482 tinham mais de cem

trabalhadores. O setor que poderia ser caracterizado como burguês-industrial constituía uma faixa

quantitativamente reduzida e incapaz de “apresentar qualquer projeto industrialista como alternativa

a um sistema cujo eixo central era formado pelos interesses cafeeiros”3. Além de apontar para a

precariedade da produção industrial brasileira, a fala de Macedo Soares nos permite verificar que os

problemas do desenvolvimento econômico brasileiro já eram discutidos entre os jovens militares.

Os anos vinte se mostrariam decisivos para a futura trajetória de Macedo Soares. O

envolvimento com as conspirações militares de 1922 e 1924 representou para o jovem tenente a

possibilidade de uma intervenção saneadora na política nacional, ainda que de vestes autoritárias, o

que fica evidenciado pela sua avaliação a posteriori daquela conjuntura:

Estava o país estagnado no tempo, desde a abolição da escravatura e proclamação da Primeira República. Não se sentia o pulso de estadistas capazes de ver suficientemente longe para tirar o Brasil do marasmo em que jazia. (...) Economicamente, dominava o café que, junto a alguns outros produtos primários, nos rendia umas poucas centenas de milhões de dólares. (...) A mocidade sentia isso. Compreendia que alguma coisa de anormal ocorria e que precisava ser corrigida. (...) Nosso objetivo era ‘limpar a política’, chamando ao Poder homens de melhor gabarito. (...) Esse era o nosso ideal: formar um grupo de técnicos e procurar mudar a estrutura econômica do país.4

Após ser preso e obter um visto no exterior através da embaixada peruana no Brasil, Macedo

Soares exilou-se em Paris, onde iniciou os estudos de engenharia metalúrgica, vindo a ser um dos

mais respeitados profissionais deste campo, que no Brasil contava apenas com uma escola de

formação, em Ouro Preto. Estudou em prestigiosas escolas de metalurgia na França. Matriculou-se

inicialmente no Conservatoire des Arts et Métiers. No Institut de Chimie Appliquée fez um curso de

química inorgânica ao mesmo tempo em que freqüentou aulas de física e matemática. O curso de

metalurgia foi concluído entre 1926 e 1928, com a apresentação de uma tese na concorrida

Academia de Ciências, cuja publicação em 1927 garantiu ao jovem militar brasileiro algum

2 Arquivo de Macedo Soares. Depoimento oral. Rio de Janeiro. CPODC/FGV. 3 FAUSTO, Bóris A Revolução de 30: historiografia e história.. São Paulo: Brasiliense, 1986, p.23. 4 SILVA, Edmundo de Macedo Soares e. A revolução de 30: a razão do seu desencadeamento, exemplo da nova orientação na formação técnica do povo. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. n.341, Rio de Janeiro, pp.77-79, 1983.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 111

reconhecimento no meio técnico francês Em seguida, Macedo Soares ingressou na École de

Chauffage Industriel, aperfeiçoando-se na construção de fornos metalúrgicos, ficando mais quatro

meses. A formação sólida já recebida no Conservatoire foi ampliada com um curso sobre fundição

na École Supérieure de Fonderie, prolongando sua permanência na Europa por mais um ano. Os

períodos de estudo foram intercalados com pequenos trabalhos em projetos metalúrgicos que

auxiliaram em sua formação, além de render-lhe importante ajuda financeira. Ainda realizou

estágios em usinas francesas ( Choisy-le Roi e Chambéry) e italiana ( Brenda ).

Os anos passados na Europa foram decisivos para os rumos que Macedo Soares tomaria a

partir de 1930. Com uma sólida formação em metalurgia e estágios em grandes siderúrgicas, o

futuro general acertou sua volta ao Brasil em agosto de 1930 por intermédio do embaixador

brasileiro em Paris, Souza Dantas, amigo do seu primo, José Carlos de Macedo Soares, homem

influente na vida política paulista e futuro ministro de Vargas. Tendo acompanhado os movimentos

políticos que conduziriam à Revolução de 30, Macedo Soares planejava atuar de alguma forma nas

conspirações que pretendiam derrubar o governo de Washington Luís. Seus planos futuros incluíam

alguma forma de intervenção na realidade brasileira, cujos males poderiam ser solucionados,

segundo acreditava, pelos caminhos seguros da ciência e da indústria. A formação em engenharia

assegurava-lhe o capital intelectual para se tornar um ator social ativo na construção de um projeto

de aprofundamento do capitalismo nacional, retirando as amarras que impediam o Brasil de se

tornar uma nação industrial. Para este papel, assim se pretende demonstrar, a organização do CTM

representou um momento decisivo.

3. A FORMAÇÃO DO CÍRCULO DE TÉCNICOS MILITARES E A ENGENHARIA

BRASILEIRA NOS ANOS 30:

A crise dos primeiros anos da década de trinta abalou as antigas convicções a respeito da

“vocação agrícola” do Brasil. Os graves desequilíbrios econômicos que o país enfrentava eram

agora relacionados à posição subalterna ocupada por nossa economia mercantil-exportadora na

configuração do capitalismo mundial. A decorrência natural dessa forma de inserção dependente era

a impossibilidade endógena de reprodução ampliada do capital. A industrialização mantinha-se

restrita aos meios de consumo popular, inexistindo as bases materiais de produção de bens de

capital.5

5 DRAIBE, Sônia. Rumos e metamorfoses: um estudo sobre a constituição do Estado e as alternativas da industrialização no Brasil ( 1930 – 1960 ). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985, p.12.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 112

Durante a República Velha, as sucessivas políticas de valorização do café foram decisivas

para assegurar os lucros das elites latifundiárias, socializando as eventuais perdas para todo o

conjunto da sociedade. Tais programas de sustentação da lavoura cafeeira baseavam-se na

manipulação cambial e nos volumosos empréstimos externos para a compra e estocagem do

produto. Ao mesmo tempo em que se garantiam os preços externos do café em níveis satisfatórios,

havia o grande risco de crises de superprodução. Isso ocorria devido à crescente expansão da área

de cultivo do produto, certamente estimulada pelos lucros obtidos pelo setor. Em estudo clássico,

Celso Furtado analisa essa contradição da economia brasileira.

Os empresários das economias exportadoras de matérias-primas, ao realizarem suas inversões, tinham de escolher dentre um número limitado de produtos requeridos pelo mercado internacional. No caso do Brasil, o produto que apresentou maior vantagem relativa era o café. Enquanto o preço desse artigo não baixasse a ponto de que aquela vantagem desaparecesse, os capitais formados no país continuariam acorrendo para a cultura do mesmo. Portanto, era inevitável que a oferta do café tendesse a crescer, não em função do crescimento da procura, mas sim da disponibilidade de mão-de-obra e terras sub-ocupadas, e da vantagem relativa que apresentasse esse artigo de exportação.6

O excesso de oferta sem absorção, garantida pelos mercados externos, era indício de que

uma grave crise no setor ocorreria independente do colapso da economia mundial em 1929. Com a

Depressão, tornou-se cada mais evidente que as grandes praças financeiras mundiais teriam poucas

possibilidades de manter os empréstimos que auxiliavam no financiamento da lavoura. A

conseqüência imediata foi a queda no preço externo do café; ao final de 1929, estava abaixo de 7

pence por libra-peso, contra os 11 pence de antes da Depressão. A curva descendente persistia e,

em 1931, atingia-se a cotação de 4 pence.7

O declínio dos preços do maior produto de exportação do país e a forte redução no fluxo de

capitais externos provocaram o rápido esgotamento das reservas cambiais. Vargas alegou que o

regime deposto havia remetido 26,5 milhões de libras para o exterior na defesa do câmbio. Assim,

as reservas, que eram de 31, 1 milhões de libras em setembro de 1929, caíram para 14, 1 milhões

em agosto de 1930 e desapareceram no início de 1931.

Outro setor da economia nacional duramente atingido pelo crash foi o comércio exterior.

Exportações e importações caíram em 1931-32, respectivamente, metade e um terço dos seus

valores de pico de 1928, medidos em libras. O volume de importações decresceu continuamente

entre 1932 e 1939, quando se chegou a um volume mínimo em relação ao pico de 1928; o quantum

de exportações, porém, cresceu até 1931, tendo 1932 sido o único ano em que sofreu um declínio,

medido em 16% em relação a 1928 e em 30% em relação a 1931. O preço das importações em mil-

réis sofreu um aumento de 6%, enquanto o preço das exportações caiu aproximadamente 25%. Isso

6 FURTADO,Celso. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Editora Nacional, 1997, p.198.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 113

significa que ocorreu uma deterioração de cerca de 30% nos termos de troca e uma redução de

40% na capacidade de importar.

Outros dados atestam a gravidade da crise. A queda do Produto Nacional Bruto em 1930 e

no ano seguinte atingiu, aproximadamente, 18, 7 e 11,75%. A paralisia econômica trouxe a

desocupação para cerca de 2 milhões de trabalhadores; só na cidade de São Paulo, calculava-se em

cem mil o número de pessoas em busca de emprego. Outro grave problema foi a redução na

atividade industrial, sendo que várias fábricas optaram por funcionar apenas três dias da semana.

Em 1930, o setor de tecidos finos registrou queda de 40% na produção e a de tecidos grossos cerca

de 70%; a indústria metalúrgica e de papel apresentaram baixa de 60% e, no ramo de madeiras e

móveis, o declínio atingiu 50%.8

Os efeitos da crise econômica estenderam-se ao jogo político-institucional contribuindo, de

forma decisiva, para a derrocada das oligarquias tradicionais e seus sócios no poder. A ascensão de

novas forças políticas deslocou o peso específico dos antigos grupos dominantes – ainda que estes

não fossem totalmente alijados do novo bloco histórico no poder – e reforçou a convicção de certos

grupos urbanos e das oligarquias dissidentes da urgência de um novo projeto de hegemonia

capitalista que dependesse menos do setor agrícola na composição da dominação burguesa.

Emergia daí um “Estado de Compromisso”, cuja gênese assim foi descrita por Bóris Fausto:

Em síntese, a crise de hegemonia da burguesia cafeeira possibilita a rápida aglutinação das oligarquias não vinculadas ao café, de diferentes áreas militares onde a oposição à hegemonia tem características específicas. Estas forças contam com o apoio das classes médias e com a presença difusa das massas populares.9

O processo desencadeado com a crise no setor oligárquico-exportador não refletiu, de

imediato, numa clara hegemonia da burguesia industrial. A crise era também uma crise de

hegemonia, o que favoreceu a proeminência do Estado na “tarefa de assegurar os requisitos de

coerção, deixando de lado os procedimentos típicos do convencimento e da democracia”.10 Não

obstante, a síntese histórica deste processo apontou, segundo Luís Werneck Vianna, para um

caráter transformista das relações econômicas do capitalismo brasileiro:

(...) a generalização das revolução burguesa (...) realizava-se independentemente de uma hegemonia burguesa. (...) Pretendemos acentuar que a modernização como “revolução pelo alto” não se associa à idéia de que tal processo tenha levado a burguesia industrial ao poder político, e sim que os interesses específicos da industrial tenham encontrado apoio e estímulo eficaz na nova configuração estatal. 11

7 ABREU, Marcelo de Paiva. O Brasil e a economia mundial ( 1930 – 1945 ). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999, p.74. 8 CORSI, Francisco Luiz. Estado Novo: política externa e projeto nacional. São Paulo: Editora da UNESP/FAPESP, 2000, p.37. 9 FAUSTO, Boris. Op.cit., p.103. 10 FONTES, Virgínia. Que hegemonia? Peripécias de um conceito no Brasil. In: ____. Reflexões im-pertinentes: História e capitalismo contemporâneo. Rio de Janeiro: Bom Texto, 2005, p.206. 11 VIANNA, Luís Werneck. Liberalismo e sindicato no Brasil. 4.ed. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1999, p.172.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 114

Os novos ajustes econômicos feitos a partir de 30 também foram fruto das percepções das

novas elites políticas que representavam a diversidade político-ideológica da Aliança Liberal,

bloco que levou Vargas ao poder. Vivendo o turbilhão dos acontecimentos, esses homens não

hesitaram em produzir análises e apontar as causas dos problemas da economia nacional, bem

como em propor soluções para a crise. Essas visões são importantes na medida em que nos

oferecem elementos para a compreensão das transformações ocorridas durante a década. As

diferentes interpretações e propostas são cruciais para acompanharmos o processo histórico que

desencadeou a expansão do capitalismo industrial no Brasil. Entre as diversas leituras realizadas a

respeito da situação econômica e dos meios de enfrentamento da crise, uma delas cristalizou-se no

interior das Forças Armadas, congregando diversos militares em torno de um projeto de corte

nacional-desenvolvimentista com fortes apelos autoritários. Principal porta-voz deste projeto,

Edmundo de Macedo Soares e Silva, emergiu como um dos mais destacados participantes do

debate econômico nacional até sua morte, em 1989. A formação de militar-engenheiro não o

manteve restrito aos meios militares. Sua vasta produção intelectual e os diversos cargos ocupados,

tanto na sociedade civil como política, possibilitam tomá-lo como intelectual orgânico de um certo

projeto econômico-social abraçado por uma elite burguesa industrial em vias de se consolidar

como uma das frações mais expressivas da classe dominante.

Ao longo de toda a década de trinta, um projeto nacional de base industrialista foi tomando

forma nos aparelhos privados da burguesia industrial e conquistando espaços cada vez maiores no

interior da burocracia varguista a partir da construção de um consenso em torno da necessidade do

país de romper com sua tradição de produtor de bens primários para exportação. Obviamente não

podemos atribuir a esse projeto nacional um caráter acabado e definitivo desde a chegada de

Vargas à presidência. A deterioração do sistema internacional, as graves crises políticas internas,

as dificuldades de financiamento e as reações dos setores ruralistas obrigavam o governo a

redefinir a todo o momento os rumos do projeto industrializante. O norte permanecia, entretanto, o

mesmo: a construção do capitalismo industrial no Brasil.

Emergia, dessa forma, um Estado intervencionista e controlador das atividades econômicas.

Individualizando-se do conjunto da sociedade, a administração federal passou a impor políticas

públicas a partir de sua percepção dos interesses nacionais. A criação de uma série de órgãos

burocráticos a partir de 1930 demonstra o novo paradigma de relacionamento entre Estado e

economia. Esses novos veículos de acesso dos grupos setoriais ao aparelho estatal representavam o

primeiro ensaio de uma burocracia típica do capitalismo moderno. Pretendia-se estudar, coordenar,

proteger e incentivar a expansão das atividades produtivas no país. Embora muitos desses órgãos

não tivessem função deliberativa ou executiva, eles funcionavam como formuladores de pareceres,

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 115

tornando-se instâncias de informação e formação de opiniões, exercendo igualmente o papel de

canais de expressão das demandas da sociedade civil.12

O debate sobre a necessidade da rápida industrialização e os estudos que visavam a acelerar

sua implementação ganharam novos rumos com o advento do Estado Novo. Sem a interferência do

poder legislativo, Vargas pôde fazer avançar o andamento de problemas considerados vitais, como,

por exemplo, a construção de uma grande usina siderúrgica. A proliferação das comissões de estudo

foi um importante sintoma desse novo formato de tratamento dos problemas econômicos

brasileiros, vistos cada vez mais como problemas técnicos, cuja solução deveria ser buscada em um

conjunto de burocratas especializados e portadores de saberes qualificados para tal.

Essa dimensão estritamente técnica, com a qual Vargas pretendeu investir as discussões das

questões econômicas, favoreceu a valorização dos engenheiros enquanto ideólogos de um projeto

industrialista13 e portadores de soluções técnicas e saberes científicos capazes de promover as

transformações requeridas pela crise então vivida. Nosso estudo sobre o pensamento econômico de

Edmundo de Macedo Soares e suas articulações no interior da sociedade civil e do Estado não pode

ser desvinculado de uma apreciação analítica a respeito do seu lugar de fala. A condição de

engenheiro investia-o de um saber cientificamente reconhecido como detentor de condições para a

intervenção na realidade social. Estabelece-se, assim, uma forma de relacionamento entre sua

atividade profissional e o aparelho econômico, processo esse intermediado pelas escolas de

formação, pois, segundo Lili K. Kawamura,

A categoria profissional do engenheiro no capitalismo consiste em determinada parcela social com qualificação técnico-científica, especialmente voltada para atividades de utilização da ciência no processo produtivo. Tal qualificação tem-lhe sido historicamente outorgada de modo sistemático pelo aparelho escolar, em nível de ensino superior.14

12 A lista desses órgãos, comissões e conselhos, além de um Congresso, criados pelo governo entre 1930 e 1945, era extensa e revela a preocupação estatal em realizar debates, promover análises e criar instrumentos para a tomada de decisões: 1930: Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio; 1931: Conselho Nacional do Café, Instituto do Cacau da Bahia; 1932: Ministério da Educação e Saúde Pública; 1933: Departamento Nacional do Café, Instituto do Açúcar e do Álcool; 1934: Conselho Federal do Comércio Exterior, Instituto Nacional de Estatística, Código de Minas, Código de Águas, Plano Geral de Viação Nacional; 1937: Conselho Brasileiro de Geografia, Conselho Técnico de Economia e Finanças; 1938: Conselho Nacional do Petróleo, Departamento Administrativo do Serviço Público ( DASP ), Instituto Nacional do Mate, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística ( IBGE ); 1939: Plano de Obras Públicas e Aparelhamento da Defesa; 1940: Comissão de Defesa da Economia Nacional, Instituto Nacional do Sal; 1941: Instituto Nacional do Pinho; 1942: Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI); 1943: Coordenação da Mobilização Econômica, Consolidação das Leis do Trabalho, Serviço Social da Indústria (SESI), Plano de Obras e Equipamentos, I Congresso Brasileiro de Economia; 1944: Conselho Nacional de Política Industrial Comercial, Serviço de Expansão do Trigo; 1945: Superintendência da Moeda e do Crédito ( SUMOC ). 13 Ao pensarmos o termo “industrialista, estamos pensando nas mesmas categorias conceituais contidas na reflexão de Sônia Regina de Mendonça em relação ao termo “ruralismo” e que compreende a seguinte definição: “movimento político de organização e institucionalização de determinadas frações da classe dominante agrária no Brasil – tanto em nível de sociedade civil – bem como aos conteúdos discursivos produzidos e veiculados pelos agentes e agências que dele participaram”. Cf. MENDONÇA, Sônia Regina de. O ruralismo brasileiro. São Paulo: Hucitec, 1997, p.10. 14 KAWAMURA, Lili Katsuco. Engenheiro: trabalho e ideologia. São Paulo: Ática, 1991, p. 50.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 116

A diversificada atuação de Macedo Soares junto à sociedade civil, sem deixar de ser um

homem da sociedade política, representa um exemplo da inserção cada vez mais ampla dos

engenheiros nos diversos ramos industriais e nos próprios aparelhos estatais a partir de 1930..

Acreditamos que o conceito gramsciano de intelectual orgânico seja a categoria central de análise.

Donos de uma formação especializada essencial para que determinada classe alcance e mantenha o

papel dirigente, o intelectual orgânico organiza a função econômica e detém a direção hegemônica

que a classe dominante exerce nos níveis da sociedade civil e da sociedade política. Segundo Lili K.

Kawamura,

na medida em que o engenheiro, nas formações capitalistas, vem sendo formado como um especialista em dada área técnica orientada para os interesses da burguesia industrial e vem exercendo funções intelectuais, em seus diversos graus, principalmente no âmbito da produção industrial, pode ser analisado como intelectual orgânico.15

A criação do Círculo de Técnicos Militares foi, portanto, a resposta institucional de um

grupo de militares às crescentes demandas de industrialização, confiadas a um envolvimento cada

vez maior dos engenheiros com os mecanismos de expansão do capital industrial. Protagonistas de

um drama histórico no qual buscavam alcançar uma modernidade de feições autoritárias16, os

engenheiros militares pressentiram o momento oportuno para uma intervenção mais decidida nos

rumos do desenvolvimento capitalista para além da sociedade política.17

4. O PROJETO DO CÍRCULO DE TÉCNICOS MILITARES:

Cumpre-nos advertir que, ao defendermos a existência de um projeto desenvolvimentista

dentro das Forças Armadas, institucionalizado no Círculo de Técnicos Militares e cuja liderança era

exercida por Edmundo de Macedo Soares, estamos nos valendo das formulações de Ricardo

Bielschowsky, para quem o desenvolvimentismo apresenta as seguintes idéias-força:

15 Idem, p. 87. 16 Para uma discussão a respeito dos engenheiros como ideólogos de um projeto modernizador autoritário, conferir HERF, Jeffrey. O modernismo reacionário: tecnologia, cultura e política na República de Weimar e no 3.Reich. São Paulo, Editora Ensaio; Campinas: Editora da UNICAMP, 1993. 17 Muitos dos integrantes do Círculo ocuparam cargos importantes no mundo civil, especialmente em cargos de direção de empresas, cuja criação contou com a participação decisiva. Tais eram os casos do próprio Edmundo de Macedo Soares e Sílvio Raulino de Oliveira, protagonistas de todo o processo de constituição da Companhia Nacional, e ocupantes da presidência da empresa. Segundo Maria Ana Quaglino, esse deslocamento para a sociedade civil causou grande mal-estar entre os chamados “oficias combatentes” que não aceitavam o fato desses militares técnicos não permanecerem exclusivamente nos quadros do Exército. Conferir QUAGLINO, Maria Ana. O Exército e seus técnicos: o projeto do Círculo de Técnicos Militares ( 1937 – 1956 ). Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: IFCS/UFRJ, 1992, p. 50.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 117

a) a industrialização integral é a via de superação da pobreza e do subdesenvolvimento

brasileiro.

b) não há meios de alcançar uma industrialização eficiente e racional, no Brasil, através das

forças espontâneas de mercado; por isso, é necessário que o Estado a planeje.

c) o planejamento deve definir a expansão planejada dos setores econômicos e os

instrumentos de promoção dessa expansão.

d) o Estado deve ordenar também a execução da expansão, captando e orientando recursos

financeiros e promovendo investimentos diretos naqueles setores em que a iniciativa privada seja

insuficiente.18

A proposta do Círculo de Técnicos Militares apresentava-se como um dos pólos de uma luta

intelectual travada no interior das Forças Armadas, opondo as concepções de Edmundo de Macedo

Soares às de Góis Monteiro, principal líder militar do governo Vargas. Como as duas vertentes de

pensamento entendiam caber às Forças Armadas uma missão nacional, um papel de direção moral e

intelectual, podemos apontar claramente para a existência de dois projetos nacionais

institucionalizados, cujos conflitos e contradições concorreram para a consolidação de uma certa

identidade militar a partir da vitória da linha defendida por Góis Monteiro, cuja proposta entendia

que às Forças Armadas deveria ser reservado um papel essencialmente bélico, sendo a preparação

para a guerra a sua maior preocupação. Esses “militares combatentes” acenavam também com a

possibilidade de incremento da atividade industrial, desde que inteiramente subordinada às

necessidades militares. Não causava surpresa, portanto, que durante a Segunda Guerra Mundial

Góis Monteiro tenha defendido a ampliação da produção da indústria civil nacional, dando

preferência às matérias-primas e máquinas nacionais. As indústrias receberiam incentivos, tais

como garantias de compras, adiantamento de recursos e assistência técnica. Ao mesmo tempo, a

formação dos técnicos militares foi aumentada, especialmente para atender a urgência de

qualificação para o manejo do armamento importado. As especializações da principal escola

formadora de engenheiros militares, a Escola Técnica do Exército ( ETE ), deveriam nortear-se para

as necessidades brasileiras nos campos de batalha.19

Pretendemos apresentar o projeto do CTM tendo como base dois trabalhos de Edmundo de

Macedo Soares produzidos entre 1939 e 1940. Trata-se de um discurso reproduzido no Boletim do

Círculo de Técnicos Militares, principal meio divulgador das propostas dos técnicos militares,

intitulado “A estruturação técnica de nossas elites dirigentes” e de um artigo publicado na revista

18 BIELSCHOWSKY, Ricardo. Pensamento econômico brasileiro: o ciclo ideológico do desenvolvimentismo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000, p. 7. 19 Sobre o pensamento do General Góis Monteiro, conferir PINTO, Sérgio Murillo. A doutrina Góis: síntese do pensamento militar do Estado Novo. In: PANDOLFI, Dulce (org). Repensando o Estado Novo. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1999 e SUANO, Marcelo José Ferraz .O pensamento político e militar do general Góis Monteiro. Dissertação de Mestrado. São Paulo, USP/FFLCH, 1997.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 118

Nação Armada, sob o título “As indústrias de base como elemento do progresso econômico”. Os

principais elementos que nortearam as propostas dos militares técnicos estão presentes nesses dois

textos, razão pela qual procedemos a sua escolha.

A meta fundamental de transformar o Exército em uma instituição voltada prioritariamente

para o desenvolvimento industrial fundamentou-se em uma proposta articulada em três grandes

linhas de análise:

1) uma avaliação da situação geopolítica internacional e das novas modalidades de conflito

armado.

2) um diagnóstico da situação da indústria e da técnica no país, tendo em vista a precária

inserção externa do Brasil em um cenário mundial marcado pela emergência de um conflito de

dimensões planetárias.

3) os meios para a superação do atraso tecnológico, científico e industrial, incluindo a

necessidade de instituição de aparelhos escolares específicos para a formação de “elites dirigentes

técnicas”.

A noção de “guerra total” oferece o referencial teórico para a reflexão a respeito da ordem

internacional. Este conceito colocava com pesos iguais a força dos grandes exércitos e a produção

industrial. No atual estágio dos conflitos bélicos, não basta a ação humana. Esta se liga de tal forma

ao material que se torna imperiosa a sua produção em larga escala e “com as qualidades e nas

quantidades exigidas pela guerra moderna”20 o que só seria possível com a montagem de uma

poderosa retaguarda, “onde se assegura a fabricação desse material e se obtém os outros elementos

indispensáveis à vida dos Exércitos.”21

A mobilização das forças nacionais em um momento de perturbações na ordem

internacional era uma tarefa que cabia aos técnicos militares. Possuidores do domínio da técnica e

da ciência, deveriam “enquadrar, desde o tempo de paz, os técnicos civis normais da Nação,

acompanhando-lhes as atividades, adaptando-as às necessidades militares de acordo com as

instruções do Comando, ou orientando-os, dentro de um quadro geral”.22

A superioridade científica e tecnológica das nações mais avançadas servia de impulso para

que estas estabelecessem relações de tipo imperialista com países em estágio inferior de

desenvolvimento industrial-militar. Para estes últimos, a ameaça em sua segurança interna era

constante e apenas o rápido desenvolvimento dos seus recursos e a sua transformação em meios de

20 SOARES, Edmundo de Macedo. As indústrias de base como elemento do progresso econômico e da preparação militar do País. Nação Armada. n.2. Rio de Janeiro, pp.50, janeiro de 1940. 21 Idem, p.51. 22 SOARES, Edmundo de Macedo. A estruturação técnica das nossas elites dirigentes. Boletim do Círculo de Técnicos Militares. n.1 Rio de Janeiro, pp.167, janeiro de 1939.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 119

guerra poderiam evitar a exploração das grandes potências.23 Estabelecia-se, dessa forma, a

associação fundamental entre desenvolvimento industrial e desenvolvimento militar e todas as

atividades econômicas deveriam estar voltadas para a consecução desse duplo desenvolvimento.

A guerra moderna, em seus vínculos com as atividades industriais, havia deixado clara a

preocupação dominante dos Estados modernos: a obtenção de uma independência econômica tão

completa quanto possível. Os países de desenvolvimento mais antigo, ao produzirem mais do que

podiam absorver, enfrentavam a necessidade de mercados externos, ao passo que países de poucos

recursos naturais tinham tendência à autarquia. 24

A precária coexistência, no plano internacional, entre práticas liberalizantes e protecionistas

de comércio internacional aumentava as incertezas para os países subdesenvolvidos e provocava

tensões entre as principais potências. Novamente a análise de Macedo Soares recai sobre a urgência,

para as nações periféricas, de estimular o crescimento técnico-científico e industrial. Essa

preocupação marcou os militares do Círculo desde o início das suas atividades, como fica claro na

apresentação do número inaugural do Boletim, quando, alarmados, entendem que “sem a técnica

nunca teremos artes nem indústrias que nos permitam transformar essas riquezas latentes na seiva

que vitalizará o organismo econômico brasileiro e sem a ciência nunca poderemos possuir a técnica

a isso indispensável”.25

O segundo item do projeto do CTM reside na análise da situação técnico-industrial do

Brasil, considerando a sua inserção dependente em uma conjuntura externa marcada pelo conflito

militar e pela competição econômica.

Para Macedo Soares, a razão mais profunda da dependência econômica do Brasil residia na

importação de idéias e modelos alheios à nossa realidade social.

Vivemos séculos a olhar para fora, a sentir irresistível atração pela Europa, onde vivíamos presos pelo espírito. Raciocinávamos à européia, líamos apenas livros europeus (...) de lá nos vinham os homens de ciência para o estudo dos nossos problemas.26

Os brasileiros eminentes eram impedidos de produzir plenamente, em função da falta de

apoio a iniciativas que rompessem com o estado de letargia reinante entre nossas elites. O Barão de

Mauá é citado como exemplo de empreendedor tolhido por medíocres interesses políticos,

incapazes de compreender o alcance e grandeza das transformações e inovações que propunha.

A preferência pelo tradicionalismo à inovação encontrava respostas em nossa colonização de

matriz lusitana. Sendo “oriundos de povos de pouco pendor associativo em que o culto da

23 SOARES, Edmundo de Macedo. As indústrias de base como elemento do progresso econômico e da preparação militar do País. Op.cit., pp.52. 24 Idem, pp.53. 25 Boletim do Círculo de Técnicos Militares. n.01 Rio de Janeiro, pp.3, janeiro de 1939. 26 SOARES, Edmundo de. A estruturação técnica das nossas elites dirigentes. Op.cit., pp.159.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 120

personalidade humana constituía o traço mais característico”27, pouco desenvolvemos esse espírito

associativo necessário às atividades de transformação industrial. Daí decorre nossa natural

inclinação para o estudo das letras e humanidades, atividades intelectuais essencialmente

individuais.28 Assim, o brasileiro atua com brilhantismo em atividades ditas liberais, onde se exige

trabalho solitário. Isso explica ainda o fato de que as primeiras associações industriais tenham sido

estrangeiras. Por esse mesmo motivo, não era considerado como prioridade pelas elites a formação

de quadros técnicos para as atividades industriais. “Se organizávamos uma escola industrial técnica,

nossa mentalidade individualista achava um meio de inverter os objetivos e, ao invés de formarmos

operários, formavam-se artistas”, lamentava Macedo Soares.29

A continuidade histórica desse “pecado original” explicava a dependência da economia

brasileira em relação às exportações de gêneros primários ainda em 1933. Neste ano, o café

contribuía com 46% do total das exportações. As principais associações industriais ainda eram de

estrangeiros e os derivados de ferro lideravam as importações, fato este que demonstrava a

precariedade da indústria metalúrgica brasileira, considerada por Macedo Soares como mola

propulsora do desenvolvimento.30

A insuficiência industrial e técnica não representava apenas atraso interno. No concerto

internacional, a situação era igualmente desvantajosa frente aos países de capitalismo avançado,

possuidores de reservas econômicas privilegiadas em suas colônias.

Não possuímos, com efeito, elementos de troca suficientes para assegurarmos a nós mesmos um nível de vida elevado: isso exigia, dentro do sistema atual de nossa economia, um aumento das quantidades de produtos importados e, portanto, exportação maior de mercadorias brasileiras, o que não é possível, porque, possuindo em suas colônias ou regiões sob sua influência econômica, climas e terras semelhantes aos do Brasil, as grandes potências européias se esforçam para produzirem as mercadorias em que baseamos nosso comércio internacional; os mercados consumidores são, destarte, disputados por essas potências européias e pelos outros países sul-americanos.31

O avanço da corrida armamentista e o protecionismo praticado pela maioria das potências

econômicas não deixavam alternativas ao Brasil. O dilema era assim resumido por Macedo Soares:

“ou produzir os elementos básicos para a constituição de uma economia diversificada, ou definhar,

pela insuficiência dos seus meios de troca.32

O terceiro ponto do projeto do CTM residia exatamente nas possibilidades e caminhos para

a implementação de uma economia industrial diversificada, que se traduzisse na redução da

dependência econômica e militar. Não se tratava, contudo, da simples escolha da melhor política

27 Idem, pp.160. 28 Idem, Ibidem. 29 Idem, ibidem. 30 SOARES, Edmundo de Macedo.. As indústrias de base como elemento do progresso econômico e da preparação militar do País. Op.cit., pp.55. 31 Idem, Ibidem.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 121

econômica ou de decisões governamentais corretas. Igualmente importante era a constituição de

aparelhos escolares capazes de formar o proletariado industrial e, especialmente, as elites técnicas

dirigentes, investidas de saber técnico-científico altamente qualificado para o exercício de uma

direção econômica e intelectual durante todo o processo de consolidação do capitalismo industrial

no Brasil.

No que toca ao aparelhamento industrial do país, o entrosamento entre necessidades

econômicas e militares, característica indisfarçável dos novos tempos, exigia o rápido

desenvolvimento das indústrias de base. Estas, no entender de Macedo Soares, eram:

a) – a exploração racional das fontes de energia;

b) – a grande indústria química: produção dos ácidos e das bases minerais; fabricação dos

adubos, destilação da hulha e do petróleo, etc...;

c) – a metalurgia: produção de ferro ou siderurgia, produção do cobre, do alumínio, do

zinco, do níquel, do estanho, etc.33

A importação dos produtos dessas indústrias era o mais claro sinal de dependência

econômica que uma nação poderia apresentar, pois sobre as indústrias de base “se forjam os

instrumentos de trabalho e as armas de defesa e conquista”.34 A falta de uma economia

verdadeiramente independente era o prelúdio da dependência política.

O estímulo às indústrias de base não significava o estabelecimento de uma economia

autárquica. Seguindo o raciocínio desenvolvimentista, Macedo Soares creditava à industrialização

básica um esforço fundamental de substituição de importações. A indústria de transformação,

grande importadora de matérias-primas, era apontada como importante na medida em que criava um

mercado para as indústrias de base e preparava uma certa “mentalidade industrial”. Sem as

indústrias básicas, corríamos o risco da eterna fraqueza econômica e militar. O esforço de

industrialização não deveria ser de exclusividade estatal. A participação privada, inclusive

estrangeira, jamais deixou de ser aceita por Macedo Soares, tendo em vista a especificidade de

nossa formação capitalista, com um setor agrário hegemônico e escassez crônica de poupança

interna.35

Ao Estado caberia a função básica de coordenação e fiscalização das atividades econômicas,

respeitando as regras do mercado e não praticando qualquer modalidade de concorrência desleal. O

correto manejo das políticas cambial e tributária era visto como uma garantia de estabilidade para o

setor privado.36 Em setores considerados estratégicos, como a siderurgia, a presença estatal deveria

32 Idem, Ibidem. 33 Idem, pp.56. 34 Idem, Ibidem. 35 Idem, pp.57. 36 Conferência intitulada “Presença da empresa no desenvolvimento nacional”. Arquivo Macedo Soares. EMS 0000.00.00/3 . CPDOC/FGV.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 122

ser mais ativa, cabendo-lhe inclusive as funções de produtor direto. A direção de tais setores não

implicaria em restrições totais ao capital estrangeiro. Os investimentos internacionais eram

considerados benéficos desde que não tivessem a intenção de assegurar o controle e a direção das

indústrias básicas. O exemplo das negociações envolvendo o financiamento para a construção de

Volta Redonda nos fornece um claro exemplo desse tipo de estratégia, pois os capitais norte-

americanos empregados na usina vieram sob a forma de empréstimo ao governo brasileiro e a

empresa manteve-se estatal. A combinação entre uma ação estatal fiscalizadora e criadora de

condições para a realização plena da empresa privada aproxima Macedo Soares do que Ricardo

Bielschowsky qualificou como “desenvolvimentismo do setor privado”.37

O ensino técnico, formador de uma elite dirigente com alto saber científico, ocupava um

papel de destaque no pensamento dos militares técnicos. Com efeito, ao longo de toda sua trajetória

intelectual, o tema do ensino foi um dos mais discutidos por Macedo Soares em diversas

conferências, livros, artigos, aulas, etc. A magnitude das transformações exigidas ao Brasil não

poderia ser posta em prática sem uma intervenção firme de uma elite esclarecida e técnica ao

mesmo tempo. O “desequilíbrio técnico” na estrutura das nossas elites deveria ser revertido a partir

da expansão dos técnicos militares, os verdadeiros líderes do desenvolvimento industrial, aqueles

capazes de organizar toda a mobilização nacional requerida em momentos dramáticos, como o que

se vivia em 1939.

Macedo Soares teve desempenho de destaque na consolidação da Escola Técnica do

Exército e na instituição da carreira de técnico militar, dois momentos formadores de um campo

científico que, além de criar fortes sentimentos de identidade e solidariedade entre os militares

técnicos, favoreceu a expansão restrita da formação científica tida como indispensável a uma

intervenção segura nos rumos da economia brasileira.

A importância da constituição de aparelhos escolares que atuem como veículos de formação

científica e construção de identidades sociais foi bem analisada por Pierre Bourdieu, para quem

os homens formados em uma dada disciplina ou em uma determinada escola partilham um certo “espírito” literário ou cientifico. (...) A escola, incumbida de transmitir esta cultura, constitui o fator fundamental do consenso cultural, nos termos de uma participação de um senso comum entendido como condição da comunicação. O que os indivíduos devem à escola é, sobretudo, um repertório de lugares comuns, não apenas um discurso e uma linguagem comuns, mas também terrenos de encontro e acordo, problemas comuns de abordar tais problemas comuns.38

Fiel à sua crença no caráter indispensável da formação de elites técnicas, Macedo Soares foi

responsável, juntamente com o Coronel Amaro Bittencourt, pela reestruturação dos cursos da ETE

em 1937, com base nas seguintes linhas mestras: 1) o desmembramento dos cursos de engenheiro

rádio-eletricista e de engenheiro industrial em novos cursos: engenheiro eletricista, engenheiro de

37 BIELSCHOWSKY, Ricardo. Op. cit.,p.79.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 123

transmissões, engenheiro de armamentos e engenheiro metalúrgico; 2) maior ênfase na dimensão

experimental dos cursos, numa crítica à tendência predominantemente teórica da Escola. Além dos

citados, eram também oferecidos os cursos de engenharia química e engenharia de construções,

todos previstos para três anos, precedidos por um ano de revisão dos conteúdos , comum a todos.39

A passagem de uma formação excessivamente teórica para outra mais pragmática e atenta às

aplicações das inovações científicas no processo produtivo revelava uma crescente confluência de

interesses entre a engenharia e a burguesia industrial. Para dotar o engenheiro militar de melhor

preparo técnico, a reforma da ETE previa: preleções; trabalhos em laboratórios e gabinetes de

ensaio; trabalhos em salas de desenho; projeções cinematográficas; exercícios no terreno e na carta;

excursões e estágios orientados pelos professores e biblioteca especializada.

Quando em 1941, uma nova mudança nos regulamentos da ETE determinou a transformação

dos cursos de metalurgia, armamentos, eletricidade e transmissões em apenas dois cursos, Macedo

Soares demonstrou grande contrariedade. Em carta ao General Pedro Cavalcante, inspetor geral de

ensino, criticava a fusão afirmando que “o oficial que tendo por dever saber tudo, não se especializa

em coisa alguma”. Combatia, portanto, “a velha concepção do engenheiro de muitos títulos e

poucos conhecimentos, de muita ciência e pouco espírito de realização prática. A ETE deveria,

“para sermos fieis ao seu nome que exprime seus fins (...) formar o engenheiro de poucos títulos e

conhecimentos profundos numa dada especialidade”.40

Mesmo com a extinção da carreira de técnico militar, em 1956, a filosofia de ensino

defendida por Macedo Soares ganhou projeção no Instituto Militar de Engenharia (IME), sucessor

da ETE. Como professor desta instituição, o principal líder da corrente desenvolvimentista do

Exército continuou a manter uma vasta produção a respeito da importância do ensino técnico para o

desenvolvimento brasileiro, contribuindo decisivamente para sua consolidação, fato que lhe valeu

títulos e convites para lecionar em diversas universidades, como a Universidade de São Paulo, a

PUC-RJ e a Universidade Federal Fluminense.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS:

Ao longo deste trabalho, buscamos apresentar como determinados militares do Exército

construíram um projeto contra-hegemônico no interior das Forças Armadas, através do qual

pretendiam a transformação da instituição em um organismo voltado ao problema do

38 BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1974, p.206-207. 39 QUAGLINO, Maria Ana. Op.cit., p.42.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 124

desenvolvimento industrial. Proclamadores de uma verdadeira missão nacional, os militares

técnicos estabeleceram uma ação ideológica em prol dos interesses da ascendente burguesia

industrial, configurando um campo de conflitos de interesses com repercussões intensas no aparelho

estatal. Exerceram também uma decidida direção intelectual, ao intervirem de forma direta na

institucionalização do ensino técnico militar e na organização do processo de trabalho no aparelho

econômico com vistas à formação de uma elite dirigente de caráter técnico-científico e

mobilizadora do esforço de modernização do país. A combinação entre meios e força de trabalho

voltava-se para os objetivos de acumulação, favorecendo a preservação das relações capitalistas de

produção no âmbito de uma formação econômica periférica e que apenas começava a dar os

primeiros passos em direção ao desenvolvimento do núcleo urbano-industrial.

A formação do engenheiro militar aproximava-o da função de intelectual orgânico da

burguesia industrial. Além disso, contribuía para a difusão do valor do conhecimento tecnológico,

atuando na cooptação dos intelectuais tradicionais. Funcionava como o elo entre a infra e a

superestrutura, na medida em que colocava em execução as decisões e valores imprescindíveis para

a realização do processo produtivo dentro do capitalismo.

O projeto do Círculo deve ainda ser entendido como um movimento político, pois

reivindicava a organização e institucionalização de determinados interesses da burguesia industrial.

Produziu certos conteúdos discursivos que foram abraçados por “agências e agentes dotados de uma

inserção determinada na estrutura social e sustentados por canais específicos de organização,

expressão e difusão de demandas”.41

A escolha de Edmundo de Macedo Soares como fio condutor da nossa trama representou,

nos propósitos deste trabalho, o reconhecimento de sua destacada trajetória político-intelectual

como o caminho para que pudéssemos apreender, em sua totalidade, os elementos que constituíam o

projeto do CTM. Sua destacada atuação como professor de escolas militares, planejador econômico

e homem de Estado42 torna-o um intelectual orgânico de um projeto desenvolvimentista autoritário,

cujas linhas de ação nosso militar procurou expandir no interior da sociedade civil e política.

Ainda que se considere a relativa marginalização dos militares técnicos na disputa político-

ideológica existente no interior das Forças Armadas durante o primeiro governo Vargas, é forçoso

reconhecer que muitas das metas do projeto do Círculo de Técnicos Militares foram implementadas

ao longo de toda a chamada era desenvolvimentista: o país consolidou um núcleo básico de

indústrias, o ensino técnico conheceu expressivo crescimento e a influência e participação dos

militares nos aparelhos decisórios de Estado não cessou de aumentar.

40 Apud QUAGLINO, Maria Ana. Op.cit., p.47. 41 MENDONÇA, Sônia Regina de. Op.cit.,p.13. 42 Ver nota 1.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 125

O CRÉDITO RURAL PÚBLICO NUMA ECONOMIA EM TRANSFORMAÇÃO: CRIAÇÃO E INÍCIO DO FUNCIONAMENTO DAS ATIVIDADES DE FINANCIAMENTO AGROPECUÁRIO DA CARTEIRA

DE CRÉDITO AGRÍCOLA E INDUSTRIAL (CREAI), DO BANCO DO BRASIL (BB) - 1937 A 1945*

Paulo Roberto Beskow**

Resumo: Durante o período da Monarquia e em grande parte do período da República, até a década de 1930, o Estado brasileiro não teve um papel importante na promoção do desenvolvimento econômico do país. Particularmente, depois da abolição da escravatura e da Proclamação da República houve um maior envolvimento governamental sobre a resolução dos problemas enfrentados pelo setor rural da economia, também em matéria de crédito. Esta tendência tornou-se mais importante após a Crise Mundial de 1929, na qual a principal conseqüência econômica foi a substituição das exportações agrícolas como atividade mais importante da economia – basicamente de café – pelos crescentes setores ligados ao mercado interno – urbanos – de produção industrial. Ao longo do período republicano até 1930, foram várias iniciativas governamentais relacionadas à agricultura e crédito hipotecário. Contudo, quase todas iniciativas não se desenvolveram. A marca definitiva neste tema foi a fundação da Carteira de Crédito Agrícola e Industrial (CREAI), do Banco do Brasil, no ano de 1937. A fundação e funcionamento do CREAI devem ser analisados num contexto de um amplo projeto de modernização econômica, relacionados com o apoio do Estado no processo de industrialização e diversificação da produção rural, sem a rejeição da agricultura de exportação e não colocando em risco a hegemonia dos grandes proprietários de terras das maiores terras agrícolas – latifúndios. Neste sentido, o CREAI pode ser considerado como a primeira agência nacional da política agrícola. Palavras-Chave: Carteira de Crédito Agrícola e Industrial (CREAI) do Banco do Brasil; Política Agrícola; Desenvolvimento Rural; Economia Brasileira em 1937 até 1945. Abstract: During the Monarchy age and in a large period of the Republic time, until the decade of 1930, the brazilian State did not have an important role in the promotion of the economic development of the country. Particularlly after the abolishment of the slavery and the Proclamation of the Republic did have a larger governmental envolvement on the resolution of the problems faced by the rural sector of the economy, also in the matter of the credit. This tendency became more important after the World Crisis of 1929, which principal economic consequence was the displacement of the agriculture exports as more important activity of the economy – basically cofee

* Este artigo corresponde a uma versão ligeiramente modificada do capítulo III – Fases e Características da Atuação Agrícola da Carteira, item 3.1 – O Início do Funcionamento da CREAI (1938-1945) e de uma parte da Recapitulação e Conclusões da minha Tese de Doutorado “O Crédito Rural Público numa Economia em Transformação: Estudo Histórico e Avaliação Econômica das Atividades de Financiamento Agropecuário da CREAI/BB, de 1937 a 1965”, orientada pelo prof. Tamás Szmrecsányi e defendida em 1994 no Instituto de Economia da UNICAMP. ** Economista , Doutor em Economia (UNICAMP), Professor Adjunto, Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Departamento de Tecnologia Agroindustrial e Sócio-Economia Rural (DTAISER), Centro de Ciências Agrárias (CCA), Campus de Araras. E-mail: [email protected]

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 126

- by the increasing sectors connected to the domestic markets – urban-industrial production. Along the republican period until 1930, was several governmental initiatives related to agricultural and hypothecary credit. However, almost all these initiatives did not developed. The definitive mark in this theme was the foundation of the “Carteira de Crédito Agrícola e Industrial (CREAI)”, of the “Banco do Brasil”, in the year of 1937. The foundation and the functioning of the CREAI must be analysed in a context of a larger project of economic modernization, related to the support of the State to the process of industrialization and the diversification of the rural production, without the rejection of the export agriculture and do not taking in risk the hegemony of the big farmers ownners of the larger agricultural lands – the “latifúndios”. In this sense, the CREAI also be considered the first national agricultural policy agency. Keywords: “Carteira de Crédito Agrícola e Industrial” (CREAI) do Banco do Brasil, Agricultural Policy, Rural Development, Brazilian Economy from 1937 to 1945.

