revista de estudos olisiponenses rossio 6

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Número 6 da revista de estudos olissiponenses - rossio

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  • APRESENTAOJoo Appleton

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    rossio. estudos de lisboa n.6 abril 2016Publicao do Gabinete de Estudos Olisiponenses

    Direo Municipal de Cultura / Departamento de Patrimnio CulturalISSN 2183-1327 DiretorJorge Ramos de CarvalhoConselho EditorialAnabela ValenteAna Cristina LeiteHlia SilvaRita MgreProjeto GrficoJoo RodriguesSecretariado ExecutivoVanda SoutoFotografias da capa, ndice e separadoresJoo RodriguesColaboradores neste nmeroJoo Appleton, Victor Mestre, Sofia Aleixo, Serafin Rodriguez Graa, Nuno Proena, Marta Raposo, Manuela Leito, Sandra Guerra, Victor Filipe, Ana Caessa, Nuno Mota, Joo Ferreira Dias, Joo Pedro Pereira Cruz, Margarida Elias, Pedro Miguel Rodrigues Miranda, Teresa Neto, Nuno Simes, Joo Meneses, Slvia Cmara, Ins Mendes da Silva

    Presidente da Cmara Municipal de LisboaFernando MedinaVereadora da CulturaCatarina Vaz Pinto Diretor Municipal de CulturaManuel VeigaDiretor do Departamento de Patrimnio CulturalJorge Ramos de Carvalho

    gabineteestudos [email protected]

    Imagens dos separadores: tapumes em Lisboa

    As questes ligadas ao patrimnio cultural so muitas e complexas e tm assumido uma importncia crescente ao longo das ltimas dcadas. As definies do que patrimnio so cada vez mais abrangentes, trazendo consigo novas problematizaes do tema e dos conceitos que o enformam. Discute-se, entre outros, o conceito de autenticidade e os vrios graus e medidas dessa autenticidade.A acompanhar estas discusses, assiste-se rpida mutao da cidade, pressionada pelo fluxo turstico crescente que transforma a paisagem urbana e acrescenta novas dimenses forma como os lisboetas se relacionam entre si e com o espao que usam. Estas mudanas trazem consigo novas exigncias s quais a cidade tem de se adaptar para se preservar e transmitir a sua memria. neste contexto, de profunda transformao do edificado, que o tema selecionado para o Caderno deste nmero a Reabilitao Urbana e dentro deste a reabilitao de edifcios. Assim, foi com naturalidade que o Conselho Editorial convidou o Eng. Joo Appleton, especialista com larga experincia nesta rea, com um nmero significativo de intervenes na cidade, conhecedor do edificado lisboeta quer na sua vertente construtiva quer no seu valor histrico e patrimonial, e acima de tudo por ser um apaixonado por Lisboa e pela sua histria.Como deve ser entendida e praticada a reabilitao? De que forma se pode respeitar a histria dos edifcios, de quem os construiu e de quem os habitou? Como garantir e valorizar que o Patrimnio de hoje ser tambm o Patrimnio do futuro? Para responder a questes como estas, o Eng. Joo Appleton selecionou um conjunto de especialistas de reas como as engenharias, arquitetura, arqueologia e conservao e restauro que nos falam de intervenes exemplares que podero servir de inspirao. Como habitual, os artigos que integram a Varia alargam o mbito e o interesse da revista, promovendo a variedade dos tpicos e refletindo as investigaes que sobre Lisboa se tm realizado. Estes textos vm ao encontro de reas em que temos vindo a apostar, tais como: a divulgao da investigao arqueolgica, aqui com um estudo sobre o ncleo histrico de Carnide; o multiculturalismo, com um artigo sobre a presena dos nigerianos e a sua experincia identitria em Lisboa; o Urbanismo, num estudo da frente ribeirinha e a sua relao com o crescimento da cidade at sc. XVIII; a Histria e a Arquitetura, numa anlise do Ptio Martel, um espao que tem estado na ordem do dia; o Patrimnio Industrial, aqui presente no texto sobre a Fbrica de Cermica Viva Lamego; finalizando, no ano em que se assinalam os 150 anos do nascimento do Arquiteto Miguel Ventura Terra, um artigo sobre a sua obra e o seu trabalho enquanto Vereador na CML.Sob o signo das Intervenes na Cidade, este nmero apresenta o trabalho realizado no Quarteiro dos Lagares, a nvel arquitetnico e arqueolgico, onde hoje se encontra instalado o Centro de Inovao da Mouraria (CIM).

    O contedo dos artigos so da responsabilidade dos autores.

    EditorialJorge Ramos de Carvalho

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    APRESENTAOJoo Appleton

  • Victor MestreSofia Aleixo

    REABILITAO TCNICA/CULTURAL(RE)CONHECIMENTO, CELEBRAO E BEM-ESTAR

    APRESENTAOJoo Appleton

    Joo Appleton

    REABILITAO DE EDIFCIOS ANTIGOS: E SE AS ESTRUTURAS MANDASSEM?

    A ENGENHARIA DE ESTRUTURAS E AS INSTALAES E SISTEMAS TCNICOS: COOPERAO E ANTAGONISMO Serafin R. Graa

    Manuela LeitoSandra Guerra, Victor Filipe

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    Nuno ProenaMarta Raposo

    O LEVANTAR DO VU: O CONTRIBUTO E COMPROMISSO DA CONSERVAO E RESTAURO NA REABILITAO DO EDIFCIO ANTIGO

    A ARQUEOLOGIA E A SUA CONVIVNCIA COM O PROJECTO DE ESTRUTURAS: O EXEMPLO DA INTERVENO NA ME DE GUA DO CHAFARIZ DEL REI E EDIFICADO ENVOLVENTE Joo Appleton

    BIBLIOGRAFIA SELECIONADA(REABILITAO DE EDFICIOS ANTIGOS)

    Ana Caessa Nuno Mota

    NCLEO HISTRICO DE CARNIDE: UMA LEITURA ARQUEOLGICA

    INTERVENES NA CIDADEQUARTEIRO DOS LAGARES

    VENTURA TERRA: O ARQUITETO VEREADOR DA CMARA MUNICIPAL DE LISBOA, TAMBM DEDICADO SALVAGUARDA DOS MONUMENTOS NACIONAISTeresa Neto

    O PTIO DO MARTELMargarida Elias

    FBRICA DE CERMICA VIVA LAMEGO NO LARGO DO INTENDENTE. UM CONTRIBUTO PARA O SEU ESTUDOPedro Miguel Rodrigues Miranda

    A CIDADE E O RIO: ORIGEM E EVOLUO DA FRENTE RIBEIRINHA DE LISBOA AT AO SCULO XVIIIJoo Pedro Pereira Cruz

    OS FILHOS DESTERRADOS DE ODDW1: A DISPORA YORB2-NIGERIANA NA CIDADE DOS MLTIPLOS ENCONTROS. Joo Ferreira Dias

  • Victor MestreSofia Aleixo

    REHABILITATION TECHNIQUE/CULTURAL(RE)KNOWLEDGE, CELEBRATION AND WELL-BEING

    PRESENTATIONJoo Appleton

    Joo Appleton

    REHABILITATION OF OLD BUILDINGS: WHAT IF THE STRUCTURES GAVE ORDERS?

    STRUCTURAL ENGINEERING AND TECHNICAL INSTALLATION SYSTEMS: COOPERATION AND ANTAGONISMSerafin R. Graa

    Manuela LeitoSandra Guerra, Victor Filipe

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    Nuno ProenaMarta Raposo

    LIFTING THE VEIL: THE CONTRIBUTION AND COMMITMENT OF CONSERVATION AND RESTORATION IN THE REHABILITATION OF THE OLD BUILDING

    ARCHAEOLOGY AND ITS COEXISTENCE WITH THE STRUCTURAL PROJECT: THE EXAMPLE OF THE INTERVENTION IN THE ME DE GUA DO CHAFARIZ DEL REI AND SURROUNDING BUILDINGS Joo Appleton

    SELECTED BIBLIOGRAPHY(REHABILITATION OF OLD BUILDINGS)

    Ana Caessa Nuno Mota

    HISTORIC NUCLEUS OF CARNIDE: AN ARCHAEOLOGICAL LECTURE

    PROJECTS IN THE CITYQUARTEIRO DOS LAGARES

    VENTURA TERRA, THE ARCHITECT AND COUNCILMAN OF THE MUNICIPALITY OF LISBON ALSO DEDICATED TO THE PROTECTION OF NATIONAL MONUMENTSTeresa Neto

    THE PATIO OF THE MARTELMargarida Elias

    VIVA LAMEGO CERAMIC FACTORY IN LARGO DO INTENDENTE.A CONTRIBUTION TO YOUR STUDYPedro Miguel Rodrigues Miranda

    THE CITY AND THE RIVER: ORIGIN AND EVOLUTION OF LISBON RIVERFRONT UNTIL THE XVIII CENTURYJoo Pedro Pereira Cruz

    THE ODDWS OUTCAST CHILDREN: THE YORUBA AND NIGERIAN DIASPORA IN THE CITY OF MULTIPLE ENCOUNTERS Joo Ferreira Dias

  • APRESENTAOJoo Appleton

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    sabido, ou melhor, reconhecido por muitos intervenientes, sejam promotores, projectistas, construtores e fiscais, por exemplo, que reabilitar um edifcio antigo um exerccio complexo, difcil mesmo e essa complexidade muitas vezes o argumento falsamente utilizado para concluir, de forma simplista e silogisticamente errada, que reabilitar caro (seja o que for que isto queira dizer sem enunciar referncias e termos de comparao), da o grande nmero de adversrios que teve e tem, mesmo quando, com falas mansas, referem oportunidades e sucessos de operaes de reabilitao que no passam de suposies, quando o que se faz so demolies, temperadas com um cheirinho de passado fachadista.Mas, se certas hipocrisias so de interessante discusso, at porque so constantemente vencedoras num mundo impiedoso para actores srios e preparados, onde e quando o valor do trabalho todo ele, e tambm o intelectual, anda pelas ruas da amargura, importa agora mais, para cumprir seriamente os objectivos desta edio, concretizar aquilo que define a complexidade da reabilitao, geradora de preconceitos e de equvocos.Deve dizer-se para comear que, se a complexidade da reabilitao um dos principais, talvez o maior, problema, verdade que essa mesma complexidade que torna a reabilitao um processo fascinante que atrai em definitivo, irreversivelmente, aqueles que dela se aproximam e vivem experincia iniciais no traumatizantes, traduzidas pela sorte de terem cado em operaes bem estruturadas, bem conduzidas e, por isso, bem sucedidas.Considera-se, considero, que h dois factores fundamentais que ajudam a compreender que reabilitar sempre complexo:- Em primeiro lugar, reabilitar um edifcio significa a necessidade de conhecer bem o objecto a intervencionar, e quando se diz conhecer bem h que considerar dois planos distintos: por um lado, essencial conhecer bem a constituio e composio do edifcio, das suas estruturas e dos elementos no estruturais, da caixilharia e acabamentos, s diferentes redes e instalaes tcnicas; por outro lado, igualmente necessrio conseguir reconhecer o estado de conservao e segurana do edifcio, no seu todo, e das suas diferentes partes, elementos e componentes.- Em segundo lugar, porque se trata de um objecto existente, o seu conhecimento, para ser necessrio e conveniente, implica a interveno de um conjunto muito diversificado de tcnicos e de especialistas, cuja aco se pode dirigir no s exclusivamente ao edifcio, mas tambm ao stio em que est inserido, sua contextualizao no espao e no tempo, relao com o subsolo, em particular com a arqueologia e com a geologia,

    sua valorizao patrimonial, artstica, histrica ou apenas

    Banco de PortugalArquitectura: Gonalo Byrne/

    Falco de Campos

    Vdeo da interveno na Torre sineira do Banco de Portugal.Imagens cedidas por Zircom Engenharia SA, editadas pela rossio.

