revista do ministÉrio pÚblico do trabalho 46.pdf · projeto de capa: alexandre oliveira ......

624
REVISTA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO FUNDADA EM 1991 ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS PROCURADORES DO TRABALHO 5041.1 MPT 46.indb 1 11/08/2014 10:19:36

Upload: trantruc

Post on 12-Dec-2018

215 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

REVISTA DO

MINISTRIO PBLICO DO TRABALHO

FUNDADA EM 1991

ASSOCIAO NACIONAL DOS PROCURADORES DO TRABALHO

5041.1 MPT 46.indb 1 11/08/2014 10:19:36

COMISSO EDITORIAL

Rodrigo de Lacerda Carelli (Presidente)

Andrea Nice Silveira Lino Lopes

Ronaldo Jos de Lira

Zlia Maria Cardoso Montal

5041.1 MPT 46.indb 2 11/08/2014 10:19:36

MINISTRIO PBLICO DA UNIO MINISTRIO PBLICO DO TRABALHO

REVISTA DO

MINISTRIO PBLICO DO TRABALHO

EDITADA PELA LTR EDITORA, EM CONVNIO COM A PROCURADORIA-GERAL DO TRABALHO

E COM A ASSOCIAO NACIONAL DOS PROCURADORES DO TRABALHO

OS ARTIGOS PUBLICADOS SO DE RESPONSABILIDADE DOS SEUS AUTORES

Redao Procuradoria-Geral do Trabalho

SBS Quadra 2, Bloco S, Salas 1103/1105 11 andar Empire Center CEP 70070-904 Braslia DF

Telefone: (61) 3325-7570 FAX (61) 3224-3275 e-mail: [email protected]

REVISTA MPT BRASLIA, ANO XXIII N. 46 SETEMBRO 2013

5041.1 MPT 46.indb 3 11/08/2014 10:19:36

Revista do Ministrio Pblico do Trabalho / Procuradoria-Geral do Trabalho

Ano 1, n. 1 (mar., 1991) Braslia: Procuradoria-Geral do Trabalho,

1991 v. Semestral.

1. Direito do trabalho. 2. Justia do Trabalho. I. Procuradoria-Geral do

Trabalho (Brasil).

ISSN 1983-3229

CDD 341.6

EDITORA LTDA.

Rua Jaguaribe, 571 CEP 01224-001 So Paulo, SP Brasil Fone (11) 2167-1101 www.ltr.com.br

Todos os direitos reservados

Produo Grfica e Editorao Eletrnica: R. P. TIEZZI X Projeto de Capa: ALEXANDRE OLIVEIRA Impresso: HR GRFICA E EDITORA LTr 5041.1 Maro, 2014

5041.1 MPT 46.indb 4 11/08/2014 10:19:36

5

Sumrio

APRESENTAO ..................................................................................................9

XIII PRMIO EVARISTO DE MORAES FILHO (MELHOR ARRAZOADO)

O MEIO AMBIENTE DO TRABALHO NAS PRISES SOB CUSTDIA. O OLHAR SOBRE OS AGENTES PENITENCIRIOS: ENCARCERADOS SEM PENAS PELO ESTADO INFRATOR ......................................................13 Alessandro Santos de Miranda

RESPONSABILIDADE DO ESTADO BRASILEIRO PELOS DIREITOS TRABALHISTAS DOS EMPREGADOS DAS EMPRESAS CONTRATADAS 36 Eduardo Maia Tenrio da Cunha

CONFLITOS COLETIVOS DE TRABALHO: A GREVE, NUM CONTEXTO DE VIOLNCIA, FRENTE A OUTROS DIREITOS FUNDAMENTAIS ............72 Francisco Grson Marques de Lima

ESTUDOS

AO CIVIL PBLICA TRABALHISTA COM PEDIDO CONSTITUTIVO NEGA-TIVO (DECLARAO DE NULIDADE) .........................................................109 Alberto Emiliano de Oliveira Neto

APONTAMENTOS SOBRE A NORMATIZAO DO INSTITUTO DA TERCEI-RIZAO NO BRASIL: POR UMA LEGISLAO QUE EVITE A BARBRIE E O ANIQUILAMENTO DO DIREITO DO TRABALHO .................................124 Sebastio Vieira Caixeta

5041.1 MPT 46.indb 5 11/08/2014 10:19:36

6

AVANOS E PERSPECTIVAS DO DIREITO CONSTITUCIONAL DO TRABA-LHO: UMA ANLISE SOB A TICA DO DIREITO COLETIVO DO TRA-BALHO .........................................................................................................141 Renan Bernardi Kalil

MEIO AMBIENTE DO TRABALHO: GARANTIA CONSTITUCIONAL FUNDA-MENTAL DE EFETIVAO DE DIREITOS INDIVIDUAIS, COLETIVOS E SOCIAIS FUNDAMENTAIS ...........................................................................173 Jorsinei Dourado do Nascimento

TERCEIRIZAO NA INDSTRIA DO VESTURIO .......................................188 Paulo Penteado Crestana

TRFICO DE PESSOAS E TRABALHO ESCRAVO: ALM DA INTERPOSI- O DE CONCEITOS ..................................................................................217 Christiane Nogueira; Marina Novaes; Renato Bignami; Xavier Plassat

A INEVITABILIDADE DA NEGOCIAO COLETIVA NO SETOR PBLICO ......244 Enoque Ribeiro dos Santos; Bernardo Cunha Farina

SADE LABORAL O ADICIONAL DE INSALUBRIDADE E O DIREITO FUNDAMENTAL AO MEIO AMBIENTE DE TRABALHO HGIDO ...........285 Leomar Daroncho

PEAS JURDICAS (INQURITOS CIVIS, TERMOS DE COMPROMISSO DE AJUSTAMENTO DE CONDUTA, AES, RECURSOS E

DECISES JUDICIAIS)

AO CIVIL PBLICA (PRT 5 REGIO PROCURADOR DO TRABALHO AFONSO DE PAULA PINHEIRO ROCHA) SERTENGE S/A. ..................307 Trabalho em condies degradantes

AO CIVIL PBLICA (PRT 23 REGIO PROCURADORA FERNANDA ALITTA MOREIRA DA COSTA) CEPI CURSOS INTERATIVOS LTDA. ME, ANGELI & FARIA MARKETING LTDA. EPP e EMPRESA FRAN-QUEADORA MARCELO MASSO QUELHO FILHO FRANCHISING ........350 Contratao irregular aprendizes Projeto Melhor Aprendiz

AO CIVIL PBLICA (PRT 6 REGIO PROCURADORA VANESSA PATRIOTA DA FONSECA) SIQUEIRA CASTRO ADVOGADOS .............393 Irregularidade na contratao de advogados por escritrio de advocacia

5041.1 MPT 46.indb 6 11/08/2014 10:19:36

7

AO CIVIL PBLICA (PRT 19 REGIO PROCURADOR-GERAL DO TRABALHO LUS ANTNIO CAMARGO DE MELO; PROCURADORES DO TRABALHO JONAS RATIER MORENO, VIRGNIA DE ARAJO GON-ALVES FERREIRA, RAFAEL GAZZANO JNIOR, ADIR DE ABREU, RODRIGO RAPHAEL RODRIGUES DE ALENCAR, VICTOR HUGO CARVALHO, EME CARLA CARVALHO) LAGINHA AGRO INDUSTRIAL S/A. E OUTROS ............................................................................................433 Contratao de trabalhadores por interposta pessoa Terceirizao da atividade-fim

DECISO DE ANTECIPAO DE TUTELA (9 VARA DO TRABALHO DE MACEI- ALAGOAS) ....................................................................................461

AO CIVIL PBLICA (PRT 24 REGIO PROCURADOR DO TRABALHO LEONTINO FERREIRA DE LIMA JNIOR) CONSTRUTORA NORBERTO ODEBRECHT S/A. ........................................................................................464 Dano moral coletivo causado em razo da prtica de terceirizao da ativi-dade-fim e do descumprimento de inmeras normas de sade e segurana do trabalho

SENTENA (VARA DO TRABALHO DE COLNIZA/MT ITINERANTE EM ARIPUAN/MT) .............................................................................................499

AO CIVIL PBLICA (PRT 21 REGIO PROCURADORES DO TRABA-LHO ILEANA NEIVA MOUSINHO, XISTO TIAGO DE MEDEIROS NETO E ROSIVALDO DA CUNHA OLIVEIRA) LOJAS RIACHUELO S/A. .............536 Descontos indevidos nos salrios dos trabalhadores por dvidas no trabalhistas contradas com a empregadora e dano moral coletivo

ACRDO PROCESSO TRT 21/2 T./RO n. 95500-91.2011.5.21.0004 .........560

AGRAVO DE PETIO (PRT 5 REGIO PROCURADOR DO TRABALHO PEDRO LINO DE CARVALHO JUNIOR). ICTEBA E OUTROS ....................565 Execuo Ttulo Judicial. Aplicao art. 100 do CDC

ACRDO PROCESSO TRT/5 REGIO 5 T./AP 0278000-55.2000.5.05 TERMO DE COMPROMISSO DE AJUSTAMENTO DE CONDUTA (PTM DE UBERLNIDA PRT 3 REGIO) ......................................................576 Pagamento de salrios e de verbas rescisrias

Membros do Ministrio Pblico do Trabalho ................................................593

Regras para envio, seleo e publicao de trabalhos jurdicos ...............623

5041.1 MPT 46.indb 7 11/08/2014 10:19:36

5041.1 MPT 46.indb 8 11/08/2014 10:19:36

9

Apresentao

A Comisso Editorial tem a satisfao de apresentar a quadragsima sexta edio da Revista do Ministrio Pblico do Trabalho, publicao de valor nacionalmente reconhecido, diante da diversidade e riqueza de con-tedo dos trabalhos selecionados, revelando a qualidade e a abrangncia da atuao dos Procuradores do Trabalho, no mbito profissional e acadmico. A partir desta edio, assume a Presidncia o seu novo integrante, Rodrigo de Lacerda Carelli, em substituio a Xisto Tiago de Medeiros Neto. im-portante registrar que em sua Presidncia a revista teve modificados a sua organizao e o seu formato editorial. Pela sua inestimvel contribuio, registre-se o agradecimento formal de todos os integrantes da Comisso.

Nesta edio, apresentamos importantes trabalhos nas diversas reas de atuao do Ministrio Pblico do Trabalho, como Meio Ambiente do Trabalho, Administrao Pblica, Direito Coletivo do Trabalho, Fraudes na Relao de Trabalho e Trabalho Escravo, bem como artigo sobre Pro-cesso Coletivo.

Trazemos tambm peas processuais inovadoras nas questes relativas a condies degradantes de trabalho, contratao irregular de aprendizes, ilegalidade em contratao de advogados, dano moral coletivo e terceirizao.

Esperamos que os leitores aproveitem os conhecimentos trazidos e que o debate continue frutificando, em busca dos direitos fundamentais na relao de trabalho.

A Comisso Editorial

5041.1 MPT 46.indb 9 11/08/2014 10:19:36

5041.1 MPT 46.indb 10 11/08/2014 10:19:36

XIII PRMIO EVARISTO DE MORAES FILHO

(MELHOR ARRAZOADO)

5041.1 MPT 46.indb 11 11/08/2014 10:19:36

5041.1 MPT 46.indb 12 11/08/2014 10:19:36

13

O Meio Ambiente do Trabalho nas Prises sob Custdia. O Olhar sobre os Agentes Penitencirios: Encarcerados

sem Penas pelo Estado Infrator

Alessandro Santos de Miranda(*)

I) INSERO DOS AGENTES PENITENCIRIOS NO SISTEMA SOCIAL CARCERRIO E VICE-VERSA

O presente estudo tem como objetivos identificar e analisar os dados que podem ser destacados como de maior relevncia com relao s condies de segurana, higidez e sade fsica e mental e aos pro-cessos vivenciais de insero e assimilao dos Agentes Penitencirios na estrutura institucional e organizacional carcerria. Inicialmente, assume-se o compromisso crtico e filosfico de atuar na cognio das realidades so-ciais especficas destes profissionais para, com base nos conhecimentos empricos e jurdicos, promover a melhoria das condies de trabalho dessa importante categoria profissional.