1. INTRODUÇÃO

Durante o Império e boa parte da República, até a década de 1930, o Estado brasileiro não

teve um papel importante na promoção do desenvolvimento econômico do país. Devido à

predominância da ideologia liberal e da doutrina do padrão-ouro na condução da política

econômica, os governos preocupavam-se basicamente com o equilíbrio das finanças públicas e com

a estabilidade cambial. Contudo, já a partir do final do período monárquico, devido às dificuldades

enfrentadas pela agricultura exportadora, passou a haver um maior envolvimento governamental na

resolução de problemas enfrentados pelo setor agropecuário, especialmente através da política

imigratória baseada na subvenção total das despesas de transporte dos trabalhadores vindos do

exterior. Particularmente após a abolição do trabalho escravo e a Proclamação da República, este

maior envolvimento também ocorreu no campo do crédito.

Por causa disso, a abolição formal do trabalho escravo em 1888 – e a proclamação da

República pouco mais de um ano depois – podem ser tomadas como marcos significativos da

formação da moderna agricultura brasileira, tanto em termos da crescente diversificação de seus

produtos, como no que se refere à gradativa institucionalização de uma política agrícola

governamental de âmbito nacional. Foi no contexto destes dois processos que se consolidou o

instrumento de política agrícola que foi o principal objeto desta investigação: o crédito rural

público.

O crédito rural público começou a surgir em 1888, ao término da Monarquia, no bojo da

reforma monetária dos Viscondes de Ouro Preto e de Cruzeiro, através de um acordo do Banco do

Brasil com o Tesouro Nacional para favorecer os ex-proprietários de escravos na forma de crédito,

cabendo ao primeiro a distribuição seletiva do crédito fornecido pelo segundo. Entretanto, parcela

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 127

considerável desses recursos foi repassada pelo Tesouro a um grupo de bancos particulares para que

emprestassem à agricultura.

Com o advento da República, foi aprovada em 1890 legislação que reorganizou o sistema

bancário e monetário, a qual embora tivesse semelhanças com a reforma bancária de 1888, avançou

numa série de questões, dentre as quais a do crédito rural hipotecário. No entanto, depois do

Encilhamento, teve início, a partir de 1898, uma contra-reforma econômico-financeira cuja

principal finalidade era situar o País no sistema do padrão-ouro liderado mundialmente pela

economia britânica.

Em conseqüência dessa contra-reforma, o sistema bancário brasileiro foi praticamente

destruído, com a liquidação de vários bancos e a quase falência do Banco do Brasil, o qual foi

obrigado a suspender os seus pagamentos. Por causa disso, a política de crédito rural não teve

continuidade, e o próprio Ministério da Agricultura acabou sendo extinto em 1892, só vindo a

ressurgir em 1906. Durante esse intervalo, as políticas agrícolas vigentes foram determinadas a

nível estadual, e giravam basicamente em torno de alguns produtos de exportação – particularmente

o café – e dos interesses das elites agrárias e governamentais de alguns estados mais desenvolvidos

– notadamente as de São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul.

A partir da mencionada crise bancária, que reforçou ainda mais o predomínio dos bancos

estrangeiros na economia brasileira, o sistema bancário nacional foi sendo reformulado com o

objetivo de fortalecer os bancos nacionais, todos particulares como o Banco da República do Brasil

– este era na época o nome do Banco do Brasil –, o qual, após ter sido socorrido pelo Tesouro

nacional devido à sua quase-falência, foi reorganizado em 1905 sob a atual denominação de Banco

do Brasil.

A grande expansão da agricultura exportadora entre o começo da República e o início da I

Guerra Mundial, bem como a sua coexistência com uma elevada, porém decrescente, importação de

produtos alimentares, foram fortemente determinadas pela preocupação central da política agrícola

de permanente incentivo à expansão da cafeicultura, com o seu maior exemplo cabendo ao

Convênio de Taubaté, em 1906.

Ao longo do processo substitutivo de importações e da crescente internalização e

diversificação da produção agropecuária e agroindustrial nas duas décadas iniciais do século XX,

não houve qualquer utilização de instrumentos específicos da política agrícola para estimular a

produção doméstica, seja a do crédito rural (mesmo a partir de 1905, quando voltou a efetuar

financiamentos diretos à agricultura, o Banco do Brasil dispunha de recursos bastante limitados),

seja a dos preços mínimos ou mesmo o da assistência técnica. Apenas a elevação geral da proteção

tarifária (para fins tributários) chegou a favorecer a partir de 1905 a produção de alimentos nas

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 128

regiões agrícolas de São Paulo e de Minas Gerais, nas áreas liberadas pela crise cafeeira do final do

século XIX, e nas do Rio Grande do Sul.

O fortalecimento do Banco do Brasil prosseguiu com a criação, em 1920, da Carteira de

Redescontos (CARED) – a qual ampliou bastante a participação dos bancos privados nacionais no

total dos empréstimos e dos títulos descontados – com o estabelecimento, em 1921, da Câmara de

Compensação de Cheques, e com a instituição da Caixa de Estabilização, em 1926, a qual foi o

principal instrumento da execução de uma reforma monetária ainda inspirada no padrão-ouro.

Contudo, ao final dos anos vinte o Banco do Brasil ainda não possuía uma rede de agências

distribuídas pelo País como um todo, e não operava de maneira especializada na área de crédito

agropecuário, apenas efetuando alguns empréstimos rurais hipotecários, tendo como principal

objetivo a resolução dos problemas das finanças federais, com o reforço, portanto, de seu papel de

banqueiro do Governo.

Durante o período republicano até 1930, a política econômica do País esteve voltada

essencialmente para a defesa do café. Por causa disso, durante esse período, os créditos bancários

destinados à agricultura atenderam basicamente à lavoura de café e às necessidades do seu comércio

exportador, e nunca ao conjunto do setor agropecuário. Devido a isso, ao longo da década de 1920,

enquanto a agricultura exportadora cafeeira atingia o auge de sua expansão, a agricultura de

mercado interno tinha um desempenho bem mais modesto.

Esse comportamento diferenciado explica-se pela inoperância do Ministério da Agricultura,

pela inexistência e ineficácia das políticas agrícolas federais destinadas ao conjunto da produção

agrícola, e pela total ausência de qualquer crédito agrícola. Além disso, até o final dos anos vinte, as

referidas políticas continuaram sendo formuladas e implementadas basicamente pelos governos

estaduais – não por todos indistintamente, mas, sem dúvida, pelo menos por aqueles que

comandavam as unidades federativas economicamente mais prósperas e/ ou administrativamente

mais articuladas. Tal era o caso principalmente de São Paulo de um lado, e do Rio Grande do Sul do

outro.

Foi o dinamismo da produção agrícola dessas regiões que impulsionou mais fortemente o

processo de crescente internalização e diversificação da produção agrícola, através da substituição

de importações, aumentando o comércio inter-regional de mercadorias e diminuindo o isolamento

econômico das várias regiões do País. Nessa nova situação, podemos distinguir, de um lado, os

Estados exportadores de produtos agrícolas de consumo interno – como o Rio Grande do Sul e

Minas Gerais – e, de outro, os Estados importadores desses mesmos produtos, que incluíam não

apenas os do Norte e do Nordeste, mas também o do Rio de Janeiro e o então Distrito Federal.

Apenas o Estado de São Paulo mantinha-se parcialmente numa categoria à parte, pelo fato de só

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 129

importar açúcar e algodão do Nordeste, além de trigo do exterior, e de ser virtualmente

autosuficiente no que se refere a todos os demais produtos agrícolas de abastecimento interno.

A principal conseqüência da Crise Mundial de 1929 na estrutura econômica do País foi o

definitivo deslocamento do centro dinâmico da economia brasileira das atividades agroexportadoras

(basicamente representadas pelo café) para as atividades voltadas ao mercado interno e

crescentemente urbano-industriais. Por sua vez, a forma como foi enfrentada a Crise de 1929/ 30,

através da crescente intervenção do Estado nas atividades econômicas, constituiu-se no principal

marco econômico da transição do chamado modelo primário-exportador para outro baseado no

processo da industrialização substitutiva de importações.

A crise de 1929/ 30 também acarretou significativas transformações na estrutura produtiva

da agricultura do País. Uma das mais notáveis foi a intensa substituição do café por outros produtos,

tanto por alimentos como por matérias-primas agroindustriais. Esse processo de substituição do café

por outros produtos deu-se mais acentuadamente no Estado de São Paulo, que assim passou também

a aumentar a produção de gêneros alimentícios importados de outros Estados. Esse processo de

diversificação da produção agropecuária nacional provocou a adoção de uma série de medidas

governamentais, que por sua vez, vieram reforçar essa tendência.

Depois de um breve interregno marcado por um maior dinamismo – a gestão de Juarez

Távora, entre 1933 e 1934, em que houve uma reorganização do Ministério da Agricultura, a qual,

no entanto, ficou incompleta devido à escassez de recursos que imperava na época – o referido

ministério voltou à situação anterior, caracterizada por uma atuação bastante limitada em relação ao

desenvolvimento do setor agropecuário. Basta lembrar neste sentido que duas das principais

autarquias vinculadas ao citado setor – o Departamento Nacional do Café e o Instituto do Açúcar e

do Álcool – não tinham qualquer vínculo administrativo com o Ministério da Agricultura, e até os

cotonicultores procuravam outras instâncias governamentais para encaminhar suas reivindicações

ao Governo.

Entre as novas políticas de apoio à produção agropecuária, cumpre mencionar a criação da

Comissão de Financiamento da Produção (CFP), em 1942, com o objetivo de desenvolver a política

de garantia de preços mínimos. No entanto, a CFP não chegou a ter de imediato qualquer impacto

sobre a produção agropecuária, pois foi desativada após a deposição de Vargas, só vindo a ressurgir

em 1951, quando efetivamente se iniciou no País a política de preços mínimos. Por outro lado, entre

1936 e 1945, particularmente durante a II Guerra Mundial, devido às freqüentes crises na

disponibilidade de produtos fortemente dependentes de importações (por exemplo, o trigo e a

farinha de trigo), foram criados vários órgãos governamentais na área do abastecimento alimentar.

No período de 1930 a 1945, uma das principais mudanças da política agrícola foi a sua

passagem do âmbito estadual para o federal. Embora ainda de uma forma muito incipiente, foi nessa

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época que surgiu pela primeira vez no País uma estratégia para o conjunto do setor agrícola, em

contraposição a medidas voltadas exclusivamente para a defesa de certos produtos de exportação.

Isso começou a ocorrer mais nitidamente a partir de 1937, com o Estado Novo, e devido às novas

circunstâncias criadas pela II Guerra Mundial.

Já no primeiro ano do Governo Provisório chefiado por Getúlio Vargas foi reforçado o papel

do Banco do Brasil no sistema monetário-financeiro do País, particularmente com o

restabelecimento de sua Carteira de Redescontos em dezembro de 1930. Posteriormente, com a

posse de Osvaldo Aranha no Ministério da Fazenda, no ano de 1931, que significou um ponto de

inflexão na política econômica, acelerou-se o processo de fortalecimento da presença do banco do

Brasil na economia do País, tanto pela monopolização da compra de letras de importação, como

pela transformação de sua Carteira de Câmbio em órgão exclusivamente governamental, e bem

como pelo poder de descontar ou redescontar os títulos emitidos pelo Conselho Nacional do Café

(CNC) garantidos pelos recursos arrecadados pelo café exportado, medida tomada depois da

decisão de não mais adquirir os estoques de café.

Prosseguindo na política de reforço institucional do Banco do Brasil, em 1932 foi criada a

sua Caixa de Mobilização Bancária (CAMOB), a qual tornou-se a emprestadora de última instância

do sistema financeiro, e ampliou os níveis de redesconto dos títulos destinados ao financiamento da

indústria, da agricultura e da pecuária. Por outro lado, a principal medida governamental relativa à

produção agropecuária foi o chamado “Reajustamento Econômico” (1933 e 1934), que reduziu em

50% as dívidas dos agricultores (basicamente cafeicultores), além de criar a Câmara de

Reajustamento Econômico para a sua execução.

Ao longo do período republicano que vai até 1930, tinham havido várias iniciativas

governamentais relativas ao crédito agrícola e hipotecário, tais como a criação de bancos estaduais e

federais rurais, e a multiplicação das caixas rurais e cooperativas de crédito agrícola. A maioria

dessas medidas, no entanto, ficaram no papel e nunca foram concretizadas. O marco definitivo neste

sentido foi a criação da Carteira de Crédito Agrícola e Industrial do Banco do Brasil, em 1937.

Até o surgimento deste órgão, praticamente só os agricultores com patrimônio tinham acesso

ao crédito rural, já que este era quase exclusivamente hipotecário. Além disso, o financiamento

bancário da agricultura era feito como se tratasse de uma operação comercial qualquer. Além disso,

antes da criação do CREAI nunca houve uma estratégia econômica governamental para a

agricultura como um todo, e muito menos para a agricultura destinada ao mercado interno e

produtora de gêneros alimentícios de consumo generalizado.

Um dos fatores que contribuiu para a criação da CREAI foi a necessidade do Governo

Federal instituir mecanismos para enfrentar as conseqüências da super-produção cafeeira e os

efeitos destrutivos da crise econômica mundial de 1929-1930 sobre a agricultura exportadora. Mas,

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 131

a criação da CREAI também decorreu da preocupação governamental com a recuperação e a

sustentação do crescimento industrial e agrícola em geral que se deu a partir do início dos anos

trinta, o qual decorreu tanto da reestruturação das atividades econômicas internas afetadas pela crise

de 1929, como da adoção de políticas econômicas anti-cíclicas.

Por causa disso, a criação e o funcionamento da CREAI devem ser analisados no contexto

de um projeto mais amplo de modernização econômica, voltado para o apoio estatal à

industrialização e à diversificação da produção agropecuária, sem o abandono da agricultura

exportadora e não colocando em risco a hegemonia da grande propriedade rural (capitalista ou não)

no campo, e dentro de uma visão econômica autarquizante, a qual procurava internalizar ao máximo

as atividades econômicas consideradas estratégicas.

Por sua vez, a preocupação de dotar a CREAI de fontes próprias de recursos para assegurar

internamente as condições financeiras para os seus empréstimos estava relacionada à estrutura dos

depósitos do Banco do Brasil, a qual, no período 1933/ 38, caracterizava-se por um amplo

predomínio dos depósitos à vista, o que impossibilitava a existência de uma política de crédito

agropecuário. Desse modo, a estrutura do passivo do Banco do Brasil contribuía fortemente no

sentido da CREAI de contar com fontes próprias de recursos, consubstanciadas através da emissão

de bônus, os quais deveriam ser adquiridos obrigatoriamente pelo Instituto Nacional de Previdência

e pelas Caixas e Institutos de Aposentadorias e Pensões numa proporção de seus depósitos ou

fundos.

Tendo cumprido essas condições, a CREAI, além de ter sido a primeira experiência de

crédito rural público especializado para o conjunto do setor agropecuário, pode ser considerada

também a primeira agência de política agrícola voltada para o conjunto da agricultura. Ela pode ser

vista igualmente como um instrumento de acomodação à estrutura de poder dos setores ligados à

chamada “reação oligárquica”.

Nunca é demais lembrar a este propósito a participação vitoriosa na Revolução de 1930 de

dissidências oligárquicas regionais vinculadas a estruturas produtivas voltadas ao mercado interno,

e à própria cafeicultura. Tratava-se de interesses de peso na coalizão de forças políticas do pacto de

poder no pós-30. Isto serve para explicar em parte a destinação dos recursos creditícios da CREAI,

que sempre teve um claro predomínio de produtos e atividades como o café, o algodão, a cana-de-

açúcar, o arroz irrigado e a pecuária bovina.

Apesar disto, a CREAI teve uma natureza bastante diversa da de outros órgãos públicos

federais do setor agrícola, os quais possuíam forte poder político e institucional, e eram estruturados

em torno de alguns produtos agrícolas considerados estratégicos, particularmente mas não apenas

no setor agroexportador. Este era o caso do Departamento Nacional do Café (DNC), do Instituto do

Açúcar e Álcool (IAA), do Instituto do Cacau na Bahia, do Instituto Nacional do Mate, do Instituto

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Nacional do Pinho, do Instituto Paulista do Café e do Instituto Rio-Grandense do Arroz (IRGA),

entre outros.

A viabilidade do funcionamento da CREAI foi garantida pela aprovação de uma extensão

legislação entre 1937 e 1942, a qual praticamente lhe deu o monopólio do crédito rural no País. Já

em 1939 foi feita a primeira reforma do regulamento da CREAI, mediante a qual os seus objetivos

foram aumentados e reduzidos os juros de seus financiamentos de 9% a. a. para 7% a. a.

Em 1942, no contexto das medidas econômicas tomadas pelo Governo para enfrentar a

situação criada pela II Guerra Mundial, foram reformulados os estatutos do Banco do Brasil. A

partir dessa reformulação, ele passou a contar com cinco carteiras: (1) a Carteira de Câmbio; (2) a

Carteira de Crédito Geral (CREGE); (3) a Carteira de Exportação e Importação (CEXIM), (4) a

Carteira de Crédito Agrícola e Industrial (CREAI), e (5) a Carteira de Redesconto (CARED). Além

disso, em 1994 foram ampliadas as funções da caixa de Mobilidade Bancária.

Nesse mesmo contexto foi feita a segunda reforma do Regulamento da CREAI em 1942.

Essa reforma alongou os prazos dos empréstimos, elevou o limite dos empréstimos, elevou o limite

dos empréstimos em relação às garantias, aumentou as possibilidades de financiamento para

máquinas agrícolas, aumentou os prazos dos financiamentos à pecuária, e iniciou os empréstimos

para o melhoramento das unidades produtivas. Por outro lado e numa outra direção, no início de

1945 foi criada a Superintendência da Moeda e do Crédito (SUMOC), com o objetivo de

regulamentar e controlar o mercado financeiro e preparar a criação de um futuro banco central, o

qual deveria absorver uma série de funções do Banco do Brasil. Ao final do Estado Novo, as

discussões no âmbito da CREAI refletiam uma diversidade de interesses econômicos setoriais entre

vários ramos produtivos que disputavam os financiamentos públicos. Além disso, havia um forte

conflito no interior do Banco do Brasil entre duas visões sobre a sua natureza: uma, que privilegiava

a atuação do Banco a partir do crédito especializado às atividades produtivas nos moldes do

concedido pela CREAI, e outra, que enfatizava a maior importância do crédito comercial, nos

moldes dos antigos bancos de descontos e depósitos, que efetuavam empréstimos a curto prazo e a

juros altos, e que constituíam organizações bancárias dissociadas das atividades produtivas. Outra

fonte de conflitos referia-se à diversidade de interesses econômicos regionais a nível da produção

agropecuária. Como exemplo, o privilegiamento da pecuária do Triângulo Mineiro não era bem

visto em outras regiões do País.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 133

2. FASES E CARACTERÍSTICAS DA ATUAÇÃO DA CARTEIRA DE CRÉDITO

AGRÍCOLA E INDUSTRIAL (CREAI), DO BANCO DO BRASIL (BB)

Analisando a evolução do valor dos empréstimos concedidos pela CREAI, entre 1938 e

1965, e levando em conta as transformações introduzidas nos seus regulamentos, nas estratégias

governamentais de desenvolvimento econômico e nas políticas agrícolas e de desenvolvimento

agropecuário, pode-se distinguir quatro fases em sua atuação: de 1938 a 1945, 1946 a 1960 (com os

subperíodos 1946/1947 e 1947-1950), 1951 a 1960 e 1961 a 1965.

2.1 O Início do Funcionamento da CREAI (1938-1945)

A primeira fase de existência da CREAI foi marcada pelo início de seu efetivo

funcionamento. Já nessa fase, o seu primeiro regulamento, aprovado em 2 de outubro de 1937, teve

duas significativas alterações, em 1939 e 1942.

Ao final de 1938, com pouco mais de dez meses de funcionamento, o número dos

empréstimos realizados pela CREAI alcançava 1.050, num valor total de 98.316 contos de réis.

Nada menos que 1.021 dessas operações foram rurais (97,2% do total), no valor de 80.424 contos

(81,8% do total), e apenas 29 industriais (2,8% do total), no valor de 17.892 contos (18,2% do

total). Naquele mesmo ano, os produtos de maior participação no valor total dos empréstimos rurais

foram: o café, com 39%; a cana-de-açúcar, com 31%; o algodão, com 9%; o arroz, com 8%; a

fruticultura, com 5%; e produtos diversos, com 8%. Relativamente às várias regiões do País1, esses

mesmos empréstimos tiveram a seguinte distribuição: Norte/ Nordeste com 39%; Centro com 54%

e Sul com 7%. A evolução por produtos até 1945 é apresentada a seguir na Tabela 1.

Por meio dela, verifica-se que a participação dos principais produtos agrícolas financiados

pela CREAI – algodão, café e cana-de-açúcar – no total de seus créditos foi aumentando ao longo

dessa fase, passando de 44,3% para 54,9%. Acrescentando-se a eles a pecuária, os totais aumentam

ainda mais – de 74,1% para 94,8%.

Na verdade, nessa primeira fase, a política de financiamento da CREAI direcionou-se com

maior vigor para apenas dois segmentos – o algodão e a pecuária. A participação conjunta de ambos

no total aumentou de 38,2% para 82,9%. Conseqüentemente, houve uma diminuição no

financiamento destinado aos produtos alimentares de mercado interno. O total destes produtos sem

a pecuária - batata, feijão, frutas, mandioca, milho, tomate, cana-de-açúcar, arroz e trigo – diminuiu

de 24,4% para apenas 6,7%. Por outro lado, cabe destacar também a forte redução do apoio da

1 A região Norte/ Nordeste, denominada Norte no Relatório do Banco, abrangia os Estados de Pernambuco, Rio Grande do Norte, Sergipe, Alagoas, Ceará, Pará e Paraíba; a região Centro compreendia o Distrito Federal e os Estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo; e a região Sul era composta dos Estados do Paraná, Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Cf. Relatório do Banco do Brasil de 1938, Rio de Janeiro, 1939, p. 37.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 134

CREAI ao café, o qual diminuiu de 15,7% para 5,9%, o mesmo ocorrendo com a cana-de-açúcar,

que teve uma diminuição de 11,1% para 2,8% –, e com o arroz, cuja diminuição foi de 9,1% para

3,2%.

TABELA 1 CREAI: Distribuição dos Créditos Concedidos por Produtos e Ramos, 1938/41 – 1945 (%)

Anos Produtos e Ramos 1938/41 1942 1943 1944 1945

Média 1938/41-

1945 Algodão 8,4 24,2 21,7 18,8 43,0 17,7 Arroz 9,1 6,3 8,1 6,2 3,2 7,5 Café 15,7 12,4 11,1 5,5 5,9 12,2 Cana-de-açúcar 11,1 5,4 7,1 6,5 2,8 8,3 Subtotal Algodão + Arroz + Café + Cana-de-açúcar

44,3 48,3 48,0 37,0 54,9 45,7

Batata (0,06) (0,03) (0,03) (0,06) 0,1 (0,06) Feijão (0,01) (0,007) (0,01) (0,01) (0,02) (0,01) Frutas 0,3 (0,07) (0,01) (0,008) 0,1 0,2 Mandioca 1,4 0,3 0,4 0,1 (0,08) 0,8 Milho 1,4 (0,0001) 0,2 0,2 0,4 0,8 Tomate 1,0 0,3 0,3 0,1 (0,004) 0,6 Cacau 0,3 0,5 3,3 0,2 0,1 0,7 Trigo (0,07) (0,03) (0,004) (0,0006) (0,0002) (0,04) Outros Produtos Agrícolas Financiados* 1,1 0,9 0,7 0,7 0,6 0,9

Babaçu (0,01) (0,07) 0,3 0,2 0,3 0,1 Cera de Carnaúba (0,08) 0,3 0,2 (0,07) (0,04) 0,1 Outros produtos da Indústria Vegetal** (0,02) 0,4 0,1 (0,006) (0,01) (0,07)

Adubo (0,06) - - (0,003) - (0,008) Máquinas Agrícolas - (0,02) (0,06) (0,04) 0,3 (0,05) Melhoramentos Agrícolas – Irrigação de Culturas de Arroz

- - - - (0,001) (0,0001)

Pecuária 29,8 37,8 32,4 57,1 39,9 35,8 Agropecuária 0,6 0,6 0,4 0,2 0,2 0,5 Agrícolas 48,8 51,4 53,7 38,6 57,0 49,5 Rurais 79,2 89,8 86,5 95,9 97,1 85,8 Industriais 20,8 10,2 13,5 4,1 2,9 14,2 Total em Mil Cr$ Correntes 1.767.494 1.443.427 1.746.874 3.452.576 5.253.592

Fonte: Relatório do Banco do Brasil de 1946, Rio de Janeiro, 1947, p. 77

* Acácia negra, agave, alfafa, alho, amendoim, aveia, carvão vegetal, cebola, cevada, chá, coco, erva-mate, erva-doce, ervilha, fumo, gergelim, guaxima, juta, lenha, linhaça, linho, lúpulo, mamona, menta, rami, repolho, sericultura, trigo, uva e outros produtos. Em 1938, a participação se refere a “Produtos Diversos”. ** Borracha, castanha, madeiras, oiticica, piaçava e tungue.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 135

Segundo o Relatório do Banco do Brasil de 1938,

“A nova modalidade de crédito, como era de prever-se, encontrou as naturais dificuldades de compreensão, adaptação e interpretação de textos legais e regulamentares, além das materiais, de organização dos serviços. Eis porque só tardiamente, quando já decorrera o período de entre-safra propriamente dito de diferentes produtos, ficou a Carteira convenientemente aparelhada para exercer suas atividades. Nessa ocasião, porém, muitos produtores, principalmente cafeicultores, já haviam empenhado suas colheitas em garantia de recursos obtidos em outras fontes. Em conseqüência, e também porque vários empréstimos solicitados não puderam ser concedidos, por não terem renunciado os credores hipotecários dos proponentes, em favor do Banco, ao seu direito de prelação – o obstáculo somente removido com o decreto-lei número 1.003, de 29/12/1938 – a assistência a alguns ramos da agricultura se deteve aquém do quantum normalmente atingível”2.

Logo no início do funcionamento da Carteira, houve a regulamentação das condições de

financiamento de algumas culturas consideradas prioritárias para a economia nacional, tanto nas

suas fases de cultura e colheita como nas de beneficiamento e escoamento. Estes produtos eram o

café, a cana-de-açúcar (açúcar de usina, de engenho e derivados), o algodão, o arroz, a fruticultura,

o feijão e o milho. E, conforme as semelhanças nos processos produtivos, também foram aplicados

alguns daqueles critérios de financiamento para o trigo, batata, tomate, mamona, entre outros, e isto

significou que, na prática, também esses produtos ficaram regulamentados. E, relativamente à

pecuária, foram ainda estabelecidas algumas condições para a concessão dos financiamentos para o

custeio da criação e a aquisição de reprodutores destinados à melhora do rebanho, bem como à

engorda e aos trabalhos rurais.

Ainda segundo o Relatório do Banco do Brasil de 1938,

“Além de prescrições ajustadas às peculiaridades de cada produto, determinou-se a orientação a seguir nas avaliações, afim de que os financiamentos, nelas baseados, correspondessem às justas necessidades, admitindo-se, como princípios gerais, a utilização dos adeantamentos contratados conforme a oportunidade de sua aplicação – sistema tão conveniente ao produtor como à produção – e a liquidação, mediante remissão, em base razoável, do produto apenhado na medida de sua colocação nos mercados, regime que, não só, facilita e suaviza o pagamento, mas também, proporciona disponibilidades ao financiamento”3.

A operação de compra e retenção dos estoques de café pelo Governo, a qual foi dinamizada

sobretudo depois da criação da CREAI, pode ser considerada um dos principais fatores explicativos

da definitiva perda de importância dos comissários, tanto no financiamento da produção cafeeira,

como na sua comercialização, armazenamento e transporte até os centros exportadores. Num

sentido mais geral, a criação da CREAI significou a perda de importância do capital comercial-

beneficiador da produção agrícola numa série de regiões do País, particularmente nas mais

desenvolvidas economicamente. Foi por causa disso que, durante o Estado Novo, o grande

comércio – representado, por exemplo, pela Associação Comercial e pelo Centro do Café do Rio de

2 Idem, p. 32/33. 3 Idem, p.34.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 136

Janeiro – sempre se opôs ao intervencionismo estatal na produção e comercialização do café,

defendendo o restabelecimento do livre jogo das forças do mercado como forma de enfrentar e

solucionar a crise cafeeira.

Naquele primeiro ano, os financiamentos industriais foram destinados à aquisição de

matérias-primas, ao aperfeiçoamento da aparelhagem e a obras de irrigação em estabelecimentos

agroindustriais, destacando-se os empréstimos às usinas açucareiras do Nordeste4. Cabe ressaltar

que até 31 de dezembro de 1942, de um total de mais de cento e quatro tipos de indústrias

financiadas pela Carteira, a maioria esmagadora era integrante do segmento do segmento

agroindustrial5.

Até o final do ano de 1938, além daqueles 1.050 empréstimos realizados, foram rejeitadas

841 propostas, num total de 162.265 contos. Esse elevado número de rejeições foi devido às

exigências regulamentares, e ao elevado número de solicitações.

“(...) resultado natural da atração exercida pela instituição de nova de crédito – feitas com inteiro desconhecimento dos seus objetivos e disposições regulamentares, ou visando expansões, que não podiam fazer jus ao auxílio de crédito instituído para determinados fins, reconhecidamente produtivos, e proporcionado racionalmente – com base em garantia especial, mas sempre em função da capacidade de produção – a fim de evitar o congelamento das operações, que provocaria, com a desmoralização do novo organismo, mais um insucesso do crédito agrícola”6.

O primeiro diretor da CREAI foi Antonio Luiz de Mello, que permaneceu no cargo de 1938

a 1944. Boa parte de sua vida profissional, quase toda desenvolvida no Banco do Brasil, estivera

ligada ao café, a partir de sua passagem por agências do Banco situadas em importantes regiões

cafeeiras do País. Depois de trabalhar em Ribeirão Preto, Franca e Jaú no Estado de São Paulo, e

em Três Corações e Barbacena, no Estado de Minas Gerais, presidiu o Departamento Nacional do

Café nos de 1935 e 1936. No Banco do Brasil, depois de dirigir a CREAI, foi diretor da Carteira de

Redescontos e, em 1946 chegou a ocupar interinamente a sua presidência, após a deposição de

Getúlio Vargas e a derrubada do Estado Novo em outubro daquele ano7.

4 O financiamento à indústria deixou de atingir maior expressão devido à pouca “(...) tradição efetiva da cousa apenhada, essencial no penhor mercantil”, tornando irrealizáveis muitas operações cuja garantia deveria ser de máquinas, levando o Governo a remover este obstáculo através de legislação especial. Cf. Relatório do Banco do Brasil de 1938, p. 34/35. 5 Essas industrias, em ordem alfabética, era, as seguintes: álcool e aguardente; amido; artefatos de borracha; artefatos de lã; artigos para montaria; banha; barris; bebidas; beneficiamento de algodão, de arroz, de borracha e de café; caixas para laranjas; carvão vegetal; celulose; cervejaria; charqueadas; charutos; chocolate e caramelos; cigarros; coco nucífera; cordoaria; curtumes; doces; farinha de mandioca, de milho e diversas; fiação de algodão e de seda; frigoríficos; fubá; irrigação; laticínios; leite de coco; massas alimentícias; material agrário; óleo de algodão, de babaçu, de laranja, de oiticica e de vegetais diversos; produtos bovinos; raspa de mandioca; refinaria de açúcar; sabão; serrarias; tanino; tecelagem de algodão, de lã, e de seda; tigelinhas para colheita de látex; torrefação de café e vinicultura. Cf. Relatório do Banco do Brasil de 1942, Rio de Janeiro, 1943, p. 77/9. 6 Cf. Relatório do Banco do Brasil de 1938, p. 35. 7 Antonio Luiz de Souza Mello, nascido em 1890, ingressou no Banco do Brasil por concurso em 1916, tendo sido sucessivamente contador, sub-gerente, gerente e inspetor. C. informações levantadas nos arquivos históricos sediados no Centro Cultural do banco do Brasil, Rio de Janeiro. Sua passagem pelo DNC é registrada por Israel e Alzira Alves de

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 137

A reforma do Regulamento da CREAI, já em 1939, revela uma constante ampliação dos

seus objetivos, abrangendo um número cada vez maior de modalidades de financiamento. Essas

alterações foram aprovadas pelo Ministro da Fazenda em 24 de abril de 1939 e publicadas dois dias

depois no Diário Oficial. As mais importantes foram:

1) A abertura de linha de empréstimos para a aquisição de imóveis, ou instalação inicial de

aparelhagem industrial em caráter excepcional, quando a indústria interessar diretamente à defesa

nacional, com a aprovação do projeto pelo Estado Maior do Exército ou da Armada e pelo

Presidente da República8;

2) O estabelecimento de linhas de financiamento para o custeio da criação de gado;

3) O aumento do limite máximo dos empréstimos agrícolas e pecuários para até um terço

da estimativa da safra ou do rendimento da criação, e dos empréstimos industriais para até 40% do

valor das reformas, aperfeiçoamentos e aquisições; e

4) A ampliação dos prazos de pagamento dos empréstimos de um para dois anos casos de

aquisição de gado destinado à criação e à melhora de rebanho, bem como nos da aquisição de

animais de serviço para os trabalhos rurais.

Este último item reflete a importância que ainda tinham os animais de serviço, e, portanto, o

baixo grau de mecanização ou tratorização ou das atividades agropecuárias do País naquela época.

Entre 1920 e 1940, enquanto o número de arados de aiveca (utilizados principalmente na tração

animal) aumento de 141.196 para 408.101 unidades (multiplicando-se por 2,89), o de tratores teve

um ritmo de crescimento bastante inferior, crescendo de 1.706 para 3.380 unidades (multiplicando-

se por 1,98)9.

Um estudo da época, ao analisar o baixo grau de mecanização agrícola do País apontava

para o predomínio dos velhos processos produtivos manuais, exceto em alguns casos isolados da

produção de café, da cana-de-açúcar e do algodão cultivado em São Paulo10 e registrava duas

iniciativas do Ministério da Agricultura para modificar essa situação: a primeira da Gestão de

Odilon Braga e a segunda na de Fernando Costa: (a) um curso para aradores e tratoristas, realizado

em Santa Cruz, no antigo Distrito Federal, e que deixou de se estender a outras regiões do País

Abreu (Coords.), Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro, 1930-1983, (forense Universitária, FINEP, Rio de Janeiro, 1984), vol. III, p. 2179. 8 Neste sentido, cabe destacar a instalação de uma grande usina de alumínio, em Ouro Preto, e a abertura, em fevereiro de 1941, de um crédito de 60 mil contos para a compra e a instalação da aparelhagem destinada à produção de celulose em grande escala, no Estado do Paraná. Cf. Relatório do Banco do Brasil de 1941, Rio de Janeiro, 1942, p. 67. 9 Cf. IBGE, Estatísticas Históricas do Brasil, Séries Estatísticas Retrospectivas, vol. 3, Séries Econômicas, Demográficas e Sociais 1550 a 1985, Rio de Janeiro, 1987, p. 282. 10 A essas culturas, eu acrescentaria as lavouras de arroz irrigado e de trigo do Rio Grande do Sul.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 138

devido à escassez de recursos, e (b) um concurso oficial entre os fabricantes de aparelhos e

máquinas agrícolas, para a determinação dos produtos mais adequados às condições nacionais11.

Durante a gestão de Souza Mello também houve o fortalecimento dos cooperativas

agrícolas, com as cédulas rurais passando a ser recebidas em penhor mercantil. Este fato foi

registrado da seguinte forma pelo Relatório de 1939:

“As organizações cooperativas – que o Governo vem incentivando como meio de racionalizar as atividades do pequeno produtor – foram prestigiadas e também orientadas sobre como deveriam exercer sua atuação para ajustá-la às normas de operar da Carteira”12.

Pelo Decreto-lei número 2.611, de 20 de setembro de 1940, a Carteira passou a ter novas

fontes de recursos e os juros dos novos financiamentos rurais limitados em 7% a. a. (os

financiamentos anteriormente concedidos também tiveram os juros reduzidos de 9 para 7% a. a.), e

pelo Decreto número 2.612, do mesmo ano, foram disciplinadas as custas dos contratos de

financiamento, com a isenção de selos nas operações com terceiros que envolvessem instrumentos

de depósitos de depósitos relacionados aos produtos gravados de penhor rural13.

Por outro lado, relativamente ao arroz, cabe destacar o seguinte: (1) devido às chuvas

torrenciais e enchentes no Rio Grande do Sul, que acarretaram a perda da maior parte da colheita de

arroz, foi expedido o Decreto-lei número 3.379, de primeiro de julho de 1941, que regulou o

financiamento das safras de 1941/42 e de 1943/44, e possibilitou a liquidação parcelada das dívidas

da safra frustrada de 1940/41, efetuada de acordo com o Decreto número 98, de 21 de julho de

1941, mediante o recolhimento de uma taxa por saco de arroz produzido nas lavouras dos

devedores; (2) um empréstimo de 30 milhões de cruzeiros para o Instituto Rio Grandense do Arroz

(IRGA), em 1942, para o financiamento da compra do arroz em casca; e (3) a organização pelo

IRGA e pela CREAI de “colônias”, agrupando diversos rizicultores que ficaram em situação muito

precária devido às cheias, sob uma forma semi-cooperativista14.

Cabe salientar ainda a preocupação da Carteira com o aperfeiçoamento da técnica do crédito

agrícola. Segundo o Relatório do Banco do Brasil de 1941,

“A observação do curso dos financiamentos, para custeio de entre-safras, aconselhou subordinar a utilização dos créditos a regime de retiradas mensais, correspondentes aos impostos, salários e despesas com os serviços efetivamente executados, bem como disciplinar o exercício da

11 “Mechanização da Agricultura”. O Observador Econômico e Financeiro, XXV, p. 67-71. 12 Cf. Relatório do Banco do Brasil de 1938, Rio de Janeiro, 1939, p. 35. Havia uma diretriz governamental de apoiar os pequenos produtores agrícolas através de suas cooperativas, que estava inscrita tanto na Lei número 454, de 9/7/1937, como no Regulamento da Carteira, havendo para a consecução deste objetivo uma colaboração permanente entre o Serviço de Economia Rural do Ministério da Agricultura e a Carteira. Ainda com relação às cooperativas, dizia o Relatório de 1940: “A muitas delas, também, têm sido facultados recursos para a compra e instalação de aparelhagem destinada ao beneficiamento da produção dos associados, o que permite eliminar os intermediários, e vem concorrendo para convencer os produtores das reais vantagens do cooperativismo”. Cf. Relatório do Banco do Brasil de 1940, Rio de Janeiro, 1941, p. 68. 13 Cf. Relatório do Banco do Brasil de 1941, Rio de Janeiro, 1942, p. 54/5; Idem, 1942, p. 67/8; e Idem, 1943, p. 45. 14 Cf. Relatório do Banco do Brasil de 1941, Rio de Janeiro, 1942, p.56; Idem, 1942, p. 71/72; Idem, 1943, p. 48; e Idem, 1944, p. 44.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 139

fiscalização. Tal medida veio permitir eficiente controle da aplicação dos adiantamentos e acompanhar a evolução dos trabalhos financiados. Verificou-se, em conseqüência, maior aperfeiçoamento da técnica do crédito agrícola (...)”15.

Numa conferência proferida em 1942, Souza Mello referiu-se ao novo regulamento da

CREAI, enfatizando as seguintes alterações relacionadas ao crédito agrícola:

(1) a adoção de prazos maiores para os empréstimos, com a elevação do seu limite até o

máximo de 60% do valor das garantias oferecidas;

(2) a ampliação para dois anos dos prazos de custeio de entre-safra dos empréstimos

concedidos sob a garantia de penhor agrícola, que passaram a considerar o ciclo completo

de produção e um maior número de produtos – esse aumento do prazo de reembolso

possibilitou a incorporação ao sistema creditício de importantes culturas cuja formação e

maturação levam mais de um ano, como é o caso da cana-de-açúcar;

(3) a ampliação do prazo de financiamento para a aquisição de máquinas agrícolas e de

animais de serviço destinados aos trabalhos rurais;

(4) o aumento do prazo de financiamento destinado à compra de reprodutores de gado

destinados à criação e melhora de rebanho (para três anos, podendo ser prorrogado em

determinados casos) com efeitos positivos sobre a pecuária bovina, eqüina, asinina, ovina,

caprina e suína, bem como no desenvolvimento dos ramos industriais de laticínios e de

carnes; e

(5) a disponibilidade de recursos para financiar melhoramentos nas condições das explorações

agrícolas e pecuárias, para a concessão de empréstimos aos produtores rurais,

individualmente ou em cooperativas e interessados na industrialização de produtos

agrícolas ou pecuários, no limite máximo de 60% do valor das garantias oferecidas16.

A reforma de 1942 do Regulamento da Carteira também deve ser vinculada às medidas

econômicas e outras iniciativas do Governo adotadas em função da entrada do País na II Guerra

Mundial, com destaque para: (a) a criação da nova unidade monetária, o “cruzeiro”; (b) o

lançamento de “Obrigações de Guerra”, no valor de três bilhões de cruzeiros; (c) a emissão de

“Letras do Tesouro”, até o limite de um bilhão de cruzeiros; (d) a partir de abril daquele ano, as

restrições ao consumo de gasolina e óleo mineral; (e) o racionamento e o tabelamento de

determinados produtos básicos de subsistência; (f) a intensificação da produção alcooleira. Através

da revogação de antigas restrições à expansão da produção canavieira, e o controle quase total do

15 Cf. Relatório do Banco do Brasil de 1941, Rio de Janeiro, 1942, p. 51/52. 16 Cf. MELLO, A. L. de S., Conferência Pronunciada na Associação Comercial de Minas, Belo Horizonte, 17 de outubro de 1942. Fonte: Arquivo do Banco do Brasil, Centro Cultural do Banco do Brasil, trabalho impresso no Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 1942.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 140

Governo sobre o carvão – tinha a garantia de preferência de 75% de sua produção; (g) o Decreto-lei

número 4.792, de 5 de outubro de 1942, pelo qual as reservas metálicas passaram, também, a

constituir lastro de garantia da circulação monetária; e (h) os acordos celebrados em Washington,

que garantiram a venda de produtos, particularmente agrícolas, de grande significado para a balança

comercial, como o café, o cacau, os óleos e as fibras, entre outros, e forneceram recursos para o

financiamento da produção de borracha no País (no montante de cinco milhões de dólares, pela

Rubber Reserve Company)17.

O Relatório do Banco de 1942, ao comentar os efeitos negativos da Guerra sobre as

exportações de cacau, sem desconsiderar a melhora nos negócios cacaueiros que houvera com o

acordo de compra realizado pelos Estados Unidos (da ordem de um milhão e trezentos mil sacas),

enfatizava a importância da concessão de créditos para a instalação de novas fábricas processadoras

de cacau (basicamente preparadoras da massa do cacau e extratoras da manteiga das amêndoas) e/

ou a ampliação e aperfeiçoamento das existentes. Além disso, preconizava as seguintes medidas: (1)

o financiamento dos investimentos aos cacauicultores e às cooperativas de produção, com o

objetivo de melhorar as condições de rendimento das explorações agrícolas (construção de estufas e

depósitos nas fazendas); e (2) adiantamento ao Instituto do Cacau e a cooperativas, no tocante aos

contratos de empréstimos para custeio. Neste mesmo sentido, foi também significativo o Decreto-lei

número 5.513, de 24 de maio de 1943, determinando que o Estado da Bahia contratasse com a

Carteira, através do Instituto do Cacau, operações de crédito até o máximo de 50 milhões de

cruzeiros, para melhorar as condições de comercialização do cacau (através de ações relacionadas a

armazéns, fábricas e aparelhamentos em geral), e para o financiamento da manteiga e da torta de

cacau, mediante o adiantamento aos produtores sobre o cacau que vendessem ou entregasse ao

Instituto18. Em função disto, no ano de 1943, os créditos da CREAI para o cacau atingiram a sua

maior participação em todo o período estudado, chegando a 3,3% do total.

Com relação à borracha, cabe destacar a criação pelo Governo Federal, através do Decreto-

lei número 4.451, de 9 de julho de 1942, do Banco de Crédito da Borracha, o qual no início

funcionava através da Carteira, que destinava financiamentos a produtores e outras pessoas e firmas

interessadas na produção de borracha na Amazônia. Posteriormente, o referido Banco concordou

que a Carteira financiasse a produção de borracha em outras regiões do País, com a garantia ou por

conta da Rubber Reserve Company19. É provável que a elevada participação do segmento “Outros

Produtos da Indústria Vegetal” no total da CREAI comparativamente a todo o período – 0,4% e

0,1% em 1942 e 1943 respectivamente – esteja associada à mencionada preocupação 17 Cf. Relatório do Banco do Brasil de 1942, Rio de Janeiro, 1943, p. 15-31. 18 Cf. Relatório do Banco do Brasil de 1942, Rio de Janeiro, 1943, p. 72/3; e Idem, p. 48/49. 19 Cf. Relatório do Banco do Brasil de 1942, Rio de Janeiro, 1943, p. 73/4. Com relação às origens do referido banco, veja-se o trabalho de N. P. Alves Pinto, Política da Borracha no Brasil – A Falência da Borracha Vegetal, Editora Hucitec, São Paulo, 1982.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 141

governamental, durante os anos iniciais da Segunda Guerra Mundial, com a reativação da economia

da borracha na Amazônia.

Ainda nessa mesma direção, os relatórios do Banco também comentavam as dificuldades

enfrentadas pela produção de laranja, ocasionadas pela Guerra, com a perda dos mercados europeus

e o agravamento das dificuldades de transporte para os mercados do Uruguai e da Argentina. E

ainda mencionava a piora dos transportes rurais pela falta de combustível, as dificuldades de

distribuição do produto nos principais centros de consumo do País, como fatores explicativos

adicionais para a queda de seus preços. Acrescentavam que, embora a instalação de indústrias

processadoras e compradoras de laranja tivesse melhorado as condições dos produtores, a questão

fundamental residia na remoção das barreiras à ampliação das vendas para o exterior. A persistência

da crise da citricultura levou o Governo a criar, pelo Decreto-lei número 5.032, de 4 de dezembro

de 1942, posteriormente refundido no de número 5.532, de 28 de maio de 1943, a Comissão

Executiva das Frutas, para a qual foi ajustado um empréstimo de 50 milhões de cruzeiros com a

Carteira, destinado a financiar ações para a defesa e a organização racional de frutas cítricas20.

Sobre este aspecto, cabe destacar, no entanto, que a CREAI não foicapaz de reverter a crise

pela qual passava a produção citrícola, expressa na forte queda de sua participação no total do valor

da produção agropecuária, que diminui de 4,2% para 1,9% entre 1930-1937 e 1938-1945. Com

efeito, entre 1938/ 41 e 1945, a participação dos créditos da CREAI para frutas, dentre as quais as

mais importantes eram laranja e banana, caíram de 0,3% no quadriênio inicial, para 0,1% em 1945,

atingindo os reduzidíssimos níveis de 0,007% em 1942, 0,01% em 1943, e 0,008% em 1944.

Por sua vez, a queda dos preços do algodão a partir da safra 1940/ 41 também ensejou uma

intervenção da CREAI, conforme análise de periódico especializado e de vários relatórios do

Banco21. O apoio da CREAI ao algodão foi de tal ordem que ele se tornou o principal produto

financiado nesta fase inicial, tendo atingido em 1945 a participação máxima anual do conjunto dos

produtos agrícolas em todo o período estudado, de 43%.

