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REVISTA ELETRÔNICA DE HISTÓRIA DO BRASIL http://www.rehb.ufjf.br

ISSN 1519 - 5759 [email protected]

Publicação Semestral

Universidade Federal de Juiz de Fora

Departamento de História

Arquivo Histórico da UFJF

Clio Edições Eletrônicas

Juiz de Fora - MG - Brasil

Revista Eletrônica de História do Brasil Volume 7 - Número 2 - Jul.- Dez. 2005

1. História do Brasil 2.Periódicos Eletrônicos: História

UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA Reitor: Profa. Dra. Maria Margarida Martins Salomão

Vice-Reitor: Prof. Paulo Ferreira Pinto

Pró-Reitora de Pesquisa: Profa. Dra. Cláudia Maria Ribeiro Viscardi

Revista Eletrônica de História do Brasil Editora Carla Maria Carvalho de Almeida

Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)

Instituto de Ciências Humanas e Letras (ICHL)

Departamento de História

Campus Universitário

36036-330 Juiz de Fora - MG

Fone: (32) 3229-3109

Os direitos dos artigos publicados nesta edição são propriedade dos autores.

Esta obra pode ser obtida gratuitamente no endereço web da revista, pode ser reproduzida eletronicamente ou impressa,

desde que mantida sua integridade.

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Conselho Editorial Profa. Drª. Carla Maria Carvalho de Almeida (UFJF) ([email protected]) – Organizadora deste número Profa. Dra. Cláudia Maria das Graças Chaves (UFOP) ([email protected]) – Organizadora deste número Profa. Dra. Cláudia Ribeiro Viscardi (UFJF) Prof. Galba R. Di Mambro (UFJF) Profa. Dra. Patrícia Falco Genovez Prof. Dr. Renato Pinto Venâncio (UFOP)

Conselho Consultivo

Adriano S. L. da Gama Cerqueira (UFOP) Américo Guichard Freire (CPDOC / UFRJ) Ângelo Carrara (UFJF) Beatriz Helena Domingues (UFJF) Carlos Fico (UFRJ) Douglas Cole Libby (UFMG) Jairo Queiróz Pacheco (UEL) Marcelo Carlos Gantos (UENF) Manolo Florentino (UFRJ) Maria de Fátima Silva Gouveia (UFF) Maria Leônia Chaves de Rezende (UFSJ) Helen Osório (UFRS) Rodrigo P. Sá Motta (UFMG) Valéria Marques Lobo (UFJF) Vera Lúcia Puga de Souza (UFU) William Summerhill (UCLA)

Revista Eletrônica de História do Brasil. Juiz de Fora: Departamento de História e Arquivo Histórico da UFJF, 2005, volume 7, número 2, jul-dez, 2005, 134 p., http:// www.rehb.ufjf.br.

ISSN 1519-5759

1. História do Brasil 2. Periódicos Eletrônicos: História

Webmaster & logo da REHB Márcio de Paiva Delgado

Bolsista

Aparecida Tavares

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SUMÁRIO

Apresentação 05 DOSSIÊ: PODER E ADMINISTRAÇÃO NA AMÉRICA PORTUGUESA A justiça nas freguesias da comarca de Vila Rica no século XVIII: 06 normatização e costumes Maria do Carmo Pires

De volta às “condições da governabilidade”, na busca de um 20 equilíbrio: notas acerca da sociedade mineira na primeira metade do século XVIII Carlos Leonardo Kelmer Mathias Organização militar no império português: uma análise das bases 37 organizacionais e legislativas dos corpos de ordenanças Ana Paula Pereira Costa Aspectos da administração portuguesa na América: um estudo de 61 caso sobre as funções do provedor-mor da Bahia no século XVIII Charles Nascimento de Sá Cristãos pretos no mundo colonial: irmandades de escravos e 77 forros em Minas Gerais – Século XVIII Ana Paula dos Santos Rangel “A forma de fazer testamento”: apontamentos acerca de um 93 opúsculo setecentista Álvaro de Araújo Antunes

JOVENS PESQUISADORES Os homens ricos das minas nas malhas do império português 102 Carla Maria Carvalho de Almeida Ana Paula dos Santos Rangel Juliano Custódio Sobrinho Lívia Nascimento Monteiro Câmaras municipais e poder local: O “avesso do desejo” metropolitano 113 Michelle Cardoso Brandão A irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos do Alto da 122 Cruz e os enterros de escravos: Vila Rica, século XVIII Juliana Aparecida Lemos Lacet

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APRESENTAÇÃO

Este número da nossa série temática traz estudos referentes ao tema: Poder e Administração na América Portuguesa. Trata-se de um assunto que tem merecido grande destaque nos estudos

sobre América colonial nos últimos anos e tem contado com um profícuo diálogo com a historiografia

portuguesa recente. As relações entre a América portuguesa e Portugal tem sido re-avaliadas dentro de

novas abordagens que destacam intrincadas redes de poder dentro do espaço imperial Luso-brasileiro e

que nos apontam para as diversas formas de conflito, negociação, privilégios e mercês. A partir destas

novas abordagens, destacamos os trabalhos que enfatizam a organização do poder administrativo na

América portuguesa inserida dentro de uma política imperial mais ampla.

Assim, podemos ver neste número questões sobre as esferas do poder a da administração no

âmbito do Estado como a organização do poder judiciário local e periférico, as formas e condições da

governabilidade, o ordenamento militar, a elaboração de testamentos como forma de transmissão de

poder e riquezas, a estrutura administrativa e o provimentos de cargos. Bem como observar as formas

constituídas de poder dentro da sociedade colonial como a inserção de irmandades de cativos e forros.

Todos esses elementos abordados nos artigos que aqui apresentamos colocam-nos em contato com as

mais recentes discussões historiográficas sobre as importantes esferas de poder, suas formas de

representação e seus mecanismos de reprodução. Podemos observar que as formas do ordenamento

jurídico do estado e da sociedade colonial, como as aqui apresentadas, convergem para a sua

compreensão dentro dos estatutos e ordenamentos jurídicos dos estados e sociedades de Antigo

Regime. Outro aspecto importante a se observar é a concentração de estudos relativos à Minas Gerais

que, embora não tenham sido o nosso propósito, nos permite acompanhar as diversas faces do poder

constituído em um mesmo território.

Por fim, acompanhando a mesma temática, apresentamos o resultado dos trabalhos

monográficos realizados por duas jovens pesquisadoras e que nos fazem atestar a qualidade das

investigações que se tem produzido no âmbito do bacharelado em História em nosso país.

Cláudia Maria das Graças Chaves Carla Maria Carvalho de Almeida

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A JUSTIÇA NAS FREGUESIAS DA COMARCA DE VILA RICA NO SÉCULO XVIII: NORMATIZAÇÃO E COSTUMES

Maria do Carmo Pires

Resumo: Este artigo está centrado na atuação dos oficiais de vintena da comarca de Vila Rica no século XVIII. Considerados oficiais menores por ocuparem cargos menos importantes da estrutura judiciária periférica do Império Português, eles eram responsáveis pela aplicação da justiça em mais baixa instância, ou seja, na esfera das freguesias. Palavras-chave: História do Brasil Colônia; Justiça; Câmara Municipal; Oficiais de Vintena.

Abstract: This article is centered on the activities of the officials of “vintena” of the District of Vila Rica in the centurie XVIII. Considered minor officials because they occupied positions less important in the judicial structure on the periphery of the Portuguese Empire, they were responsable for the application of justice at the lowest level, that is, the sphere of the regions outside the urban area. Key words: History of Colonial Brazil; Justice; “Câmara Municipal”; officials of “vintena”.

A organização da justiça na comarca de Vila Rica subdividia-se em ouvidoria, termos e

vintenas. Como representante da instância superior, o ouvidor – também conhecido como

desembargador e corregedor por acumular esses cargos – recebia apelações e agravos do juiz

ordinário e do juiz de fora e, algumas vezes, também atuava como juiz de primeira instância1.

Essa, por sua vez, era representada, no termo de Vila Rica, pelo juiz ordinário – eleito entre os

"homens bons" para presidir a Câmara – que possuía variada gama de atribuições jurídico-

administrativas, regidas pelas Ordenações Manuelinas e Filipinas, dentre elas, participar da

escolha do juiz de vintena2.

No termo de Vila do Carmo/Mariana atuava o juiz de fora, magistrado de carreira nomeado

pela Coroa e presente na região desde 1732. Em sua ausência, o vereador mais velho atuava

como "juiz pela ordenação"3. O Rei se recusou a enviar um juiz de fora para Vila Rica, apesar das

solicitações feitas desde o ano de 1726 por D. Lourenço de Almeida. Esse governador insistia na

necessidade da criação desse cargo tanto para Vila Rica como para Vila do Carmo, alegando que

os juízes ordinários eram "leigos, faziam grandes abusos e mal sabiam ler"4. Marco Antônio

Silveira demonstra que somente a partir de 1754 apareceram juízes letrados compondo a Câmara

1 AGUIAR, Marcos Magalhães. Negras. Negras Minas Gerais: uma história da diáspora africana no Brasil colonial. 1999. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, p. 49. 2 ALMEIDA, Cândido Mendes de. Título 65 - Dos juízes ordinários e de fora, p.144, § 73,74. Código Filipino ou Ordenações e Leis do Reino de Portugal. 14 ed. Rio de Janeiro: Instituto Philomathico, 1870. 3 Idem. 4 CARVALHO, Theophilo Feu de. Comarcas e Termos. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1922. Apud. LEMOS, Carmem S. A Justiça Local: Os juízes ordinários e as devassas da comarca de Vila Rica (1750-1808). 2003. Dissertação

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de Vila Rica, "após um longo período de total hegemonia de militares5. Em 1730 o governador

novamente insistiu na criação do cargo de juiz de fora para Vila Rica, mas esse oficial foi indicado

apenas para Vila do Carmo6. Os camaristas de Vila Rica, à princípio, preocuparam-se com o

destaque que a Vila do Carmo recebia com tal indicação, podendo, assim, firmar uma posição de

supremacia. De acordo com Russell-Wood, essa preocupação mostrou-se infundada, visto que o

juiz de fora raramente interferiu nos negócios municipais de Vila Rica, mesmo quando presidia as

reuniões do Senado7. Divergências surgiram somente nos momentos em que assumia o posto de

ouvidor interino, podendo suspender providências tomadas pelos oficiais da Câmara e, por várias

vezes, entrou em conflito com o ouvidor de Vila Rica8.

As vintenas faziam parte da primeira instância, eram representadas pelas povoações de no

mínimo vinte vizinhos, possuindo um juiz denominado de vintena e seu escrivão. Esses oficiais,

nomeados anualmente pela Câmara, atuavam como auxiliares na aplicação da justiça e na

administração do termo. Na Comarca de Vila Rica as vintenas eram representadas pelas

freguesias e seus povoados subjacentes possuindo, algumas delas, um número bem expressivo

de habitantes, o que significa que o juiz possuía sob sua jurisdição um grande número de

pessoas, não somente 20 casas como a historiografia tem demonstrado. Pretendemos aqui

identificar os procedimentos e esfera de atuação dos vintenários no âmbito judiciário.

Eram da responsabilidade desses oficiais impor leis, fazer diligências nos arraiais e

freguesias para as quais foram nomeados, fazer todas as diligências por ordem do juiz ordinário,

dar fé de todos os casos ocorridos no seu distrito e enviar à cadeia os presos em flagrante ou

condenados pela justiça ordinária. As Ordenações estipulavam que o juiz de vintena devia

resolver os casos conflituosos até a quantia de quatrocentos réis em locais com mais de 100

vizinhos, todos sem apelação e sem processo, devendo ser resolvidos verbalmente9. Não podia

(mestrado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, p.58. 5 SILVEIRA. O Universo do Indistinto: Estado e sociedade nas Minas Gerais setecentistas (1735-1808). São Paulo: Hucitec, 1997, pp.151-52. Esse autor demonstra que até a década de 1750, os juízes ordinários eleitos eram detentores de postos militares. Sobre o perfil social dos juízes ordinários de Vila Rica após 1750, ver LEMOS. Op. Cit. 6 Arquivo Histórico Ultramarino (AHU) – Minas Gerais, cx. 16, docs, 49, 51 e 56. 7 Para esse nosso estudo, lemos os acórdãos da Câmara de Vila Rica para o século XVIII e percebemos que era o juiz ordinário quem presidia as reuniões. 8 RUSSEL-WOOD, A J. O Governo Local na América Portuguesa: um estudo de divergência cultural. In: Revista Brasileira de História. São Paulo: ANPUH/Humanitas, v. 18, n.36, 1998, pp. 50-51. Sobre as divergências entre o juiz de fora de Vila do Carmo/Mariana e o ouvidor de Vila Rica conferir. AHU, Minas Gerais, cx. 19, doc. 45; cx. 22, docs. 16 e 19. Nesse último documento, o Dr. Antônio Freire da Fonseca Osório, juiz de fora de Vila do Carmo em 1732, informou a D. João V sobre os “excessos e injustiças” praticados por Sebastião de Souza Machado, ouvidor geral da comarca de Vila Rica efetuando prisões de oficiais da justiça de Vila do Carmo. O juiz de fora soltou os oficiais que haviam sido condenados pelo ouvidor: o carcereiro Sebastião de Souza Machado, o meirinho do campo Damião Francisco da Costa; o escrivão do meirinho das execuções Pedro da Costa Pereira e o escrivão do alcaide Luiz da Silva e Souza. 9 Quatrocentos réis formavam o montante máximo permitido pelas Ordenações nas causas em que os juízes ordinários podiam sentenciar verbalmente. Geralmente eram dívidas, ou "causas d'alma". O valor variava de acordo com o número de vizinhos: de 20 a 50 a alçada era de cem réis; de 50 a 100 era de duzentos réis; de 100 a 150, trezentos réis e daí

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resolver contenda sobre bens de raiz e crimes, mas tinha permissão para prender os malfeitores

em flagrante ou por requerimento de uma das partes da contenda10.

No dia 21 de agosto de 1736, um regimento dos juízes e escrivães de vintena foi registrado

nos livros de provisões da Câmara de Vila Rica. Além das atribuições contidas nas Ordenações,

recomendava que os oficiais deviam observar na alçada que na dita lei se lhe é até quatrocentos réis se deve praticar o que se acha determinado por resoluções régias para estas Minas que é o quádruplo do Reino, pelo que poderão julgar sem apelação nem agravo e executar até a quantia de dezesseis tostões sem apelação, nem agravo11.

Temos aqui um exemplo de ampliação das atribuições e da jurisdição do ofício vintenário

que, nas Minas, era quatro vezes maior que as determinadas pelas Ordenações. Se na legislação

do Reino a quantia dos casos que podiam ser executados não ultrapassava o valor de

quatrocentos réis, nas Minas era de dezesseis tostões, ou seja, mil e seiscentos réis.

Cabia ao detentor do cargo de escrivão da vintena servir de juiz ou escrivão de

testamentos que deviam ser feitos a todos os moradores doentes do arraial. Para isso, teriam um

livro rubricado pelo juiz de fora ou juiz ordinário para registrá-los, além de lançar as contas e as

correições feitas pelo corregedor da Câmara.

No dia 20 de dezembro de 1735, o Rei enviou uma carta aos oficiais da Câmara de Vila

Rica alegando que [...] sendo ouvido o meu procurador da coroa e lhe parece [?] nomeeis todos os anos juízes da vintena com seus escrivães na forma da ordenação os quais podem aprovar testamentos na falta dos tabeliões como no Reino se pratica12.

Os camaristas também acordaram que o seu escrivão enviasse ordens aos juízes da

vintena para que notificassem seus escrivães que não tivessem livros para as "coimas e

testamentos na forma que deixou em correição o Dr. Provedor lhes apresentem dentro de oito

dias e não fazendo os hajam e conheçam suspensos e pagarão as certidões que remeteram a

este senado dentro de oito dias sob pena de suspensão"13.

Todas as provisões dos escrivães da vintena continham a permissão para aprovar os

testamentos. Na comarca de Vila Rica, inicialmente, eram chamados de escrivães da vintena e

julgado dos testamentos e, ao prestarem juramento, deixavam registrados seus sinais em um livro

até 200 ou mais, a quantia era de quatrocentos réis. ALMEIDA, Cândido Mendes de. Op. Cit., Título 65 - Dos juízes ordinários e de fora, pp.144, § 73,74. 10 Idem. Saint Hilaire, em passagem pela região das Minas, no inicio do século XIX, afirmou que esse magistrado, que era assistido por seu escrivão, presidia aos inquéritos das causas crimes cometidas na zona de sua jurisdição, e enviava os autos a seu superior. Esse viajante deve ter se enganado, pois os vintenários não possuíam permissão para sentenciar em causas crimes. SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem pelas províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais. Belo Horizonte/São Paulo: Ed. Itatiaia/EDUSP, 1975, p. 158. 11 Arquivo Público Mineiro (APM)-Câmara Municipal de Ouro Preto (CMOP), Livro de provisões. Cód. 32, fls.47-47v. 12 APM – Câmara Municipal de Mariana (CMM) - Cód. 12, fls. 74-74v - 20/12/1735. 13 APM – CMOP – Cód 42, fol. 47 – 13/09/1741.

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do escrivão da Câmara com os quais "dariam fé pública". Em várias petições que moradores das

freguesias dos termos de Vila Rica e Vila do Carmo/Mariana enviavam às Câmaras para

nomearem oficiais vintenários, alegavam a necessidade de um oficial para aprovarem os

testamentos14. Essa atribuição era regulada pelo regimento dos tabeliães de notas e escrivães do

judicial e do crime que ordenava: Em cada aldeia, que tiver vinte vizinhos, e estiver afastada da Cidade, ou Vila uma légua, haja uma pessoa apta para fazer os testamentos aos moradores da dita aldeia, que estiverem doentes em cama. E sendo feitas segundo a forma de nossas Ordenações, ser-lhes-ia dada fé, e autoridade como que foram feitas por tabelião das notas. E os oficiais da Câmara poderão escolher a tal pessoa, morador na dita aldeia, e servirá o dito ofício em sua vida e dar-lhe-ão juramento escrito no livro da Câmara, ao pé do qual deixará feito seu sinal público. E será obrigado a ter um caderno bem cozido, em que escreverá os ditos testamentos, quando lhes mandarem fazer nas notas [...] e não tolhemos que os moradores dessa aldeia possam fazer os testamentos, posto que doentes estejam, com os tabeliães das cidades ou vila, ou como quiserem, segundo forma de nossas Ordenações15.

Esse parágrafo do regimento dos tabeliães de notas é o mesmo que está expresso em

todas as provisões dos escrivães da vintena no que se refere à aprovação e escrita dos

testamentos, e esses oficiais deviam receber também a mesma quantia que os tabeliães.

A tabela I contém os registros de testamentaria do termo de Vila Rica para os anos de

1757-1762 e 1786-93. Do total, 82,45% das aprovações ficaram a cargo dos escrivães da vintena

e 17,55% foram feitos pelos tabeliães de Vila Rica, devido a algum impedimento dos escrivães ou

por que o testador foi até a sede do termo para aprovar seu testamento.

TABELA I

No de aprovações de testamentos das freguesias do termo de Vila Rica (1757-62 e 1786-93)

Oficiais No %

Escrivão da Vintena

Tabelião

Total

47 82,45%

10 17,54%

57 100%

Fonte: AHMI – Livros de Registros de Testamentos nos 1,2,3,4 e 20

A execução dos testamentos era considerada de foro misto, pertencendo tanto à esfera

eclesiástica quanto à secular. Para evitar confusões ou dúvidas nas duas instâncias, o Papa

Gregório XV aprovou que houvesse uma alternância nas execuções. Assim, “os testamentos das

pessoas que faleceram nos meses de janeiro, março, maio, julho, setembro e novembro”

pertenciam aos prelados e seus ministros e os testamentos dos meses restantes ficavam sob a 14 AHU – Minas Gerais - Cód. 58, doc. 29, 1751.

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responsabilidade dos “provedores de S. Majestade”.16 Nas freguesias, os doentes ditavam a

alguma pessoa as suas últimas vontades, seguindo um modelo existente para os testamentos e

chamavam o escrivão da vintena para fazer a aprovação, tanto nos testamentos da alçada

eclesiástica como da secular. Todas as aprovações seguiam um modelo como esse feito pelo

escrivão da vintena de Itabira: Saibam quantos este público instrumento de aprovação de testamento última e derradeira vontade ou como em direito mais válido for virem que no ano de nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil setecentos e sessenta e dois anos aos treze dias do mês de julho do dito ano em esta freguesia da Nossa Senhora da Boa Viagem de Itabira distrito de Vila Rica de Nossa Senhora do Pilar de Ouro Preto em casas de morada da testadora deitada em cama em forma da enfermidade de que lhe sobreveio mas estando em todo o seu perfeito juízo e entendimento que Deus Nosso Senhor foi servido dar-lhe segundo o parecer de mim escrivão, testemunhas adiante assinadas na presença das quais logo por ela testadora das suas mãos às minhas me foram dadas três folhas de papel como seu solene testamento escrito nelas e a todas as perguntas que eu escrivão lhe fiz me respondeu que sim a saber que este era o seu solene testamento o qual mandara escrever por Domingos Lopes da Costa ditando-lhe ela dita testadora por sua própria boca e depois de escrito sendo lido por estar tudo a seu gosto de forma que o tinha ordenado o assinara o dito Domingos Lopes da Costa o que por este recebo ela por revogado outro qualquer testamento que antes deste havia feito esse o presente que a ela como um solene testamento o qual em direito melhor se acha chamar por quanto tudo nele disposto é sua última vontade por isso roga as justiças de Sua Majestade lhe cumpram e guardem e façam inteiramente cumprir e guardar na forma da maneira que nele se contém e declara a mim escrivão me pediu lhe aprovasse para inteira validade por quanto ela testadora o tinha aprovado e de novo ratificava sua aprovação e seu testamento eu escrivão lhe aceitei e se acha escrito em três meias folhas de papel que ocupam quatro laudas e vinte e oito reiras da outra onde dei princípio a esta aprovação e o vi e examinei rubriquei a folhas com a minha rubrica que diz Pimenta e por estar sem vício em trezenhas borraduras nem cousa dúvida possa lhe aprovei e dei por aprovado tanto quanto em direito, dever e posse inteiro instrumento de aprovação estando presentes [...] por mim escrivão Antônio José Pimenta em público e raso [...]

Como as pequenas localidades dependiam da vila e sua Câmara para organizá-las e

controlá-las, a maior parte dos casos conflituosos deviam ser resolvidos neste âmbito, devido à

dificuldade de aplicação da justiça nas áreas remotas e aos altos custos. No dia 8 de setembro de

1751, o ouvidor da comarca de Sabará, João de Souza de Mendonça Lobo escreveu ao Conselho

Ultramarino notificando a necessidade de nomearem oficiais de vintena. Nesta comarca há arraiais distantes desta vila quatro, seis, oito, dez, doze e mais léguas e o mesmo acontece no termo da Vila de Caeté. Os ditos arraiais, sendo populosos não têm vintenários de que muito necessitam, tanto para acudirem às rixas, portarem-se das feridas e mortes de sorte que pelos não haver, quase todos os corpos de delito se fazem por testadas por não caber no possível poder vir notícia a esta vila para lá se mandar tabelião a tempo de se achar o corpo por enterrar, como também são precisos vintenários para fazerem principalmente em causas módicas, citações e mais diligências, pois muitas pessoas por temerem as custas das mesmas diligências, e importarem estas em mais do seu principal, não demandam os seus devedores. São outrossim precisos os

15 Regimento que os tabeliães das notas e escrivães do judicial e do crime de todo o Reino hão de ter, conforme a nova reformação das Ordenações do Reino, mandando observar por Sua Magestade. In: Systema, ou Collecção dos Regimentos Reaes. Lisboa: Na Officina Patriarcal de Francisco Luiz Ameno, 1789, livro 9, p.99. 16 VIDE, Dom Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (1707). Coimbra: s.n., 1720, Livro 4, tit.43, § 803.

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vintenários nos ditos arraiais, principalmente o escrivão de vintena para aprovar testamentos como o fazem em Pernambuco17. Em 26 de agosto de 1778 os oficiais da Câmara de Vila Nova da Rainha também

escreveram ao Conselho Ultramarino pedindo autorização para que todas as diligências das

freguesias fossem realizadas por oficiais vintenários18.

Todas as provisões de juiz e escrivão da vintena contêm a atribuição de cobrar as coimas

que eram condenações pecuniárias.

O regimento e "prática que há de usar por estilo no seu ofício de escrivão da vintena da

freguesia de São Bartolomeu, Domingos da Costa Portela", por provimento dado em correição no

ano de 1741, contém o salário que o escrivão deveria receber e estas condenações que fizerem nas formas das posturas será obrigado o escrivão da vintena a assentar em livro e será a terça parte deles para as rendas da Câmara deste distrito que se carregarão em receita nos livros da mesma Câmara e levarão os salários pelos testamentos o mesmo que levam os tabeliães. E pelas coimas o que leva o escrivão da almotaçaria pela sua escrita19.

Além da cobrança das penas pecuniárias, os oficiais vintenários eram responsáveis por

enviar à prisão as pessoas envolvidas em conflitos tendo sido presas em flagrante ou por ordem

do juiz ordinário ou de fora e a maior parte dos casos diz respeito a bens penhorados que as

pessoas se negavam a entregar à justiça para "colocá-los em praça", além das coimas que não

eram pagas20.

Podemos também acompanhar os procedimentos judiciais dos vintenários nas devassas,

processos crimes e cíveis, querelas e ações de juramento d’alma. As diligências e os mandados

que eram enviados às vilas ficavam sob a responsabilidade dos vintenários.

As ações d’alma eram referentes a créditos com valores módicos. Eram processos cíveis

sumários que, por meio de juramento, a justiça buscava solucionar conflitos referentes a créditos.

Mesmo quando o acordo entre as partes não era selado com papéis escritos e sinais, o credor

requeria ao juiz a citação do devedor para “jurar em sua alma”, ou seja, para confirmar ou negar a

dívida.21 A palavra dada era a solução para os conflitos e se tornava questão de honra, além da

salvação da alma. As Ordenações regulavam os procedimentos jurídicos dessas ações:

17 AHU - Minas Gerais - cx. 58, doc.29. Esse documento reforça a atribuição do escrivão da vintena para aprovar testamentos. 18 AHU - Minas Gerais - cx. 113, doc.18. 19 APM- CMOP, Cód. 22, fls. 72v, 27-05-1741. 20 APM – CMOP, Cód. 50, fls, 24v, 12.01.1743. 21 Para o termo de Vila Rica há 421 ações de alma e 610 ações de crédito referentes aos anos de 1751-1808. Esses dados me foram passados por Álvaro Antunes a quem agradeço. As ações de crédito são muito parecidas com as de juramento d’alma. Para Mariana não detectamos o número de ações, mas, como é muito elevado para toda a comarca de Vila Rica, optamos apenas por pesquisar o códice 277 do Arquivo Histórico do Museu da Inconfidência (AHMI), somente para oferecer exemplos dos procedimentos dos vintenários nesses casos. Esse códice também foi sugerido por Antunes por conter várias citações realizadas pelos vintenários. Essas ações d’ama e de créditos são encontradas tanto na justiça secular como na eclesiástica, mas nessa última os valores eram mais elevados que na secular,

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[...] mandá-lo-ia o juiz citar por carta, ou porteiro, ou por outra maneira, para vir perante ele. E se esta parte citada por juramento dos Evangelhos negar o que lhe o autor demanda, absolva-o logo o juiz desta demanda, e condene o autor nas custas, que lhe por causa desta citação fez citar. E se o citado não quiser jurar, e recusar o juramento, e o autor jurar que o réu lhe é obrigado em aquilo que lhe demanda, o juiz condene o réu por sentença em que o autor jurar, que o réu lhe é obrigado pagar, pois o réu, em cujo juramento o autor o deixava, não quis jurar22.

A instabilidade do mercado mineiro era visualizada pela insuficiência dos meios de

circulação do ouro e a expansão do sistema de crédito foi resultado da carência e inconstância do

ouro em pó como moeda. A própria sociedade forjou, no cotidiano, uma solução efetivando “a

palavra escrita ou falada” como nova moeda no conjunto das transações diárias. “O fiado e a

dívida eram generalizados” e acordos estipulados ou papéis assinados representando

empréstimos ou vendas a prazo eram muito comuns nas transações cotidianas. As Minas

oscilavam entre duas posturas opostas – o juramento da verdade e manutenção da palavra ―, o

que reforçava todo um modelo comportamental e valorativo. O rompimento dos acordos colocava

em xeque a eficácia da lei e a sociabilidade23.

Nas freguesias as citações dos acusados eram feitas pelos vintenários. O juiz da vintena

de Itabira, Manoel da Silva Sampaio, foi à paragem denominada Mota para citar Manoel Ferreira

de Azevedo, devedor da quantia de mil e duzentos réis ao padre Sebastião Rodrigues de

Carvalho.24 Manoel Francisco da Silva, juiz de São Bartolomeu, citou ao sapateiro Serafim

Francisco Maia e sua mulher, devedores de duas oitavas, um quarto e quatro vinténs.25 Em 1799,

o juiz ordinário de Vila Rica, Dr. Diogo Pereira Ribeiro de Vasconcelos enviou um carta precatória

citatória à cidade de Mariana, a favor do sargento mor Diogo José da Silva Saldanha, para serem

citados João Gonçalves Vieira e sua mulher Maria de Almeida que [...] lhe compraram várias fazendas secas e das quais lhe ficaram devendo de resto trinta e

cinco oitavas e de caução lhe deram um cordão de ouro com o peso de sete oitavas e três quartos e comprando uma fazenda no termo de Mariana para as partes do Rio Peixe e Pomba, na capela de Nossa Senhora das Mercês para a qual desta se mudaram [...]

José Pereira Malta, escrivão da vintena de Guarapiranga esteve na freguesia de São

Manoel do Rio Pomba e citou os devedores a comparecerem na primeira audiência que seria

realizada em Vila Rica. Dois anos depois esse caso ainda se arrastava e o juiz da vintena Manoel

de Oliveira Couto também reiterou a citação26.

ultrapassando 50 mil réis. Necessitamos de pesquisas que desvendem a atuação dessas duas instâncias, bem como os procedimentos para os casos mixti-fori. Sobre a justiça eclesiástica ver: PIRES, Maria do Carmo. Juízes e Infratores: o Tribunal Eclesiástico do Bispado de Mariana (1748-1808). 1997. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Direito e Serviço Social da Universidade Estadual Paulista, Franca. 22 ALMEIDA, Cândido Mendes. Op. Cit. Livro 3, tít. LIX, § 5. 23 SILVEIRA. Op. Cit., p. 99-100. 24 AHMI – Ação d’Alma – cód. 277, auto 5741, 1781, 1o of., fl. 3. 25 AHMI – Ação d’Alma – cód. 277, auto 5746, 1796, 1o of., fl. 3. 26 AHMI – Ação d’Alma – cód. 277, auto 5771 – 1o of., fls. 3v, 6 e 15v.

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Em algumas das sentenças de juramento d’alma, os vintenários também tiveram a

incumbência de fazer as procurações e petições dos autores e deverores. Manoel da Silva

Sampaio, juiz da vintena da freguesia de Itabira, esteve na paragem denominada Paraopeba da

Moeda, na casa de Domingos Gonçalves Barroso para fazer uma procuração: [...] que reconheço pelo próprio de que trato faço menção e disso dou fé e por ele me foi dito que fazia e constataria seus procuradores em Vila Rica aos doutores Joaquim Antônio Velho, João Anastácio Rodrigues de Souza e aos solicitadores de causas o alferes Guilherme Teixeira e José Antônio Neves para que todos juntos e cada um de per si possam em seu nome como se presente fosse procurar, requerer, alegar, defender e mostrar todo o seu direito a justiça na causa de ação de juramento d’alma que quer mover a José Fernandes de Souza [...]27

Nessa mesma ação o escrivão da vintena Antônio José Pimenta, no dia 24 de fevereiro de

1782, em sua “casa de morada”, fez a citação e a procuração do acusado que reconheceu a

dívida, mas estava impossibilitado de comparecer na audiência em Vila Rica28.

As devassas definidas como "uma informação do delito, feita por autoridade do juiz ex-

oficio [...] ordenadas para que não havendo acusador não ficassem os delitos impunidos",

correspondiam a um procedimento jurídico sumário de inquirição de testemunhas feito pelo juiz

para apurar delitos que afetavam a tranqüilidade pública29. As devassas gerais eram tiradas

quando não havia um conhecimento prévio dos delitos ocorridos no termo. Como exemplo temos

as diamantinas e as janeirinhas, realizadas todo mês de janeiro com o objetivo de controlar os

casos envolvendo a população e fiscalizar os procedimentos dos oficiais de justiça. As específicas

eram tiradas para apurar delitos variados que se tornaram públicos, especificados nas

Ordenações30.

A inquirição de testemunhas ocorria por clamor do povo, remontando ao Direito

Consuetudinário baseado na oralidade e no costume e o rito processual era simples e sumário.

Carmem Lemos destaca a natureza provisória do inquérito evidenciada pela expressão latina si et

in quantum, contida em mais de 90% da abertura dos autos, indicando o caráter confidencial da

prova, aceita até que outros motivos cessassem a ação. A isso se somava a exigência de

apuração rápida prevista para 30 dias. Também somar-se-ia às constatações de ações preliminares sumárias, o registro de que apenas o corpo de delito e a prova testemunhal eram suficientes para sustentar a decisão do juiz ordinário na devassa, que findava com a indicação do réu, sua prisão e subseqüente indicação para que tivesse início um novo processo, os autos de livramento ― cíveis e crimes ―, nos quais sucederiam a investigação plena, com base argumentativa sustentada pelos fundamentos do Direito, em que a defesa e outros tipos de provas e instrumentos jurídicos legais poderiam ser acionados31.

27 AHMI – Ação d’Alma – cód. 277, auto 5778 – 1o of., fls.5-5v. 28 AHMI – Ação d’Alma – cód. 277, auto 5778 – 1o of., fl. 6. 29 Para uma comparação entre o universo das devassas eclesiásticas e as devassas da justiça secular, ver: PIRES. Op. Cit., e LEMOS. Op. Cit. 30 ALMEIDA, Cândido Mendes. Op. Cit. Livro I, tit. 65. Não é nosso objetivo aqui analisar o universo dos delitos das devassas. Para uma maior compreensão das devassas, ver: LEMOS. Op. Cit. 31 LEMOS. Op. Cit., p. 93.

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Os casos de devassas do termo de Vila Rica são divididos em 50% ferimentos, 33%

mortes, 5% furtos e 12% subdivididos em fuga da cadeia, incêndio, extravio de diamantes,

feitiçaria e devassas janeirinhas32.

Percebemos, nesse universo de denúncias por "ouvir dizer", que o corpo de delito

compreendia um elemento indispensável por atestar a existência da ocorrência. Era a base

essencial de todo o procedimento criminal, tratando quase que exclusivamente de crimes de

agressão e de homicídio. Segundo Marcos Aguiar, as taxas de crimes sobre violência e vida na

comarca de Vila Rica no século XVIII eram elevadas. Em Mariana variavam de 51% a 60% na

primeira metade do século contra 42% de Vila Rica, para se estabilizar em torno de 40% em

meados do século, convergindo com a periodização proposta acerca do processo de

implementação do Estado na capitania. Segundo ele, esses dados representam sintomas do

crescimento demográfico e da urbanização. Além disso, o elevado número de crimes de violência

e de honra na primeira metade do setecentos e a intensificação de ações criminais eram

respostas do Estado a essa situação crítica33.

Nos casos de violência, o juiz da vintena e seu escrivão faziam o papel do atual perito

criminal, defrontando-se com situações extremamente desagradáveis que impressionam pelo grau

de violência e mutilação dos feridos. Em Ouro Branco, o escrivão Francisco Coelho Simões foi

chamado à casa de Manoel Pacheco que estava "já sem fala" chegando a falecer por causa de

uma porretada "que lhe deram na cabeça por reta da sobrancelha direita [com] uma ferida contusa

feita com um pau que principiava da raiz do cabelo e chegava até o alto da cabeça que tinha

carne do couro cortado com perda de substância"34. Na paragem chamada Água verde,

pertencente à freguesia de Congonhas do Campo, o escrivão Alexandre Moura, juntamente com o

juiz Antônio Rodrigues Guimarães, encontraram um corpo sendo comido por porcos35.

Os vintenários dessa mesma freguesia, no ano de 1753, encontraram Leandro Francisco

da Costa, morto em sua casa, com uma ferida no "ventre com couro e carne cortada e penetrante

da parte esquerda com a largura de quatro dedos [...] que mostrava ser feita com instrumento

perfurante”. O interessante nesse caso é que o cirurgião havia sido chamado para curar as feridas

e, ao examiná-lo, disse que não havia nenhum membro interno gravemente ferido que pudesse

levá-lo à morte. Porém, Leandro da Costa faleceu meia hora após o exame. Dessa vez o cirurgião

alegou que a causa da morte foi "por logo se lhe não acudir e passar quase que uma hora depois

32 Idem, p.105. 33 AGUIAR. Op. Cit., p.79-83. 34 AHMI - Cód. 450, auto 9496, 1o ofício, fl. 2. 35 AHMI - Cód. 180, auto 33140,1o of., fl.2, 1749.

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que recebeu a dita ferida e se ter escoado muito sangue como também estar algum tanto turvado

de bebidas, causa para mais depressa se lhe exalar os espíritos"36.

José do Couto, escrivão da freguesia de Itatiaia encontrou um cadáver que já se achava sem carne alguma, ossos já separados uns dos outros e ao pé dos ditos ossos, achei uns sapatos com fivelas de metal, chumbo e a camisa de riscado e a caveira na parte direita com uma amassadura que parece ser de pancada com que foi morto e na nuca lhe achei outra amassadura e com falta de uns dentes na boca37.

TABELA II

No de oficiais responsáveis pelos autos das Devassas das Freguesias do Termo de Vila Rica (1736-1808)

Oficiais No %

Escrivão e Juiz da Vintena

Escrivão da Vintena

Tabelião

47

9

7

74,60

14,29

11,11

Total 63 100%

FONTE: AHMI – Série Devassas.

A tabela II dimensiona os procedimentos dos vintenários nas devassas, mostrando que os

autos de corpo de delito das freguesias eram realizados por esses oficiais. Destacamos mais uma

vez a importância desse procedimento e, em conseqüência, a relevância também da participação

do juiz e do escrivão da vintena na estrutura judiciária colonial38.

A violência constituía elemento estrutural de sistemas escravistas, assumindo a forma de

linguagem para acomodação ou ruptura das relações desiguais. Foi interiorizada no mundo

colonial e utilizada tanto pelo poder instituído quanto pelos focos de resistência ao sistema39. Em

Minas no ano de 1776, a população era constituída de 70769 brancos (22,13%), 82000 pardos

(25,64%) e 167000 pretos (52,23%). Essa flagrante superioridade numérica da população negra

seria característica da região durante todo o século XVIII, podendo ser percebida ainda nas

36 AHMI - Cód. 446 - auto 9377, 1o of., fl 2. 37 AHMI - Cód.450, auto 9491, 1o of., fl. 2v, 1755. 38 O número de autos de devassas pesquisado não condiz com o número de devassas tiradas no Termo de Vila Rica durante o período estudado. Podemos ter uma dimensão desses números no livro de distribuição de devassas contido no APM para os anos de 1741-1809, correspondendo a um total de 1427 autos. Carmem Lemos, também pesquisou esse livro e já demonstrou que mais de 90% desse total se perdeu. 39 Ver. LARA, Sílvia H. Campos da Violência: escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro, 1750-1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

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primeiras décadas dos setecentos40. Assim, a mestiçagem era vista como um dos principais

elementos causadores dos defeitos da população mineira. Esse elevado número de negros e

mestiços justifica o alto índice de violência envolvendo escravos e forros, tanto como vítimas ou

agressores.

Segundo Marcos Aguiar, embora ocorresse em menor número que os crimes individuais, a

incidência de crimes coletivos em Mariana era mais elevada que em Vila Rica. Tal averiguação

situa Mariana próximo aos parâmetros estabelecidos para o termo de Sabará devido,

principalmente, à configuração socio-econômica e cultural complexa do seu extenso termo, onde

algumas freguesias estavam associadas à realidade dos sertões41.

Alguns autos de devassas foram abertos para apurar delitos coletivos como assuadas e

motins. A agressividade dos ataques ficou demonstrada em relatos de testemunhas e em autos de

corpo de delito, como os que se seguem: [...] achamos a um crioulo escravo do capitão José da Mota Araújo, morto, por nome Manuel de Souza com uma ferida no peito da parte do coração, penetrante, da qual botou grande cópia de sangue e com uma orelha cortada, e também mais outro comprimento de três dedos e meio [...] e mais um negro por nome Caetano, escravo de Francisco Luiz de Souza, com um braço passado de uma zagaia de que dizem ficara aleijado e outra zagaia nas costas e um filho de [...] Silvério Diniz também ferido na cabeça com três feridas [...] e mais a mulher de Manuel Diniz que vinha para a missa, também lhe dera uma porretada na cabeça e a roubaram de todos os seus vestidos que trazia vestida e de toda a família que trazia consigo, tudo despiram até as próprias crianças e lhe meteram freios na boca, até as crianças e as amarraram [...]42

Em Cachoeira do Campo dois homens "rebuçados" apareceram na porta da casa de Maria

Tereza com a desculpa de lhe pedir informações e a agrediram com várias facadas. O juiz

Joaquim Gonçalves Simões e seu escrivão Manoel da Silva Pereira foram chamados para

lavrarem o auto de corpo de delito que assim descreve o fato: [...] logo acudiram os povos deste arraial com os soldados pagos, para evitarem o grande distúrbio que houve com os mais que poderia chegar e logo os ditos rebuçados partiram a resistir com uma pistola carregada quase até a boca e a bater a pedra umas e muitas vezes que fora Deus se servido não pegou fogo e outro com uma espada e a faca com que fizeram o delito achou-se quebrada que julga-se ser quebrada no osso da cara da ofendida do que partindo o povo em seguimento deles junto com os mesmos soldados, em distância de um quarto de légua pouco mais ou menos prendeu-se um com ordem do Ilustríssimo Excelentíssimo Senhor General do que o tenente Manoel José Dias comandante do quartel tomou-os conta deles para os remeter a presença do mesmo senhor e logo pôs os soldados a estrada que vai deste arraial a Vila Rica atrás de um dos vultos que tinha fugido em que o prenderam a certa altura do dito caminho, a ordem do mesmo senhor em que ambos são remetidos a sala deste governo, onde um dos vultos dizem ser soldado pago, que dizem ser um fulano, o Pimentel, e o outro um homem bastardo que dizem vive de vender toucinho nessa vila do que vão remetidos com os cavalos em que vieram e as mais que trouxeram e tudo vai a presença de sua Excelentíssima do que de tudo portamos por fé dos nossos ofícios e logo o dito juiz

40 Cf. SOUZA. Os Desclassificados do Ouro, p. 141. 41 AGUIAR. Op. Cit. Esse autor teve como objeto de estudos os delitos julgados pela ouvidoria da comarca, mas pesquisou também a primeira instância, ou seja, a justiça ordinária, representada nos processos crimes e devassas. 42 AHMI - Cód. 177, auto 3178, 2o of., 1796, fl.2.

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em obrigação e cargo e nos ser requerido de parte de sua Alteza Real que Deus guarde fizemos este auto de que assinou o cirurgião mor Antônio Paes Varela [...]

É elevado o número de mortes e ferimentos em negros, forros e escravos. Em 1741, Ana

Angola, escrava de João Correia, foi morta no arraial denominado Soledade, pertencente à

freguesia de Congonhas, devido a pancadas que recebeu de Francisco Gonçalves43. O escrivão

da vintena de São Bartolomeu, Antônio da Costa Peixoto, juntamente com o juiz Gregório Dias de

Carvalho e o licenciado Baltazar Pereira encontraram no caminho que ligava Casa Branca a serra

de São Bartolomeu "o corpo de um preto, escravo de João Rufo, defunto de estatura grossa, com

uma camisa vestida, um rosário no pescoço" e muitas feridas pelo corpo44. Esse escravo havia

fugido da cadeia de Vila Rica alguns dias antes e, segundo os vintenários, morreu “de fraqueza” 45.

O escrivão de Itatiaia foi chamado à casa do capitão Simão Soares Braga, morador no arraial de

Lavras Novas, para fazer o corpo de delito dos ferimentos de sua escrava Margarida46. Em Itabira,

Joana, escrava de Estevão Antônio Ferreira, foi encontrada pelos oficiais da vintena, enforcada

com uma cinta amarrada em um galho de laranjeiras47.

É elevada também a utilização de armas de fogo nos atos de violência, seja ela coletiva ou

não. No arraial da Soledade, freguesia de Congonhas do Campo, o juiz da vintena Manoel

Rodrigues Lages e seu escrivão Francisco Simões analisaram a natureza dos ferimentos de José

Pereira atestando que foram feitos por armas de fogo48. O auto de corpo de delito realizado para

averiguar os motivos da morte de José da Costa de Oliveira, morador na freguesia de Itatiaia teve

um procedimento curioso. José da Costa foi enterrado antes de fazerem o exame. A princípio, a

população do local achou que o motivo da morte teria sido um raio, mas depois perceberam que

os calções usados por ele estavam furados por tiros. O exame foi realizado pelo tabelião Antônio

José Rodrigues de Azevedo, então, nos tais calções. Apesar do juiz da vintena não ter sido

responsável por esse auto, realizou as citações das testemunhas Antônio Martins de Souza e

Manoel Ferreira, mas não notificou a Manoel Álvares "pelo não achar em sua casa e constar pelos

vizinhos fez viagem longa e demorada", recebendo 800 réis pelas citações49. No arraial de São

José do Rio Grande da Paraopeba, os oficiais vintenários foram enviados à casa de João

Claudino Modesto para realizarem o "auto de corpo de delito em sua porta onde haviam dado um

43 AHMI - Cód. 450, auto 9482, 1o of. 44 AHMI - Cód. 444, auto 9324, 1o of, 1739. 45 Idem. 46 AHMI - Cód 447, auto 9410, 1o of., 1749. 47 AHMI - Cód. 179, auto 3280, 2o of.,1800. 48 AHMI - Cód. 446, auto 9364, 1o of., 1747. 49 AHMI - Cód. 446- auto 9364, 1o of., 1796.

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tiro a fim de lhe matar” e encontraram “por cima da verga ao pé do telhado um círculo de chumbo

com vinte e sete chagas"50.

Modelos elucidativos do procedimento judicial dos oficiais vintenários nas devassas, além

dos autos de corpo de delito, as notificações das testemunhas eram realizadas ou pelo alcaide ou

pelo juiz da vintena com seu escrivão. Na devassa tirada para apurar o incêndio ocorrido na casa

da parda forra Josefa Maria, na freguesia de Itabira, além do corpo de delito, o juiz ordinário de

Vila Rica ordenou que o juiz da vintena notificasse a "Antônio de tal", feitor de Antônio de Almeida,

para comparecer em sua presença para certa "averiguação da justiça". O juiz da vintena

Alexandre Moreira certificou que esteve onde "vive e mora Antônio Nunes para o notificar" para ir

a Vila Rica dar seu juramento, mas ele estava morando nos "Penteados comarca[sic] de Itabira", e

não foi encontrado51.