A denominao Agente Penitencirio aplica-se ao trabalhador que desempenha funes diretamente relacionadas segurana (vigilncia e escolta), disciplina, atendimento e orientao, alm de atividades que ob-jetivam a reinsero social das pessoas custodiadas em estabelecimentos prisionais. Como exigncias para admisso funo, o candidato deve ter ensino mdio completo e submeter-se: a concurso pblico de provas

(*) Procurador da Procuradoria Regional do Trabalho da 10 Regio Braslia/DF, aprovado no VIII Concurso (1999). Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Sevilha, Espanha. Coordenador Nacional da Defesa do Meio Ambiente de Trabalho do Ministrio Pblico do Trabalho entre dezembro/2005 e outubro/2010.

5041.1 MPT 46.indb 13 11/08/2014 10:19:36

14

objetivas; avaliao de aptido fsica; sindicncia da vida pregressa e investigao social; avaliao psicolgica; e, por ltimo, aprovao no curso de formao profissional (com aulas tericas e atividades prticas a serem desenvolvidas no complexo carcerrio)(1).

Ao descrever o contedo de suas prprias tarefas, o Agente Peniten-cirio v-se como o intermedirio entre o detento e todas as atividades a ele ligadas. Assim, a alimentao, a conduo ao advogado, ao mdico e ao frum ou qualquer outro contato do preso com o mundo exterior realizado com interveno daquele profissional. Embora seja descrito como um trabalho com tarefas preestabelecidas, o crcere oculta uma violncia prpria que a qualquer momento transforma a rotina de todos os que nela trabalham ou esto custodiados. Neste sentido, a violncia transforma-se no fundamento de toda atividade ligada segurana nas prises(2).

Desta forma, a conscincia aguada do risco da atividade faz com que os Agentes Penitencirios nunca abandonem precaues individuais e coletivas, visando garantir sua sobrevivncia em meio a um mundo onde a violncia endmica e estrutural. Em nenhum momento, no exerccio de suas atividades, aqueles podem se descuidar do estado permanente de vigilncia e agressividade, e estas se revelam como processo natural e necessrio ao controle institucional, pois, no ambiente carcerrio, a violncia explode em ciclos e, alm de manter a disciplina, o Agente precisa antever quaisquer problemas que possam surgir(3).

Assim, tarefa primordial dos Agentes Penitencirios neutralizar o contrapoder oriundo das conjunes horizontais dos reclusos(4). Desse modo, devem evitar os contgios malficos de grupos; decompor as resis-tncias coletivas (agitaes, revoltas, organizaes espontneas, conluios e tramas); analisar as pluralidades fugidias; estabelecer as presenas e as ausncias; saber onde e como encontrar os custodiados; instaurar as comunicaes teis e interromper as demais. Enfim, cabe-lhes vigiar o com-portamento de cada um, apreci-lo e sancion-lo, o que o faz exercendo seu poder disciplinar(5).

Essa no outra que a ideia do panoptismo(6), constituindo a priso um espao fechado, vigiado em todos os seus pontos, onde cada indivduo

(1) DISTRITO FEDERAL. Disponvel em: Acesso em: 12.8.2013.(2) VASCONCELOS, 2000, p. 34-35.(3) VASCONCELOS, 2000, p. 34.(4) FOUCAULT, 1987, p. 193.(5) FOUCAULT, 1987, p. 131.(6) O panoptismo corresponde observao total. a tomada integral, por parte do poder disciplinador, da vida de um indivduo. Ele vigiado durante todo o tempo, sem que veja o seu

5041.1 MPT 46.indb 14 11/08/2014 10:19:36

15

(detentos e Agentes vigias) constantemente localizado, examinado e controlado(7). Nas penitencirias, os menores movimentos so observados e todos os acontecimentos so registrados.

O poder disciplinar dos Agentes Penitencirios se exerce tornando-se invisveis, pois os reclusos que devem ser vistos. O indivduo discipli-nar(8) est submetido a um campo de visibilidade obrigatria, e sabe disso, submetendo-se s limitaes impostas pelo poder carcerrio, fazendo-as funcionar espontaneamente sobre si mesmo(9). Da decorre o efeito mais importante do modelo panptico: induzir no detento um estado consciente e duradouro de visibilidade que assegura o funcionamento automtico do poder disciplinar. O essencial, pois, que ele se saiba vigiado(10).

A este respeito, ganha importncia a questo que se refere ao equi-lbrio entre confinamento e represso. Pela prpria natureza da instituio penal, concentrando pessoas cujas carncias mais emergentes se colocam no campo da perda de direitos, atribudo ao Agente Penitencirio o pleno exerccio do controle, da vigilncia e da punio, mesmo que conseguidas por meio de procedimentos repressivos, incompatveis com as relaes de cidadania. A rigor, a presena do Agente vem concretizar a estratgia ins-titucional imposta s prises: manter indivduos confinados em situao desumana o mais dceis possvel. Os procedimentos utilizados para obter referido intento acabam sendo justificados naturalmente como parte imprescindvel da armadura institucional.

Com efeito, pretende-se vislumbrar o cotidiano carcerrio com enfoque na sade, higidez e segurana dos Agentes Penitencirios neste estudo ,considerados como categoria de segurana pblica , em contraposio tendncia clssica de identificar, no referido ambiente, somente os deten-tos em cumprimento de penas, priorizando um dos grupos desse sistema

observador, nem que saiba em que momento est a ser vigiado. A reside sua finalidade: induzir no detido um estado consciente e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento autoritrio do poder. Fazer com que a vigilncia seja permanente nos seus efeitos (FOUCAULT, 1987, p. 166).O panptico era um edifcio em forma de anel, no meio do qual havia um ptio com uma torre no centro (na torre havia um vigia). O anel dividia-se em pequenas celas que davam tanto para o interior quanto para o exterior. Em cada uma dessas pequenas celas, havia, segundo o objetivo da instituio, uma criana aprendendo a escrever, um operrio a trabalhar, um prisioneiro a ser corrigido, um louco tentando corrigir a sua loucura, entre outros. (Disponvel em: Acesso em: 17.8.2013).(7) FOUCAULT, 1987, p. 176.(8) FOUCAULT, 1987, p. 167.(9) FOUCAULT, 1987, p. 179.(10) FOUCAULT, 1987, p. 177-178.

5041.1 MPT 46.indb 15 11/08/2014 10:19:36

16

organizacional quando, de fato, no o nico que o constitui. Assim, a bibliografia recorrente revela um olhar, via de regra, em direo nica aos reclusos, em detrimento dos demais grupos sociais que se vinculam, direta ou indiretamente, ao ambiente penitencirio, esquecendo-se, sobretudo, daqueles que possuem relao de trabalho direta com o drama da privao da liberdade.

No ser possvel melhorar o nefasto ambiente carcerrio sem que se compreenda a complexidade e totalidade de suas estruturas, processos e dinmicas enquanto elementos de um sistema social peculiar: o sistema prisional. Neste, os Agentes Penitencirios, entre outros trabalhadores que desenvolvem suas atividades nos presdios(11), compem um grupo social que aguarda e exige a ateno de um olhar tcnico-jurdico-filosfico sobre seus vnculos com o sistema carcerrio, mesmo que se admita, em com-parao com a sociedade livre, que existam importantes correspondncias entre suas realidades, em especial no que concerne s relaes de poder.

Sob aludido enfoque, percebe-se que o estabelecimento prisional no uma miniatura da sociedade em liberdade, mas um sistema particular, cuja caracterstica principal a relao de poder disciplinar e hierrquico pertinen-te poltica criminal, na medida em que serve para adestrar os indivduos ao status quo vigente(12). Este poder utiliza formas sutis de insero social, como a normalidade da sano. Assim, nesta sociedade especfica, com fins prprios e cultura particular, emerge a interao de duas realidades, a oficial (prescrita) e a interno-informal (real), o que, naturalmente, enseja o surgimento de conflitos, os quais so gerenciados por meio de processos de acomodao e resignao por parte de cada integrante (trabalhadores e detentos) do sistema(13).

Ao se propor analisar a insero dos Agentes Penitencirios na estru-tura prisional, e vice-versa, a fundamentao emprico-terica do presente estudo originou-se das inspees realizadas pelo autor em oito estabele-cimentos prisionais do Distrito Federal(14) em julho de 2013 com o objetivo

(11) No sistema prisional, podem coexistir trabalhadores de diversas categorias: Agentes de Polcia Civil; Agentes Penitencirios da Polcia Civil; Agentes de Atividades Penitencirias; Policiais Mili-tares; servidores administrativos; servidores de apoio da Polcia Civil; terceirizados, entre outros. Neste estudo, ser adotada a nomenclatura Agente Penitencirio, ou Agente, para referir-se a todos os que trabalham diretamente neste meio ambiente laboral.(12) BENITES, 2009, p. 47.(13) THOMPSON, 1991, p. 19/20.(14) O conjunto de unidades prisionais do Distrito Federal formado por prises antigas e por outras recentemente construdas, configurando realidades distintas. So elas: a) Penitenciria do Distrito Federal PDF I (abriga os detentos em regime fechado); b) Penitenciria do Dis-trito Federal II PDF II (alberga os internos em regime fechado e semiaberto sem benefcio); c) Centro de Deteno Provisria CDP (destina-se ao recebimento dos presos provisrios,

5041.1 MPT 46.indb 16 11/08/2014 10:19:36

17

de investigar, com maiores detalhes, o processo de trabalho e a dinmica prpria da categoria em comento no intuito de promover melhorias no meio ambiente laboral, com repercusso direta na qualidade de suas vidas profissional e pessoal , bem como, consequentemente, no grupo recluso (presos provisrios e condenados).

