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Combates na Terra da Luz: a luta da esquerda armada no Ceará durante a Ditadura Civil-Militar (1968-72) Aírton de Farias 1 RESUMO Diante uma historiografia que centrou sua atenção da luta armada das esquerdas no sudeste, surgem estudos sobre o tema em outros locais do País. No Ceará destacaram-se as ações da Ação Libertadora Nacional (ALN) e o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR). Havia no estado uma tradição de violência política, tradição em que estava inserida também a esquerda local. No geral, os militantes da guerrilha atuantes no Ceará eram jovens, de idade inferior a 25 anos, pertencentes à classe média intelectualizada, estudantes, sobretudo, do sexo masculino. Trata-se de alguns aspectos do cotidiano dos militantes, como seu pouco preparo para a luta armada, o planejamento e realizações de suas ações e as “quedas” (prisões). Também aborda algumas das ações da esquerda local, com destaque para o ruidoso caso de São Benedito, no qual a ALN “justiciou” um comerciante naquela cidade cearense. A partir daí, começaram as prisões dos guerrilheiros, submetidos a torturas e condenados a longas penas. PALAVRAS-CHAVES: Ditadura Civil-Militar, luta armada das esquerdas, Ceará. “Subversivos”: o Ceará tem disso, sim! Fortaleza, segunda-feira, 16 de março de 1970. O carro pagador do London Bank, uma camioneta rural cor verde oliva, deixa rapidamente o Porto do Mucuripe. Em seu interior, dois bancários conduzem a fortuna de 200 mil Cruzeiros Novos das companhias petrolíferas, para depósito na sede do banco, no centro da capital cearense. Por volta das 17h40min, contudo, um corcel 1 Aluno do Doutorado interinstitucional da Universidade Regional do Cariri-Universidade Federal Fluminense. O termo Terra da Luz é uma referência a uma tradicional visão historiográfica de considerar o Ceará o pioneiro na abolição da escravidão negra no Brasil, em 1884, quatro anos antes, pois, da Lei Aurea.

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Combates na Terra da Luz: a luta da esquerda armada no Ceará

durante a Ditadura Civil-Militar (1968-72)

Aírton de Farias1

RESUMO

Diante uma historiografia que centrou sua atenção da luta armada

das esquerdas no sudeste, surgem estudos sobre o tema em outros locais do

País. No Ceará destacaram-se as ações da Ação Libertadora Nacional (ALN) e

o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR). Havia no estado uma

tradição de violência política, tradição em que estava inserida também a

esquerda local. No geral, os militantes da guerrilha atuantes no Ceará eram

jovens, de idade inferior a 25 anos, pertencentes à classe média

intelectualizada, estudantes, sobretudo, do sexo masculino. Trata-se de alguns

aspectos do cotidiano dos militantes, como seu pouco preparo para a luta

armada, o planejamento e realizações de suas ações e as “quedas” (prisões).

Também aborda algumas das ações da esquerda local, com destaque para o

ruidoso caso de São Benedito, no qual a ALN “justiciou” um comerciante

naquela cidade cearense. A partir daí, começaram as prisões dos guerrilheiros,

submetidos a torturas e condenados a longas penas.

PALAVRAS-CHAVES: Ditadura Civil-Militar, luta armada das

esquerdas, Ceará.

“Subversivos”: o Ceará tem disso, sim!

Fortaleza, segunda-feira, 16 de março de 1970. O carro pagador do

London Bank, uma camioneta rural cor verde oliva, deixa rapidamente o Porto

do Mucuripe. Em seu interior, dois bancários conduzem a fortuna de 200 mil

Cruzeiros Novos das companhias petrolíferas, para depósito na sede do banco,

no centro da capital cearense. Por volta das 17h40min, contudo, um corcel

1Aluno do Doutorado interinstitucional da Universidade Regional do Cariri-Universidade Federal

Fluminense. O termo Terra da Luz é uma referência a uma tradicional visão historiográfica de considerar o Ceará o

pioneiro na abolição da escravidão negra no Brasil, em 1884, quatro anos antes, pois, da Lei Aurea.

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verde, sem placa, abruptamente “fecha” o carro pagador. De seu interior, saem

três rapazes, com revólveres em punho. Um assalto. Tudo é rápido. Sob a mira

das armas, os bancários são obrigados a descer da rural. Os rapazes tomam o

veículo e zarpam tresloucadamente, seguidos pelo corcel, agora dirigido por

outros três homens que aparentavam ser apenas transeuntes – na verdade,

davam cobertura à ação numa esquina próxima. Pouco depois, os carros

seriam abandonados, passando os rapazes para outro automóvel e sumindo

pelas ruas fortalezenses. Aquele não era um assalto comum, mas, sim, uma

ação de “expropriação” do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário

(PCBR), grupo guerrilheiro que atuava no País objetivando derrubar o governo

comandado por militares desde 1964. Para fúria das autoridades constituídas,

era mais uma ação dos “subversivos” na Terra da Luz2...

A atenção dada pela historiografia brasileira à luta armada das

esquerdas acontecida durante a Ditadura Civil-Militar (1964-85) no Centro-sul

colocou em segundo plano o estudo maior das experiências e ações de

militantes ocorridas em outras áreas do País. Com a recente difusão de cursos

de pós-graduação pelo território nacional, a abertura de arquivos, a atuação de

comissões estaduais para apurar os arbítrios do regime de 64 e a elaboração

de livros. Fossem jornalísticos ou autobiográficos de antigos militantes, entre

outros fatores, ampliaram-se os conhecimentos sobre “o que aconteceu” no

resto do Brasil, a exemplo do Ceará3. Evidenciou-se que as ações armadas

das esquerdas nos anos 1960/70 foram maiores do que se imagina

comumente.

2 O Povo, 17/03/1970, p. 1 e 9; 18/03/1970, p.1 e 8; Correio do Ceará: 17/03/1970, p. 1, 9 e 11;

18/03/1970, p. 1 e 9. O termo Terra da Luz é uma referência a uma tradicional visão historiográfica de considerar o Ceará o pioneiro na abolição da escravidão negra no Brasil, em 1884, quatro anos antes, pois, da Lei Aurea. 3 Este artigo refere-se, sobretudo, à nossa Dissertação de Mestrado. Veja-se: FARIAS, José Airton de.

Além das armas: guerrilheiros de esquerda no Ceará durante a Ditadura Militar. Fortaleza: Edições Livro Técnico, 2007. Sobre o tema, veja-se igualmente: ALMEIDA, Nilton. Os ferroviários na cartografia de fortaleza: rebeldes pelos caminhos de ferro. 2009, 306 f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2009. COSTA, Henri. Eleição é tapeação – luta armada é solução: leituras, experiências e construção do consensus bellicu marxista cearense (1962-76). 2009, 197 f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Ceará, Fortaleza 2009. GONÇALVES, Danyelly Nelin. O Preço do passado: anistia e reparações de perseguidos políticos no Brasil. São Paulo: Expressão Popular, 2009. MARIANO, Andreyson Silva. Uma esquerda em silêncio: militantes trotskistas em Fortaleza no período 1963-70. 2011, 188 f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza, 2011. PORTUGAL, Niedja. Estudantes em movimento. 2008, 132 f. Fortaleza: Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2008. RAMALHO, Braúlio. Foi assim: o movimento estudantil no Ceará (1928-1968). Fortaleza: ABC Editora, 2002.