O escrivão da vintena da freguesia de Itatiaia, José do Couto, cobrou do juiz ordinário de

Vila Rica o pagamento pelas notificações feitas na devassa para apurar a morte de Domingo

Duarte, alegando ter ido várias vezes ao mato de Antônio Teixeira para notificar testemunhas, cuja

distância era de cinco léguas. Também notificou várias testemunhas em paragens do arraial de

Lavras Novas. O juiz ordinário mestre de campo Pedro da Fonseca Neves ordenou que o pedido

do escrivão fosse atendido, para que nas contas que se fizessem das custas da devassa fosse

pago o seu salário, correspondente a 660 réis. Nessa devassa, o escrivão da vintena aparece

várias vezes, lavrando o corpo de delito, como testemunha, notificando as testemunhas e

realizando o seqüestro dos bens do acusado João Martins da Costa, juntamente com o alcaide

Alexandre Rodrigues, no sítio chamado Ribeirão São Miguel: nove escravos, um cavalo, um sítio

com casas cobertas de telhas, senzalas e uma lavra. Além dos bens, o escrivão também realizou

a cobrança de vários créditos a cinco pessoas que juraram não saber que deviam ao acusado52.

Em várias outras devassas encontramos a presença dos vintenários como testemunhas.

Os oficiais da freguesia de Itabira do Campo lavraram o auto de incêndio ocorrido na casa de Ana

Esteves, chamados pela preta forra que gritava "que da parte d'el Rei lhe acudissem". O juiz

Quintiliano Ferrer de Faria testemunhou nesse caso indicando inicialmente um "preto por nome

André" como autor do delito, mas depois recuou da acusação, alegando que era verdade o ter dito a Francisco Xavier da Costa assim como mais pessoas ter sido o preto André o que incendiara a casa [...] porém que lhe dissera por ter ouvido dizer publicamente ser este o agressor do delito, assim como ouviu dizer ao depois que não era o dito preto André o agressor [...]53

50 AHMI - Cód. 445 - auto 9341, 1o of. 1805. 51 AHMI - Cód. 446, auto 9367, 1o of., f. 24. 52 AHMI - Cód.450, auto,9491,1o of., 1755. 53 AHMI - Cód. 450, auto 9490, 1o of., fl.13. Carmem Lemos também discutiu esse documento. LEMOS. Op. Cit., p. 112-113.

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Francisco Xavier da Costa havia dito que ouviu o juiz da vintena acusando o preto André,

porém "que no conceito dele testemunha julga não ter sido o fogo causado pelo dito preto por ser

aleijado dos pés e pouco antes do incêndio o vira passar pela sua porta, lugar do Tombadouro

que fica distante da paragem em que foi o incêndio". Nesse caso o juiz da vintena colocou na

balança os prós e contras dos rumores tendendo pela nulidade da suspeita, mas o juiz ordinário

optou pela acusação54.

Nosso intuito aqui foi analisar os procedimentos judiciários dos vintenários, mostrando que

participavam ativamente do mundo da justiça e, mesmo sem possuir o conhecimento das leis,

seguiam as ordens e os modelos criados. Esses procedimentos demonstram o cotidiano das

populações mineiras e são ricos testemunhos da base da justiça na comarca de Vila Rica.

Maria do Carmo Pires é Professora Adjunta do curso de História da Universidade Federal de Viçosa.

54 Idem.

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DE VOLTA ÀS “CONDIÇÕES DA GOVERNABILIDADE”, NA BUSCA DE UM EQUILÍBRIO: NOTAS ACERCA DA SOCIEDADE MINEIRA NA

PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XVIII

Carlos Leonardo Kelmer Mathias

Resumo: Esse artigo busca avançar na discussão acerca das condições da governabilidade as quais estavam sujeitos tanto governadores de capitanias, como poderosos locais. Pretende-se demonstrar a necessidade, por parte desses poderosos, de rever suas estratégias de ação frente à mudança de um dado governador ressaltando, dessa forma, um certo limite ao poder desses homens defronte a tais representantes régios. Palavras-chave: Governabilidade, Estratégia, Negociação.

Abstract: This study tries to make progress in the discussion about the conditions of governance, which were related to both the governors in charge of the province and the local “powerful men”. It intends to demonstrate the necessity of reviewing the strategies of action of these “powerful men” regarding the change of a governor. Thereby, this study emphasizes some limit concerning the power of these men with regard to royal representatives. Key words: Governance, Strategy, Negotiation.

AS BASES DAS “CONDIÇÕES DA GOVERNABILIDADE” 1

“O poder não se exerce no vazio. E também não se exerce por magia. A acção política requer a disponibilidade de meios. Desde logo, de meios financeiros. Mas também de meios humanos. Em termos tais que o impacto de um projecto de poder se pode medir no plano da disponibilidade de estruturas humanas que o levem a cabo” 2.

Do acima exposto, depreende-se a indispensabilidade de, ao menos, dois pontos no

exercício do poder, quais sejam, “meios financeiros” e “meios humanos”, sendo que para um

“projecto de poder” ser levado ao fim e ao cabo fazia-se primordiais almas humanas

empreendedoras. Em outras palavras, um governador não teria como adquirir e manter sua

governabilidade sem sustentação financeira e sem corpos humanos sobre os quais apoiar-se.

Creio ter sido o elemento humano ainda mais imprescindível do que o financeiro, pois

recorrentemente os vassalos de Sua Majestade colocavam a seu serviço suas fazendas, cabedais

e negros armados. Sem esses homens, que por sinal constituíam-se, efetivamente, em súditos do

Rei – ou seja, era dever deles disponibilizar seus recursos a serviço de El-Rei – a Coroa não teria

como se sustentar enquanto Coroa. Decorre daí a negociação então estabelecida entre ambas às

partes. 1 O presente artigo é uma versão modificada de um texto por mim apresentado no congresso internacional O espaço Atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedades, ocorrido em novembro de 2005 na cidade de Lisboa, Portugal.

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Vários autores já pintaram com as cores desse quadro. Segundo Anthony J. R. Russell-

Wood, “a Coroa também reconheceu que seja no interior do Brasil ou de Angola, seja em regiões

da Ásia portuguesa, distantes da intervenção da Coroa ou da autoridade do vice-rei, havia

indivíduos dos quais ela era dependente se quisesse manter qualquer aparência de autoridade

portuguesa” 3. João Luis R. Fragoso deu conta de que a “montagem da sociedade colonial

fluminense e de sua elite” evidenciou o fato de a Coroa ter dito o apoio decisivo da elite

proveniente de outras áreas americanas, disponibilizando amplamente seus escravos, suas

fazendas e parentelas ao serviço régio. Por seus serviços, esses homens recebiam mercês –

sesmaria e ofícios régios – conferindo-lhes status e reafirmando a hierarquia estamental

excludente4.

Outro autor que destacou a importância da relação entre Coroa e principais de suas

localidades foi Sanjay Subrahmanyam. Nos termos do autor, a forma como os indivíduos

principais exerciam seu poder em Negapatão passava pela negociação entre eles e as

autoridades régias. Em troca de favores a eles concedidos – autorização especial para realizar

viagens comerciais a Macau, com escala em Malaca, por exemplo –, esses indivíduos atendiam

aos chamados régios em ocasiões de necessidades. Essa cadeia se estendia até Goa, onde

residia o vice-rei5. Formava-se o chamado “sistema de concessão” no qual, “em troca de serviços

prestados à Coroa, em substituição do pagamento de um salário (...), a Cora fazia a concessão de

uma viagem entre duas partes do Índico, ou reconhecia este direito”. Por intermédio desse

princípio, introduziu-se no Golfo de Bengala “um sistema de monopólio”, com evidentes vantagens

para os capitães agraciados. Tal “sistema de concessão” surgiu em parte para “acalmar os

ânimos” daqueles os quais “prestaram serviços na Ásia, e exigiam recompensas”, e em parte para

lidar com a diminuição de recursos e de navios no terceiro quartel do século XVI6. Conforme

apontado na epígrafe desse texto, sem “meios financeiros” e sem “meios humanos” não havia

muito como se exercer o poder. As mercês e concessões régias obtêm, aqui, destacada

importância.

Disso depreende-se, em boa medida, práticas e costumes próprios do Antigo Regime. As

concessões de mercês régias, doações, direitos monopolistas, privilégios a indivíduos ou a grupos

corporativos, isenções, sesmarias, ofícios régios e patentes militares contribuíam para aumentar

2 HESPANHA, Antônio M. As vésperas do Leviathan: instituições e poder político. Portugal – século XVII. Coimbra: Almedina, 1994, p. 160. 3 RUSSELL-WOOD, Anthony John R. “Identidade, etnia e autoridade nas Minas Gerais do século XVIII: leituras do Códice Costa Matoso”. Vária História. Belo Horizonte, n. 21, 1999, pp. 114-115. 4 FRAGOSO, João Luis Ribeiro. “Afogando em nomes: temas e experiências em história econômica”. In: Topoi: Revista de História. Rio de Janeiro, vol. 5, 2002, p. 44-45. 5 SUBRAHMANYAM, Sanjay. Comércio e conflito: a presença portuguesa no golfo de Bengala, 1500-1700. Lisboa: Edições 70, 2002, p. 99. 6 Idem, pp. 49-56.

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“o status quo através do reforço da grandeza e da nobreza”. Afora isso, confluíam para a

“reprodução de uma sociedade altamente hierarquizada”. Igualmente, eram utilizadas “como

instrumento de representação e disputa entre diferentes grupos” 7. Por ora, ressalvo que essas

concessões eram dadas por recompensa em função de um valoroso serviço prestado a, ou em

nome de, El-Rei. Forma-se, nesse ponto, a base daquilo a que denomino “condições da

governabilidade”, ou seja, não podendo prescindir do apoio dos principais homens de suas

respectivas localidades no exercício de seu poder, a Coroa – quer na figura do vice-rei, quer dos

governadores de capitanias –, por vezes deparava-se com situações nas quais a inevitabilidade,

por um lado, e/ou a estratégia, por outro, convergiam para uma refinada negociação entre ela e

esses principais homens mesmo sendo, afirmo, obrigação de tais súditos realizar valorosos

serviços a seu Rei. Essa prática de concessão foi percebida, inclusive, como forma constitutiva do

próprio Estado Moderno português.

Assim o definiu António Camões Gouveia: “forma multiparticipada de redes de

disponibilidades econômicas e sociais, de mercês, de serviços, de graças, de comendas, de

valimentos, enfim, de constelações clientelares variadas, de amplitude e conseqüências

concorrentes para a configuração de práticas de poder” 8. A aplicação dessa definição, a qual, por

excelência, concerne ao país Portugal – não podendo, creio, ser estendida aos demais domínios

desse reino sem um estudo aprofundado das “práticas de poder” ultramarinas–, deve ser matizada

no que respeita ao além-mar português.

Ao menos na América lusa, configurava-se, em verdade, um espaço de atuação efetiva do

poder no qual as concessões giravam ao redor de “redes de interesses”, porém, não clientelares,

na forma proposta por seus atores, Ângela Barreto Xavier e António Manuel Hespanha. Conforme

os autores, em linhas bem gerais, o dom, no Antigo Regime, integrava um universo normativo

caracterizado por atos beneficiais estruturantes das relações políticas, formando a chamada

“economia moral do dom”, residente na base de práticas informais de poder, como por exemplo,

as redes clientelares geridas por valores como a “amizade” – a qual “conceptualiza os laços

políticos entre pessoas” –, a “liberdade” e a “caridade” – que “designam as atitudes esperadas do

pólo dominante da relação” –, a “magnificência” – amplificadora das “virtudes anteriores, no caso

de pessoas que desempenham funções sociais que exigem uma especial grandeza (v. g., os

príncipes e os poderosos)” –, a “gratidão” – referente “aos sentimentos próprios do pólo inferio” – e

o “serviço” – “exteriorização desses sentimentos”. O funcionamento dessa “economia do dom”,

7 RUSSELL-WOOD, Anthony John R. “Prefácio”. In: FRAGOSO, João, BICALHO, Maria F. & GOUVÊA, Maria de F. (orgs.). O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI – XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, pp. 16-17. 8 GOUVEIA, António Camões. In: OLIVAL, Fernanda. As ordens militares e o estado moderno: honra, mercê e venalidade em Porgugal, 1641-1789. Lisboa: ESTAR Ed., 2001, pp. IX-X.

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“cimentada sobre actos de dar e retribuir compreendidos pela vastidão do conceito de ‘amizade’”,

assentava-se em três valores básicos: dar, receber e restituir – tríade regente da natureza das

relações sociais e, por conseguinte, das relações de poder9.

Segundo os autores, “esta amizade abrangia níveis tão diferentes quanto são a relação

entre o rei e o vassalo, o pai e o filho, o amigo e o amigo, constituindo uma relação social

fortemente estruturante”.Corroborando o entendimento dado por Aristóteles à noção de “amizade”,

os autores assim definem tal entendimento: “... para quem [Aristóteles] esta [a amizade] claramente constituía o suporte de laços políticos mais permanentes, como fonte de deveres duráveis. Distingue as amizades fundadas sobre a ‘virtude’ das que visam a utilidade e o prazer. Do mesmo modo, distingue a amizade entre iguais daquela entre desiguais (como seria, por exemplo, a estabelecida entre o governante e os governados, entre o pai e o filho, entre o patrão e o cliente).

Acerca da amizade entre desiguais, afirmam os autores: “... a amizade desigual é, formalmente, aquela que legitima as relações de poder entre homens livres. Sob este ponto de vista, a regra será a da proporção entre a posição social dos dois ‘amigos’, quer no plano das prestações (em que o inferior é obrigado a prestações menos importantes), quer também, mas de modo inverso, no plano do amor (em que o inferior é obrigado a dar mais do que o superior). O modelo de troca é o mesmo – prestações materiais em troca de submissão política, effectus em troca de affectus. Sistema que funciona particularmente bem como processo de conversão de riqueza em poder e de auto-reprodução deste poder. Do mesmo modo, adequa-se perfeitamente às estratégias de construção de redes clientelares auto-sustentadas” 10.

Contudo, ressalvam os autores que “a referência ao termo ‘amizade’, na documentação do

século XVII, nem sempre quer necessariamente refletir uma relação desigual e logo de

clientela”11. Se a “amizade” “constituía o suporte de laços políticos mais permanentes”, os

interesses pessoais eram o principal fator desarticulador de tais laços, na medida em que as

relações estabelecidas entre os homens eram pautadas, de uma forma ou de outra, por vontades

particulares. Há de se destacar que as ações humanas não são necessariamente regidas por

modelos explicativos de diferentes “lógicas” de funcionamento das sociedades nas quais esses

homens estão inseridos. Resulta daí a importância de noções como estratégia e racionalidade na

tentativa de dar conta das relações sociais estabelecidas pelos indivíduos.

Nesse sentido, a amizade desigual não deve ser unicamente compreendida em termos de

posições sociais. Faz-se necessário atentar para as estratégias de ação dos sujeitos, para os

objetivos por eles almejados, para os resultados obtidos, pois, a posição social, embora influencie

consideravelmente nos rumos dados às relações havidas entre os homens, não obrigatoriamente

determina e rege a hierarquia existente nas relações instituídas por desiguais. Há de se destacar

9 XAVIER, Ângela B. & HESPANHA, Antônio M. “As redes clientelares”. In: HESPANHA, Antônio Manuel (org.). História de Portugal: o Antigo Regime. Lisboa: Editorial Estampa, 1998, passim. 10 Idem, p. 343. [Grifos dos autores e negrito meu]. 11 Idem, pp. 342-343.

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também que os valores constitutivos da chamada “rede clientelar” - “amizade”, “liberdade”,

“caridade”, “magnificência”, “gratidão” e “serviço” – ganhavam contornos novos ao serem

transpostos para as relações sociais estabelecidas nos domínios ultramarinos lusos.

Para além de tais ressalvas, vale lembrar as considerações de Maurice Godelier acerca do

dom. Conforme o autor, “Dar parece instituir simultaneamente uma relação dupla entre aquele que dá e aquele que recebe. Uma relação de solidariedade, pois quem dá partilha o que tem, quiçá o que é, com aquele a quem dá, e uma relação de superioridade, pois aquele que recebe o dom e o aceita fica em dívida para com aquele que deu. Através dessa dívida, ele fica obrigado e, portanto, encontra-se até certo ponto sob sua dependência, ao menos até o momento em que conseguir ‘restituir’ o que lhe foi dado” 12.

Contudo, embora o “dar parece instaurar assim uma diferença e uma desigualdade de

status entre doador e donatário, desigualdade que em certas circunstâncias pode se transformar

em hierarquia: se esta já existisse entre eles antes do dom, ele viria expressá-la e legitimá-la ao

mesmo tempo” 13, não percebo essa característica como inerente a toda e qualquer relação na

qual a lógica do dom se faça presente. Nesse sentido, e assentado no próprio Godelier quando

este afirma que “ao dar, ao receber, e ao dar de volta, cada um dos parceiros acumula as

vantagens que tal dependência recíproca engendra” 14, tendo a concordar com Eduard Palmer

Thompson quando afirma que “o grau de subordinação assegurado pela caridade pode depender

de um cálculo das vantagens em jogo” 15, e a ver com extrema cautela as afirmações do tipo:

“prestações materiais em troca de submissão política”.

Notadamente no que tange a prática de concessões constitutiva do Estado Moderno luso,

Fernanda Olival percebeu a edificação do mesmo fundada sobre tal prática. Nas palavras da

autora, esse Estado se consolidou “em torno de realidades afins como a ideologia do

serviço/recompensa, os laços múltiplos de interdependência e valias (muitas vezes ditos

‘clientelares’), bem como o poder da Monarquia sobre amplos recursos”, como as Ordens Militares

de Avis, Cristo e Santiago. Nestes quadros, o gesto de dar seria considerado, “na cultura política

do Antigo Regime”, como “virtude própria dos reis”. Aqui se percebe uma imbricada relação entre

o Estado e a figura do monarca, qual seja, o Estado foi edificado sobre uma “virtude própria” do

Rei, o ato de dar16.

No Antigo Regime, o dar possuía, sim, uma herança aristotélica na medida em que se

devia saber a quem dar, o que dar, em qual quantidade e quando. Segundo a autora, “o homem 12 GODELIER, Maurice. O enigma do dom. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 23. [Grifos do autor] Acerca da noção de dom ver também MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. São Paulo: EPU, 1974. 13 GODELIER, Maurice, Op. Cit., p. 23. 14 Idem, p. 70. 15 THOMPSON, Edward P. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. São Paulo: Ed. UNICAMP, 2001, p. 246.

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generoso aristotélico tinha dificuldades em enriquecer porque gostava de dar e não fazia caso do

dinheiro como um bem em si mesmo”. Dessa forma, o que realmente importava era a forma como

o monarca governava e distribuía aquilo que poderia ser dado, visando conquistar a fidelidade dos

súditos. O dar justificava o monarca como rei. Pelo contrário, o não dar incorria em um risco para

a Coroa, pois poderia angariar para si o ódio e a falta de apoio nesses mesmos súditos17. Aqui

cabe outra ressalva.

Assim como Pascoal da Silva Guimarães – principal líder da revolta de Vila Rica em 1720,

ocorrida em Minas do Ouro durante o governo de D. Pedro de Almeida Portugal, conde de

Assumar –, a maioria dos homens envolvidos na revolta mineira de Vila Rica já havia recebido,

recorrentemente, uma série de mercês e privilégios por parte de autoridades régias, quer nas

Minas, quer nas demais localidades dos domínios lusos. Essa simples constatação traz consigo

uma noção crucial para a compreensão do chamado sistema de concessão de mercês, qual seja,

por si só, uma mercê, ou um privilégio, não é capaz de garantir a governabilidade.

Pretende-se apenas problematizar a idéia segundo a qual o dar poderia conquistar a

fidelidade dos súditos o que, evidentemente, acarretaria melhores condições do exercício e

manutenção da governabilidade. Parto da seguinte constatação: o efeito desejado pelo ato de dar

seria alcançado tão somente nos indivíduos cujos interesses estivessem em comum acordo com

os interesses régios ou em comum acordo com os interesses daqueles que representavam El-Rei

em seus territórios ultramarinos.

Tal idéia ganha mais procedência caso se tenha em mente o próprio Pascoal da Silva

Guimarães. Pascoal da Silva auxiliou aos dois primeiros governadores da capitania de São Paulo

e Minas do Ouro – D. Antônio Albuquerque Coelho de Carvalho e D. Brás Baltasar da Silveira – na

manutenção da governabilidade, e fez isso em função da coadunação de interesses que então

havia entre ele e ambos os governadores. Contudo, na gestão de D. Pedro de Almeida, a coisa se

passou de outra forma.

Em 03 de janeiro de 1718, por tanto menos de seis meses após ter assumido o governo de

Minas, D. Pedro de Almeida lhe proveu no posto de governador de Vila Rica e seu termo. Na

referida carta, lê-se que Pascoal da Silva foi servido com tal mercê, pois era necessária para a

regência de Vila Rica e seu distrito, uma pessoa "em que concorram merecimentos, serviço,

nobreza e autoridade, e achando-se todas estas na do mestre-de-campo Pascoal da Silva

Guimarães", D. Pedro de Almeida o proveu em tal cargo. Também deu conta dos serviços

prestados por Pascoal da Silva aos governadores antecedentes, tendo sido nomeado para o

16 OLIVAL, Fernanda. As ordens militares e o estado moderno: honra, mercê e venalidade em Portugal, 1641-1789. Lisboa: ESTAR Ed., 2001, pp. 3-15. 17 Idem, pp. 16-18.

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referido posto por D. Brás Baltasar e se portado com todo o zelo e merecimentos. O governador

registrou que Pascoal da Silva servia nas Minas do Ouro por espaço de oito anos nos postos de

sargento-mor da ordenança de Vila Rica e mestre-de-campo do terço dos auxiliares que havia

nela se formado. Também a D. Antônio Albuquerque o régulo auxiliou. Em 1709, por ocasião da

Guerra dos Emboabas, doou sua residência por espaço de 15 dias ao governador com seus 20

soldados quando este passou para Minas, com grande perda para sua fazenda18.

Afora as mercês diretamente a ele concedidas, seu filho, João da Silva Guimarães,

recebeu do próprio D. Pedro de Almeida, em 13 de março de 1719, a patente de capitão-mor das

ordenanças do “distrito desde o Rio das Pedras até Raposos” 19. Vale lembrar que em 1720, João

da Silva era juiz ordinário da câmara de Vila Rica20, ou seja, além do controle da câmara

permanecer na família de Pascoal da Silva, sua família estava às voltas com mercês a ela

concedidas pelo representante do Rei na América.

Não obstante a concessão de uma mercê da monta daquela dada a Pascoal da Silva

Guimarães, esse homem e sua família voltaram-se contra aquele que a concedeu, D. Pedro de

Almeida. Poderia-se argumentar que o governador agia em nome de El-Rei, ou seja, Pascoal da

Silva não teria, em essência, insurgido contra quem verdadeiramente havia lhe passado à mercê –

uma vez que, em nenhum momento, os revoltosos questionam a autoridade régia. Porém, é fato

que D. Pedro de Almeida não era forçado a prover novamente Pascoal da Silva na regência de

Vila Rica – uma que vez que seria obrigação de Pascoal da Silva e de sua família prestarem

auxílio ao Real Serviço por serem, sim, vassalos do Rei –, mas o fez visando garantir sua

governabilidade. Além do mais, seria ingenuidade afirmar que Pascoal da Silva e os demais

revoltosos não tinham a exata noção de que seu movimento entrava em choque com uma

determinação, em última instância, régia. A revolta, embora tramada e urdida contra D. Pedro de

Almeida – diga-se de passagem, reforçando, era o representante de El-Rei em Minas do Ouro –,

ia de encontro às pretensões do Rei. Nesse sentido, talvez a funcionalidade da mercê, como

forma de obter a fidelidade dos súditos, deve ser, pois, relativizada.

O dar deve ser pensado à luz, não apenas do contexto no qual foi concedido, mas também

tendo em mente as estratégias de ação tanto daquele quem o concedeu como daquele por ele

agraciado. Somente assim poderá, acredito, avaliar-se a real instrumentalização do chamado

sistema de concessão de mercês. Embora a concessão de mercês e privilégios seja um caminho

para tentar obter e garantir a governabilidade, sua eficácia pode, por vezes, ser questionada.

18 APM, SC 12, fls. 25v.-26. CARTA patente passada a Pascoal da Salva Guimarães. 03 jan. 1718; APM, SC 12, fls. 34v.-35. CARTA patente passada a Pascoal da Salva Guimarães. 03 jan. 1718. 19 APM, SC 12, fl. 74. CARTA patente passada a João da Silva Guimarães. 13 mar. 1719. 20 VASCONCELOS, Diogo de. História antiga das Minas Gerais. Belo Horizonte: Itatiaia, 1999, p. 365.

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De base de tais considerações, creio ser agora possível trabalhar com a noção de

“economia da mercê”, tal qual proposta por Fernanda Olival. Conforme a autora, tal noção se

encerraria na “disponibilidade para o serviço, pedir, dar, receber e manifestar agradecimento, num

verdadeiro círculo vicioso”. Continuando, essa era uma realidade a qual grande parte da

sociedade moderna “se sentida profundamente vinculada, cada um segundo sua condição e

interesses”. E ainda, “com efeito, servir a Coroa, com o objetivo de pedir em troca recompensas,

tornara-se quase um modo de vida, para diferentes setores do espaço social português”, sendo

que tal prática “era uma estratégia de sobrevivência material, mas também honorífica e de

promoção” 21. Vale lembrar, a prática da concessão era “um dos vetores básicos da construção

social do Estado Moderno Português”22 e, a meu ver, assim pode ser percebida muito em função

de ser, essa prática, um dos fatores primeiros constitutivos daquilo por mim denominado “as

condições da governabilidade”. Urge destacar que, conforme apontado por Fernanda Olival,

“pedir, dar e receber deixaram de ser meros impulsos antropológicos - tal como foram

sistematizados por Marcel Mauss – e passaram a ser, cada vez mais ao longo do Antigo Regime,

gestos profundamente envolvidos numa teia burocrática e de redes de poder, difíceis de

deslindar”23.

Acredito ser nesse sentido que a “economia da mercê” não se confinava à sistematização

de retribuir algo dado. Nas palavras de Olival, “os diferentes modos como se tendeu a organizar

eram complexos e com múltiplos efeitos sociais e políticos; certamente uns e outros terão

marcado fortemente o processo social de construção do Estado Moderno” 24. Coaduna-se, a meu

ver, a prática da concessão com “as condições da governabilidade”, ou seja, não podendo

prescindir do apoio de poderosos locais no exercício de práticas político-administrativas voltadas

para a sustentação de uma dada estrutura de governo – ao menos no que concerne à região

americana dos domínios portugueses –, a Coroa, por via de regra, valia-se da distribuição de

concessões como forma compensativa das valorosas ações empreendidas por aqueles poderosos

locais. Caso possa ser aceito o fato segundo o qual o ato de dar, ao longo do Antigo Regime,

implicava em “múltiplos efeitos sociais e políticos” os quais, direta ou indiretamente, marcaram

“fortemente o processo social de construção do Estado Moderno”, creio ser plausível perceber

esse mesmo ato de dar, assim como seus “múltiplos efeitos sociais e políticos”, na base do

processo de busca e manutenção das condições prática as quais viabilizavam o exercício político-

administrativo voltado para a sustentação da estrutura de governo presente na América lusa,

notadamente em Minas do Ouro durante a primeira metade do século XVIII.

21 OLIVAL, Fernanda, Op. Cit., pp. 18-21. 22 Idem, p. 37. 23 Idem, p. 108. 24 Idem, p. 110.

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O OUTRO LADO DA MOEDA

Não obstante a necessidade da Coroa de contar com seus vassalos na busca e

manutenção de sua governabilidade – fato que contribuía para as fortes limitações sofridas pelo

poder régio nos domínios de além-mar –, esses mesmos súditos não estavam eximidos da

necessidade de (re)estabelecer estratégias de ação voltadas para a busca e manutenção de suas

posições sociais as quais, em última instância, permitiam-lhes exercer seus papéis de recursos

humanos fundamentais para o exercício desse mesmo poder régio. Dessa forma, fechava-se o

complexo círculo de influências, interesses e negociações inerentes às práticas de poder

presentes no exercício da governabilidade e do mando no que concernia, respectivamente, à

Coroa e aos poderosos locais.

A fim de exemplificar a necessidade do (re)estabelecimento de estratégias de ação frente

a um novo representante de El-Rei ávido por garantir sua governabilidade, trabalharei com quatro

indivíduos, a saber, Custódio Rebelo Vieira, Félix de Azevedo Carneiro e Cunha, Manuel de

Barros Guedes Madureira e Silvestre Marques da Cunha. Todos esses quatro sujeitos auxiliaram

a D. Pedro de Almeida, conde de Assumar e governador da capitania de Minas Gerais entre 1717

e 1721, na contenção da revolta de Vila Rica de 1720, ou seja, auxiliaram-no na manutenção de

sua governabilidade25.

Custódio Rebelo Vieira, um dos indivíduos mais destacados na contenção da revolta de

Vila Rica, esteve bem relacionado com os dois governadores precedentes a D. Lourenço de

Almeida, a saber, D. Brás Baltasar e D. Pedro de Almeida, conde de Assumar. Pelo primeiro, foi

provido no posto de capitão de cavalos do regimento da ordenança do distrito de Vila Rica,

posteriormente confirmado pelo Conde em carta patente de 01 de janeiro de 171826. A 23 de

janeiro de 1719, o mesmo governador lhe proveu no posto de capitão da companhia de ordenança

do distrito do Brumado27 já tendo, anteriormente, passado-lhe provisão para servir no cargo de

provedor dos quintos da freguesia do próprio Brumado28. Não obstante, em 1725 a trajetória de

Custódio Rebelo sofreria um forte revés nas Minas do Ouro.

Já em 1724, D. Lourenço de Almeida obrigava Custódio Rebelo a assinar um termo "pelo qual se obriga e promete Custódio Rebelo abaixo assinado a viver todo o tempo que estiver nestas Minas com toda a quietação sem que em nenhum faça enredos e parcialidade contra os governos e serviço de Sua Majestade (...) promete emendar-se e quando ele dito faça

25 Para a relação completa dos participantes da revolta de Vila Rica de 1720, assim como daqueles que entraram em conflito com D. Lourenço de Almeida ver KELMER MATHIAS, Carlos Leonardo. Jogos de interesses e estratégias de ação no contexto da revolta mineira de Vila Rica, c. 1709 – c. 1736. Rio de Janeiro: UFRJ, PPGHIS, 2005. (Dissertação de mestrado inédita). 26 APM, SC 12, fl. 25. CARTA patente passada a Custódio Rebelo Vieira. 01 jan. 1718. 27 APM, SC 15, fl. 16v. CARTA patente passada a Custódio Rebelo Vieira. 23 dez. 1719. 28 APM, SC 12, fl. 41v. PROVISÃO para Custódio Rebelo Vieira. 04 abr. 1718.

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o contrário, assim por causa de enredos em exercícios como por sutiliza de língua, se sujeita a todo o castigo e a ser degredado para qualquer das outras conquistas e em fé de que assim o promete"29.

Por volta de abril de 1725, D. Lourenço deu conta que havia solicitado ao comerciante

Custódio Rebelo uma quantia emprestada “e quando se viu servido o governador com esse ouro

começou a buscar pretextos frívolos e intimidar o suplicante para que se desse, e claramente lhe

explicou Manoel Correa da Silva agente dos negócios do mesmo governador segurando-lhe que

se assim o fizesse teria nele um amigo". Passados três anos, o suplicante recebeu de D.

Lourenço, via Manoel Corrêa, 2100 oitavas de ouro, quantia irrisória para o governador, uma vez

que este mordia, ao pagar as tropas de dragões, muito ouro da Fazenda Real, fato relatado pelo

suplicante. Como não poderia deixar de ser, tal relato acendeu a cólera de D. Lourenço,

mandando "logo no dia seguinte (...) prender o suplicante" que retirou-se aos matos "com grave

prejuízo seu, e de seus correspondentes das praças do Brasil e dessas cortes". Pouco depois,

Rafael da Silva e Souza, parcial do governador, prendia o suplicante na Vila do Carmo e o remetia

à cadeia de Vila Rica, onde “o governador mandou meter na escória, aonde só assistem os

malfeitores e pretos, carregando-o de ferros".

Posteriormente, João Ferreira dos Santos lhe fez uma proposta de ser solto mediante um

pagamento de três ou quatro mil oitavas, o que foi recusado por Custódio, levando o governador a

deixá-lo permanecer na cadeia com o pretexto pelo qual o suplicante tinha "em seu poder algum

bem de Pascoal da Silva Guimarães". Uma nova proposta lhe foi feita, desta monta a pagar

200000 cruzados, o que igualmente Custódio Rebelo não aceitou. Recorreu, em vista de sua

situação, ao ouvidor geral, mas sem efeito por que "também é constante que o governador

descompunha toda a pessoa que intercedia pelo suplicante reputando-os por inimigos de Vossa

Majestade".

Em 23 de julho de 1728, D. Lourenço de Almeida deu conta a El Rei de ser Custódio

Rebelo "muito prejudicial a estas Minas", tendo do referido governador, pela "frota de Pernambuco

e também por um navio das Ilhas”, remetido à Sua Majestade a sentença de degredo, pedindo a

El-Rei que cumprisse a dita sentença, "por ela mandar castigar a este Custódio Rebelo, assim por

ser um homem sumamente revoltoso e prejudicial, como para que o seu castigo sirva de exemplo

nestas Minas"30. Ao que parece, Custódio Rebelo foi solto mediante o pagamento de uma dada

29 APM, SC 06, fl. 143v. TERMO em que se assinou Custódio Rebelo Vieira pelo qual promete emendar o seu procedimento. 12 nov. 1724. 30 TRANSCRIÇÃO da segunda parte do Códice 23 Seção Colonial - Registro de alvarás, cartas, ordens régias e cartas do governador ao Rei - 1721-1731. Revista do Arquivo Público Mineiro. Ano XXXI, 1980, pp. 243-244.

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quantia partindo, então, para a Bahia, nutrindo um profundo rancor por aqueles que seguiram o

partido real em 172031.

Do acima exposto, depreende-se claramente uma situação que, longe de ser um

particularismo da capitania de Minas do Ouro, foi recorrente tanto no Estado espanhol como no

português. Acerca do primeiro, “a chegada de um novo vice-rei deveria renovar constantemente

os pactos e acordos com os colonos, cujos interesses usualmente não coincidiam nem com as

pretensões metropolitanas, nem com as aspirações de lucro do vice-rei e seus agregados” 32. O

conflito de interesses sugerido pela negociação coadunasse com a renovação dos pactos e

acordos estabelecidos entre as autoridades régias e os vassalos. Concernente à relação entre D.

Lourenço de Almeida e Custódio Rebelo, o pacto entre ambos não se realizou devido à diferença

de interesses estabelecidos no traçar de suas estratégias de ação. Acredito poder afirmar a

infelicidade de Custódio Rebelo em medir o valor daquilo a ser ganho ou perdido. Ao emprestar

certa quantia a D. Lourenço de Almeida, Custódio Rebelo, em um primeiro momento, estreitou

seus laços de reciprocidade com o referido governador. Contudo, ao cobrar a dívida e negar os

acordos a ele oferecidos pelo representante régio, o que Custódio conseguiu foi angariar a

insatisfação não só de D. Lourenço, mas também de sua rede em Minas do Ouro, obrigando-o à

perda de seus bens e saída da região mais cobiçada de todo o Imperium Lusitanum.

Félix de Azevedo Carneiro e Cunha parece ter tido, apesar da contenda com D. Lourenço

de Almeida, sorte diferente da de Custódio Rebelo Vieira. Casado com Madalena Maria de

Andrade Matos e pai de cinco filhos33, Félix de Azevedo ascendeu "por todos os postos inferiores,

e pelo de capitão do regimento da Armada Real, fazendo muitas campanhas e armadas por mar e

terra achando-se em muitas ocasiões de peleja com valor notório". Veio para as conquistas da

América juntamente com D. Antônio de Albuquerque Coelho de Carvalho, trabalhando no Real

Serviço em São Paulo, Rio de Janeiro – por ocasião da invasão francesa, em 1711 –, na

arrecadação do quinto e em vários levantes ocorridos em Minas Gerais34. Antes de descer à

cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, D. Antônio de Albuquerque, a quem Félix de Azevedo

se apresentou com escravos seus armados às suas custas35, concedeu ao indivíduo em questão

31 AHU, MG, cx. 12 doc. 33. REQUERIMENTO (cópia) feito pelo comerciante Custódio Rebelo Vieira solicitando justiça nas violências contra ele praticadas pelo governador D. Lourenço de Almeida, as quais relata. OBS.: Segue-se uma cópia de declaração de Eugênio Freire de Andrade, Superintendente das Casas de Fundição e Moeda das Minas, dos acontecimentos desde abril de 1725. 18 jun. 1728. 32 SUÁRES, Margarita. Desafíos transatlânticos: mercaderes, banqueros y el estado en el Peru virreinal, 1600-1700, Fondo de Cultura Econômica, Peru, 2001, pp. 256-257. 33 AHU, MG, cx. 1 doc. 36. REQUERIMENTO de Madalena Maria de Andrade Matos, casado com Félix de Azevedo Carneiro e Cunha tenente do governo das Minas, pedindo que por decreto se lhe dêem vinte mil réis cada mês, por conta dos soldos de seu marido. 02 jan. A713. 34 AHU, MG, cx. 1 doc. 40. REQUERIMENTO de Félix de Azevedo Carneiro e Cunha tenente de mestre-de-campo general do governo das Minas Gerais, pedindo provimento no governo da Capitania de Pernambuco. 11 jul. P714. 35 VASCONCELOS, Diogo de., op. cit., p. 296.

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a patente de sargento-mor de um terço pago recém criado nas Minas a mando de Sua Majestade.

Na carta patente, o governador deu conta que, até aquele momento, não havia criado o referido

terço "por falta de meios para o poder estabelecer”, uma vez que era preciso ir “socorrer a cidade

do Rio de Janeiro, que se acha sitiada do inimigo francês que com dezoito naus de guerra, entrou

naquele porto de tanta importância"36.

Em 12 de abril de 1722, D. Lourenço de Almeida redigiu uma carta endereçada a El-Rei

dando conta do zelo e valor com o qual Félix de Azevedo Carneiro e Cunha se portou nas várias

ocasiões nas quais trabalhou no Real Serviço37. Não obstante, em 30 de outubro de 1724, o

governador lhe cobrava uma dívida que tinha com a Real Fazenda – imposto sobre uma ajuda de

custo à sua mulher, em 1713 –, causa do desentendimento entre eles. Na referida documentação,

D. Lourenço de Almeida afirmou ter Félix de Azevedo enviado-lhe uma carta dizendo para que

"disfarçasse" tal cobrança o que, diferentemente dos seus antecessores, não aceitou38. Duas

questões cabem ser formuladas a propósito de tal passagem, quais sejam, Félix de Azevedo era,

além de um alto oficial no governo de El-Rei, um profundo conhecedor das Minas – posto ter feito

um mapa da citada capitania – e versado em guerra. Não seria a atitude dos governadores

anteriores de disfarçar a dívida uma estratégia para ter em Félix de Azevedo Carneiro e Cunha um

aliado e, assim, garantir a governabilidade? Se assim o for, por que D. Lourenço não seguiu o

mesmo caminho de seus antecessores? O governador também relatou ter ido à comarca do Rio

das Mortes para resolver uma "grande desunião" entre alguns homens principais das vilas de São

João e São José e que Félix de Azevedo o acompanhou nesta jornada muito a contra gosto com

"repugnância com que faz a obrigação do seu posto" e servia ao Rei39.

A alteração entre os dois tomou dimensões maiores, chegando ao conhecimento do

Conselho Ultramarino, o qual ordenou a D. Lourenço de Almeida restituir Félix de Azevedo no seu

posto e pagar os soldos de todo o tempo que esteve fora dele40. O governador, além de não

cumprir as ordens régias, continuou perseguindo-o, mandando que lhe insultasse e matasse. O

padre Marcelo Pinto Ribeiro, vigário da Matriz da Vila do Carmo, foi quem deu conta desses

acontecidos, datando-os de 1728. O governador, insatisfeito com o desenrolar da história,

36 APM, SC 08, fl. 3. CARTA patente passada a Félix de Azevedo Carneiro e Cunha sargento mor do novo terço pago que Sua Majestade mandou criar nas Minas. 13 [ilegível] 1711. [Grifos meus] 37 AHU, MG, cx. 3 doc. 5. CARTA de Dom Lourenço de Almeida, governador das Minas Gerais, mostrando satisfação pelos serviços do mestre-de-campo, Félix de Azevedo Carneiro e Cunha. Vila do Carmo 12 abr. 1722. 38 AHU, MG, cx 5 doc. 5. CARTA de Dom Lourenço de Almeida, governador das Minas Gerais, queixando-se das violências feitas pelos oficiais Félix de Azevedo Carneiro e Cunha, tenente de mestre-de-campo, e Manuel de Barros Guedes e Madureira, alferes de uma companhia de Dragões durante a viagem de Lisboa para Minas Gerais. Vila Rica 31 jan. 1724. 39 Idem. 40 AHU, MG, cx. 5 doc. 13. PARECER do Conselho Ultramarino sobre a queixa feita por Félix de Azevedo Carneiro e Cunha, tenente de mestre-de-campo, contra Dom Lourenço de Almeida, governador das Minas, e seu filho, Dom Luis de Almeida, pelos excessos e delitos cometidos por este último. OBS.: Falta a carta com a queixa. Lisboa 14 mar. 1724.

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determinou a prisão de Félix de Azevedo. Esse, por sua feita, enviou uma carta ao Rei,

requerendo sua soltura e uma punição ao governador41.

Em 25 de junho de 1728, El-Rei D. João-V estabeleceu o alvedrio de Félix de Azevedo,

que se encontrava doente havia 08 anos e preso havia 02. Em seu parecer, El-Rei levava em

conta o estado de saúde de Félix de Azevedo e o fato de D. Lourenço de Almeida não haver tido

em consideração a graduação do posto do suplicante. Tal resolução provocou a indignação do

governador, afirmando que Félix de Azevedo "ficou entendendo que Vossa Majestade dava mais

veredicto as representações que ele fazia pelos seus procuradores do que as minhas contas, e

como eu também assim o posso presumir"42.

De fato, o prestígio de Félix de Azevedo era considerável, pois, em carta patente do rei

datada de 06 de abril de 1731, este passa mercê de mestre-de-campo ad honorem da capitania

de Minas Gerais a Félix de Azevedo, elogiando-o pelos 46 anos de bons serviços43. Observa-se

que tanto Custódio Rebelo Vieira como Félix de Azevedo Carneiro e Cunha entraram em

desavenças com D. Lourenço de Almeida devido a cobranças de dívida, o primeiro a reclamou

junto ao próprio governador e o segundo teve sua dívida cobrada pelo governador.

Desde 1705, Silvestre Marques da Cunha servia a El-Rei na cidade do Rio de Janeiro em

praça de cabo de infantaria, para onde havia passado com patente assentada da cidade do

Porto44. Foi eleito primeiro juiz da câmara de São João del-Rei quando esta foi criada em 08 de

dezembro de 171345. Em 1713, D. Brás Baltasar lhe concedeu carta patente do posto de sargento-

mor do regimento da cavalaria da ordenança da vila de São João del-Rei, posto no qual procedeu

“com boa satisfação” 46. Em 24 de novembro de 1717, o conde de Assumar concedeu-lhe carta

patente provendo-o no posto de sargento-mor, no qual já tinha sido servido por D. Brás Baltasar.

Na carta patente, o governador deu conta de ter “respeito aos merecimentos e mais partes que concorrem na pessoa de Silvestre Marques da Cunha, e a boa satisfação com que se houve em todo o tempo que militou assim no Reino como na praça do Rio de Janeiro e ao bem que precedeu com que ocupou o posto de sargento-mor da cavalaria da Vila de São João del-Rei” 47.

41 AHU, MG, cx. 12 doc. 36. REQUERIMENTO de Félix de Azevedo Carneiro e Cunha tenente de mestre-de-campo general de Minas, solicitando a D. João-V condenasse o governador de Minas, D. Lourenço de Almeida por o ter mandado prender sem justa causa. 29 jun. A728. 42 Idem. 43 AHU, MG, cx. 21 doc. 35. REQUERIMENTOS de João Ferreira Tavares e Félix de Azevedo Carneiro e Cunha, mestres de campo com exercício de tenente-general das Minas, pedindo a conservação da sua antiguidade. 27 mar. A732. 44 TRANSCRIÇÃO da primeira parte do Código - 23 - Seção Colonial Registro de Alvarás, cartas e ordens régias e cartas do Governador ao Rei - 1721-1731. Revista do Arquivo Público Mineiro. Ano XXX, 1979, pp. 162-163. 45 MEMÓRIA história da capitania de Minas Gerais. Revista do Arquivo Público Mineiro. Ano II, fascículo 3, 1897, p. 468. 46 APM, SC 12, fls. 21-21v. PROVISÃO passada a Silvestre Marques da Cunha. 24 nov. 1717. 47 APM, SC 12, fls. 21-21v. PROVISÃO passada a Silvestre Marques da Cunha. 24 nov. 1717.

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Cerca de quatro meses depois, o governador passou-lhe provisão no cargo de "provedor

dos quintos das freguesias de São Antônio da Vila de São José e de Nossa Senhora da

Conceição dos Prados do distrito da mesma vila" pelo tempo de um ano48.

Sempre às voltas com arrematações de contratos, Silvestre Marques obteve o arremate

dos dízimos da comarca do Rio das Mortes em 1721, já no governo de D. Lourenço de Almeida,

por 3 arrobas e 10 libras49. Em 06 de agosto de 1724, o governador escreveu a El-Rei dando

conta de ser Silvestre Marques um bom executante de todas as ordens a ele passadas e

possuidor de dívidas com um Constantino Alves e com João Ferreira dos Santos – revolto indireto

– e seu irmão, pessoas “quietas e sossegadas” 50. Conforme D. Lourenço de Almeida, assim que

tomou posse de juiz ordinário, posto no qual somente era mantido por não haver outro melhor

para substituí-lo, Sivestre Marques, homem “inclinado a paixões particulares”, passou a querer

vingar-se do capitão-mor da Vila de São José, Feliciano Pinto de Vasconcelos e de Francisco do

Amaral Coutinho51.