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    simblica; a participao generalizadamente requerida ou, pelo menos, desejvel, de historiadores e historiadores de arte, de tcnicos de conservao e restauro, de arquelogos, gelogos e especialistas em hidrologia, por vezes com necessidades de sub-especializao, como sucede com a histria dos locais, ou as reas especficas da conservao e restauro, tudo isso pode ajudar a fazer o caldo de relaes tensas e desequilibradas que so o primeiro passo para o insucesso, pois frequente verificar-se que quanto mais gente se junta (para decidir) maior a confuso e aumenta exponencialmente a incapacidade de aco, ou seja, o potencial de indeciso ou da m deciso.O primeiro dos factores apontados ponderoso e tem que ser olhado de cima, isto , tem que ser visto o mais possvel de forma neutra e no atravs apenas dos directamente interessados que so, ou podem ser, acusados de juzo em causa prpria que raramente ser de recomendar.O que importa reter, e que muita gente teima em no ver, sobretudo do lado do promotor-pagador de estudos e projectos, que conhecer um edifcio existente, a sua constituio e estado de conservao, implica uma importante dose de trabalho a realizar antes do prprio incio da definio do novo programa para o edifcio ou em paralelo com esta e, portanto, muito antes do incio do projecto de reabilitao; mais a mais, porque, na quase totalidade dos casos, e tanto mais quanto mais antigo for o edifcio, no h projectos (talvez mesmo nunca tenha havido, na forma como hoje os entendemos) e, quando existem levantamentos eles so sistematicamente escassos, omissos e errados, ou seja, na verdade, pelo menos os projectistas de arquitectura e de estruturas tm que reconstituir projectos inexistentes, antes de poderem iniciar o projecto de reabilitao.Significa isto, em linguagem ch, como convm em assuntos complexos e, sobretudo, quando neles entra dinheiro, pagar e receber, se estes trabalhos so necessrios, tm que ser feitos por algum que vai consumir tempo e esforo que podem ser considerveis; e se h trabalho a fazer, depois de feito tem que ser remunerado e para ser remunerado tem que haver dinheiro para pagar. Simples, no ? E, no entanto, quase sempre to difcil explicar isto ao potencial pagador.Fazendo um parntesis, vem a talhe de foice dizer que a relutncia que os promotores evidenciam na compreenso objectiva daquelas realidades simples, fortemente ajudada pela leviandade e falta de profissionalismo de muitos engenheiros e arquitectos (em nmero que cresce continuamente, a pretexto de uma crise que continua e faz fechar os olhos tica, passando s promessas incumprveis

    de honorrios suicidas a que as associaes profissionais deveriam dedicar ateno, pois esses suicidas so como os bombistas, morrem destruindo o que os rodeia, sejam promotores, colegas ou edifcios).Esta dificuldade de ter um mercado minimamente regulado, esclarecido, em relao a esta questo essencial, justifica a pssima qualidade de muitos estudos e projectos que so com frequncia meros amontoados de papel recheado de informao intil e inaplicvel, com naturais e inevitveis prejuzos que podem afectar os prprios autores das mediocridades (porque nem sempre um produto medocre obra de um produtor medocre), o promotor, que v esvair-se o tempo e o dinheiro previstos para a operao e, infelizmente, tambm para os prprios edifcios, vtimas inocentes de desmandos que os marcam indelevelmente, vendo desaparecer valores arquitectnicos e decorativos, reduzindo funcionalidade e segurana carecendo, tantas vezes, o edifcio recm-reabilitado de reabilitao urgente e, sobretudo, competente.Infelizmente, digo eu, porventura sem acompanhamento de monta, no estamos em tempo de regulao mas de desregulao e at de desregulamentao tcnica, o mercado, dizem os arautos deste estado de coisas, resolver tudo, os maus sero banidos e no final surgir uma sociedade purificada; tretas, que a vida no a histria verdadeira do capuchinho vermelho, porque se algum quisesse cont-la como de facto se passou, diria que o lobo mau comeu a avozinha, e mais o capuchinho e o caador e quem mais se atreveu a questionar a fora do mercado ou o mercado da fora, que vem a dar no mesmo.Confesso que no tenho soluo para este problema, vou remando contra a mar, encontrando aqui e ali, felizmente, promotores que conhecem a veracidade e a validade dos meus argumentos e vou perdendo alegremente concursos sobre concursos, para concorrentes que tornaram banal oferecer projectos por metade do seu valor, mais um cntimo (que garante a sua no excluso do concurso): s me pergunto, porque apesar de j velho nestas andanas mantenho alguma ingenuidade infantil, o que esperar obter um promotor a quem oferecem um trabalho por metade do valor que ele prprio lhe atribuiu? E o que pensa disto, quando se trata, como quase sempre, de concursos de obra pblica, o Tribunal de Contas, que contas faz para no se inquietar com o futuro, ou inquieta-se deveras mas ns que no sabemos?A segunda questo colocada no ser to delicada e certamente muito interessante para explicar a atraco que a reabilitao exerce sobre quem a experimenta, atraco que pode ser muito mais intensa do que as maiores dificuldades

    que se adivinham em processos repletos de intervenientes,

    Convento dos InglesinhosArquitectura: Carlos Travassos

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    Largo Jlio Pereira (Chafariz dEl Rey)Arquitectura: Eugnio Castro Caldas

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    muitos dos quais no parecem ter nada que ver com a fileira da construo e que geralmente se considera que pairam em nuvens prprias a grande distncia da realidade pura e dura, aquela que os engenheiros acham que vivem e dominam. Na verdade, a reabilitao de edifcios uma rea que apela, como poucas outras, prtica de procedimentos multidisciplinares, envolvendo um nmero muito elevado de especialistas, tanto na fase de projecto como de construo e at mesmo se veria com muito bons olhos que essa multidisciplinaridade se fizesse sentir desde o princpio dos princpios da operao de reabilitao, quando o promotor prepara e concretiza a aquisio de um imvel que deseja reabilitar.A prtica processual que se banalizou no nosso Pas, aplicada construo nova esmagadoramente dominante durante quase todo o sculo XX, foi a de menosprezar o trabalho interdisciplinar, deixando, de facto, e com raras excepes, estas quase sempre em obra pblica, cada projectista a cuidar do seu projecto como se de acto isolado se tratasse.No deve ser novidade para ningum, a no ser para quem ande muito desatento que, na sua maioria, os projectos de edifcios dinamizados pela iniciativa privada raramente ultrapassavam a fase de ante-projecto (projecto de licenciamento), quer na arquitectura quer nas diferentes e escassas especialidades tcnicas; pormenorizar, elaborar cadernos de encargos exaustivos, actualizados e rigorosos era muito cansativo e, se os honorrios eram baixos, como quase sempre foram, a qualidade dos projectos equivalia a esse nvel de remunerao, que como quem diz, amor com amor se paga.Nesse tempo, que ainda hoje o nosso tempo, deixavam os projectistas ao promotor e ao empreiteiro caminho aberto para fazerem as adaptaes, ajustamentos e alteraes que, no mnimo, eram as necessrias e correspondentes coordenao e compatibilizao dos projectos, tarefas que, por serem actividades trabalhosas e no remuneradas, tambm no eram executadas.Fazem parte do anedotrio nacional os casos de pilares que mudavam de stio para encaixar uma sanita numa instalao sanitria, se no fosse mais fcil manter o pilar e mudar a sanita, as estruturas que se rasgavam, sem d nem piedade, cortando tudo o que se encontrava no caminho, fosse beto ou ao, para fazer passar tubagens; em alguns casos, apesar de tudo, a obra feita correspondia aproximadamente projectada, ou seja, reconhecia-se na obra concluda o projecto realizado, j no era mau.Essa realidade, que as crises que vivemos vieram fazer recrudescer, quando transposta para a reabilitao resulta, na ausncia

    de milagre, num desastre de certeza antecipada; ser fcil entender essa inevitabilidade, embora muita gente continue a agir assobiando para o lado, como se assim no fosse. que, ao contrrio da construo nova que comea por existir meramente nos computadores ou no papel, a reabilitao inicia-se, necessariamente, sobre o objecto existente que a essncia do prprio processo de reabilitao; lapalisseano dizer que no h reabilitao de um edifcio sem edifcio existente, mas vale a pena, por vezes, dizer frases simples, at aparentemente estpidas, para espritos simples e inventivos, que se exercitam descobrindo processos de fazer parecer o que no , na reabilitao como na vida,A existncia de um edifcio como essncia da reabilitao implica o (re)conhecimento das suas caractersticas, como atrs j foi referido e para alcanar este primeiro objectivo que culmina no diagnstico sobre o estado de conservao e segurana, necessrio que se faa intervir, desde o incio, um conjunto diversificado de especialistas, uns que fazem parte das equipas de projecto para qualquer tipo de obra, outros que so aqui novidade, sem que isso signifique menor grau de importncia.Numa primeira fase, o engenheiro de estruturas essencial no apoio ao arquitecto, podendo mesmo deter uma posio liderante, j que , pelo menos em Portugal, o especialista mais preparado para fazer a parte mais pesada do estudo de diagnstico que contm como parte essencial, a componente da verificao da segurana estrutural do edificado.A par com esta tarefa salienta-se, na maior parte dos casos, a necessidade de participao de um historiador ou historiador de arte, preferencialmente com experincia prvia de estudo e trabalho na zona onde se localiza o edifcio, o qual ir traar o mapa da evoluo histrica do edifcio, dos seus valores simblicos, das campanhas de obras de alterao e ampliao que ter sofrido, etc., depois, tambm na maior parte dos casos, deve verificar-se a interveno de conservador-restaurador, na identificao e avaliao do programa decorativo presente no edifcio a intervencionar, com a elaborao de um estudo histrico-artstico, onde se investigam madeiras e estuques, pedras e pinturas, muitas vezes escondidas pelo tempo e por camadas de intervenes, que denunciam constantes alteraes de modas e gostos.Todo este conjunto de informao tem que ser da maior relevncia para o desenvolvimento do projecto de arquitectura, a partir dos seus primeiros passos; essencial no deixar de ter em conta informao que diz da importncia de cada elemento