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No contexto político e cultural dos anos 1960, marcado por

enfrentamentos – destacando-se aí os casos impactantes para as esquerdas

da Revolução Cubana, de 1959, e da Guerra do Vietnã, 1965-75 – e no qual a

revolução estava na ordem do dia, diversos cearenses adentraram em

organizações armadas visando conquistar o poder institucional e derrubar o

governo militar. Havia por partes dos agrupamentos de esquerda uma postura

ofensiva, revolucionária, de discussão da luta armada para a implantação do

socialismo no Brasil ou de um governo popular, mesmo antes do Golpe de

1964, embora a implantação da Ditadura tenha aguçado a opção pelas armas4.

Apesar dessa pretensão de poder, a luta das esquerdas pode ser,

sim, igualmente enquadrada como parte da resistência à Ditadura, afinal os

agrupamentos realizavam o enfrentamento ao regime. “Resistência”, sim, mas

não exatamente “democrática”, para evitar equívocos, como afirma Marcelo

Ridenti5. As organizações de esquerdas não apresentavam grandes

preocupações democráticas (pelo menos não com a noção de democracia que

temos hoje), como, aliás, também não apresentavam apego à democracia

outros atores políticos do período, inclusive os de direita, que, concretamente,

deram o Golpe de 1964, derrubando um presidente constitucional. Vale lembrar

que o Golpe contou com apoio de amplos setores da imprensa, do

empresariado, de religiosos, da classe média e mesmo de segmentos

populares. Constitui-se num anacronismo valorizar, na conjuntura dos anos

1960, o debate sobre democracia, esquecendo um outro que mobilizava muito

mais a sociedade, o da “revolução brasileira”, ou seja, de como o País iria

superar suas contradições sócio-econômicas – tanto que os golpistas

apelidaram seu movimento de “Revolução de 64”. Seria basicamente a partir

do final dos anos 1970 que as esquerdas e outros atores sociais passaram a

valorizar a democracia como um valor fundamental6.

Não se pode esquecer também que a violência, particularmente a

política, fazia parte das tradições cearenses. O processo de conquista do

Ceará, efetivado a partir da segunda metade do século XVII com a expansão

4 AARÃO, Daniel. Ditadura e democracia no Brasil: do golpe de 1964 à Constituição de 1988. Rio de

Janeiro: Zahar, 2014. 5 RIDENTI, Marcelo. Esquerdas armadas urbanas: 1964-1974. In: ______. AARÃO, Daniel

(organizadores). História do marxismo no Brasil. Campinas-SP: Editora da Unicamp, 2007. 6 RIDENTI, Marcelo. Resistência e Mistificação da Resistência Armada Contra a Ditadura. In: AARÃO,

Daniel, e outros. O Golpe e a Ditadura Militar. São Paulo: EUSC, 2004.

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pecuarista, fez-se com guerra e extermínio de povos indigenas7. Relatos dão

conta dos homicídios, assaltos e violências outras praticadas pela população

desde os primórdios da colonização, havendo uma quase devoação a facas,

bacamartes e outros instrumentos de morte8. No império, grupos políticos

pegaram em armas em rebeliões, como os Alencar, líderes das revoltas de

1817 e 18249. Na República, em 1912, uma frevolta popular derrubou 16 anos

de domínio da oligarquia acciolina10. Nas eleições de 1954, 18 pessoas

morreram, em virtude de embante entre correligionários de UDN (União

Democrática Nacional) e PDS (Partido Social Democrático)11. Assim, aqueles

militantes que adentraram a agrupamentos armados durante a Ditadura não

estavam tão longe do “jeito de fazer político cearense”.

De modo geral, os grupos de esquerda objetivavam instalar a

guerrilha no campo, uma influência direta da Revolução Cubana. Era a partir da

luta na zona rural que a vanguarda conduziria as massas para cercar as

cidades e derrotar o sistema. Os militantes realizavam uma “leitura seletiva”

das experiências internacionais. Liam-na as “orientações” externas com o

auxílio de “chaves” próprias, para atender suas necessidades específicas.

Poucos observavam que a Revolução Cubana fora vitoriosa não só devido a

“ação heroica” de duas dezenas de revolucionários (um mito das esquerdas),

mas, porque os guerrilheiros contaram desde o início com simpatia de amplos

setores da sociedade cubana, descontentes com a ditadura de Fugêncio

Batista, e com certa leniência dos EUA12. Se a intenção era a luta no campo, os

grupos armados realizaram ações nas cidades para atrair novos militantes para

a causa, fazer “propaganda revolucionária” e obter recursos na intenção de

montar a infraestrutura da guerrilha rural13.

7 Vide PINHEIRO, Francisco José. Notas sobre a formação social do Ceará (1680-1820). Fortaleza:

Fundação Ana Lima, 2008. 8 Vide VIEIRA JÚNIOR, Antônio Otaviano. Entre paredes e bacamartes: história da família no sertão

(1780-1850). Fortaleza: Edições Demócrito Rocha; Hucitec, 2004. 9 Vide FELIX, Keile Socorro Leite. “Espíritos inflamados”: a construção do estado nacional brasileiro e os

projetos políticos no Ceará (1817-1840). Fortaleza: Dissertação de Mestrado em História (UFC), 2010. 10

Vide PORTO, Eymard. babaquara, chefetes e cabroeira. Fortaleza: Fundação Waldemar de Alcântara/ Secretaria da Cultura e Desporto, 1988. 11

Vide SARAIVA, J. Ciro. Antes dos Coronéis (1947-1962). Fortaleza: ABC Editora, 2012. 12

BARÃO, Carlos Alberto. A Influência da Revolução Cubana Sobre a Esquerda Brasileira nos Anos 60. In: MORAES, João Quartim de, e AARÃO, Daniel (organizadores). História do Marxismo no Brasil. Campinas-SP: Editora da Unicamp, volume I, 2003, p. 263. 12 Ib. Idem., p. 271-282. 13

GORENDER, Jacob. Combate nas Trevas. São Paulo: Ática, 1999.

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Foram dois os principais grupos nacionais armados que agiram nas

terras cearenses: a Ação Libertadora Nacional (ALN) e o Partido Comunista

Brasileiro Revolucionário (PCBR). A primeira apresentou no País como

fundador o baiano Carlos Marighela, destacado militante do PCB (Partido

Comunista Brasileiro), com o qual rompeu em 1967. Marighela Havia se

aproximado de Cuba e estruturou a ANL como uma “confederação de grupos

guerrilheiros”, autônomos e com liberdade de iniciativa e ação, isso para evitar

as verticalizações e burocratização dos tradicionais Partidos Comunistas.

Marighela seria morto em São Paulo no ano de 196914.

