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NÚMERO 04 - MAIO 2015 ISSN 2238-9180

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NÚMERO 04 - MAIO 2015ISSN 2238-9180

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0A RESPONSABILIDADE PELA POLUIÇÃO DO MEIO AMBIENTE POR DERRAMAMENTO DE ÓLEO AO MAR E SUA REPARAÇÃOThaís Fernanda Viana Sena FeltrimCátia Rejane Liczbinski Sarreta

LIBERDADE TESTAMENTÁRIA VERSUS SUCESSÃO FORÇADA: ANOTAÇÕES PRELIMINARES SOBRE O DIREITO SUCESSÓRIO BRASILEIROEroulths Cortiano JuniorAndré Luiz Arnt Ramos

REFUGIADOS DO BRASIL AO RIO GRANDE DO SUL: NOVOS DESAFIOS PARA A COMUNIDADE QUE ACOLHEPatricia Grazziotin NoschangRafaela Machado Cardona

ANÁLISE ECONÔMICA DO DIREITO E DECISÃO JUDICIAL: DIÁLOGO ENTRE SUB-JUÍZO DE NECESSIDADE E ARGUMENTO ECONÔMICOCláudio de Oliveira Santos ColnagoVitor Seidel Sarmento

UMA VISÃO CRÍTICA DA TRANSMISSÃO IMOBILIÁRIA PELO REGISTRO A PARTIR DOS COMPROMISSOS POLÍTICOS CONSTITUCIONAIS NO BRASILAlexandre Barbosa da Silva

COISA JULGADA E CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADEAdauto CoutoPaulo Roberto Pegoraro Junior

O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA EM KANT: CAMINHO PARA UMA HERMENÊUTICA DO DEVERKátia R. SalomãoWaldomiro Salles Svolinski Júnior

SUSTENTABILIDADE AMBIENTAL: UM PRINCÍPIO FUNDAMENTAL, UM DIREITO COLETIVO E UM PENSAR CONSCIENTE COM FIO CONDUTOR NA CONSTITUIÇÃO Cleiton Lixieski SellFátima Fagundes Barasuol Hammarströn

INFLUÊNCIA DA TÓPICA NA INTERPRETAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAISCOMO UM SISTEMA ABERTO E FLEXÍVELHewerstton Humenhuk

PRESSUPOSTOS DA PATERNIDADE SOCIOAFETIVAFranciane Dal’Boit

ATIVISMO JUDICIAL: APLICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA PROPORCIONALIDADE E DA RAZOABILIDADE OU CRIAÇÃO JURISDICIONAL DE NOVOS DIREITOSViviane Tereza PereiraCatia Rejane Liczbinski Sarreta

A EFETIVIDADE DAS POLÍTICAS PÚBLICAS NO ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE E O DIREITO À CONVIVÊNCIA FAMILIAR E COMUNITÁRIA Francielle Aparecida LavagnoliJackson Mateus Porfírio

CRITÉRIOS DE LEGITIMIDADE JURISDICIONAL NAS DIFICULDADES CONTRAMAJORITÁRIASDouglas Maranhão Marques

A LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL (LRF) E OS IMPACTOS NO DESEMPENHO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA ATRAVÉS DO CONTRATO DE GESTÃOVanderlei da Silva Sampaio

O DIREITO DE ESQUECER OU O DEVER DE SER LEMBRADO:O DIREITO AO ESQUECIMENTO COM ÊNFASE EM SUA APLICABILIDADE EM DOIS RECURSOS ESPECIAIS Karin Vanessa Schons Adam

DANO ESTÉTICO CUMULADO COM DANO MORAL: UMA NOVA PERSPECTIVANívia Cristina Oliva RichardLauren Pons da Silva Possobon

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4ª ediçãoCascavel, 2015

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2 Univel, Revista de Estudos Jurídicos e Sociais, nº 4, Maio de 2015

CONSELHO CONSULTIVOMsc. Benigno Cavalcante - UBCDr. Bruno Smolarek Dias - UNIPARDr. Clayton Reis - CESUMARDr. Doglas Cesar Lucas - UNIJUI Dr. Eroulths Cortiano Junior - UFPRDr. Francisco de Assis do Rego Monteiro Rocha Jr - Faculdades Integradas Curitiba Dr. Guilherme Massau - UCPEL/RSDr. João Hélio Ferreira Pes - UNIFRADr. Jose Laurindo de Souza Netto - UNIPARDra. Maria Cristina Gomes Dornellas - UNIRITTERDra. Patricia Grazziotin Noschang - UPFDr. Paulo Marcio da Cruz - UNIVALIDra. Raquel Fabiana Lopes Spareberger - UCPEL/RS - FURG Dra. Rosane Leal da Silva - UFSMDr. Sandro Marcelo Kozikoski - UFPR

A revista de Estudos Jurídicos e Sociais, não se responsabilizapela originalidade dos artigos apresentados, bem como pela eventual

falta de indicação do nome do autor e da origem da obra citada.

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Organizadora Dra. Cátia Rejane Liczbinski Sarreta 4ª edição

Cascavel, 2015

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4 Univel, Revista de Estudos Jurídicos e Sociais, nº 4, Maio de 2015

REVISORAMariana Lioto

EDITORA RESPONSÁVELDra. Cátia Rejane Liczbinski Sarreta

CONSELHO EDITORIAL Dr. Alessandro Severino Vallér Zeni - UNIVELMsc. Alexandre Barbosa da Silva - UNIVELDr. Alfredo Copetti - UNIVEL - UNISINOS - UNIOESTEDra. Cátia Rejane Liczbinski Sarreta - UNIVELMsc. Eduardo Felipe Tessaro - UNIVELMsc. Elizabet Leal da Silva - PUC-RSDra. Elizângela Treméa Fell - UNIOESTEMsc. Juliano Huck Murbach - UNIVELMsc. Kleber de Oliveira - UNIVELMsc. Lilian Radunz - UNIVELMsc. Leandro Petry Pedro - UNIOESTEMsc. Paulo Reneu Simões - UNIVELMsc. Paulo Roberto Pegoraro Junior - UNIVEL

IMPRESSÃO E ACABAMENTOGráfica Assoeste e Editora Ltda.(45) 3222 0380Cascavel - PR

R454 Revista de Estudos Jurídicos e Sociais. 4. ed., n.4, mai. 2015.- Cascavel: NEJUS, 2015.

Organização: Cátia Rejane Liczbinski Sarreta Revista do Núcleo de Estudos Jurídicos do curso de direito

da Faculdade de Ciências Aplicadas de Cascavel - UNIVEL

ISSN 2238 9180

1. Direito CDD 340.05

Bibliotecária - Hebe Negrão de Jimenez - CRB 101/9

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ...............................................................................07

A RESPONSABILIDADE PELA POLUIÇÃO DO MEIO AMBIENTE POR DERRAMAMENTO DE ÓLEO AO MAR E SUA REPARAÇÃO .................09Thaís Fernanda Viana Sena FeltrimCátia Rejane Liczbinski Sarreta

LIBERDADE TESTAMENTÁRIA VERSUS SUCESSÃO FORÇADA: ANOTAÇÕES PRELIMINARES SOBRE O DIREITO SUCESSÓRIO BRASILEIRO .................41Eroulths Cortiano JuniorAndré Luiz Arnt Ramos

REFUGIADOS DO BRASIL AO RIO GRANDE DO SUL: NOVOS DESAFIOS PARA A COMUNIDADE QUE ACOLHE .....................................75Patricia Grazziotin NoschangRafaela Machado Cardona

ANÁLISE ECONÔMICA DO DIREITO E DECISÃO JUDICIAL: DIÁLOGO ENTRE SUB-JUÍZO DE NECESSIDADE E ARGUMENTO ECONÔMICO .........99Cláudio de Oliveira Santos ColnagoVitor Seidel Sarmento

UMA VISÃO CRÍTICA DA TRANSMISSÃO IMOBILIÁRIA PELO REGISTRO A PARTIR DOS COMPROMISSOS POLÍTICOS CONSTITUCIONAIS NO BRASIL ..........................................................129Alexandre Barbosa da Silva

COISA JULGADA E CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE ....................................................................155Adauto CoutoPaulo Roberto Pegoraro Junior

O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA EM KANT: CAMINHO PARA UMA HERMENÊUTICA DO DEVER ...............................193Kátia R. SalomãoWaldomiro Salles Svolinski Júnior

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SUSTENTABILIDADE AMBIENTAL: UM PRINCÍPIO FUNDAMENTAL, UM DIREITO COLETIVO E UM PENSAR CONSCIENTE COM FIO CONDUTOR NA CONSTITUIÇÃO ..........................................................237Cleiton Lixieski SellFátima Fagundes Barasuol Hammarströn

INFLUÊNCIA DA TÓPICA NA INTERPRETAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAISCOMO UM SISTEMA ABERTO E FLEXÍVEL .....................265Hewerstton Humenhuk

PRESSUPOSTOS DA PATERNIDADE SOCIOAFETIVA ..............................293Franciane Dal’Boit

ATIVISMO JUDICIAL: APLICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA PROPORCIONALIDADE E DA RAZOABILIDADE OU CRIAÇÃO JURISDICIONAL DE NOVOS DIREITOS .................................................321Viviane Tereza PereiraCatia Rejane Liczbinski Sarreta

A EFETIVIDADE DAS POLÍTICAS PÚBLICAS NO ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE E O DIREITO À CONVIVÊNCIA FAMILIAR E COMUNITÁRIA .........................................361Francielle Aparecida LavagnoliJackson Mateus Porfírio

CRITÉRIOS DE LEGITIMIDADE JURISDICIONAL NAS DIFICULDADES CONTRAMAJORITÁRIAS ..............................................395Douglas Maranhão Marques

A LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL (LRF) E OS IMPACTOS NO DESEMPENHO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA ATRAVÉS DO CONTRATO DE GESTÃO ...............................................................429Vanderlei da Silva Sampaio

O DIREITO DE ESQUECER OU O DEVER DE SERLEMBRADO: O DIREITO AO ESQUECIMENTO COM ÊNFASE EM SUA APLICABILIDADE EM DOIS RECURSOS ESPECIAIS ........................449Karin Vanessa Schons Adam

DANO ESTÉTICO CUMULADO COM DANO MORAL: UMA NOVA PERSPECTIVA .................................................................481Nívia Cristina Oliva RichardLauren Pons da Silva Possobon

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APRESENTAÇÃO

Contribuir para o engrandecimento da cultura jurídica nacional e para a democratização do conhecimento é o objetivo da Revista de Estudos Jurídicos e Sociais do Curso de Direito da Faculdade de Ciên-cias Sociais Aplicadas de Cascavel - UNIVEL.

A Revista constitui-se em um importante espaço de circula-ção dos estudos e pesquisas com conteúdo crítico realizadas pelos autores, juristas renomados do Brasil, e também busca fomentar a produção no meio acadêmico.

Publicam-se artigos inéditos com temas de relevante impor-tância para o meio jurídico e social, das mais diversas abordagens teóricas e metodológicas, buscando assegurar vinculação e aderência com o eixo norteador do Curso de Direito, versando sobre a concreti-zação dos direitos fundamentais.

A quarta edição procura manter o padrão de excelência das anteriores, desenvolvendo assuntos de interesse nacional e interna-cional como: direitos humanos, direito constitucional, meio ambiente, família, refugiados, políticas públicas e outros.

Alegra-nos compartilhar essa consolidação com a participação de colaborados de várias Unidades Federativas do País que enrique-cem a cada edição a qualidade da Revista, como autores, pareceris-tas e conselho editorial.

Desejamos a todos uma boa leitura.

Paulo Roberto Pegoraro Junior Coordenador do Curso de Direito

[email protected]

Cátia Rejane Liczbinski SarretaCoordenadora da Revista

[email protected]

Luciana Gabriel ChemimCoordenadora Adjunta do Curso de Direito

[email protected]

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A RESPONSABILIDADE PELA POLUIÇÃO DO MEIO AMBIENTE POR DERRAMAMENTO DE

ÓLEO AO MAR E SUA REPARAÇÃO

THE ACCOUNTABILITY FOR THE ENVIRON-MENTAL POLLUTION BY OIL

SPILL AT SEA AND REPARATION

Thaís Fernanda Viana Sena Feltrim1

Cátia Rejane Liczbinski Sarreta2

RESUMOO presente artigo tem como propósito analisar a possibilidade de responsabilização do poluidor pelo dano ambiental ocasiona-do pelo derramamento de óleo nas águas do mar, bem como o estudo de formas de prevenção para que possa evitar ao máxi-mo a degradação ambiental e, consequentemente, a punição. Serão mencionadas as principais normas que tratam do tema, como a Constituição Federal de 1988, prosseguindo pelas infra-constitucionais, salientando os princípios norteadores do direito ambiental, dispondo sobre a problemática de atividades que, de algum modo, acarretam a referida poluição. Com a exposição de fatos concretos, busca-se a conscientização da população quanto aos reflexos danosos que o derramamento de óleo pode causar tanto à vida marinha quanto à vida humana das presen-tes e futuras gerações. Mediante o método dedutivo, identifi-

1 Acadêmica do Curso de Direito da UNIVEL – Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas de Cascavel. E-mail: [email protected] Doutora em Ciências Sociais pela UNISINOS. Graduação em Direito pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (1994), especialização em Direito Privado e mestrado em Desenvolvimento, Gestão e Cidadania pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul. Professora do quadro efetivo da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões-RS, e da UNIVEL no curso de Direito. Professora em cursos de Pós-Graduação, como da FGV. Coordenadora de Grupos de Pesquisa.

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cou-se, assim, a existência de formas de proteção, reparação e responsabilização quanto à poluição marítima.

PALAVRAS-CHAVE: Dano Ambiental, Poluição Marítima, Res-ponsabilidade, Reparação.

ABSTRACTThe following article has as a purpose to analysis the possibility of accountability of the polluter for the environmental damage caused by the oil spill at sea, as well as the study of forms of prevention to avoid the max environmental degradation, as a result, punishment. It’ll be mentioned the major laws according the subject, as well as the Federal Constitution of 1988, and moving on by infra-constitutional norms, pointing out the guiding principles of environmental law, providing upon the issue of activities that, somehow may cause the pollution. With the explanatory hard facts, it seeks the awareness of the population on the harmful effects that the oil spill can cause upon the sea life as well as the present and future generations of mankind. Through deductive methodology has been identified, therefore, the existence of protection forms, reparation and accountability for the sea pollution.

Keywords: Environmental Damage, Sea Pollution, Accountability, Reparation.

1 INTRODUÇÃO

O tema referente à responsabilidade pela poluição do meio ambiente por derramamento de óleo ao mar e sua repara-ção advém da recente e constante preocupação da sociedade e da esfera econômica com a poluição do meio ambiente. A ques-tão ambiental é um dos temas mais pertinentes da atualidade,

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uma vez que a qualidade de vida da população está totalmente agregada ao equilíbrio do meio ambiente.

A defesa ambiental é interesse da coletividade e tornou-se imprescindível diante da imensa degradação que se verifica com o passar do tempo, onde possibilita à humanidade o alcan-ce de todas as medidas que visam a impedir danos ao ambiente natural ou, não sendo possível apenas prevenir, aplicar as devi-das responsabilidades com o fito de sempre buscar o equilíbrio do meio ambiente.

Quando se trata de ambiente marinho, percebe-se que são diversas as formas de poluição ao mar, entretanto, a degra-dação por óleo é um tipo de poluição ambiental extremamente difícil de ser contida; é tóxica, torna a água contaminada, mata os animais marinhos, consequentemente, prejudica a popula-ção litorânea. Dessa forma, aponta-se a importância de nor-mas e atitudes que possam prevenir essa catástrofe, que é a poluição do mar por óleo, reparar o dano quando suceder, mas também a efetiva responsabilização daqueles que provocam de alguma forma essa poluição.

Diante da comprovação da importância do tema para a coletividade, faz-se necessária a verificação da responsabilidade civil no âmbito ambiental, como promissor instrumento de inde-nização e proteção do meio. A problemática deste estudo tem como ponto principal discutir se o instituto da responsabilidade civil prevista na legislação e as diversas normas de Direito Am-biental garante a reparação integral do dano.

Para tanto, utiliza-se das normas contidas no ordena-mento jurídico brasileiro, mas sem deixar de apreciar a legislação comparada, a fim de melhor elucidar as questões pertinentes.

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No primeiro tópico, será realizada a exposição da tutela

ambiental e, posteriormente, será abordado sobre o meio am-

biente marinho.

No segundo, será tratado sobre a poluição do meio am-

biente marinho por óleo.

Cabe ao terceiro tópico analisar a responsabilidade civil

pelo dano ambiental, a reparação, controle e o acesso ao meio

ambiente equilibrado e sadio e, por fim, trazer algumas conside-

rações sobre a problemática tratada neste estudo, analisando os

meios de responsabilização e a reparação do dano.

2 A TUTELA AMBIENTAL

O desenvolvimento econômico e a transformação no

consumo fez surgir um novo aspecto no âmbito jurídico, o qual

precisou passar por uma necessária adaptação e evolução para

estabelecer uma ordem e controlar os efeitos nas relações so-

ciais entre o fator econômico e o meio ambiente. Todavia, sabe-

se que toda medida de adaptação a novas mudanças na socie-

dade, por mais que eficazes, ainda não impedem que aconte-

çam fatos lamentáveis contra a natureza, tornando-se um grave

problema que se manifesta nos cenários da humanidade por

meio de ações visíveis, que são logo constatados juntamente

com a ordem jurídica.

O aumento da pressão sobre os recursos natu-rais, relacionado também com o acelerado cresci-mento demográfico do último século, chamaram a atenção da comunidade internacional. Países com avançado estágio de desenvolvimento econômico

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passaram a testemunhar com frequência desas-tres ambientais em seus próprios territórios. Con-juntamente a este fator, o desenvolvimento cien-tífico, principalmente no último século, começou a confirmar hipóteses desoladoras como o buraco na camada de ozônio e o efeito estufa, por exem-plo (SAMPAIO, 2014. p. 5).

A Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambien-te Humano, realizada em 1972 em Estocolmo, foi a primeira a tratar do meio ambiente, sendo considerado um marco históri-co quanto à questão sobre preocupação com a proteção am-biental. No Brasil, diante da resistência que se tinha em aderir compromisso oriundo da Declaração de Estocolmo, a delegação brasileira visava defender o máximo do desenvolvimento eco-nômico possível, deixando de lado a tutela autônoma do meio ambiente e, consequentemente, qualquer tentativa de introduzir novas ideias sobre a proteção dos recursos naturais.

Apesar da resistência da delegação brasileira – que à época defendia irrestrito direito ao desen-volvimento, alegando que a pobreza seria a maior causa de degradação ambiental – os conceitos e princípios da Declaração de Estocolmo vão sendo paulatinamente internalizados pelo ordenamento jurídico pátrio. Sensível às pressões internacio-nais, o Brasil cria a Secretaria Nacional do Meio Ambiente (SEMA) em 1973 (Decreto n.73.030, de 30 de outubro) e aprova a Lei da Política Na-cional do Meio Ambiente (Lei n. 6.938/81) (SAM-PAIO, 2014, p. 5).

Com a Constituição Federal do Brasil de 1988, foi rea-lizada imensa evolução quanto aos assuntos relacionados ao meio ambiente, o que será devidamente exposto mais adiante.

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Após a Lei Maior, mais precisamente no ano de 1992, os entes internacionais aprovam a Declaração do Rio de Janeiro, trazen-do a reiteração e aperfeiçoamento da Declaração de Estocolmo, além de visar novos princípios ambientais em diversos assuntos. Assim, nesta época, já se tinham previsões jurídicas visando à tutela do meio ambiente e, portanto, apresentando evidente crescimento do Direito Ambiental interno. Logo, atenção à ne-cessidade de organizar a sociedade e a utilização de seus recur-sos ambientais, destaca-se o surgimento da tutela ambiental, como forma de nortear as relações do homem e os recursos naturais que o envolvem.

Portanto, para que seja alcançada a tutela ambiental, que é necessária à garantia da conservação dos recursos exis-tentes na natureza, esta enseja deveres por toda a sociedade, e não somente do Poder Público. José Rubens Morato Leite e Patryck Ayala sintetizam a importância do tema para melhor dis-por sua aplicação:

[...] (b) o meio ambiente, ecologicamente equi-librado, é um macrobem unitário e integrado. Considerando-o macrobem, tem-se que é um bem incorpóreo e imaterial, com uma configura-ção também de microbem; (c) o meio ambiente é um bem de uso comum do povo. Trata-se de um bem jurídico autônomo de interesse publico; e (d) o meio ambiente é um direito fundamental do homem, considerado de quarta geração, ne-cessitando, para sua consecução, da participação e responsabilidade partilhada do Estado e da co-letividade. Trata-se, de fato, de um direito funda-mental intergeracional, intercomunitário, incluindo a adoção de uma política. (2010, p. 91).

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Com o destaque da proteção ambiental, surge também

um conjunto de princípios, em que prevalecem os princípios da

Prevenção, Precaução, Poluidor-Pagador, além de normas espe-

cíficas com intuito de possibilitar um relacionamento equilibra-

do, entre a coletividade e a natureza, regulando o exercício de

atividades que, de certo modo, possam afetar a saúde do meio

ambiente. Destarte, como é possível vislumbrar, aos poucos foi

aumentando a preocupação com o meio ambiente sadio e, hoje,

é possível afirmar que despertou a consciência humana da im-

portância que é preservar nosso ambiente natural.

A problemática da crise ambiental deve ser anali-sada em função das gerações presentes e futuras, na ótica de que o planeta e a humanidade são indissociáveis, relacionando-os com as desigual-dades sociais, com a falta de equidade, pois a justiça das relações sociais acaba gerando a in-justiça das relações com a natureza. Percebe-se que a tentativa de solucionar ou, pelo menos, de diminuir a degradação ambiental implica rever as práticas ou a ordem econômica. Nesse sentido, a crise ambiental distingue-se dos demais pro-blemas que afligem a humanidade, necessitando de cooperação e solidariedade entre as nações para a busca de alternativas conjuntas (SARRETA, 2007, p. 42).

Assim, durante muito tempo, diversas foram as agressões

ao meio ambiente. A atividade humana acarretava, de certa for-

ma, alguma consequência sobre o ecossistema, mas a concen-

tração desses efeitos com o acelerado e inevitável desenvolvi-

mento tecnológico, vem ocasionar prejuízos visíveis à natureza,

onde predomina, na maioria dos casos, a irreversibilidade.

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2.1 O meio ambiente marinho

O meio ambiente marinho é caracterizado pelos ocea-nos, mares e os complexos das zonas costeiras, onde neces-sita ser analisado, tanto em relação aos seus recursos vivos, quanto aos não-vivos. Formam um conjunto que é componente primordial do meio que possibilita a existência da vida no pla-neta Terra, bem como é uma riqueza propícia ao desenvolvi-mento sustentável.

No Brasil, quando se trata de proteção e preservação do meio ambiente marinho, a legislação aderiu a algumas convenções internacionais que visam regulamentar a matéria referente aos di-versos meios de degradação. Nesse sentido, cita-se a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CDUDM III, Montego Bay, Jamaica, 1982), convenção que relaciona importantes dispo-sitivos e conceitos relativos à proteção do meio ambiente marinho, que foram recepcionados por quase todos os Estados signatários. De acordo com esta Convenção, mais precisamente no seu artigo 1°, número 4, a poluição do meio marinho significa:

A introdução pelo homem, direta ou indireta-mente, de substâncias ou de energia no meio marinho, incluindo os estuários, sempre que a mesma provoque ou possa vir provocar efeitos nocivos, tais como danos aos recursos vivos e à vida marinha, riscos à saúde do homem, entra-ve às atividades marítimas, incluindo a pesca e as outras utilizações legítimas do mar, alteração da qualidade da água do mar, no que se refere à sua utilização, e deterioração dos locais de recreio.

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Em junho de 1972, a Conferência das Nações Unidas de

Estocolmo sobre o Meio Ambiente manifestou grande preocupa-

ção com a proteção às águas marinhas e orientou os Estados

no dever de salvaguardar esse bem tão primordial. Menciona-

se, também, a Convenção Internacional sobre Responsabilidade

Civil por Danos Causados por Poluição por Óleo de 1969, que

dispõe que os Estados Partes:

Conscientes dos riscos de poluição criados pelo transporte Marítimo Internacional de óleo a granel, Convencidos da necessidade de garan-tir uma indenização adequada às pessoas que venham a sofrer danos causados por poluição resultante de fugas ou descargas de óleo prove-niente de navios.

A Conferência da ONU sobre o Meio Ambiente e o Desen-

volvimento, a Rio-92, confeccionou um importante documen-

to chamado Agenda 21, que prevê diretrizes e recomendações

para que sejam resguardados os ambientes marinhos, a fim de

alcançar o uso consciente desse meio e o fortalecimento dos

recursos vivos, visando o desenvolvimento sustentável.

Com base nas convenções internacionais e nos impactos

ambientais, o Brasil formulou normas sobre Direito Ambiental,

como a Lei n° 9.605 de 1998, que trata dos Crimes Ambien-

tais, bem como a Lei n° 9.966 de 2000, que dispõe sobre a

prevenção, o controle e a fiscalização da poluição causada por

lançamento de óleo e outras substâncias nocivas ou perigosas

em água sob jurisdição nacional. Assim, ressalta-se que a tutela

ao meio ambiente marinho se dá tanto na legislação brasileira

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quanto nas normas de Direito Internacional.3

No que tange à regulamentação específica prevista em nosso sistema, a Lei do Óleo é um exemplo, a qual foi proferida em atenção a ajustes internacionais e concretizada pelo Decreto nº 4.136 de 2002:

Dispõe sobre a especificação das sanções aplicá-veis às infrações às regras de prevenção, controle e fiscalização da poluição causada por lançamen-to de óleo e outras substancias nocivas ou perigo-sas em água sob jurisdição nacional, prevista na Lei nº 9.966, de 28 de abril de 2000.

Em tal lei, é contemplada a prevenção e controle da po-luição ocasionada por derramamento de óleo e outras substân-cias tóxicas em águas nacionais, devendo ser observadas junta-mente com seus princípios básicos na medida em que ocorre-rem as transações nos portos, embarcações que adentram ao país e instalações portuárias, entre outras medidas para que, ao fim, não ocorra qualquer dano em águas sob jurisdição do-méstica. Dessa forma, a poluição advinda de atividades maríti-mas é fiscalizada por órgãos como a Agência Nacional de Vigi-lância Sanitária e por aqueles integrantes do Sistema Nacional do Meio Ambiente.

Cabe destacar, por oportuno, que a Lei nº 5.357 de 1967 tratou sobre poluição marinha, estabelecendo penalida-des para as embarcações marítimas e fluviais que se utilizas-

3 O Direito Internacional Marítimo tem como estrutura extensa gama de tratados e convenções que abordam o assunto. A legislação internacional direcionada à prevenção da poluição por derramamento do óleo prevê os limites de cada país em casos de desastres em alto mar. Quando se fala em alto-mar, considera-se como todas as partes do mar que não fazem parte do mar territorial e da zona econômica. Caracteriza-se pela impossibilidade de apropriação, tendo em vista que se trata de bem comum da humanidade, sendo um espaço onde todos os Estados possuem os mesmos direitos. Dessa forma, a proteção e responsabilidade em caso de degradação por óleo em águas internacionais devem ser tratadas sob a égide do Direito Internacional, o qual não será especificamente abordado no presente estudo.

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sem do lançamento de detritos ou óleos em águas nacionais. O artigo 1° da Lei estabelece que “o delito consuma-se no momento em que as embarcações ou terminais marítimos ou fluviais lançarem detritos ou óleo no litoral brasileiro”. No en-tanto, no ano de 2000, o referido dispositivo foi revogado pela Lei nº 9.966, que “dispõe sobre a prevenção, o controle e a fiscalização da poluição causada por lançamento de óleo e ou-tras substancias nocivas ou perigosas em águas sob jurisdição nacional”, estabelecendo sanções administrativas específicas de caráter mais gravosas quanto ao despejo de substâncias degradantes ao ambiente marinho.

Neste dispositivo são estabelecidos princípios básicos e relevantes a serem aplicados quando se tratar de movimenta-ção de óleo e outras substâncias nocivas no âmbito nacional, o qual é empregado nas hipóteses de não haver presentes os pressupostos para a aplicação de normas mais específicas ou especiais, como por exemplo, a Convenção Internacional para a Prevenção da Poluição Causada por Navios (Marpol 73/78).

Há muitos dispositivos que tratam, de alguma forma, so-bre o meio ambiente marinho. A prevenção e reparação do dano ecológico é matéria de vasta complexidade pela magnitude de relações que envolvem e, numa dimensão histórica, destaca a evolução do Direito Ambiental sobre a questão. Assim, cabe a cada Estado definir o que é poluição marítima e regulamentar as formas de prevenção, reparação e punição quanto ao derra-mamento de óleo ao mar, bem como explicitar as medidas de responsabilidade pelo dano.

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3 A RESPONSABILIDADE CIVIL PELO DANO AMBIENTAL

Verificado a importância da prevenção de acidentes nas águas marítimas e a reparação dos danos, quando inevitáveis, faz-se necessário discutir acerca do instituto da responsabilida-de, em particular a responsabilidade civil. O ordenamento jurí-dico brasileiro dispõe de vasta legislação que prevê as medidas que devem ser tomadas no caso de danos causados ao meio ambiente marinho, incluindo dispositivos referentes a Tratados e Convenções Internacionais.

Quando se trata do meio ambiente marinho, percebe-se que são diversos os meios de poluição, como já lucidado, bem como os resultados que acarretam. Sabe-se que, ao ultrapassar os limites julgados socialmente suportáveis quanto ao dano ao mar, faz-se essencial que ocorra a responsabilização do agente causador do ato lesivo, seja por suas condutas ativas, seja por condutas omissivas. Não obstante, para que a responsabilização ocorra, impõe-se a concepção de uma responsabilidade espe-cial, que leve em conta a complexidade do bem protegido. Com a Lei n. 6.938 de 1981, que constituiu a Política Nacional do Meio Ambiente, pode-se ressaltar que um de seus objetivos é “à imposição, ao poluidor e ao predador, da obrigação de recuperar e/ou indenizar os danos causados e, ao usuário, da contribuição pela utilização de recursos ambientais com fins econômicos”.

Assim, evidenciam-se, dentre os importantes aspectos aplicáveis ao referido tema no cenário jurídico atual, algumas ob-servações sobre a importância da responsabilidade civil por dano ambiental e o grande desafio que é aplicá-lo ao poluidor marinho.4

4 Quanto ao instituto da responsabilidade no âmbito ambiental, tem-se o que a doutrina pátria classifica como tríplice responsabilidade, uma vez incidente sobre aqueles que causam o dano ao meio ambiente, sendo tal reparação correspondente a três tipos: civil, penal e administrativa.

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Todavia, além da verificação do dano, é preciso constatar a existência do nexo de causalidade entre a conduta praticada pelo agente e o resultado danoso produzido. É essencial que o dano tenha sido causado em virtude de ação ou omissão do agente, mesmo não sendo necessária a percepção de sua in-tenção. Com isso, denota-se que a questão de aplicação da responsabilidade por dano ambiental marinho apresenta alguns elementos complexos, como é o caso de se estabelecer o nexo de causalidade entre o dano e o causador dele, bem como a aplicação da teoria do risco integral para fatos envolvendo o meio ambiente. Essas e algumas outras questões serão abor-dadas a seguir.

Realizadas as considerações preliminares, cabe destacar o seguinte entendimento que diz respeito à definição de respon-sabilidade:

Mais aproximada de uma definição de respon-sabilidade é a ideia de obrigação [...]. Digamos, então, que responsável, responsabilidade, assim como enfim, todos os vocábulos cognados, expri-mem a ideia de equivalência de contraprestação, de correspondência. É possível, diante disso, fixar uma noção, sem dúvida ainda imperfeita, de res-ponsabilidade, no sentido de repercussão obriga-cional (não interessa investigar a repercussão inó-cua) da atividade do homem. A responsabilidade não é fenômeno exclusivo da vida jurídica, antes se liga a todos os domínios da vida social (STOCO, 2001, p. 90).

A responsabilidade civil é um instrumento essencial para que seja realizada a intervenção jurídica na vida em sociedade. No que tange o envolvimento com o dano ambiental, cabe as-

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severar que essa disciplina tem caráter especial por algumas questões relevantes. Para melhor compreensão, cabe trazer à baila o seguinte ensinamento:

Quatro ordens de dificuldades precisam ser men-cionadas, todas, em certa medida, requisitando a composição de uma disciplina especial para o dano ambiental: a) a difícil identificação dos su-jeitos da relação jurídica obrigacional, pois a “do-bradinha” autor-vítima quase nunca aparece com seus contornos bem definidos (atuação coletiva e vitimização também coletiva, com a consequente fragmentação de responsabilidades e titularida-de), na medida em que estamos diante de rela-ções jurídicas poligonais e multilaterais, próprias da sociedade pós-industrial; b) a exigência de caracterização da culpa do degradador, naqueles sistemas que ainda exigem (não é o caso brasilei-ro, após a promulgação da Lei n. 6.938/81 e da Constituição Federal de 1988 [...]; c) a complexi-dade do nexo causal; d) o caráter fluido e esqui-vo do dano ambiental em si mesmo considerado (BENJAMIN, 1998, p. 85).

No ordenamento jurídico brasileiro, a responsabilidade civil encontra previsão legal no art. 927, caput, do Código Civil Brasileiro de 2002: “aquele que, por ato ilícito causar dano a outrem fica obrigado a repará-lo”. Dispõe o parágrafo único que: “haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem”.

Ademais, no capítulo referente aos atos ilícitos, o Código Civil também dispõe:

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Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão volun-tária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifesta-mente os limites impostos pelo seu fim econômi-co ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

Primeiramente, é preciso destacar que o instituto da responsabilidade civil, por lógico, tem algumas funções a de-sempenhar:

Em linha geral, são considerados objetivos da res-ponsabilidade civil: a) compensação das vítimas; b) prevenção de acidentes; c) minimização dos custos administrativos do sistema; d) retribuição (BENJAMIN, 1998, p. 87).

Tendo em vista tais objetivos, a legislação brasileira define que a responsabilidade pelos danos causados ao meio ambiente é objetiva, ou seja, é fundada no simples fato da atividade lesiva ou risco de gerar algum dano ao meio ambiente. Basta a demons-tração do dano e o nexo de causalidade, assim, gera a reparação, independentemente de comprovar a culpa do agente.

A responsabilidade objetiva ambiental significa que quem danificar o ambiente tem o dever jurí-dico de repará-lo. Presente, pois, o binômio dano/reparação. Não se pergunta a razão da degrada-ção para que haja o dever de indenizar e/ou repa-rar (MACHADO, 2010, p. 361).

Insta salientar que a teoria da responsabilidade subjeti-va mostrou-se insuficiente pela dificuldade em conseguir pro-

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var a culpa do agente poluidor. Com a evolução da sociedade, buscou-se, também, a evolução da responsabilidade ambiental, que na forma subjetiva a imputação da responsabilidade en-contrava-se totalmente distorcida da realidade moderna. Dessa forma, o ordenamento jurídico brasileiro adotou normas espe-cíficas com relação à responsabilidade civil ambiental. Assim, o ilícito ambiental está previsto na Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/81), que dispõe da responsabilidade objetiva, adotando a teoria do risco integral, estabelece no seu art. 14 § 1º:

Sem obstar a aplicação das penalidades previs-tas neste artigo, é o poluidor obrigado, indepen-dentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambien-te e a terceiros, afetados por sua atividade. O Ministério Público da União e dos Estados terá legitimidade para propor ação de responsabilida-de civil e criminal, por danos causados ao meio ambiente.

A referida Lei, instituidora da Política Nacional do Meio Ambiente, trouxe à baila a aplicação da responsabilidade ob-jetiva em matéria ambiental, sendo que o advento posterior da Constituição Federal de 1988 confirmou sua importância.

A responsabilidade civil independe, pois, da exis-tência de culpa e se funda na ideia de que a pessoa que cria o risco deve reparar os danos ad-vindos de seu empreendimento. Basta, portanto, a prova da ação ou da omissão do réu, do dano e da relação de causalidade (GONÇALVES, 2011, p. 118).

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Posteriormente, a Constituição Federal de 1988 dispôs, em seu art. 225, parágrafo 3º:

As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão aos infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e adminis-trativas, independentemente da obrigação de re-parar os danos causados.

Com efeito, o artigo constitucional supracitado determina que todas as atividades lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas e jurídicas, a sanções penais e admi-nistrativas, independentemente da obrigação de haver a repara-ção do dano causado.

A aplicabilidade da responsabilidade civil objetiva no âm-bito ambiental pode ser verificada pela doutrina e na jurispru-dência, a fim de resguardar e proteger o meio ambiente de for-ma mais eficiente. Nesse ponto, destaca-se o recente julgado do STJ:

DIREITO AMBIENTAL E PROCESSUAL CIVIL. DANO AMBIENTAL. LUCROS CESSANTES AMBIENTAL. RESPONSABILIDADE OBJETIVA INTEGRAL. DILA-ÇÃO PROBATÓRIA. INVERSÃO DO ÔNUS PROBA-TÓRIO. CABIMENTO. 1. A legislação de regência e os princípios jurídicos que devem nortear o racio-cínio jurídico do julgador para a solução da lide en-contram-se insculpidos não no códice civilista bra-sileiro, mas sim no art. 225, § 3º, da CF e na Lei 6.938/81, art. 14, § 1º, que adotou a teoria do risco integral, impondo ao poluidor ambiental res-ponsabilidade objetiva integral. Isso implica o de-ver de reparar independentemente de a poluição causada ter-se dado em decorrência de ato ilícito ou não, não incidindo, nessa situação, nenhuma excludente de responsabilidade. Precedentes. 2.

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Demandas ambientais, tendo em vista respeita-rem bem público de titularidade difusa, cujo direi-to ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é de natureza indisponível, com incidência de res-ponsabilidade civil integral objetiva, implicam uma atuação jurisdicional de extrema complexidade. 3. O Tribunal local, em face da complexidade proba-tória que envolve demanda ambiental, como é o caso, e diante da hipossuficiência técnica e finan-ceira do autor, entendeu pela inversão do ônus da prova. Cabimento. 4. A agravante, em seu arra-zoado, não deduz argumentação jurídica nova al-guma capaz de modificar a decisão ora agravada, que se mantém, na íntegra, por seus próprios fun-damentos. 5. Agravo regimental não provido. (STJ - AgRg no REsp: 1412664 SP 2011/0305364-9, Relator: Ministro RAUL ARAÚJO, Data de Julga-mento: 11/02/2014, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 11/03/2014).

Assim, como elucidado, a responsabilidade objetiva é

aplicada nos casos de dano ambiental de modo que o agente

fica obrigado a reparar ou indenizar o dano, independentemente

de culpa ou dolo, ou seja, é preciso apenas que se verifique a

ação ou omissão do agente poluidor, o dano e o nexo causal

entre ambos, sem ao menos questionar sobre a licitude ou não

do ato. No que tange à incidência de mais de um causador do

dano, a responsabilidade civil se dará de forma solidária, previs-

ta pelo art. 942, caput, do Código Civil Brasileiro, como tem se

verificado em diversos julgados o caso da responsabilização do

transportador da carga que poluiu o ambiente marinho solida-

riamente com o Estado. Também, pode estender aos sócios de

pessoa jurídica causador do ato, o dever de reparar, bem como

ao Estado em casos de omissão do dever de fiscalizar:

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Segundo entendemos, o Estado também pode ser solidariamente responsabilizado pelos danos am-bientais provocados por terceiros, já que é s3eu dever fiscalizar e impedir que tais danos aconte-çam. Esta posição mais se reforça com a cláusula constitucional que impôs ao Poder Público o de-ver de defender o meio ambiente e de preservá-lo para as presentes e futuras gerações (MILARÉ, 2010, p. 966).

Isso posto, colaciona-se o seguinte entendimento de for-ma exemplificativa:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. DANO AMBIENTAL. TERMO DE AJUSTAMENTO DE CONDUTA. CO-DE-VEDORES. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA por. Na responsabilização danos a interesses difusos, prevalece o princípio da solidariedade entre os de-vedores. Assim, os altos custos da recomposição ambiental são cobrados de qualquer dos co-res-ponsáveis, que, por via de regresso, poderão dis-cutir entre si a distribuição mais equitativa da res-ponsabilidade (TJ-MG - AI: 10647120111628001 MG , Relator: Antônio Sérvulo, Data de Julgamen-to: 11/06/2013, Câmaras Cíveis / 6ª CÂMARA CÍ-VEL, Data de Publicação: 21/06/2013).

Assim, por todo o exposto, o poluidor é obrigado, inde-pendentemente da comprovação de culpa, a reparar ou indeni-zar pela degradação causada ao meio ambiente, bem como a terceiros envolvidos e, dependendo do caso concreto, aplicar a responsabilidade, de forma solidária, a todos os envolvidos na contribuição do dano ambiental. Havendo a condenação pecu-niária, deve-se aplicar um montante que leve ao desestímulo, com função compensatória à coletividade e punitiva ao poluidor, com o intuito de que se evitem novas degradações.

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A destinação do montante indenizatório deverá ser envia-da a fundo específico para abrigar valores oriundos dessa natu-reza, o qual será destinado à reparação do dano ocasionado. To-davia, quando a responsabilização envolver direitos individuais, tais valores pagos a título de indenização não serão enviados ao fundo, mas sim aos indivíduos que tiveram o prejuízo com a poluição, como por exemplo, aquele que mantém atividade econômica de pesca e necessita desse meio para a sobrevivên-cia, porém, tem seu labor paralisado em virtude de um acidente com navio carregado com hidrocarboneto, onde o derramamen-to dessa substância poluiu o ambiente marinho.

Na doutrina moderna, assim como na jurisprudência pá-tria, pode-se verificar cada vez mais posições favoráveis no que se refere à Teoria do Risco Integral. Segundo ela, apenas exi-ge-se a observância do dano e do nexo causal, ou seja, estão excluídas para a análise do caso a culpa exclusiva da vítima, fato de terceiro, caso fortuito ou força maior.

Diante dessa teoria, o poluidor assume todo o risco que sua conduta acarreta, sendo o nexo de causalidade o fator que permite a responsabilização/obrigação de indenizar.

3.1 A reparação, controle e o direito ao meio ambiente equilibrado e sadio

Em se tratando de poluição ao meio ambiente marinho, percebe-se que há uma série de regras e obrigações a serem observadas. Na legislação ordinária, é possível constatar que um dos princípios da Política Nacional de Meio Ambiente é a ação governamental que visa continuidade do equilíbrio ecológi-

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co, considerando o caráter de bem comum de toda a sociedade. Consta, como um dos objetivos dessa política, a estipula-

ção do poluidor e do predador, assim como o dever de indenizar ou restituir os danos causados ao ambiente. Portanto, a repara-ção civil dos danos ambientais pode compor-se em indenização pelos danos, reais ou presumidos, ou mesmo na recuperação do dano, caso seja possível. Veja-se o seguinte julgado, cuja ementa se passa a transcrever:

AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DANO AMBIENTAL. RES-PONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA. POSSIBILIDA-DE DE CUMULAÇÃO. RECUPERAÇÃO DA ÁREA DEGRADADA E COMPENSAÇÃO PELOS DANOS AMBIENTAIS. PRIMAZIA DA RECUPERAÇÃO. AS-PECTOS PATRIMONIAIS E EXTRAPATRIMONIAIS DO DANO AMBIENTAL. PRINCÍPIO DO POLUIDOR--PAGADOR E REPARAÇÃO INTEGRAL. 1 - Cinge-se a controvérsia à possibilidade de cumulação de condenação à reparação da área degradada e à compensação dos danos ambientais. 2 - A recu-peração ambiental é medida que melhor atende à conservação do equilíbrio ecológico, teleologia das normas ambientais, razão porque deve ser buscada, em primazia. 3 - A par disso, deve-se ter em conta que o dano ambiental apresenta múlti-plas facetas. Além dos danos patrimoniais, há que se considerar os extrapatrimoniais. Em verdade, todos os efeitos provenientes da atividade lesiva devem ser objeto de reparação, pelo que à recu-peração do ambiente degradado deve se somar a compensação dos danos ambientais, cuja impor-tância, para além da reparação dos danos extra-patrimoniais, é verificada em sua finalidade pe-dagógica e preventiva. 4 - A reparação almejada deve ser integral, deve compreender todos os as-pectos do dano ambiental, entendimento este que melhor se alinha ao princípio do poluidor-pagador, a partir do qual se tem que o responsável pela

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degradação deve internalizar todos os custos com a prevenção e a reparação dos danos ambientais. 5 - Os pedidos de condenação em obrigações de fazer e de indenização podem ser cumulados, sendo diverso o fundamento para cada um deles. O pedido de obrigação de fazer cuida da reparação in natura do dano ecológico puro e a indenização visa a ressarcir os danos extrapatrimoniais. 6 - É possível a cumulação do dever de reparar com o dever de indenizar, sendo que este último não se coloca, no caso concreto, como solução substitu-tiva à reparação, o que somente se admitiria na hipótese de impossibilidade de reconstituição do bem ambiental, mas sim como complemento à reparação necessária, a fim de que essa alcance as diversas faces do dano ambiental. 7 - Apelação provida (TRF-2 - AC: 200251130004929 , Re-lator: Desembargador Federal ALUISIO GONÇAL-VES DE CASTRO MENDES, Data de Julgamento: 30/04/2013, QUINTA TURMA ESPECIALIZADA, Data de Publicação: 10/05/2013).

Como visto, a reparação do meio ambiente, uma vez ocorrido o dano, deve ser priorizada com o propósito de recons-tituição e reintegração do bem natural. Nesse viés, busca-se, sempre que possível, a recomposição do meio ambiente com o intuito de fazê-lo retornar ao que era antes da degradação. Assim, percebe-se que, em diversos dispositivos legais que tra-tam de meio ambiente, há sempre, primeiramente, a intenção de reparar os danos sofridos e, caso não seja possível, como já aduzido anteriormente, a luz do inciso VII do artigo 4° da Lei n. 6.938/81, haverá o dever de indenizar.

Portanto, nosso sistema jurídico estabelece que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, sen-do que as medidas preventivas de danos ambiental são primor-

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diais, uma vez que o meio ambiente é um bem comum de todos e à disposição para a sua fruição, mas sempre com modera-ção no uso dos recursos naturais. O dever de protegê-lo, desse modo, é, sob a ótica do Direito Ambiental, de toda a coletividade mediante os instrumentos jurídicos apropriados para tanto.

3.2 Os meios de responsabilização e a reparação do dano

Com o presente trabalho, foi possível verificar o instituto da responsabilidade no âmbito civil no que tange à poluição no ambiente marinho devido ao derramamento de óleo ao mar. Nes-te ponto, sabe-se que a responsabilização civil é um promissor mecanismo de proteção do meio ambiente, bem como é eviden-te que, em casos de dano, tal instrumento deve ser buscado.

Levando em consideração a difícil reparação do dano am-biental, em que muitas vezes o meio não volta ao status a quo, pode-se verificar que a aplicação dos princípios ambientais é fundamental, não somente para tentar se obter a reparação do dano, mas, de certa forma, pelo dever do poluidor em evitar que futuramente ocorram eventos parecidos e lesivos ao ambien-te natural, tendo em vista que acidentes podem acontecer em qualquer atividade desenvolvida. Para tanto, busca-se a cons-ciência dos agentes econômicos no investimento de formas me-nos perigosas e arriscadas para a desenvoltura de suas funções.

Assim sendo, por vigorar, em nosso ordenamento jurídi-co, o princípio do Poluidor-Pagador, quando tratar-se de respon-sabilidade civil pelo dano ambiental, tem-se que é obrigado o poluidor restituir e restaurar pela degradação que causou, sendo necessário suportar os encargos resultantes da poluição e as

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consequências para terceiros, quando realizado tanto de forma direta, quanto indireta, sobre os recursos naturais. Nesse senti-do, prevê o inciso VII do artigo 4° da Lei 6.938/81:

Art. 4º. A Política Nacional do Meio Ambiente visará:[...]VII. à imposição, ao poluidor e ao predador, da obrigação de recuperar e/ou indenizar os danos causados e, ao usuário, da contribuição pela uti-lização de recursos ambientais com fins econô-micos.

Dessa maneira, não se observa se o causador do dano ao meio ambiente agiu de plena consciência ou não no momen-to do fato lesivo. A conduta do poluidor, mesmo sendo lícita, não o isenta de reparação e prevenção.

Isso posto, pode-se concluir que a indenização estipula-da ao poluidor não se relaciona especificamente à imediata re-paração do dano, como já aludido, mas também a uma atuação preventiva para se alcançar a maior defesa do meio ambiente possível. É importante destacar que as técnicas de proteção am-biental, tais como de planejamentos, de administração e de po-der econômico, precisam e devem ser interligadas entre si, fun-cionando de maneira conjunta, da responsabilidade civil, penal e administrativa, uma vez que a utilização do Direito Ambiental, tão somente de uma responsabilidade pecuniária, não resolverá as questões ambientais existentes.

Assim, nota-se que a aplicação da responsabilidade civil,

convertendo os prejuízos em reparação e forçando o poluidor a incumbir com os custos, deve ser realizada quando os outros meios supracitados tornaram-se insuficientes. Neste ínterim, o

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Direito Ambiental necessita buscar, primeiramente, pela preven-ção do dano.

AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DANO AMBIENTAL. RECU-PERAÇÃO DA ÁREA DEGRADADA. CUMULAÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER E DE PAGAR. DESCABI-MENTO. 1. Apesar de possível em alguns casos a cumulação das obrigações de fazer (ou não fazer) e de pagar, há que se analisar o caso concreto. 2. A reparação do dano ambiental deve ser, além de integral, efetiva e direta do bem prejudicado. Pri-ma-se, desse modo, pela reconstituição do bem ambiental, convertendo-se tal obrigação de fazer em prestação pecuniária somente na impossibili-dade de retorno da situação das coisas ao estado anterior ao dano. 3. Caso em que é possível a recuperação plena da área, não se tratando de dano irrecuperável. Não se faz necessária a cumu-lação de obrigação de fazer e de pagar, devendo ser imposta somente a obrigação de efetuar a ple-na recuperação da área degradada. 4. Apelações improvidas (TRF-5 - AC: 200581000204449, Re-lator: Desembargador Federal Élio Wanderley de Siqueira Filho, Data de Julgamento: 20/08/2013, Terceira Turma, Data de Publicação: 26/08/2013).

Conforme exposto, deve-se tentar a reconstituição ou re-cuperação do meio ambiente lesado, não podendo deixar de tomar todas as providências para o alcance da restituição do bem, mas nada impede que, não havendo possibilidade de re-composição, seja aplicada a indenização em dinheiro.

Outra questão diz respeito ao fato de que a responsabili-dade civil ambiental fica sempre aquém do almejado, já que em muitos casos a indenização estipulada tende a não se equivaler ao dano causado e, portanto, fica evidente que a sua aplicação não basta para, sozinha, proteger o meio ambiente. Consequen-

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temente, tal instituto, no momento em que abrange a questão financeira do poluidor, faz refletir a essência do Princípio da Pre-caução, ou seja, prevenir o acontecimento de causas que de-gradam o meio ambiente passa a ser, financeiramente, menos oneroso do que reparar.

Portanto, as medidas preventivas são primordiais, mas os danos eventualmente ocorridos ao meio ambiente marinho devem ser objeto de reparação indenizatória e recuperação do mesmo, ainda que já impostas medidas de caráter administra-tivo ou criminal. Nesse liame, mister trazer a seguinte decisão:

AMBIENTAL E CONSTITUCIONAL DERRAMAMEN-TO DE ÓLEO PESADO EM ÁGUAS MARINHAS POR NAVIO ANCORADO NO PORTO DE SANTOS. DANO INQUESTIONÁVEL E SIGNIFICATIVO, EMBORA IM-POSSÍVEL AVERIGUAR SUA EXATA EXTENSÃO. CABIMENTO DA REPARAÇÃO DOS DANOS CAU-SADOS AO MEIO AMBIENTE. IRRELEVÂNCIA DE PAGAMENTO DE MULTA ADMINISTRATIVA, CUJA INCIDÊNCIA NÃO IMPEDE A REPARAÇÃO DE DANOS. ART. 225, § 3º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. ATRIBUIÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO DE APURAR E BUSCAR A REPARAÇÃO DOS DA-NOS ATRAVÉS DE AÇÃO CIVIL PÚBLICA (CF, ART. 129, III). INDENIZAÇÃO ARBITRADA COM BASE EM LAUDO PERICIAL. CARGA SUBJETIVA DO JUIZ NA DETERMINAÇÃO DA REPARAÇÃO. PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE. CARÁTER EXEMPLAR DA IN-DENIZAÇÃO, VISANDO EVITAR A REPETIÇÃO DE FATOS ANÁLOGOS. 1. Danos causados ao meio ambiente, na forma de derramamento de óleo pesado em águas marinhas por navio ancorado no cais do Porto de Santos. 2. O dano é inques-tionável, posto que cabalmente comprovado por fotografias e documentos oriundos da Capitania dos Portos. 3. O fato de ser impossível detectar a exata extensão dos danos ao meio ambiente não

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leva a considerá-los inócuos. 4. É irrelevante que a apelante tenha pago multa pelos atos pratica-dos, visto que ela tem caráter punitivo e natureza administrativa, enquanto a reparação de danos tem natureza constitucional-civil, sendo devida in-dependentemente das sanções de caráter penal e administrativo, nos termos do art. 225, 3º, da Constituição Federal. 5. Não se pode pretender que a apuração dos danos ambientais, em casos como os destes autos, fique restrita ao âmbito da Capitania dos Portos, posto que sua atuação é de caráter administrativo, não impedindo que o Mi-nistério Público Federal exerça as atribuições que lhe foram expressamente conferidas pelo art. 129, inciso III, da Constituição Federal, notadamente no que diz respeito à proteção do meio ambiente. [...]. Trata-se, sem dúvida, de valor significativo, mas adequado ao caso, em se considerando a di-mensão que têm os derramamentos de óleo nas águas marinhas, exigindo rigor das autoridades constituídas para que, sobretudo, se evite a repe-tição de acontecimentos como os tratados nestes autos. 8. Apelação parcialmente provida, apenas para reduzir os honorários advocatícios a 10% do valor da condenação (TRF-3 - AC: 14267 SP 96.03.014267-0, Relator: JUIZ CONVOCADO RU-BENS CALIXTO, Data de Julgamento: 01/08/2007, TERCEIRA TURMA).

Diante disso, ficou demonstrado que a responsabilidade civil ambiental possui o propósito de exercer plenamente as questões de reparação e prevenção dos danos ao meio am-biente, assim como os danos ocasionados a terceiros afeta-dos. É imprescindível o estímulo às atividades econômicas que degradam menos o ambiente natural e com poucos riscos de acidentes.

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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste estudo, ficou evidenciada a aplicação do instru-mento da responsabilidade civil no que se refere à poluição do meio ambiente marinho por derramamento de óleo ao mar. Per-cebe-se que a proteção ambiental é um direito do cidadão, ga-rantido constitucionalmente, contendo seus princípios basilares e possuir de diversos institutos normativos a respeito da matéria.

Quando se refere à poluição do ambiente marinho, po-de-se concluir que, muitas vezes, está relacionada ao derra-mamento de óleo e este é resultado do evidente perigo que é transportar a substância sem os devidos cuidados, muitas vezes violando as normas de segurança e em embarcações inapro-priadas para tais fins. Outro aspecto apontado diz respeito à extensão do dano que, nem sempre, é proporcional ao volume de óleo derramado, uma vez que não é necessário o derrama-mento de grandes quantidades dessa substância para degradar o ecossistema.

Em relação à responsabilização do causador do dano am-biental, esta será objetiva, isto é, prescinde do elemento culpa por se tratar de um bem jurídico indispensável para a sociedade e de baixa possibilidade de identificação do responsável, não importando, portanto, a verificação do elemento culpa. Assim, nos casos de dano ao meio ambiente, este deve ser reparado independentemente da verificação da culpa do degradante, com o intuito de possibilitar a devolução do ambiente natural à popu-lação da forma mais pura em que se encontrava antes do fato lesivo, além de se observar a prestação pecuniária imputada ao poluidor.

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Nesse sentido, a restauração natural do ambiente lesado e a compensação pecuniária têm função de reparação, mas a prevalência da recuperação total do meio ambiente degrada-do se dá tendo em vista a importância do restabelecimento do ecossistema local. Com o derramamento de óleo ao mar, asse-vera-se que em muitos casos é difícil, para não dizer impossível, a recuperação total do ambiente marinho. Assim, porquanto, por diversos fatores, inviabilizada a reparação in natura do am-biente marinho, impõe-se a reparação in pecúnia como forma de indenização, que depende do instituto da responsabilidade civil como um potente instrumento de intervenção do Direito na vida em sociedade.

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LIBERDADE TESTAMENTÁRIA VERSUS SUCES-SÃO FORÇADA: ANOTAÇÕES PRELIMINARES SOBRE O DIREITO SUCESSÓRIO BRASILEIRO

FREEDOM OF TESTATION VERSUS FORCED SUCCESSION: BRIEF REMARKS ON THE

BRAZILIAN LAW OF SUCCESSIONS

Eroulths Cortiano Junior1 André Luiz Arnt Ramos2

RESUMOO direito das sucessões, tradicionalmente, coloca-se a serviço da preservação da família enquanto unidade social relevante ou célula menor do Estado, mediante manutenção da propriedade do de cujus no seio familiar. Daí os mais variados sistemas de direito abarcarem, além dos mecanismos enquadrados no di-reito de família, estruturas normativas que visam a assegurar o atendimento das necessidades básicas de familiares desampa-radas após o falecimento de um provedor. A acepção jurídica de família, informada pela dinâmica do mundo dos fatos, mudou: dum modelo transpessoal, patriarcal e hierarquizado (inclusive quanto aos filhos), converteu-se, com a tábua axiológica inau-gurada pela Constituição Federal de 1988, num instrumental e eudemonista, que se volta à tutela e promoção da pessoa. Da mesma forma, o aumento na expectativa média de vida e a inserção, cada vez mais precoce, da pessoa no mercado de tra-balho põem em xeque a legitimidade do contemporâneo modelo 1 Doutor em Direito. Bolsista Sênior da CAPES. Professor da UFPR. Advogado. Endereço de e-mail: [email protected]. 2 Mestrando em Direito pelo PPGD-UFPR, Bacharel em Direito pela mesma Instituição. Membro do Grupo de Pesquisa Virada de Copérnico, no eixo Contratos e Responsabilidade Civil, também da UFPR. Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família. Advogado em Curitiba. Endereços de e-mail: [email protected] e [email protected].

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de sucessão forçada, que se impõe mediante severas restrições à liberdade de testar e doar – expressões da faculdade de dis-por da coisa, inerente ao direito de propriedade. Numerosas ex-periências jurídicas, defronte a essa problemática, revisaram, de variadas maneiras, o modelo de sucessão imposta aos destina-tários de suas normas. Neste diapasão, a reserva de uma porção legítima do patrimônio do de cujus perde espaço para restrições a posteriori, como as atinentes à ordem pública (publicpolicy) e à segurança alimentar de dependentes do falecido. Este trabalho intenta, à luz do direito comparado, esboçar os lineamentos deste quadro, de modo a tecer críticas à sucessão mortis causa brasi-leira e, com isso, estimular debates conducentes a sua revisão.

PALAVRAS-CHAVE: sucessão testamentária; liberdade de tes-tar; sucessão forçada.

ABSTRACT Traditional inheritance law – especially in the Continental Law – serves bloodline family, by maintaining the deceased’s property within the bloodline. Thus the multiple mechanisms adopted by most legal systems to ascertain the attendance of a family’s basic needs after the husband’s passing away. In Brazilian law, the legal concept of family, when confronted to real-world dynamics, changed: the bloodline model gave place to the family of affection and dependence, especially after the current Constitution entered into force. Demographic changes and changes in the social norms have hence called the legitimacy of forced succession rules into question. Various legal experiences have revised their forced succession models as these changes were recognized. A priori restrictions imposed upon freedom of testation have, in this context, given place to a posteriori limitations, as are the ones related to public policy and basic alimentary needs of those whose survival depended upon the deceased. This article intends to approach this framework through comparative inputs, to criticize Brazilian forced succession model and, in doing so, stimulate debates concerning its review.

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Keywords: testamentary succession, freedom of testation, forced succession.

1 INTRODUÇÃO

Em sua célebre crítica à estrutura do Código Civil Ale-mão, “Zitelmann acusa todo o sistema das Pandectas de se não orientar por um só critério unitário, mas, antes, por dois critérios distintos”3, porquanto alguns setores do ordenamento – direitos de família e sucessões – atenderiam a fenômenos da realidade fática, concreta; enquanto outros – direito das obrigações e das coisas – estariam cindidos em categorias jurídicas, afeitas ao mundo do direito. Este contundente ataque à cisão entre parte geral e parte especial, malgrado vencido pelo pensamento siste-mático (CANARIS, 2006, p. 26), sinaliza a sensibilidade do direi-to de família e do direito de sucessões às contingências da vida em sociedade. Isso, ao lado da crescente internacionalização do direito e das carreiras jurídicas, impõe, ao estudioso do direito, o desafio de, para fins práticos ou acadêmicos, estudar e com-preender as particularidades de variadas experiências jurídicas.

A comparação de modelos, nesta singra, é poderoso ins-trumental posto à disposição daqueles que se debruçam sobre experiências nacionais e estrangeiras, para fins de compreen-são e crítica tanto destas quanto daquelas (SACCO, 2001, p. 25-28). Isso, claramente, sem prejuízo de sua empregabilidade para análise de propostas de harmonização normativa ou para aprimoramento de técnicas legislativas4. 3 CANARIS, Claus-Wilhelm. Funções da parte geral de um Código Civil e limites da sua prestabilidade. FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA. Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da reforma de 1977. v. II. Coimbra: Coimbra Editora, 2006, p. 26.4 Para uma explanação cuidadosa do direito comparado sob o aspecto funcional, ver: SGARBOSA, Luís Fernando; e JENSEN, Geziela. Elementos de direito comparado: ciência, política legislativa, integração e prática judiciária. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2008, pp.11-82.

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Este trabalho intenta, a partir de pontuais aportes de comparativos, analisar criticamente os limites que o modelo de sucessão forçada brasileiro impõe à liberdade testamentária, bem como a maneira como outros sistemas jurídicos disciplinam a liberdade – especialmente no que tange a sua limitação por normas de ordem pública (publicpolicy5). Para tanto, cinde-se em três sessões. A primeira formula o problema que se pretende enfrentar, a partir do recente histórico do direito de família e das sucessões e de sua estrutura nos sistemas de direito integrantes da família romano-germânica ocidental, com especial ênfase ao direito brasileiro. A segunda sintetiza as relações que ordena-mentos estrangeiros, especialmente os de jurisdição mista, tra-vam com a liberdade de testar e estabelece contrastes com a ex-periência pátria. A terceira, enfim, sumariza os pontos abordados nas seções precedentes, em rol de apontamentos conclusivos.

2 Formulação do problema: liberdade de testar versus su-cessão forçada

O direito das sucessões, ainda, mas erroneamente, con-siderado o ramo do direito civil que menos se modifica (MALUF; MALUF, 2013, p. 43-56), coloca-se, tradicionalmente, a serviço da preservação da família enquanto unidade social relevante. Tanto é que os mais variados sistemas de direito abarcam, além dos mecanismos enquadrados no direito de família, estruturas normativas que visam a assegurar o atendimento das necessida-des básicas de familiares desamparados após o falecimento de um provedor. Daí se dizer, ao mesmo tempo em que se institui 5 A expressão publicpolicy ou, simplesmente, policy, emprega-se, aqui, no sentido dworkiniano de “standard que estabelece objetivos a serem atingidos – normalmente, melhoras em aspectos econômicos, políticos ou sociais da comunidade” (Tradução livre. No original: “I call a ‘policy’ that kind of standard that sets out a goal to be reached, generally an improvement in some economic, political or social feature of the community” – DWORKIN, 1967, p.23).

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um rol de herdeiros necessários, a quem se destina, obrigatoria-mente, metade do patrimônio acumulado pelo de cujus, que “a procura pela formação de patrimônio é estimulada pela certeza de que os bens particulares serão transferidos aos herdeiros por ocasião da morte” (NANNI; VENOSA et al, 2012, p. 779). Assim é que, na sucessão ab intestato, o círculo de potenciais herdeiros é tão restrito quanto possível e, na sucessão testa-mentária, a liberdade de testar se sujeita a diversas restrições (WAAL; REID; ZIMMERMANN, 2007, p. 6). Este quadro se asso-cia ao formato de família típico das experiências oitocentistas, cuja fragmentação contemporânea põe em xeque a legitimidade das vigentes regras sucessórias.

Após sucessivas viragens, o direito de família rompeu com o modelo transpessoal, patriarcal e hierarquicamente es-tanque que marcava, no Brasil, a codificação civil de 1916 (CARBONERA; MENEZES; MATOS, 2013, p. 35). As paulatinas conquistas das mulheres e dos filhos, aliadas à inauguração de uma nova axiologia pela Constituição de 1988, conduziram, ine-vitavelmente, à cristalização de uma pluralidade de entidades familiares juridicamente reconhecidas6 e de cunho eudemonis-ta, em oposição à natureza institucional de outrora, pelo que o regramento da sucessão legítima – e, consequentemente, os limites impostos à liberdade de testar – perde um pouco sua raison d’être, consoante leciona de Waal:

O fortalecimento do cônjuge supérstite em rela-ção aos filhos provocou o deslocamento do eixo do direito das sucessões, que, de ‘vertical’ (su-

6 A este propósito, ver: SPENGLER, Fabiana Marion. União estável. In: MENEZES, Joyceane Bezerra de e MATOS, Ana Carla Harmatiuk (Orgs). Direito das famílias por juristas brasileiras..., pp.273-302; LEITE, Eduardo de Oliveira. A (des)união estável. In: LEITE, Eduardo de Oliveira. Estudos de direito de família e pareceres de direito civil. Rio de Janeiro: Forense, 2011, pp.275-298; MATOS, Ana Carla Harmatiuk. A família recomposta. In: MENEZES, Joyceane Bezerra de e MATOS, Ana Carla Harmatiuk (Orgs). Direito das famílias por juristas brasileiras..., pp.319-337; e PIANOVSKI RUZYK, Carlos Eduardo. Famílias simultâneas: da unidade legislada à pluralidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.

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cessão entre pais e filhos), tornou-se ‘horizontal’ (sucessão entre cônjuges). Em segundo lugar, o reconhecimento, pelo direito, de uniões extracon-jugais e a eliminação da discriminação de filhos extraconjugais também tiveram relevante impacto tanto no regramento da sucessão legítimaquan-to no sistema de sucessão forçada. (WAAL; REID; ZIMMERMANN, 2007, p. 7)7.

A ruína da finalidade precípua do sistema de sucessão for-çada, na linha traçada por de Waal, é objeto da seção seguinte.

2.1 As sucessivas viragens do direito de família brasileiro e a sucumbência do telos do sistema de sucessão forçada

Tradicionalmente, a literatura especializada parte da as-sunção de que o primeiro modelo de direito de família abarcado pelo direito brasileiro seria aquele típico dos movimentos codi-ficadores, de matriz patriarcal. Isso em virtude da constatação de que o sistema codificado de 1916 foi arquitetado para a proteção da unidade diretiva da família, que desempenharia a função de célula menor do estado – o que se amoldava às pe-culiaridades da sociedade da época, de caráter predominante-mente agrário. A família legalmente formatada, destarte, seria transpessoal. Ou seja: não se voltaria à realização pessoal do indivíduo, mas à consecução de interesses que transpunham a individualidade de seus membros.

A família de então, sob os auspícios da persecução de suas finalidades públicas, formatava-se, juridicamente, a par-tir de um modelo pretensamente unívoco: o matrimonial. De 7 Tradução livre. No original: “The strengthening of the position of the surviving spouse at the expense of children has led to a shift in emphasis from a ‘vertical law of successions’ (succession between parents and children) to that of a ‘horizontal law of succession’ (succession between spouses). Secondly, the legal recognition of partnerships between persons who are not married and the elimination of discrimination against the extra-marital child have an important impact on both the law of intestate suc-cession and the system of forced succession”.

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maneira geral, pouco se falava em liberdade matrimonial (es-pecialmente na dimensão liberdade de não estar casado) e em pluralidade de entidades familiares8.

Não bastasse essa pretensa univocidade do matrimô-nio, a chefia da sociedade conjugal era depositada nas mãos do cônjuge varão, tido por verdadeiro centro de poder, por con-centrar numerosas funções diretivas. Esse quadro começou a mudar na década de 1960, com o advento do estatuto da mulher casada (Lei 4.121/1962) e somente viria a ser for-malmente superado com a promulgação da contemporânea Constituição de 1988. Assim:

O Código Civil de 1916 concedeu certas prerro-gativas ao marido em detrimento da mulher ca-sada, muitas das quais já foram retiradas pela Lei 4.121, de 27 de agosto de 1962. Depois da Lei 4.121 permaneceram ainda algumas desigualda-des quanto ao exercício de direito pela mulher em relação ao marido - como a chefia da sociedade conjugal, a representação legal da família, a admi-nistração dos bens dos filhos, dos bens comuns e dos particulares da mulher que ao marido incum-bir administrar, em virtude do regime matrimonial ou pacto antenupcial, o direito de fixar o domicílio da família, a permissão para contrair obrigações que importem alheação de bens do casal e a pre-valência da decisão paterna, na hipótese de diver-gência entre os progenitores.Todas as desigualdades de tratamento desapare-ceram com a regra do art. 226, §5º, da CF, se-gundo o qual ‘os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher’. Com isso, ao nivelar os

8 Basta ver que a lei do divórcio data de 1977 (Lei 6.515), sendo que o instituto somente atingiu sua expressão máxima com a publicação da Emenda Constitucional número 66/2010, e que a disciplina jurídica da união estável, enquanto entidade familiar informal, somente adentrou o sistema jurídico na virada do século XX, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, tendo sido disciplinada em lei apenas no curso da década de 1990 (Leis 8.971/1994 e 9.278/1996) e inserta na codificação civil em 2002.

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direitos dos cônjuges, a Constituição, ao mesmo tempo em que aboliu as prerrogativas do marido em relação à mulher, fez desaparecer o único pri-vilégio que a mulher casada tinha em relação ao marido - o direito aos bens reservados (BAPTISTA, 2006, p. 262-263).

Ainda: o estatuto jurídico da filiação era rigidamente hie-rarquizado. Havia toda uma categorização e classificação de fi-lhos, em homenagem à família dita legítima (matrimonializada e patriarcal). Essa construção somente veio abaixo, ao menos no plano da legalidade formal, por ocasião da promulgação da Constituição da República. Assim:

O §6º do art. 227 da CF dispõe que ‹os filhos ha-vidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação›. [...]Essas classificações não fazem mais sentido por-que a partir do novo texto constitucional os filhos, havidos ou não do casamento, passam a ter os mesmos direitos, ficando proibida toda e qualquer referência discriminatória. Por isso, devem ser abolidos da lei. Indistintamente, todos os filhos podem ser reconhecidos, inclusive os filhos resul-tantes de uniões incestuosas, pois a Lei 7.841, de 17 de outubro de 1989, revogando o art. 558 do Código Civil de 1916, terminou por dissipar as dúvidas no tocante ao reconhecimento desse tipo de filiação (BAPTISTA, 2006, p. 264).

Hoje, a superação dessa vetusta classificação abarcada pelo revogado Código Bevilácqua conduziu, inclusive, à pro-posição de aberturas hermenêuticas ao reconhecimento da

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filiação socioafetiva. Rompem-se, assim, as amarras do bio-

logismo e da formatação legal da família dita legítima, para

que o afeto mútuo, expressão da força dos fatos, tenha efeitos

jurígenos9.

Não bastasse, a comunidade jurídica, hoje, atesta a

consagração constitucional do princípio da pluralidade das en-

tidades familiares, malgrado alguma divergência quanto à pre-

valência do casamento sobre outros modelos (LEITE, 2011, p.

286). A univocidade formal do matrimônio, portanto, ruiu dian-

te do amplo entendimento de que o rol de entidades familia-

res mencionadas pela Constituição é meramente exemplifica-

tivo. O princípio da pluralidade, assim, é uma eterna abertura,

de índole constitucional, a dizer que qualquer agrupamento es-

tável, pautado na afetividade e com pretensão de permanência

deve gerar efeitos jurídicos10.

O direito brasileiro contemporâneo, assim, não mais tu-tela a família ensimesmada, mas a pessoa, que pode ou não se 9 “A distinção entre filiação e origem biológica apresentava-se marcante no Código Civil de 1916, ao proibir o reconhecimento dos filhos chamados espúrios, concebidos fora do casamento por pessoas com impedimento para se casar. [...] Enquanto perdurou a família matrimonializada, patriarcal e hierarquizada, a tutela do casamento e da honra do marido prevaleceu sobre a proteção do filho. A Constituição de 1988 trouxe outro arcabouço valorativo, introduzindo a pluralidade das entidades familiares protegidas pelo Estado, a igualdade do homem e da mulher na direção da família, a igualdade dos filhos, o melhor interesse da criança como valores aptos a promover a dignidade da pessoa humana no interior da família. A filiação passou a ser direito do filho. [...] A afetividade, sob o ponto de vista jurídico, fundamenta o reconhecimento de várias relações familiares, inclusive de filiação. [...] tem função promocional, na medida em que constitui a base jurídica para novas formações familiares. Na relação entre pais e filhos a afetividade se expressa no exercício cotidiano do cuidado, conforme preceituam os arts. 226, §7º, e 227, caput, da Constituição” (MEIRELES; MENEZES e MATOS, pp.357-358).10 Lôbo fala nos requisitos de ostensibilidade, estabilidade e affectiomaritalis, como indispensáveis ao reconhecimento de enti-dades familiares, independentemente de mudanças sociais. Estas novas entidades deveriam gerar efeitos análogos às demais, consoante se depreende do seguinte excerto: “Os tipos de entidades familiares explicitamente referidos na Constituição brasi-leira não encerram numerusclausus. As entidades familiares, assim entendidas as que preencham os requisitos de afetividade, estabilidade e ostensibilidade, estão constitucionalmente protegidas, como tipos próprios, tutelando-se os efeitos jurídicos pelo direito de família e jamais pelo direito das obrigações, cuja incidência degrada sua dignidade e das pessoas que as integram. A Constituição de 1988 suprimiu a cláusula de exclusão, que apenas admitia a família constituída pelo casamento, mantida nas Constituições anteriores, adotando um conceito aberto, abrangente e de inclusão. Violam o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana as interpretações que (a) excluem as demais entidades familiares da tutela constitucional ou (b) asseguram tutela dos efeitos jurídicos no âmbito do direito das obrigações, como se os integrantes dessas entidades fossem sócios de sociedade de fato mercantil ou civil. Cada entidade familiar submete-se a estatuto jurídico próprio, em virtude requisitos de constituição e efeitos específicos, não estando uma equiparada ou condicionada aos requisitos da outra. Quando a legislação infraconstitucional não cuida de determinada entidade familiar, ela é regida pelos princípios e regras constitucionais, pelas regras e princípios gerais do direito de família aplicáveis e pela contemplação de suas especificidades. Não pode haver, portanto, regras únicas, segundo modelos únicos ou preferenciais. O que as unifica é a função de locus de afetividade e da tutela da realização da personalidade das pessoas que as integram; em outras palavras, o lugar dos afetos, da formação social onde se pode nascer, ser, amadurecer e desenvolver os valores da pessoa” (LÔBO; PEREIRA, 2002, p. 105).

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inserir num agrupamento familiar11. E diferentes não são outras

experiências jurídicas, conforme relatado por Friedman: “Mu-

danças na estrutura familiar, mudanças na natureza da ordem

jurídica, mudanças demográficas e alterações de normas sociais

deixam sua marca no direito das sucessões. [...] O que temos

hoje é a família da afeição e da dependência”12 (FRIEDMAN,

2009, p. 11).

A primeira finalidade justificadora do modelo da suces-

são forçada, portanto, resta obsoleta. A tutela da pessoa – a

promoção de suas potencialidades individuais – pressupõe res-

peito a sua liberdade existencial, consagrada e.g. na liberdade

matrimonial e na afetividade, e patrimonial, mormente quanto a

disposições últimas de vontade13.

Mas o direito das sucessões não se presta, apenas, à

preservação de um modelo familiar. Pelo contrário: a literatura

especializada, inspirada na valiosa crítica de Orlando Gomes,

identifica, na sucessão mortis causa, a função de garantir a

propriedade privada (CORTIANO JUNIOR; ROBL FILHO, 2008,

p. 653). Assim, “a sucessão é um projeto social, disciplinado

e garantido pelo Direito, com a finalidade de auxiliar na tutela

do direito à propriedade privada” (CORTIANO JUNIOR; ROBL

FILHO, 2008, p. 653-654). O projeto desenhado pelo regra-11 Os efeitos dessas viragens todas se espraiam, inclusive, para a dimensão patrimonial do casamento e das demais entidades familiares, consoante explicita Lôbo: “O regime da separação absoluta é o que melhor corresponde ao princípio da igualdade de gêneros, como tendência das sociedades ocidentais. A crescente inserção da mulher no mercado de trabalho e na vida econô-mica torna dispensável a motivação subjacente de sua proteção, que se encontra nos regimes de comunhão parcial ou universal. Enquanto vigorou o modelo legal de família patriarcal, o regime da separação era injusto para a mulher; no modelo igualitário de família, é o mais justo e o que melhor respeita a dignidade e a liberdade de cada cônjuge. Em virtude de sua simplicidade e da ausência de interesses patrimoniais superpostos, o regime reduz sensivelmente o quantum de litigiosidade ou conflituosidade que os demais propiciam” – grifou-se (LÔBO, 2011, p.355).12 Tradução livre. No original: “Changes in family structure, changes in the nature of the legal order, changes in social norms and attitudes have all left their mark on the law of succession. (…) What we have now is the family of affection and dependence”.13 Registre-se, aqui, a opinião dissidente de Ana Luiza Maia Nevares, para quem a sucessão testamentária deve ser direcionada ao desempenho de função promocional da pessoa, especialmente dos sucessores, em consonância com as contemporâneas feições das famílias juridicamente reconhecidas, sempre na perspectiva da ponderação dos interesses em conflito e do embate entre solidariedade e autonomia privada, expressa na liberdade de testar (NEVARES, Ana Luiza Maia. A função promocional do testamento: tendências do direito sucessório. Rio de Janeiro: Renovar, 2009).

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mento da sucessão mortis causa, então, seria o de preserva-

ção da família – rectius: do modelo de família recortado pelo

direito – através da manutenção da riqueza do de cujus no

seio familiar. A execução deste projeto, hoje à beira da ruína,

dá-se mediante a imposição de limites ao direito de proprie-

dade. Isto é: a preservação da entidade familiar e da proprie-

dade do de cujus só é possível porque uma das faculdades

proprietárias, a de dispor da coisa, é tolhida, na medida da

legítima. Outro significado não se pode depreender dos textos

normativos codificados que estabelecem limites à liberdade

de testar e de doar14.

As invalidades cominadas pelo legislador são sintomas

da latente repercussão dos modelos social e familiares típicos

de séculos passados. Consagram aquilo que se convencionou

chamar de sucessão forçada, característica de sistemas de di-

reito enraizados na tradição romano-canônica15, assim definida

por Friedman:

Pragmaticamente, sucessão forçada significa su-cessão nos limites da família – a esposa, crian-ças e outros dependentes. A sucessão forçada impõe ao testador a obrigação de se preocupar com membros de sua família antes de satisfazer outros desejos e necessidades. De certa forma,

14 São eles: Art. 549. Nula é também a doação quanto à parte que exceder à de que o doador, no momento da liberalidade, poderia dispor em testamento; Art. 1.789. Havendo herdeiros necessários, o testador só poderá dispor da metade da herança; Art. 1.801. Não podem ser nomeados herdeiros nem legatários: I - a pessoa que, a rogo, escreveu o testamento, nem o seu cônjuge ou companheiro, ou os seus ascendentes e irmãos; II - as testemunhas do testamento; III - o concubino do testador casado, salvo se este, sem culpa sua, estiver separado de fato do cônjuge há mais de cinco anos; IV - o tabelião, civil ou militar, ou o comandante ou escrivão, perante quem se fizer, assim como o que fizer ou aprovar o testamento; Art. 1.802. São nulas as disposições testamentárias em favor de pessoas não legitimadas a suceder, ainda quando simuladas sob a forma de contrato oneroso, ou feitas mediante interposta pessoa. Parágrafo único. Presumem-se pessoas interpostas os ascendentes, os descen-dentes, os irmãos e o cônjuge ou companheiro do não legitimado a suceder.15 Sobre a sucessão forçada no direito romano, ver: ZIMMERMANN, Reinhard. Compulsory heirship in Roman Law. In: REID, Kenneth G C, WAAL, Marius J de, e ZIMMERMANN, Reinhard. Exploring the law of succession…, pp.27-48. Sobre a influência deste modelo na tradição continental, que integra as experiências jurídicas escocesa e sul-africana, ver: SELLAR, W. David H. Successionlaw in Scotland – a historical perspective. In: REID, Kenneth G C, WAAL, Marius J de, e ZIMMERMANN, Reinhard. Exploring the law of succession…, pp.49-66; e TOIT, François du. Succession law in South Africa – a historical perspective. In: REID, Kenneth G C, WAAL, Marius J de, e ZIMMERMANN, Reinhard. Exploring the law of succession…, pp. 67-77.

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a sucessão forçada faz com que a morte conver-ta a propriedade privada em propriedade familiar (FRIEDMAN, 1966, p. 366)16.

Essa dimensão do direito das sucessões – de preserva-ção da família mediante manutenção da propriedade privada em seu seio e, consequentemente, com a limitação legal do poder de dispor dados bens integrantes da legítima – tem esteio em argumentos de matriz social. Mas o direito das sucessões, notadamente após a transmudação do eixo axiológico da família juridicamente reconhecida, também dialoga com um princípio de natureza econômica, que privilegia a vontade do proprietário, segundo o qual “indivíduos, enquanto titulares de propriedade privada podem dispor de seu patrimônio da maneira que melhor lhe aprouver. [...] Este princípio é essencial para o sistema eco-nômico e é por ele pressuposto” (FRIEDMAN, 1966, p. 353)17. Deste princípio, elementar a qualquer ordenamento que privile-gie a liberdade (e a dignidade) humana, deriva a liberdade de disposição patrimonial, traduzida como liberdade de testar pelo direito das sucessões18. Isto é: a liberdade que tem o proprie-tário de decidir, em disposição última de vontade, a maneira como seus bens se transmitirão e a identidade dos destinatários destas transferências pós-morte.

Nenhum sistema avançado de direito desconhece limites à liberdade de testar (WAAL; REID; ZIMMERMANN, 2007, p. 14), mas a obsolescência das premissas que dão sustentação à sucessão forçada e sua dissincronia em relação a mudanças verificadas no mundo dos fatos, como o notável aumento na expectativa de vida das pessoas – que deságua no fato de que, não raro, os filhos herdam bens de seus pais após terem se 16 Tradução livre. No original: “Practically speaking, forced succession means succession within the family – to the wife, children or other dependents. Forced succession imposes upon the testator the obligation to care for members of his family before satis-fying any other desires and needs. In a sense, it converts private property at death to family property”.17 Tradução livre. No original: “Individuals as holders of private property may dispose of it as they see fit. (…) The principle of gift is necessary to the economic system and is presupposed by it”.18 Não que o testamento não seja negócio jurídico de eficácia múltipla. Ao contrário: sabe-se que numerosas situações jurídicas existenciais podem ser inauguradas ou modificadas pela via testamentária. O escopo deste trabalho, no entanto, reporta-se ao diálogo entre família, propriedade e autonomia privada no âmbito do direito das sucessões. Daí o recorte que privilegia o conteúdo patrimonial das disposições últimas de vontade. Quanto à dimensão existencial, seja consentido remeter a Nevares (2009, p. 250-311).

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estabelecido economicamente – são voz corrente na literatura jurídica internacional19. A questão que se coloca, portanto, diz respeito à sustentabilidade do drástico tolhimento que diversos sistemas de direito impõem ao exercício da liberdade de testar no mundo contemporâneo (WAAL; REID; ZIMMERMANN, 2007, p. 16).

3 OS LIMITES À LIBERDADE DE TESTAR NO DIREITO BRASI-LEIRO E COMPARADO

Testamento é, no conhecido dizer de Pontes de Miran-da, “ato pelo qual a vontade de alguém é declarada para o caso de morte, com eficácia de reconhecer, transmitir ou extinguir direitos” (PONTES DE MIRANDA, 2012, p. 109). Trata-se de negócio jurídico unilateral sujeito a condição suspensiva, mar-cado por numerosos caracteres distintivos. É personalíssimo, unilateral, revogável, unipessoal, mortis causa, formal e solene, gratuito e imprescritível (DIAS, 2013, p. 354-357). Dada sua característica negocial, “se constitui e se aperfeiçoa apenas e exclusivamente com a manifestação de vontade do testador” (DIAS, 2013, p. 354), mostra inequívoca da autonomia privada, que é expressão maior da autodeterminação20da pessoa21.

Não obstante integrar, enquanto consectário da auto-

19 Nesse sentido, diz Friedman: “Mudanças demográficas e culturais também têm forte impacto no direito sucessório. No séc. XIX, as pessoas viviam muito menos que hoje. Portanto, tendiam a herdar de seus pais (se é que havia algo a herdar) em idade muito inferior à em que herdam hoje. John Langbein, e.g., sublinha este dado e fala das consequências da longevidade contemporânea. Se uma pessoa vive até os oitenta anos e deixa tudo para sua esposa, que alcança os noventa, seus filhos já serão grisalhos e possivelmente aposentados ao suceder”. Tradução livre. No original: “demographic and cultural changes have also had a powerful impact on the law of succession. In the nineteenth century, people lived, on the whole, much shorter lives than they do today. Hence people tended to inherit from their parents, if there was anything to inherit, at a younger age than they do now. John Langbein, for one, has made this point, and spelled out the consequences of modern longevity. If a man lives to be 80 and leaves everything to his wife, who lives to be 90, their children will be gray-hired and possibly even retired by the time they inherit”. (FRIEDMAN, 2009, p.13). Vide, também: KUCHINKE, Kurt. Über die Notwendigkeit, ein gemeineurpäisches Familien- und Erbrechtzuschaffen. In: KÖBLER, Gerhard e HEINZE, Meinhard (Orgs.). Europas universal rechtsordnungspoliti-scheAufgabeimRecht des drittenJahrtausends, Festschrift auf Alfred Söllnerzum 70. Geburtstag. Munique, 2000, p. 589-612.20 “A autonomia liberdade de testar serve à autonomia da pessoa”, como bem coloca José de Oliveira Ascenção (2000, p. 12).21 Há quem diga, inclusive, que a liberdade de testar integra os direitos de personalidade do testador. Vide, neste sentido: GOEBEL, Joachim. Testierfreiheit als persönlichkeitsrecht. Berlim: DunckerundHumbolt, 2004, p.349 e ss.

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determinação, o núcleo da dignidade humana, a liberdade de testar (a rigor, as liberdades em geral) se sujeita, no contempo-râneo direito civil brasileiro, a diversas restrições, sob as mais variadas justificativas:

“salvaguarda o interesse familiar dos herdeiros ne-cessários na porção reservada à herança legítima (arts. 1.789, 1.846 e 1.857, parágrafo 1º, CC); busca evitar que algumas pessoas se beneficiem de sua posição de confiança (art. 1.801, I, II e IV, CC); protege a entidade familiar mediante imposi-ção de obstáculo de ordem moral (arts. 1.801, III, e 1.803, CC); coíbe a excessiva autoridade do au-tor da herança no cercamento de bens da legítima (art. 1.848, caput, CC), etc.” (NANNI; VENOSA et al, 2013, p. 834).

Daí se dizer que, vige, no Brasil, um “sistema de liber-

dade limitada de testar, que, em sede de direito das sucessões,

prestigia a propriedade como elemento individual, de um lado,

e a família, como elemento social, de outro” (MALUF; MALUF,

2013, p. 76), inspirado numa enviesada noção de solidarieda-

de familiar22. Assim, deve o testador exercitar sua liberdade nos

limites da legítima dos herdeiros necessários, a qual correspon-

de, como se viu, à metade da herança (rectius: à metade de seu

acervo patrimonial). É o que sintetiza, com muita propriedade,

Paulo Lôbo:

O testador exerce sua autonomia ou liberdade de testar de modo limitado quando há herdeiros que a lei considera necessários. Nesta hipótese, que é a mais frequente, sua autonomia fica confinada

22 Diz-se enviesada porque, a rigor, solidariedade forçada jamais pode ser considerada solidariedade. A perversão desta virtude, recorrentemente posta a serviço do estado – cujo aparato se funda numa ameaça latente de violência –, sufoca a verdadeira solidariedade, que é naturalmente voluntária e inspirada pelo fraternal princípio ético do reconhecimento.

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à parte disponível, não podendo reduzir a legítima desses herdeiros. Sua autonomia é mais ampla quando não há qualquer herdeiro necessário, po-dendo contemplar de modo desigual os demais her-deiros ou excluí-los totalmente da herança, quando destinar a herança a terceiros. Por ser instrumento de atribuição desigual da herança e até de exclusão desta é que a lei impõe à sucessão testamentária requisitos e formalidades substanciais.Nos sistemas jurídicos, como o brasileiro, que asseguram a intocabilidade da parte legítima ou indisponível, reservando ao testador apenas a par-te disponível, a primazia é da sucessão legítima, conferindo-se papel secundário à sucessão testa-mentária (LÔBO, 2014, p.189-190).

“Se a deixa testamentária invadir essa porção heredi-tária, o negócio jurídico será ineficaz relativamente à parte que excedeu a quota disponível” (PONTES DE MIRANDA, 2012, p. 144). O direito pátrio, em princípio, conhece, apenas, as restri-ções legais, apriorísticas, à liberdade de testar, já noticiadas e criticadas nas laudas precedentes. Tais restrições, como se viu, ainda se assentam na preservação da família enquanto unidade social relevante e na perpetuação da propriedade privada (mes-mo que em caráter instrumental ao atingimento da primeira fi-nalidade). Isso não obstante algumas vozes, a ecoar especial-mente sob a égide do Código Civil de 1916, falarem, também, na ineficácia de disposições testamentárias imorais (afrontosas aos boni mores), consoante explicita Pontes de Miranda:

A sanção por ilicitude ou imoralidade do ato jurí-dico constitui limitação social à autonomia priva-da dos figurantes. Não precisa de texto legal (cp. Código Civil alemão, § 130). Se, pelo Código Civil [de 1916], art. 115, pretendia o legislador brasi-

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leiro circunscrever êsse caso de interdependência social dos processos adaptativos, querendo que a nulidade só apanhasse o que a lei vedou, errou palmarmente (o art. 115 diz que são lícitas tôdas as condições que a lei não vedar expressamente). Pode parecer que as outras – não vedadas por lei, mas contra os boni mores – são permitidas, e não viciam os atos, nem se viciam. [...] O ilícito dos arts. 82 e 145, e condições ilícitas, é contra os boni mores, os sittenwidrigeGeschäfte dos alemães, e o contra a lei: o Direito não pode ser a pretensão de discriminar, em tôda a dimensão moral, o que é atendível e o que não é atendível. [...] Se o objeto é ilícito lato sensu (imoral, contra os bons costumes ou proibitivo por lei), o ato jurídico é nulo (PONTES DE MIRANDA, 2012, p. 275-276).

Não obstante a aparente defasagem dessa assertiva, os atualizadores do Tratado, Lôbo e Hironaka, parecem não a ter descartado, consoante se depreende do seguinte excerto, que respeita ao trecho original da obra em que Pontes de Miranda aborda a ineficácia decorrente de disposição testamentária re-compensatória de relações homossexuais:

As relações homossexuais, referidas no item 8 do § 5.697, não mais contrariam os bons costumes, que possam levar à nulidade do legado, pois a Constituição Federal de 1988 proíbe a discrimi-nação em razão da orientação sexual, ou do pre-conceito, prezando pela igualdade de direitos, no-tadamente após a decisão do STF, em 2011, que considerou a união homossexual como espécie do gênero união estável (PONTES DE MIRANDA, 2012, p. 283).

É certo, portanto, que as relações homossexuais não mais podem ser tidas como contrárias aos bons costumes, em razão

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da tábua axiológica inaugurada pela Constituição de 1988. Mas isso não implica dizer que a ratio subjacente à possibilidade de limitação, em concreto, da liberdade testamentária – contra-riedade aos consensos estabilizadores que animam o ordena-mento – seja hoje inaplicável, observadas as peculiaridades da contemporânea sociedade brasileira23. A questão que remanesce em aberto, no entanto, é a (in)eficácia de disposições testamentárias contrárias aos bons costumes ou, de maneira mais ampla, à publicpolicy. É que, demonstrada a dissincronia entre a finalidade da sucessão for-çada – mormente de suas restrições à liberdade de testar – e a sociedade contemporânea, a última fronteira diz respeito àquilo que, na tradição do Common Law, restringe o poder de dispo-sição patrimonial do testador (e que, aparentemente, passa ao largo das preocupações brasileiras).

3.1 A liberdade de testar no direito comparado: fundamen-tos, limites e possibilidades

As tradicionais acepções de testamento e de liberdade de testar, delineadas na seção precedente, parecem, no dizer de Sonnekus, “não prover respostas idôneas às questões con-cernentes ao direito básico de toda pessoa dispor sobre o des-tino de seu patrimônio após o transbordo do rio Styx, no barco de Charon, em sociedades livres e democráticas” (SONNEKUS; REID; ZIMMERMANN, 2007, p. 80)24.23 Veja-se, em complementação, que também Gomes falava na antijuridicidade de disposições testamentárias imorais: “Quanto às condições ilícitas, isto é, as ilegais e as imorais, enquadram-se em categorias bem definidas pela doutrina, distribuindo-se entre as concernentes à condição civil, ao Direito de Família e aos direitos patrimoniais. A completa enumeração seria difícil. A título exemplificativo, podem ser citadas a do herdeiro conservar-se celibatário, a de casar com determinada pessoa, a de renunciar certa herança” (GOMES, 2004, p. 154.).24 Tradução livre. No original: “this seemingly ingenious explanation of the principle of freedom of testation does not provide acceptable answers to all questions concerning this basic right of every human being in a free and democratic society to dispose of his assets after his departure over the river Styx in Charon’s boat”.