    constituinte da estrutura e desta como um todo, no

    Av. da ndia Sede da UCCLAArquitectura: Appleton & Domingos

    Estufa FriaArquitectura: Appleton & Domingos Falco de Campos

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    s porque hoje um dado assente que as estruturas antigas so parte determinante do valor patrimonial do edifcio mas tambm porque da forma como a arquitectura vai lidar com a estrutura, respeitando-a ou desprezando-a, mais ou menos, vai depender, em grande medida, a economia da prpria interveno, no esquecendo que, num edifcio antigo, tudo ou quase tudo estrutura ou tem contribuio estrutural.O exemplo que se deu, deliberadamente em primeiro lugar, repetir-se-, com mais ou menos nfase, quando se aborda a informao proveniente dos estudos histrico e do programa decorativo: ela traa linhas de rumo quanto ao valor relativo do patrimnio em presena, muitas vezes por motivos inesperados e at surpreendentes.A histria do edifcio cruza-se, quantas vezes, com a histria dos stios, e com as gentes, com quem fez e com quem mandou fazer e desfazer, quem habitou e como, com quantos enganos se cruza o olhar de um leigo e de que o historiador se apercebe num pestanejar, ajudando a virar do avesso decises que parecem evidentes mas que deixam de o ser.E que dizer do programa decorativo, das surpresas que se sucedem, pela positiva e pela negativa, escondem-se tantas vezes coisas boas para mostrar o que no presta e que parece condenar um elemento substituio inexorvel; de novo, como a propsito do estudo histrico, quantas florestas de enganos, quantas iluses e desiluses mas sempre, sempre, da maior importncia para o processo decisrio com que se defronta o projecto de arquitectura, com tudo isto e mais (e no de somenos) as exigncias programticas do promotor, e mais o que adiante se ver, quando surgirem outros ses e outros mas, nomeadamente, com a entrada em aco da arqueologia que deve tambm fazer-se ouvir desde os primeiros momentos, tanto mais quanto mais antigo, e rico, for historicamente o local da interveno.Desconsiderada at h algumas dcadas no Pas, ainda hoje olhada como um estorvo, a arqueologia tem vindo a ganhar relevncia nas intervenes urbanas, por fora da lei, sem dvida, que pode impor a realizao de estudos arqueolgicos prvios (e posteriores) aprovao de projectos, tambm, admita-se, que mesmo alguns dos mais relutantes, no s se converteram relevncia dos valores culturais que podem estar em causa, como at aprendem a deles tirar partido. facilmente perceptvel a influncia que a arqueologia, definidora de uma realidade escamoteada pelo tempo e que ajuda a contar a histria dos tempos, pode, deve ter, na definio das solues estruturais que se constituem, por si ss, como uma

    sria ameaa ao estudo de eventual patrimnio arqueolgico, em funo de escolhas sobre solues e processos de execuo de fundaes, localizao de pilares e paredes estruturais, etc..Apesar de algum optimismo que est implcito no que acaba de ser escrito, no deve ignorar-se a banalidade com que se destri patrimnio invisvel para o observador comum, muitas vezes pela calada da noite, incidentes que simulam acidentes e azares e que resultam em perdas relevantes e facilmente evitveis; para muita gente, de facto, a cultura e os valores que lhe so inerentes, continuam a ser uma grande maada, que s servem para empatar os investimentos e sua viabilidade chamada agora, eufemisticamente, sustentabilidade.Cr-se, que ficou bem clara a complexidade da reabilitao pelo esforo que exige, dirigido leitura e compreenso do objecto a intervencionar e pela igualmente complexa teia de influncias cruzadas, interdisciplinares, que obrigam a assumir uma atitude lgica de coordenao, entendimentos e compromissos, em que todos os muitos intervenientes tm que estar preparados para conquistar e ceder, para ganhar e perder, sempre em benefcio primeiro da reabilitao e, portanto, do edifcio enquanto patrimnio.Face a estas evidncias, entendeu-se que seria interessante ajudar a compreender as dificuldades, as motivaes e at o encantamento que pode constituir uma operao de reabilitao de um edifcio antigo, atravs de um exerccio especfico, definido por um engenheiro de estruturas como o autor deste texto.E se uma interveno de reabilitao fosse determinada pelas solues estruturais, condicionada pelo projectista de estruturas, a elas e a ele subordinando historiadores, arquitectos, conservadores-restauradores, arquelogos e toda a espcie de engenheiros especialistas nos mais variados domnios tcnicos?Como se cruzariam os interesses e valores em jogo, tendo como ncleo a interveno estrutural? este olhar singular, invulgar mesmo ao que se julga, que se prope lanar em torno da reabilitao de edifcios antigos e que os textos que se seguem tentaro ajudar a exprimir; no h, no houve, a inteno de estabelecer uma matriz completa (seria possvel?) de interaces, antes importa, importou, exemplificar cruzamentos relevantes, em que as dificuldades, os sucessos e os fracassos esto presentes.No final, ver-se- se o objectivo central desta edio, de aproximar as pessoas da reabilitao, a partir de uma forma especfica de a observar, foi alcanado; vamos ento a isso.

    Museu de Arte Popular (fachadas)Conservao e Restauro: Nova Conservao

    Lyceu Passos ManuelArquitectura: Victor Mestre / Sofia Aleixo

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  • APRESENTAOJoo Appleton

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    O prprio ttulo do texto que se segue provocador e excessivo e, no entanto, ele no deixa de representar um sentimento profundo que importa a muita gente; pois no verdade que, num edifcio, tudo, ou quase tudo, depende do bom desempenho da estrutura? Com uma estrutura deficientemente projectada e/ou construda, os prdios colapsam, as paredes abrem fendas, os tectos desprendem-se, as instalaes tcnicas degradam-se, os revestimentos e acabamentos, incluindo os valores decorativos, perdem-se.Assim sendo, por que no dar a primazia s estruturas dos edifcios (como sucede com as pontes e outras construes especiais)? No sendo essa, ironicamente, a posio do autor deste texto, vo ser dadas razes para assegurar essa primazia, se no absoluta, pelo menos em termos de assegurar que a interveno estrutural em edifcios antigos, desde o estudo de diagnstico, deve ter carcter imperativo e deve preceder, no tempo, a actuao de outros intervenientes, incluindo os arquitectos.Importa, em primeiro lugar, definir com alguma preciso o que se entende por edifcios antigos, frisando, desde j que, no que aqui mais interessa, a antiguidade no se mede essencialmente pela idade, antes pelas solues estruturais e construtivas que serviram de base edificao.Pode dizer-se que os edifcios antigos so os que foram construdos com recurso a materiais e solues tradicionais, sem utilizao, ou com uso limitado de materiais modernos e contemporneos, nomeadamente o cimento, o ao e o beto armado e pr-esforado.Nesta acepo, pode aceitar-se como razovel limitar temporalmente a construo de edifcios antigos ao incio da dcada de 50 do sculo XX e, construtivamente, considerar que so antigos os edifcios erigidos com base em alvenarias e madeiras ou, no limite, aqueles que tendo j, parcialmente, interveno do ao e do beto, mantm estruturas predominantemente de alvenaria e uma forte presena da madeira, designadamente em coberturas.Deste modo, cabem nesta definio simples, os edifcios pr-pombalinos (assim se designando os que so anteriores ao grande terramoto de 1755) e pombalinos (associados reconstruo setecentista), os gaioleiros e, finalmente, os edifcios de transio para o beto armado, estes j com lajes de beto armado e paredes de alvenaria.Os edifcios pr-pombalinos, como definidos, no so facilmente identificveis do ponto de vista estrutural, sobretudo nas obras

    no eruditas ou populares, na medida em que muitas das

    Fig. 1 Plantas de dois pisos distintos (Pisos 2 e 5 do Palcio Marqus de Tancos). Note-se a densidade de paredes-mestras de alvenaria de pedra, paralela e perpendicularmente s fachadas, podendo sugerir a ideia de que o Palcio formado por uma aglutinao de pequenos prdiosFig. 2 Imagem da fachada principal, seiscentista do Palcio Marqus de TancosFig. 3 Pavimentos de madeira compostos por vigas principais e secundrias, solues seiscentistas em compartimentos do Palcio Pombal, em Lisboa

  • estruturas originais foram sendo alteradas e destrudas, quer por efeito de fenmenos naturais, quer pela simples usura do tempo, como acontece generalizadamente com as coberturas em telhado.J na construo erudita, palaciana, religiosa ou de grandes edifcios pblicos que sobreviveram, por inteiro ou parcialmente, ao sismo de 1755, possvel identificar caractersticas que vm a ser alteradas, a partir dessa data, por fora da aplicao das prticas construtivas ditas pombalinas, que no se dedicaram exclusivamente, pelo contrrio, reconstruo da cidade de Lisboa, antes estenderam a sua influncia a toda a espcie de edifcios, mesmo correntes, em todas as zonas da cidade e em todo o Pas.Esses edifcios eruditos mais vetustos baseiam-se, quase sistematicamente, numa malha de paredes-mestras de alvenaria e/ou silharia de pedra, de considervel espessura, delimitando os principais compartimentos em que o edifcio era dividido e recebendo a carga de pavimentos com estruturas de madeira mais ou menos complexas ou pisos abobadados, geralmente sendo as abbadas construdas com tijolo cermico colocado ao cutelo (so muito menos vulgares as abbadas de alvenaria ordinria de pedra e apenas no sul do Pas, se salienta a importncia da chamada abobadilha alentejana, como os tijolos colocados ao baixo).Nestes edifcios, em muitos casos conhecidos, outros tipos de paredes, como os tabiques simples e duplos de tbua ao alto ou em aspa, ou os frontais com cruzes de Santo Andr, so quase sempre resultado de intervenes mais tardias, ps-terramoto, por exemplo, para sub-diviso de compartimentos, criao de corredores, implantao de instalaes sanitrias, etc..

    Fig. 4 Abbada e arcos de alvenaria no palcio Marqus de Tancos, anteriores s campanhas de obras posteriores ao terramoto de 1755.

    Fig. 5 (pgina anterior) Paredes de frontal tecido de fabrico pouco cuidado no Palcio Marqus de Tancos, resultado provvel da interveno de final de setecentos, ou mesmo anterior.

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    J nos edifcios mais antigos e menos eruditos e de construo mais emprica, verifica-se a dificuldade de identificar com clareza as solues tcnicas presentes, nomeadamente no que se refere data provvel da sua execuo; em qualquer caso, as solues mais comuns consistem em paredes de fachada e de empena fabricadas em alvenaria ordinria de pedra irregular ou de tijolo macio (excepo feita a prdios com andar de ressalto, em que necessidades de aligeiramento conduzem adopo de tabiques nas fachadas principais), o mesmo podendo suceder com paredes de sagues eventualmente existentes, designadamente no 1 andar da construo.

    Fig. 6 Planta, alado e corte de quarteiro pr-pombalino em Alfama, Largo do Chafariz de Dentro.

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  • APRESENTAOJoo Appleton

    Nestes edifcios as paredes interiores so tabiques correspondendo grosso modo ao que veio a ser a construo pombalina, mas sem a coordenao dimensional e a regularidade que caracterizam o edificado ps-terramoto; tabiques de pranchas ao alto e de variados outros tipos, at frontais irregulares e incompletos, com prumos travessas e escoras mas de localizao e dimenses que parecem aleatrias, formam as estruturas verticais que suportam vigamentos de madeira de geometria e dimenses muito variveis, usualmente exibindo claros sinais da sua execuo e talhe manual e simplificado, com marcas de enx claramente visveis.