Os primeiros contatos de cearenses com a organização de

Marighela deram-se em 1967. Tais militantes, tendo à frente Sílvio Mota, José

Sales de Oliveira, José Ferreira de Alencar, Oséas Duarte de Oliveira e José

Valdir de Aquino, haviam deixado o Partido Comunista Brasileiro (PCB) em

1965, acusando-o de não ter se preparado para o Golpe Militar e por ter

recusado a luta armada como forma de enfrentar a Ditadura instaurada. Após

rápida passagem pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB), aqueles militantes

cearenses passaram a travar maior contato com os primeiros documentos

escritos do Agrupamento Comunista de São Paulo (embrião da ALN), através

de um enviado de Marighela a Fortaleza. Assim, ainda em 1967, Silvio Mota

viajou a São Paulo no intento de acertar a fundação da secção cearense da

Ação Libertadora Nacional. Para tanto, foi fundamental a contribuição de

universitários cearenses estudantes na capital paulista, sobretudo Flávio

Torres, que depois seria professor universitário, suplente de senador e

fundador do PDT (Partido Democrático Trabalhista) no Ceará na década de

1980. Vale ressaltar que a propalada autonomia da ANL não se aplicava

completamente à secção local, visto várias vezes os militantes cearenses

terem sido impedidos de fazer ações pela direção nacional. Ao que parece, a

cúpula da ALN via o Ceará como uma “área estratégica” de reserva, para onde

poderia deslocar seus principais quadros caso necessitasse, ante a repressão

da Ditadura15.

14

NOVA, Cristiane, e NÓVOA, Jorge (organizadores). Carlos Marighela: o Homem por Trás do Mito. São Paulo: Editora UNESP, 1999. MAGALHÃES, Mário. Marighela, o guerrilheiro que incendiou o mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. 15

FARIAS, Airton de. Op. Cit. Informações colhidas em entrevistas com os ex-militantes da ALN, Sílvio Mota e José Machado Bezerra, entrevistados em 30∕06∕2006 e 27∕06∕2006, respectivamente.

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Quanto ao PCBR, sua fundação aconteceu em abril de 1968, no Rio

de Janeiro, a partir de outra dissidência do PCB, liderada por Mário Alves,

jornalista e intelectual dos mais respeitados entre os comunistas. Tal

dissidência divergia também de Marighela, pois visava à reconstrução de um

novo partido revolucionário, nos moldes marxista-leninistas clássicos e que

conduzisse à luta armada – o fundador da ALN, como vimos, era avesso a

“estruturas partidárias burocratizadas”. Ao contrário de organizações mais

militarizadas, como a ALN, e em divergência com a teoria do foco, o PCBR

afirmava que a luta armada não se dissociava do trabalho com as massas – o

grupo foi muito ativo nas agitações de 1968 – e tampouco excluía o potencial

das cidades, onde seria igualmente possível promover ações armadas, embora

o cenário principal e ideal estivesse no campo16.

No Ceará, o PCBR foi organizado em 1968 por militantes vindos de

Recife-PE, fugindo da repressão e com a perspectiva de difundir a guerrilha

pelo resto do Nordeste. O primeiro daqueles militantes foi o estudante

Francisco de Assis Barreto da Rocha Filho, conhecido como “Assis Magrinho”.

Este hospedou-se na casa de uma família amiga em Fortaleza, os

Albuquerque. Tal família apresentava uma tradição de esquerda, com vários de

seus integrantes exercendo ativa militância política em Fortaleza. Um dos filhos

mais novos, Mário Albuquerque, era destacado ativista estudantil secundarista

na época (diretor do Centro dos Estudantes Secundaristas Cearenses –

CESC). Após contatos com a cúpula nacional do PCBR, Francisco de Assis

acabou incumbido de estruturar a organização em Fortaleza. Buscou atrair

especialmente integrantes do meio estudantil.

O ano de 1968 foi bastante agitado também na capital cearense,

com várias passeatas de estudantes e confrontos com a polícia. Era forte no

imaginário de parte da juventude da época a necessidade da radicalização no

enfrentamento do governo. A “revolução não podia esperar”, era uma frase

bastante repetida. Contando com o apoio de dois líderes estudantis, o referido

Mário Albuquerque e sua namorada, Vera Rocha (a “Verinha”), Francisco de

Assis iniciou a “pregação revolucionária armada”. Para ajudá-los, o PCBR

deslocou de Recife, onde também já era perseguido pela Ditadura, o

16

GORENDER, Jacob. Op. Cit.

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universitário Odijas Carvalho (o “Neguinho” ou o “Baiano”, que em 1971 seria

morto numa sessão de tortura na capital pernambucana). Em pouco, a

organização conseguiu estruturar seu núcleo em Fortaleza, pequeno, é

verdade, composto, majoritariamente, por estudantes17.

Também atuaram no Ceará, de forma muito embrionária, alvos que

foram logo da repressão, a Vanguarda Armada Revolucionária-Palmares (VAR-

Palmares) e a Frente de Libertação Nordestina (FLNE)18. Emblemática ainda

foi a atuação do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), organização que

instalou vários campos de treinamento de guerrilheiros no estado visando

apoiar a futura guerrilha do Araguaia, no sul do Pará. Apesar de sua disposição

em não realizar ações em terras cearenses (entenda-se, assalto a bancos,

expropriação de armas e carros, etc.), o PCdoB fazia proselitismo da luta

armada (tanto que muitos cearenses foram para o Araguaia) e travou mesmo

alguns combates contra as forças da repressão19.

Igual outros locais do Brasil, de forma geral, os militantes da

guerrilha atuantes no Ceará eram jovens, de idade inferior a 25 anos,

pertencentes à classe média intelectualizada, estudantes, sobretudo, do sexo

masculino20. Apesar da violência política não exatamente uma novidade na

história do Ceará, a presença dos guerrilheiros e seus objetivos socialistas

irritaram os setores dominantes e conservadores locais, apoiadores da

Ditadura Militar. De maneira parecida com o sucedido em outros estados do

Brasil, os órgãos de repressão no Ceará foram, ao longo dos anos, melhor se

estruturando, endurecendo a repressão aos que chamava de “subversivos”21.

Grupos empresariais e políticos cearenses teriam contribuído financeiramente

com os órgãos de repressão. O Ceará, mesmo sendo um “estado secundário”

17

FARIAS, Airton de. Op. Cit. Informações colhidas em entrevistas com os ex-militantes do PCBR Mário Miranda e Vera Maria Rocha, entrevistados em 10∕01∕2005 e 28∕12∕2005, respectivamente. 18

MOTA, Silvio. Rebeldes. Fortaleza: Expressão Gráfica, 2009. 19

Em agosto de 1970, um comício relâmpago do PCdoB no colégio Castelo Branco, na Itaóca, criticando a Ditadura e defendendo o voto nulo nas eleições a ocorrerem no mês de novembro seguinte, terminou em tiroteio: um dos alunos do turno da noite, o sargento Francisco de Sousa sacou de sua arma, quando um grupo de seis militantes fazia pregações “subversivas”. Na troca de balas com estes, o sargento acabou ferido com um tiro à altura do estômago, o que foi noticiado pela imprensa como um “ataque terrorista”. Os militantes escaparam ilesos. “Terror invade colégio”. O Povo, 28/08/1970, p. 1 e 6. “Terroristas atacam colégio na Itaóca”. Correio do Ceará, 28/08/1970, p.1 e 7. Vide MOURÃO, Mônica. Memórias clandestinas: a imprensa e os cearenses desaparecidos na guerrilha do Araguaia. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2005. 20

FARIAS, Airton de. Op. Cit. Na dissertação, fazemos um levantamento estatístico sobre idade, sexo e

ocupações dos militantes da esquerda armada cearense. 21

FICO, Carlos. Como eles agiam. Rio de Janeiro: Record, 2001.