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De uma maneira geral, todas as experiências jurídicas ocidentais aceitam, contemporaneamente, que a pessoa tem ampla liberdade de testar, respeitados certos limites, que se definem em razão de normas cogentes. Analogamente ao bra-sileiro, numerosos ordenamentos de matriz romano-germânica ocidental instituem uma porção legítima, que limita o exercício da supradita liberdade. Assim:

A noção de porção legítima esta imbricada em sistemas jurídicos que seguem a tradição do Ci-vil Law, com algumas diferenças quanto ao re-gramento e à amplitude do rol de beneficiários. No que tange às regras, alguns países – como a França antes de 2007, e outros ordenamentos influenciados pelo Código Civil dos Franceses, a exemplo da Itália – a poção legítima é o direito a uma parcela do patrimônio do falecido. Noutros, como na Alemanha, é um direito de crédito25.

Não obstante a recorrência desse modelo de sucessão forçada, é notória a tendência da literatura jurídica internacional (e, de certo modo, do legislador e da magistratura alienígena) de questionar, como se fez acima, as funções dessa reserva, bem como de limitá-la.

Mesmo na cultura do Common Law, algumas limitações à liberdade testamentária têm sido valoradas como instrumen-tais ao atendimento das necessidades alimentares de depen-dentes do de cujus. É o que se depreende, e.g., do caso Tataryn vs. TatarynEstate, julgado pela Suprema Corte do Canadá, à luz de lei vigente na Província de British Columbia, que assegura, 25 Tradução livre. No original: “The notion of legitimate portion is entrenched in systems which follow the civil law pattern, with differences regarding both the rules and the range of beneficiaries. With regard to the rules, in some countries - like in France before 2007, and the other systems influenced by the French civil code, amongst which Italy - the legitimate portion is the right to a share of a part of the deceased’s estate, while in others - such as Germany - it is a credit” (13th World Conference of the International Society of Family Law. Viena: 16 a 20 de setembro de 2008. Seção: Finances and Freedom of Testation – Legiti-mate Portion – Protection of Surviving Spouses and Children. Disponível na Internet via: <http://www.crdc.unige.it/docs/articles/ConferenzaInternazionaleVienna.pdf>. Última consulta em 24 de abril de 2014).

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a parentes do falecido, a possibilidade de sindicar aquilo que moralmente lhes pertence. Disse a Suprema Corte:

Qualquer dever moral deve ser analisado à luz das legítimas preocupações do falecido, que, na medida das forças da herança, podem ir além da segurança alimentar de sua esposa e filhos. Um testamento consiste no exercício, pelo testador, de sua liberda-de de disposição patrimonial, que só pode ser res-tringida na medida da lei. No presente caso, o testador, em vida, somente tinha obrigações legais em relação a sua esposa. Como o casamento foi duradouro e a recorrente trabalhou duro e contribuiu muito para a constru-ção do patrimônio dela e de seu marido, ela faz jus a pensão e a uma participação no acervo fami-liar (CANADA, 1994)26.

A crítica que Sonnekus direciona à premissa assumida pela Corte – induvidosamente aplicável, também, aos demais modelos de sucessão legítima – respeita sua absoluta defasagem. Isso es-pecialmente diante das peculiaridades da conformação dos Esta-dos contemporâneos e seus esquemas de seguridade social:

A regra da conhecida parábola do Novo Testa-mento, segundo a qual o filho pode, mesmo du-rante a vida de seu pai, reclamar a sua parte do patrimônio paterno [...] perdeu totalmente seu significado. Não há razão pela qual qualquer pessoa deva ter a prerrogativa de sindicar parte do patrimônio de outra apenas com arrimo em seu nascimento (SONNEKUS; REID; ZIMMER-MANN, 2007, p. 84, grifou-se)27.

26 Tradução livre. No original: “Any moral duty should be assessed in the light of the deceased’s legitimate concerns which, where the assets of the estate permit, may go beyond providing for the surviving spouse and children. A will is the exercise by the testator of his freedom to dispose of his property and is to be interfered with not lightly but only in so far as the statute requires. In the present case the testator’s only legal obligations during his life were toward his wife. Since the marriage was a long one and the appellant worked hard and contributed much to the assets she and her husband acquired, she would have been entitled to maintenance and a share in the family assets”.27 Tradução livre. No original: “The norm of the well-known parable from the New Testament, according to which the younger son could, even while his father was alive, claim ‘his part’ of the estate (…) has today lost all significance. There is no reason why anybody should be entitled to lay claim to the estate of another merely by birthright”.

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E não é só no mundo anglófono que a comunidade jurídica vem se insurgindo contra a restrição in abstracto da liberdade de testar. Na Itália, a Corte di Cassazione já se posicionou no sentido de que a porção legítima não ostentaria expressão constitucional:

Como a Constituição, em seu art. 42, não faz re-ferência aos herdeiros, a quota a eles reservada representa um limite da sucessão legítima ou das disposições testamentárias que o legislador ordi-nário pode modificar ou até mesmo suprimir. Por isso, esse instituto não integra o rol daqueles que constituem a ordem pública, referida no art. 31 das disposições da lei geral (ITALIA, 1996)28.

Mesmo no Brasil, há quem entenda que “uma lei que determine a extinção da quota necessária será antissocial, mas não inconstitucional, já que [...] não há na Constituição da Re-pública Federativa do Brasil qualquer garantia ao direito dos her-deiros necessários” (NEVARES, 2009, p. 169-170), ainda que se defenda, por um lado, a manutenção da reserva legal da porção legítima e a restrição a posteriori da liberdade de testar, à luz daquilo que se depreende do projeto constitucional (NEVA-RES, 2009, p. 150-188). Além da reserva da porção legítima, que persiste, malgra-do todas as vicissitudes apontadas, o direito comparado conhe-ce casos de restrição à liberdade de testar impostas pela ordem pública ou pelos bons costumes29. Estas vêm sendo aplicadas, por Tribunais mundo afora, como mecanismos de defesa de um modelo de família legalmente privilegiado (CHALMERS; REID; ZIM-28 Tradução livre. No original: “Poiché la Carta costituzionale, all’art. 42, non fa riferimento alcuno al legittimari, la quota riservata ai medesimi rappresenta um limite dela successione legitima ovvero dele disposizioni testamentarie, che il legislatore ordinário può modificare ed anche sopprimere, pertanto l’istituto non reentra tra quelli che costituiscono l’ordine pubblico, cui si riferisce l’art. 31 delle disposizioni sulla legge generale”.29 Para uma análise mais vagarosa e aprofundada, v. CHALMERS, James. Testamentary conditions and public policy. In: REID, Kenneth G C, WAAL, Marius J de, e ZIMMERMANN, Reinhard. Exploring the law of succession…, p. 99 e ss.

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MERMANN, 2007, p. 101), mas não parecem ser geneticamente atreladas a essa perspectiva. É o que denotam as experiências jurídicas Escocesa e Sul-Africana, mormente no período imedia-tamente posterior à derrocada do apartheid, que implicou amplo processo de constitucionalização do direito privado e de confor-mação da ordem jurídica interna a instrumentos internacionais de direitos humanos. Em razão da alta complexidade das discussões concernen-tes às restrições que a ordem pública e os boni mores impõem à liberdade de testar e do propósito ensaístico deste trabalho, recortam-se, em caráter provocativo ao debate, três grandes eixos temáticos trabalhados pela comunidade jurídica internacional: a liberdade fundamental de estar ou não casado, a tutela das ex-pectativas legítimas e a segurança alimentar da prole, do cônjuge ou companheiro supérstite e de demais dependentes do de cujus.

3.1.1 A liberdade matrimonial

A liberdade existencial respeitante ao matrimônio, com-preensiva da prerrogativa de estar e de não estar casado, é am-plamente tutelada pelas mais diversas experiências jurídicas, a exemplo da brasileira, que a erige ao patamar de direito funda-mental. Em sua dimensão negativa (tida por preponderante), tal garantia impõe que o Estado se abstenha de intervir na autodeter-minação da pessoa quanto à constituição de família e quanto ao rompimento de vínculos conjugais. Positivamente, contudo, recla-ma prestação pública no sentido de impedir ingerências indevidas nessa esfera personalíssima da pessoa, por parte de seus pares. Neste diapasão, parece inevitável a inferência de que a

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disposição testamentária que restrinja qualquer dessas liberda-des seria inválida (no direito brasileiro, na gradação de nulidade) e, via de consequência, ineficaz. A singeleza inerente a esse raciocínio, porém, não dá conta da complexidade que pulula no mundo dos fatos. É que, especialmente nos países da Common Law, as disposições testamentárias restringentes à liberdade matrimonial foram, tradicionalmente, invalidadas mediante sim-ples afirmação de enunciados gerais, que parecem suplantar a liberdade individual30. Apesar dessa marcante tendência de afirmação da liberdade matrimonial em detrimento da liberdade de testar, as Cortes viam com simpatia a possibilidade de excep-cionar a regra no caso de limitação à liberdade matrimonial do cônjuge supérstite. Isso com arrimo no brocardo si viduamanse-rit non nupserit (SCOTLAND, 1802, p. 2966-2967). Assim:

a exceção foi desenhada para permitir, ao testador, a conservação do relacionamento familiar – ou, ao menos, aquilo que continuou a existir após seu fa-lecimento. Quanto à proibição geral de restrições ao casamento, a preservação da família parece to-mar a frente, mas está claro que se trata de uma visão particular de família. [...] A exceção expressa o entendimento de que o homem tem algo como um direito de propriedade lúgubre, por assim di-zer, sobre a pessoa de suas mulheres (CHALMERS; REID; ZIMMERMANN, 2007, p. 108)31.

Hoje, com a superação dessas amarras patriarcais, res-trições testamentárias à liberdade matrimonial têm sido admi-30 Assim, v.g., a Suprema Corte do Misouri já declarou que “a preservação da felicidade doméstica, a segurança da virtude privada e a manutenção da família nas raias da moralidade, bem como a obediência e reverência dos filhos em relação aos pais, são por demais valorizados pela sociedade, a ponto de não poderem ser sopesados com a vontade individual”. Tradução livre. No original: “the preservation of domestic happiness, the security of private virtue, and the rearing of families in habits of sound morality and filial obedience and reverence, are deemed to be objects too important to society, to be weighted in the scale against individual personal will” (MISOURI; HOUCK, 1871, p. 150).31 Tradução livre. No original: “the exception is designed to allow the testator to preserve a family relationship – or at least as much of it as can be said to exist, given his or her decease. As with the general prohibition of restraints on marriage, the preservation of the family comes to the fore, but it becomes clear that this is a particular vision of the family. (…) The exception represents a view ‘that men have a sort of mournful property right, so to speak, in the viduity of their wives”.

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tidas casuisticamente. Isto é: se verificado que o testador, ao legar determinado bem a tal ou qual pessoa sob condição de que esta não se case em circunstâncias pré-definidas, visou à salvaguarda dos interesses do legatário, preserva-se a eficácia da disposição testamentária. Se, por outro lado, as circunstân-cias indicarem a imposição de certas escolhas ou a pressupo-sição de algo como um direito de propriedade sobre a pessoa, a disposição pode ser invalidada, pois afrontosa à publicpolicy. Enfim, o casuísmo impõe que as Cortes não se inclinem à for-mulação de enunciados gerais atinentes a essa matéria, bem como que não assumam papel paternalista. Isso porque, con-soante enfatizado às primeiras linhas desse ensaio, o direito das sucessões e o direito de família atendem a fenômenos íntimos e correntes no mundo dos fatos. O reconhecimento de que se está diante de conflito entre dois interesses igualmente merecedores de tutela jurídica impõe a resolução de cada caso à luz daquilo que a ordem jurídica privilegia: as pessoas, que, vivas ou mortas, polarizam tais relações.

3.1.2 A tutela de expectativas legítimas

Expectativas legítimas ancoradas em elementos ba-silares da publicpolicy podem ter o condão de impedir a atuação de disposições testamentárias, contanto que devi-damente cotejadas e sopesadas as posições jusfundamen-tais em conflito. É o que decidiu a Suprema Corte da África do Sul, quando do julgamento de Robertson v. Robertson Executors:

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A regra de ouro para interpretação de testamentos consiste em verificar os desígnios do testador a partir da linguagem empregada. Verificada a von-tade que anima a disposição testamentária, a Cor-te está obrigada a atuá-la, salvo se impedida de fazê-lo por força de alguma norma jurídica (ÁFRI-CA DO SUL, 1914)32.

Esse vetusto precedente informou as rationes decidendi do julgamento do caso BoETrustLimited NO & others(ÁFRICA DO SUL, 2012), pela mesma Corte, em 2012. No caso, questionava-se a validade de disposição testamentária que atribuiu parcela do patrimônio da testadora a um trust encarregado de financiar es-tudantes brancos que desenvolvessem seus estudos de mestrado fora do território sul-africano. à sombra do apartheid, disposições constitucionais que prestigiam a dignidade humana e repudiam qualquer forma de discriminação, especialmente a racial, impeli-ram o deslinde do feito no sentido de não atuação da disposição testamentária questionada. Limitou-se, portanto, a posteriori, a liberdade de testar, a fim de afirmar legítimas expectativas enrai-zadas em preceitos constitucionais (TOIT, 2000, p. 359-360). Apesar das reduzidas preocupações dos autores brasi-leiros em relação à liberdade de testar (ou ao espectro da au-tonomia da vontade no âmbito do direito das sucessões) e da consequente tímida jurisprudência acerca do tema, a notícia do trato que outras experiências jurídicas dispensam a essa expres-são da autonomia privada e seus limites consubstancia valioso estímulo a investigações científicas conducentes ao paulatino aprimoramento do direito das sucessões brasileiras.

32 Tradução livre. No original: “the golden rule for the interpretation of testaments is to ascertain the wishes of the testator from the language used. And when these wishes are ascertained, the court is bound to give effect to them, unless it is prevented by some rule of law from doing so”.

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3.1.3 A segurança alimentar

A segurança alimentar parece ser preocupação central da comunidade jurídica brasileira, consoante denota a difundida ideia de que o direito das sucessões é acessível apenas a uns poucos. Com arrimo nessa assunção, poder-se-ia argumentar que a ampliação da liberdade de testar, nos moldes propos-tos, infringiria a segurança alimentar dos dependentes econômi-cos do falecido. E esse argumento ganharia força em razão da imprevidente seguridade social brasileira, nitidamente inapta a atender a seus desígnios de promoção do bem estar social. Essa possível construção, malgrado contundente, é de-masiadamente circunstancial. Assim, se acertada, somente te-ria valia enquanto perdurar o estado de coisas a que se refere. Além dessa primeira falha, a liberdade de testar – expressão, como se viu, da personalidade do testador – não pode sucumbir, tout cort, diante das vicissitudes identificadas na sociedade bra-sileira. É que o direito das sucessões deve estar atento às pecu-liaridades de cada caso concreto e fornecer parâmetros de ade-quação de sua normatividade às circunstâncias fáticas que se configurarem. Um sistema estanque de sucessão forçada, além de defasado, é estéril para compor, satisfatoriamente, conflitos advindos da complexidade factual. De muito maior efetividade seria um modelo que privilegie, amplamente, a liberdade de tes-tar, sem prejuízo da aplicação subsidiária da sucessão legítima. O dirimir de controvérsias eventualmente surgidas quando da atuação da disposição última de vontade poderia se dar em con-creto, a partir do instrumental e das aberturas hermenêuticas do sistema jurídico.

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Nesse diapasão, no que tange à segurança alimentar, nada parece impedir a fixação de alimentos, inclusive de caráter compensatório, a serem custeados pelo espólio ou pelos herdei-ros, necessários ou testamentários, por tempo determinado, a fim de que o alimentando se aparate para garantir a própria sub-sistência. Isso porque a solidariedade familiar (goste-se do termo ou não), fundamento primeiro do dever de pagar alimentos, vin-cula o falecido (e seu patrimônio), bem como os demais fami-liares do alimentando, que podem, eles também, ser herdeiros do de cujus (OLIVEIRA; CAHALI; PEREIRA, 2007, p. 277-293). Desse modo, seriam amortizados os “efeitos deletérios da súbita indigência social” (MADALENO, 2008, p. 726), advinda da morte de um provedor, sem restrição genérica da liberdade de testar. Outra possível solução, mais simples e harmônica com a orientação da jurisprudência brasileira, seria, na linha do preva-lecente nas experiências jurídicas tangenciadas supra, assegurar, ao dependente, parcela da massa de bens deixada pelo provedor – conforme a dimensão da necessidade do dependente econô-mico do falecido, as possibilidades do monte, ressalvado que “na maior parte das vezes, os alimentos são pagos com o fruto do trabalho do alimentante, e não com o rendimento dos seus bens” (NEGRÃO, 2002, p. 1284), e as legítimas expectativas dos de-mais herdeiros, especialmente os testamentários. Destarte, sem se falar em reserva de porção legítima, preserva-se a segurança alimentar do dependente desamparado (a qual é consectário de normas de ordem pública), caso a caso e na exata medida de sua necessidade. Em concreto (a posteriori), restringe-se a liberdade de testar, num esforço de balanceamento entre esta e as neces-sidades básicas de membro do agrupamento familiar do falecido.

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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante desses apontamentos, que visam, apenas, a acusar a pequenez das discussões concernentes a questões de fundo no direito sucessório brasileiro – inclusive quanto a maté-rias hoje calorosamente discutidas no direito comparado. Assim, propõem-se, muito modestamente, as seguintes assertivas:

1 A ciência do direito comparado fornece valiosíssimo instru-mental ao estudo do direito das sucessões (especialmente da sucessão testamentária), que, malgrado ignorado pela expressiva maioria dos civilistas, reclama urgente releitura.

2 O direito das sucessões é, tradicionalmente, tido como me-canismo de preservação da família, enquanto unidade social relevante, e da propriedade privada, que deve se manter no seio familiar. Essa vetusta construção remonta ao modelo patriarcal de família transpessoal, extirpado do ordenamento jurídico brasileiro pelo advento da Constituição Federal de 1988. Não mais pode, portanto, prevalecer.

3 A liberdade de testar integra os direitos de personalidade da pessoa, pelo que não deve ser restringida a priori, malgrado seja esta (a restrição à liberdade de testar, na medida da porção legítima) a grande marca do vigente sistema de su-cessão forçada.

4 A comunidade jurídica internacional vem intensificando os debates atinentes aos limites impostos à liberdade de testar, especialmente aqueles fixados em observância da porção legítima. Tem ganhado força o entendimento de que, hoje, não há mais razão pela qual qualquer pessoa deva ter a prerrogativa de sindicar parte do patrimônio de outra em virtude, apenas, de seu nascimento.

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5 Admite-se, em numerosas experiências jurídicas, que a liber-dade de testar seja limitada por normas de ordem pública (publicpolicy) e pelos boni mores. Apesar do reinante silêncio, o direito brasileiro não é incompatível com tais restrições.

6 A ordem pública, que não se liga, geneticamente, a um mo-delo pré-formatado de família, pode conduzir a uma amplia-ção apriorística da liberdade de testar. Esta, então, poderia ser limitada casuisticamente, em atenção às peculiares cir-cunstâncias fáticas de cada caso concreto.

7 A jurisprudência comparada, em seu atual estágio, fornece contundentes exemplos da compatibilização entre publicpo-licy e liberdade de testar, especialmente nos casos de prote-ção de liberdades fundamentais do herdeiro testamentário e de preservação de expectativas legítimas.

8 À luz do caminhar do direito das sucessões no Brasil, é no-tório que grandes resistências serão opostas à proposta de revisão do modelo de sucessão forçada e de privilégio à li-berdade de testar. Isso, notadamente, no que tange à segu-rança alimentar de dependentes do testador que não foram contemplados em sua disposição última de vontade. Não obstante, o próprio ordenamento jurídico fornece mecanis-mos de atendimento das necessidades destes dependentes, a exemplo dos alimentos, inclusive de natureza compensa-tória, e da possível esterilização de disposições testamentá-rias que o ponham em situação de indigência social.

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ZIMMERMANN, Reinhard. Compulsory heirship in Roman Law. In: REID, Kenneth G C, WAAL, Marius J de, e ZIMMERMANN, Reinhard. Exploring the law of succession: studies national, his-torical and comparative.v.5. Edimburgo: Edimburgh University Press, 2007.

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REFUGIADOS DO BRASIL AO RIO GRANDE DO SUL: NOVOS DESAFIOS PARA A

COMUNIDADE QUE ACOLHE

REFUGEES FROM BRAZIL TO THE RIO GRANDE DO SUL: NEW CHALLENGES TO

THE COMMUNITY THAT RECEIVES

Patricia Grazziotin Noschang1

Rafaela Machado Cardona2

RESUMOConflitos internos, mudanças climáticas, insegurança econô-mica têm gerado, no século XXI, um número elevado de refu-giados, que buscam novos países para se abrigarem de qual-quer tipo de perseguição ou condições melhores para viver e buscar o sustento de sua família. O Brasil se tornou um dos destinos mais procurados por refugiados vindos principalmente do continente africano, mas também recebendo de outros paí-ses, como da Síria. A lei que determina as condições jurídicas dos refugiados no Brasil é a Lei 9.474/97, que cuida de todo o procedimento de acolhida e regularização da condição de refúgio no Brasil. A primeira parte deste trabalho apresenta os procedimentos baseados na referida lei. Posteriormente, este artigo busca apresentar a realidade dos refugiados, no sul do Brasil, principalmente na cidade de Passo Fundo. O método de abordagem adotado é o dedutivo.

1 Doutoranda em Direito PPGD/UFSC; Mestre em Direito e Relações Internacionais PPGD/UFSC; Especialista em Direito Internacional UFRGS; Professora de Direito Internacional e Direitos Humanos da Faculdade de Direito da Universidade de Passo Fundo (UPF).2 Acadêmica da Faculdade de Direito da Universidade de Passo Fundo (UPF).

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PALAVRAS-CHAVE: Lei 9.474/97, Passo Fundo, Refugiados, Rio Grande do Sul.

ABSTRACTInternal conflicts, climate change, economic insecurity has caused in the XXI century a large number of refugees seeking new countries as a shelter of any kind of persecution or better conditions to live and seek the support of his family. Brazil has become one of the most popular destinations for refugees coming mainly from the African continent, but also receiving from other countries like Syria. The law that regulates the legal situation of refugees in Brazil is Law 9.474 / 97, this takes care of the acceptance procedure and regulation of refuge status in Brazil. The first part of this paper presents the procedures based on that law. Later this article aims to show the reality of refugees in southern Brazil, mainly in the city of Passo Fundo. The adopted method of approach is the deductive method.

Keywords: Law 9.474/97, Passo Fundo, Refugees, Rio Grande do Sul.

1 INTRODUÇÃO

Nos últimos anos, o Brasil se tornou um dos principais destinos para a maioria dos estrangeiros que deixam suas casas, fugindo de guerras, eventos climáticos, perseguição política e re-ligiosa, ou por motivo racial. Esses estrangeiros chegam ao Brasil e recorrem à Polícia Federal, buscando a condição de refugiados para poder se estabelecer legalmente no território nacional.

Em 1960, o Brasil aderiu à Convenção Relativa ao Esta-tuto dos Refugiados de 1951. Muito embora os tratados tenham aplicação a partir da entrada em vigor, esta convenção possui uma cláusula de reserva temporal e geográfica especial. Devido

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à quantidade imensa de pessoas que tiveram de deixar suas pátrias em virtude da I e II Guerra Mundial, a convenção pós es-ses acontecimentos previu uma cláusula que restringia o com-prometimento do Estado para com os refugiados, uma vez que estes mesmos refugiados deveriam estar relacionados somente com acontecimentos anteriores a 01º de janeiro de 1951, na Europa ou alhures. No entanto, com o passar dos anos, novos refugiados foram surgindo e percebeu-se a necessidade de pro-teger outros fluxos de refugiados decorrentes de conflitos inter-nos, bilaterais ou regionais. Em vista disso, um novo Protocolo foi elaborado e submetido para aprovação na Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1966, entrando em vigor em outubro de 1967, buscando abarcar todo o tipo de refugiados desde então. A partir do Protocolo, os Estados Partes devem aplicar as dispo-sições da Convenção sem limite de tempo e local.

O Brasil foi o primeiro país do Cone Sul a integrar o Alto Comissariado das Nações Unidas e, por isso, o país foi inova-dor nas questões relativas aos refugiados, e ratificou a Conven-ção relativa ao Estatuto dos Refugiados em 1961 pelo Decreto 50.215, posteriormente, em 1972, aderiu ao Protocolo atra-vés do Decreto 70.946. Em 1997, o Brasil promulgou a Lei nº 9.474/97, que definiu mecanismos para implementar o Esta-tuto dos Refugiados vinculado à Convenção de 1951, além de determinar outras providências.

A legislação nacional e internacional acerca dos refugia-dos abrange um princípio fundamental àqueles que fogem de perseguição: o princípio do non-refoulement, ou seja, é extre-mamente vedado ao Estado recebedor reenviar os refugiados para o local ao qual estão sofrendo perseguição ou perigo.

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O presente trabalho busca apresentar os procedimentos de acolhida dos refugiados no território nacional e demonstrar a situação desses no Estado do Rio Grande do Sul e na cidade de Passo Fundo. O método de abordagem é o dedutivo. Contudo, como a temática é recente na cidade de Passo Fundo, as fontes utilizadas foram entrevistas concedidas e publicadas por jornais locais, pelos refugiados e pessoas que os acolheram.

2 OS REFUGIADOS NO BRASIL: LEGISLAÇÃO E PROCEDI-MENTOS

Em 1997, percebendo a importância da temática, o le-gislador brasileiro apresentou uma lei acerca dos refugiados, trazendo normas específicas e regulamentando o procedimen-to que deve ser seguido quando o Brasil conceder refúgio. O grande avanço da lei 9.474/97 é que, tendo como referência o disposto na Declaração de Cartagena de 1984 e na Organi-zação da Unidade Africana de 1967, conceitua como refugiado aquelas pessoas que, devido à grave ou generalizada violação de direitos humanos, foram obrigadas a deixarem seus países de nacionalidade para buscar refúgio em outros países.3

A proteção e acolhida aos refugiados, no Brasil, pode ocorrer de duas formas: por meio de reassentamento, quando o Brasil acolhe aquele indivíduo que já foi reconhecido como refu-giado por outros Estados ou pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), ou através do reconhecimen-3 Do Conceito. Art. 1º Será reconhecido como refugiado todo indivíduo que: I - devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas encontre-se fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país; II - não tendo nacionalidade e estando fora do país onde antes teve sua residência habitual, não possa ou não queira regressar a ele, em função das circunstâncias descritas no inciso anterior; III - devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país (BRASIL, 2015).

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to da sua condição de refugiado através do governo brasileiro, em que o Brasil será a primeira pátria a lhe acolher e lhe ofere-cer proteção, através de sua Constituição.

A norma criada pelo legislador brasileiro determinou o procedimento para se efetuar o pedido de refúgio, neste segun-do caso. Para que se possa requerer o refúgio, é necessário que o estrangeiro, informalmente, faça a requisição à Polícia Federal ou à autoridade migratória na fronteira assim que atravessá-la, conforme artigo 7º da lei 9.474/97 (BRASIL, 2015).

Poderá, também, requerer o refúgio o estrangeiro que resida no Brasil e esteja em concordância com os requisitos ne-cessários para a concessão do status, a qualquer tempo. Essa solicitação, que posteriormente será formalizada, impede que o solicitante seja deportado para o território em que sua vida ou integridade física esteja ameaça, mesmo que a entrada no terri-tório nacional tenha sido ilegal.

O pedido é feito na Delegacia da Polícia Federal e con-siste no preenchimento de um formulário indagando as razões pelas quais o estrangeiro requer o refúgio e as circunstâncias da entrada do mesmo em território brasileiro, informações estas que serão utilizadas como base para a concessão ou não da condição, seus dados pessoais e uma entrevista. Caso o solici-tante não domine a língua portuguesa, será assessorado por um intérprete. Todas as informações prestadas pelos solicitantes são sigilosas (BRASIL, 2015).

Com isso, o policial federal redigirá o Termo de Declaração e o enviará ao Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE)4. Este documento, além de iniciar o processo de refúgio, servirá 4 Órgão ligado ao Ministério da Justiça, que analisa os pedidos de concessão de refúgio e decide.

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de documento para o solicitante até a expedição do Protocolo Provisório. A expedição deste protocolo leva cerca de 20 dias e ele deve ser emitido para cada solicitante individualmente, mas, na prática, quando há menores de idade no grupo familiar, es-tes são incorporados no documento dos pais e/ou responsáveis (JUBILUT, 2007, p. 05-08). É importante dizer que ele servirá de base legal para a estadia do solicitante no país, até a decisão final do CONARE ou do Ministério da Justiça. Com o protocolo em mãos, o estrangeiro pode requerer a Carteira Nacional de Traba-lho e Previdência Social (CTPS), para que possa exercer atividade remunerada no país, e o Cadastro de Pessoa Física (CPF).

Enquanto os processos de refúgio tramitam no referido comitê, os mesmos têm auxílio da Cáritas Arquidiocesana, uma instituição parceira do ACNUR que apoia os refugiados nos Centro de Acolhida com base nas suas três linhas de atuação (a prote-ção, a assistência e a integração local) desde a chegada dos es-trangeiros até a decisão do processo, que pode se encerrar com o reconhecimento da condição de refugiado (ACNUR, 2015).

Além da entrevista feita na Delegacia da Polícia Federal, o solicitante também passa por uma entrevista com um repre-sentante do Comitê Nacional para Refugiados, que é decisiva para a concessão da condição.

O processo de refúgio não tem prazo determinado, mas o Protocolo Provisório tem validade por um ano (JUSBRASIL, 2014). Assim, se o protocolo expirar antes da obtenção da res-posta sobre a condição de refugiado, o estrangeiro poderá pror-rogar o mesmo na Polícia Federal.

Caso o Comitê decida pela concessão da condição de refugiado, o solicitante deverá procurar a Polícia Federal para

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requerer o seu Registro Nacional de Estrangeiro. Se a resposta do Comitê for negativa, o solicitante será notificado para que, no prazo de 15 dias, caso queira, apresentar recurso perante o próprio departamento da Polícia Federal, o qual será remetido ao Ministério da Justiça. Durante a tramitação do recurso, será permitida a estadia do solicitante e de sua família em território nacional (BRASIL,2015).

Caso a decisão do Ministro da Justiça também seja ne-gativa, há dois entendimentos. O primeiro entende que esta de-cisão é irrecorrível, sendo que após o solicitante ser notificado pela Polícia Federal, ficará sujeito ao Estatuto do Estrangeiro – Lei 6.815/80 (ACNUR, 2014).

Já a segunda corrente se iniciou no processo de Extradição nº 1.085 (SOARES, 2012, p. 162). O Supremo Tribunal Federal entendeu que o procedimento de concessão da condição de refugiado é ato vinculado às normas taxativas da Lei 9.474/97. Dessa forma, as decisões do Comitê sobre esse assunto não po-dem fugir do controle do Poder Judiciário, para eventual obser-vância da legalidade de seus atos (SOARES, 2012, p. 162). Isso quer dizer que, caso o requerente, um membro da Defensoria Pública da União, o Ministério Público Federal ou alguma insti-tuição que defenda os direitos humanos questionem a decisão negativa do Comitê ou do Ministro da Justiça, poderão recorrer ao Poder Judiciário para dirimir a questão.

Essa opção de recorrer ao Poder Judiciário funciona como uma “nova instância” de proteção àqueles que solicitam refúgio, pois permite o questionamento das decisões proferidas pelo CONARE ou pelo Ministério da Justiça. Além disso, esse novo “controle jurisdicional” funciona como uma forma de evitar

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que o instituto seja utilizado de forma indevida, impedindo que ele acabe por perder sua credibilidade de proteção dos direitos fundamentais e da pessoa humana.

No entanto, é preciso que o Poder Judiciário esteja pre-parado e que suas decisões sejam cautelosas. Elas devem ser prolatadas de forma bem fundamentada para que se evitem da-nos futuros ao requerente. Além disso, deve-se comprovar a (in)existência dos elementos subjetivos (fundado temor de perse-guição ou violações de direitos humanos) e respeitar, sempre, o princípio do non-refoulement.

Caso o Julgador tenha dúvidas sobre a decisão que está proferindo, deve decidir pela conservação do refúgio, para que não exponha o Estado brasileiro a responsabilizações no âmbito internacional por violação dos direitos humanos. Dessa forma:

A revisão judicial (judicial review) da concessão do refúgio, fundado no princípio da universalidade da jurisdição, bem como na possibilidade de revisão das decisões administrativas pelo Poder Judiciá-rio – mesmo aquelas com impacto nas relações internacionais – e ainda em ser a extradição um instituto de cooperação internacional que leva em consideração os direitos do extraditando e tam-bém o direito das vítimas. Contudo, a revisão deve ser absolutamente regra-da e estrita, em respeito ao princípio do non-re-foulement. De fato, no tocante ao refúgio, essa revisão deve ser feita sempre sob o paradigma da interpretação pro homine. Por isso, defendo que a concessão de refúgio no CONARE ou na via recur-sal ao Ministro da Justiça faz nascer um ônus ar-gumentativo ao Supremo Tribunal, que deverá ex-por, sem sombra de dúvida, que não havia sequer fundado temor de perseguição odiosa ou situação grave de violações maciças de direitos humanos

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no caso em análise. Assim a dúvida milita a fa-vor da concessão do refúgio (princípio do in dubio pro fugitivo) e ainda só pode ser questionada a decisão do CONARE se houver evidente prova de abuso ou desvio de finalidade, como reza a dou-trina do controle judicial dos atos administrativos (RAMOS, 2011, p. 38-39).

As decisões do Comitê Nacional para Refugiados são pautadas pela prevalência do caráter humanitário e se motivam no indubio pro refúgio, do ônus da prova compartilhada e da credibilidade (SOARES, 2012, p. 164).

No mundo do Direito, como regra geral, o ônus da prova é de incumbência de quem alega o fato em questão, mas, no caso dos refugiados, devido às suas dificuldades de provar suas decla-rações, o Comitê adota o princípio da credibilidade, não exigindo documentação que comprove as alegações do solicitante.

O ônus da prova compartilhada diz respeito à “divisão” entre o requerente (que deve detalhar o que passou em seu País de origem) e o CONARE (que deve analisar as declarações do solicitante, verificando o fundado temor de perseguição e o sen-tido das declarações por ele prestadas, ao comparar a situação do País de origem do requerente) do ônus da prova.

Já acerca do indubio pro refugio, pode-se dizer que:

Sempre que houver alguma questão pontual re-lativa a algum caso específico sob a alçada do CONARE capaz de gerar dúvida em sua tomada de decisão, o desfecho do caso dar-se-á fincado no fato de que, ante a dúvida, a decisão do Comitê será favorável ao solicitante de refúgio. Trata-se, em síntese, da aplicação cabal de um principio ju-rídico central do ordenamento jurídico contempo-

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râneo, sobretudo, em seara da proteção interna-cional da pessoa humana (LEÃO, 2014, p. 165).

No que diz respeito ao prazo de tramitação destes pro-cessos, dependendo do seu grau de dificuldade, levam cerca de seis meses. Esses processos, por decidirem a respeito da vida ou da integridade física do solicitante, tramitam em caráter de urgência e quanto mais delicada a situação do requerente, a atenção será cada vez mais detalhada.

Porém, para interpor recurso ao Poder Judiciário, o solici-tante de refúgio deve basear seu pedido no indeferimento da de-cisão do Comitê ou do Ministro da Justiça. O que acontece é que muitos não conseguem motivar seu recurso de forma adequada, tendo em vista que o Comitê se limita a declarar que reconhece a condição de refugiado com base no art. 1º da Lei 9.474/97 ou que indefere a concessão do status em virtude do solicitante não se encaixar nas disposições do mesmo artigo ou afirmando que não existe fundado temor de perseguição.

A forma como o Comitê Nacional para Refugiados vem fundamentando essas decisões vão de encontro ao princípio da Motivação da Administração Pública (em que todas as decisões da administração pública devem ser fundamentadas) e com o artigo 26 da Lei 9.474/97. Dessa forma, a falta de fundamenta-ção por parte do Comitê ou do Ministro da Justiça prejudica os solicitantes em sua última chance, na última instância a quem podem recorrer para ter concedida sua condição de refugiado.

Em 22 de outubro de 2012, a Secretaria da Justiça e de Direitos Humanos do Estado do Rio Grande do Sul criou o Comitê de Atenção aos Migrantes, Refugiados, Apátridas e Ví-

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timas do Tráfico de Pessoas, objetivando promover a inclusão dos mesmos em políticas públicas, aprofundar o conhecimento sobre o tema, que é tão pouco debatido e estudado, e produzir um plano de ação para ajudá-los. Esse Comitê é o quarto em nível estadual para trabalhar, especificamente, com as questões de migrações e refúgio (ONU, 2014).

Desde sua criação, a procura de refúgio em território bra-sileiro por pessoas que são vítimas de perseguições em seus países de origem não para de aumentar. A cada dia, temos mais notícias de que estrangeiros ultrapassam as fronteiras do país e buscam a Polícia Federal para requerer a concessão de refúgio.

3 REFUGIADOS NO RIO GRANDE DO SUL E PASSO FUNDO: DESAFIOS LOCAIS

Dados fornecidos pelo Comitê Nacional para Refugiados, pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados e ONGs que auxiliam os solicitantes de refúgio revelam que o es-tado do Rio Grande do Sul é o que mais recebe refugiados no país. Dos 397 estrangeiros reassentados pelo Comitê, 207 es-tão no Estado. Essas pessoas estão divididas, principalmente, entre as cidades de Porto Alegre, São Leopoldo, Sapucaia do Sul, Sapiranga, Serafina Corrêa, Guaporé, Passo Fundo, Santa Maria, Pelotas, Rio Grande, Caxias do Sul, Chuí e Venâncio Aires (JORNAL DO COMÉRCIO, 2014).

Cerca de 300 migrantes chegaram a Caixas do Sul, em julho de 2014, e muitos declararam que pretendiam continuar no país para, posteriormente, trazer a família para aqui residir. As autoridades locais informam que as facilidades para a obten-

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ção do Protocolo Provisório, as promessas de emprego e a rede de assistência aos estrangeiros são os principais atrativos da cidade da serra (G1, 2014).

Os solicitantes de refúgio, quando chegam ao território brasileiro, se deparam com diversas dificuldades e, entre elas, está a língua local. Muitos dos estrangeiros falam dois idio-mas – seu dialeto local e o um pouco do inglês ou francês. Um empresário de Getúlio Vargas, que emprega nove estrangeiros, ressalta que “todos trabalham bem, são prestativos” e que, “no início, o problema foi o idioma, mas, depois, com gestos, fomos nos entendendo” (TEDESCO; GRZYBOVSK, 2011, p., 336-355).

No caso dos solicitantes, em sua maioria encontrados na cidade de Passo Fundo, chegam a falar mais de dois idiomas. Além do seu dialeto local, ainda dominam o francês e um pouco do inglês. E ainda é perceptível a força de vontade em apren-der o português, para lhes promover a comunicação, podendo, assim, aumentar sua rede de contatos, as oportunidades de emprego e até mesmo para lhes facilitar as coisas banais fei-tas no dia a dia, como ir ao banco ou ao supermercado. Mas o português realmente lhes é um verdadeiro desafio. A rede de solidariedade local procura auxiliá-los como pode, oferecendo cursos de português. Muitos deles, com persistência, acabam aprendendo sozinhos, por necessidade, por questão de sobrevi-vência (VIVIAN, 2014, p. 09).

Sem dominar o idioma nacional, os solicitantes acabam por perder muitas oportunidades. Mas, por sorte, há pessoas que se sensibilizam com a situação dos mesmos no Estado e lhes oferecem ajuda, facilitando-lhes a vida como podem.

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É o caso do proprietário de uma imobiliária na cidade de Passo Fundo, Jesué Dall’Agnol. Em entrevista ao jornal O Na-cional, ele confessa que, como já precisou do auxílio de outras pessoas, ao ver a necessidade dos imigrantes que ingressaram na cidade e ao sentir a confiabilidade nos mesmos, fez com que ele expandisse suas negociações. Há três anos, o empre-sário alugou seu primeiro imóvel a um senegalês e afirma que são “ótimos pagadores e respeitam muito os vizinhos” (VIVIAN, 2014, p. 08-09).

O empresário ainda ressalta que eles têm um grupo que se ajudam entre eles e sabem que, se um sair do eixo, todos perdem a confiabilidade da sociedade. Comenta ainda que:

Eles não são pessoas miseráveis. Muitos deles são professores, mecânicos, engenheiros. Algu-mas pessoas pensam que não tem formação, porque foram para as vagas que aqui encontra-ram. Eles estão fazendo aqui o que nós brasileiro fazíamos na América do Norte, trabalhando de do-méstica, de garçom, de servente de pedreiro. Eles estão aqui com o intuito de fazer a vida, tanto que muitos deles já estão trazendo as esposas, porque a maioria é casado e já tem família no Senegal (VIVIAN, 2014, p. 08-09).

O município de Passo Fundo está entre as cidades mais procuradas pelos refugiados e conta com 66 pedidos de refúgio concedidos. Além destes, há muitos outros esperando decisão e diversos aguardando para encaminhar a documentação para a solicitação de refúgio (RADIO UIRAPURU, 2014).

O tempo médio de espera para a emissão do protocolo provisório é de cerca de 180 dias, porém, na cidade de Passo Fundo, segundo palestra ministrada na Faculdade de Direito da

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Universidade de Passo Fundo, o Dr. Mauro Vinícius Soares de Moraes informou que a espera tem sido de, aproximadamente, três anos. Sendo assim, quando o protocolo chega às mãos do solicitante, já vêm com caráter de “visto definitivo”.

Mesmo os refugiados sociais que se encontram na cidade, que, como visto anteriormente, não são abrangidos por nenhum dos conceitos de refugiado, permanecem no município, em vir-tude do princípio do non-refoulement, que determina que os solicitantes não podem ser “devolvidos” ao país o qual aban-donaram, tendo em vista as condições de direitos humanos e o temor de perseguição, que ameaça sua integridade física ou sua vida. Caso a condição de refugiado não seja reconhecida, os estrangeiros estão sendo reconhecidos legalmente através do princípio da solidariedade.

A grande procura pela cidade de Passo Fundo se deve em virtude da Delegacia da Polícia Federal que encaminha os pedi-dos, do crescimento relativamente rápido da cidade e do fato de a mão de obra na região estar escassa.

A cidade de Passo Fundo, depois de Caxias do Sul, é uma das que mais recebe imigrantes e, tendo essa noção de que a cidade seria um ponto de referência àqueles que fogem de perseguição ou buscam uma forma de conquistar uma nova vida com respeito e dignidade, foi criado o Fórum da Mobilidade Humana no município. O fórum conta com representantes da Comissão de Direitos Humanos da cidade, da Universidade de Passo Fundo, do gabinete da vereadora Claudia Furlanetto, das secretarias municipais, da Polícia Federal e com os representan-tes dos dois grupos mais numerosos de imigrantes: do Senegal e de Bangladesh (VIVIAN, 2014, p. 09).

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O Fórum analisa a possibilidade de criação de um centro de referência para os imigrantes, algo semelhante ao que já existe em Caxias do Sul. Neste espaço, os estrangeiros pode-riam buscar informações, como assessoria jurídica, tradução, cursos de português e soluções quanto a questões trabalhistas e de aluguel de suas casas (VIVIAN, 2014, p. 09).

Outro problema enfrentado pelos refugiados em Passo Fun-do é com relação aos estabelecimentos bancários. Os bancos se limitaram a atender cinco estrangeiros por dia para efetuar a transferência de valores para fora do país. O fórum já conversou com o Sindicato dos Bancários para dirimir a questão, mas ain-da nada foi resolvido (VIVIAN, 2014, p. 09).

Um ponto positivo em relação à atuação do Poder Público Municipal é que todos os refugiados têm o cartão para acesso ao Sistema Único de Saúde, com endereço da mesquita impro-visada, a qual frequentam na cidade, para que fosse garanti-da a efetivação da confecção dos documentos e não existisse problemas na emissão de algum deles, o que faria com que algum dos solicitantes pudesse ficar desassistido pelo Sistema (VIVIAN, 2014, p. 09).

Mas, em contrapartida, o lazer e a cultura a estas pessoas são bastante limitados. A sociedade ainda não busca a inte-gração com os novos habitantes e não há um local onde eles possam se reunir, interagir e fazer o que costumavam fazer em seus países de origem.

Alguns senegaleses residentes na cidade de Passo Fundo revelaram que, fora do âmbito do trabalho, não se sentem in-tegrados na comunidade. O que sentem é um estranhamento, mesclado com certa curiosidade dos que veem e os cercam.

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Em momentos de lazer, suas diversões se baseiam em assistir televisão, ouvir música e comunicar-se com a família e amigos que permaneceram no Senegal (TEDESCO; GRZYBOVSKI, 2011, p. 336-355).

A comunidade vinda do Senegal ainda anseia pela cons-trução de um templo/mesquita definitivo, onde eles possam se integrar e, por que não, abranger novos interessados na religião muçulmana. Para isso, recentemente, a comunidade muçulma-na residente em Passo Fundo colocou um convite na porta da mesquita, convidando a população para conhecer sua cultura.

Mas, apesar de existirem falhas, há engrenagens que fun-cionam adequadamente. É o caso do Sindicato dos Trabalhado-res na Indústria da Alimentação (SINDI Alimentação). O presi-dente do sindicato, Miguel Luis do Santos, ao perceber a grande oferta de mão-de-obra por parte dos estrangeiros, que, diante da oferta de emprego, ficam tão felizes, pois enxergam como uma forma de melhorar suas condições de vida e as de seus fa-miliares, entendeu que estes mesmos trabalhadores devem ter garantidos os mesmos direitos que os brasileiros, e, por isso, as últimas reivindicações da categoria incluíram as necessidades dos mesmos, principalmente no que diz respeito ao trabalho em frigoríficos (VIVIAN, 2014, p. 07).

Mais de 200 estrangeiros trabalham em uma empresa de abate de aves na cidade de Passo Fundo. E, diferentemente de como a população enxerga estas pessoas, eles não estão retirando o lugar dos cidadãos passofundenses, pois as funções que ocupam são aquelas que antes estavam vagas, que nin-guém queria exercer (VIVIAN, 2014, p. 07).

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Um empresário da cidade de Nova Araçá – RS, proprietário de uma empresa de abate de aves, revelou que, em 2011:

Em torno de 21 homens [...] estão contratados aqui. [...] São 16 funcionários, sua função é “sangria”, isto é “matar frango”, os outros cinco são supervisores de abate. O frango é obrigatório morrer na mão de um muçulmano [...]. O frango, na hora da sangria, tem que estar direcionado para Meca (TEDESCO; GRZYBOVSKI, 2011, p. 336-355).

O presidente do SINDI Alimentação de Passo Fundo ain-da comenta que a comunicação era outra dificuldade em re-lação aos refugiados. Eles ansiavam pelo trabalho, mas não compreendiam como deviam desempenhar a função, por não compreenderem o idioma. No entanto, com inteligência e com-petência, essa barreira foi quebrada e a fábrica optou por, ao invés de demitir os estrangeiros por não conseguir se comunicar com eles, gerar mais empregos, contratando pessoas que co-nhecem a língua dos mesmos e servindo como tradutores. Ele ressalta que:

Se a cultura deles é outra, cabe à empresa colo-car pessoas qualificadas para auxiliar. Hoje tem pessoal contratado que fala a língua deles para explicar a nossa cultura. No começo essa ques-tão estava muito complicada, porque ninguém se entendia. Até nas conversas na porta da fábrica temos quem passa a informação pra eles. É um começo, falta muito ainda (VIVIAN, 2014, p. 07).

Apesar da diferença de idioma e de costumes, é possível perceber que os refugiados e solicitantes estão conseguindo ser

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integrados na região norte do Estado, preservando sua religião e sua cultura.

Em entrevista feita pelo professor da Universidade de Pas-so Fundo, João Carlos Tedesco, com um dos líderes dos se-negaleses, o mesmo revelou que desejava que a comunidade passofundense os visse como trabalhadores, pois “não estamos aqui para tirar o emprego de ninguém, não viemos roubar nada. Queremos trabalhar, orar e dar graças a Deus por estarmos bem, para mantermos nossas famílias” (TEDESCO; GRZYBOVS-KI, 2011, p. 336-355).

Dessa forma, já existem na cidade aqueles que defendem os direitos de igualdade aos refugiados, como o presidente do Sindicato dos Trabalhadores na Indústria de Alimentação, que entende ser direito dos refugiados o cumprimento integral de to-dos os direitos e benefícios garantidos em Convenções Coletivas (VIVIAN, 2014, p. 07).

Muitas pessoas na cidade olham os refugiados com ar de preconceito, especialmente os africanos, haitianos e senegale-ses, devido à sua cor. A população de Passo Fundo ainda não está preparada para este choque cultural. Porém, existem aque-les que não se importam com a cor da pele, com a religião ou com a profissão que as outras pessoas exercem, e assim, aca-bam por acolhê-los.

Um empresário da região declara que os senegaleses de sua empresa:

Falam pouco e trabalham muito (...). Entre eles, não há discórdia, fazem tudo com dedicação. São até invejados. Claro que não os tratamos com dife-rença, mas nem com indiferença, a gente controla,

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mas dá pra ver que se dão bem, almoçam juntos, aprendem umas palavras em português, dão muita risada. Conversam entre eles numa língua que tu não entende, mas no trabalho falam pouco e se ajudam. Tem empregado nosso que se eu pudesse trocar por um deles eu trocaria, o meu medo é que eles desistem facilmente. Então seguramos, mas dá pra ver que se fosse criar uma concorrên-cia entre eles, dão show nos outros, são melhores, mais dedicados. A dedicação ao trabalho é invejá-vel. (...) A remuneração é padrão, sem diferença. (TEDESCO; GRZYBOVSKI, 2011, p. 347).

De acordo com o que foi visto, é possível perceber que a região de Passo Fundo é procurada pelos imigrantes por conta da eficiência do Departamento da Polícia Federal e pela dispo-nibilidade de empregos. Mesmo que a remuneração dada aos refugiados não seja muito alta, eles conseguem enviar dinheiro aos seus familiares a cada dois ou três meses (TEDESCO; GR-ZYBOVSKI, 2011, p. 336-355). Além disso, a totalidade deles afirma que é melhor estar aqui do que em suas terras natais, pois aqui há segurança, empregos e pessoas os auxiliando no que é necessário.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A região de Passo Fundo é um polo de refugiados e a po-pulação deve estar preparada para este intercâmbio cultural, levando em consideração que existe lugar para todos na cidade e que estamos auxiliando o próximo com fins humanitários.

É evidente este caráter humanitário na causa dos refu-giados e, ainda, é claro o empenho da República Federativa do Brasil em fazer o seu máximo para auxiliá-los.

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O governo brasileiro, percebendo o déficit no que diz res-peito à legislação relativa aos estrangeiros no País, criou o an-teprojeto ao Estatuto do Estrangeiro. A nova lei retira o termo “estrangeiro” e a substitui pelo termo “migrante”. Além disso, garante aos migrantes o direito ao voto, a participação política, a Previdência Social, a educação e a assistência médica gratuita, também não será mais necessário estar empregado para se re-gularizar no Brasil. Dessa forma, além dos direitos civis, os mes-mos terão direitos políticos, podendo, ainda, se filiar a sindicatos.

A proposta que será analisada e votada pelo Congresso também prevê a criação de um órgão estatal central para efe-tuar a regulamentação dos estrangeiros, função que hoje é feita pela Polícia Federal. A ideia do projeto é retirar a imagem da Polícia para aqueles que chegam ao País. No entanto, eles per-manecem com a função de investigar e acionar penalmente os estrangeiros envolvidos em algum crime.

A legislação brasileira sobre refugiados é bastante adequa-da às necessidades, porém, peca em alguns aspectos, como a falta de regulamentação sobre as organizações não-governa-mentais, fazendo com que seja gerado insegurança, pois a qual-quer momento pode ocorrer a não-renovação dos contratos e os refugiados podem ser deixados à mercê de sua própria sorte, em um território que desconhecem, com uma língua que poucas vezes dominam.

Com a visão abrangente da situação dos refugiados no Estado do Rio Grande do Sul, com foco na cidade de Passo Fundo, percebeu-se que a população não está preparada para o choque cultural, para aquilo que lhe é diferente. Os próprios refugiados sentem a estranheza com que a comunidade passo-

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fundense os observa e isso gera frustração. Eles estão na cidade para obterem melhores condições de vida, o que, em seus paí-ses, por diversos motivos, não conseguiam ter.

Dessa forma, concluiu-se que os refugiados estão bem amparados no Brasil, no entanto, poderia ser feito muito mais. O Comitê Nacional para Refugiados e o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados fazem muito para auxiliá-los, mas é preciso mais. É preciso que toda a população brasileira se solidarize com estas pessoas, que procuram o país por terem suas vidas ou integridade física ameaçadas. Ainda é necessário que o povo brasileiro abandone o preconceito para com os re-fugiados e passe a enxergá-los como parte integrante da socie-dade, possibilitando sua inserção na comunidade e contribuindo para a construção de sua dignidade.

Apesar de todas as dificuldades enfrentadas, é incrível como os refugiados e solicitantes desta condição nunca perdem a alegria de viver. Mesmo sem compreender seu dialeto, é pos-sível sentir o seu contentamento em estar em um local seguro, onde possui condições de trabalhar, de conviver, de viver e, prin-cipalmente, de agradecer.

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ANÁLISE ECONÔMICA DO DIREITO E DECISÃO JUDICIAL: DIÁLOGO ENTRE SUB-JUÍZO DE NECESSIDADE E ARGUMENTO

ECONÔMICO

LAW, ECONOMICS AND JUDICIAL DECISIONS: A DIALOGUE BETWEEN PROPORTIONALITY

AS NECESSITY AND ECONOMICS

Cláudio de Oliveira Santos Colnago1

Vitor Seidel Sarmento2

RESUMOEste artigo analisa os fundamentos do movimento interdiscipli-nar Law & Economics (Direito e Economia) e reflete sobre o pa-pel do discurso econômico no plano da decidibilidade judicial. Nesse intuito, a partir da função desempenhada pelo sub-juízo de necessidade, pertencente ao juízo de proporcionalidade, será estabelecida uma ponte entre o processo intelectual de construção do sentido normativo pelo julgador e a utilidade que os argumentos de matriz econômica podem oferecer para melhor interpretar e aplicar o direito. Dessa forma, o trabalho discorre a respeito dos elementos dogmáticos relacionados ao teste de proporcionalidade e sobre a recepção do pensamento “Direito e Economia”, que tem origem nos estudos do realis-mo, pragmatismo e utilitarismo norte-americano. Com estes

1 Professor da Faculdade de Direito de Vitória (FDV). Doutorando e mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela FDV. Membro do grupo de pesquisa “Estado, Democracia Constitucional e Direitos Fundamentais”, vinculado à FDV e coordenado pelos professores Daury Cesar Fabris e Adriano Sant’Ana Pedra. Presidente da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB/ES. E-mail: [email protected] 2 Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV). Pesquisador bolsista do Programa de Iniciação Científica da FDV. E-mail: [email protected].

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subsídios, partindo dos referenciais teóricos de Robert Alexy e Richard Posner, busca-se desfazer a separação rígida que his-toricamente impediu o contato entre estes dois campos do sa-ber humano, propondo o emprego efetivo de categorias econô-micas na decisão judicial como forma de articular uma ciência jurídica mais consonante com as consequências econômicas, sociais e políticas.

PALAVRAS-CHAVE: Direito & Economia, Proporcionalidade, Ne-cessidade.

ABSTRACTThis paper analyzes the elements of interdisciplinary movement Law & Economics and reflects on the role of economic discourse in plan of judicial decision. For that purpose, from the function perfomed by the sub-judgment of necessity, belonging to the judgment of proportionality, will be established a bridge between the intellectual process of construction of the normative sense by the judge and the utility that the economic matrix arguments can offer to better interpret and apply the law. Thus, this paper talks about the dogmatic issues related to the proportionality test and on the receipt of thought law and economics, which has its origin in the studies of realism, pragmatism and american utilitarianism. With these grants, starting from the theoretical referencesof Robert Alexy and Richard Posner, what you want is to undo the rigid separation that historically prevented contatc between the two fields of human knowledge, proposing the effective use of economic categories in judicial decision as a way to articulate a legal science more in line with the economic, social, and political consequences.

Keywords: Law & Economics, Proportionality, Necessity.

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1 INTRODUÇÃO

A concepção de direitos representa uma das maiores con-tribuições do pensamento político e filosófico liberal. Durante qua-se três séculos de história, o papel ideológico dos direitos civis, envolvendo não apenas os aspectos institucionais, mas também subjetivos, parece ter triunfado sobre qualquer outro modelo in-telectual de estabilização do poder. Esse ideal propalado à época das primeiras revoluções liberais-burguesas e do movimento ilu-minista estabeleceu: (i) promessas de emancipação do indivíduo; (ii) pôs fim ao poder despótico do ancien régime; (iii) anunciou a derrocada dos estamentos sociais; e (iv) submeteu a organização estrutural do Estado ao império da lei (FIORAVANTI, 2001).

A partir dessas considerações, - atualmente - o legado do mundo em que habitamos é um lugar marcado por uma tradi-ção judicial predominantemente positivista, repetitiva, individual e avessa ao diálogo com outros ramos do saber, que se perfaz numa redoma teórica e em um domínio de si mesmo. Com este pano de fundo, a produção do conhecimento técnico-científico da práxis forense se funda na proposição de que “[...] não há direito fora do direito positivo” (BOBBIO, 2006, p. 21), e no reconhecimento do processo de interpretação e aplicação dos preceitos legais por meio do paradigma de subsunção do fato à norma, com inspiração na école de l’exegese. Contudo, a virada do século XXI e os novos vetores ideológicos impulsionaram no-vas posturas, sobretudo porque a ordem jurídica e política vem mudando fundamentalmente.

Dessa maneira, é altamente contemporâneo perguntar se o modelo dominante apresentado fracassou por aspectos ex-

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trínsecos, ou se já não é hora de buscar a comunicação com outros segmentos epistêmicos, já que a capacidade de lidar com problemas complexos se exauriu. A rigidez do pensamen-to positivista e as interlocuções com seus principais predicados (como a “sistematicidade”, “neutralidade” e “unidade”) formam um nó górgio difícil de ser desatado. Nesse ponto, há um grande fosso que historicamente separa dois campos do conhecimento humano: a economia e o direito. Cruzá-los, inicialmente, não é uma tarefa simples, mas a necessidade de convergência entre os horizontes do pensar econômico e do pensar jurídico são di-retamente proporcionais aos nossos futuros ganhos em qualida-de nas decisões judiciais, estabilização de expectativas, reforço na segurança jurídica e, especialmente, melhoria democrática.

A contextualizar o reconhecimento da força normativa dos princípios jurídicos consagrados na Constituição da Repúbli-ca, nota-se que as controvérsias constitucionais possuem feição deontológica (DWORKIN, 2012), o que, em um sentido mais amplo, acena para a possibilidade de que normas entrem em colisão e conformem a estrutura democrática e pluralista do Es-tado de Direito. O teórico alemão Robert Alexy sustenta que os direitos fundamentais são disposições normativas, sob a forma de princípios, que “devem ser realizados na maior medida do possível, dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existen-tes” (ALEXY, 2011, p. 90), enquanto Ronald Dworkin vislumbra como “princípios que justificam decisões políticas que envolvem direitos que os indivíduos têm sob a Constituição” (DWORKIN, 2002, p. 119)3.3 Nesse sentido, Ronald Dworkin demonstra que os “elementos que os juristas devem levar em consideração, ao decidirem um determinado problema sobre deveres e direitos jurídicos, incluirá proposições com a forma e a força de princípios e que, quando justificam suas conclusões, os próprios juízes e juristas, com frequência, usam proposições que devem ser entendidas dessa maneira.” DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 120.

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O artigo está estruturado em quatro tópicos. O primeiro aborda, numa perspectiva macro, as principais características do juízo de proporcionalidade, sem perder de vista a leitura teóri-ca alemã e as conexões iniciais com a interdisciplinaridade4 do movimento Law and Economics no contexto jurídico-constitucio-nal. A seguir, será pontuado de maneira analítica o significado do “sub-juizo” ou critério de necessidade, pertencente ao juízo de proporcionalidade. O próximo tópico aproximar-se-á ainda mais do fenômeno da Law and Economics, demonstrando que seus aportes não só podem, mas são extremamente desejáveis no en-riquecimento da gramática judicial5, abrindo caminhos para o pro-cesso de interpretação e efetivação do direito e da jurisprudência. A parte final buscará estabelecer a conexão necessária, conside-rando a ordem jurídica e política contemporânea, entre o poder que os argumentos econômicos podem ter na decisão judicial.

2 JUÍZO DE PROPORCIONALIDADE

Em 1958, o Tribunal Constitucional Federal Alemão (TCFA) julgou um dos mais importantes casos da história recen-te do constitucionalismo contemporâneo (SCHWABE, 2012). O judeu Eric Lüth, empresário das telecomunicações e presiden-te do Clube de Imprensa de Hamburgo, liderou um boicote ao trabalho do cineasta Viet Harlan, antiga celebridade do cinema 4 Nos marcos deste trabalho, a interdisciplinaridade consiste numa terminologia específica e designa “uma forma de combinação entre duas ou mais disciplinas com vista à compreensão de um objeto a partir da confluência de pontos de vista diferentes e tendo como objetivo final a elaboração de uma síntese relativamente ao objeto comum (...), implica, portanto, alguma reorganização do processo de ensino/aprendizagem e supõe um trabalho continuado de cooperação dos conhecimentos envolvidos”. POMBO, Olga. Interdisciplinaridade: ambições e limites. Lisboa: Relógio d’Água, 2004, p. 78. Dito de outro modo, “um tema, objeto ou abordagem em que duas ou mais disciplinas intencionalmente estabelecem nexos e vínculos entre si para alcançar um conhecimento mais abrangente, ao mesmo tempo diversificado e unificado. Verifica-se nesses casos a busca de um entendimento comum (ou simplesmente partilhado) e o envolvimento direto dos interlocutores” SOMMERMAN, Américo. Inter ou Transdisciplinaridade? Da fragmentação disciplinar ao novo diálogo entre os saberes. São Paulo: Paulus, 2006, p. 30.5 Para os fins deste estudo, a expressão “gramática judicial” consiste em elementos que estruturam o sistema normativo, tornando-o válido. Dito de outro modo, representa a arquitetura linguística e o modo pelo qual o direito se materializa e se manifesta: o código/linguagem.

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nazista e responsável pela produção do filme Jud Süß6, con-clamando os proprietários das salas de cinema e empresas de distribuição de filmes a retirarem a película “Amada Imortal” dos roteiros e scripts de programação (DIMITRI; MARTINS, 2011, p. 247). Viet Harlan e o conjunto de empresários que financiavam a produção cinematográfica ajuizaram uma ação judicial contra Lüth, sustentando que o manifesto provocado afrontava disposi-tivos do Código Civil alemão (BGB).

Como se sabe, o pedido foi julgado procedente pelo Tribu-nal Estadual de Hamburgo; entre os diversos argumentos alega-dos, destaca-se o prejuízo causado ao exercício da livre iniciativa, honra e a imagem do cineasta. Harlan saiu vitorioso em todas as instâncias ordinárias, tendo sido o boicote considerado uma injusta limitação à prática de sua profissão, com severos reflexos econômicos às equipes produtoras do filme. Em resposta, Eric Lüth recorreu da decisão para a Corte Constitucional alemã, pois, segundo o presidente do Clube de Imprensa, a Lei Fundamental de Bonn, de 1949, teria assegurado a liberdade de expressão, o que lhe impede de ser punido simplesmente por expor a opinião.

Com base nessa tese, a Corte concluiu que o boicote realizado por Lüth é, na verdade, expressão legítima da manifes-tação do pensamento, sendo inadmissível a sua proibição, ainda que causasse eventuais perdas e danos a terceiros. Além disso, é importante frisar que, meses depois, a Corte Constitucional decidiu no chamado “julgamento das Farmácias” (Apothekenur-teil) que as leis da Baviera são inconstitucionais por exigirem uma série de restrições para a abertura de estabelecimentos farmacêuticos, ferindo o direito à liberdade de profissão. 6 O filme Jud Süß, lançado em 1940, era uma propaganda do regime nazista de Hitler, idealizado por Joseph Goebbels e produzido por Viet Harlan. À época, ajudou a criar um clima persecutório, tão desejado pelos membros do partido nazista.

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A bem da verdade, os dois julgamentos (“Lüth” e “Farmá-cias”) lançaram as bases de um dos mais relevantes elementos dogmáticos da teoria dos direitos fundamentais: a colisão de di-reitos, com destaque para a regra da proporcionalidade, acom-panhada de suas sub-regras (adequação, necessidade e propor-cionalidade em sentido estrito). Fundamentalmente, diante da necessidade de se construir um modelo político que, exaltando a diferença, possa conjugar os diversos valores presentes na sociedade e harmonizá-los, é que surgem os conflitos de direitos fundamentais. O primado da relatividade dos direitos constitu-cionalmente assegurados demonstra que não há normas com caráter absoluto, tampouco normas “superiores” em relação às demais, de modo a evidenciar a máxima cedência recíproca en-tre eles (TAVARES, 2006).

O vetor ideológico do pluralismo ideológico, da necessi-dade de implementarmos políticas públicas e de atingir a maior quantidade de objetivos encartados na Constituição Federal são responsáveis por modificar substancialmente a atividade intelec-tual dos julgadores. É forçoso lembrar que a Constituição de 1988 foi além das antecessoras, não apenas reconhecendo um catálo-go de direitos e garantias fundamentais, mas também ao invocar o mandamento corretivo das desigualdades socioeconômicas7.

De mais a mais, tendo em vista a consagração de um pro-jeto ético-filosófico heterogêneo (ZAGREBELSKY, 2011), o tex-to constitucional retirou da dormência inúmeras questões cujas respostas não se apresentam de maneira precisa, por exemplo:

7 Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;II - garantir o desenvolvimento nacional;III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

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(i) a importância da aplicação da regra de proporcionalidade8; e (ii) a relação estreita entre a sub-regra da necessidade e os institutos/categorias subjacentes à doutrina Law and Economi-cs. Essencialmente, a teoria da decisão judicial contemporânea consagra a regra de proporcionalidade como instrumento capaz de fornecer respostas às colisões de direitos fundamentais. Nes-se sentido, em que pese a tentativa de balancear valores coli-dentes, de modo que eles não sejam plenamente sacrificados, somente será legítima a restrição a determinado direito funda-mental se for atendido o critério de proporcionalidade.

Tal teste de proporcionalidade tem uma estrutura racio-nalmente compreendida: dentro da sua arquitetura estão pre-sentes três sub-juízos/sub-regras que se encarregarão de au-xiliar o julgador na constatação de precedência de um direito fundamental sobre outro: a) necessidade; b) adequação e c) proporcionalidade em sentido estrito, aplicados em uma ordem pré-definida (sucessiva). Não por outra razão, a Constituição de 1988 não prevê expressamente a regra de proporcionalidade em seu bojo, malgrado o Supremo Tribunal Federal tem lhe con-ferido normatividade sob o argumento de que esse instrumento de hermenêutica constitucional possui esteio na cláusula do de-vido processo legal substantivo9. Não obstante a posição conso-lidada, há quem aduza também que a proporcionalidade decorre do princípio do Estado de Direito (SILVA, 2009) e/ou da natureza principiológica dos direitos fundamentais (ALEXY, 2009). 8 Na linha dos professores Peter Lerche e Virgílio Afonso da Silva, o conceito que se emprega de proporcionalidade é o seguinte: “regra da proporcionalidade é uma regra de interpretação e aplicação do direito, empregada especialmente nos casos em que um ato estatal, destinado a promover a realização de um direito fundamental ou de um interesse coletivo, implica a restrição de outro ou outros direitos fundamentais.” SILVA, Virgilio Afonso da. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais, v. 91, n. 798, abr. 2002, p. 2.9 Pode-se citar: ADI nº 1.158-MC, rel. min. Celso de Mello, DJU, 26 de maio de 1995; ADI nº 1.076-MC, rel. min. Sepúlveda Pertence, DJU, 7 de dezembro de 2000. ADI nº 1.922-MC, rel. min. Moreira Alves, DJU, 24 de novembro de 2000 e ADI nº 2.2276, rel. min. Maurício Corrêa, DJU, 5 de dezembro de 2002. Ademais, com amparo maciço em grande parte da doutrina especializada: Cf. MENDES, Gilmar Ferreira. O princípio da proporcionalidade na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: novas leituras. In: Repertório IOB Jurisprudência: Tributário Constitucional e Administrativo, v. 4, p. 23-44, 2000.

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Finalmente, cabe ressaltar a diferença doutrinária que existe entre as técnicas desenvolvidas pela nova hermenêutica com o desiderato de dar suporte científico àquele que decide. A razoabilidade é proveniente do academicismo inglês, aproximan-do-se muito mais da noção de equidade e do caráter axiológico das práticas forenses, portanto, caracterizada fortemente pelo viés material. Diferentemente do standard da razoabilidade, a proporcionalidade adota uma lógica formal e é formada por cri-térios mais rígidos, como elencados anteriormente. Nessa estei-ra, Aharon Barak afirma que o significado da proporcionalidade remete “à doutrina analítica e metodológica”, que pretende “de-finir a apropriada relação entre os direitos humanos e as con-siderações que justifiquem suas limitações numa democracia” (BARAK, 2010, p. 4-5).

2.1 “Sub-juízo” de necessidade

A regra de proporcionalidade consiste em importante instrumento da hermenêutica constitucional moderna, sendo disseminada com larga frequência por inúmeros países das fa-mílias civil law e common law nas últimas décadas. Essa no-ção de proporcionalidade, contudo, não é nova no pensamento jurídico, já que possui raízes remotas no direito administrativo alemão do século XIX e tem sido inicialmente empregada ob-jetivando o controle do exercício do poder de polícia (BERNAL PULIDO, 1999). Depois da 2ª Guerra Mundial, contexto protago-nizado pelo crepúsculo da legislação e, de forma paralela, pela ascensão do constitucionalismo, o critério da proporcionalidade se transpôs para o direito constitucional, no qual passou a ser

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utilizado no âmbito do controle de constitucionalidade dos atos legislativos restritivos de direitos fundamentais, através da atua-ção do Tribunal Constitucional Federal Alemão10.

Neste momento, o direito germânico conferiu à propor-cionalidade um perfil analítico e sistematizado, consolidando os parâmetros que estruturam sua aplicação, compreendidos aí os três sub-juízos/sub-regras: a) o da adequação; b) o da necessi-dade; e c) o da proporcionalidade em sentido estrito. Esta pes-quisa concentrar-se-á na análise do estado-da-arte do segundo sub-juízo pertencente ao juízo da proporcionalidade, tratando das questões conceituais, sua abordagens e a efetiva adjudica-ção no direito brasileiro.

O sub-juízo de necessidade corresponde à exigência de avaliar se a medida empregada pelo Estado ou particular, dentre os diversos meios possíveis que promovem o fim pretendido, será a menos onerosa/gravosa para os direitos. “Não se aba-tem pássaros com canhões”, dizia o jurista George Jellinek ao se referir metaforicamente à ideia de vedação do excesso, um dos nomes dados à sub-regra de necessidade. É de se destacar que cabe ao intérprete do direito verificar no caso concreto se existem opções menos prejudiciais, de modo que a análise com-parativa entre os diferentes meios existentes é essencial para alcançar o fim desejado.

Em relação a essa dimensão da regra de proporcionali-dade, não há uma uniformidade terminológica quanto ao vocá-bulo “necessidade”. Exemplificativamente, surgem na doutrina 10 “A regra da proporcionalidade no controle das leis restritivas de direitos fundamentais surgiu por desenvolvimento da jurisprudência do Tribunal Constitucional alemão e não é uma simples pauta que, vagamente, sugere que os atos estatais devem ser razoáveis, nem uma simples análise da relação meio-fim. Na forma desenvolvida pela jurisprudência constitucional alemã, tem ela uma estrutura racionalmente definida, com sub-elementos independentes – análise da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito – que são aplicados em uma ordem pré-definida, e que conferem à regra da proporcionalidade a individualidade que a diferencia, claramente, da mera exigência da razoabilidade.” SILVA, Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. In: RT, v. 798, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 30.

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os seguintes termos: indispensabilidade, meio menos gravoso, intervenção mais restringida possível, direito a menor desvanta-gem possível, proibições de excesso e insuficiência. A doutrina dominante afirma que a análise da sub-regra se desdobra em dois momentos a serem operadas pelo julgador: i) cotejo hipo-tético, pelo qual se investiga se os meios alternativos são hábeis a promoverem o fim da mens legis, isto é, se examina se as medidas alternativas são idôneas ou não para alcançar o obje-tivo esperado pelo Legislador11; e ii) verifica-se se as medidas apontadas no primeiro teste são ou não menos lesivas do que aquela que foi eleita.

Se isso é assim, os elementos estruturais do sub-juízo de necessidade compreendem a identificação dos meios adequa-dos, pelo qual se realiza o exame de necessidade e se estabele-cem as medidas que possibilitam a consecução do fim almejado na intervenção sobre o direito fundamental, além de proceder a comparação dos meios eleitos, contexto no qual se mensura o impacto ou a gravidade das medidas12.

Por isso, Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins (2011, p. 207) avaliam que a sub-regra de necessidade pode consistir numa etapa de revisão técnico-constitucional da solução legis-lativa adotada sem substituir, todavia, a decisão jurisdicional. 11 Jane Reis assenta que “caberá antes de tudo averiguar a posição que cada um deles (meios) ocupa na escola de idoneidade, buscando-se identificar se os meios analisados apresentam um coeficiente de idoneidade equivalente ou desigual. Nessa análise, deve-se ter em conta dois aspectos: em primeiro lugar, é preciso que o meio alternativo usado como parâmetro de comparação ostente um grau superior ou idêntico de idoneidade ao daquele empregado pelo legislador; e, em segundo lugar, a comparação entre o meio alternativo e o meio cuja constitucionalidade é questionada deve ser promovida desde todas as perspectivas possíveis”. PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Os imperativos da proporcionalidade e da razoabilidade. SARMENTO, Daniel; SARLET, Ingo Wolfgang (coord.). Direitos fundamentais no Supremo Tribunal Federal: balanço e crítica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, p. 172.12 “Quanto ao subprincípio da necessidade, o due process apresenta-se bipartido. O teste de racionalidade mínima exige apenas a adequação, sendo um critério mais limitado que o subprincípio da necessidade. Todavia, o strict scrutiny estabelece a exigência de um compelling public interest, que funciona como um critério mais restrito que a exigência de necessidade. Tem razão, portanto, Kommers quando afirma sobre o segundo subprincípio que esse teste é aplicado flexivelmente e deve observar o standard de racionalidade. Tal como é aplicado pela Corte Constitucional, ele é menos que o escrutínio estrito e mais que o teste de razoabilidade mínima do direito constitucional norte-americano”. COSTA, Alexandre Araújo. O controle de razoabilidade no direito comparado. Disponível em: <http://www.arcos.org.br/livros/o-controle-da-razoabilidade-no-direito-comparado/>. Acesso em 11 de julho de 2014.

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Muitos casos envolvendo colisão de direitos fundamentais são solucionados pela aplicação do critério de necessidade, já que tal análise é muito mais difícil de ser aferida13 do que a cons-tatação da licitude ou adequação de alguma medida (DIMITRI; DIMOULIS, 2011, p. 207). Outra característica que não pode passar despercebida diz respeito à abordagem lógica que paira sobre a sub-regra de necessidade. Sob o prisma dogmático, a explicação fundada em preceitos de natureza econômica é re-corrente, por exemplo a teoria ou princípio do “estado ótimo” engendrada pelo italiano Vilfredo Pareto, base do raciocínio eco-nômico, que significa dizer que uma situação econômica será ótima se pelo menos um único sujeito melhora sua condição, sem que para isso outro piore.

Pode-se dizer que esta mesma performance é utilizada pela teoria do direito fundamental para ilustrar uma hipótese de colisão de direitos, em que um desses direitos deverá ser restringido o mínimo possível (ALEXY, 2003). O desafio entre os meios jurídicos e os fins normativos é desvelado por meio do teste de proporcionalidade, até porque a pergunta que se faz é: determinado meio jurídico é próprio para atingir um fim norma-tivo? Nesta pesquisa, pretende-se apontar para o fato de que a construção jurídica deve se valer da economia enquanto um dos saberes que ajuda a elaborar respostas ou mesmo testes de proporcionalidades mais adequados.

Atualmente, nota-se que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC nº 91.952/SP, de rela-13 “É certo que, não raro, o processo de comparação entre os diversos meios acaba por assumir inegável complexidade, tendo em vista o elevado número de variáveis que entram em jogo. Isso é o que ocorre, por exemplo, quando os meios alternativos são mais eficazes, mas também mais restritivos que o meio empregado pelo legislador, ou, ainda, quando os meios alternativos revelam-se mais suaves segundo alguns critérios e mais restritivos segundo outros”. PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Os imperativos da proporcionalidade e da razoabilidade. SARMENTO, Daniel; SARLET, Ingo Wolfgang (coord.). Direitos fundamentais no Supremo Tribunal Federal: balanço e crítica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 186.

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toria do Min. Marco Aurélio, vem aplicando o critério de neces-sidade. No caso, o julgado restringiu o emprego de algemas pelas autoridades policiais, na medida em que a sua utilização, na condução de presos, deve ser feita de modo proporcional, não afetando desnecessariamente a integridade física, psíquica e moral da pessoa do acusado14. Noutra assentada, em Medida Cautelar na ADI nº 4.467, a Corte afastou a exigência legal de portar o título de eleitor para votar, considerando que a restrição, embora legítima (evitar as fraudes na sufrágio), seria desneces-sária, pois o documento com foto já seria suficiente.

Em suma, o Supremo Tribunal está plenamente engajado na aplicação prática do sub-juízo de necessidade, agindo com o esforço hermenêutico e ônus argumentativo que se exige dos julgadores em matéria envolvendo a questão da colisão de direi-tos fundamentais. A sub-regra de necessidade não escapa des-se desenho institucional, especialmente porque sua incidência deve ser calibrada em razão da tensão com outros postulados constitucionais, a exemplo da democracia e do princípio da se-paração de poderes.

3 ANÁLISE ECONÔMICA DO DIREITO: ARGUMENTO ECONÔ-MICO

É possível pressupor que existe qualquer coisa entre jus-tiça e economia. O desperdício é injusto? A eficiência produz justiça? A interface Direito e Economia, enquanto movimento

14 “O uso legítimo de algemas não é arbitrário, sendo de natureza excepcional, a ser adotado nos casos e com as finalidades de impedir, prevenir ou dificultar a fuga ou reação indevida do preso, desde que haja fundada suspeita ou justificado receio de que tanto venha a ocorrer, e para evitar agressão do preso contra os próprios policiais, contra terceiros ou contra si mesmo. O emprego dessa medida tem como balizamento jurídico necessário os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade”. BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus 89.429-1/RO, rel. Min. Cármen Lúcia, j. 22/8/2006.

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científico, surge na metade do século XX nos Estados Unidos, radicando-se em importantes escolas filosóficas anglo-saxãs, como o utilitarismo15, o pragmatismo16 e o realismo jurídico in-glês17. A doutrina, conhecida por Análise Econômica do Direi-to (Law and Economics), investiga o fenômeno jurídico a partir das consequências e reações das pessoas a dada norma, sob a perspectiva do empirismo e das ferramentas econômicas.

Suponha-se que as condições para celebração de um ne-gócio jurídico possam ser perigosas em relação à concretização do direito à moradia; que o contrato de adesão firmado entre usuário e o convênio do plano de saúde seja abusivo; que a implemen-tação dos serviços públicos básicos dependa exclusivamente do orçamento do Poder Executivo; ou ainda, que o exercício do direi-to de propriedade ignore os interesses sociais e coletivos. Pensar a eficiência e a justiça conjuntamente significa fomentar postu-ras judiciais que importem numa melhor distribuição dos maiores produtos que o direito não conseguiu oferecer na modernidade: paz social e segurança jurídica. Por quê? Em princípio, aplicar o direito, hoje, é mais complicado do que foi no passado, muito em razão da funcionalização das normas jurídicas.

Assim, esta matriz teórica pode ser compreendida sob dois enfoques distintos: a vertente normativa e a vertente positi-va. Mas, antes de abordar os dois elementos, cabe refletir a res-peito da implantação efetiva e o amadurecimento da Law and Economics, que passou por momentos específicos: no início, o desenvolvimento de paradigma eficientista, depois, a aceitabi-15 O movimento Direito e Economia radica na filosofia utilitarista, cujo principal expoente é Jeremy Bentham. Para uma leitura aprofundada sobre a filosofia utilitarista e os reflexos na sociedade atual, cf. KYMLICKA, Will. Filosofia política contemporânea. São Paulo: Martins Fontes, 2006. 16 Autores tradicionais no campo do pragmatismo influenciaram o movimento Law and Economics: Charles Sanders Peirce, John Dewey, William James e, mais recentemente, Richard Rorty, Hilary Putnam e Roberto Mangabeira Unger.17 A Law and Economics é herdeira da tradição do realismo jurídico, no qual importantes nomes se destacam: Roscoe Pound, Benjamim Natan Cardozo, Karl N. Llewellyn, Oliver Wendell Homes e Louis Brandeis.

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lidade racional do modelo pela comunidade científica, em se-guida, o questionamento e a dúvida sobre a sua viabilidade e, finalmente, as reformulações centrais e assessórias no bojo do movimento (POSNER, 2009, p. 76).

Há um consenso partilhado pelos estudiosos de que o movimento principia na Universidade de Chicago, com a publi-cação de um seminal artigo à época, The nature of the firm, de Ronald Coase (COASE, 1937). Essa produção científica buscou enfrentar um novo aspecto econômico das instituições, dando origem ao movimento denominado institucionalista. Um pouco mais tarde, a Universidade de Chicago direcionou sua atenção para temas afeitos à legislação corporativa, regulação normativa do mercado imobiliário, leis trabalhistas e direito fiscal, de modo que convocou juristas para ponderarem sobre os benefícios de um exame transcendente, a incluir as categorias e os critérios econômicos no seio da “equação” judicial.

Em meados de 1960, a Análise Econômica do Direito pas-sou a se apresentar substancialmente como um pensamento pró-prio e doutrinário. O marco fundacional é o trabalho The problem of social cost, de Ronald Coase (COASE, 1960), ensaio que cons-titui o ponto de partida da escola, na medida em que destrincha as principais premissas relativas ao conceito de externalidade, visando uma teoria econômica que trabalhe com o problema do “custo do direito” em uma análise jurídica realmente concebida. Posteriormente, Guido Calabresi, professor da Universidade de Yale, com o ensaio intitulado Some thoughts on risk distribution and the Law of torts (CALABRESI, 1961), demonstra o relevo dos

impactos econômicos causados na alocação de recursos finan-ceiros para disciplina da responsabilidade civil.

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Dois acontecimentos alçaram a Law and Economics em um patamar especial: (i) a criação, em 1972, do Journal of Legal Studies; e (ii) o primeiro trabalho publicado pelo filósofo e jurista americano Richard Posner (MERCURO; MEDEMA, 1997, p. 55). A obra de Richard Posner é apontada como um livro inaugural no movimento Law and Economics, por explorar o campo dos bens escassos afetos à satisfação das necessidades humanas, bem como o tema da maximização da riqueza no contexto da ascen-são institucional do poder judiciário. Assim, ficaram assentadas as bases da gênese deste movimento que pretendeu se abrir à interdisciplinaridade, tendo como mote as complexas relações envolvendo questões jurídicas e econômicas.

Nesse sentido, o Direito e Economia pretende analisar o fenômeno jurídico e propor medidas para corrigir deturpações geradas por normas de direito positivo, com suporte nos argu-mentos econômicos. Nesse sentido, é necessário estabelecer a diferença conceitual entre “direito e economia positivo” e “di-reito e economia normativo”. Como salienta Salama, são “[...] duas dimensões distintas e autônomas. A vertente positiva se ocupa das repercussões do direito sobre o mundo real dos fa-tos”; enquanto a vertente normativa se ocupa a entender se “as noções de justiça se comunicam com os conceitos de eficiência econômica, maximização da riqueza e maximização do bem-es-tar” (SALAMA, 2014, p. 44).

Richard Posner traça o seguinte paralelo quanto às duas vertentes. O enfoque normativo enfrenta o conceito de eficiên-cia como critério objetivo da decisão, indispensável ao direito. A vertente positiva é descritiva do seu objeto (POSNER, 2007, p. 176). Vale ressaltar que a perspectiva positiva funda-se nas ca-

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tegorias macroeconômicas, sendo úteis para a ciência do direi-to, até porque os postulados da economia podem “prover uma teoria explicativa da estrutura das normas jurídicas” (SALAMA, 2013, p. 105). Tanto é que em tais situações o raciocínio efi-cientista deve inspirar o aplicador nessa missão de solucionar as colisões de direitos fundamentais, levando em consideração elementos exógenos, tais como a eficiência, escassez, maximi-zação racional, o equilíbrio e os incentivos, nesse particular, os direitos que demandam maior custo de implementação, situa-dos no paradigma do Estado Social.

Ainda sob o ângulo doutrinário, Richard Posner afirma que o ponto de partida básico da economia é o fato de as pes-soas serem “maximizadoras racionais” de suas pretensões, de tal forma que o direito passa a ser lido como um amontoado de institutos responsáveis pela maximização dos objetivos pes-soais. Do mesmo modo, a partir de uma matriz epistemológi-ca distinta da positiva, surge a dimensão normativa da Law & Economics, pautada numa visão deontológica e eficientista do direito. Conforme os ensinamentos do citado doutrinador, a ati-vidade do julgador seria um exercício diário de verificação do custo-benefício dos institutos jurídicos, a partir da análise preci-sa dos riscos, das externalidades e da maximização da riqueza, assim como da escassez.

Mas essa visão não está isenta de críticas. O trabalho reali-zado por Posner se tornou uma espécie de “manifesto” pragmatista judicial, no qual a verdade das suas proposições decorre exclusiva-mente de suas consequências, o que, de certo modo, conduziu os métodos de investigação e decisão judicial à seara consequencia-lista. Por essa razão, passou a ignorar completamente o que deno-

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minou de “corolários de uma teoria moral metafísica”18, receben-do fortes ataques de teóricos respeitáveis, como Ronald Dworkin, John Rawls e Jules Coleman. Depois de tais colocações19, Posner passou a rever seus posicionamentos acerca do valor absoluto da eficiência, admitindo que ela, na verdade, é mais um “ingrediente” que pode ser utilizado nas decisões judiciais, razão pela qual o juiz pode balancear as variáveis econômicas com as interpretações possíveis previstas no texto constitucional.

Após este breve escorço a respeito da law and economi-cs, alguns apontamentos devem ser feitos. Essencialmente, só é possível encarar com seriedade as discussões sobre Análise Econômica do Direito distinguindo os dois enfoques já ventila-dos: a) direito e economia positivo e b) direito e economia nor-mativo. A partir dessa diferenciação, será possível verificar quais os reais objetivos que o intercâmbio entre os dois ramos podem produzir e atingir na ordem jurídica e política atual.

Como se sabe, o aprofundamento de questões como po-líticas públicas a serem implementadas pelos poderes executivo e legislativo, os incentivos estabelecidos pelas entidades de fo-mento subsidiadas pelo poder público e o (re)pensar em torno da preponderância do poder judiciário nessa dinâmica globa-lizada são fortes indicativos da necessidade de (re)avaliarmos o modo de decidir, indo para além da mera legitimidade da lei com a utilização de argumentos econômicos, entendidos como a apropriação de conceitos relevantes da economia para refor-çar e efetivar os mandamentos e os fins constitucionais. 18 Arremata o filósofo americano: “a filosofia moral não tem nada a oferecer aos juízes e aos estudiosos do Direito no que se refere à atividade judicial ou à formulação de doutrinas jusfilosóficas ou jurídicas”. POSNER, Richard A. A Problemática da Teoria Moral e Jurídica. Trad. Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 2012.19 “Nossas divisões são de natureza cultural, étnica, política e moral. Não obstante, aspiramos viver juntos e iguais, e parece crucial para essa ambição que também aspiremos que os princípios que nos governam nos tratem como iguais. (...) Só poderemos perseguir essa indispensável ambição se tentarmos, sempre que necessário, nos colocar em um plano elevado [vale dizer: teórico, acrescentei] nossas decisões coletivas, inclusive em nossas decisões judiciais, de modo a pôr à prova nosso progresso em tal direção. Devemos nos incumbir desse dever soberano se pretendemos alcançar um Estado de Direito que não seja apenas instrumento de avanço econômico e paz social, mas um símbolo e espelho da igual consideração pública, que nos dá o direito de afirmar a comunidade”. DWORKIN, Ronald. A justiça de toga. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 105-106.

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4 DIÁLOGO ENTRE O ARGUMENTO ECONÔMICO E A DE-CISÃO JUDICIAL: (POR) UMA MELHOR INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DO DIREITO

Melhor do que quaisquer reflexões em abstrato sobre a complexidade dessas constatações, a realidade dos fatos se encarrega de evidenciar diversos exemplos de como a correta aplicação dos direitos fundamentais depende da interação com a economia, mais especificamente com o argumento econô-mico20. No ano de 1998, o Supremo Tribunal Federal julgou a constitucionalidade do art. 14 da Emenda Constitucional nº 20 de 98, que fixava em R$ 1.200,00 o limite máximo para o valor dos benefícios do regime geral de previdência social relativa-mente à gestante (ADI nº 1.946). À época, o STF foi provocado para saber se a mulher gestante estaria sujeita ao teto sugerido pela emenda. No voto condutor, o ministro Sydney Sanches afir-mou que as consequências deste teto seriam drásticas sobre o mercado de trabalho e especialmente no que se refere à promo-ção do acesso da mulher no mercado de trabalho21.

De igual modo, o Supremo no recurso extraordinário nº 407.688, de relatoria do ministro Cezar Peluso, decidiu pela constitucionalidade do art. 3, VII da Lei nº 8.009/90, autori-20 Em 1897, o jurista Oliver Wendell Homes Jr. publicou o artigo The Path of Law e fez a seguinte previsão, em tradução livre: “O estudo racional ainda é, em grande proporção, o estudo da história. A história deve ser parte do estudo do Direito porque sem ela não conseguiríamos conhecer o preciso sentido das regras que são objeto de nossa função. Trata-se de uma parte do estudo racional, porque é o primeiro passo em direção a um ceticismo iluminado, ou seja, em direção à deliberada reconsideração do valor de tais regras. Quando você atrai o dragão para fora de sua caverna em direção à planície durante o dia, é possível contar seus dentes e suas garras e verificar precisamente qual a sua força. Mas fazer isso é somente o primeiro passo. O passo seguinte será ou matá-lo ou domesticá-lo para se tornar um animal útil. Para o estudo racional do Direito o homem que conhece a lei pode até ser o homem do presente, mas o homem do futuro é aquele que domina a estatística e economia. É revoltante não haver uma justificativa melhor para uma regra jurídica do que o fato de ter sido editada na época de Henrique IV. É mais revoltante ainda se os fundamentos que levaram à sua edição já tenham desparecido há muito tempo e a regra simplesmente persiste em razão de uma imitação cega do passado”. HOLMES, Oliver Wendell Jr. The Path of Law. Harvard Law Review 457 (1897).21 Na obra Interpretação Conforme a Constituição, o professor Cláudio Colnago analisa particularmente este julgado, sustentando, sob o enfoque das técnicas de decisões interpretativas, que “a decisão da ADI 1.946 consiste, formalmente, numa decisão estimatória parcial [...], pois estabeleceu o único significado possível a ser atribuído ao enunciado, ou seja, aquele segundo o qual o teto não se aplica ao auxílio maternidade”. COLNAGO, Cláudio de Oliveira Santos. Interpretação conforme a Constituição: decisões interpretativas do STF em sede de controle de constitucionalidade. São Paulo: Método, 2007, p. 168. Nota-se, com isso, como o argumento econômico empregado pelo STF é manejado a partir de técnicas decisórias.

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zando a penhora de bem imóvel residencial do fiador, não ofen-dendo o direito fundamental à moradia previsto no art. 6º da CRFB/88. Também, o Superior Tribunal de Justiça, no recurso especial nº 1.135.742, relatado pelo ministro Humberto Mar-tins, discutia o alcance de uma lei que expressamente permitia às concessionárias suspenderem a oferta de serviço a clientes em caso de atraso. Nesta demanda, a questão é saber se a lei se aplica também à oferta de serviços essenciais. Poderia ser mencionada a ação direita de inconstitucionalidade que ques-tionou a Lei da Arbitragem, a qual foi considerada compatível com o ordenamento jurídico, tendo sido utilizados argumentos eminentemente econômicos em seu julgamento, como o forta-lecimento do ambiente de negócios no país.

Em suma, nesses três paradigmáticos precedentes, tan-to o STF quanto o STJ se valeram de argumentos econômicos como parte do percurso, da “retórica judicial”, da fundamenta-ção das decisões, para atingir fins e objetivos preconizados pela Constituição da República. O argumento econômico, portanto, foi empregado com o propósito de servir a princípios constitu-cionais, como o direito de contratar, a liberdade individual, o acesso da mulher ao mercado de trabalho, entre outros.

Por essa razão, o pensamento conjugado do direito e da economia é indispensável para a solução de inúmeras contro-vérsias judiciais: direito à autonomia privada, contrapondo-se ao direito à moradia22; direito de contratar, confrontando-se com o valor social23; direito à seguridade e consecução dos serviços

públicos, opondo-se à reserva do possível24; direito de proprie-22 Como exemplo, cf.: RE nº 352.940, DJ 27.4.2005.23 A título exemplificativo, cf.: RE nº 449.657, DJ 30.5.2005.24 Sobre o tema, cf.: RE-AgRg 393.175, DJ 02.2.2007.