É importante destacar que, nessa ampliação do âmbito de atuação da CREAI, as hipotecas

passaram a acrescentar uma garantia especial às operações de financiamento destinadas ao

melhoramento das condições de exploração econômica das unidades produtivas agrícolas e

20 Cf. Relatório do Banco do Brasil de 1942, Rio de Janeiro, 1943, p. 75/6; e Idem, 1943, p. 49/50. 21 Procurando enfrentar as baixas cotações atingidas pelo algodão, “(...) em princípios de 1944, dirigia-se a União dos Lavradores de Algodão ao Governo Federal, fazendo sentir a necessidade imperiosa de se dar ao produto amparo financeiro mais eficiente. E, como nos anos anteriores, somente o financiamento do produto através do Banco do Brasil, seria capaz de assegurar-lhe cotações acima das que os especuladores desejassem. Proporcionando-se ao lavrador recursos para solver seus compromissos assumidos para produzir o algodão, permite-se-lhe, por outro lado, aguardar melhores dias, para dispor da sua mercadoria. Dos próprios entendimentos anteriormente havidos com os responsáveis pela nossa política algodoeira, surgiu o financiamento como único elemento capaz de impedir que os manipuladores da baixa atirassem o produto a um nível de preços incompatíveis até mesmo com o interesse nacional”. Cf. GUIMARÃES, A. Prado, “O Financiamento do Algodão”, O Observador Econômico e Financeiro, CXXIV, 1946. Veja-se ainda a respeito os relatórios do Banco do Brasil de 1941, p. 55/6; de 1942, p. 68/71; de 1943, p. 46/7; e de 1944, p. 43/4.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 142

pecuárias. E, finalmente, outro dado que demonstra o aumento do grau de abrangência e de

diversificação das atividades da CREAI refere-se à ampliação de sua estrutura administrativa.

Enquanto o Regulamento de 1939 havia criado apenas mais uma gerência, o de 1942 acrescentou

mais três subgerências ao organograma da CREAI. Um documento interno posterior da Carteira

sintetiza muito bem as mudanças que acabam de ser descritas:

“O primeiro Regulamento da Carteira de Crédito Agrícola e Industrial entrou em vigor a 27 de novembro de 1937, data de sua publicação no Diário Oficial. Em abril de 1939 teve lugar sua primeira reforma, objetivando principalmente: a) fixar o limite máximo dos empréstimos em 1/3 da estimativa da safra ou do rendimento da criação, para os agrícolas e pecuários, e em 40% do valor das reformas, aperfeiçoamentos ou aquisições, para os industriais; b) possibilitar o financiamento da instalação inicial de indústrias, quando indispensável à defesa nacional se autorizada pelo Presidente da República; c) e instituir os empréstimos em letras hipotecárias. Em maio de 1942 fez-se a segunda reforma e, além de outras melhoras (ampliação de prazos, etc.), elevou-se o limite máximo dos empréstimos em geral a 60% do valor das garantias – segundo Relatório do Banco do Brasil”22.

No período de 1938 a 1945 foi notável a crescente participação dos recursos da CREAI no

total dos financiamentos concedidos às atividades econômicas pelo Banco do Brasil – aumentou de

5,1% em 1938, para 16,1% em 1939; para 25,7% em 1940; para 34,4% em 1941; para 46,0% em

1942; para 51,0% em 1943; para 57,1% em 1944 e para 62,2% em 1945. desse modo, em apenas

sete anos, a importância relativa da CREAI no Banco aumentou mais de doze vezes. Por sua vez, a

participação dos setores agrícola e industrial no total dos empréstimos concedidos pelo Banco do

Brasil às atividades produtivas, nesse mesmo período, cresceu de 38,2% para 74,2%23. Devido a

isso, entre 1938 e 1945, o ritmo de crescimento dos empréstimos destinados às atividades

econômicas foi bastante superior aos dos direcionados ao Tesouro Nacional, às Outras Entidades

Públicas e aos Bancos – os seus índices (1939 = 100) cresceram de 72,6 para 716,7, de 102,3 para

475,6, de 104,3 para 171,5 e de 101,8 para 169,9 respectivamente24.

Contudo, como foi visto anteriormente, a distribuição por carteiras no total dos empréstimos

a entidades públicas, bancos, à produção (agricultura e indústria), ao comércio e a particulares entre

1938 e 1945, revelava o amplo predomínio da Carteira de Crédito Geral (CREGE), com a sua

participação média atingindo 85,5%, e a da Carteira de Crédito Agrícola e Industrial (CREAI)

sendo de 14,5%. No entanto, não levando em conta as entidades públicas, a importância relativa da

CREAI aumentava bastante, atingindo 34,7%, contra 65,3% da CREGE. (Cf. Tabela 2)

A partir da entrada em vigor do Regulamento de 1942, a CREAI passou a conceder um

nítido favorecimento à pecuária, particularmente à pecuária zebuína de origem indiana que se

22 Cf. SILVA, J. L. da, “Relatório do Diretor da CREAI José Loureiro da Silva”, Rio de Janeiro, 26 de junho de 1945, Documentos para a História do Banco do Brasil, Período Contemporâneo 1930-1945 (Da Ascensão à Queda de Getúlio Vargas), Carteira de Crédito Agrícola e Industrial, Expansão dos financiamentos à pecuária, 23 p. 23 Cf. MALAN, P. S. et al., Política Econômica Externa Industrialização no Brasil (1939/52), IPEA/ INPES, Rio de Janeiro, 1977, p. 244. 24 Idem, p. 486.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 143

concentrava no Triângulo Mineiro. Os financiamentos a essa atividade foram se avolumado e

acabaram assumindo características bastante irregulares, gerando um intenso debate na imprensa

especializada. Esse debate permitiu que aflorassem uma série de importantes questões, como: o

privilegiamento da política de crédito rural a esse ramo da pecuária; o favorecimento a certos ramos

da produção agropecuária (produção algodoeira) e a determinados beneficiários do crédito rural em

alguns ramos produtivos; e o favorecimento de determinadas regiões do País25.

TABELA 2

Banco do Brasil: Empréstimos por Carteiras a Entidades Públicas, a Bancos, à Produção (Agrícola e Industrial), ao Comércio e a Particulares, 1938-1945 (Saldos Médios em Milhões de Cruzeiros)

CREAI

Carteira de Crédito

Agrícola e Industrial

CREGE

Carteira de Crédito Geral

Anos Valores

Correntes (%)

Valores

Correntes (%)

1938

1939

1940

1941

1942

1943

1944

1945

Médias

1938-1945

24

124

326

608

1.074

1.416

2.476

4.823

-

3,2

12,1

22,4

12,1

13,7

11,5

14,5

26,2

14,5

735

904

1.130

4.427

6.782

10.859

14.649

13.570

-

96,8

87,9

77,6

87,9

86,3

88,5

85,5

73,8

85,5

Fonte: Relatório do Banco do Brasil, vários anos. A partir de 1941, a Carteira de Crédito Geral (CREGE) incluiu empréstimos do Tesouro Nacional destinados a operações de câmbio.

Em termos setoriais pode-se observar o grau extremamente diferenciado do apoio

25 No algodão, os maiores beneficiários eram os comerciantes-processadores do algodão em pluma e não os cotonicultores e na pecuária zebuína, parcela considerável dos recursos foi destinada a empresas e pessoas sem a mínima experiência neste tipo de atividade. A discussão desta questão está registrada em vários documentos, tais como: A Crise Pecuária e o Novo reajustamento, sem data e autoria desconhecida; Considerações Relativas ao Projeto de Moratória à Pecuária, em Andamento no Congresso Nacional, Sindicato dos Bancos de Minas Gerais, julho de 1949; Telegrama enviado ao Presidente da República Eurico Gaspar Dutra pelo Sindicato dos Bancos no Rio Grande do Sul, assinado por Jorge Bento (presidente) e Pedro Schmitt (secretário), Porto Alegre, 18 de junho de 1949; Telegrama Enviado ao Presidente da República Eurico Gaspar Dutra pela Federação das Associações Comerciais do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 17 de junho de 1949; Carta do Pecuarista Joaquim Nunes de Assumção ao Diretor da CREAI, Prata, Minas Gerais, 2 de dezembro de 1948; Abaixo-Assinado de Pecuaristas à Câmara Federal, Itumbiara, Goiás, 15 de março de 1947; Trechos do Despacho do Diretor da CREAI ao Parecer Número 379, de 31/01/1939; “O Decreto-Lei Núm. 4.709 e a Pecuária do Brasil Central (Exposição que faz a Comissão dos Pecuaristas do Centro Pastoril do País), Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 02/10/1942.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 144

governamental à produção agropecuária do País. O produto relativamente mais financiado era o

açúcar na base de 5,5 contos de réis por tonelada, vindo a seguir o arroz com um conto de réis por

tonelada, o feijão com 800 mil-réis por tonelada, a batata com 500 mil-réis por tonelada, o milho

com 350 mil-réis por tonelada, e o trigo com apenas 72 mil-réis por tonelada26.

Em setembro de 1944, o cargo de diretor de CREAI passou para José Loureiro da Silva, que

nele se manteve até o final do Estado Novo, após a deposição de Getúlio Vargas, em outubro de

1945. Ao contrário de seu antecessor, Loureiro da Silva não era funcionário do Banco do Brasil.

Havia ocupado vários cargos públicos de destaque no Rio Grande do Sul antes de assumir a

Carteira, tendo atuado na área judiciária estadual, como promotor; na polícia estadual, como

delegado em Porto Alegre; e no executivo municipal, como interventor na prefeitura de Porto

Alegre, do início do Estado Novo até 1943. Entre sua saída da interventoria de Porto Alegre, em

1943, e o início de sua gestão na CREAI em 1944, foi fazendeiro e rizicultor em Tapes, município

pertencente a uma das regiões rizícolas mais importantes do Rio Grande do Sul. Tratava-se,

portanto, de uma pessoa com vivência prática na agricultura27.

Essa primeira gestão de Loureiro da Silva (a outra se daria no Segundo Governo Vargas, no

início da década de 1950), foi marcada pelo impacto da reforma do Regulamento da CREAI em

1942, a qual, como já mencionado, ampliou consideravelmente suas possibilidades de

financiamento, pela alteração da legislação pignoratícia em vigor (Lei número 492 de 1937 e outras

que a completavam), e por intensos debates no âmbito da diretoria do Banco do Brasil.

Tais debates geraram modificações nas características do financiamento destinado à pecuária

zebuína do Triângulo Mineiro, o qual havia se tornado desproporcionalmente elevado devido a um

aceleradíssimo crescimento que se dera de forma bastante irregular. Como já foi visto, de 1938 a

1944, a participação da pecuária no total do financiamento da Carteira aumentou de 5,1% para

57,1% (o número dos empréstimos aumentou de 103 em 1938 para 17.167 em 1945). Desde o início 26 Cf. “A Campanha do Trigo”, O Observador Econômico e Financeiro, XXX, p. 61-66. 27 José Loureiro da Silva, nascido em 1902, foi também prefeito de Garibaldi em 1929, de Taquara em 1930, e de Gravataí, em 1932. Em 1935 elegeu-se deputado estadual constituinte. A sua gestão na prefeitura de Porto Alegre foi marcada por obras de saneamento e modernização da cidade. Cf. “Novo Diretor do Banco do Brasil”, Publicação da Associação Atlética do Banco do Brasil (AABB), s/d, Arquivo do Banco do Brasil, Centro Cultural do Banco do Brasil, RJ; e também SILVA, J. L. da, “Crédito Especializado, Amparo à Produção, Educação Rural”, trabalho impresso no Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 1944, p. 16-19. O significado da CREAI como agência de financiamento às atividades produtivas pode ser avaliado pela importância que tiveram na vida nacional alguns dos seus diretores, inclusive José Loureiro da Silva. Numa homenagem que lhe foi prestada na década de 50, faziam parte da Mesa as seguintes personalidades: Lourival Fontes como representante do Presidente da República Getúlio Vargas; o Ministro da Agricultura Apolônio Sales; o Ministro da Fazenda Oswaldo Aranha; o Ministro da Justiça Tancredo Neves; o Ministro da Aeronáutica Nero Moura; e o Ministro da Saúde M. Pinotti. Também estiveram presentes governadores e representantes dos Estados do Amazonas, Pará, Maranhão, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Alagoas, Espírito Santo, Santa Catarina e Rio Grande do Sul bem como dos territórios federais do Amapá e de Guaporé, além do presidente do Banco do Brasil Marcos de Souza Dantas. A idéia dessa homenagem partira das classes empresariais e de seus representantes classistas. Após a sua morte, Loureiro da Silva foi também homenageado pelo Congresso Nacional em 1964. Cf. Diário do Congresso Nacional, Seção I, sexta-feira, 05/06/1964, num. 3.881. Fonte: Arquivo do Banco do Brasil, Centro Cultural do Banco do Brasil, Rio de Janeiro, RJ.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 145

de sua gestão, em 1944, Loureiro da Silva adotou uma postura fortemente crítica em relação à

política de crédito destinada à pecuária zebuína. Essa postura é registrada pela obra semi-oficial que

analisa a história do Banco do Brasil de 1808 até 1951, ao referir-se à sua exposição para a diretoria

do Banco, em 19 de junho de 1945, baseada nos seguintes termos:

“(...) Primeiro – o crédito à pecuária, da maneira como se processava, estava fundamentalmente errado; Segundo – o Banco do Brasil abria mão de preliminares princípios de garantia às suas operações; Terceiro – o Banco não fomentara a produção ganadeira nacional, criando riquezas, mas, ao contrário, vinha empobrecendo uma imensa região do país, com a circulação de moeda destinada a um só produto; Quarto – o crédito especializado deixou de exercer, na referida região, a sua função disciplinadora e social, estabelecendo níveis de custo de vida jamais atingidos em quaisquer outras partes; Quinto – a produção agrícola foi abandonada e o valor da terra atingira preços exorbitantes; Sexto – o financiamento do Banco do Brasil, na pecuária, propiciara o negocismo, a especulação, a aventura e a pirataria, com a intervenção de elementos de todas as procedências e profissões, inclusive a de homens de Estado, banqueiros, profissionais liberais, etc., numa corrida para a fortuna fácil; Sétimo – o Banco do Brasil estimulara a criação de valores artificiais que estavam enriquecendo os mais ricos, deixando aqueles que exerciam legitimamente a profissão rural; Oitavo – nesse sentido,estava desorganizando uma classe tradicional, dando oportunidade a todos os arrivistas; Nono – o Banco do Brasil, ao invés de distribuir eqüitativamente, em todo o país, o seu crédito pecuário, empregara só na região em apreço cerca de 2 bilhões de cruzeiros, num total de 2 bilhões e 300 mil, isto é, um quarto da receita nacional”28.

A mesma obra também registra a reação a estas críticas pelo ex-diretor da carteira Souza

Mello:

“(...) procurou o Diretor Souza Melo demonstrar que não houvera desleixo no tocante às garantias exigidas para as operações. (...) O Diretor Loureiro manteve estes limites máximos de valores e até aumentou o prazo dos empréstimos de mais um ano (...) Não se podia dizer que esse crédito estava “fundamentalmente errado” (...) Até mesmo a última resolução da Diretoria em coisa alguma modificara os fundamentos básicos adotados para o crédito pecuário (...) No caso do Triângulo Mineiro, a predominância da pecuária sobre a agricultura resultou antes de que ali pequenas manchas de terra eram prestáveis para a agricultura (...) Se houve abandono da produção agrícola, isso não resultava do crédito especializado, não cabendo culpa à Carteira. (...) A assistência financeira à pecuária importava em pouco mais de 1.970 milhões de cruzeiros a 30 de novembro de 1944 e chegou a Cr$ 2.479.571.856,30 em abril de 1945. Nas mesmas datas, essas operações realizadas no Estado de Minas Gerais, importaram, respectivamente, em Cr$ 853.754.134,40 e em Cr$ 727.427.620,70. Idênticas operações foram feitas por todo o território nacional. (...) Alguns casos de gerentes que se excederam em liberalidades ou interpretaram erroneamente as instruções da Sede não aprovavam a inconveniência do critério em apreço, mas apenas a urgente necessidade de serem assessorados por perto por inspetores especializados. (...) Admitiu que ocorreram irregularidades e senões, mas objetou que seria absurdo pretender realizar, em uma tarefa de tal magnitude, como a do crédito especializado, uma obra perfeita no primeiro ato (...)”29.

As posições divergentes que eram defendidas pelo então diretor da CREAI e por sue

antecessor parecem refletir uma diversidade de interesses econômicos setoriais entre vários ramos

produtivos que disputavam os financiamentos públicos: a indústria em contraposição ao setor

28 Cf. PACHECO, C., História do Banco do Brasil (História Financeira do Brasil Desde 1808 Até 1951), vol. V, 1979, p. 74/75. 29 Idem, p. 76-78.

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agropecuário; a agricultura contra a pecuária; e disputas entre os distintos ramos da agricultura. Por

trás delas também estavam as contradições entre o financiamento ao setor público e o financiamento

às atividades privadas, bem como as discussões da missão prioritária que deveria caber ao Banco do

Brasil: a de banco financiador da produção ou de agente controlador da liquidez. Devido à ausência

na época de um Banco Central no País, cabia ao Banco do Brasil um papel fundamental no combate

à inflação, então crescente devido à situação internacional causada pela Guerra.

Outra fonte de conflitos que surgiu com nitidez nessa discussão entre Loureiro da Silva e

Souza Mello, refere-se à diversidade de interesses econômicos regionais a nível da produção

agropecuária30. O privilegiamento da pecuária do Triângulo Mineiro não era bem visto em outras

regiões do País. Nu discurso pronunciado em Porto Alegre31, Loureiro da Silva apresentou algumas

sugestões com vistas à modificação do Regulamento de 1942, tais como: (1) a adoção da cédula

pignoratícia em caráter compulsório, transformando-a num verdadeiro “warrant” rural – ou seja,

num título de crédito negociável, inicialmente na própria Carteira; e (2) o acompanhamento de

todas as aplicações dos empréstimos pelos fiscais da Carteira, estimulando

“(...) o produtor a organizar uma contabilidade baseada em elementos financeiros positivos, que lhe Dara a noção dos seus gastos e dos resultados obtidos. Doutra parte, a assistência periódica dos fiscais removerá obstáculos supervenientes, ajudando a dirimi-los com a suplementação de verbas e auxílio efetivo das Agências do Banco”.

No mesmo discurso, Loureiro da Silva apresentou uma série de considerações relativas a

questões locais da agropecuária gaúcha, cujo teor ajuda a compreender a visão que tinha sobre a

missão da CREAI. Entre elas merecem ser destacadas as que se referem:

( I ) aos pequenos produtores, em relação aos quais “Já se adotou até a dispensa das avaliações e

certidões negativas para as operações não superiores a dez mil cruzeiros”. Loureiro da Silva

expressou o desejo de melhor apoiá-los, tanto através do auxílio da Carteira às 210 cooperativas de

produção e consumo existentes no RS, e às de crédito conhecidas como “Caixas de Raiffeisen” e

“Bancos Luzzatti”, como por meio da ajuda do Estado à criação de novas cooperativas. Esta última

contraria com a assistência da Secretaria de Agricultura e da fiscalização do Banco do Brasil –

refere-se a projeto do Ministério da Agricultura relativo às Caixas de Crédito Cooperativista, que

acabara de ser apresentado para sanção do Presidente da República; e ( II ) à sua preocupação com a

pecuária, especificamente com a criação de gado, buscando encontrar

30 Entre 1938 e 1941, a evolução da distribuição média do valor dos empréstimos rurais por regiões foi a seguinte: a do Sul (São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul) foi de 58,3%; a do Leste Meridional (Minas Gerais, Espírito Santo, Rio de Janeiro e Distrito Federal) foi de 7%; a do Leste Setentrional (Sergipe e Bahia) foi de 13,5%; a do Nordeste Ocidental (Maranhão e Piauí) foi praticamente nula; a do Nordeste Oriental (Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e Alagoas) foi de 22%; a do Centro-Oeste (Goiás e Mato Grosso) foi de 3,7% e a do Norte (Amazonas e Pará) também foi praticamente nula. 31 – Cf. SILVA, J. L da, “Crédito Especializado, Amparo Financeiro à Produção, Educação Rural”, trabalho impresso no Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 1944, 25 p. Cf. Discurso de agradecimento no banquete que lhe foi oferecido por diversas associações e entidades, em 3/11/1944, no Palácio do Comércio, em Porto Alegre.

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“(...) uma maneira suave de financiamento para o gado de cria, com o fito de se repovoarem os campos, dando-se mais tempo e mais eqüitativos ensejos aos criadores. Assim, o prazo de financiamento seria dilatado para cinco anos, começando o pagamento a partir do segundo ano, em progressão crescente de 10, 20, 30 e 40%. Outro aspecto da questão, que merecerá meu estudo, é o do povoamento com garantia da terra, por parte dos que a possuem”;

e ( III ) à redução do custo de produção agrícola do arroz irrigado, a fim de aumentar o seu grau de

competitividade no mercado internacional, através da construção de barragens e açudes pelo IRGA

(Instituto Rio-Grandense do Arroz, autarquia estadual), com a finalidade de reduzir as dispendiosas

operações de recalque e levante realizadas através de máquinas que imobilizam um elevado

investimento32.

E, concluindo sua exposição, ressaltava que:

“O caminho da Carteira Agrícola está traçado, tendo o meu ilustre antecessor, sr. Antonio Luiz de Souza Mello, desbravado as rotas árduas e agrestes. Cabe-me agora ampliá-lo, adaptando às contingências do momento que atravessamos, por intermédio de uma legislação refundida pelo estudo acurado dos técnicos especializados em crédito rural, de modo a se imprimir mais mobilidade, mais elasticidade, mais plasticidade aos negócios, no sentido de propiciar crédito barato e fácil aos pequenos e grandes produtores”.

É importante registrar que desde a criação da CREAI até 31 de julho de 1945, o Banco do

Brasil havia aumentado de oitenta para mais de duzentas o total de suas agências espalhadas pelo

País. Essa criação de várias dezenas de novas agências pode ser diretamente atribuída à expansão

dos financiamentos da CREAI, num ritmo bastante superior ao da Carteira de Crédito Geral

(CREGE), de crescimento reduzido33.

Ao final desta primeira e relativamente curta gestão de Loureiro da Silva, tornou-se bastante

nítido um forte conflito no interior do Banco do Brasil entre duas visões: a que privilegiava o

crédito especializado às atividades produtivas nos moldes do concedido pela CREAI, e a que

enfatizava o crédito comercial, nos moldes dos antigos bancos de descontos e depósitos, que

basicamente efetuavam empréstimos a curto prazo e a juros altos, constituindo-se em organizações

bancárias totalmente desvinculadas das atividades econômicas propriamente produtivas.

32 A adoção dessa medida pode ser melhor compreendida a partir das principais medidas de urgência solicitadas pelo Congresso do Arroz, realizado em 1939, na cidade gaúcha de Cachoeira do Sul: (1) exclusão do arroz do tabelamento oficial de gêneros de primeira necessidade; (2) fixação do preço mínimo para o arroz, que assegure ao produtor lucro razoável, a partir de um cálculo baseado no custo médio de produção, e a aquisição por preço compensador pelo Governo Federal dos estoques de arroz da safra passada ainda em mãos do produtor; e (3) o suprimento de crédito pelo Governo Federal para o Instituto Rio-Grandense do Arroz (IRGA), para lhe possibilitar permanente intervenção como comprador no mercado. As principais sugestões relacionadas ao crédito agrícola propostas por este congresso, foram as seguintes: (a) a elevação do crédito para o nível de 50% do valor estimado da produção, o qual estava fixado em 1/3 pelo Regulamento da Carteira; (b) a redução dos juros de financiamento para 6% a. a.; (c) a dilatação dos prazos para os créditos destinados à aquisição de material agrário; e (D) a criação de agências do Banco do Brasil em zonas de produção de arroz distantes das regiões rizícolas pioneiras do estado. Cf. “O Congresso do Arroz”, O Observador Econômico e Financeiro, LI, 1939, p. 12-14. 33 Cf. CREAI, “Relatório Lido pelo Diretor Dr. José Loureiro da Silva em sessão de 31/07/1945 da Diretoria do Banco do Brasil”. Fonte: Arquivo do Banco do Brasil, Centro Cultural do Banco do Brasil, Rio de Janeiro.

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Esse conflito acentuou-se a partir de uma proposta da Presidência do Banco do Brasil, feita

no bojo da “crise do crédito à pecuária zebuína”, cujo objetivo era reduzir os empréstimos da

CREAI, através das seguintes medidas: (1) o congelamento dos financiamentos da CREAI, no total

daquela data, que não deveria ser ultrapassado até segunda ordem; (2) a concessão de novos

empréstimos somente a firmas cadastralmente idôneas, dentro do limite de 80% das operações

liquidadas da mesma espécie; (3) a proibição de destinar à pecuária os recursos obtidos através da

liquidação de empréstimos agrícolas; e (4) a punição dos gerentes de agências que transgredissem

essas normas.

Apesar de concordar integralmente com a crítica feita à expansão acelerada e irregular do

crédito pecuário, Loureiro da Silva não aceitou as limitações de financiamento propostas pela

CREAI como um todo. Fazendo uma ampla análise crítica do funcionamento da Carteira, procurou,

no entanto, defendê-la, propondo apenas algumas mudanças no seu funcionamento.

Inicialmente, observava que os dispositivos legais relativos ao recolhimento no Banco do

Brasil dos fundos específicos para a CREAI não estavam sendo integralmente cumpridos. Tais

fundos, como se sabe, eram constituídos em parte pelos depósitos dos Institutos de Previdência e de

Assistência dos Servidores do Estado e das Caixas e Institutos de Aposentadoria e Pensões.

Loureiro da Silva mostrou que, em 31 de maio de 1945, as disponibilidades oriundas das várias

fontes de recursos da CREAI, assunto disciplinado pelos Decretos-lei número 2.611, de 20 de

setembro de 1941, distribuíram-se da seguinte maneira: 63,7% do total provenientes dos Depósitos

Judiciais à Vista e de Aviso Prévio de Menos de 90 Dias; 2,0% dos Depósitos Judiciais a Prazo e de

Aviso Prévio de 90 Dias ou mais; 7,4% dos Depósitos de Empresas Concessionárias de Serviços

Públicos; 7,0% dos bônus em Circulação e apenas 19,9% provenientes dos Depósitos Obrigatórios a

Prazo Fixo dos Institutos de Previdência, Assistência dos Servidores do Estado e Caixas e Institutos

de Aposentadorias e Pensões, acima referidos.

É importante notar que nesse cálculo não foram consideradas as fontes não-específicas,

representadas pelos recursos oriundos do encaixe geral do Banco e do Redesconto de Contratos de

Financiamento, os quais, como será demonstrado posteriormente, passariam a ser cada vez mais

importantes, tornando-se praticamente inexpressivas as fontes específicas.

Tomando como exemplo o ano de 1945, verifica-se que enquanto os recursos próprios da

Carteira representaram apenas 22,5%, aqueles provenientes de fontes não-específicas ou

extraordinárias (nesse ano, apenas oriundos da Carteira de Redescontos) somaram 77,5% do total.

Neste sentido, cabe registrar a elevada participação da CARED no total da emissão de papel-moeda

no período de 1939 a 1945. Levando em conta os demais órgãos emissores – o Tesouro Nacional, a

Caixa de Mobilização Bancária e a Caixa de Estabilização -, a sua participação média atingiu 38,0%

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 149

do total da emissão líquida de papel-moeda34. Em 1945, os recursos da CARED destinados à

CREAI representaram 1,3 vezes o total das emissões líquidas daquela carteira e 77,5% do total dos

recursos da CREAI, o que já revelava a elevada dependência da CREAI ao suprimento de recursos

da Carteira de redescontos (CARED), através de operações normais de redesconto ou de operações

de redesconto baseadas na emissão primária de meios de pagamento35.

Prosseguindo, Loureiro da Silva criticava a sugestão da Presidência do Banco de fixar um

limite máximo às operações da CREAI:

“Teoricamente, dada a natureza específica do crédito rural (...) Tendo por finalidade primordial o amparo e o fomento da produção em todos os seus ramos de indiscutível interesse econômico, evidente é que a sua limitação viria cercear o desenvolvimento das atividades agrárias (...) notadamente no momento atual, quando associações de classe e o Governo Federal convergem esforços para o aumento da produção, necessário e indeclinável no período de após-guerra, não só em benefício do consumo interno, já tão sacrificado, como também do consumo externo, ora pressuroso pela compra dos produtos de exportação. Não se diga que o aumento crescente das operações poderia tornar impraticável a tese da não limitação dos financiamentos a um máximo de disponibilidades, dados os recursos restritos do Banco, ora encarregado da distribuição desse crédito, e também da subordinação do redesconto aos lastros do Tesouro. Porque, se ocorresse essa hipótese, haveria apenas aparente insuficiência de meios, visto como ao volume de empréstimos deveria corresponder o volume maior da produção e, conseqüentemente, da riqueza criada, que só, por si, daria ao Governo recursos para suprir o redesconto, então indispensável a esse surto expansionista. Praticamente, porém, é forçoso reconhecer que o Banco, como distribuidor do crédito rural e industrial, não pode e não deve agir sem disciplina e sem freios coercitivos (...) Desse modo, harmonizando o princípio da não limitação com as necessidades de ordem material e prática, uma única orientação se impõe ao Banco – a de submeter os seus financiamentos a um critério seletivo, equânime e equilibrado, prestando a sua assistência dentro de sistema distributivo capaz de atender às reais necessidades da produção econômica e em gradação correspondente às necessidades do consumo em geral. Assim, o montante do crédito especialmente destinado a auxiliar o fomento da produção rural, ou industrial, não comporta limites definidos”36.

Mais adiante, respondeu à crítica de que “(...) a Carteira de Crédito Agrícola e Industrial

constitui um pesado ônus para a organização do Banco do Brasil”, enfatizando que o lucro líquido

apurado pelo balanço do segundo semestre de 1944, que correspondeu a 82,3% do total das

despesas da Carteira constituía uma das formas de se comprovar a lucratividade das operações da

Carteira, proveniente da diferença entre a taxa mínima de juros de 7% que era cobrada de seus

mutuários e a de 5% a. a. que correspondia ao custo de captação de recursos pelo Banco.

Finalmente, ao analisar a atuação da CREAI em quatro níveis – gerência e sub-gerência de

agências; fiscais e avaliadores; inspetores e assistência técnica –, Loureiro da Silva atribuiu os

problemas então enfrentados pela Carteira a três fatores: ao fator “surpresa” ou alto grau de

imprevisibilidade das decisões governamentais relativas aos financiamentos oficiais; às deficiências 34 MALAN, P. S. et alii, Op. Cit., p. 237. 35 Idem, p. 247. Outra demonstração cabal da limitação dos recursos para empréstimos à produção provenientes unicamente dos depósitos, era a total preponderância dos depósitos à vista sobre o total dos depósitos – entre 1938 e 1945, a participação dos depósitos à vista do público sobre o total dos depósitos do público foi de 85,5% e 72,8% respectivamente. Cf. Relatório do Banco do Brasil de 1946, Rio de Janeiro, 1947, p. 152. 36 Cf. CREAI, “Relatório Lido pelo Diretor Dr. José Loureiro da Silva em Sessão de 31/07/1945 da Diretoria do Banco do Brasil”. Fonte: Arquivo do Banco do Brasil, Centro Cultural do Banco do Brasil, Rio de Janeiro.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 150

de sua organização administrativa, e à “falta de medida e objetividade” na concessão dos

financiamentos.

Com relação ao fator “surpresa” a à “falta de medida e objetividade” na concessão de

financiamentos, exemplifica com a solicitação de crédito do Banco para o algodão, sem qualquer

consulta à CREAI, no montante de 4 bilhões de cruzeiros quando o seu encaixe se encontrava ao

redor de apenas 1,5 bilhão de cruzeiros, estendendo a crítica à política da Carteira de conceder

financiamento para o capital comercial-beneficiador e comprador da produção agrícola e não

diretamente para o cotonicultor. Isto porque

“(...) não se trata de genuínos financiamentos à produção mas, sim, ao intermediário, a quem se garante o preço da mercadoria, independentemente de qualquer vantagem, direta ou indireta, para os que trabalharam a terra e colheram o produto, no árduo labor campesino. O próprio planejamento de emergência, em grande parte, terá essa fisionomia (...) Possivelmente garantirá a retenção na mão do comerciante ou do exportador, para o jogo da alta. Não desconheço que é também função do crédito especializado adotar medidas capazes de garantir os preços de consumo, sem as quais sua assistência à produção seria incompleta. Mas, a orientação econômica dessas medidas não deve e não pode ser unilateral, indo apenas ao encontro dos intermediários, compradores ou maquinistas, porque então não se alcançaria o objetivo tão anelado de se livrar o produtor das garras da especulação aquisitiva. (...) São muito conhecidos os termos do decreto que manda financiar o algodão. Não se financia propriamente ao plantador, ao trabalhador da terra: garante-se apenas aos maquinistas nacionais ou estrangeiros um preço mínimo. Segue-se que o produtor se vê jungido ao dono da máquina de benefício e o penhor que se efetua não é um penhor rural, mas sim, tipicamente, um penhor mercantil do produto colhido, tratado, enfardado e posto em armazéns gerais, ou particulares recebidos em comodato. O último decreto, como amparo à produção algodoeira, de nada serviu ao legítimo produtor: favoreceu tão somente aos negociantes e exportadores, propiciando um tremendo jogo bolsista, em prejuízo do Tesouro, responsável por toda essa produção, financiada e ainda não exportada. (...) Receio muito que o recente plano de amparo à lavoura de cereais, consubstanciado no decreto-lei número 7.774, de 24 de julho de 1945, exatamente nos moldes dos financiamentos do algodão, caminhe para o mesmo rumo. O fato estranho em tudo isto é que, calcada a produção no trinômio Terra, Trabalho e Capital, a Comissão de Financiamento à Produção exclua sistematicamente das suas deliberações o órgão executivo ou realizador dos seus planos, que é o capital, representado pela Carteira de Crédito Agrícola e Industrial. (...) Enquanto os financiamentos do algodão absorvem a maior parte da verba atribuída à agricultura, toca à lavoura de cereais parcela tão exígua que chega a ser ridícula, face ao montante dos empréstimos gerais do mesmo tipo (...) calculando a percentagem sobre a massa global dos empréstimos da Carteira (...) vemos que ela é apenas de 3,5%, aproximadamente, isso num país que vive à míngua de alimentação!”37.

O referido documento destaca outra distorção que demonstra a política irregular de

financiamento à pecuária de gado indiano, apontada por um inspetor do Banco:

“Sente-se que os mutuários transformaram o organismo em apreço em mero instrumento de especulação e de jogo de negócio”; segundo laudo de Randolfo Abreu, “Casos há – e são comuns – em que, liquidado um financiamento com grande antecipação, no empréstimo que se segue, no intervalo de poucos dias, aparecem os animais, geralmente os mesmos que figuraram no financiamento anterior, cotados a preços duas ou três vezes superiores, possibilitando assim negócios de muito maior vulto. (...) Que é conhecido o fato de serem freqüentemente desviados os recursos fornecidos pelo Banco, empregados em alguns casos na aquisição de imóveis, liquidação de dívidas em outros bancos e para os mais diferentes fins; Que os comprovantes fornecidos às

37 Cf. SILVA, J. L. da, Op. Cit., 26 de junho de 1945. A criação da Comissão de Financiamento da Produção (CFP), foi abordada no capítulo I deste trabalho.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 151

agências são graciosos (...) existindo casos em que, ou o mutuário que fornece o documento não possui o gado que declara haver vendido, ou, em hipótese positiva, dele não poderia se desfazer sem conhecimento prévio do Banco, visto a este estar empenhado. (...) Tem-se a impressão de que se estabeleceu na praça um ciclo especial de transações: o Banco do Brasil empresta ao criador de gado, este liquida débitos em outros bancos com o produto do empréstimo e aumenta o seu rebanho com o saldo da operação; posteriormente, pratica-se o inverso: os outros bancos emprestam apara a liquidação do contrato existente com o Banco do Brasil; liquidado este e, a seguir, conseguido novo financiamento em bases elevadas, devido à constante alta dos preços de gado, obtém o mutuário recursos com que saldar a dívida”.

Relativamente à dinâmica da produção de algodão na primeira metade dos anos quarenta,

cabe destacar o seguinte:

(a) devido às pressões para a baixa das cotações, depois de conferência entre o Ministro da

Fazenda e representantes dos estados cotonicultores, em 1942, o Banco do Brasil, através

da Fiscalização Bancária, tomou as seguintes medidas: (1) o não fornecimento de guias de

exportação quando o preço declarado fosse inferior a certos níveis; (2) o financiamento

rural passou a ser feito sob as seguintes condições: 90% da base mínima fixada para a

exportação, com a dedução das despesas até o embarque (armazenagem, transporte, taxas

e impostos), e dos impostos estaduais de exportação; e para os algodões classificados em

outros portos de embarque, seriam levadas em consideração as despesas de transporte

desses locais até os portos de exportação; e (3) os financiamentos somente seriam feitos

para o algodão do tipo 6 e de qualidade superior;

(b) o Decreto-lei número 5.360, de 30 de março de 1943, autorizou o financiamento da safra

de 1943 mediante o penhor mercantil do algodão;

(c) o Decreto-lei número 5.582, de 17 de junho de 1943, que criou a quota especial de 30

centavos por quilo de algodão em pluma, tanto cobrada sobre o algodão destinado ao

consumo interno como ao externo, a qual destinava-se para a formação de um fundo para

cobrir os riscos do financiamento especial do produto; e

(d) o prosseguimento, em 1944, dos financiamentos em bases especiais, devido aos efeitos da

Guerra, que provocaram aa queda de suas exportações.

Para darmos uma idéia do amplo favorecimento concedido por este decreto governamental

ao grande capital comercial-beneficiador da produção algodoeira, basta lembrar que os seus

principais beneficiários foram as seguintes empresas: (1) a Anderson, Clayton & Cia. Ltda., que

além de seus empréstimos “em ser” de 36 milhões de cruzeiros, recebeu abertura de crédito de mais

de 150 milhões e cruzeiros; (2) a Cia. Nacional de Anilinas e Comércio e Indústria, cujas

responsabilidades já ultrapassavam este último montante; (3) a S. A. Indústrias Reunidas Francisco

Matarazzo; e (4) outras grandes empresas como a S. A. Warton Pedrosa, Prado & Sodré Ltda., S. A.

Cafeeira da Noroeste, F. F. Saad & Cia., Edson Leite de Moraes, Buchalla & Irmão, Auttaris F.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 152

Nogueira, Comércio e Indústria Brasileiras “Coimbra” S. A., Exportadora e Comissária Paulista

Ltda., Cia. Leme Ferreira Comissária Exportadora, Cia. Paulista de Exportação, Silveira, Freire &

Cia., Souza Dantas Forbes & Cia. Ltda. e Sociedade Algodoeira do Nordeste Brasileiro S. A.

(SANBRA)38.

Cumpre observar no mesmo sentido, que também a participação média dos empréstimos

ao comércio por ramos econômicos vinculados à produção agropecuária no total dos empréstimos

ao comércio entre 1940 e 1945, apontava para a grande importância desse segmento, tendo

atingido o nível de 72,2% e distribuindo-se do seguinte modo: o algodão em rama, participando

com 21,8%; o café em grão, com 26,8%; o gado, com 10,4%; os cereais, com 3,9%; os produtos

alimentares, cigarros e bebidas, com 3,6%; as matérias oleaginosas, com 2,7%; o açúcar e

aguardente, com 2,3%, e a borracha, com 0,7%. Cabe salientar que a participação média do

crédito destinado ao comércio no total do crédito atingiu 24,0%, conforme se pode verificar na

Tabela 3 apresentada a seguir.

38 Cf. SILVA, J. L. da, Op. Cit.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 153

TABELA 3 Banco do Brasil: Empréstimos ao Comércio por Ramos, 1940 – 1945

(Saldos em final do ano) Anos

Ramos 1940 %

1941 %

1942 %

1943 %

1944 %

1945 %

Média 1940-1945

Aldodão em rama Café em grão Gado Cereais Produtos Alimentares, Cigarros e Bebidas Matérias Oleaginosas Açúcar e Aguardente Borracha Subtotal do Comércio de Origem Rural Em Cr$ Milhões Diversos (Tecidos e Artigos de Vestuário; Máquinas, Ferragens, Tintas e Louças; Produtos Químicos e Farmacêuticos; Automóveis e Acessórios e Outros Produtos) Subtotal do Comércio de Origem Rural e Não-Rural Em Cr $ Milhões Total do Crédito ao Comércio sobre o Total do Crédito

9,4 27,2 7,1 3,4 4,8

4,0 2,5 -

58,3

305

41,7

100,0

523

30,9

12,7 30,4 7,7 3,5 4,1

2,3 3,6 1,4

65,7

435

34,5

100,0

664

28,0

21,0 24,2 11,5 5,7 2,9

1,4 1,8 2,6

71,2

512

28,8

100,0

719

24,9

28,5 20,8 11,3 3,8 3,4

3,4 1,7 0,1

72,9

522

27,1

100,0

716

21,7

26,4 23,1 15,4 3,2 3,0

2,4 1,8 0,3

75,6

901

24,3

99,9

1.191

19,4

32,6 35,2 9,1 3,9 3,6

2,9 2,2 -

89,5

1.115

10,5

100,0

1.657

18,8

21,8 26,8 10,4 3,9 3,6

2,7 2,3 0,7

72,2

27,8

27,8

24,0

Fonte: De 1940 a 1943, Relatório do Banco do Brasil de 1945, Rio de Janeiro, 1944; de 1944 a 1947, Relatório do Banco do Brasil, vários anos.

Com relação às demais modalidades de financiamento da CREAI, o documento registra o

seguinte: (1) a pouca importância dos empréstimos agropecuários, devido à ausência de um maior

desenvolvimento das indústrias ligadas à pecuária; (2) o reduzido volume atingido pelos

empréstimos industriais, com predomínio dos empréstimos de maior valor, com uma pequena

participação das pequenas indústrias; e (3) o predomínio das usinas de açúcar nos empréstimos

agroindustriais, cabendo-lhes 75% do total, correspondentes a quinze empresas.

Loureiro da Silva também exemplificava com o mencionado caso de expansão acelerada e

irregular do financiamento destinado à pecuária:

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 154

“É o calcanhar de Aquiles dos empréstimos da Carteira. Afora os razoáveis financiamentos destinados ao gado de corte, os do gado fino continuam em progressão crescente. (...) E, segundo notícias que me chegam, transmitidas pelos inspetores, só em Uberaba e Uberlândia esperam na fila mais de 300 candidatos ao financiamento do gado fino (...) Como afirmei em relatório anterior, tais financiamentos estão propiciando valorizações artificiais e prejudicial inflação de crédito numa extensa área do país”39.

Ao tratar do financiamento administrativo da CREAI, o documento destacava o seguinte:

(a) no que se refere à gerência e à sub-gerência, a demora na aprovação dos créditos era

devida aos procedimentos burocráticos, ao elevado número de solicitações de crédito e à

falta de pareceristas especializados, bem como ao fato de que muitos gerentes estavam

muito mais habituados ao tipo de crédito fornecido pela Carteira de Crédito Geral

(basicamente crédito comercial), do que ao da CREAI (crédito produtivo);

(b) com relação aos fiscais da Carteira, havia o fato de muitos terem sido nomeados

exclusivamente por indicação política:

“(...) na maioria das vezes, não têm aptidão alguma para o exercício das funções. Alguns há que pouco sabem ler e escrever; outros, que se aproveitam do cargo para locupletamento ilícito. Assim, se vai criando, sem a mínima prova prévia de eficiência, ou exame de habilitação, uma extensa classe de servidores do Banco, com prerrogativas e direitos que os demais funcionários conseguiram através de anos de trabalhos e sacrifícios”;

(c) quanto aos servidores, são “(...) de certo modo mais aptos, ainda se ressentem da falta de

uma orientação segura nos seus encargos. Irresponsáveis perante o banco, ocasionam,

não raro, sérios transtornos à boa marcha das operações”, podendo-se atribuir a eles

grande parte do exagero dos financiamentos à pecuária e aos empreendimentos

industriais; e

(d) finalmente, com relação aos inspetores do Banco, embora reconhecendo os seus

conhecimentos sobre as transações bancárias, adquiridos a partir de longa vida funcional, muitas

vezes lhes são atribuídas zonas de inspeção com um número excessivo de agências.

Em vista de tudo isso, o documento sugeria a adoção de medidas para corrigir os

financiamentos irregulares, concedidos sem obedecer critérios técnicos e em progressão crescente

(casos do gado fino indiano e do algodão), propondo uma dotação especial governamental para o

último. Não aceita limitações às atividades de financiamento da Carteira, sendo contrário ao critério

de se fixar uma quota-parte destinada à Carteira, propondo uma distribuição eqüitativa às diferentes

carteiras sob a forma de verbas fixas.

Outro relatório do diretor da CREAI listava dezesseis críticas ao seu funcionamento,

concluindo que:

39 Ibidem.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 155

“O financiamento do Banco do Brasil na pecuária, propiciou o negocismo, a especulação, a aventura e a pirataria, com a intervenção de todas as procedências e profissões, inclusive a de homens de Estado, banqueiros, profissionais liberais, etc., numa corrida para a fortuna fácil”;

Nunca é demais chamara a atenção para a mencionada elevada participação do crédito à

pecuária no período de 1940/ 45, atingindo uma média de 40%, bastante superior à média de 19%

de todo o período abrangido por este estudo (1938 a 1965).

Um fator que reforçou o caráter nacional da política de crédito rural da CREAI, foi o de

financiar uma ampla variedade de produtos em praticamente todo o País, e não apenas aqueles de

maior significado na economia do País, uma tendência que se manifestou desde a sua criação. Este

caráter crescentemente nacional da atuação da CREAI pode ser demonstrado pela extensíssima

relação dos produtos rurais financiados no sue primeiro período já entre 1938/ 1941-1945, a saber:

produtos agrícolas – acácia negra; agave; alfafa; algodão; algodão em pluma; alho; amendoim;

arroz; aveia; batata; cacau; café; café especial; cana-de-açúcar; carvão vegetal; cebola; cevada; chá;

coco; erva-mate; erva-doce; ervilha; feijão; frutas; fumo; gergelim; guaxima; juta; lenha; linhaça;

linho; lúpulo; mamona; mandioca; menta; milho; rami; repolho; sericultura; tomate; trigo; uvas; e

outros produtos agrícolas; produtos extrativos vegetais – babaçu; borracha; castanha; cera de

carnaúba; madeiras; oiticica; piaçava e tungue; e, por último, a pecuária. (Cf. Tabela 1)

Neste sentido, a 4 de dezembro de 1942, pelo Decreto-lei número 5.031, o Governo Federal

criou a Comissão Executiva dos Produtos de Mandioca, e de acordo com o Decreto-lei 5.407, de 14

de abril de 1943, foi autorizada a contratar com o Banco do Brasil, através da CREAI, operações de

crédito destinadas à ampliação e ao aperfeiçoamento das usinas necessárias à industrialização da

mandioca40. Reforçando esse caráter de agência governamental orientada para a diversificação da

produção agropecuária, relatório do Banco destaca as seguintes iniciativas de financiamento no ano

de 1942: para a produção de menta (inclusive aos interessados na sua industrialização); de seda

animal (particularmente através de créditos para a montagem de instalações para o preparo do fio);

e de tomate, babaçu, e de agave41.