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no contexto da luta armada nacional, apresentou sua seção do DOI-CODI

(Destacamento de Operações Internas – Centro de Operações e Defesa

Interna, órgão responsável pelo combate, tortura e assassinato de opositores

na Ditadura, criado em 1970 pelo Presidente Médici). Isso faz questionar o

senso comum, bastante propalado no estado ainda hoje, de que a Ditadura foi

“branda” no Ceará22.

A imprensa e os apoiadores do Regime Militar buscavam difundir

que o cearense, um povo “pacífico, ordeiro e pacato”, jamais poderia apoiar

atos de “subversão e terrorismo”. As ações da guerrilha no estado seriam de

responsabilidade de jovens, “ingênuos, imaturos, seduzidos por aliciadores

comunistas”, e de agentes marxistas vindos do Centro-sul brasileiro, de onde

estavam sendo expulsos ante a ação dura dos órgãos de repressão. Nessa

perspectiva, apoiar o “terror” seria dar provas de “mau cearensidade”, de trair a

natureza ordeira da “terra alencarina”. Ao mesmo tempo, os que não

combatiam a “subversão” – fosse pela reação à bala, como no caso de guardas

quando dos assaltos, ou apoiando o papel investigativo das autoridades,

passando pistas, nomes, etc. – estariam sendo “frouxos”, “covardes”,

igualmente indo contra a tradição de “valentia” dos cearenses23.

Verdade que militantes vieram de outros locais do Brasil para o

Ceará. Eram comuns, aliás, esses deslocamentos de ativistas, na intenção de

fugir da repressão, fazer ações revolucionárias ou difundir a guerrilha, numa

grande troca de experiências24. Não obstante, o levantamento estatístico junto

aos militantes e as análise dos documentos do período autoritário no estado

permitem concluir que a maioria absoluta de militantes armados era de

cearenses natos, os quais, portadores de imensa sensibilidade social, partiram

para a tomada do poder institucional, crendo na vitória “certa e inevitável”.

Acreditavam que representavam “o povo”, que eram a “vanguarda

revolucionária”, cujas ações seriam apoiadas e seguidas pelas massas,

conforme demonstrariam as manifestações de rua dos anos 60, sobretudo de

1968. Enganavam-se, pois estavam longe dos trabalhadores (desmobilizados

22

FARIAS, Airton de. Op. Cit. 23

Unitário, 5/12/1969, p. 12 24

Por exemplo, conforme depoimento de Silvio Mota, um dos primeiros dirigentes da ALN no Ceará, a

“introdução” do “coquetel químico” nas passeatas estudantis em Fortaleza foi inovação trazida pela organização de Marighela – atiravam o molotov com “bombas rasga-lata”, fazendo um barulho

ensurdecedor.

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pela Ditadura) e o grosso da sociedade não concordou com o objetivo da

guerrilha (a revolução de tendência socialista) e a tática usada (a luta armada),

em especial quando a economia brasileira crescia de maneira acelerada no

começo da década de 1970, no chamado “milagre brasileiro”. O isolamento

social e a repressão da Ditadura fariam naufragar os sonhos da guerrilha25.

Dias de lutas

Dentro das organizações, a prioridade era a ação, inexistindo

grandes preocupações teóricas: a leitura de algum texto, o debate sobre um

manifesto ou documento do agrupamento, nada muito além disso. A crença da

inevitabilidade da revolução e da vitória tornavam maiores preocupações

teóricas dispensáveis. Muitos dos militantes só estudariam em profundidade o

pensamento socialista no exílio ou nas prisões, após a derrota da luta armada.

Por outro lado, era fundamental que os ativistas participassem dos

treinamentos com armas, os quais aconteciam em áreas ermas da capital

cearense. Essas atividades traziam já a sensação de poder e que realmente a

revolução “começara efetivamente”. Os guerrilheiros superdimensionavam seu

potencial e chegavam mesmo a menosprezar o aparato estatal repressor. Na

fase aguda da repressão, com a dificuldade cada vez maior de obter novos

guerrilheiros e de realizar treinamentos, aconteceu mesmo de ativistas, os

quais nunca antes haviam pegue numa arma, participarem de ações de

expropriação, um sinal de como os militantes de esquerda acreditavam em sua

causa, de como a vontade e a certeza do triunfo poderiam suprir qualquer falha

que tivessem26.

Esses “despreparos”, apesar de terem contribuído, não podem ser

vistos como o fator fundamental para o fracasso da guerrilha, afinal, em locais

outros do mundo, os guerrilheiros em revoluções vitoriosas não eram tão

preparados ou treinados como se imagina – basta lembrar, por exemplo, o

início desastroso da guerrilha de Fidel e Che em Cuba, quando por pouco os

25

RIDENTI, Marcelo. O fantasma da revolução brasileira. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1993. 26

FARIAS, Airton de. Op. Cit. Informações passadas por vários dos entrevistados.

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revolucionários não foram mortos quando do desembarque na Ilha Caribenha

ao virem do México em 195627.

Uma ação armada era cuidadosamente planejada, realizando-se

antes uma “pesquisa”, isto é, um levantamento minucioso de informações

sobre o alvo a ser atacado. Chegava-se mesmo a ensaiar (simular) as ações. A

“pesquisa” podia ser feito a partir de dados levantados por simpatizantes ou

integrantes da organização dentro das próprias empresas ou por mulheres. O

machismo predominante na sociedade não tendia a associar o sexo feminino

ao “terror”, ou a assaltos e armas, do que se aproveitaram as esquerdas,

reproduzindo, ironicamente, esse mesmo machismo. Quando veio a público a

participação feminina em ações armadas, os jornais noticiaram com grande

espanto, chamando a atenção para a presença de mulheres na “subvesão”28.

Na “pesquisa”, os guerrilheiros buscavam saber quantos vigias o

banco ou outro estabelecimento qualquer apresentavam. A hora de menor

movimentação de clientes (exatamente para que “civis” não saíssem feridos ou

não atrapalhassem) e do trânsito de veículos ao redor. Onde deveriam ficar as

pessoas que se encontrariam no recinto do assalto? Dever-se-ia escolher a

melhor rota de fuga. Existia um modo “diferente” de o revolucionário relacionar-

se com a cidade. Uma pessoa comum poderia atravessá-la sem atentar-se aos

detalhes; o militante armado, ao contrário, deveria conhecê-la bem, pois disso

poderia depender o sucesso de uma empreitada ou mesmo a vida dos

guerrilheiros, em caso de cerco da repressão29.