    Fig. 7.1 Num edifcio de origem pr-pombalina, coexistem solues mais antigas, talvez originais, com outras que resultam de intervenes posteriores, neste caso exemplificado com paredes de frontal (edifcio em Alfama, ao Largo do Chafariz de Dentro)

    Sempre de um modo simplista pode dizer-se que nos edifcios pr-pombalinos tudo ou quase tudo o que se observa tem relevncia estrutural, pois o prprio envelhecimento do edifcio propicia a mobilizao de tabiques secundrios de pisos assoalhados, de revestimentos de paredes.O terramoto do 1 de Novembro de 1755 destruiu ou deixou em runa milhares de edifcios, sobretudo nas costas algarvia e alentejana e na regio da grande Lisboa e vales do Tejo e Sado; a fragilidade de muitos edifcios e a frequncia com que as populaes assistiam a grandes abalos ssmicos, foram certamente elementos de peso nas decises que presidiram reconstruo.Independentemente de, em algumas zonas, se ter procedido a simples reconstrues, muitas vezes recuperando materiais aludos da mesma ou de outras obras vizinhas, assume-se poderosamente um novo modelo construtivo, recuperando e refinando solues que tinham provado a sua eficincia naquele dia fatdico, e acrescentando-lhes uma standardizao que permitia a produo em srie de diversos produtos de construo como as pedras de cantaria, os vigamentos de madeira, as ferragens, etc.

    Fig. 8 (em baixo e na pgina seguinte) Pavimento seiscentista constitudo por vigas heterogneas de madeira de diferentes espcies e dimenses (edifcio em Alfama)

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    Fig. 7.2

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    APRESENTAOJoo Appleton

    Do ponto de vista estrutural, a chamada construo pombalina passa a ter um elemento caracterizador e dominante: as paredes interiores so estruturas mistas de madeira formando reticulados complexos base de malhas de cruzes duplas compostas por travessa e prumos, complementadas por barras diagonais com capacidade para actuarem como escoras compresso ou como tirantes, traco, e com os espaos entre elementos de madeira preenchidos com alvenarias pobres de pedra mida ou de tijolo macio.Nas construes de melhor qualidade, geralmente associadas a promotores/investidores da elevada capacidade financeira, os frontais tecidos, como se designam estes tipos de paredes ou tabiques, implantam-se nas duas direces ortogonais segundo as quais se desenvolvem geralmente os edifcios; parte desses

    Fig. 12 Frontal tecido pombalino, com a cruz de Santo Andr e uma assinalvel simetria da sua constituio, marca distintiva em relao s solues construtivas antes dominantes

    Fig. 9 Prdio do Almada, formando gaveto para a rua da Madalena, frente Igreja com o mesmo nome.

    frontais recebem, atravs de frechais, o apoio dos vigamentos dos pisos, ou seja, constituem, em conjunto com as paredes exteriores, de sagues, e com outras paredes, colunas e arcos de alvenaria ou cantaria (no rs-do-cho) a estrutura portante para as cargas verticais; todos estes elementos e os restantes frontais formam a estrutura sismo-resistente, sendo em nmero muito limitado os tabiques de tbua ao alto ou em aspa.

    Fig. 10 (pgina seguinte) Palcio Ludovice a S. Pedro de Alcntara. Estdio Mrio Novais. Meados sc. XX. AML

    Fig. 11 Plantas do Palcio Ludovice, edifcio construdo no sculo XVIII, alguns anos antes do grande terramoto; as plantas evidenciam uma estrutura densa de paredes mestras de alvenaria, rara num prdio de rendimento.

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  • Os pavimentos so generalizadamente compostos por vigamentos de madeira paralelos entre si e orientados perpendicularmente s fachadas mais importantes do edifcio, mesmo que por vezes paream no corresponder ao menor vo de um dado compartimento; apenas no tecto do rs-do-cho so banais as abbadas, de bero e de aresta. Construdas com alvenaria de tijolo macio (baldozas) colocados ao cutelo.Pode, portanto, dizer-se que nos edifcios pombalinos quase tudo o que se v estrutura, sobre a qual h que agir de forma muito cautelosa; as estruturas originais so muito robustas, se estiverem bem conservadas, sendo necessrio que as intervenes de reabilitao no ponham em causa essa robustez, devendo limitar-se drasticamente as operaes de remoo integral de paredes e procurando-se sempre encontrar medidas de compensao para eventuais fragilizaes que se introduzam, designadamente nas ligaes entre paredes e entre estas e pavimentos.

    Esta orientao construtiva vai manter-se por mais de cem anos (recorde-se a mero ttulo de exemplo, que a reconstruo da Baixa de Lisboa demorou um sculo at sua concluso, com a edificao dos ltimos prdios do Rossio, em terras que se integravam na casa Cadaval), sem grandes alteraes, embora se v constatando uma lenta diminuio da qualidade das estruturas construdas a partir da segunda metade de oitocentos, quer pela reduo do nmero de paredes de frontal, frequentemente limitadas s paredes interiores portantes e caixa de escada, quer pela reduo de dimenses de vigamentos de madeira e dos elementos constituintes dos frontais e pela utilizao de peas de menor qualidade, com mais abundncia de borne, e consequentemente mais susceptveis aco de xilfagos.Depois, surgem outros factores que vo contribuir para uma mais rpida mudana dos processos construtivos e dos prprios materiais estruturais, muito por fora da revoluo industrial que vai fazer desenvolver a produo de ferro e ao, mais tarde dos cimentos artificiais, de novos formatos e dimenses de tijolos cermicos, etc.; alm disso, a presso urbanstica que se vai fazendo sentir sobre as cidades, especialmente no litoral, com destaque para Lisboa e Porto, mas tambm Setbal, Aveiro e outras, resulta em volumes de construo a que no conseguem responder os construtores locais, substitudos por migrantes de outras zonas do Pas, dispostos a construir depressa (e mal, se necessrio) e sobretudo sentindo-se vontade para ignorar as prticas construtivas mais exigentes reproduzindo, em prdios de 4 e mais andares, as solues que nos seus locais de origem usavam para produzir casas de um ou dois sobrados.

    A evoluo tecnolgica na indstria do ferro e do ao levou, por exemplo, sua aplicao crescente, a partir de meados do sculo XIX, na construo de edifcios e outras construes (como pontes e viadutos rodovirios e ferrovirios), quer em estruturas de coberturas de edifcios industriais, quer em edifcios correntes de dois ou mais pisos, formando estruturas integrais combinando, frequentemente, ferro fundido, forjado e laminado; ao contrrio do que sucedeu praticamente em toda a Europa nas grandes intervenes urbanas das principais cidades, de Paris a Budapeste, em Portugal reagiu-se lentamente a esta inovao tcnica, sendo poucos os casos em que esta arquitectura se imps.Em diversos casos, os elementos de ferro so utilizados de forma muito comedida, constituindo pavimentos de zonas hmidas e de varandas, recorrendo a vigas metlicas e pequenas abbadas predominantemente de tijolo ao cutelo, formando estruturas completas de marquises e de escadas de servio, geralmente adossadas fachada posterior dos edifcios, por vezes constituindo as estruturas do rs-do-cho e respectivo tecto com colunas, vigas e pavimentos baseados em perfis de ferro.So excepo as estaes do caminho-de-ferro que nasceu precisamente neste perodo e que dele muito beneficiou, e os edifcios industriais ou similares; em habitao os exemplos so raros, designadamente em Lisboa, admite-se que por limitaes de custo e porque o reduzido porte de edifcios correntes permitia usar com vantagem as solues mais populares verificando-se, quase sempre, que os raros exemplos de arquitectura do ferro em edifcios habitacionais tm na sua origem a participao de arquitectos e engenheiros estrangeiros; um caso muito interessante o da Casa-Estdio Carlos Relvas, na Goleg, em que o ferro se combina com a alvenaria e com a madeira, numa harmonia que tornam hoje nico este edifcio.A presso urbanstica que se faz sentir sobretudo a partir do ltimo quartel do sculo XIX, nomeadamente com a expanso das cidades que, em Lisboa se traduziu no seu crescimento para Norte, afastando a cidade do rio, primeiro com a transformao e prolongamento do Passeio Pblico que deu lugar Avenida da Liberdade e das suas zonas marginais, para Poente at ao Rato (com o chamado Parque da Liberdade), depois para Nascente, incluindo o Bairro Cames, pouco mais tarde com o traado das avenidas novas, da Fontes Pereira de Melo ao Campo Grande, em vagas sucessivas a partir do final do sculo, esgotou a capacidade de resposta dos tradicionais construtores lisboetas e facilitou a invaso de forasteiros, vindos de zonas mais centrais do Pas, com destaque para a regio de Tomar.

    Fig. 13 Planta de edifcio pombalino, observando-se a distribuio das paredes-mestras de alvenaria e dos frontais bidireccionais, estes a vermelho no desenho.

    Fig. 14 Abbadas em tecto do rs-do-cho de um prdio pombalino, sendo notvel a qualidade de execuo da mesma.

    Fig. 16 Solues de interveno em parede de frontal, idealizadas de modo a garantir a sua robustez.

    Fig. 17 Estruturas de ferro usadas em pavimentos, de forma generalizada, apoiadas em vigas de ferro forjado ou laminado, em colunas de ferro fundido, ou em paredes e colunas de alvenaria e cantaria (Palcio Sommer ao Campo de Santana).

    Fig. 15 Pavimento de madeira composto por vigas de seco aproximadamente quadrada e bem tarugadas; o apoio dessas vigas nas paredes-mestras faz-se, frequentemente, com recurso a barras chatas de ferro forjado, chumbadas na alvenaria e pregadas aos barrotes.

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  • Com capacidades tcnicas muito irregulares, do muito bom ao pssimo, e muitas vezes somando pouca competncia ganncia de promotores que queriam tirar o mximo proveito da fraca planificao, vieram a ter m fama esses forasteiros, depreciativamente alcunhados de patos bravos de Tomar e, a partir dos primeiros anos do sculo XX, conhecidos generalizadamente como gaioleiros, em funo da qualidade sub-humana que alguns edifcios ofereciam, to mal construdos que chegavam a colapsar antes do final dos trabalhos, para desespero dos que esperavam pela sua casa de morada de famlia.

    Deve dizer-se que a generalizao desta designao a um perodo inteiro e a todos os que ento ergueram edifcios, injusta, pois no s os construtores lisboetas tradicionais continuaram o seu labor sem perda de qualidade, como muitos dos que vieram foram responsveis por algumas das melhores obras que ento se construram; bastar lembrar os Prmios Valmor atribudos nas primeiras dcadas do sculo XX para ter a certeza sobre os perigos de generalizaes abusivas e no fundamentadas.Estas tipologias construtivas que j fizeram 100 anos, ou disso esto prximas, apresentam diversos problemas provenientes, quase sempre, da ausncia de manuteno peridica e de falta de obras de conservao, sendo frequente encontrar as estruturas metlicas muito oxidadas e com perdas relevantes de seco, ou mesmo fracturadas, como sucede frequentemente com pilares e outros elementos de ferro fundido; muitas vezes tambm se verifica o subdimensionamento das estruturas, desde os pavimentos de madeira aos tabiques deste material ou de tijolo, bem como, por exemplo, em coberturas metlicas, cuja segurana era apenas verificada para a aco de cargas verticais, permitindo observar vulgarmente fenmenos de encurvadura de elementos metlicos associados aco do vento; mas, dada a reduzida importncia que estas ltimas estruturas assumem no mercado da reabilitao, ser apenas referido que, quando o tcnico se depara, talvez com surpresa, com esta

    tipologia estrutural tem que cuidar antes de tudo e de todos, de proceder a um estudo de diagnstico que ajudar encaminhar algumas opes do projecto geral e que fornecer pistas essenciais para as decises de reparar, reabilitar ou substituir.Importante salientar que nos edifcios desta poca e com estas caractersticas, pelo menos os piores entre eles, se verificam frequentemente vcios de projecto e de construo que afectam significativamente as suas estruturas de alvenaria e madeira, incluindo as respectivas fundaes, frequentemente mal cuidadasAssinale-se ainda que nesta tipologia de edifcio, quando existe uma estrutura de transio, em que as paredes dos andares elevados so suportadas no rs-do-cho at s fundaes, por colunas de ferro, ocorrem quase sempre graves situaes de insegurana em relao aco dos sismos, por efeito da sbita quebra de rigidez da estrutura do edifcio.Esta situao, simples de constatar, mas de concretizao nem sempre fcil de verificar, significa igualmente que estes edifcios merecem um olhar prvio e atento do engenheiro de estruturas, que deve estar preparado para a necessidade de obter informao relevante sobre o existente, de modo a apoiar o prprio processo decisrio; , pois, determinante a sua interveno, desde o incio, entre outros motivos para entender at que ponto merecida ou injustificada a designao pejorativa de gaioleiros e de que modo que a arquitectura pode ser condicionada.