Não obstante, em 16 de outubro de 1725, Silvestre Marques relatou a El-Rei os maus

procedimentos de João Ferreira dos Santos, de José Ferreira (irmão de João Ferreira) e de

Estevão Rodrigues de Carvalho, afirmando "que sendo há poucos anos pessoas muito humildes e

ocupadas em serviço de outras pessoas com quem viviam assoldadados, que deste gênero são

os que cá se fazem mais dignos de insolências, vendo-se com cabedais"52. Além da denúncia

acerca dos sobreditos, Sivestre Marques havia, em 20 de agosto de 1724, enviado a Sua

Majestade a devassa tirada de Francisco do Amaral Coutinho. Escreveu Sivestre Marques, “o zelo de bom vassalo e o lugar de juiz em que me acho nesta vila de São José me permite tomar a confiança de remeter a Vossa Majestade a devassa inclusa para que assim fique Vossa Majestade interirado do procedimento que em Francisco do Amaral Coutinho e assim mesmo costuma haver-se com o povo e justiças de Vossa Majestade fazendo em todo o tempo muitas repetidas insolências como Vossa Majestade achará sendo servido mandar-se informar” 53.

48 APM, SC 12, fls. 36-37v. PROVISÃO passada a Silvestre Marques da Cunha. 08 mar. 1718. 49 AHU, MG, cx. 5 doc. 69. CARTA de Antônio Berquó Del Rio, provedor da Fazenda Real das Minas, enviando os mapas dos contratos das entradas dos caminhos do Rio de Janeiro, São Paulo, dos Currais e da Bahia, incluindo os dízimos, para provar os bons serviços do signatário. Vila Rica, 23 ago. 1724. 50 Maria Verônica Campos constatou a existência de dois João Ferreira dos Santos. Segundo a autora, um "não se sabe a data de seu estabelecimento em Minas, mas vivia em São João del-Rei em 1719. Enriquece, não como dizia, com ricas lavras, mas com a falsificação de barras de ouro e moedas, foi preso em 1735 e enviado para a prisão do Limoeiro. O segundo, o Tranca por alcunha, vivia em Santa Luiza desde 1706. Era comparsa de Manuel Nunes Viana e Manuel Rodrigues Soares, com envolvimento em diversos motins em Minas. Faleceu em Minas em 1738, quando se homônimo se achava preso em Lisboa, após participação de destaque no motim do sertão em 1736". CAMPOS, Maria Verônica. Governo de mineiros: “de como meter as Minas numa moenda e beber-lhe o caldo dourado” 1693 a 1737. São Paulo: USP, FFLCH, 2002. (Tese de doutoramento inédita), p. 314. 51 TRANSCRIÇÃO da primeira parte do Código - 23 - Seção Colonial Registro de Alvarás, cartas e ordens régias e cartas do Governador ao Rei - 1721-1731. Revista do Arquivo Público Mineiro. Ano XXXI, 1980, pp. 173-175. 52 TRANSCRIÇÃO da primeira parte do Código - 23 - Seção Colonial Registro de Alvarás, cartas e ordens régias e cartas do Governador ao Rei - 1721-1731. Revista do Arquivo Público Mineiro. Ano XXX, 1979, pp. 162-163.

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No decorrer do documento, Silvestre Marques da Cunha denunciou, sobremaneira, o

envolvimento de Francisco do Amaral Coutinho na arrematação havida em 1721 (durante o

governo de D. Lourenço de Almeida) acerca dos contratos dos dízimos da comarca do Rio das

Velhas – essa última arrematada por Sebastião Barbosa Prado, homem ligado, conforme se verá,

ao governador D. Lourenço de Almeida.

Embora não seja muito nítido o motivo dos desentendimentos entre o governador e

Sivestre Marques, é patente a existência de uma certa desavença com D. Lourenço de Almeida –

fato até então não ocorrido com nenhum outro governador. Não é possível afirmar se Silvestre

Marques apontou os ilícitos envolvimentos de Francisco do Amaral – seu antigo sócio na

arrematação de contrato da aguardente – justamente na arrematação do contrato relativo a

Sebastião Barbosa propositadamente ou não. Também não pude comprovar, exceto na referida

devassa, a tal participação de Francisco do Amaral no contrato do Rio das Velhas. Logo, não é

possível afirmar ter sido essa uma estratégia de Silvestre Marques para se manter no posto de

juiz ordinário. Contudo, é bastante sugestivo que em apenas 14 dias após D. Lourenço de

Almeida ter dado conta a El-Rei de ser Silvestre Marques homem “inclinado a paixões

particulares” sendo mantido no posto por não haver outro melhor para substituí-lo, ele ter remetido

a tal devassa a Sua Majestade.

Em carta régia de 09 de fevereiro de 1724, Sua Majestade deu conta de ter Manuel de

Barros Guedes Madureira servido na Catalunha – companheiro do conde de Assumar na

chamada guerra da Sucessão Espanhola54 – principado de Extremadura, por espaço de 13 anos,

7 meses e 6 dias – no período compreendido entre 03 de setembro de 1704 e 08 de novembro de

1717 – em praça de soldado, cabo de esquadra, sargento, alferes de cavalo e alferes de dragões

(neste último posto Manuel de Barros já se encontrava nas Minas do Ouro). El-Rei reconheceu

sua muito boa ação em 1720, ao persuadir pessoas a passarem para o partido régio. Manuel de

Barros prendeu o padre Frei Francisco de Monte Alverne e o mestre-de-campo Pascoal da Silva

Guimarães, sendo o primeiro a entrar "na casa donde estava o tal culpado com quatro escravos

armados (...) indo por ordem do governador por fogo às casas do mestre de campo Pascoal da

Silva Guimarães e dos seus sequazes por ser impreciso para castigo e exemplo dos mais

revoltosos". Também foi responsável pela guarda de Felipe dos Santos e executou, igualmente, a

prisão de José Peixoto da Silva e de José Ribeiro Dias55.

53 AHU, MG, cx. 5 doc. 56. CARTA de Silvestre Marques da Cunha enviando a devassa sobre o procedimento de Francisco do Amara Coutinho. Vila de São José, 20 ago. 1724. 54 VASCONCELOS, Diogo de. Op. Cit., p. 371. 55 AHU, Cons. Ultra.-Brasil/MG, cx. 5, doc. 18. REQUERIMENTO de Manuel de Barros Guedes Madureira, tenente de Dragões de uma das companhias, enviada para o governo das Minas do ouro, solicitando sua confirmação no exercício do referido posto. 23 de março A724.

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Também não me foi possível identificar a aparente causa dos desentendimentos entre

Manuel de Barros e D. Lourenço de Almeida, mas pude localizar um documento no qual Manuel

de Barros queixava-se de que o governador lhe fez "manifestas injustiças". Pediu a El-Rei

"mandar por seu Real decreto, declarar nulos todos os procedimentos e sentenças do dito

governador e que ao suplicante se restituam todos os seus soldos, posto, perdas e danos"56.Em

23 de janeiro de 1726, Manuel de Barros pede para trocar de posto com Martinho Alvarez Coelho,

ajudante de cavalaria no regimento do Marquês de Marialva, Pedro José de Meneses Coutinho,

sob a alegação de que "tem nesta corte muita dependência que dependem da sua assistência

pessoal para os quais lhe foi preciso pedir licença a Vossa Majestade para vir acudir a elas".

Contudo, o parecer do Conselho Ultramarino revela uma outra face do real motivo de Manuel de

Barros vir a requerer sua transferência. Segundo o parecer, a troca seria boa por que Manuel de

Barros teria "grande repugnância” em voltar para Minas devido aos desentendimentos com D.

Lourenço de Almeida57. A versão do Conselho ganha ainda maior embasamento se tivermos em

conta que, em 02 de fevereiro de 1734 – dois anos após a partida de D. Lourenço das Minas –,

Manuel de Barros é nomeado capitão de uma recém criada companhia de Dragões na comarca

do Serro Frio58.

Os casos acima relatados tornam-se mais relevantes tendo em conta que todos figuraram

na lista elaborada por D. Lourenço de Almeida com os nomes dos indivíduos de maior destaque

na contenção da revolta de Vila Rica em 1720, ou seja, eram homens merecedores de honras e

privilégios de El-Rei. Disso depreende-se a fluidez de interesses e de alianças inerentes ao tecido

social no qual tais indivíduos atuavam e se inseriam. De mais a mais, sugere um alto grau de

refinamento exigido dos sujeitos ao tomar esta ou aquela opção. Por assim dizer, a necessidade

de rever estratégias de ação não se limitava somente aos momentos de alteração no governo,

mas durante o decorrer da própria vida de um dado indivíduo, isto é, tal necessidade fazia parte

das contínuas “situações de negociação” das quais os sujeitos estavam ao capricho.

Para além de tais constatações, as observações acima sugerem que os representantes de

El-Rei em suas conquistas não estavam completamente à mercê dos caprichos e vontades

daqueles os quais, “às custas de suas vidas, de seus negros armados e despesas de suas

fazendas”, asseguravam – ou contribuíam enormemente para tanto – a governabilidade para a

Coroa. Todos os quatro indivíduos trabalhados acima haviam contribuído para a busca e

56 Idem. 57 AHU, MG, cx. 6 doc. 8. REQUERIMENTO de Manuel Barros Guedes Madureira, tenente de cavalos de uma companhia de Dragões das Minas, e de Marinho Alves Coelho, ajudante de cavalaria no Regimento do Marques de Marialva, Pedro José de Meneses Noronha Coutinho, solicitando licença para trocarem os postos. 23 jan. A725. 58 AHU, MG, cx. 27 doc. 2. REQUERIMENTO dos cabos da esquadra da companhia criada de novo para as Minas do Ouro, de que é capitão Manuel de Barros Guedes, pedindo provisão para vencerem os seus soldos desde o dia do embarque. 02 jun. A734.

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manutenção dos três governadores predecessores a D. Lourenço de Almeida, notadamente no

que concernia a D. Pedro de Almeida na contenção da revolta de Vila Rica em 1720. Porém,

esses valorosos serviços prestados ao Fidelíssimo não asseguraram a Custódio Rebelo, a Félix

de Azevedo, a Silvestre Marques e a Manuel Guedes privilégios junto D. Lourenço de Almeida.

Em resumo, e a título de conclusão, o fato de a Coroa não poder prescindir do apoio de

poderosos locais na busca e manutenção de sua governabilidade não alçava esses mesmos

homens a uma posição tal que, no complexo jogo de poder e negociação inerente ao governo de

um reino e de suas conquistas, pudessem gozar de isenções e privilégios para agir tal qual suas

vontades. Havia, sim, um refinado e latente equilíbrio. Equilíbrio esse que estava na base das

relações administrativas e de poder. Por conseguinte, estava na base das “condições da

governabilidade” as quais estavam sujeitos aqueles indivíduos envoltos com o governo das

conquistas.

Carlos Leonardo Kelmer Mathias é Doutorando em História Social pela UFRJ

Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-dez., 2005

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ORGANIZAÇÃO MILITAR NO IMPÉRIO PORTUGUÊS: UMA ANÁLISE DAS BASES ORGANIZACIONAIS E LEGISLATIVAS DOS CORPOS DE

ORDENANÇAS

Ana Paula Pereira Costa

Resumo: O presente texto tem por objetivo abordar a estrutura de funcionamento dos Corpos de Ordenanças dissertando acerca de suas bases organizacionais e legislativas, tanto para o reino quanto para o ultramar. Além disso, colocando em foco o caso de Minas Gerais, procuraremos também analisar o caráter destes corpos, sua hierarquia, contingente e disposição de suas tropas pela comarca de Vila Rica, de forma a termos um retrato da orgânica dos Corpos de Ordenanças, desde sua criação no Reino até sua instalação na América Portuguesa e mais especificamente em Minas Gerais. Palavras-chave: Corpos de ordenanças, Organização militar, Legislação militar.

Abstract: The purpose of this paper is approach the structure of operation of the “Corpos de Ordenanças”, analyzing their organizational and legislative bases, so much for the kingdom as for the overseas. Besides, putting in focus the case of Minas Gerais, we will also try to analyze the character of these military bodies, his hierarchy, contingent and the disposition of their troops for the district of Vila Rica, in way to have a organic view of the “Corpos de Ordenanças”, from his creation in Kingdom, until his installation in Portuguese America and more specifically, in Minas Gerais. Key words: Corpos de ordenanças, Military organization, Military legislation.

O presente artigo tem por objetivo abordar a estrutura de funcionamento dos Corpos de

Ordenanças dissertando acerca de suas bases organizacionais e legislativas, tanto para o reino

quanto para o ultramar1. Nos atentaremos também para as medidas tomadas nos campos do

domínio financeiro e da administração militar a fim de dar suporte a estrutura mais geral da

organização militar lusa. Além disso, colocando em foco o caso de Minas Gerais, procuraremos

também analisar o caráter destes corpos, sua hierarquia, contingente e disposição de suas tropas

pela comarca de Vila Rica, um importante território das Minas Gerais no século XVIII, de forma a

termos um retrato da orgânica dos Corpos de Ordenanças, desde sua criação no Reino até sua

instalação na América Portuguesa e mais especificamente em Minas Gerais.

A construção do Estado Moderno na Europa, assente na fiscalidade e na guerra, passou

também pela tentativa de constituição de um exército à escala do território nacional. A fragilidade

do aparelho burocrático e a escassez de recursos humanos e técnicos fizeram com que os

monarcas se apoiassem em milícias urbanas para assegurar a existência de uma tropa pronta a

1Este artigo é uma versão resumida do 1º capítulo da minha Dissertação de Mestrado intitulada “Atuação de poderes locais no Império Lusitano: uma análise do perfil das chefias militares dos Corpos de Ordenanças e de suas estratégias na construção de sua autoridade. Vila Rica, (1735-1777)”, defendida no PPGHIS/UFRJ sob orientação do Prof. Dr. Manolo Garcia Florentino.

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servir em caso de necessidade. Portugal não constituiu exceção a este quadro sendo marcante a

presença de forças militares ou paramilitares locais no quadro organizacional do exército

português, à imagem do que ocorria em vários reinos europeus2.

Contudo cabe sublinhar uma especificidade de Portugal neste contexto. No período de

1500-1800 boa parte das grandes potências européias ocidentais passaram por conflitos militares

nos quais se pode acompanhar a evolução das táticas, dos armamentos e da organização militar,

num processo que ficou conhecido como “revolução militar”. Como se sabe, a revolução militar é

caracterizada pela introdução intensiva e extensiva da nova tecnologia militar de armas de fogo, o

que resultou em uma série de mudanças não apenas nas técnicas de combate, mas também na

organização militar e na relação da guerra com a sociedade3. Portugal, entretanto, ficou de fora

deste processo. Sua história militar é a de um país que, durante mais de 150 anos, (entre Toro-

1476 e a Aclamação-1640) não participou de operações militares terrestres na Europa e que, de

experiência, conhecia apenas a guerra ultramarina, em que se defrontavam práticas bélicas

peculiares e a guerra de guerrilhas4. Com efeito, os esforços de guerra de Portugal concentravam-

se, sobretudo, na força naval. Desde pelo menos o século XVI Portugal tecia uma armada

permanente. Apesar de esta comportar funções civis (comerciais) ela era ao mesmo tempo uma

armada de guerra, sustentada pela Coroa, sendo o grande sustentáculo desta em seus êxitos,

pelo menos no Oriente, e do Império Ultramarino. Ou seja, a potência naval foi um fator – direto,

enquanto força, e indireto, enquanto garantidor de riqueza – de credibilização externa de

Portugal5.

Diferente era a situação da força armada terrestre. Aí as tradições portuguesas são tardias e

pouco permanentes, até pelo menos o século XVII6. Conforme dito anteriormente, e a exemplo do

que acontecia em outras partes da Europa, os monarcas se apoiaram em milícias urbanas para

assegurar a existência de uma tropa pronta a servir em caso de necessidade.

A origem destas milícias mergulha na Idade Média. No período da Reconquista os fueros

de leão e Castela, desde o século XI, e os forais portugueses desde, pelo menos, 1157,

consagravam a obrigatoriedade dos cavaleiros em participar das expedições militares. Com D.

2RODRIGUES, José Damião. “A guerra no Açores”. In. HESPANHA, António Manuel (Org). Nova História Militar de

Portugal. Vol. II – séculos XVI-XVII. Lisboa: Círculo de Leitores, 2003, p. 245.

3HESPANHA, António M. “Introdução”. In: HESPANHA, António Manuel (Org). Nova História Militar de Portugal... Op. cit., p. 9. Sobre revolução militar ver: Parker, Geoffrey. The Military Revolution: Military Inovation and the Rise of the West, 1500-1800. Cambridge, Cambridge University Press, 1992. 4Idem. Sobre este assunto ver: PUNTONI, Pedro. A guerra dos bárbaros: povos indígenas e a colonização do Sertão Nordeste do Brasil, 1650-1720. São Paulo: Hucitec, 2002. 5HESPANHA, António M. “Conclusão”. In: HESPANHA, António Manuel (Org). Nova História Militar de Portugal... Op. cit., pp. 360-361. 6Idem.

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Afonso Henriques (1128-1185), no século XIII, os forais declaravam que os súditos eram

obrigados a prestar serviços militares a fim de prepararem-se para a guerra a que as disputas

territoriais com os mouros os obrigava. Para além do serviço militar exigido da população em

geral, os monarcas portugueses preocuparam-se, desde final do século XIII, em criar corpos

especializados. Assim surgem os besteiros organizados como a tropa de elite portuguesa no

primeiro quartel do século XIV, recrutados entre os mesteirais jovens, ou não os havendo em

número suficiente, entre serviçais e braceiros7. Neste sistema o Rei era o comandante supremo,

sendo a organização das tropas, nestes primeiros tempos, feita em hostes, uma unidade tática

dividida em companhias de cavalaria e infantaria 8.

Esta modalidade de organização militar se manteve até o início do século XVI. Não existia

um exército regular e o Rei continuava a depender desta estrutura intimamente articulada com a

rede concelhia e com as hostes senhoriais.

A partir do século XVI, a estrutura militar lusitana começa a tomar forma mais consistente

com o esboço de um projeto que transformasse a infantaria medieval em Tropa Regular, em

“exército do Estado”9. Nesta esteira é que se tem a criação dos Corpos de Ordenanças. A criação

do sistema de Ordenanças tem sido destacada na história militar portuguesa e nas discussões

acerca dos reflexos da revolução militar na Europa como uma especificidade. A pouca atuação

direta do Monarca em confrontos bélicos poderia tornar diminuta sua autoridade como chefe

militar, o que seria prejudicial a sua imagem já que, como visto, o Estado Português moderno

construiu-se sob a égide do fisco e da guerra. Ao representar um universo quase geral da

população masculina, na medida em que englobava todos os indivíduos capazes de pegar em

armas, entre 18 e 60 anos, obrigando-os, de acordo com sua riqueza, a possuírem equipamento

militar, as tropas de Ordenanças apresentam-se assim como um fator de monta não no plano da

eficácia, mas no plano ideológico. Com tal sistema o Rei reafirma-se como um chefe militar, ainda

que meramente simbólico, do reino, topo de uma pirâmide de chefias de hostes senhoriais e

concelhias, passando a criar obrigações militares diretas aos seus vassalos, fazendo-se membro

de uma hoste do reino, diretamente recrutada e organizada sob seu comando10.

Com a Restauração em 1640, a organização militar se fecha com a criação efetiva de um

exército regular não mais baseado nas hostes medievais que na segunda metade do XVII serão

7RODRIGUES, José Damião. “A guerra no Açores” In: HESPANHA, António Manuel (Org). Nova História Militar de Portugal... Op. Cit., p. 245. 8SILVA, Kalina V. da. O miserável soldo & a boa ordem da sociedade colonial: militarização e marginalidade na Capitania de Pernambuco dos séculos XVII e XVIII. Recife: Fundação de Cultura Cidade de Recife, 2001, p. 46. 9SILVA, Kalina V. da. O miserável soldo & a boa ordem da sociedade colonial... Op. Cit., p. 48. 10BEBIANO, Rui. “A guerra: o seu imaginário e a sua deontologia”. In: HESPANHA, António Manuel (Org). Nova História Militar de Portugal... Op. Cit. ,pp. 36-50.

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substituídas pelos terços, divididos em companhias; e com a criação das Milícias 11. Portanto,

somente depois de 1640 Portugal efetiva a criação de um exército permanente a fim de se

defender de uma potência (Espanha) que como as grandes monarquias européias dispunham de

exércitos permanentes a muito mais tempo. Progressivamente o exército português vai se

estruturando, sem, contudo, fazer de Portugal uma potência militar12.

A estrutura militar lusitana fica então organizada a partir de três tipos específicos de forças:

os Corpos Regulares (conhecidos também por Tropa Paga ou de Linha), as Milícias ou Corpo de

Auxiliares e as Ordenanças ou Corpos Irregulares. Os Corpos Regulares, criados em 1640 em

Portugal, constituíam-se no exército “profissional” português, sendo a única força paga pela

Fazenda Real. Essa força organizava-se em terços e companhias, cujo comando pertencia a

fidalgos de nomeação real. Cada terço era dirigido por um mestre-de-campo e seus membros

estavam sujeitos a regulamentos disciplinares. Teoricamente, dedicar-se-iam exclusivamente às

atividades militares. Seriam mantidos sempre em armas, exercitados e disciplinados13.

As Milícias ou Corpos de Auxiliares, criados em Portugal em 1641, eram de serviço não

remunerado e obrigatório para os civis constituindo-se em forças deslocáveis que prestavam

serviço de apoio às Tropas Pagas. Organizavam-se em terços e companhias, sendo seu

enquadramento feito em bases territoriais, junto à população civil. Os Corpos de Auxiliares eram

armados, exercitados e disciplinados, não somente para operar com a Tropa Regular, mas

também para substituí-la quando aquela fosse chamada para fora de seu território. Esta força era

composta por homens aptos para o serviço militar, já que eram “treinados” para tanto e que

sempre eram mobilizados em caso de necessidade bélica. Entretanto, não ficavam ligados

permanentemente à função militar como ocorre nas Tropas Regulares. Sua hierarquia se

organizava da seguinte forma: mestres-de-campo, coronéis, sargento-mores, tenentes-coronéis,

capitães, tenentes, alferes, sargentos, furriéis, cabos-de-esquadra, porta-estandartes e tambor.

Deve-se observar que o título de Mestre de Campo era atribuído ao comandante de Terço de

Infantaria, enquanto o título de Coronel era atribuído ao comandante do Terço de Cavalaria14.

A completar a organização militar estariam os Corpos de Ordenanças. Criados pela lei de

1549 de D. João III e organizados conforme o Regimento das Ordenanças de 157015 e da

11 Idem, p. 50. 12HESPANHA, António M. “Conclusão”. In: HESPANHA, António Manuel (Org). Nova História Militar de Portugal... Op. Cit., pp. 361-362. 13SILVA, Kalina Vanderlei. O miserável soldo e a boa ordem da sociedade colonial... Op. Cit., ver capítulo 2. 14FILHO, Jorge da Cunha Pereira. “Tropas militares luso-brasileiras nos séculos XVIII e XIX”. In: Boletim do Projeto "Pesquisa Genealógica Sobre as Origens da Família Cunha Pereira". Ano 03, nº. 12, 1998, pp. 19-21. 15A respeito disso ver: Regimento das Ordenanças de 1570. In: COSTA, Veríssimo Antonio Ferreira da. Collecção Systematica das Leis Militares de Portugal, Tomo IV – “Leis pertencentes às Ordenanças”, Lisboa, Impressão Regia, 1816. Localização: BN/F,4,3-5/Divisão de Obras Raras.

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provisão de 157416, os Corpos de Ordenanças, possuíam um sistema de recrutamento que

deveria abranger toda a população masculina entre 18 e 60 anos que ainda não tivesse sido

recrutada pelas duas primeiras forças, excetuando-se os privilegiados17. Conhecidos também por

“paisanos armados” possuíam um forte caráter local e procuravam efetuar um arrolamento de toda

a população para as situações de necessidade militar. Os componentes das Ordenanças também

não recebiam soldo, permaneciam em seus serviços particulares e, somente em caso de grave

perturbação da ordem pública, abandonavam suas atividades. O termo “paisanos armados”

carrega em si a essência do que seria a qualidade militar dos integrantes das Ordenanças, isto é,

um grupo de homens que não possuía instrução militar sistemática, mas que, de forma paradoxal,

eram utilizados em missões de caráter militar e em atividades de controle interno18. Também se

organizavam em terços que se subdividiam em companhias19. Os postos de Ordenanças de mais

alta patente eram: capitão-mor, sargento-mor, capitão. Os oficiais inferiores eram os alferes,

sargentos, furriéis, cabos-de-esquadra, porta-estandartes e tambor20.

Vejamos mais atentamente, desde o reino até o ultramar, a complexidade organizacional

desta força militar destacando sua legislação, preenchimento dos postos, funções dos oficiais que

compunham seus quadros e, para o caso de Minas Gerais, o caráter destes corpos, sua

hierarquia, contingente e disposição de suas tropas pela comarca de Vila Rica.

O QUADRO ORGANIZACIONAL DAS ORDENANÇAS EM PORTUGAL

O Alvará Régio de 1508, do rei D. Manuel, lançou as bases do sistema de Ordenanças em

Portugal. Denominada de "Gente da Ordenança das Vinte Lanças da Guarda", eram nestes

primeiros tempos constituídas de mercenários estrangeiros, não tendo ainda sua característica de

permanência. Anos depois, em 1549, D. João III publicava um Regimento no qual determinava

que os serviços de armas cabiam a todos os súditos com idade entre 20 e 65 anos, no reino e nos

quatro arquipélagos atlânticos. Com este documento introduzia-se em Portugal aquilo que

Joaquim Romero de Magalhães chamou de “princípio de militarização geral da sociedade”21.

16Esta provisão editada quatro anos depois de promulgado o Regimento das Ordenanças complementava o mesmo com algumas alterações e esclarecimentos fundamentados nas necessidades decorrentes da atuação prática das Ordenanças. Para maiores detalhes ver: Provisão das Ordenanças de 1574. In: COSTA, Veríssimo Antonio Ferreira da. Collecção Systematica... Op.Cit. 17MONTEIRO Nuno G. “Os concelhos e as comunidades”. In: HESPANHA, António M. (Org). História de Portugal: o Antigo Regime. Lisboa: Editorial Estampa, Vol. 4, 1998, p. 273. 18COTTA, Francis Albert. “Os Terços de Homens Pardos e Pretos Libertos: mobilidade social via postos militares nas Minas do século XVIII”. MNEME – Revista de Humanidades. UFRN – CERES. http://www.seol.com.br/mneme/, p. 3. 19Idem, p. 4. 20FILHO, Jorge da Cunha Pereira. “Tropas militares luso-brasileiras nos séculos XVIII e XIX...” Op. Cit., p p. 5-9. 21RODRIGUES, José Damião. “A guerra no Açores” In: HESPANHA, António Manuel (Org). Nova História Militar de Portugal... Op. Cit., p. 245.

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Sobre esta estrutura, e perante a necessidade de um aparelho militar local bem montado,

as leis e regimentos de D. Sebastião – com destaque para a “Lei de Armas (6.12.1569)”, o

“Regimento dos capitães-mores e mais capitães e oficiais das companhias (10.12.1570)” e a

“Provisão sobre as Ordenanças (15.5.1574)” – ampliaram as medidas anteriormente tomadas.

Vejamos mais pormenorizadamente estes regulamentos sebásticos que se constituíram no eixo

estruturante da organização militar que marcou todo o Antigo Regime português22.

A “Lei de Armas” estabeleceu algumas regras para o funcionamento desta força militar.

Estendeu a todo o reino a instituição das Ordenanças, que inicialmente havia sido estabelecida

somente para Lisboa; estipulou que todos os homens entre os 20 e os 65 anos estavam

convocados automática e permanentemente para a defesa do país, excetuando-se os sacerdotes,

magistrados e outros funcionários graduados do governo, ou pessoas doentes e deficientes físicos

ou mentais; e determinava que cada fidalgo, cavaleiro, escudeiro ou assemelhado deveria

participar da Ordenança com certa quantidade de recursos e equipamentos, dependendo da sua

renda23.

O “Regimento das Ordenanças ou dos capitães-mores” organizou mais sistematicamente

esta força militar, dissertando sobre sua hierarquia de comando, o processo e critério eletivo do

preenchimento de seus postos, as obrigações dos mesmos, a composição das companhias, a

forma de recrutamento, o adestramento militar, os exercícios periódicos e sua organização

territorial. Estabeleceu também algumas alterações, como por exemplo, a mudança nos limites de

idade da convocação dos homens, agora feita entre aqueles com idade entre 18 e 60 anos.

O Regimento de 1570 estabelecia a eleição do capitão-mor nos lugares onde o dono da

terra não estivesse presente e onde não houvesse alcaides-mores. O processo eletivo era

realizado na câmara local, com a necessária presença do corregedor e do provedor da comarca24

sendo que:

“[...]na eleição dos ditos capitães, especialmente os mores, terão sempre respeito que se elejão pessoas principais da terra e que tenham partes e qualidades para os ditos cargos[...]”25.

Dispunha-se, contudo, que se os senhores da terra viessem a residir em suas capitanias, o

capitão-mor eleito pela Câmara municipal perderia seu posto, a ser ocupado por aqueles senhores

e pelos alcaides-mores. Dono da terra ou eleito, o capitão-mor recebia o juramento e fazia as

escolhas, juntamente com a Câmara, dos demais oficiais: sargento-mor, capitão-de-companhia, 22Idem. 23MELLO, Christiane F. Pagano de. Os Corpos de Auxiliares e de Ordenanças na segunda metade do século XVIII – As capitanias do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais e a manutenção do Império Português no Centro-Sul da América. Niterói: UFF, 2002. Tese de Doutorado, p. 21. 24SALGADO, Graça (Org.). Fiscais e Meirinhos: a administração no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 100.

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alferes e sargento. No topo dessa hierarquia, o capitão-mor encarregava-se de engajar a

população no serviço das Ordenanças, bem como visitar e determinar a formação de

Companhias. Teoricamente cada Companhia de Ordenança deveria ser composta de 250

homens, distribuídos em 10 esquadras de 25 homens, sob o comando do capitão-de-companhia.

Este se subordinava diretamente ao capitão-mor e tinha em sua companhia um alferes, um

sargento, um meirinho, um escrivão, dez cabos-de-esquadra e um tambor. Em caso de

afastamento, a substituição seguia a ordem da hierarquia26. Eventualmente haveria ao lado das

companhias de infantaria as companhias de cavalo, para enquadrar a gente nobre do concelho27.

Posteriormente o número de soldados de uma companhia foi reduzido para 60 homens, o que

geralmente correspondia a quatro 4 esquadras de 15 soldados. Onde era possível, as

Companhias de Ordenanças eram reunidas em unidades maiores denominadas de terço de

Ordenanças. Cada terço era composto de quatro 4 Companhias, o equivalente a um efetivo de

1.000 soldados. Esse efetivo era exatamente um terço (1/3) do efetivo da unidade superior, o

regimento de Ordenanças, que tinha 3.000 soldados28.

Em maio de 1574, o mesmo D. Sebastião edita a “Provisão das Ordenanças”, repleta de

novas instruções que complementava o Regimento de 1570, fundamentadas nas necessidades

decorrentes da atuação prática desta força militar29. Por sua determinação, nos lugares onde só

houvesse uma Companhia de Ordenanças, o comando da tropa seria exercido pelo capitão-de-

companhia existente, e não mais pelo capitão-mor, exceto quando este fosse o próprio senhor das

terras.

A Provisão de 1574 reafirmava ainda a obrigatoriedade de todos os moradores possuírem

armas, além de encarregar funcionários – juízes de fora ou capitães-mores – de zelar pelo

cumprimento dessas determinações num prazo máximo de seis meses. Estabelecia também a

competência do sargento-mor da comarca, cuja função era vistoriar as Companhias de

Ordenanças sob sua jurisdição, bem como promover o adestramento da tropa e fiscalizar o estado

de conservação do armamento. Além disso, era obrigado a possuir um livro de registro onde

constasse o número de Companhias existentes na comarca, o total de indivíduos engajados e os

nomes dos capitães-mores, capitães-de-companhia e alferes. Os capitães-de-companhia,

sargentos-mores, alferes, sargentos e cabos-de-esquadra tinham de seguir à risca as

25Regimento das Ordenanças de 1570. In: VERISSIMO, Antonio F. da Costa. Collecção Systematica... Op. Cit. pp. 1-2. 26SALGADO, Graça (org.). Fiscais e Meirinhos... Op. Cit., p.100-101. Ver também: VERISSIMO, Antonio Ferreira da Costa. Collecção Systematica das Leis Militares de Portugal, Tomo IV – “Leis pertencentes às Ordenanças” Op. cit., pp. 1-7. 27HESPANHA, A M. “A administração militar”. In: HESPANHA, A M. (Org.). Nova História militar de Portugal... Op. Cit, p. 169. 28FILHO, Jorge da Cunha Pereira. “Tropas militares luso-brasileiras nos séculos XVIII e XIX...” Op. Cit., p. 7. 29Para maiores detalhes ver: Provisão das Ordenanças de 1574. In: VERISSIMO, Antonio F. da Costa. Collecção Systematica... Op. Cit.

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recomendações do sargento-mor da comarca, caso contrário, seriam submetidos a penas

pecuniárias estabelecidas de acordo com a patente do infrator. A execução das condenações

ficava a cargo do ouvidor, do provedor ou do juiz de fora e, na ausência de alguma dessas

autoridades, dos juízes ordinários30.

Refira-se desde já que as reformas sebásticas concederam às Câmaras um papel central na

organização das Ordenanças na medida em que ficaram responsáveis pelas eleições dos oficiais,

sendo os membros da Câmara eleitores e elegíveis ao mesmo tempo, o que reforçava o poder

das elites locais31.

Em 1709, com a promulgação de um Alvará Régio, o preenchimento dos postos de

Ordenanças sofreu algumas modificações. Na eleição para os capitães-mores de cada vila, cidade

ou concelho estipulou-se que em vez de elegê-los diretamente quando vagasse seu posto, os

oficiais da Câmara municipal deveriam avisar o ouvidor ou o provedor da comarca, que era

obrigado a comparecer à mesma para, juntamente com os camaristas, escolher três pessoas do

local “da melhor nobreza, cristandade e desinteresse”. Os nomes e as devidas justificativas eram

enviados ao general ou cabo que comandasse as armas da localidade, que baseado nas

informações dadas pelos oficiais da Câmara e pelos funcionários régios encarregados de

supervisionarem as eleições, propunha ao Rei – através do conselho de guerra metropolitano – as

pessoas mais convenientes para a ocupação do posto32.

A eleição dos sargentos-mores e capitães-de-companhia passou a se realizar segundo

esse mesmo modelo. Diferia apenas na composição do grupo de escolha: em lugar do ouvidor ou

provedor da comarca, a opção pelos três nomes cabia aos oficiais da Câmara municipal em

conjunto com o alcaide-mor ou capitão-mor e, na falta destes, recaía obrigatoriamente sobre as

pessoas residentes nos limites da vila, cidade ou conselho. A escolha final caberia ao Conselho

de Guerra. Este passou a ser responsável por expedir as patentes – assinadas pelo Rei – de

capitão-mor, sargento-mor e capitão-de-companhia, que deixaram de ser feitas por provisões,

como se praticara até então. Os prazos para a confirmação régia de patentes era de 1 ano para

os residentes em porto de mar e de 2 anos para os residentes nas Minas e Sertões. As vagas

para os postos de alferes e sargentos-de-companhia eram preenchidas através de nomeação,

recaindo a escolha sobre “as pessoas mais dignas e capazes de suas companhias”. Tais

nomeações, realizadas pelos capitães-de-companhia, deviam ser aprovadas pelo capitão-mor e

confirmadas pelo governador das armas. Se incidissem sobre pessoas incapazes para o exercício

do cargo, eram indicados outros nomes33.

30SALGADO, Graça. Fiscais e Meirinhos... Op. Cit.,p p.101-102. 31RODRIGUES, José Damião. “A guerra no Açores...” Op. Cit., p. 245. 32 SALGADO, Graça. Fiscais e Meirinhos... Op. Cit., pp. 105-106. 33Idem.

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Como referido, a eleição para todos estes postos se processava dentre as “pessoas

principais” residentes nas respectivas localidades. O termo “pessoas principais” traduzia-se em

homens com capacidade de mando, que se mostravam extremamente desejosos de títulos e

honras. Pode-se dizer que os privilégios da ocupação de um posto nas Ordenanças não

representavam diretamente ganhos monetários – o que representava para a Coroa uma economia

em gastos diretos com a administração – mas sim produção ou reprodução de prestígio e posição

de comando, bens não negligenciáveis no Antigo Regime, bem como isenções de impostos e

outros privilégios34.

O comando e mesmo a criação das Tropas de Ordenanças, muitas vezes devida a

iniciativas individuais, era um fator de prestígio. Lembremos também que o exercício das armas

era um fator nobilitante35. Na verdade, pode-se dizer que uma patente das Companhias de

Ordenanças atribuía a seu possuidor um poder de atuação em dois sentidos. Pelo próprio

Regimento das Ordenanças de 1570 fica estipulado que os “capitães-mores e os capitães das

Companhias locais ficavam com um poder imenso de escolha dos aptos e não aptos para o

serviço militar”36, o que proporcionava aos oficiais uma rede de influências muito importante sobre

os habitantes das localidades onde se instituíam, pelo conhecimento detalhado da população e

pela autoridade de impor-lhes o treino militar37. Além disso, as patentes eram um instrumento de

nobilitação visto que os oficiais podiam “[...]gozar e usar do privilegio de cavaleiro, posto que o

não seja. Gozam sim do privilegio de nobres, mas não adquirem nobreza.[...]”38.

A vocação militar era vista como um elemento definidor da identidade nobiliárquica, as

relações entre as nobrezas e as monarquias européias no período moderno foram muito variáveis,

oscilando desde as situações de militarização da nobreza pela monarquia (caso da Prússia) até

aquelas em que o serviço militar da nobreza era voluntário caso da Espanha, da França e também

de Portugal39.

Somente na segunda metade do século XVIII é que se tomaram medidas em Portugal para

que a assimilação imemorial “nobreza-guerra” desse lugar a noção de que a guerra seria uma arte

nobre, porém técnica. Neste contexto é que a afirmação do estatuto militar, o papel dos

engenheiros militares, dos matemáticos da balística e das táticas aliadas a um discurso

34SALGADO, Graça. Fiscais e Meirinhos... Op. Cit., p. 111. 35RODRIGUES, José Damião. “A guerra no Açores...” Op. Cit., p. 247. 36MAGALHÃES, Joaquim Romero. “A guerra: os homens e as armas”. In: O Algarve Econômico: 1600-1773. Lisboa: Editorial Estampa, 1993, p. 110. 37MELLO, Christiane F. Pagano de. Os Corpos de Auxiliares e de Ordenanças na segunda metade do século XVIII...Op. Cit., p. 32. 38VERISSIMO, Antonio Ferreira da Costa. Collecção Systematica das Leis Militares de Portugal, Tomo IV – “Leis pertencentes às Ordenanças”, Op. Cit., p. 44. 39GOUVEIA, António Camões & MONTEIRO, Nuno G. “A milícia”. In: HESPANHA, António M. (Org). História de Portugal: o Antigo Regime... Op. Cit. p. 180.

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fundamentador de uma autonomia de saber, adquiriu peso ímpar40. Nesse campo, e dentro de

uma esfera estritamente militar, é enorme o peso adquirido pelos trabalhos e pela ação do conde

de Lippe. Foi na década de 1760, que ocorreram os maiores esforços no sentido de reformar o

exército português que passou a contar com a ajuda do conde de Schaumburg-Lippe, um dos

oficiais de maior prestígio na época. Chegado a Portugal em 1762 à sombra do pacto da

Família41, teve entre suas principais preocupações a melhoria das fortificações, introdução de

novas regras de recrutamento, aprendizagem, fardamento e disciplina. Criar um corpo militar,

ultrapassando o bando, foi sua preocupação fundamental42.

Medidas nos campos do domínio financeiro e da administração militar também foram

sendo tomadas a fim de dar suporte a esta estrutura mais geral da organização militar. Neste

contexto é que se tem a criação da Junta dos Três Estados (pelo Decreto de 18.1.1643)

responsável pela gestão das quantias votadas pelas cortes para o sustento da guerra; bem como

a criação da Vedoria-geral, Contadoria-geral e Pagadoria-geral do exército (pelo Regimento das

Fronteiras de 29.8.1645). Estas três instâncias supervisionavam a administração financeira das

tropas, o sistema de promoções, baixas, pagamentos de soldo, suprimentos e contabilidade geral

das tropas43. O vedor-geral do exército ficava encarregado de arrolar os soldados, controlar o

pagamento dos oficiais e soldados quando fosse necessário, além de ser responsável por todos

os gastos com as tropas das fronteiras. A seu serviço deviam estar 4 comissários de mostra e 4

oficiais de pena, encarregados de fazer as revistas, inscrições das tropas e elaborar as listas onde

constariam os dados pessoais do militar (nome, data de ingresso, posto, conduta, morte em

serviço, baixa, promoção). Dessas listagens era extraída a fé de ofício, que condicionava a

promoção ou rebaixamento de patente. Cabia também ao vedor-geral zelar pela qualidade dos

suprimentos fornecidos às Tropas Regulares, pelo estado das munições, armazéns e hospitais. As

necessidades de cada praça eram verificadas pelo comissário da vedoria que, em conjunto com

almoxarifes e capitães-mores, assentava todas as despesas, cujas certidões deviam ser

entregues ao vedor-geral e ao contador. Nenhum governador das armas, general, mestre-de-

campo ou qualquer outro oficial podia opor obstáculo a esse trabalho44.

40Idem. 41O pacto da família constituiu-se em um pacto firmado em agosto de 1761 pelos integrantes da família dos Bourbons, então reinantes na França, para defenderem seus estados mutuamente. Nesse mesmo período a França participava da Guerra dos Sete Anos contra a Inglaterra. Na ocasião, embora D. José de Portugal fosse casado com uma princesa Bourbon não podia aderir ao pacto da família e auxiliar na defesa do território francês, pois era aliado da Inglaterra. Portugal tentou por um tempo permanecer neutro ao conflito, mas as pressões inglesas levaram o Rei a participar da fase final da guerra como seu aliado, ficando assim em lado oposto ao da família Bourbon. MELLO, Christiane F. Pagano de. “A guerra e o pacto: a política de intensa mobilização militar”. In: Castro, Celso; Izecksohn, Vitor e Kraay, Hendrik (orgs.) Nova História Militar Brasileira. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2004, p. 69. 42Idem, p. 181. 43HESPANHA, A M. “A administração militar”. In: HESPANHA, A M. (Org). Nova História militar de Portugal... Op. Cit, p. 175. 44SALGADO, Graça. Fiscais e Meirinhos... Op. Cit. pp. 102-103.

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No domínio da administração militar cria-se o Conselho de Guerra (por um Regimento de

22.12.1643). Tratava-se de um tribunal real com atribuições de dar pareceres aos postos militares

superiores, sobre recrutamentos, sobre fábrica das naus e sobre a fortificação de lugares.

Abaixo do Conselho de Guerra, nas províncias, havia os governadores de armas das

províncias, cargo criado pelo Regimento de 1650. Estes eram encarregados da administração

militar no que concerne ao recrutamento, à supervisão das obrigações quanto a armas e cavalos e

a avaliação da qualidade dos oficiais de Ordenanças, eleitos pelas Câmaras45.

O QUADRO ORGANIZACIONAL DAS ORDENANÇAS NO BRASIL

Segundo Maria Fernanda Bicalho a guerra pode ser considerada uma das chaves

explicativas da relação entre Colônia e Metrópole, fundamentando toda a lógica do sistema

colonial, visto ter marcado uma das modalidades de exercício de poder e controle dos homens

pelo Estado: a arregimentação e a militarização da população colonial46. O fato de o Estado

Português ter procurado constituir-se com um caráter militar foi um pressuposto também

transmitido para a América Portuguesa, na medida em que desde o início da colonização a Coroa

procurou transformar cada colono em um homem de guerra47.

O aspecto militar sempre esteve presente na política colonizadora, onde a preocupação

com a defesa e conservação dos domínios ultramarinos era fator primordial no seio das questões

administrativas, sendo isto feito tanto pela militarização dos colonos naturais e reinóis, quanto pelo

reforço da obediência dos súditos à autoridade de seus governantes, representantes da soberania

real no além-mar48.

Desde o Foral dado a Martim Afonso de Souza em 1530, os governadores dispunham

também em sua titulação do papel de capitão-mor, mesmo não sendo um militar, pois lhes caberia

o comando das armas na sua jurisdição. A defesa constituía a garantia dos interesses exclusivos

da Coroa sob o território colonial49.

Em 1548, com a instituição do governo-geral, a Coroa elaborou as primeiras normas para

organização militar na colônia que, no entanto, girava ainda em torno dos moradores locais. O

Regimento de 1548, passado ao primeiro governador-geral, Tomé de Sousa, definia estas

primeiras medidas para uma organização militar na colônia. O referido Regimento estipulava que

45HESPANHA, A M. “A administração militar”. In: HESPANHA, A M. (Org). Nova História militar de Portugal... Op. Cit, p. 175. 46 BICALHO, Maria F. A cidade e o Império: O Rio de Janeiro no século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 334. 47SILVA, Kalina V. da. O miserável soldo & a boa ordem da sociedade colonial... Op. cit., pp.71-73. 48BICALHO, Maria F. A cidade e o Império... Op. Cit., p. 332. 49SALGADO, Graça. Fiscais e Meirinhos... Op. Cit., p. 99.

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os capitães-mores, os senhores de engenho e demais moradores tivessem artilharia e armas,

discriminando detalhadamente os tipos e quantidades de armamento. Concedia o prazo de um

ano para a sua aquisição por parte dos moradores, findo ao qual era prevista punição aos não

cumpridores de suas determinações. Para verificar se as ordens estavam sendo obedecidas e

executar as penas em caso de falta, foi estabelecido que o provedor-mor se encarregasse de

realizar a inspeção e, na sua ausência, os provedores da capitania exerceriam tal função. Para a

segurança e defesa das povoações e fortalezas do Brasil, os capitães e os senhores de engenho

seriam obrigados a sustentar o efetivo militar: cada capitão deveria ter em sua capitania pelo

menos 2 facões, 6 berços, 20 arcabuzes, a pólvora necessária, 20 bestas, 20 lanças, 40 espadas

e 40 corpos de armas de algodão; cada senhor de engenho ao menos 4 berços, 10 espingardas e

a pólvora precisa, 10 bestas, 10 lanças, 20 espadas e 20 corpos de armas de algodão; e cada

morador que tivesse no Brasil casas e terras devia ter pelo menos besta, espingarda, lança e

espada50.

Portanto, com a implantação do governo-geral e a subseqüente centralização dos negócios

administrativos, o próprio governador-geral assumiria o comando das armas51. Nas Capitanias

Hereditárias a hierarquia militar obedecia à seguinte ordem: donatário, capitão-mor, capitão de

infantaria, capitão de cavalaria. As Ordenanças eram organizadas em cada Vila, aí se incluindo

seus Arraiais e Povoados, sendo seus comandantes responsáveis diretos pela defesa local52.