Quase sempre se fazia uma ação com três carros: um que levaria os

envolvidos diretamente na expropriação; um segundo, armado também, que

daria cobertura (por exemplo, para dificultar uma eventual perseguição policial);

e um terceiro veículo, o qual ficava num ponto distante, recolheria os militantes

e o fruto da ação quando o primeiro carro fosse abandonado. Normalmente os

carros usavam placas falsas (“frias”), ou sequer as tinham. Como as

organizações armadas do Ceará não possuíam carros suficientes, recorriam à

“tomada” de veículos, normalmente de taxistas – tomada porque os carros

27

BARÃO, Carlos Alberto. Op. Cit. 28

Moça cearense nos assaltos a bancos. Correio do Ceará, 20/08/1968, p.1. FARIAS, Airton de. Op. Cit. Informações passadas por vários dos entrevistados. 29

ALMEIDA, Hermínia Tavares de, e WEIS, Luis. Carro-zero e Pau-de-arara: O Cotidiano da Oposição de Classe Média ao Regime Militar. In: NOVAIS, Fernando A. (coordenação). História da Vida Privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, volume IV, 1998, p. 382.

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eram abandonados para o proprietário reencontrá-lo; taxistas por que estes

melhor conservavam seus carros para o exercício da profissão. Também havia

um levantamento sobre o carro (se era novo, potente, etc. – em alguns casos,

até melhorias e consertos mecânicos eram realizados no veículo) e os hábitos

do motorista (por onde transitava, estacionava, etc.). Os guerrilheiros, pelo

menos nas primeiras ações, deixavam claro ao proprietário de um veículo

expropriado que não eram criminosos, mas sim revolucionários os quais

estavam lutando para derrubar o governo e libertar o País; afirmavam ainda

que não sofreria nenhuma violência e que, ao sair dali, procurasse a polícia,

pois seu carro seria depois abandonado30. Houve episódio até curiosos, dos

guerrilheiros tomarem um táxi, abandonando o taxista em algum matagal,

deixando-lhe com o apurado do dia e até pagando a corrida31...

Dizer que os guerrilheiros apresentavam convicção em sua luta não

implicava descartar sentimentos como o medo. A concretização de uma ação

era sempre marcada pela tensão, ansiedade e nervosismo: preocupação com o

sucesso da empreitada, com uma possível reação de policiais, com o risco de

alguém, especialmente os ativistas ou os “civis”, sair ferido – daí se

compreende porque militantes chegassem a ter desregulações intestinais ou

urinárias, sobretudo quando de suas primeiras participações em ações, ou

desistissem das mesmas.

Apesar do medo e da ansiedade, o êxito de uma ação era

logicamente recebido com euforia pelos guerrilheiros. Em suas concepções, a

sonhada revolução estava cada vez mais próxima. Sorrisos, abraços e até

alguma bebida alcoólica – a qual, em geral, não era bem vista pelos grupos

armados, pois poderia atrapalhar o bom andamento da revolução: além de

prejudicar a concretização de uma ação, um militante, entre um gole e outra,

poderia “falar demais”32.

A esses sentimentos somavam-se outros, sobretudo o da

preocupação com a segurança. A lealdade à organização e o cumprimento

estrito das regras ditadas por estas assumiam um lugar chave dentro da

vivência dos militantes. A necessidade da sobrevivência do grupo, sobretudo

30

FARIAS, Airton de. Op. Cit. Informações passadas por vários dos entrevistados. 31

O Povo, 24/08/1970, p. 6. 32

FARIAS, Airton de. Op. Cit. Informações passadas por vários dos entrevistados.

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quando a repressão se intensificou, tornou a ideologia cada vez mais rígida,

militarizada, também impedindo, no jargão das esquerdas, uma “autocrítica”.

Dessa maneira, se entende uma série de condutas, verdadeiros rituais, a

serem cumpridos rigorosamente, de como deveria se comportar o ativista.

Obviamente que a prática não se dava exatamente como o planejado, havendo

falhas, descuidos e negligências33.

Assim, por exemplo, em regra, os militantes deveriam usar e se

conhecer apenas por pseudônimos para dificultar qualquer identificação por

parte da polícia. Entretanto, muitos dos militantes acabavam se conhecendo

pelo nome verdadeiro, sobretudo aqueles vindos do meio estudantil, em virtude

de parentescos, namoros, do grande contato e convivência dos estudantes nas

faculdades, centros acadêmicos, passeatas, etc., e mesmo porque Fortaleza

não era uma cidade tão grande no final dos anos 1960/início dos 7034.

Havia igualmente todo um preparativo para a passagem de

informações de interesses dos agrupamentos em locais públicos

predeterminados, os chamados “pontos”. Não se deveria escrever nada para

fazer um “ponto”, pois caso a polícia capturasse um dos militantes – e sempre

havia esse risco –, poderia ter acesso a papéis que comprometeriam outros

companheiros. Fundamental decorar datas, locais, horas, isso não raras vezes

com antecedência de semanas. Pontualidade era outra coisa básica. O

militante não ficava muito tempo no local. Se o contato não aparecesse, era

sinal de algo sucedera-se errado, provavelmente o outro ativista “caíra”, fora

capturado pela repressão. Em caso de “queda”, a recomendação era desativar

os “aparelhos” que por ventura o “caído” conhecesse e dar fim a toda

documentação comprometedora para a organização. “Aparelhos” constituíam-

se casas onde se alojavam militantes clandestinos – nem todos eram, pois

vários levavam uma vida “normal”, até serem descobertos pela polícia –,

armas, dinheiro, material de propaganda, etc. O “estouro” de um aparelho

trazia prejuízo, não apenas do ponto de vista político (um “atraso” na luta), mas

financeiro, visto que, como os militantes não tinham avalistas para fazerem um

contrato de aluguel, pagavam vários meses de antecedência35.

33

FARIAS, Airton de. Op. Cit. Informações passadas por vários dos entrevistados. 34

Dados do IBGE de 1970, registam a população da cidade de Fortaleza em 857.980 habitantes. BRUNO, Artur. Fortaleza, uma breve História. Fortaleza: INESP, 2011. 35

FARIAS, Airton de. Op. Cit. Informações passadas por vários dos entrevistados.

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O medo maior do ativista era o de “cair”. Primeiramente, a frustração

de não puder continuar na luta e ajudar os demais companheiros em fazer a

revolução. Depois, o pânico de ser morto ou sofrer torturas, e muitos o foram

no Ceará – houve mesmo uma “casa de horrores” isto é, um “aparelho” da

Ditadura, clandestino, no qual os presos políticos eram mantidos em cárceres

privados após serem sequestrados ou caírem nas mãos dos agentes da

repressão36. Existia, por fim, o trauma de o militante acabar falando algo

comprometedor do agrupamento armado, atrapalhando, pois, os planos da

organização, levando à queda (e tortura) de outros companheiros e liquidando

sua “imagem de revolucionário”, por haver “traído” a causa, visto que, de início,

pelos menos, os guerrilheiros concebiam como grande desdém aqueles que

confessassem algo, mesmo sob sevícias, ou deixassem a militância. As

organizações armadas chegavam a apresentar aos ativistas “fórmulas” sobre

como se portar em caso de “queda”, “fórmulas” que foram mudando à medida

que a repressão aumentava e fazia desmoronar o tipo idealizado do

guerrilheiro que “a tudo resistia e preferia a morte a entregar algo”37.