Outra importante característica dessa primeira fase da CREAI foi o total predomínio do

crédito de custeio comparativamente ao de investimento – por exemplo, no subperíodo 1942-1944,

a participação média daquele chegou a 99,3%. (Cf. Tabela 4) A participação quase nula do crédito

de investimento nas aplicações rurais da CREAI constituiu-se em uma evidência adicional do

caráter predominantemente extensivo da produção rural do País nesse período – exceto para alguns

poucos produtos que já desenvolviam a sua produção em bases capitalistas (via intensificação do

suo de capital na forma de investimentos em insumos, máquinas e implementos agrícolas, bem

40 Cf. Relatório do Banco do Brasil de 1943, Rio de Janeiro, 1944, p. 51. 41 Cf. Idem, p. 51/2.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 156

como nos gastos em mão-de-obra assalariada) e que necessitavam de importar a quase totalidade

dos seus principais meios de produção de origem industrial.

A inexpressiva participação do financiamento da CREAI destinado a investimentos refletia o

baixo grau de mecanização da agricultura brasileira naquela época:

“Verificamos que, de 1920 a 1940, foi moderado o progresso as mecanização da lavoura no Brasil. Pois bem, de 1940 a 1946, a situação piorou consideravelmente por causa da guerra. Os países produtores de maquinaria agrícola, em especial de tratores, restringiram suas exportações, especialmente entre 1940 e 1945, e há os que admitem que, neste último ano o Brasil possuía em funcionamento menos tratores do que em 1940. (...) A partir de 1945, à medida que aumentaram as disponibilidades de maquinaria agrícola nos mercados exportadores e as quotas cedidas ao Brasil se ampliaram, aumentaram também as importações, estimuladas por uma demanda acumulada durante a guerra e por uma crescente tendência para a mecanização em certos ramos da agricultura. (...)” 42.

A preocupação governamental com a elevação do grau de mecanização da agricultura

brasileira, refletiu-se na adoção de uma política de destinar créditos favorecidos do Banco do Brasil

para a importação de máquinas e ferramentas, e de facilidades cambiais para a importação de

máquinas agrícolas (para o caso específico do trigo e para os anos posteriores, essas importações

deixaram de pagar direitos aduaneiros). Analisando-se a distribuição do crédito rural de

investimento entre 1942 e 1944 (exceto para o último ano, quando foram destinados 25% para

investimentos em açudagem), a totalidade do financiamento destinou-se à compra de máquinas

agrícolas.

Nesse primeiro período, a situação da CREAI teve um papel nitidamente expansionista,

contribuindo fortemente para o processo de recuperação econômica do País, iniciado já no início da

década de 1930, principalmente mas não apenas através da política de sustentação econômica da

cafeicultura. Esta continuava sendo fundamental na época na medida que tanto as atividades

industriais como as agrícolas em geral e as próprias finanças públicas se mantiveram atreladas ao

desempenho da economia exportadora cafeeira.

Embora tivesse concentrado os seus empréstimos em cinco produtos (café, cana-de-açúcar,

algodão, arroz e pecuária), a CREAI promoveu uma disseminação dos financiamentos rurais para

quase todas as regiões do País, conforme mostra a Tabela 5, e para um número relativamente grande

de produtos. Isto nos permite caracterizá-la como uma primeira tentativa de política agrícola

nacional voltada para as atividades agropecuárias em geral, e não apenas para alguns produtos,

como era a situação anteriormente prevalecente.

Antes da criação da CREAI, nunca chegou a haver uma estratégia geral para a agricultura

como um todo, e muito menos para a agricultura destinada ao mercado interno, voltada para a

produção de gêneros alimentícios de amplo consumo. Referindo-se à questão da crescente

42 “Mecanização da Lavoura”. O Observador Econômico e Financeiro, Outubro de 1951, Ano XVI, Num. 189, p. 75.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 157

importância das atividades relacionadas ao mercado interno, um relatório do Banco do Brasil

afirmava:

“O ano de 1940 teve, pois, aspectos diferentes dos que o antecederam, como decorrência da projeção da guerra sobre a nossa economia. Um desses aspectos a considerar é a aceleração do ritmo industrial, significativa da profunda transformação que se opera desde algum tempo na economia brasileira. O fato essencial a destacar consiste, como deixamos expresso, no revigoramento intensivo das condições de nossos mercados internos, como base de uma radical mutação econômica. A monocultura constituiria hoje regime obsoleto e, portanto, totalmente incompatível com a nossa posição dentro do próprio continente. Fizemos, pois, da policultura e da industrialização um programa de incessantes iniciativas com os resultados mais proveitosos. Foi uma segunda etapa, como prenúncio da terceira, que é a implantação da grande siderurgia” 43.

Por último, cabe observar a reduzida participação dos pequenos contratos no total do valor

dos financiamentos concedidos pela Carteira entre 1938 e 1941, cuja média foi de 11,4%, contra

24,9% para os médios contratos e 63,7% para os grandes contratos. (Cf. Tabela 6)

Nesse sentido, cabe salientar que os Relatórios do Banco do Brasil consideravam

empréstimos a pequenos produtores os não superiores a 30 contos de réis, o que na verdade

constituía um pequeno empréstimo, que também poderia ser concedido para um médio ou grande

produtor. Portanto, a política de crédito rural da CREAI não estratificava os produtores por tamanho

– área de propriedade, área da lavoura, valor bruto da produção, etc. –, pelo contrário, os seus

empréstimos eram classificados em pequenos, médios (de 30 a 100 contos de réis) e grandes (acima

de 100 contos de réis), o que subestima o grau de concentração creditícia, a não ser que

provássemos que todos os pequenos empréstimos eram destinados a pequenos produtores (definidos

a partir de determinados critérios), e assim por distante, tarefa impossível face à inexistência de

dados para tal nos relatórios do Banco. Da mesma forma, pode-se mostrar a existência de um

elevado grau de concentração creditícia favorecendo os maiores mutuários, caso admitíssemos, algo

que parece bastante razoável, que os grandes empréstimos, pelo seu tamanho relativo, eram

concedidos exclusivamente aos grandes mutuários 44.

43 Cf. Relatório do Banco do Brasil de 1940, Rio de Janeiro, 1941, p. 22. 44 A definição de “empréstimos a pequenos produtores” está no Relatório do Banco do Brasil de 1949, Rio de Janeiro, 1950, p. 132.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 158

TABELA 4 CREAI: Empréstimos Rurais, de Custeio e de Investimento,

1942-1944 (%) Investimento

Ano Custeio Máquinas

Agrícolas

Acuda-

gem Animais

Melhora-

mentos

Total

Total

Geral

(Cr$ 1.000

correntes)

1942

1943

1944

Média

1942-

1944

99,91

99,94

99,95

99,93

0,02

0,06

0,04

0,04

-

-

0,01

0,003

-

-

-

-

-

-

-

-

0,02

0,06

0,06

0,04

1.296,30

1.510,00

3.311,10

2.039,10

Fonte: Relatório do Banco do Brasil, vários anos.

TABELA 5 CREAI: Participação do Valor dos Empréstimos Rurais e Industriais por

Regiões do Brasil, 1938-1941 (em percentagem) Regiões 1938 1939 1940 1941 Média

Sul (1) 56 63 56 58 58,2

Leste Meridional (2) - - 7 7 3,5

Leste Setentrional (3) 5 11 18 20 13,5

Nordeste Oriental (4) 39 25 14 10 22,0

Centro-Oeste (5) - 1 5 5 2,8

Fonte: Relatório do Banco do Brasil, vários anos. Notas: (1) São Paulo, Paraná, Santa Catarina e rio Grande do Sul;

(2) Minas Gerais, Espírito Santo, Rio de Janeiro e Distrito Federal; (3) Sergipe e Bahia; (4) Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e Alagoas;

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 159

TABELA 6 CREAI: Número e Valor dos Empréstimos, por Tamanho do Contrato, 1938-1945 (%)

Pequenos Contratos

Médios

Contratos Grandes Contratos

Anos

Número Valor Número Valor Número Valor

1938

1939

1940

1941

Média 1938-1941

1942

1943

1944

1945

Médias 1938-1945

51,7

57,7

63,1

60,8

58,3

50,6

49,0

39,1

36,3

51,0

8,5

10,4

13,9

12,9

11,4

-

-

-

-

-

32,1

28,0

26,1

27,3

28,4

30,6

30,3

32,7

32,2

29,9

23,3

22,7

26,5

26,9

24,9

-

-

-

-

-

16,2

14,2

10,9

12,0

13,3

18,8

20,7

28,2

31,6

19,1

68,3

66,9

59,5

60,2

63,7

-

-

-

-

-

Fonte: Relatórios do Banco do Brasil, Rio de Janeiro, 1941;Idem ,1942, p. 51; Idem, 1945, p. 40.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 160

CARLOS LACERDA E O PENSAMENTO ECONÔMICO DOS GRUPOS POLÍTICOS NO BRASIL NO PÓS-19451

Marcio de Paiva Delgado*

Resumo: Este artigo busca localizar o jornalista e político Carlos Lacerda no debate econômico dos grupos políticos no pós-1945. Percebemos que a despeito de seu declarado alinhamento ao ideário liberal, Lacerda adotou em alguns momentos posições consideradas nacionalistas e desenvolvimentistas. Também desenvolvemos uma breve análise da formação dos principais grupos ideológicos em relação ao pensamento econômico da época no Brasil. Palavras-chaves: Carlos Lacerda, Lacerdismo, Nacionalismo, Liberalismo, Nacional-Desenvolvimentimo, Pensamento Econômico Brasileiro. Abstract: This article aims to locate the journalist and politician Carlos Lacerda in the economic debate of post-1945's political groups. We noticed that in spite of his liberal affiliation, Lacerda aligned at some moments to positions usually recognized as "nacionalista" (nationalist) and "desenvolvimentista" (developmental). We also developed a brief analysis of the emergence of the main ideological groups related to the economic thought in Brazil at that moment. Keywords: Carlos Lacerda, Lacerdism, Nacionalism, Liberalism, National-Desenvolvimentism, Brazilian Economic Thought.

1. INTRODUÇÃO

O presente artigo aborda a composição dos principais grupos políticos no Brasil durante a

Experiência Democrática (1945-1964), de acordo com a sua posição ideológica na economia e com

destaque para a atuação de um dos principais líderes políticos da denominada “direita liberal

conservadora”: o jornalista e político Carlos Lacerda.

Buscaremos mostrar que, a despeito de seu inegável alinhamento aos grupos defensores do

ideário liberal, Carlos Lacerda adotou, em determinados momentos, posições consideradas

contrárias a sua original orientação ideológica. Tais posições podem ser identificadas como

Nacionalistas e Desenvolvimentistas. Para tal, iremos, num primeiro momento, traçar um quadro

1 Este artigo é adaptação ampliada e revista de um capítulo de nossa dissertação de mestrado defendida em outubro de 2006 pelo programa de pós-graduação do Departamento de História da UFJF, intitulada: O “GOLPISMO DEMOCRÁTICO”. CARLOS LACERDA E O JORNAL TRIBUNA DA IMPRENSA NA QUEBRA DA LEGALIDADE (1949 - 1964). * Mestre em História pela UFJF.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 161

geral da economia brasileira no período. Posteriormente, veremos quais são os grupos de

pensamento econômico mais representativos no Brasil, suas principais diretrizes e características.

De posse disso abordaremos, ao final do artigo, como Carlos Lacerda inseriu-se naquele

grupo que comumente é chamado de “liberal-conservador”2 (lembrando o passado de militância

socialista do jovem Lacerda antes do Estado Novo) e como este se comportou em determinados

momentos, expondo as contradições do pensamento liberal brasileiro, do qual ele próprio era um

representante de expressão junto à opinião pública brasileira.

2. BREVE QUADRO ECONÔMICO SOCIAL BRASILEIRO NOS ANOS ANTERIORES

AO GOLPE DE 1964

Entre 1950 e 1964, o Brasil atravessou inúmeras crises políticas onde o regime de 1946 foi

colocado em xeque por diversos grupos de diferentes orientações ideológicas e programáticas.

Alguns destes grupos eram ligados a partidos políticos, a setores das Forças Armadas (tanto de alta

como de baixa patente), a empresas privadas e estrangeiras, a setores da Igreja Católica, a

estudantes e a movimentos operários e camponeses.

Tais crises políticas – à exceção, talvez, da que encerra o período - estão longe de

representar uma crise orgânica do bloco histórico instaurado em 19303. Dizemos que as crises são

de caráter político institucional porque neste período, apesar do Brasil estar inserido num contexto

de profunda desigualdade social e com problemas sérios de distribuição de renda e terra, o país não

atravessou sérias crises econômicas, com exceção àquela vivida a partir de 1963. As crises são,

portanto, “crises conjunturais”, que ao opor diferentes atores em torno de aspectos superficiais na

esfera política, deveriam tender ao esvaziamento. Não está estabelecido, portanto, que a

combinação de uma crise econômica com a crise política do inicio dos anos 1960 tornasse

inevitável o colapso da “Terceira República” e do pacto de dominação em que esta se sustentava.

2 Não é objetivo deste artigo discutir a fundo os conceitos de “conservador” e “liberal”. Mas consideramos importante deixar claro que, a despeito de suas semelhanças que possibilitam que estes convivam de maneira relativamente pacífica no Brasil, existem diferenças importantes entre os dois conceitos que precisam ser apontadas. Ambos partem do principio da crença do sistema capitalista como o modelo ideal para a sociedade, tendo como elementos básicos a defesa da propriedade privada, a livre iniciativa e o mercado laissez-fair. Além disto, tanto conservadores, quanto liberais, colocam-se diametralmente contra as doutrinas socialistas. Entretanto, os ditos conservadores se remetem também a valores considerados “tradicionais” com forte teor moral e religioso, muitas vezes exprimindo um discurso autoritário, antidemocrático e, pelo menos no Brasil, não tão avessos a intervenções estatais quando estas possam ser utilizadas para a manutenção do status quo. Já no caso dos liberais, num sentido mais amplo, estes se preocupam com questões acerca de valores iluministas, como os direitos e liberdades individuais, os direitos civis, o Estado de direito, a divisão dos Poderes e a democracia representativa. 3 PORTELLI, H. Gramsci e o bloco histórico, São Paulo: Paz e Terra, 1983.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 162

José Serra observa que a crise econômica do início dos anos 1960 representava uma crise cíclica,

típica de uma ordem capitalista consolidada, o que se verificara, no Brasil, em meados da década

anterior, com a implantação da indústria pesada4.

Não se trata de negar o crescente antagonismo entre o projeto nacional-estatista e as

perspectivas que defendiam o aprofundamento do desenvolvimento capitalista no Brasil a partir do

incremento da associação com o capital estrangeiro. São relevantes para a elucidação da crise do

início da década de 1960 as contradições que se avolumam no interior da aliança que sustentou os

governos liderados pela coalizão getulista, seja por força da acentuação da participação dos

trabalhadores urbanos e a emergência política dos trabalhadores rurais, seja pela deserção crescente

dos setores agrários e a aproximação do empresariado industrial do pólo liberal conservador, em

virtude tanto da intensificação da associação entre empresas brasileiras e multinacionais, quanto do

temor à ameaça comunista, num contexto de Guerra Fria. O que se pretende enfatizar é que tais

circunstâncias não deveriam conduzir necessariamente à saída golpista, se preponderassem

condições que favorecessem a colaboração – e não a desconfiança recíproca permanente – entre os

atores políticos.

Na verdade, durante todo o período, o Brasil atravessou um constante quadro de

crescimento econômico. De posse de indicadores como o PIB, entre os anos de 1946 e 1963, a taxa

de crescimento anual da economia brasileira foi, em média, de 7,1%, o que representa uma taxa

bastante dilatada se comparada com a taxa de crescimento do PIB durante as décadas de 80 e 90 do

mesmo século, que foi de apenas 2,1%5. Se recuarmos ainda mais sobre período republicano,

segundo o economista e professor da UFRJ Reinaldo Gonçalves, o Brasil vinha apresentando uma

taxa de crescimento ininterrupto maior que a média mundial desde 1939. Mesmo no conturbado ano

de 1961, o Brasil crescera 4,6% acima da média mundial6.

Mas este mesmo desenvolvimento econômico foi marcado por um período de crescimento

inflacionário. Durante toda a década de 40 a inflação acumulada foi de 13%, saltando para 21% na

década de 507. Mas se novamente compararmos estas taxas de crescimento do PIB e de inflação

com as taxas das décadas de 80 e 90 até 1995 (inflação de 605% e 1270% respectivamente),

perceberemos facilmente que, economicamente, as décadas de 40 e 50 foram marcadas por um

quadro extremamente mais estável e sustentável8.

4 SERRA, José. Ciclos e Mudanças Estruturais na Economia Brasileira de Após-Guerra in Revista de Economia Política, Vol 2/2, Número 6, abril-junho, 1982. 5 GREMAUD, Amary Patrick, et alli. Economia Brasileira Contemporânea. São Paulo: Atlas, 2002, p. 326. 6 UTZERI, Fritz. País na ‘segundona’ do crescimento. http://www.abi.org.br/colunistas.asp?id=407. Acessado em 11 de março de 2007.7 Idem, ibidem, p. 333. 8 Idem, ibidem.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 163

Apenas em 1963, a crise institucional foi simultânea com aquela que se configurou como a

primeira crise econômica brasileira em sua fase industrial. Neste ano, em virtude do desequilíbrio

gerado pelo Plano de Metas do governo Kubitscheck e pela instabilidade política advinda da

renúncia de Jânio Quadros em 1961, o crescimento do PIB (Produto Interno Bruto) foi de apenas

0,6%, aliado a uma inflação de 72,6% e uma queda de -0,2% a produção industrial9. O resultado

social foi um quadro de inúmeras greves (430 nos três primeiros anos10), aumento do desemprego e

do custo de vida, que custou ao governo de João Goulart parte de seu apoio junto aos trabalhadores

urbanos e rurais. O quadro de instabilidade se confirma com o alto índice de inflação em 1964, que

atingiria os 90%.

A economia brasileira também apresentou transformações no perfil dessas atividades

econômicas com o avanço da industrialização. Se em 1950, a indústria representava

aproximadamente 25% do PIB, em 1963 ela girava em torno de 35%, em detrimento da

agropecuária que cairia de 25% para aproximadamente 15% no mesmo período11. Essa

transformação da economia brasileira é coerente com a crescente urbanização da população, que

saltaria de 31,24% em 1940 para 55,92% em 196012.

Tal industrialização, aliada à maior urbanização da população brasileira, proporcionou

mudanças nas relações políticas entre setores da sociedade, como o crescimento do movimento

operário aliado a partidos políticos como o Partido Comunista Brasileiro (PCB) e o Partido

Trabalhista Brasileiro (PTB). Contudo, temos que destacar que o êxodo rural e o declínio da

participação da agropecuária no PIB não mantiveram a estagnação nos movimentos sociais ligados

ao campo, muito pelo contrário. O aparecimento das Ligas Camponesas de Francisco Julião em

meados dos anos 50 no nordeste brasileiro demonstra que a politização de setores da sociedade

brasileira no período aumentara fora dos grandes centros urbanos.

3. ORIENTAÇÃO ECONÔMICA DOS GRUPOS POLÍTICOS NO BRASIL DO PÓS-1945

Conforme afirmamos, se as crises institucionais brasileiras no período não foram marcadas

por acentuadas e longas crises econômicas, elas foram fomentadas e vividas por setores da

sociedade que se organizavam em tornos de projetos econômicos distintos. Como Bielschowsky 9 Idem, ibidem, p. 385. 10 TOLEDO, Caio Navarro. 1964: Golpe contra as reformas e a democracia. In: REIS, Daniel Aaarão, Marcelo Ridenti e Rodrigo Patto Sá Motta (orgs). O golpe e a ditadura militar: 40 anos depois (1964-2004). Bauru: EDUSC, 2004, p. 71. 11 GREMAUD, Amary Patrick. Op. cit., p. 28. 12 Idem, ibidem, p. 333.

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descreve, as principais correntes do pensamento econômico no Brasil entre 1945 e 1964 foram as

chamadas “Neoliberal” (também designada simplesmente como “Liberal”), “Desenvolvimentista” e

“Socialista”13.

De maneira bastante resumida, definimos a corrente Liberal como aquela que defendia um

equilíbrio financeiro e monetário, diminuindo os gastos públicos para controle da inflação. Defendia

nesse sentido, medidas que visassem à diminuição de impostos e a não intervenção Estatal na

economia, admitindo, contudo, uma discreta participação para ajustes em caso de deformações

comuns em economias subdesenvolvidas. A corrente Liberal, além de ser evidentemente anti-

socialista, era antinacionalista e antitrabalhista e defendia ainda a entrada livre de capitais

estrangeiros no Brasil e o livre comércio.

A corrente dita Desenvolvimentista, principal corrente econômica no Brasil no período pós-

Revolução de 1930, segundo Bielschowsky, pode ser dividida em três grupos: uma ligada ao setor

privado, e duas ligadas ao setor público. A ligada ao setor privado era antiliberal e admitia a

participação do Estado na economia como financiador e parceiro do processo de industrialização.

Uma das correntes ligadas ao setor público, mesmo sendo Desenvolvimentista, não era

necessariamente nacionalista, aceitando a entrada de capital estrangeiro associado ao capital público

e privado. Uma outra do setor público, era nacionalista, sobretudo àquelas atividades econômicas

ligadas aos chamados “setores estratégicos”, como os de mineração, petróleo e recursos hídricos. A

corrente Desenvolvimentista era fundamentada por núcleos de intelectuais e de estudos econômicos,

tendo como destaque o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) que seguia a tradição da

Comissão Econômica para América Latina e Caribe (CEPAL).

A última delas, a corrente Socialista, também com representantes do ISEB, é aquela

comprometida com a socialização dos meios de produção e o fim da propriedade privada. Porém,

no período estudado, ela assumiu um caráter nitidamente desenvolvimentista e nacionalista e

terminantemente contrária à entrada de capital estrangeiro14.

Todavia, essas correntes não eram estanques. Em alguns momentos, tanto a corrente

Desenvolvimentista relacionava-se com a Liberal – no que tange à manutenção do desenvolvimento

e consolidação do capitalismo industrial no Brasil – como também se relacionava com a corrente

Socialista em questões nacionalistas e reformistas, como a Reforma Agrária, e em defesa de direitos

e garantias Trabalhistas.

Segundo Bielschowsky, o Nacionalismo foi o principal tema político e econômico dos anos

50 no Brasil. A questão da exploração do Petróleo, por exemplo, contou não apenas com um intenso

13 BIELSCHOWSKY, Ricardo. Pensamento Econômico Brasileiro: o ciclo ideológico do desenvolvimentismo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000, p. 33-34. 14 Idem, Ibidem.

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debate político, como também atingiu a imprensa e a sociedade como a campanha nacionalista “O

Petróleo é Nosso” que mobilizou diversos setores da sociedade civil em torno do projeto. Esse

debate também esteve presente dentro das Forças Armadas, através de grupos antagônicos que se

alinhavam em torno de projetos políticos, econômicos e estratégicos. Neste período de Guerra Fria,

o setor militar defensor de um alinhamento ideológico e político aos EUA também foi o mesmo a

seguir a corrente Liberal na economia, que defendia a participação do capital estrangeiro, inclusive

na questão do Petróleo, o que acabou lhe rendendo a pecha de “entreguista” junto à esquerda.

Porém, ao mesmo tempo em estes militares defendiam um Estado pouco atuante no

planejamento e na intervenção econômica, o mesmo grupo defendia um governo central forte e

autoritário, com severas restrições à participação política de setores populares, seguindo aquilo que

José Murilo de Carvalho destacou como “tenentismo de Juarez Távora”15. Este grupo, reunido em

torno da Escola Superior de Guerra (ESG), contou, além de Juarez Távora, com Golbery do Couto e

Silva, Humberto de Alencar Castelo Branco e Bizarria Mamede. Formada por oficiais intelectuais,

que receberiam o apelido de “Coronéis da Sorbonne” (a maioria fez curso na Escola Superior de

Guerra Francesa)16 a ESG buscava propor “projetos para o Brasil”. Por exemplo, já no primeiro

número da Tribuna da Imprensa, em 27 de dezembro de 1949, começou a ser publicada uma série

de pequenos artigos acompanhados por quadros explicativos, sob o título “Um projeto para o

Brasil”, de autoria de Juarez Távora. Nestes quadros, Távora, de maneira didática, discutia e

apontava os principais “gargalos” para o desenvolvimento do Brasil e propunha soluções, sempre

seguindo a doutrina liberal e modernizadora.

Para aqueles oficiais que colocaram a luta ideológica como sua principal bandeira, a chapa

denominada Cruzada Democrática foi a resposta aos setores “esquerdistas” dentro das Forças

Armadas nas disputas pelo controle do Clube Militar. A vitória do grupo nacionalista em 1950,

encabeçado pelo General Newton Estillac Leal, iria acirrar ainda mais a divisão ideológica dentro

das Forças Armadas. Em maio de 1955, com a morte de Leal, então no cargo de Inspetor Geral do

Exército, o General Zenóbio da Costa assumiria seu posto e a liderança da ala nacionalista do

Exército. Seu gabinete formaria o Movimento Militar Constitucionalista (MMC)17 que seria de

grande importância na resistência à articulação golpista da União Democrática Nacional (UDN) e

da ESG na eleição presidencial de 1955, e seria a principal articuladora do golpe preventivo

comandado pelo Ministro da Guerra, Henrique Teixeira Lott em 11 de novembro18.

Mas, é necessário deixar claro que a maioria dos oficiais das Forças Armadas, a despeito de

naturalmente terem suas convicções políticas e ideológicas individuais, não fazia parte de qualquer

15 CARVALHO, José Murilo. Forças Armadas e Política no Brasil. Op. cit., p. 130. 16 WILLIAM, Wagner. O Soldado Absoluto, uma biografia do Marechal Henrique Lott. RJ: Record, 2005, p. 22. 17 Idem, Ibidem, p. 58. 18 Idem, ibidem, p. 123 -124.

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movimento político, assumindo como sua principal obrigação a defesa da hierarquia, da disciplina e

da legalidade. O próprio General Henrique Lott, nomeado para o Ministério da Guerra por Café

Filho, logo após o suicídio de Vargas, fazia parte desse grupo de oficiais legalistas e profissionais

que não tinham por vocação, a política. Segundo Wagner William, Lott só assumiria uma postura

nitidamente política durante o governo Kubitscheck, quando, ainda Ministro da Guerra, passou a

defender o nacionalismo (mas sem abandonar seu anticomunismo baseado em critérios cristãos),

sendo inclusive candidato à presidência da República em 196019.

Nos partidos políticos, de maneira geral, podemos dizer que a UDN e o PCB (mesmo na

clandestinidade) eram as faces mais definidas na divisão do pensamento econômico, representando

os defensores das correntes Liberal e Socialista, respectivamente. O PTB era majoritariamente

Desenvolvimentista, mas a sua aproximação com o PCB no final dos anos 50 e início dos anos 60

rendeu-lhe um caráter reformista que se aproximava das demandas socialistas. O Partido Social

Democrata (PSD) era o partido com posições mais fluidas, transitando entre o Liberalismo e o

Desenvolvimentismo, mas raramente adotava bandeiras Socialistas, a não ser aquelas que eram

divididas com o PTB, ou seja, Trabalhistas.

Entretanto, assim como destaca Lucilia de Almeida Neves Delgado, no politicamente

dinâmico final dos anos 50, começam aparecer “frentes parlamentares” alinhadas a diferentes visões

econômicas, políticas e sociais, as quais eram formadas por parlamentares de diversas legendas

partidárias para garantir ou evitar mudanças, sobretudo constitucionais, o que representa dizer que

os partidos não detinham o monopólio ideológico sobre cada demanda20.

Dentre essas frentes parlamentares, destacou-se, para o lado nacionalista e progressista, a

Frente Parlamentar Nacionalista (FPN) cujas atividades compreenderam os anos de 1956 e 1964.

Formada principalmente por deputados do PTB, a FPN ligou-se à sociedade civil através de

entidades de caráter reformista como a União Nacional dos Estudantes (UNE), Confederação Geral

dos Trabalhadores (CGT) e as Ligas Camponesas. Sua orientação ideológica e econômica era

fortemente ligada ao ISEB, sobretudo à ala nacional-desenvolvimentista. Além da defesa do

nacionalismo e da participação estatal na gerência da economia brasileira, a FPN também se

destacou como uma das principais defensoras do legado Trabalhista, lutando pela sua ampliação e

pelas Reformas de Base durante o governo de João Goulart21.

19 Idem, Ibidem. Passim. 20 DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. Partidos Políticos e frentes parlamentares: projetos, desafios e conflitos na democracia. In: FERREIRA, Jorge e DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (org.) O Brasil Republicano, o tempo da experiência democrática. Op. cit., p. 147-149. 21 Idem, ibidem, p. 150.

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No lado liberal-conservador, tivemos a Ação Democrática Parlamentar (ADP ou ADEP),

nascida em setembro de 196122, formada por deputados da UDN, PR (Partido Republicano), PDC

(Partido Democrata Cristão), e do PSD, mas também contando com alguns deputados dissidentes do

PTB23.

A ADP era ligada ao Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), criado em 1959,

patrocinado por empresas nacionais e estrangeiras como uma organização anticomunista, que

financiaria diversos políticos da ADP nas eleições de 1962. Junto com o Instituto de Pesquisas e

Estudos Sociais (IPÊS), criado em 1962, o IBAD financiou, produziu e divulgou vários programas

radiofônicos, televisivos, campanhas publicitárias, folhetos, palestras, eventos, cursos e matérias

jornalísticas com conteúdo fortemente anticomunista, conservador e moralista, em defesa da dita

“civilização ocidental e cristã”, conseguindo assim apoio de setores da Igreja Católica. Aliado ao

complexo IPÊS-IBAD, nasceram outras agremiações civis de cunho político anticomunista como a

União Cívica Feminina e a Campanha da Mulher pela Democracia (CAMDE)24.

4. CARLOS LACERDA, UM LIBERAL-CONSERVADOR DE ARROUBOS

NACIONALISTAS E DESENVOLVIMENTISTAS

O lacerdismo não se destacou por propor profundos debates acerca da condução econômica

do Brasil. Seu discurso era pautado principalmente na defesa do moralismo ascético na

administração pública, no seu antiesquerdismo, no antigetulismo e na defesa dos valores morais

cristãos.

Evidentemente, no que diz respeito ao seu posicionamento econômico – que como

acabamos de afirmar na primeira parte deste artigo, era o maior delimitador de grupos políticos na

época –, sua proximidade ideológica e política com os liberais da UDN e com os militares da Escola

Superior de Guerra (ESG), sobretudo a Aeronáutica, colocaram Carlos Lacerda e os lacerdistas

junto aos ditos “liberal-conservadores”: defensores da propriedade privada, da livre iniciativa, da

redução do Estado nas atividades econômicas, da entrada de capital estrangeiro e da incondicional

inserção do Brasil no mundo ocidental capitalista alinhado aos EUA.

22 Idem, ibidem, p. 149-152. 23 Ação Democrata Parlamentar, suplemento especial da Revista Ação Democrática, março de 1962, p. 21-23. 24 DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. Partidos Políticos e frentes parlamentares: projetos, desafios e conflitos na democracia. In: FERREIRA, Jorge e DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (org.) O Brasil Republicano, o tempo da experiência democrática. Op. cit., p. 150-151.

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Apesar de ter marcado sua atuação política entre setores liberais e conservadores, é

importante ressaltar o passado “esquerdista” do jovem Carlos Lacerda. Sua rápida passagem pela

Aliança Nacional Libertadora (ANL) e pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB) nos anos 30

(nunca foi oficialmente filiado) terminou com um rompimento traumático em 1939. Lacerda, que

desde 1938 trabalhava como jornalista para as revistas Observador Econômico e Financeiro e para

a revista Diretrizes (de seu futuro inimigo político e pessoal, Samuel Wainer), publicou um artigo

encomendado pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) do Estado Novo intitulado “A

Exposição Anticomunista” publicado na revista Observador Econômico e Financeiro, nº. 36, de

janeiro de 1939.

A matéria gerou uma séria acusação de delação e traição por parte de seus antigos amigos e

companheiros de ANL. Esse rompimento faria com que, segundo Marina Gusmão, esse evento

fomentasse um grande rancor e um sentimento de revanche contra os comunistas25. Décadas mais

tarde, em seu Depoimento, Lacerda ainda lembrava com rancor do acontecido:

Essa é uma fase realmente muito triste da minha vida, porque amigos de infância, amigos de todo dia, amigos de café, amigos de confidência, amigos desde os tempos de namoro, amigos de tomar chope [...] me voltavam a cara na rua.26

Desde então, já durante o Estado Novo e trabalhando para Assis Chateaubriant no Diário

Carioca e posteriormente na Agência Meridional, Lacerda dá a sua “guinada para a Direita” e passa

a professar a orientação liberal na política e na economia. Ao filiar-se à UDN ao final da Ditadura

Vargas no início de 1945, Lacerda apóia com entusiasmo a candidatura do Brigadeiro Eduardo

Gomes, deixavando claro que sua opção política inicial seria aquela que assumiria o antigetulismo

como principal bandeira. Mas do antigetulismo radical inicial, Lacerda logo se colocaria também

contra o nacionalismo e o trabalhismo. As ligações do PTB e dos nacionalistas com setores da

esquerda, dentre eles o PCB, como aconteceu durante o Movimento Queremista em 1945, também

reafirmariam em Carlos Lacerda o seu antiesquerdismo.

Conforme dissemos, a ESG tornou-se um núcleo intelectual importante na formação de

quadros, militares ou civis, em torno do ideário liberal e anticomunista. A ligação própria de Carlos

Lacerda com os Militares, após o Estado Novo, ficou fortalecida tanto na prática, como no

imaginário popular, com seu apoio às candidaturas do Brigadeiro Eduardo Gomes, do General

Juarez Távora em 1955 (pelo PDC, mas com o apoio da UDN), e com a trágica morte do Major-

aviador Rubem Vaz no atentado da Rua Tonelero.

A amizade pessoal de Lacerda com o General Canrobert Pereira da Costa - membro da

Cruzada Democrática27, presidente do Clube Militar (1954-1955), chefe do Estado-Maior das

25 Idem, ibidem Op. cit., p. 44-56. 26 LACERDA, Carlos. Depoimento. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978, p. 49-50.

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Forças Armadas durante o governo Café Filho e um dos líderes do “Manifesto dos Generais” que

pediu a renúncia de Vargas em agosto de 1954 -, seria notória e destacada nos editoriais na Tribuna

da Imprensa28.

Seria com a criação da Escola Superior de Guerra em 1949 que o Exército, sobretudo sua

linha mais conservadora, iria criar maior consciência e organização política29. Em 1954, o General

Juarez Távora, então na direção da ESG, assinala que os cursos oferecidos pela instituição estavam:

[...] iniciando passos decisivos, [para] constituir-se um centro de entrosamento efetivo de nossa elite, civil e militar, preparando-lhes os caminhos por que poderia conduzir o Brasil aos rumos político-administrativos que, por circunstâncias várias, se abririam, para o país, dez anos mais tarde, em 196430.

Dentre os participantes civis do Curso Superior de Guerra, ou Curso Superior de Segurança

Nacional iniciado em março de 1954, estava o jornalista Carlos Lacerda, indicado pela Associação

Brasileira de Imprensa31. Os cursos ministrados pela ESG, orientados pela doutrina de Segurança

Nacional, geralmente eram de caráter anticomunista, antinacionalista e preventivo a agitações

contra a ordem interna, características encontradas tanto no discurso da UDN como no

lacerdismo32.

Mas a ligação de Carlos Lacerda com os militares não se baseou somente em sua rede de

alianças pessoais. Segundo o General Octávio Costa, em depoimento cedido a Maria Celina

D’Araujo e Gláucio Soares, naquele período, muitos militares tinham “fascínio” por Carlos

Lacerda: “As Forças Armadas ainda eram messiânicas [...] Preocupam-se em salvar o país. E elas

sempre foram muito sensíveis ao moralismo [...] Lacerda era um dos espadachins do moralismo”33.

Marcando sua posição “antifascista”, anos depois, o fenômeno Peronismo na Argentina

durante os anos 50 – que também era identificado por grande parte dos liberais brasileiros como um

regime fascista e “populista” (assim como fôra o Estado Novo segundo estes críticos) –, seria outro

alvo das críticas e acusações de Lacerda contra Getulio Vargas e João Goulart, alimentando a

oposição com supostas conspirações contra a pátria em favor de um acordo secreto com o regime

argentino. De fato, o antinacionalismo de Lacerda e da Tribuna da Imprensa, era

primordialmente identificado como um discurso para atingir Vargas e seus aliados, e não uma

doutrina econômica seguida pelo jornalista.

27 Movimento organizado em 1952 por militares conservadores antigetulistas com o objetivo de derrotar a vertente nacionalista dentro do Clube Militar. 28 LACERDA, Carlos. Depoimento. Op. cit. , p. 155. 29 MARTINS FILHO, João Roberto. Op. cit. p. 105. 30 TÁVORA, Juarez. Uma vida e muitas lutas - Memórias. Vol. 2, Rio de Janeiro: BIBLIEX1976, p. 233. 31 Idem, ibidem. 32 MARTINS FILHO, João Roberto. Op. cit. p. 121. 33 D’ARAUJO, Maria Celina; SOARES, Gláucio Dilon; CASTRO, Celso. Visões do Golpe. A memória militar de 1964. São Paulo: Ediouro, 1994, p. 81-82

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Em assuntos econômicos, percebemos que Lacerda adotava discursos não tão rígidos e que,

portanto, variavam de acordo com o contexto. Na realidade, a despeito de sua ligação política e

ideológica com os Liberais, Lacerda apresentava “arroubos” nacionalistas e desenvolvimentistas.

Seja ainda como jornalista nos anos 50, seja no cargo de governador do Estado da Guanabara nos

anos 60, em determinados momentos Lacerda iria defender iniciativas “não liberais” para a

condução da economia.

O episódio mais emblemático de tais “surtos” nacionalistas é aquele que diz respeito ao

Projeto do Petróleo. No final do governo Dutra, Lacerda pediu sua demissão do jornal Correio da

Manhã (onde assinava a coluna “Na Tribuna da Imprensa”) em maio de 1949 em função dos atritos

provocados por vários de seus artigos agressivos34 contra dois grupos interessados na questão do

refino do petróleo no Brasil: o Peixoto de Castro e o Soares Sampaio (representante do Grupo

Gulf). Os Soares Sampaio, cuja família era amiga íntima de Paulo Bittencourt, proprietário do

jornal que chegou inclusive a censurar alguns artigos35. Na ocasião Lacerda defendia um possível

monopólio estatal caso o processo de licitação e abertura ao capital privado não fosse totalmente

claro: “Eu sustentava que ou se abria uma concorrência pública para as refinarias ou se fazia as

refinarias estatais”36.

Já no segundo governo Vargas, a UDN e a Tribuna da Imprensa de Lacerda colocaram-se

radicalmente contra o projeto apresentado pelo presidente em relação a uma possível participação

de capital estrangeiro na produção petrolífera brasileira, acusando-o de ser, inclusive, “entreguista”.

Sobre isso, em 7 de setembro de 1951, o jornal de Lacerda estampava na primeira página: “Colossal

Mistificação a Fórmula Vargas sobre o Projeto do Petróleo”. No artigo da página quatro, de autoria

de Lacerda, encontramos um discurso bastante estranho à tradição udenista: “O Sr. Getúlio Vargas

conseguiu esta perfeição: o povo vai ajudar os trustes estrangeiros a montarem o seu negócio com

petróleo brasilero”37.

Segundo Ana Maria de Abreu Laurenza, essa postura “antiliberal” de Lacerda e da UDN era

motivada não só pelo apelo popular do projeto nacionalista em torno do projeto do Petróleo, mas

também pela vontade de manter uma inflexível e radical oposição a tudo aquilo que fosse iniciativa

do governo federal38.

O “desenvolvimentismo” do governo Juscelino Kubitscheck – que sofrera pesadas críticas e

acusações de corrupção através da Tribuna da Imprensa e em sua atuação como deputado federal

no Congresso Nacional –, recebeu elogios (mesmo que de maneira velada) de Carlos Lacerda em

34 MENDONÇA, Marina Gusmão de. Op. cit., p. 100. 35 Apesar da demissão, Lacerda conseguiu os direitos sobre o título “Na Tribuna da Imprensa”. 36 LACERDA, Carlos. Depoimento. Op. cit., p. 74. 37 Tribuna da Imprensa, 07/11/1951. 38 LAURENZA, Ana Maria de Abreu. Op. cit., p. 113.

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suas memórias: “A verdade é que com desenvolvimento ‘às caneladas’ ou não, o governo do

Juscelino, com a criação, por exemplo, da industria automobilística, tinha começado a dar uma

grande esperança no Brasil”39.

A administração de Carlos Lacerda no Estado da Guanabara, entre 1961 e 1965, foi marcada

por uma pesada participação estatal na infra-estrutura do Estado. A historiografia tradicional acerca

do governo Lacerda aponta que as inúmeras obras realizadas foram possíveis graças à “Lei San

Tiago Dantas” que destinaria novas verbas e obrigações federais a título de compensação pela perda

da capital federal para Brasília40 e aos Empréstimos da “Aliança para o Progresso” do governo dos

Estados Unidos da América que destinaria verbas aos países a fim de barrar a penetração comunista

na América Latina41. Além destas duas fontes, são comuns as referências a um severo aumento da

carga tributária no Estado e a uma suposta ajuda do governo Castelo Branco nos anos seguintes ao

golpe de 196442.

Maurício Dominguez Perez, abordando a administração de Carlos Lacerda no Estado da

Guanabara, refuta essa visão tradicional da historiografia. Baseado em vasta documentação de

origem técnica e administrativa, afirma que apenas 5% das verbas gastas nas obras do governo

vieram de empréstimos estrangeiros43. A pesquisa também mostrou, de maneira surpreendente, que

durante o governo Castelo Branco as verbas repassadas à Guanabara foram menores do que as feitas

durante o governo Goulart44, e que a nova “dupla tributação” não representou nenhum aumento

efetivo, já que ela era praticada desde os tempos de Distrito Federal45. Derrubando as versões

tradicionais, Maurício Dominguez explica que as fontes das verbas foram possíveis graças a uma

profunda reestruturação na administração da cidade46, a melhoria substancial no combate a

sonegação de impostos e modernização da fiscalização fazendária47, o aumento da “taxa da água”

(que não apresentava qualquer reajuste desde 1947)48 e do Imposto de Verbas e Consignação

(IVC)49. Dominguez aponta que mesmo feito esses aumentos nas taxas, o Estado continuou tendo

uma das menores cargas tributárias do país50. O Banco do Estado da Guanabara, substituindo o

39 LACERDA, Carlos. Depoimento. Op. cit., p. 230. 40 MOTTA. Marly Silva da. Saudades da Guanabara. Rio de Janeiro: FGV, 2004, p. 59-60. 41 Idem, ibidem. 42 PEREZ, Maurício Dominguez. Lacerda na Guanabara. A reconstrução do Rio de Janeiro nos anos 1960. Rio de Janeiro: Odisséia Editorial, 2007, p. 132-142. 43 Idem, ibidem, p.144. 44 Idem, ibidem, p.140. 45 Idem, ibidem, p.135. 46 Idem, ibidem, 142-145. 47 Idem, ibidem, 143. 48 Idem, ibidem, p. 130-131. 49 O IVC correspondia ao atual ICMS, sendo, portanto, a principal fonte arrecadadora do Estado. 50 Idem, ibidem, 143.

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antigo Banco da Prefeitura, também é apontado como um importante fator de financiamento para as

obras do governo51.

De posse desses recursos e de uma equipe formada de técnicos, Lacerda iniciou um “Plano

de Ação” que abrangia enormes e onerosas obras públicas, além da criação de diversas estatais e

autarquias como a Superintendência de Urbanização e Saneamento (Sursan), o Departamento de

Estradas e Rodagem (DER), a Superintendência de Serviços Médicos (Suseme), o Banco do Estado

da Guanabara (BEG), a Companhia de Progresso do Estado das Guanabara (Copeg), a Companhia

Estadual de Telefone (Cetel), a Companhia de Habitação (COHAB) e a Companhia de Transportes

Coletivos (CTC). Lacerda empenhou-se também num verdadeiro “Plano de Metas” de vultosos

investimentos estatais aos moldes desenvolvimentistas de Juscelino Kubitscheck: a ampliação do

sistema escolar, o abastecimento de água e a ordenação do espaço urbano (a polêmica política de

remoção de favelas).52

Seguindo agora uma cartilha desenvolvimentista, Lacerda apostaria na criação de duas zonas

industriais: uma ao longo da Avenida Brasil, e outra em Santa Cruz, onde era prevista a instalação

de indústrias pesadas, como a Companhia Siderúrgica da Guanabara (COSIGUA), considerada pelo

próprio Lacerda como a “menina dos meus olhos, porque eu só acreditava na viabilidade econômica

da Guanabara como Estado, se ela tivesse uma industria de base que servisse de espinha dorsal para

sua industrialização”53. Sobre o parcial fracasso dessa iniciativa estatal, Lacerda lamenta em

depoimento:

[...] tínhamos desapropriado 600 hectares de terra junto à Base Aérea de Santa Cruz para implantar ali a zona industrial do Estado. Eu queria fazer lá a COSIGUA, que afinal só foi feita [...] quando o grupo Gerdau, de Porto Alegre, se associou ao grupo Thyssen. Conseguimos trazer o terminal da Central do Brasil até lá e também a licença para fazer o porto [de Sepetiba], mas não conseguimos fazer a COSIGUA. Primeiro porque acabou o governo, segundo, porque, com aquelas lutas todas, evidentemente o Governo Federal ficou contra54.

Ainda durante o governo João Goulart, o governador Lacerda teria novamente um “arroubo”

nacionalista. Desta vez, em relação à Light & Power Company, que além de eletricidade, prestava

serviços de telefonia nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo55. O próprio Lacerda em suas

memória atesta que chegou a ameaçar Antonio Gallotti, presidente da Light no Brasil, com um

decreto de desapropriação da Companhia Telefônica da Light, caso esta não melhorasse o serviço

telefônico. Lacerda diz também em suas memórias que a desapropriação só não foi consumada por

51 Idem, ibidem, 144. 52 MOTTA. Marly Silva da. Op. cit., p. 58. 53 LACERDA, Carlos. Depoimento. Op. cit., p. 306. 54 Idem, ibidem, p. 232-233. 55 A partir de um “consórcio alemão”, a Light adquire também concessões de serviço telefônico, passando a controlar as comunicações nas duas principais cidades do país, Rio de Janeiro e São Paulo até o ano de 1966, quando passa o serviço para o governo federal. In: Site do Grupo Light. Acessado em 18 de março de 2007. <http://www.light.com.br/web/institucional/cultura/seculolight/teseculo.asp?mid=8687942772267226>

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uma manobra política de Gallotti com o governo federal por intermédio do Ministro San Tiago

Dantas que acabou federalizando a questão telefônica no Brasil56.

Logo após o golpe civil-militar de 1964, Lacerda teria novamente um arroubo nacionalista,

que não seria o último, no mesmo ano e que o afastaria cada vez mais dos “revolucionários”. A

primeira crítica foi um protesto público contra o decreto presidencial de Castelo Branco que

devolvia refinarias de petróleo aos antigos proprietários57. Estas haviam sido desapropriadas por

João Goulart durante o comício da Central em 13 de maio de 1964.