Porém, no início da colonização – e assim o será por praticamente todo o período colonial

– os poderes públicos não tinham condições de realizar de maneira eficiente o controle e defesa

do território ante os inimigos internos e externos. Para tanto, utilizavam os guerreiros obtidos junto

às tribos indígenas amigas, assim como os soldados das linhas Auxiliares. O Regimento de 1548

fixava formas de recrutamento e organização desta força Auxiliar, cujos encargos eram dos

moradores. Em outros termos, para além das linhas Regulares, a força privada garantia a

homeóstase do sistema53.

A fim de armar a população da colônia através de imposições legais, a Coroa promulgou o

Alvará de Armas de 1569 que tornava obrigatória a posse de armas pelos homens livres54.

No entanto, essas medidas não conseguiram organizar o sistema de defesa e transformar

as Ordenanças em uma força militar regulamentada. Isto foi feito com a promulgação do já citado

Regimento das Ordenanças de 1570 (ou Regimento dos capitães-mores) que ampliou as 50Para conhecimento do regimento citado ver AMARAL, Roberto e BONAVIDES, Paulo. Textos Políticos da História do Brasil. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, Vol. 1, 2002, pp. 157-170. 51SALGADO, Graça. Fiscais e Meirinhos... Op. Cit., pp. 98-99. 52FILHO, Jorge da Cunha P. “Tropas militares luso-brasileiras nos séculos XVIII e XIX...” Op. Cit., 12. 53PUNTONI, Pedro. “A arte da guerra no Brasil: tecnologia estratégias militares na expansão da fronteira da América portuguesa (1550-1700)”. In: Castro, Celso; Izecksohn, Vitor e Kraay, Hendrik (Orgs). Nova História Militar Brasileira... Op. Cit., p. 44.

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providências contidas no de 1548, estabelecendo a formação de Corpos de Ordenança nas

capitanias55.

Outras leis referentes às Ordenanças foram editadas no Brasil. O Regimento de 1677,

passado ao governador-geral Roque da Costa Barreto (1678-1682), exortava os governadores ao

cumprimento do Regimento de Fronteiras, particularmente no tocante às regras de promoção dos

oficiais56. Em 1739, promulgou-se uma lei estabelecendo o provimento integral dos postos das

Ordenanças pelo governador e capitão general, bem como determinando que as localidades

marítimas devessem ter também terços de Auxiliares; outra lei editada em 1749 tornou o cargo de

capitão-mor vitalício, em lugar de ser trienal. Em abril de 1758 foi editada a “Provisão de

Ordenanças”, extinguindo os cargos civis de meirinhos e escrivães das companhias, passando

suas funções para os sargentos. Assim todas as funções da companhia passaram a ser exercidas

exclusivamente por militares57.

Não podemos deixar de citar a política de reorganização militar implementada em Portugal

em 1760 com o Marquês de Pombal que também teve seus reflexos no Brasil. A política de

Sebastião de José de Carvalho e Melo em relação ao Brasil se apoiou em três pilares: a defesa do

território, a expansão econômica e o fortalecimento do poder central58. Se em Portugal, a Coroa

delegou a tarefa de organização de seu exército ao conde de Schaumburg-Lippe, no Brasil isso foi

feito pelo tenente-general austríaco João Henrique Böhm, influenciado pelo modelo de conde de

Lippe, bem como pelo morgado de Mateus, D. Luís Antônio de Sousa, e pelo Marquês de

Lavradio, dois dos aristocratas mais eficientes que haviam trabalhado com Lippe59.

Outras modificações na organização militar da colônia foram realizadas durante o século

XVIII com o objetivo geral de reduzir gastos e evitar os abusos cometidos, recriando cargos e

redefinindo critérios para seu provimento. Uma das mudanças a ser citada foi a ocorrida no papel

das Milícias: por decreto de 7 de agosto de 1796 e resolução de 22 de fevereiro de 1797, a Milícia

passou à categoria de Tropa de Segunda Linha, sendo a composição de cada regimento feita por

comarcas e distritos. Na mesma época, estabeleceu-se que os postos superiores desse corpo

Auxiliar seriam preenchidos por oficiais recrutados nas Tropas Pagas. Juntamente com as

54Idem. 55FILHO, Jorge da Cunha P. “Tropas militares luso-brasileiras nos séculos XVIII e XIX...” Op. Cit., pp. 4-11. 56COTTA, Francis A. No rastro dos Dragões: universo militar luso-brasileiro e as políticas de ordem nas Minas setecentistas. Belo Horizonte: UFMG, 2005. Tese de Doutorado, p. 126. 57FILHO, Jorge da Cunha P. “Tropas militares luso-brasileiras nos séculos XVIII e XIX...” Op. Cit., p. 8. 58AZEVEDO, João Lúcio de. “Política de Pombal em relação ao Brasil”. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, 1927, tomo especial, Congresso Internacional de História da América, v.3, p. 167-203. Apud: BOSHI, Caio. “Administração e administradores no Brasil pombalino: os governadores da capitania de Minas Gerais”. In: Tempo: Revista do Departamento de História da UFF, Niterói, v.7, n. 13, 2002, pp. 78-79. 59MAXWELL, Kenneth. Guerra e Império. In: Marquês de Pombal: paradoxo do iluminismo. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1996, p. 126.

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Ordenanças, as Milícias persistiriam como um dos seguimentos da organização militar em todo o

período colonial e ambas foram extintas apenas em 1831, com a criação da Guarda Nacional60.

Vale lembrar que no Brasil, ao contrário de Portugal, o caráter nivelador que se introduzia

com as Ordenanças gerava grandes expectativas. Se em Portugal a associação com as

Ordenanças era tida pela nobreza como desonrosa, devido à dissociação entre a expectativa de

um acréscimo de honra e a participação nesta força militar – que se traduzia numa resistência ao

recrutamento e a participação nos seus escalões mais altos61 – o cenário no Brasil era outro. Se

levarmos em conta que na América Portuguesa a hierarquia social se forjava na presença do

escravismo, o corte social proposto pelas Ordenanças era uma oportunidade de afirmação social

e de distinção entre os homens livres, sendo por isso a posse de uma patente nesta força militar

algo muito requisitado pelas elites locais62.

Importante também é notar que as Ordenanças como força militar dominante nas décadas

inicias da colonização, acabaram por moldar as estruturas políticas que se organizavam no nível

local intermediário dos poderes locais e o governo-geral. Com efeito, à medida que as capitanias

hereditárias passavam ao controle da Coroa, ou seja, tornavam-se território sob administração

direta da monarquia, o posto administrativo superior nos limites de sua jurisdição confundia-se

nominalmente com o de capitão-mor. Mas esse capitão-mor exercia também as funções relativas

ao Corpo das Ordenanças. Por sua vez estava subordinado ao governador-geral que exercia o

comando supremo das forças militares63.

AS TROPAS DE ORDENANÇAS EM MINAS GERAIS

A introdução das Companhias de Ordenanças em Minas Gerais data de 1709. Instituídas

por uma carta régia, elas foram sendo sistematicamente organizadas em diversas vilas e arraiais

da região mineira que haviam sido criadas recentemente, a saber, Ribeirão do Carmo, Vila Rica,

Sabará, Rio das Mortes, Serro Frio e Brejo do Salgado64.

Alguns autores têm destacado, direta ou indiretamente, a relevância do papel

desempenhado pelos Corpos de Ordenanças para a efetivação da colonização das Minas, na

medida em que auxiliaram na repressão interna de levantes, no controle de opiniões contrárias a

excessiva tributação a qual os povos da capitania estavam sujeitos, e no controle do inimigo, isto

60SALGADO, Graça. Fiscais e Meirinhos... Op. Cit., p.110. 61COSTA, Fernando Dores. “Milícia e sociedade: recrutamento”. In: HESPANHA, A M(Org). Nova História militar de Portugal... Op. Cit., p 75. 62PUNTONI, Pedro. “A arte da guerra no Brasil: tecnologia estratégias militares na expansão da fronteira da América portuguesa (1550-1700)...” Op. Cit., p. 45. 63Idem, p. 46. 64 FILHO, Jorge da Cunha Pereira. “Tropas militares luso-brasileiras nos séculos XVIII e XIX...” Op. Cit., p.13.

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é, do gentio, do quilombola e do vadio65. Além disso, na concepção das autoridades portuguesas,

os Corpos de Ordenanças funcionariam também como um instrumento pedagógico, a mostrar a

cada vassalo o seu lugar na ordem da sociedade66.

A partir das notícias do descobrimento de ouro na região de Minas Gerais a Coroa

procurou agilizar a montagem de estruturas administrativas, legais e militares que pudessem

implementar medidas de controle sobre o espaço mineiro. A Coroa desejava conhecer o território

tencionando controlá-lo, saber suas potencialidades, impedir extravios e sonegações de impostos,

e estabelecer a ordem pública. Num território vasto, inóspito e desconhecido, a informação e o

saber constituíam indispensáveis elementos de poder. Neste aspecto, os militares constituíram-se

em fortes colaboradores, pois ao disporem de mobilidade, possuíam vasto conhecimento do

território, “dois dos fatores indispensáveis à conservação da ordem e manutenção da tranqüilidade

pública”67.

Assim sendo, no campo da atuação militar, há de se destacar as especificidades da

capitania, dentre elas a preponderância dos assuntos relacionados às questões da manutenção

do controle social interno. Não se desconsidera que a preocupação com a ordem interna também

estivesse presente nas políticas militares das demais capitanias no período colonial. Porém, em

Minas Gerais, tal aspecto se sobressaiu dentre outros assuntos relacionados com o campo militar.

Assim sendo, em capitanias como Rio de Janeiro, Bahia e São Paulo a preocupação central era

com a defesa marítima. Outras capitanias como Goiás, Mato Grosso, Pará e mesmo São Paulo se

dedicavam, primordialmente, à defesa das fronteiras terrestres – que iam do Mato Grosso ao

Amapá. Já no sul, a preocupação maior girava em torno da expulsão dos espanhóis. Em Minas

Gerais devido à chegada de um grande afluxo populacional durante boa parte do século XVIII, em

decorrência do ouro, formou-se um clima de instabilidade social. Desta forma, o eixo central das

preocupações relacionadas ao campo militar ficou sendo a manutenção da ordem pública interna,

o que teria proporcionado uma certa especialização “policial” precoce 68.

Minas Gerais destacava-se dentre as outras capitanias da América Lusa pela sua

contribuição em termos econômicos para a Coroa, pois com o ouro daí advindo, tal região passou

65SODRÉ, Nelson Werneck. História militar do Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. Apud SILVA, Kalina V. O miserável soldo e a boa ordem da sociedade colonial... Op. Cit., p. 95. MELLO E SOUSA, Laura de. Desclassificados do ouro. 4ª Ed. Rio de Janeiro: Graal. Ver também: AMANTINO, Márcia. O mundo das feras: os moradores do sertão do Oeste de Minas Gerais – século XVIII. Rio de Janeiro: UFRJ, 2001. Tese de Doutorado. 2vls. Principalmente o cap. 4. 66A perspectiva pedagógica dos Corpos de Ordenanças foi destacada por PRADO Jr. Caio, Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Brasiliense; Publifolha, 2000. FAORO, Raimundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. São Paulo: Globo; Publifolha, Vol. 1, 2000. MELLO, Christiane F. Pagano de. Os Corpos de Auxiliares e de Ordenanças na segunda metade do século XVIII... Op. cit. Apud: COTTA, Francis A. No rastro dos Dragões... Op. Cit., pp. 242-243. 67COTTA, Francis A. No rastro dos Dragões... Op. Cit., p. 258. 68COTTA, Francis A. “Organização militar”. In: ROMEIRO, Adriana & BOTELHO, Ângela Vianna. Dicionário Histórico das Minas Gerais. 2ª ed. Revista. Belo Horizonte: Autênticas, 2004, p.218.

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a ter papel significativo no cenário mundial do século XVIII equilibrando as finanças portuguesas69.

No vasto Império Português setecentista, poucos foram os territórios em que as contradições do

viver em colônia se exprimiram de forma tão acentuada como nesta capitania. Esta sociedade

fluida, volúvel e complexa exigia dos administradores um cuidado maior que nem sempre as

autoridades reinóis distinguiam e entendiam, não estando à capacidade administrativa submetida

a regras ou normas genéricas que não levassem em conta as singularidades locais70. Não por

acaso, nesta capitania as Ordenanças tiveram ainda muito cedo um papel de controle e

morigeração das populações71.

Numa região marcada por alta densidade populacional, elevados índices de violência,

inúmeras jazidas de riquezas naturais e considerável imensidão territorial seriam impossíveis para

os Dragões, a Tropa Regular de Minas, desempenharem de maneira eficiente suas missões, se

não fosse pelo auxílio dado pelos Corpos de Auxiliares e de Ordenanças72.

Em cada vila das Minas, agrupadas em quatro comarcas (Vila Rica; Vila Real do Sabará

ou Rio das Velhas; Rio das Mortes; e Serro do Frio) existia um capitão-mor responsável por um

conjunto de Ordenanças de homens pardos, negros libertos e brancos73. À frente de cada

Ordenança estaria um capitão, conhecido por capitão-de-distrito, presente nos arraiais. Estes

capitães seriam os responsáveis diretos pela execução das determinações dos capitães-generais,

repassadas pelos capitães-mores. Num território tão vasto eram eles, coadjuvados, em casos

específicos, por outros corpos, os responsáveis por implementar as “políticas de ordem” em suas

localidades74.

Para o território das Minas Gerais, não se tem uma relação completa dos Corpos de

Ordenanças existentes na capitania. Entretanto, na segunda metade do século XVIII, algumas

autoridades régias residentes nas Minas, sob os auspícios da orientação de Pombal que visava

reestruturar as forças bélicas deste domínio luso, procuraram contabilizar os homens militarmente

úteis. É neste contexto que se tem a promulgação da carta régia de 22 de março de 1765, dirigida

ao governador de Minas para que:

“[...]mande alistar todos os moradores desta Capitania sem distinção de cores e classes, que pudessem pegar em armas, e formar por classes, Terços Auxiliares e Ordenanças de ambas as armas (infantaria e cavalaria), criando os oficiais precisos, e mandando disciplinar cada um dos Terços Auxiliares por Sargento-mor tirado das tropas pagas, que

69BOXER, Charles. “Vila Rica de Ouro Preto”. In: A Idade do Ouro do Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. 70MELLO E SOUZA, Laura de. “Prefácio”. In: SILVEIRA, Marco A. O universo do indistinto. São Paulo: Hucitec, 1999, p. 14. 71SOUZA, Bernardo Xavier Pinto e. “Memórias Históricas da Província de Minas Geraes”. In: RAPM. Belo Horizonte, 1908, vol. 8, pp. 523-639. 72COTTA, Francis Albert. No rastro dos Dragões... Op. Cit., p. 229. 73As vilas com população inferior a 100 moradores não teriam capitão-mor e o comando militar caberia ao capitão-de-distrito. Apud: COTTA, Francis Albert. No rastro dos Dragões... Op. Cit., p. 185. 74 Idem, p. 185-230.

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vencerão o mesmo soldo que os das tropas pagas, que estão nesta Capitania, pagos pelos rendimentos das Câmaras[...]” 75.

Deste modo, foram elaborados alguns mapas com a disposição das Companhias de

Ordenanças existentes na capitania, aos quais recorrermos agora para termos uma noção de seu

contingente, espalhados pelas comarcas mineiras, no ano de1764:

TABELA 1

Número de Cias. de Ordenanças existentes na capitania de Minas no ano de 1764 Comarcas Homens de Pé Pardos Pretos

Vila Rica 33 Cias. 21 Cias. 17 Cias. Rio das Mortes 51 Cias. 17 Cias. 15 Cias. Rio das Velhas 22 Cias. 15 Cias. 13 Cias. Serro Frio 47 Cias. 23 Cias. 13 Cias.

Fonte: Relação de 4 regimentos de cavalaria auxiliar e dragões de MG, 1764. AHU/MG/ cx.: 84; doc.: 70. Apesar de não constar na tabela acima as Ordenanças estavam divididas em “homens de

pé” e “homens de cavalo” bem como em tropas de brancos, pardos e negros, ou seja,

hierarquizada segundo a cor76. No Brasil, a designação infantaria ou cavalaria era aplicada

somente aos corpos militares Regulares e Auxiliares. De acordo com a legislação e com a

tradição lusitana, não haveria Ordenanças de homens de cavalo formadas por pardos ou negros

libertos. As Ordenanças de homens de cavalo eram destinadas aos brancos. Por outro lado, os

homens brancos pobres desprovidos de montaria e de escravo, responsável pelo trato do

semovente, seriam reunidos nas companhias de Ordenanças de Pé. Os homens pardos e negros

estariam agrupados, basicamente, no caso das Ordenanças em companhias de Ordenanças de

Pé; os Corpos de Pedestres e os Corpos de Homens-do-Mato77.

Para a comarca de Vila Rica temos ao todo 33 Companhias de Ordenanças de brancos.

Levando-se em conta que cada companhia tinha em média 60 soldados, isso para quase todo o

75AHU/MG/cx.: 85; doc.: 42. 76Conforme ressaltou Stuart Schwartz, devido a forte presença do escravismo a sociedade colonial brasileira, desde seus primórdios, teve suas relações sociais estruturadas a partir da cor e da raça. Assim, estes dois componentes também hierarquizaram e criaram critérios de status que permearam a vida social da colônia. SCHWARTZ, Stuart. Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial – 1550-1835. São Paulo: Cia. das Letras, 1988.Ver capítulo 9. 77COTTA, Francis Albert. No rastro dos Dragões... Op. Cit., p. 186.

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século XVIII78, pode-se considerar que para aquele ano de 1764 a comarca dispunha de um

efetivo de 1.980 homens.

Apesar da dificuldade de se conhecer o número de oficiais de mais alta patente dos

Corpos de Ordenanças existentes na comarca, devido à falta de estatísticas, pelos dados

coletados podemos ter uma noção da distribuição dos oficiais pelas vilas e arraiais da comarca de

Vila Rica no período abordado pela pesquisa:

TABELA 2

Distribuição dos oficiais de Ordenanças pelas vilas, arraiais e freguesias da comarca de Vila Rica – 1735-1777

Localidade Freqüência % Ouro Preto 26 19,1 Mariana 18 13,2 Itaubira 4 2,9 Congonhas 4 2,9 São Bartolomeu 5 3,7 Pinheiros 1 0,7 Gama 3 2,2 Camargo 3 2,2 Catas Altas 7 5,1 Mato Dentro 2 1,5 Bocaina 2 1,5 Passagem 4 2,9 Brumado 3 2,2 Santa Bárbara 2 1,5 Taquaral 3 2,2 Morro de Santana 4 2,9 Inficcionado 4 2,9 Bacalhau 2 1,5 Ouro Branco 3 2,2 Guarapiranga 8 5,9 Gualachos do Norte 1 0,7 António Pereira 4 2,9 São Caetano 3 2,2 São José da Barra Longa 3 2,2 São Sebastião 5 3,7 Caquende 2 1,5 Cachoeira do Campo 4 2,9 Itatiaia 1 0,7

78Foi o que constatamos com a análise das cartas patentes dos oficiais enfocados. Nestas cartas patentes vinha disposto o número de soldados que ficariam sob o comando dos oficiais, número este que girava em torno de 60 homens.

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António Dias 3 2,2 Itaverava 1 0,7 Furquim 1 0,7

Total 136 100 Fonte: cartas patentes presentes no Arquivo Histórico Ultramarino/Projeto Resgate – Documentação avulsa de Minas Gerais/Cd-rom/ referentes aos oficiais de Ordenanças.

Como se pode constatar pela tabela acima, longe de apresentarem uma distribuição

uniforme, os oficiais concentravam-se de forma irregular pela comarca, sendo que sua maior

incidência era nas principais vilas, arraiais e freguesias locais onde a circulação de pessoas,

presença de autoridades, dinâmica do comércio e da produção agrária era mais acentuada. O

maior número dos oficiais se concentrava nas cabeças da comarca, isto é, em Mariana e Ouro

Preto que juntas dispunham de 32, 3% dos mesmos. Outros arraiais e freguesias importantes da

comarca também possuíam um número considerável de oficiais de Ordenanças tais como

Guarapiranga e Catas Altas, pertencentes ao termo de Mariana, que agrupavam 11% destes

indivíduos dentro de nossa amostragem. A tabela acima também permite destacar a presença de

oficiais de Ordenanças em boa parte das vilas, arraiais e freguesias que compunham a comarca

de Vila Rica, inclusive nos lugares mais longínquos, a exemplo do que relata a historiografia79.

A fixação destes homens de patente em diversas localidades era importante para os

propósitos normatizadores da Coroa e, por isso mesmo, rigorosamente exigida. O fato de o

patenteado perder seu posto, caso se retirasse de sua região, reforça a tese do interesse da

Coroa em fixá-lo em determinada localidade, pois, desta forma, os capitães-generais e capitães-

mores teriam, teoricamente, um maior controle sobre a população, que formalmente pertenceria à

Ordenança de sua região.

A principal função do capitão-mor era saber quantas pessoas existiam na localidade em

que atuava capazes de pegar em armas, ou seja, ter conhecimento da população militarmente útil,

o que lhes atribuía um forte poder à escala local80. Seguindo essa lógica, os capitães-de-distrito e

demais oficiais conheceriam os moradores de sua Ordenança e, conseqüentemente, os

estrangeiros que por lá andassem81.

Além disso, a utilidade do conhecimento que esses oficiais adquiriam ao se espalharem

por diferentes localidades e aí se fixarem era útil para a Coroa também em tarefas relativas aos

levantamentos de dados. Com as informações coletadas por estes oficiais, elaboravam-se mapas

das populações, estatísticas acerca da estrutura econômica das localidades - incluindo número de

79Neste sentido ver: PRADO Jr. Caio, Formação do Brasil Contemporâneo... Op. Cit., p. 324. FAORO, Raimundo. Os donos do poder... Op. Cit., p. 222. 80COSTA, Fernando Dores. “Milícia e sociedade: recrutamento”. In: HESPANHA, A M. (Org). Nova História militar de Portugal... Op. cit., p 74. 81COTTA, Francis Albert. No rastro dos Dragões... Op. cit., p. 244.

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plantações e escravos, avaliavam-se as possibilidades de rendas e procedia-se, de acordo com a

conveniência, a abertura ou fechamento de caminhos82. Maria Alexandre Lousada destaca que

“saber quantos são e onde se localizava a população das Minas é considerado o primeiro passo

para o exercício mais eficaz da vigilância, da manutenção da ordem e da repressão”83.

Maria Elisa Linhares Borges destaca a participação dos oficiais militares pertencentes aos

Corpos Auxiliares e Ordenanças em ações de apoio logístico e mesmo no fornecimento de

conhecimentos locais para as expedições cartográficas: “O conhecimento que os paisanos

armados tinham do território não só viabilizavam as atividades corriqueiras da vida militar, como

também facilitava a locomoção do cartógrafo em áreas por ele desconhecidas”84.

Vejamos então mais detalhadamente como estavam distribuídos os oficiais pela comarca

cruzando os dados referentes à disposição dos oficiais por localidade com as patentes possuídas:

TABELA 3 Número de ocupantes dos postos de mais alta patente das Ordenanças distribuídos pela

comarca de Vila Rica – 1735-1777 Patente Localidade

Capitão-mor Sargento-mor Capitão Total

Ouro Preto 3 7 16 26 Mariana 4 3 11 18 Itaubira 1 2 1 4 Congonhas 1 0 3 4 São Bartolomeu 1 2 2 5 Pinheiros 0 0 1 1 Gama 1 1 1 3 Camargo 0 0 3 3 Catas Altas 1 0 6 7 Mato Dentro 0 1 1 2 Bocaina 0 0 2 2 Passagem 0 1 3 4 Brumado 0 1 2 3 Santa Bárbara 1 0 1 2 Taquaral 0 0 3 3 Morro de Santana 0 0 4 4 Inficcionado 0 0 4 4 Bacalhau 0 0 2 2 Ouro Branco 1 1 1 3

82Idem. Ver também: ALDEN, Dauril. Royal government in colonial Brazil: with special reference to the administration of the Marquis of Lavradio... Op. Cit., pp. 444-445. 83LOUSADA, Maria Alexandra. Espaços de sociabilidade em Lisboa: finais do século XVIII – 1834. Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 1996. Tese de Doutorado, p. 70 Apud: COTTA, Francis Albert. No rastro dos Dragões Op. Cit., p. 247. 84BORGES, Maria Eliza Linhares. “Cartografia, poder e imaginário: produção cartográfica portuguesa e as terras de além-mar”. In: SIMAN, Lara Mara de Castro & FONSEA, Thais N. de Lima (Orgs). Inaugurando a história e construindo a nação: discursos e imagens no ensino de história. 1º ed. Belo Horizonte, 2001, p. 112. Apud: COTTA, Francis Albert. No rastro dos Dragões... Op. Cit., p. 247.

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Guarapiranga 1 1 6 8 Gualachos do Norte 0 1 0 1 António Pereira 0 0 4 4 São Caetano 0 0 3 3 São José da Barra Longa 0 1 2 3 São Sebastião 0 0 5 5 Caquende 0 0 2 2 Cachoeira do Campo 0 1 3 4 Itatiaia 1 0 0 1 António Dias 0 0 3 3 Itaverava 1 0 0 1 Furquim 0 0 1 1

Total 17 23 96 136 Fonte: cartas patentes presentes no Arquivo Histórico Ultramarino/Projeto Resgate – Documentação avulsa de Minas Gerais/Cd-rom/ referentes aos oficiais de Ordenanças.

Para exemplificarmos a disposição acima constatada, analisemos a ocupação de um dos

postos mais alto da hierarquia nas cabeças da comarca, o de capitão-mor, posto que conferia a

seus ocupantes “nobreza vitalícia” e onde a rotatividade geralmente era menor85 Em Ouro Preto a

ocupação do posto mencionado foi feita por apenas 3 indivíduos ao longo de todo período

abordado pela pesquisa. O primeiro dos capitães-mores de Ouro Preto foi João Freire dos Santos.

Não conseguimos descobrir quando ganhou a patente, mas sabemos que ocupou o posto até

1740 quando foi substituído por António Ramos dos Reis86. Este ocupou o dito posto de 1741 a

1761, quando falece87. Para substituí-lo é escolhido José Alves Maciel que o ocupa até finais do

século XVIII88.

A cidade de Mariana (antiga Vila do Carmo) também teve uma pequena rotatividade na

ocupação do principal posto de Ordenanças. O primeiro de seus capitães-mores foi Rafael da

Silva e Sousa que ocupou o posto até 1744/1745 aproximadamente, quando é nomeado para o

cargo de intendente da fazenda real no arraial de São Luís, distrito de Paracatu, comarca de

Sabará e para lá se muda89. Em seu lugar assume João de São Boaventura Vieira, que ocupa o

posto até 1757, quando falece90. Para substituí-lo é escolhido José da Silva Pontes, capitão-mor

até 177591, quando assume seu filho homônimo que exerce o posto até finais do século XVIII92.

A pequena rotatividade no posto de capitão-mor pode ser explicada, obviamente, pelo fato

de ser este um cargo vitalício mas também pelo fato de ser o mais elevado da hierarquia militar. 85RODRIGUES, José Damião. “A guerra no Açores...” Op. cit., p. 251. 86AHU/MG/cx.: 39; doc: 67. 87Ver: CPOP, 1º ofício – Testamento de António Ramos dos Reis. Livro 20, folha 74, (1761). 88Ver: AHU/MG/cx.: 85; doc.: 34. 89AHU/MG/cx.: 47; doc.: 28. 90Ver: CSM, 1º ofício – Inventário post-mortem de João de São Boaventura Vieira. Códice 13, auto 429, (1757). 91Ver: AHU/MG/cx.: 108; doc.: 45

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Como só poderiam ser ocupados pelas “pessoas principais” das localidades, como a própria

legislação estabelecia, atestava o prestígio de seu ocupante, e aqueles que aí chegassem aí

procuravam se manter.

Situação diferente encontramos na ocupação do posto de capitão. Os capitães eram os

mais bem distribuídos, existiram em maior número - estando presentes em quase todas as

localidades - e tinham uma rotatividade mais acentuada. Ouro Preto, por exemplo, teve ao longo

do período enfocado 16 capitães de Ordenanças, nas forças de cavalo e de pé. Não descreverei

as mudanças de ocupação como fiz anteriormente, até porque ficaria demasiado grande, mas

importa sublinhar que pela análise das cartas patentes passadas, referentes ao posto de capitão,

constatamos que os principais motivos que levavam a esta constante troca no referido posto

eram: ausência – para o reino, para outras partes de Minas ou para outras capitanias; desistência

–por incapacidade advinda de doenças e velhice; promoções – o posto de capitão foi, em muitos

casos, a porta de entrada para estes indivíduos atestarem seu valor e conseguirem alcançar uma

patente mais alta; e, claro, falecimento.

Outro posto de destaque era o de sargento-mor que como mostra a tabela existiram em

número significativo em toda a comarca e se concentravam nas principais vilas e arraiais, como

dito anteriormente.

A despeito de o corpo militar ser designado por sua localidade, abundavam casos em que

o regimento, companhia ou terço era conhecido pelo nome do seu comandante93:

92Ver: CSM, 1º ofício – Inventário post-mortem de José da Silva Pontes. Códice 156, auto 3264, (1800). 93COTTA, Francis Albert. No rastro dos Dragões... Op. Cit., p. 114.

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TABELA 4

Resumo geral das Forças Militares de Minas em 1768

Número das Cias. Força Número de Praças

67 Cavalaria Ligeira, Dragões e Auxiliares

dos regimentos de Fraga, Souza, Azevedo, Soutto e Lacerda

4.163

167 Infantaria de Ordenanças dos Corpos

de Pontes, Maciel, Nogueira, Carvalho, Vieira, Neves, Villar, Monroy e Coelho

11.575

99 Pardos Libertos dos referidos distritos 6.020

55 Pretos Libertos do referidos distritos 3.442

388 Total 25.200

Fonte: Mapas sobre capitação de escravos, entradas, dízimos, escravos, forças militares de Minas e cálculos da Provedoria, 1768. AHU/MG/cx.: 93; doc.: 58.

Como mostra a tabela acima, as Companhias de Ordenanças em Minas eram associadas

aos nomes de seus comandantes. Por exemplo, o Corpo de Pontes remetia-se ao regimento

comandado pelo capitão-mor José da Silva Pontes, e o Corpo de Maciel remetia-se ao regimento

comandado pelo capitão-mor José Alves Maciel. Ressaltava-se, nestes casos a figura daquele

oficial que estava no comando, que organizou, fardou e equipou o corpo militar com seus próprios

recursos financeiros94.

A historiografia tem chamado atenção para o fato de que na América Portuguesa, diante

da dificuldade da Metrópole em financiar as despesas militares da colônia, não raro se

transferiram aos colonos os custos de sua própria defesa que assumiam, através de tributos e

trabalhos, os altos custos da manutenção do Império. Inúmeros foram os expedientes utilizados

pelas autoridades militares para a defesa das conquistas. Constava entre eles, à mobilização

periódica da população, a requisição compulsória de seus escravos para a construção e reparo de

fortalezas, a tentativa de arregimentação de homens de qualquer “qualidade” - incluindo índios e

vadios - para o preenchimento das tropas e para socorrer a Coroa nos momentos de suposto

94Idem.

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perigo, e o sustento das mesmas95. Tais imperativos facilitavam o atrelamento da figura do

comandante com o seu corpo militar.

O comandante do corpo militar assumia assim o papel de cabeça; os oficiais, sargentos,

cabos e soldados seriam os membros, denotando que o universo militar, e como não poderia

deixar de ser, era também influenciado pelo paradigma corporativista96 segundo o qual o indivíduo

não existe sozinho e sim como parte de um todo ocupando um lugar na ordem, uma tarefa ou

dever social97.

Ana Paula Pereira Costa é Doutoranda em História Social pelo PPGHIS/UFRJ

95BICALHO, Maria Fernanda A cidade e o Império... Op. Cit.,pp. 305-318. 96COTTA, Francis Albert. No rastro dos Dragões... Op. Cit., p. 114. 97HESPANHA, António M. Panorama Histórico da Cultura Jurídica Européia. Madri: Editorial Tecnos, 1998, pp. 59-61.

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ASPECTOS DA ADMINISTRAÇÃO PORTUGUESA NA AMÉRICA: UM ESTUDO DE CASO SOBRE AS FUNÇÕES DO PROVEDOR-MOR DA

BAHIA NO SÉCULO XVIII

Charles Nascimento de Sá

Resumo: O artigo analisa o Regimento do Provedor Mor da Fazenda do Estado do Brasil de 1762. Esse documento apresenta as funções e tarefas que o provedor mor devia realizar na inspeção dos comboios provenientes da Europa e das Índias, que aportavam em Salvador. Analisar os aspectos da administração lusitana no Brasil e as tarefas que deviam ser efetuadas pelo provedor é o objetivo desse artigo. Verificar o aparato burocrático, o comércio marítimo entre Brasil e o Império Português, os mecanismos usados para se evitar desvios e sonegações e as obrigações quanto ao concerto e manutenção das provisões nas naus são os outros objetivos desse trabalho. Palavras-chave: Regimento, Administração, Comércio marítimo.

Abstract: The article analyzes the Regiment of Supplying Mor of Finance of the State of Brazil 1762. That document presents the functions and tasks that the supplying mor should accomplish in the inspection of the coming convoys of Europe and of India, that contributed in Salvador. To analyze the aspects of the administration lusitana in Brazil and the tasks that should be made by the supplier is the objective of that article. To verify the bureaucratic apparatus and the mechanisms used to avoid deviations and defraudments as well as its obligations with relationship to the concert and maintenance of the provisions in the naus are the other objectives of that work. Keywords: Regiment, Administration,Marine trade.

A construção do Império Marítimo Português decorreu de uma série de fatores interligados.

Esses elementos, que fizeram de Portugal, país pequeno e sem importância política e econômica

na Europa, um dos maiores impérios de que se tem notícia, são motivos de assombro e mesmo

de admiração1.

Ora, como a empresa mercantil lusitana foi gerida nos séculos em que Portugal deteve o

controle da América Portuguesa? Quais as atribuições que os administradores lusitanos tinham

em seus cargos e funções desenvolvidos no cotidiano colonial? A manutenção de um império tão

vasto foi surpreendente, ainda mais quando se sabe que esse domínio durou quase quatrocentos

anos e que Portugal era minúsculo em comparação com a Colônia.

Entender a administração portuguesa e a forma como ela se constituiu é um dos objetivos

deste artigo. Além disso, as funções reservadas ao provedor-mor, as regulamentações de seus

atos e os limites de sua atuação são outras questões que se pretende entender. Para isto será

analisado o Regimento do Provedor Mor da Fazenda do Estado do Brasil de 17522, instrumento

que regulava o abastecimento e gerência dos navios que chegavam ao porto de Salvador. Esse

11 BOXER, Charles R. O Império Marítimo Português: 1415 – 1825. Tradução: Ana Olga de Barros Barreto. São Paulo: Companhia das Letras. Título original: The Portuguese seaborne empire 1415 – 1825. 2 REGIMENTO do Provedor-Mor da Fazenda do Estado do Brasil de 1752. In. Projeto Resgate de documentação histórica – Barão do Rio Branco – Documentos manuscritos avulsos da Capitania da Bahia (Castro e Almeida) 1613 –

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documento encontra-se disponível na coleção de cd-roons do Arquivo Ultramarino de Portugal.

Sua elaboração fez parte do Projeto Resgate de documentação histórica – Barão do Rio Branco.

Sua armazenagem na mídia está no arquivo de número 003, pasta 001, do cd-rom de número 25.

No Arquivo Histórico Ultramarino, sua caixa é a de número 3, documento de número 291. Consta

de 24 páginas e 12 artigos. Para análise e contextualização da sociedade baiana do período, em

especial a cidade de Salvador, foram utilizadas as obras clássicas de Antonil – Cultura e

Opulência do Brasil, e Vilhena – A Bahia no século XIX, com comentários e organização de Braz

do Amaral. Além dessas fontes primárias, livros e artigos sobre a Bahia e a América Portuguesa

foram utilizados como fonte secundária.

O cargo de provedor-mor era um dos vários que compunham a burocrática administração

portuguesa, em seu Império Ultramarino. A função do responsável por esse cargo era a de

supervisionar e abastecer (daí o nome de provedor) os navios que desembarcassem nos portos

portugueses.

A construção do Império Marítimo Português foi um elemento que esteve em consonância

com a emergência de uma série de fatores, como o desenvolvimento de novas práticas mercantis,

a busca por minerais preciosos (especialmente o ouro), as lutas religiosas e a expansão da

Reforma Protestante e da Contra-Reforma na Europa.

Além desses problemas, outros intrínsecos à dinâmica cristã na península ibérica, como as

lutas contra os invasores mouros, produziram o combustível necessário à expansão marítima

lusitana. Os infiéis, como eram chamados os mulçumanos em Portugal e na Espanha,

representavam a principal ameaça à continuidade territorial e política lusitana. Esse último fator foi

o elemento que possibilitou à coroa portuguesa um de seus maiores incentivos para adentrar em

mares nunca dantes navegados.

Para conseguir lutar contra um inimigo numérica e tecnologicamente superior, Portugal

necessitaria do auxílio de outras nações. Nesse período, havia na Europa a crença na existência

do reino cristão de Preste João. Esse reino localizar-se-ia na África e seu governante tinha sido

batizado pelo apóstolo São Tomé. Possuía milhares de soldados, além de uma riqueza

inesgotável em ouro. Conseguir o apoio de Preste João representaria a vitória de Portugal contra

os mouros.

Desta forma: [...] os quatros motivos principais que inspiraram os dirigentes portugueses (reis, príncipes, nobres ou comerciantes) foram, em ordem cronológica, mas sobrepostos em diversos graus: (01) o fervor

1807. Conselho Ultramarino/Brasil, Arquivo Histórico Ultramarino. Cd 25/25, arquivo 003, pasta 001. AHU, caixa nº 3, doc. nº 291. Rio de Janeiro: LPC Datta Imagem, 2004.

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empenhado na cruzada contra os mulçumanos; (02) o desejo de se apoderar do ouro da Guiné; (03) a procura de Preste João; (04) a busca de especiarias orientais3.

Esses motivos foram salutares para a conquista de novas terras e construção de laços

mercantis que fortaleceram a monarquia portuguesa no século XV frente a outros reinos europeus

mais poderosos, especialmente a Espanha.

A expansão marítima portuguesa, assombro para os habitantes desse país, bem como

para os demais europeus, que não davam muito crédito ao minúsculo Estado lusitano, concedeu a

Portugal destaque na política e na economia européia dos séculos XV e XVI. Desse modo, à

medida que novas terras eram “descobertas” e incorporadas ao mando de El-rei, ia se

consolidando o senhorio lusitano sobre imensas áreas do globo4.

Essa expansão mercantil rumo ao Oriente teve também desvios para o oeste. Já há muito

tempo, era conhecida, entre marinheiros e cartógrafos europeus, a possibilidade de existência de

terras, seguindo o poente no oceano Atlântico. Foi desse modo que Espanha e Portugal

realizaram o Tratado de Tordesilhas dividindo as terras a serem descobertas entre si. A chegada

de Cristóvão Colombo ao continente que seria conhecido como América, revelou estarem corretas

as suspeitas geográficas de então.

A chegada dos portugueses à América aconteceu em 22 de abril de 1500, conforme se

encontra documentado na carta enviada por Pero Vaz de Caminha, escrivão da esquadra

comandada pelo capitão Pedro Álvares Cabral. O conhecimento desse novo território, porém, não

suscitou no governo português grandes interesses. Isso foi motivado pelos maiores dividendos

que eram recolhidos no comércio de especiarias com o Oriente e pela observação de ser o

território americano desprovido de ouro.

A América Portuguesa ficou sendo explorada por navios e mercadores franceses e

ingleses, limitando-se o governo português a algumas expedições de reconhecimento. Isso,

porém, mudou a partir do momento que o comércio com o Oriente não conseguiu produzir os

mesmos ganhos de antes. Outro fator a incentivar essas mudanças se encontrava na necessidade

de se manter sob o controle português as imensas terras da América. Havia ainda o imperativo de

dotar essa região de uma administração que pudesse sedimentar a soberania lusitana no novo

continente, evitando perder o senhorio do território, ao mesmo tempo em que seria construída

uma economia capaz de fomentar o desenvolvimento econômico e o povoamento da região,

elementos básicos para a exploração e catequese da população nativa5.

3 BOXER, Charles R. O Império Marítimo Português: 1415 – 1825. Tradução: Ana Olga de Barros Barreto. São Paulo: Companhia das Letras. Título original: The Portuguese seaborne empire 1415 – 1825. P. 34. 4 ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O Trato dos Viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul.São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 5 TAVARES, Luiz Henrique Dias. História da Bahia. 10. ed. São Paulo: Editora UNESP, Salvador: Edufba, 2001.

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Como mecanismo para o aproveitamento da Colônia, foi iniciado o plantio de açúcar,

produto que em pouco mais de trinta anos, após o início da colonização, se consolidou no

território, elevando o Brasil a um patamar essencial ao desenvolvimento da economia do reino

português. O desenvolvimento da colônia ultramarina portuguesa na América foi um fator salutar

para o sustento do erário régio. O avanço da lavoura canavieira nessas novas paragens

possibilitou a Portugal usufruir uma série de rendimentos, que até então eram sustentados pelo

comércio com as Índias. Desse modo, a ligação entre a Colônia e a Metrópole tornou-se cada vez

mais indispensável para o sustento da economia lusitana.

A gênese econômica da América portuguesa, pautada primeiramente no desenvolvimento

da lavoura canavieira, seguido nos séculos XVII e XVIII pela pecuária, algodão e ouro, bem como

no intenso comércio de escravos africanos, se encontra no ponto mais sensível para entendermos

o alargamento da empresa mercantil portuguesa na América. A consolidação do Brasil como o

principal sustentáculo da economia lusa envolveu a constituição de uma administração altamente

sofisticada e moderna. Era preciso gerenciar a sociedade e a economia colonial em conformidade

com as necessidades da Metrópole.

Nesse âmbito, a consolidação da Bahia como mais importante centro econômico a partir

do final do século XVII, fez de Salvador o mais importante porto brasileiro até meados do século

dezoito. No momento em que o Regimento foi apresentado, o porto de Salvador já começara a

perder sua hegemonia econômica para o Rio de Janeiro. Apesar disso, ele ainda era um dos mais

significativos das Américas, principalmente pelo seu destacado tráfico de escravos e pelo enorme

fluxo de mercadorias dali exportadas6.

A Bahia consolidou sua posição após a invasão holandesa em Pernambuco. De fato,

durante o período de dominação dos Países Baixos no Nordeste, muitos senhores de engenho

abandonaram suas propriedades e vieram residir na Bahia. No Recôncavo, receberam terras e

auxílio de parentes e do governo, o que permitiu o crescimento da lavoura na província e a

superação mercantil face à Pernambuco.7

Inserida no contexto mais amplo do Império Português, a província baiana contou desde o

início da colonização, com uma ligação intensa entre sua economia e a de outros portos na África

e Ásia. Tem especial destaque para essa região o porto africano de São Jorge da Mina, o mais

importante comprador do fumo de rolo produzido no Recôncavo Baiano, o qual foi durante muito

6 VERGER, Pierre. Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o golfo de Benin e a Bahia de todos os Santos, dos séculos XVII a XIX. Trad. Tasso Gadzanis. 4. Ed. Salvador: Corrupio, 2002. 7 SCHWARTZ, Stuart B. Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial. Tradução Laura Teixeira Moura. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. Título original: Sugar Plantations in the Formation of Brazilian Society, Bahia, 1550 – 1835.

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tempo a principal moeda de troca por escravos8. A Bahia tinha, desse modo, uma dependência

estreita para com outras partes do Império. Isolamento, comercial ou social, não era um

componente que fizesse parte da sociedade mercantil do período.

Desse modo, o estudo sobre tão importante pólo econômico é significativo na

compreensão do passado colonial da América portuguesa. O açúcar foi o mais importante produto

cultivado na Bahia. Porém não foi o único: algodão, fumo, mandioca, cachaça, couro, madeira e

outras mercadorias eram despachadas pelo porto de Salvador. Navios das mais diferente nações

faziam escala nessa cidade, para desespero da administração colonial. Práticas contrárias à

manutenção do exclusivismo mercantil eram praticadas pela maioria dos comerciantes, sendo

comum também nas ações cotidianas dos que eram pagos para coibi-las9.

Nesse modelo de colonização, que sabiamente Caio Prado Júnior10 chamou de

exploração, é necessário enfatizar que não havia o desejo ou a intenção única de sugar

inapropriadamente toda a riqueza da terra em favor do Reino. Afinal, se tal ocorresse, a empresa

mercantil deixaria de dar lucro. O que acontecia era muito mais a necessidade de se realizar, em

território longínquo e desconhecido, um empreendimento que gerasse receita e fosse viável à

exploração econômica, transformando aquela região em uma continuação de Portugal.

Exploração e povoamento se constituíram como um elemento histórico próprio. Ao longo

dos séculos de sedimentação portuguesa na América, esses dois elementos se firmaram como

necessários aos grupos dirigentes constituídos durante esse desenvolvimento. Esse núcleo

firmou-se como a elite colonial, mantendo o controle do território no afã de desenvolver e explorar

suas riquezas11.

Essa elite mercantil e política, formou-se no alargamento das diversas lavouras já citadas,

e na expansão do capital mercantil luso-brasileiro. O Regimento do Provedor-Mor permite que se

tenha uma idéia de como a ação desses grupos era feita e de que forma a empresa colonial ia

sendo gerenciada. A administração portuguesa, inserida nos quadros do que se convencionou

chamar Antigo Regime, teve uma “indiferenciação, típica do Antigo Regime, entre as atribuições

executivas, legislativas e judiciárias”12.

O documento que analisamos refere-se especificamente à cidade da Bahia. Pode-se

raciocinar, no entanto, que o modelo deveria ser semelhante para outros portos e regiões.

Saliente-se ainda o fato de ser Salvador, nesse período, um dos mais importantes portos do 8 VERGER, Pierre. Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o golfo de Benin e a Bahia de todos os Santos, dos séculos XVII a XIX. Trad. Tasso Gadzanis. 4. Ed. Salvador: Corrupio, 2002. 9 VILHENA, Luís dos Santos. A Bahia no século XVIII. Salvador: Itapuã, 1969. (coleção baiana). 10 PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. 23. ed. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1995. 11 FLORENTINO, Manolo & FRAGOSO, João. O Arcaísmo como projeto: mercado atlântico, sociedade agrária e elite mercantil em uma economia colonial tardia: Rio de Janeiro, 1780 – 1840. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

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Império Marítimo Português e se tem um painel a ser seguido em outras áreas do Reino. Afinal “o

comércio com os portos deste continente consiste, na extração de carnes secas e salgadas do Rio

Grande de São Pedro do Sul, bastante farinha de trigo, muita couranca e alguns queijos e muito

sebo em pães e velas13”.