Como postulados bsicos para a anlise e soluo das condies laborais dos Agentes Penitencirios, assume-se que(15):

a) os Agentes so parcela integrante do sistema carcerrio(16), sendo este seu ambiente de trabalho;

b) o ambiente penitencirio deve ser reconhecido como uma instituio estruturada no modelo tpico de organizao pelo exerccio do poder (vigilncia hierrquica e agressividade);

c) s penitencirias, pelo ordenamento jurdico atual(17), so atribudos basicamente trs objetivos organizacionais quanto ao grupo apenado que a ela se encontra vinculado: punir, recuperar e prevenir novos delitos(18);

sendo ainda o presdio de entrada e classificao para os demais estabelecimentos do sistema penitencirio); d) Centro de Internamento e Reeducao CIR (abriga os detentos em regime semiaberto sem benefcio; possui ala especial para a custdia de ex-policiais e detentos com direito priso especial; tambm possui ala com celas destinadas a extraditandos cautelarmente custodiados e disposio do Supremo Tribunal Federal); e) Diretoria Penitenciria de Operaes Especiais DPOE (responsvel pela realizao de atividades tipicamente operacionais, tais como: transporte de detentos, escolta de autoridades, investigaes, captura de foragidos e intervenes em situaes de emergncia; alm de participar da segurana interna e externa do complexo penitencirio da Papuda); f) Penitenciria Feminina do Distrito Federal PFDF (estabelecimento prisional de segurana mdia, destinada ao recolhimento de sentenciadas a cumprimento de pe-nas privativas de liberdade em regimes provisrio, fechado e semiaberto com e sem benefcio , bem como de presas provisrias que aguardam julgamento pelo Poder Judicirio); g) Ala de Tratamento Psiquitrico ATS (cuida-se de ala destinada aos internos do sexo masculino com necessidades de ateno psiquitrica); h) Centro de Progresso Penitenciria CPP (destinado ao recebimento de sentenciados em regime semiaberto de cumprimento de pena e que j tenham direito aos benefcios legais de trabalho externo e de sadas temporrias).(15) CHIES, 2005.(16) Foucault assinala que o Agente Penitencirio , antes de tudo, um fragmento do ambiente prisional, que o assimila e por aquele assimilado como parte integrante deste, antes de ser uma coragem ou uma honra (FOUCAULT, 1987, p. 148).(17) Lei de Execuo Penal n. 7.210, de 11 de julho de 1984.(18) Foucault acentua o carter antagnico das finalidades da pena privativa de liberdade, justi-ficando o fato de que ao querer ser corretiva ela perde sua fora de punio e que a verdadeira tcnica penitenciria o rigor (FOUCAULT, 1995). No mesmo sentido, Lopes assinala que as instituies prisionais, locais criados para segregar, vigiar e punir, so aqueles onde a violncia constantemente reproduzida (LOPES).

5041.1 MPT 46.indb 17 11/08/2014 10:19:36

18

d) o papel do Agente Penitencirio est intimamente ligado sua conduta, pois o ser humano deve ser considerado em sua totalidade e no numa viso fragmentada(19);

e) os Agentes Penitencirios assimilam e incorporam, em razo da exposio significativa ao ambiente prisional, um processo especial de socializao, com hbitos de conduta, padres de comportamento, vocabulrios, cdigos e valores peculiares quela estrutura social, vez que o presdio se constitui em um ambiente diferenciado daquele existente fora dos limites da instituio.

Asim, decorre da admisso da complexidade e perverso do sistema penitencirio o reconhecimento de que todos os seus aspectos e dimenses devero ser objeto de enfrentamento, no mais sendo possvel que o enfo-que dado quele limite-se a privilegiar apenas um de seus grupos sociais, qual seja, o dos apenados, em detrimento das condies dignas de trabalho que devem ser conferidas pelo Estado(20) aos Agentes Penitencirios para propiciar o bom funcionamento de toda a organizao prisional.

O presente estudo focaliza, tambm, a problemtica ocupacional referente aos agravos sade sofridos pelos Agentes Penitencirios no exerccio da atividade profissional, analisando a inter-relao entre a tra-jetria de trabalho, as dificuldades encontradas na execuo das diversas tarefas e a salubridade da funo. Registre-se, de antemo, a carncia de servios de ateno sade capazes de prevenir ou minorar o sofrimento desse grupo de trabalhadores.

A realidade que se prope modificar que o sistema penitencirio brasileiro em decorrncia da superpopulao carcerria; da escassez de recursos e de investimentos; das pssimas condies em que se encon-tram as cadeias; do descaso do Estado em implementar polticas pblicas capazes de proporcionar melhores condies de vida para os trabalhadores e detentos; da falta de pessoal especializado, entre outros problemas , privilegia somente questes ligadas segurana e disciplina mximas, onde o importante o preso no infringir as regras disciplinares e, principalmente, no fugir.

Neste sentido, o papel estatal atribudo ao trabalho do Agente Peniten-cirio, em detrimento de sua inteno de possibilitar a ressocializao dos

(19) MARTINS, 1996, p. 61.(20) Tendo em vista que o trabalho dos Agentes nas prises um servio pblico, estas devem ser bem administradas pelo poder estatal com o objetivo de contribuir para o bem comum, tanto dos trabalhadores quanto dos reclusos.

5041.1 MPT 46.indb 18 11/08/2014 10:19:36

19

internos, passa a ser nica e erroneamente o de impedir que haja fugas e rebelies nas unidades prisionais, usando como recurso prticas repressivas. Entretanto, para imprimir referida ao-poder, seria necessrio haver, no mnimo, treinamentos adequados e constantes para lidar corretamente com as exigncias do cotidiano. Mas o que se percebe na prtica a carncia de uma poltica de formao profissional e de mecanismos que assegurem o acompanhamento na realizao das tarefas do sistema carcerrio.

Como agravante, todo o trabalho do Agente Penitencirio permeado pelo fenmeno da violncia intrnseca ao sistema prisional , a qual transforma e invade os sujeitos intimamente, introjetando em suas vidas a angstia e o medo em serem identificados como algozes da violncia.

II) O DEGRADANTE MEIO AMBIENTE LABORAL NOS ESTABELECIMENTOS PRISIONAIS

Para anlise do trabalho desenvolvido pelos Agentes Penitenci-rios, necessrio demarcar duas espcies de atividades: as chamadas funes administrativas e aquelas diretamente ligadas segurana e disciplina.

Antes de especificar cada uma delas, importante destacar a existncia de atribuies comuns da aludida categoria profissional, independente da funo ou posto que ocupa, tais como: executar, sob superviso, atividades relacionadas manuteno da ordem, segurana, disciplina e vigilncia dos estabelecimentos penais; escoltar detentos; revistar presos, celas e visitantes; zelar pela segurana de pessoas ou bens; participar ativamente dos programas de reabilitao social, tratamento e assistncia aos presos, entre outras.

De incio, alguns Agentes podem ser designados pela administrao prisional para desempenhar tarefas burocrticas em sees tcnico--administrativas, tais como: despacho, arquivo, classificao, subsistncia, almoxarifado, zeladoria e atividades gerais. Nesses casos, em princpio, o Agente no estabelece relao direta com o efetivo carcerrio e chamado de diarista, por trabalhar com jornada fixa (7 ou 8 horas) apenas em dias teis.

Por outro lado, h Agentes Penitencirios que executam tarefas tpi-cas em contato direto com a massa prisioneira, via de regra, em turnos de planto de 24 horas trabalhadas por 72 de repouso (ou 12 x 36), sendo o trabalho dividido em turmas, de acordo com as necessidades de cada unidade prisional.

5041.1 MPT 46.indb 19 11/08/2014 10:19:36

20

Na prtica, o desvio de funo tornou-se habitual, com a lotao de Agentes em funes burocrtico-administrativas. Isso ocasiona um desfalque ainda maior nas turmas que realizam as atividades tpicas, com implicaes negativas para as condies de trabalho daqueles, sendo uma necessidade premente a recomposio, por meio de concurso pblico, do quadro de pessoal. Alm disso, os que so desviados de funo vivem em constante estado de tenso, com receio de perderem seus cargos: um Agente que tenha problemas com a direo (ou, simplesmente, quando h troca do diretor) no tem nenhuma segurana em permanecer na funo, sendo comum, tambm, a troca de jornada (expediente normal para plantes, ou vice-versa), em prejuzo e retaliao queles.

Na realidade, os Agentes Penitencirios ressentem-se da sobre-carga de atividades durante seus horrios de planto. Isso ocorre como consequncia direta do reduzido quantitativo de servidores que exercem as atribuies tpicas, da superpopulao carcerria e da precaridade es-trutural das prises, obrigando-os a exercer diferentes tarefas ao mesmo tempo (administrativas e/ou carcerrias tpicas), configurando a condio de penosidade no trabalho.

Observa-se que o sistema de trabalho pode ser o mesmo, mas as singularidades de cada estabelecimento carcerrio fazem com que as ten-ses e o ritmo laboral se modifiquem. Assim, o servio penitencirio requer ateno constante pela prpria fragilidade estrutural ou sucateamento da priso. O movimento dirio torna o trabalho estafante, sobretudo daqueles que exercem suas atividades nas alas, blocos ou galerias dos detentos, cujos postos demandam a vigilncia de um quantitativo desumano de internos a exigir o estado de alerta permanente por parte de um quadro defasado de Agentes.

A bem da verdade, o que se verifica em qualquer dos ambientes de trabalho nas unidades carcerrias que os Agentes Penitencirios de-sempenham tarefas complexas que, devido escassez de pessoal, lhes exigem preparo para trabalhar em mltiplas atividades, sendo corriqueiras as mudanas de postos de trabalho, seja por necessidades operacionais, seja a pedido do prprio Agente.

Tambm, h uma lacuna em relao ao aperfeioamento do ensino. Faltam treinamentos admissionais e peridicos (de capacitao e reci-clagem) adequados s necessidades prticas para todos os Agentes Penitencirios lidarem corretamente com as exigncias do cotidiano, em especial os seguintes cursos: de tiro; utilizao de armamentos (pistolas, sprays de pimenta, entre outros); gerenciamento e controle de crises e massas; imobilizao; defesa pessoal; escolta; direo defensiva e ofensiva;

5041.1 MPT 46.indb 20 11/08/2014 10:19:36

21

utilizao de tonfas(21), algemas, entre outros. A formao poderia, tambm, abranger uma programao que inclui Direitos Humanos, Psicologia, Re-laes Humanas e Sade do Trabalhador, com o fito de desenvolver nos Agentes uma viso mais abrangente acerca do real sentido social de seu trabalho(22).

Essa carncia na preparao prtica dos Agentes leva-os a comple-mentar o aprendizado inicial obtido no curso de formao profissional por meio da observao e da imitao dos que j trabalham h mais tempo, situao que pode no ser a mais adequada. Sem recursos materiais dis-ponveis e tendo que conviver com o modo degradado de funcionamento da priso, o Agente utiliza, como sada para a falta de racionalidade do trabalho, a intuio e a experincia acumulada, implementando arranjos para realizar o servio.

Essa experincia, adquirida e executada na base do improviso, acaba por originar o medo, que leva igualmente violncia, formando um crculo vicioso que se instala em um universo brutal e impiedoso. O respeito e o controle dos apenados so obtidos por meio de prticas repressivas com consequncias e reaes imprevisveis, onde ningum tem o efetivo domnio sobre qualquer coisa. Tal situao penaliza, sobretudo, a sade do Agente Penitencirio, vtima das mazelas decorrentes do trabalho em situaes precrias.

Esse aprendizado conquistado com a experincia no desenvolvimento cotidiano de suas atividades no se faz sem um enorme custo psquico e identitrio, uma vez que impe ao Agente mimetizar-se naquele que ele percebe como a sua anttese o recluso. A dinmica dos processos de naturalizao permite aos Agentes Penitencirios internalizar elementos que, caso no fossem tomados como naturais, causariam estranhamento e choques. Esse processo de familiarizao tem por funo produzir uma economia psquica fundamental ao equilbrio do trabalhador carcerrio(23).

Assim, neste processo, o Agente Penitencirio digladia, a todo o tempo, com a identificao e a proximidade com o preso, elevando os riscos de sua contaminao moral pela massa carcerria(24).

Outra questo se refere valorizao profissional, constituindo uma das grandes frustraes dos Agentes Penitencirios. No h planos de cargos e salrios que lhes permita uma mudana qualitativa por meio de

(21) Espcie de cassetete, em tamanho menor.(22) LOPES.(23) MORAES, 2005, p. 221-222.(24) MORAES, 2005, p. 230.

5041.1 MPT 46.indb 21 11/08/2014 10:19:36

22

promoes asseguradas legalmente. Assim, subentende-se a falta de estmulo, revelando sentimentos de frustrao e desesperana diante da impossi-bilidade de alcanarem patamares mais qualificados. As chefias, nica oportunidade de melhoria de cargos e salrios da categoria, so ocasionais e temporrias, geralmente seguindo critrios de indicao poltica, muitas vezes ofertadas a pessoas externas carreira carcerria (Delegados da Polcia Civil, por exemplo).