Ainda neste contexto identificamos um outro momento nacionalista de Lacerda. Desta vez,

criticando o Plano de Ação Econômica do Governo (PAEG)58 elaborado pelo Ministro do

Planejamento e Coordenação Econômica do governo Castelo Branco, Roberto Campos, Lacerda

adotaria novamente uma postura nacionalista, sobretudo na defesa de diversas siderúrgicas pelo

país, e até mesmo uma “cartilha heterodoxa”, que admitia a manutenção de índices moderados de

inflação para garantir o desenvolvimento econômico59.

Em artigo defendendo sua candidatura à presidência em 1965, Lacerda ataca Roberto

Campos e adota um discurso nacionalista, talvez acenando ao eleitoral Trabalhista:

É pena que se julgue que a revolução foi para o Fundo Monetário Internacional, contra o qual nada temos, mas que também nada tem com o Brasil. Estimaria que os círculos financeiros de Nova Iorque estivessem menos satisfeitos com a nossa revolução, e os trabalhadores de São Bernardo do Campo mais confiantes nela60.

É importante ressaltar que ao mesmo tempo em que critica Roberto Campos por não destinar

apoio governamental à indústria nacional e as novas siderúrgicas estatais, Lacerda entra em

contradição ao acusar o Ministro do Planejamento de promover com o PAEG uma “planificação

estatista” da economia brasileira, assumindo novamente um discurso liberal lembrando que aqueles

“tecnocratas” nada mais eram do que “autores do Plano de Metas do governo Kubitschek”61. Chega

a ser curioso o então governador da Guanabara usar estes termos para atacar os idealizadores do

56 Idem, ibidem, p. 385-386. 57 LACERDA, Cláudio. Carlos Lacerda e os anos sessenta: oposição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p. 117. 58 O PAEG tinha como principais objetivos: (i) a retomada do crescimento econômico, interrompido pela crise de 1962/1963, (ii) controle do processo inflacionário, (iii) diminuir as desigualdades regionais e setoriais do país, (iv) redução do desemprego, (v) inverter a tendência de déficit na balança de pagamentos. Para atingir tais metas, o PAEG previa corte de gastos governamentais, a manutenção de uma política de responsabilidade fiscal e abertura ao capital estrangeiro, mas sem, contudo, adotar uma política de redução fiscal no setor produtivo, um processo de privatizações de estatais e sem abandonar programas que previam uma forte intervenção estatal com investimentos em infra-estrutura e prestação de serviços. REZENDE, André Lara. A Ordem do Progresso. Cem anos de política econômica Republicana, 1889-1989. Rio de Janeiro: Campus, 1990, p. 213-215. 59 LACERDA, Carlos. Depoimento. Op. cit., p. 306. 60 LACERDA, Carlos. Por que sou candidato. Artigo de 7/11/1964, publicado na Revista Manchete. In: PICALUGA, Izabel Fontenelle. Partidos políticos e classes sociais: a UDN na Guanabara. Petrópolis: Vozes, 1980, p. 109. 61 No caso, pode-se argumentar também que Lacerda estava, de fato, expondo as contradições do Governo e do Ministro Roberto Campos.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 174

PAEG durante uma gestão que, conforme foi apontado por Marly Silva da Motta, também se propôs

a empreender um “Plano de Metas” com vultosos investimentos estatais62.

Durante os debates públicos em torno do PAEG, como a carta aberta endereçada ao

Presidente Castelo Branco em 17 de maio de 1965 e publicada sob forma de livro “Brasil, entre a

verdade e a mentira”63, Lacerda vai à televisão, em 18 de maio de 1965, e ataca frontalmente

Roberto Campos:

É preciso que alguém tenha a coragem de dizer, no Brasil de hoje – no qual o Ministério do Planejamento se tornou um superministério e seu ministro, de fato, primeiro ministro – que esse Ministério foi criado e teve cabimento exatamente para estatizar a economia brasileira e que, portanto, não faz sentido numa Revolução que veio para libertá-la dessa terrível ameaça. É preciso dizer: a planificação global da economia é incompatível com uma sociedade democrática, baseada na livre empresa64.

Ainda sobre suas críticas ao PAEG, Lacerda, criticava a “estatização” como forma de

combater a inflação:

O processo inflacionário, no Brasil, tem seu ponto central no elevado grau de estatização da

economia. O combate à inflação, portanto, tem de ser concentrado nos setores que não prejudicam a

produção e não, exatamente o oposto, como está fazendo o Governo. O governo reforça o setor

estatal da economia – mais de 50% e sempre crescendo. E enfraquece o setor livre a ponto de

estrangulá-la (sic)65

Roberto Campos, em sua autobiografia, comenta as críticas que o PAEG recebeu:

(...) Ao longo da gestação do PAEG, abriram-se duas controvérsias. Uma, de muito maior respeitabilidade, provinha das observações do professor Gudin66, que via na idéia do planejamento uma das grandes idiossincrasias da CEPAL: a propensão ao intervencionismo estatal e ao dirigismo planificador. Para Gudin, cultor da Escola Austríaca67, a ciência econômica não tinha outro propósito senão “explicar” as conseqüências não-intencionais da ação humana. [...]

A outra linha de objeção era de caráter político e seu arauto principal era o governador Carlos Lacerda. Especialista em criar bonecos de palha para depois destruí-los, Lacerda descrevia o PAEG como um “código de intervencionismo e dirigismo estatal”, aplicado a uma economia

62 MOTTA. Marly Silva da. Saudades da Guanabara. Rio de Janeiro: FGV, 2004, p. 59-60. 63 LACERDA, Carlos. Brasil entre a verdade e a mentira. Rio de Janeiro: Bloch, 1965. 64 LACERDA, Carlos. Apud. LACERDA, Cláudio. Op. cit., p. 121-122. 65 Idem, ibidem, p. 63. 66 Engenheiro de formação, Eugênio Gudin foi Ministro da Fazenda do Governo Café Filho e Vice-presidente da Fundação Getúlio Vargas na ocasião de suas críticas ao PAEG. Foi um dos maiores defensores do liberalismo econômico no Brasil. 67A chamada Escola Austríaca, desenvolvida a partir da década de 40 e 50 do século XX, é aquela formada por economistas neoclássicos conservadores, defensores daquilo que E. K. Hunt chamou de capitalismo de “laissez-faire extremado”. Defensores de uma radical redução do Estado e contra qualquer intervenção estatal na economia, inclusive em se tratando de políticas públicas previdenciárias e sociais, seus principais pensadores foram Ludwig von Mises e Friederich A. Hayek. Ambos lecionaram na Universidade de Chicago por vários anos, ajudando a formar uma geração de economistas que ficaria conhecida como “Chicago Boys” ou simplesmente, Escola de Chicago. Destes, o Nobel de Economia de 1976, Milton Friedman seria o economista mais influente para o Neoliberalismo dos anos 80 e 90. HUNT, E. K. História do Pensamento Econômico. Rio de Janeiro: Elsevier/Campos, 2005, p. 435-442.

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“socializante sem ser socialista, com um palavreado liberal e atos intervencionistas”. Achava o PAEG comprometido pelo vício original de tomar o complexo econômico, numa sociedade democrática, como algo que pode e deve ser objeto de um planejamento ou programa global. E pleiteava a adoção de uma “política de soluções práticas, adaptável às circunstâncias”. Em vez do planejamento, caberia perseguir um “oportunismo econômico”, capaz de aproveitar os fatores favoráveis que viessem a surgir e não sofrer, por sua rigidez, os desgastes dos fatores contrários. 68

Segundo Marina Gusmão, as criticas ao Ministro do Planejamento, chamado por Lacerda de

maneira pejorativa de “tecnocrata” era motivada por questões eleitoreiras. Virtual candidato da

UDN à presidência em 1965, Lacerda temia que o nome de Roberto Campo fosse indicado pelo

presidente Castelo Branco para ser o seu substituto69.

O fato de Lacerda ser um político que se posicionava como um liberal-conservador, mas que

tinha momentos de discursos nacionalistas e desenvolvimentistas não deixa de ser algo ordinário na

política brasileira. Raramente encontramos em setores da política brasileira um posicionamento

“fechado” em relação a qualquer uma das vertentes econômicas. Por exemplo, Getúlio Vargas, que

era comumente classificado com um nacionalista nato, nunca recusou ou deixou de ver com bons

olhos a entrada de capital estrangeiro para o desenvolvimento industrial.

Em relação a outros presidentes do período democrático, o mesmo pode ser dito em relação

a Eurico Dutra e a Juscelino Kubitschek. Nacionalismo, desenvolvimentismo com participação

estatal e abertura ao capital estrangeiro, várias vezes caminhavam de mãos dadas, variando de

intensidade de acordo com a conjuntura nacional e mundial.

O próprio presidente João Goulart, em entrevista a jornalistas estrangeiros na ONU,

enquanto explicava as recentes desapropriações de empresas americanas, deixava claro que

parceiros e investidores de outros países seriam bem-vindos ao Brasil desde que seus lucros fossem

“justos” e não representassem o “empobrecimento do país” 70. Longe de ser uma postura liberal,

essa posição de João Goulart não se aproximava em nada ao socialismo de que era acusado.

68 CAMPOS, Roberto, A Lanterna na Popa. Rio de Janeiro: Ed. Topbooks, 1a Edição, 2002, p. 620-621. 69 MENDONÇA, Marina Gusmão. Op. cit., p. 330-331. 70 De um trecho da entrevista proferida na ONU reproduzida no documentário “Jango”. Direção: Silvio Tendler, Brasil/RJ - 1984.

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O REGIME MILITAR, A PREVIDÊNCIA SOCIAL E O EMPRESARIADO

Ignacio Godinho Delgado*

Resumo: O artigo descreve as iniciativas dos governos militares brasileiros em relação à proteção social, conducentes, por um lado, à centralização burocrática do sistema previdenciário e à ampliação de sua cobertura, enquanto, na direção oposta, verifica-se o fortalecimento do setor privado na oferta de serviços sociais, notadamente a saúde. Apresenta, ainda, o posicionamento desenvolvido pelos empresários em relação à previdência social, num período em que esta já consolidara sua conversão ao regime de repartição simples, ao passo que a proteção social brasileira, como um todo, direciona-se no sentido de sua americanização. Palavras chave: regime militar, previdência social, empresariado. Abstract: The article describes the initiatives of Brazilian military governments in relation to social protection, leading, on one hand, to bureaucratic centralization of the pension system and broader coverage while, in the opposite direction, the private sector is strengthened in the offering of social services, especially health assistance. It also presents the position developed by the business sector in relation to the pension system, in a period in which it had already consolidated its conversion to a regime of simple partition, while Brazilian social protection, as a whole, headed towards Americanization. Keywords: military regime, welfare, business.

1. APRESENTAÇÃO

Neste artigo, apresentamos, num primeiro momento, as iniciativas tomadas pelos governos

militares em relação à previdência social, que conduzem, por um lado, à centralização burocrática

do sistema previdenciário e à incorporação de novos segmentos sociais à proteção social, enquanto

que, na direção oposta, verifica-se o fortalecimento do setor privado na oferta de serviços sociais,

notadamente a saúde. Em seguida, relatamos o posicionamento desenvolvido pelos empresários em

relação à previdência social, num período em que esta já consolidara sua transformação em direção

ao regime de repartição simples, ao passo que a proteção social brasileira, em seu conjunto,

direciona-se no sentido de sua americanização. O artigo encerra-se com um pequeno sumário das

questões tratadas e as considerações finais.

* Doutor em Sociologia e Política. Professor do Departamento de História e do Programa de Pós Graduação em História da UFJF.

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2. O REGIME MILITAR E A PREVIDÊNCIA SOCIAL

A instalação do regime burocrático-autoritário no Brasil, com a vitória do movimento de 31

de março de 1964, desfez os nós da paralisia decisória em que se enredara o governo Goulart no

crepúsculo da República Trabalhista. Para tanto, foram alteradas as regras do jogo político e

excluídos da cena atores de peso na situação anterior, notadamente o movimento operário. No plano

político, as cassações, intervenções em sindicatos, a limitação ao exercício pleno das franquias

democráticas, a restrição ao direito de greve e a reformulação do sistema partidário criavam o

cenário adequado para a efetivação de um programa de “racionalização” da vida econômica do país,

pavimentando o caminho para o aprofundamento daquilo que Fernando Henrique Cardoso e Enzo

Falleto chamaram, um dia, de desenvolvimento capitalista dependente e associado1.

As medidas iniciais tomadas pelo regime, ainda no governo Castelo Branco, sinalizavam a

direção que seria seguida. Eliminava-se a legislação referente à estabilidade no emprego e as

restrições à remessa de lucros das empresas, ao passo que eram impostos mecanismos de reposição

salarial essencialmente “técnicos”, que favoreciam o achatamento dos salários e reduziam a

possibilidade de os sindicatos, já manietados em sua capacidade de mobilização, recorrerem à

Justiça do Trabalho2. Simultaneamente, reorganizava-se o sistema financeiro brasileiro, com a

criação do Banco Central, a instituição da correção monetária, a definição de novos fundos de

investimento e a mudança nos mecanismos de financiamento do déficit do governo, por via da

tentativa de substituir o recurso às emissões pelo lançamento de títulos no mercado3. O sentido

1 CARDOSO, F. H. e FALLETO, E. CARDOSO, F.H. & FALLETO, E. Dependência e desenvolvimento na América Latina. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. As formulações de O’Donnel sobre o aprofundamento das economias latino-americanas, notadamente a brasileira que lhe serve de modelo, e sua relação com a instauração do “Estado Burocrático-autoritário” foram objeto de críticas variadas. José Serra demonstrou que o aprofundamento, associado à instalação de um departamento de bens de capital, não se inscreve nos objetivos perseguidos pelos primeiros governos militares no pós-64, enquanto Hirschman salientou que a adoção de políticas de racionalização, em alguns países da América Latina, não exigiu a instalação de regimes autoritários. De qualquer forma, é inegável, no Brasil, após 1964, o aprofundamento da industrialização pesada, com a expansão da produção de bens duráveis e da própria indústria de bens de capital, com o declínio da participação relativa dos bens de consumo leves na produção industrial. Consolida-se a base para a implantação, desta maneira, dos ramos industriais associados ao modelo fordista, ainda que a instalação deste, no Brasil, não venha conectado o predomínio da norma salarial fordista, caracterizada pela participação progressiva dos salários nos ganhos de produtividade das empresas, assegurada por contratos coletivos de trabalho. O’Donnel, G. (1976); SERRA, J. “Três Teses Equivocadas relativas à ligação entre Industrialização e Regimes Autoritários” e HIRSCHMAN, Albert. “A Mudança para o Autoritarismo na América Latina e a Busca de suas Determinantes Econômicas”. In: COLLIER, David (org). O Novo Autoritarismo na América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. Sobre o fordismo no Brasil ver MATTOSO, J.,A. Desordem do Trabalho. São Paulo: Scritta, 1995 e FERREIRA, C. G. “O Fordismo, sua Crise e o Caso Brasileiro”. In: Cadernos do CESIT Texto para Discussão. Nº 13. Campinas: CESIT/UNICAMP, S. D. 2 Sobre as medidas “saneadoras” tomadas no governo Castelo Branco, conferir ALVES, M. H. M. Estado e Oposição no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1984 e CRUZ, S. V. e MARTINS, C. E., “De Castelo a Figueiredo: uma incursão na pré-História da ‘Abertura’”. In: SORJ, B. e ALMEIDA, M. H. T. de. Sociedade e Política no Brasil pós-64. São Paulo: Brasiliense, 1983. 3 REZENDE, A. L. "Estabilização e Reforma" e LAGO, L. A. C. "A Retomada do Crescimento e as Distorções do Milagre (1967-1973). In: ABREU, M.P. A Ordem do Progresso: cem anos de política republicana - 1889-1989. Rio de Janeiro: Campus, 1992.

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geral de tais iniciativas era o controle da inflação e o estabelecimento de condições favoráveis à

retomada dos investimentos industriais, especialmente através da atração do capital externo.

Na dimensão institucional, não obstante as fases do regime, as diferentes configurações de

força estabelecidas entre as facções militares que o comandam e a presença de níveis diversos de

liberalização em cada governo, consolidou-se um arranjo institucional que articulava o núcleo

autoritário em que era confinado o processo decisório a um sistema eleitoral e partidário mitigado,

mantido para conferir legitimação eleitoral ao regime4. O processo decisório era contido em arenas

restritas e, no limite, realizava-se em meio a uma divisão de trabalho entre os militares e a

tecnoburocracia civil - cuja emergência remonta ao início da transição à industrialização pesada,

ainda sob o populismo -, bem como através dos diversos mecanismos de intermediação que ligam o

Estado e as elites econômicas. A condução da política econômica era confiada a setores

tecnoburocráticos vinculados ao grande capital e aos projetos de modernização que privilegiavam a

associação com o capital estrangeiro. Aos militares cabia a direção dos organismos de informação e

segurança, bem como aqueles ligados ao planejamento estratégico vinculado aos “objetivos

nacionais” da Doutrina de Segurança Nacional. A definição de uma estratégia global era efetuada

através do Conselho de Segurança Nacional, órgão que servia à compatibilização das orientações

dos dois setores de governo5. No que se refere às elites empresariais, o regime constituiu

mecanismos de intermediação que o tornavam poroso aos seus interesses. Tais mecanismos iam

desde o assento formal de lideranças empresariais em organismos como o Conselho Monetário

Nacional, à disseminação de “anéis burocráticos” entre a burocracia estatal e elites empresariais, ao

lado da multiplicação de agências estatais que tratam de políticas setoriais6.

O regime, entretanto, manteria uma relação ambígua com as instituições da democracia

representativa, o que se evidenciava na busca de legitimação eleitoral, ainda que às expensas da

proscrição do sistema partidário presente no antigo regime e da instituição de um bipartidarismo

4 Para um balanço das controvérsias na literatura referentes ao regime militar brasileiro ver FICO, C. Além do Golpe – Versões e controvérsias sobre 1964 e o regime militar. Rio de Jeneiro/São Paulo: Record, 2004; REIS, D. A ., RIDENTI, M.; MOTTA, R. P. S. (orgs.). O golpe e a ditadura militar: quarenta anos depois (1964-2004). Bauru: EDUSC, 2004; FICO, Carlos.et alli (orgs.). 1964-2004: 40 anos do golpe: ditadura militar e resistência no Brasil. Rio de Janeiro: 7Letras, 2004. 5 Cf. DULCI, O . e DREYFUSS, R. “As Forças Armadas e a Política”. In: SORJ, B. e ALMEIDA, M. H. op. cit. Ver também LAFER, C. O Sistema Político Brasileiro. São Paulo: Editora Perspectiva, 1975. 6 CARDOSO, Fernando Henrique. Autoritarismo e Democratização. Rio de Janeiro:Paz e Terra, 1975. Além do Conselho Monetário Nacional, merecem destaque organismos como o Conselho Ministerial de Preços e o Comissão de Desenvolvimento Industrial. A relação do Estado com o empresariado realiza-se de forma setorializada, o que dificulta a articulação horizontal deste ator em torno de políticas globais. Entretanto, não impede tal articulação para ações de veto, como se verifica na campanha contra a estatização da economia, detonada em função da transferência do PIS-PASEP da Caixa Econômica Federal para o BNDE e da ausência empresarial no Conselho de Desenvolvimento Econômico criado pelo governo Geisel. Tais medidas estão associadas à implementação do projeto de desenvolvimento previsto no II PND. A campanha contra a estatização reuniu setores significativos do empresariado. Uma das exceções de destaque foi ramo de bens de capital, que alimentara, num primeiro momento, expectativa positiva em relação ao seu papel dentro da estratégia industrial prevista no II PND . Conferir, BOSCHI, R. Elites industriais e democracia. Rio de Janeiro: Graal, 1979; VELASCO E CRUZ, S. Empresariado e Estado na Transição Brasileira.Campinas:Editora da UNICAMP/FAPESP, 1995.

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manietado pela redução das prerrogativas do parlamento e pelas intervenções freqüentes do

Executivo. Não obstante, a crise do regime, a partir de 1974, estaria associada à crescente afirmação

eleitoral do MDB, a legenda de oposição, que canalizaria os sinais difusos de insatisfação com os

governos militares, assegurando à dinâmica partidária e eleitoral crescente autonomia e conferindo

ao Congresso papel decisivo no processo de transição democrática7.

Em relação à proteção social, o regime militar caminhou em três direções: a busca da

despolitização e racionalização burocrática do sistema previdenciário, o alargamento de sua

cobertura, além da abertura de espaços para a afirmação do provimento privado de benefícios e,

principalmente, serviços8. Inicialmente, sob Castelo Branco, procurou-se purgar a previdência

social da influência político-partidária e da presença dos sindicatos, reforçando a dimensão técnica

do sistema, em consonância com a intenção saneadora que instruía as ações do governo no plano

político e econômico. Retomava-se, neste sentido, o propósito da unificação administrativa e da

centralização burocrática, conforme a formulação desenvolvida pelos técnicos da Previdência desde

19419. Mais adiante, seria buscada, durante o governo Médici, a universalização da cobertura, que

era associada à perspectiva militar da integração nacional, entendida, no caso em tela, como a

incorporação ao seguro social daqueles grupos não contemplados na estrutura previdenciária em

vigor10. Esta perspectiva foi, no entanto, acompanhada da redução do papel do Estado no

provimento dos serviços ligados à previdência social, notadamente no que se refere à saúde11.

Configurava-se, pois, um movimento ambíguo: por um lado, acentuava-se a universalização da

cobertura previdenciária, no que se refere aos benefícios, por outro, a iniciativa privada ganhava

importância na oferta de serviços previdenciários, favorecendo um processo que foi designado por

Maria Lúcia Werneck Vianna de americanização perversa do sistema de proteção social

brasileiro12. Em parte, tal processo seria ainda fortalecido pela regulamentação da previdência

7 DINIZ, E., “Transição, Partidos e Regimes Políticos”. In:CAMARGO, A. e DINIZ, E. (orgs) Continuidade e Mudança no Brasil da Nova República. São Paulo: Vértice, 1989. No desencadeamento do processo de transição, tem destaque a própria perspectiva de desengajamento militar, evidenciada na relação ambígua que estes estabelecem com a democracia representativa e acentuada em virtude do que Dulci e Dreyfuss denominam “síndrome de tensão-pressão”, referindo-se aos custos para a instituição militar da ampliação de seus papéis quando assume o governo. DULCI, O. e DREYFUSS, R. “As Forças Armadas e a Política”. In: SORJ, B. e ALMEIDA, M. H. Op. Cit.. 8 DELGADO, I. G. Previdência Social e Mercado no Brasil. São Paulo: LTr, 2001. 9 MALLOY, J. Política de Previdência Social no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1986; HOCHMAN, G. “Lógica da Ação Burocrática e Políticas Públicas - O Caso dos Cardeais da Previdência Social”.In: ANPOCS. Ciências Sociais Hoje. Rio Fundo, 1992. Pp 102-139 10 MALLOY, Op. Cit. 11TEIXEIRA, S. M. e OLIVEIRA, J. A. (Im)previdência Social - 60 anos de história da Previdência Social no Brasil. Petrópolis:Vozes, 1986. WERNECK VIANNA, M. L. T. Articulação de Interesses, Estratégias de Bem-Estar e Políticas Públicas: A americanização (Perversa) da Seguridade Social no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1998 Embora esta possibilidade estivesse contida na LOPS, é inegável que sob o regime militar ela se aprofunda. Além disto, com a restrição extremada à ação dos trabalhadores, o regime militar acentuava o processo de industrialização assentado em baixos salários, o que representava uma ruptura com as perspectivas redistributivistas que ganhavam fôlego ao final do regime populista. 12 WERNECK VIANNA, M. L. Op. Cit.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 180

privada suplementar, ao final dos anos 70, que abria uma primeira brecha no caráter público do

seguro social brasileiro13.

O primeiro passo desta trajetória efetivou-se com a criação do Instituto Nacional de

Previdência Social (INPS), pelo Decreto 72 de novembro de 1966. Após uma primeira tentativa

frustrada, sob comando de Arnaldo Sussekind, em 1965, a criação de um instituto único de

previdência foi efetuada na gestão de Luiz Gonzaga Nascimento e Silva no Ministério do Trabalho

e Previdência Social, que reuniu em torno de si os antigos técnicos do IAPI, sob comando de José

Dias Corrêa Sobrinho14. Junto à unificação administrativa, eliminar-se-ia a representação classista

na gestão da previdência, no início de 1967. Por outro lado, depois de décadas, em setembro de

1967, através da Lei 5.316, seriam absorvidas no seguro social as indenizações por acidentes de

trabalho, dobrando-se antiga resistência das seguradoras privadas que controlavam o setor desde

191915.

Fora dos marcos formais do sistema previdenciário, ainda no governo Castelo Branco, foi

criado o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), através da Lei 5.107, de novembro de

1966. Instituído para substituir a estabilidade no emprego, definida, a partir dos anos 30, como um

direito do trabalhador após 10 anos de serviço, o FGTS operava como a “contrafação de um seguro-

desemprego inexistente no país”16. Atendia, por um lado, à postulação das empresas, especialmente

as internacionais, que se dispunham a investir no Brasil, e por outro, servia à constituição das

reservas do Banco Nacional da Habitação (BNH), destinado ao enfrentamento dos dilemas

habitacionais das camadas de baixa renda. A rigor, como posteriormente se demonstrou, o FGTS

favoreceria a intensificação da rotatividade da mão de obra nas empresas, contribuindo para a

manutenção de níveis salariais baixos, ao passo que a política habitacional, sob a direção do BNH,

acabaria por servir fundamentalmente ao financiamento das construções de classe média, com

pequeno impacto na resolução do problema de moradia das camadas de baixa renda17.

Outro fundo também criado fora dos marcos formais da previdência social foi o Programa

de Integração Social (PIS), instituído por via da Lei Complementar Número 7, de setembro de 1970,

no governo Médici18. O regime militar apresentava sua resposta à questão da participação dos

empregados nos lucros das empresas, postulação que fora formulada pela primeira vez em 1919.

13 MENICUCCI, T. M. G. Previdência Privada : a Negação/Complementação da Previdência Social Pública. Belo Horizonte: Departamento de Sociologia da UFMG), 1990. ( Dissertação de Mestrado). 14 MALLOY, J. Op. Cit. 15 Id. Ibid. 16 SANTOS, V. G. Cidadania e justiça. Rio de Janeiro: Campus, 1979. pp 35.. 17 Id. Ibid. Ver também MELO, M. A. B. C. “A Formação de Políticas Públicas e a Transição Democrática: o Caso da Política Social”. In: Dados. Nº 3. V. 3. Rio de Janeiro: IUPERJ, 1990. 18 SANTOS, W. G. Op. Cit.. Ao PIS, constituído com vistas aos trabalhadores do setor privado, corresponderia o PASEP, criado pela Lei Complementar número 8, de dezembro de 1970, para formação de patrimônio do servidor público. Em 1975, através da Lei Complementar Número 26, de 11 de setembro, os programas seriam unificados.

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Medida essencialmente redistributiva, foi incorporada à Constituição de 1946. Ao longo do regime

populista, entretanto, as tentativas para sua regulamentação foram reiteradamente vetadas pelos

empresários, que se opunham ao princípio da participação direta, tal como se previa no texto

constitucional. O formato definido pela legislação que criou o PIS excluiu a participação direta e

converteu a participação dos trabalhadores nos lucros das empresas na “participação da força de

trabalho urbana no processo de acumulação como um todo”19. Os recursos do programa derivavam

de contribuição dos empregadores em função do faturamento das empresas. O acesso dos

trabalhadores ao benefício, por seu turno, era diretamente proporcional ao número de anos

trabalhados e na razão inversa dos salários percebidos. A possibilidade de poder contar com tais

recursos dependia, entretanto, do desempenho global da economia e não dos lucros de uma empresa

específica20.

A importância do FGTS e do PIS-PASEP não se limita à redefinição das normas que

regulavam o mercado de trabalho no Brasil - no sentido da configuração de um perfil mais liberal,

com o fim da estabilidade no emprego - e ao enfretamento de um problema - a participação dos

trabalhadores nos lucros das empresas - que, embora presente na agenda da política social brasileira

durante décadas, não encontrara solução nas situações políticas anteriores. A rigor, com o FGTS e o

PIS-PASEP o regime militar buscava restabelecer mecanismos de poupança compulsória à

disposição do poder público e das demandas de financiamento dos setores privados, na medida em

que a conversão do sistema do seguro social brasileiro ao regime de repartição simples fizera

escassear, para este fim, os recursos advindos do seguro social. Este, por seu turno, apresentaria um

desempenho financeiro estável até o final dos anos 70, em face da retomada da expansão econômica

na segunda metade dos anos 60, que acarretou o ingresso de novos contingentes de trabalhadores

assalariados na população economicamente ativa e o aumento no volume de contribuições21.

Após a unificação administrativa, efetuada no governo Castelo Branco, no âmbito do

sistema previdenciário, stricto sensu, teve destaque, nos anos 70, a criação da previdência social

para os trabalhadores rurais, autônomos e empregadas domésticas, que se efetivou no governo

Médici. Com Geisel, o sistema passou por uma nova reformulação em sua estrutura. Além disto, em

1977 foi regulamentada a previdência suplementar privada.

A previdência social para os trabalhadores rurais foi instituída em 1971, num primeiro

momento como um programa separado do INPS. Rompia-se com quase três décadas de postergação

na incorporação do mais vasto contingente de trabalhadores do país à rede pública de proteção 19 Id. Ibid,. p. 118. 20 Id. Ibid. 21 Como já apontado, verifica-se entre 1967 e 1979 um crescimento expressivo das despesas previdenciárias em relação às receitas do sistema, as primeiras alcançando 93% das segundas, em média. No entanto, o crescimento das receitas é expressivo. No mesmo período cresce 13% na média anual, acima dos 9% de crescimento do PIB. Ver ANDRADE,E.G.(Des)Equilíbrio da Previdência Social Brasileira - 1945-1997. Belo Horizonte:CEDEPLAR/FACE/UFMG, 1999.(Tese de Doutoramento).

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social. O programa rural foi montado em bases diversas do seguro social urbano, ao romper com o

caráter contratual característico deste22. Seu financiamento era assegurado por recursos advindos de

taxações efetuadas sobre a comercialização dos produtos rurais, além de uma contribuição de 2,5%

incidente sobre a folha de pagamento das indústrias. Como o segurado não contribuía para o

programa, ele dispunha de caráter redistributivo, embora seus custos pudessem ser transferidos para

toda a sociedade23. Era prevista a concessão de aposentadoria por idade e velhice - mas não por

tempo de serviço -, num valor correspondente à metade do salário-mínimo nacional, além de

assistência médica, através de rede contratada pelo programa24. Já a incorporação das empregadas

domésticas e trabalhadores autônomos ao INPS far-se-ia, respectivamente, em 1972 e 1973, através

das leis 5.859 e 5.89025. Com ela dava-se um importante passo no processo de universalização da

cobertura, ainda que permanecessem de fora os assalariados absorvidos no mercado informal, isto é,

não regidos pela CLT.

O processo de universalização da cobertura previdenciária não significava, entretanto, uma

mudança na estrutura de distribuição de renda cuja concentração era determinada

fundamentalmente pela política de arrocho salarial praticada no período26. Sob o governo Geisel, a

presença mais ativa do Congresso Nacional na denúncia deste quadro e a divulgação de relatórios

de agências internacionais sobre as desigualdades sociais no Brasil favoreceram o desenvolvimento

de uma postura reformista conservadora por parte de setores das Forças Armadas, marcada pelo

propósito de combinar desenvolvimento econômico com a atenuação da concentração da renda,

através principalmente da ampliação da oferta de serviços sociais27. As reformas empreendidas por

Geisel na previdência social, entre 1974 e 1978, inscreviam-se nesta perspectiva.

Em 1974, através da Lei 6.025 de 25 de junho, foi criado o Ministério da Previdência e

Assistência Social (MPAS), que ficava, então, desvinculado do Ministério do Trabalho. A

instituição do MPAS permitia, outrossim, que as áreas de competência do Ministério da Saúde e da

Previdência fossem definidas com mais clareza, cabendo ao primeiro o desenvolvimento de ações

normativas e orientadas para “as medidas e os atendimentos de interesse coletivo, inclusive a

22 SANTOS, Op. Cit. 23 Id. Ibid. 24 MALLOY, Op. Cit. 25 SANTOS, Op. Cit.; TEIXEIRA e OLIVEIRA, Op. Cit. 26FARIA, V. “Desenvolvimento, Urbanização e Mudanças na Estrutura de Emprego: a Experiência Brasileira dos Últimos Trinta Anos”. In: SORJ. e ALMEIDA. Op. Cit. 27 MELO, M. A. B. C. “A Formação de Políticas Públicas e a Transição Democrática: o Caso da Política Social” in Dados. Nº 3. V. 3. Rio de Janeiro: IUPERJ, 1990. A percepção do impacto negativo da acentuação da desigualdade social sobre os propósitos militares de integração nacional era parte de uma reação mais ampla do ethos militar à própria desnacionalização da economia, acentuada nos anos do milagre. Esta reação manifesta-se fundamentalmente no II PND, um programa que envolvia a ampliação da produção de bens de capital e de insumos diversos, de modo a reduzir a dependência de importações no processo da industrialização brasileira. Sobre o II PND conferir CASTRO, A. B. e SOUZA, F. E. P. A Economia Brasileira em Marcha Forçada. São Paulo/Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988; VELASCO E CRUZ, S. C. “Estado e Planejamento Econômico no Brasil: 1974-1976”. In:VELASCO E CRUZ, S. C. O Presente como História : Economia e Política no Brasil Pós-64. Campinas:UNICAMP/IFCH, 1997.

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vigilância sanitária”, ao passo que a previdência social tinha sua “atuação voltada principalmente

para o atendimento médico-assistencial individualizado”28. Vinculado ao MPAS, foi constituído o

Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social (SINPAS), cujo formato seria definido em

1978 . O SINPAS era integrado pelo INPS, pelo Instituto Nacional de Assistência Médica da

Previdência Social (INAMPS), pela Fundação Legião Brasileira de Assistência (LBA), pela

Fundação Nacional do Bem Estar do Menor (FUNABEM), pela Empresa de Processamento de

Dados da Previdência Social (DATAPREV) e pelo Instituto de Administração Financeira da

Previdência Social (IAPAS). Integrado ao SINPAS, como órgão autônomo do MPAS, estaria ainda

a Central de Medicamentos (CEME). A criação do MPAS, bem como do Conselho de

Desenvolvimento Social (CDS) tinha, nos termos da perspectiva reformista conservadora apontada

acima, o objetivo de estabelecer um controle mais centralizado sobre o INPS e o BNH, agências

sobre as quais acentuavam-se denúncias de operação inadequada, seja em função dos ganhos

obtidos pelos hospitais privados com os mecanismos de pagamento dos serviços prestados à

previdência pública, seja por conta do privilégio concedido à classe média em um organismo que

deveria precipuamente atender às demandas das camadas de renda mais baixa29.

A perspectiva de reorientar os diversos organismos responsáveis pela condução das políticas

sociais no Brasil para uma atuação que fosse mais efetivamente redistributiva não se chocava,

entretanto, no âmbito da perspectiva reformista conservadora de Geisel, com a ampliação dos

espaços de atuação da iniciativa privada em áreas da política social que permaneciam sob controle

quase exclusivo do Estado. Em 1977 foi regulamentada, através das leis 6.435 e 6.462, a operação

das instituições de previdência privada. Ficava estabelecida a possibilidade de criação de entidades

de previdência privada abertas, com ou sem fins lucrativos, acessíveis ao público em geral, e as

entidades de previdência privada fechadas, acessíveis apenas aos trabalhadores de uma empresa ou

grupo de empresas. As primeiras, consideradas uma extensão do seguro privado, foram ligadas ao

Sistema Nacional de Seguros Privados, tendo como órgão normativo o Conselho Nacional de

Seguros Privados, criado em 1966. O órgão fiscalizador era a Superintendência de Seguros

Privados, vinculada ao Ministério da Indústria e do Comércio até 1979, quando foi incorporada ao

Ministério da Fazenda30. As entidades fechadas de previdência privada, por seu turno, consideradas

complementares à previdência pública, ficavam sob supervisão do Conselho de Previdência

Complementar (CPC), de caráter normativo, e da Secretaria de Previdência Complementar, ligada

ao MPAS31.

28 TEIXEIRA e OLIVEIRA. Op. Cit. .pp 239. 29 MELO, Op. Cit. . 30 Menicucci destaca que a vinculação do órgão de fiscalização da previdência privada aberta aos ministérios da área econômica evidencia o propósito de buscar em sua instituição a criação de novos fundos de investimento, por parte do governo Geisel. MENICUCCI, Op. Cit. 31 Id. Ibid.

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A regulamentação da previdência privada vinha acentuar a participação da iniciativa

particular dentro do sistema brasileiro de proteção social, cuja presença ampliara-se com o

fortalecimento do complexo médico-industrial, a partir dos anos 60, em decorrência dos

mecanismos de contratação de serviços aos hospitais privados pela previdência social32. Desde a

LOPS ficara estabelecida a obrigatoriedade da assistência médica na previdência social. Entretanto,

a extensão da cobertura que ela acarretava não se efetuaria pela ampliação da rede hospitalar

pública, cujo crescimento é significativamente inferior àquele verificado na rede privada33. Assim,

acentuou-se o credenciamento de hospitais privados junto ao INPS, que pagava o atendimento

médico individualizado dos segurados, fornecido pela rede particular, por unidade de serviço

prestado. O mecanismo favoreceu a expansão da rede hospitalar privada e prestava-se a formas

variadas de fraude, na medida em que induzia à opção por serviços mais caros34.

No âmbito das iniciativas de reforma tentadas no governo Geisel, buscaram-se alternativas

ao modelo em vigor, sem, entretanto, que isto redundasse em fortalecimento da rede pública. De

1974 a 1978 foram acentuados os convênios, envolvendo o INPS, empresas e outras instituições35.

A previdência social participava com dispêndios globais e/ou a redução parcial das contribuições

previdenciárias devidas pelas instituições e empresas conveniadas, evitando-se o pagamento por

unidade de serviço. No limite, tal procedimento fortaleceria a medicina de grupo, que fornecia seus

serviços às empresas conveniadas36. Outras medidas importantes, ainda no governo Geisel, são o

reforço do atendimento ambulatorial, no âmbito do Plano de Pronta Ação (PPA), que buscava

aumentar a coordenação das atividades de saúde e desburocratizar o atendimento de emergência.

Em relação ao atendimento hospitalar, o PPA permitia cobrança pelos atos médicos nos hospitais

contratados, quando o segurado optasse por serviços mais sofisticados37.

No início dos anos 80, as dificuldades financeiras da previdência, derivadas da retração da

economia no período, foram acompanhadas da intensificação dos protestos veiculados por diversos

atores no sentido de reverter a parceria estabelecida entre o Estado e o sistema privado de saúde38.

Entretanto, conforme Maria Lúcia Werneck Vianna, tais protestos ganham força num momento em

32TEIXEIRA, e OLIVEIRA, Op. Cit.; WERNECK VIANNA, Op. Cit. 33 TEIXEIRA, e OLIVEIRA, Op. Cit.; WERNECK VIANNA, Op. Cit 34 TEIXEIRA, e OLIVEIRA, Op. Cit.; WERNECK VIANNA, Op. Cit 35A realização de convênios entre o INPS e empresas é, evidentemente, muito anterior a 1974. O primeiro convênio desta natureza é firmado em 1964, entre o IAPI e a Wolksvagen. Entretanto, é a partir de meados da década de 1970 que esta prática busca se firmar como alternativa ao mecanismo de contratação de unidades de serviço aos hospitais credenciados. TEIXEIRA, e OLIVEIRA, Op. Cit.; WERNECK VIANNA, Op. Cit. 36 TEIXEIRA, e OLIVEIRA, Op. Cit.; WERNECK VIANNA, Op. Cit. 37 TEIXEIRA, e OLIVEIRA, Op. Cit. 38 Em que pese as iniciativas de reforma de Geisel não se verifica alteração na prioridade concedida à medicina privada no provimento dos serviços médicos. O principal protagonista da crítica à forma de relação entre o Estado e o setor privado na área de saúde seria o “movimento sanitarista”, que reunia profissionais de saúde, em especial médicos, favoráveis à acentuação do caráter preventivo da assistência à saúde e ao reforço do setor público no provimento dos serviços. Ver MELO, M. A. C. “Anatomia de um Fracasso: Intermediação de Interesses e a Reforma das Políticas Sociais na Nova República” in Dados, Nº 1. V. 36. Rio de Janeiro: IUPERJ, 1993.

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que se acentuava a autonomia do setor hospitalar privado em relação ao Estado. Com a deterioração

dos serviços públicos, a classe média buscava crescentemente o setor privado, dentro de um

processo em que, nos anos seguintes, teria ainda destaque o crescimento dos planos de saúde

oferecidos por cooperativas médicas ou empresas particulares. O roteiro da previdência social

brasileira rumo à sua americanização ficava nítido, portanto, exatamente naquela área, a saúde, em

que o sistema de proteção social dos EUA revelava mais tipicamente o predomínio da iniciativa

particular: ao lado da medicina privada mantinha-se um sistema público que atendia apenas à

parcela mais pobre da população. Segundo Maria Lúcia Werneck Vianna, ao contrário dos EUA,

entretanto, onde 20% da população se valem destes serviços, que são financiados por impostos

gerais, no Brasil 80% da população ainda dependem do sistema público de saúde, cujo

financiamento é garantido fundamentalmente pelas contribuições da previdência social, situação

que colabora para a corrosão da sustentabilidade financeira do sistema previdenciário e não garantia

à assistência à saúde recursos necessários ao cumprimento adequado de suas atribuições39.

3. O EMPRESARIADO E A PREVIDÊNCIA SOCIAL SOB O REGIME MILITAR

Ainda que até os anos 60 o empresariado compartilhasse com os sindicatos dos

trabalhadores a defesa da presença das “classes interessadas” na gestão da previdência, não se

verificam manifestações importantes deste ator, no governo Castelo Branco, contra a centralização

burocrática do sistema40. Da mesma forma, seja em virtude do fechamento do sistema político, que

limita a utilização de instrumentos de articulação horizontal da classe, seja por força da redução da

importância da previdência social na criação de fundos de investimento para as empresas - em face

de sua conversão ao sistema de repartição - reduzem-se substancialmente os pronunciamentos

empresariais sobre o sistema previdenciário como um todo, até o início dos anos 8041.

39 WERNECK VIANNA, M. L. Op. Cit. A deterioração dos serviços, as restrições orçamentárias e o rebaixamento dos benefícios previdenciários através de mecanismos de indexação colaboram para os processos de privatização implícita que acompanham a americanização da proteção social no Brasil. Sobre os mecanismos de privatização implícita, utilizados em processo de retração (retrenchment) das políticas de bem estar ver PIERSON, P. Dismantling The Welfare State?, Cambridge University Press, 1994. 40 Em certa medida, a perda de influência na gestão da previdência era mais do que compensada pela exclusão dos sindicatos e do PTB, associados à prodigalidade que favorecera a redução siginificativa das reservas da previdência no período populista. 41 Além disto, com o declínio do valor dos salários, reduz-se, na mesma medida, o impacto das contribuições previdenciárias no custo de produção, uma vez que corresponde a um percentual sobre os salários pagos. A rigor, a previdência social deixava de ser um “problema”, em virtude dos níveis elevados de expansão econômica. O debate acadêmico sobre o peso dos encargos sociais para o custo do trabalho suportado pelas empresas brasileiras, de grande importância no discurso empresarial dos anos 90, é delineado neste período. De um lado, Edmar Bacha que, em 1972, assinalava serem os adicionais legais um fator que conduzia a um aumento expressivo do custo do trabalho no Brasil, apesar dos salários baixos. Numa perspectiva diversa, Roberto Santos, em 1973, apontava o pequeno peso dos

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Antes disto, a questão previdenciária fora tratada de forma pouco destacada na IV

Conferência Nacional das Classes Produtoras (IV CONCLAP), realizada em outubro de 1977 no

Rio de Janeiro42. No documento final do encontro foi feito um diagnóstico da situação da

previdência, em que era ressaltado seu fortalecimento, evidenciado no aumento da participação no

PIB e no fato de que “praticamente a totalidade da população brasileira está coberta”43. Louvavam-

se, da mesma forma, os esforços do governo Geisel na reorganização administrativa do sistema,

assinalando, entretanto, a precariedade persistente da assistência médica previdenciária. Como

sugestões “para o futuro” eram indicadas a necessidade de elevação dos recursos públicos para a

saúde, de dinamização de programas institucionais de planejamento familiar, de ampliação da

presença da iniciativa privada na solução dos problemas da saúde - com a criação do “seguro-

saúde” para as camadas de renda média, ainda que cobrindo apenas parcialmente suas demandas - e

de redução da gratuidade da assistência médica no INAMPS, que deveria ficar limitada aos que

percebem menos de 3 salários mínimos. Sugeria-se, ainda, a expansão dos fundos de pensão

privados, com parte dos recursos destinados ao pagamento da previdência pública44.

Em 1980 e 1981, a previdência social apresentou déficits expressivos e o governo

Figueiredo propôs o aumento das alíquotas para o enfrentamento do problema45. A reação das

entidades empresariais foi contrária ao aumento e diversos estudos de seus departamentos técnicos

encargos, exatamente por incidirem sobre salários deprimidos. A propósito deste debate ver SANTOS, A. L. e POCHMAN, M. “Encargos Sociais no Brasil : uma nova abordagem metodológica e seus resultados”. In: Cadernos CESIT, Nº 26. Campinas: CESIT/UNICAMP, 1998. 42 Infelizmente não encontramos documentação referente ao III CONCLAP, realizado no início de 1972 no Rio de Janeiro. Ocorrido sob o governo mais autoritário do regime militar, sua importância parece ter sido reduzida, considerando a pequena repercussão que consegue nas publicações da CNI e a ausência de referências a ele em momentos posteriores. Segundo a revista da CNI, a preocupação central revelada pela Carta da Guanabara, documento final do encontro, foi a crescente concentração da propriedade das grandes empresas nas mãos do Estado e do capital estrangeiro. Ver “Conclusões do III CONCLAP”. In: CNI, Indústria e Produtividade, Nº47, Abril de 1972. 43 A utilização das conclusões da IV CONCLAP como representativas da opinião empresarial em 1977 deve ser feita com reservas. O encontro evidencia as dificuldades para a articulação dos empresários em torno de uma agenda positiva, o que se revela na própria apresentação do documento final, em que aparece a advertência de que “as opiniões expressas nestes trabalhos refletem exclusivamente o consenso da Coordenação Técnica, não representando necessariamente a posição oficial de qualquer das entidades de classe participantes”. CNI/IV CONCLAP. Síntese Panorâmica e Sugestões de Caráter Geral, Rio de Janeiro: CNI, 1977 Pp. 1. 44 CNI/IV CONCLAP, Op. Cit. Pp. 40-43. 45 Sobre a crise financeira da Previdência no período ver BARROS SILVA, P. L. e MÉDICI, A. C. “Seguridade Social : Velhos Problemas, Novos Desafios”. In: Revista de Administração Pública. Rio de Janeiro, 25(4): 69-134, out/dez, 1991e ANDRADE, Op. Cit. O Decreto Lei 1.910 de 29/12/1981 eleva alíquotas de importação de alguns bens supérfluos, institui-se a contribuição (entre 3% e 5%) de aposentados e pensionistas, eleva-se de 5% para 6% a contribuição de funcionários estatutários, eleva-se de 8% para 25% sobre a folha de pagamantos a contribuição das empresas, de 8,5% para 10% a dos empregados, além da emissão de uma série especial de títulos (ORTNs) para cobrir o déficit previsto para 1982. Em face, entretanto, da recessão e do declínio dos salários, as medidas têm fôlego curto e, em 1983, após um ano de recuperação, verifica-se nova queda nas receitas. Em 1982, o governo Figueiredo criava, ainda, o FINSOCIAL, através do Decreto-Lei 1940, incidindo em 0,5% sobre a receita bruta das empresas. O governo Figueiredo instituiria, ainda o Conselho Consultivo de Administração da Saúde Previdenciária (CONASP), com a presença de representantes do governo e de entidades da sociedade civil, para acentuar o controle sobre os gastos com a saúde, aos quais se atribui, no discurso governamental, a principal responsabilidade pelas dificuldades financeiras da previdência. Não obstante, ao final dos anos 70, a participação da saúde nos dispêndios da previdência encontrava-se em queda. De um percentual máximo de 31,6% em 1976, eles alcançaram 27,3% em 1980. TEIXEIRA e OLIVEIRA, Op. cit. Pp.281.