Apenas num momento posterior, já no estrebucho da luta armada,

que as organizações convenceram-se da impossibilidade da maioria das

pessoas resistirem às brutalidades dos agentes da Ditadura. Assim, de modo

geral, a “fórmula” para o revolucionário detido passou a ser resistir o máximo,

de modo a dar tempo ao agrupamento desmontar os aparelhos e acontecer a

fuga dos companheiros. Isso também mostrou-se inviável na prática. Não há

regra para suportar torturas. Vários militantes aguentaram ao máximo,

mentiram – nesse caso, os agentes da repressão ao descobrirem a inverdade,

aumentavam as sevícias –, foram mortos. Outros, suportaram menos, existindo

também quem nada falou. De qualquer forma, raro era o militante que preso,

não fosse submetido a torturas físicas ou psicológicas. Uma frase, uma

palavra, um endereço, um nome poderia bastar para avançar as investigações

dos agentes da Ditadura.

Muitos dos que confessavam algo sob tortura passavam a viver

dramas pessoais – houve até casos de suicídios –, sentindo-se intimamente

36 (...) As informações dadas [por] presos políticos torturados em local ignorado, fora de Fortaleza, a uma hora de viagem, de clima ameno, leva a crer que a casa fica em Maranguape, na região metropolitana de Fortaleza. O Povo, 19/01/2004, p. 4. 37

FARIAS, Airton de. Op. Cit. Informações passadas por vários dos entrevistados.

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arrasados, corroendo-se em culpas e responsabilidades. Lembremos do ideal

que movia aqueles militantes, a nobreza que acreditavam possuir sua luta. Tão

traumática essa questão que nas diversas entrevistas que realizamos para a

pesquisa do Mestrado, nenhum dos ex-guerrilheiros, mesmo os prestarram

depoimentos anonimamente, afirmaram ter dito algo de “comprometedor” da

luta armada enquanto sofriam nos porões do regime38.

Mais simbólico ainda é o caso da recusa em dar entrevista por parte

daqueles ex-ativistas que reconhecidamente delataram alguma coisa, ou dos

que passaram a colaborar com a Ditadura, os chamados “cachorros”. Estes, ao

lado dos que “desbundaram”, ou seja, renegaram ou abandonaram a luta

armada, não seriam, em regra, perdoados pelos antigos companheiros,

sofrendo mesmo grande preconceito quando nas prisões, quando não

ameaças de morte ou justiçamento (assassinatos)39.

Obviamente que não foram as delações de um ou outro ativista que

possibilitaram a derrota da esquerda. O isolamento social, a falta de simpatia

do grosso da sociedade com as propostas da guerrilha e mesmo a tática da

luta armada e fragilidade e divisão das organizações explicam melhor essa

derrota. Vários dos ativistas que caíam continuaram acreditando na luta

armada. Sonhavam com fuga, em serem libertos numa ação de resgate das

organizações ou numa troca por um dos diplomatas sequestrados pela

guerrilha. Apenas alguns poucos passaram a defender um “recuo tático” ou

mesmo o abandono das armas40.

Quem sabe faz a hora

Afirmar quais e quantas foram as ações armadas da esquerda no

Ceará durante a Ditadura Militar não é tarefa fácil. Nem todos os militantes

sabiam das ações feitas por suas organizações ou pelas demais. Outros, em

geral, quando de depoimentos para a presente pesquisa, não abordaram as

ações cometidas, por certo constrangimento, afinal, eram práticas de furtos,

agressões, etc., ainda que com fins políticos. Possivelmente mais ações serão

38

Ib. Idem. 39

Ib. Idem. 40

Ib. Idem.

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conhecidas à medida que novos arquivos forem abertos. Muitas das ações da

esquerda armada no Ceará somente foram descobertas pelas forças de

repressão a partir da queda dos militantes da ALN no chamado “caso de São

Benedito”, de 1970, conforme veremos adiante, e isso, não raro, após tortura

dos guerrilheiros.

As ações da guerrilha de esquerda no Ceará concentraram no

período entre o final de 1969 e início de 1970, exatamente quando a repressão

aumentava no País. Na visão dos ativistas, era necessário prosseguir na luta,

obter mais infraestrutura, novos quadros, etc., intensificando e propagando

ações em áreas onde não tinham “acontecido” ainda, mostrando que o cerco à

Ditadura estava se “completando”, que se “estendia” por todo o Brasil, por mais

que os “milicos” reagissem. Quando das primeiras ações armadas no estado,

as ações eram relatadas na imprensa como crimes comuns. Dessa forma, as

páginas policiais dos periódicos O Povo e Correio do Ceará, usados como

fontes na pesquisa, mereceram uma atenção especial, levando-nos a atentar a

detalhes que poderiam revelar uma ação política. Em geral, as ações

aconteciam em Fortaleza nos finais de semana, nas noites de sábado para

domingo, quando os agentes das forças de repressão estavam em menor

número e menos mobilizados41.

Foi o caso, por exemplo, de uma bomba posta na sede do IBEU

(Instituto Brasil-Estados Unidos, famoso curso de línguas, no centro de

Fortaleza), em 14 de outubro de 1968. Era uma ação de “propaganda

revolucionária” da ALN, conforme nos revelou um de seus membros. A bomba,

deixada na entrada do prédio de madrugada (para que a explosão não fizesse

vítimas “civis”), não teve maiores consequências, pois seu pavio acabou

apagando em virtude da pressa da ação. Mesmo tachando o incidente de

“terrorismo”, as autoridades e os jornais consideraram o fato não como um

indício da existência de grupos armados agindo já no Ceará, mas sim um ato

isolado de algum antiamericano extremista, figura não rara entre aqueles que

iam às passeatas as quais agitavam a capital cearense em 196842.

41

Ib. Idem. 42

Entrevistados e O Povo, 14/10/1968, p. 1 e 9. O Povo, 15/10/1968, p. 1 e 8. Correio do Ceará, 14/10/1968, p. 1 e 9. Correio do Ceará, 15/10/1968, p. 1 e 9.

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A primeira ação “terrorista” noticiada como tal no Ceará deu-se a 4

de dezembro de 1969 – não por acaso, exato um mês após o assassinato de

Carlos Marighela em São Paulo –, no caso, um assalto ao Banco Mercantil de

Fortaleza, ação que acabou frustrada pela reação à bala de um vigia da

agência. O fato teve imensa repercussão. As autoridades, líderes empresariais

e os jornais em editoriais se apresaram em condenar a “ação terrorista”, ao

mesmo tempo em que ressaltavam a frustração do assalto pelo guarda como

uma prova do preparo dos órgãos de segurança locais43.

A partir da tentativa de assalto ao Barco Mercantil, as ações

armadas da esquerda radical intensificaram-se no estado, atingido o apogeu

em 1970. A ALN expropriou quatro mil Cruzeiros Novos da empresa de ônibus

São Vicente de Paula44 e mais de vinte e dois mil Cruzeiros Novos da Fortaleza

Refrigerantes, representante local da Coca-Cola45. Repercussão maior, não

obstante, teve o assalto do carro pagador do London Bank, referida no início

deste artigo. A ação do London Bank foi a primeira de maior envergadura do

PCBR no Estado, em conjunto com o Movimento Comunista Internacional

(MCI), organização trotskista. A ação, cujo produto foi cerca de 98 mil cruzeiros

novos, foi realizada pelo Comando Político Militar, estrutura móvel do PCBR

que atuava em todo o Nordeste. A quantia foi enviada para o agrupamento do

PCBR em Recife, nos dias seguintes, levada por dois militantes da

organização, dentro do estepe e bancos de um fusca, que tranquilamente

cruzou as divisas cearenses, sem ser incomodado ou inspecionado pela

polícia46.