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dade, colidindo com a sua função social25. Todas essas questões passaram pela análise do Supremo Tribunal Federal em período recente. Esses quatro casos paradigmáticos de colisão exempli-ficam a necessidade de empreender um estudo interdisciplinar, contexto em que a relação entre direito e economia se destaca como fator relevante no âmbito da decidibilidade jurídica em matéria de direitos fundamentais.

Discutir o papel da economia no aperfeiçoamento da so-lução das controvérsias de direitos constitucionais, com o uso efetivo de dados e informações empíricas, significa fomentar posturas judiciais que importem fortalecimento da segurança jurídica e da pacificação dos conflitos. Sob o ponto de vista da justificação das decisões, nota-se o esforço dos que lidam com a ciência do direito em produzir julgamentos baseados na ra-cionalidade e eficiência26, a exemplo do emprego da técnica de ponderação entre bens e interesses (GUNTHER, 2010), (DWOR-KIN, 2002). Sem o mal vezo de afirmar, de modo perigoso e traiçoeiro, que o direito deve ser apenas eficiente, é fundamen-tal manejar a argumentação econômica, sobretudo da microe-conomia, como mais um instrumento à disposição do intérprete autêntico para aplicar os comandos normativos embutidos nas regras ou princípios.

Cabe ressaltar que essa análise, mesmo impregnada de alto coeficiente econômico, jamais deixará de ser eminentemente jurídica, pois essa construção argumentativa é feita a serviço do direito e dos fins constitucionais a que toda decisão judicial está

submetida. Adicionalmente, entende-se que as categorias econô-25 A exemplo, cf.: RE nº 153.7771-0, DJ 23.7.2004. 26 A eficiência pode ser definida como “a aptidão para obter o máximo ou o melhor resultado ou rendimento, com a menor perda ou o menor dispêndio de esforços; associa-se à noção de rendimento, de produtividade; de adequação à função”. ZYBERSZTAJN, Décio; SZTAJN, Rachel (Orgs). Direito & Economia. Rio de Janeiro: Campus, 2005, p. 83.

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micas podem ser úteis quando diante de efetivação de princípios constitucionais, ou ainda, da colisão entre eles. Essencialmente, a pergunta que se coloca nesta quadra da história é: qual o pa-pel da economia na ciência do direito? Por outras palavras, qual o papel do jurista numa sociedade de economia globalizada? A resposta para tais perguntas não é simples de ser obtida.

Nesse contexto, não restam dúvidas de que as formas e os agentes de Estado (Legislativo, Executivo e Judiciário) estão vinculados aos direitos fundamentais, até porque a solução a respeito da colisão de direitos passa por uma ponderação de princípios no caso concreto, examinando criteriosamente as cir-cunstâncias de cada interesse em um modelo argumentativo-ra-cional27. O processo de aplicação do conteúdo normativo não se assemelha a uma “descoberta”, mas, sim, a um confronto de proposições jurídicas com os fatos concretos e individuais28, ou seja, uma “construção”.

Com isso, a complexidade do problema envolvendo a sis-temática dos direitos fundamentais se converte num problema de fundamentação29. Tentando resolver essa dificuldade de fun-damentação, a teoria da decisão judicial afirma que a regra da proporcionalidade é um mecanismo capaz de dar respostas se-guras às colisões de direitos fundamentais (SILVA, 2002). Nesse viés, ao intérprete é incumbida a tarefa de fazer com que o direito fundamental atinja a sua realização plena. O objetivo é que, ao 27 A despeito das diferenças teóricas entre os dois autores, merece destaque a contribuição de Klaus Günther e Robert Alexy no trato dos princípios jurídicos para solução de casos constitucionais controvertidos, a partir de uma explicação hermenêutica baseada na argumentação jurídica e no discurso racional do processo decisório. 28 Assim, declara Konrad Hesse, a partir de Hans George-Gadamer, “o intérprete não pode compreender o conteúdo de uma norma de um ponto situado fora da existência histórica, por assim dizer, arquimédico, senão somente na situação histórica concreta, na qual ele se encontra, cuja maturidade, enformou seus conteúdos de pensamento e determina seu saber e seu (pré)-juízo.” HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Trad. Luis Afonso Heck. Porto Alegre: Fabris, 1998, p. 61. 29 Sob tal panorama, Klaus Günther e Jürgen Habermas traçam a distinção entre discurso de aplicação e discurso de justificação. Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, v 1 e v.2.

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proceder a essa tentativa de concretização, nenhum outro direito seja afetado negativamente. No entanto, esse fim nem sempre será possível, surgindo para o operador do direito o dever de res-tringir ao mínimo possível o outro bem constitucional controver-tido.

Portanto, em tais situações o raciocínio que deve inspirar o aplicador na missão de solucionar as colisões de direitos funda-mentais passa por questões de eficiência, escassez, maximização racional, equilíbrio e incentivos, sobretudo quando se tratar de direitos que demandam maior custo de implementação, habitual-mente encartados no paradigma do Estado Social30. A utilização do argumento econômico se dá por meio da aliança entre a ver-tente normativa, de base epistemológica e distinta da positiva31, e o processo hermenêutico de decisão judicial. Bom exemplo, aliás, se dá na operacionalização do juízo de proporcionalidade, notadamente em seu critério de necessidade, em que se objetiva reduzir a subjetividade e o decisionismo, muitas vezes travestidos de um expediente retórico esvaziado de fundamentação.

Com essas considerações, pretende-se fortificar a argu-mentação jurídica ao “injetar” maior racionalidade no procedimen-to de justificação dos pronunciamentos judiciais, seja através de uma motivação baseada em aspectos econômicos que revigorem a decisão escolhida, seja por meio da maior aceitabilidade social propiciada, em virtude da ampliação dos riscos e consequências prováveis que a repercussão judicial pode provocar.30 Destacam-se os impactos socioeconômicos provocados pelas decisões judiciais no programa – segunda dimensão – de direitos sociais, econômicos e culturais (direitos de segunda dimensão) previstos constitucionalmente, porque revelam maior tensão frente a premissas econômicas da sociedade capitalista neoliberal. 31 Como salienta Bruno Salama, o movimento Direito e Economia se assenta sob duas dimensões distintas e autônomas. A vertente positiva “se ocupa das repercussões do direito sobre o mundo real dos fatos”; já a vertente normativa se ocupa a entender se “as noções de justiça se comunicam com os conceitos de eficiência econômica, maximização da riqueza e maximização do bem-estar.” SALAMA, Bruno M. Direito e Economia. In: RODRIGUEZ, José R. Fragmentos Para Um Dicionário Crítico de Direito e Desenvolvimento. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 22.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho se insere no contexto, que tem se inten-sificado nas últimas décadas, sobre a relação entre Direito e Economia e, de uma forma mais concreta, do argumento econô-mico no âmbito das decisões judiciais. Num primeiro momento, o contato entre os dois ramos não existiu, dada a diferença me-todológica existente32. O manejo dos postulados econômicos e dos instrumentos jurídicos devem contribuir sensivelmente para a qualidade das ações públicas cotidianas, ao permitirem in-vestigar as respostas constitucionalmente adequadas e testar a eficiência das respostas já existentes.

Como declara Salama, “enquanto o direito é verbal, a economia é matemática; enquanto o direito é hermenêutico, a economia é empírica; enquanto o direito aspira ser justo, a eco-nomia pretende ser científica” (SALAMA, 2013, p. 12). Desse modo, o objetivo é conciliar as duas áreas e propor uma inclu-são de categorias econômicas no plano da decisão judicial. Mas de que forma? Uma resposta presumível durante este trabalho é: a partir da concretização de regras e princípios - mediados por métodos -, por exemplo: o juízo de proporcionalidade e a ponderação de bens. Como reforço à tese, sabe-se que o uso dessas ferramentas carece de uma melhor fundamentação, o que as torna frequentemente “verdadeiras varinhas de condão: com eles, o julgador consegue fazer quase tudo que quiser” (SARMENTO, 2006, p. 200). 32 A respeito do tema, observou Friedrich Hayek:“embora o problema de se buscar uma ordem social apropriada seja estudado sob os ângulos da economia, do direito, da ciência política, da sociologia e da ética, tal problema somente pode ser tratado adequadamente como um todo. [...] Em nenhum campo a divisão entre especialidades é mais destrutiva do que entre as duas mais antigas destas disciplinas, a economia e o direito.” HAYEK, Friedrich A. Von. Law, Legislation and Liberty. Chicago: The University of Chicago Press, 1973, vol. I, p.4. Friedrich A. Von. Law, Legislation and Liberty. Chicago: The University of Chicago Press, 1973, vol. I, p. 4.

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Em reação a tal “fórmula mágica” prejudicial ao desen-volvimento do direito e favorável à manutenção do imobilismo intelectual que tanto se conhece na ciência jurídica, este artigo pretendeu, sem exaurir a vasta construção teórica de tais ques-tões, coligar o sub-juízo de necessidade ao argumento econômi-co, no intuito de racionalizar o procedimento da decisão judicial, proporcionando qualidade nas decisões judiciais, previsibilidade das prováveis consequências, aumento de segurança jurídica e, especialmente, legitimidade democrática.

Portanto, a proposta apresentada procura: redesenhar o papel da economia no direito a partir do aprofundamento da aplicação de elementos econômicos sobre as decisões proferi-das pelo Judiciário; sugerir incentivos e maximização dos ganhos ao selecionar determinada escolha política e jurídica; revalorar a função jurisdicional no novo contexto globalizante e de proe-minência; e fomentar o uso de novas ferramentas, categorias e objetos da economia no cotidiano do jurista e julgador.

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UMA VISÃO CRÍTICA DA TRANSMISSÃO IMOBILIÁRIA PELO REGISTRO A PARTIR

DOS COMPROMISSOS POLÍTICOS CONSTITUCIONAIS NO BRASIL

A CRITICAL VIEW OF THE PROPERTY TRANSMISSION BY REGISTER FROM

POLITICAL CONSTITUTIONAL COMMITMENTS IN BRAZIL

Alexandre Barbosa da Silva1

RESUMOO sistema registral de imóveis é a base jurídico-política de aferi-ção e fixação da propriedade no Brasil. Isso, desde antes do Có-digo Civil de 1916, tendo em vista que o direito civil tinha índole essencialmente patrimonialista, pouco havendo de preocupação com o fenômeno constitucional ou humanista. Atualmente se observa uma tendência crítica – ainda tímida – que questiona a aceitação do registro como único fator constitutivo dos direitos sobre imóveis. Exemplo disso, são os embargos do possuidor e a força dos compromissos de compra e venda. Não obstante, a discussão está longe do campo da propriedade, eis que esta mantém-se severa e rigidamente compreendida do ponto de vis-ta formal, ou seja, “só é dono quem registra”. Alguns fundamen-tos desse pensar estão no formato social brasileiro, no temor da perda da propriedade e na grande valorização que o Direito sempre deu para o ter, em detrimento do ser. A raiz de tudo 1 Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Mestre em Direito pela Universidade Paranaense. Professor de direito civil na graduação e pós-graduação da UNIVEL e da Escola da Magistratura do Paraná. Bolsista CAPES no Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior nº 9808-12-4, com Estudos Doutorais na Universidade de Coimbra. Procurador do Estado do Paraná.

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isso é política, eis que as escolhas feitas pelos atores políticos advêm da autorização constitucional, e esta, por sua vez, deve ser averiguada à luz das preferências públicas e sociais. Para se entender a opção pelo sistema registral, então, mister caminhar pelos motivos que possivelmente influenciam as escolhas polí-ticas da sociedade ao preferir o atual modelo legal de aquisição da propriedade imóvel, perquirindo se ainda são razoáveis diante da contemporaneidade, das novas necessidades sociais e das preocupações constitucionais com dignidade, moradia e função social da propriedade.

PALAVRAS-CHAVE: Direito Civil Constitucional. Registro de Imóveis. Propriedade Imóvel. Política. Compromissos Constitu-cionais. Democracia.

ABSTRACT: The Real Estate Registry system is the legal and political basis for measuring and fixing property in Brazil. That, since before the Civil Code of 1916, considering that the civil law kept essentially patrimonial nature, having little concern about the phenomenon of constitutional or humanist. Currently we see a critical tendency - even shy - questioning the acceptance of registration as the only constitutive factor of rights on real estate. As an example of that, are the owner embargoes and the strength of the promises of purchase and sale. Nevertheless, the discussion is far from the property field, severe and rigidly understood of the formal point of view, in other words, “only owns who registers”. Some foundations of this to thought are in the Brazilian social format, in the afraid of loss of property and in the great appreciation that the law has always given to having instead of being. The root of this is political, behold the choices made by political actors come from constitutional authorization, and this, on the other hand, must be ascertained in the light of public and social preferences. To understand the choice for registry’s system, then, go through the motives that possibly influence the political choices of the society, while preferring

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the current legal system of motionless property, inquiring if they are still reasonable before the contemporaneousness, the new social necessities and the constitutional preoccupations with dignity, housing and social function of the property.

Keywords: Constitutional Civil Law. Register of Real Estate. Real Estate Property. Politics. Constitutional Commitments. Democracy.

1 INTRODUÇÃO

O direito civil constitucional trabalha a ideia de que a pessoa é sua mais importante base de atuação, devendo-se garantir a dignidade, proteger os aspectos mais caros de sua personalidade e, no dizer de Luiz Edson Fachin, garantir o seu mínimo existencial.2

Dentro da perspectiva de um mínimo existencial, fala-se em direito à um patrimônio jurídico mínimo, como o acesso à moradia com qualidade, qualificado como aspecto natural de proteção da intimidade e da personalidade.

A Constituição Federal, construída no momento histó-rico de transição democrática no Brasil pós ditadura militar, pretende garantir esses direitos individuais, mas também se alicerça em paradigmas do direito oitocentista, tal como a ga-rantia da propriedade individualizada e com viés compartimen-tado. Isso porque, ao mesmo tempo em que garante que todos devem ter acesso à moradia e à terra, mantém-se a ideia de que a propriedade é provada e demonstrada pelo meio mais 2 Nas palavras do autor: “Bem se vê que, nessa visão diversa, captada pela lente da pluralidade, o mínimo não é referido por quantidade, e pode muito além do número ou da cifra mensurável. Tal mínimo é valor e não metrificação, conceito aberto cuja presença não viola ideia de sistema jurídico axiológico. O mínimo não é menos nem é ínfimo. É um conceito apto à construção do razoável e do justo ao caso concreto, aberto, plural e poroso ao mundo contemporâneo.” In: FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo à luz do novo código civil e da constituição federal. 2 ed. atual. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2006. p. 280-281.

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formal e solene: o do registro de imóveis.Pode a pessoa ter, sem registro, posse, detenção, uso,

fruição, mas para se consolidar como dona (proprietária), so-mente a partir do ato formal registral, no cartório público com-petente. É a intervenção do Estado na atividade privada.

Uma das grandes indagações que se coloca, atualmente, em doutrina e jurisprudência mais sofisticadas, está ligada à ten-tativa de saber se realmente ainda é importante a distinção entre direito público e direito privado, ante a complexa anatomia de utilização prática destes institutos. Em dado momento o Estado intervém fortemente na atividade privada, determinando condu-tas, aliando regras, de maneira que o particular sofre a limitação real de sua liberdade, por vontade do ente público. Em outro, o Estado divulga e propaga a autonomia do indivíduo para contra-tar, para adquirir bens e serviços, sem qualquer regramento.

Por isso, Pietro Perlingieri afirma que, em nossos dias, a fronteira entre a dicotomia aludida é tênue, devendo-se conviver com ambas, avaliando-as em cada caso concreto.3

A partir dessa constatação, razoável questionar-se o modelo registral brasileiro, a partir das escolhas, dos compro-missos e das limitações políticas, tentando entender se há efetiva proteção aos interesses das minorias e das maiorias no contexto social.

Relevante, para tanto, o estudo de algumas ideias localizá-veis na relação interdisciplinar com a teoria política, especialmen-3 Diz o autor: “A própria distinção entre direito privado e público está em crise. Esta distinção, que já os romanos tinham dificuldade em definir, se substancia ora na natureza pública do sujeito titular dos interesses, ora na natureza pública e privada dos interesses. Se, porém, em uma sociedade onde é precisa a distinção entre liberdade do particular e autoridade do Estado, é possível distinguir a esfera do interesse dos particulares daquela do interesse público, em uma sociedade como a atual, torna-se difícil individualizar um interesse particular que seja completamente autônomo, independente, isolado do interesse dito público. As dificuldades de traçar linhas de fronteira entre direito público e privado aumentam, também, por causa da casa mais incisiva presença que assume a elaboração dos interesses coletivos como categoria intermédia (tome-se, como exemplo, o interesse sindical ou das comunidades). In: PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional. Trad. Maria Cristina de Cicco. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2002. p. 53.

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te entendendo-se, ainda que em nível experimental, se tal mode-lo é pré-compromisso constitucional, se tem restrições pensadas pelos atores com poder de sua criação e, por fim, se os resulta-dos são racionais e efetivos ao contexto de vida dos brasileiros.

Ademais, importante averiguar se o aspecto econômico influencia isso tudo de perto, fomentando mencionadas esco-lhas e criando espaço de interesse social através de instituições ou privilegiando grupos específicos, sob a veste protetiva.

2 A CONSTITUIÇÃO A PARTIR DA IDEIA DE PRÉ-COMPRO-MISSOS E RESTRIÇÕES

A ideia de Estado, na história, é permeada pelo pensa-mento de pré-compromissos e restrições, especialmente quan-do se remonta ao pacto/contrato social de Thomas Hobbes, John Locke e Jean-Jacques Rousseau.

Isso porque, na construção de cada um desses autores, ainda que com suas peculiaridades, vê-se o grupo social abrindo mão de liberdades individuais em prol de uma segurança cole-tiva. Cada pessoa entrega parcela de sua liberdade oriunda do Estado Natureza, para que seja possível conviver com menos medo e com expectativas de segurança social.

Quando se fala em pré-compromissos e restrições como paradigma para a construção do ideal constitucional moderno e contemporâneo, existe absoluta sintonia com aquele pacto social, ou seja, serão criadas normas, a partir de um consenso (ainda que majoritário) descrevendo o que cada qual poderá fa-zer no seu comportamento cotidiano, jurídico e político. Haverá um compromisso prévio de que cada um agirá da melhor ma-

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neira que o grupo decidiu, restringindo-se em adotar condutas diversas do esperado.

Jon Elster descreve que os pré-compromissos podem nascer de auto restrições, com a finalidade de influenciar no autocontrole das pessoas, servindo de limitador às paixões.4 Na reflexão do autor, as paixões podem constituir-se como elementos desagregadores das decisões racionais, mas tam-bém podem criar os dados que motivem a um pré-compromis-so socialmente adequado.

Paixão, aqui, guarda identidade com vontades e prefe-rências, exatamente o que se deve focar com os olhos em duas possibilidades: a) a paixão estimula a criação e com isso os objetivos revelados nos pré-compromissos podem ser benéficos a todos; b) a paixão, manifestada como excesso de vontades, poderá prejudicar o grupo social.

Por isso falar-se em pré-compromissos e restrições, um em sintonia com o outro, para se obter liberdades e realizações, pois o compromisso somente se efetivará se houver limitação de excessos que possam ser lesivos aos resultados esperados.

O constituinte, a partir dessa premissa, no ato de elabo-ração de uma Constituição, pensa em limites à ação individual que possa prejudicar o conjunto social, mas de forma a que o indivíduo não sofra prejuízo, igualmente. Por isso, impõe-se res-trições sociais que visam a beneficiar a maioria. Ao lado disso, fixa-se pré-compromissos que visem a estimular a evolução da sociedade, cumprindo-se os ideais de desenvolvimento, melho-ria de condições de vida e qualidade nas relações intersubjeti-vas. É o que se espera, em linhas gerais, de uma Constituição.4 ELSTER, Jon. Ulisses liberto: estudos sobre racionalidade, pré-compromissos e restrições. Trad. Cláudia Sant’Ana Martins, São Paulo: Editora UNESP, 2009. p. 19.

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Esses limites alcançam ao indivíduo, ao gestor público e às instituições. Assim deve ser, até mesmo para evitar que alguém, em momento de desequilíbrio do compromisso ante-riormente firmado, de respeitar o alheio, possa tomar “decisões pouco sábias”.5

John Potter Stockton, em um debate sobre ações da “Ku Kux Klan”, mencionou que “constituições são correntes com as quais os homens se amarram em seus momentos de sanidade para que não morram por uma mão suicida em seu dia de frenesi”6

Jon Elster, no entanto, traz na obra até aqui utilizada (Ulisses Liberto) uma revisão de livro anterior7 onde defendia que as limitações e os pré-compromissos poderiam ser inter-pretados como método de auto restrição da “impulsividade” do eleitorado em substituir seus políticos. Agora, o autor fixa que se em momento algum os eleitores fizeram isso, e se eles não “tem meios de substituir seus representantes à vontade, a explicação certamente tem mais a ver com os motivos políticos do que com os dos eleitores”.8

Daí nasce a clara ideia do autor no sentido de que mui-tas vezes os pré-compromissos e as limitações são feitos pelos políticos apenas para ofertar restrições aos outros e pouco (ou quase nunca) à si mesmos.

No que se refere ao assunto eleito neste escrito, o que se verificou, desde aquele momento de formação do Estado, em Hobbes, é que a propriedade é cara às pessoas e que se pre-5 Nas palavras de Jon Elster: “Muitos escritores têm argumentado que as constituições políticas são dispositivos de pré-compromissos ou auto restrição, criados pelos políticos para se proteger de suas próprias tendências previsíveis a tomar decisões pouco sábias.” (Elster, op. cit. p. 119.)6 Apud: FINN, J.E. Constitucions in crisis. New York: Oxford Univesity Press, 1991. p. 5.7 ELSTER, Jon. Ulisses e as sereias. New York: Oxford University Press, 1984.8 Op. cit. Elster, 2009, p. 122.

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tende, sempre, fixar pré-compromisso de respeito ao que é dos outros, com restrições de acesso e de uso ao que é do alheio, visando à paz em um sentido coletivo.

Chega-se, então, à conclusão de que se faz necessário um critério – um elemento de prova – para demonstrar os direi-tos de um e as restrições a que o outro deverá se vincular, para respeitar o quanto escolhido como compromisso constitucional e legal, nos assuntos de ordem proprietária.

No Brasil, o formato escolhido para tratar dos bens imó-veis foi o da formalidade documental, em sentido diverso da fixação do bem à pessoa pela via contratual. Os móveis têm sua propriedade demonstrada (salvo raras exceções) por meio da proximidade material entre a coisa e o dono, uma vez que a aparência de a coisa estar com a pessoa, já induz a idéia de propriedade. Ademais, a transmissão desta propriedade móvel acontece pela mera tradição, lição clássica dos direitos reais.

O sistema de registro de imóveis é, então, a aplicação da máxima político-jurídica envolvendo pré-compromissos e restri-ções constitucionais, na medida em que, existente o dado regis-tral estatal, fixadas estão as garantias e as limitações a que se vincula a propriedade.

Em virtude de tudo o que até aqui se analisou, parece relevante refletir sobre os dois momentos da obra de Jon Elster, para que se tente compreender se é o seu pensamento inicial (escrito em Ulisses e as Sereias) ou o atual (demonstrado em Ulisses Liberto) que melhor se adapta ao momento social, polí-tico, jurídico e cultural do Brasil, no que se refere às limitações que o sistema registral impõe à sociedade.

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3 INSTITUIÇÕES POLÍTICAS E A TEORIA DA ESCOLHA RACIONAL

O regime político do Estado brasileiro está constituí-do como democracia participativa, onde todo poder emana do povo, diretamente, ou por meio de seus representantes eleitos. Esse é o comando do art. 1º da Constituição Federal.

A aplicação prática desse conteúdo constitucional se re-vela na participação política do povo através da liberdade de manifestação e movimentação, na possibilidade de formulação de propostas legislativas pela via da iniciativa popular, eleição de representantes para executivo e legislativo, entre outros. No que se refere ao judiciário, a participação popular é indireta, tendo em vista que os juízes são concursados e, nas cortes superiores, indicados e aprovados pelos eleitos (executivo e legislativo).

Essa questão encontra tranquilidade razoável na pauta da agenda política e social, o que faz crer que o modelo está aprovado pela maioria. Não que se esteja afirmando ser eficaz o resultado prático de tudo isso, em prol da população, especial-mente em face da sabida insatisfação do povo com as atitudes e atividades dos políticos.

O que demanda como necessário a ser incluído na pauta das discussões sociais, a partir das perspectivas política e jurídi-ca, é a discussão sobre se (e como) as instituições estão agindo na defesa dos princípios e garantias insculpidos na Constituição, e se estão realmente objetivando a satisfação dos postulados defendidos na sociedade.

Antes, porém, é de boa técnica estabelecer-se o alcance que se quer dar ao tema instituições políticas, facilitando-se a

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abordagem do tema de fundo.Instituições políticas são sistemas que tem funções de

atuação no interesse do coletivo, visando à proporcionar formas de representação social que promovam a construção de solu-ções para os modos de vida das sociedades.

A ciência política tem configurado a ideia de instituições não apenas falando de indivíduos ou classes (órgãos do gover-no, partidos políticos), mas, também, formas de manifestação das situações de interesse público, como por exemplo, o siste-ma eleitoral. São, em síntese apertada, as formas de preparo e organização das atitudes sociais.

Não obstante a essa abertura que o conceito pode ofertar, relevante olhar-se, aqui, instituição como grupo de pessoas que estão aptas (por critério de legitimidade e não de competência técnica) à tomada decisões, pelo fato de representar o coletivo.

Uma vez criada essa forma de instituição política, suas decisões e escolhas alcançarão toda a sociedade, tendo im-pacto decisivo no comportamento das pessoas, inclusive dos agentes inseridos no jogo político (legisladores, juízes, sindica-tos, etc.). As “criações” oriundas destes reduzidos grupos, terão efeito jurídico geral de coerção e responsabilização.

A eficácia das ações institucionais tende a variar de acor-do com o fenômeno histórico e geográfico. O que funciona no Japão não terá o mesmo êxito, necessariamente, no Brasil.

Adequado, portanto, avaliar as instituições como gru-pos que tomam decisões. Para isso, necessária é a análise dos chamados “atores políticos com poder de veto”, ou, em outras palavras, pessoas que detém alguma forma de poder capaz de influenciar aspectos decisórios vinculantes.

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Estes atores fazem escolhas que são entendidas como racionais, em virtude de sua autoridade enquanto instituição, por serem técnicas ou justificadas em algum elemento de rele-vância social.

George Tsebelis classifica os aludidos atores como “ato-res individuais com poder de veto” e “atores coletivos com poder de veto”, querendo tratá-los a partir de sua influência no pro-cesso decisório, uma vez que entende o sistema político “como um meio de tomada coletiva de decisão”.9 Tanto os atores indi-viduais, quanto os coletivos, são aqueles cuja atuação é neces-sária para que se chegue a um consenso, suficiente à alteração do status quo.10

Por sua vez, os atores, individuais ou coletivos, quando criados pela Constituição, são chamados de “atores institucio-nais” (Senado Federal, Câmara dos Deputados, etc.) e quando criados pelo jogo político, denominam-se “atores partidários”.11 É importante ter cuidado nessa parte, pois dentro do Congresso Nacional, por exemplo, existem as duas figuras. No Congresso Nacional há duas casas, a Câmara dos Deputados e o Senado Federal (atores institucionais). Dentro delas, figuram partidos políticos (atores institucionais). Mas se houver um partido ma-joritário que conduza os caminhos decisórios das casas, fala-se em ator partidário, pois politicamente toma as reais decisões.

Mister lembrar que o vocábulo ator “individual” ou ator “coletivo” não induz a aparentemente óbvia ideia de que se trata de uma pessoa (individuo) ou um conjunto de pessoas (coletivo)

em cada uma das assertivas. A decisão unânime de uma casa 9 TSEBELIS, George. Atores com poder de veto: como funcionam as instituições políticas. Trad. Micheline Christophe. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009. p. 37.10 Op. cit. p. 42.11 Op. cit. p. 42.

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legislativa (uma Câmara de Vereadores, por exemplo) é consi-derada como uma decisão tomada por ator individual, pois se considera a Câmara enquanto órgão político. Em hipótese de colegiados que precisam de maioria decisória, considera-se os grupos que terão o condão de decidir a mudança do status quo, o que leva a se falar em atores coletivos, pois a participação de muitos, gera a universalidade.

Visto isso, fica fácil contextualizar a ideia já posta, de que os pré-compromissos e as restrições são criados por atores sociais, que vinculam as atitudes do coletivo, a partir da justifi-cação de autoridade constitucional e de escolha democrática.

Considerar como correta a escolha por meio da qual a propriedade imóvel se deva adquirir e comprovar pelo ato regis-tral em órgão público, de estrutura local, com acentuado ônus financeiro para a parte interessada, é decisão política que pare-ce merecer discussão, ante o contexto social majoritário e aos novos recursos tecnológicos disponíveis.

A eleição por esse modelo é antiga, tendo por marco, no Brasil, período anterior ao próprio Código Civil de 191612, e revela forte influência do Estado liberal burguês, que pretendia proteger a propriedade individual de forma absoluta. Hoje, com a perspectiva de um Direito Civil-Constitucional que tem por pre-tensão a proteção da pessoa, da dignidade, do livre desenvolvi-mento da personalidade, do reconhecimento da complexidade negocial e da função social da propriedade, parece que o forma-to registral absoluto está fadado a ruir.12 A Lei 601, de 18 de setembro de 1850, regulamentada pelo decreto 1.318, de 30 de Janeiro de 1854, instituiu o chamado “Registro do Vigário”, por meio do qual eram retirados do domínio público todas as posses que fossem levadas a registro no livro da Paróquia da Igreja Católica da situação dos respectivos imóveis. Em 1864, pela lei 1.237, foi criado o “Registro Geral”, fazendo nascer a “transcrição” como forma de transferência da propriedade imóvel no Brasil. Os Decretos 169-A, de 19 de Janeiro de 1890, e 370, de 2 de maio de 1980, editados, agora, pelo governo da república, tornaram obrigatória a “Inscrição” e a “Especialização” de todo o direito real de garantia incidente sobre bens imóveis no País, inclusive a hipoteca Judiciária. Somente após isso que veio o Código Civil de 1916, para falar em aquisição pelo registro.

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Não obstante, o assunto jamais ingressou na pauta de revisão do status quo, exatamente porque os atores com poder de veto (legislativo, para repensar o teor do art. 1.245, e § 1º, do Código Civil; executivo, para criar outro modelo de fiscalização e controle das esferas proprietárias, mais moderno, tecnológico e simplificado) têm a tendência de proteger o formato burocrático – e de acesso difícil – de aquisição da propriedade imóvel.

Daí a importância de se discutir se o sistema de represen-tação, no Brasil, é eficaz e consolida as propostas de um Estado Democrático de Direito. Mas esse é assunto para outro momento.

Alterar o status quo, poderá beneficiar diversas pessoas que não tem registro sobre seus imóveis de moradia, sobre os quais detém posse, regularizando suas situações de vida, digni-dade e cidadania. Não existe, nesse sentido, qualquer voz que seja representativa o suficiente para ser considerada como ator com poder para iniciar o debate, posto que os interesses dos possíveis, a partir do vetor econômico, não recomenda essa to-mada de atitude.

As escolhas não são racionais sob o ponto de vista da criação de lei que atenda nessidades sociais sobre o tema. São passionais, uma vez que privilegiam os interesses de gru-pos que não se submetem à ideia de restrições para cumprir pré-compromissos.

A Constituição brasileira desenhou um pré-compromisso relevante ao instaurar o direito à moradia com qualidade, como direito fundamental. Não obstante, “esqueceu” de vincular este pré-compromisso a uma restrição econômica a que deveriam se submeter alguns grupos no âmbito social.

Disso, chega-se ao pensamento atual de Jon Elster, sin-

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tetizado em que os atores não criam pré-compromissos que ge-rem restrições a si mesmos. O administrador público, na hipó-tese de tomar a decisão de alterar a sistemática do registro de imóveis, terá de encontrar outra escolha ótima, que a substitua de maneira mais eficaz. Esse o temor de desagrado eventual do ator econômico.

Essa escolha é trabalhosa e difícil, uma vez que gera a modificação de um paradigma centenário no Brasil, o que faz com que o assunto não entre na pauta política. Não obstante, é decisão necessária para a atualização do conteúdo técnico e social do direito de propriedade. Mas esta escolha, para ser racional, deverá passar por alguns testes que a ciência política orienta, e que não estarão necessariamente descritos no Direi-to. Por isso, a necessária interdisciplinaridade.

Acerca da teoria da escolha racional, é importante o es-tudo de George Tsebelis que, a partir da teoria dos jogos, oferece alguns critérios para investigar o porquê das escolhas políticas. Parte, o autor, de uma análise do comportamento individual dos políticos e de suas ligações partidárias, demonstrando que o comportamento que pareça não revelar a melhor escolha para alguma situação, merece uma visão mais ampla do observador, uma vez que o ator político poderá estar em vários cenários do jogo e o observador em apenas um.

O autor desenvolve seu raciocínio a partir da ideia de que o ator político tomará decisão ótima, quando conhecer as informações adequadas, de maneira que haja uma maximização do que chama de payoff, que é uma espécie de remuneração (reconhecimento) do seu agir, pelo observador. A decisão deverá agradar ao observador, na medida em que a racionalidade “nada

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mais é que uma correspondência ótima entre fins e meios”.13

Em outras palavras, o ator político (que tem o poder de veto14) agirá sempre no seu interesse, de maneira a valorizar sua “imagem” (ganhar payoff) e com isso ter vantagens. O ator pode ser um deputado, um partido político, um gestor público, entre outros, mas todos estarão focados nos “seus” resultados, sob a veste ilusória de que estão na defesa do bem comum.

Dentro da teoria dos jogos – ainda que aqui se tenha tratado em breve resumo – fica muito clara a formatação do quadro de decisões sociais, ou seja, há que se projetar uma vantagem para o político, para que ele tenha “motivação” de alterar o status quo.

Na situação do sistema registral ocorre exatamente a mesma coisa. Somente se vai alterar os critérios codificados de transição proprietária – constituição da propriedade – quando o ator político visualizar que uma decisão sua, modificando o for-mato solene atual, será relevante para a esfera de maximização de seu payoff, quer dizer, somente se pensará em modificar a condição atual quando houver vantagem política ao ator com poder de veto.

Ao falar-se em modificar o sistema, possíveis vozes se levantarão argumentando pela sua desnecessidade e até teme-ridade, especialmente pelo quebrar de prerrogativas de algumas instituições.

Necessário analisar se – no momento da tomada de decisão – o ator verá seu payoff maximizar-se ou minimizar-se, com aprovação ou desaprovação dos grupos (observadores) interessados.13 TSEBELIS, George, Jogos ocultos: escolha racional no campo da política comparada. São Paulo: Edusp, 1998. p. 33.14 Entendido como “poder de escolha”.

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Frise-se algumas rápidas possibilidades: a) os observa-dores do grupo interessado na manutenção do status quo, cri-ticarão decisões de mudança do sistema; b) os observadores do grupo dos possuidores que desejam a desburocratização do registro, criticarão a manutenção do modelo. No momento em que o assunto entrar na pauta, o grupo vencedor será o que conseguir alcançar o melhor resultado ao payoff do ator com o poder de decisão (baseada na teoria da escolha racional).

O grupo que se mostrar com maior potencial de beneficiar os interesses do ator político, vencerá o jogo e, consequente-mente, alcançará o resultado ótimo15 para sua eficaz satisfação jurídica. A justificativa da decisão poderá ser o argumento de que a mudança não prejudicará a segurança oferecida (supos-tamente) pelo sistema registral, não afetando o grupo vencido, por ser mais adequado para a sociedade como um todo. Já se a escolha for pela não alteração da sistemática, terá, provavel-mente, a defesa da tese de que o sistema é bom e seguro, não havendo a necessidade de mudanças.

Argumento sempre forte a fundamentar as escolhas po-líticas, no regime democrático participativo, é o da decisão da maioria. Isso será elemento de tentativa de justificação, junta-mente com os argumentos anteriormente mencionados.

Assim, importante que a reflexão gire em torno de per-ceber que o Estado brasileiro comprometeu-se constitucional-mente (pré-compromissos) em garantir o direito a moradia, a função social da propriedade e o acesso à terra, mas não se limitou (restrições) em alterar o status quo que eventualmente prejudique o gestor público (ator político com poder de veto), 15 A perspectiva de “ótimo” vem do teorema de Pareto. Veja o que diz TSEBELIS: “Tecnicamente, um resultado é chamado de ótimo de Pareto quando é impossível melhorar o payoff de um jogador sem reduzir o do outro.” (Op. cit. p. 73).

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pela crítica de grupos específicos à mudança, porque deseja restar vencedor no jogo, melhorando sua imagem (payoff) e se perpetuando no poder.

Cabe indagar, no entanto, qual a possível posição da sociedade (observador) se o jogo for colocado em pauta nas discussões de atuação necessária do Estado, a partir da pers-pectiva de maiorias e minorias, considerando-se o ideal demo-crático brasileiro.

4 A DEMOCRACIA COMO FORMA DE ATUAÇÃO DAS MAIO-RIAS (E MINORIAS?)

A democracia é conceito construído a partir do pensa-mento de igualdade, em linhas gerais. E para que isso seja pos-sível, Arend Lijphart afirma que se trata de um “governo pela maioria do povo”, onde a as maiorias governam e as minorias fazem oposição. O autor, no entanto, deixa claro que isso é questionado pelo modelo de democracia consensual, onde to-dos devem participar do mecanismo de gestão, ainda que dis-corde das decisões majoritárias.16

Esse governo de maiorias, com oposição não participa-tiva de minorias, é antidemocrático pelo simples motivo de que estas ficam excluídas do processo político.

No sistema político brasileiro, vê-se a forte presença das minorias quando se opta pelo pluripartidarismo, pela proteção constitucional de segmentos sociais como, por exemplo, os ín-dios, os portadores de necessidades especiais, entre outros. Ainda que isso não alcance a efetividade social desejada, pois 16 LIJPHART, Arendt. Modelos de democracia: desempenho e padrões de governo em 36 países. Trad. Roberto Franco. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. p. 5.

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na prática muitos desses direitos não são respeitados, em fun-ção da própria conjuntura geral das gentes, existe garantia legal, a partir da normatização do Estado.

Não se deseja, aqui, exaurir a perspectiva da técnica de maiorias e minorias, mas, especialmente, suscitar a reflexão so-bre o entendimento de minorias ou maiorias, a partir de um olhar axiológico. Este olhar reside na atual impossibilidade de se consi-derar um todo populacional, com as ferramentas jurídicas ofereci-das pelo Código Civil, ainda de índole oitocentista, vez que repete exatamente, no aspecto proprietário, a codificação de 1916.

O direito civil, agora constitucionalizado, tem por fun-damento a proteção da pessoa em primeiro lugar, inclusive, se necessário for, com a secundarização do conteúdo legal. Isso, para que seja viável alcançar-se, da forma mais satisfa-tória possível, o acesso aos bens da vida, aproximando-se, ao máximo, de uma proposta de igualdade (substancial) social. É nesse contexto que se relembra a lição de Orlando de Carva-lho, jurista português, quando deixa entender que o direito civil deve estar a serviço da vida.17

A serviço da vida, para o autor, está um direito civil que privilegie a pessoa ao patrimônio, devendo este servir àquela, e não o contrário. Hoje o que se vê nas relações proprietárias é o apego maior ao patrimônio, em prejuízo do direito de muitos que não tem acesso econômico à formalidade do registro, como no exemplo da dupla contratação, onde se prestigia o “que registra primeiro”. Nem sempre é possível ao primeiro comprador agir para cumprir imediatamente o formalismo público do registro. Muitas vezes em face de sua condição econômica desprivilegiada.

17 CARVALHO, Orlando de. A teoria geral da relação jurídica: seu sentido e limites. 2. ed. Centelha, 1981. v.1. p. 92.

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O formalismo absoluto do sistema registral, a partir da máxima “só é dono de imóvel quem registra” promove desigual-dade nas relações interpessoais e prejudica a boa-fé de muitos que adquirem os bens, mas que pela demora ou desconheci-mento da necessidade de proceder ao registro no serviço públi-co imobiliário, perdem as titularidades.

Em um país como o Brasil, de dimensões territoriais con-tinentais e de população em sua maioria participante das clas-ses sociais hoje designadas como “C” e “D”, é preciso incluir-se na pauta de decisões, do ser político, o acesso mais fácil dessas camadas à proteção dos bens imóveis.

Situação semelhante já se assiste, na esfera do poder judiciário, quando se trata de proteção do possuidor contra pe-nhoras, através dos embargos de terceiro, fundamentando-se, basicamente, na boa-fé daquele que possui documentalmente (mesmo sem registro) um imóvel.

Somente essa providência, no entanto, não satisfaz as pretensões sociais e, ao contrário, prejudica o credor, muitas vezes, por atos simulados de difícil prova, efetivados por deve-dores que forjam negócios com terceiros, para se escusar do pagamento de dívidas.

O caminho parece ser o da flexibilização do formalismo registral, como sempre foi em países como Portugal e Itália.

A alteração do paradigma somente será possível no mo-mento em que o ator político desejar que o assunto seja inserido na pauta de discussões dos detentores do poder de veto.

Aqui entra a questão da democracia brasileira. O que se diz, no âmbito geral, é que o sistema registral é confiável e apoiado pela maioria. A doutrina pátria assim o repete, em que

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pese nunca tenha havido qualquer movimento significativo, por parte dos atores jurídicos, para enfrentar a discussão.

Por esse motivo, cabe indagar se é a maioria ou a mi-noria, no contexto social, quem sofre prejuízo com o sistema registral tal como está. Ao considerar-se que a maioria no Brasil é proprietária e detém títulos públicos de seus bens imóveis devidamente atualizados, o dado democrático estará satisfa-toriamente efetivado em seus termos teóricos e práticos, pois não haverá lacuna axiológica de proteção da propriedade imóvel acessível a “todos”. Em outras palavras, o sistema está bom e não merece mesmo ser criticado, pois atende a maioria, faltan-do apenas facilitar à minoria o acesso a esse status.

Não é isso o que se observa da fácil constatação social.A maioria da população não é proprietária e enfrenta di-

ficuldades de acesso para efetivar os requisitos de transmissão civil da propriedade, em face, exatamente, da burocrática siste-mática vigente.

O bem fica inacessível em sua totalidade proprietária, pelo fato de que a pessoa tem uso, gozo, disposição, mas não tem a garantia de que não será excluído da propriedade, por ter apenas posse fundada em contrato de compra e venda, ou, ainda, promessa de compra e venda.

É comum a situação de pessoas que têm a escritura pú-blica, mas que, por não a registrar rapidamente, acabam por perder o imóvel, em virtude de que outro registrou antes. La-mentavelmente, há vendedores que contratam diversas vezes o mesmo bem, em procedimento claro de má-fé. Possível afirmar que tal acontece, especialmente, porque hoje prevalece a tese de que, em discussão da propriedade, o registro primeiro será o

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válido e eficaz. É preciso atribuir valor a força do contrato, pres-tigiando a boa-fé do primeiro comprador.

Em um sistema que se diz democrático, as maiorias e minorias devem ter prerrogativa de acesso aos direitos (e bens) materiais e sociais. O direito de moradia, constitucionalmente assegurado, é preterido, muitas vezes, pelo descumprir burocrá-tico do sistema escolhido, pelo político, como melhor.

Ademais, vincular a aquisição da propriedade imóvel uni-camente ao registro – aquisição essa que gera, no mais das vezes, o assegurar da moradia – é medida contrária à dialética constitucional prevista no direito civil contemporâneo.

Relevante indagar, neste momento, se a aludida opção se coaduna com uma escolha que prefira o social, ou se ser-ve de mera tentativa de justificação que encubra os benefícios de algumas instituições minoritárias, prestigiadas pelo contexto político, em detrimento do pensar e agir democrático. Este é o assunto final, no capítulo adiante.

5 O SISTEMA DE REGISTRO DE IMÓVEIS: OPÇÃO POLÍTICA DE REAL PROTEÇÃO SOCIAL?

O argumento da escolha política pelo sistema formal de registro de imóveis é o de segurança ao proprietário, conduzindo ao equilíbrio da esfera social, por impedir que se desrespeite o direito “sagrado” de proteção dos bens e de manutenção das titularidades.

A partir do que já se disse, no entanto, mister tentar-se colocar à prova o argumento, iniciando-se discussão (este escri-to não é completo e nem tem como ser) a respeito de se o ins-

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tituto realmente protege a esfera proprietária, de forma plena, e se esta proteção se coaduna com a necessidade de proteção do direito de moradia e da função social da propriedade.

Parece que, em primeira análise, não há uma proteção absoluta do direito de propriedade sobre imóveis, pela simples existência do sistema registral.

Situações há de matriculas múltiplas sobre o mesmo bem, onde aquele que registra primeiro, no mais das vezes com títulos obtidos com má-fé, ganha privilégios em detrimento de possuidor, anterior, de boa-fé.

Ademais, por segurança total (que parece igualmente questionável) a doutrina coloca apenas e tão somente como por meio do chamado “Registro Torrens”, onde se obtém deci-são judicial para provar uma propriedade, sem possibilidade de questionamentos futuros.

A constitucionalização do direito de moradia – como ga-rantia da realização plena da personalidade, que tem por corolá-rio a dignidade humana – exige que se facilite o acesso das pes-soas à aquisição de bens imóveis, satisfazendo uma perspectiva de patrimônio mínimo e de função social da propriedade.

A proteção da propriedade como absoluta e imutável, de difícil transmissão, unicamente pelo ato de registro imobi-liário, pois, é escolha política que deve ser revista a partir da conscientização dos pré-compromissos constitucionais firma-dos na carta de 1988.

Como bem ensina Luiz Edson Fachin: “A tese não confun-de propriedade com patrimônio, nem identifica propriedade tão-só como propriedade privada. A noção de patrimônio persona-líssimo, assumidamente paradoxal, está agregada à verificação

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concreta de uma real esfera patrimonial mínima, mensurada pela dignidade humana à luz do atendimento de necessidades básicas ou essenciais.”18

As regras do jogo político, hoje, não atendem aos pres-supostos de garantia da propriedade como finalidade social e garantidora do mínimo existencial.

Torna-se necessário que os atores, que tenham poder de veto, coloquem na pauta institucional a efetivação do direito de propriedade, de maneira a homenagear o coletivo e não uni-camente o econômico e individual. Esse é o pré-compromisso firmado constitucionalmente.

O Estado deve efetivar limitações e restrições a si mes-mo, que demonstrem a coragem de alterar a finalidade unica-mente econômica de algumas instituições, especialmente na exploração do sistema registral de imóveis, criando uma nova metodologia de controle das propriedades imobiliárias no Brasil.

Afirma-se, de tudo isso, então, que a sistemática atual do registro de imóveis não serve a proteger o conjunto social, mas, apenas, a individualidade proprietária.

Sob a veste de formalismo, se protege interesses unica-mente econômicos, distanciando-se da facilidade de acesso à transmissão dos bens imóveis, desejada pela Constituição, mas não consolidada pela legislação civil.

Isso frustra as garantias de moradia, força do contrato, posse e acesso imobiliário, diversamente do que se espera de um Estado democrático e acessível, com atores políticos responsáveis, coerentes e comprometidos com a igualdade de possibilidades.

18 Op. cit. p. 3.

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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por ocasião deste momento final, importante frisar a real

intenção do presente ensaio, que modestamente pretende le-

vantar o véu que existe por sobre a sistemática da transmissão

de propriedade imóvel no sistema jurídico brasileiro, fincada em

ultrapassados paradigmas burgueses da modernidade.

Pretendeu-se provocar reflexão acerca da opção por tal

modelo, fortemente marcado pelo compromisso que o ator po-

lítico tem para com seu interesse pessoal de manutenção do

poder, prestigiando grupos que lhe permitam manter seu payoff.

Como bem escreveu Jon Elster, o fenômeno constitucio-

nal produz pré-compromissos atrelados a limitações para os ou-

tros, mas dificilmente para os atores com poderes de atuação.

Sob a justificativa de governos democráticos de maioria,

acaba-se por fazer escolhas que, em verdade, pouco importam

às camadas sociais majoritárias ou minoritárias, mas, sim, vi-

sam a atender unicamente aos interesses dos jogos de poder.

As instituições são mecanismos de poder, no mais das

vezes utilizados para atender aos interesses dos atores com po-

der de veto, que tão somente atuam na tomada de decisões

de interesse geral quando forem adequadas às suas buscas de

manutenção da posição de controle.

O registro de imóveis, como mecanismo de obrigatorieda-

de social para a transmissão de propriedades, representa isso,

o cumprir de formalidades custosas e inseguras, para manter

as preferências do sistema político que tem por fundamento o

patrimônio individual absoluto, em detrimento das realidades de

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muitos que não alcançam o formalismo proprietário.Fixe-se, então, como pauta necessária, a rediscussão do

sistema de transmissão da propriedade imóvel unicamente pela técnica do registro de imóveis e, quem sabe, no futuro se pode-rá dizer que tais estudos mereceram a atenção dos “atores com poder de veto”.

REFERÊNCIAS

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ELSTER, Jon. Ulisses liberto: estudos sobre racionalidade, pré-compromissos e restrições. Trad. Cláudia Sant’Ana Martins, São Paulo: Editora UNESP, 2009.

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FINN, John E. Constitucions in crisis. New York: Oxford University Press, 1991.

LIJPHART, Arendt. Modelos de democracia: desempenho e pa-drões de governo em 36 países. Trad. Roberto Franco. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. p. 5.

PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional. Trad. Maria Cristina de Cicco. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2002.

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TSEBELIS, George. Atores com poder de veto: como funcionam as instituições políticas. Trad. Micheline Christophe. Rio de Ja-neiro: Editora FGV, 2009.

Jogos ocultos: escolha racional no campo da política compara-da. São Paulo: Edusp, 1998.

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COISA JULGADA E CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE

RES JUDICATA AND JUDICIAL REVIEW

Adauto Couto1

Paulo Roberto Pegoraro Junior2

RESUMOO presente trabalho tem por escopo abordar a efetividade e os efeitos da coisa julgada, diante da sua eventual inconformidade com as disposições da Constituição Federal, concluindo a apli-cabilidade da sua perpetuação ou da sua reforma, pelos enten-dimentos doutrinários e do Direito positivado. Objetiva, ainda, no decorrer de tal pesquisa, pontuar possibilidades diante do que insurge como o principal ponto controverso que se enraíza pelo Direito Constitucional e Direito de Processo Civil, sendo identifi-car como se dá a coisa julgada diante da discrepância com os ditames da Constituição Federal e os instrumentos e ferramen-tas que ficam legalmente aplicáveis à situação, clareando tama-nha nebulosidade que cerca tal adversidade jurídica.

PALAVRAS-CHAVE: Coisa julgada, controle de constitucionali-dade, relativização.

ABSTRACTThis work has the scope to address the effectiveness and the effects of res judicata, on its possible non-compliance with the provisions of the Federal Constitution, concluding the applicability 1 Acadêmico do Curso de Direito da UNIVEL – Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas de Cascavel. Endereço eletrônico: [email protected] Especialista em Direito Civil e Direito Processual Civil, Mestre em Direito Processual e Cidadania, Coordenador do Curso de Direito da UNIVEL – Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas de Cascavel. Endereço eletrônico: [email protected].

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of its perpetuation or its reform, the doctrinal understandings and positivado law. Objective, even in the course of such research, scoring possibilities than before protests as the main controversial point which is rooted in the Constitutional Law and Law of Civil Procedure, and identify how is the res judicata on the discrepancy with the dictates of Federal Constitution and the instruments and tools that are legally applicable to the situation, clearing such vagueness about such legal adversity.

Keywords: Res judicata, control of constitutionality, relativization.

1 INTRODUÇÃO

Contemporaneamente, como há muito se dá, tem-se o viés judicial como a forma última procurada para resolver confli-tos, quando estes não puderam ser solucionados por meios ex-trajudiciais, criando-se assim um instrumento para que por meio do arcabouço do Ordenamento Jurídico possa ser pleiteada a resolução de lides, desenvolvendo um processo para apurar o direito reclamado. Este processo terá por fim a esperada decisão emanada através de uma sentença, a qual, respeitada a fase re-cursal, posteriormente ganhará uma qualidade denominada coi-sa julgada, que, em regra, tornará a decisão imutável, ensejando a impossibilidade de prosseguimento daquele feito, tida como re-solvida a discussão e a regularidade das formalidades impostas.

Nesse contexto de coisa julgada, requer-se que esta res-guarde correspondência com as disposições que a própria legis-lação estabelece, salientando a consideração da Constituição Federal Brasileira como a Lei Mor no âmbito interno, aquela norteadora de todas as demais, desde os ditames de elabora-ção e andamento, quanto no exercício fiscalizador por meio do

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controle de constitucionalidade. Deve a coisa julgada estar em condizência com os parâmetros constitucionais, para que não se mostre eivada de vício de inconstitucionalidade, ou, escla-recida a possibilidade de essa se dar, restem claros os moldes para a sua aceitação ou reforma.

Sendo o processo o meio de aplicação das normas jurídicas e direitos fundamentais para se alcançar o desfecho de uma lide, mostra-se, inequivocamente, como essencialidade para regular a aplicação do Direito material. A eleição da Constituição Federal como Norma Suprema e principalmente como aquela que elenca os direitos fundamentais à pessoa humana, quando juntada ao devido andamento processual, ao final afirmado pela coisa jul-gada, é a demonstração do alcance do objetivo tido pelo Direito. Todavia, se tal instituto se manchar com a inconstitucionalidade, independentemente do seu fator determinante, incorrerá na sua ineficiência, pela contrariedade às próprias raízes legais.

Enfrentar o assunto da inconstitucionalidade da coisa jul-gada propicia o esclarecimento de muitos pontos carentes de justificativas, diante de um instituto a priori constituído pela ple-nitude e imutabilidade, todavia, suscetível a incorrer em vícios, aos quais adequadamente deve haver formas remediáveis, ou a demonstração fundamentada da não lesividade da ocorrência de um julgado contrário às disposições constitucionais.

A sociedade, como maior interessada no alcance da jus-tiça, adquire por meio do Direito, pelo princípio da segurança ju-rídica, a garantia do reconhecimento daquilo que foi litigado sem ocorrer posteriormente eventuais mudanças nesse direito, mas, principiologicamente e diante da sua representação em um or-denamento jurídico, afirma-se que a abrangência normativa há

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de, por mecanismos eficientes, possibilitar a revisão daquilo que contraria a Constituição Federal ou por algum meio sanar vício de tal magnitude.

Outrora, sustentou-se com veemência, por respeitáveis operadores do Direito, a coisa julgada ser intocável, mesmo marcada pela inconstitucionalidade, pelo que fomenta a polêmi-ca da relativização da coisa julgada inconstitucional por meio de um viés extraordinário, embora seja versada a sua imutabilidade como regra. Destacam-se as variações interpretativas da própria disposição normativa atual, para concluir fundamentadamente em viabilidade, legalidade e inarredavelmente pelos princípios, latentes em essencialidade a um ordenamento jurídico, para a possibilidade de rescindir a coisa julgada, ou não, analisando à luz da segurança jurídica, sendo este o principal ponto utilizado por defensores e críticos da questão da relativização.

Os avanços sociais, na área tecnológica, política, econô-mica, ambiental, trazem à tona diversas situações que requerem a adequação jurídica para o acompanhamento legal a tais mu-danças, mostrando-se o fortalecimento da Constituição Federal como importante ferramenta garantista. Todavia, para tal, faz-se essencial impor a Carta Magna como dispositivo infringível, não acatando a protelação daquilo que incorre na sua contrariedade.

O principal instrumento garantidor da conformidade legis-lativa e de atos normativos com a Lei Mor pode ser direcionado ao controle de constitucionalidade, que, como mecanismo de complexidade abrangente, alcança considerável extensão no Di-reito. No tocante à coisa julgada, vale analisar a incidência do controle de constitucionalidade e verificar meios que poderiam vir a surtir resultado positivo no que tange regular a sentença e principalmente a coisa julgada.

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No universo jurídico, dentre respeitáveis doutrinadores, a concatenação de pontos favoráveis ao ordenamento, indepen-dentemente de prendimento a qualquer intitulação, pode bene-ficiar o enriquecimento normativo e o avanço sobre temas ainda carecedores de regulamentação específica. A coisa julgada há muito é objeto de estudo por grandes doutos, outrossim, especifi-camente a respeito da sua constitucionalidade, sendo que esten-der o assunto ao controle de constitucionalidade foi tratado por poucos, podendo resguardar o elemento angular para o esclare-cimento da coisa julgada inconstitucional, respeitados os posicio-namentos, prós ou contras, abastecendo a cooperação em prol do bem comum, viabilizando a melhoria da atuação judiciária.

2 COISA JULGADA

No contexto da sociedade pós-moderna, relacionando as palavras de Eduardo Talamini (2005, p. 404), tem-se a coisa julgada não só mais como mero efeito da sentença, mas como o seu notável resultado qualitativo, em que, em conformidade com o artigo 463 do Código de Processo Civil (CPC), esgota-se o ofício do juiz e acaba a função jurisdicional, com o trânsito em julgado da sentença, havendo a vedação de interposição de qualquer outro recurso. O Professor Luiz Guilherme Marinoni (2012, p. 632) pontua a coisa julgada como “a imutabilidade decorrente da sentença de mérito, que impede a sua rediscus-são posterior”, em sua generalidade.

Faz-se necessária a distinção entre a coisa julgada ma-terial e formal, embora nos atenhamos apenas à decorrente da sentença com resolução do mérito. Humberto Theodoro Junior (2011, p. 540) descreve a coisa julgada material como “a eficá-

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cia que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujei-ta a recurso ordinário ou extraordinário”, em consonância com o artigo 467 do Código de Processo Civil. Assim, proveniente da sentença promulgada com fulcro no artigo 269 do Código de Processo Civil, a coisa julgada material impede a rediscussão no mesmo ou em outro processo, garantindo a sua inalterabilidade, englobando também a coisa julgada formal.

A limitação de interposição de recursos advém da inad-missão legal, como em caso de intempestividade, tendo esgota-do os prazos recursais ou ainda em decorrência de renúncia por aquele que o poderia fazer. Nesse contexto, insere-se a coisa julgada como formalização da característica de inalterabilidade dessa decisão sobre a qual não cabem mais recursos, em regra.

2.1 A relativização da coisa julgada

Fomento de fervorosa discussão, a relativização da coisa julgada recebe diversos posicionamentos doutrinários, com di-vergentes opiniões e embasados argumentos. Cândido Rangel Dinamarco (apud THEODORO, 2011, p. 183) cimenta juízo, em palavras que pregam “a relatividade da coisa julgada como va-lor inerente à ordem constitucional-processual, dado o convívio com outros valores de igual ou maior grandeza e necessidade de harmonizá-los”. Dinamarco aponta que a coisa julgada eivada do vício da inconstitucionalidade não chega a atingir a materia-lidade, mas concretiza-se apenas em ditames formais, pelo que acentua o cabimento da relativização, sem hesitar quanto à se-gurança jurídica. Dinamarco (apud THEODORO, 2011, p. 184) exorta acerca, ratificando os argumentos expostos e salientando o inafastável reconhecimento da inconstitucionalidade:

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Da inexistência desses efeitos juridicamente im-possíveis decorre logicamente a inexistência da coisa julgada material sobre a sentença que pre-tenda impô-los. [...]Irrecorribilidade (coisa julgada formal) de uma sentença não apaga a inconstitucionalidade da-queles resultados substanciais política ou social-mente ilegítimos, que a Constituição repudia.

Igualmente, Ivo Dantas (apud THEODORO, 2011, p. 187) ressalta a característica de inexistência de efeitos provenien-tes da coisa julgada inconstitucional, considerando que não há nem sequer que se falar em nulidade ou anulabilidade, pois a contrariedade à Constituição deve ser reparada por instituir uma insegurança jurídica.

Não é a passagem do tempo da ação rescisória que con-valescerá a inconstitucionalidade da coisa julgada, pelo que, de-ve-se atenciosamente analisar o vício em sua proporção real e carecimento de respaldo.

Na contramão desse entendimento, mas possivelmente em sentido correto, Nelson Nery Júnior (apud THEODORO, 2011, p. 186) aponta a coisa julgada inconstitucional nem como ine-xistente, nem como não revestida de nulidade, mas passível de ser rescindida dentro do prazo da ação rescisória e conforme disposição legal.

2.2 Meio típico e atípico de rescisão da coisa julgada

Os questionamentos inerentes à relativização da coisa jul-gada por meios que não encontram respaldo na legislação são

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chamadas de formas atípicas, objeto de discussão e indagação a respeito da sua extensão. Felipe Torres Vasconcelos (2013) faz pertinente citação de Fredie Didier Junior, Paulo Sarno Braga e Rafael Oliveira (2007):

Há na doutrina, quem entenda que a decisão ju-dicial não pode se cristalizar quando injusta ou in-constitucional. Nesses casos, não produziria coisa julgada material, podendo a decisão ser revista, revisada, a qualquer tempo por critérios e meios atípicos. Trata-se de movimento recente que vem propondo a chamada relativização da coisa julga-da atípica- já que há hipóteses da revisão da coi-sa julgada típica que, dessa forma, já é relativa, como percebeu Barbosa Moreira.

Valer-se em casos atípicos de relativização, da chamada querela nullitatis, mostra-se como meio apontado por doutri-nadores e pela jurisprudência, conforme cita Soares (2009, p. 237), segundo o qual tal instrumento, que tem seus primórdios no Direito Medieval, é eficaz para os casos em que há contradi-ção da decisão transitada em julgado com a Constituição Fede-ral, incidindo exemplificativamente para o caso de vício na cita-ção, restringindo direito fundamental de contraditório, tomando a forma dos meios atípicos de revisão da coisa julgada, pela querela nullitatis insanabilis.

Diante da regular produção de efeitos pela coisa julgada in-constitucional, na necessidade de regular forma de oposição, indi-ferentemente do viés para o qual se compreende pela possibilidade da sua relativização, inexistência, nulidade ou anulabilidade, o con-trole de constitucionalidade há de ser instrumento cabível e ajus-tado a promover a relativização da coisa julgada inconstitucional.

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Salientando o controle de constitucionalidade difuso, diante da inconstitucionalidade da coisa julgada, a qualquer tem-po, é pertinente a verificação, seja pelo juiz singular ou tribunal, da existência do vício e posteriormente o encaminhamento da re-lativização por meio cabível e aplicável, ou ainda pelo controle de constitucionalidade concentrado exercido pelo Supremo Tribunal Federal, diferindo-se apenas nos efeitos do reconhecimento da incompatibilidade da coisa julgada com a Constituição Federal.

Humberto Theodoro Junior (2011, p. 199) esclarece verdade latente quanto ao controle de constitucionalidade, afir-mando:

A tendência clássica de preocupação apenas com o controle de constitucionalidade dos atos do Le-gislativo e do Executivo dotados de força normati-va, franqueia a ação direta de inconstitucionalida-de apenas para tais atos, deixando de contemplar os atos decisórios do Poder Judiciário sob o manto da res iudicata.

Na linha de entendimento da intangibilidade da coisa jul-gada, estaria a disposição do artigo 485, inciso V do Código de Processo Civil, indo de encontro a este preceito, considerando a instituição da ação rescisória como, por entendimento do Su-perior Tribunal de Justiça, competente para desconstituir a coisa julgada inconstitucional.

3 CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE

Partindo-se da supremacia da Constituição Federal no or-denamento jurídico brasileiro, são buscadas formas de regular a

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produção legislativa, bem como decisões proferidas no judiciário e ainda atos administrativos, para que estes estejam de acordo com as disposições da lei mor, o que requer a utilização de fer-ramentas para realizar tal supervisão. Emanado o princípio da Supremacia da Constituição, decorrente da rigidez em que figu-ra a Carta Magna, podemos citar a explanação de Pinto Ferreira (apud SILVA, 2013, p. 47) no que tange tal princípio, apontando que “é reputado como uma pedra angular, em que se assenta o edifício do moderno direito político”, retratando o alicerce para o próprio desenvolvimento do controle de constitucionalidade, de-corrente da Constituição como cerne do Ordenamento Jurídico em sua totalidade.

Luiz Roberto Barroso (2009, p. 01) faz alusão em sua obra ao controle de constitucionalidade, referindo conceitual-mente como:

[...] Um sistema pressupõe ordem e unidade, de-vendo suas partes conviver de maneira harmonio-sa. [...] O controle de constitucionalidade é um desses mecanismos, provavelmente o mais im-portante, consistindo na verificação da compati-bilidade entre uma lei ou qualquer ato normativo infraconstitucional e a Constituição.

Considerando que a Constituição resguarda os direitos fundamentais e dentre estes em seu artigo 5º, inciso XXXVI, dispõe sobre a proteção estendida à coisa julgada, o controle de constitucionalidade se apresenta como o também garanti-

dor das deciões denominadas constitucionais. Todavia, neces-sariamente vale aprofundar a abrangência e conceitualmente os pontos em que a coisa julgada será atingida, delimitando as

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incidências e a forma de emprego do mecanismo de controle constitucional.

3.1 Controle difuso

Instituído com a Constituição Federal de 1891 e observa-do até hoje (AFONSO, 2011, p. 52), o controle difuso se dá por exceção ou defesa (LENZA, 2012, p. 269), vindo a ser exercido por qualquer juízo ou tribunal, desde que respeitadas as regras de competência.

Luiz Guilherme Marinoni (2010, p. 17) traz em poucas palavras a importância do controle difuso ao conjunto do Orde-namento Jurídico:

O sistema de controle difuso da constitucionalida-de, muito longe de ser uma mera técnica para o controle da constitucionalidade, consagra um atri-buto do Poder Judiciário, de grande importância quando se tem em conta a relação entre os Pode-res, especialmente entre os Poderes Judiciário e Legislativo, a efetividade da distribuição da justiça nos casos concretos e adequada defesa dos direi-tos do cidadão.

Tal direcionamento do controle de constitucionalidade se dá em sentido da legislação, não havendo previsão expressa ao caso da coisa julgada inconstitucional, ficando esta abordada pelo entendimento doutrinário. No sentido do controle de constitucio-nalidade difuso, cita-se o artigo 97 da CF, (Brasil, 2011), in verbis:

Art. 97. Somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respecti-

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vo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público.

Considerando algumas divergências quanto à competên-cia para o exercício do controle difuso e julgamento da cons-titucionalidade, que se dá incidentalmente, o reconhecimento da inconstitucionalidade da lei terá efeito inter partes e ex tunc (LENZA, 2012, p. 274), determinando a nulidade da norma des-de a sua edição.

3.2 Controle concentrado

Tal denominação de concentrado decorre de estar ligada à atividade de um único Tribunal (Supremo Tribunal Federal), o qual se vale de meios para o controle de constitucionalidade (DELLORE, 2013, p. 252). Os tidos instrumentos para o controle de constitucionalidade concentrado são, conforme elenca Lenza (2012, p. 296) a Ação Direta de Inconstitucionalidade Genéri-ca (ADI), Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamen-tal (ADPF), Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO), Representação Interventiva (ADI Interventiva) e Ação De-claratória de Constitucionalidade (ADC).

3.3 Extensão do controle de constitucionalidade

Conforme se tem o controle de constitucionalidade como assegurador dos direitos individuais elencados constitucional-mente, a sua extensão abarca a garantia do atendimento à Lei

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Mor. Raul Machado Horta (apud DELLORE, 2013, p. 225) pon-tua a essencialidade de ferramentas para garantir tal observân-cia e o papel do controle de constitucionalidade nesse contexto:

O controle de constitucionalidade das leis é o co-rolário lógico da supremacia constitucional, seu instrumento necessário, o requisito para que a su-perioridade constitucional não se transforme em preceito moralmente platônico e a Constituição em simples programa político, moralmente obri-gatório, um repositório de bons conselhos, para uso esporádico ou intermitente do legislador [...].

Considerando os modos difuso e concentrado de contro-le, cada qual acarreta obrigação no ofício judicante de assegurar a condizência da lei ou ato com a Carta Magna, ora realizada por todo órgão do Poder Judiciário ou estritamente pelo Supremo Tribunal Federal.

4 COISA JULGADA INCONSTITUCIONAL

Considerando o andamento processual, em que, ao final da fase de conhecimento, há a prolação de uma sentença e mais adiante, ao esgotar dos recursos, tal decisão reveste-se de imutabilidade pela coisa julgada, pode-se previamente afir-mar que a não limitação posta pela coisa julgada perpetuaria a discussão sem nunca se chegar à resolução da lide, pois, pos-sibilitar que sempre se aproveite do viés recursal, seria tornar infindáveis os processos, tendo em vista que a litigância visa de-

clarar uma das partes como detentora da razão e a outra como responsável por sanar o que originou a discussão.

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Diante de grande fulgor da essencialidade das matérias de Direito Processual Civil e Direito Constitucional para o Orde-namento Jurídico nacional, a constitucionalidade é fixada como pré-requisito e o processo civil exala sua normatização a todos os demais ramos processuais, seja como complemento, base ou estritamente amparo, exprimindo a primordialidade e partici-pação no Ordenamento Jurídico pátrio. Surge assim, diante da importância da coisa julgada no processo civil e do controle de constitucionalidade ao Direito Constitucional, uma associação dos institutos em estudo para se averiguar o que rodeia as suas incompatibilidades, possibilidades reguladoras e teorias nortea-doras das correntes que estudam a coisa julgada quando eivada de inconstitucionalidade.

Sendo a coisa julgada concebida como qualidade da sen-tença, há de se considerar a inconstitucionalidade como prove-niente dos elementos da decisão, sejam eles decorrentes do direito material ou processual, fazendo a coisa julgada o papel de coadjuvante para firmar os efeitos e a efetividade da sen-tença. Todavia, diante de tal afirmação, ainda se indaga se a coisa julgada deixa de estar em contrariedade com a disposição constitucional, consequentemente desmerecendo prosperar, conforme a própria asseveração do Ordenamento Jurídico Brasi-leiro. A coisa julgada, em sua plenitude, emanará seus efeitos e efetivará o direito posto, todavia, se desencontrando do próprio controle de constitucionalidade que se mostra inadequadamen-te impossibilitado de exarar a sua verificação sobre tal, desvin-culando-se da primazia pela justiça, embora irredutivelmente garantidora da segurança jurídica, desvencilhando o Direito do intuito primordial. Não se está afirmando que o segmento da

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Constituição é pleno garantidor do alcance da justiça, mas a própria contrariedade a este diploma legal desapropria a parte da efetivação da Lei Mor que garante a aplicabilidade dos seus direitos fundamentais.

Jorge Miranda (apud THEODORO JUNIOR, 2011, p. 150) contextualiza a constitucionalidade e a inconstitucionalidade:

Constitucionalidade e inconstitucionalidade desig-nam conceitos de relação: a relação que se esta-belece entre uma coisa - a Constituição - e outra coisa – uma norma ou um ato – que lhe está ou não conforme, que com ela é ou não compatível.

A inconstitucionalidade se dá como produto de uma nor-ma ou ato, bem como de eventuais omissões, que estejam em contradição com a Constituição Federal, não devendo sequer haver tal embate, considerando a supremacia constitucional e o respeito inafastável a tais balizas inseridas pela Carta Magna.

José Afonso da Silva (2013, p. 49) pondera a incons-titucionalidade por ação como aquela que deriva da produção legislativa ou de qualquer outro ponto, revestindo-se de contra-riedade com a Carta Magna em seu conteúdo, ficando latente que se infringe a compatibilidade vertical das normas, em que há de se conceber uma prevalência das normas de grau supe-rior, inequivocamente denotando a Constituição como detentora do posto mais alto nesta verticalidade. José Afonso (2013, p. 49) traz, ainda, à baila duas formas de ocorrência desta infrin-gência vertical:

Essa inconstitucionalidade vertical de normas in-feriores (leis, decretos, etc.) com a constituição é

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o que, tecnicamente, se chama inconstitucionali-dade das leis ou dos atos do Poder Público, e que se manifesta sob dois aspectos: (a) formalmente, quando tais normas são formadas por autoridades incompetentes ou em desacordo com formalida-des ou procedimentos estabelecidos pela consti-tuição; (b) materialmente, quando o conteúdo de tais leis ou atos contraria preceito ou princípio da constituição.

Expostas as possibilidades de contrariedade formal ou

material, cria-se um liame à questão da coisa julgada, sendo

perceptível a possibilidade de a imutabilidade trazida por tal ins-

tituto emanar uma contrariedade na sua essência de conteúdo,

ou ainda, que no desenrolar processual que desaguou na sen-

tença tenha havido uma inobservância formal em determinado

momento construtivo.

Em uma segunda abordagem, dá-se a inconstituciona-

lidade por omissão, fulcrada na disposição do artigo 103 da

Constituição Federal, que nas palavras de José Afonso (2013, p.

49) “verifica-se nos casos em que não sejam praticados atos le-

gislativos ou administrativos requeridos para tornar plenamente

aplicáveis normas constitucionais”. Diante disso, o autor ainda

faz considerações a respeito da postura de outros países, exem-

plificativamente Portugal, para a adoção do dito Tribunal Consti-

tucional, sendo que, por tais parâmetros, percebe-se que a Lei

Mor Brasileira ficou aquém, limitada a acanhadas e contidas

disposições para não criar riscos de instabilidade social, sendo

de considerável maior atuação a vontade de massas por meio

da ação popular de inconstitucionalidade, conforme fez referên-

cia o Professor Paulo Otero (apud THEODORO JUNIOR, 2011,

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p. 148), crítico em relação à efetividade de uma democracia representativa, permeando a desvirtuada atuação dos eleitos na tutela da vontade popular, que em suma, sem adentrar em outros patamares de discussão em âmbito de corrupção, traz uma incondizência na aplicação dos preceitos democráticos. Em caso de omissão, retrata-se uma divergência ao caso de constatar-se uma previsão constitucional acerca de direitos fundamentais, citando-se sucintamente apenas saúde e edu-cação, mas não haver uma legislação que efetive a garantia em âmbito estadual ou municipal, haveriam de poder os maio-res interessados, os cidadãos, reclamar diretamente, indepen-dentemente da representação que por vezes fica abaixo das necessidades e dos reais interesses.

Abarcando os sistemas de controle de constitucionalida-de no Brasil, cita-se o político, o misto, mas delimita-se a abor-dagem ao jurisdicional, concentrado e difuso, em que, sobre a problemática da inconstitucionalidade da coisa julgada e sua flexibilização, ainda que se fale na segurança jurídica que pode restar abalada se rescindida a res iudicata, comenta-se sobre a inafastável contradição gerada quando há uma disposição con-trária à Carta Magna, não deixando de gerar assim, uma também insegurança jurídica, valendo a abordagem e aprofundamento afinco, visando tal esclarecimento em prol da equidistância do princípio da segurança jurídica e da justiça, sem que qualquer princípio tanto ou quanto outro se resguarde como absoluto ou possa ser transpassado por outros.

A conciliação dos elementos que formariam uma coisa julgada constitucional emerge não necessariamente da adequa-da correlação com a Constituição, mas de que, no decorrer do

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processo de conhecimento, arrematado com a sentença, a qual virá a se qualificar com a coisa julgada, tenha-se a observância dos preceitos fundamentais, inerentes ao andamento, assegu-rando e preservando as garantias fundamentais individualizadas, aplicabilidade de fundamentação por leis efetivas e o respeito aos princípios constitucionais, resultando a coesa e irrefutável solidez da coisa julgada. Inegavelmente, o conflito encontrado vai muito além da esfera do direito positivado, em que, embora a coisa julgada venha a ser objeto de maçante discussão, o amadurecimento de ideias e principalmente a contraposição à Carta Magna tende a requerer avaliação atenta.

4.1 Controle e declaração

Na vanguarda dos questionamentos sobre a coisa julga-da inconstitucional, conforme aponta Carlos Henrique Soares (2009, p. 127), foi o jurisconsulto, português Paulo Otero, que exteriorizou a sua postura favorável à relativização da coisa jul-gada que contraria as disposições constitucionais, desde que provenientes da violação a preceito ou princípio, da aplicação de norma inconstitucional ou da não aplicação de norma cons-titucional, sob a infundada alegação de inconstitucionalidade.

Otero (apud SOARES, 2009, p. 138) explicita que a inal-terabilidade da coisa julgada, como garantidora da segurança jurídica, apenas há de ser considerada quando a coisa julgada estiver em completa concordância com o Direito, do contrário podendo ser submetida a qualquer tempo à revisão pelo deno-minado Tribunal Constitucional (Direito português), todavia, não deixando a coisa julgada de realizar os seus efeitos.

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Cotejando o Direito Português com o Direito Brasileiro,

podemos embasar-nos em posicionamentos doutrinários, que

fazem apontamentos relevantes a respeito da relativização da

coisa julgada inconstitucional.

Aludem os artigos 485 e seguintes do Código de Proces-

so Civil a hipóteses de relativização da coisa julgada, com a pre-

visão da ação rescisória, dispondo de rol taxativo enquanto das

possibilidades e desvinculado de qualquer mero atrelamento ao

controle de constitucionalidade.

Humberto Theodoro Junior (apud SOARES, 2009, p. 147)

faz afirmação quanto à coisa julgada inconstitucional:

O autor chega à conclusão de que a decisão judi-cial transitada em julgado desconforme a Cons-tituição padece de vício da inconstitucionalidade que, nos mais diversos ordenamentos jurídicos lhes impõe a “nulidade”. Ou seja, a coisa julga-da inconstitucional é “nula” e, como tal, não se sujeita a prazos prescricionais ou decadenciais. Ora, no sistema das nulidades, os atos judiciais nulos independem de rescisória para a elimina-ção do vício respectivo. Destarte, podem “a qual-quer tempo, ser declarados nulos, em ação com esse objetivo, ou embargos à execução”.

Inconformado com a isenção de submissão a controle ou

revisão da coisa julgada inconstitucional, Humberto Theodoro

Junior (2011, p. 550) pontua a ação rescisória, ação declarató-

ria de nulidade e embargos à execução como mecanismos para

relativizá-la, sendo que, para o autor, a sua incongruência com a

Constituição Federal implica na sua inidoneidade e consequen-

temente impedimento de produzir efeitos.

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Quanto ao princípio da segurança jurídica, que a priori fica prejudicado pela relativização da coisa julgada, Humberto Theodoro Junior (apud SOARES, 2009, p. 148) sugere que os efeitos do reconhecimento de coisa julgada como inconstitucio-nal operem ex nunc, influenciados pelo controle de constitucio-nalidade que em suas intervenções pelo controle concentrado e difuso alastram os efeitos apenas a fatos futuros, não abalando aquilo que já se tinha firmado no caso em questão.

Cita Soares (2009, p. 43) que se pautam os posiciona-mentos pela relativização da coisa julgada, como no entendi-mento de Alexandre Freitas Câmara, Teresa Arruda Alvim, José Miguel Garcia Medina, Cândido Rangel Dinamarco, pela aplica-ção da ponderação, em que se equilibrem os elementos normati-vos, para em concordância prática, anteriormente a qualquer so-pesamento, instituam-se harmonicamente as disposições legais.

Diversos renomados autores, como Chiovenda, Carnelu-tti, Allorio, (SOARES, 2009, p. 42) entre outros, comungam do entendimento de que a coisa julgada opera justamente para impedir a revisão daquilo que dela se qualificou ou, mais ade-quadamente falando, da sentença que transitou em julgado.

A principal fundamentação circunda a necessidade de manter intocável o princípio da segurança jurídica, consideran-do que a relativização da coisa julgada por observância da sua inconstitucionalidade incorreria na instabilidade das decisões e protelação das demandas por tempo ainda mais extenso, fe-rindo também outros princípios como o da celeridade proces-sual e da efetividade, desencadeando um prejuízo processual imensuravelmente maior do que da protelação da coisa julgada inconstitucional.

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José Cid Pinto Filho (2010, p. 182) cita em sua obra algo relacionado à contrariedade à relativização da coisa julgada in-constitucional por muitos doutos, alegando a criação de uma ex-ceção. Todavia, contrapôs tal argumentação com a indagação de que se, com a protelação da coisa julgada inconstitucional, não se estaria igualmente criando exceção ao constitucionalismo.

Conforme a Teoria da Ficção da Verdade, adotada por Sa-vigny, Felipe Torres Vasconcelos (2013) diz que, embora inapli-cável ao Ordenamento Jurídico Brasileiro, a inflexibilidade da teoria de Savigny, pautada na criação de uma verdade a partir do trânsito em julgado de sentença com caráter injusto, impos-sibilitando a sua revisão posterior, pontua marco de inflexibilida-de quanto à relativização da coisa julgada.

Enrico Túllio Liebman (apud SOARES, 2009, p. 62), expli-cita cunho da coisa julgada como passível de relativização, com as devidas implicâncias legais:

Não se quer dizer com isso, naturalmente, que a lei não possa, de modo expresso modificar o di-reito também para as relações já decididas com sentença passada em julgado; pode a lei, certa-mente, fazer também isso, mas uma disposição sua em tal sentido teria a significação de uma ab--rogação implícita- na medida correspondente- da norma que sancionou o princípio da autoridade da coisa julgada. Isto é, uma lei nova pode, excepcio-nalmente e com norma expressa, ter não só eficá-cia retroativa, mas também aplicação às relações já decididas com sentenças passadas em julgado; isso, porém, não significaria um grau maior de re-troatividade, e sim, antes, uma abolição parcial da autoridade da coisa julgada acerca das mesmas sentenças, cujo comando, perdendo o atributo da imutabilidade, cairia em face das novas regras dis-postas pela lei para as relações já decididas.

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Conforme cita Felipe Torres Vasconcelos (2013), Fredie Didier Junior, Paula Sarna Braga, entre outros, afirmam a coisa julgada como decorrência da garantia constitucional de direito fundamental, sendo tal instituto imune a disposições de nova lei, mas suscetíveis a ponderação para o equilíbrio entre princí-pios e regras em geral.

Ainda, Guilherme Marinoni e Leonardo Greco (SOARES, 2009, p. 42) podem ser apontados como contrários à relativi-zação da coisa julgada pelo viés da sua inconstitucionalidade, afirmando-se destacadamente que o controle concentrado de constitucionalidade, realizado pelo Supremo Tribunal Federal, não há de alcançar a coisa julgada.

4.2 Viés atípico de relativização da coisa julgada inconstitucional

Conforme afirma Talamini (2005, p. 636), aplicável me-dida típica de relativização da coisa julgada (ação rescisória), mostra-se inviável recorrer a meios atípicos, todavia equipa-ram-se tais medidas à rescisória. Conforme a competência para apreciar a rescisória atípica, Talamini (2005, p. 638) discorre:

Duas soluções poderiam ser cogitadas: (1) Reputar que, como se trata de uma ação comum de conhe-cimento, seriam aplicadas as regras gerais de com-petência tendo em vista o objeto do processo em que se formou a coisa julgada anterior; (2) aplicar as regras de competência da ação rescisória.

Contradita-se a questão de atribuir a apreciação de meio atípico de relativização por juiz de primeiro grau, tendo em vista

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que se desenvolverá igualmente a um processo de conhecimen-to, pois a própria ação rescisória cabe ao julgo de um Tribunal.

Conforme pontua Vasconcellos (2014), pode, a exemplo da querela nullitatis, assumir cunho de meio típico quando “to-mar forma de impugnação ao cumprimento de sentença ou em-bargos a execução [...]”, bem como ganhar outros contornos, até mesmo em outros procedimentos.

4.3 Posicionamento doutrinário

Como alhures citado, o primórdio dos questionamentos a respeito da inconstitucionalidade da coisa julgada se deu com o português Paulo Otero, conforme cita Soares (2009, p. 127), fertilizando um terreno a frutíferos estudos a posteriori. No Bra-sil, o principal enraizamento da doutrina de Otero se deu com Humberto Theodoro Junior, que trouxe a discussão com adapta-ções à realidade jurídica do Ordenamento Jurídico nacional.

Ainda, há um número considerável de abordagens acerca do tema, citem-se as obras de Luiz Guilherme Marinoni, Luiz Dellore, entre outras que resguardam esplêndida fundamenta-ção, seja favorável ou contrária à relativização da coisa julgada inconstitucional, salientando o alto patamar qualitativo dos abal-roamentos.

4.4 A questão principiológica

Tendo os princípios relevo no ordenamento jurídico, com crescente valoração, ressalta-se o conflito que emerge na situação da coisa julgada inconstitucional e a sua respectiva relativização.

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Há de se ponderar que se prostram alguns elementos diante de outros, em todo e qualquer julgamento, partindo justa-mente da aplicabilidade da justiça e adequabilidade fundamen-tadora. Traz-se à baila princípios como o da constitucionalidade, segurança jurídica, contraditório, ampla defesa, legalidade, cer-teza, efetividade, justiça, eficácia, razoabilidade, proporcionali-dade, entre outros.

Assim, ainda que destituídos de precedência hierárquica, os princípios, quando destoam, devem tender à aplicabilidade da justiça, embora esta muitas vezes se mostre divorciada das disposições do direito positivado.

É evidente a justiça como primaz do Direito, que, embora não possam ser tidos como sinônimos, hão de caminhar parale-lamente de forma que se confluam em decisões nos parâmetros estabelecidos legalmente, mas sempre norteado por um intuito de justiça, embora tal conceituação seja de grande amplitude e de subjetiva consideração.

Santi Romano (apud THEODORO, 2011, p. 151) aponta a Constituição Federal em sua inconfundível relevância no Or-denamento Jurídico, comentando que “a Constituição é o ponto inicial do direito estatal, considerando como um todo, a base de todas as demais partes, sendo, precisamente, por isto, parte integrante dele”, sendo inquestionável o respeito que os atos e decisões a ela devem contemplar, bem como, qualquer contra-riedade vem a dificultar o alcance da justiça.

4.5 A incidência do controle de constitucionalidade

Partindo de um princípio antes citado sobre a incidência do controle de constitucionalidade, ainda que superficialmente

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nos seus moldes figurados na Constituição Federal, no que tange à coisa julgada, é importante destacar as palavras de Humberto Theodoro Junior (2011, p. 158), como vertente de discussão quanto à incidência do controle de constitucionalidade:

Nada obstante, sempre que se fala em decisão judicial, tem-se a falsa impressão de que o seu controle de constitucionalidade, no direito brasi-leiro, é possível apenas enquanto não se opere a coisa julgada, através do último recurso cabível que é o extraordinário previsto no artigo 102, III, da CF. Após verificada esta última, a imutabilidade que lhe é característica impediria o seu ataque ao fundamento autônomo de sua inconstituciona-lidade. Corresponde aludida ideia ao modelo de Supremacia da Constituição buscado no moderno Estado de Direito? [...] Pensamos que não.

Assim, na linha de pensamento do doutrinador, pensa-se que não é plausível a sobreposição de qualquer ato estatal, frise-se o Poder Judiciário, a letra disposta na Constituição Federal, inexistindo possibilidade de que a coisa julgada seja intocável quando eivada de vício de inconstitucionalidade, independen-temente de questionar-se o atentado à segurança jurídica, pois seria nesses termos que se estaria infringindo a Carta Magna, estendendo à coisa julgada imutabilidade e revestimento abso-luto, encarcerando a própria Lei Mor e afrontando o Ordenamen-to Jurídico Brasileiro como um todo.

4.6 Casos de reconhecimento pelos tribunais

Temos em âmbito nacional o Supremo Tribunal Federal como guarida da aplicação da Constituição Federal, outrossim,

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como Suma Corte, recaindo o entendimento desta em mantos no seguinte sentido, conforme cita Humberto Theodoro Junior (2011, p. 157), acerca de julgamento de ADin n. 652/MA cit. RTJ 146/461 cit, onde se diz que “atos inconstitucionais são, por isso mesmo, nulos e destituídos, em consequência, de qual-quer carga de eficácia jurídica. (grifamos)” e ainda:

A declaração de inconstitucionalidade em tese encerra um juízo de exclusão, que, fundado numa competência de rejeição deferida ao Su-premo Tribunal Federal, consiste em remover do ordenamento positivo a manifestação estatal in-válida e desconforme ao modelo plasmado na Carta Política.

A Corte do Superior Tribunal de Justiça assenta como ca-bível o instrumento da ação rescisória em face da coisa julgada inconstitucional, igualmente ao que tange os efeitos em relação à coisa julgada ilegal, afastando ainda os preceitos da Súmula 343 do Supremo Tribunal Federal, considerando o vício da in-constitucionalidade como desvinculado da necessária observân-cia da controvérsia entre Tribunais para o cabimento.

Vasconcellos (2014) pontua algumas decisões em âmbi-to do Superior Tribunal de Justiça (STJ), quanto à impugnação autônoma para o caso de vício na citação:

PROCESSUAL CIVIL - VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC - INEXISTÊNCIA - SENTENÇA IMPREGNADA DE VÍCIO TRANSRESCISÓRIO - RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA - QUERELA NULLITATIS - ARTS. 475-L, I E 741, I, DO CPC - AÇÃO CIVIL PÚBLICA: ADEQUABILIDADE - DEFESA DO PATRIMÔNIO PÚ-BLICO - LEGITIMIDADE DO PARQUET.

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(REsp 445664/AC, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 24/08/2010, DJe 03/09/2010) (grifo nosso).

Ainda, Vasconcellos (2014) traz a relativização da coisa julgada, no entendimento do STJ:

PROCESSUAL CIVIL E CONSTITUCIONAL. AGRA-VO REGIMENTAL NA MEDIDA CAUTELAR. AÇÃO RESCISÓRIA. PRETENDIDA SUSPENSÃO DA EXE-CUÇÃO DE DECISÃO TRANSITADA EM JULGADO. ADMISSIBILIDADE SOMENTE EM SITUAÇÕES EX-CEPCIONALÍSSIMAS, DE COLISÃO ENTRE DIREI-TOS FUNDAMENTAIS. INEXISTÊNCIA NA ESPÉCIE. CAUTELAR EXTINTA.(AgRg na MC 12581/RN, Rel. Ministra NAN-CY ANDRIGHI, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 08/06/2011, DJe 15/06/2011) (grifo nosso).

No âmbito do STF, Vasconcellos (2014) aponta julgado em sentido da revisão da coisa julgada em caso de investigação de paternidade:

O Plenário iniciou julgamento de recurso extraor-dinário em que se discute a possibilidade, ou não, de superação da coisa julgada em ação de inves-tigação de paternidade cuja sentença tenha de-cretado a extinção do processo, sem julgamento do mérito, por insuficiência probatória. Na situa-ção dos autos, a genitora do autor não possuía, à época, condições financeiras para custear exa-me de DNA. Reconheceu-se a repercussão geral da questão discutida, haja vista o conflito entre o princípio da segurança jurídica, consubstanciado na coisa julgada (CF, art. 5º, XXXVI), de um lado; e a dignidade humana, concretizada no direito à as-sistência jurídica gratuita (CF, art. 5º, LXXIV) e no dever de paternidade responsável (CF, art. 226, §

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7º), de outro. O Min. Luiz Fux salientou o aspecto de carência material da parte — para produção da prova extraída a partir do exame de DNA — como intrínseco à repercussão geral da matéria, tendo em vista a possibilidade, em determinados casos, de o proponente optar por não satisfazer o ônus da prova, independentemente de sua condi-ção sócio-econômica, considerado entendimento jurisprudencial no sentido de se presumir a pater-nidade do réu nas hipóteses de não realização da prova pericial.

Em linhas da Suprema Corte e do Superior Tribunal de Justiça, encontra-se repercussão de julgamentos em sentidos que avaliam a particularidade do caso concreto, delineando a questão da relativização da coisa julgada.

4.7 Efeitos da inconstitucionalidade da coisa julgada

Diverge-se quanto ao que se dá com a coisa julgada in-constitucional, referente aos seus efeitos, mas, como exausti-vamente exposto, é da sentença que emana a inconstituciona-lidade, eivando também a coisa julgada com tal vício, por ser esta qualidade assumida para estabilização da decisão. Quanto à coisa julgada inconstitucional, Talamini (2005, p. 422) tece uma ponderação:

Afinal, se procedesse a tese daqueles que pre-conizam indiscriminadamente a inexistência jurídi-ca ou a “nulidade absoluta” (“transrecisória”), da “sentença inconstitucional”, o tema da “coisa jul-gada inconstitucional’’ seria um falso problema” e a expressão não faria sentido: simplesmente não haveria coisa julgada.

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Decorrente de tal afirmação, entendimento do qual co-munga boa parte da doutrina, levaria os efeitos da coisa julgada a serem, da mesma forma, nulos. Todavia, em uma realidade jurídica contemporânea, sabe-se que mesmo a sentença eiva-da do vício da inconstitucionalidade, emanará normalmente os seus efeitos, ante o paradigma do trânsito em julgado, atrelado ao rol taxativo trazido à ação rescisória, ou declaratória de nu-lidade, como únicos instrumentos hábeis à revisão. Ainda flo-resce entendimento acerca de invalidade, rescindibilidade e até inexistência (THEODORO JUNIOR, 2011, p. 182), para alguns radicais, o que implica em reflexo para os efeitos dessa decisão, revestida pela coisa julgada e em regra imutável.

4.8 A viabilidade e a inviabilidade da relativização

Em que pesem respeitáveis posicionamentos a respeito da coisa julgada inconstitucional, salientam-se dois expoentes postos em extremos opostos, representantes da insubmissão da coisa julgada à revisão e outro adepto da perfeita aplicação da relativização, para melhor concatenar um esboço de viabilidade ou inviabilidade.

Em um dos pontos, encontra-se Humberto Theodoro Ju-nior (2011, p. 252):

Qualquer que seja o sistema processual contem-porâneo e por maior que seja o prestígio que se pretende conferir à coisa julgada, impossível será recusar a possibilidade de superveniência de sen-tenças substancialmente nulas, mesmo depois de esgotada a viabilidade recursal ordinária e extraor-dinária. À parte prejudicada pela nulidade absolu-ta, ipsu iure, não poderá a justiça negar o acesso à respectiva declaração de invalidade do julgado.