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buscaram salientar a inoportunidade de sua decretação, pelo impacto no custo das empresas e no

preço dos produtos.

Em agosto de 1981, documento do Departamento Econômico da CNI, apresentado como

posição oficial da entidade, apontava a dívida da União com o sistema e os débito das empresas

como responsáveis principais pelo déficit da previdência, o que tornava desnecessário o aumento

das alíquotas. Simultaneamente, sugeria diversas medidas de racionalização do sistema

previdenciário. Propunha-se que fosse efetivamente implementado dispositivo da Lei 6439/77 que

autorizava o Executivo a instituir esquema de participação dos segurados no custeio dos serviços

médicos, conforme seu nível de renda. Sugeria-se, ainda, que os recursos do salário-família de

segurados de renda mais elevada fossem utilizados para custeio do sistema. Destacava-se a

necessidade de limitação das despesas administrativas a um teto compatível com a contribuição da

União. Ademais, propunha-se a elevação da contribuição da União, com a definição de fonte de

receita específica com destinação vinculada, além das parcelas do imposto de importação, recursos

de loterias, tributo sobre combustíveis, que já participavam na composição da cota da previdência

devida pela União ao sistema46.

Em maio de 1982, novo estudo do Departamento Econômico da CNI apresentou um

diagnóstico detalhado do comportamento das receitas e despesas do sistema previdenciário,

admitindo que suas dificuldades financeiras tinham relação com a redução do nível de emprego

determinado pela recessão, mas destacando principalmente o comportamento das despesas,

especialmente no âmbito do INPS. Sugeria, então, diversas medidas de reforma, tais como a

redefinição dos critérios para concessão de aposentadorias - especialmente com fixação de uma

idade mínima e a revisão da aposentadoria por tempo de serviço -, bem como elevados os prazos de

carência para concessão dos benefícios. No que se refere à assistência médica, sugeria-se sua

transferência para o Ministério da Saúde, bem como fortalecidos os convênios firmados entre o

INAMPS e as empresas, além de, em face da elevação progressiva das receitas em relação às

despesas, acelerada a privatização efetiva dos serviços médicos da previdência. Por fim, propunha-

se que o custeio da FUNABEM e da LBA fosse coberto com recursos orçamentários da União47.

Nos pronunciamentos de lideranças empresariais, por seu turno, a “crise da previdência” era

associada à ruptura com o regime de capitalização e à utilização política de suas reservas. Em artigo

publicado na revista da CNI, em maio de 1984, Mário Amato, então vice-presidente da FIESP,

observava que a “contribuição para a Previdência não passa, na prática, de um imposto, pois o

46 CNI- DEPARTAMENTO ECONÔMICO. Considerações Sobre o Déficit Orçamentário do Sistema Nacional da Previdência e Assistência Social e a Proposta de Elevação da Contribuição Previdenciária - a Posição da CNI. Rio de Janeiro: CNI, agosto de 1981. 47 CNI- DEPARTAMENTO ECONÔMICO, Comportamento das receitas e despesas do Sistema de Previdência e Assistência Social: Conclusões Preliminares Sobre o Déficit Observado em Período Recente e Proposições Tendentes à sua Correção. Rio de Janeiro: CNI: maio de 1982.

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sistema há muito deixou de operar em bases atuariais para operar em bases orçamentárias”(grifo do

autor)48. Salientava, por seu turno, que o “excesso de arrecadação da Previdência, no seu início,

deveria ser teoricamente aplicado em bens e atividades que garantissem rentabilidade compatível

com o futuro crescimento dos dispêndios”. Entretanto, parte deste excedente foi utilizada para

“compra ou construção de imóveis”, alugados ou vendidos em parcelas de valor fixo, em meio a um

ambiente inflacionário. Nestas condições, alguns “felizardos brasileiros que por injunções políticas

ou acaso administrativo conseguiram alugar ou comprar imóveis da Previdência obtiveram lucro ou

aumentaram seu patrimônio à custa do sistema”. Desta forma,

o sistema funcionou, nesta área, como um mecanismo de transferência de renda de toda a população assalariada, das empresas e do próprio Governo, para um punhado de felizes afilhados de caciques políticos ou sorteados da fila de inscrição.

Em seguida, Amato trazia à memória a percepção da derrota sentida pelos empresários

brasileiros quando, na República Trabalhista, a expansão dos benefícios e serviços contribuiu para

a conversão da previdência brasileira ao sistema de repartição. Diz o então vice-presidente da

FIESP que

foi relativamente fácil para todos que apreciam fazer sua carreira política às custas do erário público, introduzir a idéia de que a Previdência - inicialmente um sistema destinado a garantir apenas aposentadorias e pensões - poderia usar seus na época vastos) recursos para ministrar assistência médica, sanitária e dentária gratuita: primeiro a todos os seus contribuintes, independente de poderem ou não pagar; depois a todos os brasileiros indiscriminadamente, mesmo que não fossem contribuintes.

Por outro lado, seguia Amato, o controle público dos gastos do sistema era impossível, na

medida “em que quem assina o cheque está a milhares de quilômetros de quem recebe o

atendimento, e ninguém é realmente proprietário do dinheiro” Com isto, “os custos tendem a

inchar”.

Na descrição do processo de elevação das despesas Amato salientava que “os custos da

assistência médica são excepcionalmente crescentes” e uma vez “iniciada a assistência gratuita sua

tendência natural é expandir-se extraordinariamente se não houver controle adequado”. Além disto,

“o Governo lançou mão de recursos da Previdência para financiar obras públicas com retorno não

apenas incerto como discutível”, ao passo que “ele próprio deixou de fazer sua contribuição ao

sistema”. Observava ainda que os dispêndios do sistema eram “na sua maioria politicamente

incomprimíveis”, enquanto “os recolhimentos flutuam de acordo com a marcha da economia e a

situação dos contribuintes”. Relembrava, por fim, que na crise de 1981, “o Governo não apenas

48 AMATO, M. “Previdência Social : Solução ou Caos”. In: CNI. Indústria e Produtividade. Nº181. Rio de Janeiro: CNI: Maio de 1984.Pp 22-24. Reproduziremos de forma mais extensa trechos do artigo de Amato porque ilustra bem a memória dos empresários a respeito das raízes históricas da “crise da previdência”.

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revirou os bolsos dos contribuintes elevando as alíquotas como, literalmente, passou um calote na

rede bancária emitindo, para cobrir o saldo negativo, ORTNs inegociáveis”.

Não obstante a acidez de seu diagnóstico, Amato sugeria medidas de reforma ainda vagas e

relativamente tímidas - no que se refere ao controle da previdência pela iniciativa privada - se

compararmos com as proposições que seriam desenvolvidas pela FIESP dez anos à frente e a

experiência chilena de reforma, em curso desde 1982. Propunha a separação “completa e definitiva”

da previdência da assistência médico-social, com a primeira voltando a operar no regime de

capitalização e a segunda custeada por recursos orçamentários. Sugeria, sem precisar através de

quais mecanismos, que a administração dos serviços - “tanto os previdenciários como os

assistenciais” -, fosse desvinculada do governo, que, entretanto, continuaria a participar de sua

gestão, mas “sem o arbítrio que hoje lhe permite, é certo, dar unidade ao sistema e até agilizar sua

gerência, mas também ceder à tentação de malbaratar recursos”. Por fim, assinalava a necessidade

de se acentuar a descentralização da “parte assistencial do sistema”, atribuindo-se maiores

responsabilidades - e “recursos correspondentes” - às prefeituras e governos estaduais.

Ao final de 1984, já definidos os termos do processo de transição do regime militar à Nova

República, foi realizado no Rio de Janeiro, a partir de convocação da CNI e federações industriais,

o Encontro Nacional da Indústria (ENIND), num esforço de definição das posições do setor ante a

nova ordem que se avizinhava. Sobre a previdência social, os Anais do ENIND admitiam que

“houve um aumento considerável dos usuários do sistema sem uma contrapartida financeira para

fazer face ao acréscimo de serviços”49. Observavam, entretanto, que a Previdência sofreu “os

efeitos da política econômica e as deficiências na administração da coisa pública”. Assim ,

a crise pela qual passa o país com os elevados níveis de desemprego que lhe são característicos, de um lado aumentou a despesa com benefícios e. de outro, reduziu a receita pela queda nas contribuições. Acrescente-se a este fato a malversação de recursos, amplamente divulgada pela imprensa, e os desvios para a construção de grandes obras como a hidrelétrica de Itaipu e a Usina Nuclear de Angra dos Reis50.

Desta forma, “admitir que a crise da previdência se resolveria com o aumento das alíquotas

de contribuição seria procurar atingir os efeitos sem combater as causas”51. Propunha-se, então,

como medidas para enfrentar a os dilemas financeiros da previdência, a fixação da idade mínima de

65 anos para gozo da aposentadoria por tempo de serviço; a modificação da carência e cálculo do

valor dos benefícios de prestação continuada (com definição de um mínimo de 10 anos de

contribuição e de uma parte fixa de 70% do valor pago nas aposentadorias, com os restantes 25%

percebidos conforme os anos de contribuição); a descentralização e desestatização da assistência

médica previdenciária; a permissão para que o seguro de acidentes de trabalho pudesse ser 49 CNI – ENIND. Anais. Rio de Janeiro: CNI, Novembro de 1984. Pp. 60-61. 50 Id. Ibid. pp 61. 51 Id. Ibid.

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novamente garantido mediante seguro privado feito pelo empregador; o desligamento da LBA,

FUNABEM e CEME do SINPAS; a alteração da base de cálculo das contribuições devidas pelas

empresas, de modo a reduzir o percentual cobrado sobre a folha de pagamentos, introduzindo-se a

taxação incidente sobre o faturamento das empresas; a fixação de um teto de contribuição e o

escalonamento desta de acordo com o tamanho das empresas. Por fim, sugeria-se a redefinição da

base de cálculo do valor pago nas aposentadorias por velhice, fixando-se a média dos últimos 36

salários recebidos52.

4. AUTORITARISMO E AMERICANIZAÇÃO DA PROTEÇÃO SOCIAL NO BRASIL

Em sua origem, as políticas sociais modernas, em especial a previdência social, têm seu

caráter definido pelas coalizões - envolvendo o Estado, trabalhadores assalariados e empresários -

que dão sustentação a um regime ativo que as instaura em determinadas condições contextuais, a

saber, a forma de inserção da economia nacional no mercado mundial, o perfil da ordem política

vigente e a natureza da presença política dos trabalhadores na cena nacional, que é, em certa

medida, afetada pela configuração de mercado em que se estrutura o sistema de classes no ambiente

nacional53. Uma vez estabelecidas, as políticas sociais modernas têm seu curso também

determinado pelos efeitos institucionais derivados de sua própria operação. Assim, no caso

específico do seguro social, seu funcionamento determina o aparecimento de novos atores

comprometidos com sua existência (burocracias públicas e clientelas), ao passo que são alteradas as

afinidades dos empresários e trabalhadores com o sistema. Sob um regime público de seguro social

ainda não maduro – isto é, antes de sua conversão de um sistema de capitalização coletiva à

repartição simples – empresários, trabalhadores e o Estado buscam influenciar na destinação das

reservas da previdência, parte principal do fundo público associado á presença da política social.

Sob um sistema maduro, desfaz-se tal interesse e acentuam-se as pressões – dos titulares do poder

de Estado e dos empresários – para redução de seu impacto no gasto público, frequentemente em

oposição às burocracias previdenciárias, às clientelas e, em parte, aos trabalhadores, que

desencadeiam iniciativas para a defesa do caráter público do sistema. A intensidade destas ações,

52 Id. Ibid. pp 61-62.A formulação referente ao financiamento da previdência propunha “o estabelecimento de um limite de contribuição com base na folha de pagamento que seja independente do faturamento da empresa, ou seja, uma contribuição fixa” e o escalonamento das “contribuições variáveis, com base no faturamento, de acordo com o tamanho da empresa”. Id. Ibid. p. 62. 53 DELGADO, I. G. Previdência Social e Mercado no Brasil. São Paulo: LTr, 2001.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 191

entretanto, é influenciada pelas condições contextuais e institucionais acima indicadas e pelos

recursos de poder de que podem dispor os atores envolvidos54.

A previdência pública no Brasil, surgiu, na década de 1930, sob um formato publico

corporativo, liderada pelo Estado em coalizão com as principais entidades empresariais, num

ambiente de crescente fechamento da economia brasileira ao mercado mundial, sob uma situação

política predominantemente autoritária, sem que os trabalhadores assalariados, com exígua presença

na estrutura social, evidenciassem a articulação de uma identidade política de âmbito nacional. O

perfil segmentado e acanhado de seus benefícios e a definição, entre seus objetivos, de que suas

reservas deveriam custear o processo de acumulação e os investimentos públicos, estão associados a

tais condições contextuais, num quadro em que o custeio do seguro social, baseado em

contribuições efetuadas sobre a folha de pagamentos das empresas e em deduções sobre os salários,

podia ser transferido ao preço dos produtos e ao conjunto dos consumidores55.

Sob a Republica Trabalhista, a coalizão entre o Estado e os trabalhadores – evidenciada no

controle do PTB e dos sindicatos sobre o regime previdenciário desde o início da década de 1950 -,

reduziu a influência empresarial sobre as reservas da previdência e favoreceu, nos marcos de uma

economia fechada e de operação de um sistema político aberto e competitivo, com forte presença

dos trabalhadores assalariados, a expansão e uniformização dos benefícios e serviços

previdenciários, ainda que nos limites da cidadania regulada de que fala Wanderley Guilherme dos

Santos, uma vez que não contemplados os trabalhadores rurais, autônomos, empregadas domésticas

e o conjunto dos trabalhadores não inscritos no mercado formal56. O amadurecimento do sistema, a

expansão dos benefícios, a utilização das reservas da previdência em investimentos públicos e a

desaceleração da economia ao início da década de 1960 conduziram ao virtual esgotamento das

reservas da previdência e às primeiras proclamações sobre a existência de uma crise no sistema57.

É neste quadro que se desencadeiam as ações do regime militar relativas à previdência

social. O estabelecimento de um regime autoritário aumentava a capacidade do Estado para efetuar

reformas no sistema previdenciário e nas políticas de proteção social brasileiras, que não puderam

ser efetivadas sob a República Trabalhista. A unificação administrativa e a centralização

burocrática da previdência social obedeciam ao propósito de reduzir a influência do PTB e dos

sindicatos sobre o sistema, dentro da política de racionalização levada adiante no governo Castelo

Branco. No âmbito de tal política, e associado à reformulação do sistema financeiro brasileiro, foi

ainda criado o FGTS, que eliminava, na prática, a estabilidade no emprego após 10 anos de serviço, 54 DELGADO, I. G. “Trajetória e Contra-Reforma da Política Social Brasileira”. In: SALGADO, Gilberto. (Org.). Cultura e Instituições Sociais. Juiz de Fora: EDUFJF, 2006,. Pp. 07-42. 55 DELGADO, I. G.”Empresariado e Política Social no Brasil”. In: Ana Maria Kirschner; Eduardo R. Gomes. (Org.). Empresa, empresários e sociedade. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1999. Pp. 146-163. 56 SANTOS, Op. Cit. 57 DELGADO, I. G. “Atores Sociais e Coalizões na Trajetória da Política Social Brasileira (1945-1964)”. In: Locus. Juiz de Fora: Departamento de História/EDUFJF, 2004. V. 18. Pp. 129-150.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 192

intocada na República Trabalhista. Criava, outrossim, a “contrafação de um seguro-desemprego

inexistente no país”, ao mesmo tempo em que favorecia a rotatividade no emprego, que acentuava o

declínio dos salários, imposto pela política de estabilização em curso.

A ação do regime em relação à política social não foi, entretanto, apenas racionalizadora.

Associada à meta da integração nacional, presente no ideário militar, foi estendida a previdência

social aos trabalhadores autônomos, empregadas domésticas e trabalhadores rurais, o que também

não se efetivara no regime populista. O FUNRURAL, por assentar-se em mecanismo de

financiamento não contributivo, e o PIS, por definir uma forma para a participação dos

trabalhadores no lucro das empresas, aparecia como uma políticas redistributiva, cujo impacto foi,

entretanto, mitigado - especialmente para os trabalhadores urbanos - pela política de arrocho salarial

imposta pelo regime.

A política de universalização da cobertura - desenvolvida pelos militares e pelos setores

técnicos que ganham evidência com a unificação administrativa e a centralização burocrática do

seguro social brasileiro - foi acompanhada, entretanto, da acentuação da presença do setor privado

no provimento dos serviços previdenciários, notadamente a saúde. A influência da categoria médica

e a natureza privatista da coalizão que dá sustentação ao regime favoreciam a preservação dos

mecanismos liberais na concessão da assistência médica, definidos na própria LOPS em 1960, e o

fortalecimento dos hospitais privados no atendimento médico previdenciário. As reformas de

Geisel, empreendidas em meio à reação do ethos militar diante do aprofundamento da

desnacionalização da economia brasileira e da acentuação das desigualdades sociais, não alteraram

este quadro. Sua permanência engendrou reações diferenciadas. De um lado, setores reformistas que

emergiam em meio aos profissionais da área de saúde defenderiam o reforço do provimento e do

controle públicos da assistência médica, combinada à acentuação das medidas de caráter preventivo.

De outro, apareciam os defensores da privatização pura e simples da assistência médica, reservando

o setor público para a assistência aos pobres, a exemplo do modelo estadunidense. Neste campo,

estavam setores da medicina empresarial e, progressivamente, as entidades do empresariado.

Concretamente, a segunda alternativa, independente de medidas legislativas, tenderia a firmar-se,

dado o êxodo crescente da classe média dos serviços públicos de saúde, em estado de progressiva

deterioração, e a expansão de formas variadas de mercantilização da saúde.

As entidades empresariais, ao contrário da postura desenvolvida durante a República

Trabalhista, ficaram relativamente alheias ao processo de unificação administrativa e centralização

burocrática da previdência social efetivada com Castelo Branco. A conversão do sistema ao regime

de repartição simples reduzia a importância dos recursos previdenciários para o financiamento da

acumulação e o declínio dos salários reduzia seu impacto nos custos das empresas. Além disto, num

quadro de vigorosa expansão econômica nos marcos de uma economia fechada, prevalecia a

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 193

possibilidade de transferência dos custos das políticas sociais ao preço dos produtos, sem que isto

acarretasse retração da capacidade de consumo. Desta forma, no IV CONCLAP, realizado em 1977,

salientavam-se os elogios à universalização da cobertura previdenciária. Por seu turno, se o impacto

do crescimento dos dispêndios com a saúde até 1976, no âmbito das despesas da previdência, é

recebido com sugestões para introdução do pagamento da assistência médica no INAMPS e de

criação do “seguro-saúde” para as faixas de renda mais alta, apareciam também sugestões de

reforço do Ministério da Saúde e de ampliação de suas dotações por via de outras fontes tributárias.

A recessão do início dos anos 80 conduziu ao aparecimento de déficits expressivos na

previdência social, acompanhada da imposição, pelo governo Figueiredo, de um aumento das

alíquotas. Neste quadro, acentuaram-se as proposições empresariais para a reforma do sistema. Os

aspectos mais importantes são a defesa da aceleração da privatização da assistência médica, do

aumento da participação dos fundos privados de previdência, da revisão de dispositivos para a

concessão de aposentadorias - com a elevação dos prazos de carência e definição de uma idade

mínima para sua concessão. Ao lado disto, sugeriam-se mudanças na contribuição patronal, de

modo a complementar a taxação sobre a folha de pagamentos - a incidir sobre uma base mínima -

com percentuais relativos ao faturamento, a serem definidos de forma diferenciada, conforme o

tamanho das empresas.

No limite, as proposições empresariais buscavam estabelecer o predomínio de critérios

atuariais no funcionamento da previdência, sem colocar em questão a prevalência da gestão pública

do seguro social, com pequenas alterações em seu financiamento. As sugestões de Mário Amato,

indicadas acima, sobre a desvinculação da previdência social do governo, permaneciam vagas e

parecem retomar a demanda, comum aos empresários no período anterior a 1964, de participação

das “classes interessadas” na gestão do sistema. As formulações empresariais, pois, não

ultrapassavam os limites do processo de americanização já em curso. Assegurada por um regime

autoritário, baseado numa coalizão modernizante e conservadora - que exclui a participação política

dos trabalhadores -, nos marcos de uma economia fechada, a americanização da proteção social no

Brasil ficaria ainda restrita à esfera da saúde, não alcançando, nos anos 80, a previdência social

stricto sensu, apesar de já se encontrar regulamentada a operação do seguro social privado.

Na década de 1980, a noção de seguridade social será inscrita na Carta de 1988 como

princípio regulador do conjunto da política social brasileira58. A notável expansão da presença dos

assalariados na estrutura social, o fortalecimento das correntes políticas que os interpelavam no

sentido da construção de uma identidade classista, a emergência do movimento sanitarista nas

universidades e burocracias públicas, a abertura do sistema político brasileiro favoreceram este

58 DELGADO, I. G.. ”Empresariado e Direitos Sociais na Constituição de 1988”. In: Locus . Juiz de Fora: Departamento de História/EDUFJF, 2000. V. 10. Pp. 55-70.

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resultado. Por seu turno, no marcos de uma economia fechada, ainda que acuados, os empresários

não apresentaram uma proposta alternativa de reforma, tal como será feito na década de 1990. O

passado, entretanto, pesa como um pesadelo. Não obstante as normas definidas em 1988, as

escolhas efetuadas sob o regime militar consolidaram a oferta privada de serviços de saúde e

criaram condições para a cristalização de um sistema dual de proteção social, marcado pelo

provimento público – sempre difícil, nas condições legadas pela busca do ajuste fiscal permanente –

de benefícios e serviços para os mais pobres, ao passo que ricos e remediados buscam benefícios,

serviços e, até, segurança privados, num movimento que põe em risco a comunidade de sentimento

que emoldura o status compartilhado, sob o Estado Nacional, que define o conteúdo básico da

cidadania moderna59. Na década de 1990 tal legado reforça as pressões no sentido redefinição das

formas de custeio e do alcance da proteção social, as primeiras tematizadas na rubrica do Custo

Brasil, com o qual os empresários demandam a mitigação das contribuições incidentes sobre a folha

de pagamentos das empresas, supostamente conducentes à redução da competitividade da indústria

brasileira sob uma economia aberta60.

59 DELGADO, I. J. G. Mercado, Nação e Proteção Social. In: Revista Tempo e Presença. Rio de Janeiro: Koinonia, 2002. V. 24. Nº 325. Pp. 11-15. 60 DELGADO, I. G. “Abertura Econômica e Política Social : a perspectiva empresarial”. In: Teoria & Sociedade. Belo Horizonte: FAFICH/UFMG, 2000. V. 5. Pp. 82-122.

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EM PAUTA: O MOVIMENTO MILITAR DE 1964 - sob a ótica de um jornal juizforano - 1

Flávia Maria Franchini Ribeiro*

Resumo: O artigo realiza uma análise das abordagens do regime militar, enfocando a transição de referência ao movimento militar instalado em 1964 como “revolução” ou “golpe militar”, baseada no jornal Tribuna de Minas dos anos 1984, 1994 e 2004. Palavras-chave: 1964; revolução; golpe; Tribuna de Minas. Abstract: This articles does an analysis of approaches about the military junta, instaled in 1964, as “revolution” or “military coup” and based on Tribuna de Minas newspaper of 1984, 1994 and 2004. Key-words: 1964; revolution; coup; Tribuna de Minas.

1. INTRODUÇÃO

Transformações sócio-culturais podem ser observadas através do noticiário quotidiano que

nos fornece as informações, influenciado pelo próprio contexto que as produziu. Esse elemento é

patente na abordagem de setores formadores de opinião sobre o 31 de março de 1964, que resultou

na deposição do Presidente da República João Goulart por um golpe civil-militar tendo por

conseqüência 21 anos de ditadura no país.

Juiz de Fora é a cidade de onde partiram as tropas militares, comandadas pelo General

Olympio de Mourão Filho que se definiu “uma vaca fardada”2 após a tomada do poder. À época, o

fato foi festejado na imprensa local. Manchete do Diário da Tarde, em 1964, anunciava: “Minas

mais uma vez sai em defesa da liberdade restituindo ao Brasil, em 36 horas, a paz e a democracia”.3 1 Este artigo foi originalmente produzido como trabalho de aproveitamento para a disciplina História de Minas Gerais, lecionada pela profa. Dra. Mônica Ribeiro de Oliveira, no curso de História do Instituto de Ciências Humanas da UFJF, e permaneceu inédito até o momento. A data de sua confecção foi o primeiro semestre letivo de 2004, cabendo aqui esclarecer que seu conteúdo refere-se àquele período, no contexto de rememoração dos 40 anos do golpe militar. Para fins práticos, visando esta publicação, realizamos uma pequena revisão em seu conteúdo, mantendo porém, a sua proposta original. * Mestre em História, Cultura e Poder pela UFJF 2 GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 139. 3 DIAS, Renato. “Minas mais uma vez sai em defesa da liberdade restituindo aos Brasil, em 36 horas, a paz e a democracia”. Tribuna de Minas, Juiz de Fora, 28/03/84, Especial 64: 20 anos depois, p. 08.

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Chamada naquele período de a “capital revolucionária”,4 a cidade adotou mais recentemente um

posicionamento inverso com relação aos acontecimentos de 31 de março de 1964.

Através das páginas de um jornal publicado nesta cidade, a Tribuna de Minas, buscamos

verificar como um periódico abordou este acontecimento e as suas conseqüências na sociedade, em

um diálogo com as transformações históricas ocorridas nas últimas décadas. A postura crítica diante

dos eventos permaneceu a mesma, mas ao acompanharmos a materialização desta visão, com o

passar dos anos, verificamos que o termo utilizado para definir o 31 de março de 1964 sofreu

mudanças.

Se em 1984 utilizou-se em larga escala a expressão “revolução” nas páginas desse jornal, já

em 2004 o termo “golpe” foi senso-comum para definir o movimento militar. Essa transformação,

não exclusiva do município mineiro, mas em escala nacional e sentida pelos militares, levou em

determinada ocasião, segundo nos informa o historiador Carlos Fico, um dos integrantes daqueles

governos a afirmar que foi perdida por eles a “batalha da comunicação”.5

Para a verificação empírica desta análise nas páginas de Tribuna de Minas, o ponto de

partida foi a série de reportagens intitulada “64: 20 anos depois”, desenvolvida em oito partes de

uma página inteira publicadas diariamente entre os dias 27 de março e quatro de abril de 1984.6

Com vistas a realizar um apanhado geral do movimento e de suas conseqüências, os textos

abordavam a memória de setores favoráveis e daqueles que foram perseguidos pelo regime, a

postura de políticos locais à época frente ao movimento militar, o ambiente local às vésperas do 31

de março, a opinião dos jovens nascidos durante a Ditadura, a cobertura da imprensa local, a

repressão e, ainda trazia um histórico do movimento e seu impacto na educação e economia

nacionais.

Fixamo-nos, para fins deste artigo, na postura analítica adotada pelo periódico sobre os

acontecimentos, tratando o assunto como um reflexo conjuntural. A partir deste material, nosso

objetivo foi analisar as leituras de 1964 pela sociedade local, expressas pelas páginas deste jornal.

Para tanto, relacionamos as abordagens sobre o aniversário do golpe de 31 de março de 1964 pela

Tribuna de Minas, ao longo de três décadas: 1984, 1994 e 2004.7 A data de fundação do jornal, 4 “Aqui fala Juiz de Fora, capital revolucionária do país”. Noticiarista T9, na manhã de 01 de abril de 1964, de um alto falante no prédio das rádios Difusora e Industrial. Cf. MIRANDA, Ricardo. “Decisão isolada em JF dá início a golpe e abre caminho para a ditadura no país”. Tribuna de Minas, Juiz de Fora, 28-29/03/2004, Política, pp. 04 e 05. 5 Afirmação de Jarbas Passarinho em 2003: “vencemos a luta armada dos comunistas, mas perdemos a batalha da comunicação”. Apud: FICO, C. A Ditadura mostra a sua cara: imagens e memória do período (1964-1985). Disponível em <www.history.umd.edu/HistoryCenter/2004-05/con/Brazil64/papers/cficoport.pdf.>, em 25 de maio de 2005, p. 07. 6 Exceto dia 02 de abril de 1984, segunda-feira, quando a Tribuna de Minas não circula. 7 Os recortes com o especial da Tribuna de Minas “!964: 20 anos depois”, encontram-se no Arquivo Histórico da UFJF na caixa intitulada “Coleção de Recortes de Jornais sobre Juiz de Fora” que contém variadas reportagens sobre a cidade mineira. A Tribuna de Minas de 1984 está preservada no Setor de Memória da Biblioteca Municipal Murilo Mendes. O Jornal de 2004 encontra-se no Setor de Periódicos da mesma biblioteca.

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1983, impediu-nos analisar o objeto em 1974 – ano em que completou a primeira década da

implantação do regime.

De toda a forma, permanecem as interpretações dos acontecimentos de 1964 pelas páginas

de um jornal, que nos oferece uma visão dos discursos construídos sobre um mesmo fato, ao longo

do tempo, com as interferências de fatores variados. Assim, visto que o ato de rememorar será

sempre uma interpretação da realidade pela testemunha, conforme afirmou o historiador italiano

Alessandro Portelli,8 o material publicado na Tribuna de Minas fornece aos estudiosos campo para

o estudo sobre a adequação de certas argumentações presentes na opinião pública, como o fruto de

um diálogo, tomando por base a época em que foram produzidas.

2. AS MOTIVAÇÕES DO GOLPE

A República brasileira é marcada por constantes intervenções sob o argumento de assegurar

a ordem, porém segundo os interesses de classe, e por dois longos períodos sob o regime ditatorial9,

sendo o mais recente o resultado do golpe civil-militar de 1964.

2.1. Prelúdios do golpe

O golpe resultou da montagem de uma complexa coalizão heterogênea e contraditória.

Incluía as frações das classes dominantes, parcelas da pequena-burguesia, profissionais liberais e a

nova classe média burocratizada aliados aos grupos militares.10

O período anterior a 1964 foi marcado pela união de interesses de industriais e banqueiros,

inseridos no aparelho burocrático nacional, com o capital transnacional. Articulou-se um rearranjo

do Estado, de caráter golpista, segundo os interesses multinacionais e associados. Dessa forma, a

política populista não era mais viável. Exigia-se a participação direta desses setores em órgãos

burocráticos da administração.11

Em 25 de agosto de 1961, o presidente Jânio Quadros renunciou, numa tentativa golpista de

retornar ao poder por aclamação popular. O vice-presidente João Goulart encontrava-se naquele 8 PORTELLI, Alessandro. A Filosofia e os Fatos: Narração, interpretação e significado nas memórias e nas fontes orais. TEMPO. Dossiê Teoria e Metodologia. Departamento de História da Universidade Federal Fluminense, Ed. Relume-Dumará, Volume 1, n. 2, dezembro, 1996, p. 60. 9 Na primeira metade do século foi instituído, em 1937, o Estado Novo sob o comando de Getúlio Vargas, que durou até 1945. 10 CRUZ, Sebastião C. Velasco & MARTINS, Carlos Estevam. De Castello a Figueiredo: uma incursão na pré-história da abertura. IN: SORJ, Bernardo & ALMEIDA, Maria Hermínia T. (org.). Sociedade e Política no Brasil no pós-64. São Paulo: Brasiliense, 1983, pp. 13-61. 11 DREIFUSS, René Armand. 1964: A conquista do Estado. Ação política, poder e golpe de classe. 3ª ed. Petrópolis: Vozes, 1981, p. 38.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 198

momento em viagem à China. A partir daí teve início a articulação de uma série de setores

conservadores da sociedade com o intuito de impedir a posse de Jango, como era popularmente

conhecido.

João Goulart era visto como ameaça por esses setores. Mesmo com um histórico político

construído nos governos populistas, em que “(...) contribuía objetivamente para um melhor controle

do Estado burguês sobre as atividades sindicais”,12 segundo Caio Navarro de Toledo. No entanto,

sua defesa do capitalismo não convencia os setores mais conservadores da sociedade, estes com um

perfil golpista histórico, e que freqüentemente associavam-no à ameaça da instituição de uma

“república sindicalista”.

Imediatamente após a renúncia de Jânio Quadros, os ministros militares, com o apoio da

UDN e de setores conservadores, articularam-se numa manobra para impedir a posse do vice-

presidente da República. Em contrapartida, o governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola,

com apoio do III Exército e de ampla mobilização popular, organizou a “Rede da Legalidade”

exigindo o cumprimento da Constituição.13

João Goulart foi finalmente empossado, mas sob o controle conservador através da emenda

constitucional que instituiu o Parlamentarismo. Quando, em 1963, a emenda foi revogada, o país

atravessava uma crise econômico-financeira e estava sob tensões sociais e crise política que

desgastavam a administração pública. Wanderley Guilherme dos Santos atribui o desencadeamento

do Golpe a uma “crise de paralisia decisória”. Segundo ele, houve um processo de fragmentação e

radicalização do Legislativo gerando uma espécie de imobilismo político. A relação entre o

Executivo e o Legislativo ficou tensa devido à falta de apoio por uma coalizão parlamentar

majoritária.14

2.2. A ação precipitada resulta na vitória militar

O estilo conciliador do Governo Goulart seria, pois, fracassado. O presidente utilizava-se de

instrumentos populistas em um período onde eles não eram mais considerados eficazes para os

setores com interesses econômicos específicos. Assim, “embora agitasse as bandeiras do

nacionalismo e das reformas sociais, o governo, porém, protelava indefinidamente a realização de

medidas populares e nacionalistas que independiam de aprovação legislativa”.15 Elas serviam como

ameaça ao equilíbrio político e hegemônico de forças conservadoras e de direita, embora não

contivessem “nenhum sentido revolucionário”. Algumas medidas econômicas desagradavam 12 TOLEDO, Caio Navarro de. O Governo Goulart e o Golpe de 64. 7ª ed. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1986. (Coleção Tudo é História, 48), p. 16. 13 GORENDER, Jacob. Combate nas trevas. 6ª ed. São Paulo: Editora Ática, 1999, p. 21. 14 SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Sessenta e quatro: anatomia da crise. São Paulo: Vértice, 1986, pp. 134-135.

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trabalhadores e empresários. No entanto, ao mesmo tempo em que se desenhava uma ameaça

revolucionária com João Goulart, aos olhos da direita, o Presidente postergava a realização de

medidas populares enfraquecendo-se com a esquerda. O governo João Goulart estava isolado

politicamente.16

Diante do quadro, o Presidente voltaria a buscar o apoio popular com atitudes que

indicavam uma ameaça comunista, para os setores conservadores da sociedade. Essa ameaça num

contexto de Guerra Fria comprometeria posições estratégicas, caso ocorresse num país com as

dimensões do Brasil. Havia o medo da influência cubana, com a crescente propagação das ações de

Fidel Castro e seus companheiros na ilha caribenha, e um sentimento na imprensa de que “João

Goulart perdeu o controle do País”.17

Artigo de Carlos Castello Branco, intitulado ‘Em colapso o sistema militar anti-Goulart’,

publicado no Jornal do Brasil, em 29 de março de 1964, às vésperas do deslocamento das tropas da

IV Região Militar, dizia: “A impressão das correntes oposicionistas (...) é a de que, se não ocorrer

um milagre, nos próximos dias, se não nas próximas horas, o Sr. João Goulart, ainda que não

queira, cobrirá os objetivos que lhe são atribuídos de implantar um novo tipo de República (...).”.18

Esse “novo tipo de República” seria a temida “república sindicalista”.

A Tribuna de Minas publicaria em 1984 uma reportagem sob o título “O comunismo:

ameaça ou vítima em 1964?”, exatos 20 anos após o início do deslocamento das tropas, onde dois

entrevistados associam o período a uma “confusão” e seu desfecho como fruto do desejo popular,

embora a análise das conseqüências do movimento refletisse a contrariedade com os seus efeitos.

Segundo o arcebispo de Juiz de Fora na época do Golpe, D. Geraldo Maria de Morais

Penido, o deslocamento das tropas foi acompanhado de mobilização popular. Relembrou na

entrevista ter visto “(...) o povo sair pelas ruas e praças embandeiradas, festivas, a receber seus

filhos e irmãos soldados, que voltavam de uma conquista que tinha sido fácil. A Revolução vencia

sem derramamento de sangue.” Para depois completar que logo após a vitória das tropas, “(...)

recomeçavam dias amargos”, referindo-se às prisões e torturas. Apenas Milton Fernandes - que se

disse “barbeiro, comunista e nacionalista” – considerou, na matéria, o movimento como “um golpe

de estado por uma minoria”. 19

15 TOLEDO, Caio Navarro de (org.). 1964: Visões Críticas do Golpe. Democracias e reformas no populismo. Campinas: Editora da Unicamp, 1997, (Coleção Momento), p. 36. 16 TOLEDO, C. N. O Governo Goulart e o Golpe de 64, pp. 55-56 e 60. 17 GUILHERMINO, Luiz Alberto e PAIVA, Raquel. “Eu sabia até a data da Revolução”. Tribuna de Minas, Juiz de Fora, 29/03/1984, Especial: 64: 20 anos depois, p. 08. 18 BRANCO, Carlos Castello Branco. “Em colapso o sistema militar anti-Goulart”, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 29/03/64, p. 4. APUD:GASPARI, E. Op. Cit., p. 52. 19 MUANIS, Geraldo. “O comunismo: ameaça ou vítima em 1964?”. Tribuna de Minas, Juiz de Fora, 31/03/1984, Especial: 64: 20 anos depois, p. 08.

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A atitude precipitada do General Olympio de Mourão Filho, em relação às intenções

golpistas do comando militar, ocorreu após assistir pela TV ao discurso de João Goulart no comício

da Central do Brasil, em 13 de março de 1964. O líder do movimento pretenderia livrar o País dos

soviets.20 A tradicional preocupação dos militares em conter o comunismo era “maior do que a

existência de um programa coerente de reformas e mudanças”.21

Os partidários do movimento militar afirmaram que ele foi fruto do anseio popular.22 De

fato, setores da sociedade civil se organizavam àquela época em manifestações anti-comunistas,

como as Marchas da Família com Deus pela Liberdade. Os anos que prenunciaram o movimento

civil-militar de 31 de março foram de intensas manifestações, desenhando um novo contexto

político-social. O historiador Jacob Gorender analisa que os grupos dominantes possuíam razões

concretas para o temor que sentiam, pois a luta de classes vivia seu momento mais ativo ameaçando

a estabilidade burguesa diante do fracasso coercitivo do Estado. O Brasil vivia um quadro pré-

revolucionário que foi sufocado por um golpe preventivo. “Houve a possibilidade de vencer, mas

foi perdida.”.23

No entanto, o tempo demonstraria que à vitória militar, não bastaria depor João Goulart:

João Goulart caiu dia 1o. de abril. O regime de 1946, nos dias seguintes. Por conta da radicalização que leva ao conflito para fora do círculo estrito das cúpulas política e militar, a vitória não podia extinguir-se com a deposição do presidente. Fosse qual fosse o lado vitorioso, ao seu triunfo corresponderia um expurgo político, militar e administrativo. O levante se apresentara como um movimento em defesa da ordem constitucional, mas a essência dos acontecimentos negava-lhe esse caminho.24

O movimento afundaria o país numa ditadura que durou 21 anos, quando então, foram

realizadas eleições indiretas para Presidente da República. Esse período foi marcado pela intensa

repressão política e a censura contra as vozes discordantes, que posteriormente seriam elementos

para a associação da sociedade civil aos governos militares. Em depoimento ao jornalista Hélio

Contreiras, o general Newton Cruz, instrutor da Escola de Comando e estado-Maior do Exército,

em 1964, revelaria: “Cometemos tantos erros que o Brasil acabou não sendo, nos anos 90, o País

que a sociedade brasileira desejava.”. Às palavras do militar juntam-se os vários depoimentos na

Tribuna de Minas de pessoas que apoiaram a deposição de João Goulart em 1964, decepcionadas

vinte anos depois.

20 MIRANDA, Ricardo. “Entrevista: Laurita Mourão. ‘O Governo estava para a esquerda e os generais não toleravam isso’”, Tribuna de Minas, Juiz de Fora, 28-29/03/2004, Política, p. 04. 21 MUANIS, G. “Impasse na economia atual gera nostalgia. Entrevista com André Gaio.”, Tribuna de Minas, Juiz de Fora, 31/03/94, Política, p. 04. 22 GUILHERMINO, L. A e PAIVA, R. “Eu sabia até a data da Revolução”. Tribuna de Minas, Juiz de Fora, 29/03/1984, Especial: 64: 20 anos depois, p. 08. 23 GORENDER, J. Op. Cit., pp. 72-73. 24 GASPARI, E. Op. Cit., p. 121.

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3. FATOS E VERSÕES

As referências a 1964, no jornal Tribuna de Minas, por nós analisadas, foram produzidas em

três momentos específicos. Os anos 1984, 1994 e 2004 refletem conjunturas diferentes, embora

possuam elementos de continuidade em relação ao período do Golpe. No entanto, a particularidade

dos acontecimentos que caracterizavam particularmente esses períodos refletiu-se nas abordagens

sobre o movimento militar.

3.1. Breve contextualização dos anos

3.1.1. 1984

O ano de 1984 é marcado pela Campanha ‘Diretas Já’, lançada no ano anterior com o

comício de Goiânia.25 O Brasil ainda vivia sob o poder militar sendo governado por João Baptista

Figueiredo, o último general presidente. Os brasileiros iam para as ruas em comícios e passeatas

pedir eleições com o slogan “Eu quero votar para presidente”26.

Em janeiro, comícios na Praça da Sé em São Paulo e em Belo Horizonte, reuniram 300 mil

pessoas cada um. O movimento era de agregação popular, após anos marcados pelo medo dos

encontros públicos. No dia 10 de abril foram um milhão de pessoas na Candelária, no Rio de

Janeiro, clamando eleições diretas para Presidente da República.27

O Brasil atravessava grave crise econômico-financeira e social, associada pela maioria dos

entrevistados pela Tribuna de Minas, em 1984, ao cenário vivido pelos brasileiros às vésperas do

movimento de 1964. Com o desastre do milagre econômico, houve queda do ritmo de crescimento e

recessão. A inflação estava elevada e com tendência de maior alta. A taxa anual de crescimento do

PIB era de apenas 1,5% em comparação com o período do milagre (1968-73) que foi de 11,1%.28

Havia a esperança de transformação do quadro de crise com as eleições diretas para

Presidente da República, representando o fim dos governos militares, e a possibilidade de uma nova

Constituinte para a redação da nova carta brasileira, em substituição à de 1967, redigida sob a égide

da ditadura.

3.1.2. 1994

Itamar Franco era então o terceiro civil a governar o Brasil após o fim do regime militar.

Antes de Itamar Franco foram presidentes: José Sarney e Fernando Collor. 25 ASCENSÃO e queda do Regime Militar. Retrato do Brasil. São Paulo: Política Editora, 1985, p. 515. 26 Frase estampada em camisetas e bottons. Arquivo pessoal da autora. 27 KOSHIBA, Luiz. História do Brasil. São Paulo: Atual, 1987, p. 374.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 202

Sarney tornou-se o primeiro civil presidente da República após os governos militares, em

substituição a Tancredo Neves do PMDB, eleito indiretamente pelo Colégio Eleitoral. Em 14 de

março de 1985, um dia antes de ser empossado, Tancredo foi submetido às pressas a uma cirurgia e

faleceu em 21 de abril de 1984. Assim, o seu vice, José Sarney, assumiu o cargo.

Em 1989 o Brasil elegeria o primeiro presidente da República por eleições diretas, após a

Ditadura. Fernando Collor de Mello venceu Luís Inácio Lula da Silva no segundo turno das eleições

com um discurso de combate aos “marajás”. Mas as denúncias de corrupção, associadas ao seu

governo, mobilizaram a mídia nacional e a sociedade civil para pressionar o Congresso a cassar o

mandato do Presidente. Após o impeachment de Fernando Collor de Mello, seu vice, Itamar Franco,

assumiu a presidência da República.

Já no governo Itamar, às vésperas do Plano Real (implementado em 1o de julho de 1994), o

cenário econômico brasileiro era de desconfiança. Em oito meses de governo, o Presidente já havia

demitido três ministros da Fazenda. A perspectiva naquele ano era uma inflação de 5.500%.29

A democracia estava frágil. Segundo análises, a herança dos anos militares ainda se fazia

presente numa organização que “compromete o funcionamento do Legislativo”, devido à dinâmica

que se instalara a partir de 1964.30

O País vivia uma onda de tumultos devido à conversão de salários baseada na URV -

Unidade Real de Valor. “Mistura de moeda e indexador, a URV coexistia com o cruzeiro real, valia

US$ 1 e corrigia salários e contratos. Aos poucos, trabalhadores e empresários passaram a calcular

em URV.”31

Acontece que os militares e os membros do STF discordavam da base para o cálculo de seus

rendimentos. Os últimos se valeram de um recurso considerado “legal mas não ético”32 para

aumentar seus salários acima do valor fixado segundo a URV. Tal atitude gerou uma crise entre os

poderes, o que repercutiu numa série de boatos sobre as possibilidades de outro Golpe.

Esse sentimento era agravado pelo descontentamento dos militares. O tenente- brigadeiro

Mauro José Granda acusaria o governo e a sociedade civil de não reconhecerem o mérito das Forças

Armadas.33 Isso porque a conversão dos salários em URV, pela mesma fórmula dos servidores do

Executivo, implicava um prejuízo de 32% para os militares da ativa e da reserva. A medida era 28 ASCENSÃO e queda do Regime Militar. Op. Cit., p. 515. 29 PATU, Gustavo. “Plano nasce da mistura de economia e política”, Folha de São Paulo. São Paulo, 27/06/04, Dinheiro, Dez anos de Real, p. B3. 30 MUANIS, G. “Impasse da economia atual geral nostalgia. Entrevista com André Gaio.”, Tribuna de Minas, Juiz de Fora, 31/03/94, Política, p. 04. 31 PATU, G. “Plano nasce da mistura de economia e política”. Folha de São Paulo, São Paulo, 27/06/04, Dinheiro, Dez anos de Real, p. B3. 32 FERREIRA, José de Castro. “O golpe de Estado”, Tribuna de Minas, Juiz de Fora, 29/03/94, Política, p. 03. 33 “BRIGADEIRO reclama de ingratidão”, Tribuna de Minas, Juiz de Fora, 26/03/94, O País, p. 04.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 203

contestada no STF pela FAMIR - Federação de Associações de Militares da Reserva Remunerada,

de Reformados e de Pensionistas das Forças Armadas.