No período colonial, bem como posteriormente no império brasileiro, foi grande o contato

entre os portos do Brasil e os de outras regiões pertencentes a Portugal, como Angola, Guiné,

Goa, Moçambique, ilhas do Atlântico, dentre outras áreas que mantinham ativo contato com o

Brasil. O Regimento enfatiza essa importância ao deixar em evidência as necessidades em

“desembarcar os materiais que forem de meu cabedal do meus armazéns de Guiné e Índia para

provimento dos daquela cidade (1752, p. 4)”, no que se refere, obviamente a Salvador. As trocas

de mercadorias entre essas duas partes do Império, ainda que sempre se tentando restringir,

eram uma prática corriqueira.

Como principal pólo econômico e mercantil da Colônia, a Bahia tornou-se, ao longo de

quatro séculos, o mais promissor dos territórios que constituíam a América lusitana. Apesar do

desenvolvimento inicial de Pernambuco, as invasões holandesas, cujas batalhas danificaram as

plantações e endividaram os senhores de engenho pernambucanos, impossibilitaram que a

capitania atingisse um patamar de desenvolvimento similar ao alcançado no século XVI. Antonil já

apontava que, mesmo com uma quantidade de engenhos muito superior à da Bahia, a capitania

de Pernambuco não conseguia alcançar a produção baiana14.

De grande centro produtor de cana-de-açúcar, Pernambuco foi alçado à categoria de

segunda maior economia, posto que perdeu no século XVIII, quando da descoberta de ouro em

Minas. Esse fenômeno terminou beneficiando o desenvolvimento do Rio de Janeiro. A Bahia, que

tinha assumido desde o século XVII a dianteira na economia colonial, manteria essa característica

por boa parte dos séculos seguintes, só vindo a perdê-la nas décadas finais do XIX 15.

A produção de açúcar, aliada ao desenvolvimento de outras culturas, possibilitou a

Salvador e seu Recôncavo obter um crescimento surpreendente. Além desse produto, o fumo, o

couro, a cachaça, a farinha de mandioca, um ativo comércio de cativos, bem como outros

produtos, dotavam o mercado dessa cidade de importante destaque no mundo atlântico lusitano16.

12 GOUVÊIA, Maria de Fátima Silva. Administração. In. VAINFAS, Ronaldo. Dicionário do Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000. P. 17. 13 VILHENA, Luís dos Santos. A Bahia no século XVIII. Salvador: Itapuã, 1969. Vol.1. (coleção baiana). P. 57. 14 ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil. Disponível em: <http//www.bibvirt.futuro.usp.br> acesso em: 20 abr. 2005. 15 SCHWARTZ, Stuart B. Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial. Tradução Laura Teixeira Moura. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. Título original: Sugar Plantations in the Formation of Brazilian Society, Bahia, 1550 – 1835. 16 BARICKMAN, Bert Jude. Um Contra-ponto baiana: açúcar, fumo, mandioca e escravidão no Recôncavo, 1780 – 1860. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. Título original: A Bahian Counterpoint: Sugar, Tobacco, Cassava and Slavery in the Recôncavo, 1780 – 1860.

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A safra de cana era acompanhada pela intensificação da exploração da mão-de-obra

escrava. Nos períodos em que ela durava, o engenho era utilizado vinte e quatro horas por dia.

Negros se revezavam em suas tarefas para produzir o ouro branco. Depois de fabricado, era

preciso encaminhar o açúcar para o porto17. Nesse momento, o tráfico de embarcações na Baía

de Todos os Santos era ainda maior. Muitos comerciantes ou mesmo senhores de engenho

negociavam diretamente com capitães de navio e representantes europeus sobre o preço e a

forma de pagamento da mercadoria.

Após ser encaixotado, o açúcar seria transportado para os navios nos quais seria

encaminhado até os portos europeus. O fumo de corda seguia também nessas embarcações pois

era amplamente consumido pela população da Europa e África na época. O hábito de mascar era

ainda muito comum e não havia sido suplantado pelo de fumar.

A preocupação com a vistoria pela qual devia passar todas as naus que aportassem em

Salvador transformava-se em imperativo para a manutenção de um eficiente fluxo de produtos

desse porto para o de Lisboa. Evidenciando essa preocupação, o Regimento tem logo início com

o aviso de que todas as naus que porventura aportassem ali deviam passar por vistorias para que

pudessem prosseguir em suas viagens, sem causarem prejuízos à Real Fazenda portuguesa.

Na Baía de Todos os Santos, ao lado das grandes naus que singravam o Atlântico, no

intuito de alcançar a Europa ou a África, havia também as pequenas embarcações que traziam,

dos mais distantes pontos do litoral baiano, gêneros de primeira necessidade que seriam

consumidos pelos moradores de Salvador ou então adquiridos pelos senhores de engenho para

serem levados às suas lavouras.

O comércio de farinha de mandioca era, entre esses produtos internos, o mais destacado.

Sua importância, na dieta alimentar baiana, tornava-o imprescindível nas refeições tanto das

grandes e abastadas famílias como nas mais humildes. Podia-se faltar tudo, menos a farinha.

Outros produtos como frutas, feijão, aipim, carne seca ou verde, frutos do mar, pescados, beijus,

gomas, temperos eram também conduzidos pelas pequenas embarcações, sua oferta, porém, não

era regular18.

Era, portanto, intenso o tráfego de pessoas e mercadorias que constantemente se

deslocavam para as imediações da capital baiana. O centro da cidade, seu mercado e celeiro

público fervilhavam de pessoas comprando e vendendo produtos. O celeiro público era o local

para onde era direcionado a maior parte dos produtos que seriam posteriormente vendidos na

cidade da Bahia.

17 VILHENA, Luís dos Santos. A Bahia no século XVIII. Salvador: Itapuã, 1969. Vol. 1. (coleção baiana). 18 BARICKMAN, Bert Jude. Um Contra-ponto baiana: açúcar, fumo, mandioca e escravidão no Recôncavo, 1780 – 1860. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. Título original: A Bahian Counterpoint: Sugar, Tobacco, Cassava and Slavery in the Recôncavo, 1780 – 1860.

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Um grande número de vendedores tinha nesse espaço seu local de trabalho e de ganho. O

cenário que se vislumbra nesse quadro é o de um amplo leque de negociantes, vendedores e

consumidores que tinham no comércio de mercadorias sua fonte de ganho. Isso era ainda

contribuído pela aquisição feita pelo provedor-mor de mercadorias e mantimentos que seriam

utilizados pelos navios em suas viagens de retorno. Vinho, farinha, carne, frutas, bolachas,

cachaça e vários outros alimentos eram adquiridos por esse funcionário régio para abastecimento,

ou reabastecimento para as naus que estivessem em escala, dos comboios que se dirigiam para

as diversas partes do Império português.

A sociedade baiana fazia parte de um leque social amplo, que englobava os muitos

domínios lusitanos pelo globo. A existência de diversos territórios dominados por Portugal na

África e na Ásia, além da América, permitia o fluxo constante de diversas pessoas. A sociedade

baiana (e brasileira) desse período estava em permanente contato com povos de outras regiões.

A América portuguesa tinha sua dinâmica exercitada pelo contato entre povos das mais diferentes

culturas. Globalização, como se pode perceber, não é um fenômeno tão recente assim.

Desde o final do século dezesseis, que o governo português tentava melhorar seu sistema

de controle e de arrecadação junto a essas áreas. Para isso, foi criada em 1640 a Companhia de

Comércio nos moldes das que existiam na Holanda e na Inglaterra.

Diferente da Holanda, onde essas empresas gozavam de muita liberdade, em Portugal o

controle do Estado era predominante, contrariamente ao que ocorria em outras regiões. Tendo

possuído uma flexibilidade na autonomia de seus domínios até o século XVII, fruto da

impossibilidade em se fiscalizar todos os seus territórios ultramarinos, o governo português iniciou

nos setecentos uma tentativa de maior centralização administrativa. Isso seria recrudescido

principalmente durante o reinado de D. José I e seu ministro Pombal. Influenciados pelas idéias

iluministas, a administração do Reino sofreu algumas alterações. Houve maior tentativa de

controle e centralização das atividades envolvendo as colônias. O receio que as idéias liberais de

então influenciassem os colonos no intuito de separação, aliado aos movimentos nas treze

colônias inglesas e as revoltas escravas que aconteciam na América, fez com que aumentassem

a fiscalização e a repressão lusitanas. A publicação desse novo Regimento melhor adequado a

esses novos tempos pode ser assim entendida19.

As frotas e comboios que interligavam o reino aos seus outros portos, deviam passar por

intensa fiscalização possuindo também toda uma norma de regimentos que deveriam ser

seguidos. As frotas do Reino e as da Índia eram duas das mais significativas envolvendo Portugal

19 HESPANHA, António Manuel de. A Constituição do Império Português. Revisão de alguns enviensamentos correntes. In. In. FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda Baptista; GOUVEIA, Maria de Fátima Silva (orgs.). O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI – XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. P. 163 – 189.

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e os portos do Brasil. A primeira, porém, era a mais visada no controle, pois, de acordo com as

leis portuguesas, os navios vindos da Índia não podiam comercializar com o Brasil. Isso, no

entanto jamais foi seguido20. Para esses dois comboios, o detalhamento das funções do provedor

é um elemento que segue à risca a burocracia portuguesa. Todos os passos para fiscalização dos

navios são apontados. Dava-se pouca margem à atuação individual dos responsáveis para essa

função. O modo como devia ser chamado cada marinheiro “com a letra do alfabeto que seguir

com a última que lhe tiver parado (REGIMENTO, 1752, p. 1)” indica a precisão que se esperava

fosse seguida pelo provedor e seus assessores.

O contato entre as naus, a arrecadação e manutenção do monopólio régio, era função do

provedor-mor. Essa atividade foi instituída na Colônia, ainda durante o século XVI. A ele cabia a

verificação e o controle de todos os navios que aportassem em Salvador, bem como outras

funções que serão examinadas a seguir. A função do Provedor enquadrava-se na manutenção,

por parte de Portugal, de um rígido enquadramento da sociedade e economia dentro dos

parâmetros políticos e culturais determinados pela Metrópole. Afinal: “durante os três séculos de

existência do Brasil como colônia portuguesa, todos os assuntos econômicos, políticos,

administrativos e sociais eram enviados para Lisboa e era lá que todas as decisões concernentes

ao Brasil eram tomadas21”.

As determinações iniciais do Regimento falam sobre a entrada de navios na baía de

Salvador e as providências que deveriam ser tomadas pelo provedor-mor. Os navios que

aportassem seriam imediatamente averiguados por ele e por um séqüito composto do capitão de

mar e de guerra, capitães tenentes e de infantaria e mais oficiais. Esses acompanhantes eram

necessários para que se passasse em mostra a guarnição daquela embarcação. Além disso,

esses indivíduos simbolizavam, com seus cargos e funções, a própria figura do rei de Portugal e

sua presença naquele ponto distante de seu Império.

O caráter militar, evidenciado nesse início de regimento, pode ser entendido como uma

preocupação quanto às tentativas de invasão do território por piratas e/ou povos considerados

inimigos do Reino. Nesse contexto, a ida do provedor, ladeado dessas figuras representativas do

poderio militar português, é extremamente significativa. A presença dos oficiais servia para

renovar nesses súditos, que se encontravam distantes de Portugal, os laços de dependência e

subserviência.

20 MONTEIRO, Nuno Gonçalo F. Trajetórias sociais e governo das conquistas: Notas preliminares sobre os vice-reis e governadores-gerais do Brasil e da Índia nos séculos XVII e XVIII. In. FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda Baptista; GOUVEIA, Maria de Fátima Silva (orgs.). O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI – XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. 21 RUSSELL-WOOD, A. J. R. Precondições e precipitantes do movimento de Independência da América Portuguesa. In. FURTADO, Júnia Ferreira (org.). Diálogos Oceânicos: Minas Gerais e as novas abordagens para uma história do Império Ultramarino Português. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001. P. 431.

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A verificação da guarnição do navio devia ocorrer mediante as informações fornecidas pelo

escrivão da frota. A ele cabia documentar tudo que ocorresse durante o período em que durasse o

empreendimento. Caso conferisse aquilo que se encontrava nas anotações do escrivão com a

guarnição encontrada, o provedor os encaminharia para terra, dando-lhes quartel, enquanto o

navio ficasse no porto.

O próximo passo seria o de encaminhar doentes para os hospitais. Nesse período, as

enfermidades alastravam-se junto às tripulações a bordo e podiam representar um perigo para a

população residente na cidade. Muitos tripulantes sofriam de doenças, como o escorbuto,

disenteria, vômitos, mal-estar, desidratação, dentre outras. O número de mortos durante as

viagens era sempre elevado, dando à profissão de marinheiro um estigma de perigo constante. Os

marujos e/ou soldados que quisessem ser assistidos pelos cirurgiões ou sangradores do próprio

navio poderiam ser acatados em sua vontade.

O pagamento do tratamento deveria ser efetuado pelo provedor. No entanto, esse ato de

bondade por parte do representante do governo português teria como contraparte daqueles que

porventura fossem ser medicadas no hospital, as baixas de seu cargo e/ou função. Em outras

palavras, aqueles que, devido a sua saúde debilitada, fossem ser tratados em terra, perderiam o

direito de continuarem ganhando seus proventos durante o período em que ali permanecessem.

Posta a guarnição em terra, seria ainda necessário que o provedor-mor averiguasse como

andava o estoque de munição da guarnição da nau. Isso devia ocorrer para que se evitasse que

os marinheiros, apoiados pela presença de suas armas e incentivados pelo álcool ou outras

situações excitantes, provocassem vandalismo ou mesmo confronto com a autoridade dos

representantes do rei em terras americanas. Caso houvesse dispensa da guarnição, devido a

motivos de doenças ou mortes, precisava o provedor obter nova mão-de-obra para o navio

desembarcado. Eram muitas, dessa forma, suas atribuições, estando esse funcionário

permanentemente em atividade. Por isso mesmo, essa função trazia no seu bojo muito poder e

status, que garantiam ao seu ocupante relevante destaque na sociedade colonial.

A inspeção dos alimentos era outra necessidade nesses tempos de viagens longas e sem

processos de conservação dos mantimentos, a não ser a salga. Após averiguar como estava a

guarnição, devia o provedor-mor verificar qual o estado de conservação dos alimentos. Aqueles

que não tivessem condições de uso e que não pudessem ser vendidos, deveriam ser

imediatamente atirados ao mar. Resta saber se essa medida sempre foi acatada pelo provedor e

pelos responsáveis pela embarcação, ou se a falta de dinheiro ou mesmo a corrupção, acabavam

por determinar a manutenção de alimentos sem qualidade, nos porões do navio. Quanto a

renovação, o texto é bem enfático quanto à necessidade de se renovar o estoque das naus de

comboio.

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Retirados os mantimentos da nau, devia-se providenciar a vinda de víveres para o retorno

a Portugal. A quantidade de alimentos devia ser suficiente para os três meses e meio que durava

a viagem. Após a inspeção dos mantimentos, devia ocorrer a averiguação dos materiais

provenientes de outras partes do Império, como Guiné e Índia, para serem levados ao mercado de

Salvador. Ali seriam eles comercializados e encaminhados para outras partes da Colônia. Nesse

momento, a aquisição de alimentos por parte do provedor gerava um bom impacto sobre o

comércio de Salvador. A procura por alimentos impulsionava as vendas na cidade, no entanto, se

isso era bom para os comerciantes, podia não ser bom para os habitantes da cidade.

O problema era que havia, com muita freqüência, a falta de determinados mantimentos no

comércio soteropolitano. A venda de carne e de farinha, dois dos alimentos mais consumidos pela

população da cidade, era sempre problemática quanto à reposição do estoque. Como os locais de

criação de gado ficavam no sertão baiano, a vinda desses animais para serem abatidos não era

contínua. Desse modo, havia épocas em que faltava carne para a população. Quanto à farinha em

tempos de seca, na Bahia ou em outra capitania, muito provavelmente aconteceria de não haver

esse alimento em quantidade suficiente para todos. Procurar alimentos em época de crise na

capitania podia representar um problema a mais nas atribuições do provedor.

O provedor devia ainda verificar se haveria necessidade de se dotar a embarcação de

peças e artefatos sobressalentes. Para isso, a informação devia partir do capitão do navio, o qual

se certificaria com uma pessoa de “maior confiança e inteligência e com todos os segredos dos

preços (REGIMENTO, 1752, p. 5)”. Essa figura provavelmente deveria ser um mercador ou

funcionário régio, entrosado com o comércio local. Podemos raciocinar que esse indivíduo poderia

possuir relações mercantis ou políticas com comerciantes locais, os quais poderiam pagar-lhe

pelo privilégio de suas informações e para serem por ele indicados. A preocupação do regimento

aqui é sempre com o preço a ser comprado, devendo ele “ser o mais cômodo a minha fazenda

(Idem.p.5)”. Todo esse processo de consulta e aquisição de mercadorias passava também pelo

crivo do almoxarife, o qual tinha a responsabilidade de controlar os gastos na aquisição de novas

mercadorias.

O pagamento de uma mercadoria era encaminhado pelo almoxarife para o provedor, o

qual repassava a soma para o tesoureiro, que encaminhava para a assinatura do vice-rei, que

repassava ao capitão, o qual obtinha um recibo com o escrivão do navio. Nada menos do que seis

pessoas eram necessárias para que a mercadoria fosse adquirida e paga.

Adquiridas as mercadorias para reposição, era necessário verificar se havia necessidade

de concerto ou reforma em algumas das naus. Para isso, seriam necessárias as presenças do

Vice-rei e do capitão-general, os quais dariam ordem ao patrão-mor e mestre da ribeira em

presença do capitão de mar e de guerra e de oficiais. Seriam essas pessoas responsáveis depois

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pela assinatura de um termo de declaração em que se atestasse a veracidade das informações e

a necessidade em serem feitas as benfeitorias no navio.

Feito isso, e sendo preciso efetuar melhorias, devia o provedor encaminhar uma licitação

para que as pessoas, responsáveis por esses ofícios, se dirigissem até o local do porto. Ali, diante

dos Evangelhos, e jurando por eles, deviam apresentar o preço que seria cobrado pela obra que o

navio requeresse. Eram muitos aqueles que podiam participar dos trabalhos: ferreiro, funileiro,

vidraceiro, pintor, carpinteiro de “obra branca”, esparteiro (responsável pelo tecido usado nas

velas do navio) e fundidor de cobre eram alguns dos envolvidos no processo de recuperação das

naus. Todos esses trabalhos deveriam ser feitos ao menor custo possível.

As obras que pudessem ser realizadas pelos trabalhadores artesãos do próprio navio

deveriam ser assim efetuadas. Nesse caso, ficava o provedor dispensado do pagamento a essas

pessoas, pois elas já recebiam o soldo por estarem no navio. As madeiras necessárias ao

concerto do navio deviam ser adquiridas nas mesmas condições em que ocorreu a compra dos

mantimentos. O Regimento não estabelece, no entanto, o tipo ou o local de onde deveria vir esse

material. Provavelmente ficava a cargo do provedor e seus auxiliares, tendo com base normas

anteriormente elaboradas pelo governo português, para efetuar a localização dessa madeira. É

provável que esta viesse de Ilhéus, tendo em vista que Vilhena aponta em sua obra que “o

comércio [...] consiste na importação de madeira da comarca de Ilhéus [...].”22

Enquanto eram efetuadas as reparações nos navios, cabia ao provedor realizar o

pagamento aos marujos e oficiais. Salários, soldos e vantagens deviam ser pagos em

conformidade com aquilo que comumente se recebia no Brasil. Aqueles que estivessem no

hospital recebiam seus soldos, inclusive os atrasados, todos os outros tripulantes também. Quanto

aos oficiais e aos responsáveis pela guarnição, deveriam receber seu soldo, até o que estivesse

atrasado. O capitão tinha direito aos salários e soldos. No retorno, tinha ele direito de receber três

meses de salário adiantado e mais dois de soldo. Era necessário, no entanto, que todos

estivessem a bordo do navio.

O pagamento seria feito também àqueles que prestassem todo e qualquer tipo de serviço

ao navio, enquanto perdurasse seu conserto e serviços no porto. Esses serviços deveriam ser

feitos no menor tempo possível, de modo que o navio estivesse apto a retornar logo. Essa

necessidade se fazia sentir pelo fato de o Reino não dispor de uma marinha mercante ampla.

Além disso, o tempo que se permanecia parado no porto retirava do erário régio seu mais lucrativo

meio de comércio.

22 22 VILHENA, Luís dos Santos. A Bahia no século XVIII. Salvador: Itapuã, 1969. Vol. 1. (coleção baiana). P. 58.

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Todas essas despesas deveriam ser sumariamente anotadas em cadernos os quais

posteriormente deveriam ser publicados. Esses papéis deveriam ser enviados para Portugal, onde

seriam feitas as averiguações para análise contábil dos gastos efetuados pelo provedor,

almoxarife e tesoureiro. Essa prática tentava evitar corrupção e desvio de verba por parte dos

funcionários régios. Ao mesmo tempo, denota a vigilância do governo português em sua tentativa

de aumentar a fiscalização e a manutenção do Brasil como colônia vinculada à Portugal.

Até aqui se tem falado sobre a forma como os navios de comboio, que partiam do Brasil

para Portugal, deveriam ser inspecionados e abastecidos pelo provedor-mor daquele período.

Porém, não se pode esquecer que o sistema transatlântico português englobava diversas regiões

de três continentes. Muitos eram também os navios provenientes de outras regiões do Império,

em direção ao Reino, ou simplesmente navios e comboios que iam de uma colônia portuguesa na

Ásia ou África para a América, sem intercurso com a Europa lusitana. Pela cidade da Bahia era

ainda encaminhado, nas naus do comboio da Índia, o pau brasil que houvesse sido cortado na

capitania de Pernambuco e que devia ser inspecionado por aqueles que tivessem conhecimento

suficiente para avaliar se o carregamento possuía ou não boa qualidade. Essa rede, envolvendo

vários pontos do Império, dotava as áreas de portos, como é o caso de Salvador, de um peso

importante no sistema de manutenção do poderio luso em suas colônias.

É nesse contexto que precisamos diferenciar naus de comboio das naus das Índias. As

primeiras tinham como destino o comércio envolvendo diretamente a Colônia com o reino

português. As segundas, no entanto, tinham no comércio com as Índias seu objetivo principal.

Como se tratava de uma travessia maior, e por isso mesmo mais arriscada, tinham esses navios a

necessidade de serem atendidos nos principais portos lusitanos. Apesar disso, e da importância

comercial e cultural dos navios da Carreira das Índias, nem sempre eram esses navios

supervisionados e providos com suas necessidades para a travessia do Atlântico.

Foi por esse motivo que o Regimento do provedor-mor, apesar de se direcionar aos navios

dos comboios envolvendo a América com o reino de Portugal, tratou também de, em suas últimas

páginas, estabelecer os critérios que os provedores deveriam seguir, quando houvesse a chegada

de uma nau das Carreiras das Índias no porto de Salvador. Ao assim proceder, o governo

português legalizava a vigilância sobre uma rota que até aquele momento havia sido

negligenciada pelas autoridades, fato que acontecia por ser proibido para os comboios que

saíssem da Índia o atracamento no Brasil. O tempo mostrou que essa medida não havia dado

muito resultado e que seria melhor legalizar a vistoria com o intuito de se coibir os contrabandos.

A inexistência de um regimento sobre despesas e costeamento das naus das Índias era

utilizada como desculpa pelos provedores e pessoas responsáveis para não prestarem os

serviços de auxílio e reparações aos marinheiros e navios desse percurso. Desse modo, a

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burocracia portuguesa servia como um impedimento ao bom caminhar da empresa mercantil.

Com essas informações adicionadas ao Regimento, tentava a administração lusitana sanar mais

essa deficiência, possibilitando melhor tributação e fiscalização das naus.

Com informações mais simplificadas, porém detalhadas, essa segunda parte tem início

com a ordem de, assim que entre um navio da Carreira das Índias na Baía de Todos os Santos, o

capitão da Ribeira embarcaria no navio cuidando para que ele fosse bem atracado, evitando que

saíssem quaisquer pessoas antes das vistorias anteriormente citadas. Para essa tarefa, deveria

ele contar com a presença de dois guardas que seriam responsáveis por impedir o afastamento

de qualquer integrante do navio. Esses guardas deveriam permanecer à noite para que não se

fizesse contrabando com as mercadorias vindas da Índia. Dada a preocupação do Regimento com

essa recomendação, pode-se inferir que essa prática seria recorrente.

O contrabando de mercadorias é nessa parte a preocupação mais latente. Para que se

evitasse esse tipo de coisa, as recomendações em relação aos navios que chegassem da Ásia

são muito mais recorrentes que na parte em que se prescreviam as recomendações sobre os

comboios para o Reino. Vigilância constante, aliada às ordenanças de se dirigir toda a fazenda

para os armazéns régios, era um dos mecanismos utilizados para inibir essa prática. Até mesmo

os capitães e oficiais eram obrigados a permanecerem no navio, ainda que a nau estivesse

passando por reparos, para se evitar que fossem “cada um cuidar em os seus negócios

particulares sem detrimento de meu real serviço” (REGIMENTO, 1752, p. 17).

A contratação de pessoal para as reparações que porventura os navios viessem precisar

deveria acontecer privilegiando-se pessoas que não “apenas assistam ao trabalho” mas que

possam efetivamente trabalhar na obra, devendo o provedor-mor suspender do contrato todo

aquele que não fizer jus ao pagamento estipulado (Idem, 1752, p. 18).

Além das melhorias devidas, essa parte do Regimento toca de modo mais demorado nos

consertos que seriam necessários nas enxárcias, isto é, nos cabos que sustentam os mastros e

os mastaréus do navio. Essa operação devia transcorrer sob os olhares atentos do almoxarife,

patrão-mor e apontador da Ribeira, os quais tinham que garantir que os materiais não fossem

descartados, em benefícios dos comerciantes locais, representando prejuízos para a fazenda real.

Esses serviços deviam ficar a cargo dos marinheiros e grumetes, porém o Regimento

ressalva que cada um trabalhe no seu posto específico, recebendo seu soldo semanal. O soldo

dos marinheiros e grumetes se compunha respectivamente, de cento e sessenta réis para os

primeiros e sessenta réis para os segundos.

Todos essa tarefas deviam ser realizadas no menor espaço de tempo possível. A

preocupação com demoras acentuadas no conserto dos navios é constantemente reafirmada no

Regimento. Não se devia sob nenhuma hipótese haver demoras quanto aos reparos. Cabia ao

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provedor ir “ao mar ou a Ribeira os mais vezes que for possível” procurando sempre cuidar para

que as naus não ficassem sem os mantimentos necessários podendo partir tão logo fossem

concertadas (Ibdem, 1752, p. 21).

O Regimento também esclarece a distinção que o provedor devia começar a observar, a

partir daquela data, no que se refere ao pagamento dos soldos dos marinheiros, grumetes e

demais participantes da tripulação dos navios da Carreira das Índias. Nessas embarcações, o

soldo seria superior ao pago às naus provenientes de Portugal, por se entender ser este um

percurso menor que o vivenciado pela frota proveniente da Ásia. Um mês de soldo adiantado seria

o principal diferencial para esses marinheiros.

Quanto ao vinho embarcado, deveria o provedor-mor estar ciente de que este viesse em

conformidade com a necessidade das embarcações e que se utilizasse para provimento aqueles

que, porventura, tivessem sobrado do comboio do Reino para provisão das naus da Índia.

Todas essas atividades deviam ser registradas nos livros de receita e despesa do

Tesoureiro Geral, almoxarife nas partes de materiais, mantimentos e munições. Após terem sido

descritas todas as receitas e despesas, devia o provedor proceder à rubrica de todas as páginas

no que dava autenticação às informações ali descritas.

As especificações da função do provedor-mor dão-nos uma idéia de como a administração

lusitana fez para gerenciar seus quadros. As necessidades de um extenso império, sem maiores

ligações que não aquelas vitais para se evitar a perda territorial, produziram uma administração

voltada para o desenvolvimento de uma lavoura lucrativa e calcada na vigilância constante.

Tentativas de separação emergiram no mundo americano a partir da difusão de novos ideais, em

especial o Iluminismo e o liberalismo. O crescimento econômico das colônias e seu comércio com

outras regiões, muitas vezes sem o aval da Metrópole, possibilitaram maior autonomia por parte

das elites coloniais no tocante à direção que essas regiões deviam seguir. Choque envolvendo

esses grupos, bem como as pressões internas feitas por cada população nativa foram tornando

inviável a manutenção dos antigos impérios na América.

O desenvolvimento da sociedade e economia no mundo luso-americano desencadeou

necessidades constantes de readaptações da burocracia e governo português na América. As

iniciativas desenvolvidas pelo Conselho Ultramarino e demais órgãos responsáveis pela vigilância

e administração dos domínios de Portugal nos outros continentes, são elementos salutares para

se ampliar o entendimento de como a sociedade brasileira foi gestada durante o domínio lusitano

sobre o território americano. O pedido constantemente refeito no Regimento de que o Provedor

observasse as normas ali descritas e a seguisse nos remetem à tentativa por parte do governo

metropolitano de se fazer seguido e obedecido em suas possessões ultramarinas.

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As mudanças ocorridas no controle que Portugal dispensou às suas possessões

ultramarinas podem ser melhor entendidas com a análise de um instrumento administrativo como

o Regimento. Suas indicações de funções e de tarefas denotam a extrema e complicada rede

burocrática efetuada pelo governo lusitano para melhor gerir seus domínios. Suas implicações, em

tarefas e atividades feitas pelo provedor e demais auxiliares, estabelecem ligações sobre os

mecanismo de controle e o modo como eles eram efetuados no Brasil na metade final do século

XVIII.

As funções do provedor-mor, nos quadros da administração portuguesa no Novo Mundo,

realçam a compreensão de uma história dinâmica e complexa, em que diversos objetivos e

necessidades se encontraram, construindo assim a história brasileira. Dessas diversas teias de

relações sociais e ordenamentos políticos, emergem um melhor entendimento da dinâmica de

dominação portuguesa e seus mecanismo de manutenção do poderio militar e administrativo

sobre sua mais rica colônia.

O controle do Império Marítimo Português foi possuidor de muitas nuances e

detalhamentos, e nem sempre é possível compreendê-lo à luz de simplificações conceituais e/ou

teóricas. As pesquisas e novas indagações deverão melhorar nosso entendimento sobre o mundo

colonial, ampliando assim, o conhecimento existente sobre a construção de nossa história.

Charles Nascimento de Sá é Professor do curso de História da Faculdade de Tecnologia e Ciências de Itabuna e da Faculdade Santo Agostinho.

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CRISTÃOS PRETOS NO MUNDO COLONIAL: IRMANDADES DE ESCRAVOS E FORROS EM MINAS GERAIS – SÉCULO XVIII

Ana Paula dos Santos Rangel

Resumo: Seguindo a tradição portuguesa, advinda da época medieval, de estabelecer confrarias dedicadas a santos católicos, os escravos e forros na Colônia também se reuniram nessas congregações sob a égide da devoção e da caridade. Neste texto buscaremos mostrar que a relação das irmandades de “homens pretos” de Minas Gerais com o “mundo branco” nem sempre era pacífica – havia conflitos que envolviam desde desacordos com os párocos até a luta pela liberdade dos irmãos cativos –, embora pudesse em certos momentos, envolver algum tipo de cooperação. Palavras-chave: Escravidão; Irmandades negras; Minas Colonial.

Abstract: In Colonial Minas Gerais the slaves and the freedmen organized congregations devoted for catholic saints, in conformity with the Portuguese tradition, came from the medieval period. In this article we will try to show that the relations between the black brotherhoods and the “white society” included conflicts, but involved also some cooperation. Key words: Slavery; Black brotherhoods; Minas Colonial.

Seguindo a tradição portuguesa, advinda da época medieval, de estabelecer confrarias

dedicadas a santos católicos, os escravos e forros na Colônia também se reuniram nessas

congregações sob a égide da devoção e da caridade. Na verdade o espaço colonial abrigou

também irmandades de brancos. Aliás, as confrarias marcavam as divisões sociais presentes ali.

Os escravos africanos se reuniam nas irmandades dedicadas a Nossa Senhora do Rosário, a

Santa Efigênia, a Santo Elesbão e a São Benedito; os crioulos na de Nossa Senhora das Mercês;

os pardos prestavam devoção a São Gonçalo Garcia; os brancos se reuniam nas irmandades do

Santíssimo Sacramento (formada por membros da elite), na de São Miguel e Almas, na de Nossa

Senhora da Conceição, na de Bom Jesus dos Passos e na de Almas Santas1.

Veremos neste artigo que a relações das irmandades de “homens pretos” com o “mundo

branco” nem sempre era pacífica, embora pudesse em certos momentos, envolver algum tipo de

cooperação. Os conflitos envolviam desde desacordos com os párocos até a luta pela liberdade

dos irmãos cativos. A análise de alguns documentos relativos às irmandades de negros e pardos

selecionados da Documentação Avulsa do Arquivo Histórico Ultramarino, relativa a Minas Gerais

nos elucidará mais um pouco sobre esta forma de sociabilidade escrava costurada pela religião.

1 BORGES, Célia Maia. Escravos e libertos nas Irmandades do Rosário: devoção e solidariedade em Minas Gerais: séculos XVIII e XIX. Juiz de Fora: Editora da UFJF, 2005, p. 59.

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1. EM BUSCA DE AUTONOMIA: CONFLITOS COM O MUNDO BRANCO As irmandades, não somente as de pretos e pardos, estiveram em meio ao conflito entre o

poder temporal e o espiritual no que diz respeito ao controle sobre elas. Foram muitas as disputas

entre a Coroa e a Igreja quanto à administração dos bens das confrarias. Segundo Caio Boschi: a

Coroa não transigiu em sua jurisdição e em seu poder de interveniência nos assuntos religiosos

(…) as irmandades estiveram sob a tutela do Estado2. Entretanto, conforme Célia Borges: a Igreja

tudo fez para não ser ultrapassada3. Tal cenário nos leva a questionar o grau de autonomia que

as irmandades, principalmente as de negros, poderiam conquistar. Neste respeito é possível

identificar algumas estratégias que as confrarias poderiam empregar em busca de algum nível de

autonomia.

A ambigüidade da lei, segundo Célia Borges, abriria brechas para que as irmandades –

formando redes de solidariedade – enfrentassem os poderes temporal e espiritual. Como exemplo

a autora cita o fato de que algumas confrarias, apoiadas na legislação, constituíram bens embora

a Coroa buscasse limitar a aquisição de bens de raiz por parte delas4.

A edificação de uma capela própria era uma das melhores formas de se alcançar certo

grau de autonomia, do contrário, os confrades teriam que se instalar nos altares laterais das

igrejas de irmandades de homens brancos. Assim, os irmãos se esforçavam para juntar recursos

suficientes a fim de erigir um local de culto próprio. Algumas confrarias lograram alcançar tal

intento. A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Vila Rica possuía uma capela no bairro do

Caquende que os mesmos pretos à própria custa erigiram5. Mais tarde os irmãos adquiriram um

terreno, onde construíram a igreja que ainda hoje pode ser vista na cidade de Ouro Preto. A

Irmandade de Nossa Senhora do Rosário do Alto da Cruz da Freguesia da Nossa Senhora da

Conceição de Antônio Dias, Vila Rica, também erigiu uma capela onde prestava culto aos santos

de sua devoção. Estas representam, porém, uma minoria, a maior parte das irmandades

permaneceu sem ter um espaço próprio de reunião.

Outra estratégia que poderia ensejar um aumento na possibilidade de as confrarias se

autogerirem era a inclusão de cláusulas específicas nos compromissos6. Estas muitas vezes

referiam-se à limitação do poder de interferência do pároco nos assuntos das irmandades.

Todavia, os estatutos deveriam ser aprovados pela Mesa de Consciência e Ordem em Lisboa. Por

2 BOSCHI, Caio César. Os Leigos e o Poder: Irmandades Leigas e política Colonizadora em Minas Gerais. São Paulo: Editora Ática, 1986, p. 113. 3 BORGES, Célia. Op. Cit., p. 100. 4 Ibidem, p. 101. 5 Representação da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de vila Rica, 1745. Manuscritos Avulsos do Arquivo Histórico Ultramarino relativos a Minas Gerais. Microfilmados e Digitalizados – Cx. 45, Doc. 40. 6 BORGES, Célia. Op. Cit., p. 107.

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vezes, a Mesa recomendava a retirada ou alteração de alguns capítulos dos compromissos

enviados, o que limitava a margem de manobra das confrarias. Contudo, algumas foram bem

sucedidas em aprovar seus compromissos sem restrições. Isso lhes dava armas para lutarem

contra as ingerências dos párocos.

Uma confraria que é exemplar pelo nível de autonomia que alcançou é a Irmandade de

Nossa Senhora do Rosário do Alto da Cruz. Esta associação conseguiu reunir algumas condições

que lhe garantiram certo grau de liberdade diante dos mecanismos de controle do Estado e,

principalmente, da Igreja. Aquela irmandade possuía, como apontado anteriormente, uma capela

própria, um local de reunião onde os confrades poderiam estabelecer suas relações de

sociabilidade fora da supervisão dos brancos. Os irmãos do Alto da Cruz foram ainda bem

sucedidos economicamente. O principal rendimento advinha das doações feitas aos santos de

devoção durante a semana da festividade da confraria. Além da Senhora do Rosário, eram oragos

da irmandade: Santa Efigênia, São Benedito e Santo Antônio de Catalagerona, todos santos

negros. No dia dedicado a cada um dos santos o cofre da irmandade recebia um grande volume

de doações em dinheiro ou em jóias. O resultado de tal movimento foi que a Irmandade do Alto da

Cruz, conforme Célia Borges, teve um rendimento superior ao da poderosa Irmandade do

Santíssimo Sacramento, composta por homens brancos7.

Além, de ter um templo próprio e um cofre cheio a Irmandade do Rosário do Alto da Cruz

deu um outro passo fundamental em direção à autonomia. O compromisso, redigido em 1733 sob

os auspícios do capelão Bernardo Madeira, foi aprovado pela Mesa de Consciência em 17548. O

fator fundamental é que tal estatuto continha um capítulo que legava ao capelão da irmandade a

responsabilidade de cuidar de todos os cultos, e que, portanto, excluía totalmente o pároco.

Rezava o capítulo 15 do compromisso: Haverá hum Capellão elleyto pela Meza, que terá obrigação de dizer Missas todos os Domingos, e dias Santos pelas Almas dos Irmãos vivos e defuntos e igualmente todos os Sábados e no fim cantará a ladainha da Senhora, tendo obrigação de accompanhar sepultura todos os Irmãos que falecerem, e a confessar na Capella nos dias de jubileu, e Feztividades, assistindo à Meza; como Presidente e dando o seu voto; E também estará prompto para confessar os Irmãos e Irmãs em toda a occasião, que o procurarem na sua Capella e se em alguma ocasião for também chamado ou avisado para assistir a qualquer Irmão, ou Irmã em artigo de morte será obrigado a ir proptamente como tambem a cantar Missa nos dias em que costumam festejar a mesma Senhora e aos mais Santos, e Santas que se acham agregados à mesma Irmandade9.

Com base nesta cláusula os irmãos do Rosário do Alto da Cruz puderam por pelo menos

duas vezes recorrer ao soberano português contra as pretensões do pároco de cantar missas

Compromisso da Irmandade de N. Senhora do Rosário dos Pretos, denominada do Alto da Cruz, da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Antonio Dias de Vila Rica de Ouro Preto. Rolo 58, vol 123. Arquivo Eclesiástico de N.

7 Ibidem, pp. 93 e 94. 8 Ibidem, pp. 104 e 105. 9

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nos dias das festividades. O documento enviado ao Conselho Ultramarino em 1777 tem um tom

bastante agressivo. O pároco João Antônio Pinto arvorava-se em cantar-lhes missas nas suas

festividades, desprezo criminoso as determinações concedidas no capítulo 15 do seu

compromisso, (…) onde expressamente lho facultam ao seu capelão10. Os irmãos lançam uma

série de acusações contra o padre João Antônio, afirmam que: Para este horroroso atentado e absoluto procedimento achou propícia a vontade do Ouvidor respectivo Antônio Ramos da Silva Nogueira seu parente por sangüinidade e semelhança, que despacha, que suspende a continuação dos cultos, quando só lhe é permitido como Juiz das Capelas o conhecimento das contas da receita e despesa11.

Valendo-se do seu parentesco com o Ouvidor o pároco teria conseguido a suspensão dos

cultos da irmandade. Todavia, Antônio Ramos da Silva Nogueira teria ido além de suas

prerrogativas como Juiz das Capelas, levando os confrades do Rosário a recorrerem à autoridade

maior do rei. Revelando conhecimento das leis eclesiásticas – o que, provavelmente, denota uma

ingerência do capelão na feitura do documento – os suplicantes denunciam João Antônio Pinto

por desconsiderar as Bulas Pontifícias, a saber, o que fora decidido pela Sagrada Congregação

em 1703 e o Papa Clemente em 1704 e claramente nas Constituições de Benedito 14. Visto que o

compromisso fora aprovado na Metrópole, o pároco estaria ainda desconsiderando o soberano

português, primeiro Pároco de Seu Mestrado da Ordem de Cristo. Tal desprezo pelas

determinações reais e eclesiásticas os irmãos atribuem à soberba e à ambição do pároco de levar

pela missa cantada 4$800, das novenas 5$600, da cera 3$600, além dos Diáconos e

Sacristãos12.

O que se percebe é que diante das disputas entre Igreja e Estado sobre a administração

das irmandades os confrades podiam, por vezes, recorrer à Coroa contra a Igreja, fazendo valer

neste momento o que fora determinado pelo poder temporal, ou seja, o estatuto da congregação.

É digno de nota, ainda, que a hostilidade para com o pároco revelado neste requerimento

está em consonância com o que foi expresso no capítulo 14 do compromisso da irmandade. Dizia

a dita cláusula: E porq’ esta Capella foy feyta a expensas da devoção, e fiéis, sem que para a sua factura, ornatos, ou guizamentos concorresse em tempo algum o Parocho desta Freguezia; e estes costumam só desfructalla, querendo se lhe paguem fabricas sem acompanharem os Irmãos, a e ainda sepulturas, sendo elles enterrados nesta própria Capella, sem mais zelo, e caridade, que o da sua ambição por não ser elle filial em razão de não ter concorrido a may com coisa alguma, se não pagará nada ao ditto Parocho, ou Fabrica, e será só sujeita no temporal aos Doutores Corregedores, e no Espiritual

S. da Conceição de Antônio Dias, Casa dos Contos, Ouro Preto. Transcrito por Juliana Aparecida Lemos Lacet, retirado do site www.historia.uff.br/labhoi. 10 Representação da Irmandade dos Etíopes, Crioulos, Pretos Forros e Cativos de Vila Rica de Ouro Preto, 1777. Manuscritos Avulsos do Arquivo Histórico Ultramarino relativos a Minas Gerais. Microfilmados e Digitalizados – Cx. 111, Doc. 82. 11 Idem. 12 Idem.

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ao Ex.mo e R. Bispo, e ao seu Padre Capellão, o qual na mesma fará todas as ações de Festividades, e do mais, como em caza sua própria pela concessão da ditta Irmandade, pois tem mostrado a experiência as continuadas desordens que os Vigários fazem, e promovem tudo a benefício do seu interesse. Só não sera excluído o R Parocho da sua encomendação, como ovelhas suas particulares, sendo forros, pelos seus bens, e sendo escravos pelos seus Senhores, e da mesma forma a Cruz da Fabrica, quando sair a acompanhar qualquer Irmão por disposição sua própria sem prejuízo da Irmandade. (grifo meu)13

Entretanto, em 1801 já não havia, pelo visto, uma grande disposição por parte da

irmandade em atacar frontalmente o pároco. Mais uma vez a questão era em torno das missas

nos dias das festas dos santos. Os irmãos reafirmavam o capítulo 15 do compromisso, entretanto,

em vez de qualquer acusação mais forte contra o padre eles alegavam desejar viver em sossego

e boa harmonia com o seu Pároco14. No correr do tempo, as mudanças de párocos, irmãos e

capelães, provavelmente, haviam arrefecido as hostilidades, embora não eliminassem os

conflitos.

Observamos, portanto, que as irmandades de pretos e pardos poderiam recorrer à Coroa

contra a Igreja. Todavia, a Igreja também poderia recorrer ao Estado contra as irmandades. Em

1793 os Vigários Colados do Bispado de Mariana apresentaram à rainha, D Maria I, uma

representação onde expunham a corrupção e desordem que grassavam nas ordens terceiras e

irmandades de pretos e pardos das Minas15. O modo como se comportavam tais confrarias

trariam, segundo os clérigos, prejuízo para a Igreja, o Estado, a Real Fazenda, o Padroado Régio

e a Conservação dos Povos. Para comprovarem suas acusações os Vigários anexaram à

representação dez documentos aos quais fazem referência no decorrer de sua argumentação.

Embora a ênfase seja sobre as corporações de pretos e pardos os representantes do

poder espiritual em Minas Gerais também fazem referência às de brancos. As Ordens Terceiras

do Carmo e de São Francisco são acusadas de terem seus compromissos confirmados pelos

Comissários Gerais de suas respectivas ordens e não pelo rei, vivendo na jactância de que só

estão sujeitos ao Prelado da respectiva ordem e aos Comissários Gerais. A Irmandade de Santa

Efigênia e de Santos Elesbão situada no altar da capela dos Terceiros do Carmo, embora

tivessem recebido notificação da Mesa de Consciência, não havia confirmado seu compromisso

nem prestado contas à Provedoria. Segundo os vigários, os Terceiros do Carmo desejariam que,

por estar na sua capela, a confraria dos pretos fosse também isenta e independente. Haveria

13 Compromisso da Irmandade de N. Senhora do Rosário dos Pretos, denominada do Alto da Cruz, da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Antonio Dias de Vila Rica de Ouro Preto, op. cit.. 14 Requerimento do juiz, mesário e demais irmãos da Irmandade de Nossa senhora do Rosário do Alto da Cruz, 1801. Manuscritos Avulsos do Arquivo Histórico Ultramarino relativos a Minas Gerais. Microfilmados e Digitalizados – Cx. 157, Doc. 42. 15 Representação dos Vigários Colados das igrejas paroquiais do Bispado de Mariana, 1793. Manuscritos Avulsos do Arquivo Histórico Ultramarino relativos a Minas Gerais. Microfilmados e Digitalizados – Cx. 138, Doc. 6.

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ainda muitas outras dessas corporações clandestinas, como a Irmandade do Rosário dos Pretos

do Arraial da Barra. Esta além de não ter compromisso e de não prestar contas, tinha mesários

perpétuos e era governada por um tesoureiro que cometia despotismos e violências16.

Visto que se fundavam sem a impreterível licença de V. Majestade e não pediam para

seus estatutos a confirmação régia, as confrarias denunciadas seriam verdadeiramente uns

conventículos e ajuntamentos reprovados, que correm sem freio e licenciosidade e dissolução,

dignos de severo jugo ou de serem desfeitos para bem da Igreja e conservação do Estado17. A

condição irregular de algumas irmandades perante o poder temporal dava ao poder espiritual

armas para condená-las. Contudo, como já tivemos oportunidade de observar, a regularização

das confrarias poderia significar limitações aos mecanismos de controle empregados pela Igreja.