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Nota-se a veemência a respeito da defesa da relativiza-ção da coisa julgada inconstitucional, em que Humberto afirma, pela adequação de sua revisão, bem como tenta solucionar o mais questionado problema sobre a segurança jurídica, atribuin-do efeito ex nunc (THEODORO JUNIOR, 2011, p. 228) às deci-sões de inconstitucionalidade, bem como atribui os meios de, a qualquer tempo, por meio de um controle de constitucionalidade concentrado, exercido por um Tribunal Constitucional, reconhe-cer-se e desfazer os efeitos dessa decisão em desconformidade com os preceitos da Constituição.

De outro entendimento comunga Luiz Guilherme Marino-ni (2010, p. 7), expressado pela afirmação:

[...] a admissibilidade da retroatividade da deci-são de inconstitucionalidade sobre a coisa julgada, além de contradizer o poder jurisdicional de con-trole difuso da constitucionalidade, nega a própria essência do discurso jurídico, que somente existe enquanto capaz de produzir uma decisão definitiva. Ao se aceitar a retroatividade da decisão de incons-titucionalidade sobre a coisa julgada, cria-se um discurso sob a condição negativa imprescindível e temporalmente insuscetível de dimensionamento.

Marinoni demonstra elevada preocupação com a estabi-lidade do ordenamento, fazendo valer a segurança jurídica, bem como, especificamente, teme a repercussão de uma rescisão da coisa julgada sobre o aspecto das relações continuativas (MA-RINONI, 2010, p. 137), sendo estas atingidas diretamente por

uma eventual relativização da coisa julgada inconstitucional e sua influência e consequências ao âmbito jurídico interno.

Levanta-se a discussão a respeito da própria incidência

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do controle de constitucionalidade, observada a valoração maior do controle difuso, com interferência do concentrado no que tange às questões já decididas e de outro viés, visto por diver-so panorama, institui-se o controle concentrado, como afirma Dellore (2013, p. 255), tendenciosamente como instrumento a ganhar relevância latente, no papel de guardião da constituição, vista a própria evolução histórica da Carta Magna.

É controverso falar-se em viabilidade ou inviabilidade da relativização da coisa julgada inconstitucional, trazendo à baila o controle de constitucionalidade como maior ferramenta apli-cável em defesa das disposições constitucionais, devendo ser ponderados pontos de extrema peculiaridade para cada posicio-namento, favorável ou contrário, relutando pensar-se em efeti-vamente provocar mudanças no Ordenamento Jurídico Pátrio, mas desde que os reflexos e efeitos sejam em suma favoráveis aos maiores interessados e guardados por este Diploma Legal, sejam as pessoas.

Percebe-se ainda, uma plausibilidade de se acatar parte de ambos os posicionamentos, afastados os radicalismos e irre-dutibilidades, para pautar a coisa julgada e o controle de constitu-cionalidade como mecanismos de eficiente aplicabilidade, sendo aquele de essencial e indispensável importância para o Estado Democrático de Direito e esta ferramenta da qual podem ser ex-traídos resultados de irrefutável eficiência, valendo-se do contro-le difuso e concentrado em suas integralidades e pensando-se em habilitar alguns mecanismos para nítida ampliação da guarida exercida pelos poderes, cada qual balizado em suas atribuições.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Uma abordagem que relaciona dois ramos de inegável

significado, quais sejam o Direito de Processo Civil e o Direito

Constitucional, ganha dimensões e conflitos de grande eclosão,

tratando-se do processo como cerne das litigações, meio pelo

qual tudo se dá, em observância inarredável do olhar consti-

tucional, traçando assim um trilhar de possíveis adversidades,

tendo-se que sopesar os meios de compatibilizar o caminho

processual e demais atos provenientes das relações jurídicas e

de outras esferas, com a letra da Carta Magna, por ser este o

Diploma de maior relevância ao Direito Brasileiro.

Certamente, de tal andamento não se pode esperar um

desenrolar perfeito, sem empecilhos que venham a colocar à

prova aquilo que se tem como desenrolar legal, citando-se a

primazia do Direito pela justiça, a incidência de princípios e o

necessário segmento das disposições entabuladas legalmente,

por vezes trazendo à baila divergências de salutar importância e

carência de solução, para a regularidade dos trabalhos e insti-

tuição da harmonia social, no que tange à solvência dos litígios.

Tratar do controle de constitucionalidade em face da coisa

julgada, por vezes já eivada de inconstitucionalidade, emana um

rico aproveitamento em sentido lato, fazendo brotarem questio-

namentos por vezes desprovidos de um esclarecimento mesmo

na aprofundada busca nos diversos e competentíssimos doutos

que abordam o assunto, pois destes emergem discrepantes posi-

cionamentos, elevando a extremos distintos embasadas teorias e

entendimentos, estimulando dúvidas e problemas jurídicos.

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A coisa julgada inconstitucional põe à prova a consis-

tência de um ordenamento jurídico, sendo antiga discussão,

mas inovadora vertente de uma rica demonstração de meios

passíveis de serem adotados como viabilizadores de que se co-

mungue de uma compatibilização entre o suprassumo da lei e

as decisões que a colocam à prova. Trazer à baila o controle

de constitucionalidade em suas delineações atuais é nada mais

que uma busca por valer-se do mais hábil instrumento de uma

nítida constituição que, no decorrer de sua história, fortificou o

seu cunho garantista, para levar os julgamentos, que mais tar-

de se tornam sentenças e enfim ganham a qualidade de coisa

julgada ao olhar constitucional, podando gradativamente inade-

quações que se mostrem existentes, desaguando numa correla-

ção harmoniosa das decisões proferidas pelo judiciário em suas

esferas, com preceitos do princípio da constitucionalidade.

Quando da protelação de um vício por todo o andamen-

to processual, levando a uma coisa julgada inconstitucional e

posteriormente estendendo tal à coisa julgada que se opera,

dá-se como uma anomalia jurídica que perpetuou dentre diver-

sas ferramentas, sejam aquelas que se dão pelo Estado como

condutor do processo, como pelas partes que em nenhum tem-

po se opuseram ao vício que ganhava a lide, bem como podem

se dar inconstitucionalidades apenas nos estágios finais ou na

prolação da própria decisão, seja ela material, conforme em-

basamento utilizado, ou formal, em decorrência da privação de

algum preceito constitucional assistido às partes, logicamente

vindo a lesar apenas aquela que finalmente se deu vencida.

De simplória análise do assunto, o que resta é a verifica-

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ção de um posicionamento em que não se aceita um convales-cimento da coisa julgada inconstitucional com o escoamento do prazo para o recurso típico, pois tratamos de, embora acatáveis os demais posicionamentos, um vício de nulidade que deve dis-por de meios para a sua revisão, sem desmedida liberdade, mas que possa vir a regularizar uma futura providência reguladora do direito. Deve-se valer dos meios de controle da constituciona-lidade já existentes e laborar, por formas plausíveis de melho-rar os instrumentos, como no caso da ação declaratória, que imprescritível pode estabelecer o parâmetro revisional que se espera, moderadamente. Em outro extremo, tornar intocável a coisa julgada pauta-se na segurança jurídica, sendo argumento que também vislumbra respeito e entendimento da aspiração pró-justiça social que emana, mantendo estável o que se tem nas decisões proferidas.

Da relativização desta coisa julgada que resultou incons-titucional, são salutares os fervorosos defensores de posiciona-mentos, decorrentes de respeitáveis estudos, que emergiram de debruçada dedicação ao assunto, ganhando contornos de pre-servação em alguns casos, mas de sedenta busca pelo integral respeito à Carta Magna, entre outros, fazendo assim florescerem interrogações quanto ao caminho a se seguir, nitidamente em um contorno da segurança jurídica, a qual pode se dar pela ma-nutenção da, em regra, imutabilidade adquirida com o trânsito em julgado ou da aplicabilidade de irredutível adequação à nor-ma entabulada pela Constituição Federal, pelo viés da rescisão da coisa julgada, tudo dependendo do ponto de vista, vendo-se panoramas diversos, valendo sopesar o que ganha importância contributiva para a melhora do exercício do Judiciário.

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Sem extremismos, surte como remédio uma equiparação daquilo que pode vir a ser válido, como manter a integridade da coisa julgada, em regra, fortalecer os mecanismos de controle de constitucionalidade, difuso em todo o decorrer do processo, como busca de todos os operadores do Direito, bem como, ex-posta tendência ao controle concentrado, onde já, pode-se di-zer, em grau recursal, levar à Corte Constitucional aqueles casos carentes de dirimir uma inconstitucionalidade, não apenas no que mais se observa referente a leis e atos normativos, mas das decisões que abarquem contrariedade à Carta Magna, sem que isso configure um super poder instituído ao Tribunal, pois se a este não couber solucionar dados problemas, é ao juiz singular e tribunal de segundo grau que se dá um super poder, aquele de perpetuar uma contrariedade à Constituição Federal e eternizá--la no seio social como intangível.

Rescindir a coisa julgada não significa desenfrear os me-canismos de relativização por meios típicos e atípicos, mas tor-nar incisivas as ferramentas que se tem, bem como aprimorá--las para uma maior eficiência, seja por uma implementação da ação rescisória ou por vieses atípicos que não firam ou possam vir a prejudicar a segurança jurídica, no que tange a manter a in-teireza do ordenamento, primando pela justiça como irredutível busca de cada ligação.

Da coisa julgada e do controle de constitucionalidade, tem-se um conjunto que se relaciona por vezes direta e em al-guns casos indiretamente, mas é do controle já existente que se viabiliza uma coisa julgada íntegra e condizente com os parâme-tros da Lei Maior, bem como possíveis adaptações do controle de constitucionalidade podem vir a serem fiscais e revisores da

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coisa julgada que, em sede de imutabilidade, possa vir a assistir aventadas adequações de cunho favorável à efetividade, propor-cionalidade e razoabilidade.

Como de antemão afirmado, resulta um trabalho que não visa “justiceiramente” alcançar drásticas e revolucionárias mu-danças naquilo que admiravelmente se tem no Ordenamento Jurídico Brasileiro, mas singelamente empregar alguns questio-namentos e poder alcançar o status de não ser mais um mero emaranhado de palavras soltas, mas um empenho que gere reflexões e, resguardada a sua simplicidade, algum emprego prático na busca incessante e habitual por um Direito íntegro, emanador de justiça.

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O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA EM KANT: CAMINHO PARA UMA

HERMENÊUTICA DO DEVER

THE PRINCIPLE OF HUMAN DIGNITY IN KANT: WAY FOR A HERMENEUTICS OF DUTY

Kátia R. Salomão1

Waldomiro Salles Svolinski Júnior2

RESUMOO artigo tem como enfoque analisar o princípio da dignidade da pessoa humana constatada na Constituição Federal de 1988, em seu sentido hermenêutico, jurídico, e suas condições de uni-versalização. Por essa razão, o caminho metodológico percorrido investigou, no pensamento kantiano, a condição de esboçar a questão do princípio da dignidade humana, como norma uni-versal, através da elaboração do imperativo categórico. Todavia, também se problematizará, ao longo da discussão, a condição de possibilidade de uma hermenêutica embasada na teoria kan-tiana em torno da dignidade humana, já que os desdobramen-tos conceituais, escopos da teoria kantiana, se apresentam con-tra quaisquer instrumentalidades do direito. Isso ocorre porque, para Kant, o sujeito racional e esclarecido poderá delimitar o que é a dignidade humana no âmbito do Estado de Direito. Nes-se sentido, as dissonâncias entre dignidade e imperativo categó-rico são solucionadas em Kant, já que ele delineia o objetivo da autonomia da razão como a própria possibilidade da dignidade 1 Mestre em filosofia pela UNESP. Especialista em Filosofia Política e Jurídica pela UEL — Universidade Estadual de Londrina. Professora de filosofia e Hermenêutica Jurídica na UNIVEL — União Educacional de Cascavel. Este artigo é fruto das discussões do grupo de pesquisa Habermas: direitos fundamentais e emancipação social, coordenado pela profº Kátia R. Salomão. 2 Bacharel em Direito pela UNIVEL — União Educacional de Cascavel. Licenciado em Filosofia pela UNIOESTE. Aluno Regular do Mestrado em Filosofia da UNIOESTE—Universidade Estadual do Oeste do Paraná.

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da pessoa humana se materializar: o sujeito busca na autono-mia um sentido maior de cumprimento ao dever e realização da liberdade, devendo refutar motivações derivadas da recompen-sa, ou da vontade.

PALAVRAS-CHAVE: Dignidade humana, Autonomia, Lei, Liber-dade.

ABSTRACTThe article is to focus analyze the principle of human dignity fou-nd in the Federal Constitution of 1988, in his hermeneutic, legal sense, and its universal conditions. For this reason, the metho-dological path followed, investigated within the Kantian, the con-dition of sketch the question of the principle of human dignity as a universal standard by developing the categorical imperative. However, also problems throughout the discussion, the condition of possibility of a hermeneutic grounded in Kant’s theory about human dignity, as the conceptual developments, scopes of Kan-tian theory, are presented against any instrumentalities of law. This is because for Kant, rational and enlightened subject, you can define what is human dignity under the rule of law. In this sense, the dissonance between dignity and categorical imperati-ve are resolved in Kant, as he outlines the purpose of the reason of autonomy as the very possibility of human dignity materialize: the subject search in a greater sense of autonomy compliance with the duty and realization of freedom, must refute motivations derived from the reward, or will.

Keywords: Human Dignity, Autonomy, Law, Freedom.

1 INTRODUÇÃO

O desenvolvimento do capitalismo somado à era da infor-mação trouxe em seu âmago uma ampliação efetiva da esfera

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do individualismo, em que o ter se sobrepôs ao ser. Nesse sen-tido, os seres humanos estão infinitamente desenvolvendo suas ações decorrentes de suas vivências, pautados pela coisificação, pela instrumentalização do eu3. As relações, por mais íntimas que sejam, vinculam-se à objetificação da vida. Diante de tais condi-ções ecoa: é possível ainda a realização da dignidade da pessoa humana, se a mesma parece apenas mais um ideal utópico e distante da realidade jurídica desproporcionalmente apresentada.

A instrumentalização e a concomitante ampliação do in-dividualismo, outrora a teoria crítica de Adorno e Horkheimer, já florescia junto ao processo das revoluções liberais. A era da informação parece ser o apogeu de todo processo de ampliação do eu, que acarretou um abandono da esfera da moral, sendo os valores universais substituídos pelos individuais, fomentando uma inversão dos princípios fundamentais da existência huma-na. A vontade de prazer é o lema, sendo dignidade da pessoa humana, moral e dever entraves para a realização do eu. Mas, a verdadeira liberdade está no eu quero? Está no eu sou?

Kant já tinha consciência de tais instrumentalidades, na medida em que formula sua premissa do imperativo categórico, en-quanto uma hermenêutica homeopática, com o foco em sanear as relações do sujeito esvaziado de seu verdadeiro sentido, que não é ser meio, mas fim em si mesmo: ser um ser digno de pessoalidade. 3 A crítica que Horkheimer tece à racionalidade instrumental configura o diagnóstico sobre a trajetória da razão, no qual a promessa da emancipação e da autonomia por parte dos indivíduos teria redundado na mutilação dos mesmos e, submetidos a mais rigorosa disciplina gerada pelo aumento excessivo da técnica, já não podem lançar-se a novas experiências. A partir dessa constatação, identificaria Horkheimer, na modernidade esclarecida, uma crise da razão da qual decorreria a crise ética da atualidade. Nesse sentido, a filosofia de Horkheimer tem uma preocupação essencialmente ética, em que a crítica à racionalidade instrumental faz-se a partir da crítica dos valores por ela engendrados em nossa cultura. Trata-se aqui de conceito de razão unidimensional, reducionista: com ela o homem é levado a assumir procedimento mediante o qual o mundo externo é reduzido a um objeto a ser manipulado conforme seu interesse, isto é, com ela a razão humana é desprovida de motivação valorativa ou moral. Assim, a razão que se tornou predominantemente instrumental encontrar-se-ia desvinculada de suas bases valorativas, portanto facilmente posta a serviço da dominação econômica e ideológica, o que de fato inviabilizaria pensarmos na possibilidade da constituição do indivíduo enquanto sujeito autônomo, conforme o ideal postulado pela filosofia iluminista: por ter se tornado um mito encarnado na ciência positiva, essa razão — que inicialmente buscava libertar os homens do domínio do mito — produz agora a coisificação tanto do mundo exterior quanto da subjetividade humana. (MÜHL, 1996, p. 74).

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Muito se discute atualmente sobre dignidade humana, e na seara jurídica tal princípio da vida se encontra em grande em-bate intelectual. Isso decorre dessa crise, em que os princípios humanos precisam ser reafirmados, isso porque foram abando-nados, esquecidos. Essas discussões ou ficam presas ao ideal de dignidade, sem oferecer uma resposta satisfatória, ou ape-nas riscam a superfície de uma discussão relevante e aprofun-dada sobre a temática. Por isso a busca de respostas em Kant, já que o mesmo é o primeiro jusfilósofo a perguntar e formular premissas latentes sobre a dignidade da pessoa humana. O filó-sofo de Königsberg o faz, justamente por conta da necessidade de pensar a finalidade da vida, da sociedade enquanto justa, em que a pessoalidade fosse temeramente respeitada, sendo o direito a ferramenta hermenêutica necessária para a materia-lização de tal intento kantiano, desejo não somente kantiano: desejo humano.

A consonante faceta filosófica e jurídica das doutrinas morais de Immanuel Kant faz surgir a questão do homem como fim e não como meio. Kant estabelece que o sujeito é fim em si mesmo, descartando a possibilidade deste ser usado para quaisquer outros fins, pois ele já o é fim, e seu fim é a autono-mia e a liberdade da razão. Na visão kantiana, a autonomia está necessariamente vinculada à liberdade e potencialmente. Ela ocorre na medida em que o sujeito tem sua dignidade respalda-da na emancipação.

Assim, é preciso pensar o sujeito kantiano atrelado ao esclarecimento [Aufklärung] e à emancipação como condições para a efetivação equitativa da dignidade da pessoa humana. Elencado as premissas da questão na concepção jurídica e fi-

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losófica, o assunto a se desenvolver é o princípio da dignidade da pessoa humana, a partir dos imperativos categóricos kantia-nos e sua relação imediata com a autonomia e heteronomia, a liberdade e a vontade, como também o seu sentido hermenêu-tico, jurídico, e suas condições de universalização. Pois, como diria Kant: Coisas têm preço, enquanto pessoas têm dignidade (KANT, 2002).

2 CONSIDERAÇÕES SOBRE O IMPERATIVO CATEGÓRICO

O imperativo categórico kantiano perpassa pela citação - “age só segundo máxima tal que possas ao mesmo tempo que-rer que ela se torne lei universal” (KANT, 2002, p. 51). Nesse sentido, desenvolve-se a máxima kantiana do imperativo. A má-xima é o princípio subjetivo da ação e deve distinguir do princípio objetivo, isto é, da lei prática, estando a noção do imperativo vinculada à conjunção do verbo dever [Sollen]. Kant, mesmo nas feições imperativas, hipotética ou categórica, aferia que:

Todos os imperativos se expressam pelo verbo dever (sol-len) e mostram assim a relação de uma lei objetiva dão razão com uma vontade que, por sua constituição subjetiva, não é necessa-riamente determinada por tal lei (uma obrigação) (2002, p. 45).

O imperativo categórico traz a questão da ação que deve-rá ser boa em si. Tal ação expressa em sua essência a bondade. Aqui abordado como categórico, exprime a questão de que a ação é representada como boa em si, e não como meio para qualquer outra finalidade, isto é, seria uma ação como objeti-vamente necessária por si mesma, sem relação com nenhum outro fim (KANT, 2002, p. 45).

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Nessa medida, Kant busca encontrar uma universalidade para a dicotomia das doutrinas morais: heteronomia da vontade e autonomia da razão. A heterônoma, no grego hetero, que sig-nifica outro, e nomos, isto é, norma, lei, regra. Assim sendo, a lei externa que age sobre mim, que pode ser advinda de Deus, do Estado ou de outra forma de poder. Já a autônoma, do gre-go autos, si mesmo, somada a nomos, norma, lei, regra: é a reflexão por si da lei introjetando no seu ser, que remete a um modelo de princípio de justiça orientado pelo dever do indivíduo em si. Nesse sentido, surge como condição de possibilidade a necessidade do resgate da noção de universalidade do dever em Kant, reavivando-a no ordenamento jurídico-filosófico.

No que concerne à doutrina kantiana, a vida do homem é toda regulada numa classe de princípios e leis, em que as máximas e as opiniões englobam o ser. Logo, cabe ao indivíduo, através de sua livre razão, que deve apresentar-se de forma au-tônoma, escolher o que lhe prover, pois é racional, e a vontade poderá guiá-lo em busca de uma lei universal: essa reflexão do sujeito é salutar, pois a heteronomia acolhe a lei, mas sem reflexão, buscando na interação com os objetos da própria le-gislação e regramentos sociais a possibilidade em fomentar uma felicidade alheia.

Contudo, Kant estabelece uma distinção clara e objetiva entre o imperativo hipotético e categórico. Kant vislumbra que o imperativo hipotético é o resultado da ordenação para se fazer ou realizar algo, isto é, visa uma ação como meio para ter o que almeja: evoca interesses e, portanto, instrumentalidade. A ação que o sujeito realiza não é que ela seja boa por si só, mas o é, pelo fato de buscar algo que é bom. O imperativo hipotético está

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como uma ponte entre o que deseja e sua realização. Exemplo disso é a ordem social, as leis, direitos e dentre outros sím-bolos democráticos/jurídicos. Percebe-se que esses parâmetros constitucionais visam alcançar algo, que é a ordem social ou a justiça, sendo leis instrumentos para fins.

Nesse sentido, o imperativo hipotético é compreendido nas lições kantianas como um mecanismo realizador de algo, por meio do qual a ação visa alcançar alguma coisa, um fim alheio, que pode até ser bom, justo, contudo, não é bom ou jus-to em si mesmo. O imperativo categórico, por sua vez, não tem como ação visar algo: ela será boa em si mesma, somente pelo fato de ser ela mesma, isto é, a ação não deve condicionar a alguma coisa. O imperativo categórico volta-se para a realização da ação, tendo em vista o dever [sollen].

Para Kant, toda ação humana em sua materialização vem antecedida pelo conflito entre vontade e dever e pela dico-tomia entre inteligível e sensível, que decorre do fato da busca por atingir uma ação social como fim em si mesma. Vê-se na ação uma alusão, que tem o objetivo de destacar que o ser humano, agregado pelo racional, considera-se pertencente ao mundo inteligível, e só denomina vontade à sua causalidade, ou seja, causa eficiente pertencente de si mesmo como parte também do mundo sensível (KANT, 2002). Diante de uma ação motivada pelos desejos do ser humano, a sua valoração se dá ainda a priori no campo social, baseado pelo imperativo cate-górico, e ocasionando um detrimento com a lei precedente da sociedade. Esse modelo universalizante do dever será remetido a um julgador, através das propostas estatais, ou por meio do próprio legislador.

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[...] imediatamente o legislador, devendo, pois, ser pensado como tal, do que resulta que, por outro lado me conheça como ser pertencente ao mundo sensível, terei de julgar-me, como inteli-gência, submetido à lei do mundo inteligível, isto é, da razão, que na ideia de liberdade encerra a lei desse mundo e, portanto, da autonomia da vonta-de; por conseguinte, terei de considerar as leis do mundo inteligível como imperativos para mim e as ações conformes a esse princípio como deveres (KANT, 2002, p. 86).

A lei, por existir no campo jurídico, está ligada à vontade racional do ser em geral, visando um bem em si, uma lei por si só. A lei promulgada deve permanecer em consonância com o inteligível, que expressa indubitavelmente sua essência. Nesse processo, a lei, como forma de se realizar em conformidade com sua essência, sua forma, livre dos fenômenos que a caracteri-zam, terá que cumprir com seu dever, dentro do esclarecimento, sendo imperativo categórico, não visando algo além dela. Desta maneira, a lei não se aplica a um indivíduo, mas a todos de forma universal, pois a mesma na doutrina kantiana, para ser inteligível, deve rejeitar qualquer finalidade instrumental. Nessa seara, o bem em si, apresenta-se como forma única de busca da justiça (KANT, 2002).

A lei aplicável ao ser humano é acionada a priori, antes de uma ação, por ser boa em si mesma, pelo fato de que a vontade é a racionalidade do desejo, ou seja, vem antes de qualquer ação:

Ora, aquilo que serve à vontade com principio ob-jetivo de sua autodeterminação é o fim [Zweck], e este, se é posto pela só razão deve valer igual-mente para todos os seres racionais. O que, pelo contrário, constitui apenas o princípio da possibi-

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lidade da ação, cujo efeito é um fim, chama-se meio. O principio subjetivo do desejar é o impul-so [Triebfeder], o principio objetivo do querer é o motivo [Bewegunsgsgrund]; daí a distinção entre fins subjetivos, que se assentam em impulsos, e objetivos, que dependem de motivos, válidos para todo o ser racional. Os princípios práticos são for-mais quando fazem abstração de todos os fins subjetivos e, portanto, em certas determinações. Os fins que um ser racional se propõe ao seu ca-pricho como efeitos da sua ação (fins materiais) são todos simplesmente relativos, pois somente a sua relação com a faculdade de desejar do sujeito, especialmente constituída, lhes confere o valor, o qual , por isso mesmo, não pode fornecer princí-pios universais válidos e necessários para todos os seres racionais que o sejam também para todo o querer, isto é, leis práticas. Por conseguinte, todos esses fins relativos servem de base apenas para imperativos hipotéticos. Mas supondo que haja alguma coisa cuja existência em si mesma, pos-sa ser o fundamento de determinadas leis, nessa coisa, e somente nela, é que estará o fundamento de um possível imperativo categórico, quer dizer, de uma lei prática. Agora eu afirmo: o homem – e, de uma maneira geral, todo o ser racional – existe como fim em si mesmo, e não apenas como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade (KANT, 2002, p. 58).

O ser humano, através do princípio do imperativo categó-rico, de uma máxima conforme a sua vontade, na configuração da doutrina do direito kantiano, será uma vontade legisladora universal, pelo fato de não buscar interesse algum, apenas uma ação universal. O ser humano, pela sua capacidade racional, por si mesmo, estabelece o que é digno de ser seguido e aplicado em sociedade, dentro de parâmetros legisladores a priori, da busca de uma ação consistente a todos de forma moral. Segun-

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do Kant (2002), isso não se dá em virtude de qualquer outro motivo prático ou futuro, mas pela ideia de dignidade de um ser racional que não obedece outra lei senão aquela que simulta-neamente dá a si mesmo.

O imperativo kantiano funda-se na perspectiva do indiví-duo movido pelo embate entre heteronomia e autonomia, isto é, o esclarecimento [Aufklärung] é o condutor da possibilidade da autonomia. O imperativo mediante essas conotações traba-lhará na forma da razão do sujeito, buscando a autonomia do ser, frente a sua vontade, pela via da liberdade, pela prática dos princípios a priori4.

A busca incessante do sujeito autônomo num estado democrático de direito é praticamente sua sina, ser autônomo frente à legislação e sua promulgação, cumprindo os preceitos jurídicos estatais, pensando num nível universal, que garanta plenitude de uma vida social pautada na justiça, é o que es-tabelece o preâmbulo constitucional brasileiro. A questão que se realça a priori é a justiça. Pensando ela como fim último do homem, Rawls, em seu livro ‘Uma teoria da justiça’, a apre-senta como gênese e instrumento para superar a questão da desigualdade social, vislumbrando a realização da dignidade hu-mana. Ele traz à luz o pensamento kantiano com a questão da autonomia, como o despertar para a boa vontade, na trilha por uma organização social mais justa, tornando a democracia mais robusta e equilibrada (RAWLS, 2010). John Rawls, em harmo-nia com o pensamento kantiano, deposita suas expectativas na ação por dever, identificando-a ao critério inteligível para a rea-lização da liberdade. 4 Quando o ser se depara com o imperativo, algo que impera sobre algo, ou dentro da tese kantiana o imperativo serve para orientar a ação e se exprime pelo dever (CHAUI, 2009, p. 253).

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A justiça tem um caráter prioritário nas relações entre as pessoas, qualificando o cidadão como sujeito de direitos. Dessa forma, ela visa alcançar a dignidade humana. Rawls pensa a justiça como equidade, ou seja, somos uma sociedade consti-tuída de sujeitos que mantêm relações através das ações uns com os outros, e essas ações seguem regras que já foram pré-confirmadas e estabelecidas, que são a base da coesão social. Rawls ainda desenvolve que é a partir desse princípio de justiça, voltado para a autonomia, que as ações se desenvolveram, mo-tivando a execução dos princípios. Esses, que, por sua vez, nor-teiam o preâmbulo constitucional brasileiro, comportando em seu cerne a justiça como equidade, visando própria realização da dignidade humana como fim último do Estado democrático (RAWLS, 2010).

O direito pela via contemporânea, seja em Rawls (2010) ou em Habermas (2002), é o lócus privilegiado do agir comuni-cativo superior, garantidor da democracia, da liberdade e da in-tegração igualitária entre os sujeitos e grupos sociais. Pauta-se na teoria do discurso que, através do esclarecimento, organiza e sistematiza a sociedade como um todo. Seria algo pós-metafí-sico, mas que busca uma legitimidade universal cosmopolita de integração entre todos os Estados, uma conglomeração interna-cional que aferisse no direito como instrumento, sendo ele fun-damental para a sociedade. Nesse sentido, tanto Rawls quanto Habermas conferem ao sujeito a condição da possibilidade do uso de sua autonomia, como foco para a própria definição do dever e da ação na sociedade. Portanto, é na perspectiva do imperativo categórico kantiano da universalização da dignidade como sendo fim em si mesma, sendo ela garantida pelo sujeito

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racional e esclarecido, mediante uma vontade, que se faz ação, que se realiza o próprio estado de direito e a liberdade atrelada ao mesmo.

É possível afirmar que, em síntese, o sistema habermasiano apresenta dois argumentos prin-cipais em prol do principio do discurso. O pri-meiro é formulado nos moldes de uma teoria da sociedade, nos seguintes termos: o direito preenche funções de integração social. Funcio-na, pois, como uma correia de transmissão ca-paz de transportar a solidariedade humana para um nível mais abstrato que é a da solidariedade cidadã. Nesta linha de argumentação, a própria coação jurídica que de certa forma se opõe à força integradora da comunicação social pode converter-se em um meio de integração. O se-gundo argumento de Habermas é formulado no nível de uma teoria do direito, segundo a qual a legitimação das ordem jurídicas pós-modernas implica a ideia da autodeterminação do sujeito. E tal ideia leva a pensar que os cidadãos dever poder se entender, a cada passo, como auto-res autônomos do direito ao qual estão sujeitos como destinatários. Pode-se firmar, inclusive, que o texto Direito e democracia constitui um único e grande argumento a favor desta tese, a qual pretende provar que os elos que unem o Estado de direito e a democracia não são cau-sais nem meramente históricos, mas internos e conceituais (SIEBENEICHER, 2006, p. 56).

Flávio Beno Siebeneicher (2006) enfatiza que, no pen-samento de Rawls e Habermas, pode-se identificar que ambos resgatam em Kant a autonomia como uma preocupação acer-

ca de como vislumbrar um mecanismo que paute a dignidade humana como universal e cosmopolita, circunscrita no direito.

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Ela, a autonomia, torna-se a executora da dignidade humana, evitando tomá-la como discurso vazio, sem rumo. Ela precisa sempre denotar uma vontade racional, uma autonomia do sujei-to, uma boa vontade. E como escrito por Kant, já no século XVIII, a autonomia somente se perfaz quando esclarece e legitima o direito, como o executor da dignidade como fim último do sujeito social, dentro de uma potencial sociedade cosmopolita.

Habermas (2002) também esboça sobre a questão da vontade e da legitimidade, na esfera do direito, visualizando a tese de direito público e privado, a lei universal dentro dos pa-ramentos hermenêuticos do discurso. Habermas nesse aspecto se embasa e ressalta Kant, relatando que este já destacava a ligação entre a vontade e a legalidade, tendo um dupla concei-tuação do direito moderno.

Kant, com o conceito de legalidade, já destaca-va a ligação entre esses dois momentos sem os quais não se pode exigir qualquer obediência le-gal: normas jurídicas têm de ser tais que possam ser consideradas as um só tempo, e sob cada um dos diferentes aspectos, como leis coerciti-vas e como leis da liberdade. Esse duplo aspecto integra nossa compreensão do direito moderno: consideramos a validade de uma norma jurídica como um equivalente da explicação para o fato de o Estado garantir ao mesmo tempo a efetiva imposição jurídica e a instituição legitima do di-reito – ou seja, garantir de um lado a legalidade do procedimento no sentido de uma observância média das normas que em caso de necessidade pode ser até mesmo impingida através de san-ções, e, de ouro lado, a legitimidade das regras em si, da qual se espera que possibilite a todo o momento um cumprimento das normas por res-peito à lei (HABERMAS, 2002, p. 287).

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Para Habermas, concordando com Kant, o espaço que o campo hermenêutico jurídico deve ocupar é o do sentido da essência da dignidade humana. O limiar do direito e da moral estão explícitos no imperativo categórico, que, por sua vez, in-fluenciam a formulação das leis que, de maneira coercitiva, faz com que o sujeito de direito dentro da sua autonomia, como ser racional e dotado de esclarecimento, possa verificar que a lei é a manifestação da normatividade coletivamente benéfica, pois visam um bem comum e uma paz universal.

3 ANALOGIAS: ESCLARECIMENTO E DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

O ser humano, sendo homo sapiens, sujeito racional, e imbuído disso, estabelece pela instrumentalidade da sua razão, premissas que garantam medidas que visem o bem em si da sociedade, que é promulgado por leis, regras, as quais são rea-lizadas por laços a priori de uma ação. Ainda, antes mesmo de ocorrer um ilícito, uma ação que contrarie os costumes de determinada sociedade, o legislador pode, de forma a buscar o bem em si, promulgar normas, que se faça assim eficaz a poste-riori, quando se faz aplicado em caso concreto. Mas, para isso, o sujeito deve estar imbuído do esclarecimento.

Para Kant, o esclarecimento é a saída do homem da sua menoridade, que seria a incapacidade do sujeito entender uma lei, ou a justiça, sem a interferência de um terceiro. Kant esta-belece que essa culpa de ter alguém que o ajude, é culpa do próprio sujeito, que está sem coragem de servir-se de si mesmo, de servir do seu entendimento. O sujeito é o responsável por não

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ter ousadia de esclarecer-se das questões normativas, das leis a priori. Diante do aufklärung, o sujeito tem que ter a “sapere aude5, a ousadia de ter o teu próprio entendimento e esse é o lema do aufklärung (KANT, 1997).

O esclarecimento é a possibilidade do sujeito racional sair da sua menoridade assumindo a sua condição de sujeito ra-cional, deixando de lado o comodismo, sendo capaz de verificar através de si mesmo, o que é, o que lhe cerca, suas escolhas, sem necessitar da ajuda de outrem. É se auto servir, é ousar saber. Realizando uma alusão a Platão, o sujeito racional deve-rá sair de sua caverna, e, mesmo que a subida seja íngreme, ele deve persistir a fim de visualizar o conhecimento, ou seja, atingir sua autonomia, isso é, atingir sua essência, a liberdade. Para Kant, somente sujeitos autônomos atingiram a essência da dignidade da pessoa humana. “Para se conquistar tal ganho é necessário que o sujeito tenha liberdade, Kant: para esse escla-recimento, porém, nada mais se exige senão liberdade” (1997, p. 117). Ademais, essa liberdade depara-se com a questão pú-blica e privada, ou seja, do uso de sua razão.

Entendo, contudo, sob o nome de uso público de sua própria razão aquele que qualquer homem, na condição de sábio, faz dela diante do grande público do mundo letrado. Denominado uso pri-vado de sua razão aquele que o sábio pode fazer dela em determinado cargo público ou função a ela confiada (KANT, 1997, p. 119).

Nota-se que, relativamente à questão do dilema do uso da razão em público e privado, o sujeito que se faz presente na

5 Termo latino: - ouse saber.

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história por um lado pode exercer o potencial uso público, que, por sua vez, está utilizando do esclarecimento dentro de uma amplitude macro, numa visão universal. Por outro lado, já a de uso privado da razão, a universalidade, torna-se comprometida. Para ter o esclarecimento, diante da liberdade, o homem não deve abrir mão de seu esclarecimento. Poderá sim adiar, mas não abster-se dele.

Um homem pode, sem dúvida, no que diz respei-to à sua pessoa, e mesmo assim só por algum tempo, na parte que lhe incumbe, adiar o escla-recimento [Aufklärung]. Mas renunciar a ele, quer para si mesmo quer ainda mais para sua descen-dência, significa ferir e atar aos pés os sagrados direitos da humanidade (KANT, 1997, p. 120).

Sair da sua menoridade exige do sujeito racional que o entendimento amplifique e se desenvolva, não pela vontade de outrem, mas pela sua vontade, sendo que deve vencer sua he-terenomia, que está no comodismo de si. E por fim acordar, tendo como inspiração Hume, o sujeito deve acordar do - sono dogmático, assumindo o entendimento/esclarecimento, em de-trimento à menoridade. Pelo fato que, para Kant, no momento em que o sujeito sai da menoridade, tem um esclarecimento, estabelece a maioridade, deixa a heteronomia de lado, isto é, amadurece quando assume o leme de seu ser, tornando-se su-jeito esclarecido e autônomo e por isso verdadeiramente livre em essência e assim consequentemente digno de pessoalidade.

A partir desse momento, é sujeito autônomo de sua vida e atitu-des, sendo esse o momento da máxima razão humana.

De tal forma, a realização da dignidade da pessoa huma-

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na atrela-se à própria execução da autonomia da razão e do uso público da razão, com vistas à possibilidade da universalidade da dignidade da pessoa humana. Compreende-se que a dig-nidade humana não está ligada a mecanismos extras, para se satisfizer: ela é fim em si mesma. A dignidade basta a si mes-ma, e mesmo que ela, em si, mantenha seu pleito metafísico e universal, o qual Kant não exonera, o sujeito, por entender de forma esclarecida o que é a dignidade, deve atingir a essência que a norteia, para ser ela o que é, sem meio, sem fenômenos que a diga o que é: deve esclarecer-se (MASCARO, 2012).

A história da epistemologia rega a humanidade, apresen-tando a vertente empirista e racionalista, à qual Kant, para desfa-zer essa dicotomia, apresenta a questão do conhecimento univer-sal, através da junção da essência dessas duas vertentes dando ferramentas para, logo além, o direito ser capaz de dirimir a ques-tão da dignidade humana. Kant questiona a possibilidade de o sujeito conhecer uma coisa pela experiência, isto é, conhecer sua essência, ou seja, a coisa em si, o objeto no seu estado mais puro, a ação na sua vertente real. Dessa forma, o conhecimento pela via empírica não possibilita ao sujeito conhecer verdadeiramente o objeto ou até mesmo o fato real, na sua pura essência como ela é. Poderia então o homem conhecer a dignidade da pessoa humana estando sua essência na ação empírica, mas também possibilita-da no conhecimento inteligível da mesma. Todavia, Kant interdita essa possibilidade de conhecimento da coisa em si, pela vertente empírica, pelo fato de conhecermos não a coisa, mas o seu fe-nômeno, dentro de suas categorias. Sarlet (2009) apresenta que Kant expressa que - o conhecimento é universal, não por causa da coisa conhecida, mas por conta de quem conhece. O pensador

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alemão, para não cair na questão de ideias inatas, ressalta que o sujeito não carrega em si os fenômenos do objeto, os quais já vêm a priori no ser racional. Ou seja, por ser sujeito dotado de es-clarecimento e livre poderá arguir sobre questões de direito, sobre normas e leis, fatos constituídos e que afrontem a dignidade da pessoa humana, poderá, através desses instrumentos que carrega em si, analisar a esse da lei frente os fatos. E guiado pelo dever resguardar a efetividade do Estado de Direito.

Para Kant, são as estruturas de pensamento universais, quer dizer, são ferramentas da razão humana utilizadas de forma necessária. Não nas-cemos com elas inatas, mas todo fenômeno do sujeito do conhecimento só pode ser compreen-dido com elas. Essas estruturas são formas que tanto possibilitam a percepção empírica, sensível, quanto à elaboração do conhecimento intelectivo advindo dessas próprias percepções (MASCARO, 2012, p. 112).

Pela capacidade de esclarecimento, é permitido a este acolher os fenômenos, isto é, os fatos, as regras e estruturá-los mediante dois troncos, de acordo com Kant - a sensibilidade e entendimento: pela primeira os objetos são nos dados, mas pelo segundo são pensados. Ora, Kant supera a dicotomia objeto-sujeito pelo simples fato que - o conhecimento, assim, não é só apreensão do sensível dos fenômenos, é também um pensar a respeito deles (KANT, 2002). Dessa forma, o pensamento kan-tiano de conhecer os objetos, pelo esclarecimento destes, con-

fere à vontade a forma racional e autônoma, que guia o sujeito nos viés jurídico, frente aos fenômenos ontológicos, como é o caso da dignidade humana.

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A simples questão da utilização da razão para dirimir ques-tões do direito é pautada nos imperativos categóricos kantianos, que buscam a universalização do direito através de um dever, ou seja, de realizar algo sem se ter ou sem se pensar em gratifica-ções ou honrarias. É pensar a ação e suas consequências livres de quaisquer amarras, culturais, crenças e assim por diante.

Os imperativos categóricos somente poderiam ser compreendidos pelos homens abstraindo-se eles de seus interesses imediatos e de suas circuns-tâncias, valendo-se, por isso, da boa vontade. É apenas a vontade boa, isto é, meramente um querer, o que faz com que os interesses indivi-duais sejam superados em favor de um padrão universal de medida, valoração e ação da mora-lidade. Por isso, perpassa o pensamento de Kant uma pressuposição de que os homens formam uma totalidade ética, impulsionada no limite ape-nas pela boa vontade (MASCARO, 2012, p. 220).

A tomada de direção de Kant na esfera do direito pela vertente do conhecer, bem como a vontade é munir o sujeito pensante, o legislador, o instrumentalizador do direito de es-clarecimento e buscar na justiça, uma dignidade humana, que seja garantida pelo direito através da normatização do Estado democrático, no qual a dignidade humana e a justiça se tornem fins em si mesmas, evitando qualquer condição instrumentali-zadora. Como descreve Lebrun (1993), a pluralidade dos seres racionais forma necessariamente uma totalidade, esse é ainda um dos pressupostos da moral, sem a qual seria impossível fundar os imperativos categóricos. Ressalta-se, ainda, que é preciso que todos os outros, cada um para si e cada um para o outro, se representem na natureza racional como fim em si,

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para que a moral seja fundada. Isto é, para compreender que ela dependa de outra coisa, do que de uma decisão subjetiva, uma convicção privada.

Princípios práticos são proposições que encerram uma determinação geral da vontade, trazendo em si várias regras práticas. São subjetivos, ou máxi-mas, quando a condição é considerada pelo sujei-to como verdadeira unicamente para a sua vonta-de; são, por outro lado, objetivos ou leis práticas quando a condição é conhecida como objetiva, isto é, válida para a vontade de todo ser racional (KANT, 2003, p. 27).

A vontade pelos princípios práticos conduz o sujeito ra-cional na observação de suas condutas universais. A vontade é anterior ao desejo, por ser uma reflexão do desejo, dentro da lei moral de realizá-lo ou não. A intenção do sujeito racional é refle-xo de algo, mesmo antes de ser realizado, pelo viés kantiano o dever [sollen], ou seja, do imperativo. Kant parte da regra prática de que o dever é um produto da razão, porque prescreve a ação como meio para o efeito, considerando-se sua intenção. Contu-do, para um sujeito onde a razão não é tudo, essa regra torna-se imperativa, não sendo o único princípio da determinação da sua vontade, isto é, um dever, uma obrigação da ação objetiva. O pensador alemão percebe que, no momento que insurgem leis práticas, essas se referem à vontade, em sua exclusividade, não levando em conta a causa, podendo ocorrer nessa abstração a possibilidade de uma lei pura e prática concomitantemente.

Envolto neste impasse, uma vontade perfeita para Kant (2002) seria determinada pelo uso da capacidade racional do homem de acordo com leis racionalmente estabelecidas, levan-

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do em consideração que nem toda vontade é incondicionalmen-te boa. Isso decorre porque a vontade está sujeita a condições subjetivas, como as inclinações pessoais, advindas da sensibi-lidade, evidenciando assim um conflito constante entre o uso da razão e entre o uso da sensibilidade. Para Kant, uma ação é reflexiva pela autonomia, através de uma vontade que reali-zará, mas isso no sujeito é feito graças a duas possibilidades: a sensibilidade e o entendimento. A solução dada por Kant a este impasse são as leis da razão, apresentadas como mandamentos a serem seguidos pela vontade: logo, os imperativos se apresen-tam aos homens como deveres.

[...] todos imperativos se expressam pelo verbo dever (sollen) e mostram assim a relação de uma lei objetiva da razão com uma vontade que, por sua constituição subjetiva, não é necessariamente determinada por tal lei (uma obrigação)[...].[...] por isso, os imperativos não valem para a vontade divina nem, em geral, para um vontade santa; o dever (sollen) não tem aqui lugar ade-quado, porque o querer coincidi já por si, necessa-riamente, com a lei. Por isso, os imperativos não são mais do que fórmulas para exprimir a relação entre as leis objetivas do querer em geral e a im-perfeição subjetiva da vontade desse ou daquele ser racional - da vontade humana (KANT, 2002, p. 44-45).

E a vontade é independente dos acontecimentos ou fatos exteriores que marcam o sujeito através da experiência, mas como vontade pura, pela simples lei, a qual é a suprema condi-ção de todas as máximas no pensamento kantiano. A vontade como reflexo do desejo, segundo Kant, busca a máxima - age de tal modo que a máxima de tua vontade possa valer sempre

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como princípio de uma legislação universal (KANT, 2003, p. 40). Hansen (1999) em comentário a Kant, segue no mesmo senti-do, afirmando que: “[...] na condição de ser livre e autônomo, o homem participa do mundo inteligível e, como tal, colabora na construção do Reino dos Fins6 enquanto vontade legisladora universal” (1999, p. 54). O homem não se sente oprimido pelo dever, pois sabe que sua ação é embasada na lei da moralidade, e não somente pela lei positiva e artificial: o homem segue a lei moral. Por isso, é que ele vai se esforçar para que suas máxi-mas possam se tornar lei universal, pois reconhece a dignidade presente na moralidade, como caminho na construção da sua liberdade e autonomia.

4 A DIGNIDADE HUMANA EM KANT

Kant, através da obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes, apresenta a questão da dignidade humana, em forma de problemática, buscando uma universalidade para tal questão, mediante o sujeito racional, ou seja, que tem esclare-cimento [Aufklärung] e vontade, dando gênese ao princípio de uma legislação universal. O princípio da dignidade da pessoa humana pressupõe que se considere a questão: como devo agir perante o outro, respeitando a seu caráter individual, ansieda-des, vontades, desejos, aspirações e ações na sociedade, e que essas estejam de acordo com a possibilidade de uma legislação universal. Basicamente, Kant indaga-se sobre esses adjetivos

sociais. 6 Rousseau entendia por república “[...] o povo submisso às leis, deve ser o autor delas mesmas”(Kant: 2004, p.49). Kant, na mesma direção de Rousseau, com o pressuposto de ideia de autonomia e de moral intrínseca a ela, é conduzido ao ideal de reino dos fins. É, pois, pelo imperativo categórico que se concebe leis comuns ao homem, o induzindo a este reino dos fins.

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[...] até a uma causalidade da razão que denomi-namos vontade e que é a faculdade de agir de tal modo que o principio das ações resulte conforme à propriedade essencial de uma causa racional, isto é, à condição da validade universal da máxima tomada como lei (KANT, 2002, p. 91).

O pensador busca sanar a indagação do agir da pessoa, para que o agir seja bom em si mesmo, como princípio univer-sal, isto é, como máxima. Nessa interface jurídica de busca da máxima do agir do sujeito frente ao seu dever, Kant, mesmo que anacronicamente, parece desdenhar a questão do princípio da dignidade humana tal como entendida nos meios jurídicos. Assim, torna-se cabível a análise sistemática da autonomia da razão e do esclarecimento, já que tais noções embasam a pos-sibilidade da releitura construtiva do princípio jurídico da digni-dade à luz de uma possibilidade de universalização da mesma.

O sujeito como fim e não meio, eis que, volta-se para a questão do esclarecimento [Aufklärung], do sujeito racional. Diante de fatos ontológicos, e de difícil argumentação jurídica, que toma o sujeito de direito como causa, temos um encrave muito grande entre o princípio da dignidade humana e a prote-ção da propriedade. É nítido ao observar os artigos 129 e 155 do Código Penal Brasileiro7.

O artigo 129 trata da questão corporal do sujeito, a sua saúde, preceito constitucional que deve ser garantido pelo Es-tado, não devendo sofrer nenhuma mazela. Mas o Estado pare-ce que deixa a desejar quanto a uma pena, ainda que severa, àquele que cometer qualquer ofensa a seu corpo ou saúde, apli-

7 Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem: Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano. Art. 155. Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel: Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.

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cando ao agressor apenas uma detenção de três meses, e no máximo um ano. Ora, o Estado não deveria ser o garantidor dos direitos, principalmente da dignidade da pessoa. Há um parado-xo implantado e desproporcional no que é tangível a tais leis: ao se observar o artigo 155, que trata da subtração de objeto, de qualquer objeto, por não discriminar qual é objeto, nesse crime o legislador é mais garantidor, devendo esse aplicar reclusão de um ano e o máximo de quatro anos mais multa. Como pode o Estado deixar de lado o princípio constitucional e zelar pela coisa. Através de uma leitura kantiana, como pode ceder a uma noção instrumentalizada da vontade, ao invés de proteger a au-tonomia da vontade, o dever. A inversão do valor do sujeito pela coisa é equivocada, segunda Kant. A lei por si só acaba abolindo a dignidade humana, no quesito de proteção judicial, ao abraçar o objeto como valor maior.

Lenio Luiz Streck apresenta que:

Tudo isto passa a ter influência e importância na análise do Direito em nosso país. Como os juristas pensam o mundo do Direito? Como se inserem e como têm acesso ao mundo? Isto porque, con-forme bem assinalam Castanheira Neves e Fer-rajoli, o universo jurídico deve ser compreendido como um universo linguístico e se infere daí que o pensamento jurídico haverá de assumir como seu método especifico a análise da linguagem – a análise da linguagem legal, isto é, a proposições jurídica daqueles dados empíricos que consistem nas proposições normativas de que se compõe o discurso do legislador, e tendo decerto e radical-mente como objeto direto de análise o texto legal, os enunciados linguísticos objetivados prescritiva-mente nesse texto (STRECK, 1999, p. 49).

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Contudo, Kant enaltece que o ser humano de uma ma-neira geral é racional e existe como fim em si mesmo. Não pode ser utilizado de maneira arbitrária pela vontade alheia. Diante do que foi comentado em relação aos artigos acima, o legislador não soube precipitar a essência do ser humano, o valor que essa tem em relação à propriedade, por isso, toda ação tem que ser vista como fim em si mesma. Os seres que são desprovidos de racionabilidade pela natureza, por si só, são considerados coisas. A propriedade é coisa, logo, tem um valor relativo. Já o ser humano não é coisa, logo não tem valor relativo. Seu valor é imensurável. Como valorar uma vida? Como valorar a dignidade humana de uma pessoa?

Na visão de Sarlet (2006), não se pode ser empregado ao ser humano um meio, pois ele é fim, limitando todo arbítrio sobre ele. Nisso, ressalta-se a norma jurídica de agir como fim, no que se é fim, no caso do ser humano. Visualizá-lo como ser imen-surável, que não há possibilidade de se dar uma quantidade. O princípio prático objetivo e racional, realizador em si do imperati-vo kantiano é agir como fim em si mesmo, como fim último.

Ao cuidar do sujeito como fim, estabelece a axiologia deste, não sendo meio para qualquer outro fim. Mas em si mes-mo, tendo valor. Como valorar uma pessoa? Como estabelecer o valor sobre uma peça de seu corpo? Como dar valor a um ser racional. Mediante isso, o sujeito é fim em si mesmo, não pode-rá ser meio para alcance de algo. Sua existência se faz presente pela denota do agir como fim, vislumbrando a máxima da uni-versalidade (SARLET, 2009). O homem é seu próprio dominus por ser dotado de razão, e podendo por meio dela construir sua dignidade e, portanto, existe como fim em si mesmo. O homem

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não pode ser instrumentalizado ou coisificado, já que na ma-terialização de sua condição ontológica é de ser sujeito de seu existir; por isso, pertence ao reino dos fins.

[...] no reino dos fins tudo tem um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode pôr-se em vez dela qualquer outra como equiva-lente; mas quando uma coisa está acima de todo preço, e portanto, não permite equivalente, então tem ela dignidade” (KANT, 2002, p. 95).

Kant nutre uma perspectiva do imperativo categórico como fonte natural todos os imperativos do dever, e do caminho para a construção da dignidade humana. O fundamento do im-perativo categórico, seu caráter universal, não está na condição de alguém se submeter à lei moral, mas no fato de acatá-la, visualizando que é legislador e legislado da mesma. Nesse sen-tido, o desejo kantiano é que toda boa vontade seja legisladora universal, tornando-se um imperativo da moral, porque carrega-do desta responsabilidade não seriam os interesses particulares dos indivíduos que estariam pautados, mas o princípio da auto-nomia, da vontade de todos da realização de sua pessoalidade: da dignidade da pessoa humana. Segundo Kant “[...] O princípio da autonomia é, portanto, não escolha senão de modo a que as máximas da escolha no próprio querer sejam simultanea-mente incluídas como lei universal [...]” (2002, p. 70). O con-ceito de autonomia nos faculta compreender por que a nossa obediência à lei não se funda num argumento qualquer, voltado para os interesses particulares. Diante dessas considerações, a consciência moral nos impõe a capacidade de avançar para o melhor, para o progresso do gênero humano, que na concep-

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ção kantiana é promulgado enquanto reino dos fins, querendo instaurar a própria possibilidade da dignidade. A moralidade e a autonomia, contudo, podem ser consideradas mediadoras en-tre os interesses da razão e interesses subjetivos advindos da sensibilidade. Isso implica diretamente uma ligação sistemática de leis objetivas comuns entre o indivíduo que torna possível a dignidade humana.

Interesse é aquilo em virtude do que a razão se torna prática, ou seja, causa determinante da vontade. Por isso, só de um ser racional se diz que toma interesse por essa ou por aquela coisa; as criaturas irracionais sentem apenas impulsos sensíveis. A razão toma um interesse imediato na ação somente quando a validade universal da má-xima dessa ação é fundamento suficiente para de-terminar a vontade. Esse interesse é o único puro. [...] o interesse lógico da razão (para fomentar os seus conhecimentos) jamais é imediato, mas pressupõe sempre propósitos de seu uso (KANT, 2002, p. 92).

Para Kant, o interesse da razão é pressuposto para a ve-rificação do caráter das máximas, ou seja, se elas detêm caráter subjetivo, interesses particulares derivados dos sentimentos, ou ainda, está de acordo com os princípios morais. Este conceito está presente, na capacidade do homem fazer uso de sua razão para seu próprio desenvolvimento, como para o seu aprimora-mento enquanto gênero humano exposto de forma mais abran-gente no projeto de aufklärung kantiano 8.

Sumariamente, o imperativo tu deves está no próprio ho-mem, amparando seu enfoque acerca dos conflitos das liberda-8 Aqui, é possível relembrar os artigos constitucionais supramencionados, e indicá-los como elementos que fogem aos interesses universais da razão, já que são instrumentais e desproporcionais.

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des, o homem buscará os meios para resolver no decorrer do desenrolar do processo histórico. Civilizar-se é retirar as arestas da intolerância, e o homem, com o dom da liberdade, a mola propulsora da vontade, se encaminhará na grande busca. De-senvolvendo seu raciocínio, Kant estabelece:

[...] outra coisa não há senão a representação da lei em si mesma, a qual só no ser racional se realiza, enquanto é ela, e não o esperado efei-to, o fundamento da vontade, podendo consti-tuir o bem excelente a que chamamos moral [...] (2002, p. 28).

Hansen, comentando a questão da boa vontade e do agir por dever, segue afirmando:

Na ‘Fundamentação da Metafísica dos Costumes’, Kant parte da compreensão vulgar da moralidade, ou seja, daquilo que o homem comum apresen-ta de convicções ou intuições acerca do que seja um ato moralmente válido, pois acredita que a nenhum ser humano se faz necessário ensinar o que é moral, e sim esclarecê-lo, no sentido do Au-fklärung pois cada ser racional já possui um “bom senso natural”(der natürliche gesund verstand), que o faz perceber o que significa uma boa vonta-de ou o que é dever, conceito que contém em si o de boa vontade. (HANSEN, 1999, p. 15).

Diante dessa situação, se a razão humana obedecesse a um impulso, então a liberdade estaria ameaçada, ou ainda, o homem não estaria agindo racionalmente, mas instintivamente, pois ser realmente livre é agir racionalmente e autonomamente em sua essência. Considerando o homem como coisa em si, como liberdade, dele não se usurpa sua vontade de agir ra-

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cionalmente. Segundo Kant (2003) se nos conduzíssemos se-gundo as máximas da liberdade como se elas fossem leis da natureza, então seria possível compor uma comunidade ideal, fomentando a dignidade humana, já que cada um representa um fim em si mesmo. Pode-se considerar a ação como moral quando é promulgada conforme a legislação que torna possível a dignidade, visto que Kant estipula a autonomia da vontade como princípio supremo da moralidade, dado que ela reflete a vontade de uma legislação universal e o respeito à liberdade da pessoa humana. Kant estava consciente de um aprimoramento da natureza humana, do desenvolvimento das potencialidades racionais no tempo, mostra e ilumina o que lhe é inerente: a liberdade, e o que lhe é opção, a autonomia denotando a digni-dade que seria consequência causal.

O sujeito nas ações sociais que realiza pelos princípios das máximas, liberdade e vontade, tem suas conotações ergui-das através da liberdade e da vontade, as quais são alicerces que fomentam a autonomia do sujeito, que é a possibilidade deste de utilizar-se de sua razão, como matriz de suas ações pelo crivo racional. Desse ponto de vista, seria possível consi-derar o sujeito livre, tendo liberdade, mesmo submetido à lei positivada pela humanidade como um todo. Mas essa lei deve, para tanto, estar submetida ao crivo do dever, rejeitando quais-quer possibilidades de instrumentalidade. Veja-se que, mesmo havendo leis produzidas por legisladores, essas, quando nos propiciam o encontro com nosso valor, são na visão kantiana leis morais. De tal sorte, apesar de perder uma centelha de liberdade, isso ocorre para garantir um bem maior. Nesse senti-do, é pelo esclarecimento que se tem evidenciada a finalidade

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de porquê uma lei é proposta: a liberdade de agir conforme a lei, através do dever, realizando a própria condição de possibilidade da dignidade da pessoa humana9.

Decidir através de princípios universais é ser livre, é fo-mentar simultaneamente à liberdade a autonomia da vontade. Kant expressa que o conceito de liberdade é a chave para expli-car a autonomia de qualquer coação sobre o sujeito, isto é, não agir segundo nenhuma outra máxima, a não ser a do imperativo categórico, a saber, o princípio da moralidade. No viés jusfilosó-fico, tal ato se caracterizaria no fato do sujeito cumprir a lei, não por sua imposição, mas por saber que ela garantirá um bem uni-versal amplificado, por causa da sua essência. Segundo Sarlet (2009), os direitos subjetivos poderiam ser aproximados da leitu-ra kantiana, já que não se tem como majorá-los, ou defini-los, a não ser inerente a um padrão jusmetafísico de natureza deonto-lógica, que caracterizaria a máxima dos mesmos. Como é o caso do respeito frente ao outro na sociedade, ainda o artigo10 5º da Constituição Federal de 1988 trata da inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.

Ao estabelecer o princípio da igualdade, não se tem nítido o que é igualdade, mas na acepção da palavra sabe-se, mesmo que for pela força do senso comum. A essa possibilidade, Kant transmite que, por ser sujeito livre e de vontade e que ambas são geradoras da autonomia, possibilitam ao sujeito de direito o esclarecimento de saber o conceito único, em sentido lógico de representações julgadas, diferentes do próprio objeto ou de 9 Kant (2002, p. 83): “[...] considerar-nos livres no agir e, no entanto, devemos considerar submetidos a certas leis, para encontrarmos valor somente em nossa pessoa, valor este que nos possa compensar da perda de tudo aquilo que proporciona valor à nossa condição; tampouco podemos compreender como isto seja possível, quer dizer, de onde provém que a lei moral obrigue”.10 Art. 5.º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.

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ações que estão a sua frente. Por sua vez, ao conhecer o con-ceito da igualdade e de dignidade da pessoa humana, atrelado vem à tona que se não há respeito não se tem dignidade (KANT, 2002). Enaltece Müller e Cenci que:

Kant traduziu o conceito autonomia para a forma do imperativo categórico no plano moral, no qual o sujeito pondera, privadamente, se as máximas de ação podem se tornar leis universais. Por uma série de reduções a partir do princípio moral – por-que o direito somente se refere ao arbítrio dos su-jeitos (como a faculdade do exercício da liberdade subjetiva de ação) e não a sua vontade ( como faculdade que determina o arbítrio para a ação segundo leis morais), é atribuído exclusivamente à forma da relação externa entre os arbítrios e pode ser imposto mediante coação externa -, Kant ob-tém o princípio do direito que permite que o arbí-trio de um se concilie com o arbítrio de todos os demais, segundo uma lei universal da liberdade, que consiste no direito inato á liberdade, - o meu e o teu interiores, que todo homem possui tão só em virtude de sua humanidade, o qual, aplicado às relações externas, permite deduzir todos os di-reitos subjetivos privados relativos ao - meu e teu exteriores, ou seja, o direito à propriedade privada, que formam a totalidade dos direitos subjetivos que o home detém já no estado de natureza, an-tes de usa entrada no estado civil. E como esses direitos subjetivos privados antecedem à sobera-nia popular, então, no estado civil, que surge pela reunião da multidão selvagem em um povo, pois qualquer um que legisle em nome do povo pode cometer injustiças contra ele, mas o povo mesmo não pode cometer injustiças contra si próprio, não tem outro remédio que institucionalizá-los. Por isso, Kant afirma que esses direitos correspondem à liberdade selvagem, a que os homens devem renunciar para recuperá-la integralmente na sua liberdade civil. Mas Kant não entendeu esse pro-

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cesso como limitação da soberania popular, pois os cidadãos, mediante a auto legislação, somente podem positivar os direitos que os indivíduos pos-suem enquanto homens (2004, p. 264).

É pelo simples fato de que - a liberdade tem de pressu-por como propriedade da vontade de todos os seres racionais (KANT, 2002). A liberdade do sujeito racional para o direito tra-z-se mediante a autolegislação, traduzindo pelo sentido da au-tonomia de gerir os fenômenos pelas categorias a ele a priori, formulando o imperativo categórico; pelo ponto da moralidade e do dever.

5 ARTIGO 1º, INCISO III DA CF E A HERMENÊUTICA KANTIANA

A Constituição Federal do Brasil de 1988 instituiu no ar-tigo 1º, inciso III, a questão da dignidade. E essa questão da dignidade é que é fundante elencar, pois, o que a caracterizaria no ordenamento jurídico brasileiro a dignidade, no preâmbulo11 constitucional, o qual traz ponto sucinto do que poderia se tra-tar, ou melhor, o que faz parte da dignidade humana do sujeito no plano do estado democrático de direito.

O arcabouço jurídico impõe leis aos sujeitos racionais, no sentido da construção de uma sociedade organizada e justa: mas, diante de tal premissa, como tais leis podem conciliar-se com a condição de possibilidade de serem, as mesmas, cum-pridas de forma autônoma pelos sujeitos de direito? Para Kant, a sociedade pode ser considerada idealmente como reino dos 11 Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL (BRASIL, 1988).

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fins, desde que, sistematicamente, seja construída por vários seres racionais e também por leis comuns a todos. Justamente o reino que pertence ao sujeito racional dotado de esclareci-mento está cercado de leis — e porque essas leis têm em vista a relação desses seres uns com os outros como fins e meio, pode bem ser chamado de reino dos fins (KANT, 2002).

Kant (2002) ainda considera que o ser racional é sempre um legislador em um reino dos fins — ideal de sociedade justa e perfeita, onde todos são dignos e possuem autonomia — pos-sível pela liberdade da vontade, seja como membro, seja como chefe. Sendo pertencente a esse reino, cumpre a este buscar o princípio da máxima da dignidade, olhar o sujeito como fim em si mesmo. O dever se presta a ser de quem tem a pretensão de buscar a máxima da legislação. “O dever não pertence ao chefe no reino dos fins, mas sim a cada membro e a todos em igual medida” (KANT, 2002, p. 65). E, sendo assim, cada um tem por dever superar suas inclinações, que conduziriam os indivíduos à heteronomia, e na medida da superação de tais condições subjetivas da vontade, poder-se-ia construir, na autonomia ad-quirida, a própria condição da dignidade e da pessoalidade.

Nesse prisma, a condição sine qua non de adequação da autonomia do sujeito, mesmo que tais indivíduos estejam coagidos pela lei, manifesta-se em Kant como caminho para a construção da dignidade: pois o preâmbulo constitucional vem imbricado na moralidade, ou seja, o mesmo, ao ser formulado, não foi pensado sob a ótica da instrumentalidade, porém, sob a ótica do dever ser, circunscrito na esfera da moralidade.

Ora, a moralidade é a única condição que pode fa-zer de um ser racional um fim em si mesmos, pois

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só por ela lhe é possível ser membro legislador no reino dos fins. Por isso, a moralidade e a humani-dade enquanto capaz de moralidade são as únicas coisas providas de dignidade (KANT, 2002, p. 65).

Dessa esfera da lei, o membro/cidadão ou chefe/governo deve sempre utilizar o esclarecimento e o imperativo categóri-co, como elemento universal, que pode oferecer a resposta se a ação é boa em si, no sentido da construção de uma comu-nidade/sociedade justa em si: o reino de fins, como conside-raria Kant, com valor em si mesmo, sem instrumentalidades. Portanto, o próprio legislador, ou até mesmo o julgador, teriam condições de, nas suas tomadas de decisões, serem capazes de tal exercício reflexivo, com o foco em dar a resposta justa, em conceber uma hermenêutica do dever.

A própria legislação, no entanto, que determina todo o valor, por isso mesmo deve ter uma digni-dade, ou seja, um valor incondicional, incompa-rável, para o qual só a palavra respeito confere a expressão conveniente da estima que um ser racional deve lhe tributar. A autonomia é, pois, o fundamento da dignidade da natureza humana e de toda a natureza racional (KANT, 2002, p. 66).

O inciso III, do artigo 1º da Constituição Federal, carrega em si um valor incondicional e incomparável: não tem como va-lorar a dignidade, pois é do ser humano, não tem como valorá-la pelo simples fato de não ter como valorar o próprio humano. É esse empecilho que norteia o artigo e seu inciso, no mundo jurí-dico, para medir o alcance em detrimento ou afronta a esse in-ciso. Para tal, vejamos o que Kant apresenta nas três máximas:

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Todas as máximas têm, com efeito: 1) Uma forma, que consiste na universalidade, e, desse ponto de vista, a fórmula do imperativo moral expressa-se de modo tal que as máxima te-nham de ser escolhidas como se devessem ter o valor de leis universais da natureza; 2) Uma matéria, isto é, um fim, e a fórmula en-tão expressa o seguinte: o ser racional deve ser-vir como fim segundo a sua natureza e, portanto, como fim em si mesmo; toda máxima deve então servir de condição restritiva de todos os fins mera-mente relativos e arbitrários; 3) Uma determinação integral de todas as máximas por meio daquela fórmula, qual seja: que todas as máxima, por legislação própria, devem concordar com a ideia de um reino possível dos fins como um reino da natureza (KANT, 2002, p. 68).

A ação por si só terá que ser universal pelo valor das leis universais. O que se busca diante de um pensamento jurídi-co kantiano é que as leis propostas pelos legisladores e instru-mentalizadas pelo judiciário sejam iguais, preservando o artigo 5º da Constituição Federal, já elencado acima: é buscar uma lei que seja ela dentro da sua essência, como fim último, sem necessidade de algo a mais ou de súmulas provocadas pelos Supremos Tribunais. Mas, vislumbra-se a questão da dignidade humana, que os sujeitos esclarecidos, de autonomia e de von-tade saibam, através da máxima kantiana, estabelecer o que é a essência da dignidade humana, que condiciona-se pela ação racional, por dever, pela construção da autonomia, que somente é plausível se os sujeitos forem esclarecidos.

Uma sociedade justa, no sentido deontológico do dever, somente será possível quando a dignidade humana, enaltecendo o preâmbulo constitucional, for realizada em suas condições de

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concretude. Se os sujeitos fossem esclarecidos, como ressalta Kant, saberiam da necessidade do uso de sua razão. Contudo, seria ingenuidade pensar na autonomia de todos os cidadãos, mas pedir aos legisladores que se esclareçam e que ousem sa-ber, que atinjam a condição do uso público da razão, parece salutar. Na hermenêutica kantiana, tem-se, como principal ensi-namento, o fato de que somente leis serão universalizáveis, se estiverem livres de condições instrumentais. Caso sejam leis em si, fomentadas em vistas do dever, e aplicadas na medida do dever, atinjam o público tornando-se leis legítimas e realizadoras da dignidade humana.

Ainda de acordo com Kant (2002), o sujeito deve seguir a lei, já que a mesma expressa a vontade unida de todos. Contu-do, dentro de uma autonomia, de uma reflexão sobre a questão da liberdade, do aceitar ou não a lei, haja vista, que ao nascer o ser já se depara com a norma, e vivencia essa até a fase que começa a entrar em contradição, buscando esclarecimento para sua vontade ressaltar.

Nessa linha kantiana, a razão conhece a norma e estabe-lece mecanismos racionais epistemológicos para se sanar. O ser vê as alternativas que lhe são apresentadas, mediante essas, começa a apreciar os valores que cada um carrega. Essa apre-ciação cairá no campo do imperativo hipotético, da experiên-cia, que confrontará com a razão e consequentemente para um novo valor, princípio sobre determinado assunto, utilizando-se de sua autonomia. Por sua vez, para que esse valor seja aceito pela comunidade em que vive, tal valor deve atingir a universali-dade, deve tornar-se princípio (KANT, 2002). O artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal traz:

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Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado De-mocrático de Direito e tem como fundamentos: inciso III – a dignidade da pessoa humana (BRA-SIL, 1988).

A questão é como formar um princípio baseado na uni-

versalidade, e que esse seja a atmosfera para todas as resolu-

ções dos problemas jurídicos. Portanto, caso o sujeito trabalhe

no viés da racionabilidade, ou seja, lança-se assim a busca de

que só a razão poderá propiciar o caráter de julgo de dignidade.

Elevar a razão ao ponto fundante de toda explicação é a es-

tratégia kantiana, tendo a dignidade boa em si, sem adjetivos

posteriores. A razão poderá sim, em partes, oferecer mecanis-

mo como pauta para estabelecer o que é dignidade, pois, cada

ser tem em si um princípio de valor, ou seja, de ideia de ideal.

Como é abordado no artigo 5º da Constituição Federal de 1988,

há vários valores principiológicos tangíveis à educação, saúde,

lazer, esporte, cultura, família, tantos outros, sendo perceptível

que, por vezes, esses estão condicionados a algo, e como es-

tão condicionados deixam de ser categóricos e passam a ser

hipotéticos, diferentemente da dignidade que, por si só, se dá

uma conotação de essência. Mas, a esfera dela é macro, não

é micro, muito menos meso. Alça voo a região macro, pelo fato

de que a dignidade, tanto aqui, como em outra parte do mundo,

será a mesma: essa universalidade é que propõe Kant, desde

outrora, no século XVIII, oferecendo uma resposta tanto para a

dignidade quanto para uma possível hermenêutica que rejeite a

instrumentalidade valorativo/hipotética.

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É notória essa questão jurídico-filosófica sobre a dignida-de, por se ter um leque avassalador de compreensões. Sarlet aproxima-se de Kant, ao definir a dignidade:

[...] a dignidade – como já restou evidenciado – passou a ser habitualmente definida como consti-tuindo o valor próprio que identifica o ser humano como tal, definição esta que, todavia, acaba por não contribuir muito para uma compreensão sa-tisfatória do que efetivamente é o âmbito de pro-teção da dignidade, pelo menos na sua condição jurídico-normativa (SARLET, 2009, p. 18).

Dentro do ordenamento jurídico, quando se faz a lide da busca, para realçar o princípio da dignidade humana que fora violado, o magistrado busca em seu ser um princípio que viven-ciará durante sua jornada humana social, e formulará juízos que acarretam ser profícuos para a lide. Porém, na outra via está o advogado, que também dentro de sua concepção apresenta o que seja o princípio da dignidade da pessoa humana, e que seus valores imperam sobre os demais, digo valores, no quesito dignidade. Da mesma forma, a pessoa que aciona os meios jurídicos tem seu princípio do que seja dignidade e por isso acio-nou-o, em vista à parte infligidora. Percebe-se que, dentro de um processo jurídico, tem-se não uma formulação do que seja o princípio de dignidade humana, mas vários conceitos. Como caracterizar o que seja esse princípio, se para cada um é distin-to, mas que dentro de um mundo filosófico e jurídico tem uma premissa da dignidade humana como forma ideal. Incutido a tal

perspectiva conflituosa, buscou-se utilizar a formulação kantia-na como resposta.

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Nalini (2008) observa que há diferenças entre o direito e a moral, sendo a moral autônoma e o direito heterônomo. A ação moral manifesta-se quando o sujeito realiza, faz, promove algo, que não seja contraditório à sociedade, buscando um bem universal. Assim, o que traz o fundamento da lei moral são os princípios racionais apriorísticos. A lei, cuja exteriorização deve representar o móvel da conduta eticamente boa, é o imperativo categórico. De todos os atos que o sujeito realiza socialmente, esse estará carregado de valor, independentemente de ser po-sitivo ou não. O ato é moralmente valioso quando representa observância de uma norma que o sujeito autonomamente gerou para si. Por isso, a lei moral deve estar fundamentada na razão, longe de qualquer vício para encontrar o conceito dignidade pes-soal (NALINI, 2008).

Em Kant, o direito se distingue da moral porque esta últi-ma busca uma espécie de prática da lei por si mesma: o sujeito estipula autonomia: auto, vem do grego, ‘de si mesmo’, acrescido de nomos, ‘lei’, que quando combinados são entendidos como ‘aquele que estabelece suas próprias leis’. Kant ainda comenta que o direito é semelhante à forma da moralidade, por emanar dela mesma. Expressa na obra da Metafísica dos Costumes:

Manter os próprios compromissos não constitui de-ver de virtude, mas dever de direito, a cujo cumpri-mento pode-se ser forçado. Mas prossegue sendo uma ação virtuosa (uma demonstração de virtude) fazê-lo mesmo onde nenhuma coerção possa ser aplicada. A doutrina do direito e a doutrina da virtu-de não são, consequentemente, distinguidas tanto por seus diferentes deveres, como pela diferença em sua legislação, a qual relaciona um motivo ou o outro com a lei (KANT, 2003, p. 73).

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Percebe-se que a busca da lei universal é constante e dirimida pelo esclarecimento, o qual faz com que a dignidade da pessoa humana seja fundada numa razoabilidade da essência. Essa essência apresenta-se no valor moral da ação. Segundo Kant, o valor não reside no efeito que se espera alcançar, e tam-bém não reside em qualquer princípio da ação que precise pedir o seu móbil. Mas, nada mais que a representação da lei, da dignidade como em si mesma. Essa realização da dignidade em si mesma está condicionada ao sujeito racional, não esperando efeito algum, determinado pela vontade, o que consistirá numa ação moral (MASCARO, 2012).

Por isso, os imperativos categóricos ofertam a susten-tação para o princípio da dignidade humana e fundamentam o direito, além de sua possível compreensão. No pensamento kantiano, o direito justo é aquele que visa ao bem comum, sen-do importante apenas a forma da relação entre livres e iguais. Assim, para Kant, o direito justo é o pensado, e não necessita nem de confirmação nem de correções da realidade. O mesmo deveria ser expresso na máxima do imperativo categórico, tendo um fim em si mesmo, e distanciando-se de finalidades instru-mentais do sistema.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A lapidação sobre a dignidade da pessoa humana através do pensamento kantiano, isto é, do imperativo categórico, é de-monstrar que há uma constante busca, dentro do ordenamento jurídico, pela questão da essência do princípio da dignidade hu-mana desde o século XVIII. O foco foi analisar a essência desse

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princípio que rege a Constituição Federal, além de todos os ou-tros diplomas jurídicos, com o fim de estabelecer um parâmetro que possa ser fio condutor desse princípio dentro dos entraves jurídicos, no sentido de sua universalização.

Ao abordar tal princípio, através da perspectiva kantia-na, almejou-se buscar uma perspectiva jurídica como fonte de resolução dos entraves jurídicos: dos problemas ontológicos envoltos nesse princípio que pertencem à esfera da vida hu-mana e das ações do sujeito frente aos demais, inseridos no Estado de direito.

Kant quer, através do esclarecimento, visualizar a cons-trução do sujeito autônomo, capaz de decidir de modo autôno-mo, fazendo o uso de sua razão. O Julgador é esse indivíduo que ontologicamente tem o dever de ser um sujeito virtuoso e para tanto não basta uma ação boa, mas uma constante moral. Hermeneuticamente, é tarefa jurídica que os sujeitos racionais, que tendo a priori ferramentas intelectivas, possam ordenar em hierarquias, o valor da dignidade frente às ações humanas, e, de maneira jusmetafísica, seguir o caminho da boa vontade, que é a aceitação de uma lei pelo caráter do dever [sollen], com o fim de evitar quaisquer inclinações.

O esclarecimento é o caminho: ora para a execução da autonomia; ora da possibilidade da pergunta; ora do porquê que segue a lei, ou qualquer outra normativa intrínseca à sociedade. Possibilidades essas que estão esboçadas por Kant no direito e na moralidade desde o século XVIII, como caminho para fomen-tar uma sociedade livre, igual e justa.

Enfim, que a abordagem filosófico-jurídica aqui desen-volvida possa suscitar maiores avanços no que concerne ao

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desenvolvimento do entendimento da dignidade da pessoa hu-mana no julgo constitucional, pois é uma episteme ainda a ser debatida nos corredores das academias inerente a perspecti-vas jusfilosóficas.

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SUSTENTABILIDADE AMBIENTAL: UM PRIN-CÍPIO FUNDAMENTAL, UM DIREITO COLE-TIVO E UM PENSAR CONSCIENTE COM FIO

CONDUTOR NA CONSTITUIÇÃO

Cleiton Lixieski Sell1

Fátima Fagundes Barasuol Hammarströn2

RESUMOO estudo deste trabalho visa auferir uma análise histórica da evolução do direito ambiental, abordando a realidade em que o planeta Terra encontra-se, destacando os principais aconteci-mentos que deram origem à incansável busca pela conscienti-zação ambiental, cujos efeitos foram identificados em razão da forte e descontrolada influência antrópica movida pela ganância e a obsessão em busca do poder individualista, inobservando as consequências que delas advêm. Para tanto, foram criadas me-didas para evitar as infringências ambientais que estão ocorren-do, como a Conferência de Estocolmo, o Relatório Brundlant, a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desen-volvimento em 1992 - edição da Agenda 21 Brasileira, o Proto-colo de Quioto e a Rio + 20. Tais medidas servem para balizar a importância em rever princípios que foram inseridos desde os primeiros graus escolares, segundo os quais devem ser cultiva-dos valores morais sobre as necessidades que o meio ambiente carece. No momento em que não se tem mais o respeito com a proteção do meio ambiente, ignoram-se legislações, normas e condutas que, entretanto, tornam-se incompatíveis como seres 1 Acadêmico do curso de Direito da Universidade de Cruz Alta – UNICRUZ. Integrante dos Grupos de Pesquisa em Direito da Sociobiodiversidade (GPDS) da Universidade Federal de Santa Maria - UFSM, Grupo de Pesquisa Jurídica em Cidadania, Democracia e Direitos Humanos - GPJUR, ambos registrados no Diretório de Grupos do CNPq. Bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC) da UNICRUZ. [email protected] 2 Mestre em Desenvolvimento pela Universidade Regional do Noroeste do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ; pesquisadora da CAPES; membro do grupo de Pesquisa Jurídica em Cidadania, Democracia e Direitos Humanos – GPJUR - UNICRUZ; Docente da Graduação e Pós-Graduação da Universidade de Cruz Alta – UNICRUZ. [email protected]

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humanos. A sustentabilidade ambiental surgiu como uma alter-nativa alinhavada ao texto Constitucional, presando pelos pilares da proteção ambiental previstos no capítulo específico sobre o meio ambiente, contemplando o desenvolvimento sustentável e trazendo paralelamente aspectos que influenciam na busca pelas soluções ambientais efetivas. Contudo, cabe salientar que os remédios aplicados aos impactos ambientais deixam de surtir os efeitos esperados, uma vez que são brandos à luz das con-sequências que decorrem das infringências ambientais, ressar-cindo os prejuízos apenas financeiramente, não devolvendo ao meio ambiente o que lhe foi tirado.

PALAVRAS-CHAVE: Sustentabilidade, Meio ambiente, Constituição.

ABSTRACT The study of this work aims to obtain an historical analysis of the evolution of environmental law, addressing the reality that the planet earth is found, highlighting key events that led to relentless pursuit of environmental awareness, the effects of which have been identified due to the strong and uncontrolled human influence driven by greed and the pursuit of individualistic obseção in power, inobservando the consequences which comes. Therefore, we created measures to prevent environmental infringências taking place, such as the Stockholm Conference, the Brundlant Report, the United Nations Conference on Environment and Development in 1992 - edition of the Brazilian Agenda 21, the Kyoto Protocol and the Rio + 20. Such measures serve to mark the importance of reviewing the principles that have been entered since the early school grades, which should be cultivated moral values on the needs of the environment is needed. At the moment we have no more respect to environmental protection, it ignore laws, rules and behaviors that however if tornan - incompatible as human beings. Environmental sustainability has emerged as an alternative stitched the Constitutional text, presando by the pillars of environmental protection provided for

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in the chapter on the environment, sustainable development and contemplating bringing parallel aspects that influence the search for effective environmental solutions. However it should be noted that the remedies in the environmental impacts stop delivering the expected results, since they are soft light of the consequences arising from environmental infringências, reimbursing the prejuísos only financially not returning to the environment that has been taken away.

Keywords: Sustainability, Environment, Constitution.

1 APONTAMENTOS QUE BALIZAM A SUSTENTABILIDADE

AMBIENTAL

Em um primeiro momento, para a análise, é fundamen-

tal destacar que os danos ambientais sempre aconteceram e

sempre vão ocorrer de uma forma ou de outra. Um exemplo são

as famílias que vivem em zonas rurais, em situação de subsis-

tência, que acabam sendo forçados a causar desmatamentos

ou realizar queimadas com o intuito de alargar sua demanda no

cultivo de produtos ou até mesmo para produzir alimentos para

sua própria sobrevivência.

Nesse viés, deve ser levado em consideração que existe

uma diferença entre o necessário e o exorbitante, sendo que, a

partir do excesso, sai da lógica de consumo, ocorrendo eviden-

temente os profundos impactos ambientais que na maioria das

vezes são irreversíveis em relação ao retorno positivo ao meio

ambiente onde foram explorados.

A partir do fim da guerra fria, na década de 80, o capi-

talismo foi intensificado diante da guerra contra o comunismo,

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nascendo um importante fenômeno denominado globaliza-ção3, que acompanha diversas transformações socieconômi-cas que deixam a questão do consumismo ainda mais próximo, uma vez que, para que um país com capital financeiro pudesse prosperar, deveria ter consumo interno do produto ou até mes-mo o produto externo.

Em meados do século XIX, as preocupações eram direcio-nadas para a questão do crescimento populacional, em que se tinha um constante e insistente objetivo por parte das famílias em gerar vários filhos, para que pudessem ter o maior número de mão de obra possível para ser utilizada na produção agrícola. Contudo, em plena 2ª Guerra Mundial, por volta da década de 40, quando os Estados Unidos da América lançou as bombas nucleares sobre as Cidades Japonesas de Hiroshima e Nagasa-ki, foi evidenciado o poder que o homem já tinha naquela época.

Trazendo para a área do direito, mais precisamente para o direito ambiental no Brasil, há algum tempo sobre fortes con-flitos entre interesse público e privado, a questão preocupante que toma forma é a contrainformação lançada aos indivíduos a respeito da questão que envolve a situação-problema em que o meio ambiente se encontra.

O desenvolvimento do trabalho foi sustentado através de uma revisão bibliográfica, tendo como indicativo o método dedu-tivo, também denominado como hipotético por alguns autores. Dessa forma, fundamentou-se em leituras e fichamentos de au-tores que abordam os temas discutidos, construindo-se hipóte-ses que foram confrontadas com fatos obtidos pelos impactos ambientais explanados no decorrer do texto. 3 O fenômeno da globalização surgiu como forma de integrar os processos realizados entre os países.

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Mesmo com a existência de legislações que precederam as atuais, Séguin (2006) alerta que as legislações ora vigentes trazem aspectos que visam a preocupações sanitárias, urbanas, de falta de água, florestais, entre outras normas, bem como a pressão que a própria economia faz, visando atender à demanda que o mercado consumidor precisa para manter viva sua produ-ção, circulação e consumo.

Com as legislações ambientais atuais, os mercados já adotaram a política de proteção ambiental inseridas em um con-texto socioambiental, sendo colocados em ordem preferencial aos objetos que possam interferir na degradação do ambiente.

2 CONSTATAÇÃO DA CRISE AMBIENTAL E SUA RESPONSA-BILIZAÇÃO

Como mencionado anteriormente, a preocupação am-biental nasce desde o período em que todo o território do Brasil ainda era Colônia, pois era de interesse a preservação de tal ordem para manter as relações de trabalho e cultivo, como solos férteis para plantação. Essa preocupação, segundo Sirvinskas (2013), tinha um fundo econômico, pois, na medida em que eram derrubadas florestas, desvios de rios, queimadas, logo es-gotariam os recursos naturais explorados naquela região, pois havia uma forte atração de países como Holanda, França e os próprios Portugueses pela exploração de minérios oferecidos em grande escala, bem como a própria madeira de lei, que conti-nua tendo alto valor financeiro de comércio. Com esses fatores incontroversos à época, mostram-se registros das origens dos problemas ambientais que hoje atingem números assombrosos.

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Portanto, cresce de importância analisar o contexto his-tórico da crise ambiental, pois, somente com esse registro, em que se identificam as raízes que deram origem aos impactos ambientais, é que se podem efetivamente propor alternativas que amenizem os impactos ao meio ambiente.

Tomando como ponto inicial em relação aos princípios, os seres humanos de uma forma geral têm a tendência agressi-va ao meio ambiente, e que somados com a ambição financeira passam a ser motivados pelo consumismo exorbitante, tornan-do-se incontroláveis e absurdamente cegos no que se refere à proteção ambiental.

Tendo como azimute os impactos ambientais, na déca-da de 80 ocorreram profundas catástrofes ambientais, deixando consequências até os dias de hoje. No entanto, é válido des-tacar que, nesse período, houve um pleno avanço e aperfei-çoamento dos modelos econômicos existentes, trazendo novas lesões ambientais ao meio ambiente e à biodiversidade.

Como pressuposto fundamental para a proliferação da espécie humana, é imprescindível a existência em um meio am-biente equilibrado, pois a infringência ambiental que ocorre em todos os níveis, torna-se irreversível do ponto de vista científico e biológico, pois causam alterações em todo planeta Terra.

O conceito de meio ambiente propriamente dito é exten-so, pois a Carta Magna de 1988 contemplou tudo aquilo que se relaciona à vida e está inserido no planeta. Nesse viés, Macha-do (2006) esclarece que em outros países, como a Espanha, a utilização de bens comuns ameaçará as próprias condições de utilização da coletividade, como também nos Estados Unidos da América, onde a questão ambiental não fica apenas no ramo de

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condições físicas como o ar ou a água, mas também as condi-ções existentes, como a saúde dos indivíduos e a sociedade.

O problema ambiental deve ser tratado desde sua origem, no entanto, nesses termos Leff (2009, p. 22) prescreve que:

A problemática ambiental surge nas últimas dé-cadas do século XX como o sinal mais eloquente da crise da racionalidade econômia que conduziu o processo de modernização. Diante da impossi-bilidade de assimilar as propostas de mudanças que surgem de uma nova racionalidade (ambien-tal) para reconstruir as bases éticas e produtivas de um desenvolvimento alternativo, as políticas do desenvolvimento sustentável vão desativando, di-luindo e deturpando o conceito de ambiente.

O termo crise ambiental já pulsa desde a era industrial, quando começam a surgir os interesses do homem pela domi-nação e arrecadação do capital. Em meio a importantes evolu-ções legislativas de proteção do meio ambiente, a consciência da existência da crise ambiental ainda está desprezada, pois os interesses individuais estão acima de qualquer norma ou legis-lação, vindo a ser ignoradas friamente.

Para entender o princípio dessa preocupação, é preciso antes entender o que vem a ser a crise ambiental instalada. Nesse sentido, Leite (2000, p. 21) traz o seguinte conceito de crise ambiental, “a escassez de recursos naturais e as diversas catástrofes em nível planetário, surgidas a partir das ações de-gradadoras do ser humano na natureza. […]”.

O interesse em proteger o meio ambiente passou a ser incorporado no mundo moderno a partir da Conferência das Na-ções Unidas em Estocolmo, em junho de 1972, pela Declara-

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ção do Meio Ambiente. Face às transformações desmedidas do mundo, à participação democrática do povo na vida em socie-dade e à ambição econômica frente ao regime capitalista em que vivemos, surgiu a necessidade de tutelar o bem comum da sociedade que é o meio ambiente.

A constatação da crise ambiental neste capítulo leva à urgente necessidade de uma transformação nos processos de conhecimento da problemática ambiental, a qual não se limi-ta exclusivamente à preservação da diversidade biológica, mas também uma participação efetiva da sociedade na reconstrução do próprio exercício da vida na cidadania em prol de soluções sociais viáveis.

Estudos de renomados doutrinadores, como Sérgio Ca-valieri Filho, Silvio de Salvo Venosa e Pablo Stolze, revelam que os princípios da responsabilidade ambiental somente surgiram na solução de diversos casos de todas as espécies por juízes, pretores e jurisconsultos, servindo de respostas às necessidades na sociedade naquela época.

O sentido histórico da palavra responsabilidade exprime a ideia de obrigação, encargo e contraprestação. Nesse sentido, Filho (2012, p. 02) afirma que:

[...] Em sentido jurídico, o vocábulo não foge des-sa ideia. A essência da responsabilidade está liga-da à noção de desvio de conduta, ou seja, foi ela engendrada para alcançar as condutas praticadas de forma contrária ao direito e danosas a outrem.

Designa o dever que alguém tem de reparar o pre-juízo decorrente da violação de um outro dever jurídico.

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Em relação aos agentes causadores dos danos ambien-tais, normalmente são causados pelo Estado ou grandes corpo-rações econômicas, através de empresas estatais instaladas, como água, gás, minérios, entre outros. Diante desse aspecto infringente dos órgãos, houve a necessidade de responsabilizar as pessoas jurídicas por danos causados à natureza, pois tam-bém contribuem para os danos ambientais.

A degradação do meio ambiente que assola a sociedade contemporânea está diretamente associada à crise social, pois esta é uma das ensejadoras daquela. Dessa maneira, não há o que se falar em desenvolvimento sustentável sem associar a um desenvolvimento social equitativo, uma vez que os seres huma-nos são responsáveis por suas condutas, e a partir daí refletem suas ações para a sociedade, sendo positivas ou negativas.

As pessoas jurídicas de direito interno podem ser res-ponsabilizadas pelas lesões que causarem ao meio ambiente. A Lei da Política Nacional do Meio Ambiente4 definiu, em seu art. 3º5, o que se trata a respeito de meio ambiente e quais são as condições que caracterizam a infringência ambiental.

O meio ambiente está sendo brutalmente ameaçado, e o direito a um meio ambiente saudável deve vir em seu socorro, com aplicação de mecanismos efetivos de prevenção ou proteção para melhor defesa contra as agressões da sociedade moderna. O direito do ambiente é uma descrição do direito existente, sen-do um portador de uma mensagem do futuro e da antecipação, 4 BRASIL. Lei Nº 6.938, de 31 de agosto de 1981. Política Nacional do Meio Ambiente. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6938.htm>. Acesso em: 28 jan. 2015. 5 Art 3º - Para os fins previstos nesta Lei, entende-se por: I - meio ambiente, o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas; II - degradação da qualidade ambiental, a alteração adversa das características do meio ambiente; III - poluição, a degradação da qualidade ambiental resultante de atividades que direta ou indiretamente:[…].

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graças à qual o homem e a natureza formaram um relaciona-mento imprescindível para a perpetuação da espécie humana.

3 A SUSTENTABILIDADE COMO CRITÉRIO IMPRESCINDÍVEL PARA RACIONALIDADE AMBIENTAL

A respeito do significado da palavra sustentabilidade, faz-se necessário entender o motivo pelo qual tanto é divulgado e mencionado nos meios de comunicação social. Devido à deses-truturação da sociedade contemporânea, esse fato se deve aos fatores que estão ligados com o fundo econômico, em que se identificam divergências nos preceitos elencados como susten-tabilidade ambiental e desenvolvimento sustentável.

Nesse sentido, Leff (2009) é muito feliz em abordar que, para a construção do saber ambiental voltado para um desen-volvimento sustentável, é necessária a desconstrução da racio-nalidade capitalista que está vigente atualmente, sendo a es-sência da problemática ambiental, para que assim seja possível a construção de nova racionalidade, qual seja a racionalidade ambiental, que dê legitimidade a todos os atores sociais para intervirem em tal desenvolvimento de forma consciente e com a ressignificação de conceitos materialistas e econômicos.