A inexistncia de melhores horizontes profissionais compensada, no entanto, pelo salrio que, embora no seja satisfatrio, apontado como razovel, sendo considerado um dos melhores dentro da carreira policial. Outro fator assinalado como vantajoso a escala de servio, permitindo trabalharem 24 horas e folgarem 72 (ou 12 x 36). Isso proporciona a alguns Agentes o exerccio de outras atividades nos dias de folga, complementando a renda familiar.

Nesse sentido, importante ressaltar a carga laboral imposta quele que exerce outra profisso. Depois de cumprir seu longo planto na unida-de prisional, ele sai diretamente para a outra atividade, voltando para casa apenas no fim do dia, sem ter gozado de horas de repouso satisfatrias, ocasionando, na maioria das vezes, desgastes tanto fsicos quanto mentais.

Entretanto, no so muitos os Agentes que possuem atividades labo-rais paralelas s funes penitencirias, o que pode ser justificado pelo fato frequente de trabalharem em horas extras nos estabelecimentos prisionais, o que lhes impede de exercer outras profisses fora deste sistema(25).

Como se pode constatar nas reflexes anteriores, o trabalho do Agente Penitencirio permeado por contradies. Ao mesmo tempo que a escala de trabalho se destaca como atrativo em termos monetrios, ao oportuni-zar outra fonte de renda, a relao entre custo e benefcio desse ganho contabiliza perdas valiosas em termos de qualidade de vida. O salrio apontado como razovel, mas a necessidade de realizar trabalhos extras demonstra sua insuficincia e traz, como contrapartida, reclamaes em razo da sobrecarga laboral.

Quanto ao trabalho dos Agentes, convm observar que nem todos executam as mesmas tarefas, variando de acordo com os postos para os quais esto designados. Isso faz com que alguns Agentes Penitencirios, durante o planto, sejam mais exigidos que outros. Alguns postos de traba-lho, como as galerias, onde o contato direto com os presos constante, ou os de revista (dos visitantes, dos internos e das celas) so considerados os piores. Em outros, no entanto, como portarias, guaritas e ptios de visita (ou

(25) MARTINS, 1996, p. 79.

5041.1 MPT 46.indb 22 11/08/2014 10:19:36

23

de banho de sol), no se percebe maiores queixas quanto carga laboral, embora haja reclamaes quanto monotonia da atividade.

Importante ressaltar que, embora haja distino, os postos de trabalho so, de certa maneira, dependentes entre si. Se o Agente Penitencirio de determinada galeria detecta alguma alterao na rotina da cadeia, ne-cessitar contar com os responsveis pelas outras alas, ptios internos, portarias, entre outros postos. Por essa razo, o trabalho em equipe muito valorizado(26), o que no de se admirar, dado que todas as exigncias e carncias da instituio terminam por eleger o trabalho de equipe como nica alternativa vivel diante da gritante desproporo numrica entre Agentes e encarcerados.

Alm disso, coexistem diversas irregularidades cruciais no ambiente de trabalho prisional: equipamentos e sistemas de informtica desatualizados; falta de sistema de proteo contra incndio; problemas em instalaes sanitrias; infiltraes e vazamentos nas edificaes; instalaes eltricas sem manuteno; alojamentos mal dimensionados; camas e armrios ina-dequados; ausncia de vestirios; bebedouros sem troca de filtro (afetando a qualidade da gua); refeitrios sem dedetizao; viaturas danificadas, muito antigas e sem manuteno; falta de pagamento de adicionais de insalubridade e periculosidade; problemas relacionados ergonomia (mo-bilirio, trabalho em p e sentado e organizao do trabalho); desconforto trmino e de iluminamento nos ambientes laborais; excesso de rudo, umi-dade e mau odor provenientes das celas; repetitividade e monotonia das tarefas; quantitativo insuficiente de Agentes; excesso de jornada; ausncia de treinamentos peridicos e de reciclagem; detectores de metais e outros equipamentos avariados; indisponibilidade de materiais e armamentos; dificuldade de transporte pblico regular (pelo fato de os estabelecimentos prisionais situarem-se afastados dos centros urbanos, em regra), entre tantas outras.

Ainda, os Agentes Penitencirios representam um grupo de risco importante para infeco ocupacional pelo bacilo da tuberculose, alm de gripes, hepatite do tipo C, Aids (estas duas via transmisso sangunea, vez que os Agentes podem entrar em contato com internos feridos), doenas cutneas (entre elas, as micoses), ttano, pitirases(27),

(26) Entretanto, ao contrrio da solidariedade natural, parece mais adequado pensar numa agre-gao por coero (MORAES, 2005, p. 224).(27) Pitirase uma enfermidade cutnea provocada por leveduras ou fungos que se caracteriza pela mudana na pigmentao da pele, com o aparecimento de manchas brancas, amarelas, acastanhadas ou rseas. Esta infeco tambm conhecida pelos nomes tnea ou tinha versicolor, pano branco e micose de praia. Disponvel em: Acesso em: 5.8.2013.

5041.1 MPT 46.indb 23 11/08/2014 10:19:36

24

escabioses(28) e outras doenas infectocontagiosas, as quais expem no s a sade coletiva e individual da populao carcerria, como tambm os Agentes por causa do contato constante com aquela. Isto porque as celas so locais midos, sem iluminao e ventilao naturais, mal higienizadas e com confinamento de excessivo numerrio de internos, o que potencializa o risco de proliferao de doenas, inclusive endmicas, nos ambientes prisionais em comparao populao livre(29).

Frise-se que, em contrapartida permissividade ilegal da existncia de prises celulares abarrotadas de detentos, de acordo com a Lei de Exe-cuo Penal (art. 88), as celas deveriam ser individuais e conter dormitrio, aparelho sanitrio e lavatrio, tendo como requisitos bsicos a salubridade do ambiente pela concorrncia dos fatores de aerao, insolao e condi-cionamento trmico adequado existncia humana, com rea mnima de seis metros quadrados. Assim, o estabelecimento penal com superlotao carcerria no se mostra compatvel com sua estrutura e finalidade (art. 85) nem com as boas condies laborais dos Agentes.

Referido instrumento normativo estabeleceu, tambm, que, no prazo de seis meses aps a sua publicao (em 11 de julho de 1984), deveriam as Unidades Federativas, em convnio com o Ministrio da Justia, projetar a adaptao, construo e equipamento de estabelecimentos e servios penais previstos nesta lei (art. 203, 1). Todavia, desde a publicao do aludido diploma, a sociedade brasileira v-se diante de um caos cada vez maior no mbito prisional, posto que as polticas pblicas (ou a ausncia delas) relegaram o assunto a um dos ltimos nas listas de prioridades na-cionais.

Esse cenrio se deve basicamente ao binmio ausncia de interesse popular (ou, subliminarmente, de interesse poltico dos representantes do povo) e acomodao do Estado no enfrentamento do problema(30), um consequente do outro. Primeiro, inconteste que o tema sempre se mos-trou indigesto sociedade brasileira, a qual, por sua histrica dificuldade de compreender o complexo papel do Estado na organizao social, no se mostra sensvel ao assunto. Em segundo lugar, a notria inoperncia das

(28) A escabiose (tambm conhecida como sarna) uma reao comum da pele acompanhada por prurido (coceira) causada por um caro parasita, o sarcoptes scabiei, que afeta apenas seres humanos. Disponvel em: Acesso em: 18.8.2013.(29) FERNANDES, 2002, p. 808.(30) Sem contar que a grande massa carcerria privada do voto durante o cumprimento da pena, o que torna ainda mais frgil o poder de persuaso daqueles que frequentam a priso celular (CARRARD, 2012, p. 115).

5041.1 MPT 46.indb 24 11/08/2014 10:19:37

25

autoridades pblicas no sistema prisional sempre foi a tnica das parcas polticas destinadas sua melhoria(31).

Assim, o encarceramento como forma de controle social perverso visto pela grande maioria da populao como legtimo, sendo uma forma de exerccio do poder visto como natural, ou seja, uma violncia simblica derivada e mantenedora do poder simblico (este entendido como o poder invisvel, o qual s pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que no querem saber que o exercem)(32).

Com maior exatido, ao mesmo tempo que o Estado tem o dever de zelar pela integridade fsica e psquica dos reclusos sob sua responsabili-dade, alm de efetivar os importantes papis de prevenir o crime e orientar o retorno convivncia social(33), de igual maneira deve cumprir sua parte na melhoria do meio ambiente do trabalho fsico e mental dos Agentes Penitencirios(34). No entanto, o alto custo do sistema prisional serve de mote para o congelamento das aes pblicas.

Percebe-se, portanto, que os requisitos mnimos exigidos para que um estabelecimento merea ser classificado como prisional so totalmente negligenciados como resultado inexorvel da situao em que se encontra o sistema penitencirio brasileiro, o que influencia direta e negativamente na sade e segurana dos Agentes Penitencirios.

Essa distoro social contraria expressamente a ordem constitucio-nal, a qual, ao consagrar a dignidade humana como princpio fundamental da Repblica, no excluiu qualquer pessoa, mesmo aquelas submetidas medida restritiva da liberdade ou de direitos. Assim, tanto os detentos quanto os Agentes Penitencirios desfrutam de tal valor, e a eles deve ser reconhecida a intangibilidade de suas integridades fsica, mental e moral.

(31) CARRARD, 2012, p. 115.(32) MORAES, 2005, p. 255, citando BOURDIEU. Sistemas de ensino e sistemas de pensamento. A economia das trocas simblicas. So Paulo: Perspectiva, 1982. p. 203-230.(33) Lei de Execues Penais, art. 10.(34) O empregador, independentemente de sua personalidade jurdica nos termos da Declarao Universal dos Direitos do Homem; das Convenes Internacionais ns. 155 e 161 da Organizao Internacional do Trabalho OIT; dos arts. 1, incisos III e IV; 5, caput, incisos III e XXIII e 1 e 2; 6; 7, inciso XXII; 37, caput e 6; 39, 3; 170; 196; 200, inciso VIII; 201, inciso I; e 225 da Constituio da Repblica; da jurisprudncia e Smula n. 736 emanadas da Suprema Corte e Tribunais Trabalhistas; da Lei Complementar n. 75/93, arts. 83, inciso XII e 84, incisos II, III; dos arts. 68, 185, 186, 211, 212, 213 e 214 da Lei n. 8.112/90; bem como dos arts. 154 a 159 consolidados e das diversas disposies das normas regulamentadoras do Ministrio do Trabalho e Emprego, entre outros responsvel pela adoo no s das medidas de carter material (dispositivos de carter individual ou coletivo) ou pedaggicas (regras de segurana), como tam-bm das medidas coletivas que visem prevenir, preservar e proteger a sade e a segurana dos trabalhadores (MIRANDA, 2012).

5041.1 MPT 46.indb 25 11/08/2014 10:19:37

26

III) A ABSORO DO AMBIENTE SOCIAL CARCERRIO NA VIDA DOS AGENTES PENITENCIRIOS. CONSTRUO DE UMA NOVA IDENTIDADE PELOS PROFISSIONAIS EM EXAME

Inicialmente, identifica-se o conflito no que diz respeito ao importante papel social correspondente aos Agentes Penitencirios (punir ou retribuir, prevenir novos delitos e ressocializar os encarcerados) e ao grau de invisi-bilidade(35) que atinge a categoria profissional, pois a sociedade lhes imputa vises estereotipadas relacionadas aos temidos algozes do passado. Esta situao agravada pelo sofrimento suportado por aqueles diante da neces-sidade de trabalharem em ambientes permeados pelas pssimas condies de sade, higiene e segurana, em paridade quase total com as condies impostas aos prprios detentos.