Os vigários de Minas não deixaram de tocar no controvertido assunto das prerrogativas

dos párocos frente às irmandades. Segundo eles, as Irmandades de pretos e pardos usurpavam

as jurisdições e benesses paroquiais, celebrando ofícios e festividades solenes pelos seus

Comissários e Capelães18. Haveria ainda uma atuação subversiva por parte das confrarias no

sentido de incitar os fregueses a não pagarem os trezentos réis anuais para a subsistência dos

párocos. A consternação provocada por tais ações distrairia os párocos de sua missão como

pastores. Por isso se pedia ao soberano que ordenasse o pagamento sem hesitação das

benesses devidas aos sacerdotes.

Paradoxalmente, talvez, no conflito entre leigos e eclesiásticos tanto uns quanto os outros

poderiam recorrer à mesma instância – a Coroa – em busca do atendimento de suas requisições.

Ao poder temporal, obviamente, interessava o controle sobre as irmandades de pretos e pardos,

isso se pode ver na Consulta feita pelo Conselho Ultramarino acerca da representação dos

vigários do Bispado de Mariana. Conclui-se que o mal deveria ser eficazmente coibido e que era

necessária cautela quanto as perniciosas conseqüências que dele podem resultar19. No entanto,

se considerarmos que as afirmações dos vigários de Minas tinham alguma correspondência com

a realidade, as medidas de controle sobre as irmandades não deviam ser tão bem sucedidas, haja

vista o grande número de confrarias irregulares. De fato, durante o período pombalino, e mesmo

depois, buscou-se restringir a propriedade de bens pelas irmandades através de alguns alvarás,

Essas medidas, porém, parece não terem tido muito efeito na Capitania das Minas, segundo

afirma Célia Borges20.

16 Idem. 17 Idem. 18 Idem. 19 Idem. 20 BORGES, Célia. Op. Cit., p. 99.

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Desta forma, embora vivessem sob o fogo cruzado entre Igreja e Estado e estivessem, por

vezes, à mercê da união dos dois poderes, as irmandades poderiam se constituir num espaço

privilegiado da autonomia escrava. Aqueles que estavam, ou que haviam estado, sob o cativeiro

poderiam ter um espaço no qual expressar sua religiosidade – lembrando que o catolicismo dos

escravos e forros se distinguia daquele praticado pelos brancos – estabelecer suas solidariedades

e resolver seus conflitos, tudo isso sem ter que romper com o sistema escravista.

Neste sentido é importante ressaltar que as irmandades de homens pretos não eram

organizações que se encontravam isoladas da sociedade colonial. Estavam integradas a ela.

Tanto que, para além dos conflitos, foi possível que elas estabelecessem relações de cooperação

com os brancos.

2. PELA UTILIDADE PÚBLICA: POSSIBILIDADES DE COOPERAÇÃO Entre os anos de 1731 e 1733 a capela da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos

Homens Pretos de Vila Rica do Ouro Preto serviu de Matriz para a vila21. Os irmãos cederam seu

espaço de culto enquanto se construía uma nova igreja para abrigar o Sacrário Paroquial.

Terminado o novo prédio, era hora de fazer a trasladação do Santíssimo Sacramento. Entretanto,

não havia rua nem comodidade para ir a Procissão. Em vista disso, mais uma vez, os irmãos do

Rosário cooperaram com a Igreja e com o Estado, pois realizaram o que seria uma atribuição da

Câmara, e romperam morros íngremes incapazes de habitação, abrindo uma rua para a

passagem do Triunfo Eucarístico. Em remuneração pelo dito trabalho a Irmandade do Rosário

recebeu da Câmara de Vila Rica um terreno no caminho que havia sido aberto. Nessa área os

irmãos principiaram a construção de um novo templo, com a qual já haviam despendido em 1765,

segundo o Governador de Minas, para cima de cinqüenta mil cruzados22.

Contudo, quando os irmãos solicitaram a confirmação da doação ao rei, houve dúvida

acerca da validade da concessão que a Câmara havia feito à Irmandade do Rosário. Pela lei,

apenas o rei tinha o direito de conceder terras, de modo que a ação fora ilegal. A fim de tomar

uma decisão acerca do caso o Conselho Ultramarino fez uma consulta ao Governador das Minas,

ao Procurador da Fazenda e ao Procurador da Coroa.

O Governador à época, Luís Diogo Lobo da Silva, reconheceu que a concessão do terreno

fora feita indevidamente, por não terem autoridade para o praticar sem as que determinava o

21 Ibidem, p. 246. 22 Consulta do Conselho Ultramarino, 1769. Manuscritos Avulsos do Arquivo Histórico Ultramarino relativos a Minas Gerais. Microfilmados e Digitalizados – Cx. 94, Doc. 6.

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regimento dos oficiais da Câmara. Porém, chamava atenção para a diligência dos confrades do

Rosário, sem a qual se não conseguiria o cômodo público da sua servidão e para o seu zelo, pois: (…) sem embargo de sua pobreza principiaram, uma magnífica igreja (…) continuando na diligência de a acabarem, suprindo a côngrua de um capelão, festividades, enterros e sufrágios dos irmãos, não obstante ser a maior parte dela composta de cativos23.

Para o Governador, com base em sua Piedade, o rei poderia suprir a ilegalidade da concessão do

terreno e confirmá-la, deixando no pertencimento da irmandade as casas estabelecidas e as áreas

aforadas.

O Procurador da Coroa era de opinião semelhante. Embora a ação da Câmara fosse nula,

considerava o Procurador que o rei tinha bons motivos para dispensar as leis e legalizar a posse

do terreno pela irmandade. Segundo ele: (…) sendo a Irmandade dos homens pretos miseráveis: sendo ela tanto da sua devoção ou tanto do seu entusiasmo, tendo feito uma tamanha e tão considerável obra em benefício da cidade e o público e tudo isto debaixo da boa fé da concessão da Câmara, que seria um pouco duro desfazer agora tudo, depois de um tal adiantamento24.

O Procurador da Fazenda, por outro lado, demonstrava mais apego às leis. Para ele a nula

concessão da Câmara não deveria ser confirmada pelo rei. Tal ação seria contra a disposição da

Lei do Reino que fundado na utilidade pública proibia que as Corporações, como as dos

suplicantes adquiram assim e conservem o domínio de bens de raiz25. Desta forma, as terras

deveriam ser tomadas da irmandade e incorporados aos bens do Conselho. De fato sempre houve

um esforço da Coroa no sentido de limitar o patrimônio das irmandades. As Ordenações Filipinas

definiam: (…) as igrejas e ordens não comprem bens de raiz sem licença del-Rei26. Para o

Procurador da Fazenda a lei deveria ser seguida à risca.

Na verdade a discordância entre as autoridades revela que não havia consenso no que se

refere ao modo de lidar com as questões envolvendo as irmandades. Se em algumas ocasiões

elas pareciam representar um risco para a sociedade, como dava a entender a representação dos

Vigários colados das Minas referida anteriormente, em outras elas poderiam se tornar parceiras

da Igreja e da Coroa, contribuindo para a utilidade pública.

Os pareceres do Governador e do Procurador da Coroa demonstram ainda que a diligência

dos confrades em manterem dignamente sua devoção, apesar de sua pobreza e da condição

cativa da maior parte deles, contava a favor das irmandades. Isso talvez denotasse para as

autoridades um fervor cristão que contribuiria para a manutenção da ordem social. Aliás, a

23 Idem. 24 Idem. 25 Idem. 26 Ordenações Filipinas e Leis de Reino de Portugal, livro 2o, título 18. Coimbra: Na Real Imprensa da Universidade, 7a ed, 1789. Apud: BORGES, Célia. Op. Cit., p. 99.

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anulação da concessão do terreno à Irmandade, tal como queria o Procurador da Fazenda,

poderia ser motivo de perturbação da paz social. É provável que os irmãos do Rosário não

assistissem passivamente à tomada de seus bens. Findos os meios legais, talvez utilizassem

meios de protesto mais incisivos ou agressivos. Neste respeito o Governador e o Procurador da

Coroa talvez tenham se mostrado mais perspicazes e cautelosos do que o Procurador da

Fazenda.

O fato é que o Conselheiro do Ultramarino, Diogo Rangel de Almeida Castelo Branco,

concordou com o Procurador da Coroa, determinando que as casas estabelecidas e os

rendimentos fossem mantidos sob a posse da Irmandade do Rosário27. Sabemos, ainda que os

irmãos, sem embargo de sua pobreza e cativeiro, conseguiram terminar a magnífica igreja que

haviam principiado a construir na área cedida pela Câmara. Tal templo se mantém até o presente.

Observamos, portanto, que para além dos conflitos com o mundo dos livres os escravos e

forros reunidos em irmandades poderiam estabelecer com ele uma relação mais pacífica. Se não

podemos chamar isso de solidariedade podemos denominá-lo cooperação. Afinal, o que houve foi

uma negociação, uma barganha – um serviço público em troca de um terreno. Não é possível

medir se houve, e até que ponto houve, má fé por parte dos oficiais da Câmara, já que eles

provavelmente estavam cientes da ilegalidade da doação. No entanto, a Irmandade também não

agiu com ingenuidade, talvez sob a orientação de algum letrado (quem sabe o próprio capelão)

ela recorreu ao rei em busca da confirmação da concessão. Os mecanismos legais disponíveis na

sociedade colonial estavam ao alcance de muitos, mesmo dos homens pretos que formavam a

confraria.

3. SOLIDARIEDADE NA CONFRARIA

Se com os brancos se estabelecia uma relação de colaboração interesseira, no interior das

irmandades o que se verificava era o estabelecimento de solidariedades entre os associados.

Obviamente as confrarias não formavam organizações perfeitamente integradas e desprovidas de

conflitos, nem os irmãos recebiam os benefícios de fazer parte de uma corporação sem que

pagassem seus anuais. Porém, o ideal caritativo, advindo das corporações medievais, conformava

muitas das ações das irmandades. A solidariedade no interior das confrarias envolvia o auxílio aos

pobres e aos velhos, bem como o cuidado com os irmãos que faleciam.

A morte de um associado era um dos momentos em que mais se exigia mobilização dos

confrades. Todos deveriam acompanhar o féretro, sob pena de repreensão, e os sufrágios

27 Consulta do Conselho Ultramarino. op. cit..

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deveriam ser realizados de imediato para garantia da boa morte do irmão. Esta era uma

preocupação que rondava não só o imaginário cristão – em vista da possibilidade de se diminuir

as penas das almas no purgatório através das rezas dos fiéis e os sufrágios dos eclesiásticos –

como também o africano, tanto banto quanto sudanês. Segundo Célia Borges, entre os bantos os

mortos tinham uma existência própria que exigia uma série se ritos funerários envolvendo os

cadáveres. Entre os sudaneses os mortos eram enterrados no interior das casas, que eram,

então, um espaço de convívio entre viventes e seres do além28. A autora conclui que: Os irmãos africanos, ao interagirem com os rituais católicos, adaptaram suas crenças a uma nova situação. Integrados à dinâmica promovida pelas confrarias foram imprimindo, aos poucos, novos conteúdos significativos nos imaginários escatológicos de origem29.

O compromisso da Irmandade do Alto da Cruz exemplifica bem a importância dada ao

cuidado com os mortos. Rezava a parte final do capítulo 7: (…) e sendo das Missas, que se disserem pelos Irmãos defuntos, passarão os Padres, que as disserem certidão de as terem ditto em hum livro, que passará na mão do ditto Thesoureyro, tendo a mayor vigilância em que não fiquem por sufragar as Almas dos Irmãos que falecerem, antes com mayor zelo fará que digam com a mayor brevidade.(grifo meu)30

Sobre os sufrágios devidos e a composição do féretro dizia o capítulo 13: Os Irmãos, que entrarem, e se sentarem nos Livros da Irmandade pagarão de entrada meia oitava, e de annual em cada hum anno meya oitava, pelo que ficará a Irmandade obrigada a mandar lhe dizer a cada hum, que falecer quatro Missas, a dar lhe sepultura, e a reconduzillo no seu [Esquife] com Cruz alçada, e Capellão com os Irmãos de Opa, com suas tochas que se puderem ajuntar, mas sendo o Irmão falecido daquelles que tiverem servido na ditta Irmandade de Juizes, terão mais dez missas cada hum31.

É digno de nota que a morte era também um momento em que se marcavam as

diferenças entre os irmãos, impressas pela hierarquia da ocupação de cargos. Além de terem

mais missas pelas suas almas os irmãos que ocupavam cargos nas irmandades eram enterrados

mais próximos do altar que os demais32.

A solidariedade ultrapassava, porém, o mundo dos mortos. Como dito acima os pobres,

velhos e doentes eram também alvo das atenções da irmandade. Outra ação que também poderia

ser tomada em favor dos confrades era o auxílio na compra da alforria destes. Neste respeito é

exemplar o caso da Irmandade de São Gonçalo Garcia dos Pardos da Vila de São João Del Rei.

Em 1786 a Corporação enviou à rainha D. Maria I um requerimento reivindicando o direito de

28 BORGES, Célia.Op. Cit., pp. 169 e 170. 29 Ibidem, p. 171. 30 Compromisso da Irmandade de N. Senhora do Rosário dos Pretos, denominada do Alto da Cruz, da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Antonio Dias de Vila Rica de Ouro Preto, Op. Cit.. 31 Idem. 32 BORGES, Célia.Op. Cit., p. 166.

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comprar a liberdade de seus irmãos cativos, indenizando os donos33. Afirma-se que muitos

senhores se negavam a libertar seus escravos mesmo que estes lhe dessem o preço justo por si.

A redação do documento revela que seu produtor (ou produtores) tinha noções de direito,

considerando o conhecimento de leis demonstrado. Isso talvez confirme a hipótese de Célia

Borges acerca da importância da intervenção dos capelães das irmandades negras no que diz

respeito à composição dos compromissos e a assuntos que envolvessem disputas judiciais. A

autora aponta inclusive para uma postura ideológica própria de certos homens que passaram por

Minas, que os levava a agir em defesa dos escravos34. Como exemplo é citada uma

representação anônima que pedia à Coroa que trouxesse algum alívio aos cativos através da

extensão à Colônia de determinados Alvarás Régios, benéficos aos escravos, que vigiam no

Reino. Esta é também a tônica do documento aqui analisado.

O que se observa é que em busca de alcançar a graça pedida produz-se uma

argumentação que constrói a imagem de um cativeiro rigoroso e injusto, principalmente na

América Portuguesa e principalmente para os pardos. Para tanto, faz-se um contraste entre o

escravo cristão e o mouro. Segundo se lê no documento: o senhor do mouro é obrigado a vendê-

lo para resgate pela ordenação Livro quarto, título onze, parágrafo quarto. Assim, o senhor do

escravo que residia no meio da Cristandade deveria também ser obrigado a receber o justo valor

do seu escravo e dar-lhe liberdade35.

Recorre-se ainda à Lei de 16 de Janeiro de 1773 que dava liberdade aos bisnetos de

escravos moradores no Reino36. Segundo a argumentação do requerimento da Irmandade de São

Gonçalo, muitos dentre os cativos deveriam estar compreendidos nessa lei por serem escravos de

terceira, quarta e quinta geração. Tal não ocorria porque nas infelicíssimas Capitanias da América

a lei era interpretada por homens cheios de ambição, ricos, poderosos e que ocupam os cargos

públicos e da justiça, segundo os quais o Alvará Régio só valeria no Reino, apesar da situação

idêntica entre as Províncias de Portugal e as Capitanias da Colônia37.

Na América Portuguesa, segundo o que se afirma, o declarar um escravo,

especialmente sendo pardo, que tem e quer dar o seu valor e pedir e rogar que se lhe conceda

desta sorte a liberdade provocava a ira do senhor que submetia o escravo a açoites excessivos,

demonstrando toda a sua falta de humanidade e tirania. (grifo meu) O castigo tinha como única

causa o justo e natural desejo de possuir a liberdade. Isso nos leva a outro argumento utilizado

33 Representação da corporação da Irmandade de São Gonçalo Garcia, ereta pelos pardos da Vila de S. João Del Rei, 1786. Manuscritos Avulsos do Arquivo Histórico Ultramarino relativos a Minas Gerais. Microfilmados e Digitalizados – Cx. 125, Doc. 20. 34 BORGES, Célia. Op. Cit., p. 109. 35 Representação da corporação da Irmandade de São Gonçalo Garcia. Op.Cit.. 36 BORGES, Célia. Op. Cit., p. 109. 37 Representação da corporação da Irmandade de São Gonçalo Garcia. Op.Cit..

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em favor dos escravos – o Direito Natural, que envolvia o direito à liberdade. Levando-se em conta

tal direito, não seria justo que, tendo ajuntado o valor para a compra de sua alforria, o escravo

permanecesse perpetuamente sob o cativeiro. Mesmo que os senhores tivessem o direito de não

vender coisa alguma que possuíssem se não o quisessem, haveria uma limitação para tal direito –

a pública utilidade. E a República ganharia com a libertação dos cativos porque adquiriria novos

vassalos úteis ao Estado, novos agricultores para as terras, novos povoadores para os sertões,

novos descobridores para as minas de ouro, novos oficiais de todo o gênero de manufatura para o

comércio tudo isso sem prejuízo dos senhores, que seriam indenizados38.

Os senhores, além de tiranos, são ainda apresentados como transgressores da boa

moral. Um dos motivos de não quererem libertar as escravas pardas seria o fato de que eles as

obrigavam a viver em concubinato involuntário. Algumas (…) por não aceitarem naqueles abomináveis e pecaminosos tratos tem sido objeto de extraordinários castigos, principiando por uma nudez vergonhosa a aquele sexo e seguindo-se açoites (…) opondo assim um obstáculo quase invencível à modéstia e à continência39.

Os senhores ainda empregariam as cativas pardas na prostituição, aumentando seu

patrimônio com a renda obtida na prática dos tratos ilícitos e com os filhos das escravas que

nasciam destes. Os escravos, que já haviam ressaltado a sua cristandade, apontavam agora para

o atentado contra os valores cristãos cometidos pelos senhores.

Os proprietários cometeriam ainda outros atos condenáveis. Libertavam as escravas e

escravos pardos para que auferissem a renda necessária pela sua liberdade. Entretanto, quando

o escravo adquiria algo de considerável o senhor o reescravizava e tomava seus bens,

descumprindo sua promessa. Muitas vezes a situação de desespero chegava a tal ponto que o

escravo se lançava no rio ou buscava outros gêneros de morte voluntária40. Seria também uma

prática senhorial o abandono de escravos velhos e doentes, que lançados fora de casa pelo

senhor eram obrigados a mendigar de porta em porta.

Apresentadas as condições do cativeiro dos pardos na América Portuguesa, faz-se

menção ao privilégio concedido à Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Lisboa de comprar

a liberdade de seus irmãos cativos mesmo contra a vontade do senhor. Conclui-se então: (…) se este benefício alcançaram os ditos irmãos em Lisboa, onde os cativeiros não eram tão requintes nem tão rigorosos, onde não haviam tantos motivos urgentes como o que foram ponderados, com muita mais razão deve esperar esta Irmandade de São Gonçalo Garcia para seus irmãos escravos o mesmo privilégio41.

38 Idem. 39 Idem. 40 Idem. 41 Idem.

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O requerimento dos irmãos pardos de São Gonçalo Garcia foi redigido, parece-me, a

partir de dois grandes eixos argumentativos – um jurídico, com o apelo às leis portuguesas, e

outro moral, destacando a desumanidade e sordidez dos senhores na Colônia. Embora tenha sido

produzido com um objetivo específico, constituindo-se num discurso sobre a escravidão – o que

exige cautela do pesquisador – o documento pode nos revelar ou nos fazer refletir sobre alguns

aspectos da escravidão.

Não obstante, ter-se carregado nas tintas, e isso por razões óbvias, a representação dos

irmãos de São Gonçalo ressalta todo o potencial de violência do escravismo. As situações

descritas – violência sexual, a prostituição o abandono de escravos velhos – eram passíveis de

ocorrer e é bem provável que tenham ocorrido. Entretanto, há indicativos de que tais práticas

eram condenadas, pelo menos por parte da população, e que também poderiam sê-lo pela Coroa,

haja vista serem utilizadas para convencer a rainha de que os confrades mereciam a graça

requerida.

Reforça-se ainda o caráter político da escravidão. A alforria não era uma conquista

apenas econômica, havia que se contar com a disposição senhorial mesmo que já se tivesse

acumulado pecúlio suficiente para a compra da liberdade. O processo de mudança de estatuto

jurídico exigia ao mesmo tempo uma negociação com o senhor. Conquistar o afeto do proprietário

era também um passo que contribuía para que este se dispusesse a conceder a liberdade ao seu

cativo. A ex-escrava Rita de Sousa Lobo afirmou ter conseguido sua carta de manumissão não

apenas por ter dado uma Livra de Ouro por ela, mas porque seus senhores lhe tinham amor42.

Indicativo da necessidade da disposição senhorial de vender ao escravo a alforria é também a

decisão expressa pela liberta Tula de Távora Ferreira em seu testamento. Escrava de Luzia de

Távora de Assunção, Tula foi dada como dote à filha de sua senhora Guiomar de Távora Ferreira,

que se casou com Antônio Pais Chaves. Este lhe passou carta de manumissão pelo valor de

250$000 em ouro. Entretanto, embora tenha comprado sua liberdade, Tula deixou cinco oitavas

de ouro para seu antigo senhor, segundo declarava no testamento pelo benefício que me fez de

me passar a dita carta43. No caso da Irmandade de São Gonçalo Garcia dos Pardos, se a

negociação foi tentada, não deu resultado de modo que foi necessário o emprego de outro tipo de

estratégia que visava ao alcance da liberdade à despeito da vontade do senhor.

Frente à opressão senhorial, a irmandade poderia se constituir num instrumento de

defesa e de reivindicação daquilo que se tinha como justo. Neste sentido, a utilização dos meios

legais mostra uma ação tomada dentro do sistema, sem intenções de rompimento com o

42 Requerimento de Rita de Souza Lobo, 1779, Manuscritos Avulsos do Arquivo Histórico Ultramarino relativos a Minas Gerais. Microfilmados e Digitalizados – Cx. 115, Doc. 60. 43 Inventário post-mortem de Tula de Távora Ferreira, 1755, Arquivo Histórico da Casa do Pilar de Ouro Preto (MG).

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escravismo. Tratava-se aqui de libertar os irmãos daquela irmandade específica – a de São

Gonçalo Garcia dos Pardos – não todos os cativos. Além disso, ao longo de toda a representação

é recorrente o fato de que os confrades querem a liberdade, mas sem prejuízo dos senhores, quer

dizer, desejam pagar o legítimo valor de suas pessoas44.

É possível ainda refletir sobre o grau de união interna que o pleito contra os senhores

trouxe para a Irmandade. Como já mencionado aqui, as solidariedades intraconfraria não

anulavam os conflitos que poderiam existir. As diferenças étnicas, o que aqui possivelmente não é

o caso, já que a irmandade era formada por pardos, e as disputas pelos cargos poderiam ensejar

lutas e minar a união entre os irmãos. Entretanto, numa situação em que se estabelecia um

objetivo comum a ser atingido em oposição a um inimigo externo e mais poderoso, é provável que

se reforçassem os laços de pertença e de solidariedade entre os irmãos.

De fato, as situações adversas exigiam maior nível de cooperação entre os associados.

Por exemplo, para sustentarem com decência o culto de sua Senhora, os irmãos da Irmandade de

Nossa Senhora do Rosário do Alto da Cruz, furtando os dias livres do cativeiro e concedidos ao

descanso arrisca[vam] suas vidas pelas entranhas da terra sem verem a luz do dia afim de

extraírem para o suprimento dos cargos da sua Irmandade e as mais (…)45.Sendo a maior parte

dos membros da Confraria escravos, era necessária uma significativa mobilização para a

manutenção da devoção. Especialmente nas ocasiões das festas, a principal fonte de renda para

esta Irmandade específica como já mencionamos aqui. No caso da Irmandade do Rosário de Vila

Rica, construir um novo templo e ao mesmo tempo manter a irmandade deve ter sido um

empreendimento desafiador, que deve ter exigido um arrefecimento dos conflitos internos.

* * *

Falando sobre as interpretações acerca das congadas, Marina de Mello e Souza afirma: Importantes veículos de cristianização dos africanos e seus descendentes [as congadas] eram vistas, ora como instrumentos da classe senhorial na domesticação dos escravos e negros livres, ora como espaços de resistência cultural desses últimos, sempre a partir de um ponto de vista que privilegiava a opressão ou a rebeldia46.

Diante disso, a autora propõe um enfoque alternativo que:

44 Idem. 45 Representação da Irmandade dos Etíopes, Crioulos, Pretos Forros e Cativos de Vila Rica de Ouro Preto. Cp. Cit.. 46 MELLO E SOUZA, Marina. Reis negros no Brasil escravista: história da festa de coroação do Rei Congo. Belo Horizonte: editora da UFMG, 2002., p. 19.

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(…) busca traçar o processo histórico no qual as festas de coroação do rei congo se constituíram,

privilegiando a perspectiva do encontro de culturas diferentes, que, em dado contexto de dominação

social, produziu manifestações culturais mestiças47.

Consideramos que uma análise das irmandades de pretos e pardos também não deve ser

feita do ponto de vista dos extremos da rebeldia ou da opressão. As irmandades não eram

compostas por Zumbis ou Pais João, mas estavam também inseridas no processo de negociação

entre escravos e livres48.

É bem verdade que em Minas Gerais a religião católica se impôs sobre as demais49.

Porém, isso não impediu que houvesse uma re-significação das heranças culturais africanas no

seu processo de interação com os rituais cristãos. O resultado foi que no seio das irmandades de

homens pretos criou-se um catolicismo específico, diferente daquele advindo da herança

portuguesa. O processo envolveu muito mais que a simples imposição de uma cultura que

solapava por completo as demais.

Por outro lado, não se pode considerar as confrarias como ilhas de rebeldia ou resistência

em meio ao mar de opressão do sistema escravista. Vimos que até mesmo no conflito com o

mundo branco os pretos e pardos poderiam lançar mão dos meios jurídicos disponíveis na

sociedade a fim de defender aquilo que consideravam como um direito seu. Exemplos disso são

as disputas da Irmandade do Alto da Cruz com o pároco da Matriz de Vila Rica em que os irmãos

puderam legalmente recorrer ao seu compromisso, aprovado na Metrópole. E a representação

dos pardos devotos de São Gonçalo Garcia em São João Del Rei, que apelaram às leis e à

piedade da rainha portuguesa. Tratava-se de uma ação dentro da ordem e, portanto,

conservadora. Embora, ao mesmo tempo, fosse reveladora da habilidade destes forros e cativos

de se apropriarem dos mecanismos de negociação do mundo dos brancos livres a fim de fazer

valer seus interesses, atuando como sujeitos históricos e súditos reconhecidos como legítimos

pelas autoridades metropolitanas.

Tivemos, ainda, a oportunidade de observar que a relação com os brancos não era apenas

conflituosa, que havia a possibilidade de as irmandades, por vezes apontadas como desordeiras e

corruptas, contribuírem para a utilidade pública, disso tirando vantagens.

As irmandades de pretos e pardos não punham em xeque o sistema escravista. Eram

formas de organização coletiva, que significavam para escravos e libertos um espaço de

convivência e autonomia, onde poderiam reconstruir e expressar sua religiosidade. Além disso, as

47 Ibidem, pp. 19 e 20. 48 SILVA, Eduardo. Entre Zumbi e Pai João, o escravo que negocia. In: REIS, João José & SILVA, Eduardo. Negociação e conflito; a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. 49 BORGES, Célia. Op. Cit., p. 171.

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confrarias eram uma estratégia para lidar com as incertezas da vida escrava. Frente ao

desamparo e à opressão os irmãos poderiam contar uns com os outros, numa rede de

solidariedade que era extensiva até mesmo ao momento da morte. Momento este em que as

almas dos mortos dependiam sobremaneira dos vivos.

Ana Paula dos Santos Rangel é Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História Social - UFRJ

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“A FORMA DE FAZER TESTAMENTO”: APONTAMENTOS ACERCA DE UM OPÚSCULO SETECENTISTA

Álvaro de Araújo Antunes

Resumo: O artigo traz a transcrição e alguns comentários sobre um opúsculo apresentado à “Real Mesa Censória” na segunda metade do século XVIII. Trata-se do opúsculo intitulado “a forma de fazer testamento”, de autoria de Antônio das Neves. O texto possui uma nítida função administrativa, objetivando auxiliar e formalizar a confecção de testamentos. O presente artigo, além de trazer a transcrição do documento, faz algumas considerações sobre as possibilidades de investigação dos testamentos, entendendo-os, especialmente, como um instrumento administrativo. Palavras-chave: Testamentos; Século XVIII; Real Mesa Censória; História da administração

Abstract: The paper presents the transcription of and some comments on a booklet presented to the "Royal Censorious Committee" in the second half of 18th century. The booklet is called "how to make a testament", by Antonio das Neves, and has a clear administrative function, aiming at helping and formalizing testament production. Besides presenting Antonio das Neves booklet transcription, this paper discusses the possibilities of investigating testaments, taking them mainly as administrative apparatuses. keywords: Testaments; 18th century; Royal Censorious Committee; Administration History

São prolíficas e variadas as análises historiográficas baseadas nos testamentos. A

riqueza desse tipo de fonte é ratificada em trabalhos que enfocam aspectos econômicos, sociais,

políticos, administrativos e culturais. Aspectos culturais e do imaginário social são revelados: nas

evocações dos santos de devoção e da corte celestial; nas elaborações sobre o Além; nos

procedimentos para ascensão e perdão das faltas; nas determinações do local de exumação etc.

Revelam, ainda, as relações familiares, sociais e políticas rememoradas nos últimos desejos do

moribundo que, diante da morte, poderia reconhecer a existência de filhos fora do casamento, por

exemplo. Outrossim, no testamento é possível identificar indicações quanto à posse e circulação

de bens, entre outros elementos da documentação que o olhar do pesquisador pode desvelar1.

A distinção destes e de outros campos, todavia, pode levar a uma impressão equivocada

de seções estanques e evidentes, campos naturais da História. Em verdade, a constituição

dessas áreas é muito mais fruto de uma disposição e operação do historiador que, diante das

informações presentes no testamento, privilegia e seciona esse ou aquele elemento conforme os

interesses e necessidades da pesquisa.

1 Vários são os trabalhos que, direta ou indiretamente, utilizam o testamento como fonte de pesquisa, dentre eles: ARIÈS, Philippe. O homem diante da Morte. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982. REIS, João José. A Morte é uma festa. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. CAMPOS, Adalgisa Arantes. Considerações sobre a pompa fúnebre na Capitania das Minas: o século XVIII. Revista do departamento de História FAFICH / UFMG. Belo Horizonte, n.4, p.5-24, jun. 1987. e MATOSO, Kátia. “testamentos de Escravos Libertos na Bahia do século XIX: uma doente para o estudo das mentalidades”. Publicações do Centro de Estudos Baiano., Salvador. 1979. PAIVA, Eduardo França. Escravidão e Universo Cultural na Colônia: Minas Gerais, 1716-1789. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2001.

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Nestes termos, o presente artigo não faz mais do que sugerir algumas dessas construções,

algumas possibilidades de pesquisa. Para isso conta com a valiosa contribuição do opúsculo

setecentista e de trabalhos que analisam os testamentos.

Dentro das diversas possibilidades que a produção historiográfica coloca à pesquisa, o

artigo ressaltará alguns aspectos administrativos que envolvem a formulação de um testamento,

entendido não somente como o registro das vontades do falecido, mas também como um meio de

produção e difusão do poder gerido pela Igreja e pelo Estado2. Essas dimensões são discerníveis

na “forma de fazer testamento”, escrita por Antônio das Neves.

O opúsculo de Antônio das Neves depura um modelo das formas testamentais correntes

no século XVIII, apresentando a estrutura do testamento, limpo das particularidades - o nome do

falecido, sua condição social, os laços que firmou quando vivo, os santos de devoção... Para se

usar uma metáfora, Neves reconstrói um esqueleto, destituído de carne, tecidos e tendões. O

documento é significativo por revelar a estrutura dos testamentos.

Descrição e possibilidades “A forma de fazer testamento” é um texto da segunda metade do século XVIII,

provavelmente escrito na década de 703. Como mencionado, a autoria é de Antônio das Neves,

de quem pouco se conhece, além dos interesses e intenções que revela em sua obra. Nela, o

autor setecentista mostra ter conhecimento e afinidade com os procedimentos notoriais, o que

permitiria especulações sobre sua proximidade com o corpo administrativo.

Ao apresentar sua obra à Real Mesa Censória – órgão responsável pelo controle da

produção, compra, venda e posse de livros –, Antônio das Neves pleiteava uma licença para a

publicação, tudo conforme a exigências legais4. Não se sabe se a obra foi publicada, apesar de

sua suposta utilidade no serviço administrativo. Mas, em meio às dúvidas, fica certa a significativa 2 A abordagem da documentação administrativa como instrumento de difusão e efetivação do poder do Estado e da Igreja pode ludibriar o historiador quanto à eficácia desse sistema. Pode levar a crer que o cotidiano do Império Português fosse de todo regrado e monitorado pelas autoridades. Uma vasta bibliografia discute a difusão dos poderes em meio à sociedade e sua coexistência, influencia e/ou interferência na ação dos órgãos de administração centrais. Não cabe, aqui, uma discussão detalhada de aspectos tão complexos que envolveram vários estudos de qualidade. Vale, contudo, apontar alguns trabalhos acerca do assunto: ANASTASIA, Carla Junho. Vassalos rebeldes: violência coletiva nas Minas na primeira metade do século XVIII. Belo Horizonte: C/Arte, 1998. FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato brasileiro. 10 ed. São Paulo: Globo, 1996. p. 149. v.1. PRADO JÚNIOR. Caio. Formação do Brasil contemporâneo; Colônia. 20 ed. São Paulo: Brasiliense, 1987. SCHWARTZ, Stuart. B. Burocracia e sociedade no Brasil colonial: a suprema corte e seus juizes: 1609-1751. São Paulo: Perspectiva, 1979. 3 O opúsculo é um manuscrito de dimensões medianas, um in-quarto, para usar aqui a designação habitual da época, o que correspondia ao in-folio dobrado duas vezes. Das oito páginas, contando-se frente e verso, apenas quatro estão escritas, sendo que a última registra o nome do autor. O documento encontra-se conservado no Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), em Lisboa, no fundo da Real Mesa Censória, Caixa 370, documento 4684.

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intenção do autor em divulgar uma fórmula, um modelo de como se fazer testamento, na tentativa

de auxiliar nos trabalhos notoriais.

O documento transcrito não é propriamente um testamento, mas sim um guia de como

este deveria ser elaborado. É, portanto, um instrumento de caráter evidentemente administrativo,

que visava apresentar as formalidades, os cuidados, as disposições da lei. Revelava, sobretudo,

uma preocupação em conferir ao testamento um aspecto de legalidade. Uma intenção que

esbarrava em dificuldades bem palpáveis, como a expressa no seguinte trecho: “Em lugares

desertos, seja o testamento cerrado, ou aberto,/ bastam três testemunhas e, na campanha, bastão

duas [...]”5.O que se desprende desse fragmento é um problema comum em várias localidades do

Império português, marcadas por seus imensos vazios demográficos e pelo restrito raio de

atuação e influência dos órgãos administrativos.

Aspecto semelhante também se distingue no caso, mencionado pelo autor, dos

testamentos nuncupativos, ou seja, realizados oralmente. A ocorrência desse tipo de expediente

pode indicar, basicamente, duas possibilidades. A primeira aponta para a necessidade imediata

de testar, o que inviabilizaria a formulação escrita. A segunda sugere uma outra espécie de vazio:

o “vazio demográfico de letrados”, a insuficiência de pessoas em lugares ermos que soubessem

escrever, implicando em uma restrição da ação administrativa.

O caso do vazio demográfico ou do desconhecimento da linguagem escrita, ainda que

indiquem condições sociais e culturais, revelam uma deficiência do que António Manuel Hespanha

chamou de condições materiais para a produção e difusão do poder. Os aspectos demográficos,

segundo o autor, são um desses fatores essenciais para a constituição do poder. Na vastidão da

Colônia, a maior densidade demográfica contribuiria para uma maior dominação geográfica e

política. Neste sentido, pode-se dizer que a efetivação do domínio é dependente, dentre outros

fatores, do controle do espaço6.

A escrita também seria outro meio para a produção e difusão do poder, pois: sempre que houvesse necessidade de constituir um título ou um a prova, isso passava pelo tribunal ou pelo notário e o seu suporte era, inevitavelmente, o acto judicial ou o documento autentico ou autenticado produzido pelo notário. No notário se documentavam, naturalmente, as transmissões e alterações do estatuto dos bens imóveis, a constituição e quitação, a dotação da mulher e da filha, o testamento, as finanças e hipotecas7.

4 Sobre a Real Mesa Censória, ver, entre outros: VILLALTA, Luiz Carlos. Reformismo ilustrado, censura e práticas de leitura: usos do livro na América Latina. São Paulo: Departamento de História da USP, 1999. (Tese, Doutorado em História). 5ANTT, Caixa 370, 4684. 6 HESPANHA, António Manuel. “Centro e Periferia nas Estruturas Administrativas do Antigo Regime”. Ler História. Revista Quadrimestral, N.8, 1986. 7 HESPANHA, António Manuel. Justiça e Litigiosidade: História e Prospectiva. Lisboa: Fundação Caluste Gulbenkian, 1993. p.407.

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De fato, a escrita viabilizaria um alargamento do poder, na medida em que permitiria

vencer o espaço e o tempo. Por meio de um documento escrito é possível difundir informações e

vencer distâncias de forma mais rápida, eficaz e controlada, se comparada à linguagem oral8.

Entretanto, o conhecimento da linguagem escrita não era suficiente às carências do Estado

que, para gerir seus interesses e/ou zelar pelos do povo, necessitava de um conhecimento formal,

padronizado; de onde as várias leis, regimentos e extravagantes. Ao propor um modelo, uma

padronização de procedimentos e de escrita, Antônio das Neves buscava contribuir diretamente

para a fomentação do espaço administrativo e a maior inserção do Estado e da Igreja no

cotidiano9.

Em par com o Estado, a Igreja estava presente e geria os vários rituais da vida, como o

batismo, o casamento e a própria morte. Como bem observou Caio Prado Junior, no século XVIII

era “inconcebível e inconcebida uma existência à margem da Religião e da Igreja” 10. No que toca

a morte, a Igreja conferia os atestados de óbitos e, através das misericórdias e irmandades,

detinha o “monopólio dos enterros”, como afirmou Russel-Wood, ou o “manuseio simbólico da

morte”, como apontou Adalgisa Arantes Campos11.

Entretanto, a gerência da morte não era incumbência exclusiva da Igreja. Assim como em

outras ocasiões, ela se irmanava ao Estado na administração de aspectos da vida e, no caso, da

morte. O Estado cuidava da distribuição dos legados dos falecidos e da quitação de suas dívidas,

conforme a lei e a vontade expressa no testamento. Para isso, contava com agentes

administrativos, como o Juiz de Órfãos e o Provedor das Capelas e Resíduos, responsáveis,

sobretudo, por fazer justiça, distribuindo, a cada um, o que lhe era de direito. Desta maneira, as

8 “ [...] a escrita permite o alargamento do âmbito espacial do poder; a carta permite produzir efeitos político-administrativos em lugares distantes. Depois, a escrita vence o tempo, cirando uma memória administrativa mais certa e comprovável. No domínio dos processos jurídicos e administrativos, ela estabelece novos meios de prova, um novo recorte do caso sub judice, um novo ritmo temporal de desenvolvimento processual, um novo estilo de participação no processo e uma nova estratégia de resolução dos conflitos. No plano dos mecanismos de controle político, a redução a escrito dos actos políticos possibilita o recurso fácil para instâncias políticas superiores e a reapreciação por estas da decisão inferior. Mas, sobretudo, a escrita introduz um fator de discriminação social, que virá a ser decisivo durante toda a época moderna - a distinção entre analfabetos e alfabetizados. Perante a mensagem escrita, uma parte importantíssima da sociedade moderna fica marginalizada e dependente da mediação dos possuidores de um certo capital cultural – saber ler e escrever.”(...) HESPANHA, António Manuel. “Centro e Periferia nas Estruturas Administrativas do Antigo Regime”. Ler História. Revista Quadrimestral, N.8, p. 47. 9 Conforme Michel de Certeau, a escrita só possui sentido fora de si mesma, diante do leitor. A vida, esse morrer constante, sempre encoberto no cotidiano e exilado nos hospitais e nas casas de repouso (doce ironia), indica sentido fora de si mesma, no além. Uma forma de lidar com aquilo que é obsceno à vida, isto é a morte, é tentar controlá-la por meio de mecanismos escritos que assegurem uma certa continuidade, por meio dos registros e legados materiais deixados aos entes queridos e pela crença explicita de uma vida no além. (CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano. Tradução de Epharaim Ferreira Alves. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994. p.248.) 10 PRADO JÚNIOR. Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 1979 p.329. 11 RUSSEL-WOOD. Fidalgos e Filantropos: a santa casa da misericórdia da Bahia, 1550-1755. Tradução de Sérgio Duarte. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1981. p. 153. e CAMPOS, Adalgisa Arantes. Considerações sobre a pompa fúnebre na Capitania das Minas – O século XVIII. Revista do Departamento de História, Belo Horizonte, FAICH-UFMG, N.4, 1987.p.11.

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determinações testamentárias do defunto, ainda que consideradas sagradas, eram passíveis de

questionamento se ferissem a Justiça.

Se a Igreja zelava pela ritualística da morte, o Estado cuidava da efetivação da Justiça,

que implicava na distribuição dos bens e no pagamento das dívidas deixadas pelo falecido. Tais

preocupações estão estampadas nos testamentos, nas disposições dos moribundos, os quais,

diante da morte, se preocupavam, sobretudo, com dois tipos de problemas: a distribuição de seus

bens para o conforto dos familiares e para a quitação das dívidas e a segurança da alma.

Do que foi colocado, poder-se-ia questionar as disposições estampadas no testamento em

relação às exigências do Estado e da Igreja e/ou às preocupações que o moribundo tinha em

relação sua família, amigos, alma e, até mesmo, credores. Para além das possíveis questões que

podem ser levantadas, resta o fato de que no testamento é palpável o exercício da Igreja em

cuidar dos aspectos espirituais e do Estado em gerir as questões materiais que envolvem a morte.

Antônio das Neves não deixa de observar, em várias passagens, a disposição dos

referidos elementos na composição do testamento. O autor adverte, por exemplo, que o testador

deveria explicitar a forma como seus bens seriam distribuídos: se forem muitos os herdeiros, deve-se declarar se os/ institui pro rata e igualmente ou a cada um tanto. Po/de-se também fazer substituições de herdeiros dizendo:/ Deixo a F. por meu herdeiro e, morrendo ele/ [p.2] sem filhos, substituo por meu herdeiro tal pessoa, Igreja, mosteiro etc.

Antônio das Neves comenta, ainda, sobre regime de casamento, que deveria ser

considerado no momento da morte de uma das partes. Ao se casarem, os noivos estabeleciam

como deveriam ser compartilhados seus bens e, na ocasião da morte de uma das partes, o

estabelecido deveria ser cumprido. Declaro que meu casamento foi feito por carta de a/ metade, ou por contrato de arras, ou dote, tanto de/ arras, tanto de dote e conforme a isto se partirá en/tre mim e minha mulher todo o monte; e porque me cabe,/ as duas partes são de meus herdeiros, mulher e só a terça é minha,/ dela dispondo pelo modo o seguinte12.

O que determina o regime nupcial é o contrato de casamento ou, na falta desse, a lei ou o

costume. Na “forma de fazer testamento” constam três tipos de contratos: o de “carta de a

metade”, que pressupunha a comunhão universal de bens, e o de dote e/ou arras, que implicavam

na distinção dos bens que a mulher adquiriu de seu pai (dote) ou antigo marido ou presente de

terceiros (arras) 13. Os dois últimos, no caso do falecimento do homem, não entravam no cômputo

dos bens inventariados destinados à divisão e ao pagamento das dívidas. No caso do casamento

de “carta a metade”, todos os bens dos cônjuges deveriam ser inventariados sem distinções de

12 ANTT, Caixa 370, 4684. 13 GILISSEN, John. Introdução a História do Direito. Tradução: António Manuel Hespanha e L.M. Macaísta Malheiros. 3.ed. Lisboa: Fundação Caluste Gulbenkian, 2001. p. 585 e 593.

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posse. Assim, poder-se-ia contar com a totalidade dos bens da família para se pagar as dívidas,

incluindo as do enterro, e o que restava era dividido em duas partes destinadas ao marido e a

mulher. A metade que cabia ao cônjuge falecido era dividida em outras três partes, ficando duas

partes para os herdeiros e cônjuge, as Legitimas, e uma parte, a Terça, para o defunto: “as duas

partes são de meus herdeiros, mulher e só a terça é minha” 14.

Como mencionado, o gasto com o enterro, pompas, hábitos era pago com parte do monte-

mor dos bens. Segundo o modelo construído por Antônio das Neves e conforme é possível se

reconhecer na investigação dos testamentos, existe um espaço no qual o defunto explicitava suas

expectativas com o próprio enterro: “ordeno que meu corpo seja sepultado em tal Igreja, no/ hábito

de tal Religião e levado com tal acompanhamento/”. Como parte das cerimônias que

acompanhariam sua morte, o moribundo encomendava também missas e sufrágios: “por minha

alma deixo tais sufrágios, tantas missas de esmola/ de tanto, tantos ofícios para o que deixo tanto

em dinheiro” 15. Enquanto os gastos com o enterro eram cobertos com o grosso dos bens, as

dívidas com missas e sufrágios seriam pagas com a Terça do falecido. Da Terça ele podia poderia

usufruir com maior liberdade, legando-a a parentes colaterais, por exemplo16. Mas, normalmente,

com a Terça visava-se assegurar a alma diante do julgamento divino, afinal “o funeral era

insuficiente para colocar a alma no caminho do Paraíso, cabendo então, na contabilidade da

morte a instituição e prática da terça” 17.

As quantias dispensadas em missas e pompas, bem como certas disposições da herança

e outros elementos testamentais constituíam a vontade explicita do moribundo. São espaços onde

eram formados os tecidos, nervos e tendões que davam rosto ao esqueleto montado por Neves.

Particularidades nas quais é possível distinguir relações pessoais dos fiéis com o fim inevitável.