Ante as mudanças comportamentais que ocorriam à época, os jornais

não hesitavam em associar guerrilha e “sexo irresponsável”, como noticiou em

matéria de primeira página o Correio do Ceará de 30 de janeiro de 1970,

afirmando que o dinheiro do “terror” era usado para “orgias” e “doce vida de

vagabundagem”, havendo mesmo a “corrupção de mocinhas colegiais” e o

43 Unitário, 5/12/1960, p. 12. 44

. O Povo, 22/05/1971, p. 8. 45

Depoimentos e O Povo, 11/03/1970, p. 1; 12/03/1970, p. 1 e 2; 13/03/1970, p. 1 e 3; 14/03/1970, p. 1 e 9. Correio do Ceará, 11/03/1970, p. 1 e 9; 13/03/1970, p. 1 e 9.

46 Manteremos anônima a fonte da informação, já que sua participação na ação nunca foi descoberta pelos órgãos de segurança. FARIAS, Airton de. Op. Cit.

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depósito dos valores em bancos estrangeiros” para financiar as “viagens dos

terroristas ao exterior” (possivelmente, uma referência aos exílios)47.

O assalto do carro pagador do London Bank teve enorme

repercussão. Para o PCBR, foi um estrondoso sucesso, não apenas pelos

recursos obtidos ou pelos efeitos propagandísticos contra a ditadura, mas

como uma forma igualmente de atrair novos simpatizantes. Apesar de se

ajudarem e manterem relações cordiais, as organizações armadas

“concorriam” entre si para verificar qual iniciaria logo a guerrilha rural e a

revolução (o ataque final ao regime), além de disputarem a simpatia e o

ingresso de militantes. Não surpreende que, nos meses seguintes, a ANL

intensificasse sua atuação, com ações cada vez mais ousadas, cujos êxitos

reforçavam a confiança dos militantes em seu potencial, fazendo, por outro

lado, aumentar o cerco da Ditadura. Os órgãos locais de repressão passaram a

se estruturar e agentes da repressão de outros Estados começam a visitar o

Ceará, trazendo suas “experiências” no combate aos “inimigos da Pátria”. Um

desses foi o delegado do DOPS paulista Sérgio Paranhos Fleury, que esteve

no estado no começo de 197148.

Ante o crescente cerco da Ditadura, a 29 de agosto de 1970, a ALN

promoveu uma desastrosa ação de “justiçamento” do comerciante José

Armando Rodrigues, no município cearense de São Benedito, episódio que

assinalou o “começo do fim” da luta armada no Ceará. Existem várias versões

dadas pelos antigos guerrilheiros para esse assassinato. O comerciante era

acusado por um apoiador da ANL em São Benedito, José Bento da Silva, de

possuir uma lista com nomes de “subversivos” a ser entregue ao governo

militar. Armando Rodrigues, pois, teria se tornado um perigo para a ALN e

acabou sequestrado e assassinado por guerrilheiros. Há grande controvérsia

se existia concretamente esse risco de delação ou se houve uma razão

passional para aquela execução. Vários dos entrevistados alardearam que

47 Correio do Ceará, 30/01/1970, p.1. 48 A chegada de Fleury foi noticiada com destaque pelos jornais: “Chega hoje o comandante do cerco de Marighela”. O Povo, 31/01/1970, p.1. “Esperado delegado famoso na guerra ao terror e subversão”. Correio do Ceará, 31/01/1970, p.1. O Delegado deu uma entrevista à imprensa, não permitindo a entrada de fotógrafos. Disse, com base em sua experiência, que o Ceará não seria escolhido para o desenvolvimento de atividades terroristas (...) pois não há aqui clima político nem condições geográficas propícias (...). Correio do Ceará, 5/02/1970, p.8. Na “visita”, Fleury manteve contato com autoridades

locais da segurança. Seu objetivo oficial era levar para São Paulo os “subversivos” condenados Luiz Anastácio Momesso e Valdir Araújo, que haviam fugido para o Crato-CE, onde acabaram capturados.

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José Bento teria usado a organização para fins passionais, pois nutria ódio ao

comerciante, o qual teria se relacionado amorosamente e deflorado uma de

suas filhas. O denominado “Caso de São Benedito” se tornou um trauma entre

os militantes de esquerda49. Após matar o comerciante, os guerrilheiros da ALN

sofreram verdadeira caçada policial, sendo capturados dois deles, Valdemar

Menezes e William Montenegro50. Nos meses seguintes, outros implicados

“cairiam”, à exceção do policial civil Carlos Thmoskhenko, que atuava como

informante da ALN dentro dos órgãos de segurança e cuja prisão foi

manifestada como uma questão de honra pelo Secretario de Segurança do

Ceará51.

O episódio, ao mesmo tempo, ganhou enorme espaço na mídia local

e nacional, sendo explorado pela Ditadura para mostrar a “brutalidade,

covardia, frieza e o perigo dos terroristas” que com seus projetos comunistas,

“atentavam contra a Pátria e matavam inocentes, sem piedade”52.

Possivelmente, a população, há muito bombardeada pela imprensa e governo

com uma imagem negativa dos “terroristas”, recebeu com indignação o

acontecido, contribuindo ainda mais para isolar a guerrilha de esquerda do

resto da sociedade e para seu desmantelamento53. Para o Regime Militar, o

cadáver de São Benedito era um importante tento em sua luta contra a

oposição armada, uma evidência da brutalidade desta, especialmente naquele

momento, quando aumentavam as denúncias de torturas e mortes praticadas

pelo governo militar. O cadáver de José Armando Rodrigues e de todos os

outros mortos e feridos nas ações das esquerdas seriam usados para

desacreditar tais denúncias. A mensagem era clara: quem matava e torturava

eram as esquerdas, não o regime. Assim, o governo tinha que ser “duro com os

49

Em nosso trabalho de mestrado, fazemos uma análise das disputas de memórias em torno do Caso de São Benedito. FARIAS, Airton de. Op. Cit. p. 181 e seguintes. 50

Depoimentos e O Povo 31/08/1970, p. 1 e 6; 1º/09/1970, p. 1 e 6; 2/09/1970, p. 6; 3/09/1970, p. 1 e 6; 4/09/1970, p. 1 e 6; 5/09/1970, p. 8; 9/09/1970, p. 6. Correio do Ceará, 31/08/1970, p. 1, 7 e 8; 1º/09/1970, p. 1, 5, 7 e 8; 2/09/1970, p. 7; 3/09/1970, p. 1 e 7; 5/09/1970, p. 1 e 7; 8/09/1970, p. 1 e 5; 9/09/1970, p. 1, 7 e 8; 11/09/1970, p. 1 e 2; 12/09/1970, p. 1, 4 e 7. Foram indiciados pelo caso de São Benedito: Valdemar Rodrigues Meneses, Francisco William Montenegro, Carlos Thimonshenko, José Sales de Oliveira, GilbertoTelmo Sidnei Marques, Antônio Experidião Neto, João Xavier de Lacerda e José Bento da Silva. O Povo, 2/08/1971, p. 20. Correio do Ceará, 2/08/1971, p. 8. 51

Correio do Ceará, 28/09/1970, p. 8. Thmoskhenko conseguiu deslocar-se para Brasília e Rio de Janeiro

(contando, inclusive, com o apoio do PCBR) e a seguir para o Uruguai, Chile e França – voltaria ao Brasil apenas após a anistia, em 1980, constituindo-se o único partícipe de São Benedito a não ser capturado. Vide Thmoskhenko, Carlos. Timo-Thmoskhenko: O Subversivo que Cruzou a Fronteira. Fortaleza: FUNCET, 2003. 52

O Povo, 1º/09/1970, p. 1. 53 O Povo, 1º/09/1970, p. 1.