Assim, aludida categoria profissional atua sob a constante presso de nveis insuficientes de valorizao que so atribudos quase totalidade dos grupos que se vinculam atividade penitenciria, o que, indubitavelmente, permeia o sofrimento advindo da falta de percepo do real valor de seu trabalho, afetando-lhe a autoestima e a sade mental(36). A escolha para exercer a atividade penitenciria no deveria ser um acidente de percurso na vida de uma pessoa(37), mas, sim, uma opo por um trabalho reconhecido pela sociedade civil e pelo Estado.

Essa depreciao profissional imposta pela sociedade faz com que os Agentes se sintam mais valorizados pelos membros daqueles grupos que deles mais dependem em suas relaes interpessoais horizontais seja por critrios de necessidade de apoio ou de prestao de servios , a saber: Administrao e servidores penitencirios, Membros do Ministrio Pblico, advogados e os prprios reclusos.

Na percepo dos Agentes, haja vista o excedente de presos e a es-cassez de profissionais nas prises, seu papel real distancia-se do trabalho prescrito e direciona-se, prioritariamente, s atividades voltadas garantia da disciplina e da segurana, vinculando-se aos aspectos de conteno e ordem no ambiente penitencirio, o que pode afetar negativamente sua autoestima, vez que sua contribuio aos objetivos maiores da organizao

(35) A invisibilidade pblica est especialmente ligada segregao das classes sociais. (36) VASCONCELOS, 2000, p. 38.(37) Os depoimentos dos Agentes revelam que o ingresso nesse trabalho obedece a fontes de motivao de naturezas diversas, sejam de cunho pessoal (aptido, vontade de seguir a carreira policial) ou aquelas que derivam de circunstncias externas (falta de opo no mercado de tra-balho, desemprego, facilidade em conseguir um emprego estvel).

5041.1 MPT 46.indb 26 11/08/2014 10:19:37

27

(recuperar os detentos e prevenir novos delitos) restringida pela falta de condies laborais(38).

Cabe destacar que fatos dessa natureza adquirem preponderncia no cotidiano desses Agentes, uma vez que ocorre uma contaminao involun-tria, decorrente das exigncias do trabalho, em todas as dimenses de suas vidas. Deste modo, o medo, o anseio, a insegurana e a agressividade esto tambm presentes nas relaes que esses trabalhadores mantm extramuros, indicando a falta de repouso do papel de Agente, que invade o lar e o mundo, o antes e o depois do trabalho(39).

A este respeito, notam-se algumas alteraes comportamentais (ou desenvolvimentos de novos hbitos) devido exposio corriqueira ao ambiente prisional(40):

a) quanto exigncia de disciplina por parte de terceiros (familiares, amigos, entre outros), agem com maior rigor disciplinar;

b) com relao forma de se expressar, mesmo aqueles que afirmam no terem alterado o linguajar declaram que se policiam para no adotar a gria penitenciria.

Como novo fator complicador, tem-se que grande percentual dos Agentes reside em bairros populares, convivendo, muitas vezes, com os seus atuais custodiados, o que alimenta possveis enfrentamentos fora das prises. Em decorrncia desse conflito, aqueles se sentem ameaa-dos tambm fora dos limites carcerrios. Receiam a todo momento ser interpelados por ex-detentos em ambientes pblicos e sofrer algum tipo de retaliao, levando para fora do ambiente laboral o estresse que permeia suas atividades profissionais.

Isso significa que as estratgias empregadas dentro da penitenciria no se resumem apenas ao mundo do trabalho. preciso estar sempre alerta, principalmente nas horas de lazer com a famlia ou amigos. O medo real ou imaginrio de sofrer alguma agresso, at mesmo fatal, per-siste em todas as instncias, momentos e lugares de sua vida. Os Agentes Penitencirios sentem-se encarcerados nesse micromundo violento que perpassa sutilmente os muros prisionais. A ameaa est sempre espreita, no de um ou outro preso, mas do conjunto deles, uma vez que o Agente

(38) CHIES, 2005, p. 323.(39) VASCONCELOS, 2000, p. 44.(40) CHIES, 2005, p. 328.

5041.1 MPT 46.indb 27 11/08/2014 10:19:37

28

conhecido por todos dentro das celas, mas no consegue distinguir com exatido quem um dia esteve sob sua custdia(41).

Assim, essa conformao panptica, sutilmente arranjada para que o Agente Penitencirio possa observar tantos detentos diferentes, permite tambm a qualquer um destes vigi-lo (panoptismo difundido). Assim, a sociedade vigiada transporta a tcnica da instituio penal para o corpo social inteiro, traduzindo-se no encarceramento extrapenal do Agente(42).

IV) SOFRIMENTOS PSICOLGICOS DECORRENTES DO AMBIENTE CARCERRIO

Quanto aos sentimentos experimentados pelos Agentes quando em suas rotinas de trabalho dentro dos estabelecimentos penitencirios, de-monstram uma predominncia das sensaes tpicas de tensionamento e situaes de perda de liberdade: a insegurana, a ansiedade, a sensao de ser vigiado, o prprio sentimento de perda da liberdade fazem parte significativa de seus cotidianos(43).

Neste sentido, as ocupaes que se caracterizam pelo contato com um contingente de indivduos determinam o envolvimento dos trabalhado-res com as manifestaes de descontentamento desse grupo. Os Agentes Penitencirios enfrentam, habitual e permanentemente, as reclamaes dos encarcerados contra o sistema penal, e essa atitude negativa dos sujeitos com os quais se trabalha implica sofrimento mental naqueles. Percebe-se que, de forma trgica, referidas sensaes confundem-se e correlacionam--se com aquelas experimentadas pelos membros do grupo de reclusos.

As consequncias das sobrecargas advindas do ambiente de trabalho psicologicamente insatisfatrio e das condies infraestruturais e organi-zacionais inadequadas sobre a sade dos Agentes Penitencirios podem se revestir em ndices alarmantes de distrbios psiquitricos e emocionais, apresentando diversos sintomas: desajustamento e afetao da sociabili-dade; desenvolvimento de doenas psicossomticas; estresse debilitante; distrbios do sono; nervosismo; paranoia; ansiedade; sintomatologia de-pressiva, entre outros.

Assim, os Agentes, aps ingressarem no servio penitencirio, passam a desconfiar mais das pessoas; desenvolvem problemas no relacionamento

(41) VASCONCELOS, 2000, p. 47.(42) FOUCAULT, 1987, p. 263.(43) CHIES, 2005, p. 330.

5041.1 MPT 46.indb 28 11/08/2014 10:19:37

29

com familiares; apresentam dificuldades para estabelecer novas relaes de amizade; desenvolvem algumas doenas decorrentes da situao de sobrecargas e acumulaes fsicas e emocionais, entre outras reaes colaterais.

Convm reforar que o trabalho do Agente Penitencirio demarcado por um distanciamento importante entre a organizao do trabalho prescrito e a realizao do trabalho real. Apesar de a prescrio das tarefas definir o que deve ser realizado em determinado posto de trabalho, constituindo uma til e necessria referncia, na prtica observa-se que uma gama de fatores suscita nos Agentes um certo grau de apreenso ou mesmo de medo: a precariedade das instalaes; a desproporo numrica entre Agentes e detentos; o risco de serem agredidos; a falta de preparo na formao; a desvalorizao profissional; e, principalmente, o carter violento que permeia toda a atividade, invadindo, sem medida, a vida fora do trabalho.

Essa apreenso decorre no tanto do perigo de uma agresso fsica, mas da constante ameaa de algo dar errado, rompendo a rotina aparen-temente tranquila da priso. Essa rotina calcada, principalmente, nas artimanhas engendradas nas situaes cotidianas, seja por meio da experi-ncia acumulada, seja por acordos estabelecidos com o coletivo de presos, que embora ultrapassem as normas estabelecidas, concretizam um tipo de relao bem diferente da prescrita(44).

No de se admitir o fato de os Agentes Penitencirios lanarem mo dessas artimanhas, j que a instituio carcerria, diante de todas as suas contradies, exige daqueles, alm de uma postura rgida e de aten- o constante, o implemento de estratgias em suas aes mais corriqueiras como defesa necessria diante do perigo ainda que imaginrio repre-sentado por uma desestabilizao no ambiente carcerrio.

Outro comportamento defensivo consiste em fazer uso de atitudes agressivas nas expresses faladas e gestuais, particularmente no relaciona-mento com os internos. Desta forma, gestos rgidos e palavras duras dirigidas aos presos transformam-se em ferramentas de controle necessrias. No se pode esquecer de que, por trabalharem desarmados, os Agentes fazem uso do prprio corpo, por meio de gestos determinados e voz elevada, revelando uma postura rgida, sem interferncias afetivas ou emocionais, impondo respeito e disciplina no ambiente carcerrio.

No caso, a disciplina prisional, baseada na humilhao e na violncia tanto em nvel psicolgico como, por vezes, fsico, define as relaes nas

(44) VASCONCELOS, 2000, p. 48.

5041.1 MPT 46.indb 29 11/08/2014 10:19:37

30

penitencirias, estabelecendo uma cuidadosa engrenagem entre Agentes e internos e compondo foras opostas para obter um aparelho eficiente(45). Na prtica, a ordem advinda no poder hierrquico no tem que ser explica-da, nem mesmo formulada, sendo necessrio e suficiente que provoque o comportamento desejado(46)(47).

Ser coerente e correto, diante de uma populao confinada e agredida pela prpria situao em que se encontra, no tarefa fcil. A justa medida de uma autoridade exorbitante, capaz de obter o respeito do coletivo dos apenados, em nmero muito superior, torna-se o mais difcil propsito a ser alcanado nesse turbilho de conflitos e tenses. Neste contexto, a disciplina tem o papel preciso de introduzir assimetrias e de excluir reciprocidades entre Agentes e reclusos.

Por consequncia, na vida pessoal dos Agentes Penitencirios, paira a conscincia do embrutecimento sofrido aps alguns anos de trabalho, pois so vtimas e algozes de um ambiente hostil que transforma as pessoas, no encontrando outras solues diante da estrutura do atual sistema pe-nitencirio.

Com efeito, a exacerbao desencadeadora dessa violncia no ambien-te prisional encontra amparo em trs fatores fundamentais: na necessidade de manter a segurana das unidades, principalmente em casos de tentativas de fugas ou rebelies; como resposta a uma agresso velada aos prprios Agentes Penitencirios, vtimas do desprezo social, das ms condies de trabalho e do funcionamento panptico dos estabelecimentos prisionais; por fim, nos prprios conflitos entre os presos (brigas e acertos de contas), que exigem a interferncia do corpo de Agentes na resoluo do problema(48).

Dessa forma, os comportamentos agressivos so sempre justificados na conscincia coletiva dos Agentes Penitencirios, fazendo parte das exi-gncias impostas pela atividade laboral.

Uma diferena peculiar entre cada unidade prisional a rotina de trabalho, a qual vai depender do nmero de internos e do perfil da massa carcerria, exigindo dos Agentes mudanas constantes nas estratgias uti-lizadas para manter a segurana e a disciplina. Como exemplo, cite-se um presdio de segurana mdia, com uma populao prisional considerada de

(45) FOUCAULT, 1987, p. 139.(46) FOUCAULT, 1987, p. 149.(47) O exerccio da disciplina supe um dispositivo que obrigue pelo jogo do olhar; um aparelho onde as tcnicas que permitem ver induzam a efeitos de poder, e onde, em troca, os meios de coero tornem claramente visveis aqueles sobre quem se aplicam (FOUCAULT, 1987, p. 154).(48) VASCONCELOS, 2000, p. 51.