Em que pesem os estudos comparativos e quantitativos que se apercebem de constantes na

relação do homem com a morte, o testamento não deixa de trazer a face do moribundo. No

registro testamental estão estampadas suas derradeiras preocupações e desejos, ainda que neles

se reflitam as marcas das crenças de um tempo. No testamento fica evidente tal vetor de relações

firmado entre o indivíduo e as crenças da sociedade, tanto quanto suas relações, de ordem

administrativa e religiosa, com o Estado e a Igreja. De fato, em um momento tão particular como o

14 Havia também as tercinhas, retirada do montante líquido dos bens em beneficio da alma do falecido, que vigoravam nos casos em que não havia testamento. (CHAMON, Carla Simone. “O bem da alma: a terça e a tercinha do defunto nos inventários do século XVIII da Comarca do Rio das Velhas”. Vária História. Belo Horizonte. N.12, 1993. p.63.) 15 ANTT, Caixa 370, 4684. 16 Conforme Antônio das Neves: “A Terça pode o testador dá-la a quem quiser/ e não é obrigado a dá-la aos parentes colaterais, ainda que sejam ir/mãos.” ANTT, Caixa 370, 4684. 17 CHAMON, Carla Simone. “O bem da alma: a terça e a tercinha do defunto nos inventários do século XVIII da Comarca do Rio das Velhas”. Vária História. Belo Horizonte. N.12, 1993. p.65.

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da morte, o moribundo não deixa de protagonizar um evento social que interferia no cotidiano da

comunidade e merecia a atenção do Estado e da Igreja18.

٭

Assim como no ofício de um anatomista, ao historiador é permitido dissecar os

testamentos e, conforme o interesse investigativo, botar à vista tendões, tecidos, órgãos. A obra

de Antônio das Neves contribui com esse exercício, pois permite ao historiador visualizar a

estrutura óssea dos testamentos. Nesse artigo, a estrutura montada por Neves foi utilizada para

se apresentar um ou outro conjunto de ossos e articulações que, essencialmente, envolvem a

atividade administrativa da morte. Não se pensou, contudo, em supervalorizar uma espécie de

enfoque investigativo de caráter marcadamente administrativo. Talvez o mais profundo do homem

seja, de fato, sua pele, individualidade. Todavia, não há como não reparar e ser seduzido pela

contribuição que o trabalho de um “anatomista” como Antônio das Neves traz às pesquisas

históricas, auxiliando na leitura dos testamentos e sugerindo possibilidades de pesquisas,

algumas das quais apontadas neste artigo. ٭

“A Forma De Fazer Testamento” [p.1]19

“Em nome da Santíssima Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo; três/ pessoas distintas e um

só Deus verdadeiro. Sai/bam quanto este instrumento virem, como no ano do/ nascimento de

nosso Senhor Jesus Cristo de 177etc, aos tantos/ dias, de tal mês, e em tal parte, eu N., estando

em/ meu perfeito juízo e entendimento, que nosso senhor me/ deu, e doente em cama (se estiver),

temendo-me da/ morte e desejando por minha alma no caminho da/ salvação, por não saber o

que nosso senhor de mim quer fa/zer e quando será servido levar-me para si, faço este/

testamento na forma e teor seguinte:/

Primeiramente, encomendo minha alma a Santíssima Trin/dade, que a criou, e rogo ao

Eterno Padre que, pela morte/ de seu unigênito Filho, a queira receber, e a [Virgem Maria] e

18 Conforme Philipe Áries, Edgar Morin considera que, diante da morte, haveria uma tomada de consciência de si mesmo, da finitude do ser. Ariès, por sua vez, acredita que existam outros critérios possíveis além da idéia de “consciência de si mesmo”. Considera que “a morte, tal como a vida, não é um ato apenas individual” e que, nesses momentos, os ritos e cerimônias marcam uma solidariedade do indivíduo com a sua linhagem e sua comunidade”. (ARIÈS, Philippe. O homem diante da Morte. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982. p. 657 e 658) Em outra escala, poderíamos visualizar o Estado e a Igreja, desconsiderando suas efetivas limitações, como elementos ordenadores dessa comunidade e dos ritos e eventos que engendra. 19 A transcrição buscou modernizar a escrita, preservando, contudo, a separação das frases e identificando a mudança de páginas.

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Nossa [Senhora]/, ao Anjo de minha guarda, ao Santo do meu nome e ao N. da minha especial

de/voção e a todos os Santos e Santas da Corte do céu/ sejam meus intercessores quando minha

alma deste mun/do partir para que vá gozar a bem-aventurança para que foi/ criada, porque como

verdadeiro cristão protesto viver e mor/rer na santidade da Fé católica e crer tudo o que tem e crê

a santa m/adre igreja Romana, em cuja fé espero salvar a minha/ alma pelos merecimentos da

paixão e morte de meu senhor/[p1v] Jesus Cristo.

Declaro que sou natural de tal parte, por filho de Fulano e Fu/lana, legitimo (ou não) e que

tenho (ou não) herdeiros, meus/ filhos ou descendentes ou ascendentes etc./

Declaro que em todo o monte há esta fazenda/ (se a tem), tanto de raiz, tanto de móvel

precioso/, fora as miudezas da casa. Declaro que tenho tais dí/vidas (se tiver) que se hão de

pagar do monte por se/rem contraídas na administração da Família e tais/ dívidas se pagarão da

minha metade ou terça./

Declaro que meu casamento foi feito por carta de a/ metade, ou por contrato de arras, ou

dote, tanto de/ arras, tanto de dote e conforme a isto se partirá en/tre mim e minha mulher todo o

monte; e porque me cabe,/ as duas partes são de meus herdeiros, mulher e só a terça é

minha,/dela dispondo pelo modo o seguinte./

Declaro que nomeio e instituo por meu herdeiro uni/versal, de tudo o que depois de pagas

as minhas dividas e cumpri/dos o meus legados restar da minha fazenda, a tal pessoa, Igreja,/

mosteiro etc.

* N.B. se forem muitos os herdeiros, deve-se declarar se os/ institui pro rata e igualmente ou a

cada um tanto. Po/de-se também fazer substituições de herdeiros dizendo:/

Deixo a F. por meu herdeiro e, morrendo ele/ [p2] sem filhos, substituo por meu herdeiro tal

pessoa, Igreja, mosteiro etc./20

Declaro que deixo tais legados, a tais pessoas, Igreja, Com/frarias etc. Item: declaro que

tal escravo deixo forro ou com/ tantos anos de serviço.

**N.B. Primeiro se deve por os anos que quer que sirva e que, depois/, o deixa forro./

Aqui se pode aprovar ou revogar, querendo, qualquer cé/dula, codicilo ou testamento

antecedente./

***N.B. Ainda que outro testamento antecedente tenha sido feito e/ firmado com juramento, pode

revoga-lo, exceto se for de coisas/ pias./

20 A referência “NB”, que se encontrada no original, antecede as notas do autor e são distinguidas, nessa tradução, pela apresentação em itálico.

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Rogo a tal ou tais pessoas, que por serviço de Deus quei/ram ser meus testamenteiros./

Ordeno que meu corpo seja sepultado em tal Igreja, no/ habito de tal Religião e levado com

tal acompanhamento./ Por minha alma deixo tais sufrágios, tantas missas de esmola/ de tanto,

tantos ofícios para o que deixo tanto em dinheiro./

E por quanto esta é minha última vontade, me assino ou rogo/ ao escrivão que por mim

assine, por eu não saber ou não poder/ assinar. Em tal parte dia mês e ano./

* N.B. No tempo da morte, pode-se fazer testamento cha/mado Nuncupativo, isto é, de palavras,

sem nenhuma es/critura, diante de seis testemunhas homens ou mulheres, o qual testa/mento,

contudo, não valera nem terá efeito, se o enfermo convalescer [p.3]/ segundo tem a ordenação do

reino./

Em lugares desertos, seja o testamento cerrado, ou aberto,/ bastam três testemunhas e,

na campanha, bastão duas,na cidade e/ povoado serão necessárias seis./

Segundo a ordenação do reino, no tempo da morte,/ se pode fazer o testamento e

nuncupativo de palavra e Sem etc./

Os herdeiros [meus] dão os descendentes, na falta destes, os as/cendentes; os

ascendentes mais propínquos, excluem os remotos,/ mas os filhos não impedem os netos, mas

estes todos herdam somente a/ parte que cabia a seu pai. A Terça pode o testador dá-la a quem

quiser/ e não é obrigado a dá-la aos parentes colaterais, ainda que sejam ir/mãos.”

Álvaro de Araújo Antunes é Professor da Universidade Federal de Ouro Preto

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Jovem Pesquisador:

OS HOMENS RICOS DAS MINAS NAS MALHAS DO IMPÉRIO PORTUGUÊS

Prof. Dra. Carla Maria Carvalho de Almeida

Ana Paula dos Santos Rangel Juliano Custódio Sobrinho Lívia Nascimento Monteiro

Resumo: Este artigo busca analisar como a aquisição de títulos militares e de sesmarias poderia se constituir em estratégias de manutenção e consolidação do status por parte dos homens ricos de Minas Gerais no contexto de Antigo Regime do Império Português. Palavras-chave: 1. Império Português; 2. Minas Colonial; 3. Homens ricos

Abstract: In this article we will try to show that the acquisition of military patents and sesmarias could be strategies of maintenance and consolidation of status used by the colonial elite of Minas Gerais. Key words: 1. Portuguese Empire; 2. Colonial Minas; 3. Rich men

INTRODUÇÃO1 No ano de 1755 a cidade de Lisboa foi devastada por um forte terremoto. A fim de verificar

quem poderia enviar recursos para a reconstrução da capital do Império Português, o Conselho

Ultramarino mandou que se elaborasse uma lista com o nome dos mais abastados homens da

Capitania de Minas. Tal lista foi produzida em 1756 pelo então governador das Minas Domingos

Pinheiro. Ela é o ponto de partida da pesquisa desenvolvida pela profª. Drª. Carla Maria Carvalho

de Almeida. A partir dos 1061 nomes registrados é possível delinear quem eram os homens que

constituíam a elite econômica nas Minas Colonial. A análise está centrada, porém, nos homens

ricos das Comarcas de Vila Rica e do Rio das Mortes – são 443 nomes. O período abordado é o

que vai de 1750 a 1822.

A base teórico-metodológica deste estudo provém de uma nova abordagem acerca da

sociedade portuguesa do Antigo Regime e da inserção da colônia brasileira na lógica desta.

Lançando-se mão de conceitos como o de economia do dom e economia política de privilégios, os

historiadores do período, têm constatado o caráter corporativo e hierarquizado das sociedades de

Antigo Regime. No caso português, o que se verifica é a importância da economia da mercê,

conforme indicado por Fernanda Olival. A autora aponta para a lógica presente na sociedade

portuguesa que ressaltava a necessidade de liberalidade da parte da figura do rei, a fim de que

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este tivesse a fidelidade de seus súditos. “Servir”, “pedir”, “dar”, “receber” e “agradecer” seriam

atitudes formadoras de um círculo vicioso, ao qual a sociedade dos séculos XVII e XVIII se sentiria

vinculada, segundo sua posição e interesses.2 Olival dá destaque ao mecanismo das mercês

remuneratórias, que apontam para a obrigação do rei de remunerar os serviços prestados pelos

seus vassalos. Neste sentido, o que se observa é a formação de redes de reciprocidade ou redes

clientelares, que tinham como pólo superior o soberano. Este, por sua vez, poderia estender sua

rede de fidelidades, garantindo o domínio sobre os súditos, embora tivesse seu poder limitado

pela necessidade de retribuir os serviços destes.

As pesquisas relacionadas ao ultramar português têm mostrado que a lógica corporativa e

hierarquizada da sociedade portuguesa perpassava todo o território colonial. A economia política

de privilégios permitia a extensão da autoridade real por todo o Império Ultramarino Português,

pois reforçava os laços de pertença e sujeição dos súditos de além mar, possibilitando a

governabilidade das colônias. Perceber a inserção da elite mineira nesta lógica, sua relação com

as instâncias centrais do Império, é objetivo da pesquisa mencionada inicialmente.

Um dos corpos documentais analisados são os manuscritos avulsos referentes à capitania

de Minas Gerais do Arquivo Histórico Ultramarino (microfilmados e digitalizados). Através desta

documentação é possível perceber quais as possibilidades de acesso às mercês reais por parte

da elite local mineira – são consultados cartas, certidões, requerimentos, entre outros. Temos

trabalhado mais intensivamente com os documentos relativos aos 332 homens ricos da Comarca

de Vila Rica. Dentre estes 184 são encontrados recorrendo pelo menos uma vez ao Conselho

Ultramarino – 100 do Termo de Mariana e 84 do de Vila Rica. Realizamos a quantificação dos

tipos de mercês mais solicitadas pelos homens ricos deste último termo. Verificamos que há uma

recorrência significativa dos pedidos relacionados a sesmarias e a patentes militares.

Foram contabilizados 100 requerimentos que podem ser classificados como solicitações de

mercês. Os pedidos vão de confirmações de sesmarias a requerimentos de licença para ir ao

Reino. Conforme o gráfico abaixo quase metade dos requerimentos (45%) diz respeito a patentes

militares, os casos envolvem pedido de provisão, de confirmação (a grande maioria) e de

prorrogação em postos militares. Os pedidos relativos a sesmarias – solicitações e confirmações –

representam 28% do total. De modo que, juntos, os requerimentos relativos a postos militares de

sesmarias perfazem o total de 73% do conjunto.

1 Esse trabalho contou com financiamento do CNPQ e FAPEMIG 2 OLIVAL, Fernanda. As Ordens Militares e o estado Moderno. Honra, Mercê e Venalidade em Portugal (1641-1789). Lisboa: Estar Editora, 2001, p. 18.

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Tipos de solicitações ao Conselho Ultramarino - Termo de Vila Rica

0%5%

10%15%

20%25%

30%35%

40%45%

50%

1

Solicitações

%

Patente MilitarSesmariaOfício civilOrdem MilitarIr ao ReinoNomear serventuárioTutelar os filhosErguer engenho

Fonte: Manuscritos Avulsos do Arquivo Histórico Ultramarino relativos a Minas Gerais.

A partir dos resultados quantitativos e de alguns exemplos retirados da documentação,

procuraremos analisar como a aquisição de títulos militares e de sesmarias poderia se constituir

em estratégias de manutenção e consolidação do status por parte dos homens ricos.

1. ESTRATÉGIAS: A CONSOLIDAÇÃO DO STATUS

1.1 Patentes militares e prestígio social A sociedade colonial possuía um alto grau de militarização. Desde o início da instalação da

máquina do Estado Português na América, a Coroa procurou delegar os deveres de defesa do

território colonial. Desta forma, cada colono era um homem de guerra em potencial.3 Há que se

ressaltar que o próprio Estado Português se constituiu com um caráter militar, o que foi transmitido

para a Colônia Americana.

Um dos principais componentes do aparato militar constituído na América Portuguesa

foram as Companhias de Ordenança. Elas se tornaram uma força militar regulamentada em

3 SILVA, Kalina Vanderlei. O miserável soldo & a boa ordem da sociedade colonial: militarização e marginalidade na Capitania de Pernambuco dos séculos XVII e XVIII. Recife: Fundação de Cultura da cidade do Recife, 2001, pp. 70 e 71.

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território colonial em 1570, através do Regimento das Ordenanças, sendo introduzidas na

Capitania das Minas em 1709, por meio de carta régia.4 Segundo Ana Paula Pereira Costa o

caráter nivelador das Ordenanças gerava grandes expectativas nos colonos do Brasil. Segundo a

autora já que: (…) na América Portuguesa a hierarquia social se forjava na presença do escravismo, o corte social proposto pelas Ordenanças era uma oportunidade de afirmação social e de distinção entre os homens livres, sendo por isso a posse de uma patente nesta força militar algo muito requisitado pelas elites locais.5

Os homens ricos das Minas procuraram tal tipo de inserção militar. Dois deles, Antônio

Ramos dos Reis e José Álvares Maciel, ocuparam um dos postos mais altos na hierarquia da

Companhia de Ordenança de Ouro Preto, a saber, o de capitão-mor. Tal patente conferia ao seu

possuidor “nobreza vitalícia”, podendo ser ocupada apenas pelas pessoas principais de cada

localidade, sendo assim, atestava o prestígio daquele que a alcançasse. Antônio Ramos dos Reis,

que ocupou o posto de capitão-mor de 1741-17616, era o mais rico dos homens bons da Comarca

de Vila Rica. Ocupara o importante cargo de Juiz dos Órfãos de Vila Rica, do qual pediu licença,

além de possuir o Hábito da Ordem de Cristo, também um símbolo de prestígio do qual nos

ocuparemos mais à frente.7

José Álvares Maciel, que substituiu Antônio Ramos dos Reis no posto de capitão-mor

desde a morte deste até finais do século XVIII, também não se limitou a cargos militares. Foi ainda

Escrivão das Execuções de Vila Rica e Escrivão dos Órfãos de São João Del Rei.8 É possível que

a trajetória bem sucedida de José Álvares Maciel em direção à obtenção do título de Sargento Mor

das Ordenanças, tenha relação com a sua união com uma jovem de uma das principais famílias

da região o que reforçaria uma inserção ainda mais destacada na sociedade local. Em 1755,

Maciel unira-se em matrimônio a Juliana Francisca de Oliveira Leite, filha do também homem rico,

Guarda-Mor Maximiliano de Oliveira Leite, membro de uma das melhores famílias da terra.

Maximiliano era neto do lendário Fernão Dias Paes e sobrinho do Guarda-Mor Garcia Rodrigues

Paes9.

4 COSTA, Ana Paula Pereira. Atuação de poderes locais no Império Lusitano: uma análise das chefias militares dos Corpos de Ordenança e de suas estratégias na construção de sua autoridade. Vila Rica, (1735-1777). Rio de Janeiro: UFRJ – Programa de Pós-Graduação em História Social, 2006. Dissertação de Mestrado, pp. 40 e 42. 5 Ibidem, p. 41. 6 Ibidem, p.50 e 51. 7 Inventário post-mortem de Antonio Ramos dos Reis, data, arquivo; AHU/MG/Cx: 22, Doc: 52; Habilitação na Ordem de Cristo. 8 COSTA, Ana Paula Pereira. Atuação de poderes locais no Império Lusitano… op. cit., p. 51; AHU/MG/Cx: 57, Doc: 7; Cx: 71, Doc: 20; Cx: 75, Doc: 18. 9 ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de. Trajetórias imperiais: imigração e sistema de casamentos entre a elite mineira setecentista. In: ALMEIDA, Carla M. C. de e OLIVEIRA, Mônica Ribeiro de (orgs.). Nomes e números: alternativas metodológicas para a história econômica e social. Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2006 (no prelo).

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Não eram apenas os postos nas Companhias de Ordenança, porém, que estavam no

horizonte dos indivíduos da elite mineira. Havia, organizados na Colônia, ainda os corpos militares

Regulares e Auxiliares, designados como infantaria ou cavalaria. Na América Portuguesa, possuir

um título militar era um meio de aquisição de status. Até mesmo a historiografia mais clássica já

alertara para esta situação. Referindo-se à argumentação de Caio Prado Jr. a este respeito, Maria

de Fátima Gouvêa afirma: (…) o autor também destacou o fato de que a concessão de títulos militares constituía um elemento de grande peso em termos da hierarquização social promovida no seio de toda a população masculina, na medida em que quase toda ela era inserida em um corpo tão rigidamente organizado como aquele, dada sua natureza militar10.

O caso de Simão da Rocha Pereira, homem rico da comarca de Vila Rica, é digno de nota

neste sentido, principalmente em vista de sua ascensão dentro do regimento militar do qual fez

parte – a Companhia da Cavalaria Auxiliar de Ligeiros do distrito do Ouro Preto. No ano de 1736,

Simão da Rocha Pereira começou a servir na praça de soldado na dita Companhia, posto que

ocupou por mais de dez anos. Em seguida passou ao posto de alferes, no qual permaneceu por

mais de doze anos, sendo, após, provido na praça de tenente. Anos depois Simão da Rocha

Pereira passou ao posto de Capitão por carta patente do Governador da Capitania Gomes Freire

de Andrada, datada de 10 de outubro de 1761. Embora, já estivesse no exercício do cargo Simão

da Rocha Pereira precisava ainda da confirmação, pelo rei, de sua carta patente. Em 1765, o

Governador das Minas, Luiz Diogo Lobo da Silva, enviou a proposta para a confirmação do dito

homem no posto de Capitão ao rei D. José I. Para o envio desta Simão teve que providenciar uma

série de certidões que comprovassem sua competência.11 A argumentação nelas utilizada é

extremamente interessante, pois ajuda a esclarecer aspectos característicos da sociedade mineira

colonial.

Sendo esta mercê um benefício remuneratório pressupunha um serviço prestado ou por

prestar. Desta forma, numa argumentação em que se pleiteava uma recompensa era preciso

destacar o exercício de um cargo e, para, além disso, o bom exercício deste. O Coronel da

Cavalaria da Ordenança de Vila Rica, Manoel de Souza Ribeiro, afirma que quando foi alferes

Simão desempenhou no dito emprego qualquer ação de que o encarregaram havendo-se nela

com prontidão e inteligência por zelo do Real Serviço. No posto de Capitão, segundo o Coronel,

Simão cumpria tudo de que era encarregado sem queixa, pois era dotado de boa capacidade e

prudência. As referências das demais certidões levaram o Governador a concluir em sua proposta

que Simão da Rocha Pereira tinha a distinção precisa, abundância de bens, idade e saúde

10GOUVÊA, M. F. S.. Redes de Poder na América Portuguesa - o caso dos Homens Bons do Rio de Janeiro, ca.1790-1822. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 18, n. 36, p. 297-330, 1998, p. 302. 11 AHU/MG/Cx: 86, Doc: 10.

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proporcionada a servir qualquer serviço, que possa ocorrer por força do Real Serviço, trata-se

com decência e independência, não tem culpa que o embarace, sendo, portanto, digno da

confirmação da patente.12

É importante ressaltar, também, que Simão da Rocha Pereira não se restringiu a cargos

militares, assim como os dois homens ricos mencionados acima. Conforme se observa no gráfico,

9% dos requerimentos dos homens ricos do Termo de Vila Rica versavam sobre ofícios não

militares, a saber, os de tabelião, escrivão, juiz etc.. De modo que este tipo de mercê também

estava no horizonte daqueles que formavam a elite colonial, embora, aparentemente, não fosse

tão disseminada quanto a patente militar. Aliás, pelos exemplos de que dispomos é possível

afirmar que ocupar cargos na administração colonial potencializava o acesso a postos militares de

maior prestígio. Simão conjugou os dois tipos de oficio. Foi almotacé, vereador e juiz ordinário.

Segundo Manoel de Souza Ribeiro, devido à sua competência ele servira nesta Vila capital das

Minas todos os cargos da República, sendo por último Juiz Ordinário, no qual cargo se houve com

muita limpeza de mãos e grande expedição das partes.13 Nosso homem rico em questão foi

também Tesoureiro da Fazenda Real das Minas Gerais, recebendo provimento para servir na dita

ocupação em 1761.14

Simão da Rocha Pereira soube aproveitar-se muito bem da lógica da sociedade na qual

estava inserido. Acumulou serviços que podiam a qualquer momento ser convertidos em mercês

reais. Sua ascensão militar andou de mãos dadas com a aquisição de cargos políticos. Simão

certamente gozava de significativo prestígio social e pôde estabelecer relações extremamente

favoráveis. Contou com a boa referência do Ouvidor Geral da Comarca de Vila Rica, do Capitão-

mor de Vila Rica – o também homem rico José Álvares Maciel –, do Coronel da Cavalaria, bem

como dos vereadores e do Procurador da Câmara. Este membro da elite colonial mineira tirou

vantagens dos mecanismos da economia política de privilégios.

Em 1766, o Capitão Simão da Rocha Pereira buscou adquirir mais um importante símbolo

de prestígio – o Hábito da Ordem de Cristo. Para tanto, apelou para o caráter remuneratório das

mercês concedidas pelo soberano português. Entre os anos de 1756 e 1757, o capitão fizera

entrar mais de doze arrobas de ouro na Real Casa de Fundição de Vila Rica. E como V.Magde.

por sua Real Grandeza foi servido esperançar de mercês remunerativas a quem bem cumprisse

as condições do Capº 9º § 4º da Lei do dito estabelecimento, pedia ao rei que houvesse por bem

de o remunerar com a mercê do Hábito da Ordem de Cristo ou que for mais do seu real agrado.15

12 Idem. 13 Idem. 14 AHU/MG/Cx: 79, Doc: 9. 15 AHU/MG/Cx: 88, Doc: 6.

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O privilégio do Hábito da Ordem de Cristo foi procurado também por pelo menos outros

três homens ricos – José Ferreira dos Santos, Paulo Pereira de Souza e Manuel Ribeiro dos

Santos. Todos eles lançaram mão da mesma justificativa de merecimento utilizada por Simão da

Rocha Pereira, o tamanho da riqueza que fizeram entrar na Real Casa de Fundição. Um deles,

porém, se valeu, também, de outros argumentos. Vejamos.

Manuel Ribeiro dos Santos alegou no seu requerimento, que como administrador geral

dos dízimos da capitania de Minas Gerais, fez toda a diligência para que não se desencaminhasse

o ouro que entrou na Real Casa de Fundição, como fora determinado pelo Conselho Ultramarino.

E que os próprios generais e governador de Minas o tinham com grande zelo. Ainda afirmou, que

sempre se tratou como nobre (com cavalos e pagens que o acompanham) e que era notório que

era filho de pais sem mecânica.16 Em outro documento José Caetano Pereira, escrivão da

Fazenda Real, alega que Manuel Ribeiro dos Santos nunca fora citado por dívidas e que tratava

magnificamente a lei da Nobreza, no posto de capitão da Ordenança de Vila Rica. Quanto à

companhia de pagens e cavalos, com ele marchavam vestidos e calçados nas ocasiões e funções

que lhe eram atribuídas. Por fim, o escrivão afirma que Deus lhe fez mercê um dos maiores

homens destas Minas.17 Notamos, a partir do requerimento de Manuel Ribeiro dos Santos que

se verificava na Colônia o mesmo tipo de exigência para a obtenção do Hábito de Cristo que havia

no Reino. Fernanda Olival afirma: (…) quase todos os habilitandos tinham em comum o fato de viverem à maneira nobre (…) o modo de vida e a aparência era fundamental, em Portugal, para se conseguir o hábito. Daí o forte empenho no estilo de vida, por parte de quem tinha preocupações nobilitantes18.

Não bastava ser nobre era preciso exteriorizar a nobreza. Daí a preocupação em se viver

nobremente, seguindo os códigos de representação da época, como andar com cavalos e pagens,

sempre calçados e bem vestidos. A distinção deveria ser afirmada e reconhecida primeiramente

no contexto local. Conforme Fernanda Olival: (…) quem tinha pretensões de ascensão, antes de iniciar qualquer processo de disputa antes das instituições centrais da monarquia, em regra começava por se esforçar no contexto local. Os códigos de representação eram mais visíveis e demarcados, boa parte das habilitações decidia-se nesse contexto.19

Manuel Ribeiro dos Santos foi bem sucedido neste esforço de afirmação local. Segundo

observamos no documento redigido pelo escrivão José Caetano Pereira este homem rico era

reconhecido como um dos maiores homens das Minas. Além de viver nobremente Manuel Ribeiro,

16 AHU/MG/Cx: 66, Doc: 56. 17 Ibidem. 18 OLIVAL, Fernanda. Op. cit. P. 370. 19 Idem.

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era também filho de pais sem mecânica, ou seja, atendia ao requisito da limpeza de sangue,

confirmando sua condição de nobre.

Manuel Ribeiro dos Santos reunia, portanto, as exigências para receber a habilitação. Pelo

visto, porém, seu sucesso nessa empreitada teve a ver, ainda, com o prestígio de que gozava

junta à Coroa ou aos órgãos a ela ligados. Esta afirmação baseia-se no fato de que ele foi

dispensado das "provanças" que normalmente eram realizadas para se conceder ou não a

habiltação ao interessado. Segue um trecho da habilitação concedida pela Mesa de Consciência e

Ordens: Hei por bem dispensar nas provanças e habilitações de sua pessoa, a que se deveria proceder, e havê-lo por habilitado para receber o HOC de que lhe fiz mercê: dispensando-o, outrossim, da representação de quaisquer certidões e folhas corridas, que devesse apresentar20.

Há que se ressaltar, também, que para viver nobremente e, portanto, confirmar sua

posição enquanto membros da elite, os homens ricos deveriam desfrutar de cabedal. Isso nos

leva à próxima estratégia de consolidação do status que identificamos, a posse da terra.

1.2 Sesmarias: da importância da posse de terras

As concessões de sesmarias eram práticas do Império Português, que remontam a

séculos antes da colonização na América. A lógica desse tipo de mercê estava na doação de

terras, ditas incultas, a sesmeiros, ou melhor, homens bons que as recebiam como forma de

privilégios e retribuição pelos serviços prestados ao rei, que por sua vez agia no sentido de manter

a fidelidade de seus súditos. Segundo as Ordenações Filipinas, as sesmarias deveriam ser

permitidas àqueles que tivessem condições de realizar o bom aproveitamento das terras. Preceito

que seria reafirmado no Regimento de 1677, dado ao Governador Geral Roque da Costa Barreto,

que afirmava que na doação de sesmarias não se deveria conceder terras aos indivíduos que não

as cultivassem, causando assim um prejuízo ao bem público e aumento do Estado. 21

Segundo Ângela Vianna Botelho, no verbete, Sesmarias, no Dicionário Histórico das Minas

Gerais, esse tipo de exigência do Império Português, para a concessão de terras, jamais foi

considerado para a América Portuguesa. Da mesma forma que as demarcações de terras, que

deveriam respeitar a uma padronização também não foram praticadas à risca, para o caso

colonial. A doação de sesmarias cabia, inicialmente, ao capitão donatário e, mais tarde, essa

função seria delegada ao governador das capitanias. Assim, o governador deveria, em nome do

rei, conceder as mercês territoriais aos súditos que as requeressem junto ao ouvidor da capitania.

20Arquivo Nacional da Torre do Tombo – HOC - Maço 30 - n.2 21 ROMEIRO, Adriana e BOTELHO, Ângela Vianna. Dicionário Histórico das Minas Gerais. Período Colonial. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. p.274.

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A título de prover esses privilégios, o governador passava Carta de Sesmaria ao requerente e

essa doação deveria posteriormente ser confirmada pelo Conselho Ultramarino. 22 Entretanto,

ressaltamos que, mesmo diante de todas as leis criadas pelo Império Português para a concessão

de sesmarias, a apropriação de terras ilegais foi prática corrente, da mesma forma que também

era comum a concessão de terras por outras formas, que não somente a doação de sesmarias.

Para o caso das Minas, a Coroa Portuguesa, no início do século XVIII, permitiu a

concessão de 120 sesmarias para a área mineradora, a fim de que a crise do abastecimento fosse

contida e a povoação nesses caminhos realizada. As terras deveriam ser demarcadas e aqueles

sem concessão deveriam requerer suas cartas, para garantir posse sobre as terras. Contudo, isso

não evitou as fraudes, que permitiram que várias sesmarias se concentrassem nas mãos de um

mesmo homem. Além disso, muitas terras sofriam com a lentidão e as irregularidades nas

demarcações. O Alvará de 1795 veio a proibir a doação para aqueles que já possuíssem

sesmarias, mas essa lei não fora respeitada. 23

Como afirmamos, dos 100 requerimentos contabilizados como mercês, para o Termo de

Vila Rica, 73% perfazem pedidos referentes a postos militares e a sesmarias. Em relação às

sesmarias, 28% do total representam requerimentos relativos a solicitações e confirmações de

posse de terras. A prática de concessão de sesmarias é algo verificado para toda a Capitania,

demonstrando que essa estratégia era bastante comum nas comarcas das Minas. Vejamos a

tabela:

Sesmarias dos Homens Ricos do Termo de Vila Rica por Comarca – 1732-1776

CVR

CRM CRV CSF RJ NI TOTAL

# % # % # % # % # % # % # %

05 23,8 09 42,9 05 23,8 - - 01 4,75 01 4,75 21 100

Fonte: Documentos Avulsos do Arquivo Histórico Ultramarino relativo a Minas Gerais. CVR= Comarca de Vila Rica CRM= Comarca do Rio das Mortes CRV= Comarca do Rio das Velhas CSF= Comarca do Serro Frio RJ= Capitania do Rio de Janeiro NI= Local não identificado

22 Ibidem. p.275 23 Ibidem. p. 276

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De acordo com Carla Almeida, em tese de doutoramento, a maioria dos homens ricos

(67,8%), da Comarca de Vila Rica, se dedicava à atividade mineradora. Aliás, o período que

abarca os dados da tabela acima, insere-se no momento de auge minerador (1750-1779), descrito

pela própria autora. 24 Para a Capitania das Minas o que se pode verificar é uma dinamização da

economia, em que era comum a prática de consorciar as atividades mercantis e que o

enriquecimento de tais homens não vinha somente da atividade mineradora. Sendo assim, ao se

dedicarem à mineração, a maioria desses homens poderia possuir algum outro tipo de negócio,

como a posse de terras; uma oportunidade de diversificar seu patrimônio e garantir uma

alternativa para o futuro.

Um indício de que as sesmarias eram uma estratégia no sentido da diversificação

econômica é que a maioria das sesmarias dos homens ricos do Termo de Vila Rica (42,9%) se

localizava na Comarca do Rio das Mortes, região da Capitania que se destacou por uma vocação

econômica para a atividade agropecuária.25 Dessa forma, os homens que recorriam à Coroa na

busca de parcelas de terra a faziam na tentativa de ampliar suas riquezas e, de alguma maneira,

apostar em novas posses na Comarca do Rio das Mortes - mesmo que suas atividades

econômicas principais estivessem centradas no Termo de Vila Rica – era uma forma de estender

seus negócios para outras atividades que também pudessem representar potencialidades para o

enriquecimento.

De fato, após o auge minerador (1750-1779) verificou-se uma fase de acomodação

evolutiva (1780-1822), na qual a economia das Minas se reordenou no sentido de estabelecimento

de uma nova atividade principal – a agropecuária. Nesse sentido, com a crise da mineração, a

região do Rio das Mortes, onde a atividade agropecuária já era bastante dinâmica, passou a

ganhar grande destaque na economia da Capitania, frente à economia mineradora de Vila Rica. 26

Além disso, dos requerimentos consultados referentes às sesmarias dos homens ricos do

termo de Vila Rica apenas 05 (23,8%) remetiam a períodos anteriores a 1756, enquanto os

demais – 16 (76,2%) – eram datados de 1761 a 1776. Isso talvez indique que no correr do tempo

houve um aumento do interesse destes sujeitos na posse de terra cultivável em toda a Capitania

das Minas, principalmente a Comarca do Rio das Mortes.

Com isso, percebemos que o momento de realização dos pedidos de sesmarias era

pertinente com as transições econômicas que Minas passava e que da mesma forma, esse tipo de

mercê representava a possibilidade de enriquecimento para esses homens, a partir do cultivo e da

24 ALMEIDA, Carla. Homens ricos, homens bons: produção e hierarquização social em Minas colonial: 1750-1822. Tese de doutorado. Niterói: UFF, 2001. p. 234 25 Ibidem. p. 235. 26 ALMEIDA, Carla. Alterações nas unidades produtivas mineiras: Mariana – 1750-1850. Dissertação de Mestrado. Niterói: UFF, 1994. pp. 84-98

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criação de animais nessas terras, numa produção voltada ao mercado interno e até mesmo como

uma alternativa, em relação à atividade mineradora, predominante, até então, em suas unidades

produtivas. A aquisição de terras poderia contribuir para suas estratégias econômicas, como

forma de enriquecimento patrimonial, bem como de consolidação de seu status social e ampliação

de suas redes clientelares.

Conclusão Para os membros da elite do termo de Vila Rica aqui analisados identificamos duas

estratégias para que se mantivessem enquanto tais – uma política e outra econômica. A primeira

consistia na busca pela obtenção de ofícios militares, que conferiam aos seus possuidores status

na sociedade Colonial, caracterizada por uma alta militarização. A segunda envolvia a aquisição

de sesmarias como uma forma de garantir maior segurança financeira, estando no horizonte uma

atividade econômica alternativa à mineração. Tais estratégias não estavam, porém,

desvinculadas, pelo contrário, estavam intrincadas. Já que a nobreza precisava ser externalizada,

o cabedal – riqueza – tornava-se necessário para que o modo de vida confirmasse tal distinção.

Assim, o fato de serem homens ricos contribuía para que fossem reconhecidos enquanto homens

bons. Ao mesmo tempo a aquisição de riquezas na forma de terras estava estreitamente

relacionada à economia da mercê, já que a sesmaria tratava-se de uma concessão real, estando

inserida na lógica própria do Antigo Regime Português.

Carla Maria Carvalho de Almeida é Professora do departamento de História da UFJF, Juliano Custódio Sobrinho e Lívia Nascimento Monteiro são bolsistas de iniciação científica e Ana Paula dos Santos Rangel é mestranda da UFRJ.

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Jovem Pesquisador:

CÂMARAS MUNICIPAIS E PODER LOCAL: O “AVESSO DO DESEJO” METROPOLITANO

Michelle Cardoso Brandão

Resumo: Este artigo tem como objetivo pautar as características gerais da burocracia camarária colonial, relacionando-a com sua “genitora” metropolitana no espaço de Minas Colonial. Ele faz parte de uma série de pesquisas sobre a Câmara Municipal marianense (1711-1800) cujo objetivo é estudar a autonomia local e como se estabelecia a rede de relacionamentos entre coroa e elite mineira no período em questão. Além disso, o artigo busca ratificar como mecanismos metropolitanos foram capazes de potencializar o poder local, constituindo numa contradição no devir das câmaras municipais em relação ao desejo reinol. Palavras-chave: Poder, Império, colônia, Câmara municipal.

Abstract: This paper has a purpose to rule the basic colonial counsel bureaucracy’s characteristics, relating to its “metropolitan progenitor” at the region of Colonial Minas. It is part of a series of researches about the Marianense’s City counsel (1711-1800) whose goal is to study the local autonomy and how did the network between the crowd and Minas’ mining elite worked on the time period in question. And more, this article seeks to ratify about how did metropolitan mechanisms wore able to potentiate the local power, which build itself in contradiction to the city counsel’s duty as it relates to the King’s will. Key words: Power, Empire, Colony, City counsil

Todo o processo de formação dos Estados Nacionais na Europa Moderna desencadeou

uma série de transformações as quais futuramente viriam traçar os novos rumos do além mar. Ou

seja, a reorganização dos feudos em torno de um só rei e a constituição do Mundo Absolutista

modificou o perfil europeu no momento em questão. Tais transformações não ocorreram somente

numa primeira instância. Além de ditar a busca de novos territórios, também influenciou na própria

gestão da “remodelação” do Novo Mundo; seja no seu aspecto político, econômico ou mesmo

social.

No que se refere ao aspecto burocrático, os desígnios metropolitanos - novas terras

dominadas no além mar - também receberam traços europeus que, contudo, não foram capazes

de superar as especificidades regionais. No geral as características burocráticas que se formaram

no Novo Mundo tiveram sua inspiração na metrópole, respeitando, contudo, a característica de

cada região. A identidade colonial era variável, múltipla, nas diversas regiões do Império

português; para cada região havia uma situação diversa cujo estatuto colonial era próprio e

peculiar.

Na verdade, o que ocorria é que Portugal tinha as suas normas, que no ultramar se

portavam como regra geral, ressaltando o caráter judicial pluralista em que cada órgão de poder

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tinha resguardada sua autonomia de ação, sendo subjugada e ordenada pelo centro de poder

real.

Nesse sentido, as relações de poder local contribuíam para o caráter centrífugo poder; ou

seja, o Império foi formado de modo pragmático, ou melhor, moldável às diversas circunstâncias

do período e das várias localidades. Assim, a chamada monarquia corporativa1 funcionava de

modo que o poder real compartilhasse o espaço político com outros poderes de maior ou menor

hierarquia; o direito legislativo da Coroa era limitado pela doutrina jurídica (ius commune) e pelo

uso das práticas jurídicas locais.

Os deveres políticos se submetiam aos deveres morais (graça, piedade, misericórdia e

gratidão) ou afetivos decorrentes de laços de amizade, institucionalizados em redes de amigos e

de clientes. E por fim, os oficiais régios gozavam de uma larga proteção em termos de direitos e

atribuições, resultando em confronto com o rei visto que num “mesmo espaço de atuação”

emerge, além do poder real, aquele vindo dos indivíduos envolvidos com a localidade.

Tudo isso colaborava em larga escala para que as câmaras tivessem o perfil da região em

que estavam inseridas, uma vez que cada localidade demandava uma forma peculiar de

organização burocrática.

As câmaras municipais, embora com o seu escopo definido de modo que tais instituições

representassem a força e o desejo real no ultramar, foram um misto de instituição local e reinol.

Se por um lado serviram para efetivar as políticas da Coroa nas colônias, por outro serviram de

instrumento para consolidação do poder local. Assim, mesmo as condições locais interferindo no

devir das câmaras, a natureza administrativa foi herdada, ou mesmo trasladada da Europa para o

mundo colonial. Como coloca Sampaio, “em outras palavras não é mais na dicotomia, mas sim na

síntese entre influências externas de múltiplas origens e as especificidades locais que

encontramos a chave para a compreensão da sociedade colonial”2. Nesse sentido, observa-se a

amplitude característica da sociedade colonial cujas raízes burocráticas estariam do outro lado do

oceano.

O fato de as câmaras coloniais terem sua estrutura trasladada de Portugal, fizeram delas

instrumentos menos eficientes do que o almejado. As poucas adaptações realizadas a fim de

adequá-las melhor ao Novo Mundo não foram capazes de torná-las mais eficazes à política

metropolitana; mas serviram de parâmetro estrutural burocrático à colônia. Dessa forma, “as instituições locais formalizadas existentes no território continental da monarquia portuguesa estavam longe de esgotar os focos de poder, autoridade e sociabilidade locais. No entanto, a sua

1 HESPANHA, Antônio Manuel (org.). História de Portugal: o Antigo Regime (1620-1807). Lisboa: Ed. Fundação Calouste Gulbenkian, 1984, p. 186. 2 SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. Na encruzilhada do império: hierarquias sociais e conjunturas econômicas no Rio de Janeiro (c. 1650 – c. 1750), Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003, p. 318.

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presença multicelular fora suficientemente importante na estruturação do espaço social e político local para que apenas em algumas zonas ou regiões outros quadros organizacionais lhe disputassem a primazia” 3.

Ainda, contribuiu para que não houvesse total sucesso das câmaras no território

ultramarino português, o fato de haver, em certas ocasiões, um descompasso entre interesse local

e metropolitano. “Também é certo que as falhas do governo colonial provinham do relacionamento e satisfação de certas exigências coloniais. (...) O governo na colônia era muitas vezes ineficientes, de vez em quando opressivo e normalmente corrupto; raramente, porém era visto como instrumento de dominação estrangeira” 4.

As câmaras foram instituições que mesclaram poder real e local, imersas numa sociedade

cuja dinâmica interna construía aos poucos sua autonomia e claro, isso também refletia nos

órgãos burocráticos como no caso da câmara. A formação da câmara municipal foi como a de um

quebra-cabeça, em que cada peça de característica própria contribuiu para a constituição da

grande peça final. Assim: “As diferentes câmaras municipais do Império ultramarino português, embora representassem especificidades próprias das regiões e sociedades nas quais se estabeleceram e ajudaram a criar, tinham muitos pontos em comum com suas congêneres metropolitanas. Não resta dúvida de que a formação do império se deu por meio da trasladação de uma série de mecanismos políticos, jurídicos e administrativos da metrópole para as mais recônditas regiões do globo, tanto no Oriente como no Ocidente. No entanto, a diversidade sócio-cultural que os portugueses encontraram em sua faina colonizadora, principalmente no que diz respeito aos seus empórios orientais, criou matizes e adaptações no aparato institucional e legal transferido do reino, colorindo de tons específicos as mesmas instituições adaptadas à realidade das diferentes colônias” 5.

A estrutura da câmara no além-mar seguia de perto os padrões europeus, segundo Boxer 6

essa instituição fora responsável por supervisionar a distribuição e o arrendamento das terras

municipais e comunais, lançar e cobrar taxas municipais, fixar preços de venda de produtos e

provisões, verificar licença a vendedores ambulantes e licenças de construção; além de assegurar

a manutenção de obras públicas, regulamentar feriados públicos e procissões, sendo também

responsável pelo policiamento da cidade e pela saúde e sanidade pública.

Quanto aos termos fiscais, os rendimentos da câmara provinham diretamente de rendas da

propriedade municipal, além de multas passadas a infratores pelos almotacés e impostos

municipais.

3 MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Os concelhos e as comunidades. In: História de Portugal: o Antigo Regime (1620-1807).Lisboa: Ed. Fundação Calouste Gulbenkian, 1984, p. 270. 4 SHWARTZ, Stuart B. Burocracia e sociedade no Brasil colonial. A suprema corte da Bahia e seus juízes: 1609 – 1751. São Paulo: Editora Perspectiva, 1979, pp. 294-295. 55 BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o império: o Rio de Janeiro no século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2003, p. 367. 6 BOXER, Charles R. O império colonial português (1415-1825). Lisboa: edições 70, 1969, pp. 265-266.

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O corpo de funcionários da câmara era formado por dois diferentes grupos: os oficiais da

câmara (vereadores, juízes ordinários, procurador, escrivão e tesoureiro) e oficiais subordinados

da municipalidade (almotacés, juízes de órfãos, alferes, porteiro, carcereiro e vereador de obras).

Ainda, no caso da colônia brasileira, implementou-se um novo cargo: o de Juiz de Fora, este veio

a fim de assegurar o poder real e diminuir a força e a autonomia das elites locais. A Coroa via nos

Juízes de Fora um meio de cercear o poder local, uma vez que vinham de outras localidades com

o objetivo de servir ao rei; contudo, acabaram sendo envolvidos nas redes de clientelismo local.

Esse foi um exemplo de modificação observada como necessária pelos portugueses, visando a

adequação do modelo de funcionários da câmara à realidade colonial.

Percebe-se, pois que as câmaras coloniais seguiram “de perto o padrão das da metrópole,

mas havia naturalmente diferenças marcadas, bem como grandes semelhanças quanto ao modo

como evoluíram subsequentemente” 7. Dessa forma, apesar das adaptações que cada município

fez na estrutura camarária a fim de adaptá-la à sua realidade elas também tiveram grandes

semelhanças com suas “genitoras” européias. E como se pode perceber, essa transposição da

estrutura burocrática metropolitana para a colônia configurou num insucesso das câmaras, que

mais que representar ao rei, serviram à elite local, inclusive como meio de perpetuar essas

oligarquias.

É necessário avaliar o raio de poder da metrópole em relação aos seus desígnios. Em já

mencionado trabalho, Bicalho 8 ressalta a dimensão do poder da coroa levantando o que a seu ver

seria uma demasiada amplitude da intervenção real na vida dos seus súditos. Ainda, chama a

atenção para a relevante expressão da monarquia portuguesa que extrapolava seu domínio para

o ultramar e isso teria grande importância para o processo de centralização monárquica próprio do

absolutismo europeu Moderno.

É criterioso, contudo, reavaliar a real proporção da atuação da monarquia portuguesa,

inclusive no que se refere ao ultramar que é o espaço principal estudado em nosso trabalho sobre

a Câmara Municipal de Mariana. Não se trata de negar o poder da monarquia portuguesa, mas de

relativizar sua amplitude e atuação, principalmente nos desígnios tão distantes como no caso do

Brasil. Podemos observar, inclusive, no caso marianense como características peculiares deram

uma “face” à burocracia local, inclusive contribuindo para sua autonomia frente à metrópole

portuguesa.