    Fig. 19 Vista das fachadas principal e posterior de edifcios gaioleiros.

    Fig. 20 Planta e alado de um gaioleiro de grande qualidade construtiva na Avenida Duque de Loul, com paredes interiores

    predominantemente de tijolo, combinadas com tabiques de madeira.

    Fig.18 Plantas e corte de um edifcio gaioleiro, construdo no incio do sculo XX.

    As verses mais pobres da construo gaioleira vo desaparecendo por si mesmas, umas caram durante a construo, como sabido, outras ficaram com maleitas estruturais to graves que, para se lhes perceber a importncia, basta ler os arquivos municipais em que se acumulam queixas, denncias e intimaes, obras mais ou menos atamancadas e, com frequncia, a quase inevitvel demolio e reconstruo com novas estruturas, para alvio de muita gente.

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  • A resoluo dos problemas mais graves colocados por este tipo de edifcios foram assim sendo resolvidos com o tempo, restando, apesar disso, milhares de edifcios dessa poca que se mantm activos e ocupados; pondo de parte os exemplares construdos com rigor que no costumam representar problemas de monta a no ser para investigadores especulativos e de vistas curtas, os gaioleiros propriamente ditos que so reabilitados apresentam geralmente estruturas dbeis, subdimensionadas, mal interligadas e com o tempo foram-se confundindo as funes das paredes principais e as de compartimentao, assumindo-se todas como parte da estrutura, em face das deformaes e deslocamentos sofridos pelo edifcio. isso, verdadeiramente, que determina a relevncia da interveno estrutural, j que cabe ao engenheiro de estruturas assegurar, desde o incio, uma identificao clara das tipologias construtivas em presena, orientando assim as opes arquitectnicas, por exemplo, no que se refere reorganizao espacial que implique a supresso de paredes; os tabiques, todos olhados com desprezo, podem dar origem a erros trgicos.

    A transformao operada na indstria cermica, com a descoberta e banalizao de novos equipamentos, levam a um rpido desaparecimento (salvo em zonas especficas praticamente limitadas ao Alentejo e Algarve) das baldozas, tijolos macios tradicionais, de origem romana ou anterior, e sua substituio por tijolos de dimenses mais ou menos normalizadas, mais leves por passarem a incorporar furos, e com caractersticas dimensionais e mecnicas mais estveis, devido ao uso dos novos processos industrializados, nomeadamente na cozedura.

    Fig. 21 Utilizao de tijolos pequenos com 22cmx11cmx7cm, num edifcio do perodo dos gaioleiros, chamando-se a ateno para o correcto imbricamento dos mesmos, entre si e na ligao a paredes de alvenaria ordinria.

    Fig. 22 Paredes de tijolo e de tabique de diferentes constituies e espessuras, funo do papel estrutural desempenhado pelas mesmas; em bibliografia e em projectos da poca, estas paredes mais espessas mantm a designao de frontais.

    Fig. 23 Ligao entre paredes de alvenaria de tijolo com diferentes funes estruturais.

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    se ir sentir a partir da dcada de 40 do sculo XX.A primeira grande alterao, que surge de uma forma natural, d-se quando, simplesmente, se substituem os pavimentos de madeira por finas lajes de beto armado, com espessuras que raramente ultrapassam os 10cm, muitas vezes armadas com uma s malha de vares de ao, sem mesmo assegurarem a continuidade do elemento sobre os apoios.Em alguns casos, nomeadamente quando os pisos trreos se destinavam a uma funo no habitacional, verifica-se ainda a criao de um piso de transio, no tecto do rs-do-cho, com uma estrutura porticada de grandes vigas e pilares de beto armado localizada em coincidncia com os alinhamentos dos pisos superiores, suportando, portanto, todo o peso dos andares elevados.Estes so os que se designam por edifcios de transio (para o beto armado), em que parte significativa da estrutura ainda de alvenaria, mas onde j existe uma presena significativa do novo material.Tais edifcios tm vida efmera, surgindo em pequena quantidade nos anos 30 e atingindo o seu apogeu e queda no incio da dcada de 50 do sculo XX, altura em que quase desparecem as alvenarias resistentes e passam a dominar as estruturas reticuladas, primeiro, e as estruturas laminares (estruturas com paredes) e mistas depois, estas sobretudo a partir de meados da dcada de 70.No mbito do que aqui se entende por edifcios antigos, os chamados edifcios de transio so os seus ltimos representantes e vale a pena olhar para eles com alguma ateno, para se entender a importncia que tem a interveno dos engenheiros de estruturas.De facto, quando comparamos esta tipologia estrutural e construtiva, verificamos que a sua aparente modernidade, traduzida na exteriorizao de novas modas nas fachadas e pelo uso mais intenso de novos materiais de produo cada vez mais industrializada, contrariada, por um lado, porque exteriormente muito difcil adivinhar se se est perante um gaioleiro ou um edifcio de transio, pois as fachadas so similares e s vezes mesmo ironicamente iguais; depois, porque certas provas fceis de fazer como saltar sobre um piso e perceber a sua vibrao nem sempre conclusivo, dadas as baixas frequncias de lajes de beto, que chegam a ter apenas 7 ou 8 cm de espessura, que se confundem com as dos pisos de madeira, quando estes tm continuidade, apoios generosos e tarugamentos cuidados; mesmo as paredes de alvenaria no so suficientes para marcar a distino pois, como atrs se referiu, h gaioleiros com

    No surpreende que, coexistindo com os gaioleiros mais representativos da tipologia, cujo interior era quase totalmente construdo em madeira, surjam cada vez mais edifcios com paredes interiores fabricadas com os tijolos antes referidos (com dimenses aproximadas de 22cmx11cmx7cm, sendo interessante assinalar a permanncia da influncia do palmo de craveira como medida modular), mantendo-se os pisos com vigamentos de madeira, excepto os de zonas hmidas (cozinhas, instalaes sanitrias, varandas e marquises, etc.) e recorrendo ao beto armado em lajes finas ou a pavimentos com vigas de ferro e pequenas abbadas de alvenaria j atrs mencionados.Tudo que se de referiu a propsito dos gaioleiros vlido para esta sub-tipologia construtiva, apenas se salientando que, de um modo geral, as construes com paredes de tijolo, ao cutelo, a meia vez, a vez ou mais espessas ainda, se apresentam com aspecto muito mais robusto do que o dos seus congneres de madeira, desde que se assegurem boas fundaes (so edifcios muito mais pesados) e adequadas ligaes entre paredes custa do correcto imbricamento dos tijolos.Nestes edifcios pode dizer-se que todas as paredes tm uma funo estrutural a desempenhar, seja para suportar e transmitir piso a piso, at s fundaes, as cargas permanentes e as de utilizao, seja para assegurar o travamento eficaz entre paredes, condio essencial para assegurar um desempenho ssmico pelo menos razovel; nestas condies fica, de novo, evidenciada a primazia da interveno do engenheiro de estruturas, desde o incio do processo de investimento e de uma dada promoo imobiliria em edifcios desta natureza, pois no pode validar-se partida a supresso generalizada do que parecem ser paredes secundrias mas que, na verdade, tm um papel determinante no comportamento global destas estruturas.A partir do final do sculo XIX, o beto armado comeou a fazer a sua apario nas obras de construo de edifcios, primeiro de forma pontual, com base em solues patenteadas, depois generalizando-se quando esta tecnologia comeou a ser dominada por um nmero crescente de engenheiros e construtores, surgindo os primeiros regulamentos tcnicos que fazem o state of the art e, de certo modo, ensinam e orientam os projectistas e construtores para uma boa concepo, projecto e execuo das novas estruturas.O Regulamento de Beto Armado de 1935, independentemente da existncia de anterior produo normativa e regulamentar, vem marcar definitivamente aquilo que ser o domnio do beto armado como material estrutural no Pas que

    Fig. 25 Desenho de lajes de beto armado, apoiadas em paredes de alvenaria.

    Fig. 24 Plantas de andares de um edifcio de transio, com paredes de alvenaria de tijolo no interior, por vezes com prticos de beto armado nas fachadas, e com lajes macias, finas deste mesmo material.

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    reduzida espessura e a muito baixa taxa de armaduras, que est na origem de riscos de fendilhao e de deformao.Tudo isto significa que, muitas das alteraes que frequentemente so colocadas sobre a mesa em edifcios com estas caractersticas, seja a demolio de paredes, a criao de grandes aberturas (de largura superior de uma porta comum), o aumento de peso sobre as lajes com enchimentos e revestimentos pesados, as alteraes de uso, o aumento do nmero de pisos ou a execuo de caves, devem obrigar a uma prvia interveno do engenheiro de estruturas que as viabilize, definindo, se tais alteraes forem aceitveis, as medidas compensatrias que devem ser tomadas e, eventualmente, adoptando medidas complementares que conduzam a um melhor desempenho estrutural destes edifcios.Considera-se que os edifcios com esta tipologia que, partida, pareceriam os mais pacficos, apresentam, na realidade riscos potenciais muito elevados, nomeadamente porque as alteraes so realizadas ou em regime de auto-construo, ou porque arquitectos e engenheiros no tm a mnima noo das estruturas com que esto a lidar, agindo como se estivessem perante edifcios com estruturas integrais de beto armado, em que as paredes de alvenaria se limitam a preencher espaos entre vigas e pilares de beto.Como se viu, ao longo desta exposio, o engenheiro de estruturas pode, e em alguns casos, deve estar no centro das primeiras e essenciais decises que ditam o futuro de uma interveno de reabilitao; quem no tiver isto em conta, quando entenda iniciar um processo de reabilitao de um edifcio antigo, pode estar a dar o primeiro passo para o insucesso.Sem querer pr em causa o lugar de liderana que ao longo de um processo de reabilitao deve pertencer ao arquitecto, mas condies referidas, nos tempos mencionados, no valer a pena valorizar um pouco mais a relevncia que pode e deve ter o engenheiro de estruturas? Espera-se que o texto produzido ajude a uma reflexo construtiva e sensata e as imagens que se anexam podero ajudar a entender a importncia determinante que, em muitos casos, a estrutura pode ter, at mesmo justificando a conduo inicial do processo de reabilitao.(Seguem-se os filmes em Videos duque de Loul)