5041.1 MPT 46.indb 30 11/08/2014 10:19:37

31

menor periculosidade, at mesmo pelas penas a que submetidos. O Agente Penitencirio, embora sempre atento, no enfrenta maiores dificuldades em manter a disciplina. J em unidades cujo propsito custodiar presos peri-gosos, cujo nmero de internos menor, a tnica determinante de trabalho consiste na vigilncia acentuada com vistas mxima segurana. Nestas, os internos, com condenaes recluso por muitos anos, tensionam o ambiente diante da longa permanncia na priso.

Passando a analisar mais detidamente a sade ocupacional da ca-tegoria em comento, predomina a dicotomia entre doenas do corpo e da mente. As primeiras vm em consequncia direta do contato com os detentos e com o putrefato ambiente penitencirio. As segundas referem--se ao conjunto de ansiedades, receios e insatisfaes decorrentes das exigncias do trabalho: a fadiga rotineira, a precria alimentao, a violncia inerente s tarefas cotidianas, a tenso permanente, a incapacidade de lidar com esquemas rgidos e impessoalizados compem o arsenal propcio ao adoecimento mental(49).

Interessante destacar, portanto, que as doenas fsicas a que acome-tidos os Agentes Penitencirios relacionam-se ao contato com os reclusos, ao passo que os problemas mentais surgem das exigncias da prpria atividade laboral. Desta forma, a aproximao fsica com os internos e a possibilidade de contrair determinadas doenas no se reveste como a principal problemtica decorrente do trabalho mas, sim, as dificuldades em obter um equilbrio mental diante das tarefas do cotidiano.

Da observao dos malefcios sade fsica e mental decor-rentes da atividade dos Agentes Penitencirios, tanto a longa permanncia em um ambiente caracterizado pela tenso e insalubridade onde no permitido, sequer nas horas de descanso, um desligamento do estado de alerta e tenso , quanto a percepo de que determinados postos so mais exigidos que outros, aumentando a carga do trabalho, imprimem um sentido ainda mais grave s dificuldades que esses trabalhadores enfrentam no desenvolvimento das tarefas corriqueiras.

Assim, as condies de risco integridade fsica e sade a que esto submetidos os Agentes Penitencirios, sujeitos que so de condi-es insalubres, perigosas e penosas de trabalho, decorrem: da falta de equipamentos (ou equipamentos sem manuteno) para o desempenho da funo; das condies precrias de trabalho; do acmulo de trabalho devido ao nmero insuficiente de pessoal; do desvio de funo; da falta de treinamentos; do prolongamento da jornada de trabalho e do ritmo intenso;

(49) VASCONCELOS, 2000, p. 55.

5041.1 MPT 46.indb 31 11/08/2014 10:19:37

32

da m remunerao; da grande responsabilidade social e da presso da populao usuria, entre outros.

Embora o custo psquico sofrido com as agresses no trabalho varie muito de acordo com as caractersticas de cada um, ele sempre existir. angstia correspondem a ansiedade e o medo ligados s decises a tomar e s situaes perigosas. Os Agentes experimentam, durante toda a jorna-da, uma incerteza quanto eficincia da segurana no local de trabalho. A possibilidade de rebelio, fugas, resistncia (armada ou no) de detentos em decorrncia de falhas na segurana so preocupaes dirias. Como fator agravante, os Agentes no participam das decises gerenciais do sistema carcerrio, sobre o qual possuem expertise, e isso potencializa as tenses e os medos(50).

Os indicadores do desgaste decorrente destas condies imprprias de trabalho, entre os quais esto os distrbios mentais, fsicos e sociais, sinalizam a necessidade de implementao de um servio humanizado de atendimento sade dos Agentes do sistema penitencirio (e de seus fa-miliares(51)) para se antever os agravos e prevenir a sade fsica e psquica dos mesmos, buscando melhorias no meio ambiente laboral.

Portanto, faz-se necessrio avaliar a repercusso das atividades profis-sionais nas representaes sociais e de sade dos Agentes Penitencirios objetivando contribuir para a adoo de polticas de melhorias de suas condies de trabalho.

V) CONCLUSO: VIOLNCIAS INVISVEIS PRATICADAS PELO ESTADO INFRATOR

Para a sociedade em geral, no novidade que a priso se constitui em um instrumento de controle social absolutamente falido. Os ngulos negativos, acobertados atrs dos muros da priso, no so fceis de ser solucionados justamente pelos males infligidos no s aos internos, como tambm a todo o corpo de funcionrios da segurana pblica.

Verifica-se, como principal resultado aps a anlise das condies laborais impostas aos Agentes Penitencirios, que estes absorvem todo o sofrimento fsico e mental inerente ao sistema prisional por meio de suas rotinas laborais em ambientes inseguros e insalubres, caracterizadas pelo vnculo com o encarceramento, a excluso e a violncia.

(50) FERNANDES, 2002, p. 813.(51) MARTINS, 1996, p. 112.

5041.1 MPT 46.indb 32 11/08/2014 10:19:37

33

Trata-se de um processo social que, no obstante de relativa menor intensidade que o experimentado pelos detentos, mesmo existindo a pos-sibilidade de minimizao de seus efeitos nocivos e perversos, constitui-se como inevitvel na hiptese de permanncia da atual estrutura organiza-cional penitenciria.

Assim, sob o clamor dos direitos humanos(52), mister a implementao de melhorias imediatas nas condies laborais e qualidade de vida dos Agentes Penitencirios tendo, por consequncia direta, a melhoria da qua-lidade de vida tambm dos reclusos.

Entretanto, para alm das pssimas condies laborais verificadas, constatou-se a existncia de outra perversidade do sistema punitivo peni-tencirio: o encarceramento sem pena(53) dos Agentes vinculados ao sistema social penitencirio, os quais, para servir ao prprio Estado, se expem a condies degradantes e humilhantes de trabalho, comparadas a penas cruis estas, proibidas pelo comando constitucional (art. 5, XLVII) , alm de serem absorvidos pela essncia nefasta daquele, em desrespeito sua integridade fsica, mental e moral.

imperioso reconhecer que o sistema carcerrio um fenmeno complexo dentro de uma sociedade multplice. Disto decorre, em primeiro lugar, a necessidade de compreend-lo para, aps muita reflexo socio-jurdica-filosfica sobre o tema, enfrentar seus antagonismos, de forma a produzir o conhecimento cientfico e crtico que aponte para a melhoria das condies de trabalho a que submetidos os Agentes Penitencirios sendo este o objetivo deste estudo.

Desta forma, importante verter um olhar multidisciplinar dos campos e conhecimentos cientficos, sem o qual o complicado fenmeno social car-cerrio ser sempre desvelado de forma parcial e, portanto, com insuficiente contributividade para a soluo das mazelas do sistema.

Como corolrio, no mais se sustenta a validade de que sobre o sistema penitencirio sejam direcionados olhares com a perspectiva privilegiadora de apenas outros personagens da cena os reclusos oficialmente encar-cerados , ou mesmo das questes jurdicas que a estes afetam. Deve-se, portanto, direcionar tambm as melhorias propostas neste estudo aos de-mais integrantes vinculados ao ambiente organizacional penitencirio, em especial aos Agentes Penitencirios.

(52) BENITES, 2009, p. 56.(53) CHIES, 2005, p. 332.

5041.1 MPT 46.indb 33 11/08/2014 10:19:37

34

Quanto Lei de Execues Penais, analisada sob a tica do respeito dignidade humana, seja dos apenados ou dos Agentes Penitencirios, est-se diante de norma invalidada pela falta de eficcia(54). Tal realidade representa uma afronta ao sistema preconizado pela Constituio Federal, que tem por premissa bsica um Estado Democrtico de Direito, no qual as regras devem ser respeitadas pelos entes pblicos, notadamente quando destinadas a garantir a dignidade dos indivduos (Agentes e reclusos).

No entanto, percebe-se que o que mantm referido diploma vlido muito mais seu vis opressor do que suas virtudes garantistas. De qualquer forma, as notrias deficincias no atendimento a direitos bsicos dos apenados e dos Agentes colocam prova sua validade. E, nesse aspecto, a Lei de Execues Penais trilha caminho perigoso, pois sua inocuidade no que tange aos direitos bsicos dos detentos e dos Agentes a expe a constantes julgamentos.

Atentar para a percepo dos Agentes Penitencirios sobre o sistema prisional pode permitir a identificao de problemas que normalmente se-quer so mencionados nas constantes reformas de que so alvo as prises, inclusive porque este grupo profissional sempre alijado dos processos de mudana.

O grande embate dotar a administrao estatal de viso estratgica na gesto de pessoal, condicionada garantia dos direitos dos Agentes Pe-nitencirios com nfase na melhoria do meio ambiente laboral, afastando a precarizao do trabalho , para que se sintam motivados, tambm, a promover o respeito da dignidade humana, trazendo, como consequncia, mais segurana a toda sociedade.

VI) REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

BENITES, Agripino Bogarim. Segurana pblica & direitos humanos: estudo de caso sobre meio ambiente de trabalho dos agentes penitencirios no estabelecimento penal de regime semiaberto, aberto e assistncia aos albergados de Dourados MS. Monografia apresentada no curso de Especializao em Segurana Pblica e Cidadania realizado pela Faculdade de Direito em Convnio com a Secretaria Nacional de Segurana Pblica SENASP. Dourados, 2009.

CARRARD, Rafael. A eficcia na teoria pura do direito e o meio ambiente prisional brasileiro. Revista Sntese Direito Penal e Processo Penal, ano XIII, n. 76, p. 109-122, out./nov. 2012.

(54) CARRARD, 2012, p. 122.

5041.1 MPT 46.indb 34 11/08/2014 10:19:37

35

CHIES, Luiz Antnio Bogo (coord.). Prisionalizao e sofrimento dos agentes penitencirios: fragmentos de uma pesquisa. Revista Brasileira de Cincias Crimi-nais, So Paulo: Revista dos Tribunais, n. 52, jan./fev. 2005.

COSTA, Fernando Braga da. Homens invisveis: relatos de uma humilhao social. So Paulo: Globo, 2004.

DISTRITO FEDERAL. Edital n. 1 do Concurso Pblico n. 1/2007 SEJUSDH, de 22 de novembro de 2007. Edital de Concurso Pblico para Provimento de Vagas para o Cargo do Tcnico Penitencirio. Disponvel em: Acesso em: 12.8.2013.

FERNANDES, Rita de Cssia Pereira (coord.). Trabalho e crcere: um estudo com agentes penitencirios da regio metropolitana de Salvador. Caderno de Sade Pblica, Rio de Janeiro, n. 1802, p. 807-816, maio/jun. 20.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: histria da violncia nas prises/nascimento da priso. 12. ed. Traduo de Raquel Ramalhete. Petrpolis: Vozes, 1995.

LOPES, Rosalice. Psicologia jurdica. O cotidiano da violncia: o trabalho do agente de segurana penitenciria nas instituies prisionais. Disponvel em: Acesso em 16.8.2013.

MARTINS, Rejane Beatriz Grillo (coord.). O papel do agente penitencirio: viso analtica e interpretativa. Revista do Conselho Nacional de Poltica Criminal e Penitenciria, p. 59-129, jan./jun. 1996.

MIRANDA, Alessandro Santos. Aplicabilidade das normas de sade e segurana laborais na administrao pblica e atuao do Ministrio Pblico do Trabalho. Revista do Ministrio Pblico do Trabalho/Procuradoria-Geral do Trabalho, Braslia, ano XXII, n. 44, p. 297-318, set. 2012.