Ao mesmo tempo, a sociedade buscava reagir contra o seu passado recente. O País

presenciava protestos isolados relembrando o aniversário de “30 anos do golpe de 1964”, como o da

Lagoa Rodrigo de Freitas, organizado por estudantes cariocas.34 Acontecia ainda o movimento em

favor do reconhecimento pelo Estado dos mortos e desaparecidos durante a repressão política. Em

dezembro de 1995 foi aprovada a Lei 9.140, fruto de reivindicações iniciadas ainda na Ditadura,

pela apuração da culpabilidade do Estado nas mortes ocorridas durante o regime militar.35

3.1.3. 2004

O ex-metalúrgico Luís Inácio Lula da Silva estava no segundo ano de seu primeiro mandato

como Presidente da República. A vitória do Partido dos Trabalhadores nas eleições de 2002 foi

impressa sob o signo da mudança.

Com o Plano Real, a inflação foi controlada e era prevista a taxa de 6,4% em 2004 pelo

Banco Central.36 Porém, seus efeitos, associados aos oito anos de governo neoliberal conduzido por

Fernando Henrique Cardoso, produziram o corte de 2,6 milhões de vagas de trabalho e o reajuste de

255% nas tarifas públicas.37

Se muitos consideram que o País encontrou o equilíbrio econômico, podemos afirmar que

ainda permanece a crise social presente nos outros aniversários do Golpe. A taxa de desemprego no

mês de maio de 2004 ficou em 12,2%.38 O brasileiro amargava uma queda mensal em seus

rendimentos enquanto aumentava a concentração de renda.39

A avaliação de Lula nas pesquisas daquele ano revelava queda na sua popularidade. O

Governo advogava ter realizado feitos na área social e no combate à corrupção,40 mas a população

apresentava seu desgosto diante da permanência de baixa oferta de empregos e do aumento do custo

de vida.

Relembrando os 40 anos do Golpe, estudiosos do País se reuniram num evento, realizado

em março, no Rio de Janeiro, para debater o tema na academia. O Seminário teve por título “1964-

2004: Seminário 40 anos do Golpe: Ditadura Militar e Resistência no Brasil” e foi organizado pela 34 “ALTO comando do Exército tem reunião em Brasília”, Idem. Ibidem. 35 Para mais informações: MIRANDA, Nilmário & TIBÚRCIO, Carlos. Dos filhos deste solo: Mortos e desaparecidos políticos durante a ditadura militar: a responsabilidade do Estado. São Paulo: Boitempo Editorial, 1999. 36 Cf. REUTERS Investor. “Previsão BC aumenta projeções de inflação em 2004”. Invertia, site de economia do Terra, < http://br.invertia.com/>, em 30/06/04. 37 Seg. dados do Dieese, IBPT, IPC-Fipe, Ipea e Anbid. IN: “QUEM ganhou ... e quem perdeu com o Real”, Folha de São Paulo, São Paulo, 27/06/04, Dinheiro, p. B1. 38 Cf. PESQUISA Mensal de Emprego do IBGE, < www.ibge.gov.br>, em 30/06/04. 39 Segundo dados DIEESE <www.dieese.org.br>, em 30/06/2004. 40 “Governo Lula completa 18 meses tentando reverter queda na imagem”. Estadão, 04/07/04, Política, <www.estadao.com.br/agestado/noticias/2004/jul/04/73.htm>, em 07/07/2004.

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UFRJ, UFF, CPDOC/FGV e APERJ. O assunto foi trabalhado sob variadas vertentes em mesas de

debates, palestras e comunicações.41

3.2. Três décadas após o 31 de março, três abordagens

3.2.1. Enfoques

Nas três datas, 1984, 1994 e 2004, a Tribuna de Minas propiciou aos leitores três maneiras

de falar do movimento militar de março de 1964.

Em 1984, o material foi tratado em forma de grande reportagem num especial intitulado

“64: 20 anos depois”. O texto de abertura buscava relacionar o trabalho jornalístico, então iniciado

pela Tribuna de Minas, à reunião que teria deflagrado o deslocamento das tropas da IV Região

Militar, sediada em Juiz de Fora, quatro dias depois. Dizia o trecho inicial:

Há exatamente 20 anos, em Juiz de Fora, reuniam-se o marechal Odílio Denys, o general Mourão Filho e o governador Magalhães Pinto. O motivo do encontro: marcar a data do levante militar contra o Governo Federal, contra João Goulart, então presidente da República. Esta é a primeira parte de uma série de reportagens sobre a Revolução de 64.42

Ao final concluía que “(...) a Tribuna de Minas acredita ter concretizado um pequeno perfil

sobre o movimento revolucionário que completou 20 anos no sábado passado(...)”, reiterando que o

“assunto não está esgotado”.43

Durante estas publicações o regime militar estava em vigor e a Tribuna de Minas ainda

chamou o período de “revolução” ou “movimento revolucionário”. Mesmo algumas pessoas

perseguidas a partir de 1964, referiam-se à “revolução”, como é o caso de Nery da Mendonça,

vereador do PTB, preso e cassado pela Câmara de Vereadores.44

Já em 1994, o mesmo ex-vereador, novamente entrevistado, denominou o movimento de “a

pretendida revolução”, com o termo escrito entre aspas pelo Jornal.45 Novamente entrevistado em

2004 pela Tribuna de Minas, Nery da Mendonça foi ainda mais enfático ao afirmar que a “dita

Revolução” (aqui também a palavra aparecia escrita entre aspas) trouxera apenas a escravidão

financeira para o país.46 41 Foram publicados os anais do encontro com a referência: SEMINÁRIO 40 Anos do Golpe de 1964 (2004: Niterói e Rio de Janeiro). 1964 – 2004: 40 anos de golpe: ditadura militar e resistência no Brasil. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2004. (Trabalhos apresentados no Seminário 40 anos do Golpe de 1964, realizado no Rio de Janeiro, de 22 a 26 de março de 2004 no IFCS/UFRJ, ICHF/UFF e na FGV). 42 MUANIS, G. “Tropas na estrada. Vai começar a Revolução.”. Tribuna de Minas, Juiz de Fora, 27/03/1984, Especial: 64: 20 anos depois, p. 08. 43 MUANIS, G., SALGADO, Guilherme e GUILHERMINO, L. A “Editorial do Especial 64: 20 anos depois”, Tribuna de Minas, Juiz de Fora, 04/04/84, p. s/n. 44 “Nery Mendonça: “As classes trabalhadoras estavam começando a entrar para o Poder. Aí surgiu a Revolução”. Idem. Ibidem. 45 MUANIS, G. “Império da miséria causa temor e golpe”, Tribuna de Minas, Juiz de Fora, 31/03/94, Política, p. 04. 46 MIRANDA, R. “Silêncio marca a passagem dos 40 anos em JF”, Tribuna de Minas, Juiz de Fora, 01/04/04, p. 06.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 205

De fato, o jornal juizforano em 1994 já denotava maior liberdade para um posicionamento

crítico em relação ao regime militar. O mesmo jornalista de 1984, Geraldo Muanis, assinou o texto

da reportagem intitulada “Herança política do golpe de 64 é negativa”. Afirmava tratar-se de uma

“triste data” e apontava os “que sofreram com a instalação dos militares no poder”.47

No entanto, em 94, ficaria um vácuo com relação ao espaço dedicado ao tema, se esta

publicação for comparada à da década precedente. Em 1994 somente duas páginas foram dedicadas

à data em que as tropas se deslocaram da IV Região Militar, em Juiz de Fora, rumo ao Rio de

Janeiro. A matéria foi publicada somente no dia 31 de março.

A única outra referência feita ao período, nesta época, data do dia 26 de março, no

“Editorial” do periódico, ao ser comentada a crise entre os poderes, ocasionada pela conversão dos

salários, segundo cálculo baseado na URV. Mas, neste caso, ele não representava um espaço

dedicado especificamente à memória de 1964, mas era o resultado da comparação de fatos em uma

determinada conjuntura. Dizia o texto:

O desfecho da crise entre os poderes - não importa qual seja ele - pode demonstrar à nação o quanto a democracia é importante para cada cidadão, que hoje se sente mal à simples menção da palavra ‘golpe’. Uma palavra, por sinal, ainda não completamente exorcizada da vida nacional e que nos últimos dias provocou sonhos ou pesadelos de praticamente toda a sociedade.48

Porém, o texto refletiu um amadurecimento de posições sobre o 31 de março e as suas

conseqüências. Enquanto falava-se abertamente do temor ao “golpe” e sobre a data caracterizada

por “triste”, a IV Região Militar convocou militares e civis para a cerimônia comemorativa dos 30

anos da “Revolução Democrática de 31 de março de 1964”.49 As opiniões ainda estavam divididas

e havia um clima de “nostalgia”50 em relação ao poder militar.

O mesmo já não ocorreu em 2004. A intenção jornalística de imparcialidade continuava

mantida. O jornal apresentou entrevistas com representantes dos dois lados do processo. O primeiro

volume da série narrou a iniciativa isolada do General Mourão Filho e, que precipitou a deposição

de João Goulart, tramada entre setores conservadores da sociedade brasileira.51

Mas o tom de crítica ao movimento foi explicitado em títulos de reportagens como “Decisão

isolada em JF dá início a golpe e abre caminho para ditadura no país”. Aqui a matéria já estava

bastante influenciada por uma bibliografia que visou analisar sistematicamente os fatos, em 47 MUANIS, G. “Herança política do golpe de 64 é negativa”, Tribuna de Minas, Juiz de Fora, 31/03/94, Política, p. 03. 48 “SOMBRA Militar”, Tribuna de Minas, Juiz de Fora, 26/03/94, Opinião, p. 02. 49 “CONVITE.” Anúncio pago publicado na Tribuna de Minas, Juiz de Fora, 29/03/94, p. 05. 50 Cf. professor da UFJF, o cientista político André Gaio. IN: MUANIS, G. “Impasse da economia atual gera nostalgia. Entrevista com André Gaio”, Tribuna de Minas, JF, 31/03/94, p. 04. 51 Sobre o assunto ver: GASPARI, Elio. Op. Ct., p. 63 (sobre a decisão do General Mourão Filho), p. 69 (sobre a reação de Castello Branco à decisão de Mourão Filho) e p. 81 (sobre o golpe premeditado, entre setores conservadores, marcado para outra data). Ver ainda: MUANIS, G. “Primeira data para o golpe: dois de abril”, Tribuna de Minas, Juiz de Fora, 27/03/84, Especial 64: 20 anos depois, p. 08.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 206

especial, publicações do jornalista Elio Gaspari: “As ilusões Armadas” e “O Sacerdote e o

Feiticeiro”.52

O espaço dispensado a 1964 ocupou duas páginas da edição dominical e uma no dia

seguinte ao aniversário do movimento, data definitiva da queda de João Goulart. A primeira

reportagem trouxe entrevistas com uma vítima do regime, o ex-presidente do DCE Arnaldo Pereira,

e com a filha e biógrafa de Olympio Mourão Filho, Laurita Mourão. As perguntas do jornalista

foram feitas a ela, durante todo o tempo, mencionando o termo “golpe”. Nesse momento, numa

revisão histórica da figura do presidente deposto, João Goulart foi poupado até mesmo pela

entrevistada, que declarou considerá-lo “encantador”.53 Uma grande transformação de posição se

compararmos a 1984, quando João Goulart ainda era relacionado à ameaça ou fraqueza. No entanto,

persistiu a alusão ao medo do comunismo como elemento desencadeador do golpe.

3.2. Espectro da sociedade

O Jornal, na tentativa de relatar os fatos, acabou por expressar conjunturas específicas. Não

deixou também de reportar uma transformação na abordagem sobre os acontecimentos

desencadeados em 31 de março de 1964.

A imprensa local em 1964, pertencente ao Grupo Diários Associados, que sempre fez

oposição a João Goulart, defendeu o movimento conclamando “todos os homens de bem no sentido

de se unir em defesa das tradições democráticas do nosso povo”.54 Nesse momento a “democracia”

significava a marcha contra a ameaça comunista, tendo sido interpretada como incorporada às ações

de João Goulart.

No entanto, em entrevista ao “Especial 64: 20 anos depois”, de 1984, o deputado estadual à

época do golpe, José de Castro Ferreira, preso pela repressão e submetido a Inquéritos Policial-

Militares, associou a deposição de João Goulart ao temor por uma atitude de transformação, pois

Jango “(...) desafiou dogmas e tentou desatar nós políticos e econômicos”. A reportagem deste dia,

datada de 29 de março, iniciaria com o sugestivo título “JF paga até hoje”, relatando também que

mesmo os órgãos de comunicação simpáticos ao governo seriam “enquadrados” após o golpe.55

20 anos depois do deslocamento das tropas de Juiz de Fora, a realidade é outra. A proposta

se revelou fracassada mesmo para aqueles que a apoiaram. A Tribuna de Minas coletou uma série 52 Ambos referem-se ao conjunto de obras de autoria de Elio Gaspari. “As ilusões Armadas” é composta por: A Ditadura Envergonhada. op cit.; e A Ditadura Escancarada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. Já “O Sacerdote e o Feiticeiro” é composto por A Ditadura Derrotada. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.; e A Ditadura Encurralada. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. 53 MIRANDA, R. “Entrevista: Laurita Mourão. “O Governo estava para a esquerda e os generais não toleravam isso”. Tribuna de Minas, Juiz de Fora, 28 e 29/03/04, p.04. 54 DIAS, R. “Minas mais uma vez sai em defesa da liberdade restituindo aos Brasil, em 36 horas, a paz e a democracia”. Tribuna de Minas, Juiz de Fora, 28/03/84, Especial 64: 20 anos depois, p. 08. 55 INTIMADOS e marcados. Tribuna de Minas, Juiz de Fora, 29/03/84, Especial 64: 20 anos depois, p. 08.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 207

desses depoimentos de pessoas que se consideraram traídas com as mudanças de rumo do

movimento militar. O texto de abertura revelou que muitas pessoas procuradas se negaram a dar seu

depoimento, mas que outras o fizeram como forma de justificar uma posição política adotada no

passado.

Dentre os mais significativos destes, o depoimento de Tarcísio Delgado, prefeito de Juiz de

Fora em 1984 e em 2004. Sob o título “Eu aceitei o golpe de 1964”, a matéria é ilustrada com uma

foto do ex-Prefeito encobrindo o rosto. Afirmava ele que fora contra o Golpe naquele momento,

“baseado numa visão de legalidade”, mas que depois passou a defendê-lo, pois João Goulart havia

sido eleito vice e não o Presidente do Brasil. Segundo Tarcísio Delgado, sua posição mudaria após

o AI-2, ao perceber que os militares não deixariam logo o poder. Tornou-se então “símbolo da

oposição juizforana” pelo MDB. Sua mudança de postura, pelo menos em 1984, é bem evidenciada

no próprio uso do termo “golpe” ao falar do período. O que aconteceu, conforme revelou o próprio

entrevistado, foi que muitos apoiaram o Golpe, e já em 1984, faziam oposição aos militares.56

Para o Prefeito da cidade em 1964, Adhemar de Andrade, a “revolução” foi apoiada por

manifestações populares, pois todos estavam favoráveis à queda de João Goulart. Caracterizou o

período por um clima de descontentamento geral, principalmente na área social.57

Manifestando a voz da imprensa da época, Lonir Cardoso comparou o período precedente

ao 31 de março de 64 ao de 1984, dizendo-os iguais. Segundo a redatora do Diário Mercantil em

1964, a sua decepção atual era justificada pelo não cumprimento pela “revolução” dos seus

“princípios”. Os princípios do movimento, porém, não foram relacionados por ela, ou por nenhum

outro entrevistado, como algo que ia além da “ameaça comunista”.

Já a decepção com o processo, desencadeado pelo deslocamento das tropas de Juiz de Fora,

seria freqüentemente associada às denúncias de tortura contra presos políticos e à censura. O tema

da censura estaria relacionado a um aspecto prejudicial para a própria imprensa. Não foram raros os

casos de jornais circulando com espaços destinados a notícias políticas, preenchidos por

amenidades, por determinação dos setores que se faziam cada vez mais presentes nas redações,

durante o regime. No entanto, cabe ressaltar, o silêncio sobre determinados assuntos também esteve

relacionado a uma “miopia política da imprensa”, ávida pelo furo de reportagem e pelo rigor

técnico do trabalho jornalístico, com alguns setores permitindo a ausência de uma visão crítica da

realidade brasileira naquele momento.58 56 GUILHERMINO, L A e PAIVA, R. “Tarcísio: “eu aceitei o golpe de 1964”. Tribuna de Minas, Juiz de Fora, 29/03/84, Especial 64: 20 anos depois, p. 08. 57 Idem. “Comício de 18 de março no Cine Popular”, Tribuna de Minas, Juiz de Fora, 30/03/84, Especial 64: 20 anos depois, p. 08. 58 ALMEIDA, Maria Hermínia Tavares e WEIS, Luiz. Carro-zero e pau-de-arara:o cotidiano da oposição de classe média ao regime militar. IN: SCHWARCZ, Lilia M. (org.). História da Vida Privada no Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 1998, pp. 358-359. Sobre o assunto, ver também: KUSHNIR, Beatriz. De ordem superior...Os bilhetinhos das

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 208

De fato, a própria imprensa local ignorou a morte de um preso político sob a

responsabilidade da Auditoria Militar sediada na IV Região Militar, simulada como suicídio. O

assassinato de Milton Soares de Castro, guerrilheiro preso na Serra de Caparaó, em 1967, seria

definitivamente esclarecido anos depois, a partir de um trabalho jornalístico realizado pela própria

Tribuna de Minas.59

As denúncias de torturas que batiam à porta dos brasileiros desde o imediato pós-golpe,

como o calvário vivido por Gregório Bezerra, espancado, queimado com ácido de bateria e

arrastado pelas ruas do interior de Pernambuco,60 não faziam eco na sociedade. Apesar das

denúncias empreendidas por Márcio Moreira Alves, desde 1964, com tentativas para publicar

Torturas e Torturados que somente pôde circular em 1967.61

Ainda em 1964, Ernesto Geisel, então chefe do Gabinete Militar, foi enviado ao Nordeste,

juntamente com o general Olympio de Mourão Filho, a mando do governo, para investigar torturas.

Mas os acontecimentos dessa espécie foram considerados, pelo general Geisel, como “excessos

naturais que se seguem à vitória de qualquer movimento armado”, amainando as denúncias.62

No entanto, em 1981, o mesmo Ernesto Geisel, que então fora presidente, declarou sobre o

movimento militar que depôs João Goulart:

O que houve em 1964 não foi uma revolução. As revoluções fazem-se por uma idéia, em favor de uma doutrina. Nós simplesmente fizemos um movimento para derrubar João Goulart. Foi um movimento contra, e não por alguma coisa. Era contra a subversão, contra a corrupção. Em primeiro lugar, nem a subversão nem a corrupção acabam. Você pode reprimi-las, mas não as destruirá. Era algo destinado a corrigir, não a construir algo novo, e isso não é uma revolução.63

Comunismo, república sindicalista, João Goulart. Os motivos são os mesmos para todos

aqueles que apoiaram o movimento militar chamando-o “revolução”, mas que, na década de 1980,

já começavam a reformulá-lo diante do momento histórico em que viviam, e em alguns casos, de

suas próprias perspectivas pessoais.

De “revolução” à “golpe”, o termo foi se redesenhando ao longo do tempo. Está expresso,

ainda que timidamente nas páginas do jornal Tribuna de Minas em 1984, delineia-se em 1994

caracterizado como período “triste” para, em 2004, ser definido definitivamente como o “golpe”

que vitimou várias pessoas. censuras e os rostos das vozes. IN: GOMES, Ângela de Castro (org.). Escrita de Si, Escrita da História. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2004. 59 ARBEX, D. TM encontra cova de desaparecido, e termina drama da família sem corpo para velar. Fim de um segredo de 35 anos. Tribuna de Minas, 28/04/2002, capa e, Arquivos secretos: Cova de militante desaparecido é encontrada em JF, p. 03. (Setor de Memória da Biblioteca Municipal Murilo Mendes) 60 BEZERRA, Gregório. Memórias (segunda parte: 1946 – 1969). Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1980, pp. 193 – 204. 61 ALVES, Márcio Moreira. Torturas e torturados. Rio de Janeiro, 1967. 62 CARVALHO, Luis Maklouf & SERRA, Cristina. “Anos de Terror: A repressão política no Brasil (1964 a 1976)”. IN: RETRATO do Brasil. São Paulo: Ed. Política, 1984, p. 194.

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Segundo análise de depoimentos dos militares, estes atestam que o “vencido tornou-se o

dono da história”. Referem-se ao fato de que o regime sufocou a ‘subversão’, a luta armada, mas

que “foram derrotados na luta pela memória histórica do período”.64

Essa posição de julgamento dos militares está bem expressa em todas as três séries de

reportagens sobre o período aqui estudadas. Se ainda sob os auspícios dos governos militares

encobertava-se o termo “golpe” e permitia-se a palavra a seus defensores, 40 anos depois a

abordagem jornalística é pelo direito de voz às críticas ao regime.

Da luta pelas ‘Diretas Já’ ao primeiro mandato de Lula, muito se caminhou para a

interpretação do movimento militar, ao sistematizar uma terminologia para definir o período. Os

acontecimentos de 31 de março já se apresentam, para a maioria dos brasileiros, como um golpe,

período com graves conseqüências para toda a sociedade. Porém o fato é que ainda há muito para se

conhecer, pois o período da ditadura militar deve ser esclarecido. O acesso às fontes, ainda

dificultado pelo Executivo, denota que há muito para se compreender sobre o desenrolar do

processo histórico entre 1964 e 1985.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao analisarmos a cobertura da Tribuna de Minas, jornal juizforano, sobre o movimento

militar em reportagens de 20, 30 e 40 anos após 1964, percebemos variadas abordagens de acordo

com a conjuntura. Nesse sentido, a transformação mais visível no tratamento ao período está na

utilização do termo “revolução” em 1984 para “golpe” em 2004. Naquele ano ainda vigorava o

regime militar e há maior cautela ao se abordar o assunto, enquanto que, nesse ano o assunto já

começa a ser sistematizado como objeto de pesquisas acadêmicas.

No entanto, percebe-se também a diferença de espaço do jornal, dedicada ao período, com o

passar das décadas. A série especial de 1984 transmite subliminarmente o desejo pelas ‘Diretas Já’.

O movimento é extremamente abordado, em seus vários aspectos, para que sejam detectados os

seus pontos negativos e a mudança aconteça. Já o quase silêncio de 1994 sobre o tema, reflete o

temor de um novo golpe que se vivia à época. Rememorá-lo poderia ser perigoso num contexto de

“nostalgia” para certos setores, mesmo que ela fosse enganosa. 63 APUD: GASPARI, Elio. Op. Cit., p. 138. 64 D’ARAÚJO, Maria Celina; SOARES, Gláucio Ary Dillon; CASTRO, Celso (Int. e Org.). Os anos de chumbo: a memória militar sobre a repressão. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994, p. 13.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 210

Em 2004 a busca de uma análise sistematizada, que pretendia dar voz aos dois lados, mas

que definiu o movimento como golpe, também foi o reflexo do presente. O tema invadiu as

universidades e passou a ser encarado como objeto de pesquisa acadêmica, ao invés de um simples

relato de pessoas que dele participaram. No entanto, a principal lição que pôde ser tirada dessa nova

experiência é que ainda há muito para ser investigado sobre 1964 e as suas conseqüências.

O interesse acadêmico pelo assunto foi obstruído pelo decreto 4.553 de 2002, quando o

governo Fernando Henrique chegou a ampliar “por tempo indeterminado” a divulgação de certos

documentos sigilosos. Arquivos que ainda guardavam segredos do regime militar continuariam

afastados do conhecimento público.65

O Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro denunciou, em artigo intitulado

“Perpetuando desaparecimentos: desaparecendo com a história”, a postura arbitrária do Governo

Federal mediante a situação dos arquivos das Forças Armadas sobre a Guerrilha do Araguaia:

Tal procedimento, que consideramos abominável, acoberta todos aqueles que foram responsáveis por um dos mais cruéis episódios da nossa história recente. No momento atual, em que outros países latino-americanos, que também passaram por ditaduras sanguinárias, revogam “leis de anistia”, elaboradas pelos responsáveis pelas mortes, desaparecimentos e torturas de opositores políticos para se auto-anistiarem, o Brasil caminha na contra-mão da história.66

Mas os fatos que ainda não haviam se tornado conhecidos eram incentivados, em 2004, a

serem apagados da memória, como o meio para a superação de um trauma. O presidente Lula

afirmou na época que o golpe seria um “episódio encerrado”.67 Tarcísio Delgado, prefeito de Juiz

de Fora, disse que “quanto mais esquecermos melhor”,68 referindo-se à data. Como se ignorá-la

fosse a melhor forma de superá-la.

Porém, em 2005 foi sancionada a Lei 11.111, gerando expectativas para o acesso público

aos arquivos da Ditadura, mas ainda citando o Tortura Nunca Mais, a lei possui “artimanhas para a

liberação de documentos tidos como sigilosos; somente aqueles pouco significativos para resgatar a

história desse período virão à público.”69 Enquanto isso, a União anuncia que os arquivos da

ditadura podem ser declarados “arquivos históricos patrimônio da memória da humanidade”,

visando assegurar sua preservação.70 65 MELO, Murilo Fiuza de & CARIELLO, Rafael. “Sigilo eterno inviabiliza pesquisa no Rio”, Folha de São Paulo, São Paulo, 08/02/04, Brasil, p. A13. 66 GRUPO Tortura Nunca Mais, “Perpetuando desaparecimentos: desaparecendo com a história”, Rio de Janeiro, 28/08/03, <www.torturanuncamais-rj.org.br/Noticias> 67 MIRANDA, R. “Episódio está encerrado para Lula”, Tribuna de Minas, Juiz de Fora, 01/04/04, Política, p. 06. 68 MIRANDA, R. “Silêncio marca passagem dos 40 anos em JF”, Tribuna de Minas, Juiz de Fora, 01/04/2004, Política, p.06. 69 MAGALHÃES, Mário. ONU pede, mas União veta acesso a arquivos. Folha de São Paulo, São Paulo, 19/11/2006, p.A-19. 70 BARBOSA, Bia. Banco de DNA vai ajudar na identificação. Agência Carta Maior, Direitos Humanos, 26/09/2006. <http://agenciacartamaior.uol.com.br/templates/materiaImprimir.cfm?materia_id=12356>, em 27/11/2006.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 211

A história da ditadura militar em Juiz de Fora ainda é um episódio a ser amplamente

desvendado, processo que vem se concretizando nos últimos anos com iniciativas de pesquisas

acadêmicas e a mobilização de setores interessados. O início dessa pesquisa coincidiu com o

aniversário de 40 anos do movimento militar. Passadas quatro décadas, o período já possui análises

mais sistemáticas, sendo incorporado como objeto de estudo e debates. Mas este é apenas o início.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 212

Jovem Pesquisador:

MEMÓRIA “SUBTERRÂNEA” NA CONSTITUINTE DE 1946: UM MOMENTO PARA REPENSAR O PASSADO “TRAUMÁTICO”

Mayara Paiva Souza*

Resumo: O texto discute a experiência política de um dos membros da elite derrotada e condenada ao silêncio após a Revolução de 1930 e 1932, tentando reconstruir e discutir a ação parlamentar do Deputado Euclides Figueiredo (1946-51) um dos maiores responsáveis pela articulação da oposição liberal contra o regime varguista. Partimos da relação entre história e memória para que possamos compreender aquilo que foi dado como histórico e resgatar o que foi condenado ao silêncio pela historiografia em sua função “tranqüilizadora”. Palavras-chave: memória, história, Euclides Figueiredo. Abstract: The objective of the text is to discuss the politic experience of a member of the defeated group after the “Revolução de 1930 e 1932”, trying to analyse the action of the deputy Euclides Figueiredo (1946-1951) one of the biggest “Era Vargas” 's opponent. The relation between history and memory help us to understand the formation of the historic knowledge and to recover the subject silence. Key words: memory, history, Euclides Figueiredo.

INTRODUÇÃO

Ao analisar a atuação parlamentar de Euclides Figueiredo durante o governo Dutra, visamos

refletir sobre a experiência política da elite derrotada em 1930 e 32, elite esta que partilha a

experiência das traições, derrotas, perseguições e exílio. Essa experiência de um passado comum

permite a formação de uma identidade marcada pelo antigetulismo. Desse modo, a partir de 1945

esse grupo de derrotados políticos se reúne em torno da União Democrática Nacional (UDN) que

empunhará daí por diante, a bandeira antigetulista. Os discursos de Euclides Figueiredo entre 1946

a 1951 são marcados por essa identidade de rejeição a Vargas e representam os sentimentos e

ressentimentos do grupo deposto e silenciado pelo regime varguista. Apesar de sua atuação

parlamentar representar um período pós-Estado Novo, percebemos que seus discursos são marcados

* Discente do 4º ano de História pela Universidade Federal de Goiás Faculdade de Ciências Humanas e Filosofia - Departamento de História Integrante do grupo de pesquisa financiado pelo CNPq: Literatura, História e Imaginário.E-mail: [email protected]

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 213

pela ferrenha e, muitas vezes, quixotesca oposição a Getúlio Vargas e pela luta contra os resquícios

desse governo.

A análise dos discursos parlamentares de um dos membros da elite derrotada pode

apresentar um novo ângulo à história política brasileira ressaltando a subjetividade dos personagens

históricos que fizeram parte do grupo de exilados da Velha República. O ressurgimento das vozes

dos vencidos demonstra o que a “memória histórica” do governo Vargas deixou escapar em suas

entrelinhas. Nesse sentido, discutir a memória desse período implica em discutir a historiografia e o

lugar ocupado pelos personagens históricos, dando voz aos derrotados que também apresentavam

um projeto político, projeto este fundado sob a bandeira anti-varguista.

Em A teia do fato Carlos Alberto Vesentini (1997)1 ressalta que a historiografia situa os

lugares de reflexão fazendo recortes sobre o passado e eliminando “contingências”. Para o autor, a

história como conhecimento metódico, torna simplificado e unitário o conhecimento, apenas um

discurso é reforçado e toma o “ar” de verdade simplificando temas complexos. Entretanto, a

recolocação de questões e problemas supõe a necessidade de enfrentar o geral já dado e os fatos já

aceitos como um passado comum, pois ecos dos vencidos oferecem a diversidade de efetivação da

própria história.

As Revoluções de 1930 e 32 são tidas como fatos dados e herdados. Nesse sentido, a ótica

do vencedor cinde o tempo e instaura um passado capaz de caracterizar um vencido, garante-lhe

legitimidade que abre o futuro e situa o realizado. O adversário transparece como oligarquia e o

vencedor define-se como nova consciência, como marco que apresenta lineamentos para a memória

histórica. O movimento de 30 encerra uma etapa e começa outra, o “novo” exorciza o “velho”

estabelecendo sua realização efetiva como o momento a ser lembrado. Esse marco criado pela

memória e história oficial é assumido pela historiografia que caracteriza o período anterior como

República Velha, como um período marcado pelo poder de uma “elite” e de políticos “carcomidos”.

Porém, entender a obra do vencedor supõe perceber o não-efetivado, pois a vitória não se deu sem

lutas, sem derrotas, frustrações e exílios.

As décadas de 1920 e 30 são marcadas por crises que levam à profundas transformações.

Um Estado centralizador surge em detrimento do Liberalismo. As transformações mundiais atingem

a economia brasileira e geram um conflito entre as classes sociais. Há um deslocamento do poder

dos grandes estados (em especial São Paulo) que perdem espaço e o grande desafio será retomar o

governo. Entretanto, o mundo complicara-se, não havia mais as linhas rígidas da Primeira

República. Acelerava-se a industrialização e a urbanização. É nesse contexto que inserimos

Euclides Figueiredo, um coronel que se recusa a participar do golpe de 1930 e, a partir desse

1 VESENTINI, Carlos Alberto. A teia do fato. São Paulo: Hucitec: USP, 1997.

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episódio, traça sua carreira de oposição a Vargas. Para Figueiredo a vitória da Revolução “foi um

tormentoso acontecimento da vida nacional.” Considerou ilegítimo e indigno de respeito o Governo

Provisório, iniciando uma oposição cerrada e duradoura ao novo presidente da República. A

princípio, Figueiredo manifesta sua oposição como um dos líderes militares da Revolução

Constitucionalista deflagrada em São Paulo em 1932. Com a derrota do movimento Figueiredo

parte para o exílio, porém não deixa de articular resistência ao governo Vargas. Anistiado, tem

importante participação na redemocratização do país em 1945 como um dos fundadores da União

Democrática Nacional, partido pelo qual Figueiredo chega ao parlamento como um dos Deputados

mais votados do Distrito Federal em 1946. É sua atuação parlamentar no período de 1946-51 que

aparece como momento salutar para a compreensão de como o grupo derrotado na década anterior,

que se reunia em torno de uma identidade e de uma coesão marcada por uma memória comum,

pensava a dimensão temporal e inseria-se na disputa pela memória.

Pensar a atuação parlamentar de Euclides Figueiredo supõe enfatizar outros instantes,

recolocar questões tentando saber o que foi deixado e porque se perdeu na memória. Além disso,

supõe evocar a subjetividade dos sujeitos históricos, atentando para os sentimentos e ressentimentos

de um grupo que se sentia deslocado e sem lugar na nova sociedade que emergia. Essa elite

derrotada em 1930 e 32 tenta inserir-se no presente restaurando o passado, entretanto, o seu mundo

já não tem coerência. Dentro desse quadro, a atuação parlamentar de Euclides Figueiredo contribui

para a compreensão da subjetividade dessa elite derrotada e aloca questões acerca do diálogo entre

história e memória que tanto tem sido debatido contemporaneamente pelas ciências humanas.

A ATUAÇÃO PARLAMENTAR DE EUCLIDES FIQUEIREDO

Cada época mantém relações diferentes com seu passado e futuro, cada presente constrói

ritmos históricos diferenciados2. Cabe-nos analisar como em 1946 as dimensões temporais do

passado e futuro foram postas em relação; como o parlamentar Euclides Figueiredo pensou o seu

tempo movido por ecos de ressentimentos, derrotas e traições que marcaram a sua trajetória desde a

Revolução de 1930. Neste ponto incluímos a memória em sua conflituosa relação com a

historiografia. O grupo derrotado em 1930 e 32 representa uma memória subterrânea, o fim do

Estado Novo, as eleições de 1945 e a Constituinte de 1946 representam um momento fecundo para

que essa memória marginalizada viesse à superfície. 2 KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC – Rio, 2006.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 215

O ano de 1946 é um ano fértil, de intensa importância para a história do Brasil em termos de

amplitude que pode assumir o debate ideológico. Com a vitória dos aliados na Segunda Guerra

Mundial, as decisões internacionais iam impondo ao Brasil um reexame de sua situação: lutar

contra ditaduras pedia que se começasse combatendo a própria3. A Constituinte de 1946 proveio da

vitória das Nações Unidas contra os regimes opressores, foi um momento de repensar o passado,

presente e futuro da nação. Esse foi um momento de debate sobre a democracia, sobre a passagem

de uma regra a outra.

Segundo João Almino (1980)4 aquele era o momento de repensar e reformular os

fundamentos sobre os quais se assentava o velho edifício carcomido e começar tudo de novo,

liberando as energias criadoras reprimidas e colocando-as a serviço da regeneração do organismo

enfermo. Pensar a Constituinte de 1946 é pensar a noção de tempo: um presente que exigia urgência

de soluções; um futuro repositório de todos os sonhos libertários; futuro democrático em que todos

os brasileiros seriam livres. O presente era um tempo intermediário entre a ditadura e a democracia,

a função desse “agora” era resolver os problemas sociais e econômicos do país para que, assim, o

futuro se tornasse presente.

As experiências vividas e as expectativas dos parlamentares refletem-se no agora. As

experiências recolhidas pelos integrantes da União Democrática Nacional (UDN) focalizavam o

passado como o Estado Novo, o passado era Vargas, e esse precisava ser eliminado do cenário

político, uma vez que se constituía uma ameaça para os liberais da UDN. Vargas era ao mesmo

tempo passado e presente. Os constituintes viviam, assim, um tempo intermediário em que o futuro

ainda não estava estabelecido e em que o presente não conseguiu romper com o passado.

A recuperação do passado desempenhou um papel importante no debate sobre as ameaças

presentes. Os riscos e temores eram parte integrante do vivido. Para os udenistas era necessário

romper com esse passado (Estado Novo) monolítico e arbitrário e proteger o país da repetição do

golpe de 1937 que havia suspendido o sistema democrático. O tema constante da UDN era a

denúncia da ordem política anterior e a construção de uma democracia. Em seu discurso havia a

idéia de um projeto para o futuro democrático do Brasil, projeto de ruptura com o passado do

Estado Novo, e que reinstalaria no futuro do país a democracia de seu passado.

Os discursos e projetos do parlamentar Euclides Figueiredo, possuem um ponto de

referência externo comum ao grupo deposto na década de 1930. A identidade desse grupo reunido

sob a bandeira udenista caracterizava-se pelo antigetulismo. A UDN era um grupo heterogêneo que

tinha como ponto comum entre os seus partidários, simplesmente a oposição a Getúlio Vargas, era

uma “comunhão de ódios”. O ódio recalcado criou uma solidariedade afetiva que, extrapolando as 3 SALDANHA, Nelson. História das idéias políticas no Brasil. Brasília, Senado Federal, Conselho Editorial, 2001. 4 ALMINO, João. Os Democratas Autoritários. São Paulo: Brasiliense, 1980.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 216

rivalidades internas, permitiu a reconstituição de uma coesão, de uma forte identificação de cada um

com seu grupo5. A memória comum reforçou a coesão e marcou a identidade do grupo. Os pontos

de contato dessa memória eram a traição, derrota e exílio.

A sobrevivência das lembranças traumatizantes, de uma memória clandestina que destoa da

“memória oficial”, acumula ressentimentos e sofrimentos que não foram expressos publicamente6.

A grande produção memorialística logo após a Revolução de 1930 e 32 marca uma tentativa de

explicar os acontecimentos e justificar a derrota, entretanto, somente em 1946 o momento parecerá

propício para a erupção dessa memória marginalizada que destoava do discurso modernizador de

Vargas. Essa disputa de memória marca reivindicações múltiplas traduzidas nos discursos e projetos

dos constituintes daquele ano que possuem diferentes formas de apreensão do passado.

O trauma foi “abafado” pela história em sua função tranqüilizadora e geradora de sentido. A

história eliminou os caminhos obscuros e complexos da memória, mas os fatos traumáticos,

relegados a um plano secundário, podem assombrar o presente e manifestar-se de maneira perigosa.

Temos uma história dos vencedores. A pluralidade que parte dos vencidos foi relegada a uma zona

de sombras, à errância. Mas, silêncio não significa esquecimento, e os fatos traumáticos podem ter

como efeito o seu retorno, uma vez que as lembranças permanecem vivas, esperando a oportunidade

para emergirem. Com isso percebemos que a escrita da História se caracteriza como um espaço de

conflito e de disputas de memória.

Diz-se muitas vezes que a história é escrita pelos vencedores. Eles podem dar-se ao luxo de

esquecer, enquanto os perdedores não conseguem aceitar o que aconteceu e são condenados a

remoê-lo, revivê-lo, refletir sobre como poderia ter sido diferente7. Figueiredo não esquecia a

derrota de 1932, e mesmo no Parlamento continuou relembrando e explicando os acontecimentos

pretéritos. Na sessão de 08 de julho de 1949, o deputado discursa acerca de sua fidelidade à

Revolução Constitucionalista de 1932 e afirma que seu pronunciamento é para acentuar as

intenções daquele movimento. Contudo, ao longo do discurso, Figueiredo apresenta uma série de

justificativas para explicar a derrota e a legitimidade dos acontecimentos de 1932.

Percebemos em seus pronunciamentos que Euclides Figueiredo reinterpreta o passado em

função dos combates do presente e do futuro, e tenta dar sentido a sua identidade e do grupo

udenista. Além disso, notamos a construção da persona de Vargas que aparece nos discursos da

oposição como traidor e escorregadio. A oposição traça um personagem que desde o início

mostrou-se paradoxal, despistador e ilusionista. Getúlio Vargas é caracterizado como um mágico

5 SEIXAS, Jacy Alves de. Percursos de memória em terras de história: problemáticas atuais. In: BRESCIANI, Stella & NAXARA, M. Memória (res) sentimento. Indagações sobre uma questão sensível. São Paulo: Editora da UNICAMP, 2001. 6 POLLAK, M. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos _ Memória, CPDOC/FGV, n. 3, 1989. 7 BURKE, Peter. A escrita da História: novas perspectivas. São Paulo: Unesp, 1992.

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com palco e platéia imensa que aplaudia. Getúlio tinha um “poder magnético”, o que torna a

Revolução de 30 getuliana8. Essa Revolução getuliana cria uma imagem do novo que rompe com as

velhas oligarquias de políticos profissionais, os “cartolas que oprimiam o povo”. Nesse sentido,

1930 aparece como marco fundador de uma nova era de modernização.

No entanto esse discurso oficial entra em crise no ano de 1945 com a deposição de Vargas, e

o período conhecido como “redemocratização” torna-se um momento propício para a emergência

das memórias subterrâneas. É o momento em que Figueiredo reinterpreta o passado e tenta

apresentá-lo como um período autoritário, atrasado, “fascista” e distante das exigências dos novos

tempos. Era necessário apagar os últimos resquícios desse passado, julgá-lo e puni-lo. O presente

era o momento fértil para que se eliminasse o passado e projetasse um futuro democrático. Porém, o

presente também era um momento de medo e apreensão, pois Vargas ainda estava à porta e muitos

clamavam pelo seu retorno ao governo através do movimento “queremista”.

Cabia aos parlamentares da oposição defender o país contra a repetição do golpe de 1937,

repetição que parecia iminente. Para Euclides Figueiredo e muitos udenistas, a desordem pública

era reflexo da manipulação do ex-ditador, que teria conseguido, a despeito de 29 de outubro, manter

viva a agitação queremista. Para o deputado, era necessário apagar o passado e criar meios que

impedissem o seu retorno.

O Deputado Euclides Figueiredo destacou-se pelo passado e posições fazendo da tribuna da

Assembléia Nacional Constituinte sua nova trincheira contra Vargas, nesse sentido seus principais

projetos buscam a eliminação dos resquícios do governo Vargas. Seus discursos parlamentares

revelam os ressentimentos de uma das vítimas das arbitrariedades do Estado Novo, pois durante

esse período esteve preso por quatro anos, perdeu posições e, além disso, foi dado oficialmente

como morto.

Em discurso na Assembléia Nacional Constituinte em 1946, Figueiredo frisa que não existe

separação entre sua ação civil, Deputado e militar também democrata, sua posição de Deputado

Federal seria um prolongamento de sua atuação como homem público na qual deveria prosseguir na

linha de suas atitudes. Atitudes definidas desde o golpe de 1930.

No parlamento, o deputado udenista propôs a extinção da Polícia Especial, herança do

estadonovismo, após vários discursos arrasadores consegue que esse órgão seja extinto, pois,

segundo ele, a Polícia Especial era uma ameaça à democracia. Além disso, encaminhou a lei dos

direitos autorais, elaborada pela Associação Brasileira dos Escritores que tinha a frente seu filho

Guilherme.

8 NOGUEIRA, Paulo (Filho). Ideais e lutas de um burguês progressista. O Partido Democrático e a Revolução de 1930. Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1965.

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Como não poderia ser diferente, o seu itinerário de Deputado esteve marcado pela ferrenha

oposição a Vargas. O incidente envolvendo a posse de Vargas como senador em 1946, demonstrou

os ressentimentos e exaltação que persistiam entre as vítimas e algozes do Estado Novo eleitos para

a Constituinte de 1946. Várias vezes a posse do ex-ditador foi adiada devido à exaltação dos

Constituintes. Figueiredo foi naturalmente um dos principais envolvidos no incidente. Vargas

recusara-se, logo em seu primeiro discurso parlamentar, a discutir e remoer o passado recente do

estadonovismo, isso era inadmissível para aqueles Constituintes que não podiam esquecer o passado

“traumático”.

Logo no início da Constituinte, Figueiredo requereu que fosse criada uma Comissão de

inquérito que julgasse os atos delituosos do Estado Novo. O Deputado pedia profundas

investigações no Departamento de Segurança Pública “no sentido de conhecer e denunciar à nação

os responsáveis pelo tratamento dado a presos políticos”. Segundo Figueiredo “a matéria não é

daquelas que podem ser esquecidas. Trata-se de fazer justiça, descobrir e apontar os responsáveis

por crimes inomináveis, praticados com a responsabilidade do governo; e mais que isso defender

nossos foros de povo civilizado”. O que o deputado intencionava era um verdadeiro julgamento do

Estado Novo, uma vez que este sentira de perto as arbitrariedades e perseguições do regime. Em 7

de maio de 1946 foi criada a comissão encarregada de examinar os serviços do Departamento

Federal de Segurança Pública e o tratamento dado aos presos políticos no período de 1934 a 45.

Porém, a freqüente falta de quorum encerra as atividades sem grandes avanços. O fracasso não foi

conseqüência da falta de perseverança e interesse de Figueiredo, pois, este compareceu à todas as

reuniões e lutou por suas mais profundas convicções, sem nenhum receio de beirar o quixotismo9.

Na linha coerente de eliminação das seqüelas do Estado Novo, Euclides Figueiredo se

pronunciou sempre pela anistia ampla e irrestrita. Aprovada anistia restrita, lutou para abolir as

limitações e as comissões nomeadas para examinar cada caso. Seu objetivo era que as vítimas,

geralmente funcionários civis ou militares, pudessem aguardar os resultados exercendo seus cargos,

pois muitos estavam na miséria.

A marca da Constituinte de 1946 era a democracia, no entanto o Decreto-lei n. 7.474 de 18

de abril de 1945, que concedeu anistia a todos quantos tinham cometido crimes políticos, desde 16

de julho de 1934 até a data de sua publicação, ainda não lograra entrar em plena vigência, devido às

restrições ou exclusões que foram estabelecidas nos artigos segundo e terceiro. Esses artigos

apresentavam restrições que deixavam os anistiados a critério de comissões criadas segundo a

conveniência do regime. As soluções governamentais não eram imediatas e gerais, mas “pingavam

uma a uma” e, quase um ano após a promulgação da lei da anistia, aqueles que deviam ser 9 FIGUEIREDO, Euclides. Discursos Parlamentares. Seleção e introdução de Vamireh Chacon. Brasília: Câmara dos Deputados, 1982. (perfis parlamentares, v. 23).

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 219

beneficiados por ela ainda não sentiam seus efeitos. Para Figueiredo não havia dúvidas que

restrições como as visadas pelo Decreto-lei n. 7.474, não poderiam subsistir em um país

democrático e liberal. Era necessária a supressão dos dois artigos, pois anistia significava

esquecimento e não perdão.

Em seu discurso à Assembléia Nacional Constituinte na sessão de 18 de março de 1946,

Figueiredo afirma que o Brasil estava “diante de um novo ambiente de esperança, cheio de

vibrações de patriotismo, sob o influxo da verdade e da igualdade de direitos em que sopravam os

bons ventos que varreriam os últimos resquícios do estadonovismo”. O ano de 1946 é a transição de

um passado de “atraso e ditadura” para um futuro de “progresso e democracia”. Portanto, cabia aos

constituintes estabelecer essa tão almejada democracia e “apagar o passado traumático”.

Seus discursos acerca da anistia causam grande alvoroço, recebendo telegramas e

agradecimentos de anistiados que ainda sofriam restrições. Isso revela as inquietações e ânsia de um

país que acabava de sair de um governo autoritário em que muitos foram exilados e perseguidos.