    paredes de tijolo e vigas de madeira, mas tambm os h com tabiques de madeira, de variadas tipologias e modos de construir.Isto significa que os edifcios de transio, pelo menos os mais antigos dos anos 30, so, na sua essncia arquitectnica, basicamente iguais, ou muito semelhantes aos gaioleiros que os precederam e, por vezes, tm origem num mesmo projecto em que se adaptam solues de madeiras a lajes de beto e vice-versa, geralmente em funo do custo comparado da madeira com o do beto e do ao.Relativamente aos gaioleiros, os edifcios de transio apresentam vantagens so edifcios de placa, naqueles tempos sinnimo de superioridade tcnica, ideia que ainda hoje perdura -, que derivam, sobretudo, da robustez que lhes conferida pelo travamento geral que as lajes de beto oferecem, sobretudo quando complementadas por lintis e vigas construdos ao nvel de cada piso, geralmente confinadas s paredes exteriores.Apresentam ainda vantagens do ponto de vista acstico, sobretudo porque conferem melhor isolamento a sons de conduo area, por efeito de terem muito mais massa, se as lajes no forem excessivamente finas, vibram habitualmente menos que os pisos de madeira, so, resumindo, mais confortveis e transmitem uma mais acentuada sensao de segurana.Mas os edifcios de transio podem representar situaes bem mais severas do que os gaioleiros por distintas razes: so edifcios muito mais pesados, mais exigentes em termos de fundaes e, tambm por isso, os esforos devidos aco dos sismos aumentam significativamente, porque os edifcios tm maior massa e porque sendo mais rgidos, perdem a flexibilidade propiciada pelas velhas estruturas de madeira.Esta situao pode ainda agravar-se em determinadas condies, a mais importante das quais a frequente existncia de pisos de transio, geralmente no tecto do rs-do-cho, os quais correspondem a uma sbita quebra de rigidez que constitui um dos mais srios crimes quanto segurana ssmica do edificado; uma segunda e igualmente importante questo, prende-se com a deficiente ligao entre paredes ortogonais e entre estas e os pisos de beto e as paredes que os suportam.Nestes edifcios, a ausncia de ligaes mecnicas adequadas entre paredes ortogonais e a insuficiente ligao entre pisos de beto e paredes de alvenaria, podem ajudar a induzir em erro uma perspectiva baseada numa regular, densa e equilibrada distribuio de paredes resistentes; assinala-se ainda o risco de uma excessiva deformao das lajes de piso,

    muito susceptveis para vos superiores a 4m, dada a sua

    Fig. 26 Plantas de andar elevado e do rs-do-cho de edifcio de transio, sendo observvel nesta a supresso generalizada de paredes dos pisos elevados e o recurso a vigas e plares de beto armado.Fig. 26 Avenida Guerra Junqueiro. Fot. Antnio Castelo Branco. Anos 50. AML

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    O tema da reabilitao de edifcios antigos adquiriu, na actualidade, relevncia na opinio pblica, alargando-se assim o debate ao cidado, cativando-o para a participao cvica na salvaguarda, fsica e cultural, da cidade, do bairro e, em particular, do espao de maior proximidade e vivncia colectiva, nomeadamente a moldura edificada onde habitam. A democratizao do tema ampliou-se em diversos sectores, incluindo as organizaes profissionais, empresas e gabinetes tcnicos e, dentro destes, verifica-se a tendncia para uma certa ideia de especializao autonomizada, como garante de credibilidade tcnica, logo de xito na aco.

    Tal possibilidade contraria o sentido de equipa pluridisciplinar, devidamente coordenada, de modo a atender ao conjunto de materialidades, valncias espaciais e ambincias estabilizadas por ciclos de vivncias efectivas e afectivas no patrimnio a intervencionar. A salvaguarda da unidade da identidade patrimonial em presena ser bem-sucedida se todos estes factores se mantiverem, na sua justa medida, num estvel e duradouro equilbrio. Este mais no ser do que a harmonizao do sentido a que se destina a habitabilidade do edificado.A presena de valores histricos/arqueolgicos e/ou de artes decorativas, quando observados em exclusividade, tendencialmente so considerados autonomamente, relativizando o contexto global onde se integram. Ao secundarizarem-se outras valncias, outros sentidos, como materiais, tcnicas e tecnologias construtivas, a prpria transio da identidade sociocultural do imvel para um novo ciclo de uso, fica-se aprisionado por um tempo descontinuado.

    Um projecto de reabilitao de um edifcio antigo, por mais singelo que seja, implica uma cuidada investigao no mbito da sua histria, onde a sua constituio fsica parte integrante.Quando observamos um edifcio atravs do filtro da salvaguarda patrimonial, no raras vezes se secundariza o sentido do uso, o sentido das unidades espaciais, dando maior relevncia s paredes que configuram esses espaos, sendo estas o mago do mesmo. A salvaguarda exclusiva da(s) materialidade(s) tende a empobrecer a qualidade ambiental das espacialidades, retirando-lhes a autonomia de que necessitam para se destacarem de um determinado tempo histrico e, assim, se comutarem nas identidades culturais sucessivas, actuais e futuras.A reinfra-estruturao, onde se incluem as questes dos reforos

    estruturais, integrao de novas tecnologias, menos

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    intrusveis e, por essa mesma razo, mais exigentes no acerto do clculo estrutural, ter tambm em linha de conta a preservao das solues preexistentes, refuncionalizando-as/validando-as no tempo actual, pois estas so parte integrante do valor patrimonial do edificado. Tal como outros sistemas mais ou menos precoces que foram ganhando lugar nos edifcios, em face das sucessivas invenes desenvolvidas no sculo XX, dever-se- igualmente considerar se devero permanecer e/ou ser reajustadas. Algumas correspondem a simples circuitos de ventilao passiva, constituindo autnticos fusveis de segurana e eficincia.

    Ao percepcionar-se toda a unidade, incluindo os sinais de degradao, o que se oculta atrs dos revestimentos, os materiais e as suas mltiplas combinaes/agregaes, compreendemos as questes tecnolgicas em presena e associamo-las s artes da construo e estas aos processos laborais que lhe deram existncia. Estas realidades esto estritamente relacionadas com o seu tempo sociocultural econmico e poltico, integrando-se, assim, num contexto societrio temporal.Nesta fase de observao, estaremos perante um processo e no num projecto. A sua ausncia na maioria das intervenes contribui para que algumas reas/disciplinas, sobretudo as relacionadas com a histria, com especial incidncia a arqueologia e as artes decorativas, se imponham perante o contexto, desregulando o sentido a que se destina a interveno. Que fique claro que no estamos a exclu-las do processo, apenas notamos que a sua primazia/exclusividade, desligadas da coordenao global, torna o processo prisioneiro de um determinado tempo histrico, comprometendo o sentido objectivo do utilizador, que habita a sua contemporaneidade no seu espao. E ser neste contexto que o utilizador procura o ideal de conforto, harmonia e bem-estar associado s invenes/inovaes contemporneas, codificadas socialmente como teis e confortveis. Estas devero harmonizar-se com as preexistncias, no sentido do possvel convvio com a memria cultural, mas no podem ficar suas prisioneiras.

    Tocamos de novo no mago do sentido das actualizaes dos edifcios antigos, ou seja, a sua justa infra-estruturao, onde ser expectvel um pensamento articulado de todos os intervenientes no processo e no(s) projecto(s).Para se reinstalar um determinado programa funcional, incluindo o original, no so apenas as questes

    tecnolgicas que condicionam o xito da operao, 42

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    ser sobretudo a aptido do(s)projecto(s) para se integrarem quase que imperceptivelmente, por via do que se codificou denominar boas prticas de interveno, parte integrante de uma explcita tica de interveno.A correlao entre coisa fsica, estrutural/funcional, memria/ambincia, espacialidades preexistentes e a sua renovao/actualizao resulta da sua inter-relao atravs da seleco do essencial. Essa seleco corporiza as transferncias temporais imperceptveis, numa lgica de continuidade do que se considera importante/valioso, tanto na requalificao das materialidades, como tambm, e em simultneo, das ambincias que, em conjunto, configuram uma ideia de conforto, de bem-estar contemporneo em espaos/edifcios antigos. A questo fundamental de um projecto de reabilitao tem, no nosso entender, uma questo de fundo incontornvel, precisamente o sentido que atribumos (s) autoria(s), do projecto original, ainda que, na maioria dos casos, seja annima.

    Na verdade, ao intervirmos numa preexistncia, estamos como que a reinterpretar uma explcita partitura, escrita por um autor, num determinado tempo histrico e esttico. E, tal como um maestro que, antes de ensaiar a orquestra, estuda minuciosamente o libreto, cada tempo da partitura, em face de cada instrumento, descobrindo/interpretando as tonalidades da composio na justa articulao das partes, tambm o coordenador dos projectos estuda e aprofunda a preexistncia enquanto composio una e harmoniosa. Perante a ausncia de continuidade, procura identificar o elemento em falta ou simplesmente desligado para, de novo, reconfigurar o discurso e repor a unidade compositiva. Ao detectarem-se dissonncias, escalas autonomizadas por adies ou por percas materiais, percepciona-se a ruptura com a unidade esttica, e todo o conjunto se destabiliza.

    O coordenador dos projectos tem, assim, uma imperiosa obrigao tica para com o autor da obra original a intervencionar e, na impossibilidade histrica de reactivar um dilogo, ter de elevar a sua condio de tcnico, associando a sua dimenso tica.Para melhor percepcionarmos o quanto este compromisso relevante, dou leitura, com o sentido de metfora, um documento paradigmtico, escrito em 2003 pelo arquitecto catalo Antoni Gonzlez Moreno-Navarro que, perante o restauro de uma obra de Antoni Gaud, precisamente a igreja da Colonia Gell, resolve estabelecer uma

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    conversao ficcionada com o mestre; desse extenso e excepcional documento, escolhemos o seguinte trecho:

    Mire, mire, Gonzalz, lo que dicen a propsito de la iglesia que usted restaura!: que la proyect as porque quise imitar la naturaleza... Y que mis columnas estn torcidas como los rboles... Y que la columna central del prtico es como una palmera, tal vez como un olivo... Ay, Dios mo! Mire, Gonzlez: yo siempre supe que una cosa es la naturaleza y otra la construccin. Y que tienen leyes, programas y tcnicas muy diferentes. Lo que dije fue que era necesario aprender de la naturaleza, pero nunca que fuese preciso copiarla. Mis columnas son inclinadas por razones de esttica y de esttica, mientras que si los rboles lo estn es porque les fallan las races o el terreno, porque sopla el viento, porque buscan el sol o porque estn enfermos. Adems, los rboles no aguantam ningn peso (las hojas no pesan demasiado), y las columnas s. Tngalo en cuenta cuando las restaure.in Moreno-Navarro, Antoni Gonzlez (2003), Restaurar Gaud: Dilogo con el maestro a propsito de la iglesia de la Colonia Gell, Bacelona, Diputaci de Barcelona, p. 6.