MORAES, Pedro Rodolfo Bod de. Punio, encarceramento e construo de identidade profissional entre agentes penitencirios. So Paulo: Instituto Brasileiro de Cincias Criminais, 2005.

NEDEL, Ana Paula. O agente penitencirio; vigiar ou recuperar? uma pesquisa realizada no presdio regional de Pelotas. Revista Transdisciplinar de Cincias Penitencirias, v. 3, n. 1, p. 213-235, jan./dez. 2004.

RUDNICKI, Dani. Trs dias no presdio central de Porto Alegre. O cotidiano dos policiais militares. Disponvel em: Acesso em: 16.8.2013.

THOMPSON, Augusto. A questo penitenciria. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1991.

VASCONCELOS, Ana Slvia Furtado. A sade sob custdia: um estudo sobre agentes de segurana penitenciria no Rio de Janeiro. Dissertao apresentada como parte dos requisitos para a obteno do ttulo de Mestre em Cincias na rea de Sade Pblica da Fundao Oswaldo Cruz. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Sade Pblica, 2000.

5041.1 MPT 46.indb 35 11/08/2014 10:19:37

36

Responsabilidade do Estado Brasileiro pelos Direitos Trabalhistas dos Empregados das

Empresas Contratadas

Eduardo Maia Tenrio da Cunha(*)

Sumrio: Introduo. 1. O status do trabalho e dos seus crditos no orde-namento jurdico internacional e brasileiro. 2. Terceirizao. 2.1. Origem e conceito. 2.2. Evoluo da terceirizao no Brasil. 2.3. Consequncias do processo de terceirizao. 3. Responsabilidade civil do Estado. 3.1. Respon-sabilidade no Estado democrtico de direito. 3.2. Responsabilidade contratual e extracontratual. 3.3. Responsabilidade subjetiva e objetiva. 3.4. Respon-sabilidade direta e indireta. 3.5. Responsabilidade solidria e subsidiria. 4. Posicionamento do Supremo Tribunal Federal brasileiro na Ao Declaratria de Constitucionalidade n. 16/2007. 5. Anlise crtica da deciso do Supremo Tribunal Federal. 6. Um modelo adequado de responsabilidade civil para o Estado brasileiro. Consideraes finais.

Resumo: Trata-se de pesquisa jurdica interdisciplinar abrangendo o Direito Constitucional, o Direito Administrativo e o Direito do Trabalho, bem como aspectos da Sociologia, Antropologia, Economia, Histria e Filosofia. Analisa-se a responsabilidade estatal pelo cumprimento das obrigaes trabalhistas dos empregados terceirizados que prestam servio para a administrao pblica.

Palavras-chave: Constituio. Direito do Trabalho. Direito Adminis-trativo. Estado. Responsabilidade. Terceirizao.

Abstract: It is interdisciplinary legal research covering Constitutio-nal Law, Administrative Law and Labour Law, as well as aspects of

(*) Procurador do Trabalho, Mestre em Direito pela Faculdade de Direito de Vitria e Doutorando em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra-Portugal.

5041.1 MPT 46.indb 36 11/08/2014 10:19:37

37

Sociology, Anthropology, Economics, History and Philosophy. Analyzes the state responsibility for the obligations of the employees labor contractors who provide services to public administration.

Keywords: Constitution. Labor Law. Administrative Law. State. Responsibility. Outsourcing.

INTRODUO

A terceirizao de servios hodiernamente uma prtica recorrente em boa parte do mundo. A ausncia de um regramento especfico sobre o tema por parte da Organizao Internacional do Trabalho propicia aos Estados nacionais regularem a matria de acordo com os valores culturais que os informam, resultando uma diversidade normativa expressiva ou at a ausncia de qualquer regulao.

A disseminao do processo de terceirizao foi to grande que os en-tes estatais passaram a utiliz-la tambm. O objeto da presente investigao diz respeito responsabilidade do Estado acerca das obrigaes trabalhistas dos empregados das empresas por si contratadas. O tema se justifica pela importncia econmica e pela magnitude dos problemas jurdicos gerados, principalmente em pases em desenvolvimento, como o Brasil.

A abordagem do tema passar por questes antropolgicas, socio-lgicas, histricas, econmicas e filosficas dos modelos de organizao social e dos modos de produo humana, de forma a procurar traos co-muns axiolgicos entre o Estado e o trabalho, que orientem uma adequada regulao jurdica.

O valor trabalho(1) servir como elemento referencial para anlise da terceirizao pelo Estado brasileiro, designadamente suas consequncias para os trabalhadores e para o errio. A observao multidisciplinar do tema no afastar a apreciao dogmtica acerca do instituto jurdico da responsabilidade.

Analisar-se- criticamente o posicionamento do Supremo Tribunal Federal brasileiro na Ao Declaratria de Constitucionalidade n. 16/2007, que trata do tema em estudo, com o fim de verificar-se a adequao dos fundamentos da deciso ao valor trabalho e aos fins do Estado.

(1) O termo valor trabalho ser aqui usado como critrio de valorao de contedo tico-axiolgico.

5041.1 MPT 46.indb 37 11/08/2014 10:19:37

38

Por fim, elaborar-se- um esboo de modelo de responsabilidade estatal adequado realidade brasileira, de acordo com o conceito de good governance.

1. O STATUS DO TRABALHO E DOS SEUS CRDITOS NO ORDENAMENTO JURDICO INTERNACIONAL E BRASILEIRO

As organizaes sociais e o trabalho assumiram diferentes papis ao longo da histria da humanidade. Embora chegue a ser intuitivo nos dias de hoje que cabe ao Estado tutelar, direta(2) ou indiretamente(3), direitos dos trabalhadores, dada a importncia do trabalho para o sistema mundial po-ltico e econmico, no se pode deixar de perceber que nem sempre essa proteo realizada de acordo com os valores dominantes nas sociedades democrticas da atualidade, malgrado a existncia de complexo arcabouo jurdico nos planos estatal e internacional para esse fim.

Se a falta de efetividade da tutela estatal pode surpreender, causa ainda mais estranheza quando se cogita de que os Estados nacionais possam ser permissivos ao ponto de promover a desproteo desses direitos. Para que se compreenda o porqu de eventual desconexo entre deveres e respon-sabilidades nessa seara, faz-se necessria uma breve anlise histrica para se perceber como as respostas jurdicas para o valor trabalho variaram ao longo dos tempos e ao sabor das diversas formas de organizao social. Ser essa compreenso que ir orientar solues jurdicas e axiolgicas acerca do papel da responsabilidade do Estado na tutela de direitos dos trabalhadores, consentneas com a realidade hodierna.

Com efeito, desde os primrdios da civilizao que a sociabilidade humana e a necessidade de cooperao pelo trabalho so fatores funda-mentais na determinao da forma de organizao poltica dos grupamentos sociais. Fukuyama(4) lembra que a antropologia utiliza diversos parmetros para classificao dos estgios evolutivos de desenvolvimento social, tais como selvageria e barbrie (de cunho moral), paleoltico, neoltico, idade do bronze e idade do ferro (sobre as formas dominantes de tecnologia), sociedades de caadores coletores, agrcolas ou industriais (modo de

(2) Mediante organizaes governamentais como o Ministrio Pblico, Poder Judicirio e Advo-cacia Pblica. (3) Por intermdio do reconhecimento jurdico de organizaes no governamentais como os sindicatos. (4) FUKUYAMA, Yoshihiro Francis. As origens da ordem poltica: dos tempos pr-humanos at a Revoluo Francesa. Trad. Ricardo Noronha. Alfragide: D. Quixote, 2011. p. 91/96.

5041.1 MPT 46.indb 38 11/08/2014 10:19:37

39

produo hegemnico) e bandos, tribos, senhorios e estados (formas de organizao social ou poltica). Para o presente trabalho, que trata da responsabilidade do Estado pelo adimplemento de obrigaes trabalhistas, interessam-nos as classificaes que pressupem o modo de produo e o modelo de organizao social.

Nas estruturas sociais de bando, o trabalho surge como amlgama de grupos familiares nmades de caa e de coleta de frutos silvestres. A ausn-cia de hierarquia caracterstica marcante e a justia social decorrente do esforo do grupo se v na partilha igualitria do trabalho. Os lderes emergem do consenso social, no h direito de liderana e tampouco transmisso por hereditariedade.

Com o aparecimento da agricultura, h cerca de nove mil anos, o tra-balho molda um novo padro de organizao social, fazendo surgir tribos sedentrias e o aparecimento de agrupamentos humanos mais extensos e complexos, com forte predomnio das relaes parentais. A diviso de tra-balho nesse crculo no impe padres de autoridade. So sociedades com baixa hierarquia interna. Inicia-se, porm, a noo de propriedade privada, embora de uso coletivo tribal.

Se o trabalho esteve na origem dos bandos e das tribos como um dos elementos formadores desses tipos de organizao, a guerra e a honra dos guerreiros que moldam as sociedades senhoriais, haja vista ser pouco honroso naquela altura conseguir com o suor do rosto aquilo que se pode ganhar derramando sangue. Esse modelo de organizao social estabiliza e hierarquiza os grupos sociais quase de forma absoluta. A propriedade da terra dita os destinos de vrias geraes num modo de produo agrria.

O advento do Estado traz contornos diferentes em relao s demais estruturas sociais. Possui fonte centralizada de autoridade, exerce o mo-noplio de meios legtimos de coero, com base territorial e no parental e produz sociedades desiguais. O modo de produo industrial pela apro-priao privada dos meios de produo acaba por ditar a hegemonia do capital em relao ao trabalho.

A Filosofia e a Sociologia tambm referem que o valor do trabalho sofreu diversas conotaes ao longo da histria da humanidade. Jos Lus de Moura Jacinto acentua que a atividade produtiva sempre foi uma constante humana (5); o que variou foi o conceito social acerca de seu va-lor. Na antiguidade, no sculo VI a.C., as leis de Drcon e Slon puniam

(5) JACINTO, Jos Lus de Moura. O trabalho e as relaes internacionais: a funo do direito internacional do trabalho. Lisboa: Instituto Superior de Cincias Sociais e Polticas, 2002. p. 40.

5041.1 MPT 46.indb 39 11/08/2014 10:19:37

40

a ociosidade dos cidados at com a morte(6). Entrementes, dois sculos depois, Plato chegou a ser considerado culpado por ter vendido azeite para custear sua viagem ao Egito, conquanto sobre os trabalhadores livres afirmara que pelo seu intelecto, no seriam muito dignos de serem admiti-dos na nossa comunidade, mas so possuidores de fora fsica suficiente para o trabalho pesado(7).

Na idade mdia, as sociedades senhoriais mantiveram a desvalori-zao do trabalho, em prol da honra dos guerreiros feudais. A honra a recompensa daquele que no vive do seu trabalho.(8) O trabalho no tinha reconhecimento social. O modelo de organizao feudal estava fundado num modelo de produo que implicava o poder e o proveito eco-nmico do senhorio e do clero e a sujeio do servo, sob a fora das armas e da religio.

As correntes filosficas do jusnaturalismo, o renascimento do comrcio com o Oriente, a peste negra que assolou a Europa e o desenvolvimento das cidades vo dar azo ruptura do feudalismo e construo do Estado moderno. A propriedade deixa de ser um produto da hereditariedade e passa a ser um produto do trabalho. John Locke harmoniza no campo filosfico dois valores que at ento se contrapunham: todo homem possui uma propriedade em sua prpria pessoa, de tal forma que a fadiga de seu corpo e o trabalho de suas mos so seus(9). O direito medieval disperso dar lugar ao monoplio da fora jurdica pelo Estado, no qual se reconhece e se positiva o poder poltico da burguesia e a fora do trabalho como elemento difusor de um novo modelo de sociedade.