Essa racionalidade ambiental mencionada está baseada em uma nova ética e com princípios, valores e identidades cul-turais que dão sentido à existência da vida humana, capaz de mobilizar e reorganizar a sociedade, visando à transformação das estruturas do poder e associadas à ordem econômica esta-belecida, orientando assim a transição para um desenvolvimen-to sustentável.

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Neste campo de estudo, não podem ser esquecidos os avanços ocorridos nas legislações ambientais, pois leis foram editadas para prever as condutas que causam impactos no meio ambiente. No tocante à sustentabilidade ambiental, está direcionado um crescimento econômico sustentável, em que são adotados mecanismos capazes de reduzir os danos causa-dos ao meio ambiente e propiciar novas fórmulas de operacio-nalização dos processos.

Baseado em princípios a que a sustentabilidade se pro-põe, como o do consumo sustentável, é fundamental entender que, para se ter um país mais sustentável, deve-se incutir na mente dos indivíduos a ideia de proteger as raízes que estão presentes dentro do desenvolvimento econômico, como o con-sumo excessivo, que faz com que sejam aplicadas medidas mais conscientes, visando amenizar os problemas ambientais futuros.

Quando se refere a sustentabilidade, Machado (2013) estabelece que não pode ser deixada de lado a equidade in-tergeracional, pois ambas estão interligadas, gerando um novo termo, denominado sustentabilidade ambiental que indiscutivel-mente considera o desenvolvimento econômico e social, pas-sando a ser denominado em última análise de desenvolvimento sustentável6. Não obstante, somente a palavra desenvolvimen-to, seguindo a denominação inglesa, passa a ser uma interpre-tação de realizar um Estado em perfeitas condições, não bas-tando apenas crescer, mudar e evoluir, mas entender, por meio da razão, os objetivos que justifiquem tais mudanças.

As palavras sustentabilidade e consumismo estão inter--relacionadas, estabelecendo funções que caracterizam os as-6 O termo desenvolvimento sustentável foi abordado pela primeira vez no documento Our Common Future (Nosso Futuro Comum), também conhecido como Relatório de Bruntland, em 1987.

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pectos associados ao desenvolvimento sustentável. No entanto, o antagonismo existente entre sustentável e desenvolvimento relaciona-se com aspectos econômicos tidos como mandantes da última ratio em matéria de interferências ambientais.

Na medida em que os aspectos econômicos se tornam mais relevantes do que os aspectos morais, deixa-se levar pela inobservância dos princípios que regem um meio ambiente equilibrado em que os seres humanos o desconsideram em todos os sentidos, vindo a negligenciar valores culturais que possibilitam reconstruir os processos que auxiliam na recupe-ração do cenário ambiental.

O direito ambiental, por si só, exerce autonomia possuin-do regime jurídico com princípios e outras legislações nacionais e internacionais. Sirvinskas (2013) lembra que nenhum ramo do direito caminha isoladamente sem levar em consideração os demais ramos, sendo que alguns conceitos são extraídos e adaptados ao direito ambiental, que, por sua vez, ganharam es-paço nas relações de que dispõem a fiscalização dos órgãos competentes do Estado.

Os questionamentos que foram abordados em relação ao desenvolvimento sustentável dizem respeito à massa da so-ciedade, pois são os cidadãos que têm a capacidade de arti-cular medidas frutíferas para estimular a conscientização dos indivíduos, que na maioria das vezes é limitada em virtude de sustentar paradigmas desenvolvidos ao longo do tempo, em que valores morais são idealizados como mercado de capitais, impe-dindo que a ordem prioritária seja o meio ambiente em relação ao desenvolvimento sustentável.

Especificamente nesse aspecto, Leff (2009) reitera que o

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desenvolvimento sustentável teve espaço nas políticas ambien-tais como estratégias utilizadas para a participação social da população, similarmente aos partidos políticos, onde indivíduos se uniam com os mesmos ideais para integrar objetivos comuns e trabalhar esforços para proporcionar a melhor gestão no país, em busca de uma melhor qualidade de vida.

No tocante à responsabilidade ambiental, Medeiros (2014) preconiza que a CF/88 prescreve a responsabilidade ob-jetiva que recai sobre o Estado para com os lesados, excepcio-nando, todavia, ao servidor público a responsabilidade subjetiva. Nesse sentido, ocorre que, em conformidade com o prescrito no §1º do artigo 225 da CF/887, ao Poder Público foi imposto o dever de implementar a proteção ambiental, sendo-lhe conferi-da a função de gestor e administrador dos bens ambientais que constituem um “patrimônio” que deve ser resguardado não só às gerações presentes, mas igualmente às futuras.

A atuação do Poder Público em tema ambiental também está disciplinada no art. 2º, incisos I, III, IV, V e IX da Lei de Po-lítica Nacional do Meio Ambiente8. A Lei dos Crimes Ambientais9 reordena a legislação ambiental brasileira no que se refere às infrações e punições sobre a infringência no meio ambiente, e a 7 Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.§ 1º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:[…]. II - preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético;8 Art 2º - A Política Nacional do Meio Ambiente tem por objetivo a preservação, melhoria e recuperação da qualidade ambiental propícia à vida, visando assegurar, no País, condições ao desenvolvimento sócio-econômico, aos interesses da segurança nacional e à proteção da dignidade da vida humana, atendidos os seguintes princípios: I - ação governamental na manutenção do equilíbrio ecológico, considerando o meio ambiente como um patrimônio público a ser necessariamente assegurado e protegido, tendo em vista o uso coletivo; […]. Ill - planejamento e fiscalização do uso dos recursos ambientais;IV - proteção dos ecossistemas, com a preservação de áreas representativas; V - controle e zoneamento das atividades potencial ou efetivamente poluidoras; […]. 9 BRASIL. Lei Nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998. Lei das sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9605.htm>. Acesso em: 28 jan. 2015.

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partir de então a pessoa jurídica autora ou coautora da infração ambiental pode ser penalizada.

A Lei que disciplina a ação civil pública de responsabilida-de por danos causados ao meio ambiente10 ampliou ainda mais o rol dos legitimados para agir na proteção do meio ambiente, fortalecendo o instrumental para reparação dos danos e preven-do a possibilidade de instauração de inquérito civil para apurar danos ao meio ambiente.

Um dos traços marcantes da história em relação a ques-tões ambientais foi a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente, ocorrida no período de 5 a 16 de junho de 1972, em Estocolmo. Essa declaração é o primeiro grande congresso internacional envolvendo 113 países, em que foram abordadas questões referentes aos critérios e princípios comuns para se-rem oferecidos aos povos do mundo que buscavam inspirações para preservar de forma mais consciente e humana os recursos naturais11.

Foi a partir desse evento que tiveram origem duas gran-des ideias que são o meio ambiente ecologicamente equili-brado e o desenvolvimento do país similarmente. Contudo, o homem construiu a história do meio ambiente ao seu redor, caminhando em passos largos para o avanço da ciência e da tecnologia, adquirindo poder de transformar o que lhe cerca nas mais diversas formas.

Nesse congresso, foram discutidos 26 (vinte e seis) prin-cípios, sendo preceituado no primeiro artigo da Declaração a consonância com a CF/88 no tocante aos direitos fundamentais 10 BRASIL. Lei Nº 7.347, de 24 de julho de 1985. Dispõe sobre a ação civil pública de responsabilidade. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7347orig.htm>. Acesso em: 28 jan. 2015.11 ONU. Declaração da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano - 1972. Disponível em: <http://www.apambiente.pt/_zdata/Politicas/DesenvolvimentoSustentavel/1972_ Declaracao_Estocolmo.pdf>. Acesso em: 28 jan. 2015.

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de liberdade, igualdade e o de ter uma vida casta e decente, tendo sempre o dever de cuidar e proteger o meio ambiente. De uma forma geral, todos os princípios discutidos norteiam a ques-tão da preservação em relação aos recursos naturais, evitando aglomerações de substâncias tóxicas e o destino incorreto do lixo que é produzido por toda sociedade.

No ano de 1997, foi editado o Protocolo de Quioto12, tratando sobre a convenção do clima, no qual os governos re-conheceram que futuramente as ações enérgicas do homem levam a consequências extremas. A primeira conferência das partes foi realizada em Berlim, no ano de 1995, tendo como compromisso analisar as emissões de gases equiparadas aos níveis da década de 90, quando foi constatado que se tornava difícil atingir o objetivo proposto para impedir a interferência an-trópica no sistema climático.

Durante a conferência realizada em Quioto no Japão em dezembro de 1997, adotou-se que os países industrializados deveriam diminuir suas emissões de gases poluentes em pelo menos 5% no período de 2008 a 2012. O protocolo foi aberto para assinatura em março de 1998, entrando em vigor 90 (no-venta) dias após ser ratificado por pelo menos 55% das partes que participaram da conferência, dentre eles incluindo-se tam-bém países desenvolvidos que contabilizam 55% dos emissores de dióxido de carbono13.

De acordo com o Protocolo de Quioto14, as partes in-cluídas devem individualmente ou conjuntamente assegurar as 12 Documento editado e traduzido pelo Ministério da Ciência e da Tecnologia com o apoio do Ministério das relações exteriores da República Federativa do Brasil.13 BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. Protocolo de Quioto. Disponível em: <http://www.mma.gov.br/clima/convencao-das-nacoes-unidas/protocolo-de-quioto>. Acesso em: 28 jan. 2015. 14 BRASIL. Ministério da Ciência e Tecnologia com o apoio do Ministério das Relações Exteriores.Protocolo de Quioto à Convenção sobre Mudança do Clima. Disponível em: <http://mudancasclimaticas.cptec.inpe.br/~rmclima/pdfs/Protocolo_Quioto.pdf>. Acesso em: 28 jan. 2015.

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emissões de dióxido de carbono quantificados em sua limi-tação e a redução de emissões em 5% a menos em relação a 1990. Contudo, cada país acordado no protocolo deveria se submeter ao estabelecimento do seu nível de estoque de carbono atual, pois o mesmo serviria para estimativa para os anos subsequentes.

No ano de 1996, foi construído sob coordenação da Co-missão de Políticas de Desenvolvimento Sustentável (CPDS)15 e a Agenda 21 Brasileira, que foi um programa com força política bem como institucional, passando a ser um importante docu-mento que tinha como núcleo a sustentabilidade, estando dessa forma diretamente ligado com as diretrizes da política ambien-tal. Além disso, esse documento é um guia para os processos de união da sociedade para melhor compreensão dos conceitos como cidadania, desenvolvimento sustentável.

Os desafios a que o programa da Agenda 21 se propõe dizem respeito à transmição de todas as diretrizes ambientais prioritárias para serem executadas no mais breve período pos-sível. As principais atividades desenvolvidas nos anos de 2003 e 2004 refletem a proporção que chegou, sendo descentraliza-das na sociedade as seguintes atividades16: Ampliação da CPDS (Comissão Política de Desenvolvimento Sustentável); a realiza-ção do 1º Encontro das Agendas locais; a criação de um Pro-grama de formação em Agenda 21, prevendo a formação de 10 mil professores das escolas públicas do país; a participação na consolidação da frente parlamentar mista, apoiando as Agendas 21 locais, com o objetivo de articular o Poder Legislativo para 15 Ministério do Meio Ambiente. Agenda 21 Brasileira. Disponível em: <http://www.mma.gov.br/responsabilidade-socioambiental/agenda-21/agenda-21-brasileira>. Acesso em: 28 jan. 2015. 16 Ministério do Meio Ambiente. Agenda 21 Brasileira. Disponível em: <http://www.mma.gov.br/responsabilidade-socioambiental/agenda-21/agenda-21-brasileira>. Acesso em: 28 jan. 2015.

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ter mais difusão e maior fluência nos níveis Federal, Estadual e Municipal; a confecção, bem como o monitoramento do edi-tal 02/2003 de construção de Agendas 21 locais, incluindo a participação e capacitação de gestores Municipais e de ONGs (Organizações não Governamentais), sendo planejados e pos-teriormente aprovados com financiamento 64 projetos de todas as regiões do Brasil; e ainda foram publicados uma série de cadernos e exemplares de debate da Agenda 21, objetivando contribuir com os caminhos do desenvolvimento sustentável.

Em complemento às conferências, acordos e diretrizes realizados, ainda no ano de 2012 foi realizada a Conferência da Rio + 20, na cidade do Rio de Janeiro-RJ. Esse evento não atingiu as expectativas dos ambientalistas, pois o que efetiva-mente ocorreu foi apenas uma reapreciação do que já havia sido discutido em Conferências e reuniões anteriores, e não uma reformulação das medidas estipuladas.

Os levantamentos e questionamentos apresentados pe-los representantes dos países participantes agregaram muito pouco em relação ao que se esperava, e como se não bastasse, os resultados ainda permaneceram obscuros, sendo imputados aos países membros sua parcela de responsabilidade em rela-ção aos problemas ambientais existentes.

Esses aspectos demonstram a infrutífera conferência que foi a Rio + 20, deixando uma falsa ilusão dos benefícios aplicá-veis no âmbito do Brasil e demais nações presentes, demons-trando que se está muito longe de atingir um desenvolvimento sustentável efetivo, no qual o meio ambiente e o desenvolvi-mento econômico passem a seguir caminhos paralelos e não antagônicos, como estão sendo vistos.

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4 MEIO AMBIENTE COMO DIREITO FUNDAMENTAL

Dentre os direitos fundamentais que a Carta Magna pres-creve, encontram-se a dignidade da pessoa humana, igualdade, democracia, liberdade, direito à identidade, cultura, entre ou-tros, sendo invioláveis a todos os seres humanos, uma vez que estão incorporados inclusive no direito à vida.

Na CF/88 está previsto o princípio que dá o direito ao meio ambiente a todos os brasileiros17. No entanto, há um para-lelo entre desenvolvimento econômico e proteção do meio am-biente, pois este deve estar conexo com aquele, empregando-se recursos naturais com mais humanidade para que então os objetivos possam ser protegidos com mais intensidade.

Também nesse viés Constitucional, teve-se uma preocu-pação maior por parte do legislador em prever a proteção do meio ambiente, sendo incluídas de forma a conscientizar os se-res humanos quanto à agressão ambiental. Nesse sentido, é vá-lido lembrar que as Constituições que antecederam a atual não traziam quaisquer dispositivos específicos que mencionassem a proteção ambiental em sua integralidade.

Essa previsão da proteção ambiental introduzindo valores, como a consciência ambiental, estimulou a sociedade para um viés mais protetivo com redução de agentes poluidores, como também um aumento dos agentes multiplicadores de ações positivas. As legislações existentes contemplam uma gama de direitos e deveres imensa, sendo que é preciso compreender a sua finalidade, pois os executores do processo serão os próprios indivíduos.17 Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações.

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Obedecendo aos princípios fundamentais, o direito ao meio ambiente passa a ser direcionado para satisfazer as pró-prias necessidades dos seres vivos, que se inter-relacionam para sobreviver no planeta. Fiorillo (2008) sustenta que essa pro-teção ocorre em todos os níveis, pois todos que vivem em um ambiente precisam dele para sobrevivência no universo, sendo por isso tutelados e protegidos na esfera do direito ambiental.

É importante analisar que os fundamentos Constitucio-nais do direito ambiental impulsionaram legisladores a ampliar o universo constitucional de proteção, no qual a aplicação desses direitos foram explorados de forma a atender as necessidades prementes que surgem com o novo cenário do planeta.

A concentração de capital nos países desenvolvidos em detrimento dos demais gera um assustador desequilíbrio social, que traz por consequência a pobreza, a miséria, a marginali-zação, dentre outros aspectos problemáticos de difícil solução, pois afetam não só os países subdesenvolvidos, mas geram re-flexos diretos nos países ricos que, por consequência, respin-gam no meio ambiente. Associado a esse fator, o alto índice de desemprego gerado pelo sistema de crescimento industrial dos países desenvolvidos levam à exclusão da segregação social, que é o cenário atualmente da sociedade.

Para Ramos (2009), o compromisso que CF/88 traz em sua redação deixa à mercê os reflexos de um direito consti-tucional ecologicamente equilibrado, originando deveres como a igualdade e a liberdade individual, traçando linhas para um Estado que toma iniciativa de dispersar os efeitos resultantes da necessidade de migrar com mais efetividade as tarefas de proteção ambiental.

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Contrapondo uma alternativa de implementação de po-líticas públicas pelo Estado, Leff (2009) preconiza que é ne-cessária uma interação entre todos os sujeitos envolvidos no desenvolvimento do país, para que se intervenha na crise am-biental como uma visão reflexiva e questionadora, ultrapassan-do a racionalidade econômica para que adentre na problemática social, econômica, política e ecológica, em busca de uma racio-nalidade ambiental que leva ao saber ambiental.

5 CONSUMO SUSTENTÁVEL X DESENVOLVIMENTO SUS-TENTÁVEL

Um dos elos de grande discussão é o consumismo, pois está inserido em um mundo capitalista onde o imediatismo do ser humano formou um ser altamente consumista, sendo pro-jetada uma imagem de um ser irracional. O meio ambiente se tornou objeto secundário nas reflexões a respeito do que real-mente se torna prioridade em um contexto de fatores sociais que causam os impactos ambientais.

Como abordado no texto, não se pode falar em sustenta-bilidade sem mencionar paralelamente o consumismo, uma vez que ambos são extraídos de um modelo capitalista que está in-serido em um mundo tecnologicamente mais evoluído. Em rela-ção ao aspecto consumo, que tem origem econômica, o abuso consumista tem trazido inúmeros problemas de ordem mundial, dentre eles a questão do lixo, que constantemente se acumula nos mais variados locais não destinados propriamente.

A desestruturação do meio ambiente caminha a passos

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largos em direção a soluções radicais, pois as medidas adota-

das não atendem aos resultados esperados, vindo em alguns

casos a causar descréditos em relação à responsabilização pe-

los danos ambientais.

Fazendo um paralelo dos instrumentos normativos para

compreender o direito ambiental, que é um tanto complexo, Ra-

mos (2009) reitera que são utilizados pelos autores diversas

terminologias, tendo às vezes o mesmo significado, mas que

acabam dificultando o entendimento sobre determinado assun-

to. Entretanto, ocorre que um instituto é entendido como prote-

ção ao meio ambiente, e também como uma forma jurídica de

sustentar a manutenção do direito ambiental.

Voltando à questão do consumismo, Milaré (2009, p.

81) descreve que:

O consumista é uma espécie de pessoa mistifica-da, iludida e auto-iludida. Somados, os milhões e milhões de consumistas existentes na população mundial representam uma ameaça global para o meio ambiente, tanto mais que essa mesma po-pulação cresce em taxas ainda mais assustado-ras, sobre tudo em países pobres ou em vias de desenvolvimento. É importante notar que o con-sumista não é apenas aquele que efetivamente consome, mas, ainda, o que sonha com esse tipo desviado de consumo e sacrifica bens e valores essenciais simplesmente para atingi-lo.

Como é de conhecimento, o dano ambiental é todo ato

que causa algum prejuízo ao meio ambiente, em outras pala-

vras, causa uma interferência no ambiente natural, vindo a com-

prometer as espécies de seres vivos.

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Também é importante lembrar que, para haver a possi-bilidade de reconstituir o dano ambiental, é pressuposto que o fato ocorra antes, possibilitando a indenização. No entanto, por mais que haja a devida indenização pelo agente agressor, não trará o mesmo retorno fruto do impacto ambiental, causando uma sequela que, em alguns casos, é irreversível.

Na medida em que se espelha uma sociedade consu-mista permeada pelos valores materiais, constrói-se uma es-pécie de inversão de valores que perpassam a racionalidade, a emoção, somando-se ainda a realização pessoal. Com essas características, identifica-se um novo modelo de indivíduo, mo-vido pelo desejo para alcançar a superioridade entre os seres humanos, causando assim uma separação de indivíduos consi-deravelmente comuns dos que buscam a hegemonia para obter seu reconhecimento.

A ideia de prevenir em regra será superior do que reme-diar, pois, quando o fato está concreto, é mais difícil solucionar, e quando ainda não existe, evita um mal maior no futuro. Nesse sentido, devem ser observadas medidas não prejudiciais, con-forme dispõe o princípio 15 da Declaração sobre o Ambiente e Desenvolvimento de 199218, que traduz a questão da prevenção.

O meio ambiente é um patrimônio a que todos têm di-reito, no entanto, para que se tenham condições de executar medidas participativas e com isso almejar os efeitos esperados, deve haver uma política ambiental no sentido de alertar para as consequências da infringência ambiental, em que, através do direito à democracia, as ações tornam-se mais igualitárias em prol da coletividade.18 Princípio 15. Com o fim de proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deverá ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades. Quando houver ameaça de danos graves ou irreversíveis, a ausência de certeza científica absoluta não será utilizada como razão para o adiamento de medidas economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental. Disponível em: <http://www.mma.gov.br/port/sdi/ea/documentos convs/decl/ _rio92.pdf>. Acesso em: 28 jan. 2015.

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Da forma como se encontra o cenário ambiental, é fun-damental que se faça presente a proteção da humanidade, tor-nando-se acima de qualquer outro, o aspecto mais relevante, envolvendo valores morais e profundas modificações individuais no pensar consciente. Essa preocupação gira em torno de uma ordem social e passa a ser meramente um desafio para ser alcan-çado, onde os protagonistas, que são os próprios indivíduos, tor-nam-se peças-chave na construção de um pensamento racional.

Como alicerce de um Estado Democrático de Direito, é preciso que se cumpra o ordenamento jurídico, pois somente haverá democracia se forem observadas e aplicadas as legisla-ções pertinentes em cada esfera do direito.

Nesse aspecto, a educação ambiental cria um espaço no campo do direito ambiental, parte-se da premissa de que, desde os primeiros ensinamentos escolares, as escolas são responsá-veis por transmitir essa educação aos alunos, que ao longo de sua formação se aperfeiçoam, e a partir desse momento pas-sam a ser os difusores do conhecimento adquirido, carregando parcela da responsabilidade.

A Lei da Educação Ambiental19 é recente, tornando-se um fato que contribuiu significativamente para o tardio conhe-cimento da proteção efetiva do meio ambiente, pois passou a ser regulada a partir de 1999. Denota-se que, em matéria de educação ambiental, as universidades ainda não ocuparam o espaço que lhes cabe, pois um tema de tamanha importância tem ficado aquém do esperado a respeito das instituições de

ensino superior.

19 BRASIL. Lei Nº 9.795, de 27 de abril de 1999. Institui a Política de Educação Ambiental. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9795.htm>. Acesso em: 28 jan. 2015.

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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Constata-se historicamente que já existia uma desigual-dade ambiental desde os tempos mais remotos, quando o ho-mem era o único responsável pelo trabalho externo de sua casa e a mulher era responsável pela alimentação e pelas atividades domésticas. No entanto, as transformações que acompanharam as gerações humanas deixaram um novo modelo de convivên-cia, no qual o tema sustentabilidade toma o campo de estudo científico, passando a ser incorporado juridicamente.

O direito ambiental como pressuposto fundamental tor-na-se responsabilidade de todos os indivíduos, uma vez que é um problema complexo, necessitando da contribuição efetiva para que se tenha um ambiente mais equilibrado e saudável.

Na medida em que são desenvolvidos programas de conscientização ambiental, devem ser levados insistentemente para todos os níveis, começando nos escolares, onde, desde a infância, as crianças são orientadas a proteger a natureza.

A crise ambiental envolve diversos fatores que são vin-culados a razões socioeconômicas, que ainda é agravada pelo fato de se ter uma população altamente consumista, produzindo toneladas de lixo por dia, sem ter locais adequados para arma-zenar quantidades volumosas de lixo.

Um exemplo são as divulgações nos meios de comunica-ção social através do noticiário em uma emissora de televisão, em que grande parte dos incidentes que ocorrem em centros urbanos, como obstruções de canais de esgoto causando alaga-mentos, são estimulados pelo excesso de lixo jogado em locais inapropriados.

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Deve haver uma reciclagem dos conhecimentos que en-volvem a proteção do meio ambiente, em que as condutas lesi-vas praticadas no meio ambiente iniciam do ser humano, levan-do consigo uma conduta não condizente como ser racional, pois contribui para que se tenha um planeta Terra poluído, além de comprometer a qualidade de vida das futuras gerações.

REFERÊNCIAS

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A INFLUÊNCIA DA TÓPICA NA INTERPRETAÇÃO DOS DIREITOS

FUNDAMENTAISCOMO UM SISTEMA ABERTO E FLEXÍVEL

THE INFLUENCE OF TOPICAL IN INTERPRETATION OF FUNDAMENTAL RIGHTS

AS A SYSTEM OPEN AND FLEXIBLE

Hewerstton Humenhuk1

RESUMO O presente ensaio faz uma releitura das gerações de di-

reitos fundamentais para delinear esses direitos como um sis-tema aberto e flexível. Neste aspecto, demonstram-se alguns apontamentos a respeito da evolução dos direitos fundamentais a partir do matiz histórico marcado pelo racionalismo da revo-lução francesa, inclusive através de fragmentos da teoria do re-conhecimento de Honneth. Passando pela evolução dos direitos fundamentais, de primeira, segunda, terceira e quarta geração, cria-se um paralelo hermenêutico, definindo os direitos funda-mentais como uma cláusula aberta, de forma a respaldar o sur-gimento de novos direitos não expressos nos textos constitucio-nais. Para tanto, utiliza-se apoio na tópica para melhor exegese das cartas constitucionais, com vistas a afastar a incongruência 1 Mestrando em Direitos Fundamentais no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Oeste de Santa Catarina. Especialista em Direito Administrativo e Gestão Pública CESUSC/Florianópolis. Coordenador do curso de Pós-graduação em Gestão e Direito Público da Universidade do Oeste de Santa Catarina - UNOESC, Campus de Joaçaba. Professor do curso de Pós-graduação em Direito Administrativo da Universidade para o Desenvolvimento do Alto Vale do Itajaí – UNIDAVI. Professor do curso de pós-graduação em Gestão e Direito Público da UNOESC. Professor de Direito Administrativo e Direito da Criança e do Adolescente do curso de graduação em Direito da Universidade do Oeste de Santa Catarina – UNOESC, Campus de Joaçaba. Professor convidado da Escola Superior de Advocacia – ESA da OAB/SC. Advogado. Procurador e Assessor Jurídico de Prefeituras Municipais e Câmaras de Vereadores em Santa Catarina. Membro do Instituto de Direito Administrativo de Santa Catarina – IDASC. E-mail: [email protected]; Lattes: http://lattes.cnpq.br/9947292702850846.

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de um sistema fechado de direitos fundamentais. Conclui-se que o rol de direitos fundamentais externados pelas gerações jamais poderão ser considerados como um sistema fechado, porquanto o núcleo essencial da própria definição desses direi-tos inerentes à dignidade humana, busca flexibilizar a efetivação de novos direitos que venham a surgir no texto constitucional, ainda que de forma implícita.

PALAVRAS-CHAVE: direitos fundamentais, gerações, reconhe-cimento, sistema aberto e flexível.

ABSTRACTThis paper revisits the fundamental rights of generations to delineate these rights as an open and flexible system. In this respect, show up some notes about the evolution of basic rights from the historic hue marked by rationalism of the French Revolution, including through fragments of the theory of recognition Honneth. Passing through the development of fundamental rights, first, second, third and fourth generation, creates a hermeneutic parallel defining the fundamental rights as a clause in order to endorse the emergence of new rights not expressed in constitutional texts. Therefore, it is used in topical support for better exegesis of constitutions in order to avoid the incongruity of a fundamental rights closed system. It follows that the list of fundamental rights externalized by generations can never be considered as a closed system, because the core of the very definition of those rights inherent to human dignity, flexible search the effectiveness of new rights that arise in the Constitution, albeit implicitly.

Keywords: fundamental rights, generations, recognition, open and flexible system.

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1 INTRODUÇÃO

O presente artigo aborda a releitura da geração dos di-reitos fundamentais, a fim de demonstrar que o núcleo essen-cial desses direitos, a partir dos textos constitucionais hodiernos plasmados na dignidade da pessoa humana, constitui-se em um sistema aberto e flexível.

Em um primeiro momento, parte-se de alguns aponta-mentos a respeito da evolução e historicidade dos direitos fun-damentais, com o propósito de explicitar a sua fundamentalida-de e a universalidade inerentes à dignidade humana.

Para a compreensão minimamente coerente acerca dos direitos fundamentais, mister se faz necessário uma releitura das gerações dos direitos fundamentais, passando inicialmen-te pelos direitos de primeira geração, marcados pelo forte teor ideológico pós revolução francesa, os quais postulam uma ati-vidade negativa por parte do Estado na efetivação dos clássicos direitos de liberdade e igualdade. Demonstrar-se-ão também alguns fragmentos da teoria do reconhecimento com vistas à evolução para os direitos fundamentais de segunda geração, os quais determinam uma postura positiva do Estado para sua con-secução. Em continuidade, será tratado dos direitos fundamen-tais de terceira e quarta geração, com ênfase na solidariedade humana dialogada pelo reconhecimento proposto por Honneth.

Finalmente, será proposto um sistema aberto e flexível na moderna exegese do núcleo essencial dos direitos fundamentais a partir da interpretação dos textos constitucionais, dando rele-vância ao método tópico, com o escopo de expor que o rol de direitos fundamentais não é um sistema fechado, mas sim do-

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tado de cláusula aberta que propicia o reconhecimento de novos direitos que venham a surgir, garantido seu status constitucional plasmado na dignidade da pessoa humana, ainda que com po-sitivação implícita nas cartas constitucionais.

2 APONTAMENTOS DA EVOLUÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Para compreensão mínima acerca dos direitos funda-mentais, é necessário que se faça, ainda que superficial e pre-liminarmente, uma análise histórica demonstrando a evolução dos direitos fundamentais através dos tempos.

A ligação primordial dos direitos fundamentais à dignida-de humana, nos seus teores históricos e filosóficos, demonstra o alto grau axiológico inerente à pessoa humana, delineando toda sua universalidade como ideal. Segundo Bonavides, “a univer-salidade se manifestou pela vez primeira, com a descoberta do racionalismo francês da Revolução, por ensejo da célebre De-claração dos Direitos do Homem de 1789” (BONAVIDES, 2000, p. 516). A fase anterior aos acontecimentos do final do século XVIII é representada, no âmbito dos direitos fundamentais, pelas cartas e declarações inglesas. A partir da declaração francesa, notou-se que esta tinha um grau de abrangência muito mais sig-nificativo do que as declarações inglesas e americanas. Segun-do Bonavides (2000, p. 516) “se dirigiam a uma camada social privilegiada (os barões feudais), quando muito a um povo ou a uma sociedade que se libertava politicamente, conforme era o caso das antigas colônias americanas, ao passo que a Declara-ção Francesa de 1789 tinha por destinatário o gênero humano”.

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A Declaração francesa designava um caráter humano de grande valia, assumindo sua universalidade. Demonstrava a carta fran-cesa o reflexo do pensamento político europeu e internacional do século XVIII. Silva explica que “dessa corrente da filosofia humanitária cujo objetivo era a liberação do homem esmagado pelas regras caducas do absolutismo e do regime feudal” (SIL-VA, 1999, p. 161). Trata-se, pois, de explicitar início efetivo do próprio reconhecimento da pessoa humana como membro de uma coletividade e portadora de liberdades e igualdades entre seus semelhantes e na relação com o Estado2.

A partir desses momentos históricos inerentes aos direi-tos fundamentais, observa-se que ali os direitos do homem3, munidos também do direito de liberdade, ganharam força e le-gitimidade. Externar-se-á do interior da exegese dos direitos fun-damentais as características de direitos naturais, inalienáveis e sagrados, caracteres próprios das sociedades democráticas. Não por acaso a manifestar influência da declaração francesa nas constituições ocidentais (MALISKA, 2001, p. 40). Os di-reitos do homem, por mais fundamentais que sejam, também são compreendidos como direitos históricos, ou seja, “nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas” (BOBBIO, 1992, p. 5).

As cartas de características eminentemente liberais eram limitadas através da autoridade do Estado, procurando separar 2 Apoiado em argumentos filosóficos, explica Honneth (2003) que, para obter o reconhecimento jurídico, o problema é determinar aquela propriedade geral das pessoas como tais; para a estima social, o que está em questão é o sistema referencial valorativo, no interior do qual se mede o “valor” das virtudes dos indivíduos. No decorrer do presente ensaio, serão abordados com maior interferência alguns fragmentos da teoria do reconhecimento de Honneth, notadamente do reconhecimento jurídico na evolução dos direitos fundamentais. 3 Escreve Silva (1999, p. 180) que “contra a expressão direitos humanos, assim como contra a terminologia direitos do homem, objeta-se, que não há direito que não seja humano ou do homem, afirmando-se que só o ser humano pode ser titular de direitos. Talvez já não mais assim, porque aos poucos, se vai formando um direito especial de proteção dos animais”.

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os poderes nas suas respectivas funções (legislativo, executivo e judiciário), a fim de deflagrar o início da efetivação da declaração dos respectivos direitos. Surgem então os direitos de primeira geração, representados pelos direitos civis e políticos. A carac-terística primordial desses direitos fundamentais era inicialmente a exigência de uma atividade negativa por parte do Estado, não violando o cunho individual destes direitos. Com o surgimento de novos modelos constitucionais que primavam não só pela prote-ção individual dos indivíduos, mas também por direitos sujeitos a prestações, denominados de direitos da segunda geração, ou seja, os direitos sociais, culturais e econômicos concernentes às relações de produção, ao trabalho, à educação, à cultura e à previdência. As sociedades modernas, em suas cartas constitu-cionais, começaram a prestigiar o surgimento de novos direitos, denominados de terceira geração (direitos ao desenvolvimento, à paz, à propriedade sobre o patrimônio comum, à comunicação e ao meio ambiente). A modernidade trouxe, destarte, os direitos de quarta geração, que prescrevem a globalização política (direi-to à democracia, à informação e ao pluralismo).

A partir do teor de universalidade da declaração france-sa de 1789, começaram a surgir os ditames da democracia e dos direitos fundamentais, como bem escreve Boutmy: “foi para ensinar o mundo que os franceses escreveram” (apud BONAVI-DES, p. 516).

3 OS DIREITOS FUNDAMENTAIS DE PRIMEIRA GERAÇÃO

Após todo período revolucionário do século XVIII, prin-cipalmente pelas ideologias políticas francesas, marcado pelo

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teor individualista, notadamente nos direitos de defesa e direitos do indivíduo frente ao Estado, externaram-se os caracteres base de todo escopo essencial dos direitos fundamentais. Postulado pela historicidade em toda sua evolução, institucionalizaram-se três premissas gradativas, a saber: a liberdade, a igualdade e posteriormente a fraternidade (SARLET, 1998, p. 48).

Sem aprofundar a discussão doutrinária de menor rele-vância acerca do uso da expressão dimensão ou geração4 para explicar a historicidade dos direitos fundamentais, porquanto, adota-se aqui a terminologia geração. Tem-se que os direi-tos fundamentais de primeira geração são teorizados pelo seu cunho materialista, ao qual, foram atingindo estas característi-cas através de um processo cumulativo e qualitativo, designan-do uma nova universalidade com escopos materiais e concretos. Escreve Bonavides (2000, p. 517) que os direitos fundamentais de primeira geração são os “direitos da liberdade, os primeiros a constarem do instrumento normativo constitucional, a saber, 4 A título de explicação, a terminologia utilizada entre ‘geração’ ou ‘dimensão’ de direitos fundamentais têm gerado certa discussão doutrinária. Bonavides (2000, p. 525 e ss.) utiliza o termo ‘gerações dos direitos fundamentais’ para demonstrar a evolução histórica nas cartas constitucionais. Explica o autor que a expressão ‘gerações de direitos fundamentais’ foi primeiramente utilizada por KarelVasak, na aula inaugural de 1979 dos Cursos do Instituto Internacional dos Direitos do Homem, em Estrasburgo. Segundo ainda Bonavides, o próprio Vasak refutaria a terminologia escolhida, por sua imprecisão. Ainda sobre a discussão, Honesko, transcrevendo trecho de palestra ministrada por Cançado Trindade na V Conferência Nacional de Direitos Humanos, em maio de 2000: “Essa teoria é fragmentadora, atomista e toma os direitos de maneira absolutamente dividida, o que não corresponde à realidade. Eu conversei com KarelVasak e perguntei: ‘Por que você formulou essa tese em 1979’. Ele respondeu: ‘Ah, eu não tinha tempo de preparar uma exposição, então me ocorreu fazer alguma reflexão, e eu me lembrei da bandeira francesa’ – ele nasceu na velha Tchecoslováquia. Ele mesmo não levou essa tese muito a sério, mas, como tudo que é palavra ‘chavão’, pegou” (HONESKO, 2008, p. 189). Sarlet (1998, p. 55), por sua vez, defende o termo ‘dimensões’: “Em que pese o dissídio na esfera terminológica, verifica-se crescente convergência de opiniões no que concerne à ideia que norteia a concepção das três (ou quatro, se assim preferirmos) dimensões dos direitos fundamentais, no sentido de que estes, tendo tido sua trajetória existencial inaugurada com o reconhecimento formal nas primeiras Constituições escritas dos clássicos direitos de matriz liberal-burguesa, se encontram em constante processo de transformação, culminando com a recepção, nos catálogos constitucionais e na seara do Direito Internacional, de múltiplas e diferenciadas posições jurídicas, cujo conteúdo é tão variável quanto as transformações ocorridas na realidade social, política, cultural e econômica ao longo dos tempos. Assim sendo, a teoria dimensional dos direitos fundamentais não aponta, tão-somente, para o caráter cumulativo do processo evolutivo e para a natureza complementar de todos os direitos fundamentais, mas afirma, para além disso, sua unidade e indivisibilidade no contexto do direito constitucional interno e, de modo especial, na esfera do moderno ‘Direito Internacional dos Direitos Humanos.” Cançado Trindade (1997, p. 390) escreve que “a fantasia nefasta das chamadas ‘gerações de direitos’, histórica e juridicamente infundada, na medida em que alimentou uma visão fragmentada ou atomizada dos direitos humanos, já se encontra devidamente desmistificada. O fenômeno de hoje testemunhamos não é o de sucessão, mas antes, de uma expansão, cumulação e fortalecimento dos direitos humanos consagrados, consoante uma visão necessariamente integrada de todos os direitos humanos. As razões histórico-ideológicas da compartimentalização já há muito desapareceram. Hoje podemos ver com clareza que os avanços nas liberdades públicas em tantos países nos últimos anos devem necessariamente fazer-se acompanhar não de retrocesso – como vem ocorrendo em numerosos países – mas de avanços paralelos no domínio econômico-social”.

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os direitos civis e políticos, que em grande parte correspondem, por um prisma histórico, àquela fase inaugural do constitucio-nalismo do Ocidente”. Ao longo do século XVIII e XIX, como for-ma de expressão de um cenário histórico marcado pelo ideário do jusnaturalismo secularizado, do racionalismo iluminista, do contratualismo societário, do liberalismo individualista e do ca-pitalismo concorrencial, os direitos de primeira geração surgem no contexto da formação do constitucionalismo político clássico, que sintetiza as teses do Estado Democrático de Direito, da teo-ria da tripartição dos poderes, do princípio da soberania popular e da doutrina da universalidade dos direitos e garantias funda-mentais (WOLKMER, 2003, p. 7).

A passagem para a modernidade faz com que os direitos de primeira geração, de certa forma, se desliguem dos papéis sociais de cada pessoa até então permeados pelo absolutismo da época, porquanto passam a competir a partir de agora em igual medida, qual seja, todo homem na qualidade de ser livre, passa a ter reconhecimento jurídico (HONNETH, 2003, p. 195). Todo o ser humano deve ser considerado, sem distinção, um “fim em si”, ao passo que o respeito social salienta o valor de um indivíduo na medida em que se mede a intersubjetivida-de pelos critérios da relevância social, conforme alerta Honneth (2003, p. 195). No próprio reconhecimento jurídico proposto por Honneth (2003), a questão é a de saber como se determi-na a propriedade construtiva das pessoas como tais, enquanto para a estima social se coloca a questão de como se constitui o sistema referencial valorativo no interior do qual se pode medir o valor das propriedades características. O sistema jurídico que se cria com a efetivação dos direitos fundamentais de primeira

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geração deve expressar interesses universalizáveis de todos os membros da sociedade, não admitindo privilégios e gradações. O ser humano passa a ser reconhecido reciprocamente como portador de igualdade e liberdade, que partilham as proprieda-des para a participação em uma formação discursiva da vonta-de. Os direitos fundamentais de primeira geração constituem-se também na expressão da “consciência de poder se respeitar a si próprio, porque ele merece o respeito de todos os outros” (HONNETH, 2003, p. 195). O que caracteriza essa igualdade humana passa pela construção histórica em que a modernida-de é marcada pela extensão dos atributos universais. O sentido das lutas por reconhecimento, travadas para a construção dos direitos civis, políticos e sociais, busca, de certa maneira, que a pessoa humana seja reconhecida pelo Estado e para com seus pares com igual valor5.

Basicamente, os direitos fundamentais de primeira gera-ção estão presentes em todas as constituições das sociedades civis democráticas, não obstante seu caráter de status negati-vus6, em consonância com a descrição de Maliska (2001, p. 41), de que “esses representavam uma atividade negativa por parte da autoridade estatal, de não violação da esfera individual (os chamados direitos de primeira geração, os direitos civis e políticos)”. Escreve Sarmento (2006, p. 12-13) que os direitos fundamentais demarcam os limites para a atuação dos gover-nantes, em prol da liberdade dos administrados. Há uma esfera demarcada que veda a interferência estatal, criando uma bar-5 “O princípio de igualdade embutido no direito moderno teve por consequência que o status de uma pessoa de direito não foi ampliado apenas no aspecto objetivo, sendo dotado cumulativamente de novas atribuições, mas pode também ser estendido no aspecto social, sendo transmitido a um número sempre crescente de membros da sociedade” (HONNETH, 2003, p. 191). 6 “É uma classificação de Jellinek e fazem ressaltar na ordem dos valores políticos a nítida separação entre a Sociedade e o Estado. Sem o reconhecimento dessa separação, não se pode aquilatar o verdadeiro caráter anti-estatal dos direitos de liberdade, conforme tem sido professado com tanto desvelo teórico pelas correntes do pensamento liberal de teor clássico” (BONAVIDES, 2000, p. 517-518).

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reira entre o espaço da sociedade civil e da ação estatal. Essa clássica divisão entre a esfera pública e a esfera privada fazia valer com maior irradiação o aspecto de supremacia do indivíduo sobre as ações estatais. Canotilho (1999, p. 369) aduz que, no liberalismo clássico, o ‘homem civil’ precederia o ‘homem políti-co’ e o ‘burguês’ estaria antes do ‘cidadão’. Na concepção a par-tir do direito público, os direitos fundamentais de primeira gera-ção traduziam em um rígido limite à atuação estatal, nitidamente com o escopo de proteger o indivíduo. Enquanto que no âmbito do direito privado, a partir da autonomia da vontade, os direitos fundamentais de primeira geração regravam as relações entre cidadãos iguais no plano formal (SARMENTO, 2006, p. 13).

Esse paradigma dos direitos fundamentais perdurou até o início do século XX, posto que, a partir deste, foram ingressados novos direitos fundamentais.

4 OS DIREITOS FUNDAMENTAIS DE SEGUNDA GERAÇÃO

Assim como o século passado foi marcado pelo advento dos direitos da primeira geração (direitos civis e políticos), o sé-culo XX foi caracterizado por uma nova ordem social, que expõe uma nova estruturação dos direitos fundamentais não mais se-dimentada no individualismo puro do modelo anterior (MALISKA, 2001, p. 41). Escreve Sarlet (1998, p. 49) que “a nota distintiva destes direitos é a sua dimensão positiva, uma vez que se cuida não mais de evitar a intervenção do Estado na esfera da liber-dade individual, mas, sim, na lapidar formulação de C. Lafer, de propiciar um ‘direito de participar do bem-estar social’”.

Os direitos fundamentais da segunda geração se tornam

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tão essenciais quanto os direitos fundamentais da primeira ge-ração, tanto por sua universalidade, quanto por sua eficácia. Os direitos fundamentais da segunda geração são representados pelos direitos sociais, culturais e econômicos. São direitos das coletividades introduzidos no constitucionalismo a partir das di-versas formas de Estado social (BOBBIO, 1992, P. 32-33). Esses direitos impõem normas-tarefa, uma espécie de orientações e deveres a serem realizados pelo Estado, com o propósito de pro-piciar melhor qualidade de vida à pessoa humana e um nível de dignidade como pressuposto do próprio exercício da liberdade. Funcionam, na expressão de Marmelstein (2008, p. 50), como uma “alavanca ou uma catapulta capaz de proporcionar o desen-volvimento do ser humano, fornecendo-lhe as condições básicas para gozar, de forma efetiva, a tão necessária liberdade”.

Os direitos da referida segunda geração estão ligados inti-mamente a direitos prestacionais sociais do Estado perante o in-divíduo, bem como assistência social, educação, saúde, cultura, trabalho. Passam esses direitos a exercer uma liberdade social, formulando uma ligação das liberdades formais abstratas para as liberdades materiais concretas. É marcada uma nova fase dos direitos fundamentais, não só pelo fato de esses direitos terem o escopo positivo, mas também de exercerem uma fun-ção prestacional estatal para com o indivíduo (SARLET, 1998, p. 49). A propósito disso, tem-se a reflexão de Sarlet (1998, p. 50) asseverando que direitos fundamentais de segunda geração são como “liberdades sociais, do que dão conta os exemplos de liberdade de sindicalização, do direito de greve, bem como dos direitos fundamentais dos trabalhadores”.

Com os direitos da segunda geração, brotou um pensa-

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mento de que tão importante quanto preservar o indivíduo, se-gundo a definição clássica dos direitos de liberdade, era também despertar a conscientização de proteger a instituição, uma reali-dade social mais fecunda e aberta à participação e à valoração da personalidade humana, que o tradicionalismo da solidão indi-vidualista, onde se externara o homem isolado, sem a qualidade de teores axiológicos existenciais, ao qual somente a parte social contempla. O próprio reconhecimento proposto por Honneth, en-cetado por situações desrespeitosas vivenciadas cotidianamen-te, é fundamental para o desenvolvimento moral da sociedade e dos indivíduos a partir da concretização dos direitos fundamen-tais de segunda geração. Perifericamente, os direitos de segunda geração tornam-se também bases, naquilo que Honneth concei-tua de boa vida7, a qual “tem de conter todos os pressupostos intersubjetivos que hoje precisam estar preenchidos para que os sujeitos se possam saber protegidos nas condições de sua auto realização” (HONNETH, 2003, p. 270).

Emerge, assim, um novo conteúdo dos direitos funda-mentais: as garantias institucionais, ao qual são inerentes das instituições de direito público e compõe suas formas e orga-nização, bem como limites ao arbítrio do Estado para com os direitos de segunda geração. Oportuna a ideia de Carl Schmitt: “graças às garantias institucionais, determinadas instituições re-ceberam uma proteção especial [...] para resguardá-la da inter-venção alteradora por parte do legislador ordinário. [...] Demais, é da essência da garantia institucional a limitação, bem como a destinação a determinados fins e tarefas” (apud BONAVIDES, 2000, p. 519).7 Nas sociedades modernas, as condições para a auto realização individual só estão socialmente asseguradas quando os sujeitos podem experimentar o reconhecimento intersubjetivo não apenas de sua autonomia pessoal, mas também de suas necessidades específicas e capacidades particulares (HONNETH, 2003, p. 189), o que os direitos fundamentais de segunda geração, quando efetivamente concretizados, podem propiciar.

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Os direitos fundamentais da segunda geração uma vez proclamados nas “declarações solenes das constituições mar-xistas e também de maneira clássica no constitucionalismo da social-democracia (a de Weimar, sobretudo), dominaram por inteiro as constituições do segundo pós-guerra” (BONAVIDES, 2000, p. 519).

5 OS DIREITOS FUNDAMENTAIS DE TERCEIRA GERAÇÃO

Na evolução dos direitos fundamentais, surgem os direi-tos da terceira geração, marcados por direitos atribuídos à fra-ternidade ou de solidariedade. São conhecidos como aqueles concernentes ao desenvolvimento, à paz, ao meio ambiente, à propriedade sobre o patrimônio comum da humanidade e à comunicação.

Emerge, portanto, um novo escopo jurídico que vem a somar nos direitos do homem, junto com os historicamente ver-sados, direitos de liberdade e igualdade. Bonavides (1998, p. 523) expõe que “dotados de altíssimo teor de humanismo e uni-versalidade”, os direitos da terceira geração tendem a demarcar a histórica enquanto direitos que não se destinam especifica-mente à proteção dos interesses de um indivíduo, de um grupo, ou de determinado Estado. Os direitos da terceira geração são, precipuamente, direitos fundamentais requeridos pelo indivíduo devido ao processo de descolonização do segundo pós-guerra e também pelos avanços tecnológicos, delineando assim direitos de titularidade coletiva ou difusa. Configuram os direitos funda-mentais da terceira geração, como direitos de solidariedade ou de fraternidade, que, nos dizeres de Sarlet (1998, p. 51), se

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traduzem “em face de sua implicação universal ou, no mínimo, transindividual, e por exigirem esforços e responsabilidades em escala até mesmo mundial para sua efetivação”.

Destarte, a solidariedade como direito fundamental de terceira geração também é utilizada por Honneth (2003) em sua última divisão de reconhecimento, baseadas em relações de res-peito universal. O autor afirma que, “para poderem chegar a uma auto relação infrangível, os sujeitos humanos precisam [...] além da experiência da dedicação afetiva e do reconhecimento jurídico, de uma estima social que lhes permita referir-se positivamente a suas propriedades e capacidades concretas” (HONNETH, 2003, p. 198). A partir de um estereótipo axiológico, os sujeitos podem encontrar a valorização de suas idiossincrasias. Escreve Honneth (2003, p. 207) que, nas sociedades modernas, “as relações de estima social estão sujeitas a uma luta permanente na qual os diversos grupos procuram elevar, com os meios da força simbólica e em referência às finalidades gerais, o valor das capacidades as-sociadas à sua forma de vida”, fazendo com que a solidariedade alcance status de direito fundamental, elencado como de tercei-ra geração. A solidariedade funciona como tolerância e educação para o respeito da dignidade humana, constituindo um destacado objetivo pedagógico do Estado constitucional: dignidade humana, para cada um, bem como para o próximo (HÄBERLE, 2008, p. 88).

Decorrente do próprio matiz da declaração francesa, que primou pela defesa da liberdade, igualdade e fraternidade, de-nota-se que os sistemas de direitos fundamentais vão, gradati-vamente, sendo descobertos e formulados para posteriormente serem efetivados. Cria-se, portanto, um processo de constante evolução, conhecido e reconhecido pelo ordenamento jurídico.

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6 OS DIREITOS FUNDAMENTAIS DE QUARTA GERAÇÃO

Hodiernamente, vive-se uma era delineada pela globa-lização política neoliberal. Essa globalização do modelo neoli-beralista, marcada pela globalização econômica advinda princi-palmente sob a égide da política imperialista de determinados entes internacionais, imposta aos países de terceiro mundo por suas organizações financeiras, causa, de certa forma, enorme impacto nos direitos fundamentais. Escreve Bonavides (2000, p. 524) que o neoliberalismo possui uma filosofia de poder ne-gativa e se move, com certo grau de avanço, rumo à dissolução do Estado nacional com vistas a debilitar os laços de soberania, ao passo que prega uma falsa despolitização da sociedade.

A globalização política de escopo ideológico neoliberal vem a se perfilar na teoria dos direitos fundamentais, refletindo diretamente na população subdesenvolvida. Nesse sentido, os direitos fundamentais de quarta geração, que correspondem à verdadeira institucionalização do Estado social, são os chama-dos direito à democracia, o direito à informação, e o direito ao pluralismo. Assim, a globalização dos direitos fundamentais con-substancia a universalização na seara institucional, posto que reconhece a existência destes direitos de quarta dimensão8.

Sarlet (1998, p. 53) preconiza que a proposta de Bonavi-des, comparada com as posições que arrolam os direitos contra a manipulação genética, mudança de sexo, etc., como integrando a quarta geração, oferece nítida vantagem de constituir, de fato, 8 Ainda sobre a discussão terminológica a respeito da expressão ‘geração’ ou ‘dimensão’, Bonavides (2000, p. 525) diz que é preciso insistir em “dirimir um eventual inequívoco de linguagem: o vocábulo ‘dimensão’ substitui com vantagem lógica e qualitativa, o termo ‘geração’, caso este último venha a induzir apenas sucessão cronológica e , portanto, suposta caducidade dos direitos das gerações antecedentes não é verdade. Ao contrário, os direitos da primeira geração, direitos individuais, os da segunda, direitos sociais, e os da terceira, direitos ao desenvolvimento, ao meio ambiente, à paz e a fraternidade, permanecem eficazes, são infraestruturais, formam a pirâmide cujo o ápice é o direito à democracia; coroamento daquela globalização política”.

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uma nova fase no reconhecimento dos direitos fundamentais.Partindo do pressuposto de que os direitos fundamentais

estão, na sua essência, ligados intimamente, direta ou indire-tamente, a valores concernentes à vida, à liberdade, à igualda-de e à fraternidade ou solidariedade, resguardando sempre a dignidade do ser humano, é possível conferir a esta esfera de direitos fundamentais da quarta geração (direito à democracia, direito à informação e direito ao pluralismo) a devida proteção constitucional.9 A globalização política expõe objetivos sem refe-rências concretas de valores. Globalizar os direitos fundamentais configura a universalização dos mesmos para que os direitos da quarta geração atinjam sua objetividade como nas duas ge-rações de direitos anteriores, sem destituir a subjetividade da primeira geração, com vistas à consecução de um futuro melhor, sem deixar de ser uma utopia o seu reconhecimento no direito positivo interno e internacional.

Portanto, para se ter um conceito e idealizar uma consti-tuição, inequívoco a inserção nos textos constitucionais o núcleo essencial dos direitos fundamentais, adquirindo estes lugar privi-legiado nos ditames das cartas magnas. Os direitos fundamentais passam inicialmente a assumir o caráter de direitos negativos que importam uma restrição à ação do Estado, para posteriormente, assumirem uma postura ativa, exigindo ações positivas do Estado. 9 Alguns autores, como Bonavides, defendam ainda a existência de direitos fundamentais de quinta geração, como por exemplo, direito a paz. Sampaio (2002, p. 302) faz alusão aos direitos de quinta geração ou dimensão “como o sistema de direitos ainda a incorporar os anseios e necessidades humanas que se apresentam com o tempo, há quem fale já de uma quinta geração dos direitos humanos com múltiplas interpretações. Tehrarian (1997 a e b) diz sobre “direitos ainda a serem desenvolvidos e articulados”, mas que tratam do cuidado, compaixão e amor por todas as formas de vida, reconhecendo-se que a segurança humana não pode ser plenamente realizada se não começarmos a ver o indivíduo como parte do cosmos e carente de sentimentos de amor e cuidado, todas definidas como prévias condições de “segurança ontológica” para usar a expressão de Laing (1969). Para Marzouki (2003), tais direitos seriam direitos oriundos de respostas à dominação biofísica que impõe uma visão única do predicado “animal” do homem, conduzindo os “clássicos” direitos econômicos, culturais e sociais a todas as formas físicas e plásticas, de modo a impedir a tirania do estereótipo de beleza e medidas que acaba por conduzir a formas de preconceitos com raças ou padrões reputados inferiores ou fisicamente imperfeitos. Essa visão de complementaridade é encontrada também em Lebech (2000), todavia em relação ao direito à vida sob os desafios das novas tecnologias, derivando então um direito à identidade individual, ao patrimônio genético e à proteção contra o abuso de técnicas de clonagem”. Todavia, procura-se tratar neste ensaio o surgimento de novos direitos fundamentais a partir da ideia de um sistema aberto e flexível.

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7 OS DIREITOS FUNDAMENTAIS COMO UM SISTEMA ABER-TO E FLEXÍVEL

Os direitos fundamentais, por seu patamar de inserção e posição de destaque nas cartas constitucionais hodiernas, preco-nizam a possibilidade de um sistema aberto. Nesse óbice, surge a problemática de que maneira este sistema se insere nos textos constitucionais vigentes e como se externará a sua interpreta-ção e concepção dos direitos de cunho fundamental. Adentra-se, pois, no campo filosófico e na hermenêutica contemporânea de métodos de interpretação no campo constitucional, demonstran-do o contraste existente entre o método tópico e o método siste-mático, bem como o grau de equilíbrio entre as duas formas de pensar e a sua interação com a ideia de um sistema aberto10.

O método tópico surgiu com um intuito renovador da her-menêutica atual no campo jurídico, e o responsável por este caminho cognitivo se deve a Theodor Viehweg,11 que, com sua obra, gerou polêmicas reflexões na esfera do Direito, o Estado e a Constituição. A exaustão posterior do positivismo racionalis-ta, em consonância com a incredulidade generalizada em suas soluções, “fez inevitável a ressurreição da tópica como método” (BONAVIDES, 1998, p. 447-448).

Quando se fala em um sistema aberto a regras e princí-pios para a Constituição, “é um sistema aberto porque tem uma estrutura dialógica, (Caliess) traduzida na disponibilidade e ‘capa-cidade de aprendizagem’ das normas constitucionais para cap-tarem a mudança de realidade e estarem abertas a concepções 10 É o ensinamento de Maliska em trabalho sobre a influência da tópica na interpretação constitucional, ao qual o referido autor após discorrer sobre a tópica Aristotélica, os pensamentos de Descartes e Vico, analisa a obra de Viehweg com as críticas de Canaris, abordando a tópica e a ideia de um sistema aberto na interpretação constitucional contemporânea (MALISKA, 1998).11 Theodor Viehweg (1979, p. 167) caracterizou a tópica como uma “técnica de pensar o problema”, ou seja, aquela “técnica mental que se orienta para o problema.”.

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cambiantes da verdade e da justiça” (MALISKA, 1998). Deve-se refletir o texto constitucional como verdadeira e constante bus-ca a partir da ideia de que não está pronto e acabado, mas em vias de ser construído, de modo que a interação do texto com a realidade possa ser efetiva de modo a garantir a sua supremacia e sua força normativa.

A operação de ligamento entre a realidade, ou seja, os conflitos e os problemas, e a norma acaba por designar a tó-pica, que funciona como uma maneira de solucionar o caso, consubstanciando o escopo da interação entre o sistema e a regulação do caso. Se o pensamento sistêmico constitui-se um pensamento ‘lógico-dedutivo’, a tópica vem a ser o contraste na terminologia usada por Schneider, que idealiza a distinção entre elementos ‘cognitivos e volitivos’ do conhecimento jurídico (MA-LISKA, 1998). “O volitivo é um instrumento do método tópico e o cognitivo um dado característico da inquirição dedutiva, lógica e sistemática” (SCHNEIDER apud BONAVIDES, 1998, p. 448).

Definindo o sistema jurídico como “ordem axiológica ou teleológica de princípios jurídicos gerais”, Canaris (1989, p. 281) prescreve que o sistema não é fechado, mas antes aber-to, e vale tanto para o sistema científico (sistema de proposi-ções doutrinárias) quanto para o sistema objetivo (sistema da ordem jurídica). Aprofundando o pensamento de Canaris (1989, p. 281), a abertura do sistema jurídico não contradita a aplica-bilidade do pensamento sistemático na ciência do Direito. “Ela partilha a abertura do <sistema científico> com todas as outras ciências, pois enquanto no domínio respectivo ainda for possível um processo no conhecimento, e, portanto, o trabalho científico fizer sentido, nenhum desses sistemas pode ser mais do que

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um projecto transitório”. Continua ainda o autor que a “aber-tura do <sistema objectivo> é, pelo contrário, possivelmente, uma especialidade da Ciência do Direito, pois ela resulta logo do seu objecto, designadamente, da essência do direito como fenómeno situado no processo da história e, por isso, mutável” (CANARIS, 1989, p. 281).

Apesar de Canaris, preocupado com a metodologia do Direito, externar suas críticas a Viehweg sobre um sistema tó-pico, este tem por base sua inclinação a uma visão sistemática da ciência jurídica. Nem por isso, Canaris abandona, de todo, a tópica como método. Proclama-lhe um papel secundário de utilidade, como um instrumento auxiliar na possibilidade do uso da tópica em determinados casos de lacuna da lei, ao qual o preenchimento se torne quase insustentável pela ausência ple-na de valorações no direito positivo, bem como nas situações de expiações legislativas para o senso comum (common sense) e em casos de equidade (BONAVIDES, 1998, p. 451).

Contudo, se considerar o sistema jurídico como um siste-ma aberto e normativo de regras e princípios, dever-se-á presti-giar a Tópica numa posição de destaque, especialmente na her-menêutica Constitucional, pela função democrática e também quando as normas são de conteúdo aberto e sua interpretação é vasta. Nesse sentido, a Constituição se mostra o instrumento ideal para a interação com o método tópico em face a consti-tuir dinâmica estrutural aberta, ainda mais se considerar seus valores pluralistas. Bonavides (1998, p. 452) escreve que difi-cilmente uma carta constitucional preenche aquela função de ordem e unidade, que faz possível o sistema se revelar compa-tível com o dedutismo metodológico.

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A essência da tópica, como a construção de um método, vem a ser ‘pensar o problema’. A tópica não vai na contramão da lógica, é um novo estilo de argumentação, pois, com a tó-pica, segundo Bonavides (1998, p. 452) “a norma e o sistema perdem o primado. Tornam-se meros pontos de vista ou simples topoi, cedendo lugar à hegemonia do problema, eixo fundamen-tal da operação interpretativa.” Definindo as principais caracte-rísticas da ideia de sistema, ou seja, unidade (vários pontos de referências centrais) e ordem (uma conexão sem hiatos, com a compatibilidade lógica de todos os enunciados), não afastam e, até mesmo, não são incompatíveis com o pensamento tópi-co. Isso porque, como sistema aberto, suas normas necessitam interagir com a realidade, de maneira que, por si só, não abar-quem todas as possibilidades fáticas12.

Outra posição que merece ser destacada é no sentido de que, quando se fala na interação e uniformidade dos métodos tópico e sistemático, é mister que se faça referência aos limites da tópica em relação ao sistema normativo. É nesse sentido que são inculcadas as principais críticas ao método tópico. Es-creve Maliska (1998) que essas críticas dirigem-se ao fato de que a tópica colocaria a “lei com um topos qualquer, de modo que as discussões ultrapassariam os limites legais (...) a tópica aplicada a interpretação jurídica e, em especial, à interpretação constitucional, nas discussões dos pontos de vista, devem ter a norma como principal condição de argumentação”. Seria, as-sim, a norma, em último caso, o limite da tópica13. 12 Maliska (1998) ressalta a possibilidade de que a “solução do problema necessita tanto de um sistema que de sustentabilidade por demonstração da decisão, ou seja, que acabe por demonstrar àquele que ficou em pior situação de que a decisão teria de ser esta porque o sistema assim definiu, como ao mesmo tempo, para que a decisão ofertada pelo sistema se mantenha legítima em todos seus fundamentos, seja confrontada com os vários pontos de vista e com os topos de argumentação, de maneira a possibilitar conteúdo substancial a decisão”.13 Nesse sentido, escreve Zippelius, que os limites da tópica se encontram já na sua função instrumental. Ela é uma técnica que simplesmente ajuda a descobrir conhecimentos e interrogações que podem em cada caso desempenhar determinado papel, sem contudo por si mesma – como simples técnica de debate – oferecer sozinha o suficiente fundamento da solução (BONAVIDES, 1998, p. 449).

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A Constituição, consubstanciada por um sistema aberto, condiciona uma interpretação também aberta, designando desta forma várias considerações e pontos de vista para colaborar com a solução ao caso concreto. E a metodologia tópica participa desse processo, fazendo com que a Constituição perca, até certo ponto, seu caráter reverencial que o formalismo clássico lhe con-ferira. Bonavides (1998, p. 453) explica que “a tópica abre tan-tas janelas para a realidade circunjacente que o aspecto material da Constituição, tornando-se, quer queira quer não, o elemento predominante, tende a absorver por inteiro o aspecto formal”.

Buscando a interação dos pensamentos tópico e siste-mático, chega-se à conclusão de que essa junção de métodos designa os direitos fundamentais como principal instrumento desta exegese. Nos dizeres de Hesse (1998, p. 244), “os direi-tos fundamentais, ainda que reunidos em um catálogo, consti-tuem garantias pontuais, de maneira que não estão reduzidos a um sistema fechado, taxativo”. Assim, a tópica, proveniente da reação ao positivismo jurídico clássico, representa o cerne da hermenêutica contemporânea, conferindo também um grau de extrema relevância e essencialidade na interpretação constitu-cional, especialmente nos direitos fundamentais como sistema aberto. Portanto, os direitos fundamentais encontram, na tópica e na ideia de sistema aberto, a possibilidade de uma adequada concretização de seus preceitos. Vincula-se, pois, à noção de sistema aberto envolto em outra discussão, a fundamentalidade de tais direitos na dignidade da pessoa humana14.14 A título de discussão periférica, mas não menos importante, ao descrever sobre os sistemas de direitos fundamentais e sua interligação com a dignidade humana e o direito geral de liberdade, Alexy (2008, p. 374 e ss.) critica o sistema de valores e pretensões (1º a dignidade humana, 2º o direito geral de liberdade como principal direito de liberdade e o direito geral de igualdade como principal direito de igualdade, por fim o 3º que é o direito de liberdade e igualdade específicos), dizendo que ele não pode ser fechado, pois existem direitos a prestações fáticas que não foram contemplados. Assim, em um sistema dedutivo, é obrigatório que a dignidade humana seja respeitada e protegida.

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O princípio da dignidade humana possui o sentido de uma cláusula aberta, de forma a respaldar o surgimento de di-reitos novos não expressos nos textos constitucionais, mas nele implícitos, seja em decorrência do regime e princípios por ela adotados15. Desse modo, conclui-se que não há incompatibi-lidade entre a concepção dos direitos fundamentais como um sistema aberto e flexível e a sua fundamentalidade no princípio da dignidade humana, ainda que tal entendimento possa criar embaraços à adequada compreensão da abertura do catálogo dos direitos fundamentais previstos nos textos constitucionais. Sarlet (1998, p. 74) advoga o entendimento que é inviável a sustentação no direito Constitucional pátrio, de uma concepção de que os direitos fundamentais formam um sistema fechado no âmbito da Constituição. “Se reconhecendo a existência de um sistema dos direitos fundamentais, este necessariamente será, não propriamente um sistema lógico-dedutivo (autônomo e au-to-suficiente), mas, sim, um sistema aberto e flexível, receptivo a novos conteúdos e desenvolvimentos” (SARLET, 1998, p. 75).

Para Honneth (2003, p. 192), a forma como as constan-tes ampliações dos direitos fundamentais vêm acontecendo, re-forçam a ideia de que “todo enriquecimento das atribuições ju-rídicas dos indivíduos pode ser entendido como um passo além no cumprimento da concepção moral segundo a qual todos os membros da sociedade devem poder ter assentido por discerni-mento racional à ordem jurídica estabelecida”. A ampliação dos direitos fundamentais, a partir da institucionalização dos direitos

civis e a evolução da geração desses direitos, na visão de Hon-15 Esta é a interpretação dada por Maliska (2001, p. 69) a respeito da lição de Pereira de Farias na sua obra Colisão de Direitos. No direito comparado, podemos destacar o entendimento equivalente de VIEIRA DE ANDRADE, J. C. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976.

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neth (2003), representa que o indivíduo não precisa apenas de proteção jurídica contra intervenções na sua esfera de liberdade, mas também o direito assegurado de participação no processo público de formação da vontade, da qual ele usufrui a partir da dignidade da pessoa humana. Segundo Sarlet (2008, p. 36-37), a dignidade também possui como “qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade”.

Portanto, a ideia de um catálogo ou geração de direitos fundamentais consagrados no texto constitucional a partir da tó-pica como método de interpretação, acaba por desencadear um sistema aberto de flexível, amparando o surgimento de novos direitos fundamentais, que por sua vez interligam-se e dialogam diretamente com as demais gerações de direitos fundamentais, não havendo, pois, a necessidade de expansão meramente teó-rica de novas gerações de direitos, se a moderna hermenêutica constitucional assim conferir a efetividade desejada.

8 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo buscou demonstrar uma releitura da geração dos direitos fundamentais a partir de um sistema aberto e flexível, de modo a garantir a prevalência desses e de novos direitos, ainda que implícitos no texto constitucional.

É referendada, nas gerações de direitos fundamentais, toda a universalidade e pertinência para a dignidade da pessoa humana, enquanto reconhecida como tal. Os direitos funda-mentais de primeira geração, marcados pela atividade negativa

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por parte do Estado em não infringir tais direitos, exprimem a relevância dos clássicos direitos de liberdade e igualdade. Nesse sentido, o próprio reconhecimento jurídico a partir de fragmen-tos da teoria de Honneth embasa o homem livre através de valo-res axiológicos num contexto social. Já os direitos fundamentais de segunda geração, ao exigir uma atividade positiva do Estado, nitidamente influenciada pelas cartas constitucionais de cunho social, faz com que a dignidade humana esteja em posição des-tacada pelas garantias institucionais. Na terceira geração de direitos fundamentais, com ênfase à solidariedade e à fraterni-dade, traço marcante da revolução francesa que influenciou o mundo contemporâneo, sua implicação transindividual exigem esforços e responsabilidades em escala mundial para sua efeti-vação. Os direitos de quarta geração correspondem à verdadeira institucionalização do Estado social, são os chamados direito à democracia, o direito à informação, e o direito ao pluralismo.

Dessa revisitação das gerações de direitos fundamen-tais, apoiado no método tópico de interpretação constitucional, emerge o caráter aberto e flexível no sistema de direitos jus-fundamentais. Não há como simplesmente prescrever um rol fechado no catálogo de direitos fundamentais. A hodierna her-menêutica constitucional traz no núcleo essencial dos direitos fundamentais o reconhecimento de um sistema aberto e flexível, porquanto o surgimento de novos direitos fundamentais, ainda que implícitos na carta constitucional, merece guarida e pro-teção, a fim de conferir efetividade aos valores axiológicos da dignidade da pessoa humana.

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PRESSUPOSTOS DA PATERNIDADE SOCIOAFETIVA

ASSUMPTIONS OF THE SOCIO-AFFECTIVE PATERNITY

Franciane Dal’Boit1

RESUMOO presente artigo tem por objetivo demonstrar a necessidade de um novo olhar para a instituição familiar, em especial à pa-ternidade socioafetiva. Esse olhar se justifica na busca de efeti-vação de direitos da criança e do adolescente sob o prisma da dignidade da pessoa humana e do melhor interesse dos filhos. Primeiramente, a pesquisa analisa o conceito de poder familiar, sua natureza jurídica e a evolução histórica das famílias. Em se-gundo momento, analisa-se a paternidade socioafetiva de forma ampla. Por fim, o artigo adentra então na questão da obrigação alimentar e do direito sucessório, apresentando diversas inter-pretações jurídicas sobre o tema, encontradas através de pes-quisas bibliográficas e jurisprudencial.

PALAVRAS-CHAVE: Paternidade Socioafetiva, Dignidade da Pessoa Humana, Poder familiar.

ABSTRACTThis article aims to demonstrate the need for a new look at the family institution, in particular the socio-affective paternity. This view is justified in seeking realization of the rights of the child 1 Graduada em Direito pela Universidade Paranaense – Unipar; Especializanda em Direito Previdenciário pela Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas de Cascavel - Univel. Advogada. Assistente em Administração no Instituto Federal do Paraná. E-mail: [email protected].

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and the adolescents under the prism of the the dignity of the human person and the best interest of the children. First, the re-search analyzes the concept of family power, its legal nature and the historical evolution of the families. In the second moment, analyzing the socio-affective paternity broadly. Finally, the article then enters the question of the food obligation and inheritance law, having different legal interpretations on the subject, found through bibliographic and jurisprudential research.

Keywords: Socio-affective Paternity, Dignity of the Human Per-son, Family Power.

1 INTRODUÇÃO

A paternidade socioafetiva tem recebido grande atenção dos operadores do direito nos últimos anos, por esta deter todas as responsabilidades inerentes ao poder familiar, além de ser uma garantia constitucional da dignidade da pessoa humana e do melhor interesse da criança.

Desse modo, em 2013, o Supremo Tribunal Federal, em votação no Plenário Virtual, reconheceu sua Repercussão Geral, em detrimento de sua relevância sob os pontos de vista econô-mico, jurídico e social.

Assim, o presente artigo se mostra importante pela sua complexidade e, também, pela diversidade de interpretações ju-rídicas encontradas nas pesquisas bibliográficas e jurispruden-cial, as quais serão apresentadas.

2 PODER FAMILIAR

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2.1 Conceito e natureza jurídica

A denominação “poder familiar”, utilizada pela atual Constituição da República Federativa do Brasil e adotada poste-riormente pelo Código Civil, expressa um conjunto de direitos e deveres atribuídos aos pais sobre a pessoa e os bens dos seus filhos menores, priorizando o interesse e a proteção destes, ze-lando pela sua guarda e educação, cumprindo com as determi-nações legais, até a maioridade.

O termo veio em substituição à antiga denominação “pá-trio poder”, face às novas garantias constitucionais trazidas em 1988, especialmente a de igualdade de direitos e deveres entre o homem e a mulher. A breve substituição foi de supra importân-cia, diante daquele termo exaltar o poder do pai sobre os filhos, como um direito absoluto e ilimitado.

Segundo Maria Berenice Dias (2009, p. 383), não é ain-da a melhor expressão adequada; mantém ênfase no poder, deslocando-se a obrigação do pai para a família. Atualmente, os doutrinadores compartilham “autoridade parental”, como a denominação mais correta, expressando-se melhor esta relação de parentesco.

Outrossim, o poder familiar é, segundo Josiane Rose Pe-try Veronese (2005, p. 36), uma incumbência que decorre da lei, constituindo direito personalíssimo, indisponível, intransfe-rível, irrenunciável e imprescritível, não podendo o menor ser objeto de abandono ou de transferência, salvo, neste último, por determinação judicial.

Assim, portanto, a suspensão temporária ou a destitui-ção do poder familiar apenas ocorrerá nos casos observados

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em lei, através de sentença judicial, assegurado aos genitores o

direito ao contraditório e à ampla defesa.

Dispõe o artigo 1.637, do Código Civil (BRASIL, 2002),

que poderá existir suspensão do poder familiar quando um dos

genitores “abusar de sua autoridade, faltando aos deveres a

eles inerentes ou arruinando os bens dos filhos” ou também se

for “condenado por sentença irrecorrível, em virtude de crime

cuja pena exceda a dois anos de prisão”. A suspensão por de-

terminação judicial atribuirá ao outro genitor a prática exclusiva

e temporária do poder familiar.

Ainda, o artigo 1.635 tratou de especificar os casos em

que ocorrem a extinção do poder familiar, sendo: pela morte dos

pais ou do menor; pela emancipação ou maioridade do filho;

pela adoção; e, por último, por decisão judicial, na forma do

artigo 1.638, in verbis:

Art. 1.638. Perderá por ato judicial o poder fami-liar o pai ou a mãe que:I - castigar imoderadamente o filho;II - deixar o filho em abandono;III - praticar atos contrários à moral e aos bons costumes;IV - incidir, reiteradamente, nas faltas previstas no artigo antecedente.

No entanto, tal medida é excepcional por ser permanente e irrevogável, ocorrendo apenas quando não existir alternativas de colocação do menor sob a guarda e responsabilidade de pa-

rentes, até a cessação da situação de risco, demonstrada por estudo social.

Contudo, destituídos os pais do poder familiar, a lei no-

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meará um tutor (terceiro capaz e de fora do poder familiar) para assistir o menor, se responsabilizando pela proteção e admi-nistração dos bens em questão. O artigo 1.728 do Código Civil (BRASIL, 2002) define as situações em que se aplica a tutela: nos casos em que os pais falecerem; vierem a ser julgados au-sentes ou decaírem do poder familiar.

A perda do poder familiar, conforme assevera Sílvio Rodri-gues (2004, p. 369), é sanção de maior alcance e corresponde à infringência de um dever mais relevante, sendo medida impe-rativa, e não facultativa.

Enquanto para Maria Berenice Dias (2009, p. 388), o abandono afetivo pelos genitores gera obrigação indenizatória por dano afetivo, em face do descumprimento do dever inerente à autoridade parental de conviver com o filho.

Enfim, a família possui especial proteção do Estado, por ser a base da sociedade, tendo por objetivos defender a digni-dade e o bem estar e garantir o melhor interesse da criança e do adolescente.

2.2 Evolução histórica das famílias

Ao longo dos séculos, o modelo de instituição familiar sofreu transformações; o que era tido como padrão, há muito já está ultrapassado. Atualmente, importa-se muito mais com o afeto como motivador das relações do que aqueles que advêm do matrimônio e de laços consanguíneos.

Na antiga Roma, a estrutura era patriarcalista; a auto-ridade era exercida pelo chefe de família com poder absoluto e ilimitado sobre o filho, daí advinda a denominação de pátrio

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poder; inclusive, o pai exercia poder total sobre os direitos civis e patrimoniais, sendo obrigado o filho a entregar todos os bens que adquirisse (RODRIGUES, 2004, p. 354).

Outra característica era que a consanguinidade não era importante no Direito Romano. O conceito de família não era fundado no parentesco consanguíneo, mas tinha um cunho po-lítico, econômico e, principalmente, religioso, posto que não era considerado da mesma família quem não cultuasse os mesmos deuses (VENOSA, 2010, p. 2515).

No Brasil, as leis que vigoravam antes da atual Carta Magna também sistematizavam o modelo de família patriarcal. O marco histórico, no que diz respeito à legislação, foi com a promulgação da Lei 3.071 de 1916 (antigo Código Civil), que designava o ma-rido como sendo o único chefe da sociedade conjugal, enquanto a esposa recebia a condição de relativamente incapaz.

Desta feita, o matrimônio era o único meio de consti-tuição de uma família estruturada e bem vista pela sociedade, além de ser o único modo de os filhos gozarem dos direitos ine-rentes à filiação estabelecida pelo ordenamento jurídico.

As mudanças mais significativas só começaram a ocorrer em 1962, com o Estatuto da Mulher Casada, reconhecendo a igualdade entre os cônjuges, devolvendo a plena capacidade à mulher casada. Entretanto, o parágrafo único do seu artigo 380 estabelecia que, na existência de conflitos entre o casal no exercício do poder familiar, ainda prevaleceria a decisão do pai, sendo ressalvada à mãe o direito de recorrer ao juiz para a solução da divergência.

Com a entrada em vigor da Constituição Federal em 1989, a igualdade entre os cônjuges foi consolidada de vez,

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rompendo o modelo patriarcal e autoritário do Código Civil de 1916, reconhecendo a família como célula vital da sociedade.

A Constituição Federal também inovou ao reconhecer a união estável como entidade familiar e igualou a condição de filhos (art. 22, § 6º). Posteriormente, o Código Civil de 2002 declarou possuírem os filhos, havidos ou não da relação de ca-samento ou por adoção, os mesmos direitos e qualificações, proibindo quaisquer designações discriminatórias relativas à fi-liação, tais como: naturais, adulterinos, incestuosos e espúrios (artigo 1.596).

Por fim, em 1990, os menores receberam proteção inte-gral através do Estatuto da Criança e do Adolescente, atribuindo aos pais direitos e deveres, garantindo-lhes o direito de recorrer à autoridade judiciária para a solução do problema em caso de discordância relativa aos filhos e a seus bens (artigo 21), o que também foi adotado pelo Novo Código Civil, em seu artigo 1.631, parágrafo único.

Enfim, a instituição familiar passou por grandes mudan-ças, tanto em sua composição, quanto nos direitos e deveres atribuídos aos genitores, as quais continuarão ocorrendo, neces-sitando sempre de um novo olhar pelos operadores do direito.

3 PATERNIDADE SOCIOFETIVA

3.1 Da filiação

A filiação é um fato jurídico do qual decorrem inúmeros efeitos e garantias, tendo como sujeitos os pais com relação aos filhos, em que o Estado visa garantir às crianças e aos adoles-

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centes todos os direitos protetivos e assistenciais.No entanto, perdura no cenário jurídico a discussão entre

paternidade biológica e socioafetiva. Existem defensores da cor-rente biológica, os quais defendem que os filhos, reconhecidos e os não reconhecidos, possuem direito, inclusive, à herança, apoiando-se na Constituição Federal (1988, artigo 227, pará-grafo 6º), que diz: “Os filhos, havidos ou não da relação do ca-samento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualifica-ções, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”.

Enquanto que a outra corrente defende a prevalência do vínculo socioafetivo em detrimento da biológica, fundada em ju-risprudência firmada em diversos cortes pelo país, justamente para evitar demandas de cunho meramente patrimonial.

Nessa mesma linha, Sílvio de Salvo Venosa (2010, p. 226) defende que a filiação afetiva é aquela na qual o amor e o carinho recíprocos entre os membros suplantam qualquer grau de relação genética, biológica ou social.

Paulo Luis Netto Lôbo cita que:

O ponto essencial é que a relação de paternidade não depende mais da exclusiva relação biológica entre pai e filho. Toda paternidade é necessaria-mente socioafetiva, podendo ter origem biológica ou não-biológica; em outras palavras, a paterni-dade socioafetiva é gênero do qual são espécies a paternidade biológica e a paternidade não-bio-lógica.

O professor João Baptista Villela, da Faculdade de Di-reito da UFMG (1980, p. 47), já em 1979, antes mesmo da

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publicação da Constituição Federal de 1988, criou a teoria da Desbiologização da Paternidade, afirmando que: “a paternidade, enquanto tal, só nasce de uma decisão espontânea. Tanto no registro histórico, como no tendencial, a paternidade reside an-tes no serviço e no amor que na procriação”.

Além disso, em termos de legislação, o Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1989, artigo 25, parágrafo único) já entendia por família extensa ou ampliada aquela que se estende para além da unidade de pais e filhos, formada por pessoas próximas com as quais mantêm edificado na convivên-cia familiar.

O Novo Código Civil (BRASIL, 2002, artigo 1.593) tam-bém possibilitou o reconhecimento de outras espécies de pa-rentesco civil, o qual foi confirmado na I Jornada de Direito Civil, promovida em Brasília nos dias 12 e 13 de setembro de 2002, pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Fede-ral – CJF, aprovando o seguinte enunciado:

103 - O Código Civil reconhece, no art. 1.593, outras espécies de parentesco civil além daquele decorrente da adoção, acolhendo, assim, a noção de que há também parentesco civil no vínculo pa-rental proveniente quer das técnicas de reprodu-ção assistida heteróloga relativamente ao pai (ou mãe) que não contribuiu com seu material fecun-dante, quer da paternidade sócio-afetiva, fundada na posse do estado de filho.

Na realização da III Jornada de Direito Civil, em 2004, aprovaram o enunciado de número 339, o qual esclarece que: “a paternidade socioafetiva, calcada na vontade livre, não pode ser rompida em detrimento do melhor interesse do filho”.

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Enfim, os enunciados aprovados constituem uma obra co-letiva acerca das interpretações do Código Civil de 2002, reunindo entendimentos de diversos e respeitáveis doutrinadores jurídicos.

Para Maria Berenice Dias (2009, p. 388), “o direito am-pliou o conceito de paternidade, que passou a compreender o parentesco psicológico, que prevalece sobre a verdade biológica e a realidade legal”.

Ainda, ela explica que, da convivência afetiva, resulta o direito à filiação, em virtude da posse de estado de filho (verda-de aparente) e, portanto, atribuindo-se um papel secundário à verdade biológica. Enfim, volta-se aos tempos do direito roma-no, quando a consanguinidade não era significante (VENOSA, 2010, p. 251).

Por fim, a Lei Federal n° 11.924/2009, acrescentou o § 8° ao artigo 57, na Lei Federal nº 6.015/73 - Lei de Registros Públicos, permitindo “o enteado ou a enteada, havendo motivo ponderável e na forma dos §§ 2o e 7o deste artigo, poderá re-querer ao juiz competente que, no registro de nascimento, seja averbado o nome de família de seu padrasto ou de sua madras-ta, desde que haja expressa concordância destes, sem prejuízo de seus apelidos de família”.

Ademais, está em trâmite no Senado e na Câmara o Pro-jeto de Lei Federal nº 2.285, de 2007 - Estatuto das Famílias, o qual busca desvincular o Livro de Direito de Família do Código Civil, visando reunir toda a legislação material e processual so-bre o tema em uma única lei.

O Estatuto das Famílias pretende corrigir a distância entre os fatos e as normas, atenta para a realidade da vida e a valo-rização das famílias como a base da sociedade, imprescindível

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para a formação sadia do indivíduo.Desse modo, o estatuto prevê nos artigos 10 e 70, res-

pectivamente: “o parentesco resulta da consanguinidade, da so-cioafetividade ou da afinidade” e “os filhos, independentemente de sua origem, têm os mesmos direitos e qualificações, proibi-das quaisquer designações e práticas discriminatórias”.

Boa parte desse grande progresso é fruto de sólida cons-trução doutrinária e jurisprudencial. Vejamos:

APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DE CONSIGNAÇÃO EM PAGAMENTO - INDENIZAÇÃO SECURITÁRIA - DÚVI-DA EM RELAÇAO AOS LEGÍTIMOS HERDEIROS BE-NEFICIÁRIOS - EXTINÇÃO DA OBRIGAÇÃO EM FA-VOR DO DEVEDOR PELO PAGAMENTO MEDIANTE DEPÓSITO EM JUÍZO - INTELIGÊNCIA DO ART. 898 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL - PARTE RECO-NHECIDA, NOS AUTOS DE ARROLAMENTO, COMO HERDEIRO DO SEGURADO POR PATERNIDADE SO-CIOAFETIVA - INSTITUTO DA COISA JULGADA - LE-GITIMIDADE PARA RECEBER À INDENIZAÇÃO SE-CURITÁRIA - AUTORIZAÇÃO PARA LEVANTAMENTO DO VALOR DEPOSITADO EM JUÍZO - SENTENÇA REFORMADA - RECURSO CONHECIDO E PROVIDO O reconhecimento da parte, em autos de arrola-mento, como herdeiro do segurado por paterni-dade socioafetiva, o legitima para receber o valor da indenização securitária consignado em juízo. (TJ-PR - AC: 6939777 PR 0693977-7, Relator: Luiz Lopes, Data de Julgamento: 07/10/2010, 10ª Câmara Cível, Data de Publicação: DJ: 497).

Enfim, nota-se o afeto sendo reconhecido como nortea-dor das decisões nos Tribunais, antes marcado pela valorização da família patriarcal e do patrimônio, e hoje pela concretização dos princípios da proteção da família e da dignidade da pessoa humana, todos trazidos pela Constituição Federal.

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3.2 Posse do estado de filiação

A posse do estado de filho, segundo José Bernardo Ra-mos Boeira (1999, p. 60): “é uma relação afetiva, íntima e du-radoura, caracterizada pela reputação frente a terceiros como se filho fosse, e pelo tratamento existente na relação paterno-filial, em que há o chamamento de filho e a aceitação do chamamen-to de pai”.

Assim, portanto, posse de estado de filho é sinônimo de paternidade, independentemente do vínculo biológico ou não, e se caracteriza pela existência de três pilares: nome, trato e fama (FACHIN, 1996, p. 126).

O primeiro seria a utilização do sobrenome do pai, como se biológico fosse. A segunda é a exteriorização do pai ao tratar e educá-lo como filho. O último se caracteriza pela forma como as pessoas veem essa relação; é a apresentação do pai perante a sociedade, cumprindo as funções pertinentes.

Consoante bem colocado por Jacqueline Filgueras (2001, p. 30):

A “posse de estado de filho” constitui a base so-ciológica da filiação, é esta noção fundada nos laços de afeto, o sentido verdadeiro de paterni-dade. Portanto é essa noção que deve prevalecer em casos de conflitos de paternidade, quando as presunções jurídicas já não bastam e não conven-cem, ou quando os simples laços biológicos não são suficientes para demonstrar a verdadeira rela-ção entre pais e filhos. Não são os laços de san-gue nem as presunções jurídicas que estabelecem um vínculo entre uma criança e seus pais, mas o tratamento diário de cuidados, alimentação, edu-cação, proteção e amor, que cresce e se fortifica com o passar dos dias.

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Da mesma forma, embora a lei tenha resguardado direi-tos ao marido de contestar a paternidade dos filhos nascidos de sua mulher (CÓDIGO CIVIL, 2002, artigo 1.601), provando-se erro (vício de consentimento) ou falsidade do registro (artigo 1.604), mediante ação judicial própria (LEI DOS REGISTROS PÚ-BLICOS, 1973, artigo 113), os tribunais de justiça estão man-tendo o vínculo afetivo, justamente pela constatação do estado de filiação, fortemente marcado por vínculos afetivos e edificado na convivência familiar.

Nesse sentido, o STJ se posiciona:

RECURSO ESPECIAL - AÇÃO NEGATÓRIA DE PA-TERNIDADE C/C RETIFICAÇÃO DE REGISTRO CIVIL - EXISTÊNCIA DE VÍNCULO SÓCIO-AFETIVO NUTRI-DO DURANTE APROXIMADAMENTE VINTE E DOIS ANOS DE CONVIVÊNCIA QUE CULMINOU COM O RECONHECIMENTO JURÍDICO DA PATERNIDADE - VERDADE BIOLÓGICA QUE SE MOSTROU DESIN-FLUENTE PARA O RECONHECIMENTO DA PATERNI-DADE ALIADA AO ESTABELECIMENTO DE VÍNCULO AFETIVO - PRETENSÃO DE ANULAÇÃO DO REGIS-TRO SOB O ARGUMENTO DE VÍCIO DE CONSEN-TIMENTO – IMPOSSIBILIDADE - ERRO SUBSTAN-CIAL AFASTADO PELAS INSTÂNCIAS ORDINÁRIAS - PERFILHAÇÃO - IRREVOGABILIDADE - RECURSO ESPECIAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO. I - O Tri-bunal de origem, ao contrário do que sustenta o ora recorrente, não conferiu à hipótese dos autos o tratamento atinente à adoção à moda brasileira, pois em momento algum adotou a premissa de que o recorrente, ao proceder ao reconhecimen-to jurídico da paternidade, tinha conhecimento da inexistência de vínculo biológico; II - O ora recor-rente, a despeito de assentar que tinha dúvidas quanto à paternidade que lhe fora imputada, ao argumento de que tivera tão-somente uma re-lação íntima com a genitora de recorrido e que

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esta, à época, convivia com outro homem, portou-se como se pai da criança fosse, estabelecendo com ela vínculo de afetividade, e, após aproxi-madamente vinte e dois anos, tempo suficiente para perscrutar a verdade biológica, reconheceu juridicamente a paternidade daquela; III - A ale-gada dúvida sobre a verdade biológica, ainda que não absolutamente dissipada, mostrou-se irre-levante, desinfluente para que o ora recorrente, incentivado, segundo relata, pela própria família, procedesse ao reconhecimento do recorrido como sendo seu filho, oportunidade, repisa-se, em que o vínculo afetivo há muito encontrava-se estabe-lecido; IV - A tese encampada pelo ora recorrente no sentido de que somente procedeu ao registro por incorrer em erro substancial, este provenien-te da pressão psicológica exercida pela genitora, bem como do fato de que a idade do recorrido corresponderia, retroativamente, à data em que teve o único relacionamento íntimo com aquela, diante do contexto fático constante dos autos, imutável na presente via, não comporta guarida; V - Admitir, no caso dos autos, a prevalência do vín-culo biológico sobre o afetivo, quando aquele afi-gurou-se desinfluente para o reconhecimento vo-luntário da paternidade, seria, por via transversa, permitir a revogação, ao alvedrio do pai-registral, do estado de filiação, o que contraria, inequivo-camente, a determinação legal constante do art. 1.610, Código Civil; VI - Recurso Especial a que se nega provimento. RESP 1078285 / MS RECURSO ESPECIAL 2008/0169039-0. MINISTRO MASSA-MI UYEDA - TERCEIRA TURMA. DATA DO JULGA-MENTO 13/10/2009. DATA DA PUBLICAÇÃO DJE 18/08/2010.

O referido caso analisado demonstra que o indivíduo que assume a filiação, exteriorizando a posse de estado de filho vo-luntariamente, descaberá não só a investigação da paternidade biológica, mas também a anulação do registro de nascimento,

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em detrimento do melhor interesse do filho.Noutro giro, é ressalvado ao menor, após dissolvida a so-

ciedade conjugal, o direito de retificar a filiação, provando que o pai presumido não é o verdadeiro na forma e no prazo legal, se assim o desejar futuramente.

Quanto a isso, o Projeto do Estatuto das Famílias prevê, no artigo 74, que “o filho registrado ou reconhecido pode impugnar a paternidade, desde que não caracterizada a posse do estado de filho em relação àquele que o registrou ou o reconheceu”.

Enfim, nota-se que, tanto o pai registrário, quanto o filho afetivo, ambos deverão apresentar provas específicas da neces-sidade de anulação do registro de nascimento, demonstrando a verdadeira relação entre o pai e o filho, posto que a posse de estado de filho constitui a base sociológica da filiação, é esta noção o sentido verdadeiro de paternidade.

3.3 Do estudo social elaborado por profissionais especia-listas

A “posse de estado de filho” é verificada através de estudo social realizado por profissionais especializados, avaliando todos os aspectos emocionais e psicológicos da relação, sendo verifica-do quem está assumindo o papel de pai, com sentimentos nobres de carinho, amor e de participação na vida da criança.

Nessa linha, Sílvio de Salvo Venosa (2010, p. 230) afir-ma que a matéria é muito mais sociológica e psicológica do que jurídica, portanto, fundamental é que o juiz de família esteja atento a esses aspectos e sempre se valendo dos profissionais auxiliares especialistas nessas áreas.

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Outrossim, tal estudo jamais ficará vinculado ao laço bio-lógico. Os profissionais procederão na forma do artigo 28, pará-grafo 3°, do ECA, em que identificarão o vínculo de parentesco de pai e filho e a relação de afinidade ou de afetividade, quais sejam a posse de estado de filho e ao genitor as responsabilida-des decorrentes do poder familiar (DIAS, 2009, p. 325).

O parecer final apresentado pela equipe especializada contribuirá para o juiz formar a sua convicção para a tomada de decisão. Se reconhecer o vínculo afetivo, ao filho estarão garantidos todos os direitos sucessórios, como pedir alimentos, pleitear e gozar herança, propor ação de nulidade de partilha.