Mesmo a Idade Moderna tendo sido de fato marcada pelo processo de formação das

monarquias absolutas, Portugal teve um específico caráter de se firmar como uma monarquia

7 Ibidem, p. 268. 8 BICALHO, Maria Fernanda. Op. Cit., pp. 340-341.

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permeada de características singulares. Estas fizeram dela uma Coroa cujo poder se concretizou

de modo bastante pulverizado pelas diversas instituições representativas que dela emanavam e

de certo modo a enfraquecia. Assim, as câmaras municipais que a princípio tiveram um notável

devir para a Coroa por serem a representação do rei no ultramar, principalmente nas vilas e

municípios do Novo Mundo conquistado; teve ainda, um irrefutável papel para a sociedade

colonial. Ou seja, se por um lado elas foram o meio que Portugal encontrou em implantar sua

política nos territórios conquistados, por outro, percebe-se que a câmara foi o local em que se

configurou o poder das elites coloniais. A criação desses órgãos nas colônias significou o ponto

chave para a institucionalização do poderio e fortalecimento dessas elites locais. Ou ainda, o fato

da Coroa intervir assegurando que os cargos camarários fossem ocupados pelos homens bons da

terra – aquela parcela abastada da sociedade – contribuiu para a consolidação do poder da elite e

até para perpetuação do seu status. Desse modo, longe de contrariar a elite colonial, a Coroa

acabou colaborando para que ela tivesse na câmara municipal um aliado que não serviu

estritamente a Portugal, mas também alimentou àqueles que mais e mais detinham o verdadeiro

poder em Minas: a sua elite. Desse modo, observa-se que: “ao contrário do que muitas vezes se afirma, as Câmaras coloniais raramente se tornaram meros carimbos de borracha e ‘sim senhores’ acríticos perante os funcionários superiores do Governo, que se tratasse de vice-reis ou de Juizes do Supremo. Com todos os seus erros, e mesmo nos casos em que vereadores se haviam tornado um conventículo oligárquico autoperpetuador, continuavam a representar os interesses locais de outras classes de poder para além da sua, pelo menos até certo ponto. O seu poder de influência e prestígio foram consideráveis durante todo o período colonial (...)” 9

As câmaras municipais enquanto instituições sob o regimento real, tiveram na metrópole

um importante significado, uma vez que representariam os interesses do rei no além-mar.

Contudo, uma outra face dessas instituições se revelou imersa nas práticas costumeiras da rede

de clientelismo e troca de favores; acabando também por se integrar à sociedade colonial atuando

no próprio sistema como fomentadoras da elite colonial.

A sociedade de Minas setecentista teve nas câmaras um lugar que também atendeu às

suas demandas. O caso marianense ratifica como a localidade teve num órgão de “comando real”

o efetivador de boa parte de suas demandas. Percebe-se que a Câmara Municipal de Mariana,

embora sendo um órgão de comando real, atendia às necessidades da região. Os dados de

despesa da Câmara Municipal de Mariana no período de 1711 a 1800 revelam que a receita era,

em boa medida, investida na própria colônia; seja em festividades religiosas, melhorias na infra-

estrutura da cidade e outros. O que inevitavelmente contribui para a autonomia regional.

9 BOXER, Charles R. Op Cit., p. 274.

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Outras questões ainda, influenciaram na contradição dessas instituições. Sob esse

aspecto, Carla Anastásia 10, apoiada em Marx e em outros estudiosos trata a questão da

autonomização da burocracia em relação ao centro de poder dizendo que medida em que emerge

um corpo de funcionários, este tem a capacidade de usurpar o poder e tornar possível o

desenvolvimento de estratégias próprias.

Nesse sentido, apropriado exemplo é o das câmaras municipais no âmbito colonial que

mesmo sendo um órgão real, teve sua autonomia respeitada e seu envolvimento com a elite local

favorecendo esta, bem evidente. As câmaras constituíram uma ferramenta de concretização da

aliança entre poder local e central, um “locus” de poder misto em que na medida do possível

efetivavam a realização das políticas reinóis no ultramar e favorecia a elite local que sempre

estava envolvida em políticas voltadas para interesses próprios. É viável esclarecer que não se

trata de uma oposição entre poder local e coroa, mas de uma aliança entre ambas, embora tal

oposição pudesse eventualmente ocorrer. Bicalho, diz ser esta uma “combinação de autoridade

dividida e negociada” 11 o que representa um ganho para ambas as partes. É visível a contradição

das câmaras municipais enquanto órgãos criados a fim de atenderem unicamente às políticas

reais. Assim, para além de uma autoridade negociada e dividida com a Coroa, esta é uma

autonomia adquirida graças ao dinamismo colonial. Nuno Gonçalo Monteiro, percebendo tal

poderio municipal, completa ainda que ele é fruto da consolidação das oligarquias camarárias e

mais, “em síntese a monarquia portuguesa não parece ter contrariado as tendências oligárquicas

do poder municipal, pelo contrário, tê-las-á potenciado”12. Configura-se, então, a duplicidade ou

contradição das câmaras municipais que estiveram longe de ser o mecanismo de consolidação da

unificação do poder real; mas sim um meio de aliança que corroía a centralização do poder real e

alimentava a autonomia colonial. Ao tratar da grandeza, em termos de importância, da câmara

para a sociedade colonial, Boxer citando um provérbio alentejano ressalta: “quem não estava na

Câmara estava na Misericórdia” 13, ratificando a importância dessas instituições na região em que

estavam instaladas.

A própria Coroa portuguesa deu força à autonomia colonial, por meio de dois mecanismos:

pelo caráter polissinodal burocrático português e pela venalidade dos cargos burocráticos inserido

no sistema de troca de favores entre rei e municipalidade.

10 ANASTASIA, Carla. Vassalos rebeldes: a violência nas Minas na primeira metade do século XVIII. Belo Horizonte: C/Arte, 1998, p. 21 11 BICALHO, Maria Fernanda. Cidades e elites coloniais: redes de poder e negociação. In: Revista Vária História. Belo Horizonte: UFMG, n.29, Janeiro de 2003, p. 37. 12 MONTEIRO, Nuno Gonçalo Os concelhos e as comunidades. In: História de Portugal: o Antigo Regime (1620-1807). Lisboa: Ed. Fundação Calouste Gulbenkian, 1984, p. 289. 13 BOXER, Charles R. Op. Cit., p. 275.

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O transplante da burocracia portuguesa ao ultramar, trouxe consigo peculiaridades,

inclusive aquela que fazia do modo de governar algo semelhante ao funcionamento do corpo

humano, sendo resguardadas e respeitadas as funções de cada órgão, cuja centralidade seria

exercida pelo rei. Assim, as várias instâncias de poder, incluindo as câmaras, tiveram sua

individualidade respeitada pelo rei, o que tornaria, aos poucos, possível a construção de

importantes bases para o desenvolvimento de um poder autônomo, adquirido através da própria

dinâmica interna à colônia e concedido pela Coroa. No lugar de servir unicamente à consolidação

dos desejos reais na colônia, as câmaras, enquanto órgãos de poder emanado do rei,

possibilitaram o desenvolvimento e a força do poder local. Assim, não se trata de uma oposição,

mesmo porque “as possessões ultramarinas portuguesas, apesar de distintas por suas condições

peculiares e localização geográfica, eram subordinadas ao sistema judicial da metrópole” 14. Ou

seja, o poder e a ordenação de fato eram de posse da Coroa, quero dizer, o centro governador

das demais instâncias de poder era o rei.

Ainda, a venalidade de cargos oficiais e a troca de favores entre Coroa e elite local,

colaborou para o processo de autonomia dessa elite, bem como para seu crescente fortalecimento

ao longo do período colonial. Os oficiais camarários não eram indicados pela Coroa, mas eleitos

entre os principais da terra, decerto não poderiam ter o peso do sangue negro, mouro ou judeu

correndo em suas veias. Esta seria a nobreza da terra, não necessária e diretamente portuguesa

e/ou de ascendência nobre, mas possuía as qualidades necessárias para poder alcançar o título

de nobreza no decorrer de sua vida, seja por mérito (troca de favores para com o rei) ou aquisição

(compra). Desse modo, a ocupação de cargos institucionais importantes abria a possibilidade de

se fazer valer o desejo colonial em detrimento ao da Coroa.

Percebe-se que a nobreza que aos poucos se constituía no ultramar era bem diferente

daquela que vivia no reino. No caso europeu, a nobreza foi “uma categoria institucional, enquanto

que na colônia esta aparece como uma categoria social” 15 que se firmou na perpetuação do

status da elite local e nas relações de clientelismo daí decorrentes. A “cristalização das oligarquias

locais” é tratada ainda por Bicalho em seu artigo sobre as câmaras municipais no império

português, focalizando o fato de que no século XVII a Coroa interviu de modo a garantir que os

ofícios nas vereações e os cargos nas ordenanças fossem ocupados pelos “principais da terra”.

No século XVII foi frequentemente verificado que membros da burguesia alcançaram a

nobreza e, claro, certo padrão social. Isso via casamento, atividade mercantil, compra de ofícios

ou mesmo a aquisição por mérito. Aqui, centralizaremos nossas atenções nos dois últimos casos.

Os ofícios de Minas Gerais pertenciam todos ou quase à Coroa o que segundo Sampaio “facilitava

14 SHWARTZ, Stuart R. Op Cit., p. 15. 15 MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Op Cit.; p. 291.

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o acesso dos negociantes através de arrematação das suas serventias por tempo determinado” 16.

Ou comprava os cargos, os que podiam fazê-lo, ou ainda, eles poderiam ser obtidos por mérito

como foi o caso de Antônio Pereira Machado17 desbravador de Minas, fundador de Antônio

Pereira e Bonfim do Mato Dentro. Tendo conhecimento disso e de posse dos dados da receita e

despesa da Câmara Municipal de Mariana no período de 1711 a 1800, foi-nos possível

estabelecer uma ligação entre as fontes. O cargo de recebedor das receitas câmara marianense

no ano de 1712 foi o dito Antônio Pereira Machado, um importante desbravador de Minas Gerais

que acabou inserido no sistema que privilegiava a elite local e dava ao indivíduo oportunidades de

desenvolvimento e aquisição de autonomia. Configura-se nesse caso um exemplo de troca de

favores entre Coroa e elite colonial no sentido da primeira retribuir ao indivíduo um serviço

prestado. Tal situação é caracterizada por alguns autores baseados em Marcel Mauss como

‘economia do dom e contra dom’ em que ao prestar um serviço ao rei o indivíduo era favorecido

de alguma forma, seja por honras, liberdade ou até privilégios como afirma Bicalho 18.

A ocorrência de fatos como este, em boa medida contribuiu para a reprodução do sistema

e da hierarquia social fortalecendo a elite e a concentração social existente.

A autonomia e a dinâmica interna colonial não passaram despercebidamente, a Coroa as

reconheceu e diante disso buscou meios de minimizá-las a fim de cercear o poder da elite

colonial. No final do século XVIII o juiz ordinário – eleito pelo povo, fora substituído pelo juiz de

fora – nomeado pela Coroa. Essa foi a maneira que Portugal encontrou para tentar “limitar o

controle exercido por elementos do poder local; (...) foram suportes do governo real a nível

local.”19. O papel de presidente da Câmara exercido pelo Juiz de Fora, numa perspectiva

metropolitana, teria a função de reduzir a autonomia colonial, porém, isso não foi observado uma

vez que além da distância física entre os órgãos centrais da coroa e as diversas regiões coloniais,

havia também uma distância relacional caracterizada principalmente pela atuação da elite local

em função dos interesses seus e daquilo que a sociedade na qual estava inserido demandava;

seria, pois, uma regionalização dos interesses. O juiz de fora acabou sendo envolvido nas redes

de relacionamento e clientelismo colonial, servindo também aos interesses da comunidade da

qual ele agora fazia parte. “A sociedade colonial demonstrava uma incrível habilidade para abrasileirar os burocratas – ou até a burocracia – isto é, integrá-los dentro dos sistemas existentes de poder e apadrinhamento. Os

16 SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. Op Cit., p.306. 17 FONSECA, Cláudia Damasceno. O espaço Urbano de Mariana: sua formação e suas representações. In: Termo de Mariana: história e documentação. Ouro Preto: Editora UFOP, Novembro de 2004, p.29. 18 BICALHO, Maria Fernanda. As câmaras ultramarinas e o governo do império. In: O antigo regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séc. XVI-XVIII). pp. 204-205. 19 SHWARTZ, Stuart B., Op Cit., p. 06.

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atrativos oferecidos pelos grupos e indivíduos da colônia e os desejos dos magistrados davam início ao processo de interpenetração” 20.

Dessa forma, os juizes de fora não representaram um obstáculo capaz de brecar ou

atrapalhar a dinâmica interna colonial rumo à autonomia, foram somados, integrados ao sistema

que acabaram por servir visando o bem próprio.

Em toda essa rede de relacionamentos intracolonial reside e é construído pouco a pouco o

avesso do desejo metropolitano que apostou nas câmaras municipais e nos juizes de fora como

mecanismos de “resguardo do poder reinol”. Ao oposto do esperado, o papel de ambos foi

corrompido e contraditório; atuando crescentemente a favor dessas localidades, servindo-as e

contribuindo de modo crescente para a autonomia regional que estas adquiriram.

Michelle Cardoso Brandão é Bacharel em História pela Universidade Federal de

Ouro Preto

20 Ibidem, pp. 251-252.

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Jovem Pesquisador:

A IRMANDADE DE NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO DOS PRETOS DO ALTO DA CRUZ E OS ENTERROS DE ESCRAVOS: VILA RICA,

SÉCULO XVIII

Juliana Aparecida Lemos Lacet Resumo: As irmandades erigidas por "homens negros" revelam-se como fontes de fundamental importância para compreensão da sociedade colonial. A morte, momento tão importante no setecentos, ficou sob cuidado das irmandades religiosas.O propósito deste estudo consiste em analisar como a Irmandade do Rosário dos Pretos do Alto da Cruz, em Vila Rica, na segunda metade do século XVIII, cuidou dos enterros de escravos e como estes rituais foram indicadores de outros aspectos da vida na Colônia. Palavras-chave: Escravidão, Irmandades, Morte.

Abstract: The lay botherhoods erected by "black men” are revealed as sources of fundamental importance for understanding of the colonial society. The death, moment so important in the seven hundred, was under care of the lay botherhoods. The purpose of this study it consists of analyzing as the lay botherhoods of Rosário of the Blacks of the High of Cruz, in Rich Villa, in the second half of the century XVIII, took care of the slaves' funerals and as these rituals they were indicative of another aspects of the life in the Colony. Key words: Slavery, Lay botherhoods, Death.

INTRODUÇÃO

A presença das irmandades leigas em Minas Gerais guarda certas especificidades.

Diferentemente de outras regiões do Império Português, aqui, em razão da proibição da fixação de

ordens religiosas, a assistência social e o culto católico foram de responsabilidade dos leigos. Por

isso, a compreensão mais ampla da sociedade colonial mineira não pode prescindir da

abordagem sistemática da vida confrarial. Também as irmandades erigidas por "homens negros"

revelam-se como fontes de fundamental importância para compreensão de uma sociedade que

tinha em sua base a escravidão. A morte, momento tão ritualizado no setecentos, ficou sob

cuidado dessas associações.O propósito deste estudo consiste em analisar como a Irmandade do

Rosário dos Pretos do Alto da Cruz, em Vila Rica, na segunda metade do século XVIII, cuidou dos

enterros de escravos e como estes rituais foram indicadores de outros aspectos da vida na

Colônia. Fontes primordiais, que subsidiaram nossa discussão, as atas de óbito, constituíram

relatos individuais que, não raro, expressaram modos de viver coletivos e informaram sobre o

comportamento deste grupo social.

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RELIGIOSIDADE E IRMANDADES NAS MINAS DO SÉCULO XVIII

A religião católica chegou a Minas Gerais em fins do século XVII, junto aos primeiros

bandeirantes. O estabelecimento do Estado português e a ocupação do território estiveram

ligados intimamente à extração do ouro, fator que contribuiu para que nesta região a religião

católica tridentina tomasse rumos peculiares, diversos em relação às outras áreas da colônia.

A "primeira missa" foi celebrada em 1696 pelo Pe. Canjica, às margens do Ribeirão do

Carmo, num acampamento bandeirante de “caçadores” de ouro, cena que refletiu o símbolo do

sacerdote e da fé que se estabeleceram em Minas. A “igreja primitiva” de Minas muitas vezes,

dedicou-se mais à descoberta do ouro do que à salvação das almas.1 A construção e

estabelecimento de igrejas, também foram determinados pelo descobrimento de datas auríferas.

A imigração para esta região se caracterizou pela busca dos metais preciosos, e, ao redor

destas descobertas, nasceu uma sociedade complexa, com a maior concentração populacional do

Brasil Colônia, tornando-se o epicentro da vida econômica, com crescimento e urbanização

rápidos. A escravidão, como em toda Colônia, foi base de sustentação econômica da capitania, e

a região abrigou o mais expressivo contingente de escravos da colônia. A realidade social da área

recém descoberta pautou-se pelo caráter aventureiro daqueles que estavam em busca da riqueza,

e esta situação gerou um clima de insegurança e incerteza.

É a partir do governo de Antônio de Albuquerque, que o Estado parece ter tomado as

"rédeas do processo" iniciando a organização administrativa das Minas. Em 1711 Albuquerque

funda Mariana, Vila Rica e Sabará. Em 1713 D. Brás Baltazar da Silveira inaugura São João Del

Rei, em 1714 Caeté e Serro e em 1715 Pitangui. 1714 foi também o ano da criação das três

primeiras comarcas da capitania: Vila Rica, Rio das Velhas e Rio das Mortes. Este primeiro

período foi encerrado por Assumar em 1718, com a criação da vila de São José Del Rei2.

Quanto à Igreja, seus primeiros passos para a “maioridade” nas Minas serão o Triunfo

Eucarístico, em 1733, e a criação do bispado de Mariana em 1745. O catolicismo que se

estabeleceu em Minas, como em toda a América Portuguesa, caracterizou-se por elaboradas

manifestações externas de fé: procissões, funerais, culto de imagens, louvor aos santos e templos

- cuja abundante pompa barroca era uma festa para os olhos.

Diretamente ligadas a esse contexto de descobrimento e instalação, nasceram as

Irmandades Leigas em Minas. Para Caio César Boschi, a história das confrarias, arquiconfrarias,

1 CARRATO, José Ferreira. Igreja, Iluminismo e Escolas Mineiras Coloniais. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1968, p. 28. 2 SOUZA, Laura de Mello. Os Desclassificados do Ouro: a pobreza mineira no século XVIII. Rio de Janeiro: Graal, 1982. p. 104.

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irmandades e ordens terceiras se confunde com a própria história social das Minas Gerais do

setecentos3.

As confrarias estavam entre as instituições pilares do império português. Em todos os

lugares onde a colonização portuguesa se estabeleceu, a vida associativa encontrou terreno fértil

de expansão. Surgidas na Europa medieval, as irmandades difundiram-se no contexto da reforma

tridentina. De feição predominantemente leiga, essas associações tinham como fim o culto a um

santo de devoção e se dedicavam também a obras de caridade voltadas para seus próprios

membros ou para pessoas carentes não associadas4.

Os dois pilares dessas associações eram a propagação da doutrina e a filantropia social 5.

Na construção das igrejas e na realização das festas as irmandades também tiveram papel

primordial. Entre as atividades desenvolvidas pelas irmandades, assegurar as pompas fúnebres

constituía uma das mais importantes obrigações. Enterrar os mortos era colocado no mesmo nível

de caridade que alimentar os famintos, abrigar os peregrinos, vestir os nus, visitar os doentes e os

encarcerados6.

No contexto da Minas Gerais do século XVIII as irmandades leigas alcançaram grande

importância, por isso, a compreensão de suas funções, não pode prescindir do estudo dos

aspectos da vida cotidiana deste período histórico. É inevitável que o estudo das irmandades

leigas esteja inserido nas condições do poder político, social e econômico vigentes nas Minas na

época, uma vez que, uma análise desconexa faria com que perdêssemos suas dimensões

religioso-culturais e assim caíssemos no risco de nos resvalar em território abstrato.

O papel das duas mais importantes instituições da cultura portuguesa, que se instalaram

em Minas, Igreja e Estado, sob o Regime de Padroado7, parece não ter se cumprido efetivamente.

O Estado Absolutista português impôs àquela capitania uma política religiosa que não permitia a

presença e fixação de ordens religiosas, sob alegação de que os religiosos eram os responsáveis

pelo extravio do ouro e por insuflar o não pagamento de impostos. Desde os primeiros

descobrimentos de ouro nas Gerais, os religiosos, em geral, mas principalmente os frades, eram

apontados como dos que mais contribuíam para a fuga do metal8 .

O governo metropolitano, apesar da maciça cobrança tributária, deixava de cumprir

necessidades básicas da população, ficava então a cargo dos leigos o preenchimento de diversas

lacunas da vida social e espiritual. Neste sentido, eram as irmandades que se propunham a 3 BOSCHI, Caio César. Os leigos e o Poder: Irmandades leigas e política colonizadora em Minas Gerais. São Paulo: Ática, 1986, p.1 4 VAINFAS, Ronaldo. Dicionário do Brasil Colonial (1500-1808). Rio de Janeiro: Objetiva, 2000, pp. 316- 317 5 RUSSELL-WOOD, A. J. R. Fidalgos e Filantropos. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1981, p. 93. 6 ARIÈS, Philipp. O homem Diante da Morte. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989, p. 198. 7 BOXER, Charles R. O Império Colonial Português (1415-1825). Lisboa: Edições 70, 1981.

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facilitar a vida social, desenvolvendo inúmeras tarefas que, pelo menos em princípio, seriam da

alçada do poder público, assim se afirmavam como uma das principais forças sociais presentes

em Minas colonial9.

Nesta capitania, os sodalícios erguiam-se sob o consentimento do Estado e detinham todo

um aparato legal, compromissos e hierarquia. Caracterizavam-se e se formavam basicamente a

partir da divisão social: brancos, livres, escravos, ricos e pobres10. E, pertencer a uma delas era,

pois, essencial para a organização e identificação dos homens nos núcleos urbanos que iam se

constituindo. As irmandades serviam ao reconhecimento dos lugares sociais de cada um no seio

da comunidade, e eram locais para exercício de uma série de prerrogativas, inclusive o direito de

desfrutar de um funeral digno11.

Sob esta perspectiva, as Irmandades obtiveram grande representatividade, principalmente

as associações erguidas por “homens pretos”, visto que estas foram um dos únicos ou talvez o

único meio de associação permitido aos escravos. E ainda, pela história social deste período estar

intimamente ligada à escravidão. As irmandades eram a oportunidade que escravos, tinham de

garantir auxílio, reconhecimento e participação na sociedade12.

No momento da morte, grande parte da sociedade recorria às Irmandades, para obter os

sacramentos da Igreja e a realização de seus sepultamentos. Brancos e forros buscavam a

"pompa funerária", a fim de garantir reconhecimento da sociedade. Escravos procuravam no

máximo sepultamentos dignos. Analisadas por este ângulo, as Irmandades podem nos revelar o

comportamento da Igreja em relação à sociedade, à administração dos sacramentos da morte aos

escravos e as formas de sepultamento dos mesmos. Em nossa pesquisa, voltamos a atenção

para o tratamento oferecido pela Igreja, a escravos na hora da morte. Nosso objeto de estudo foi

uma Irmandade de devoção negra, a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos do Alto

da Cruz, em Vila Rica.

A base empírica de nossa pesquisa consistiu na leitura dos registros de óbitos de

escravos. Analisamos os aspectos da morte, a fim de que eles superassem simples condição

fisiológica e fossem lançados na esfera da cultura.

8 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Metais e Pedras Preciosas. In: História Geral da Civilização Brasileira. São Paulo, Difel, 1960. p.277. 9 BOSCHI, Caio César. Op. Cit., p.21-29 10 SALLES, Fritz Teixeira. Associações Religiosas no Ciclo do Ouro. Belo Horizonte. Centro de Estudos Mineiros. p.47 11 FURTADO, Júnia Ferreira. Transitoriedade da vida, eternidade da morte.p. 402. In: JANCSÓ, István, KANTOR, Íris. Festa: Cultura e Sociabilidade na América Portuguesa. vol.I. São Paulo. Editora da Universidade de São Paulo. 2001 12 Ibid., p.403.

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OS ENTERROS DE ESCRAVOS PELA IRMANDADE DE NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO DOS PRETOS DO ALTO DA CRUZ.

“E porque é alheio da razão e piedade cristã, que os senhores, que se serviram de seus

escravos em vida, se esqueçam deles em sua morte, lhes encomendamos muito, que pelas almas

de seus escravos defuntos mandem dizer missas, e pelo menos sejam obrigados a mandar dizer

por cada um escravo, ou escrava que lhe morrer, sendo de quatorze anos para cima, a missa de

corpo presente, pela qual se dará a esmola acostumada”.13.

Em seu livro quarto, as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia ordenavam aos

senhores que cuidassem do sepultamento de seus escravos e escravas, mas nem sempre os

senhores seguiam os preceitos da Igreja. Prova de tal realidade, sendo constantes os relatos de

abandono de corpos de escravos no Brasil colônia. Espaços como o Campo da Pólvora em

Salvador eram o destino dos suicidas, criminosos, indigentes e escravos14. A praça da Matriz de

Maceió também era um desses depósitos de corpos, onde se enterravam escravos15. Em Olinda,

escravos eram enterrados na beira da praia, em sepulturas rasas, onde os “cachorros quase sem

esforço achavam o que roer e os urubus o que pinicar” 16. No Rio de Janeiro, também não

existiam lugares adequados para se enterrar os escravos17.

Em Salvador, a Irmandade de São Domingos do Convento de São Francisco chegou a

fazer uma petição ao rei, na qual informava a precária situação dos defuntos escravos:

(...) “e da mesma sorte acontece freqüentemente lançarem os defuntos corpos nos adros

das igrejas principalmente de religiosos os quais se vêem precisados a dar lhe sepultura, pois tem

os senhores por mais barato esta inumanidade do que experimentar as demoras, e embaraços

das averiguações da sua pobreza, com que muitas vezes, além de se corromper primeiro o

cadáver, fica totalmente dificultada a sepultura” 18.

Em 1693, D. Pedro II, mostrando preocupação com as condições dos negros no Brasil,

escrevera ao cabido da catedral do Rio de Janeiro mandando assegurar a todos os escravos

moribundos os últimos sacramentos. O rei fora informado de que os sacramentos não eram

13 Constituições Primeiras do feitas e ordenadas pelo ilustríssimo e reverendíssimo senhor D. Sebastião Monteiro da Vide 5º, Arcebispo do dito Arcebispado, e do Conselho de Sua Majestade: propostas e aceitas Synodo Diocesano, que o dito Senhor celebrou em 12 de junho do anno de 1707.1ª edição Lisboa 1719 e Coimbra. 1720. São Paulo: Typografia 2 de dezembro de Antonio Louzada Antunes, 1853.Livro 4, título LI, p.293. 14 REIS, João José. A Morte é uma Festa: Ritos fúnebres e Revolta Popular no Brasil do Século XIX. São Paulo: Companhia das Letras,1995., p. 193. 15 COARACY, Vivaldo. O Rio de Janeiro no século XVII. Citado por: CAMPOS, Adalgisa Arantes. Notas Sobre Rituais de Morte na Sociedade Escravista. Revista do departamento de História da UFMG, nº6, 1988. p.109- 122 16 FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala: Formação da sociedade da família brasileira sob o regime de economia patriarcal. 10 ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 1961. 2v p. 713 17 SOARES, Mariza de Carvalho. Devotos da Cor: Identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2000.p. 146 18 Trecho de petição da Irmandade de São Domingos do Convento de São Francisco da cidade de Salvador ao rei. Arquivo Histórico Ultramarino, Lisboa, Bahia, 1735. Citado por: SOARES, Mariza Carvalho. Op. Cit., p. 144

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ministrados em parte porque os padres cobravam taxas exorbitantes, e, em parte, porque os

senhores se recusavam a chamar padres para assistir aos escravos moribundos. As cartas do rei

aos seus governadores raramente produziam efeitos práticos19. Deixar cadáveres de escravos às

portas das Igrejas era uma prática comum que perdurou até 1814, ano em que o Conde dos Arcos

decretou a cessação de tal costume20.

Em Minas Gerais, a situação também não fora diferente, os relatos das atas de óbito de

escravos nos informam sobre circunstâncias semelhantes. Em Vila Rica, o destino dos escravos

sem proteção confrarial ou da piedade do seu senhor era o adro da igreja Matriz 21. Este recinto,

dotado de covas com reduzida qualificação espiritual, tinha pouca aceitação por parte das

populações livres (branca e parda) durante o setecentos e primeiro terço do oitocentos. O adro da

Matriz foi, sem dúvida, a maior necrópole na Capitania das Minas. Geralmente permaneciam

neste cemitério os defuntos escravos, não filiados a Irmandade do Rosário dos Pretos ou

naquelas de crioulos (Mercês e Misericórdia, Mercês e Perdões, São José dos Homens Pardos,

São Francisco de Paula, Nossa Senhora das Dores, Santa Efigênia no Alto da Cruz, etc.)22.

Na Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Antônio Dias, também em Vila Rica,

além do adro ou cemitério da Matriz - o mais usado pela Paróquia do Pilar para o enterramento de

escravos - também foram utilizados adros de outras capelas para o mesmo fim. Abaixo apresento

uma tabela com a distribuição dos sepultamentos de escravos na Paróquia de Nossa Senhora da

Conceição do Antônio Dias:

19 RUSSEL-WOOD. Op. Cit., p.175-176. 20 Ibid. p.181. 21 CAMPOS, Adalgisa Arantes. A idéia do barroco e os desígnios de uma nova mentalidade: A Misericórdia através do sepultamento pelo amor de Deus na paróquia do Pilar de Vila Rica (1712 - 1750) In: O território do barroco no século XXI. Ouro Preto, 2000. pp.50-55. 22 Idem. p. 51.

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Tabela 1 DISTRIBUIÇÃO DOS SEPULTAMENTOS DE ESCRAVOS, POR ANO E POR LOCAL

1770

1771

1772

1773

1774

1775

1776

1777

1778

TOTAL

nº nº nº nº nº nº nº nº nº nº %

Cem. Da Matriz 29 30 24 35 34 22 18 34 14 240 33,8

Capela da Matriz 2 3 1 2 8 1,1

Cap. de N S. do

Rosário dos

Pretos

10 34 26 18 22 23 17 17 19 186 26

Cem. de N S. do

Rosário dos

Pretos

2 2 1 1 1 1 8 1,1

Cem. De Santana 9 12 9 15 20 16 15 19 8 123 17,1

Cem. De Padre

Faria

8 14 9 7 13 7 6 11 8 83 11,5

Cem. do Taquaral 1 4 2 7 7 2 6 3 2 34 4,7

Cem. de São

João do

Ouro Fino

4 2 3 3 3 5 0 6 4 30 4,1

Cem. Senhor dos

Perdões

0 0 0 1 0 1 2 0 0 4 0,6

TOTAL 63 98 75 90 100 77 65 90 58 716

Fonte: Livro de óbitos. Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Antônio Dias, 1770-1778.

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Observa-se que a maioria dos escravos era, de fato, sepultada no adro das capelas,

havendo uma predominância do adro da Matriz. A capela do Rosário foi a que mais enterrou

escravos em seu interior.

Havia também a preocupação de não ser enterrado nos cemitérios, uma vez que este tipo

de sepultamento significava perder as indulgências da sepultura na capela e as rezas dos irmãos

que, cotidianamente, lá realizavam seus exercícios religiosos. No caso dos escravos outra

possibilidade pode ser acrescentada, a de ficar entre "parentes" depois da morte. Segundo João

José Reis, para o africano viver entre parentes reais tornava-se difícil pelo trauma da escravidão,

mas morrer numa família ritual, e com ela passar ao Além, se tornara possível com a irmandade23.

Neste período constata-se a existência de uma hierarquia do conjunto espacial que

envolvia os rituais da morte, revelando tanto a hierarquização do sagrado, quanto do social.

Aqueles escravos que possuíam condições de pertencer a uma irmandade obtinham funerais

dignos, ao contrário dos outros, aos quais restava o adro das igrejas.

A entrada dos escravos nas confrarias pode ter sido motivada pela busca da "boa morte",

ou seja, a morte assistida, com sacramentos, cortejo e sepultamento digno. Como avalia Soares,

a justificativa para a criação das confrarias de pretos vinha freqüentemente associada ao fato de

os escravos serem abandonados por seus senhores depois de velhos e doentes tendo seus

cadáveres deixados no adro das igrejas. Ainda de acordo com Soares, considerando-se a baixa

natalidade e a alta mortalidade da população escrava, é possível concluir que um reduzido

número de escravos tinha acesso ao sepultamento cristão. Os sepultamentos feitos de acordo

com as normas eclesiásticas deviam corresponder, grosso modo, ao universo dos filiados a

irmandades que conseguiam cumprir todas as exigências do sepultamento cristão, o que, mesmo

nas irmandades, nem sempre era fácil. As exigências constituíam-se em administrar os

sacramentos ao moribundo e, após o falecimento, realizar a encomendação do corpo, a

preparação em mortalha adequada, o transporte e o sepultamento com a presença de um

religioso, missa e velas. Paga-se o padre, a mortalha, a sepultura, a missa e também as velas24.

Dentre os sacramentos administrados aos moribundos - penitência, eucaristia e extrema

unção - este último era o mais significativo. A tabela 2 apresenta os dados das atas de óbitos e

revela que nem todos os escravos o recebiam, mesmo os sepultados na Igreja do Rosário. Em

compensação, não podemos afirmar que os escravos morriam completamente desassistidos, na

maioria das vezes os cativos recebiam, por ocasião da morte, alguma benção ou confessavam

seus pecados.

23 REIS, João José. Op.Cit., p. 198. 24 SOARES, Mariza Carvalho de. Op. Cit., p. 151

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Tabela 2 SACRAMENTOS MENCIONADOS NAS ATAS DE ÓBITOS: 1774

Localidade % de extrema-unção % com

Outros sacramentos

Total de Atas de óbito

Cem. da Matriz 61 82 28

Ig. de N. S. Do

Rosário

53 94 17

Cem.de Santana 36 93 14

Cem. Padre Faria 40 80 10

Cem do Taquaral 67 100 7

Cem. de São João

do

Ouro Fino

-

100

3

Cem. de Senhor dos

Perdões

-

-

-

Fonte: Livro de óbitos. Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Antônio Dias, 1770-1778.

Os sodalícios de homens negros se esforçavam no cuidado com seus mortos, cuidavam

do cortejo fúnebre e sepultura dos irmãos, não descuidando de suas almas, sufragadas com as

missas especificadas no compromisso. A irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos do

Alto da Cruz oferecia primazia nos cuidados com os mortos. Em seu compromisso, chegava a

destacá-los como garantias primordiais, estabelecidas no ato de ingresso dos irmãos: “Os irmãos,

que entrarem, e se sentarem nos livros da irmandade pagarão de entrada meia oitava, e de anual

em cada um ano meia oitava, pelo que ficará a irmandade obrigada a mandar-lhe dizer a cada um,

que falecer quatro missas, e dar-lhe sepultura, e a ir conduzi-lo no seu Esquife com Cruz Alçada,

e Capelão com os irmãos de Opa, com suas tochas, que se puderem ajuntar, mas sendo o irmão

falecido daqueles, que tiverem servido na dita irmandade de juizes, terão mais dez missas cada

um” 25 .

A presença dos irmãos no acompanhamento do cortejo fúnebre era considerada

fundamental: “Falecendo qualquer irmão, assim que se der parte, se farão os sinais costumados,

e se avisará a irmandade para nas horas assinaladas se acharem os irmãos para o

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acompanharem, e unidos todos em corpo de irmandade com suas opas, e tochas, esquife, cruz, e

o capelão sairão a busca-lo, e dar-lhe sepultura” 26.

A irmandade também buscava solenizar ao máximo a morte dos seus membros, mesmo

desrespeitando a legislação eclesiástica, atraindo a reprovação das autoridades eclesiásticas. O

visitador D. Henrique Moreira de Carvalho determinava, em 20 de maio de 1747: “Achei nesta

freguesia uma capela de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, que falecendo algum irmão da

irmandade se tocava os sinos a toda hora, e a todo tempo contra o que dispõe a constituição

observada neste bispado. Pois nos dias de preceito tocaram os dois sinos antes da missa

conventual sem cessar até se dar o corpo do irmão defunto a sepultura; pelo que havendo de se

reformar nesta parte: mando que o capelão da dita capela não consinta que nos dias de preceito

antes dos ofícios divinos se dobrem os sinos por qualquer irmão defunto, e que os dobres não

passem de três sendo homem e de dois sendo mulher, por que o mais é de ir contra as

disposições da lei que se deve observar, com pena de que não observando isto o dito capelão ser

suspenso, e privado da dita capelania e o reverendo pároco assim o fará observar” 27.

Os ritos fúnebres não apenas prestavam homenagem ao morto, ajudando-o a trilhar o

caminho para o outro mundo, mas, em sua pompa, mostravam o poder da irmandade em cuidar

de seus membros e enterrar seus mortos. Daí o fato de, mesmo nos enterros dos irmãos de

menor destaque, a irmandade comparecer, chorar e carregar o morto até a sepultura. A parcela

de escravos sepultados pelas irmandades fugia do anonimato do sepultamento no adro da matriz,

afirmando assim a identidade de um grupo social específico. Também as missas solenes de corpo

presente e pelas almas dos irmãos falecidos, assim como os cortejos fúnebres, as procissões

eram oportunidades para renovar a solidariedade do grupo e demonstrar à sociedade a

importância da irmandade. Segundo Scarano, esse é o motivo da condenação de ausências e

omissões dos irmãos nessas ocasiões28.

Quanto às missas o compromisso do Rosário dos Pretos do Alto da Cruz recomendava ao

tesoureiro: "... e sendo das Missas, que se disserem pelos irmãos defuntos, passarão os padres, que os disserem certidão de as terem dito em um livro, que parará na mão do dito tesoureiro, tendo a maior vigilância, em que não fiquem por sufragar as almas dos irmãos, que falecerem, antes com maior zelo fará se digam com a maior brevidade" 29.

25 OURO PRETO. Arquivo da Casa dos Contos. Compromisso da Irmandade de N. S. do Rosário dos Pretos do Alto da Cruz, cap. 13 e 18, rolo 058, vols 123 e 124. 26 Ibid. 27 Editais e provisões do Bispado de Mariana (1743-1756), fs. 12-12v. citado por AGUIAR, Marcos Magalhães de. Vila Rica dos Confrades: a sociedade confrarial entre negros e mulatos no século XVIII. São Paulo: FFLCH/USP, 1993. (Dissertação de Mestrado em História). p. 235. 28 SCARANO, Julita. Devoção e Escravidão: A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos no Distrito Diamantino no século XVIII. 2ª edição. São Paulo: Editora Brasiliana, 1978.p. 55. 29 Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos. Op. Cit., capítulo 7.

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Os documentos por nós pesquisados, pertencentes à Irmandade do Rosário dos Pretos do

Alto da Cruz, em Vila Rica, permitiram analisar os funerais de escravos, apenas pelo ângulo dos

rituais católicos, silenciando sobre aspectos estranhos a estes. Todavia, podemos encontrar no

relato de uma visita do bispo D. Antônio de Guadalupe, à capitania, em 1726, a preservação de

alguns costumes africanos: “Achamos que alguns escravos, principalmente da costa da Mina,

retêm algumas relíquias de sua gentilidade, fazendo ajuntamento de noite com vozes e

instrumentos em sufrágio de seus falecidos ajuntando-se em algumas vendas, onde compram

várias bebidas e comidas, e depois de comerem lançam os restos nas sepulturas” 30. O prelado

deu assim testemunho da tradição africana de que os mortos devem levar à sepultura oferendas

propiciatórias, participando do banquete festivo de despedida dos vivos.

Quiséramos ter para Minas Gerais do século XVIII, as excelentes descrições de Jean-

Baptiste Debret sobre os cerimoniais fúnebres no Rio de Janeiro no início dos oitocentos. O autor

descreve com riqueza de detalhes, os funerais de uma negra moçambicana e do filho de um rei

negro. No primeiro caso, só acompanhavam o funeral mulheres, à exceção de dois homens

carregando o cadáver numa rede, um “mestre-de-cerimônias” e um tocador de tambor. Este último

puxava o cortejo, ora adiantando-se, ora detendo-se para tocar. Na Igreja de Nossa Senhora de

Lampadosa, o mestre-de-cerimônias, vestido com um tipo de gibão colorido, ordenou que o

cortejo parasse, ao tempo em que a porta da igreja se abria. Neste momento, o tambor entrou em

ação e as negras puxaram cantos fúnebres, acompanhados por palmas. Algumas mulheres

colocaram as mãos sobre a mortalha e diziam: “estamos chorando nosso parente, não

enxergamos mais, vai embaixo da terra até o dia do juízo, hei de século secolorum amém”. Não

faltou latim nesse ritual agora sincrético. Um sincretismo percussivo também misturava o som dos

sinos ao do tambor. Nada de velas, caixão, padres, orquestras, mas ainda assim um enterro

pomposo a seu modo.

No enterro do príncipe, estiveram presentes representantes de várias delegações africanas

que compunham a população escrava carioca. Desde manhã cedo reinava um clima de festa, com

dança e música tocada com instrumentos africanos acompanhados de palmas. As “palmas

constituem-se de duas batidas rápidas e uma lenta ou de três rápidas e duas lentas, geralmente

executadas com energia e conjunto”. Vez por outra se soltavam bombas juninas. Essas atividades

se estenderam até seis ou sete horas da noite, quando teve início o cortejo fúnebre, aqui também

havia um mestre-de-cerimônias que, a bengaladas, abriu caminho entre a multidão para a

passagem do defunto, levado numa rede coberta com pano mortuário, sendo nesta hora saudado

30 VASCONCELOS, Diogo de. História do Bispado de Mariana. Belo Horizonte, Ed. Apollo.1935.p.18. Apud: CAMPOS, Adalgisa Arantes. Notas sobre os Rituais de Morte na Sociedade Escravista. Revista do departamento de História da UFMG, n. 6, 1988. p.120.

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por fogos de artifício e as acrobacias de quatro africanos. O morto foi escoltado por amigos e

pelas delegações africanas, seguidos por negros empunhando bengalas e, mais atrás, gente que

Debret chamou de “curiosos”. Chegando à igreja, enquanto do lado de dentro acontecia a

cerimônia de sepultamento, do lado de fora homens e mulheres soltavam bombas, batiam palmas,

tocavam tambores, cantavam canções africanas31.

Estas descrições mostram que o Brasil colônia foi cenário de uma cultura funerária que

mesclava tradições portuguesas e africanas. Entretanto, algumas pesquisas revelam que em

certas regiões do Brasil colônia, como a região de São Salvador de Campos dos Giotacazes no

Rio de Janeiro, os escravos desprezaram por completo os sacramentos católicos na hora da

morte. Esta negação se traduzia como forma de resistência, como meio de preservação de seus

ritos próprios. No momento da morte, a intromissão da Igreja Católica não era bem vinda. A

negação destes escravos aos sacramentos era nítida e descrita nos assentos de óbito feitos pela

igreja, como “não foram pedidos” 32.

Na documentação da Irmandade analisada em nossa pesquisa, não encontramos escravos

que se negaram a receber os sacramentos católicos na hora da morte. E a ausência de algum

sacramento veio sempre acompanhada de justificativa, como se verifica no assento de Antônio

Garcia de Menezes, preto, natural do reino de Angola que não recebeu o sacramento da

eucaristia “por causa da repetição de alguns vômitos” 34; outro exemplo, o de Antônia Mina que

não recebeu os sacramentos, “por ser batizada na ocasião da enfermidade de que morreu” 35. E o

de Bernardo Mina, que também morreu sem sacramentos “por se achar de todo variado" 36.

Podemos conjeturar que a aceitação e a procura por sepultamentos cristãos por parte dos

escravos podia representar uma tentativa de fuga das condições precárias do sepultamento no

adro da Matriz. E ainda, uma tentativa de se preservar tanto a identidade do morto como da

irmandade.

Vale lembrar também que, em ambas as culturas, africana e portuguesa, é recorrente a

idéia de que o indivíduo deve preparar-se para morrer37 e, neste sentido, a Igreja católica pode ser

31Sobre comentários de Debret em torno das práticas funerárias de ascendência africana, consultar REIS,João José. Op.Cit,. pp. 160-161. 32Estas foram às conclusões a que chegou FARIA, Sheila de Castro, em pesquisa realizada na freguesia de São Salvador dos Campos dos Goitacazes no Rio de Janeiro. A colônia em Movimento: Fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.p.305. 34OURO PRETO. Arquivo da Casa dos Contos-, Antônio Garcia de Menezes, 14/04/176, vol 06, rolo 047,fl 381. 35OURO PRETO. Arquivo da Casa dos Contos-, Antônia Mina, 01/08/1771, vol 07, rolo 047,fl 22. 36OURO PRETO. Arquivo da Casa dos Contos-, Bernardo Mina, 09/12/1771, vol 07, rolo 047,fl 28. 37Sobre rituais de morte na África e em Portugal consultar: REIS, João José. Op. Cit., p. 90.

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encarada não apenas como uma instituição de opressão, mas também como uma estrutura usada

para defesa e autodefinição da comunidade escrava38.

CONCLUSÃO

O objetivo do presente estudo constituiu em tecer considerações sobre os processos que

levaram escravos a procurarem rituais cristãos através das irmandades leigas, e de que forma

estas atitudes podiam revelar cenas do cotidiano e das vidas daquelas pessoas. Não houve a

intenção de reconstruir todas as modalidades culturais dos rituais de morte na sociedade de Vila

Rica, na segunda metade do século XVIII.

Essencialmente, buscamos através da documentação, a face social da morte. Os rituais

fúnebres, no período e espaço por nos analisados, nos apontaram elementos definidores do

mundo material e da esfera mental e nos revelaram uma situação de precariedade e de pobreza.

A necessidade de filiação a uma irmandade leiga, com o objetivo de fugir do abandono do

corpo no adro das igrejas, denotou a falta de assistência pública aos desvalidos.

Nesta sociedade tão hierarquizada, foi necessário ao escravo buscar reconhecimento e

assegurar direitos básicos, direitos de vida e morte dignas e, na ausência de assistência do

Estado, as Irmandades Leigas foram meios de conquistá-los.

Juliana Aparecida Lemos Lacet é Bacharel em História pela Universidade Federal de

Ouro Preto

38RAMOS, Donald. A influência africana e a cultura popular em Minas Gerais: um comentário sobre a interpretação da escravidão. p. 159 In: JANCSÓ, István, KANTOR, Iris. Festa: Cultura e sociabilidade na América Portuguesa. vol.I. São Paulo. Editora da Universidade de São Paulo. 2001

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