    Antoni Gonzlez, enquanto chefe de servio do Patrimnio Arquitectnico da Autarquia de Barcelona, protagonizou dezenas de intervenes em relevante patrimnio catalo, simultaneamente patrimnio da humanidade, sendo autor de diversas publicaes, de que se destaca a sua proposta terica Restauro Crtico, onde explicita os princpios norteadores da sua concepo de interveno em patrimnio. Convocmo-lo,

    precisamente, por este caso constituir um paradigma. No sendo consensual no meio, tambm por isso um caso a reflectir. Segundo as suas palavras, a sua ideia de interveno tinha por objectivo:

    (...) garantizar la transmisin de la obra de Gaud a las futuras generaciones con toda la riqueza de su autenticidade, dar edifcio y su entorno una nueva imagem, coherente

    con su significacin colectiva, local y universal (que mal poda assumir su aspecto de ruina a de obra fracasada), y conseguir que el edifcio, como inmueble en activo, garantizara a los usuarios la seguridad y las prestaciones exigibles hoy.in Moreno-Navarro, Antoni Gonzlez (2002), Restauracin de la iglesia de la Colonia Gell, in Informes de la Construccin, vol. 54, n. 481-482, pp. 38-39.

    Antoni Gonzlez procurou como que comutar um edifcio em pr-runa e sem funo activa, mas de reconhecido valor patrimonial, para um tempo novo de utilizao. Nesse processo intelectual, emergiu o sentimento de luto no s pelo que se perdeu, mas sobretudo pelo facto de o projecto original no se ter concludo porque Gaud abandonou a obra em 1914.O que aqui se pressupe que esteve em causa, para alm da demolio de artifcios neogaudianos, teria sido a continuao da obra inacabada, seguindo o projecto original sem Gaud, da a conversa fictcia com o Mestre. que, sobre o restauro e a regenerao do uso de uma obra inacabada, levantam-se questes ticas que se colocam a todos os tcnicos intervenientes, e no apenas ao arquitecto coordenador da operao. Todos os tcnicos que contriburam para a habitabilidade deste edifcio, perante os padres de conforto actuais e no de h cem anos, debateram-se com os mesmos sentimentos, emoes e posicionamento cultural, para alm da dimenso tcnico-cientfica de cada especialidade. A exigncia subjacente a uma equipa movida por estes princpios tem implcito que cada disciplina incorpore na sua abordagem tcnica o seu contributo cultural, sintonizado com o esprito da interveno. Nenhuma especialidade deve ser desligada desta abordagem nem se considerar a menorizao de alguma delas, sob pena de se comprometer a harmonia e o equilbrio da interveno. Uma longa prtica de separao das especialidades do mago do projecto, do acto criativo, que se prolonga no projecto de execuo e na prpria obra, pe em risco a sintonia de todas as partes indispensveis para a unidade da obra.A conscincia, o conhecimento e a dimenso cultural, tal como a cidadania, so transversais s profisses, pelo que no se trata apenas do tcnico de restauro, do arquitecto, do engenheiro ou, mesmo, do responsvel pela iniciativa, mas sim do cidado que se distingue no esprito de equipa e a eleva ao praticar o bem no interesse comum. E sobre este tema reflectimos de novo com a ajuda das palavras de Antoni Gonzlez:

    En consecuencia, se confirmaron como medios bsicos el dar por acabada la actuacin de Gaud, es decir, renunciar a continuar su obra desistir de la tentacin de hacer Gaud sin Gaud, y, al mismo tiempo, el completar el edifcio como tal, como arquitectura al servicio del usuario, al margen de ser o no una creacin gaudiniana.in Moreno-Navarro, Antoni Gonzlez (2002), Restauracin de la iglesia de la Colonia Gell, in Informes de la Construccin, vol. 54, n. 481-482, pp. 38-39.

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    NotaAs imagens deste artigo reportam-se interveno de reabilitao na Escola Bsica e Secundria Passos Manuel

    Intervir numa preexistncia atravs da coordenao de uma equipa pluridisciplinar, tcnica e culturalmente exigente, reduz substancialmente a margem de erro na actualidade e, tendencialmente, no compromete a possibilidade futura de se beneficiar da evoluo do pensamento filosfico e da descoberta cientfica.

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    IntroduoA reabilitao desde os anos 60 e 70 do sc. XX, comeou a impor-se pela fora de uma forte viso e, pode mesmo dizer-se, paixo cultural, sobre o patrimnio construdo, por parte de historiadores, de arquitetos e de engenheiros com sensibilizao muito direcionada para toda esta temtica. A reabilitao veio assim estabelecer um novo paradigma para o projeto urbano, apesar da presso dos agentes econmicos imobilirios que numa viso meramente economicista e de lucro fcil, procurava demonstrar que mais valia deitar abaixo e construir de novo, pois a nova construo seria mais econmica, mais segura, mais confortvel e poderia ser dotada de maiores facilidades tcnicas, difceis de obter quando da reabilitao de edifcios existentes.Os edifcios, atravs da sua arquitetura, dos processos construtivos de obra civil aplicados e das tcnicas utilizadas para o conforto humano so um repositrio de histria das civilizaes e da humanidade em geral. Sem conhecermos o passado, no compreenderemos o presente e no poderemos preparar o futuro. Este um conceito transversal a todas as disciplinas do conhecimento. Tambm a histria recente tem mostrado atravs de mltiplos exemplos que possvel reabilitar e requalificar edifcios antigos, de caractersticas marcantes e datadas, que importa a todo o custo preservar. Por outro lado, a sociedade contempornea tornou-se hoje mais exigente, ao interiorizar valores tais como a qualidade, a segurana e a sustentabilidade, obrigando a uma indispensvel cooperao interdisciplinar entre todos os intervenientes, proprietrios, arquitetos e engenheiros, de modo a que se possam assegurar as necessidades e os valores contemporneos sem comprometer as geraes futuras.

    Como reabilitar e ao mesmo tempo inovar?A reabilitao de um edifcio compreende em geral um conjunto de intervenes, que passam pela arquitetura, pela engenharia de estruturas e pelas engenharias das instalaes e sistemas tcnicos, que no seu todo visam, desde logo aumentar a vida til desse edifcio, valorizando-o economicamente e ao mesmo tempo melhorando a qualidade de vida dos seus ocupantes, atravs da melhoria das condies de conforto ambiental interior. Este conforto compreende um amplo leque de conceitos e prticas, desde o conforto sanitrio, passando pelo conforto trmico, visual, acstico e pelo controlo da qualidade do ar interior, vetores que no podero deixar de ter em ateno os

    requisitos de eficincia hdrica e de eficincia energtica.

    Para se atingir estes desgnios indispensvel um estreito dilogo conceptual entre a arquitetura e todas as especialidades.Centrando-nos no tema nuclear do presente artigo A engenharia de estruturas e as instalaes e sistemas tcnicos: cooperao e antagonismo comecemos por salientar que a engenharia de estruturas tem, inevitavelmente, uma primeira e forte presena em qualquer projeto de reabilitao pois ser, aps a fase de conceptualizao e a definio das respetivas bases programticas, o ponto de partida que permitir determinar a opo por uma ou outra soluo tcnica a aplicar no edifcio a reabilitar.A implementao de solues tcnicas tm muito a ver com o tipo de uso que se pretende para o edifcio em questo e se estamos perante uma mudana de uso ou no. Por exemplo, as situaes sero distintas se estamos em presena de um edifcio antigo que na sua origem era um edifcio de habitao e se pretende agora reabilitar e requalificar para edifcio de servios, destinado a escritrios, cultura ou lazer ou se estamos, por exemplo, perante a requalificao de edifcios industriais destinados a servios ou mesmo at habitao. A alterao de uso determina logo partida a densidade e os nveis de complexidade das instalaes e sistemas tcnicos que podero ser aplicados, pelo que o desenvolvimento do projeto, dever atender s especificidades de cada caso.H no entanto, nos edifcios antigos de interesse reconhecido, uma carga histrica e cultural, que condiciona o leque de opes a tomar, devendo qualquer interveno ao nvel das instalaes e sistemas ser feita de forma o menos intrusiva possvel. Solues idnticas no resolvem problemas de uma forma universal, face diversidade de situaes histrico-culturais e socioeconmicas, existncia de diferentes tipos de edifcios e ao leque de opes tcnicas suscetveis de implementao. Cada caso um caso e dever ser tratado como tal.Os proprietrios, os arquitetos e os engenheiros, conscientes dos objetivos a que se propem, devem ser capazes de colocar questes relevantes, partilhar experincias e aprender em conjunto. Assim os edifcios tornar-se-o mais sustentveis e todos os intervenientes beneficiaro.A sustentabilidade gera valor para todos, se todos os interessados forem capazes de trabalhar conjuntamente, de forma empenhada, transparente e partilhando mais-valias.

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    Inovar para qu?Os edifcios no so apenas uma massa inerte. So o equivalente a seres vivos, pois tm pessoas l dentro. Os edifcios so construdos para as pessoas e da existirem cuidados redobrados na sua construo ou reabilitao. O conforto interior de um edifcio, no seu mais amplo conceito, vital para o bem-estar dos seus ocupantes, onde passam grande parte do seu dia-a-dia (calcula-se que seja 90%) e por isso determinante para o seu bem-estar e uma vida saudvel. Ao projetar um edifcio o foco deve ser a sustentabilidade como um todo. As diferentes partes interessadas, administrao pblica e autrquica, associaes, empresas e proprietrios devero interiorizar cada vez mais esta necessidade de adotar solues construtivas sustentveis.Os edifcios sustentveis no s apresentam benefcios imediatos para os proprietrios ou locatrios, proporcionando um maior perodo de vida do edifcio, mas tambm mais-valias, garantindo, se for caso disso, negcios bem-sucedidos a mdio e at a longo prazo.

    O impacto das instalaes e sistemas tcnicos nos edifciosAs instalaes e sistemas tcnicos, dependendo do uso que se pretenda para o edifcio, tm atualmente um forte impacto, quer ao nvel da sua densidade, quer ao nvel de atravancamentos, obrigando a que a arquitetura e as engenharias dialoguem entre si de uma forma transparente de modo a encontrarem a melhor soluo para o cumprimento de todos os objetivos propostos programaticamente e regulamentarmente. em geral um desafio rduo, mas gratificante quando a equipa de projeto no seu conjunto chega soluo final. H cooperao e dificuldades a ultrapassar mas nunca antagonismo.Enumeram-se seguidamente algumas situaes com que os projetistas se deparam quando da reabilitao e requalificao de edifcios antigos ou mesmo em edifcios mais recentes.De um modo geral so as instalaes e sistemas de guas e esgotos e as instalaes e sistemas de climatizao que merecem particular ateno. Devero satisfazer alm das necessidades de conforto ambiental, tambm as exigncias impostas pelo condicionamento acstico e os requisitos resultantes da segurana contra risco de incndio. Os edifcios antigos apresentam sempre grandes constrangimentos uma vez que em geral as instalaes e sistemas que anteriormente se enumeraram ou so rudimentares ou inexistentes. Da o grande desafio que este tipo de edifcios representa para uma equipa projetista.

    Instalaes e sistemas de guas e esgotosNos edifcios antigos e que carecem de reabilitao os projetistas deparam-se com uma infinidade de anomalias provocadas pela obsolncia de materiais e de equipamentos, que pela sua fadiga ou fim do tempo de vida til se torna imperioso substituir.Os equipamentos de distribuio de gua, em edifcios existentes no reabilitados apresentam em geral deteriorao elevada, quer por localizao inadequada, quer por falta de proteo e uma completa ausncia de manuteno (Fig. 1 e 2).