O estudo visa secundariamente identificar também situa-ções de alienação parental ou situação de risco (abandono na subsistência); sempre visando à proteção, à dignidade e ao in-teresse do filho nas relações recíprocas de afeto.

4 DOS DIREITOS E DEVERES

4.1 Do dever de alimentar

A obrigação alimentar deverá ser o suficiente para man-ter a mínima dignidade do alimentado, respeitando a proporção de suas necessidades e dos recursos da pessoa obrigada, sem que desfalque o necessário para o seu sustento (CÓDIGO CIVIL, 2002, artigo 1.695).

A isso se denomina princípio da proporcionalidade (bi-nômio: necessidade X possibilidade), na qual busca a sua fun-damentação em outros dois: o enriquecimento sem causa e a dignidade da pessoa humana.

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A legislação civil não se posicionou em limitar o pa-rentesco quanto ao direito de pedir alimentos (CÓDIGO CIVIL, 2002, artigo 1.694). Assim, deve-se entender que é possível pedir alimentos pelo filho ao pai afetivo, conforme o entendi-mento do enunciado 341 aprovado na IV Jornada de Direito Civil pelo Conselho da Justiça Federal: “para os fins do art. 1.696, a relação socioafetiva pode ser elemento gerador de obrigação alimentar”.

Nessa mesma linha, o projeto do Estatuto das Famílias (2007, artigo 211) prevê que “proposta ação investigatória por menor de idade ou incapaz, havendo forte prova indiciária da paternidade, biológica ou socioafetiva, o juiz deve fixar alimentos provisórios, salvo se o autor declarar que deles não necessita”.

Por outro lado, Maria Berenice Dias (2009, p. 387) afir-ma que, na existência da suspensão do poder familiar, quando a criança é posta em família substituta ou sob a guarda de tercei-ros, os genitores são obrigados a prestar alimentos ao filho, por não se extinguir o poder familiar dos pais, que não ficam livres da obrigação alimentar; exceto se o menor for adotado, cessan-do a obrigação devido à sua extinção.

Dentre todas essas considerações, as obrigações ineren-tes da paternidade socioafetiva não são absolutas. Situações fundadas em vício de vontade por parte do genitor, permeada por sentimentos de rejeição, traição e mágoa (adultério), mes-mo eventual existência de posse de estado de filho, podem re-sultar na exoneração da obrigação alimentar, por não atender aos interesses da criança.

A jurisprudência trazida aqui é por si só esclarecedora:

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APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNI-DADE. PRESUNÇÃO PATER EST. ADULTÉRIO COM-PROVADO. DOIS EXAMES DE DNA AFASTANDO A PATERNIDADE. DESCABIMENTO DE ALEGAÇÃO DE FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA. 1. A ação negatória de paternidade de que trata o art. 1601 do Código Civil existe justamente para casos em que o mari-do pretende impugnar a paternidade de filho havi-do na constância do casamento e é perfeitamente cabível em caso de adultério comprovado. 2. A eventual existência de posse de estado de filho, fundada em vício de vontade por parte do geni-tor, não é óbice à procedência da negatória, uma vez que não atende aos interesses da criança a manutenção de uma paternidade exclusivamente jurídica, permeada por sentimentos de rejeição, traição e mágoa. 3. Não há qualquer benefício para a criança em mantê-la juridicamente vincula-da a um pai que, embora a tenha criado nos pri-meiros anos de vida, desde o ano de 2001 o tem como a materialização do adultério, com todos os sentimentos negativos que a situação envolve. 4. Afastada a paternidade, impõe-se a exoneração da obrigação alimentar. Deram Provimento, por Maioria. (Segredo De Justiça). Apelação Cível nº 70017264730, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, RELATOR: LUIZ FELIPE BRASIL SANTOS, Julgado em 06/12/2006.

Da mesma forma, os Tribunais também têm entendido pela exoneração de alimentos quando a tenra idade da criança afasta a paternidade socioafetiva e o resultado do exame de DNA afasta a paternidade biológica. Vejamos:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. EXONE-RAÇÃO DE ALIMENTOS. Se o resultado do exame de DNA afasta a paternidade biológica, e a tenra idade da criança afasta a paternidade socioafeti-

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va, correta a decisão liminar que concedeu a an-tecipação de tutela, exonerando o autor da pres-tação alimentícia, sob pena de restar configurado dano irreparável, já que a verba alimentar possui caráter irrepetível. Negado Provimento, de Plano. Agravo de Instrumento Nº 70033701764, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Alzir Felippe Schmitz, Julgado em 04/12/2009.

Realizadas tais reflexões, nota-se a grande necessidade de estudo social realizado por profissionais especializados para avaliar os aspectos emocionais e psicológicos de cada relação familiar, o qual identificará o pai de fato do menor, quem a crian-ça tem por referência paterna, uma vez que afeto não é algo que se possa impor.

Desse modo, não haverá obrigação alimentar quando dois indivíduos ligados por vínculo parental de afinidade em 1º grau (padrasto/enteado) conviverem juntos, mas não se coloca-rem nas posições de pai e filho em seus corações e perante a sociedade, conforme os três pilares citados: nome, trato e fama.

Assim, portanto, caso o companheiro da mãe não tenha travado uma relação afetiva recíproca com o filho dela, ainda a obrigação alimentar continuará sendo do pai biológico, por ser ele a sua referência paterna.

4.2 Do direito sucessório

A prevalência da paternidade socioafetiva frente à bio-lógica tem como principal fundamento o melhor interesse da criança e do adolescente, ou seja, visa garantir direitos aos fi-lhos face às pretensões negatórias de paternidade.

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Entretanto, os adeptos da corrente biológica defendem que, se é o próprio filho quem busca o reconhecimento do vín-culo biológico com outrem, porque durante toda a sua vida foi induzido a acreditar em uma verdade que lhe foi imposta por aqueles que o registraram, não é razoável que se lhe imponha a prevalência da paternidade socioafetiva, a fim de impedir sua pretensão.

Nesse sentido, é o seguinte entendimento do Superior Tribunal de Justiça:

FAMÍLIA. FILIAÇÃO. CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE E PE-TIÇÃO DE HERANÇA. VÍNCULO BIOLÓGICO. PA-TERNIDADE SOCIOAFETIVA. IDENTIDADE GENÉTI-CA. ANCESTRALIDADE. DIREITOS SUCESSÓRIOS. ARTIGOS ANALISADOS: ARTS. 1.593; 1.604 e 1. 609 do Código Civil; ART. 48 do ECA; e do ART. 1º da Lei 8.560/92. 1. Ação de petição de herança, ajuizada em 07.03.2008. Recurso especial con-cluso ao Gabinete em 25.08.2011. 2. Discussão relativa à possibilidade do vínculo socioafetivo com o pai registrário impedir o reconhecimento da paternidade biológica. 3. A maternidade/pa-ternidade socioafetiva tem seu reconhecimento jurídico decorrente da relação jurídica de afeto, marcadamente nos casos em que, sem nenhum vínculo biológico, os pais criam uma criança por escolha própria, destinando-lhe todo o amor, ternura e cuidados inerentes à relação pai-filho. 4. A prevalência da paternidade/maternidade socioafetiva frente à biológica tem como prin-cipal fundamento o interesse do próprio menor, ou seja, visa garantir direitos aos filhos face às pretensões negatórias de paternidade, quando é inequívoco (i) o conhecimento da verdade biológi-ca pelos pais que assim o declararam no registro de nascimento e (ii) a existência de uma relação de afeto, cuidado, assistência moral, patrimonial

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e respeito, construída ao longo dos anos. 5. Se é o próprio filho quem busca o reconhecimento do vínculo biológico com outrem, porque durante toda a sua vida foi induzido a acreditar em uma verdade que lhe foi imposta por aqueles que o registraram, não é razoável que se lhe imponha a prevalência da paternidade socioafetiva, a fim de impedir sua pretensão. 6. O reconhecimento do estado de filiação constitui direito personalís-simo, indisponível e imprescritível, que pode ser exercitado, portanto, sem qualquer restrição, em face dos pais ou seus herdeiros. 7. A paternida-de traz em seu bojo diversas responsabilidades, sejam de ordem moral ou patrimonial, devendo ser assegurados os direitos sucessórios decor-rentes da comprovação do estado de filiação. 8. Todos os filhos são iguais, não sendo admitida qualquer distinção entre eles, sendo desinfluente a existência, ou não, de qualquer contribuição para a formação do patrimônio familiar. 9. Recur-so especial desprovido. (STJ - REsp: 1274240 SC 2011/0204523-7, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 08/10/2013, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 15/10/2013).

Mas a aplicação dessa corrente resguarda cautelas. Não seria justo reconhecer a paternidade biológica quando o filho sempre soube que seu pai registral não era o biológico e conti-nuava sendo tratado como se filho fosse, fortemente edificado na convivência familiar, restando consolidada a relação jurídica de paternidade socioafetiva.

Ou seja, a ação de investigação de paternidade cumu-lada com retificação de registro possivelmente será julgada im-procedente, quando o único propósito do filho for para obtenção de herança.

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É preciso ter em mente que o Estado protege de forma especial a família e a dignidade de cada indivíduo, por isso, não é cediço dizer que os valores de ordem unicamente patrimonial não serão cultuados no Direito das Famílias.

Esse também é o entendimento do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul:

INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. EXISTÊNCIA DE PATERNIDADE SOCIOAFETIVA DO PAI REGIS-TRAL. INTERESSE EXCLUSIVAMENTE PATRIMO-NIAL DAS AUTORAS. 1. É preciso ter em mira que a família é protegida de forma especial pelo Estado por ser a própria base da sociedade, cui-dando o Estado para que, dentro dela, as pes-soas se mantenham protegidas na sua dignida-de, recebendo as primeiras e mais importantes noções de vida social e também os preceitos morais que devem nortear as suas vidas. 2. É improcedente a ação de investigação de pater-nidade quando as autoras sempre souberam que o pai registral não era o pai biológico delas e sempre foram tratadas como filhas, restando consolidada a relação jurídica de paternidade socioafetiva por mais de quarenta anos, tanto que somente providenciaram na ação investiga-tória poucos dias após a morte do pai biológico, com o claro e exclusivo propósito de obterem uma herança. 3. Parece claro que, para as au-toras, se o seu pai biológico de nada valeu en-quanto vivo, talvez lhes possa servir depois de morto, nem que, para isso, precisem desconsi-derar a figura daquele que foi sempre o verda-deiro pai delas, agora já falecido, mas foi quem lhes deu o nome e o sustento, isto é, o amparo material e moral, bem como o suporte afetivo, nos seus primeiros e mais importantes anos de vida, e cujo nome já carregam ao longo de apro-ximadamente quarenta anos. 4. Se as autoras vislumbram apenas a sua vantagem econômica em decorrência da possível herança, mas em

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detrimento da memória de seu pai registral e se, enfim, são esses os valores cultuados pe-las autoras, não podem ser os valores que a sociedade e o Estado devem tutelar. Recurso desprovido. (Apelação Cível Nº 70060592045, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, Julgado em 27/08/2014) (TJ-RS - AC: 70060592045 RS , Relator: Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, Data de Julgamento: 27/08/2014, Sétima Câmara Cível, Data de Pu-blicação: Diário da Justiça do dia 02/09/2014).

Nesse contexto apresentado, ou seja, de ter o filho o co-

nhecimento que o pai registrário não é o biológico, até poderá propor ação investigatória de paternidade, a qual será acolhida, mas se julgada procedente, apenas terá conteúdo meramente declaratório na sentença, sem efeitos jurídicos e sem levar a registro (DIAS, 2009, p. 325) .

A referida ação apenas declarará a existência do vínculo biológico, por ser um direito personalíssimo da parte (TARTUCE, 2006, p. 284), ou seja, a filiação permanece inalterada, não transportando as obrigações ao pai biológico, eis que tais carac-terísticas não estão atreladas ao fator genético.

Assim, portanto, reconhecido a paternidade socioafetiva em razão das características da posse do estado de filho, calca-da no afeto recíproco entre as pessoas que ocupam os papéis de pai e filho, impossível deveria ser a anulação do registro de nascimento em favor do biológico, quando o cunho for exclusi-vamente econômico, restando apenas ao filho uma sentença declaratória de existência de vínculo biológico.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A tradicional família, instituída na origem biológica, per-deu espaço. Atualmente, há uma heterogeneidade de estruturas familiares diversa da consanguinidade, quebrando-se modelos.

Consequentemente, a paternidade jurídica, biológica e afetiva, por vezes, se confronta com casos em que deve imperar a socioafetiva, em virtude da dignidade da pessoa humana e do melhor interesse da criança.

Portanto, o exame de DNA não é a única forma de provar a paternidade e os direitos a ela inerentes, pois em todos os casos deverá ser estudado o contexto social em que se insere e, principalmente, identificar a posse do estado de pai e filho, o que amparará o vínculo parentesco civil.

Haverá situações, contudo, em que a convivência domici-liar de padrastos com enteados não estabelecerá vínculos afeti-vos, por não se colocarem nas posições de pai e filho; ou quan-do a tenra idade da criança afastará a paternidade socioafetiva. Em casos assim, não existirá qualquer direito inerente à pater-nidade.

Em suma, a filiação socioafetiva advém das característi-cas da posse do estado de filho, e é calcada no afeto recíproco entre as pessoas que ocupam os papéis de pai e filho e, após avaliados todos os aspectos emocionais e psicológicos da re-lação familiar, poderá resultar no reconhecimento dos direitos e deveres inerentes à paternidade, desprezando-se a verdade real.

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ATIVISMO JUDICIAL: APLICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA PROPORCIONALIDADE

E DA RAZOABILIDADE OU CRIAÇÃO JURISDICIONAL DE NOVOS DIREITOS

JUDICIAL ACTIVISM: APPLYING THE PRINCIPLES OF PROPORTIONALITY AND

REASONABLENESS OR CREATION OF NEW CONSTITUTIONAL RIGHTS

Viviane Tereza Pereira1

Catia Rejane Liczbinski Sarreta2

RESUMOO presente artigo dispõe sobre o ativismo judicial, realizando uma breve reflexão sobre a tripartição dos poderes adotada pela Constituição brasileira, bem como sua Teoria de Freios e Con-trapesos desenvolvida por Montesquieu, às implicações do Es-tado Democrático de Direito. Busca-se analisar a incorporação do ativismo judicial no Brasil, assim como sua gênese no direito americano, e sua demasiada influência na atividade judiciária. O estudo do tema enfrentado a partir de pesquisas bibliográficas, exame doutrinário e legal, remete-se a sua devida importância, vez que já é fato notório as decisões polêmicas nos Tribunais em nome do ativismo judicial. O tema em questão aborda o uso dos princípios da proporcionalidade e razoabilidade como justifi-cativa da postura ativista que vem se mostrando nos Tribunais, 1 Acadêmica do Curso de Direito da UNIVEL – Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas de Cascavel. 2 Advogada, Doutora em Ciências Sociais pela UNISINOS. Graduação em Direito. Especialista em Direito Privado. Mestre Pesquisadora do CNPQ. Professora do Curso de Direito da UNIVEL – Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas de Cascavel. Coordenadora dos Grupos de Pesquisa: “Consumidor Consciente: Direito e Deveres” e “O Direito Humano Fundamental a cultura, sua diversidade e efetivação”.

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havendo então a necessidade de questionamentos sobre essa justificativa. Sendo assim questiona-se se há limites no ativismo judicial. Em resposta ao problema, perfaz-se o presente artigo com uma análise da aplicação da Constituição ao caso concre-to, uma vez que a norma constitucional deve ser limite a ser respeitado pelo magistrado em suas decisões. Sua elaboração se deu sob o método dedutivo.

PALAVRAS-CHAVE: Ativismo, Limites, Constituição.

ABSTRACTThis article provides for judicial activism, performing a brief reflection on the tripartition of powers adopted by the Brazilian Constitution. Besides the theory of checks and balances developed by Montesquieu, the implications of democratic law state. In order to analyze the incorporation of judicial activism in Brazil, as well as its genesis in American law, and its too much influence in judicial activity. The study topic was faced from literature searches, doctrinal and legal discuss, refers to its importance, since it is already known the controversial decisions in the courts in the name of judicial activism. The subject matter covers the use of the principles of proportionality and reasonableness as a justification for activist approach that has been proven to the courts. So there is the need of questions about this justification. Therefore the question is, if there are limits on judicial activism. Replying the problem, it makes up this article with an analysis of the application of the Constitution to the case, since the constitutional norms must be limit to be respected by the judges in their decisions. Its preparation was made under the deductive method.

Keywords: Activism, Limits, Constitution.

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1 INTRODUÇÃO

Com as divergências doutrinárias com relação às ativi-dades do Poder Judiciário, faz-se necessário o debate e a busca de reflexões a despeito do tema em destaque.

Muito se tem falado sobre Ativismo Judicial e Poder Criativo do Judiciário, mas para tanto será de suma importân-cia indagações pertinentes ao tema. Sabe-se, portanto, que a Constituição pátria adotou o Princípio da Tripartição de Poderes de Montesquieu, determinando a divisão dos poderes em sua nação. Contudo, as mudanças sociais e necessidades da socie-dade levam a uma exigência maior dos poderes elencados na Constituição. Para tanto, faz-se necessária a devida valorização do texto normativo de forma a aplicá-lo no caso concreto.

No entanto, deve haver a devida interpretação do mes-mo, não se limitando ao seu conteúdo, mas também abarcando o caso concreto. Encontra-se aí a necessidade da devida refle-xão sobre a existência ou não de limites a essa interpretação.

Muitos doutrinadores entendem que existe a necessida-de de se fazer valer na interpretação da norma constitucional ao caso concreto, atribuindo, a tanto, papel fundamental do judi-ciário, denominando ainda como criação livre do direito.

Para a doutrina, a Constituição do Estado consolida-se em lei fundamental, a organização de seus elementos essen-ciais, abarcando as normas jurídicas, escritas ou costumeiras, que regulam a forma do Estado e a forma de seu governo, bem como o modo de aquisição e exercício do poder, além dos direi-tos fundamentais humanos e suas garantias.

Nosso sistema jurídico constitucional deve, de forma ob-

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jetiva, assegurar a observância das normas constitucionais, con-sequentemente, a sua estabilidade e preservação. No entanto, mais do que preservar as normas constitucionais, a finalidade precípua da jurisdição constitucional perfaz a proteção e efetiva-ção dos direitos e garantias fundamentais.

Sendo assim, para a efetividade desses direitos substan-ciais ao indivíduo, dá-se a necessidade de uma atividade judiciá-ria proativa, porém, com a devida cautela com o afinco de asse-gurar a aplicação do texto constitucional aos casos concretos.

Diante desse paradigma, tem-se um movimento que está ganhando força e grande aplicação nos Tribunais e juizados em todo país, o Ativismo Judicial.

A ideia desse movimento está associada a uma participa-ção mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos va-lores e fins constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos outros dois Poderes. Com origem na jurisprudência norte-americana, vem ganhando força e adeptos no Brasil.

Nesse sentido, o judiciário brasileiro vem manifestando-se claramente como ativista em decisões nos Tribunais. Com a bandeira dos princípios da proporcionalidade e razoabilidade e o discurso de se extrair o máximo das potencialidades do texto cons-titucional, aplica-se o ativismo judicial com grande frequência.

O fenômeno do Ativismo Judicial busca a efetivação dos direitos, atendendo às necessidades da sociedade, posição de parte da doutrina. Já a outra parte da doutrina se posiciona no sentido que o Ativismo Judicial nos apresenta uma criação livre do poder judiciário. Então se questiona: Em nome do ativismo judicial, qual é o limite dessa atuação do judiciário?

Em razão dessa reflexão, o presente trabalho busca apre-

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sentar a origem do ativismo judicial, sua aplicação, culminado com os princípios da proporcionalidade e razoabilidade, dentro da esfera do Direito, bem como suas consequências e em es-pecial evidenciando seus limites, ou seja, até onde o judiciário poderá chegar em nome de um ativismo.

2 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS Com o desenvolvimento da sociedade e significativas mu-danças de suas necessidades, novos valores foram introduzidos na prática jurídica, não sendo mais possível apenas a aplicação da lei, aquela que outrora era idolatrada passou a ser comple-mentada por princípios para atingir o caso concreto, buscando solucionar conflitos que a letra rígida da lei não abarcava. Nesse sentido, em razão de atender às demandas jurisdi-cionais, surge a aplicação dos princípios constitucionais, trazen-do consigo um fundamental papel do legislador.

2.1 O princípio da separação dos poderes

Muito se tem falado em Estado Democrático de Direito, porém, para que haja essa legitimação, devem se manifestar plenamente os poderes que dele são emanados. Nesse sen-tido, então, pensa-se que, quanto menor for a centralização, maior será a garantia de que não haverá arbitrariedades. Assim, a maioria das Constituições modernas adotou a Teoria da Tripar-tição dos Poderes, desenvolvida por Montesquieu. O princípio da separação de poderes já se manifestava no pensamento de Aristóteles, John Locke e Rosseau, o qual

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veio a ser definido e divulgado por Montesquieu e que foi di-fundida nas Constituições das ex-colônias inglesas da Améri-ca, concretizando-se em definitivo na Constituição dos Estados Unidos, em 1787. Tornou-se, com a Revolução Francesa, um dogma constitucional, ao ponto de o Art. 16 da Declaração de Direitos do homem e do Cidadão, de 1789, declarar que não teria constituição a sociedade que não assegurasse a separação de poderes, trazendo à tona a compreensão de que tal teoria, posteriormente compreendida como princípio, constitui extrema relevância para a garantia de direitos do homem. Contudo, no mundo contemporâneo, pode-se dizer que o princípio não configura mais aquela rigidez, conforme as pala-vras de Silva (2005).

A ampliação das atividades do Estado moderno impôs uma nova visão da teoria da separação de poderes e novas formas de relacionamento entre os órgãos legislativo e executivo e deste com o judiciário, tanto que atualmente prefere-se falar em colaboração de poderes, que é característica do parlamentarismo, desenvolveram-se as técni-cas de independência orgânica e harmônica dos poderes.

Nesse contexto, surgem novas perspectivas de um Estado Democrático de Direto e questionamentos a respeito da efetiva-ção dos Direitos Fundamentais e real efetivação da Constituição.

2.2 Independência e harmonia nos diferentes poderes

A Constituição de 1988 manteve a cláusula, independen-tes e harmônicos entre si, mandamento próprio da divisão de

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poderes, deixando clara a incorporação do princípio ora abordado. Diante disso, faz-se referência à abordagem de José

Afonso da Silva, em seu livro Curso de Direito Constitucional Positivo.

A independência dos poderes significa: a) Que a investidura e permanência das pessoas num dos órgãos do governo não dependem da confiança nem da vontade dos outros;b) Que no exercício das atribuições que lhes se-jam próprias, não precisam os titulares consultar os outros e nem necessitam de sua autorização;c) Que na organização de respectivos serviços, cada um é livre, observadas apenas as condições constitucionais e legais; assim é que cabe ao Pre-sidente da República promover e extinguir cargos públicos da Administração Federal, bem como exonerar e demitir seus ocupantes, enquanto é de competência do Congresso Nacional e dos Tribu-nais promover os cargos dos respectivos serviços administrativos, exonerar ou demitir seus ocupan-tes; as Câmaras e do Congresso e os Tribunais competente para elaborar os respectivos regimen-tos internos, em que consubstanciam as regras de seu funcionamento, sua organização, direção e polícia, ao passo que ao Chefe do Executivo in-cube a organização da administração pública, es-tabelecer seus regimentos e regulamentos. Agora, a independência e autonomia do Poder Judiciário se tornaram ainda mais pronunciadas, pois pas-sou para a sua competência também a nomeação de juízes e tomar outras providências referentes a sua estrutura e funcionamento, inclusive em ma-téria orçamentária. (SILVA, 2005, p.110).

A harmonia entre os poderes se verifica pela relação de cortesia recíproca e respeito pelas prerrogativas e faculdades a que todos têm direito. Para tanto, vale ressaltar que a indepen-

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dência entre os órgãos não é absoluta, há interferências que visam equilibrar as suas devidas atividades, os chamados freios e contrapesos. A busca do equilíbrio necessário à realização do bem da coletividade é indispensável para evitar o arbítrio e o desmando de um em detrimento do outro e especialmente dos governados.

Se ao Legislativo cabe edições de normas gerais e im-pessoais, estabelece-se um processo para a sua formação em que o Executivo tem participação importante, quer pela iniciativa das Leis, quer pela sanção e pelo veto. Mas a iniciativa legis-lativa do Executivo é contrabalançada pela possibilidade que o Congresso tem de modificar-lhe o projeto por via de emendas e até de rejeitá-lo. Por outro lado, o presidente da República tem o poder do veto, que pode exercer em relação a projetos de sua iniciativa, dos congressistas, bem como em relação às emen-das aprovadas a projetos de sua iniciativa. Em compensação, o Congresso, pelo voto da maioria absoluta de seus membros, poderá rejeitar o veto, e, pelo Presidente do Senado, promulgar a lei, se o Presidente da República não o fizer no prazo previsto. Conforme o Artigo 66 Constituição Federal3.

Se o Presidente da República não pode interferir nos trabalhos legislativos, pode obter aprovação rápida de seus projetos, nesse caso lhe é facul-

3 Art. 66. A Casa na qual tenha sido concluída a votação enviará o projeto de lei ao Presidente da República, que, aquiescendo, o sancionará.§ 1º - Se o Presidente da República considerar o projeto, no todo ou em parte, inconstitucional ou contrário ao interesse público, vetá-lo-á total ou parcialmente, no prazo de quinze dias úteis, contados da data do recebimento, e comunicará, dentro de quarenta e oito horas, ao Presidente do Senado Federal os motivos do veto.§ 2º - O veto parcial somente abrangerá texto integral de artigo, de parágrafo, de inciso ou de alínea.§ 3º - Decorrido o prazo de quinze dias, o silêncio do Presidente da República importará sanção.§ 4º O veto será apreciado em sessão conjunta, dentro de trinta dias a contar de seu recebimento, só podendo ser rejeitado pelo voto da maioria absoluta dos Deputados e Senadores. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 76, de 2013)§ 5º - Se o veto não for mantido, será o projeto enviado, para promulgação, ao Presidente da República.§ 6º Esgotado sem deliberação o prazo estabelecido no § 4º, o veto será colocado na ordem do dia da sessão imediata, sobrestadas as demais proposições, até sua votação final. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001)§ 7º - Se a lei não for promulgada dentro de quarenta e oito horas pelo Presidente da República, nos casos dos § 3º e § 5º, o Presidente do Senado a promulgará, e, se este não o fizer em igual prazo, caberá ao Vice-Presidente do Senado fazê-lo.

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tado marcar prazo para a sua apreciação, nos termos dos parágrafos do Art. 64 Constituição Federal4.

Se os Tribunais não podem influir no Legislativo, são au-torizados a declarar inconstitucionalidade das leis, já que cabe a ele, guardião da Constituição, preservar a sua aplicação. O Pre-sidente da República não interfere nas atividades jurisdicionais, em compensação, os Ministros dos Tribunais Superiores são por ele nomeados, sob controle do Senado Federal, a quem cabe aprovar o nome escolhido, diante do disposto no Artigo 52. III, a Constituição Federal5. Dados os exemplos de mecanismo de freios e con-trapesos, caracterizador da harmonia entre os poderes, per-cebe-se a incorporação da teoria de Montesquieu na Carta Magna brasileira. Conforme o exposto, entende-se que os trabalhos do Le-gislativo, do Executivo e do Judiciário só se desenvolverão a bom termo, se esses órgãos se subordinarem ao princípio da harmo-nia, que não significa nem o domínio de um pelo outro nem a sujeição de atribuições, mas sim deve haver a consciente cola-boração e controle recíproco, visando o bem da coletividade. 4 Art. 64. A discussão e votação dos projetos de lei de iniciativa do Presidente da República, do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais Superiores terão início na Câmara dos Deputados.§ 1º - O Presidente da República poderá solicitar urgência para apreciação de projetos de sua iniciativa.§ 2º Se, no caso do § 1º, a Câmara dos Deputados e o Senado Federal não se manifestarem sobre a proposição, cada qual sucessivamente, em até quarenta e cinco dias, sobrestar-se-ão todas as demais deliberações legislativas da respectiva Casa, com exceção das que tenham prazo constitucional determinado, até que se ultime a votação. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001)§ 3º - A apreciação das emendas do Senado Federal pela Câmara dos Deputados far-se-á no prazo de dez dias, observado quanto ao mais o disposto no parágrafo anterior.§ 4º - Os prazos do § 2º não correm nos períodos de recesso do Congresso Nacional, nem se aplicam aos projetos de código.5 Art. 52. Compete privativamente ao Senado Federal:[…]III - aprovar previamente, por voto secreto, após argüição pública, a escolha de:a) Magistrados, nos casos estabelecidos nesta Constituição;b) Ministros do Tribunal de Contas da União indicados pelo Presidente da República;c) Governador de Território;d) Presidente e diretores do banco central;e) Procurador-Geral da República;f) titulares de outros cargos que a lei determinar;[…]

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A desarmonia, porém, se dá sempre que se aumentam atribuições, faculdades e prerrogativas de um em detrimento de outro. Ainda que se fale em colaboração dos poderes de forma a flexibilizar o princípio da separação dos poderes, o mesmo ainda preserva seu objeto de outrora, qual seja, equilibrar, fiscalizar e dividir o poder.

2.3 O Princípio do Estado Democrático

O Estado democrático de direito se funda na soberania popular, que impõe a participação efetiva do povo na coisa pú-blica, condição essa que não se exaure na simples representa-ção. Visa realizar o princípio democrático como garantia geral dos direitos fundamentais da pessoa humana. O Estado Democrático de Direito possui tarefas e princí-pios. Conforme José Afonso da Silva (2004, p. 110), “a tarefa fundamental do Estado Democrático de Direito consiste em su-perar as desigualdades sociais e regionais e instaurar um regime democrático que realize a justiça social”. Neste contexto, cumpre ressaltar que os princípios do Estado Democrático de Direito são: da constitucionalidade, de-mocrático, da justiça social, da igualdade, da divisão dos pode-res, da legalidade, da segurança jurídica e o sistema de direitos fundamentais (SILVA, 2004). A Constituição Brasileira visa garantir um Estado Demo-crático de Direito, e para tanto garante a Dignidade Humana, por meio de uma sociedade justa e solidária, prevalecendo os Direitos Humanos, e tantos outros acobertados pela Carta Magna.

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3 O ATIVISMO JUDICIAL

É comum o debate em relação à atuação do judiciário. Em pouco tempo, o Supremo Tribunal Federal julgou temas de interesse público, ocupando um espaço na política, diante da inércia do Parlamento, casos como Lei da ficha limpa, uniões homoafetivas, estudos com células tronco, aborto de feto anen-cefálico, foram debatidos e decididos no Plenário. Ainda, tornou-se comum, nos noticiários de rede nacional, decisões polêmicas do judiciário que foge à letra da Lei, em busca de soluções de conflitos ainda não normatizados. A intensa atividade judiciária assume um papel interativo chamado pela doutrina de postura proativa, com interferência do judiciário em variados temas não abraçados pelas normas. Essa atividade jurisdicional chama-se Ativismo Judicial. Ativismo e judicialização são temas que frequentam as grandes discussões da teoria jurídica brasileira no mundo acadêmico. O acentuado protagonismo do Poder Judiciário vem despertan-do, não só no Brasil, um conjunto de pesquisas que buscam a explicação da aplicação desse fenômeno, bem como suas con-sequências para a segurança jurídica e sua sujeição ao texto constitucional.

3.1 A origem do Ativismo Judicial

Não há que se falar em Estado de Direito sem que se aprofunde no estudo constitucional. É da constituição que se derivam todos os outros diplomas legais. Surge então o dema-siado interesse de se estudarem as grandes discussões que

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cercam os textos constitucionais, sua interpretação, bem como as tendências que envolvem as aplicações dos enunciados da Carta Magna nos casos concretos. Para tanto, remete-se a suas implicações, versadas com o Estado Democrático de Direito, Separação dos Poderes e movimentos que influenciam a sua aplicação no sistema ju-diciário atual. O Estado Democrático de Direito, como já mencionado, representa o advento estabelecido pela modernidade, adequan-do-se às Constituições Modernas e elas a ele, o qual se norma-tizou via de regras e princípios, trazendo uma grande carga de valores assim, por meio dos Direitos Fundamentais, a reali zação e efetivação da proteção de direitos individuais, difusos e coleti-vos, visando à proteção das minorias frente às maiorias.

Apesar de o Brasil ter uma Constituição rígida, seus conte-údos vêm sofrendo diversas alterações através de Emendas, agregando-se aos princípios democráticos, momento em que a democracia passa a se vincular inteiramente ao Estado de Direito. Nas palavras de Canotilho (1999, p. 156), apresenta-se uma definição de Constituição.

Constituição é uma ordenação sistemática e ra-cional da comunidade política, plasmada num documento escrito, mediante o qual se garan-tem os direitos fundamentais e se organiza, de acordo com o princípio da divisão de poderes, o poder político.

Como dispõe o doutrinador, a Constituição é dotada de garantias fundamentais, emanada de questões políticas e de acordo com a divisão de poderes.

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Assim, nesse modelo de Estado, estabelece-se o Princípio

da Supremacia Cons titucional, que visa amplamente as garantias

e liberdades de direitos individuais e sociais, visando sempre o

bem comum, por meio de preceitos de justiça social e substan-

cial, e sempre com a consonância dos Direitos Fundamentais.

Para que haja essa efetivação de direitos, tão importante

para o bem comum e assegurada pelo Estado Social de Direito,

surgem movimentos que ganham força à medida que vão se

aplicando a casos concretos no sistema judiciário do país. A

esse movimento, dá-se o nome de Ativismo Judicial.

Para melhor compreensão a respeito do tema aqui trata-

do, vale salientar a sua origem.

A sua origem remonta à jurisprudência norte-a-mericana. Registre-se que o ativismo foi, em um primeiro momento, de natureza conservadora. Foi na atuação proativa da Suprema Corte que os setores mais reacionários encontraram ampa-ro para a segregação racial. Logo após produziu jurisprudência progressista em matéria de direi-tos fundamentais, sobretudo envolvendo negros, mulheres, assim como no tocante ao direito de privacidade e de interrupção da gestação (BAR-ROSO, 2008, p. 8).

Como exposto, o nascimento do Ativismo Judicial já se

deu diante da necessidade de se atender às demandas sociais

que a própria Lei, até então, não atendia. Esse contexto traz

um olhar positivo para essa nova forma de se efetivar e atingir

direitos. Remonta-se ao pensamento de desejo de justiça e a

questão que assombra é: a que preço?

Ainda sobre a origem do Ativismo Judicial, segundo Tei-

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xeira (2012), “foi com o historiador Arthur Schlesinger Jr., em uma matéria da revista Fortune intitulada The Supreme Court: 1947, que o termo judicial activism entrou no léxico não apenas jurídico, mas, sobretudo para o mundo político e popular. Re-ferindo à capacidade de desempenhar um papel afirmativo na promoção do bem-estar social, Schlesinger chamou de “ativis-tas judiciais” (judicial activists) os juízes Hugo Black, Willian O. Douglas, Frank Murphy e Wiley Rutledge”. Desde então, o movimento da Suprema Corte ganhou espaço e diversos simpatizantes em todo o mundo. No Brasil, o Ativismo Judicial ganha força com a Carta Magna de 1988, a qual atribui uma série de prerrogativas ao magistrado.

3.2 O Ativismo Judicial no Brasil

O Brasil vem manifestando um posicionamento ativista em decisões nos Tribunais. Em prol dos princípios da propor-cionalidade e razoabilidade e o discurso de se extrair o máximo das potencialidades do texto constitucional, aplica-se o ativismo judicial com grande frequência nas decisões jurisdicionais. A ideia de Ativismo Judicial está associada a uma partici-pação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos outros dois Poderes.

A postura ativista se manifesta por meio de dife-rentes condutas, que incluem: a aplicação direta da Constituição a situações não expressamente contempladas em seu texto e independente-mente de manifestação do legislador ordinário;

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a declaração de inconstitucionalidade de atos normativos emanados do legislador, com base em critérios menos rígidos que os de patente e ostensiva violação da Constituição; a imposição de condutas ou de abstenções ao Poder Público, notadamente em matéria de políticas públicas (BARROSO, 2008, p. 6).

No Brasil, sob o manto do ativismo judicial, a doutrina produziu diferentes posicionamentos a respeito da atividade ju-risdicional, de forma a manifestar oscilações de aproximação e afastamento entre a cultura jurídica do Brasil e Estados Unidos. Diante disso, formaram-se muitas especulações sobre o assunto e divergências doutrinárias, as quais influenciaram diretamente na atuação dos juízes em tribunais, sendo o atual contexto de-nominado por Streck como ativismo judicial à brasileira. Para o doutrinador, o ativismo judicial à brasileira é a incorporação do movimento norte-americano ao contexto bra-sileiro, que difere daquele, tornando a sua aplicação perigosa caso não se observem os critérios que a norma nos impõe. Para ele, a forma à brasileira vincula um ato de vontade do julgador. Para Streck (2013), “o ativismo é behaviorista, porque depende da vontade do poder, portanto, da pura subjetividade do julgador (é, pois, comportamental)”. Diante de tais informações, questiona-se sobre quais as consequências do movimento do Ativismo Judicial no Brasil, seus limites de atuação adstritos aos princípios da Razoabilida-de e Proporcionalidade ou ainda se esse movimento extrapola esses princípios e o que isso reflete no panorama judiciário.

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3.3 Ativismo Judicial e Judicialização

Ativismo Judicial e Judicialização, apesar de comumente se tratarem como sinônimos, não são a mesma coisa. A judicialização é um fenômeno que independe da von-tade do Poder Judiciário, está diretamente envolvida por uma transformação cultural profunda pela qual passaram os países que se organizam politicamente em torno do regime democráti-co, como o Brasil. Barroso (2009) dispõe que a judicialização representa, em grande parte, a transferência de poder político para o Judi-ciário, principalmente, para o Supremo Tribunal Federal. “A ju-dicialização é fato”. Para o constitucionalista, há três causas para a incorporação da judicialização em nosso país. São elas: a redemocratização do país, que levou as pessoas a procurarem mais o Judiciário; a constitucionalização, que fez com que a Constituição de 1988 tratasse de inúmeros assuntos; e o siste-ma de controle de constitucionalidade. Sendo assim, o fenômeno da Judicialização ocorre quan-do, na existência de uma norma constitucional, presume-se uma pretensão objetiva ou subjetiva que é pleiteada e, nesse sentido, cabe ao juiz decidir. Em que pese a pretensão objetiva de acesso à educação, por exemplo, quando o poder judiciário é chamado a conhecer o fato, este não poderá negar a emitir uma decisão, seja ela qual for, uma vez que a Constituição a garante para todos. No que diz respeito ao Ativismo Judicial, esse possui suas raízes, completamente diversas da judicialização. Nesse movi-mento, liga-se a um desejo do órgão judicante com relação à

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possibilidade de alteração dos contextos político-sociais. Pode ser conservador ou progressista. No final, o resultado é o mes-mo, ou seja, o Judiciário agindo por motivos de convicção e crença pessoal do magistrado, e não em face da moralidade instituidora da comunidade política. Segundo Barroso (2009), o ativismo, ao contrário da ju-dicialização, não é fato, mas atitude. Acontece quando há um déficit de outros Poderes e o Judiciário aplica princípios a situa-ções não previstas em leis. Ele cita como exemplo a fidelidade partidária, quando o Tribunal Superior Eleitoral estabeleceu, e o Supremo confirmou, norma não prevista na Constituição em nome do princípio democrático. A demanda para acabar com o troca-troca de partido, diz, não foi atendida pelas instâncias políticas competentes. Com atuação diversa, os dois movimentos que envolvem a atividade jurisdicional buscam o mesmo intuito, qual seja, a efetivação dos direitos e o bem comum, historicamente tão de-sejado por todos.

4 LIMITES DO ATIVISMO JUDICIAL

No contexto em que se encontram as atividade e deci-sões do Poder Judiciário, espera-se a resposta no texto cons-titucional, com uma interpretação proativa, que visa extrair o máximo das potencialidades do texto constitucional propagan-do seu sentido e extensão. No entanto, questiona-se se esse fenômeno busca a efetivação dos direitos, atendendo às ne-cessidades da sociedade ou nos apresenta uma criação livre do poder judiciário?

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Em nome do ativismo judicial, qual é o limite dessa atuação do judiciário? Para responder a esse questionamento, faz-se necessária uma análise de diferentes posicionamentos de doutrinadores do mundo jurídico, sendo que todos buscam a mesma coisa: explicar o cenário judicial em que estamos vivendo, qual seja, com diferentes decisões sobre o mesmo tema, com a interferência do judiciário naquilo que o Parla-mento deveria decidir e ainda com argumentos como decido conforme a minha consciência. Para tanto, há diferentes posicionamentos em relação ao tema em comento, chamado de atividade proativa jurisdicional. Para alguns, o julgador à frente do caso concreto pode se valer de Princípios para a resolução do mesmo, em busca de atender as demandas sociais que já extrapolam os textos normativos. Nesse prisma, os Princípios da Proporcionalidade e Razoabilida-de podem auxiliar o julgador diante de tais situações. Também há o posicionamento que entende que o ati-vismo judicial procura extrair o máximo das potencialidades do texto constitucional, para assim atingir as necessidades sociais. Para essa corrente, não se quer, com este fenômeno, invadir o campo da criação livre do Direito, papel típico do Poder Legisla-tivo, e sim tornar acessível o bem estar social. Contudo, em uma terceira corrente, prevalece o enten-dimento de que o judiciário não pode interferir nas outras esfe-ras, visto que a Constituição Federal Brasileira adotou o Princí-pio de Separação dos Poderes. Em sua atividade, não se pode admitir a criação de novos direitos, uma interpretação criativa do texto constitucional, o que levaria a um abalo ao Estado Democrático de Direito.

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Ainda conforme uma quarta posição, os limites para a subjetividade nas decisões é e sempre será a Constituição. As decisões dos tribunais não podem e não devem estar pautadas na vontade e na subjetividade do julgador. A Lei limita essa sub-jetividade, possibilitando maior segurança nas decisões.

4.1 Princípios da Proporcionalidade e Razoabilidade

Os princípios são mandamentos de otimização face às possibilidades jurídicas e fáticas. É possível afirmar que os prin-cípios estão enraizados nos corações das constituições após longos debates em relação as suas respectivas normatividades. Dentre os princípios que iluminam o novo Direito Consti-tucional, ganha cada vez mais relevo, inclusive na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, o princípio da proporcionalidade. É possível vislumbrar duas funções distintas desempe-nhadas pelo referido princípio no sistema normativo. Na primeira delas, o princípio da proporcionalidade configura instrumento de salvaguarda dos direitos fundamentais contra a ação limitativa que o Estado impõe a esses direitos. Em outro olhar, tal princípio também cumpre a relevante missão de funcionar como critério para solução de conflitos de direitos fundamentais, através de juízos comparativos de ponde-ração dos interesses envolvidos no caso concreto. Essa função é ressaltada por Bonavides (2007, p. 259).

Uma das aplicações mais proveitosas contidas potencialmente no princípio da proporcionalidade é aquela que o faz instrumento de interpretação toda vez que ocorre antagonismo entre direitos

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fundamentais e se busca daí solução conciliatória, para a qual o princípio é indubitavelmente apro-priado. As cortes constitucionais europeias, no-meadamente o Tribunal de Justiça da Comunida-de Europeia, já fizeram uso frequente do princípio para diminuir ou eliminar a colisão de tais direitos.

Para a devida aplicação dos princípios, faz-se necessário

observar a teoria da máxima proporcionalidade, ou seja, a pro-

porcionalidade aplicada sobre o rol das três máximas, da ade-

quação, da necessidade (mandamento do menos gravoso) e da

proporcionalidade em sentido estrito (mandamento do sopesa-

mento propriamente dito). Ao observar a máxima da proporcio-

nalidade, justifica-se a aplicação ao caso concreto e à adequa-

ção do princípio.

Para Alexi, a aplicação do princípio depende dessa devida

e criteriosa observação, e dela se extrai a essência da aplicação

do princípio.

O Princípio da Proporcionalidade é uma máxima, um

parâmetro valorativo, que permite aferir a idoneidade de dada

medida legislativa, administrativa ou judicial. Pelos critérios da

proporcionalidade, pode-se avaliar a adequação e a necessida-

de de certa medida, bem como se outras menos gravosas aos

interesses sociais não poderiam ser praticadas em substituição

àquela empreendida pelo Poder Público.

O critério da proporcionalidade exige um olhar atento

para a justiça do caso concreto ou particular. Segundo Bonavi-

des (2007, p. 262), “é um eficaz instrumento de apoio às deci-

sões judiciais que, após submeterem o caso a reflexões prós e

contras, a fim de averiguar se na relação entre meios e fins não

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houve excesso, concretizam assim a necessidade do ato decisó-rio de correção”.

A aplicação do princípio da proporcionalidade deman-da dois enfoques. Há simultaneamente a obrigação de fa-zer uso de meios adequados e interdição quanto ao uso de meios desproporcionais. Dessa forma, a proporção adequa-da torna-se condição de legalidade. Portanto, a inconstitu-cionalidade ocorre quando a medida é excessiva, injustifi-cável, ou seja, não cabe na moldura da proporcionalidade. A adoção do princípio da proporcionalidade representa a afirmação do Estado de Direito, o qual, com a aplicação desse princípio, saiu notadamente fortalecido. Converteu-se em prin-cípio constitucional, por obra da doutrina e da jurisprudência, sobretudo na Alemanha e Suíça. O princípio da razoabilidade, por vezes tratado como si-nônimo de proporcionalidade, surgiu a partir do princípio do de-vido processo legal. Tal princípio não se encontra expressamente previsto na Constituição de 1988, porém, esse princípio está norteando de-cisões, estando implicitamente compondo o sistema constitu-cional pátrio em seus dispositivos, bem como do histórico de sua elaboração. Sendo amplamente utilizado, o princípio mos-tra-se eficaz para a avaliação de medidas dentro do processo, sendo mister verificar se tais medidas são ou não razoáveis. Vale ressaltar que, a cada dia, torna-se mais frequente a alusão ao princípio ora analisado, em diversas manifestações de nossa Corte. Muito embora, como já citado, a jurisprudência e doutrina utilizam os termos proporcionalidade e razoabilidade de forma indistinta, sua aplicação diante de situações concretas

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não acarretam perda ao seu objetivo, tal qual garantir direitos ao cidadão em face de eventual arbítrio do poder estatal.

4.2 A aplicação dos princípios da proporcionalidade e ra-zoabilidade em razão do ativismo judicial

Pelas máximas da razoabilidade e proporcionalidade, po-de-se avaliar a conformação das atividades legislativa, adminis-trativa e judicial do Estado com os valores e interesses de forma expressa ou implicitamente, na Constituição. Compreende-se, portanto, em verdadeiros limites à atuação do Poder Público, exigindo-lhe a fiel observância não apenas da lei ao observar o princípio da legalidade estrita, mas de todo o ordenamento jurídico. Nesse olhar, os princípios supracitados apresentam o objetivo do seu nascedouro, quer seja, o de atender às necessi-dades das demandas ainda não atendidas na norma existente. Há quem defenda os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade como instrumentos de manipulação do subjetivis-mo individualista, passando por cima das posições fixadas pela lei, no desejo de se fazer justiça com os próprios conceitos de justiça. Para muitos, até mesmo esse desejo de fazer justiça é entendido como desejo de ser o dono da justiça. Dessa forma, muitos destacaram esses princípios como instrumentos de sustentação para uma sociedade sem leis, sem segurança jurídica, patrocinadora por uma desconstrução da de-mocracia moderna, uma vez que provavelmente poderia inspirar o surgimento de um Estado anárquico, sem leis. É comum observar a utilização desses princípios nas de-cisões proferidas em todo o território nacional, sendo de grande

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reflexão para muitos doutrinadores, em que se questiona se o demasiado uso desses princípios pode incorrer em uma discri-cionariedade mascarada por parte do julgador, decidindo então conforme sua convicção, num olhar completamente subjetivo. A esse respeito, Streck (2010, p. 50-51) argumenta:

É por isso que venho sustentando – inclusive alterando posição professada há alguns anos atrás – que a proporcionalidade somente tem sentido se entendida como ‘garantia de equa-nimidade’. Ou seja, proporcionalidade – admi-tindo-se-a ad argumentandum tantum – não é (e não pode ser) sinônimo de equidade. Fora disso, o ‘princípio’ da proporcionalidade se tor-na um irmão siamês do livre convencimento, ambos frutos do casamento do positivismo ju-rídico com a filosofia da consciência, […].

Nesse entendimento, os princípios em tela são ferramen-

tas para se obter aquilo que a letra da lei não alcançou, ou

seja, a justiça dentro do caso em concreto de forma equilibrada,

garantindo a serenidade das decisões, porém, diferente de livre

convencimento.

Ainda, Streck (2010, p. 48) completa na mesma obra,

“a maior parte das sentenças e acórdãos acaba utilizando tais

argumentos como um instrumento para o exercício da mais

ampla discricionariedade (para dizer o menos) e o livre come-

timento de ativismo”.

Contudo, não será coerente uma postura radical diante

da aplicação de princípios da proporcionalidade e razoabilidade,

pois os mesmos apresentam-se como instrumentos bem acei-

tos pela doutrina e pelos tribunais de todo o país, em sua maio-

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ria assegurando o sentido que lhe cabe, unindo-se ao conceito de Estado Democrático e Humanitário de Direito.

4.3 Criação jurisdicional de novos direitos

Com as mudanças em torno do ordenamento jurídico, após a concretização do Estado Social, houve, segundo Cappel-letti (1999), uma aproximação do chamado Common Law6 e Ci-vil Law7, ocorrendo de fato uma maior interferência do judiciário no que diz respeito à criação de direitos. A adoção de princípios e jurisprudência nas decisões demonstra essa aproximação nas atividades do judiciário. Nesse contexto, ganha força a interpretação do texto constitucional, que é a tarefa de revelar/atribuir o sentido e o alcance das disposições normativas, com a finalidade de apli-cá-las a situações concretas, tarefa atribuída aos magistrados, que de certa forma amplia o papel do juiz, atribuindo-lhe, além de pronunciar as palavras da Lei, um dinamismo ou ativismo na efetivação de diretos. Nas palavras do doutrinador, perfaz-se esse entendi-mento.

Tendo em vista que a interpretação não se limita a descobrir o significado e conteúdo do texto nor-mativo, mas também em concretizá-lo, ou seja, aplicá-lo ao caso concreto, todo texto normativo, por mais claro que ele se apresente, precisa ser interpretado, circunstancia que revela o caráter necessário da interpretação (CUNHA JUNIOR, 2014, p. 195).

6 Common Law é uma estrutura mais utilizada por países de origem anglo-saxônica, como Estados Unidos e Inglaterra. Uma simples diferença é que lá o Direito se baseia mais na Jurisprudência do que no texto da lei. Jurisprudência, caso esteja em dúvida, trata-se do conjunto de interpretações das normas do direito proferidas pelo Poder Judiciário.7 Civil Law é a estrutura jurídica oficialmente adotada no Brasil. O que basicamente significa que as principais fontes do Direito adotadas aqui são a Lei, o texto.

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Conforme o autor, existe a necessidade de se fazer valer a interpretação da norma constitucional ao caso concreto, uma vez que, para o mesmo, esse é o papel do judiciário, denomi-nando ainda como criação livre do direito. Para ele, essa postura dinâmica e ativista do judiciário é uma autêntica revolta contra o formalismo que imperava os Estados de inspiração liberal. No entanto, a criação judicial do direito, defendida por alguns doutrinadores, deve ser vista com algumas peculiarida-des, quer seja, o juiz dinâmico e criativo deve estar comprome-tido com o texto constitucional, vinculado e limitado aos textos da Constituição. Os efeitos dessa postura vêm sendo percebida nas ati-vidades jurisdicionais do país. Hoje, o Supremo Tribunal Fede-ral se manifesta de forma ativa para a efetivação de princípios constitucionais e da devida interpretação da lei, conforme a Constituição. Exemplo disso ocorreu no Mandado de Injunção nº 708 (anexo 4), no qual o STF reconheceu o direito de greve aos ser-vidores públicos civis, determinando a aplicação da lei relativa à iniciativa privada e, ainda, pela primeira vez em sua história, concedeu efeito concretista ao mencionado remédio constitu-cional. O que se percebe nesse contexto é que possui um aberto espaço para mais elevado grau de discricionariedade e, assim, de subjetivismo dos juízes, necessitando uma reflexão no que diz respeito ao Princípio da Tripartição dos Poderes, adotado

pela Carta Magna brasileira, que, de certa forma, vem sendo relativizado nas práticas judiciárias pelo país.

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4.4 Posições doutrinárias e aplicação jurisprudencial em relação ao ativismo judicial

O ativismo judicial, como já exposto, é um movimento crescente na atividade judiciária do Brasil, ou seja, uma realida-de a ser aceita e trabalhada da melhor maneira possível. É unânime na doutrina o pensamento de que se fazem necessários limites a essa atividade, mesmo que diverso um do outro, alguns com olhares mais positivos com relação ao tema e outros negativos, porém, num ponto todos concordam: não se pode, em prol de um ativismo judicial, desestabilizar a seguran-ça jurídica. Para a corrente mais simpática ao movimento no Brasil, o ativismo judicial procura extrair o máximo das potencialida-des do texto constitucional, para assim atingir as necessidades sociais. Desse modo, a interpretação irá além do texto consti-tucional, atingindo a eficácia do direito em tela. Não se quer, com este fenômeno, invadir o campo da criação livre do Direito, papel típico do Poder Legislativo, e sim tornar acessível o bem estar social. Compartilha desse entendimento o Ministro Luís Roberto Barroso:

A postura ativista se manifesta por meio de di-ferentes condutas, que incluem: (i) a aplicação direta da Constituição a situações não expressa-mente contempladas em seu texto e independen-temente de manifestação do legislador ordinário; (ii) a declaração de inconstitucionalidade de atos normativos emanados do legislador, com base em critérios menos rígidos que os de patente e os-tensiva violação da Constituição; (iii) a imposição de condutas ou de abstenções ao Poder Público,

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notadamente em matéria de políticas públicas (BARROSO, 2008).

Para o doutrinador, quando não se há regras sobre respec-tivos assuntos, a exemplo o julgamento que tratou de anencefalia, o judiciário deve criar uma regra específica que até o momento não estava prevista. Para ele, essa atitude criativa não desrespei-ta o Congresso Nacional, pois, no momento em que o Congresso Nacional deliberar sobre o tema, será sua posição que valerá. En-tende então que, quando faltar uma norma que regulamente um conflito envolvendo direito fundamental, o judiciário deve atuar.

Diferentemente, outra corrente posiciona-se no entendi-mento de que o judiciário não pode interferir nas outras esferas, visto que a Constituição Federal Brasileira adotou o Princípio de Separação dos Poderes. Em sua atividade, não se pode admitir a criação de novos direitos, uma interpretação criativa do texto constitucional, o que levaria a um abalo ao Estado Democráti-co de Direito. Compartilha desse posicionamento o doutrinador Ronal Dwuorkin. Para ele, os juízes, mesmo ao decidir casos difíceis, o fazem com estrito respeito às regras democráticas e à existência de uma Constituição escrita. Ainda segundo o dou-trinador, os juízes devem interpretar o direito como um todo nos casos difíceis, respeitando a legislação existente.

Dworkin (2002) afirma que “o juiz continua tendo o de-ver, mesmo nos casos difíceis, de descobrir quais são os direitos das partes, e não de inventar novos direitos retroativamente”. Compreende o autor que o limite para o ativismo judicial está na lei, e sobre a interpretação da mesma devem surgir as decisões de nossos magistrados.

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Nesse sentido,

O ativismo é uma forma virulenta de pragmatis-mo jurídico. Um juiz ativista ignoraria o texto da Constituição, a história de sua promulgação, as decisões anteriores da Suprema Corte que bus-caram interpretá-la e as duradouras tradições de nossa cultura política. O ativista ignoraria tudo isso para impor a outros poderes do Estado seu próprio ponto de vista sobre o que a justiça exige. O direito como integridade condena o ativismo e qualquer prática de jurisdição constitucional que lhe esteja próxima (DWORKIN, 2007, p. 451-452).

Para essa posição mais extremista, o ativismo apresenta-se como uma ameaça à Constituição e ao princípio da separa-ção dos poderes, explícito na Carta Magna. Com uma visão mais positivista, para essa corrente, a prática do ativismo judicial é um abalo à segurança jurídica. Um pouco diverso de Ronald Dwuorkin, Lenio Streck mo-vimenta as reflexões acerca do ativismo judicial no Brasil. Com argumentos fortes, revela que o julgador não deve extrapolar seus limites. As decisões dos tribunais não podem e não devem estar pautadas na vontade e na subjetividade do julgador, a Lei limita essa subjetividade, possibilitando uma maior segurança nas decisões. Segundo Lenio Streck, os limites para essa subje-tividade é a própria Constituição.

Na verdade, a intensidade da judicialização da política (ou de outras dimensões das relações sociais) é a contradição secundária do problema. A grande questão não é o “quanto de judiciali-zação”, mas “como as questões judicializadas” devem ser decididas. Aqui está o busílis. Este é

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o tipo de controle que deve ser exercido. A Cons-tituição é o alfa e o ômega da ordem jurídica. Ela oferece os marcos que devem pautar as decisões da comunidade política (STRECK, 2013).

Como afirma o autor, é na Constituição que se apre-sentam os limites dessa chamada atividade criativa do judi-ciário. Esse entendimento traz um alerta à necessidade de uma reflexão crítica sobre a prática indiscriminada do ativis-mo judicial. Já se tornou comum notícias sobre decisões po-lêmicas e até mesmo de difícil entendimento à luz da Consti-tuição de 1988. No livro “O que é isto - decido conforme a minha cons-ciência?”, de Lenio Streck, pode-se perceber uma profunda crí-tica ao subjetivismo das decisões dos tribunais, que, ao pronun-ciar o voto, por vezes se encontram expressões do gênero: (…) Decido, porém, conforme a minha consciência,… (…) Não me importam o que pensam os doutrinadores… Ainda tem aquele voto que decide pela maioria, não de-monstrando sua convicção legal e nem mesmo subjetiva. Para o autor, não se pode admitir um julgamento que seja baseado no direito que o julgador quer que seja. Sendo assim, é de suma importância a observação da ju-risprudência. Ao analisar a Ação Penal nº 2013.01.1.076604-6, do Distrito Federal, (Anexo 1), a qual repercutiu em todas as redes de comunicação, causando grande polêmica na socie-dade e meio jurídico, sendo a mesma se tratar da absolvição de um homem que tentou entrar na Papuda com 51 trouxinhas de maconha. Nessa específica decisão, depara-se com uma si-tuação onde o magistrado transpareceu suas convicções subje-

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tivas a respeito do caso. Merece registrar parte do fundamento da sentença:

[…] A conduta praticada pelo acusado, com efeito, parece se adequar àquela descrita no art. 33, caput, cc art. 40, da lei 11343/06. Contudo, no meu entender, há inconstitucionali-dade e ilegalidade nos atos administrativos que tratam da matéria. […]

Em consequência disso, a decisão do juiz foi amplamen-te questionada na mídia e pelo Ministério Público, expondo as convicções do magistrado a despeito do caso em concreto. Outro fato que auxilia a exemplificar essa tendência do judiciário em decidir conforme sua convicção é a decisão de um Recurso de Revista n° TST-PR-258600-03.2007.5.09.0004, (Anexo 2). O fato que surpreende em tal decisão é que, no mes-mo, foi reduzido o valor de dano moral, ainda que o recurso não tenha sido conhecido.

[…] Recurso de revista de que não se conhece. DANO MORAL. INSPEÇÃO COM DETECTOR DE METAIS. VALOR DA INDENIZAÇÃO Entende esta Corte Superior que a mera revista de bolsas e sa-colas dos empregados, de forma impessoal e sem toques, não configura dano moral passível de in-denização. […][…] Assim sendo, ante os termos do art. 5.º, V, da Constituição Federal, e reconhecendo-se a desproporcionalidade da indenização em face dos fatos comprovados, é cabível sua redução de R$ 25.000,00 (vinte e cinco mil reais) para R$ 1.000,00 (mil reais). Recurso de revista de que se conhece e a que se dá provimento. […]

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O caso em comento já foi matéria de grande reflexão de Streck (2013) em sua coluna Senso Comum. Segundo ele, fi-cou incompreensível a aplicação do Artigo Constitucional com o caso em questão. Para ele, esse é um exemplo claro de ativismo judicial, e ainda complementa:

Decidir não é o mesmo que escolher. O ato de decidir possui responsabilidade política diante da comunidade. Cada decisão — que não pode de-pender do solipsimo do intérprete ou do colegiado — tem efeitos colaterais. Se for mantida a nova “doutrina” estabelecida pela 6ª Turma do TST, todos os cidadãos da República poderão invocar uma espécie de “juízo de equity” dos tempos em que isso ocorria na Inglaterra com o Lord Chan-cellor. O TST e os demais Tribunais passariam a dar equitable remedies ad misericordium (ou non misericordiam) — se me entendem a ironia. O Lord Chancellor era a instância última, “resolven-do” as pendengas a partir da equity... Só que aqui não há Lord Chancellor. E nem mais lá. Isso já passou. Os ingleses evoluíram! (STRECK, 2014).

Como o exposto, admitir essa postura dos tribunais será um retrocesso e um verdadeiro desrespeito ao Estado Democrá-tico de Direito consagrado pela Constituição Federal. Ainda a exemplo jurisprudencial, faz-se necessário abar-car mais uma polêmica decisão. No momento, faz-se referência a uma decisão do Tribunal Regional Eleitoral da Bahia, autos de número 394-61.2012.6.05.0091. Sentença de 2014, (Anexo 3), na qual, a juíza, em sua argumentação, não hesitou em apresentar a sua opinião pessoal, extraída de sua subjetividade de apreciação pessoal dos fatos. Vejamos:

[…] Cumpre ressaltar a dicção do art. 23 da Lei Complementar nº 64/1990, que autoriza o julga-

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dor a formar sua convicção “pela livre aprecia-ção dos fatos públicos e notórios, dos indícios e presunções e prova produzida, atentando para circunstâncias ou fatos, ainda que não indicados ou alegados pelas partes, mas que preservem o interesse público de lisura eleitoral.”Em sintonia com este comando legal, saliento que esta julgadora estava diuturnamente presente na Comarca e, acompanhou de perto todo o pleito eleitoral de 2012, presenciando a dificuldade dos investigantes, para comprovar os ilícitos pratica-dos pelos investigados, durante todo o período eleitoral, demonstrado com a propositura de vá-rias ações cautelares. […]

O fato de a magistrada ter argumentado com suas con-vicções se torna uma afronta à democracia, inclusive o referido Artigo 23 da Lei Complementar nº 64/1990 sofre questionamen-to na doutrina pela ampla liberdade na decisão do magistrado. Afirma Streck (2014) que a decisão judicial é algo muito importante para ficar ao sabor de indícios e presunções. Numa democracia, poder público é poder fiscalizado e controlado. Do início ao fim. Não deve importar a convicção íntima do juiz, mas sim o que o direito como um todo apresenta como resposta para determinado contexto probatório. Numa Nação em que os direitos nascem do princípio de-mocrático, não é possível admitir um julgamento por presun-ções, o que deveras afronta os direitos do cidadão de ter um julgamento conforme a lei, carregando consigo outros direitos conquistados.

A cidadania é uma conquista a medida que a ex-clusão social não seja uma regra, e que todos tenham direito a vida, é um processo de emanci-

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pação do individuo , o qual é integrado e passa a ser parte da comunidade do iguais. Essa condição não é um dado pronto, mas um contínuo desafio ao status quo. A conquista do espaço público não é uma coisa de momento, mas uma luta continua (SARRETA, p. 201, 2007).

Em uma democracia conquistada pelo clamor da socie-dade, deve-se respeitar a cidadania, devolvendo à sociedade uma resposta clara do judiciário e rígida através do poder cons-tituinte. Não obstante, o poder público é um poder fiscalizado e controlado, não se valendo então da livre convicção do juiz, mas sim do que o direito como um todo apresenta como resposta para determinado contexto probatório. Isso seria apenas respei-tar a cidadania e prevalecer a democracia. Em suma, direito não pode e não deve ser aquilo que o julgador quer que seja. As decisões não podem estar pautadas na consciência, elas devem estar moldadas na lei, respalda-das pelas provas e orientadas pela doutrina. Uma decisão com respaldo legal é direito de todos aqueles que vivem no Estado Democrático de Direito, ou ao menos deveria ser.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A interpretação constitucional, na sociedade atual, é uma necessidade. Com a mudança nas relações, paradigmas e a evolução da ciência, o que se busca no texto do constituinte é a solução para os casos, mesmo para aqueles até então não previstos, ou ainda aqueles com conflitos de direitos. Porém, faz-se necessário o cumprimento de critérios para essas deci-sões ao ponto de não se criar uma nova legislação a partir das

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decisões, papel precípuo do legislativo e não do judiciário. Diante dessa dinâmica, muito se tem falado em princípios constitucionais, os quais vêm sendo de grande uso nas decisões judiais. Os princípios trazem uma nova leitura da situação fática, ampliando a cobertura do direito antes enrijecido na norma. A constituição brasileira adotou o princípio da Separação dos Poderes, o qual surgiu a partir da teoria de Freios e Con-trapesos de Montesquieu. Diante disso, na vigência da Carta Magna, têm-se os poderes divididos em Poder Executivo, Poder Legislativo e Poder Judiciário, trabalhando de forma indepen-dente e harmônica. No entanto, vale ressaltar que, em razão das demandas sociais, aquela rigidez de separação dos poderes descrita por Montesquieu não vigora de toda sua essência. A doutrina hoje usa o termo de colaboração dos poderes. Para atingir as demandas sociais, por vezes, o judiciário assume o papel do legislativo e executivo, incorrendo em uma atividade mais ampla do que aquela precipuamente descrita pelo constituinte. Nesse diapasão, instaura-se o movimento do Ativismo Judicial, movimento que surgiu nos Estados Unidos na atuação proativa da Suprema Corte em casos de conflitos de direitos até antão não normatizados. Logo após, produziu jurisprudên-cia progressista em matéria de direitos fundamentais, sobretudo envolvendo negros, mulheres, assim como no tocante ao direito de privacidade e de interrupção da gestação. No Brasil, o Ativismo Judicial ganha força diante das ne-cessidades sociais carentes de uma legislação. É comum em casos que ainda não há uma legislação abordando determinado

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tema, e que em razão de uma celeuma chegue até o Supremo Tribunal de Justiça para então se buscar uma solução, como no caso recente da descriminalização do aborto de anencéfalos. No entanto, ainda paira sobre a doutrina a discussão en-tre Ativismo Judicial e Judicialização, ainda que muitos os tratem como sinônimos, cabe aqui, evidenciar a diferença entre os dois movimentos. O primeiro liga-se a um desejo do órgão judicante com relação à possibilidade de alteração dos contextos político-sociais, sendo conservador ou progressista. No final, o resultado é o mesmo, ou seja, o Judiciário agindo por motivos de convic-ção e crença pessoal do magistrado, e não em face da morali-dade instituidora da comunidade política. Já a Judicialização é um fenômeno que independe da vontade do Poder Judiciário. Está diretamente envolvida por uma transformação cultural profunda pela qual passaram os países que se organizam politicamente em torno do regime democráti-co, como o Brasil. Nesse sentido então, percebe-se que o Ativismo Judicial não é fato, mas sim atitude. Acontece quando há um déficit de outros Poderes e o Judiciário aplica princípios a situações não previstas em leis. O Ativismo Judicial, como já dito, é um movimento que está presente na atividade jurisdicional do país, o que demons-tra a postura de muitos magistrados. Já se tornou comum a denominação, papel criativo do judiciário, em que o julgador se vale de princípios e até mesmo de suas próprias convicções para decidir. No entanto, a doutrina é unânime na necessidade de limites ao Ativismo Judicial. Para alguns, o julgador frente ao caso concreto pode se

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valer de princípios como os Princípios da Proporcionalidade e Razoabildiade em busca da garantia aos direitos do cidadão, porém, há quem defenda o uso dos princípios da proporciona-lidade e da razoabilidade como instrumentos de manipulação do subjetivismo individualista, passando por cima das posições fixadas pela lei, no desejo de se fazer justiça com os próprios conceitos de justiça. Para muitos, até mesmo esse desejo de fazer justiça é entendido como desejo de ser o dono da justiça. Nesse contexto, encontra-se a criação jurisdicional de novos direitos, em que o magistrado, ao interpretar a lei ao caso concreto, ou ainda se não houver lei sobre aquele determinado tema, busca soluções nos princípios. Ainda que se fizesse necessária essa atuação do magis-trado diante do caso concreto num conflito de direitos, a mesma deve acontecer com cuidados e pautadas na Constituição, pre-servando a imparcialidade do julgador. Nesse mesmo entendimento, é inaceitável que o julgador extrapole a norma legal ou decida conforma sua convicção. Isso abala a construção do ordenamento jurídico do país, ensejando na insegurança jurídica. Diante das jurisprudências analisadas, comprova-se a prática do Ativismo Judicial de forma a justificar as decisões conforme as próprias convicções, o que leva a críticas a esse movimento no Brasil. Tal situação ganhou proporção no âmbito jurídico, intitulado de ativismo judicial à brasileira, dada a conotação em razão do exagero por parte de sua aplicação no sistema judiciário brasileiro. Com o movimento do ativismo judicial e sua influência no direito brasileiro, houve o reconhecimento de uma vinculação en-

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tre política e direito. Essa circunstância influenciou soberanamen-te na atuação dos juízes, propagando ainda mais o movimento. Sendo assim, quando há a ausência de atuação dos ou-tros poderes e há uma necessidade de se atender à demanda sobre específica matéria, resta ao judiciário se fazer valer de princípios e da interpretação constitucional para atender àque-las situações, até então não previstas em lei. A doutrina ainda diverge sobre o tema, sendo o mesmo enfrentado sobre diversas perspectivas, o que gera certos ques-tionamentos na compreensão do que venha a ser o ativismo judicial. Em meio às dificuldades de se compreender o ativismo judicial à brasileira e diferentes opiniões doutrinárias sobre o tema, o que se compreende é que a atividade jurisdicional deve se pautar em limites constitucionais. Para tanto, o magistrado deve deixar de lado seu livre convencimento, muito criticado na doutrina, e se fazer valer da lei constitucional. É evidente que há a necessidade de atuação proativa do judiciário para se alcançar o Estado de Direito, mas o mesmo Estado de Direito se faz com segurança jurídica, a qual se al-cança no texto normativo, impedindo de se alegar suas próprias convicções para decidir. Não se pode permitir, numa decisão judicial, a interferência do próprio julgador. Isso seria um verda-deiro retrocesso às conquistas constitucionais. Contudo, compreende-se que o ativismo judicial deve ser incorporado como algo sério nos tribunais, respeitando os limi-tes que a própria Constituição traz em seu texto, não se admi-tindo o seu uso indiscriminado como uma desculpa para decidir conforme a consciência do julgador.

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A EFETIVIDADE DAS POLÍTICAS PÚBLICAS NO ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL DA

CRIANÇA E DO ADOLESCENTE E O DIREITO À CONVIVÊNCIA FAMILIAR E COMUNITÁRIA

THE EFFECTIVENESS OF PUBLIC POLICIES IN INSTITUTIONAL CARE OF CHILDRENS

AND THE RIGHT TO FAMILY AND COMMUNITY ASSOCIATION

Francielle Aparecida Lavagnoli1

Jackson Mateus Porfírio2

RESUMOO tratamento dispensado à criança e ao adolescente evoluiu efetivamente no Brasil nas últimas décadas, uma vez que nem sempre foram atribuídos direitos a esses sujeitos, sendo que a realidade vivida pelo “menor” era a de abandono, tanto por parte da família quanto do Estado. Entretanto, hodiernamente, a situação vivida pela população infantojuvenil é a de proteção, eis que é direcionado a esses a máxima e efetiva gama de di-reitos, inclusive elevados à categoria de norma Constitucional. Assim, por meio de Políticas Sociais Públicas, visa-se alcançar a efetividade das garantias fundamentais. Todavia, embora a criança e o adolescente estejam sendo vistos como sujeitos cuja proteção deva ser de prioridade absoluta, ainda há violações, principalmente no que diz respeito ao direito à convivência fami-liar e comunitária, aliás, não se pode ignorar a importância da 1 Acadêmica do 4° ano do Curso de Direito da Instituição Univel – Faculdade de Ciências Sociais e Aplicadas de Cascavel.2 Especialista em Direito Civil e Processo Civil pela Univel – Faculdade de Ciências Sociais e Professor de Direito Civil pela Univel – Faculdade de Ciências Sociais e Aplicadas de Cascavel.

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família no desenvolvimento do “menor”. Dessa forma, quando inevitável o afastamento familiar causado pelo risco social, ten-do em vista as relevantes críticas ao acolhimento institucional, instituto utilizado pelo Estado na defesa dos direitos de crianças e adolescentes, buscam-se outras soluções, como por exem-plo, a colocação desses em famílias substitutas. Hoje, essa é considerada uma das modalidades de medida de proteção com maior eficácia, uma vez que contribui para o desenvolvimento do ¨menor¨, bem como atende às disposições legais.

PALAVRAS-CHAVE: Políticas Públicas, Efetividade, Acolhimento Institucional da Criança e do Adolescente, Convivência Familiar e Comunitária.

ABSTRACTThe treatment meted out to children and adolescents effectively evolved in Brazil in recent decades, since rights to these subjects were not always allocated, and the reality experienced by the lower was the abandonment by both the family and the state. However, in our times, the situation experienced by the infant-juvenile population is the protection, behold, it is directed to these and the maximum effective range of rights, including the Constitutional high standard category, as well, through Public Social Policies, aims to reach the effectiveness of the fundamental guarantees. However, while the child and the adolescent are being seen as subjects whose protection should be high priority, there are still violations, mainly with regard to the right to family and community life, in fact, one can not ignore the importance of the family in development of the child, as this inevitably family diversion by social risk, try to view the relevant critical residential care, institute used by the State in defending the rights of children and adolescents, we seek to other solutions, such as, placing these in foster care today is considered one of measure of protection arrangements more effectively, as it contributes to the development of smaller and meets the legal

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Keywords: Public Policy, Institutional Effectiveness Home, Child and Adolescent, Family and Community Living.

1 INTRODUÇÃO

O Princípio da prioridade absoluta adotado pelo ordena-mento jurídico nacional rompeu com a situação de irregularidade vivida pelo menor, trazendo um rol de garantias e direitos nunca visto antes no direito brasileiro, ainda sendo norma protetiva de grande referência em âmbito do direito internacional, atribuindo fundamental papel à família e ao Estado para com o cuidado e o desenvolvimento do ¨menor¨.

Entretanto, não basta que os direitos estejam positivados. Fazem-se necessários instrumentos que viabilizem sua aplicabi-lidade, de forma que cabe ao Estado, por meio de programas, metas e ações, assim chamadas de políticas públicas, elaborar e colocar em prática programas destinados à formalização do que será positivado no ordenamento jurídico .

Diante do tema a ser tratado, analisa-se o distanciamen-to entre o que legalmente é previsto e o que na realidade ocorre. Para tanto, utilizar-se-á do que consagra a Constituição Federal de 1988, bem como do que normatizado na Lei 8.069, de 13 de julho de 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente.

Embora ambos os dispositivos legais tragam um vasto rol de obrigações direcionado à família e ao Estado em relação à população infantojuvenil, verifica-se que não há consonância

com a realidade, uma vez que problemas como desestruturação familiar, violência, e a não atuação eficaz do Estado na gerência dos recursos públicos e consequentemente na falta de políticas

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sociais que instrumentalizem as prerrogativas legais, são na rea-lidade violadores dos próprios direitos positivados.

Dessa forma, objetiva-se contextualizar a situação de vulnerabilidade vivida pela população infantojuvenil, vista na perspectiva da legislação brasileira quando referente às medi-das protetivas, estas aplicadas nos casos em que a criança ou o adolescente é vítima de violações de direitos ou tem vínculos familiares rompidos.

No decorrer do presente trabalho, buscou-se problema-tizar a atuação do Estado em relação às medidas protetivas de acolhimento institucional, abordando pontos de vista diversos, pontuando seus benefícios e malefícios ao desenvolvimento da criança e do adolescente, bem como apresentar uma nova abor-dagem para solucionar o problema causado pelo risco social. Prezou-se por destacar a importância do respeito ao direito e à convivência familiar e comunitária.

Logo, como desfecho para a problemática, apresenta-se o acolhimento familiar como instituto que visa proporcionar ga-rantia ao direito fundamental à convivência familiar e comuni-tária. Nesse sentido, os programas de proteção na modalidade famílias acolhedoras estão legalmente previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente, política introduzida pelas alterações trazidas pela Lei 12.010, de 03 de agosto de 2009, intitulada lei de adoção, e há também previsão na Política Nacional de Assistência Social.

As medidas protetivas de acolhimento familiar são reco-nhecidas como serviço de acolhimento em caráter provisório, destinado a crianças e a adolescentes com vínculos familiares rompidos até que sua situação jurídica seja resolvida, seja por

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meio da reintegração familiar ou pela colocação desses para adoção.

Nesse contexto, os programas de acolhimento familiar vi-sam garantir não apenas o direito à convivência familiar e comu-nitária do ̈ menor¨, mas é também garantidor de dignidade. Isso porque, conforme será exposto, constatou-se que há milhares de crianças que vivem muitos anos de suas vidas em unidades de acolhimento institucional, lugar em que são privadas de con-dições mínimas de atenção e afeto, diferente do que ocorre em uma ¨Família Acolhedora¨, em que a criança receberá atendi-mento individualizado, havendo assim a preservação de laços de afetividade e vínculo social e comunitário necessário para seu desenvolvimento.

2 POLÍTICAS PÚBLICAS

2.1 Conceito

As Políticas Públicas estão relacionadas ao poder social. Assim, elas correspondem a um conjunto de ações específicas que direcionam de que modo o poder público deve proceder diante das mais diversas garantias, com vistas a atingir deter-minado objetivo. Essa atividade é desenvolvida pelo Estado, que busca sanar conflitos, bem como alcançar a paz social.

A política relacionada com o estudo das políticas públicas é ¨justamente a atividade que busca, pela concentração institucional do poder , sanar os conflitos e estabilizar a sociedade pela ação da autoridade; é o processo de construção de uma ordem¨ que permita a pacifica convivência entre

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pessoas diferentes, com interesses particulares e que buscam a felicidade para si, condição que lhes é assegurada (ou pelo menos deveria ser) pela ação do Estado (DIAS, 2012, p. 2)

Entretanto, não há uma definição exata do que seja po-lítica pública, pois há autores que definem como uma área de estudo dentro da política, outros que defendem que tais políti-cas são um conjunto de decisões sobre as quais o Estado visa produzir determinados objetivos que modifiquem a vida do cida-dão (SOUZA, 2006).

Apesar de optar por abordagens diferentes, as de-finições de políticas públicas assumem, em geral, uma visão holística do tema, uma perspectiva de que o todo é mais importante do que a soma das partes e que indivíduos, instituições, interações, ideologia e interesses contam, mesmo que exis-tam diferenças sobre a importância relativa destes fatores.Assim, do ponto de vista teórico-conceitual, a po-lítica pública em geral e a política social em par-ticular são campos multidisciplinares, e seu foco está nas explicações sobre a natureza da política pública e seus processos. Por isso, uma teoria ge-ral da política pública implica a busca de sintetizar teorias construídas no campo da sociologia, da ciência política e da economia. As políticas públi-cas repercutem na economia e nas sociedades, daí por que qualquer teoria da política pública precisa também explicar as inter-relações entre Estado, política, economia e sociedade. (SOUZA, 2006, p. 24).

Assim, tendo em vista a origem do Estado como ente criado por meio de um Contrato Social cujo fim fundamenta-se na a ideia do bem-estar comum, cabe ao Estado a função social

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de administrar e gerir os recursos, bem como destiná-los no desempenho na função pública (DIAS, 2012).

Logo, as políticas públicas têm como finalidade atender as demandas sociais. Para tanto, atribuem cuidado aos setores de maior vulnerabilidade e, assim, regulam conflitos, promovem o desenvolvimento, bem como diminuem as desigualdades so-ciais que ocorrem em decorrência do desenvolvimento socioe-conômico (OTENIO, C.; OTENIO, M.; MARIANO, 2008).

2.1.1 Políticas Públicas Destinadas à Criança e ao Adolescente

A contextualização dos direitos destinados à criança e ao adolescente ganhou espaço primeiramente em âmbito internacio-nal, mais precisamente em 1959, com a proclamação das decla-rações de direitos das crianças, chancelada pela Assembleia Ge-ral da Organização das Nações Unidas (MARCUS JUNIOR, 2012).

Já em âmbito nacional, a materialização dos direitos des-tinados à criança e ao adolescente ganhou abrangência com as disposições da Constituição Federal de 1988, que adotou o princípio da prioridade absoluta, todavia, esta é fruto da constru-ção jurídica e filosófica do direito internacional (ALVES, 2009).

Nesse intento:

A prioridade absoluta prevista na Constituição Federal deve ser considerada em relação a tudo que envolve direitos de criança e adolescentes, ou seja, tanto em relação às políticas públicas, executadas pelo Poder Executivo, por exemplo, como em relação à atuação do Poder Judiciário, Legislativo ou Ministério Público nas suas esferas de atuação (MARCUS JUNIOR, 2012, p. 4).

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Devido a um novo posicionamento das disposições in-ternalizadas no ordenamento jurídico nacional, houve evidente evolução no que diz respeito aos direitos infantojuvenis, sendo que e a Constituição Federal de 1988 passou a assegurar que cabe à família, à sociedade e ao Estado a proteção dos direitos da criança e do adolescente.

Segundo Otenio C., Otenio M. e Mariano (2008), a re-democratização política pela qual o Brasil passou nas últimas décadas do século XX contribuiu para a organização das políti-cas sociais, ao passo que estabeleceu novas diretrizes de inter-venção estatal, incorporando uma nova definição aos critérios adotados pelas políticas destinadas à população infantojuvenil. Nesse período também ocorreu a humanização dos processos adotados, como a já citada doutrina da prioridade absoluta.

Consoante ao exposto:

Fica evidente, portanto, em razão da especialida-de do direito da infância e juventude, a necessida-de da prática de ações afirmativas com o objetivo de materializar os direitos consagrados constitu-cionalmente, visando corrigir erros históricos e os efeitos da descriminalização existente contra as minorias (MARCUS JUNIOR, 2012, p. 21).

Não obstante, a Constituição Federal abriu espaço para a promulgação da Lei Federal n° 8.069, de 13 de julho de 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente, que é fruto dessa nova necessidade de proteção lançada à população infantojuvenil.

Logo, por meio das disposições legais, criam-se parâme-tros que possibilitaram assegurar a intervenção do Estado nas questões sociais, bem como criar uma rede de atendimento ca-

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paz de atender às demandas relacionadas ao disposto no artigo 227 da Constituição Federal.

No entanto, de acordo com Valdara (2013), os direitos alcançados, tanto na Constituição Federal, quanto no Estatuto da Criança e do Adolescente, nada mais são do que o resultado do clamor social, de forma que se garantiram apenas as míni-mas condições de desenvolvimento para que o ̈ menor¨ tenha a possibilidade de atingir a sua maioridade civil. Porém, verificam-se diversas limitações por parte do Estado em de fato garantir esses direitos. O autor critica o não atendimento dos direitos prestacionais sociais e a falta de implementação das políticas sociais, bem como ainda lembra que, apesar do vasto rol de di-reitos, ainda há crianças e adolescentes vivendo em condições precárias, à margem das mais básicas políticas públicas.

3 CÓDIGO DE MENORES

3.1 Doutrina da situação irregular

No Brasil, vigorou dois Códigos de Menores: o primeiro a partir de 1927, também chamado “Código Mello Mattos”, que posteriormente foi substituído pela Lei n° 6.697, de 10 de ou-tubro de 1979, intitulado Código de Menores. Esses Códigos re-graram de que forma o Estado atuaria em relação ao ¨menor¨.

Ambos os dispositivos tinham como principal caracterís-tica a criminalização da pobreza, pois colocavam a criança e o

adolescente, que viviam em situação de pobreza, como sujeitos ameaçadores (MORELLI, 1999).

Essas legislações reprimiam as situações vividas pela po-

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pulação infantojuvenil com a imposição da institucionalização, enviando crianças e adolescente carentes, abandonados ou in-fratores para instituições de recolhimento.

No mesmo diapasão:

Sob o manto do ¨Código de Menores¨, o Juiz de Menores, termo utilizado para denominar a auto-ridade judiciária referida pela lei, exercia de forma centralizada as funções administrativas e jurisdi-cionais como fim de aplicar o código aos ¨meno-res¨, muitas vezes sem limites e invadindo a es-fera de atuação privada dos pais, o que terminava por prejudicar a educação dos ¨menores¨, que não encontravam limites no próprio seio familiar. Com a atuação do Juiz de Menores, a responsabi-lidade da família era, em muitas situações trans-ferida para a autoridade judiciária, que no exercí-cio dessa atividade de Juiz de Menores acabava invadindo a esfera de atuação de outros poderes ou mesmo da família, com, por exemplo, ao aditar normas estabelecendo horários máximos de per-manência dos ¨menores¨ em evidente afronta ao exercício do poder familiar, eis eu os próprios pais são autoridades responsáveis por disciplinar o ho-rário de permanência dos filhos nas ruas (MAR-CUS JUNIOR, 2012, p. 34).

Entretanto, toda a repressão vivida pela criança e pelo adolescente com a vigência do Código de Menores passou a ser alvo de questionamentos por parte da sociedade, princi-palmente por órgãos que defendiam os direitos humanos. Eles questionavam as práticas correcionais adotadas e a sua eficácia (MORELLI, 1999).

Além disso, as concepções adotadas pela doutrina da situação irregular já não atendiam com eficácia às exigências da época, deixando a desejar no sentido da não resolução dos

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conflitos, pois o tratamento dispensado ao ¨menor¨ era de re-pressão. O Estado agia de modo autoritário sobre o ¨menor¨, violando direitos humanos (ALVES, 2009).

Sendo assim, atendendo às exigências de um novo ce-nário político e social e das transformações pelas quais o Brasil passou no período conhecido como redemocratização, e com o advento da Constituição Federal de 1988, e dos direitos sociais, integrando o rol de direitos fundamentais, com fundamento prin-cipalmente no artigo 227 em conjunto com o artigo 228, ambos da referida Carta Magna, deram causa à promulgação do Esta-tuto da Criança e do Adolescente, revogando expressamente o Código de Menores (ALVES, 2009).

3.1.1 O Estatuto Da Criança e do Adolescente

A promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei Federal 8.069 de 13 de julho de 1990, Viegas e Rabelo (2011), trouxe uma nova abordagem em relação à proteção dos direitos do ¨menor¨.

O Estatuto dispõe acerca das ações do Estado que viabi-lizem a promoção dos direitos por meio das políticas públicas, sendo dividido em ações que tratam da institucionalização, tan-to como medida de proteção quanto como medida socioeduca-tiva, e ainda as que tratam sobre o processo legal e das medidas judiciais e administrativas em prol da proteção do ¨menor¨.

O Estatuto da Criança e do Adolescente, segundo Viegas e Rabelo (2011), atua no ramo do direito especializado. Ao lon-go do seu texto, o ¨menor¨ é reconhecido como sujeito de direi-tos e deveres, atribuindo ao Estado o dever de destinar a estes

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prioridade absoluta. A lei federal 8.069/90 visa proporcionar à

criança e ao adolescente desenvolvimento e qualidade de vida,

estabelecendo direitos e garantias fundamentais.

Dessa forma, o Estatuto da Criança e do Adolescente visa

garantir direitos relacionados à vida, saúde, alimentação, edu-

cação, liberdade, respeito, convivência familiar e comunitária,

bem como atender às disposições Constitucionais.

3.1.1.1 A Doutrina da Proteção Integral

Com o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente

e a adoção da Doutrina da Proteção Integral, artigo 1º da lei

8.069/90, ¨Esta Lei dispõe sobre a proteção integral à criança

e ao adolescente¨ (BRASIL, 1990, p. 1972), houve relevante

rompimento com o modelo assistencialista que era seguido pelo

Código de Menores. Surge também uma comunhão de direi-

tos e obrigações, e a vinculação da sociedade e do Estado na

instrumentalização e na efetivação dos direitos positivados na

Constituição Federal e no Estatuto.

Assim, foi formalmente inserido no ordenamento jurídico brasileiro o Sistema de Garantias de Di-reitos, formado pela família, sociedade e Estado, com destaque para os arts. 86 e 90 do ECA, que estabelecem as diretrizes da política de atendi-mento das crianças e do adolescente (MARCUS JUNIOR, 2012, p. 36).

A doutrina da proteção integral surgiu sobre a égide do princípio da prioridade absoluta, disposto no artigo 227 da Cons-tituição Federal, e que tem como finalidade direcionar as ações

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do Estado acerca das prerrogativas a serem cumpridas pelo ad-ministrador público. Diante disso, as ações do Estado estarão voltadas ao estabelecido na Constituição Federal.

Nesse mesmo sentido, o princípio do melhor interesse do ¨menor¨ está integrado ao princípio da dignidade da pessoa humana e da valorização da criança e do adolescente. Logo, tais princípios abarcam todas as relações vividas pela criança e pelo adolescente, prezando pelo tratamento isonômico, privilegiando a criança perante a família, a sociedade e o Estado, diante de quaisquer possíveis discriminações ou violação de direitos (VI-LAS-BOAS, 2011).

4 A NEGLIGÊNCIA FAMILIAR COMO MEIO PARA A INSTITU-CIONALIZAÇÃO

O tratamento dispensado à criança e ao adolescente no Brasil evoluiu efetivamente ao longo da história. Essa evolução foi marcada principalmente pelo surgimento e pela aplicação de políticas sociais no sentido de promover o desenvolvimento e o equilíbrio social, malgrado, esse tratamento não seja eficaz, pois é notório que o abandono de crianças ̈ [...] ainda é uma realida-de lamentável no mundo contemporâneo [...]¨(ORIENTE; SOU-ZA, 2005, p. 30), sendo um problema social que vai muito além da esfera jurídica, uma vez que profissionais das mais diversas ciências visam buscar soluções para esta deficiência social.

Além disso:

Muitas vezes, dadas às circunstâncias de misé-ria, entre tantos outros fatores, a institucionaliza-ção apresenta-se como a única alternativa viável

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para garantir a sobrevivência dos filhos de muitas famílias das camadas populares. Essas crianças estão abandonadas de fato, mas não de direito; a expressão significa que as crianças foram deixa-das na instituição, todavia os pais ainda não foram destituídos do pátrio poder, o que impede que elas sejam encaminhadas para a adoção. [...] Nesse caso, o abandono torna-se duplo, uma vez que a adoção efetiva dessas crianças está impedida. (KEBER; KOSSOBUDZKI apud ORIONTE; SOUZA, 2005, p. 30)

É possível constatar que os problemas sociais, aliados a fatores como desestruturação familiar, falta de recursos finan-ceiros, em decorrência de políticas sociais públicas mal empre-gadas, gera vulnerabilidade da estrutura social, aumentando as demandas da população fragilizada e vítimas de abandono, e, ao mesmo tempo, exigem uma resposta do ente público (SI-QUEIRA; DELL’AGLIO, 2006).

O acolhimento institucional foi recepcionado pelo Estatu-to da Criança e do Adolescente como forma de atender a essa debilidade.

De acordo com Rizzini (2004), levando-se em conside-ração a situação de pobreza, dentre outros fatores, tais como violência urbana e a falta de alternativas ofertadas pelo Estado, faz com que a criança e o adolescente ainda sejam vítimas da orfanização, de forma que a população infantojuvenil fica à mer-cê de crescer longe da convivência comunitária.

O Estatuto da Criança e do Adolescente dispõe, em seu artigo 5, acerca das violações de direitos do ¨menor¨, conde-nando a prática de qualquer ato que viole seus direitos.

Todavia, a realidade é outra, uma vez que milhares de

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crianças e adolescentes são diariamente vítimas de todo tipo de violência, negligência e consequentemente da negação do direito à convivência familiar.

Os abrigos são entidades, tanto públicas quanto priva-das, que realizam o acolhimento de menores que estejam em situação de risco social, cuja finalidade é a promoção e o resga-te de seus direitos, e ainda a reintegração familiar (DIAS; SILVA, 2012).

Logo, quando ocorre a desordem social na esfera familiar e o posterior abandono do menor, a solução encontrada pelo legislador foi a do abrigamento institucional.

O abrigo é a sétima medida de proteção prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente. É aplica-da quando os direitos da criança e do adolescente estão ameaçados ou violados, sendo transitória e acionada quando estes são afastados do seu meio familiar e comunitário, porém priorizando a reinte-gração familiar. Nesse contexto, o acolhimento em abrigos se revela como uma das alternativas de garantia dos direitos humanos para a criança e para o adolescente. O abrigo é uma possibilidade ou não de um espaço para a reinserção familiar. Esta medida tem-se configurado como medida que põe em risco a aplicabilidade dos princípios legais ECA, pois viola, por exemplo, o direito à convivência familiar e comunitária (DIAS; SILVA, 2012, p. 180).

Sendo assim, deve-se lembrar que a família é essen-cial ao desenvolvimento da criança, e que é direito desta de ter acompanhamento, independentemente se esta estiver inserida

no seio familiar ou em uma instituição. Outro ponto relevan-te é que, por mais que haja a prioridade pela convivência da

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criança e do adolescente em sua família de origem, o legislador ofereceu outras possibilidades de reinserção familiar, como por exemplo, as famílias substitutas.

4.1 Críticas ao acolhimento institucional

Hodiernamente, há milhares de crianças e adolescentes vivendo em abrigos, muitas vezes em decorrência das desigual-dades sociais. Todavia, critica-se o convívio do ¨menor¨ em tais instituições, uma vez que falta ao menor institucionalizado valo-res necessários, como afeto e orientação individualizada. Além disso, o abrigamento priva o acolhido do convívio familiar e co-munitário (SIQUEIRA; DELL’AGLIO, 2006).