Nesse sentido, percebemos que a anistia era algo almejado por muitos civis e militares. Em 1946,

“para felicidade do Brasil, as portas da libertação começavam a ser abertas e comunistas e não-

comunistas já não sofriam restrições”10.

Figueiredo fez questão de ler alguns telegramas que recebeu e que, segundo o deputado,

traduziam a ânsia do país para que se estabelecesse o apaziguamento, que só poderia vir com o

esquecimento dos crimes e sem cogitação da imposição de novas penas. O primeiro telegrama era

da Comissão de Anistiados Civis que ainda aguardavam o cumprimento do Decreto-lei 7.474. Esses

“anistiados” agradeciam e felicitavam o deputado pelo oportuno requerimento. Outro telegrama lido

por Figueiredo, era de um Sargento “jogado ao léu e que aguardava justiça”. Nesse mesmo dia, o

deputado foi chamado aos corredores da Câmara para ouvir mais um apelo, desta vez, de um

médico da Armada, Dr. Rodrigo de Araújo Jorge Filho, reformado pelo Decreto 838 de 4 de junho

de 1936, sob a acusação de envolvimento com comunistas. O médico teve seu requerimento de

reconsideração do ato do Governo recusado sem mais considerações. Segundo Figueiredo, o

“anistiado”, ao não poder exercer suas funções, andava de porta em porta e em estado de

necessidade: Não é apelo de um, mas de muitos anistiados, que, além de não poderem reverter às funções que a lei

lhes assegurou, se vêem inteiramente desamparados __ pode-se dizer__ porque nem empregos públicos, nem colocações particulares podem procurar, em face das leis vigentes, porque o Serviço de Recrutamento, uma vez que a anistia não foi executada, lhes nega a caderneta de reservistas, principal instrumento com o qual podem ganhar a vida lá fora. (...) Mas, senhores, não estou aqui servindo de eco de clamores; porque, se fosse revolver todo o meu arquivo a este respeito e quisesse citar desta tribuna, os nomes de todos os companheiros do Exército, de todos os companheiros da Armada, de todos os companheiros da Aeronáutica e dos civis que

10 ANAIS DA ASSEMBLÉIA NACIONAL CONSTITUINTE. Disponível em: <http/.imagem.camara.gov.br/publicações > Acessado em: 13 de março de 2007.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 220

me têm procurado, certamente perderia algumas horas, o que não lamentaria por mim, pois que elas não são preciosas, mas pela atenção que roubaria dos Srs. representantes.11

Euclides Figueiredo tinha a consciência de vítima das arbitrariedades do Estado Novo.

Perseguido e preso, devido suas constantes e incansáveis conspirações contra Vargas, esteve

encarcerado durante o período ditatorial e sua morte foi oficialmente divulgada cabendo à sua

“viúva” uma pensão e aos seus filhos, Euclides e Diogo, o ingresso no colégio militar como

estudantes órfãos. O então coronel é libertado em 1942 e é anistiado no posto de general no período

da presidência de Eurico Dutra. Entretanto, sua primeira anistia foi em 1905 devido ao seu

envolvimento na revolta contra a vacina obrigatória em 1904, medida decretada pelo governo

Rodrigues Alves.12 Em 18 de março de 1946 Figueiredo enfatiza sua trajetória, entretanto, afirma

que não advoga em causa própria, pois quase nada aproveitaria da anistia, salvo como reparação

moral. Esta reparação, segundo ele, veio-lhe com a eleição de 1945. Reparação que teve

sobejamente nos votos de seus concidadãos Embora não importe minha situação pessoal, porque, como disse, a grande generosidade de meus

concidadãos se elevou muito acima daquilo que me tiraram e muitíssimo acima daquilo a que poderia aspirar. Subsistirá, sim, o fato estranho, ilógico, incompreensível de ter assento nesta Assembléia um ex-soldado expulso do Exército, cidadão sem qualidade militar definida em lei, proscrito de sua própria classe, considerado morto por decreto. 13

A Anistia foi um ponto bastante enfatizado em sua carreira parlamentar. A Constituinte

termina sendo Euclides Figueiredo o parlamentar a insistir mais na ampliação e regulamentação da

anistia. Sua preocupação com a legalidade foi uma constante. Em fins do governo militar na década

de 80, com toda a movimentação pela anistia ampla, geral e irrestrita, sua figura emerge com a

publicação do volume 23 da série Perfis Parlamentares. Diante dos acontecimentos e da anistia

concedida em 1979 pelo seu filho João Batista Figueiredo, então presidente do Brasil, notamos que

a obra tenta ligar pai e filho. João Batista aparece como o continuador de suas lutas democráticas

em prol de um país livre e soberano. Perfis Parlamentares tende a mostrar que o governo do filho

representa os ideais pelos quais viveu e lutou o General Euclides Figueiredo.

Esse discurso ideológico que tenta mostrar o filho como concretização dos ideais do pai,

supriu simbolicamente as deficiências do presente. Entretanto, destacaram-se somente seus projetos

pela anistia, enquanto sua posição contra o arbítrio e a tortura comandados pelo governo, sua

posição a favor de eleições populares, por uma força armada a serviço da garantia das liberdades

públicas, foram relegadas a um plano secundário, uma vez que não correspondiam aos interesses do

presente o qual o país encontrava-se sob o período de ditadura militar. 11 idem. 18 de março de 1946, pág 92. 12 ABREU, Alzira Alves. Dicionário Histórico-Biográfico brasileiro. Rio de Janeiro: Ed. FGV, CPDOC, 2001. 13 FIGUEIREDO, Euclides. Discursos Parlamentares. Seleção e introdução de Vamireh Chacon. Brasília: Câmara dos Deputados, 1982. (perfis parlamentares, v. 23).

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 221

Para concluir, o itinerário do Deputado Euclides Figueiredo foi marcado por convicções que

vinham de longa data. Figueiredo foi fiel em sua oposição a Vargas até mesmo quando esse não

estava no poder. Suas atitudes e discursos marcam a identidade antigetulista de um grupo derrotado

em 1930 e 32 que busca, incessantemente, retomar o poder, entretanto, o mundo que tentam

restaurar é incoerente com as transformações que se operam na sociedade e na política. Os discursos

de Figueiredo revelam os ressentimentos desse grupo que se sente apeado do poder e tenta retomá-

lo. Porém, a história reservava-lhes outra sorte.

CONCLUSÃO

A partir da leitura acerca da relação entre história e memória assumimos a perspectiva de

que esses conceitos não podem ser vistos como campos opostos, pois há um vínculo entre eles.

Embora a relação da história com a memória seja complicada, uma não pode prescindir da outra na

construção do conhecimento histórico.

A história, por muito tempo, foi um discurso criador do passado. Entretanto, hoje os

historiadores têm consciência de que são eles que selecionam o que se tornará histórico. A partir das

inquietações do presente, os historiadores ancoram em determinados pontos do passado

estabelecendo o que será lembrado e o que será esquecido e abrindo uma perspectiva para o

futuro.14 Neste processo, além do contexto atual influenciar a percepção do passado, o próprio

presente é influenciado pelos acontecimentos pretéritos; é necessário analisar o que os homens de

cada tempo conheciam do passado, e como eles se percebiam, pois há uma relação transcendental

entre passado e presente.15 Nesse sentido, é a partir das questões atuais que revisitamos o passado

construindo visões retrospectivas que o organizam de forma proveitosa para a luta política do

presente. Fato e memória se unem, assim, a memória decide onde se deve colocar as interrogações

excluindo ângulos em que sua coerência poderia ser colocada em questão.

Para se compreender o outro ângulo das interpretações, devemos reelaborar os agentes

suprimidos no movimento da memória, restabelecendo os termos daquilo que o poder e o vencedor

absorveram, pois os vencidos comparecem à memória como ponto de referência de relevância

14 RÜSEN, Jörn. Perda de sentido e construção de sentido no pensamento histórico na virada do milênio. In: História: debates e tendências. Passo Fundo, v. 2, n. 1, 2002. 15 MASTROGREGORI, Massimo. Historiografia e tradição das lembranças. In: A História escrita: teoria e história da historiografia. São Paulo: Editora Contexto, 2006.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 222

secundária, sua luta esvai-se para ceder lugar ao realizado. Assim, ficam excluídos do tempo e da

História instantes relevantes que são silenciados.

Ao relacionar os elementos teóricos com os discursos de Euclides Figueiredo, percebemos

que a memória é ação política, é um espaço de disputa e negociação. Sua relação com a história

deve ser problematizada, uma vez que a memória apresenta múltiplas percepções do vivido, e ao

aproximar-se da historiografia se submete a uma negociação e seleção. Parafraseando Halbwachs

(2004)16, a história assemelha-se a um cemitério onde o espaço é medido e onde é preciso, a cada

instante, achar lugar para novas sepulturas.

16 HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2004.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 223

Jovem Pesquisador:

OS ARQUIVOS DA REPRESSÃO E A LUTA PELA MEMÓRIA DA DITADURA MILITAR1

Isabel Cristina Leite *

“A memória é o absoluto e a história o relativo”.2

Resumo: Os arquivos da ditadura militar são um importantíssimo lugar de memória e a discussão acerca da necessidade da facilitação ao acesso a estes documentos sigilosos é um tema polêmico e que se atualiza constantemente. Desde o aparecimento do chamado Orvil – “O livro negro do terrorismo”, escrito pelos militares, ficou explicito o quanto há muito que ser revelado nos documentos sigilosos das Forças Armadas. A legislação brasileira em nada auxilia para a reconstrução histórica do período e existem movimentos pontuais na sociedade civil fazendo pressão para que se mudem as leis de arquivo. Palavras-chave: Arquivos – Memória – Ditadura Militar. Abstract: The military dictatorship's files are a very important memory depot and the discussion concerning the need of facilitation to the open access to these secret documents is a controversial theme wich is constantly updated. Since emergence of the call Orvil – “The terrorism's black book”, written by the military ones, it was explicit all there is a lot to be revealed in the armed force's secret documents. The Brazilian legislation in anything aids for the historical reconstruction of the period and few movements exist in the civil society wishing changes in the laws about ditatorial period files. Keyword: Files–Memory–Military Dictatorship.

A partir de Nora, começamos a discussão acerca da importância da facilitação do acesso aos

documentos referentes à ditadura militar brasileira. Sem dúvida, um tema polêmico e que se atualiza

constantemente. Estes arquivos são lugares da memória absoluta, que nos ajudam a reconstituir,

sob diferentes prismas (o que a faz relativa), a história recente do país.

Trataremos de questões referentes à história/ memória/ arquivos relacionadas ao período

proposto. Procuramos buscar apontamentos sobre: O que são os arquivos da ditadura militar e

quais fontes podemos aliar a elas para a pesquisa histórica? Qual é a memória hegemônica do

período? Existem vencedores e vencidos? Como facilitar o acesso a estas fontes? Qual a melhor

1 Agradecimentos sinceros: Professora Dra. Heloisa "Bizoca" Greco e Gilcéia Magalhães. * Mestranda UFMG/ Bolsista CNPq 2NORA, Pierre.Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História. São Paulo: PUC-SP. N° 10, p. 9. 1993.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 224

maneira de usá-las? A quem pertencem estes documentos? Qual o limite entre o público e o privado

na documentação existente? Como a legislação dificulta o acesso a eles e o que vem sendo feito no

sentido de forçar a abertura destes arquivos?

Estes serão os eixos principais deste texto.

1. História/ Memória/ Arquivos

Estudar o tempo presente é desafiador, pois, conforme afirma Chartier, trata-se de “uma

pesquisa que não é a busca desesperada de almas mortas, mas um encontro com seres de carne e

osso que são contemporâneos daquele que lhes narra as vidas”3. A sensação que dá é de angústia

com a proximidade imediata que nos une ao objeto e com a problemática da aspiração à verdade

presente nesta história recente. Implica o grande risco de situação de desconforto entre

pesquisador/pesquisado em determinadas situações, pois, ao contrário da história tradicional, o

objeto, muitas vezes, acompanha o que fazemos com as lembranças. E, não raras vezes, crêem na

apropriação um tanto quanto equivocada de sua história, em casos de estudos sobre militância à

esquerda ou militares.

Para Halbwachs, a lembrança é reconstrução do passado influenciado pelo presente, a

memória individual está sempre remetida a um determinado grupo como forma de uma construção

de identidade4. A memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva e este ponto se

desloca à medida que são recebidas novas informações. A memória é, assim, re-significada. Este

processo remete à referência ao “espaço da experiência (passada) no presente”5, ou melhor, “toda

memória é mais uma reconstrução que uma recordação”6.

Para Le Goff, história e memória têm relacionamento tão próximo, que uma alimenta-se da

outra, chegando a ponto de se confundirem7, apesar das suspeitas que a primeira levanta sobre a

segunda. Nora estabelece diferenciações entre elas, quando escreve que a história é “laicizante”, que

demanda análises por todo o tempo; ao contrário da memória, alimenta-se de lembranças vagas,

sensíveis a cenas, censuras e projeções8. A memória precisa de lugares por estar sempre em

movimento nas vivências cotidianas, podem ser lugares materiais, simbólicos ou funcionais; o lugar

3 CHARTIER, Roger. A visão do historiador modernista. IN: AMADO & MORAIS. Os usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: GV, 2000. pp. 215. 4 HALBWACHS, Maurice. La memoire collective.Paris: Presses Universitaires de France, 1950 pp.47. 5 JELÍN, Elizabeth. Los trabajos de la memoria.Madrid: Siglo XXI, 2000. pp.13. 6 Idem. pp.21. 7 LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas, Editora Unicamp, 1990 8 NORA, Pierre.op.cit.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 225

pode estar numa carta, numa colcha feita na prisão, numa fotografia, num pedaço de jornal, pode ser

a penitenciária, um inquérito policial, ou seja, pode constituir-se em rastros. Ainda para este autor:

“desde que haja rastro, distância, mediação, não estamos mais dentro da verdadeira memória, mas

dentro da história”9.

A própria idéia de arquivo está ligada à idéia de preservar os rastros do passado. Podemos

ressaltar duas funções distintas para um arquivo, ou, mas especificamente, para os que guardam

documentos produzidos pelos militares durante as ditaduras do Cone Sul. Uma, sendo o arquivo

como lugar de “ordenamento de registros”, que fornecerá dados para o presente. A outra é a função

“para a história”, esta mesmo a que nós pesquisadores estamos habituados, para podermos construir

nossas narrativas10. Estas duas funções puderam ser claramente vislumbradas quando da abertura

dos primeiros arquivos do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), ainda na década de

1990. O público que acessava tal acervo, em sua maioria, havia sido vítimas do regime militar que

procuravam informações necessárias para conseguire indenizações, ou estavam à procura de pistas

acerca de algum desaparecido político. Após este período de busca dos militantes, foi a vez dos

pesquisadores começarem a adentrar estes arquivos na tentativa da reconstituição e entendimento do

que foi e como agiu o governo militar. Outra fonte de valia, foi a fonte oral, ainda que àquela época

os pesquisadores não dispunham destas com tanta facilidade quanto hoje. A partir do final dos

anos 90 começa o boom de livros memorialísticos e os ex- guerrilheiros começam a relatar suas

experiências, mesmo com alguns silenciamentos11.

Ludmila Catela fez um trabalho muito interessante acerca da relação arquivo público / vida

privada, tomando como caso uma ex-presa política do Rio de Janeiro. Denominada Maria, citada

no Projeto Brasil:Nunca Mais12, sabia da existência de uma pasta inteira sobre ela no arquivo do

DOPS, presente no Arquivo Publico do Estado do Rio de Janeiro; contudo, até então, nunca quis

tomar nota do que existe sobre ela em tal arquivo. Em seu depoimento à pesquisadora, contou da

dificuldade em enfrentar seu passado. Ela sabia que, entre processos policiais e demais documentos

burocráticos, existiam cartas e outras recordações pessoais. Isso poderia trazer à tona lembranças e

ativar memórias que afetariam sua vida no presente; não sabia ao certo se aliviaria ou aumentaria

9Idem.pp.9. 10 JELIN, Elizabeth. Gestión política, gestión administrative y gestión histórica: ocultamientos y descubrimientos de los archivos de la repressión. IN:JELIN,Elizabeth & CATELA,Ludmila. Los archivos de la repression:Documetos, memoria y verdad. Madrid: Siglo XXI, 2002. 11 O silenciamento (por-se em silencio) mostra uma produção de sentidos silenciados que faz entender a dimensao do “não dito”, principalmente quando se trata de memorias traumáticas de situações-limite, como a tortura. Segundo Orlandi “o silêncio não interpretável, mas sim compreensível” e “fala por si mesmo, é explicativo”. Cf. ORLANDI, Eni.As fomas do silencio no movimento dos sentidos.Campinas: UNICAMP,1995. pp. 63. 12 Trataremos deste Projeto ao longo do texto.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 226

seu sofrimento. Ela acreditava que, um dia, iria tomar conta da “papelada” existente, mas sabia que

não seria bom ativar esta memória13.

A entrevistada, de fato, teve acesso aos documentos em 2000, quando da abertura dos

arquivos no Rio. Como historiadora, Maria levantou questões fundamentais para a pesquisa

histórica nestes arquivos, que devem ser dilemas do historiador: Que valor têm estes papéis como

fonte histórica? O que acontece se um pesquisador os toma como verdadeiros e não os confronta

com os testemunhos dos perseguidos pelo regime?14 Estas questões somente reafirmam o arquivo

como lugar da memória, mas de uma determinada memória, com determinada verdade. Bem

sabemos que quem escreve, escreve de um lugar específico. Se não há o confronto entre as partes,

não há uma problemática, tampouco, pesquisa histórica.

Em Aguero e Hershberg, buscamos uma interrogação relevante para a construção da

memória do período ditatorial: “quais são os mecanismos que os atores sociais e políticos intervêm

nas disputas sobre a memória e como terminam estas canalizando-se e refletindo-se em instituições,

normas e políticas em que se molda a memória coletiva?15 Em parte buscaremos responder isto

agora, no que se refere `a memória coletiva. A questão referente `as leis será discutida mais adiante.

Pode-se perceber que a memória do período é, sobretudo, aquela reivindicada pelos orgãos

de direitos humanos – principalmente, os grupos Tortura Nunca Mais16 que apontam pessoas e

instituições ligadas à violação de leis ligadas a esta área pedindo reparação e retratação dos

acusados. Não raras vezes são chamados de revanchistas. Este tipo de memória deve-se ao fato

que, ao contrário dos que foram vítimas do regime, os que o instituíram ficaram em silêncio, ou, se

justificavam afirmando seus atos heróicos em defesa da "revolução vitoriosa", o golpe de 1964. Na

disputa por esta memória, os militares crêem que os vencidos tornaram-se “donos da história”.

Conforme nos mostra um dos trabalhos referentes à memória militar17, há certo ressentimento de

tais agentes em relação ao esquecimento e `a pouca valorização da história deles. A lógica do

pensamento militar é: se venceram a guerra contra os terroristas , foram derrotados na luta pela

memória histórica do período. Alguns acham que não foi apresentada uma versão deles sobre a

repressão que fosse legitimada pela sociedade. Se é habito esquecermos da história dos vencidos,

no caso da ditadura brasileira, onde a guerrilha foi derrotada, a história dos militares, vencedores,

foi ignorada.

13 Cf. CATELA, Ludmila.Territorios de La memória política. Los archivos de La repression em Brasil. IN: ELIN,Elizabeth & CATELA,Ludmila (comps). Los archivos de la repression:Documetos, memoria y verdad. Madrid: Siglo XXI, 2002. pp.16. 14 Idem. pp.77. 15 AGUERO,Felipe& HERSHBERG,Eric.Las fuerzas armadas y las memorias de La represión en El Cono Sur. IN: AGUERO,Felipe& HERSHBERG,Eric(comps.).Memorias militares sobre La repression em El Cono Sur:visiones em disputa em dictadura y deocracia Madrid: Siglo XXI, 2005.pp.5 16 www.torturanuncamais.org 17 D’ARAÚJO, Maria Celina; SOARES, Glaucio & CASTRO, Celso.Os anos de chumbo: a memória militar sobre a repressão. Rio de Janeiro:Relume-Dumará, 1994.pp.13.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 227

2. O acesso às informações

Após a aprovação da lei de Anistia (n. 6683/79)18, os advogados dos presos políticos

começaram a trabalhar para encaixarem seus clientes dentro da lei. Para tanto, tinham acesso livre

ao arquivo ao Supremo Tribunal Militar. Ao entrarem em contato com tais documentos notaram ter

em mãos uma sistematização de como o governo agia e de como a tortura tornou-se prática

sistemática, por mais que, por muito tempo, o aparato publicitário montado atingiu uma grande

parcela da sociedade e a convenceu de que éramos o país do “futuro”, o país do “milagre

econômico” e que tudo ia dentro da normalidade. É a “cultura do simulacro19”.

Estes advogados procuraram o pastor protestante James Wright20 e lhe relataram o que

haviam lido, sugerindo, então, a reprodução destes documentos. Wright procurou Dom Paulo

Evaristo Arns e estes foram pedir financiamento no Conselho Mundial e Igrejas que, ao todo,

contribuiu com 350.000 dólares. Foram custeados , assim, a fotocópia destes documentos o

pagamento de pesquisadores que trabalhavam todo o tempo, clandestinamente, na reprodução do

material. O que seria somente uma mostra para ilustrar como funcionavam os mecanismos de

violação de direitos humanos, transformou-se na duplicação completa do arquivo do STM. Como

afirma Ludmila Catela: “ironia do destino, o grande segredo dos militares havia se transformado no

grande segredo dos direitos humanos”.21 Resultado disso foi o chamado Projeto A Brasil:Nunca

Mais composto por 12 tomos, sendo:

I. O regime militar: contém análise do regime implantado a partir de 1964.

II. volume 1. A pesquisa BNM: descreve o projeto e as fontes.

II. volume 2. Os atingidos: mostra, em ordem alfabética, os processados, torturados,

denunciados, etc.

II. volume 3. Os funcionários : contém lista alfabética de nomes de todos os envolvidos

direta ou indiretamente na violação de direitos humanos.

III. O perfil dos atingidos: mostra dados gerais sobre os processos realizados contra 7.367

pessoas.Separados por organizações de esquerda, setores sociais e outras atividades.

IV. As leis repressivas.

V. A tortura: 3 volumes: contém nome dos torturados, tipos de tortura, idade, descrição

dos métodos e locais onde aconteciam.

18 Tal lei anistiou tanto militares quanto presos políticos. Abarcava todos os crimes cometidos entre 1961 e 1979, contudo excluía os condenados por “terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal”. http://www010.dataprev.gov.br/sislex/paginas/42/1979/6683.htm 19 Cf. CARDOSO, Irene. O arbítrio transfigurado em lei e a tortura política. IN: FREIE et. all.Tiradentes:um presídio na ditadura. pp.474. 20 James Wrigth esteve junto com Henri Sobel e Dom Paulo Arns no culto ecumênico em São Paulo quando da morte do jornalista Vladimir Herzog em 1975. 21 CATELA,Ludmila.op.cit.pp.33.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 228

V. volume 4. Os mortos: contém nome dos mortos, descrição da morte, lugar onde

aonteceu e nome dos medico que deram aos atestados de óbito.

VI. volume 1. Índice dos anexos: sobre o material roubado das vítimas

VI. vol.2 Inventário dos anexos: descrição dos documentos roubados (cartas pessoais e

folhetos).

Tal projeto possui 25 cópias, algumas passadas para o inglês e enviadas para o exterior

.Qualquer pessoa pode ter acesso. Em 1985, foi lançado o Projeto B, em livro, para que tivesse

maior divulgação. Chamado: Um relato para a história – Brasil:Nunca Mais. O prefacio é de Dom

Evaristo Arns22. Quando do término do projeto e lançamento do livro acreditou-se que havia “toda

a verdade” sobre o que aconteceu nos anos que se seguiram a 1964, ali . Antes do habeas data, de

1988, esta foi a única referência oficial que os atingidos pelo regime tinham para buscar

informações e reparações.

"É o individuo que o detém e o faz de maneira privada. A sociedade não participa dessa transação nem se apropria das informações obtidas.(...)A instituição que determina a quantidade e o conteúdo que deve liberar" .23

Em 1992, os arquivos começaram a ser transferidos das instituições militares para os

arquivos públicos, sendo assim, mais uma forma de se conseguir informações tanto sobre o

indivíduo, quanto sobre o conjunto de ações do governo. Os arquivos da repressão contêm

documentos pessoais, declarações individuais, inquéritos, fotos, correspondências, enfim, tem-se o

monitoramento diário por parte dos inimigos internos. Apesar disto, em relação aos desaparecidos

políticos, as lacunas ainda persistem, o que ficou claro sobretudo a partir da descoberta da Vala de

Perus em 199024.

Eis que em abril deste ano de 2007 (mês propício para a rememoração do golpe, ou,

revolução,dada a relatividade da história), o que somente alguns reservistas sabiam e alguns

pesquisadores sobre militares “ouviram falar” , aparece o chamado Livro Negro do Terrorismo no

Brasil, conhecido no meio militar como ORVIL ( “livro”, de trás para frente). Neste livro de 966

páginas está toda a “verdade” sobre a luta armada brasileira escrita pelo exército. Apenas 40

22 Projeto A Brasil: Nunca Mais, em Minas há uma cópia disponível para consulta no Instituto Helena Greco. Projeto B, foi lançado pela editora Vozes, em 1985. 23 GRECO, Heloisa. A dimensão trágica da luta pela anistia. IN:Cadernos da Escola do legislativo.Belo Horizonte, vol. 8. n.13.2005.pp.85-111. 24 Esta vala encontra-se no Cemitério Dom Bosco, em São Paulo, construído em 1971, sob governo de Paulo Maluf. Mais de 1049 ossadas foram encontradas entre indigentes, desaparecidos políticos e vítimas do Esquadrão da Morte. A UNICAMP ficou com a responsabilidade identificar os corpos. Neste ano, o governo resolveu voltar à identificação do restante das ossadas (147 ativistas). Em Minas e São Paulo já ocorreram, atos de coleta para o banco de DNA de familiares de desaparecidos. Segundo dados da Comissão Especial e a Secretaria de Direitos Humanos (ambas ligadas ao Ministério da Justiça), existem 147 ativistas políticos mortos pelo regime ainda não identificados. Cf: FIGUEIREDO, Lucas .À procura dos corpos. Estado de Minas.Caderno Política.22 de abril de 2007.pp.22. Para mais informações: http://www.desaparecidospoliticos.org.br/perus/perus.html e documentário premiado : “Vala comum”. Direção:João Godoy.32 min. 1994.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 229

páginas circulam pela internet25, mas, até então, não se sabia a origem das informações contidas no

site. A história do ORVIL está ligada à do Brasil: Nunca Mais. Seria uma “resposta” ao projeto

assumido pela Arquidiocese de São Paulo, lançado em 1985.

Em 1986, o Ministro de Exército do governo de José Sarney , Leônidas Pires Gonçalves, dá

ordem a cerca de 30 oficiais do CIE (Centro de Informações do Exército) para trabalharem de forma

sigilosa no Projeto Orvil. Levou dois anos para ser concluído e seria lançado em livro, com o título:

As tentativas de tomada de poder. Aconteceu que o ex-ministro decidiu não publicá-lo e o

documento ficou circulando entre os oficiais da reserva. Segundo relato de Leônidas Pires , a

decisão de não publicar foi, na verdade, uma precaução contra um possível revanchismo contra as

Forças Armadas por parte de “quem perdeu a guerra”.

“Naquele tempo (em que o livro foi feito) não havia o que acontece agora, um revanchismo sem propósito. (...) No meu período como ministro (1985-1990), não houve nenhum problema essa natureza, essas ‘mães não-sei-do-quê’, Tortura Nunca Mais”.26

O livro cita mais de 1,7 mil pessoas, desde guerrilheiros até Chico Buarque. Todos os dados

foram retirados dos arquivos secretos militares. A importância deste tipo de documento está na

comprovação de que o Exército sempre soube do destino de pelo menos 23 desaparecidos, ao

contrário do que têm repetido ao longo de mais de 30 anos. São integrantes do PC do B (Araguaia),

MOLIPO , ALN e VPR. Há detalhes das mortes, circunstâncias, local e até a qual batalhão

pertencia o assassino. Por duas vezes o governo pediu dados dos mortos e desaparecidos e o

Exército não revelou coisa alguma. A primeira vez em 1993, e a segunda entre 1995-1998. O ex-

ministro da justiça, Maurício Correa, afirma que os dados fornecidos pelo Exército em 1993 foram

evasivos, foram sonegadas informações e que não havia nada de concreto, os relatórios eram apenas

noticias retiradas de jornais, sem dizer quem fez o quê27.

O aparecimento deste livro reanimou o debate acerca da abertura dos arquivos da ditadura e

da reabertura de alguns processos para a indenização de famílias. O ministro-chefe da Secretaria

Especial de Direitos Humanos, Paulo Vanucchi, se manifestou dizendo que haveria uma “pressão

diferente” para a abertura dos arquivos sigilosos. E que chamaria o General Leonidas Pires para

depor28. Ainda não foi tomada atitude alguma. Os familiares dos desaparecidos reivindicam a

abertura dos arquivos que embasaram o livro para que se possa t localizar os corpos.

25 Na pagina do grupo de extrema direita: Terrorismo Nunca Mais. www.ternuma.com.br 26 FIGUEIREDO, Lucas. O Livro era uma arma, diz general. Estado de Minas. Reportagem Especial.12 de abril de 2007.pp.4. 27 FIGUEIREDO,Lucas. Omissão de militares pode ser investigada. Reportagem Especial.16 de abril de 2007. 28___. Câmara vai chamar general para depôr. Estado de Minas. Reportagem Especial. 17 de abril de 2007. pp 1.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v.9 n.1, jan-jul., 2007 230

Segundo Lucas Figueiredo29, o Ministério Público, em Brasília, possui uma cópia do livro,

cedida por ele. Outra cópia irá, em breve, para o Arquivo Público Mineiro. Ele crê que este livro

deva sim ser divulgado, mas com cautela. Há, de acordo com o jornalista, um capítulo intitulado

“Os cachorros”, onde é citado o nome dos militantes que entregaram companheiros. Hoje já se sabe

que, muitas das vezes, as informações (verbais ou escritas) foram retiradas sob tortura, contudo, isto

não está descrito no livro. Essas informações, se liberadas à revelia, podem causar transtornos e

ativar memórias desnecessárias. Assim como temos direito à memória, temos direito ao

esquecimento. Muitas famílias, ainda hoje, preferem não tocar no assunto e saber “quem entregou

quem”, mesmo porque, atualmente, não faz diferença. Aí aparece o limite público/privado. Se não

querem parte da sua história revelada, o que fazemos? Quem mqot cicumstaciw....

Esta “história em verde-oliva”, fala da “revolução feita em defesa da democracia”, que a

tortura não passou de “propaganda político-ideológica” da esquerda para "denegrir"(sic) a imagem

do país, a censura serviu para tranqüilizar a sociedade, pois, por mais que soubessem das ações

guerrilheiras, não puderam avaliar os riscos reais que ela (a sociedade) correu e nem do sacrifício

feito pelo exército para este combate. Além, claro,de tornar Sergio Fleury um “incansável lutador

contra o terrorismo no Brasil” e alguns religiosos tratados como “comunistas infiltrados”. 30

Carlos Brilhante Ustra, pertencente ao Exército, afirma que o Orvil:

“Seria a palavra oficial do Exército. Foi um trabalho profundo, junto a delegacias, a arquivos do STM. Foram pesquisados milhares de documentos, entre eles, declarações do próprio punho de presos, com confissões de crimes e delações de companheiros. Tenho, cópias de parte desse material, espalhadas com companheiros, até no exterior.Existe material para outro livro (...)Alguns dados do meu livro foram baseados no Orvil. Outros, na minha vivência como comandante do DOI. O general Del Nero foi o coordenador do Projeto Orvil.”31

Previsivelmente, o general Pires, acha que o “livro negro” não tinha que ser divulgado e que

“é passado”. Ele afirma: “Vamos olhar para frente”32. Em tese, não é assim que deve ser feito. Foi

um livro financiado com dinheiro público e dentro de um governo dito democrático. Eis uma das

facetas do enclave autoritário de nossa transição. Várias questões acerca do livro precisam ser

respondidas. Suzana Lisboa33 chama a atenção para elas: Onde estão os documentos que foram base

para o livro? Quem colaborou? Quanto custou?

29 Audiência Publica na Assembléia Legislativa em 13 de junho de 2007 para maiores esclarecimentos sobre o Orvil. Estavam na mesa: Durval Ângelo (Comissão de Direitos Humanos da Assembléia) Gilse Consensa (Comissão de mortos e desaparecidos), Heloísa Greco (Instituto Helena Greco)e Lucas Figueiredo (jornalista, quem primeiro teve acesso ao livro). 30 FIGUEIREDO,Lucas. Omissão de militares pode ser investigada. Reportagem Especial.16 de abril de 2007. 31 Para a entrevista completa: http://www.usinadeletras.com.br/exibelotexto.phtml?cod=3162&cat=Discursos em 24/06/2007. O livro a que ele se refere é:USTRA, Carlo Alberto. "A Verdade Sufocada - A história que a esquerda não quer que o Brasil conheça", Editora Ser, Brasília, 2006 32 ___. O Livro era uma arma, diz general. Estado de Minas. Reportagem Especial.12 de abril de 2007.pp.4. 33Integrante da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos.

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Sem dúvida, esta não é uma luta somente dos atingidos pelo governo, mas de toda a

sociedade e muito pouco tem sido feito por ambos os lados – governo e sociedade – em prol da

abertura destes arquivos. Se existe mais material para outro ORVIL, isto deve ser apurado e tornado

público.

3. A legislação referente aos arquivos

O que analisaremos abaixo é a evolução das leis referentes aos arquivos sigilosos e quais as

medidas vêm sendo tomadas por parte do governo e da sociedade no sentido de liberalização da

documentação.

Um passo importante para a transição política foi dado em 1988, com a nova carta

constitucional, em substituição àquela de 1967 . Além de garantir a liberdade de expressão, proibir a

pena de morte e a tortura, está garantido também o direito de habeas- data, para que esteja

assegurado o direito da pessoa tomar conhecimento do que existe sobre ela em registros de

entidades governamentais ou públicas34. No que se refere à ditadura militar,a documentação ainda

se encontrava nas instituições policiais/militares. A referência documental para a construção da

memória do período continuava sendo ao Brasil: Nunca Mais.

O projeto de lei de arquivos aprovado em 1990 , transformando-se em lei em 8 de janeiro de

199135, trouxe a discussão acerca do acesso a estes arquivos da ditadura. A noção de arquivo nesta

lei é a de “conjunto de documentos produzidos e recebido por órgãos públicos, instituições de

caráter publico e entidades privadas”. Esta lei, de numero 8.159/91, reafirma o direito de acesso `a

informação garantido pela constituição federal.

Ela estabelece que todos têm direito a receber informações de seu interesse particular

presente em órgãos públicos, exceto aqueles cujo sigilo seja imprescindível para a segurança da

nação (artigo 4). Há um capítulo inteiro (cap.5) sobre os arquivos privados de interesse público. Por

arquivo privado entende-se “o conjunto de documentos produzidos ou recebidos por pessoas físicas

ou jurídicas, em decorrência de suas atividades” (artigo 11). A partir daí, o poder público passa a ter

direito de: identificar o arquivo privado como de interesse público se forem considerados em

conjunto como fontes importantes para o desenvolvimento cientifico nacional (artigo 12); uma vez

considerados de interesse social, não poderão ser transferido para exterior (artigo 13); o acesso a

estes documentos poderá ser franqueado mediante autorização de seu proprietário ou possuidor

34 https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao em 24/06/2007. 35 http://www81.dataprev.gov.br/sislex/paginas/42/1991/8159 em 24/06/2007.

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(artigo 14); se considerados de interesse público, poderão ser doados a instituições arquivísticas

publicas (artigo 15).

Um ponto importante está no capítulo V, que é referente ao acesso aos arquivos sigilosos.

Determina-se o direito de acesso pleno aos documentos públicos (artigo 22). Houve a categorização

do sigilo que deverá ser obedecido pelos órgãos públicos na classificação dos documentos

produzidos por eles (artigo 23). Tal classificação ficou da seguinte maneira: documentos que

ponham em risco a segurança o Estado ou sociedade ou viole a intimidade/honra/imagem de alguém

é sigiloso.(§ 1º); o acesso aos documentos sigilosos referentes à segurança da sociedade e do Estado

será restrito por um prazo máximo de 30 (trinta) anos, a contar da data de sua produção, podendo

esse prazo ser prorrogado, por uma única vez, por igual período (§ 2º) e, o acesso aos documentos

sigilosos referentes à honra e à imagem das pessoas será restrito por um prazo máximo de 100

(cem) anos, a contar da data de sua produção (§ 3º). Vê-se, portanto, que esta lei já é severa o

bastante, dificultando sobremaneira a construção da chamada “história do tempo presente”.

Em termos comparativos, até o ano de 2005, a Argentina ainda estava a busca de uma

organização arquivística neste sentido. A lei 15.930, que trata do Archivo General de la Nación, é

de 1961 e está “obsoleta e inadequada para a regulação dos arquivos sensíveis à segurança do

Estado e da sociedade”, de acordo com a pesquisadora Patrícia Funes36. Somente em 2001 os

arquivos da repressão daquele país foram transferidos da Dirección de Inteligencia de la Policia de

la Provincia de Buenos Aires (Dipba) para a Comisión Provincial por la Memória. Tal comissão

vem elaborando normas de acesso aos arquivos sigilosos baseando-se num documento da

UNESCO, elaborado por especialistas mundiais chamado: Los Archivos de la Seguridad de Estado

de los Desaparecidos Regímenes Represivos.

Este documento, datado de 1995, visa dar orientacões gerais aos arquivistas dos países há

pouco saídos de ditaduras cuja documentacão ainda é uma icógnita:

Sin ánimo de ofrecer un conjunto de recetas aplicables a todo caso, pues cada proceso de transición política es distinto de los demás, sí persigue ese debate abierto en el Grupo de Trabajo exponer a los archiveros de los países en proceso de democratización, el conjunto de los problemas con que habrán de enfrentarse y, al mismo tiempo, dejar constancia de las actuaciones que en unos y otros países, con procesos similares, acabados o más o menos avanzados, se han desarrollado(...)Teniendo en cuenta, por otra parte, que el archivero destinado a trabajar con estos documentos va a manejar una información enormemente sensible, se ha considerado muy importante plantear una propuesta de código deontológico para el tratamiento de esta documentación, código que se aporta también en el texto de este estudio37.

Voltando ao caso brasileiro, outro ganho para a sistematização e gerência dos arquivos foi a

criação da Conarq - Conselho Regional de Arquivos (artigo 26), órgão vinculado ao Arquivo

Nacional, que define a política de arquivos. 36 http://www.usp.br/jorusp/arquivo/2005/jusp720/pag1213.htm em 24/06/2007. 37 Documento na íntegra pode ser visto em : portal.unesco.org .

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Para Célia Leite Costa, apesar de ser generalizada:

“A Lei de Arquivos representou um enorme avanço, preenchendo a situação lacunar em que se encontrava o país, até então, do ponto de vista da legislação arquivística. Contudo, ela foi apenas o primeiro passo de uma longa caminhada”38.

A autora ainda afirma que várias questões abordadas na lei, como o acesso à informação e a

proteção à privacidade, tiveram que ser regulamentadas por meio de decretos ou outros

instrumentos legais, tais como portarias do Arquivo Nacional e resoluções do Conarq.O Conarq, até

o ano 2000, era integrante do Ministério da Justiça. No ano seguinte, assim como o Arquivo

Nacional, foi para a Casa Civil da Presidência da República.

No primeiro governo de Fernando Henrique foi decretada a lei n.9.140/95, que reconhece

como mortas as pessoas desaparecidas em razão de participação ou acusação de participação em

atividades políticas entre 1961-1979. Uma vez reconhecido o desaparecimento político pelo Estado,

teoricamente ficaria menos complicada a tentativa de localizar corpos e cobrar reparação.

Em 1997, duas medidas governamentais referentes aos documentos sigilosos: foi lançado o

decreto nº2134, que determina: instituições de caráter público custodiadores de documentos

sigilosos, deverão constituir Comissões Permanentes de Acesso. Esta comissão é responsável por:

analisar, periodicamente, os documentos sigilosos sob custódia, submetendo-os à autoridade

responsável pela classificação, a qual, no prazo regulamentar, efetuará, se for o caso, sua

desclassificação; liberar os documentos cuja divulgação comprometa a intimidade, a vida privada, a

honra e a imagem das pessoas após cem anos de acesso restrito ou desde que previamente

autorizado pelo titular ou por seus herdeiros; autorizar o acesso a documentos públicos de natureza

sigilosa a pessoas devidamente credenciadas, mediante apresentação por escrito, dos objetivos da

pesquisa39. O que não fica claro é como se dá a criação desta comissão e quem são as pessoas aptas

a integrá-la.

Em novembro, do mesmo ano, a lei 9.507 age como reguladora do direito de acesso ao

habeas-data.

O decreto mais polêmico no que diz respeito os arquivos veio no apagar das luzes do

governo de Fernando Henrique. Em 27 de dezembro de 2002 é baixado o decreto n.4.55340, onde

amplia os limites de todas as categorias de arquivo (reservado, confidencial secreto e ultra-secreto).

Se a lei de arquivos de 1991, prévia revogação do prazo até no máximo 60 anos, a nova

regulamentação criou o prazo de mais 50 anos, prorrogáveis para a eternidade. Há uma ordem

hierárquica, referente a quem classifica os documentos a começar pelo o Presidente da República; 38 COSTA, Célia Leite. Acesso `a informacao nos arquivos brasileiros: retomando a questão. Estudos Históricos.Rio de Janeiro, n 32. 2003. pp.2. Retirado de http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/358.pdf em 24/06/2007. 39Cf. HONÓRIO, Cristiane et. al. Política e arquivologia: algumas considerações sobre a legislação de sigilo. http://www.aargs.com.br/cna/anais/cristiane_honorio1.pdf em 24/06/2007. 40 http://www81.dataprev.gov.br/sislex/paginas/23/2002/4553.htm

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Vice- presidente; Ministros;Comandantes das três forças e por último, Chefes de missões

diplomáticas. As mudanças não se restringem a estas.O decreto de 1997 estipulava que a

classificação de ultra-secreto era restrita aos presidentes da República, do Congresso e do Supremo

Tribunal Federal. O novo vetou os chefes do legislativo e judiciário e estendeu as outras categorias

já descritas.

Em 2004, foi baixada a medida provisória n. 228 do que trazia algumas modificações em

relação ao direito de acesso aos documentos, regulamentadas pelo Decreto n. 5.301: instituiu-se

uma Comissão de Averiguação e Análise de Informações Sigilosas, integrada pelos Chefes da Casa

Civil e do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, pelos Ministros da

Justiça, da Defesa e das Relações Exteriores, pelo Advogado-Geral da União e pelo Secretário

Especial dos Direitos Humanos; os prazos de restrição dos documentos ultra-secretos, secretos,

confidenciais e reservados baixaram para 30, 20, 10 e 5 anos, respectivamente, com uma única

prorrogação por idêntico período; os responsáveis pela classificação dos documentos ultra-secretos

somaram os chefes de missões diplomáticas e consulares permanentes no exterior.Apesar das

mudanças, as mesmas disposições quanto ao material classificado no mais alto grau de sigilo,

mantiveram-se. O acesso permaneceria restrito enquanto tal medida fosse imprescindível à

segurança da sociedade e do Estado.

Não se pode deixar de citar a Lei n. 11.111, de 5 de maio de 2005, que reafirmou a

disposição de atribuir à Comissão de Averiguação e Análise de Informações Sigilosas,

anteriormente criada, o poder de administrar os documentos ultra-secretos e de “manter a

permanência da ressalva ao acesso pelo tempo que estipular”41.

Assim sendo, é o Estado que decide a duração do sigilo dos documentos confidenciais,

negando à sociedade o direito a informação. E a decisão dele continua sendo pelo sigilo eterno.

Outro aspecto diz respeito a manutenção deste sigilo, que ficou sob a exclusividade de

representantes do governo. “Se é o próprio governo que quer ter sua 'vida privada' distante dos

olhares dos cidadãos, como não suspeitar de interesses escusos? Como conferir legitimidade às

decisões tomadas por uma comissão assim formada?”42

Com este decreto, todos os arquivos de interesse do Estado poderão ficar secretos para

sempre. Uma atitude completamente antidemocrática e que foi reiterada pelo governo atual. O que

se discute é, em relação à abertura da documentação da ditadura militar, há menos um acordo tácito

entre governo e forças armadas , tendo em vista que o presidente da Republica é o Comandante-em-

chefe das Forças Armadas e a ele tais Forças devem obediência. Uma ordem para a abertura dos

arquivos não poderia ser contestada. 41 Boletim n. 1. Movimento Desarquivando o Brasil. Julho de 2005. Retirado do site: http://www.desaparecidospoliticos.org.br/noticias/nt_desarquivando.html em 15/06/2007 42Idem.

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4. A busca continua....

Há uma certa mobilização por parte da sociedade para pressionar o governo no sentido de

que se mude as leis de arquivo e o acesso seja facilitado. Um dos movimentos de maior respaldo

tem sido o Desarquivando o Brasil.

Em 28 de abril de 2005, na PUC-SP ocorreu o ato Desarquivando o Brasil, marcado por

uma série de eventos, como palestras, debates e documentários, sob a coordenação da professora

Dra. Vera Vieira com participação de ex-guerrilheiros, pessoas ligadas aos direitos humanos,

pesquisadores e estudantes. O objetivo foi tornar pública a discussão acerca do “sigilo eterno” sobre

todas as suas implicações e dimensões: histórico, jurídico e familiar. O que se problematiza é que

tal sigilo subverte a constituição e uma das bases do Estado democrático: o direito `a informação.

No ato, foi criada uma comissão para a elaboração de um projeto de lei que inclua membros da

sociedade civil na Comissão que decide sobre os sigilos.

Do ato, foi criado o Movimento Desarquivando o Brasil, composto por professores,

estudantes da graduação e pós-graduação da PUC-SP, USP, a Comissão de Familiares de Mortos e

Desaparecidos Políticos e os Centros Acadêmicos de História, Ciências Sociais, Direito, Relações

Internacionais e Jornalismo da PUC-SP. Para a ampliação do Movimento foram organizadas

atividades temáticas em conjunto com outras instituições, como a dos arquivistas e a ANPUH

(Associação Nacional dos Professores Universitários de História) – a qual incluiu uma mesa sobre o

tema no encontro de julho de 2005, em Londrina. Outras universidades e entidades já se dispuseram

a levar o debate para o âmbito nacional. Há um abaixo-assinado disponível para donwload no site43

que pede o reconhecimento por parte do governo da inconstitucionalidade da lei n 11.111/05 e que

medidas sejam tomadas para abertura de tais arquivos. O próximo passo do Desarquivando, será

um livro lançado no segundo semestre deste ano.

A busca pela reconstituição do período é marcada por ganhos e retrocessos. Esperamos que

mais documentos apareçam e que esse debate continue presente, e não se restrinja a determinados

setores. Os arquivos e a memória são uma evocação do passado.A liberação destes arquivos é uma

forma de saldar contas com o passado que não passa44.

43 http://www.desaparecidospoliticos.org.br/noticias/abaixoassinado.html 44. JELIN, Elizabeth. Los trabajos de la memoria.Madrid: Siglo XXI. 2002.pp.2.

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