O mundo moderno ir desenvolver-se e expandir-se por meio dos es-tados nacionais, impelido pela revoluo industrial e o sistema capitalista de produo. Se o trabalho era desvalorizado no modelo de organizao feudal, no modo de produo capitalista a utilidade o valor superior, pelo que o trabalho socialmente til deve ascender a uma posio proeminente como valor social(10). O reconhecimento social do trabalho, todavia, no produziu necessariamente modelos de organizao social justos e igualit-rios. Diferentemente do que previa Adam Smith acerca da centralidade do

(6) PLUTARCO. Vidas paralelas: Slon e Publcola. Trad. Delfim F. Leo e Jos Lus Lopes Brando. Coimbra: Centro de Estudos Clssicos, 2012. p. 75. (7) PLATO. A repblica. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1987. p. 77. (8) SARAIVA, Antnio Jos. O crepsculo da idade mdia em Portugal. Parte III. Lisboa: Gradiva, 1996. p. 253. (9) LOCKE, John. Ensaio acerca do entendimento humano. Segundo tratado sobre o governo. 5. ed. So Paulo: Nova Cultural, 1991. p. XVI. (10) JACINTO, Jos Lus de Moura. O trabalho e as relaes internacionais: a funo do direito internacional do trabalho. Lisboa: Instituto Superior de Cincias Sociais e Polticas, 2002. p. 42.

5041.1 MPT 46.indb 40 11/08/2014 10:19:37

41

indivduo-cidado e produtor na vida social(11), o modelo estatal e o regime de produo iro marcar trs sculos de desenvolvimento econmico, de-sigualdade social e guerras.

Se o modelo estatal-capitalista teve o mrito de superar a servido e conceber uma forma de trabalho juridicamente livre, por outro lado no trouxe prosperidade para o trabalhador e, por conseguinte, justia social. Pelo contrrio, um nmero inimaginvel de trabalhadores mutilados, con-centrao de renda nas mos da burguesia capitalista e a pobreza da classe operria formaram desde o nascedouro uma relao jurdica de foras e interesses coletivos opostos.

O Direito do Trabalho prestou-se justamente ao desiderato de equilibrar essas foras e assegurar um mnimo de direitos ao trabalhador sem o qual no haveria dignidade. Assim fazendo, prestou-se convenientemente como freio s doutrinas comunistas e socialistas de ruptura com o Estado e de coletivizao da propriedade privada, arrefecendo os clamores populares reivindicatrios. Pode se dizer que as normas laborais estatudas ou re-cepcionadas pelo Estado fazem um contraponto ao capital, mas ao mesmo tempo so vitais para a prpria sobrevivncia do modelo estatal-capitalista, sem as quais a ruptura social seria inevitvel.

No sculo XX, o valor trabalho ganha dimenso supraestatal, com a criao da Organizao Internacional do Trabalho (OIT), na esteira das nego-ciaes para o fim da Primeira Guerra Mundial pelo Tratado de Versalhes de 1919. Essa organizao internacional baseia-se na convico de que a paz universal permanente s ser alcanada com justia social por intermdio do trabalho. composta por membros dos governos e representantes dos empregados e dos empregadores dos pases filiados e tem como misso formular legislao trabalhista internacional e elaborar propostas de polticas econmicas e sociais.

Com o fim da Segunda Guerra Mundial, o valor do trabalho e o modelo estatal passam por significativa reformulao. Os horrores da guerra deixam indubitveis os limites de um modelo de organizao social de liberdade sem igualdade. O modelo de Estado Liberal cede lugar ao modelo de Es-tado Social, no qual o modo de produo permite progresso econmico e desenvolvimento social.

Consequncia dessa mudana, a Carta de princpios e objetivos da OIT de 1946 serve de referncia para a Declarao Universal dos Direitos Humanos de 1948, reconhecendo-se o valor trabalho como inerente

(11) SMITH, Adam. Recherches sur la nature et les causes de la richesse des nations (1776). reed. Paris: Garnier-Flammarion, 1991.

5041.1 MPT 46.indb 41 11/08/2014 10:19:37

42

raa humana (arts. 23 e 24), com status de norma jurdica internacional pela ratificao do Pacto Internacional dos Direitos Econmicos, Sociais e Culturais de 1966 (arts. 6, 7, 8 e 10). A admisso do trabalho como um direito humano decorre da constatao de que ele a fonte de toda rique-za no modelo de produo capitalista. O crescimento econmico baseado na simples explorao da fora produtiva do homem no suficiente para assegurar igualdade, progresso social e erradicao da pobreza. A justia social essencial para garantir uma paz universal e permanente(12) e ela s ser possvel com o vnculo harmnico entre o progresso social e o crescimento econmico.

A presena do Estado na economia conseguiu impor um ciclo de franco desenvolvimento econmico e social, baixa inflao e nveis de desempre-go reduzidos por quase trinta anos, fazendo crer que as polticas de matiz keynesiano tinham resolvido o problema dos ciclos econmicos e de seus atavismos, como a possibilidade de desemprego involuntrio e desigualdade social acentuada. Mas o advento da crise do petrleo de 1973-1975 colo-cou em causa todos esses progressos e acabou por determinar um marco histrico de regresso s polticas de liberalismo econmico e de implemen-tao de Estado mnimo ao velho estilo setecentista. Mais do que isso, o novo liberalismo, agora nominado de neoliberalismo, implantou polticas conducentes desconstruo do Estado-providncia, privatizao do setor pblico, desregulamentao dos mercados, absentesmo e enfraquecimento estatal, hegemonia do capital financeiro, reduo dos direitos trabalhistas e flexibilizao e desumanizao do Direito do Trabalho(13).

A hegemonia desse contexto poltico-econmico nos pases centrais imps uma nova realidade nos pases perifricos como o Brasil. A fragili-dade econmica de pas em desenvolvimento, naquela altura associada a momento poltico de ditadura militar, potencializou os efeitos deletrios no mbito social. O Direito do Trabalho passou de direito amordaado a direi-to das empresas. O Estado era forte na represso e mnimo na proteo social. O resultado desse momento adverso dos trabalhadores, adicionado da herana histrica da escravido e da origem colonial exportadora de matrias-primas, acabou por gerar um Estado promotor de precarizao do trabalho e de injustia social. Um solo frtil para a hegemonia do capital, principalmente o multinacional.

(12) Declarao da Organizao Internacional do Trabalho (OIT) sobre os princpios e direitos fundamentais no trabalho. (13) NUNES, Antnio Avels. A crise do capitalismo: capitalismo, neoliberalismo, globalizao. Lisboa: Pgina a Pgina, 2012. p. 14.

5041.1 MPT 46.indb 42 11/08/2014 10:19:37

43

Mesmo com o retorno da normalidade democrtica e a promulgao de uma Constituio dirigente, voltada para o valor social do trabalho e para a dignidade da pessoa humana, a conjuntura poltica, social e jurdica atual ainda de fato contraditria. O Estado brasileiro, compromissado poltica e juridicamente com a promoo dos direitos sociais, nomeada-mente com os direitos trabalhistas, um dos mais demandados na Justia do Trabalho.

Pior do que a falta de mecanismos estatais para combater a desvalori-zao do trabalho como meio digno de progresso social para o ser humano, a prpria cooptao do Estado pela lgica capitalista, em que a dignidade do trabalhador quotidianamente contraposta pela competitividade empre-sarial. Uma das formas em que essa contraposio de valores mais avulta nos ltimos anos no Brasil a terceirizao de mo de obra pelos entes estatais. Essa relao jurdica, que disseminada em boa parte do mundo, pe em causa o modelo de organizao social e o modo de produo brasi-leiros, suscita uma acalorada discusso nos meios econmicos e jurdicos e o objeto desse estudo.

2. TERCEIRIZAO

2.1. Origem e conceito

O termo terceirizao no est no vernculo(14) e tampouco se cuida de instituto jurdico. Trata-se de neologismo construdo pela rea de admi-nistrao de empresas para enfatizar a descentralizao empresarial de atividades para outrem: um terceiro empresa produtora. usado no Brasil como equivalente do termo ingls outsourcing, que poderia ser traduzido como recurso externo. Em Portugal, todavia, o termo utilizado no ter-ceirizao, mas subcontratao ou genericamente como descentralizao produtiva.

Terceirizao seria o fenmeno pelo qual se dissocia a relao econ-mica de trabalho da relao trabalhista que lhe seria correspondente(15). Por este fenmeno insere-se o trabalhador no processo produtivo do tomador de servios sem que se estenda a este a relao jurdico-trabalhista, que se preserva fixada por uma entidade interveniente. O trabalho terceirizado provoca uma relao trilateral: o obreiro, a empresa prestadora de servios

(14) A meno histrica. Recentemente, a palavra foi incorporada ao Dicionrio VOLP, da Academia Brasileira de Letras. (15) DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho. So Paulo: LTr, 2002. p. 417.

5041.1 MPT 46.indb 43 11/08/2014 10:19:37

44

e a empresa tomadora de servios, diferentemente do clssico modelo empregatcio bilateral.

Sua origem pode ser localizada nos Estados Unidos, durante a Segunda Guerra mundial(16). Funda-se na premissa administrativa de que sua adoo ir promover diminuio de custos de forma indireta pela focalizao da empresa na atividade-fim, na qual detm excelncia e reconhecimento do mercado.

uma soluo engendrada de acordo com as necessidades e a tica do capital, baseada na competio global pela busca de novos mercados, aumento de lucros e desenvolvimento de novas tecnologias. No plano social, a dissociao entre relao econmica de trabalho e a relao jurdica empregatcia traz graves desajustes econmicos e sociais em contraponto aos clssicos objetivos tutelares e redistributivos que sempre caracterizaram o Direito do Trabalho.

A aceitao dessa relao jurdica no direito comparado comporta gran-de diversidade regulatria. Varia desde a proibio da terceirizao, como acontece em Itlia, Sucia e Mxico at aos casos em que largamente aceita e utilizada, como Coreia do Sul, Taiwan e Hong Kong. H pases em que essa figura aceita em certas atividades, mas no regulada de forma abrangente por lei, como Alemanha e Brasil; h outros, em que a lei faz restries ao seu uso e protege os trabalhadores, nomeadamente Argentina, Colmbia e Frana(17). Em Portugal, amplamente disseminada, mas no plano legislativo a relevncia jurdico-laboral da subcontratao s se faz praticamente sentir no domnio das normas sobre segurana e sade no trabalho e das contraordenaes laborais(18), muito embora haja expressa previso no Cdigo de Contratos Pblicos(19).

(16) CASTRO, Rubens Ferreira de. A terceirizao no direito do trabalho. So Paulo: Malheiros, 2000. p. 75. (17) MARTINS, Sergio Pinto. A terceirizao e o direito do trabalho. 5. ed. rev. e ampl. So Paulo: Atlas, 2001. p. 29/36. (18) COSTA, Ana Isabel Lambelho. Tese de doutoramento. Descentralizao produtiva, redes de cooperao empresarial e negociao coletiva: reflexes a partir da experincia portuguesa. Salamanca, 2010. p. 89. (19) Cdigo de Contratos Pblicos de Portugal, Decreto-lei n. 10/2008. Art. 316 mbito Na falta de estipulao contratual ou quando outra coisa no resultar da natureza do contrato, so admitidas a cesso da posio contratual e a subcontratao, nos termos do disposto nos artigos seguintes. [...] Art. 320 Recusa