De acordo com Kreuz (2012), tem-se dados de que há mais de 80.000 mil crianças e adolescentes vivendo em abrigos em todo o território nacional. Entretanto, outro dado alarmante é que, em mais de 80% dos casos, essas mesmas crianças têm famílias e, em mais da metade dos casos, ainda existe algum tipo de vínculo. Outros dados revelam que, em muitos casos, não há conhecimento por parte do judiciário de que essas crian-ças e adolescentes estejam institucionalizados, o que ocorre de-vido à falta de um controle efetivo.

Não é possível determinar uma causa específica para o ex-pressivo número de crianças institucionalizadas (KREUZ, 2012), pois é um conjunto de fatores. Entretanto, a falta de recursos financeiros aliado à violência doméstica e até mesmo pelo envol-

vimento dos pais com substâncias entorpecentes estão entre a comunhão de fatores levam os ¨menores¨ à institucionalização. A falta desses potencializa outros fatores, tais como violência

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física, sexual e psicológica, além de omissões e negligência que dão causa à perda do poder familiar dos pais sobre os filhos, bem como se observa no trecho disposto a seguir:

É cada vez mais comum observar-se, nas unida-des de acolhimento, crianças que nascem já com síndrome de abstinência de drogas. São frutos de mães que fizeram uso de entorpecentes durante a gravidez e, muitas vezes, até o momento antes do parto. As crianças apresentam sintomas como: hipertonia, hiperatividade, taquipneia, diarréia, in-sônia, entre outros (KREUZ, 2012, p. 50).

Uma das maiores críticas feitas ao acolhimento institu-cional está ligada ao tempo de permanência do menor dentro das unidades de acolhimento. O fundamento para tal está atre-lado ao desenvolvimento biológico.

O ambiente institucional não se constitui no me-lhor ambiente de desenvolvimento, pois o atendi-mento padronizado, o alto índice de criança por cuidador, a falta de atividades planejadas e a fra-gilidade das redes de apoio social e afetivo são al-guns dos aspectos relacionados aos prejuízos que a vivência institucional pode operar no indivíduo. Entretanto, outros estudos apontam as oportuni-dades oferecidas pelo atendimento em uma ins-tituição, salientando que, em casos de situações ainda mais adversas na família, a instituição pode ser a melhor saída (DELL’AGLIO 2000, apud SI-QUEIRA; DELL’AGLIO, 2006, p. 71).

Conforme França (2006), o atendimento coletivo reali-

zado nas unidades de acolhimento não permite a individualiza-ção dos estímulos individuais de cada abrigado, além disso, há acentuada perda do convívio familiar.

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O abrigamento, ao ser considerado também medi-da excepcional, significa que crianças ou adoles-centes deveriam ser abrigadas apenas quando se esgotarem todas as demais medidas de proteção que antecedessem ao abrigo, o que significa nova-mente voltar-se à família de origem, pois a maioria das crianças ou adolescentes abrigados têm pai, ou mãe, ou ambos (FRANÇA, 2006, p. 25).

Ainda que a lei busque promover a reintegração familiar da forma mais célere possível, bem como a vinculação do ca-ráter de brevidade e excepcionalidade da medida protetiva, não é o que ocorre, sendo determinante a ação do Estado na refor-mulação do acolhimento para que tais mazelas não continuem a ferir os direitos da população infantojuvenil.

O acolhimento prolongado, portanto, necessita ser repensado, também, no âmbito do Poder Ju-diciário, com a necessidade de especialização dos seus juízes, servidores, constituição de equipes multidisciplinares, condições materiais para que, tão logo a criança e o adolescente sejam acolhi-das, possam ser adotadas medidas judiciais céle-res para a garantia de seu direito à convivência fa-miliar. Isso só será possível à medida que criança e adolescente também forem prioridade absoluta, dentro do Sistema de Justiça, que até hoje, con-tinua com uma visão assistencialista, por enten-der que, enquanto a criança estiver acolhida está sendo atendida em suas necessidades (KREUZ, 2012, p. 57).

Outro aspecto bastante criticado em relação ao acolhi-mento institucional está relacionado à afetividade, não só por-que o ordenamento jurídico nacional reconhece tal vínculo como juridicamente preponderante nas hodiernas decisões, mas,

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principalmente, pelas consequências no trato com o desenvol-vimento do ¨menor¨ comparadas às consequências que a falta de afetividade pode gerar.

A consequência mais trágica do acolhimento insti-tucional de crianças e adolescentes, certamente, estão no plano afetivo. Muito pior do que o aban-dono material, educacional, é o abandono afetivo, que produz danos visíveis , mas que desestrutu-ram, desorientam, tornando-as pessoas infelizes e inseguras. O afeto, como valor jurídico, vem sendo reiteradamente reconhecido pela doutrina e pelos tribunais, inserindo-o no rol dos direitos da per-sonalidade, decorrente, principalmente, dos prin-cípios da dignidade humana e da solidariedade. Em relação à criança e ao adolescente, embora o afeto não tenha sido inscrito expressamente na Constituição Federal como um direito fundamental da criança e do adolescente, ele foi incorporado tacitamente, bem como por força de tratados in-ternacionais. A Declaração Universal dos Direitos da Criança, de 1959 e a Convenção das Nações sobre os Direitos da Criança de 1989 expressa-mente, reconhecem o afeto como direito funda-mental da criança (KREUZ, 2012, p. 53).

Tão logo, o acolhimento institucional é falho quando ana-lisado sob a perspectiva da afetividade, e ainda não raro o des-respeito ao caráter de brevidade e excepcionalidade, a realida-de vivida pela criança institucionalizada está muito distante do que se faz necessário, quando comparado com os cuidados que uma pessoa recebe no seio familiar (VALENTE, 2012).

Diante disso, é inevitável a conclusão de que o acolhimento institucional viola o principio consti-tucional (art. 227, da CF) do direito da criança e do adolescente à convivência familiar, à medida

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que a retira de sua família, o que até pode ser absolutamente necessário, em razão da violação de outros direitos, e a coloca numa instituição. A violação desse direito constitucional tende a ser maior, mas grave e com conseqüências também mais desastrosas ao se prolongar por muito tem-po, como costuma acontecer no Brasil (KREUZ, 2012 p. 79).

O referido autor afirma, ainda:

O art. 227 da Constituição Federal, ao assegurar à criança e ao adolescente o direito à convivên-cia familiar, bem como estabelecer que tal direito deve ser respeitado com absoluta prioridade, não deixa dúvidas de que o acolhimento deve ser ex-cepcional e pelo menor tempo possível. (KREUZ, 2012, p. 80).

A falta de celeridade na seara judicial tem se consolidado como um dos principais fatores que ensejam o desrespeito à brevidade do acolhimento. Com o decorrer do tempo, as chan-ces de uma criança sair de um abrigo diminui, pois, por mais que o número de interessados em adoção seja superior ao nú-mero de crianças abrigadas, há limitações devido à existência de um perfil previamente desejado, e, nesse ínterim, ocorre a desvinculação constante dos laços afetivos com a família natu-ral (KREUZ, 2012).

Conforme Kreuz (2012), muitos acolhimentos ocorrem sem que se verifiquem as possibilidades de manutenção do ¨me-nor¨ junto de suas famílias de origem. Em outros casos, a própria

família é levada a acreditar que não terá condições de dar prosse-guimento à educação e aos cuidados para com os filhos.

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Portanto, é muito menos conflituoso e traumatizante co-locar uma criança em um lar, mesmo que substituto, do que deixá-la em uma instituição, pois, conforme já citado, esses lo-cais não preenchem as necessidades afetivas, sendo necessário investir na recuperação da proteção familiar, seja estruturando laços vulneráveis na manutenção de vínculos, seja estimulando outros institutos, tais como a tutela, a guarda e a adoção.

Entretanto, mesmo que o acolhimento institucional seja alvo de críticas, ainda é o meio pelo qual o Estado visa comba-ter e amenizar uma série de violências sofridas por crianças e adolescentes que estão tendo seus direitos violados (FRANÇA, 2006).

Todavia, as instituições de abrigamento não possuem instrumentos humanos e tampouco recursos financeiros para a efetivação dos princípios dispostos no Estatuto da Criança e do Adolescente, sendo possível constatar que a medida de transi-ção, a qual devia ter caráter primordial de acolhimento provisó-rio, não é desenvolvida.

5 A FAMÍLIA E O DIREITO À CONVIVÊNCIA FAMILIAR E CO-MUNITÁRIA

O Estado faz frente aos problemas causados pelo risco social contra a criança e o adolescente, buscando, por meio da institucionalização, promover seus direitos, colocando-os a salvo de abusos. Entretanto, ao passo que a institucionalização acon-tece, surge outro problema: como garantir que essas crianças tenham seu direito à convivência familiar respeitada.

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O direito constitucional da criança à convivência familiar não se restringe à família biológica. O prin-cipio constitucional, em momento algum se limita a garantir o direito da criança de ser criada e edu-cada na sua família biológica, embora esta tenha preferência (KREUZ, 2012, p. 77).

As medidas de proteção elencadas no Estatuto da Crian-ça e Adolescente devem preservar os direitos reconhecidos. As-sim, a convivência familiar e comunitária deve ser respeitada no sentido de preservar as necessidades dos indivíduos que te-nham seu vínculo familiar rompido (VALENTE, 2012).

Diante disso, a reformulação sofrida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, através da Lei 12.010, de 04 de agosto de 2009, ao tratar acerca do direito à convivência fami-liar e comunitária, teve positivas alterações, uma vez que pas-sou a se priorizar o Acolhimento Familiar em detrimento do Aco-lhimento Institucional.

Levando-se em consideração que, contemporaneamen-te, a família não se limita apenas à unidade formada por pai, mãe e filhos, mas à existência de laços afetivos, bem como o que se considera relevante ao desenvolvimento da criança (KREUZ, 2012).

O direito à convivência familiar e comunitária é uma forma de proteção social, sendo necessário o fortalecimento de práticas que garantam a efetivação de ações que promovam a valoração e fortalecimento de vínculos rompidos. Conforme se extrai do Esta-tuto da Criança e do Adolescente, tanto o acolhimento institucio-nal quanto o familiar devem ser adotados somente como última alternativa, ou seja, depois de verificadas as possibilidades de manutenção na família natural (VALENTE, 2012).

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A legislação em vigor mostra claramente que não temos o direito de orfanizar a população infanto-juvenil que se encontra em situação de vulnera-bilidade social e carente das medidas projetivas previstas do ECA, afastando-a do convívio familiar e comunitário (FRANÇA, 2006, p. 27).

O Estatuto da Criança e do Adolescente adota, ao longo de seus dispositivos, três conceitos de família, são elas: família natural, família extensa e família substituta. Em se tratando de famílias substitutas, o Estatuto prevê as modalidades de tutela, guarda e adoção. Assim, quando necessário, a criança ou o adolescente é direcionada a viver sob a proteção e cuidados de uma família substituta, independentemente da situação jurídica pela qual esse menor se encontre, seja destituída ou não do poder familiar.

5.1 O acolhimento familiar como solução ao direito à con-vivência familiar e comunitária

Uma alternativa ao Acolhimento Institucional para crian-ças e adolescentes que tenham sofrido violações de direitos é o Acolhimento Familiar, que atua como instrumento de proteção ao desenvolvimento da criança e do adolescente, sendo utiliza-do como medida de proteção de caráter temporário. É conside-rada mais efetiva diante do princípio da excepcionalidade e da provisoriedade, bem como por atender a garantia do direito à convivência familiar e comunitária (FRANÇA, 2006).

Ao se reconhecer que a família de origem ou a substi-tuta é sempre melhor do que a institucionalização, bem como quando se retira do entendimento da sociedade a ideia de que

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crianças e adolescentes são adequadamente atendidas em suas necessidades quando institucionalizada, surgem programas que têm por objetivo garantir e reforçar vínculos familiares, facilitan-do a reintegração à comunidade (FRANÇA, 2006).

O Serviço de Acolhimento em Família Acolhedora está inserido na Política Nacional de Assistência Social (PNAS, 2004), no Plano Nacional de Pro-moção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária (PNCFC, 2006) e no Estatuto da Criança e Adoles-cente (ECA), alterado pela Lei n. 12.010/09. Sua operacionalização está descrita nos documentos: Orientações Técnicas: Serviços de Acolhimento para Crianças e Adolescentes (MDS, 2009) e Ti-pificação Nacional de Serviços Socioassistenciais (MDS, 2009). (VALENTE, 2012, p. 577).

Nesse intento, os serviços de acolhimento na modalida-de ¨Programa Famílias Acolhedoras¨, reconhecido como polí-tica pública social, organizam acolhimento familiar de crianças e adolescentes, que, por terem sofrido violações de direitos, estejam recebendo medidas de proteção, programas esses que atuam juntamente com a Vara da Infância e Juventude, com vistas à proteção integral ao ¨menor¨, objetivando celeridade e reintegração familiar (VALENTE, 2012).

Entende-se aqui por família acolhedora aquela que voluntariamente tem a função de acolher em seu espaço familiar, pelo tempo que for neces-sário, a criança e/ou o adolescente que, para ser protegido, foi retirado de sua família, respeitando sua identidade e sua história, oferecendo-lhe to-dos os cuidados básicos mais afeto, amor, orien-tação, favorecendo seu desenvolvimento integral

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e sua inserção familiar, assegurando-lhe a convi-vência familiar e comunitária (VALENTE IN RIZZINI 2006, apud VALENTE, 2012, p. 582).

Os programas famílias acolhedoras objetivam prestar am-paro a esses “menores”. Assim, famílias interessadas realizam um cadastro junto ao órgão responsável, designado pelo muni-cípio, e, após passarem por entrevistas pessoais, realizadas por uma equipe multidisciplinar formada por profissionais das áreas da assistência social e da psicologia, bem como averiguações em relação à conduta e idoneidade moral, podem se tornar ap-tas a receber crianças em seus lares (FRANÇA, 2006).

A partir da promulgação da Lei n. 12.010/2010, o acolhimento familiar situa-se como um serviço que deve ser acessado anteriormente ao acolhi-mento institucional, como medida de proteção. A adoção deve ser tomada como medida excepcio-nal, cuja realização apenas deve ocorrer quando esgotadas as possibilidades de retorno à família de origem ou extensa ou mesmo à rede significa-tiva da criança e do adolescente (VALENTE, 2012, p. 581).

Logo após essa prévia investigação social, essas famílias são devidamente orientadas e recebem capacitação para que possam adequadamente acolher crianças e adolescentes ins-titucionalizados, até que esses possam ser reintegrados a sua família natural ou, do contrário, encaminhadas à adoção.

A Política Nacional de Assistência Social (PNAS, 2004) determina dentro da Proteção Social Espe-cial de Alta Complexidade - “serviços que garan-tam proteção integral [...] para famílias e indiví-

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duos que se encontram sem referência e, ou, em situação de ameaça, necessitando ser retirados de seu núcleo familiar e, ou comunitário”. Essa determinação norteou a implantação, a qualifi-cação e o reordenamento de serviços, entre eles o Serviço de Acolhimento em Família Acolhedora (VALENTE, 2012, p. 581).

Tendo em vista que se trata de uma modalidade de me-dida de proteção, as ações realizadas pelos órgãos que aplicam tal medida devem direcionar seus esforços para o respeito ao caráter de excepcionalidade da medida, bem como à necessida-de de priorizar a reintegração familiar. Para tanto, é necessária a junção de acompanhamento tanto da família natural quanto da substituta, tudo isso integrado às prerrogativas emanadas da Vara da Infância e Juventude, priorizando a qualidade para que as ações ocorram de forma célere, conforme exigisse o Estatuto da Criança e do Adolescente, preservando, assim, o direito à convivência familiar e comunitária (VALENTE, 2012).

Tanto os programas de acolhimento institucional quanto os de acolhimento familiar devem estar devidamente inscritos no Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescen-te, bem como determina o Estatuto (FRANÇA, 2006).

Importante mencionar que, conforme Kreuz (2012), o programa já vem sendo implantado em diversos municípios bra-sileiros, e que em regra o programa prevê o pagamento de uma bolsa auxílio às famílias acolhedoras. Além disso, a criança ou o adolescente acolhido recebe acompanhamento médico, educa-cional e ainda é incluído em outros programas de contraturno, bem como quando em idade apropriada é direcionado a progra-mas de emprego.

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Outro ponto de extrema relevância é que a política busca, sempre que possível, preservar os vínculos entre os irmãos, co-locando-os em uma mesma família, para que, assim, seja mais harmonioso o processo de adaptação, bem como para se evitar a perda dos vínculos de afetividade já existentes.

O programa, no mínimo a cada seis meses, ela-bora um laudo técnico sobre a situação social fa-miliar de cada criança ou adolescente, contendo as tentativas realizadas de reintegração familiar, os programas em que estão inseridos, encami-nhando-os à Vara da Infância e da Juventude, onde se realiza a audiência de reavaliação, a que comparecem os responsáveis pelo Programa a fa-mília acolhedora, os pais (quando recomendado) acompanhados de advogado, a criança ou ado-lescente, e a Equipe Técnica da Vara da Infância e da Juventude e o Ministério Público. Na audiên-cia, são ouvidas as partes, adotadas providencias eventualmente regularizada a guarda, aplicadas outras medidas protetivas quando necessárias, bem como avaliada a possibilidade do desacolhi-mento (KREUZ, 2012, p. 135).

Diante disso, conforme França (2006), levando-se em consideração a ordem social atual, não é possível trabalhar ape-nas para que a lei seja cumprida, mas sim para que haja aten-ção em relação ao tratamento direcionado às famílias para que, assim, o direito à convivência familiar e comunitária possa ser efetivo, principalmente diante daquelas que precisam de uma atenção maior por parte do Estado, ou seja, aquelas vítimas do risco social, possibilitando acesso aos benefícios sociais de que faz jus o Estado, de forma que a retirada de crianças e adoles-centes de suas famílias seja o menor possível. Por outro lado, quando imprescindível tal conduta, que a resposta encontrada

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pelo legislador seja a que menos prive a criança e o adolescente de outros direitos.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os Programas de Acolhimento Familiar têm se consolida-do como uma eficaz alternativa ao direito à convivência familiar comunitária, uma vez que, conforme demonstrado, crianças e adolescentes com vínculos familiares rompidos e vítimas de vul-nerabilidade social, por vezes passam anos em unidades de aco-lhimento institucional, mesmo tendo em vista que a convivência familiar é de notória importância para o desenvolvimento da popu-lação infantojuvenil, reconhecimento este até mesmo em âmbito Constitucional, ao assegurar que a família é a base da sociedade.

O presente artigo buscou oferecer uma resposta ao aco-lhimento institucional, com vistas a buscá-la no princípio da prioridade absoluta, bem como na doutrina da proteção integral, pois, conforme o exposto, é inegável a importância da família e da sociedade no desenvolvimento de qualquer pessoa. Além disso, não é aceitável que a sociedade enxergue a instituciona-lização como um assunto cuja resposta encerre-se no abriga-mento em instituições, que não ofereçam o afeto e o acompa-nhamento necessário.

Nesse contexto, apresentou-se o programa de acolhi-mento familiar, também denominado ¨Programa Família Acolhe-dora¨, cujo objetivo é garantir a não institucionalização e o direi-to à convivência familiar e comunitária. Crianças e adolescentes que passam a viver em unidades familiares também recebem orientação moral, afetiva e material, que não seriam possíveis

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em uma unidade de acolhimento institucional, em que há um número expressivo de usuários, em contrapartida com uma de-manda insuficiente de recursos humanos.

A nova concepção de família introduzida no ordenamento jurídico nacional com a promulgação da Lei nº 12.010/2009 contribuiu efetivamente para um novo olhar social, uma vez que, para a referida lei, família não se limita apenas à unidade for-mada por pai, mãe e filhos ou laços biológicos, e sim à extensão familiar em que haja laços de afinidade e afetividade.

Desse modo, a legislação nacional ratificou a importância da família no desenvolvimento de qualquer pessoa, tendo em vista as necessidades sociais atuais, e principalmente contem-plou a ideal atuação das políticas públicas, que devem caminhar no sentido de atender às demandas, levando-se em considera-ção as disparidades culturais, econômicas e sociais.

Os programas de acolhimento familiar são muito mais do que políticas públicas de alta complexidade, pois são, principal-mente, uma forma do Brasil quebrar com a maléfica cultura da institucionalização que priva crianças e adolescentes de uma vida com dignidade.

Os serviços de acolhimento voluntário, prestados pelas famílias acolhedoras, desmistificam o conceito de família im-posto ao longo de décadas, na qual uma unidade ideal de es-trutura familiar deveria ser composta pela unidade formada por pai, mãe e filhos, pois a ideia do ideal não existe, uma vez que tal pensamento abre espaço para questionamentos preconcei-tuosos e desiguais. Uma família não é apenas aquela formada por laços biológicos, mas sim por pessoas dispostas a amar, a compartilhar suas experiências, e a oferecer ao próximo a opor-

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tunidade à vida, mas muito mais do que apenas vida, e sim, vida com dignidade.

Logo, essas novas unidades familiares permitidas pelo legislador através de programas de acolhimento familiar pro-porcionam à sociedade uma rica e complexa gama de vínculos familiares que visam cumprir com os princípios norteadores do direito da criança e do adolescente, é a notória prioridade abso-luta destinada a estes.

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CRITÉRIOS DE LEGITIMIDADE JURISDICIONAL NAS DIFICULDADES

CONTRAMAJORITÁRIAS

JURISDICTIONAL’S LEGITIMACY CRITERIA IN THE COUNTERMAJORITARIAN DIFFICULTIES

Douglas Maranhão Marques1

RESUMOA relação entre direito e democracia traz em seu bojo conflitos de longa data. Enquanto o primeiro almeja a circunscrição de elementos de obediência incontinenti, a democracia parece bus-car o máximo alcance possível das liberdades intersubjetivas, de maneira que estabelecer um paralelo entre ambos os institutos significa balizar a própria definição do Estado Democrático de Di-reito. Dessa forma, apelando à restrição imposta pela Jurisdição Constitucional como mecanismo estatal de concatenação da sig-nificância do texto constitucional em face dos instrumentos voliti-vos da maioria, veem-se as dificuldades contramajoritárias como aparato jurídico hábil a caracterizar as potencialidades conflituo-sas da relação apontada, contrastando a vontade da maioria com o jurisdicionalmente provido, sempre levando em consideração a estrutura essencialmente antidemocrática do Judiciário, que não conta com nenhum de seus membros eleito. Através da pesquisa bibliográfica, assim, procura-se o estabelecimento entre a relação de direito e democracia com fulcro na atuação de Cortes Consti-tucionais que contrariam a vontade da maioria da população, pro-pondo-se o corrente estudo a debater a significância não apenas de tal embate, mas dos próprios elementos que o constituem. 1 Acadêmico do 5º ano do curso de Direito da Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas de Cascavel – UNIVEL. Bolsista integral pelo programa Universidade para Todos (ProUni). Escritor. Endereço eletrônico: [email protected].

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PALAVRAS-CHAVE: Jurisdição constitucional, Legitimidade do direito, Dificuldades contramajoritárias.

ABSTRACTThe relation between law and democracy brings with itself conflicts from longstanding. While the first looks for the circumscription of elements of mandatory obedience, the democracy seems to search for the maximum range as possible of the intersubjective freedoms, in a way that to stablish a parallel between both the institutes means to beacon the definition of Democratic State itself. This way, appealing to the restriction imposed by Constitutional Jurisdiction as a state mechanism of concatenation of the constitutional text’s meaning faced against the majority will instrument, the countermajoritarian difficulties are seen as juridical trappings able to characterize the conflicting potentialities of the pointed relation, contrasting the majority’s will against the jurisdictionally given, always considering the essentially antidemocratic’s Judiciary structure, whose members are non-accountable. Through bibliographical research, so, this study looks for the establishment of the relation between law and democracy with scope on the Constitutional Courts action that goes against the will of the population’s majority, proposing the current study the debate about the significance not only of such conflict, but of the elements that constitute itself.

Keywords: Constitutional Jurisdiction, Law Legitimacy, Counter-majoritarian Difficulties.

1 INTRODUÇÃO

Dentro dos moldes apresentados na segunda metade do século XX até os dias atuais, o processo democrático traz consigo mais do que a mera obediência incontida aos ditames majoritários populacionais. A Ciência Política já vislumbra a de-

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mocracia como uma série de interferências sociais, antropoló-gicas e filosóficas, de modo que o questionamento não só dos fundamentos e função do sistema democrático é questionado, mas também sua própria necessidade e caracterização.

O cenário político brasileiro traz consigo a necessidade eminente de análise das dificuldades contramajoritárias graças ao papel do Legislativo em face das características marcadamen-te progressistas do Judiciário pátrio. A tensão inevitável entre um Poder que tende à ineficiência e outro que não pode se escusar de julgar os efeitos desta emerge dentro das dificuldades apon-tadas pelo caractere que extrapola a mera teoria dos checks and balances, já revelando atuação verdadeiramente ativista.

Vislumbrar as modalidades de dificuldade contramajori-tária, tanto em sede de controle concentrado de constitucio-nalidade, quanto em decisórios exarados em frontal discrepân-cia com a vontade da maioria, sendo esta expressa nos mais variados moldes. Não se pretende, dessa forma, a análise de tal dificuldade pela sua base meramente demonstrada no con-trole de constitucionalidade apontado alhures – como o fez a imensa maioria da doutrina especializada até o início dos anos 1980 – mas também pelo viés essencialmente visto no Judi-ciário como contrapoder.

O estabelecimento da função jurisdicional dentro do Esta-do Democrático de Direito, assim, exsurge como primeira alter-nativa lógica a se seguir pela necessidade de estabelecimento de critérios balizadores desta mesma jurisdição, correlacionando-as com os fins do Estado – e da repartição de poderes, consequen-temente –, de maneira a possibilitar a análise do funcionamento de tal prestação jurisdicional e, em caso necessário, de vislum-

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brar o desvio da finalidade intrínseca da jurisdição quando numa atuação essencialmente contrária ao majoritariamente ansiado.

Por fim, passará este estudo às bases propostas, num primeiro momento estabelecendo um panorama das dificulda-des contramajoritárias em ambas as modalidades possíveis, além da vinculação de sua existência com fenômenos políticos nacionais recentes, desembocando tal análise nos eventuais cri-térios de legitimação de tal atuação em detrimento do ansiado pela população, sempre buscando a conceituação da função contramajoritária do que mais do que mera vexata quaestio judi-cial, mas verdadeiro paradoxo da atuação política do Judiciário.

2 DIFICULDADES CONTRAMAJORITÁRIAS

2.1 Conceito

A questão legitimadora democrática emerge como carac-tere fundante das mais acirradas discussões contemporâneas quanto ao exercício do poder governamental e o estabelecimen-to de seus limites. Prova disso é o fato do tema da legitimidade jurisdicional das cortes Constitucionais ter se convertido em ver-dadeira obsessão da teoria política e constitucional nos Estados Unidos desde o final da década de 1960 (SOMIN, 2004). Evitar a Democracia dos Hipócritas, no termo cunhado por Zagrebelsky, é o mote incentivador do conteúdo buscado pelos doutrinadores que averiguam a questão legitimadora do Poder Judiciário (FELLET, 2012). Tal democracia, como bem tra-duz o próprio criador da expressão dificuldade contramajoritária, é conhecida pela “[...] maneira daqueles que utilizariam formas

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de democracia para fins autoritários” (BICKEL, 1986, p. 27, tra-dução nossa). Tal figura filosófica não é de difícil configuração nos atuais axiomas em que se vislumbra a atuação política, principalmente em nosso país. Com a crescente onda de que a legitimidade so-cial deve repousar na mensuração da opinião pública, conforme explana Bassok (2013), é compreensível que grande parte da população menos informada – que, na esteia de Somin (2004), geralmente representa mais da metade do eleitorado de um país – correlacione o apoio popular generalizado com critérios de legitimação. As Cortes Constitucionais – órgão específico do Poder Judiciário em que se cinge o presente estudo, em que pese os critérios de argumentação e que podem ser aproveitados ao instituto como um todo – encontram-se num dilema legitimador desde os primeiros trabalhos quanto à vinculação de apoio po-pular e sua estabilidade institucional. Helmke (2010) é enfática quanto ao fato da legitimidade de tais cortes dar azo à sua pró-pria estabilidade, sendo indissociáveis ambos os vetores. Alexander Bickel foi o primeiro a cunhar um termo espe-cífico para tal crise de legitimidade das Cortes Constitucionais. Em The Least Dangerous Branch: The Supreme Court at the Bar of Politics, sem tradução para o português e publicado em 1962, o autor lançou a teoria que edificaria toda a discussão doutrinária quanto aos critérios de autoridade da Suprema Corte estadunidense, e, por consequência, de todos os Tribunais Su-periores do mundo (BICKEL, 1986). A grande contribuição do norte-americano foi a criação da terminologia dificuldades contramajoritárias referente às

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idiossincrasias pertinentes aos decisórios daquele Tribunal per-meando a esfera política. Cientistas políticos e constitucionalis-tas contemporâneos são unânimes ao afirmar que o que Bickel cunhou, na verdade, foi um axioma aplicável apenas ao controle concentrado de constitucionalidade (BASSOK, 2012).

Ao iniciar o estudo da dificuldade contramajoritária, pre-viu Bickel que “a função legitimamente é inescapável” (BICKEL, 1986, p. 29, tradução nossa), asseverando com maestria que se desdobrar sobre tal dificuldade é esbarrar necessariamente na legitimação das Cortes responsáveis pela atuação contra-majoritária. Bickel (1986) traz à baila o fato de a Suprema Corte nor-te-americana retirar a eficácia2 de leis aprovadas regularmente pelo procedimento democrático, atuando como organismo con-tramajoritário pela sua composição sem cunho eleitoral. É esta a referida dificuldade. Tal atitude por parte do órgão judicial traz em seu bojo a discussão quanto aos critérios legitimadores da própria jurisdição constitucional, uma vez que a mesma precisa apelar a instrumentos de controle social – e demonstração de poder, em última instância, conforme aduz Bassok – para justi-ficar a tomada de decisões que contrariem os anseios de uma maioria populacional, representada através de políticos ou de pesquisas de opinião pública (BASSOK, 2013).

Tentar estabelecer um conceito de dificuldade contrama-joritária dentro do próprio ponto de vista bickeliano esbarra na in-terligação de diferentes vetores de legitimação e da própria teoria

2 O direito norte-americano fala quanto à invalidação, e não quanto à retirada de eficácia de uma norma nos moldes kelsenianos, uma vez que, para o austríaco, tem-se que caso uma lei seja declarada inconstitucional, ocorre a decretação de sua ineficácia, não invalidade, sendo esta uma peculiaridade do civil law, revelando-se escusável a diferença entre o plano normativo atingido pela referida decretação nos diferentes modelos jurídicos, conforme a peculiaridade do common law a ser levada a cabo no momento oportuno neste trabalho.

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constitucional. Tal assertiva se faz verdadeira uma vez que o pró-prio Bickel (1986), apesar de lançar mão de diferentes exemplos de controle concentrado de constitucionalidade, como definição da aludida dificuldade, acaba moldando um sentido lato de tal instituto, tendo a doutrina contemporânea já sido pacificada quanto à existência de dois tipos de dificuldade contramajoritária.

Bassok (2012) sintetiza tal bifurcação em trabalho es-pecífico, caracterizando as dificuldades contramajoritárias tradi-cional e literal. Conforme se verá em tópico específico, ambas lidam com diferentes formas de legitimidade e responsividade aos anseios de eventuais maiorias políticas e populacionais, sendo que apenas a forma tradicional é a que traduz o efetiva-mente proposto por Bickel. Quanto à incapacidade de incorporação das duas formas de dificuldade quando da publicação de seu livro, Eule acredita que Bickel talvez devesse ter cunhado o termo contrarrepresenta-tivo para determinar a crise legitimadora oriunda da declaração de inconstitucionalidade, uma vez que, nos termos trazidos em The Least Dangerous Branch, vislumbra-se apenas a aplicabilidade da crise legitimadora nos moldes de controle constitucional, interferin-do apenas na esfera da representatividade, e não necessariamente na efetiva opinião do eleitorado majoritário (BASSOK, 2012). Ponto cabível é a análise da estruturação filosófica do tema aludido apenas nos moldes norte-americanos. A dificul-dade contramajoritária – ou déficit democrático, na expressão correspondente no direito europeu – encontra subsídio principal-mente nos escritos estadunidenses, pelo fato de o continente europeu ainda não ter se deparado com uma potencial crise de confiança em seu Legislativo (COMELLA, 1997).

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Quanto à situação no continente, alude o autor espanhol:

A lei, com efeito, aparece revestida de uma espe-cial dignidade como consequência de sua apro-vação pelo órgão do Estado que está em melhor posição institucional para expressar a vontade popular: o Parlamento, eleito periodicamente por sufrágio universal (COMELLA, 1997, p. 36, tradu-ção nossa).

Assim, ainda na esteia de Comella (1997), é notável que muitos dos Tribunais Constitucionais europeus – principalmente o espanhol – se limitem a fornecer recomendações legislativas e exercer apontamentos, declarando a inconstitucionalidade de determinado ato normativo apenas em último caso, quando este comprovadamente afrontar os mais intrínsecos direitos funda-mentais. Alguns casos, contudo, como o alemão e o italiano, por se tratarem de países com recentes sensibilidades bélicas, veem em seus tribunais a chancela para o funcionamento democrático, razão pela qual o discurso legitimador cai por terra desde então. As lições de Miranda (2012) emergem para consubstan-ciar o já exposto pela doutrina europeia geral quanto à inobser-vância continental da importância legitimadora do controle de constitucionalidade:

O constitucionalismo liberal europeu não possui uma clara consciência da necessidade de garantia constitucional por quatro razões principais: - Por, no seu otimismo, acreditar numa espécie de harmonia política e na força, ao mesmo tempo, obrigatória e dissuasora das Constituições escri-tas; - Por a Constituição não ser tomada rigorosamen-te como fundamento ou como critério de validade

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das leis; - Por a lei ser entendida como expressão de ra-cionalidade; - Por prevalecer uma visão rígida e mecanicista da separação de poderes ou (contraditoriamen-te, mas com resultados idênticos) uma conceção (sic) jacobina de unidade da soberania e de de-mocracia absoluta (MIRANDA, 2012, p. 107-8).

Dessa forma, os Estados Unidos – e de certa forma a grande maioria das nações latino-americanas – perderam o oti-mismo liberal que hoje toma conta da Europa ainda em pleno século XXI, de modo que a Constituição passou a ser vista sob a ótica de que “[...] só poderá servir de garantia [...] se for garan-tida como alguns poderosos fatores [que] elevam a inconstitu-cionalidade a núcleo de toda a problemática do Direito constitu-cional, e, quiçá, do Direito público” (MIRANDA, 2012, p. 108).

In fine, por ser o modelo constitucionalista brasileiro se-melhante ao norte-americano quanto à análise de seus critérios de controle, começa-se a delinear o conceito de dificuldade con-tramajoritária na medida em que se denota a estrutura diametral-mente oposta do Poder Judiciário em face dos Poderes Executivo e Legislativo. Nenhum de seus membros é eleito por via direta, mas suas decisões têm o condão de estabelecer obediência a todos. É o início da tensão da legitimidade democrática de tal Po-der, e a base da divisão de águas na dificuldade contramajoritária.

2.2 Dificuldade Contramajoritária Tradicional

Conforme já exposto, a dificuldade contramajoritária tra-dicional é a que coaduna com a visão bickeliana de seu próprio

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instituto, tão logo tal vertente lida com “[...] a questão de poder o princípio democrático do governo da maioria ser reconcilia-do com a prática de juízes apenas remotamente contabilizáveis eleitoralmente invalidarem leis criadas por representantes elei-toralmente contabilizáveis” (BASSOK, 2012, p. 339-40, tradu-ção nossa)3. O silogismo textual com o controle concentrado de constitucionalidade é evidente.

As bases do início da discussão de tal forma de dificulda-de são lançadas pelo próprio Bickel, aduzindo que “[...] apesar de democracia não significar constante reconsideração de deci-sões tomadas, ela significa que uma maioria representativa tem o poder de revertê-la” (BICKEL, 1986, p. 17, tradução nossa). Assim, depositar tal poder nas mãos de uma minoria impassível de responsividade aos anseios da maioria significa, mais uma vez nos ditames de Bickel (1986, p. 23, tradução nossa), uma “grave contradição interna” no princípio democrático.

Numa tentativa de estabelecer um conceito fechado de dificuldade contramajoritária tradicional, é possível exemplificar tal instituto vislumbrando sua presença quando uma Corte Cons-titucional “invalida um estatuto passado por um corpo eleito [...], também quando ela [a Corte] invalida estatutos que gozam de apoio popular” (BASSOK, 2012, p. 342, tradução nossa).

Para Souza Neto e Sarmento (2012), o formato tradicio-nal da dificuldade contramajoritária permeia o campo político na medida em que deposita no Tribunal Constitucional o papel de intérprete último da Constituição, sendo que, como alude Lane,

3 Tema controverso em termos de tradução é a utilização da terminologia accountable e non-accountable pela doutrina norte-americana, uma vez que os teóricos anglo-saxões fazem uso da mesma para representar cargos oriundos ou não de eleições, sendo que a terminologia brasileira adequada seria elegíveis e inelegíveis. Tal denominação, contudo, revestiria o presente trabalho com um cunho metodológico diferente do almejado, razão pela qual se optou por uma tradução mais próxima do original em detrimento da constitucionalmente adequada.

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tal atuação passa a ver na Carta Magna mais do que limites pro-cedimentais do jogo político, mas também documento no qual se estrutura a base substancial da democracia, tomando as Cortes Constitucionais o papel de defensora da adequação constitucio-nal de conteúdo, e não apenas da forma (PEREIRA, 2012).

Assim, o início de toda a dificuldade contramajoritária tradicional repousa necessariamente no início da mudança de paradigma de observância da Constituição, passando tal docu-mento, como já dito, a ser formulador das bases para o delinea-mento do jogo político quanto à sua substância4, e a atribuição de uma instituição quanto aos encargos interpretativos oriundos da necessidade de observação deontológico-constitucional. Co-mella (1997) acrescenta que, assim, as normas constitucionais são passíveis de um maior grau de indeterminação por terem de dar espaço à interpretação para o amoldamento contínuo e temporal da Constituição.

Com base nessa amplitude valorativa do texto constitu-cional, disserta grande parte dos teóricos latinos que a redação normativo-constitucional é passível das mais diversas formas de atualização e aplicação silogística, tendo alguns destes forma-do, inclusive, o conceito de texto vivo da Constituição.

Retomando as bases da dificuldade contramajoritária tradicional, Bickel (1986) é enfático ao reconhecer o histórico caso de Marbury vs. Madison, julgado em 1803 como prece-dente absoluto de tal dificuldade. O autor lança mão ainda, conforme se verá a seguir, do fato da dificuldade contramajo-

ritária nunca ter repousado no fato de se um ato contrário à 4 Duas teorias buscam explicar o modo de observância da Constituição: a instrumental, que enxerga na Carta apenas conceitos gerais dentro dos quais o jogo político pode se desenvolver livremente, e a substancial, que acredita na Carta como documento vinculador de axiomas a serem observados e incorporados pelo funcionamento institucional integralmente.

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constituição deveria permanecer, mas sim quem deveria de-

cretar tal inconstitucionalidade.

É necessária a dissecação do precedente aludido, ra-

zão pela qual o tópico quanto à historicidade do caso merece

item próprio.

2.2.1 Marbury versus Madison e demais fontes históricas

Barroso (2009) traz uma análise profunda do primeiro

caso do referido controle de constitucionalidade. Ante a derrota

do então presidente John Adams, que tentava sua reeleição no

final de 1800, tentou o candidato a manutenção de seu poderio

político apelando ao Judiciário através da aprovação do The Cir-

cuit Court Act, lei de reorganização do Judiciário na esfera fede-

ral, reduzindo o número de Justices5 e criando dezesseis cargos

de juiz federal, sendo os mesmos preenchidos por federalistas

– politicamente aliados de Adams, portanto.

Inobstante o ocorrido, na véspera da posse de Thomas

Jefferson – eleito em detrimento de Adams – quarenta e dois

juízes de paz tiveram seus nomes confirmados pelo Senado,

tendo tais cargos também sido preenchidos por indicação do

candidato derrotado através do The Organic Act of the District

of Columbia. Assinando os atos de investidura – comissions, no

original em inglês – Adams determinou que John Marshall, seu

Secretário de Estado, entregasse os mesmos aos juízes escolhi-

dos. Tendo apenas um dia, obviamente a tarefa quedou incom-

pleta, de modo que o próprio Marshall deveria assumir o cargo

5 Terminologia referente ao cargo de Ministros na Corte Suprema dos Estados Unidos.

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de Chief Justice6 com a posse de Jefferson (BARROSO, 2009). Por fim, Barroso (2009) aduz que o novo Secretário de Estado do novo presidente, James Madison, recusou-se a entre-gar aos atos de investidura que remanesceram, seguindo ordens do próprio Jefferson. William Marbury, um dos juízes que ficou sem a referida comission, impetrou, em dezembro de 1801, writ of mandamus para ter reconhecida sua pretensão e assumir o cargo fornecido por Adams. Designada sessão em 1802 para jul-gamento da reclamação, o que deve ser levado em conta é que naquele momento o Congresso já contava com maioria republi-cana, favorável ao novo presidente, revogando a lei de reorgani-zação do Judiciário federal, citada linhas acima. Foram extintos, assim, os cargos até então criados e seus ocupantes destituídos.

Para impedir questionamentos a essa decisão pe-rante a Suprema Corte, o Congresso suprimiu a sessão da Corte em 1802, deixando-a sem se re-unir de dezembro de 1801 até fevereiro de 1803. Esse quadro era agravado por outros elementos de tensão, dentro os quais é possível destacar dois: a) Thomas Jefferson não considerava legíti-ma qualquer decisão da Corte que ordenasse ao governo a entrega dos atos de investidura, e sina-lizava que não iria cumpri-la; b) a partir do início de 1802, a Câmara deflagrou processo de impea-chment de um juiz federalista, em uma ação políti-ca que ameaçava estender-se até os Ministros da Suprema Corte (BARROSO, 2009, p. 5).

Reunida em 1803 para finalmente julgar o writ, a Supre-ma Corte estadunidense, ainda presidida por Marshall, invocou argumentos principalmente d’O Federalista n. 78, escrito por Alexander Hamilton, para solucionar o caso (BICKEL, 1986). 6 Presidente dos Ministros da Suprema Corte dos Estados Unidos.

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Conforme prevê León (2010), uma das origens da pró-pria dificuldade para a tomada de tal decisão foi que apenas em 1920, na filosofia de Hans Kelsen, é que se começou a discutir a supremacia lógica da Constituição7. Até então, todo e qualquer argumento para o controle constitucional decorre-ria de uma argumentação absurdamente bem fundamentada (BARROSO, 2009).

Bickel (1986) disserta com maestria quanto à funda-mentação adotada por Marshall para o decisório exarado em Marbury versus Madison. Para o autor, Marshall já compreen-dera a questão principal “que não era se um ato contrário à Constituição deveria se manter, mas quem deveria receber o poder de decidir se ele é contrário ou não” (BICKEL, 1986, p. 3, tradução nossa).

Reitera-se, mais uma vez com fulcro nos ditames de Bic-kel (1986), que o que pesava imensamente na discussão era a pretensa superposição normativa constitucional. Torna-se dedu-zível que a Suprema Corte reconheceu tal superioridade hierár-quica da Constituição, mas apelando basicamente a uma cons-trução hermenêutica do que a uma escola jusfilosófica em si. León (2010, p. 28, tradução nossa) sintetizou a discus-são: “Como pode uma decisão tomada por um pequeno grupo de ministros prevalecer sobre a vontade de um país inteiro ex-pressada pelos seus representantes legítimos?”. É assim que se inicia a questão quanto à legitimidade para a declaração de inconstitucionalidade de leis, invocando de per si a própria difi-

culdade contramajoritária tradicional.

7 O autor adota tal data como marco inicial da discussão filosófica kelseniana pelo fato de ter sido nela a adoção do modelo jurídico do austríaco pela Suprema Corte da Áustria.

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2.2.1.1 A argumentação de Marshall

O questionamento quanto a qual órgão deveria tomar a decisão de declarar a inconstitucionalidade de uma lei passa in-variavelmente pela lógica do Legislativo como instituto democra-ticamente hábil a tirar os efeitos de determinada norma. Bickel (1986), entretanto, acredita que Marshall repele este argumen-to com a mesma lógica que o criou:

‘Deixar a questão com o legislativo’, diz ele, ‘é permitir àqueles cujo poder supostamente deve ser limitado, limitar o poder por si mesmos – um convite absurdo para o abuso consistente’. Talvez seja, mas a Constituição não limita o poder do legislativo apenas. Ela limita o das cortes também, e isto pode ser igualmente absurdo, [...] permitir as cortes o estabelecimento dos limites. E é, de fato, mais absurdo, porque cortes não são sujei-tas a controles eleitorais (BICKEL, 1986, p. 3-4, tradução nossa).

Posteriormente, a argumentação do Chief Justice segue no mesmo sentido, sempre dando causa ao Judiciário como ins-tância hábil a contornar o déficit constitucional em leis. Voltando a cuidar da questão a respeito da vigência de ato normativo em franca discrepância com o texto constitucional, Marshall é enfá-tico quanto à nulidade do ato em face da Constituição (BARRO-SO, 2009).

‘Assim’, a opinião em Marbury versus Madison conclui, ‘a fraseologia particular da Constituição dos Estados Unidos confirma e enforça o princípio que supostamente é essencial a todas as consti-tuições escritas; que uma lei contrária à constitui-

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ção é nula’, e que é o papel das cortes supremas declará-la assim (BICKEL, 1986, p. 12, tradução nossa).

Utilizando-se até mesmo da analogia possibilitada pelo Artigo VI8 da Constituição anglo-saxã, Marshall acredita que pelo fato do dispositivo mencionar em primeiro lugar a Constituição e não outras leis como Lei Suprema daquele país, estas “devem ser feitas em consonância com a Constituição” (BICKEL, 1986, p. 8, tradução nossa). Em apertada síntese, os argumentos de Marshall invaria-velmente orbitam três grandes eixos que merecem aprofundada análise em trabalho específico: a) a supremacia da Constituição; b) o papel de intérprete efetuado pelo Judiciário; e c) a lei con-trária à constituição é nula (BARROSO, 2009).

2.2.2 A questão da Corte Constitucional como interpositio legislatoris

Questão pertinente ao funcionamento de uma Corte Constitucional dentro do paradoxo da dificuldade contramajori-tária tradicional é o estabelecimento deste mesmo instituto en-quanto órgão responsável não apenas pela interpretação, mas pelas diretrizes de aplicabilidade da Carta Magna. Meyn (1982 apud PEREIRA, 2012), iniciador da teoria de controle consti-tucional nos moldes hoje conhecidos, passou a considerar tal tarefa controladora como um Verfassungprinzip, ou seja, um

8 Conhecido como “cláusula da Supremacia”, eis o que diz o referido artigo em seu parágrafo segundo: The Constitution and the Laws of the United States which shall be made in Pursuance thereof; and all Treaties made, or which shall be made, under the Authority of the United States, shall be supreme Law of the Land; and the judges in every State shall be bound there by, any Thing in the Constitution or Laws of any State to the Contrary notwithstanding.

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princípio elementar do instituto aludido, sendo notável o simples fato de que a justaposição hierárquica democrática alemã dava a entender que tal atribuição pertence àquela Corte.

Assim, antes das inovações teóricas trazidas por Meyn (1982 apud PEREIRA, 2012), o controle de constitucionalidade era tido como uma Nebenfunktion, mera função secundária, não podendo jamais ser elevado ao status de axioma constitucional.

Com a sublevação da tarefa de controle constitucional à categoria de princípio, Fellet (2012) ressalta que emergiu a questão da Corte Constitucional funcionar como interpositio le-gislatoris, atuando quanto à inconstitucionalidade de um ato normativo inexistente, deixando de agir apenas em estatutos democraticamente aprovados9. Assim, sendo possibilitada a aplicação direta do texto constitucional em conformidade com a nova interpretação substancial dada ao documento – como já exposto alhures –, emergiu nova forma de tensão entre os Poderes.

Bickel (1986) trata dessa crescente onda de aumento de responsabilidades não apenas da Corte Constitucional, mas também do Poder Judiciário como um todo, acreditando no en-fraquecimento democrático nos casos de arrefecimento das obrigações legislativas e executivas.

Tal vertente, por se tratar de subproduto da dificuldade contramajoritária tradicional, carrega junto de si todos os dile-mas legitimadores pertinentes à atuação do Tribunal envolto na questão de sua atuação positiva, razão pela qual se apresenta

invariavelmente conexo com os modelos aqui arguidos.

9 Tal situação encontra precedentes no Brasil dentro da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão e no Mandado de Injunção.

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2.3 Dificuldade Contramajoritária Literal

Finda a análise da vertente da dificuldade contramajori-tária oriunda do controle concentrado de constitucionalidade, a modalidade literal do instituto ora analisado também advém da suposta crise de legitimidade da atuação da Corte Constitucio-nal, mas circunscrita a limites que envolvem um agir positivo da entidade jurisdicional (BASSOK, 2012).

Dentre as modalidades de dificuldade contramajoritária, esta é a que vem adquirindo maior relevo, uma vez que, como bem aduz Bassok (2012), as pesquisas de opinião pública e outros instrumentos de mensuração de uma teórica vontade da maioria têm erigido como grandes – se não as maiores – causas de legitimação de uma instituição.

Somente apenas décadas de constantes pesqui-sas [de opinião]10 remodelou-se nossa noção de legitimidade democrática, sendo então que a di-ficuldade capturou o embate entre constituciona-lismo e mudança democrática para refletir a nova realidade na qual pesquisas de opinião servem como um legitimador democrático inquestionável (BASSOK, 2012, p. 339, tradução nossa).

A dificuldade contramajoritária literal é observada, con-soante o exposto, num limite de atuação da Corte Constitucional enquanto realizadora de escolhas oriundas de uma clara postura de ativismo judicial, tão logo o Tribunal incorpora em seu funcio-namento institucional um agir voltado, verbi gratia, à obtenção de elementos normativos que seriam de competência do Poder Le-10 É necessário que se teça o comentário inserido na citação referenciada pelo fato do autor utilizar, na citação original, o substantivo polling, que na língua inglesa se vincula necessariamente às pesquisas de opinião pública, enquanto que o vernáculo nacional não incorpora elementos intrínsecos à simples noção de pesquisa.

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gislativo. Assim, Comella (1997), com precisão, lança a assertiva de que uma das maiores preocupações da constitucionalidade de tal postura por parte do referido Tribunal é o estabelecimento dos limites dentro dos quais é legítima a atuação jurisdicional – positiva, neste caso – dentro de uma democracia representativa.

Exemplo tangível do ora arguido é, em solo brasileiro, o caso do julgamento da Ação Penal 470 pelo Supremo Tribunal Federal. Tais autos – conhecidos popularmente pelo nome do escândalo de corrupção que os originou, o Mensalão – geram inúmeras discussões pela conduta plenamente contramajoritá-ria de alguns Ministros da referida Corte.

É o caso do Min. Celso de Mello, que, na ocasião do jul-gamento de eventual cabimento de embargos infringentes em condenação de réu na referida ação penal, viu-se envolto em questionamentos quanto à sua legitimidade para a tomada de tal decisão (PEREIRA, BONIN, 2013).

Dois repórteres de uma revista do país levantam a ques-tão:

[...] Nenhum juiz, nenhuma corte em tempo al-gum, pode desprezar a opinião pública. A vonta-de popular, a expressão da maioria vencedora do processo democrático, atua na própria escolha e aprovação de um ministro do STF. Eles estão lá porque foram indicados por um presidente, apro-vados pelo Senado – e o foram pelo histórico de suas decisões [...]. Um juiz, mesmo ministro do STF, não pode se lixar para a opinião pública [...] (PEREIRA; BONIN, 2013, p. 64).

O que se tem, então, é a aplicabilidade prática de um ins-tituto teórico arguido por anos a fio pela doutrina constitucional.

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Argumento que parece combalir o levantado pelos jornalistas é o disposto por Bickel (1986), na exata medida em que questões concernentes a princípios republicano-democráticos não devem ser submetidos ao crivo de eventuais referendos.

Assim, quer a Corte aja declarando a inconstitucionali-dade de uma norma que possui apoio popular – ou político, na medida em que as duas esferas parecem confundir-se em na-ções com governos populistas, conforme aduz Helmke (2010) – ou exare determinado decisório de cunho altamente axiológico e afrontador aos anseios da maioria, tem-se a dificuldade con-tramajoritária literal.

2.4 Critérios de Legitimidade da Jurisdição Constitucional

Dentro da aplicabilidade teórica dos estudos quanto à legitimidade normativa – restrita, aqui, ao campo de atuação das Cortes Constitucionais – emergem critérios justificadores da atuação contramajoritária de tais instituições11. Do surgimento das pesquisas de opinião pública até a defesa de Dworkin das Cortes Constitucionais como instituições de guarda dos direitos fundamentais, vários argumentos buscam a comprovação de que a própria estrutura institucional dos Tribunais aludidos já dá conta de demonstrar sua legitimidade jurisdicional (BASSOK, 2012).

Assim, a fim de conferir maior didática à explanação de-talhada dos principais argumentos sintetizados pela doutrina estadunidense – na esteia de Bassok (2012), Bickel (1986) e

Gibson et al (1998) – e europeia – com Miranda (2012) e Co-11 A doutrina constitucional norte-americana não vincula a atuação contramajoritária necessariamente à legitimidade, preferindo adotar o termo autoridade. Frise-se desde já a discordância deste estudo com tal reducionismo filosófico, uma vez que parece ser o conceito de legitimidade o autorizador da atuação contramajoritária, sendo este último dependente do primeiro.

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mella (1997) – passa-se à análise singular de cada estrutura argumentativa, conforme se vê a seguir.

2.4.1 Corte como defensora de Direitos

O sentido substancial de democracia vislumbrado no pa-pel de defesa de direitos humanos efetivado por suas institui-ções – como as Cortes Constitucionais, neste caso – é um dos argumentos precursores do próprio funcionamento minoritário do Poder Judiciário. Da base exposta por Dworkin – que aca-ba por combinar em sua teoria diversos dos posicionamentos justificadores da atuação jurisdicional contramajoritária – até o racionalismo habermasiano, indubitável é o papel das Cortes Constitucionais como instituições hábeis a lançar as bases para o equilíbrio substancial de todos os sujeitos de direito envoltos no jogo democrático-constitucional (BASSOK, 2012).

Perry (2003, apud BASSOK, 2012) estipula como carac-tere indissociável da democracia liberal a inviolabilidade de todo ser humano, sendo que tal comprometimento axiomático é o que caracteriza o próprio modelo de democracia aludido. Dessa forma, a insularidade das Cortes Constitucionais emerge como indumentária hábil à depuração de valores cabíveis a tal insti-tuição, como aduz o argumento da legitimidade pelos direitos humanos expostos por Habermas (2003).

Assim, o conceito de maioria deveria restringir-se apenas quando do fomento aos instrumentos de participação política, sem qualquer forma de intervenção no plano individual de con-quistas pessoais, cabendo aqui a inserção dos direitos humanos como cláusula de barreira da intervenção legiferante ou política

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(HABERMAS, 2003).

O nexo interno que se buscava entre direitos hu-manos e soberania do povo consiste, pois, em que os direitos humanos institucionalizam as con-dições de comunicação para formar a vontade de maneira política e racional. Direitos que possibili-tam o exercício da soberania do povo, não podem, a partir de fora, ser impostos a essa prática como restrições. Essa reflexão, porém, só é convincen-te, de forma imediata, para os direitos políticos fundamentais, portanto, para os direitos à comu-nicação e à participação, mas não para os direitos clássicos à liberdade que garantem a autonomia privada dos indivíduos. Esses direitos, que deve-riam garantir a cada qual chances iguais de con-quista de seus projetos pessoais de vida e prote-ger de forma abrangente os direitos fundamentais, parecem evidenciar um valor intrínseco – e não se esgotam, por exemplo, no seu valor instrumental para a formação democrática de vontade (HABER-MAS, 2003, p. 71, grifo do autor).

O que merece ser levado em consideração é o próprio po-sicionamento de Bickel (1986), quando da análise da estrutura dos referidos Tribunais para lidar com questões essencialmente valorativas e reveladoras de um plano metafísico de realização pessoal. Em singular expressão, o criador da terminologia objeto deste estudo reflete acerca do sentido substancial de democra-cia esperado por operadores jurídicos: “O que queremos dizer com democracia, contudo, é muito mais sofisticado e complexo do que a tomada de decisões num encontro na cidade através de levantamento de mãos” (BICKEL, 1986, p. 17, tradução nossa).

É por não haver “[...] Direito sem a autonomia privada dos cidadãos” (HABERMAS, 2003, p. 71) que os direitos huma-

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nos – ou fundamentais, dependendo da esfera de normatividade a que se refere – funcionam como pressupostos imutáveis da formação da vontade pública, sendo que nenhuma forma de de-cisão ou vontade majoritária tem o condão de mitigar o campo de livre desenvolvimento da personalidade ou planos pessoais de cada indivíduo12.

É verdade, por óbvio, que o processo de refletir a vontade de uma maioria populacional no legis-lativo é deflagrada por várias desigualdades de representação e por toda sorte de hábitos institu-cionais e características, as quais talvez tendam mais em favor da inércia. Ainda assim deve ser mantido em mente que os estatutos são produto do legislativo e do executivo agindo concomitan-temente, e que o executivo mantém uma cons-tituição muito diferente e tende a curar inequi-dades de sobre e sub-representação. [...] Um fator muito mais complexo [...] é a proliferação e poder do que Madison previu como ‘facção’, o que o Sr. Truman chama de ‘grupos’ e que nos ditames populares sempre foi chamado de ‘inte-resses’ ou ‘grupos de pressão’ (BICKEL, 1986, p. 18, tradução nossa).

Bickel (1986) trouxe à baila talvez a mais pertinente das questões na eventual supressão de direitos fundamentais quan-do da formação do discurso político racional: a influência de gru-pos de interesse. É exatamente nesta seara que Bassok (2012) reconhece a importância da função contramajoritária das Cortes Constitucionais na devida medida de seu papel como mantene-dora de direitos fundamentais mínimos que ensejam a continui-

12 Neste mesmo sentido, é o entendimento expresso na secular Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, que aduz ipsis litteris em seu art. 4º: “A liberdade consiste em poder fazer tudo que não prejudique o próximo: assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem por limites senão aqueles que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos. Estes limites apenas podem ser determinados pela lei”.

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dade do processo democrático13. Analogicamente, o que se verifica – principalmente quan-do da análise da tentativa de pressão exercida pelos aludidos grupos de interesse – é a necessidade de manutenção do sen-tido fundador do próprio Estado Democrático de Direito em face das maiorias passageiras, na própria reafirmação da Razão Pú-blica deste mesmo Estado (MIRANDA, 2012).

O papel do Supremo não é meramente defensivo. Com efeito, ao servir como paradigma instrucional da razão pública, o seu papel é o de a realizar e assegurar o seu contínuo efeito. Isto significa, em primeiro lugar, que a razão pública é a única razão que o Supremo exerce. E o único Órgão do Estado em que visivelmente se manifesta a razão pública e apenas ela. Os cidadãos e os legislado-res podem votar apropriadamente as suas mais abrangentes perspectivas quando os elementos constitucionais essenciais e a justiça básica não estão em jogo; não necessitam de justificar o sen-tido do seu voto através da razão pública ou tornar consistentes os fundamentos desse voto e articu-lá-los dentro de uma perspectiva constitucional coerente que cubra o conjunto completo das suas decisões (MIRANDA, 2012, p. 117-8).

A Razão Pública proposta por Rawls, assim, é plenamen-te equiparável ao próprio mecanismo defensivo erigido por Ha-bermas (2003) em relação aos direitos humanos na exata me-dida em que desvela um campo completamente impassível de invasão por parte de eventuais vontades políticas transitivas.

Dessa forma, os direitos humanos – ou a Razão Pública – 13 Habermas (2003) cita como exemplo de excluídos do processo político, mas que carecem da salvaguarda de direitos fundamentais: os ciganos, homossexuais, mulheres e outros grupos minoritários que despertam a atenção da Teoria Constitucional na medida em que os grupos de pressão e maiorias políticas tendem a almejar a exclusão dos mesmos do jogo democrático. Vide o caso brasileiro da bancada evangélica e a liberação da união estável homoafetiva pelo Supremo Tribunal Federal.

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estabelecem o próprio critério de legitimidade existente quando da atuação contramajoritária das Cortes Constitucionais, expon-do com propriedade o campo mínimo de ressalvas valorativas a serem impostas contra qualquer forma indevida de intervencio-nismo político na esfera privada, funcionando tais Cortes como escudo e mecanismo discursivo dos próprios limites em questão.

2.4.2 Expertise judicial

O argumento legitimador oriundo da expertise judicial das Cortes Constitucionais é levantado pelos diversos entendimentos doutrinários que conglobam o tema. Bickel (1986), quando da própria estipulação das dificuldades contramajoritárias, invocou o texto número 78 d’O Federalista, em que Alexander Hamilton de-purava a legitimidade jurisdicional constitucional como instrumen-talmente correlacionada com a habilidade de pautar seu julga-mento no conhecimento técnico exigido para quando da análise normativa constitucional, de modo que a legitimidade das Cortes para a tomada de decisões que contrariem o majoritariamente pleiteado é respaldado em tal relação de confiança tecnocrata.

Os ministros de tais Cortes, assim, “[...] têm, ou deve-riam ter, o tempo livre, o treinamento e o isolamento para seguir os caminhos intelectuais quando da persecução dos fins da go-vernança” (BICKEL, 1986, p. 25-6, tradução nossa), de modo que tais Tribunais possuem a capacidade técnica de estabelecer as diretrizes constitucionais adequadas.

Outra vantagem que as Cortes têm é que questões principiológicas nunca carregam o mesmo aspec-

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to para elas do que carregam para o Legislativo ou Executivo. Leis, no final, lidam tipicamente com o abstrato ou com problemas vagamente previs-tos. As Cortes estão preocupadas com a carne e o sangue do caso concreto. [...] Sua insularidade e o maravilhoso mistério do tempo dão às Cortes a capacidade de apelar à melhor natureza dos homens, recrutando suas as-pirações, as quais podem ter sido esquecidas no momento do choro e desespero. Isso é o que o Ministro Stone chamou de oportunidade para ‘o sóbrio segundo pensamento’ (BICKEL, 1986, p. 26, tradução nossa).

A capacidade de depuração dos valores constitucionais também é argumento levantado por Gibson et al (1998) na me-dida em que, para os autores, a legitimidade jurisdicional da Su-prema Corte estadunidense se vincula imediatamente ao fato de os Ministros buscarem os caracteres fundantes do próprio sentimento de Justiça, não meras colocações frias de texto legal, de modo que “[...] conhecer as Cortes é amá-las, porque isso é saber que elas estão expostas a uma série de mensagens legiti-madoras focadas nos símbolos de Justiça, objetividade judicial e imparcialidade” (GIBSON et al, 1998, p. 345, tradução nossa). Como bem aponta Bickel (1986), tal argumento repousa n’O Federalista n. 78, escrito por Alexander Hamilton. O filósofo aponta o Executivo como carregador da espada e o Legislativo como o portador do dinheiro, remanescendo ao Judiciário a de-puração de valores que são escamoteados no processo político por não pertencerem às respectivas agendas eleitorais ou são simplesmente rechaçados por mera modalidade estratégica, ca-bendo às Cortes a retomada axiológica do sentido substancial de justiça intrínseco ao Estado.

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2.4.3 Pesquisas de Opinião Pública

Tal modalidade de critério legitimador vem adquirindo im-portância dentro do quadro midiático de excessiva demonstra-ção de opinião pública, como que traduzida em pesquisas de opinião, geralmente conduzida por grandes institutos. Seja em períodos eleitorais ou não, as pesquisas de opinião parecem convalidar o sentido substancial de opinião pública em torno da suposta chancela majoritária, sem imergir o pesquisado em ulteriores questões quanto aos efeitos da resposta fornecida.

O Supremo Tribunal Federal brasileiro, não raras vezes, foi confrontado com a suposta contrariedade de suas decisões em face da opinião pública majoritariamente expressa em pesquisas de opinião14. Em conformidade com a limitação intelectual da maioria do eleitorado, apontada por Somin (2004), a divulgação de tais instrumentos de pesquisa parece tencionar de maneira absoluta o debate entre jurisdição constitucional contramajori-tária e democracia.

Bassok (2013) aponta, antes de qualquer debate quan-to à legitimidade em face das pesquisas de opinião, o caráter supermajoritário da Constituição, se opondo a qualquer forma de repartição fundamentalista ou baseada em preconceitos, fundando um princípio uno de justiça que se contrapõe a even-tuais maiorias, seja qual for a modalidade de sua expressão. No entanto, a doutrina especializada dá conta de estabelecer a im-portância da análise das pesquisas de opinião pela legitimidade

14 Após o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, inúmeras pesquisas deram conta de demonstrar a maioria da população como contrária à união entre pessoas do mesmo sexo, sendo que ainda hoje, dois anos depois do julgamento, as pesquisas continuam a apontar os mesmos números. Neste sentido, se colaciona exemplificativamente: <http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/ibope-maioria-no-pais-e-contra-legaliza cao-da-maconha-e-casamento-gay>.

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sociológica que avocam: “O aspecto sociológico de sua legiti-midade institucional [das Cortes] lida com a confiança ou apoio duradouro que o público dispensa à Corte durante um período de tempo relativamente longo” (BASSOK, 2013, p. 155). Assim, ainda na esteia de Bassok (2013), vê-se que a mensuração métrica não apenas da efetiva opinião, mas da confiança pública nas Cortes, tornou-se critério de indicador au-toritário no discurso da maioria. A ressalva que se faz, assim, é do perigo de se compreender a democracia pelo viés puramente majoritário-populista, sem apreciação dos valores que escapam à imensa maioria do eleitorado. Os Estados Unidos marcam o início da observância às pesquisas de opinião pública com fulcro na atuação de sua Su-prema Corte. Em que pese tais pesquisas terem adquirido força após a previsão acertada da eleição do presidente Roosevelt em 1936, foi apenas na década de 1960 que tais instrumentos começaram a ser utilizados em face das Cortes, com o termo opinião pública se tornando sinônimo de pesquisas de opinião. Desde a década de 1980, assim, com a ascensão da cultura da opinião pública, as pesquisas de opinião têm servido como um legitimador democrático autoritário, como já apontado (BAS-SOK, 2013).

O Congresso, então, que antes das pesquisas de opinião era a opinião pública, fica, de acordo com Bassok (2013), re-legado ao segundo plano. Dessa forma, problema emergente que se aponta é a completa vinculação que é depositada nas mãos dos institutos que conduzem tais pesquisas, remanescen-do o poder democrático na mão de tais companhias. Inobstante, vê-se a necessidade de interligação do critério legitimador da

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expertise judicial, conforme exposto no tópico anterior, e tais pesquisas de opinião, tão logo, como Gibson et al (1998) apon-tam, as Cortes devem trazer à frente mudanças futuras, sendo o mais vívido exemplo o julgamento do caso Jim Crow, no qual a grande maioria do povo estadunidense era contra as políticas de integração da parcela negra da população.

Como já arguido, a mensuração da suposta vontade da maioria adquire dentro da dificuldade contramajoritária literal uma vinculação imediata com as pesquisas de opinião pública (BASSOK, 2012). O surgimento da referida interligação entre os institutos não foi passível de análise por Bickel quando da escrita de The Least Dangerous Branch15, uma vez que o próprio Bassok (2013) cuida de estabelecer a ascensão de tais instru-mentos de opinião popular apenas ao final da década de 1960.

Somin (2004), contudo, cuida de rechaçar a tese de vinculação de legitimidade da atuação jurisdicional das Cortes Constitucionais, apelando ao estudo da falta de compreensão jurídica e política do eleitorado quanto às decisões tomadas pelo referido Tribunal.

Assim, “[...] a compreensão da profundidade e da perver-são da ignorância do eleitor deveria nos guiar à reconsideração do dilema contramajoritário de diversas maneiras fundamentais” (SOMIN, 2004, p. 1292, tradução nossa). Desta forma, o que busca Somin (2004) é o levantamento de discussões políticas que extrapolem o limite sensorial da maioria enquanto mera mensuração numérica.

Desde que Bickel (1986) tratou de estipular um sentido místico à indeterminação da maioria, versando quanto à conver-15 Como já exposto, o livro de Bickel, quando de sua primeira edição, data de 1962.

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gência fatorial envolta no processo de sua mensuração, muito tem se discutido sobre a real definição da referida maioria, apon-tando Bassok (2013) que as pesquisas de opinião começaram a ser utilizadas para avaliar os posicionamentos da Suprema Corte norte-americana a partir dos anos 1960, sendo que até então tais instrumentos metodológicos eram aplicados apenas à política daquele país.

O risco emergente da excessiva consideração das pes-quisas de opinião pública é a tendência do reconhecimento da democracia como uma forma de governo majoritário-populista, o que, em suma, é uma indevida sublevação de tal procedimen-to governamental dissecado por séculos (BASSOK, 2013). Num contraponto a isto, Somin (2004) é enfático quanto ao fato de, se considerada a ignorância do eleitorado, questões de atuação da Corte Constitucional serão muito menos contramajoritárias do que muitas das outras áreas.

Teorias da dificuldade contramajoritária assumem que ‘as decisões dos poderes (legislativo e execu-tivo), ou de governos estaduais e locais... repre-sentam a vontade popular.’ [...] ‘quando a Corte invalida uma lei, ela derruba a decisão de um corpo popularmente eleito; em essência, ele está reforçando sua própria vontade acima da do elei-torado.’ Se, na verdade, a legislação invalidada pela Corte não representa a ‘vontade do eleitora-do’, as ações da Corte não podem ser tidas como contramajoritárias, mesmo que elas possam estar passíveis de questionamentos por outras razões (SOMIN, 2004, pp. 1296-7, tradução nossa).

Desta feita, a questão pertinentemente levantada é o fato de eventualmente a lei submetida ao crivo do controle con-

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centrado de constitucionalidade – exemplo da já analisada difi-culdade contramajoritária tradicional – ou, analogicamente, da decisão tomada pela Corte, ir ao encontro dos anseios popu-lacionais, gozando de apoio da mesma maioria levantada para questionar a legitimidade jurisdicional do instituto. É nesse con-texto que Somin (2004) vislumbra, exempli gratia, a incidência de leis de altíssima complexidade, sendo que, em casos assim, a população simplesmente prefere confiar na expertise jurisdi-cional de seu Tribunal. A noção elementar, assim, de que “[...] a regra majo-ritária requer não apenas que os eleitores tenham opinião na matéria questionada, mas que estas opiniões sejam pelo menos minimamente informadas16” (SOMIN, 2004, p. 1298, tradução nossa), é o grande mote conservador do início da indagação legitimadora da Corte num complexo cenário, onde diferentes fatores convergem para a indeterminação da maioria e o acirra-mento dos critérios de legitimidade.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A democracia há muito não se estabelece como uma forma de governo em que a maioria absoluta decreta seu anseio. Asse-gurar os direitos das minorias é um componente tão essencial para o processo democrático quanto o próprio sufrágio; e a maneira de garantir tais direitos é um imbróglio que envolve necessariamente a 16 No estudo conduzido por Somin (2004) junto à Universidade do Iowa, o autor estipula critérios metodológicos para estabelecer o efetivo grau de consciência do eleitorado quanto às políticas submetidas ao jugo constitucional, conforme exposto. O autor chega ao índice alarmante de quase 50% de eleitores sequer minimamente informados sobre a pauta política de seus representantes e suas propostas, apontando como principais responsáveis os canais de televisão, principal aporte dos debates políticos nacionais. A título de exemplo, o autor, utilizando dados do National Election Study – NES (Estudo Nacional de Eleição), datado do ano de 2000, demonstra que apenas cerca de um terço do eleitorado norte americano tinha conhecimento da ideologia política adotada por Al Gore, candidato democrata à presidência daquele país, sendo que a grande maioria – 74%, aproximadamente – confundia suas aspirações políticas com as de outros candidatos.

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definição da atuação de cada um dos institutos de uma República. Proteger a democracia de si mesma é a questão que

parece fundar o atual estudo. Relativizar vontades passageiras em face de uma estrutura axiológica mais longínqua – e humana – é o grande desafio das Cortes Constitucionais ao lidar com a dificuldade contramajoritária, em qualquer uma de suas moda-lidades. Em que pese a necessidade de um estudo mais amplo e aprofundado quanto ao tema, o que se observa desde já são instituições jurídicas cada vez mais assumindo funções executi-vas e, claro, legislativas.

A questão da impulsão popular fundamenta um cenário complexo, no qual o próprio significado de democracia parece vinculado com mídia e expressões numerárias de opiniões; mas não pode sê-lo simplesmente. A democracia, principalmente no cenário brasileiro, de inolvidável volatilidade das garantias jus-fundamentais anteriores ao Constituinte de 1988, merece ser substancial em suas mais intrínsecas estruturas.

Sejam utilizados quaisquer dos argumentos possibilitados pelas doutrinas anglo-saxãs ou brasileiras quanto à possibilidade – ou pior: necessidade – de uma atuação das Cortes Constitucio-nais contrária à vontade das maiorias, o que se vislumbra, inde-pendentemente da aplicação de tais estruturas retóricas, é a ur-gência sobre a compreensão dos liames sociais e intersubjetivos que envolvem as próprias acepções e limites do Direito. Palpar a legitimidade para atuação desta Ciência Jurídica é a décima ter-ceira tarefa de Hércules da teoria constitucional contemporânea.

Conditio sine qua non do ora estudado é, por fim, a apli-cação prática de indeterminações filosóficas que cercam a Ciên-cia Política: das puríssimas construções kelsenianas até a de-

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limitação institucional de organismos republicanos, uma longa teoria urge por ser pesquisada, mas portando já ao longe o in-discreto aviso de que a construção do próprio sujeito de direitos passará a ser vinculada aos mecanismos criados para a defesa dos mesmos.

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A LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL (LRF) E OS IMPACTOS NO DESEMPENHO DA

ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA ATRAVÉS DO CONTRATO DE GESTÃO

THE LAW OF TAX LIABILITY (LRF) AND IMPACTS ON PUBLIC ADMINISTRATION PERFORMANCE THROUGH CONTRACT

MANAGEMENT

Vanderlei da Silva Sampaio1

RESUMOEste estudo tem como objetivo analisar e mensurar os impactos relacionados à lei de responsabilidade fiscal (LRF) no desempe-nho da administração pública por intermédio do contrato de ges-tão. Ainda, visa apresentar os conceitos relacionados a essa te-mática, à sua participação efetiva nas organizações públicas em face ao ambiente competitivo. Dentro desse contexto, o contrato de gestão na administração pública tem se destacado como um modelo de gestão de grande importância para toda sociedade, principalmente pelo fato de que a contratualização possibilita o alcance de metas pelos agentes públicos e proporciona melhor desempenho no âmbito público. Gera-se também maior com-prometimento e responsabilidade com o uso dos recursos públi-cos, além disso, proporciona maior foco gerencial para atender às demandas e prioridades na esfera pública. Entende-se que um estudo nesta área contribuirá cada vez mais para a viabiliza-1 Administrador de Empresas com Habilitação em Marketing, Especialista em Docência do Ensino Superior, Especialista em Gestão Financeira de Investimentos, Controladoria e Auditoria, e é Mestre em Administração de Empresas pela Universidade Positivo de Curitiba/PR (UPPR), Professor da União Educacional de Cascavel - UNIVEL, E-mail: [email protected].

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ção de melhores resultados nas organizações públicas. A lei de responsabilidade fiscal é vista no contexto jurídico como um ins-trumento legal, que evidencia a aplicação do modelo econômico burocrata (niskaniano), o qual proporciona maior compromisso e responsabilidade com a utilização dos recursos públicos. As-sim, de fato, esse processo estabelece objetivos e metas de forma coerente aos gestores públicos em face das prioridades existentes na administração pública. Esta legislação visa, de for-ma eclética, melhorar o desempenho das instituições públicas, proporcionando maior foco gerencial, reduzindo custos, otimi-zando processos e consequentemente melhorando o nível de produtividade no âmbito da gestão pública. Entretanto, através dessa pesquisa bibliográfica, a LRF no contexto das organiza-ções públicas sob as perspectivas do enfoque jurídico no cenário de mudanças na forma de gerir os recursos públicos demons-tra-se ser uma abordagem de grande relevância para gestores públicos e para toda a sociedade. Nesse cenário, através desse estudo, constatou-se a importância da LRF como instrumento para que as organizações públicas possam ter maior foco geren-cial e sobressair-se em face à escassez de recursos no contexto da administração pública. Dessa forma, a LRF surgiu para con-tribuir de forma significativa para aferir maior responsabilidade e comprometimento com o erário público.

PALAVRAS-CHAVE: Lei de Responsabilidade Fiscal, Administra-ção Pública, Contrato de Gestão.

ABSTRACTThis study aims to analyze and measure the related impacts of fiscal responsibility law (FRL) on the performance of public administration through the management contract. Also aims to introduce the concepts related to the topic, their effective participation in public organizations face the competitive environment. Within this context the management contract in the public sector has emerged as a management model of great importance for the whole society, especially by the fact that the

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contracting enables the achievement of goals by state officials, and provides better performance in the public sphere. Also generates a greater commitment and responsibility towards the use of public resources in addition provides greater managerial focus to meet the demands and priorities in the public sphere. It is understood that a study in this area will increasingly contribute to enabling better outcomes in public organizations. The fiscal responsibility law is seen in the legal context as a legal tool that demonstrates the application of the economic model bureaucrat (niskaniano), which provides greater commitment and responsibility for the use of public resources. So in fact this process establishes goals and objectives consistently to managers in the face of existing public administration priorities. This legislation aims eclectic way improve the performance of public institutions, providing greater management focus, reducing costs, optimizing processes and thereby improving the level of productivity within the public administration. However, through this literature LRF in the context of public organizations from the perspectives of the legal focus on the changing landscape in the form of managing public resources demonstrates an approach to be of great relevance for policy makers and for society. In this scenario, through this study found the importance of LRF as an instrument for public organizations to have greater managerial focus and excel in the face of scarce resources in the context of public administration. Thus LRF appeared to contribute significantly to gauge greater responsibility and commitment to the exchequer.

Keywords: Fiscal Responsibility Law, Public Administration, Management Agreement. 1 INTRODUÇÃO

A Lei de Responsabilidade fiscal (LRF) surgiu para aferir maior responsabilidade e comprometimento por parte dos ges-

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tores públicos com a utilização do orçamento na administração pública. Conforme destacado por Harmon e Mayer (1999), a ad-ministração pública é caracterizada pela ocupação daqueles que atuam em nome da sociedade, que governa de forma legal, ad-ministra os recursos públicos e cujas ações têm consequências para a população. Nessa perspectiva, torna-se fundamental a busca de alternativas que visem o aperfeiçoamento das compe-tências organizacionais no âmbito da administração pública, em particular na aplicação de seus recursos. Portanto, com base nesse contexto, as organizações públicas brasileiras têm pas-sado por reformas na busca da otimização de seus processos e recursos através de novos métodos de gestão. Ou seja, em face de uma carência cada vez maior dos mais diversos tipos de recursos e, em contraste com a crescente demanda das ne-cessidades da população, torna-se necessário que os gestores públicos adotem medidas e práticas gerenciais cada vez mais eficazes, as quais possam otimizar e racionalizar a aplicação dos recursos públicos disponíveis.

O papel da lei 101, de 2000, conhecida como a lei de responsabilidade fiscal, baseada na constituição federal, de fato é regulamentar os procedimentos em relação à forma legítima de fazer o uso dos recursos públicos para atingir objetivos e metas na esfera pública. Alem disso, visa a obtenção de uma melhor performance nos resultados. Esta lei é considerada, no campo jurídico, como um instrumento legal que evidencia a aplicação do modelo econômico estabelecido com base nos parâmetros da burocracia. A Lei de responsabilidade fiscal surgiu com base na necessidade de racionalizar e legitimar o comportamento dos gestores públicos. Além disso, visa regulamentar uma série de

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questões relacionadas à forma de gerir os recursos públicos. É notório que essa lei também visa garantir melhor satisfação para sociedade, além de proporcionar a transparência na administra-ção pública (SILVA, 2001, p. 11).

Portanto, com a evolução da administração pública nos últimos anos, a lei de responsabilidade fiscal surgiu com o intui-to de legitimar as responsabilidades fiscais aos agentes públicos e proporcionar o controle efetivo de todas as transações realiza-das no setor público. Essas transformações também ocorrem no âmbito da profissionalização, modernização, democratização, melhoria e ainda garantir a transparência na gestão pública, buscando mecanismos para promover de maneira efetiva o bem estar e atender aos anseios da população. Esse processo ocorre em função de um aumento da inserção das pessoas no âmbito político, com o objetivo de tornar a gestão pública mais transpa-rente em face aos novos paradigmas da atualidade sob a ótica social. No entanto, também visa um maior controle, tanto das ações por parte dos agentes públicos, como dos ingressos e saí-das de recursos públicos. No entanto, a LRF passou a requerer maior transparência nas ações dos gestores públicos, para que toda sociedade possam ter conhecimento dessas ações e aces-so as informações relativas à administração pública em tempo real (GALLON, et al, 2011).

Desta forma, constata-se que a lei de responsabilidade fiscal representa um instrumento de grande relevância para a regulamentação da administração pública. Nessa nova ótica, observa-se que os setores públicos necessitam de um órgão interno cuja finalidade seja a garantia de informações adequa-das, em tempo hábil ao processo decisório, e ao mesmo tempo

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proporcionando a transparência para a população. O trabalho apresenta como pressuposto a relevância desta lei para que se possa ter um controle efetivo na utilização dos recursos públi-cos. Também tem como objetivo enfocar a importância, a origem e a influência da lei de responsabilidade fiscal no desempenho e desenvolvimento da administração pública. Além disso, visa evidenciar a necessidade do uso de forma correta dos recursos públicos por parte de seus agentes, levando em consideração o cenário de mudanças da atualidade.

2 LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL (LRF)

A LRF refere-se a um instrumento legal que evidencia a aplicação do modelo econômico burocrata (niskaniano). O refe-rido modelo de gestão abrange uma forma mais racional de gerir os recursos públicos, baseada na avaliação de desempenho e, além disso, proporciona maior compromisso e responsabilidade com o erário público. Assim, de fato, esse processo estabelece objetivos e metas de forma coerente aos gestores públicos em face das prioridades existentes na administração pública. Por-tanto, conforme estabelecido no art. 19, para os fins do dispos-to no caput do art. 169 da Constituição, a despesa total com pessoal e encargos, em cada período de apuração e em cada ente da Federação, não poderá exceder os percentuais de 50% para a União e 60% para os estados e municípios da receita cor-rente líquida. O limite estabelecido com a rubrica, despesas com pessoal para os estados pela Constituição Federal foi distribuí-do conforme a Lei Complementar nº 101, de 2000, conhecida

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como Lei de Responsabilidade Fiscal, em 49% (quarenta e nove por cento) para o Executivo; 6% (seis por cento) para o Judiciá-rio; e 3% (três por cento) para o Legislativo, incluído o Tribunal de Contas do Estado; e 2% (dois por cento) para o Ministério Público dos Estados (DALMONECH, 2011, p. 1180).

A lei 101, de 2000, baseada na Constituição Federal, representa um instrumento legal que evidencia o sistema eco-nômico burocrático repleto de normas e responsabilidades le-gitimadas aos agentes públicos, conforme citado por Siqueira (2004). Essa lei busca regulamentar os procedimentos em re-lação ao uso dos recursos públicos para a obtenção de uma melhor performance em decorrência desse uso. Assim como o próprio nome da lei diz, “responsabilidade fiscal”, esses agen-tes são forçados a se responsabilizarem pelos recursos públi-cos, consequentemente proporcionando melhores resultados na gestão pública. “A LRF é um instrumento legal que evidencia a aplicação do modelo econômico da burocracia (niskaniano), estabelecendo responsabilidades, mas, também, objetivos e metas ao gestor público diante da utilização de recursos econô-micos escassos” (DALMONECH, 2011, p. 1180).

A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) chegou para regulamentar uma série de questões rela-cionadas à administração pública brasileira e para assegurar à sociedade que, doravante, todos os Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios terão que obedecer, sob pena de severas sanções, aos princípios de equilíbrio das contas públicas, de gestão orçamentária e finan-ceira responsável, eficiente, eficaz e, sobretudo, transparente (SILVA, 2001, p. 11).

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A LRF estabelece procedimentos que possam aferir uma melhor performance de controle dos recursos públicos, proporcio-nando um controle efetivo na gestão, ou seja, o controle de todas as entradas e saídas. Assim, através desta lei, ocorre a pulverização das responsabilidades por toda hierarquia da administração públi-ca, possibilitando a transparência na utilização do erário público.

Essa busca pelo controle e eficiência das ações do poder público concretiza-se, no Brasil, pelo ad-vento da Lei de Responsabilidade Fiscal, em maio de 2000. O objetivo da LRF era introduzir métodos que possibilitassem ampliar o controle e a trans-parência dos atos dos gestores como: a inserção de publicações periódicas dos relatórios de ges-tão, o monitoramento dos índices orçamentários, o controle da despesa pública e o aumento na arrecadação da receita, forçando uma maior efi-ciência da gestão e a obtenção do equilíbrio das contas públicas (SANTOS; ALVES, 2011, p. 183).

Portanto, com a evolução da administração pública nos últimos anos, os órgãos públicos brasileiros vivenciam diver-sas transformações e mudanças com o intuito de legitimar as responsabilidades fiscais aos agentes públicos e proporcionar o controle efetivo de todas as transações realizadas na esfera pública. Essas transformações também ocorrem no âmbito da profissionalização, modernização, democratização, melhoria e ainda para garantir a transparência na gestão pública, buscando mecanismos para promover de maneira efetiva o bem estar e atender aos anseios da sociedade. Esse processo ocorre em função de um aumento da inserção da população no processo político, com o objetivo de tornar os órgãos púbicos mais trans-parentes, sob a ótica da população e também visa um maior

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controle, tanto das ações por parte dos agentes públicos, como dos ingressos e saídas de recursos públicos. No entanto, a LRF passou a requerer maior transparência nas ações dos gestores públicos, para que toda a sociedade possa ter ciência dessas ações e acesso às informações públicas (GALLON, et al, 2011).

3 CONTRATOS DE GESTÃO

Esse estilo de gestão tem sido alvo de uma grande te-mática no campo da administração pública, principalmente em relação ao processo de mensuração de seus resultados. Os con-tratos de gestão podem ser considerados um assunto de grande relevância no cenário atual para os gestores e para as organi-zações públicas. Assim, com base na literatura, os contratos de gestão são ferramentas estratégicas contemporâneas utilizadas no âmbito da administração pública, com base na necessidade de otimizar, racionalizar, aproveitar da melhor forma possível os recursos públicos e consequentemente garantir um bom desem-penho. O contrato de gestão é caracterizado como de base cons-titucional, pois resultou de uma Emenda Constitucional, a de nº 19/98. Esse mecanismo é visto como um instrumento contra-tual por meio do qual se estabelece maior autonomia gerencial, orçamentária e financeira, mas estabelece maior responsabi-lidade por parte dos agentes políticos. Essa responsabilidade ocorre por intermédio de metas de desempenho e resultados firmados através de contratos. Essa forma de contratualizar visa dar efetividade na consecução dos planos, programas e políticas públicas, no âmbito do princípio da eficiência na administração pública (OLIVEIRA, 2008).

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Na administração pública, os contratos de gestão são fer-ramentas de grande relevância no cenário atual. Essa metodolo-gia faz com que gestores e agentes públicos se comprometam com os resultados organizacionais, resultando assim no melhor uso dos recursos públicos. Quando existe um compromisso fir-mado entre duas partes, ou seja, através da contratualização, o nível de comprometimento gerado é maior. Isso proporciona um melhor desempenho na forma de gerir os recursos públi-cos. O contrato de gestão é um grande aliado da lei de res-ponsabilidade fiscal (LRF), a qual visa à responsabilização dos atos dos agentes públicos. Esse estilo muitas vezes provoca um choque de gestão, que pode ser qualificado como uma reforma ou um novo estilo de gestão pública, que promove as relações de gestão contratual. Buscando a responsividade dos agentes públicos, orientado pelo alcance de resultados, o instrumento fundamental da reforma, esse método inovador é o contrato de gestão, no qual se formalizam e registram contratualmente todos os compromissos negociados entre as partes, incluindo metas, objetivos e impactos esperados com vistas aos resulta-dos a serem atingidos (PECI, 2008).

A contratualização entre órgãos da administração pública direta, indireta e de diferentes esferas de governo ocorre com o intuito de melhorar os resultados organizacionais. O contrato de gestão tem sido utilizado para vincular o desempenho insti-tucional, através de forma negociável entre ambas as partes do processo. Assim, ocorre o estabelecimento de metas de desem-penho, monitoramento e avaliação dos resultados obtidos no decorrer do exercício fiscal. O processo de contratualização en-volve habilidades como a negociação, competências gerenciais,

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tais como a forma de gerir, de se estruturar estrategicamente, visão sistêmica e holística da organização, além de outras com-petências gerenciais. Portanto, essa ferramenta de gestão vem buscando garantir a autonomia da gestão, flexibilizando, contro-lando e enfatizando a busca constante por melhores resultados (PACHECO, 2004).

Conforme Gomes (2009, p. 156), a gestão por resultados “confere grande flexibilidade ou autonomia sobre os recursos e os processos aos agentes executores”. No entanto, o contrato de gestão é considerado uma ferramenta que pode apresen-tar grandes melhorias no campo da administração pública, mas também pode apresentar riscos, principalmente se não for exe-cutado de forma correta. Os pontos fortes desse estilo de gestão seria a legitimação das responsabilidades, o controle efetivo de todas as transações realizadas no âmbito público, maiores com-promissos com os recursos públicos e, por fim, a obrigação de prestar contas dos resultados obtidos em decorrência da contra-tualização. Além disso, proporciona a transparência na gestão pública. Entre os possíveis problemas, seria relacionada a imple-mentação inadequada e incorreta, também principalmente por aferir maior autonomia aos dirigentes sobre o uso dos recursos públicos. Portanto, os contratos de gestão podem revolucionar a administração pública, mas sempre é bom analisar as diversas possibilidades que possam ocorrer em decorrência do uso dessa ferramenta na gestão pública. O contrato de gestão é o instru-mento mediante o qual se controlam todos os departamentos da administração pública, mesmo que de forma descentraliza-da. Esse controle é realizado com base nos resultados e por intermédio de avaliação de desempenho, apresentados pelos

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gestores (BRESSER PEREIRA, 1998).Entretanto, o contrato de gestão refere-se a uma ferra-

menta valiosíssima no campo da administração pública, porém, necessita de um sistema de controle e da responsabilização dos gestores. O processo de implementação requer a prévia defi-nição de indicadores de desempenho, que possam mensurar adequadamente os resultados obtidos em decorrência do exer-cício fiscal. Deve servir de referência para o controle de ambas as partes, estimulando a melhoria da gestão pública como um todo. A administração pública recentemente vem adotando esse novo estilo de gestão baseado em contratos, com o intuito de otimizar a máquina pública. Essas ferramentas ou instrumentos de planejamento são utilizados na administração pública para propiciar o comprometimento e formalizar o compromisso das partes contratantes com a obtenção de melhores resultados. No cenário da administração pública, os contratos de gestão possi-bilitam a transparência em relação ao uso de recursos públicos, uma vez que determinam previamente os resultados a serem atingidos com o uso da estrutura da máquina pública e também dos recursos, além dos indicadores para mensurar o desempe-nho institucional. (CEPAM, 1999).

Dessa forma, com base nas ideias apresentadas pelos autores, os contratos de gestão são instrumentos de planeja-mento que as organizações públicas utilizam para formalizar o compromisso de realização entre as partes contratantes com a obtenção de resultados. Neste documento formal, devem es-tar explicitadas as diretrizes, objetivos e metas estabelecidas pela administração pública. Esse instrumento visa maior clareza na tradução dos objetivos em resultados organizacionais. Por

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fim, vale ressaltar que proporciona um controle mais eficiente das políticas públicas com maior responsabilidade e compro-metimento, visando cumprir as metas contratadas, promover a transparência nas atividades inerentes à gestão pública.

4 ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

A administração pública vem sendo alvo de grande inte-resse por parte dos gestores públicos, os quais buscam otimizar os órgãos públicos e também da sociedade, a qual busca maior conhecimento sobre a gestão dos recursos públicos. Esse pro-cesso, portanto, é de interesse de todos os cidadãos, pois visa o bem coletivo. Nessa perspectiva, Slomski (2001) menciona que a administração pública é semelhante à administração apli-cada em outras organizações baseadas numa estrutura organi-zacional hierarquizada. Nessa mesma perspectiva, Kettl (2005) menciona que práticas como a descentralização de processos e a delegação de poder são advindas da gestão de empresas pri-vadas. No entanto, para Matias-Pereira (2010), a administração pública - considerada como toda atividade desenvolvida através das instituições e dos órgãos públicos - é um sistema comple-xo. Assim, possui uma infraestrutura organizada e é regida por normas para que se possam executar atividades de interesse público, cujo objetivo central é o gerenciamento do bem comum de forma coletiva.

Historicamente, o desenvolvimento da administração pú-blica ocorreu dentro de quatro pilares centrais, ou seja, quatro modelos básicos de gestão: o patrimonialista, o burocrático, o gerencial e o societal. A temática envolvendo a administração

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pública torna-se um campo em que há muito a ser explorado. Desse modo, temos um conceito que apresenta uma concep-ção holística do termo administração pública. “A administração pública é a ocupação de todos aqueles que atuam em nome do povo, em nome da sociedade, que delega de forma legal, e cujas ações têm conseqüências para os indivíduos e grupos sociais” (HARMON; MAYER, 1999, p. 34).