    As redes de distribuio de gua, em edifcios antigos estavam baseadas em tubagem de ferro galvanizado (Fig. 3) e em algumas situaes, estranhamente, ainda em ferro preto. Tubagens deste tipo estavam sujeitas a corroso ou incrustaes (ou ambas) elevadas, que acabavam por fornecer nutrientes e proteo para as bactrias.Tubagens em material plstico (Fig. 4) tambm so suscetveis de originar colmataes em especial em guas muito calcrias. Vejamos alguns exemplos retirados de casos reais.

    As redes de drenagem de guas residuais e pluviais, em edifcios antigos eram executadas em manilhas de grs (Fg. 5) e em algumas situaes mais antigas em coletores de pedra (Fig. 6) tendo sido inevitvel a sua reconstruo (Fig. 7).

    Fig. 2 Contador e grupo hidropneumtico

    Fig. 1 Contadores e vlvula SI

    Fig. 3 Tubagem de ferro galvanizado colmatada por corroso e incrustaes

    Fig. 4 Tubagem em policloreto de vinilo colmatada por calcrio

    Fig. 5 Tubagem em manilhas de grsFig. 6 Coletor em alvenaria de pedra Fig. 7 Reconstruo em beto de um antigo coletor de alvenaria de pedra

    Fig. 9 Caleira de drenagem superficial incorretamente dimensionada

    5151

    Tambm ao nvel das drenagens de cobertura por queda livre (Fig. 8) como a drenagem de superfcie de espaos exteriores envolventes dos edifcios (Fig. 9) encontram-se situaes anmalas e sumidouros ausentes ou caleiras incorretamente dimensionadas conduzindo eroso dos passeios e terrenos adjacentes e que necessariamente importar resolver.

    Fig. 8 Descarga livre provocando a deteriorao da calada

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    Ventilar, porqu? A ventilao indispensvel para assegurar a qualidade do ar interior e incrementar o conforto em especial nos meses quentes. Poder-se- recorrer a ventilao natural, mista ou hbrida, a determinar em funo de cada caso e das respetivas necessidades. Em qualquer das situaes torna-se indispensvel conseguir um adequado dimensionamento e integrao de grelhas em fachadas (Fig. 12) e de grelhas no interior dos respetivos espaos (Fig. 13) em particular em edifcios sujeitos a reabilitao,Em determinadas situaes possvel combinar harmoniosamente grelhas de difuso de ar novo temperado por mtodo de deslocamento e de grelhas que permitam o aquecimento ou arrefecimento por radiao e conveco atravs de grelhas frontais (Fig. 14).A integrao de todos estes elementos que, admite-se, so sempre intrusivos, poder ser devidamente controlada mediante criteriosos estudos e ponderao das equipas projetistas, de modo a que a opo final no comprometa a esttica e os requisitos funcionais exigidos para cada espao.

    A satisfao das necessidades de aquecimento e arrefecimentoO conforto trmico provavelmente to antigo como a raa humana. O fogo foi utilizado para aquecimento desde a designada idade do fogo e o frio para conforto, embora com incio no muito claro, aparece referido em vrios textos antigos e medievais. No obstante, no campo do conforto no se avanou muito at aproximadamente ao sculo XVIII, mas foi depois da II Guerra Mundial que o conforto atravs do ar condicionado se tornou cada vez mais popular e comeou a estar ento ao alcance da crescente classe mdia.Em Portugal o aparecimento de edifcios com instalaes de aquecimento e ar condicionado deu-se a partir de 1930 por iniciativa de empresas instaladoras impulsionadas ento pelo fomento de obras pblicas e construo de edifcios de habitao de dimenso e estatuto relevantes em especial nas grandes cidades.A realidade est hoje a mostrar que a eficincia energtica, o conforto ambiental, onde a qualidade do ar interior um vetor importante, e a sustentabilidade dos edifcios no so modas passageiras a sociedade tem vindo a mudar e j assimilou estas realidades, pois preocupa-se cada vez mais com o seu futuro.A climatizao, sendo uma atividade que visa satisfazer as necessidades de conforto ambiental, nas habitaes ou nos locais de trabalho, um setor que est permanentemente a ser confrontado com novos desafios, dado que ter de corresponder, por um lado, s mais elevadas exigncias funcionais (os utilizadores so cada vez mais exigentes) e por outro, ter de satisfazer os requisitos de eficincia energtica e atender sustentabilidade dos edifcios. A dificuldade na obteno de energia a custos mdicos e a perspetiva de escassez de energia proveniente de fontes convencionais, so fatores determinantes que, aliados tendncia crescente das alteraes climticas, obrigam a uma conjugao de esforos das vrias disciplinas do conhecimento tcnico e cientfico. Somente a partir de uma viso integrada destas realidades ser possvel desenhar estratgias que conjuguem todos estes fatores de uma forma eficiente e competitiva. Tem-se observado, nas ltimas dcadas, particularmente em Portugal, mudanas profundas ao nvel do clima. O tempo no o mesmo que nos anos 80, a chuva cai mais concentrada e a temperatura mdia global j aumentou 0,85 C desde o perodo pr-industrial, verificando-se em Portugal um aumento ainda superior como salientam os especialistas em alteraes climticas: Isto vai conduzir a um aumento da

    Fig. 10 Entrada de ar sob vos da fachada Fig. 11 Sada de ar localizada nos tetos

    Fig. 12 Integrao de grelhas em fachada

    Fig. 13 Integrao de grelhas no interior

    Fig. 14 Integrao combinada de grelhas no interior

    As instalaes e sistemas de ventilaoEm alguns edifcios antigos e nos projetos mais cuidados j se notavam preocupaes com a qualidade do ar interior, embora nos dias de hoje e com o conhecimento cientfico adquirido se revelem ter sido insuficientes. Essas solues, quando existentes, eram muito primrias e baseavam-se apenas em pequenas aberturas para entrada de ar (Fig. 10) e sada de ar (Fig. 11) de dimenses reduzidas, dado que os edifcios no dispunham de aquecimento ou arrefecimento nos espaos interiores. Procurava-se assim atravs de ventilao natural diferencial obter alguma ventilao e higienizao dos espaos ocupados.

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    APRESENTAOJoo Appleton

    frequncia e da intensidade de fenmenos extremos, como a precipitao elevada em perodos curtos, secas e ondas de calor. Tudo est a ser afetado por um clima em mudana.O aquecimento irreversvel. Mas isso no significa que se desista de tentar mitigar os seus efeitos Os investigadores tm vindo a alertar, entre outras medidas, para a necessidade de climatizao dos espaos pblicos, em especial para situaes de emergncia. Alm do calor, outros problemas comeam a surgir, como as concentraes perigosas de ozono de superfcie, devido ao aumento do nmero de dias quentes, conduzindo ocorrncia de mais casos de problemas respiratrios. Igualmente preocupante o risco de transmisso de patologias potenciadas por calor, humidade e m qualidade da gua.

    Reabilitao energticaAo intervir em edifcios antigos ou em edifcios existentes de construo mais recente mas que carecem de reabilitao, imperioso pensar alm doutras intervenes tambm na sua reabilitao energtica. Uma vez que os edifcios so responsveis por um tero das emisses de gases com efeito de estufa e por 40% da energia utilizada, no mais possvel, chegados a este ponto, escamotear esta realidade.A reabilitao energtica dever passar em primeiro lugar pela anlise e verificao de viabilidade de intervenes ao nvel da envolvente trmica do edifcio, envolvente opaca e vos envidraados, e em segundo lugar ao nvel da eficincia energtica dos equipamentos que eventualmente venham a integrar esse mesmo edifcio. Dado que as fachadas dos edifcios antigos incorporam em geral elementos de natureza artstica h que procurar efetuar as melhorias da envolvente atravs de intervenes pelo interior, as quais se revelam de mais fcil implementao. Devero merecer especial ateno tambm as melhorias a nvel das coberturas, as quais permitem obter resultados energticos de grande valor acrescentado.

    A convergncia para a sustentabilidadeA arquitetura e as engenharias, bem como a administrao pblica e autrquica, no podero ter uma viso estritamente focada na resoluo de problemas tcnicos e econmicos stricto sensu. Devero ter uma conscincia e atitudes mais abrangentes, promovendo a sustentabilidade nas suas mltiplas vertentes: social, econmica e ambiental.Temos ao nosso dispor, cada vez mais, uma vasta gama de tecnologias, no entanto a complexidade das suas interaes envolvem-nos quase sempre em tarefas muito complexas, obrigando-nos a efetuar vrias abordagens, ponderar mltiplas solues e operacionalizar vrias estratgias de modo a atingirmos os desgnios anteriormente propostos, satisfazendo em cada etapa os respetivos requisitos e navegando numa cadeia lgica de valores que nos faam convergir para a sustentabilidade, proporcionando desenvolvimento que assegure as necessidades presentes sem comprometer as geraes futuras.

    A implementao de solues e sistemas de climatizao dever merecer abincio uma avaliao muito cuidada, por parte do proprietrio e da equipa projetista, de modo a que fique claro para todos os intervenientes no processo qual o tipo de uso, o modo de utilizao e tambm a frequncia e horrio de funcionamento.Estes so parmetros fundamentais para selecionar um sistema que satisfaa as necessidades pretendidas e tenha uma adequada adaptabilidade ao edifcio em questo. O que no pode acontecer uma imposio cega de instalaes e sistemas sobre um edifcio que se pretende reabilitar mantendo a sua dignidade. A aplicao no controlada de solues, que ocorrem muitas vezes em situaes de maior complexidade, em especial nos edifcios de comrcio e servios, por presso dos utilizadores e do prprio mercado, com o objetivo de tentarem conseguir preos baixos, conduzem a situaes (Fig. 15 e 16) que so consideradas dignas de figurar numa galeria de horrores e a que importa por cobro.

    Fig. 15 Um logradouro no centro histrico Fig. 16 Tardoz de um edifcio de servios

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    PremissaComo nos refere Paolo Marconi, na sua obra Materia e Significato. La questione del restauro architettonico (1999, p.4), o objecto arquitectnico um organismo estrutural vivo, parte inseparvel de um organismo urbano e territorial tambm esse vivo, de ordem superior, do qual impossvel abstrairmo-nos, e que tambm est exposto, com toda a sua complexa estrutura orgnica, aos insultos do clima, da poluio, dos sismos, dos utentes, numa medida incomparavelmente superior quela dos objectos de arte e dos monumentos arqueolgicos (trad. dos autores). O momento da sua reabilitao, ou melhor, anterior sua reabilitao, pressupe a definio de uma abordagem expressa nos vrios projectos de especialidade engenharia, arquitectura, entre outras que se destinaro ao tratamento da sua estrutura e superfcies, originais e/ou posteriores. Ora, o reconhecimento prvio de potenciais programas decorativos pela conservao e restauro revela-se como um til instrumento de trabalho, orientando as opes de tais projectos, no que toca conservao (ou no) e metodologias de reabilitao a adoptar para as vrias componentes arquitectnicas e decorativas, face condio real e necessidades conservativas do edifcio para seu usufruto futuro. Recorrendo aos conceitos de figuratividade e espacialidade de Cesare Brandi erigidos em torno da obra de arte, certo tambm aqui se trata de considerar que a primeira interveno no dirigida prpria matria, mas sim ao assegurar que tais programas no en