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duros” – não por acaso, a Polícia Federal chegou a pedir pena de morte em

seu inquérito para os envolvidos em São Benedito54.

Após São Benedito, a ALN no Ceará desmanchou-se como um castelo

de areia. A 28 de setembro de 1970, os jornais trouxeram fotos e manchetes

em letras garrafais sobre o desbaratamento do “terror” no estado, sendo enfim

“apurada” a autoria dos vários crimes “subversivos” ocorridos55. Foram

capturados vários militantes, tornados públicos os nomes de outros foragidos (o

que levou as autoridades a pedir o apoio da população na captura dos

mesmos). Foram igualmente apreendidos equipamentos gráficos, panfletos,

armas e carros, fruto do estouro de vários “aparelhos” em Fortaleza56.

Mesmo em meio à crescente repressão, a 11 de setembro de 1970,

exatos treze dias após o incidente de São Benedito, o PCBR, realizou o assalto

de 200 mil Cruzeiros (um dos maiores da história do Ceará) ao Banco do Brasil

de Maranguape, aliás, a única ação exitosa de expropriação conhecida em

agencia bancária no interior cearense57. A organização faria intensa campanha

pelo voto nulo nas eleições a acontecer em novembro daquele ano. Tal

campanha dava-se pela distribuição de panfletos, realização de comícios

relâmpagos e pichações de frases provocadoras, como: “Vote nulo: eleição é

tapeação, luta armada é a solução”. Foi numas dessas pichações que começou

a cair o PCBR no Ceará, pois um dos militantes acabou presos pela polícia,

Paulo Fernando Magalhães dos Santos, de apenas 16 anos. Torturado, acabou

entregando o endereço de um dos “aparelhos” do PCBR. Ao chegar ao local, a

polícia travou um tiroteio com guerrilheiros, no qual foi ferido e capturado o

estudante universitário Pedro Paulo Pinheiro58. Outros ativistas conseguiram

fugir, mas foi apreendida vasta documentação do Partido. Esses documentos

apreendidos e as informações obtidas com as torturas dos “caídos” levaram a

polícia a invadir diversos “aparelhos” e efetuar a captura de outros militantes do

PCBR.

54 “Polícia Federal pede pena de morte para os terroristas cearenses”. Correio do Ceará, 29/10/1970, p. 1. 55 “Desbaratado o grupo do terror que assaltou e matou no Ceará”. Correio do Ceará, 28/09/1970, p. 1. “Desbaratado terror no Ceará”. O Povo, 28/09/1970, p.1. 56

O Povo, 28/09/1970, p. 8. 57 O Povo, 23/11/1970, p. 6. Correio do Ceará, 23/11/1970, p. 5. 58 “Estudante baleado ao reagir à prisão”. Correio do Ceará, 16/10/1970, p. 8. Foram indiciados nessa ação Paulo Fernando, Célio Miranda de Albuquerque, Pedro Paulo Pinheiro e Lilia da Silva Guedes. O Povo, 1/04/1971, p. 6.

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Em 1972, cearenses ainda tentaram reorganizar o PCBR, mas

acabaram surpreendidos pela repressão quando planejavam a expropriação da

empresa de cigarros Souza Cruz no centro de Fortaleza. Após um tiroteio, os

guerrilheiros conseguiram escapar, embora tivessem sido identificados. Em

breve, todos foram detidos na operação “Barra Limpa”, levado a cabo pela

Polícia Federal e DOI-CODI59.

Vale ressaltar que muitas das ações nessa fase final da guerrilha

objetivavam muito mais a sobrevivência e escapatória dos militantes que o

desencadeamento da sonhada revolução. O sentido e o comportamento dos

guerrilheiros mudaram completamente da mesma forma. Vários exilaram-se,

outros “desbundaram” (abandonaram a luta) e alguns passaram a colaborar

com a Ditadura. Outras vezes, as ações assumiam características de crimes

comuns: nada mais de discursos revolucionários ou justificativas para as

expropriações. Agora era tomar tudo que pudesse virar dinheiro e garantir a

sobrevivência dos militantes remanescentes e ativos. Os ativistas estavam com

dificuldades financeiras para pagar os aluguéis dos “aparelhos” e até para

comprar mantimentos. No Ceará, conforme apuramos junto a alguns

entrevistados e pelos próprios informes da imprensa sobre crimes comuns –

mas que eram realizados por organizações armadas –, isso se deu sobretudo

nas últimas ações da guerrilha, no inicio do ano de 1972, envolvendo alguns

militantes do PCBR e da FLNE (Frente de Libertação do Nordeste)60.

A FLNE foi formada principalmente por dissidentes da ALN no Ceará

e Pernambuco, descontentes com o fato da cúpula nacional desta organização

estar levando os principais quadros do Nordeste para suprir as quedas

ocorridas no Sudeste61. A FLNE realizou algumas ações exitosas62, mas

quando alguns de seus integrantes preparavam-se para fazer uma ação de

expropriação do Banco do Brasil no Crato-CE, em janeiro de 1972, acabaram

“caindo”63. Entre os detidos, José Sales Oliveira, antigo líder da ANL e um dos

dois últimos foragidos do caso de São Benedito. Sales, condenado à prisão,

59

“Terror ataca a bala na Praça Coração de Jesus”. Correio do Ceará, 8/01/1972, p. 1 60

FARIAS, Airton de. Op. Cit. Informações passadas por vários dos entrevistados. 61

MOTA, Silvio. Rebeldes. Fortaleza: Expressão Gráfica, 2009. 62

O Povo, 24/05/1972, p. 7; Correio do Ceará, 24/05/1972, p. 8. 63

“Frustrado assalto terrorista no Crato”. O Povo, 25/01/1972, p. 7. “Frustrado plano de assalto à agência do BB do Crato”. Correio do Ceará, 25/01/1972.

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seria solto em 1980, constituindo-se o último preso político a ser libertado no

Brasil64.

Nas prisões naufragariam definitivamente os sonhos dos

revolucionários. Processados, receberiam penas altíssimas, cumprindo-as em

presídios, como no Instituto Penal Paulo Sarasate (IPPS), de Fortaleza.

Sairiam a partir de 1979, com a Anistia, esquecido pelo grosso da sociedade.

Nas prisões, refizeram suas vidas e projetos políticos, mas isso é outra

História.

REFERÊNCIAS

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1990.

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Unicamp, 2007.

64

“Terroristas do Assalto ao Banco Condenados a 42 Anos”. Correio do Ceará, 11/01/1973, pág. 1. “Abertura – Celas Vazias – o último preso político deixa a cadeia”. Revista Veja, 15/10/1980.

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