A administração pública, analisada de forma holística, re-presenta um todo organizado, baseado na legislação, envolvendo infraestrutura, recursos, tecnologias e pessoas. Todo esse apara-to, muitas vezes complexo, é um sistema composto de institui-ções e órgãos do Estado, estruturado e hierarquizado para exer-cer de forma apropriada a autoridade política e suas respectivas funções, no âmbito constitucional para atender aos anseios da sociedade. Assim, para atender o bem comum, torna-se neces-sário gerir os recursos públicos, enfatizando a eficácia e efetivi-dade em favor da população (MATIAS-PEREIRA, 2010).

Notoriamente, com o decorrer dos tempos, o processo de gerir os recursos públicos passou por um período de gran-de desenvolvimento. A gestão de uma organização pública, na perspectiva de Slomski (2001), todavia, assemelha-se à forma como as empresas privadas se organizam para a obtenção de melhores resultados. Porém, nas instituições públicas, não se visa à lucratividade, mas à satisfação dos anseios da sociedade. Assim, o estado, através de seus agentes públicos, tem como dever prover o melhor aproveitamento desses recursos e, con-sequentemente, a busca incessante por melhores resultados.

Conforme afirma Slomski (2001, p. 16), “a adminis-tração pública, como todas as organizações administrativas, é

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baseada numa estrutura hierarquizada com graduação de au-toridade, correspondente às diversas categorias funcionais, es-tabelecendo uma relação de subordinação”. Nessa perspectiva, a forma de administrar as organizações públicas é semelhante àquela utilizada em empresas privadas, principalmente em re-lação à estrutura organizacional, relações hierárquicas, delega-ção de responsabilidades e outras atribuições exercidas com o intuito de atingir os objetivos propostos. E, conforme as ideias de Cintra (2012), esse processo deve ocorrer com base nas técnicas utilizadas pelas empresas privadas - transpostas para as organizações públicas -, obedecendo à legislação em vigor.

De acordo com Araujo e Pereira (2012, p. 1180),

No contexto complexo das relações entre Estado, sociedade e mercado no Brasil, observa-se, histo-ricamente, o protagonismo do Estado em relação aos outros setores, o que colaborou para que a trajetória das reformas administrativas fosse mar-cada pela centralização do Estado. Além disso, desde o período colonial até o século XX, a admi-nistração pública no Brasil foi caracterizada pelo forte traço do patrimonialismo. Assim, no sentido de superar a forma patrimonialista de governar, várias reformas administrativas foram empreendi-das desde o governo de Getúlio Vargas.

Dessa forma, observando a história do campo da admi-nistração pública e, na perspectiva de Araújo e Pereira (2012), constata-se que todos esses estilos de administração apresen-taram suas respectivas contribuições para o desenvolvimento dessa ciência. Analisando a evolução da administração pública no Brasil, evidencia-se que esta é caracterizada por diversos fatores e dimensões, os quais são frutos herdados de crenças e

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práticas provenientes da origem social e histórica do país. Além disso, desde os primórdios, ou seja, desde o período colonial até o século XX, a administração pública no Brasil foi caracterizada pelas mais diversas características estabelecidas pelo patrimo-nialismo. Assim, a partir desse estilo de gestão, originaram-se novos modelos no âmbito de superar a forma patrimonialista de governar, por meio de reformas administrativas que foram em-preendidas no campo histórico da administração pública.

4.1 Desempenho e avaliação nas organizações públicas

Estudos recentes apontam que as avaliações sobre de-sempenho, no contexto da administração pública no Brasil, en-contram-se com grande dificuldade no campo operacional. Isso ocorre pelo fato de que a administração pública, para obter êxito na execução de suas políticas públicas, depende muito da com-petência de seus colaboradores, ou seja, os funcionários públicos. No entanto, a existência de programas e projetos com limitações no processo de gestão, consequentemente apresentaram falhas, as quais poderão comprometer o desempenho da administração pública no âmbito de atingir seus objetivos para a concretização das políticas públicas. Essas falhas ou vícios existentes podem, muitas vezes, propiciar a geração de corrupção na gestão do erário público. Assim, através de um choque de gestão, o qual visa à otimização na administração pública por intermédio de avaliação de desempenho. Esse processo deve ter como propó-sito a modernização para tornar a administração pública flexível e mais competitiva, com o intuito de solucionar as mais diversas demandas da sociedade. (MATIAS-PEREIRA, 2008).

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Portanto, com base na análise dos autores, ambos apon-tam que as avaliações de desempenho no âmbito público são caracterizadas como atividade complexa e de difícil aplicação. Assim, evidencia-se uma grande dificuldade no campo opera-cional, pois os métodos de avaliação na gestão pública não são algo simples, mas sim uma tarefa que requer alguns cuidados. A controladoria fornece informações úteis para auxiliar os gestores no processo decisório e também para ser utilizado em forma de feedback pelo processo de avaliação de desempenho nas instituições públicas. Por fim, esse processo de mensuração de desempenho no âmbito público visa à modernização da admi-nistração pública, tornando-a mais flexível e proporcionando a efetividade dos resultados em prol da sociedade.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este estudo procurou demonstrar e entender o papel da lei de responsabilidade fiscal no campo da administração públi-ca em face aos novos paradigmas da atualidade, apresentando os conceitos e ascensão desta legislação sobre as dimensões jurídicas e operacionais. Buscou-se evidenciar o papel da lei de responsabilidade fiscal sob a perspectiva de que essa lei pode contribuir de forma eficaz no processo de gerir os recursos pú-blicos, proporcionando a escolha de forma segura do melhor rumo a ser seguido, por meio da identificação de eventuais in-tempéries, estabelecendo de forma legal os objetivos e metas, proporcionando a transparência no uso dos recursos públicos.

Por sua vez, a lei de responsabilidade fiscal atrelada ao contrato de gestão na administração pública tem se destacado

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como um modelo de gestão de grande importância para toda sociedade, principalmente pelo fato de que a contratualização possibilita o alcance de metas pelos agentes públicos e propor-ciona melhores resultados no âmbito público. Além disso, gera-se maior comprometimento e responsabilidade com o uso dos recursos públicos, e, ainda, a lei de responsabilidade fiscal é vista no campo jurídico como um instrumento legal que evidencia a aplicação do modelo econômico estabelecido no estilo burocrá-tico de gestão. Esse modelo gerencial de administração pública proporciona maior compromisso e responsabilidade com a utiliza-ção dos recursos públicos. Assim, de fato, esse processo estabe-lece objetivos e metas de forma coerente aos gestores públicos em face das prioridades existentes na administração pública.

Esta legislação visa, de uma forma geral, melhorar o desempenho das instituições públicas, proporcionando maior foco gerencial, reduzindo custos, otimizando processos e con-sequentemente melhorando o nível de produtividade no âmbito da gestão pública. Entretanto, através desta lei, apresenta-se uma melhor forma de gerir os recursos públicos, garantindo, assim, a legitimação de responsabilidades para gestores públi-cos e promovendo a satisfação para toda a sociedade. Nesse cenário, através desse estudo, constatou-se a importância da LRF como instrumento regulador para que as organizações pú-blicas possam ter maior foco gerencial e sobressair-se em face da escassez de recursos no contexto da administração pública.

Dessa forma, a LRF surgiu para contribuir de forma signi-ficativa para aferir maior responsabilidade e comprometimento com o erário público. A lei de responsabilidade fiscal torna-se uma ferramenta importantíssima na administração pública em

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face aos cenários atuais repletos de desafios. Assim, com esse estudo, constatou-se que essa lei vinculada ao contrato de ges-tão torna-se um processo de extrema importância para a admi-nistração pública, seja pelo fato de aferir melhores resultados, proporcionando maior foco gerencial, além de atender às mais diversas demandas sociais.

REFERÊNCIAS

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O DIREITO DE ESQUECER OU O DEVER DE SERLEMBRADO: O DIREITO AO ESQUECIMENTO COM ÊNFASE EM SUA APLICABILIDADE EM

DOIS RECURSOS ESPECIAIS

THE RIGHT TO BE FORGOTTEN OR THE DUTY TO BE REMEMBERED: THE RIGHT TO BE LETALONE WITH EMPHASIS ON ITS APPLICABILITY

IN TWO SPECIAL APPEAL CASES

Karin Vanessa Schons Adam

RESUMOO direito ao esquecimento é um instituto inserido na dignidade da pessoa, que visa tutelar a esfera existencial privativa do indiví-duo. Cada um tem direito a ter controle sobre suas informações sem que determinados fatos, que não infrinjam direito alheio, mas possam infringir direito próprio, sejam expostos por uma falsa impressão de liberdade de expressão. Será analisado den-tro da dignidade da pessoa humana e através da aplicabilidade recente em dois julgados do STJ, o REsp 1335153/RJ e o REsp 1334097/RJ. O Relator de ambos os julgados, após explanar de forma técnica sobre o poder do STJ para julgar o caso, esmiuçou o direito ao esquecimento e concluiu, dando procedência a um dos casos e improcedência a outro, verificando-se que deve ser utilizado apenas quando o dano gerado à pessoa exposta ou a seus familiares se sobressair à liberdade de expressão.

PALAVRAS-CHAVE: Direito ao esquecimento, Dignidade da Pessoa Humana, Liberdade de Expressão.

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ABSTRACTThe right to be let alone is an institute inserted in the dignity of the person, which seeks to foster the private existential sphere of the individual. Every person has the right to have control over their information without certain facts, which do not contravene someone else’s right, but may contravene their own rights, be exposed by a false impression of freedom of expression. One will analyze, within the dignity of the human being and through the recent applicability in two defendants in the SCJ (Superior Court of Justice), the REsp 1335153/RJ and REsp 1334097/RJ. The Referendary of both defendants, after developing, in a technical manner, on the power of SCJ to judge the case, scrutinized the right to be alone and concluded, giving admissibility to one of the cases and inadmissibility to the other, noting that it must be used only when the damage generated to the exposed person or their families overcomes freedom of speech.

Keywords: Right to be let alone, Dignity of the human being, Freedom of speech.

1 INTRODUÇÃO

Por acarretar consigo direitos que não estão positivados na Constituição Federal brasileira, mas encontram-se de forma implícita nesta, o direito ao esquecimento está presente na dig-nidade da pessoa humana, possuindo aplicação recente no or-denamento jurídico nacional.

Trata-se do direito de não ter reavivado, após certo perío-do de tempo, alguma exposição passada ou que fatos que não possuem relevância de cunho nacional sejam expostos. Este instituto traz a possibilidade de bloqueio de dados e informa-ções, os quais, ainda que sejam verdadeiros, pospuseram há

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certo período de tempo. Sua retomada poderia causar trans-tornos de cunho moral e material a quem é exposto.

Os embates que norteiam a não aplicação do direito ao esquecimento estão atreladas ao direito à memória, à liberdade de expressão da imprensa e aos precedentes que sua utilização poderia abrir. Em função deste aparente conflito de princípios, o tema deve ser analisado e aplicado com muita cautela, para que outros direitos não sejam amenizados frente o direito ao esquecimento sem uma real necessidade.

No cenário internacional, a presença do instituto tratado é secular, oportunizando às pessoas que se envolveram em situações constrangedoras ou que de alguma forma impeçam sua ressocia-lização plena, terem esses fatos apagados em âmbito virtual e li-mitando a liberdade de imprensa dentro de determinado assunto.

Na história jurídica brasileira, vislumbram-se dois Recur-sos Especiais julgados concernentes ao direito ao esquecimento. Em ambos, o sistema midiático reavivou crimes passados, com a retomada do caso de violência sexual seguida de morte da jovem Aída Curi, em 1958; e com a exibição do nome e imagem de um dos envolvidos no episódio da Chacina da Candelária.

Deste modo, visa-se estudar a teoria do direito ao esque-cimento, esmiuçar dois julgados do STJ e analisar o modo como a decisão abarcou o entendimento do poder de uso, ou não, do direito ao esquecimento.

2 O DIREITO AO ESQUECIMENTO

Por ser inerente ao homem, a dignidade da pessoa hu-mana acarreta, de maneira imediata, o protecionismo a outros

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direitos tidos como fundamentais, como a vida privada, honra, intimidade e o direito ao esquecimento, recentemente reconhe-cido no ordenamento jurídico brasileiro.

Há uma necessidade da esfera existencial privativa do su-jeito ser tutelada, pois cada um tem direito a ter controle sobre suas informações sem que determinados fatos que não infrin-jam direito alheio, mas possam infringir direito próprio, sejam expostos por uma falsa impressão de liberdade de expressão.

Utiliza-se o termo falsa impressão, pois é cógnito que diversos meios midiáticos, a partir de programas e notícias sen-sacionalistas, utilizam o princípio da liberdade de expressão a fim de noticiar tudo aquilo que possivelmente gerará polêmica, deixando a sociedade fervorosa e consequentemente angarian-do maior audiência e lucro.

É claramente observável que, através dessa premissa de liberdade, acoberta-se o fato de o caráter econômico agir de for-ma esmagadora frente à dignidade da pessoa humana, expondo casos e pessoas perante uma sociedade que por sua natureza é julgadora.

De acordo com Rodrigues (2014), o primeiro documento que esmiuça um direito a ser esquecido foi publicado na Harvard Law Review, no ano de 1890, por Samuel Warren e Louis Bran-deis, intitulado “The Righ to Privacy”. Afirma-se que este docu-mento tratava da proteção de um direito à privacidade que não é plenamente protegido pela legislação tradicional, que são “mais voltadas para a calúnia e a difamação” (RODRIGUES, 2014).

O direito a ser deixado em paz, como é chamado pelo direito americano – right to be let alone –, trata da possível desvinculação de alguém a erros cometidos no passado, pois se

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tal fato for, a qualquer tempo, demonstrado de forma pública, nunca haverá uma efetiva ressocialização, obrigando a pessoa a comumente enfrentar possíveis quadros de preconceito (MU-LHOLLAND, 2011).

O tema do direito ao esquecimento não é novo no cená-rio jurídico mundial. Como suscitado, tem-se registro de um ar-tigo americano publicado no século XIX sobre o tema, afirmando alguns doutrinadores que sua real origem se dá na França, onde ainda hoje é utilizado visando uma efetiva ressocialização de ex-criminosos condenados (ARAGÃO; ORRICO, 2014).

Todavia, sua maior exposição se deu a partir de um jul-gamento na década de sessenta (1969), realizado pelo Tribunal Constitucional Alemão. Trata-se do caso Lebach, em que quatro soldados foram assassinados e os culpados foram condenados, sendo que apenas um não enfrentaria a prisão perpétua.

Alguns dias antes da soltura, um programa televisivo re-tomou o caso e, através de dramatizações, fotos reais e o nome dos envolvidos, expôs e claramente dificultou qualquer chance de ressocialização existente ao presidiário. Então, o Tribunal de-cidiu que, pelo princípio constitucional da privacidade, a exposi-ção de um delito pela imprensa não pode se dar de forma irres-trita, sendo mostrada a qualquer tempo, impedindo a exposição do referido documentário (SANTOS, 2013).

O Tribunal de Justiça da União Europeia vem dando gran-de espaço às discussões sobre o direito ao esquecimento. No dia 13 de maio de 2014, fora analisado um caso em que um cidadão que, após um período de inadimplência, quitou suas dí-vidas com a seguridade social espanhola, mas ainda assim teve sua casa posta à venda em hasta pública. Ao procurar o jornal

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La Vanguardia, a fim de requerer que seu nome não mais fosse associado a tal fato, obteve resposta negativa, assim como fez a Google Espanha e a matriz na Califórnia.

Não conseguindo resolver em meios pacíficos, protocolou uma reclamação com a Agência Espanhola de Proteção de Da-dos (AEPD), não obtendo sucesso. Ingressou-se, então, com um recurso frente ao Tribunal Superior Espanhol, que entendeu que a matéria deveria ser julgada pelo Tribunal de Justiça da União Europeia. O entendimento foi de que o motor de busca utilizado pelo site Google pode acabar intervindo de forma sensível na vida privada e dados pessoais, infringindo, desta forma, direitos fundamentais do indivíduo (FERRAZ JÚNIOR, 2014).

Demonstrando um posicionamento contrário aos dos paí-ses europeus, estão os Estados Unidos, que afirmam que a utili-zação do preceito a ser esquecido é muito perigosa, ao exemplo de políticos corruptos poderem solicitar que informações con-trárias ao seu interesse sejam retiradas dos meios de comuni-cação, garantindo que a liberdade de expressão seja priorizada frente ao esquecimento (ARAGÃO; ORRICO, 2014).

Apesar de ser recente sua efetiva aplicação no direito brasileiro, é possível relembrar o caso Doca Street (no qual o réu foi condenado por matar sua amásia, a atriz Ângela Diniz). Anos após o julgamento, o crime foi exibido pelo programa Linha Direta, incumbindo ao referido nova pena, forçando-o a encarar novamente o ódio da população e novos julgamentos morais.

Em 2010, a apresentadora infantil Xuxa Meneghel perdeu uma ação movida frente ao site Google, na qual exigia que seu nome não mais fosse ligado a pornografia e pedofilia, em função de filme que havia realizado no início de sua carreira, em 1979.

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Dentre outros casos, tem-se, ainda, o do Senador Aécio Neves, que move atualmente ação contra os sites Google, Yah-oo e Bing, para que informações que liguem seu nome a desvio de verba sejam retiradas. Verifica-se que os últimos casos to-mam forma diferente do utilizado na França e Alemanha, como fora suscitado, pois não visam uma reabilitação, mas sim evitar que sua vida íntima e integridade sejam expostas (ARAGÃO; OR-RICO, 2014).

O princípio se tornou mais concreto frente ao ordenamen-to jurídico brasileiro a partir do Enunciado 531 da VI Jornada de Direito Civil, promovida pelo Conselho da Justiça Federal (CJF), dispondo que “a tutela da dignidade da pessoa humana na so-ciedade da informação inclui o direito ao esquecimento” (STJ, 2013). No mesmo ano, duas decisões chamaram a atenção em função da matéria que invocava o direito ao esquecimento, as quais serão esmiuçadas ao longo do presente artigo.

Tal qual afirma o enunciado 531 da VI Jornada de Direito Civil, o direito ao esquecimento tem sua base histórica no cam-po das condenações criminais, sendo um forte aliado da resso-cialização, visando averiguar o uso das informações quanto ao modo e finalidade de que são lembrados, não pretendendo em momento algum alterar ou apagar fatos históricos, mas sim dar uma chance de se levar uma vida digna.

Trata-se de um possível impedimento à exposição de da-dos, os quais, mesmo sendo verdadeiros, ocorreram há deter-minado tempo e, ao serem divulgados, podem acabar causando transtornos de cunho moral e material a quem é exposto.

De acordo com pesquisa realizada pela Folha de São Paulo (2014), foram requeridos que 1.635 itens fossem removi-

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dos da internet apenas no 1º semestre de 2013, dos quais 48% dos pedidos foram acatados e os itens saíram do ar, sendo que 44% das retiradas foram feitas com a justificativa de difamação.

O tema se torna polêmico por incitar a questão de que as pessoas não podem facilmente decidir o que esquecerão, não sendo possível, ainda, tal qual afirma o advogado Lourival J. Santos (SCHIAVON, 2009), apagar tudo que ocorreu de ruim, afinal, em tese, aprende-se com os erros do passado. Fato um tanto quanto duvidoso, se analisado ao exemplo de guerras san-tas, que há centenas de anos se perpetuam na sociedade.

No entanto, é incabível querer tratar a possibilidade de esquecimento ou os limites de memória individuais, pois é cor-rente que tais fatos são relativos à psique e a elementos físicos de cada cidadão. O que deve de fato ser evitado, é que, pela ex-posição em meios midiáticos, tais fatos não tomem proporções hipersuficientes frente àquele que já foi julgado, unicamente com o intuito de chamar atenção para a audiência, causan-do mais ibope e consequentemente mais dinheiro para aquela emissora, pois se colocaria desta forma não a liberdade de ex-pressão, mas a visão do lucro frente à dignidade humana.

É manifesto que a esfera penal busca a reabilitação. Em tese, este é um instituto visado após o cumprimento do que foi imposto pela sentença, que, com o transcurso do lapso tempo-ral de cinco anos, exclui-se a hipótese de reincidência, sendo todos os registros criminais já existentes apagados.

Se a justiça perde o direito e o acesso de retomar fatos ocorridos após o prazo estipulado, não há que se falar em uma exposição pública pela imprensa.

Vale ressaltar que, por serem palavras com significações

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opostas, é possível que se ligue o direito à memória como sendo antagônico ao direito ao esquecimento, fato que, pelo simples conceito de cada instituto, verifica-se ser errôneo, já que a es-sência do direito à memória está em ser um direito coletivo, da sociedade, enquanto o direito ao esquecimento é um direito individual, não visualizando-se um conflito entre ambos.

Não se pretende, com o uso do direito ao esquecimento, repreender a liberdade de expressão e da imprensa, mas impor limites na forma como as informações são passadas e a rele-vância do que é exposto. Não há logicidade em retomar polêmi-cas antigas, que muitas vezes já foram esquecidas pela maior parte da população.

Põe-se em risco a dignidade, a imagem, a privacidade, a honra, e inclusive bens materiais, já que reavivar um fato que já não era relembrado pode gerar distúrbios econômicos e sociais.

3 O DIREITO AO ESQUECIMENTO: ANÁLISE DOS RECURSOS ESPECIAIS Nº 1.335.153 – RJ E Nº1.334.097 – RJ

3.1 Recurso Especial Nº 1.335.153 - RJ (2011/0057428-0) – Caso Aída Curi

O caso em exame trata da exibição do assassinato de Aída Curi, violentada e morta no ano de 1958, transmitido pelo programa televisivo Linha Direta em 2010, que narrou a história, se utilizou de fotos e simulações sem autorização da família da vítima (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2013a).

A família sentiu-se amplamente constrangida e sensibili-zada com a exibição de um caso que já estava amenizado na

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lembrança de todos, reacendendo antigas dores e levando os ir-mãos a ingressarem com o pedido de que aquele fato trágico que marcou suas vidas pudesse ser esquecido, requerendo danos à imagem, morais e materiais frente à Rede Globo Comunicações e Participações S/A (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2013a).

Ao serem procurados para que a emissora obtivesse a au-torização para transmitir o caso, os autores demonstraram seu desinteresse, afirmando que houve um enriquecimento ilícito por parte da Ré ao se utilizar de um caso trágico, angariando lucros e publicidade (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2013a).

Entendeu a 47ª Vara Cível da cidade do Rio de Janeiro (RJ) que o pedido dos autores merecia improcedência, tendo esta decisão sido mantida em grau de apelação. Dois embargos de declaração foram opostos, sendo ambos rejeitados (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2013a).

Quanto ao Recurso Especial, de acordo com acórdão pro-ferido,

[...] este está apoiado nas alíneas “a” e “c” do permissivo constitucional, alega-se, além de dis-sídio, violação aos artigos 14, V, 17, IV e V, 18, caput e § 2º, 131, 165, 286, II e III, 302, 334, IV, 436, 458, II, e 535 do Código de Processo Civil; 12, 186, 884 e 927, caput e parágrafo único, do Código Civil; 6º, VIII, e 12 do Código de Defesa do Consumidor (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2013a, p. 2).

Inicialmente, o Especial não teve provimento, mas interpos-to o REsp. 15.007, o Ministro Luís Felipe Salomão o admitiu para que houvesse uma melhor análise do caso. Não fora admitido Re-curso Extraordinário (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2013a).

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As partes recorrentes alegam que os acórdãos e a sen-tença merecem nulidade por não apresentarem uma sólida fun-damentação, por serem omissos, apresentarem uma má apre-ciação de algumas provas e indeferimento de outras, que se julgam necessárias para a dissolução do caso e, ainda, uma equívoca distribuição do ônus probante (BRASIL. Superior Tribu-nal de Justiça, 2013a).

No que diz respeito ao mérito, requerem o direito ao esquecimento pelo assassinato de sua irmã, entendendo que houve uma violação pela parte ré à vontade expressa da não di-vulgação do caso (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2013a).

A ementa inicia-se apontando o fato de que o Superior Tribunal de Justiça possui competência para julgar casos em que se tem uma solução transversal, nos quais haja uma con-trovérsia de cunho constitucional de modo prévio, oblíquo, ou envolvendo somente ponto infraconstitucional, fatos que, de modo precípuo, não deverão ser contemplados pelo Supremo Tribunal Federal. O ponto principal da discussão está na falta de contemporaneidade do fato exibido no programa televisivo. O assassinato de Aída Curi se deu na década de cinquenta e teve sua história recontada contra a vontade da família (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2013a).

Independentemente de ter sido o sujeito condenado ou absolvido, os envolvidos em processo-crime têm direito ao es-quecimento (REsp. n. 1.334/097/RJ), assim como as vítimas e familiares que o desejarem, para que se evitem lembranças in-desejadas de tragédias familiares e um enriquecimento abusivo dos meios midiáticos sob a exposição abusiva de fatos passados (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2013a).

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Episódios que contam com uma repercussão de cunho nacional acabam fazendo com que seja impossível contar a his-tória dissociando-a da imagem da vítima, o que se visualiza na situação em comento, em que seria incabível tratar do caso Aída Curi sem a presença do nome ou imagem desta (BRASIL. Supe-rior Tribunal de Justiça, 2013a).

É cabível ao julgador entender que, se quando o fato ocorrera houve uma exploração abusiva da imprensa em cima dele, permitir que isso ocorresse novamente após tantos anos seria conformar-se, pois tal fato já havia acontecido previamen-te. Mas não se verifica abuso na cobertura do crime na situação ora tratada (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2013a).

Quanto ao dever de indenizar, entende-se que os fami-liares de vítimas de delitos passados desejam esquecer a dor sofrida. Porém, há a verificação de que, com o passar dos anos, esse sofrimento vai se acalentando e sua intensidade diminuin-do. A depender do tempo transcorrido, retomar o caso pode ge-rar desconforto, mas não o mesmo abalo previamente sentido. Ademais, uma indenização não é uma consequência do direito ao esquecimento, podendo ocorrer ou não o dever de ser com-pensado (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2013a).

Mais de cinquenta anos se passaram do crime quando o programa televisivo retomou o caso. Se for realizada uma pon-deração de valores frente à dor sentida pelos familiares após tantos anos, conceder o direito ao esquecimento da presente situação seria uma afronta à liberdade de expressão, até porque a imagem da vítima não foi utilizada de modo indevido (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2013a).

Concernente ao voto do Relator, Senhor Ministro Luís Fe-

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lipe Salomão, que foi seguido por mais dois Ministros, Carlos

Ferreira e Raul Araújo, primeiramente esmiuça-se o porquê de

o caso merecer apreço em grau de Recurso Especial e não de

Recurso Extraordinário. Afirma-se que obviamente os princípios

discutidos no caso possuem cunho constitucional, como a pri-

vacidade, honra e a liberdade de expressão que se apresenta na

forma da liberdade de imprensa. Prosseguindo que

[...] é de alçada legal a exata delimitação dos valo-res que podem ser, eventualmente, violados nesse conflito, como a honra, a privacidade e a intimi-dade da pessoa, o que, em última análise, atribui à jurisdição infraconstitucional a incumbência de aferição da ilicitude de condutas potencialmente danosas e, de resto, da extensão do dano delas resultante (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2013a, p. 6).

Pode acontecer de não se aceitar o Recurso Especial por entender-se que merece apreço do Supremo, como já ocorrido nos casos AgRg no Ag 1.340.505/SP, Rel. Ministro Massami Uyeda, Terceira Turma, que fora julgado em 10/04/2012; ou ainda, AgRg no REsp 1.125.127/RJ, Rel. Ministro João Otávio de Noronha, Quarta Turma, julgado em 10/05/2011 (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2013a).

Ocorre que, quando o caso chega até o STF, tem-se a possibilidade de não se reconhecer o recurso extraordinário in-terposto, por entender-se que a discussão se instalou em âmbi-to infraconstitucional e a violação à CF se dá de forma reflexa, optando o Supremo por não analisar o caso (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2013a).

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O Recurso Extraordinário poderá ser proposto nas hipóte-ses trazidas pelo art. 102, III da CF, trazendo a alínea “a” con-trariar dispositivo constitucional, sendo que esta contrariedade deverá ser dada de forma direta, frontal, e não reflexa, que se dá no caso em que deverá ocorrer um reanálise das normas infraconstitucionais que foram aplicadas pelo poder judiciário (BORBA, 2010).

O Relator cita um caso análogo ocorrido na Corte Espe-cial, onde o caso poderia ser apreciado tanto pelo STJ quanto pelo STF. Um trecho da ementa dispõe que

4. [...] Assim, embora, na prática, a violação da lei federal possa representar também violação à Constituição, o que é em casos tais um fenôme-no inafastável, cumpre ao STJ atuar na parte que lhe toca, relativa à correta aplicação da lei fede-ral ao caso, admitindo o recurso especial (grifo do autor) (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2013a, p. 9).

Desta forma, o STJ atuará nas situações em que houver uma interdisciplinaridade, se dando a solução de modo trans-versal por atingir a Constituição de modo antecedente, oblíquo (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2013a).

Nesse sentido, Streck (2013, p. 644) afirma que, mes-mo que os princípios possuam cunho constitucional, “[...] os demais tribunais e juízes da República estão autorizados a apli-cá-los em sede de controle difuso”.

Passa então o Relator a expor sobre a necessidade de uma

harmonização e atualização na jurisprudência do Superior, fato este que se entende não ser essencial para o trabalho em comento.

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Prossegue afirmando que se visualiza atualmente uma constitucionalização do Direito Cível, em que o foco da esfera civil passou para a CF, fenômeno este chamado de publicização do direito privado. Consoante Barroso (2010 apud BRASIL, STJ, 2013), a Constituição passa a ser o cerne de todo ordenamento jurídico, transmitindo seus valores e transformando o direito em algo uno, não tendo mais o caráter exclusivo de maior documen-to do direito público.

É justamente por essa evolução do direito privado que se torna incabível analisar uma situação que não possua traços constitucionais, pois acabariam se prolatando sentenças desa-tualizadas e sem base na Carta Magna. Trata-se do exercício do controle difuso de constitucionalidade, o qual é concebível ser aplicado por qualquer órgão jurisdicionado (BRASIL. Superior Tri-bunal de Justiça, 2013a).

Diferentes casos já julgados pelo Superior contavam com um conflito de publicações jornalísticas frente a alegadas ofen-sas aos direitos de personalidade, quase sempre se dissolvendo com base nos conteúdos possuírem cunho difamatório ou falso e levando em conta a contemporaneidade do fato (BRASIL. Su-perior Tribunal de Justiça, 2013a).

Por não ser absoluta, a liberdade de imprensa encontra diferentes limitações a serem respeitadas,

(I) o compromisso ético com a informação veros-símil; (II) a preservação dos chamados direitos da personalidade, entre os quais incluem-se os direitos à honra, à imagem, à privacidade e à in-timidade; e (III) a vedação de veiculação de críti-ca jornalística com intuito de difamar, injuriar ou caluniar a pessoa (animus injuriandiveldiffamandi)

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(REsp 801.109/DF, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 12/06/2012) (BRA-SIL. Superior Tribunal de Justiça, 2013, p. 13).

Não há a necessidade de haver uma verdade absoluta,

mas a mídia não pode basear suas notícias apenas em rumores

dos quais não se tem nenhuma base concreta.

Afirma-se que, onde verificar-se uma responsabilidade ci-

vil, como é o caso ora tratado, deverá se analisar o ordenamen-

to jurídico como um todo para que haja uma boa aplicação do

direito, tanto em plano legal quanto em constitucional (BRASIL.

Superior Tribunal de Justiça, 2013a).

A situação em exame trata essencialmente de um con-

fronto de valores trazidos com a liberdade de informação e direi-

tos de personalidade, os quais encontram base constitucional.

Mas a discussão pode ser resolvida com base nos artigos 11,

12, 17, 20 e 21 do Código Civil (BRASIL. Superior Tribunal de

Justiça, 2013a).

De um lado, há o interesse em uma informação, enquan-

to de outro se preza por ocultar-se de qualquer exposição.

O Relator salienta que, quando se trata de informações

contidas na internet, a contemporaneidade se torna mais com-

plexa, já que existe um “resíduo informacional” que se perpe-

tua ao longo dos anos (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça,

2013a).

Nesse sentido, um dos executivos da Google, Eric Sch-

midt, afirmou, em uma palestra realizada na Universidade de

Nova York, que há a necessidade de um mecanismo para que

se apague informações virtuais passadas, que podem acabar

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assombrando a vida de uma pessoa. Ressalta que há um mo-mento em que apagar informações é a coisa certa a se fazer (TIBKEN, 2013).

Fala-se no chamamento de novos direitos para solucio-nar conflitos da realidade social vivida atualmente, massificada pelo excesso de informação (BRASIL. Superior Tribunal de Jus-tiça, 2013a).

No caso em exame, o pilar da discussão está na falta de contemporaneidade da notícia exibida. O assassinato da jovem Aída Curi havia ocorrido há mais de cinquenta anos quando o programa televisivo veio a ser exibido, o que, de acordo com os autores, reacendeu feridas, trazendo um grande abalo emocio-nal (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2013a).

A VI Jornada Cível inclui o direito ao esquecimento na dignidade da pessoa humana, estando este instituto presente na doutrina estrangeira e brasileira.

O programa que exibiu o caso ora em pauta chegou a ser objeto de estudo em um Programa de Pós-graduação oferecido pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro, em que um dos apontamentos do estudo era de que certos fatos apresentados nas simulações não poderiam ser confirmados por ninguém, a não ser o próprio criminoso (MENDONÇA, 2002). O fato é que em um crime de grande repercussão nacional, as notícias jorna-lísticas comumente se baseiam em provas informais.

Devido à informação exacerbada oferecida pela mídia, mesmo nos processos que ainda não tiveram julgamento, a opi-nião popular acaba condenando este sujeito. Por isso, o direito ao esquecimento pode ensejar, mesmo que tardiamente, um corretivo de fatos passados. Ainda, a afirmativa de que a trans-

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missão de uma notícia de cunho lícito não poderia se transfor-mar em ilícita com o passar do tempo não possui previsão jurídi-ca, já o direito a ser deixado em paz e a estabilidade do passado inserem-se nos direitos fundamentais (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2013a).

Quando se verifica um conflito entre o direito ao esqueci-mento e a informação, o primeiro deverá prevalecer, conforme o entendimento de Mendes (2007, p. 374): “Se a pessoa deixou de atrair notoriedade, desaparecendo o interesse público em torno dela, merece ser deixada de lado, como desejar. [...] Ele há de ter o direito a não ver repassados ao público os fatos que o levaram à penitenciária”.

O caso em exame foi analisado conjuntamente ao REsp.n. 1.334.097/RJ, podendo ser dividido em duas partes, sendo a primeira relativa à indenização por reacender dores passadas e a segunda pela exposição da figura da falecida (BRASIL. Supe-rior Tribunal de Justiça, 2013a).

Como já supracitado, os familiares de vítimas têm direito ao esquecimento, mas deve-se ponderar se é possível haver a dissociação da imagem da vítima ao crime cometido. No caso em exame, é impossível narrar os fatos sem que seja citado o nome Aída Curi. Por isso, apesar de reconhecer-se a aplicabilidade do direito ao esquecimento para ofensores, vítimas e familiares, é impossível aplicar tal instituto aos presentes autos. Ademais, em função do tempo ocorrido, que ultrapassou mais de cinco déca-das, a dor da família já fora atenuada, gerando um desequilíbrio aplicar o direito ao esquecimento em tal caso, pois ofenderia a liberdade de imprensa. Durante o programa, foram feitas simula-ções, aparecendo apenas uma foto da vítima, deixando claro que

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a intenção foi de transmitir o crime, e não a imagem da falecida (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2013a).

Dessa forma, por força da maioria, o Recurso Especial foi negado.

Segundo os Ministros Maria Isabel Gallotti e Marcos Bu-zziafirmam, é impossível não atentar-se ao fato de como a foto, os fatos e a notícia foram passados ao público, sendo tal posi-cionamento argumento do voto-vencido (BRASIL. Superior Tribu-nal de Justiça, 2013a).

Para eles, a discussão não está relacionada ao dever de veridicidade da imprensa, mas sim ao direito à preservação da imagem do falecido e de sua família, já que o programa expôs uma foto do corpo da vítima e de seus irmãos. Não se trata de um crime político ou de alguma atividade sociológica que realmente merece ser relembrada pela sociedade. Não se vis-lumbrava um interesse coletivo no caso que demonstrasse a real necessidade de violar-se a privacidade dos autores (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2013a).

Verifica-se que inicialmente o programa voltava-se a transmitir casos que não haviam sido solucionados, passando então a expor ocorrências que já haviam sido resolvidas, mas que possuem cunho chocante. A intenção era essencialmente voltada ao lucro (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2013a).

A liberdade de imprensa, que inclui o dever de informa-ção, não autoriza uma exploração de fatos que há muito estão esquecidos e que não envolvem cidadãos notórios. No caso em exame, a vítima era uma pessoa qualquer do Rio de Janeiro (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2013a).

Ainda, verifica-se que existem 470.000 links relaciona-

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dos ao caso na internet, demonstrando que, após cinquenta anos, aparecer tanto interesse no caso deve-se à exposição da notícia, que conseguiu resgatar um fato que estava realmente esquecido (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2013a).

Cabe, dessa forma, uma indenização, não somente pela exposição de um fato passado, que de forma grosseira foi re-passado ao público, mas por ir contra a vontade de família, que recusou expressamente a exposição do caso através de notifi-cação extrajudicial que foi enviada à Rede Globo de Televisão (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2013a).

Por entender que a emissora se utilizou, contra a vontade dos autores, de fatos passados, enriquecendo de forma indevida a custa de dor alheia, os dois Ministros entenderam pelo provi-mento do Recurso Especial, sendo voto-vencido.

3.2 Recurso Especial Nº 1.334.097RJ (2012/0144910-7): Caso Jurandir Gomes de França

No ano de 2013, chegou até o Superior Tribunal de Jus-tiça um Recurso Especial, no qual o Senhor Jurandir Gomes de França havia ajuizado ação de cunho indenizatório por danos morais frente à TV Globo Ltda., tendo seu pedido negado em pri-meira instância (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2013b).

Na década de noventa, o autor foi indiciado como partí-cipe de uma série de homicídios ocorridos na cidade do Rio de Janeiro, que ficaram conhecidos mundialmente, como propria-mente explicita o Relator do julgado, Ministro Luís Felipe Salmão, como sendo a Chacina da Candelária. Após ter se submetido ao Júri, foi absolvido por totalidade dos membros do Conselho de

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Segurança por negativa autoral (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2013b).

Anos após a absolvição, a parte ré procurou o autor para que concedesse entrevista ao programa Linha Direta, que não atendeu ao pedido por preferir manter-se em anonimato, já que acreditou que uma exposição na época poderia trazer-lhe pre-juízos. Desrespeitando a vontade da parte de manter-se fora da veiculação do programa, no ano de 2006 foi ao ar um episódio que tratava da Chacina da Candelária e apontava o autor como um dos envolvidos que havia sido absolvido (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2013b).

Com a exibição, o autor passou a ser visto como cha-cinador na comunidade em que morava. Seu direito a paz e privacidade foram violados, a vida profissional foi prejudicada, já que não conseguiu mais empregos, obrigando-se a vender seus bens e mudar de casa, pois corria o risco de ser morto por algum morador local ou traficante da região; valendo salientar, ainda, que com essa situação sua família foi diretamente prejudicada (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2013b).

O desrespeito a sua vontade expressa foi o motivo de ter ingressado com a ação, e, como fora suscitado, teve seu pedi-do negado em primeira instância. A 3ª Vara Cível da Comarca do Rio de Janeiro entendeu que entre o direito ao esqueci-mento e anonimato e o interesse da coletividade em um caso trágico que marcou a imagem do Brasil, deveria aquele mitigar, julgando improcedente a demanda (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2013b).

Essa sentença foi reformada em grau de apelação por entender-se que, apesar de fatos históricos constituírem patri-

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mônio coletivo da sociedade, a busca pela felicidade intrínseca à dignidade da pessoa humana dá o direito àqueles que foram parte acessória em um processo, tendo sido absolvidos, de se-rem esquecidos e retomarem seu anonimato. Foram opostos embargos infringentes e de declaração, sendo ambos rejeitados (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2013b).

A parte ré propôs, então, Recurso Especial, alegando que, por os fatos já terem tido caráter público, em momen-to algum houve ofensa à privacidade da parte, sendo a prática de retomar assuntos passados através de livros, documentá-rios, programas televisivos, entre outros meios de comunicação, mundialmente conhecida. Alega que não seria possível contar o episódio ocorrido da Candelária sem mencionar a presença do autor, já que foi peça essencial do ocorrido e na fase de inqué-rito policial. Requere, desta forma, que não seja reconhecido o direito ao esquecimento frente ao direito de informação, e que não se tenha acolhido os danos morais ou que, sucessivamente, não haja indenização excessiva (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2013b).

Tal qual no Recurso previamente analisado, explicita-se inicialmente na ementa que o Superior Tribunal de Justiça pos-sui competência para julgar casos em que se tem uma solução interdisciplinar, onde haja uma discussão de cunho constitucio-nal de modo prévio, oblíquo, ou envolvendo somente ponto in-fraconstitucional, fatos que, de modo precípuo, não deverão ser contemplados pelo Supremo Tribunal Federal (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2013b).

O caso em comento tem sua controvérsia no fato de uma situação passada ter sido trazida à tona após mais de dez anos,

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acarretando dentre outras coisas a desconfiança em sua co-munidade, o que leva à discussão do cabimento do direito ao esquecimento na presente situação.

Especifica-se que o direito ao esquecimento neste caso é limitado às publicações de mídia televisiva, sendo bem diferente do discutido em âmbito virtual, que acaba direcionando o cerne a ser tratado para um lado técnico, como a facilidade em se compartilharem informações.

Diante dos riscos trazidos pela sociedade da hiperinfor-mação, a exemplo da autonomia individual, é cabível a pos-sibilidade de serem inseridos novos direitos ou até mesmo se dar uma nova interpretação, nova perspectiva, para os antigos (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2013b).

Ocorre que qualquer sociedade que se diga democrática preza por uma liberdade de imprensa, sendo que qualquer ques-tionamento que trate de uma possível limitação remete a uma quebra da Democracia e acarreta consigo lembranças naturais de incidentes sombrios. Mas, apesar de jamais dever ser esque-cido o período de perseguição que sofreu a mídia brasileira, ela não pode atuar de modo ilimitado, devendo respeitar determina-das regras e princípios que a todos são impostos. Dessa forma, a mídia deve atuar essencialmente sob a guarda de dois valores constitucionais: a liberdade de informação e a dignidade da pes-soa humana (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2013b).

Existem crimes e criminosos que se tornam históricos e realmente devem ser encarados como patrimônio imaterial da coletividade, mas também há aqueles casos em que existe uma artificialidade que os fazem ser famosos, como a exacerbada exploração da mídia e a apelação aos prazeres comuns da so-

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ciedade, como o populismo do direito penal (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2013b).

O direito ao esquecimento já é utilizado em meio inter-nacional e deve ser aplicado em casos internos, pois, apesar de não haver uma previsão expressa de sua utilização, o direito confere uma previsibilidade de esquecimento futuro através de mecanismos como a decadência, prescrição, anistia, perdão, irretroatividade das leis, coisa julgada, dentre outros. Ademais, existe o direito ao sigilo na folha de antecedentes, assim como a exclusão de registros que levaram a condenação no Instituto de Identificação, entendendo-se como um direito a ser deixado em paz (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2013b).

Explicita-se que a memória é um vínculo entre passado e presente, enquanto a esperança é a ligação do presente com o futuro, devendo o esquecimento prevalecer frente à memória, já que demonstra ser mais nobre por ser um direito à esperança (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2013b).

Consoante exposto na Ementa,

17. Ressalvam-se do direito ao esquecimento os fatos genuinamente históricos - historicidade essa que deve ser analisada em concreto -, cujo inte-resse público e social deve sobreviver à passagem do tempo, desde que a narrativa desvinculada dos envolvidos se fizer impraticável (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2013, p. 10).

É sabido que o caso em comento teve uma repercussão mundial, mas a história poderia muito bem ter sido contada sem a exposição da parte autora, o que privaria sua honra de ser maculada através da exposição de nome e de sua fisionomia

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(BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2013b).Por isso, apesar de as instâncias ordinárias terem reco-

nhecido que o fato narrado teve legítima ligação com o ocorrido, dando o pedido como improcedente, entende-se que a exposi-ção de seu nome e imagem, sem sua autorização, após tantos anos foi uma segunda ofensa a sua dignidade, ocorrida a primei-ra no passado, que tratou o caso como uma vergonha nacional (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2013b).

Manteve-se a condenação no valor de R$50.000,00 (cinquenta mil reais) e, consequentemente, o Recurso Especial não foi provido.

O voto do Relator inicia-se da mesma forma que o re-tratado anteriormente, justificando o porquê de o caso possuir natureza de Recurso Especial. Ainda, igualmente colocado foi a questão do direito ao esquecimento em meio virtual, não se entendendo necessário retomar estes assuntos.

Tem-se uma ausência de contemporaneidade dos fatos trazidos pela emissora televisiva, o que acabou reacendendo um sentimento de ódio e desconfiança coletivo que já havia se apagado. Em função disso, a parte autora requer o direito ao esquecimento, que vem se demonstrando presente na doutrina e Tribunais do Brasil e do exterior (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2013b).

O item II do presente trabalho traz alguns exemplos na-cionais e internacionais de casos em que o cerne da discussão foi o direito a ser esquecido, possuindo julgados de grande re-percussão no Tribunal Alemão e na União Europeia, onde o di-reito a ser esquecido teve procedência, e casos no Brasil, como o da apresentadora Xuxa Meneghel e do político Aécio Neves.

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A VI Jornada de Direito Cível aponta, em seu enunciado número 531, que “A tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento.” (STJ, 2013)

Como já suscitado, o presente caso trata do direito ao esquecimento pela mídia televisiva, onde é mais penoso ir contra a vontade de uma pessoa e corromper seu anonimato, do que entregar/vender um fato que se mantinha em privaci-dade à esfera pública (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2013b).

A privacidade vem sendo plenamente corrompida pela sociedade da hiperinformação, sem que nenhuma reação pro-porcional seja tomada. A população está passiva, permitindo que a vida privada passe por uma deformação ao deixá-la ser violada, arquivada e comercializada. Como exemplo disso, tem-se a mídia, que angaria lucro explorando o sentimento de justi-ça da população e transmitindo casos de modo sensacionalista (COSTA JÚNIOR, 2007).

É valido citar que, em função de um precedente citado no item II do presente trabalho, onde um espanhol requereu o direito ao esquecimento ao Tribunal de Justiça da União Euro-peia e teve seu pedido procedente, fora concedido aos cida-dãos do bloco o direito a serem esquecidos em meio virtual, aceitando-se pedidos que exijam a remoção de conteúdos tidos como inadequados, irrelevantes ou que não possuam relevân-cia atual. Mais de cinquenta mil pedidos de remoção foram fei-tos ao Google no mês de maio deste ano, salientando-se que os fatos devem ser considerados inadequados ou irrelevantes (GROSSMANN, 2014).

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Obviamente, tal fato gerou polêmica, já que se trata de uma via de mão dupla, e jornais como o The Guardian e BBC não estão satisfeitos com o fato de algumas de suas matérias serem retiradas das buscas, especialmente “reportagens sobre um juiz escocês que teria admitido mentir em um pênalti e a demissão do presidente do Merrill Lynch no furacão da crise financeira iniciada em 2007” (GROSSMANN, 2014).

É inquestionável o interesse público em revisitar fatos passados, ainda mais os de extremo impacto, como a Chacina da Candelária. Mas a história em exame poderia ter sido muito bem contada sem o envolvimento do nome e imagem do autor. Obviamente se trata de uma restrição, mas essa limitação não atenta ao interesse público e nem à liberdade de expressão, já que a matéria será igualmente transmitida (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2013b).

Os telespectadores, em sua maioria, nem sequer lem-brariam o nome do autor minutos após terem visto o programa, mas seu círculo particular de convivência com certeza ficou mar-cado (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2013b).

Encerra-se seu voto afirmando que, se o direito ao es-quecimento é cabível para aqueles que realmente cometeram crimes, é certo que deve ser aplicado a inocentes. O ordena-mento jurídico preza pela ressocialização daquele que cumpriu pena e pelos direitos do menor infrator, sendo lógico que tam-bém proteja um inocente que fora injustamente acusado pelo Estado. O valor da condenação não se demonstra exorbitante, mantendo-o em R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais) e nega pro-vimento ao Recurso Especial.

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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Denomina-se direito ao esquecimento o direito de não ter reavivado, após determinado lapso temporal, alguma exposição passada, ou, que fatos que não possuem relevância de cunho nacional sejam expostos.

Este instituto trata da possibilidade de bloquear dados e informações, os quais, ainda que sejam verdadeiros, sucederam há certo período de tempo. Ao serem retomados, podem aca-bar causando transtornos de cunho moral e material a quem é exposto.

Sua utilização se dá em vastas ramificações jurídicas, possuindo grande aplicabilidade no direito cível. Na esfera pe-nal, a constante relembrança ao autor de algum delito cometido preteritamente perturba sua ressocialização, podendo lhe gerar danos morais e materiais. Ademais, tal instituto aplica-se, tam-bém, às vítimas de crimes e aos familiares dos envolvidos.

Verificou-se uma variação no tocante ao julgamento dos recursos, o caso da Chacina da Candelária obteve uma unani-midade dos votos, ao aplicar o direito ao esquecimento para o autor, enquanto que, no caso Aída Curi, foram observadas divergências, mas o julgamento deu-se pela improcedência do pedido relativo ao direito ao esquecimento, requerido pelos ir-mãos da vítima.

No caso da Chacina da Candelária, assim como os votos dos Ministros, entende-se correta a aplicação do direito ao es-quecimento, pois, apesar de se tratar de um crime impactante ao Brasil e ao mundo, é possível desvencilhar o nome e imagem do autor do Recurso, que na época do julgamento foi absolvido,

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com o do delito, tendo a exposição gerado a ele e sua família danos morais e materiais, trazendo à tona um ódio social que estava adormecido.

Por mais que tenha se tratado de um crime contra dife-rentes pessoas, tendo aberto os olhos da sociedade mundial para a falta de segurança e atrocidades cometidas no Brasil, o autor foi absolvido. Ademais, a história poderia ter sido contada sem que sua imagem e nome fossem expostos.

Diferentemente, o caso Aída Curi foi chocante aos olhos da sociedade no momento de sua ocorrência, mas, tal qual afir-mam os Ministros do voto-vencido, nos dias atuais, não afeta a coletividade e nem são fatos que merecem ser reavivados, tais como crimes sociais ou políticos.

Apesar de o relator afirmar que, dentre outros argumen-tos, o pedido do direito ao esquecimento não merece proce-dência por não ser possível separar o nome da vítima do delito ocorrido, não é um fato que necessariamente deve ser lembra-do, não possuindo nenhum intuito em ser demonstrado, senão o de angariar telespectadores visando o lucro.

Ademais, outro argumento de que se utiliza o relator é de que, pela passagem do tempo, mais de meio século da ocor-rência do crime, a dor da família já teria se atenuado, não ten-do gerado um constrangimento que levasse à obtenção de um dano moral.

Ora, parafraseando Shakespeare, “Todo mundo é capaz de dominar uma dor, exceto quem a sente”, sendo incabível se afirmar que a dor dos familiares tenha se dissipado ao longo dos anos.

Ainda que o tenha, o ocorrido com a irmã dos autores foi

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brutal, sendo provável que a exposição de imagem, simulações e retomada de seu assassinato reabram chagas passadas, ge-rando dor, constrangimento e, sim, um dano moral, sendo esta exibição totalmente desnecessária à sociedade.

Dessa forma, através da pesquisa realizada sobre o direi-to ao esquecimento e pela análise dos dois Recursos Especiais, entende-se correta a procedência do Recurso Especial referen-te à Chacina da Candelária. No entanto, concernente ao caso Aída Curi, discorda-se do Relator e os Ministros que o seguiram, parecendo em verdade uma posição mais acertada aquela ado-tada no voto-vencido.

É cógnito que o direito ao esquecimento deve ser uti-lizado como uma exceção somente em casos que realmente necessitem de sua aplicabilidade, o que se entende ser o caso dos dois julgados apreciados no presente artigo.

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DANO ESTÉTICO CUMULADO COM DANO MORAL: UMA NOVA PERSPECTIVA

AN ESTHETIC DAMAGE COMBINED WITH MORAL DAMAGE: A NEW PERSPECTIVE

Nívia Cristina Oliva Richard1

Lauren Pons da Silva Possobon2

RESUMOO presente trabalho tem por objetivo demonstrar alguns aspec-tos do dano estético que ainda causam controvérsias ou não foram totalmente esclarecidos pela doutrina. Com a edição da súmula nº 387, consolidou-se a possibilidade de cumulação do dano moral com o pouco conhecido dano estético, contudo, não foi estabelecida sua natureza jurídica. A doutrina não é unânime na autonomia deste tipo de dano por acreditar que este se sub-sume no dano moral e, também, por receio de aparecimento de uma multiplicidade de outros danos. Urge então a dúvida dos meios que devem ser utilizados para estabelecer uma indeniza-ção justa e integral sem acarretar o enriquecimento ilícito, bem como a definição dos requisitos a serem usados pelo magistrado para considerar os danos estéticos, além das possibilidades e situações de ocorrência deste dano, sendo estas algumas das temáticas abordadas ao longo deste artigo. Ao final, procurou-se explicitar a necessidade de entender o dano estético como dano autônomo, devendo assim ser determinado pelo ordenamento jurídico pátrio na atualidade, além de contribuir para o debate acerca do tema, inclusive no que tange ao dever do profissional 1 Acadêmica do Curso de Direito da UNIVEL – Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas de Cascavel – UNIVEL.2 Mestranda em Educação na Universidade Estadual do Oeste do Paraná - Unioeste. Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas de Cascavel - Univel. Advogada. [email protected]

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de saúde para que, além de colocar seu paciente informado sobre todas as complicações advindas do ato a ser praticado, possa ele mesmo se precaver de futuras ações indenizatórias.

PALAVRAS-CHAVE: Responsabilidade civil, Dano estético, Inte-gridade física, Judiciário, Erro médico.

ABSTRACTThe current work intends to demonstrate some aspects of aesthetic damage that still give rise to controversies or that were not fully elucidated by the juridic doctrine. Since the editing of the docket number 387, it was stabilished the possibility of combination between moral damage and aesthetic damage, though it’s juridic nature was not settled. The juridic doctrine is not uninamous regardind the autonomy of the aesthetic damage because it believes that the harm subsumes itself in moral damage and, also, because of the fearfulness of the emergence of multiple other types of damage. Therefore, it urges the doubt of which means shoud be used to determine an outright and fair idemnification not leading to illicit enrichment, as well as the definition of the requirements to be used by the magistrate to deliberate about aesthetic damage, in addition to the possibilities and situations in which the damage was sustained, being those some of the topics to be broached in the current work. By it’s end, it tried to explicit the necessity of understanding the aesthetic harm as an idependent damage, therefore it should be determined by nowadays Brazil’s legal system, as well as contribute to the discussion of the topic concerning the responsibility of the health-care professional so that, in addition to inform the patient of all the complications following the act to be performed, so that he or she may protect himself or herself against future idemnifying lawsuits.

Keywords: Civil responsibility, aesthetic damage, physical integrity, judiciary, medical error.

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1 INTRODUÇÃO

A palavra dano tem origem latina, damnum, que significa prejuízo embutido a um bem protegido juridicamente, afetando um sentimento ou diminuindo um patrimônio (FARIA JUNIOR, 2003).

O conceito clássico de dano encontrado na doutrina é o de que constitui uma diminuição do patrimônio ou, como querem alguns autores como Cahali (2005) e Cavalieri Filho (2008), uma diminuição ou subtração de um bem jurídico para abranger não só o patrimônio, mas a honra, a saúde, a vida, passíveis de proteção. Assim, o dano, em toda a sua extensão, há de abranger aquilo que efetivamente se perdeu e aquilo que se deixou de lucrar.

É possível distinguir-se, quando se fala em dano, a ca-tegoria dos danos patrimoniais de um lado, e, de outro, a dos danos morais. Tem-se por dano patrimonial aquele que atinge tão somente o patrimônio do ofendido de forma a diminuí-lo ou mesmo torná-lo inexistente.

O dano moral é aquele que atinge o ofendido tão somen-te como ser humano e que não produz qualquer efeito patri-monial. É o constrangimento sofrido pela vítima cada vez que a mesma encontra com outras pessoas e sente vergonha de sua estética deformada, é o dano à imagem social, o complexo de inferioridade na convivência humana.

Já o dano estético se caracteriza pela ofensa direta à in-tegridade física do ser humano, manifestado em qualquer al-teração em sua aparência original. Este fato pode ocorrer por acidentes, atos ilícitos ou erro médico, causando deformidades,

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cicatriz, perda de membros ou qualquer outro meio que atinja o físico da pessoa. É um dano autônomo passível de indenização quando comprovada sua ocorrência.

Embora já pacificado pela súmula 387 do Superior Tribu-nal de Justiça, que diz: “É lícita a cumulação das indenizações de dano estético e dano moral”, muitos doutrinadores não co-mungam do mesmo pensamento, afirmando que o dano esté-tico é absorvido pelo dano moral ou que seria uma subespécie do dano moral.

A problemática surge devido à inexistência de caracteri-zação da natureza jurídica do dano estético para fundamentá-lo como autônomo, bem como a determinação quantitativa deste dano para que se possa cumprir efetivamente sua função de compensar a vítima, sem acarretar o enriquecimento ilícito.

Ao longo do estudo, busca-se também, situar a ação cor-reta do profissional de saúde para que este possa se proteger de uma ação indenizatória que alega dano estético quando o que ocorreu em verdade foi um descontentamento com o resultado ou uma complicação inerente ao procedimento realizado, como quelóides ou reabsorções, analisando neste caso a existência ou não de má fé.

Ao final, o estudo buscou demonstrar que o dano estético é uma terceira espécie de dano pertencente à responsabilidade civil, o qual subsiste de forma independente e autônoma pe-rante os danos materiais e morais, como já bem determinou o Superior Tribunal de Justiça em vários julgados, ao publicar, em 01.09.09, a Súmula 387, acostada anteriormente. Dessa for-ma, em havendo lesão à integridade física da pessoa humana, que venha a adentrar na esfera estética, nascerá para o causa-

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dor do fato o dever de reparar, através da indenização, o dano estético ocorrido na correta proporção do fato causado.

2 A EVOLUÇÃO DO DANO NA RESPONSABILIDADE CIVIL BRASILEIRA

2.1 Aspectos Históricos

Com a evolução da sociedade, as inter-relações sociais trouxeram conflitos entre os seres da coletividade que extrapo-laram a esfera do patrimônio chegando à ofensa dos direitos pessoais como, a título de exemplo, a dignidade, a honra e a in-timidade. Com isso, foram surgindo legislações específicas para a reparação desses danos.

O Código Civil de 1916 trazia em seu artigo 76 e seu parágrafo único o seguinte enunciado:

Art. 76. Para propor, ou contestar uma ação, é necessário ter legítimo interesse econômico, ou moral.Parágrafo Único. O interesse moral só autoriza a ação quando toque diretamente ao autor, ou à sua família.

Portanto, para a proposição de uma ação, bastava haver interesse moral. Com isso, abriu-se a possibilidade para que mais tarde a reparação pelo dano moral fosse reconhecida. E assim, com o ingresso no ordenamento jurídico pátrio da Carta Política de 1988, positivou-se esse direito.

Como elenca o professor Caio Mario da Silva Pereira (2001, p. 58)

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A Constituição Federal de 1988 veio pôr uma pá de cal na resistência à reparação do dano moral. [...] E assim, a reparação do dano moral integra-se definitivamente em nosso direito positivo. [...] Com as duas disposições contidas na Constituição de 1988 o princípio da reparação do dano moral en-controu o batismo que a inseriu em a canonicidade de nosso direito positivo. Agora, pela palavra mais firme e mais alta da norma constitucional, tornou-se princípio de natureza cogente o que estabelece a reparação por dano moral em nosso direito.

O artigo 186 do Código Civil de 2002 também deixa clara a obrigação de reparação pelo dano imaterial:

Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão volun-tária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

O legislador confirmou, então, a reparação do dano moral que já se encontrava presente no artigo 5º da Constituição Bra-sileira, que trata de direitos e garantias fundamentais. O instituto encontra-se presente, na atualidade, também no Código de De-fesa do Consumidor, o qual, no artigo 6º, incisos VI e VII, prevê enquanto direito básico dos consumidores, “a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais”, bem como “o acesso aos órgãos judiciários e administrativos com vista à prevenção ou reparação de danos patrimoniais e morais”, respectivamente.

2.2 Dano Material ou Patrimonial

É possível distinguir-se, no campo dos danos, a cate-goria dos danos patrimoniais, de um lado, e, de outro, a dos

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danos morais. Tem-se por dano patrimonial aquele que atinge tão somente o patrimônio do ofendido de forma a diminuí-lo ou mesmo torná-lo inexistente, podendo ser mensurado financeira-mente e indenizado (CAHALI, 2005). Compreende tanto o dano emergente sofrido pela vítima quanto o lucro cessante, entendi-do aquele como o que ela efetivamente perdeu e o outro como o que razoavelmente deixou de lucrar, nos termos do art. 402 do Código Civil de 2002:

Art. 402. Salvo as exceções expressamente pre-vistas em lei, as perdas e danos devidas ao credor abrangem, além do que ele efetivamente perdeu, o que razoavelmente deixou de lucrar.

Para que venha a ocorrer reparação do dano material, torna-se necessário demonstrar o nexo de causalidade entre a conduta errônea do terceiro e o prejuízo patrimonial efetivamen-te suportado. Assim, poder-se-á apurar se a conduta entendida por reprovável e indevida foi ou não culposa. Aqui, excetuam-se as relações de consumo, nas quais a responsabilidade é de ordem objetiva, e não se discute a existência de culpa e sim a ocorrência ou não do fato que gerou o dano, bem como os da-nos causados pela atividade indevida do Estado, para os quais prevalecem estas regras últimas.

Por sua natureza, inequívoco que a demonstração da ex-tensão do dano material deve ser precisa quanto ao valor da indenização que se pretende, pois o que se vislumbra ao subme-

ter os fatos ao judiciário é a recomposição efetiva da situação patrimonial que o lesado possuía antes da ocorrência do dano em questão.

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INDENIZAÇÃO - ACIDENTE DE TRÂNSITO - COLI-SÃO ENTRE AUTOMÓVEL E MOTOCICLETA - CUL-PA DEMONSTRADA - DEVER DE RESSARCIMEN-TO - LUCROS CESSANTES. O direito privado, ao estabelecer a regra sobre a responsabilidade civil, impôs o dever de indenizar prejuízos que se cause a outrem, desde que se viole a ordem jurídica, conforme expressa o artigo 159 do Código Civil, defluindo desta norma legislativa que são pressu-postos da obrigação de ressarcir a existência de ação ou omissão imputável ao agente, a sua cul-pabilidade, o dano provocado à vítima, bem como o nexo de causalidade entre este e o comporta-mento censurável. Restando demonstrado que a condutora do automóvel realizou manobra de conversão à direita, de forma irregular, interrom-pendo de forma brusca e inesperada a trajetória da motocicleta em que trafegavam os ofendidos, evidencia-se a sua culpa na configuração do even-to danoso, o que origina o consequente dever de ressarcimento pelos danos causados. Rejeitaram as preliminares e negaram provimento ao recurso. (TJ/MG - 1.0694.03.015508-9/001, Des Otavio de Abreu Portes, 14/12/2005).

Quanto à natureza jurídica do dano material, ela está fun-damentada na diminuição do patrimônio (dano emergente) e no que efetivamente deixou de ganhar (lucro cessante).

2.3 Dano Moral

Dano Moral é todo sofrimento humano resultante da le-são dos direitos da personalidade. Seu conteúdo é a dor, a an-gústia, a vergonha, ou seja, uma sensação dolorosa experimen-tada pela pessoa. Os danos morais são aqueles que acabam por abalar a honra, a boa-fé subjetiva ou a dignidade da pessoa

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física ou jurídica.O dano moral, segundo Cahali (2005) e Kfouri Neto

(2007) é aquele que atinge o ofendido tão somente como ser humano e que não produz qualquer efeito patrimonial. De acor-do com Diniz (2004, p. 71), “o dano moral vem a ser lesão de interesse não patrimonial de pessoa física e jurídica”.

O professor Cavalieri Filho (2007, p. 78) colaciona que:

Nessa linha de princípio, só pode ser reputado como dano moral a dor, vexame, sofrimento ou humilhação que, fugindo à normalidade, interfira intensamente no comportamento psicológico do indivíduo, causando-lhe aflições, angústia e dese-quilíbrio em seu bem-estar. Mero dissabor, abor-recimento, mágoa, irritação ou sensibilidade exa-cerbada estão fora da órbita do dano moral, por-quanto, além de fazerem parte da normalidade do nosso dia a dia, no trabalho, no trânsito, entre os amigos e até no ambiente familiar, tais situações não são intensas e duradouras, a ponto de rom-per o equilíbrio psicológico do indivíduo. Se assim não se entender, acabaremos por banalizar o dano moral, ensejando ações judiciais em busca de in-denizações pelos mais triviais acontecimentos.

Para que seja caracterizado o evento enquanto gerador do dano moral mister é que haja prova do nexo de causalidade entre o fato que gerou o dano e as consequências nocivas daí advindas à moral do ofendido. É importantíssimo, para a com-provação do dano, provar minuciosamente as condições nas quais ocorreram as ofensas à moral, boa-fé ou dignidade da ví-

tima, as consequências do fato para sua vida pessoal, incluindo a repercussão do dano e todos os demais problemas gerados reflexamente por este.

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Não existem critérios previstos em lei para a fixação da in-denização do dano moral e como prelaciona Santini (2000, p. 45):

[...] melhor fora, evidentemente, que existisse em nossa legislação um sistema que concedesse ao juiz uma faixa de atuação, onde se pudesse gra-duar a reparação de acordo com o caso concreto. Entretanto, isso inexiste. O que prepondera, tanto na doutrina, como na jurisprudência, é o entendi-mento de que a fixação do dano moral deve ficar ao prudente arbítrio do juiz.

Dessa forma, a quantificação dos danos morais fica ao prudente arbítrio do juiz, que fundamentará sua decisão utilizan-do os critérios de proporcionalidade e razoabilidade, condenan-do o requerido a pagar valor que não importe enriquecimento ilícito sem causa para aquele que suporta o dano, mas uma efetiva reparação. Assim, para que exista uma decisão justa, o julgador deve ater-se à análise da culpa do causador do dano, ao grau de sofrimento da vítima, bem como à situação econô-mica de ambas as partes, para não ensejar a empobrecimento ou impunidade daquele.

Há possibilidade de cumulabilidade do dano moral com o material, decorrentes do mesmo fato, reconhecida pela jurispru-dência do Supremo Tribunal Federal, que editou a súmula de nº 37, que diz: “São cumuláveis as indenizações por dano material e dano moral oriundos do mesmo fato”.

O artigo 186 do Código Civil de 2002 deixa clara a obri-gação de reparação pelo dano imaterial e também fundamenta

sua natureza jurídica, que é de caráter reparatório e indenizató-rio, conforme se observa abaixo:

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Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão volun-tária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

Nesse sentido e apenas para exemplificar, segue julgado da 1ª turma do Supremo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro em sede de Agravo Regimental onde há julgamento procedente ao pedido de danos morais quando de situação vexatória ao indivíduo.

PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO ES-PECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. MUNICÍ-PIO. DIAGNÓSTICO EQUIVOCADO DE HIV PO-SITIVO. PEDIDO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS JULGADO PROCEDENTE. SUPOSTA OFENSA AO ART. 535, I E II CPC. NÃO OCOR-RÊNCIA. PRECEDENTES. DESPROVIMENTO.

1. Não houve omissão, tampouco contradição no acórdão impugnado. O Tribunal de Justiça consi-derou que o aviso prévio quanto à possibilidade de resultado falso e a existência de obrigação legal do HEMORIO em comunicar os órgãos municipais acerca de eventual diagnóstico positivo no exame da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida nem descaracterizam o ato ilícito nem afastam o de-ver de indenizar, pois a comunicação deveria ser precedida de novos exames, para fins de confir-mação do resultado.2. Cabia ao agravante impug-nar o mérito da lide – inclusive mediante recurso extraordinário, em razão da adoção de fundamen-to constitucional (CF/88, art. 5º, X) –, e não sim-plesmente suscitar nulidade inexistente. 3.Agravo regimental desprovido (AgRg no Ag 909.627/RJ, Rel. Ministra Denise Arruda, Primeira Turma, jul-gado em 13.11.2007, DJ 10.12.2007 p. 322).

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Com esse julgado, demonstrou-se a possibilidade de inde-nização por danos morais quando um fato expuser a pessoa a si-tuações vexatórias, constrangedoras ofendendo-lhe a dignidade.

2.4 Dano Estético

O dano estético é um dano que afronta a aparência física, a qual não se restringe aos traços fisionômicos, mas envolve a imagem física da pessoa em todos os seus aspectos, como a voz, os movimentos habituais de andar, de gesticular, de compor-tar-se, que constituem a imagem “retrato”, ou seja, o que é vis-to pela sociedade. Possui diversas terminologias: dano corporal (pretium corporis), dano físico, dano deformidade, dano fisioló-gico, dano à saúde, dano biológico, entre outros (LOPEZ, 2004).

A configuração do dano estético sempre esteve associa-da à valoração que recebia do Direito Penal, em virtude de ser requisito indispensável para a caracterização da circunstância agravante do crime de lesão corporal dolosa. Isso foi corrobo-rado no § 1° do art. 1.538, do CC/161, que fazia referência ao dano estético na figura do aleijão ou da deformidade, mas a estes nunca foram conceituados (CAHALI, 2005).

Wilson Melo da Silva (1961, p. 30), no tocante ao Código Civil de 1916, criticou a associação do dano estético às carac-terísticas do aleijão, expressando que:

Os danos estéticos, múltiplos em suas manifes-tações, não se contêm nas estreitezas das lindes que lhe traçou o nosso estatuto civil. A tendência, hodierna, de se fazer compreender como tal até mesmo o simples sfregio dos italianos, o simples

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arranhão deformante, a cicatriz, desde que sus-cetíveis de se tornarem, ainda que em circunstân-cias restritas (nos banhos de praia, por exemplo, na exibição de roupas íntimas ou trajes de banho para as modelos profissionais, etc.), passíveis de exposição, ficaria, pelo dito, ao largo da nossa lei civil. Tão só defeito mais ou menos grave, o alei-jão ou a deformidade, cairiam dentro do âmbito de sua proteção.

Nereida Veloso Silva (2004, p. 33), por sua vez, explica o entendimento do Código Civil de 2002 a respeito do dano estético:

O fato, portanto, é que hoje não mais interessa se houve literalmente um aleijão ou uma deformi-dade. Por dano estético entende-se a lesão que seja significante para alterar a vida pessoal e so-cial da vítima, trazendo-lhe o sentimento de des-prezo ou constrangimento diante da exposição da sua imagem alterada. Esse também parece ser o entendimento do novo Código Civil, que não mais menciona o aleijão ou a deformidade. A idéia de dano estético termina por se inserir no art. 949, que trata somente de lesão ou outra ofensa à saú-de, ou seja, refere-se a lesões de forma genérica.

Portanto, o dano estético não se restringe à deformidade e ao aleijão, podendo ser caracterizado como qualquer atentado à integridade corporal, que abrange a integridade da aparência física em todos os seus aspectos, como a imagem, a voz, o modo de andar, de gesticular, de comportar-se.

Teresa Ancona Lopez (2004) diz que o dano estético se caracteriza pela ofensa direta à integridade física da pessoa hu-mana, manifestado em qualquer alteração em sua aparência

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original. Esse fato pode ocorrer por acidentes, atos ilícitos ou erro médico, causando deformidades, cicatriz, perda de mem-bros ou qualquer outro meio que atinja o físico da pessoa.

Conceituando o dano estético, Maria Helena Diniz (1995, p. 61-62) aduz que:

O dano estético é toda alteração morfológica do indivíduo, que, além do aleijão, abrange as de-formidades ou deformações, marcas e defeitos, ainda que mínimos, e que impliquem sob qual-quer aspecto um afeamento da vítima, consis-tindo numa simples lesão desgostante ou num permanente motivo de exposição ao ridículo ou de complexo de inferioridade, exercendo ou não influência sobre sua capacidade laborativa. Por exemplo: mutilações (ausência de membros - orelhas, nariz, braços ou pernas etc.); cicatrizes, mesmo acobertáveis pela barba ou cabeleira ou pela maquilagem; perda de cabelos, das sobran-celhas, dos cílios, dos dentes, da voz, dos olhos; feridas nauseabundas ou repulsivas etc., em con-sequência do evento lesivo.

Para a caracterização de tal dano, são necessários requi-sitos configuradores, a saber: a lesão, a aparência dessa lesão e a permanência do dano. A lesão deverá ser deformante e ir-reparável, que cause constrangimento e diminuição em quem a possui. É, portanto, a lesão à beleza física, ou seja, à harmonia das formas, ou, como preceitua Diniz (1995, p. 61-63):

Deformidades ou deformações outras, as marcas e os defeitos ainda que mínimos que podem im-plicar, sob qualquer aspecto, um ‘afeamento’ da vítima ou que pudessem vir a se constituir para ela numa simples lesão ‘desgostante’ ou em per-manente motivo de exposição ao ridículo ou de inferiorizantes complexos.

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O dano estético, portanto, não se confunde com o dano material e moral, uma vez que são bens diferentes juridicamen-te, os quais possuem consequências lesivas diversas, afinal, o dano material decorre de ofensa ao patrimônio do indivíduo, en-quanto que o dano moral é oriundo de uma ofensa à psique do ser e o dano estético trata de uma ofensa à integridade física.

2.5 Natureza Jurídica do Dano Estético

A Súmula 387 do STJ pacificou a questão da autonomia jurídica do dano estético, mas não explicitou a sua natureza ju-rídica como já exposto no Código Civil de 1916, no artigo 1538 e seus parágrafos, o dano estético estava associado à figura do aleijão, da deformidade, haja vista a valoração que recebia do Direito Penal, pelo fato de determinar a circunstância agravante da lesão corporal dolosa.

No Código Civil de 2002, é possível encontrar amparo no direito à imagem em seu artigo 949 in fine, conforme dispositivo abaixo:

Art. 949. No caso de lesão ou outra ofensa à saú-de, o ofensor indenizará o ofendido das despesas do tratamento e dos lucros cessantes até ao fim da convalescença, além de algum outro prejuízo que o ofendido prove haver sofrido. (grifo nosso)

Natália de Campos Grey (2010, p. 8) explica o seguinte, a respeito da disciplina jurídica do referido dano no Código Civil

de 2002:

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O que ocorre apenas é que, no Código Civil de 2002, o fundamento legal do dano estético pas-sou a ser genérico e não específico. O dano esté-tico pode ser enquadrado na previsão específica do já mencionado artigo 949, parte final, o qual é aplicável a todos os tipos de danos imateriais e, também, na cláusula geral dos artigos 186 e 927, que são aplicáveis a qualquer tipo de dano.

Ademais, a Constituição Federal contempla, em seu artigo 5º inciso V, a possibilidade do dano à imagem ser reparado, esta-belecendo que “é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem” e em seu inciso X a possibilidade de indenização por dano moral e material, advindos de sua violação. Daí também se extrai que a Carta Política previu expressamente a indenização por violação à imagem das pessoas, ou seja, por dano estético.

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem dis-tinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos ter-mos seguintes:[...]V - é assegurado o direito de resposta, propor-cional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;[...] X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

A ordem jurídica contemplou a imagem atributo, que é a forma como a pessoa é reconhecida em sociedade e a imagem-

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-retrato, que são traços fisionômicos peculiares de cada indiví-duo que lhe conferem o direito à fisionomia. Desse modo, é pos-sível fundamentar a autonomia jurídica do dano estético nesse último aspecto da imagem-retrato, uma vez que o dano estético pode afrontar a harmonia das formas externas da pessoa, que incluem as formas faciais e corporais, bem como as expressões dinâmicas da personalidade, como atitudes, gestos, modo de falar, de mastigar e de andar.

Portanto, a natureza jurídica do dano estético pode ser fundamentada no artigo 949 do Código Civil, parte final, e no artigo 5º incisos V e X da Constituição Federal, constituindo a mesma como a lesão significativa a ponto de alterar a vivência normal/cotidiana do indivíduo devido à imagem alterada.

2.6 Possibilidades e situações que podem gerar o Dano Estético

O dano estético pode se originar de responsabilidade ex-tracontratual (quando não há vínculo entre as partes), contratual (existia um acordo entre as partes, exemplos desta última são lesões advindas de tratamentos médicos, tratamentos dentá-rios e contratos de transporte) e também responsabilidade legal (responsabilidade objetiva no Código de Defesa do Consumidor).

Observa-se que, na responsabilidade contratual, há a vio-lação de uma obrigação; na extracontratual, há a violação de um dever genérico e a legal emana da lei.

Existem também as obrigações que podem ser de meio (o médico que usa de todos os meios para curar o paciente, mas que não se obriga a alcançar a cura do mesmo), e de re-

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sultado (objetiva alcançar um fim sem o qual não terá cumprido sua obrigação). Independentemente da responsabilidade ou da obrigação, o importante é conseguir a total e completa repara-ção do dano.

São inúmeras as situações que podem dar origem ao dano estético, conforme os casos a seguir:

a) Dano Estético provindo de acidentes; causados por menores; por diversos tipos de explosões; em parque de diver-são; em rodovias por má conservação; por mau funcionamento de equipamento cirúrgico; de trânsito; por coisas lançadas ou caídas; pela ruína de edifícios. Neste quesito, cita-se o caso de menor que sofreu graves danos estéticos por brinquedo com de-feito em clube recreativo, resultando debilidade e deformidade permanente do membro superior direito e amputação do se-gundo quirodáctilo direito, foi arbitrado o valor de R$50.000,00 (cinquenta mil reais) para dano estético e moral (em conjunto) e um salário mínimo de pensão até seu falecimento (TJ-DF- Ape-lação Cível: AC 4818598 DF);

b) Dano Estético cometido por responsabilidade do poder público, no qual pode ser citado: a agressão física perpetrada por companheiros de cela de adolescente apreendido por ato infra-cional, e que apresentou após o incidente invalidez permanente e irreversível, uma vez que o Estado tinha o dever de zelar pela inco-lumidade física do menor. Foi arbitrado o dano moral no valor de R$ 250.000,00 (duzentos e cinquenta mil reais) e danos estéti-cos no valor de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais). Frise-se que tanto o dano moral quanto o estético foram reduzidos pela me-tade na instância recursal por serem considerados exorbitantes (TJ-SC-Apelação Cível: AC 20130279959 SC 2013.027995-9);

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c) Dano Estético originado por acidente de trabalho, ten-do como exemplo a perda do antebraço em serviço de limpeza: uma empresa da área de alimentos foi condenada a pagar inde-nização de R$ 300 mil por danos morais e R$ 300 mil por danos estéticos em acidente de trabalho que causou a perda do terço proximal do antebraço esquerdo de trabalhadora que fazia ser-viço de limpeza. O local do acidente não atendia aos requisitos de segurança da legislação (TRT-PR-00846-2012-091-09-00-4-Acórdão-38199-2013-2ªTurma);

d) Dano Estético no contrato de transporte de passageiros: passageira de ônibus que capotou, sofreu sequelas irreparáveis, não podendo mais exercer sua atividade e com isto teve direito a dano moral e estético no valor de 25 salários mínimos (TJ-SC--Apelação Cível: AC 20070594955 SC 2007.059495-5);

e) Dano Estético cometido por médico (cirurgias terapêu-ticas, estéticas, em anestesias, tratamentos deformantes, em sanatório psiquiátrico, e outros): toma-se como exemplo o caso de menor submetido a uma cirurgia de adenoide, que apresen-tou anóxia cerebral por negligência do anestesista, causando lesões irreversíveis e sequelas irreparáveis ao mesmo, por este motivo recebeu dano moral e estético no valor de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais) cada. Vale ressaltar que, em recurso de apelação, até mesmo o Tribunal achou baixo o valor da indeni-zação face a gravidade do fato para casos semelhantes (TJ-ES--Remessa Ex-officio: 24060018470-ES).

Os danos estéticos também podem ser cometidos por farmacêuticos, dentistas, enfermeiros, cabeleireiros, pedicuros, massagistas, esteticistas etc.

Como visto, o dano estético pode ocorrer no próprio dia a

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dia do indivíduo e na realização de atividades tidas como banais para o ser humano, as quais todos encontram-se à mercê.

3 CUMULAÇÃO DE DANO ESTÉTICO COM DANO MORAL

3.1 A Súmula 387 do Supremo Tribunal Federal

A cumulação do dano estético com o dano moral de-corrente do mesmo fato não era aceito pela jurisprudência por acreditarem que o dano estético se identificava com o dano moral. Por essa razão, negavam a duplicidade de indenizações por entenderem que aí havia uma situação que caracterizava o bis in idem3.

Em setembro de 2009, o Superior Tribunal de Justiça editou a súmula 387, estabelecendo que “É lícita a cumulação das indenizações de dano estético e dano moral”. Os desembar-gadores basearam-se no entendimento de que os danos morais e estéticos são autônomos e podem ser verificados em decor-rência de um mesmo evento.

Os danos são diversos e, por isso, as indenizações tam-bém, daí a possibilidade de cumulação. Tal súmula é fundamen-tada no art. 1.538, § 1º, do Código Civil de 1916 – que previa a duplicação da indenização quando da ofensa à integridade física resultasse “aleijão ou deformidade”. Os desembargadores justificaram tal medida afirmando que o dano moral pode existir sem o dano estético, ou seja, sem a deformidade ou o aleijão,

o que evidencia a necessidade de ser considerado esse dano como algo distinto daquele.3 “Bis in idem”: repetição do mesmo fato.

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Basta tal ocorrência para que haja a obrigação de in-denizar por parte do ofensor. Independentemente da existência das cirurgias plásticas reparadoras, muitas lesões estéticas são irreversíveis, como a amputação total ou parcial de membros, cicatrizes profundas e extensas, marcas de queimaduras, lesões em órgãos internos que a vítima carregará por toda sua vida.

No recurso que serviu de base para a edição da Súmula 387, o STJ avaliou um pedido de indenização decorrente de acidente de carro em transporte coletivo. Neste caso, um pas-sageiro perdeu uma das orelhas na colisão e, em consequên-cia das lesões sofridas, ficou afastado das atividades profissio-nais. Segundo o STJ, no presente caso, caracteriza-se o dano moral e o dano estético, logo o passageiro deve ser indenizado de forma ampla.

A possibilidade de cumulação de danos estéticos com os danos morais não é recente. Decisões nesse sentido já vinham sendo proferidas desde meados dos anos 90 em todas as ins-tâncias. A fundamentação para tal, desde aquela época, é a de que a Constituição Federal confere aos cidadãos o direito à reparação de danos causados na hipótese de violação de ima-gem, porém, não faz qualquer distinção se tal violação deveria ser necessariamente física ou moral.

O julgado a seguir exemplifica a possibilidade de cumu-lação de dano moral e estético (apelação conhecida em 2009, depois da edição da súmula 387 do STJ).

APELAÇÕES CÍVEIS. RESPONSABILIDADE CIVIL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANO MATERIAL, MORAL, ESTÉTICO E LUCROS CESSANTES. ROLO

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COMPACTADOR CIRCULANDO SEM BATEDOR, SEM A DEVIDA SINALIZAÇÃO E FAIXAS REFLEXI-VAS. DÚVIDAS SOBRE A EXISTÊNCIA DE PLACAS ALERTANDO SOBRE AS OBRAS NO MOMENTO DO ACIDENTE. CULPA CARACTERIZADA. DEVER DE INDENIZAR. PLEITO DE MINORAÇÃO DOS DANOS MORAIS E ESTÉTICOS. IMPROCEDENTE. QUANTUM ARBITRADO ADEQUADAMENTE. POS-SIBILIDADE DE CUMULAR OS DANOS MORAIS E ESTÉTICOS. LUCROS CESSANTES. AFASTADOS. AUSÊNCIA DE PROVAS. ART. 333, I, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. RECURSOS CONHECIDOS E IMPROVIDOS. (TJ-SC-Apelação Cível: AC 118817 SC 2006.011881-7).

No caso em tela, a apelante/requerida aduz que é inde-vida e ilegal a cumulação de danos morais com estéticos, pois caracteriza bis in idem. Na decisão, o relator Saul Steil justificou que:

é possível a cumulação dos referidos danos ad-vindos do mesmo fato, desde que tenham fun-damentos distintos como in casu , eis que restou altamente claro que os danos estéticos foram ar-bitrados com a finalidade de compensar a perda de parte da perna e pela limitação do tornozelo e punho e os morais pela dor experimentada in-teriormente, pois o apelado/autor necessitará de força e coragem para viver com as suas atuais li-mitações e deformações.

Com a edição da Súmula 387 pelo STJ, pacificou-se o en-tendimento de que dano moral e dano estético são autônomos, pois cada um atinge um bem distinto, enquanto um é ofensa psíquica, o outro decorre de uma ofensa à integridade física do indivíduo, devendo ser tratados distintamente no caso concreto.

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3.2 Divergências Doutrinárias

Com a edição sumular n. 387 do STJ, que assegura ser passível de cumulação o dano estético com o dano moral, ainda existem controvérsias doutrinárias de diversos juristas que não aceitam tal posicionamento. Entendem, em algumas situações, que a reparação do dano estético é de ordem material, com a realização de cirurgias e tratamentos. Em outras situações, compreendem ser o dano estético mera espécie do dano moral, ensejando, assim, única reparação, que já englobaria o prejuízo psíquico e a saúde.

Assim, a questão do dano estético ser de ordem autôno-ma e cumulada não é unânime na doutrina.

O ilustre doutrinador Antônio Jeová Santos (2003, p. 345) leciona que

O dano estético não é ressarcível por si mesmo, pois se enquadra na lesão moral e patrimonial. Esta questão tem importância prática porque al-guém pode sofrer um menoscabo em sua integri-dade corporal que altere sua normalidade física e, de tal lesão, sobressair um prejuízo econômico e outro de caráter nitidamente moral. A indeniza-ção abarcará duplamente o dano, fazendo jus à pessoa lesionada a ser indenizada por ambos os prejuízos, desde que a lesão estética tenha reper-cussão nas órbitas material e espiritual da vítima.

E continua,

Os danos que desencadeiam a deformação esté-tica, podem produzir dano patrimonial, se impe-direm que a vítima deixe de obter seus ganhos

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normais, que teria, se o dano não tivesse acon-tecido e, também, carreia um dano moral pelos sofrimentos e angústias. Sendo assim, o dano es-tético não se coloca como terceiro gênero, entre o moral e o patrimonial.

No ordenamento jurídico pátrio, ainda há o entendimento que traduz como sendo bis in idem a reparação do dano estético quando cumulada com o dano moral. Nesse sentindo,

Admitir cumulação de dano moral e dano estéti-co, mesmo derivado do mesmo fato, é outorgar bis in idem, pois não existe um terceiro gênero de indenização. Ou alguém sofre dano moral (aí incluído o estético), ou sofre lesão patrimonial, ou ambos, como já afirmado neste trabalho. O que não é de ser admitido é que alguém seja indeniza-do três vezes, pelo mesmo e idêntico fato. Se a le-são estética repercute no espírito, mortificando-o, não se vá concluir que a vítima sofreu três lesões autônomas, passiveis de gerar três indenizações (SANTOS, 2003, p. 348).

O conceituado jurista Yussef Said Cahali (2005 apud SANTOS, 2003, p. 256) também diverge do tema, uma vez que entende que o dano estético, quando analisado na sua forma conceitual, traduz-se em um dano moral que, como tal, deve ser indenizado.

Acerca do dano estético Dias preconiza que

A alteração do aspecto estético se acarreta maior dificuldade no granjeio da subsistência, se tor-nam mais difíceis para a vítima as condições de trabalho, se diminui as suas probabilidades de colocação ou de exercício da atividade a que se dedica, constitui sem nenhuma dúvida um dano

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patrimonial. Não se pode objetar contra a sua re-paração, nem quando, erradamente, se conside-re dano moral, porque nem apresenta dificuldade para avaliação. Deve ser indenizado, pois, como dano patrimonial, o resultado prejudicial da ofen-sa ao aspecto estético, sempre que se traduza em repercussão de ordem material, porque a lesão a sentimento ou a dor psíquica, com repercus-sões patrimoniais, traduzem dano patrimonial. É dessa natureza o dano estético que deforme de-sagradavelmente as feições, de modo que cause repugnância ou ridículo e, portanto, dificuldade à atividade da vítima. Ao lado desse há, porém, o dano moral: este consiste na penosa sensação da ofensa, na humilhação perante terceiros, na dor sofrida, enfim, nos efeitos puramente psíquicos e sensoriais experimentados pela vítima do dano, em consequência deste, seja provocada pela re-cordação do defeito ou de lesão, quando não te-nha deixado resíduos mais concretos, seja pela atitude de repugnância ou de reação a ridículo tomada pelas pessoas que o defrontam. (CAHALI, 2005 apud SANTOS, 2003, p. 256).

Já Lopez (2004), em sua obra “O dano estético”, observa que a base legal para que se admita a cumulação se encontra no art. 5º, incisos V e X da Constituição Federal, como já expos-to, uma vez que a referida norma admite três tipos de dano: o material, o moral e o dano à imagem – esta, considerada como valor ético que inclui o respeito e a aceitação social.

3.3 A quantificação do dano estético

No Brasil, só é parte legítima para pleitear indenização a vítima da ofensa da qual resultou o dano. No entendimento de Teresa Ancona Lopez (2004, p. 138):

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nestes casos não se fala em reparação natural, nem em indenização propriamente dita, não há ressarcimento e sim benefício ou compensação de ordem material, que permite ao lesado obter confortos e distrações, que de algum modo ate-nuam sua dor.

É recomendável que o juiz fixe já no processo de conhe-cimento o valor da indenização, devendo também determinar a produção de provas, como fotografias anteriores ao dano sofri-do, a ruptura de expectativas, analisar o contexto sociocultural e a mudança para pior da aparência da vítima.

Cahali (2005, p. 261) indica fatos e circunstâncias que devem ajudar no convencimento do juiz:

a) Natureza da lesão e a extensão do dano;b) Condições pessoais do ofendido (sexo, idade,

beleza, condição social, situação familiar);c) Condições pessoais do responsável;d) Equidade, cautela e prudência;e) Gravidade da culpa;f) Arbitramento em função da natureza e finali-

dade da indenização;g) Igualdade de tratamento dos sexos

(art.5º,I,CF).

De fato, não existe um método prático e eficiente para a mensuração do dano estético. O juiz deverá usar o critério da ra-zoabilidade para que se cumpra a função indenizatória do dano, não acarretando enriquecimento ilícito da vítima.

A dor moral leva a uma cobertura patrimonial condizente com o sofrimento causado, já o dano estético cobre a ofensa ao natural, na imagem pessoal, o aleijão que acompanha a vítima. Em ambos, não existe uma reparação natural, pois indenizar

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significa eliminar o prejuízo e suas consequências e nos casos in loco tal situação é impossível.

Portanto, não há equivalente da dor ou do aleijão em di-nheiro e sim uma compensação que permita ao lesado obter um lenitivo que atenue sua dor. Nas palavras de Cunha Gonçalves (1980, p. 75):

não é o preço da dor , é o instrumento de alguns confortos e distrações , de lenitivos ao desgosto , de um possível prazer que amorteça a dor... Não é remédio que produza a cura do mal, mas sim um calmante. Não se trata de suprimir o passado, mas sim de melhorar o futuro. O dinheiro tudo isso pode.

A seguir, um julgado onde o valor pré-fixado é considerado exorbitante, gerando enriquecimento ilícito. O autor sofreu perda de parte do ânus e do esfíncter anal, das funções intestinais, queimaduras no dorso do fêmur esquerdo, lesões descamati-vas por todo o corpo e amputação total do membro inferior di-reito. Em um primeiro momento, recebeu uma indenização de cerca de 810 salários mínimos (danos morais e estéticos). Em sede de recurso, teve a decisão reformada e os valores diminuídos para 400 salários a título de dano moral e 200 salários para o dano estético.

AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ESPECIAL. CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL. ACIDENTE COM EXPLOSÃO DE CILINDRO DE OXIGÊNIO. VIOLAÇÃO AO ART. 535. INEXISTÊNCIA. DANO MORAL. DANO ESTÉTICO. REDUÇÃO DO QUANTUM. FIXAÇÃO EM VALOR IRRISÓRIO OU EXORBITANTE. POSSIBILI-DADE. 1. Tendo o Tribunal a quo apreciado, com a devida clareza, toda a matéria relevante para a apreciação e julgamento do recurso, não há falar em violação ao art. 535 II do Código de Proces-

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so Civil. 2. A redução do quantum indenizatório a título de dano moral é medida excepcional e su-jeita a casos específicos em que for constatado abuso ou excesso, tal como verificado no caso. 3. Tendo em vista o valor fixado a título de indeniza-ção por danos morais e estéticos, em razão das particularidades do caso e à luz dos precedentes citados desta Corte Superior, impõe-se o ajuste da indenização aos parâmetros adotados por este Tribunal, de modo a garantir ao lesado justa repa-ração, em face da natureza do ato causador do dano, afastando-se, pois, a possibilidade de en-riquecimento indevido. 4. Agravo Regimental par-cialmente provido (STJ - AgRg no REsp: 922510 RJ 2007/0020486-1, Relator: Ministro HONILDO AMARAL DE MELLO CASTRO (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/AP), Data de Julgamento: 24/11/2009, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publi-cação: DJe 02/02/2010).

Tal situação demonstra a necessidade concreta da cor-reta aplicação pelo judiciário do binômio apregoado pelo direito civil no que tange as indenizações por responsabilidade, qual seja: necessidade daquele que recebe e condições de quem paga, afastando o enriquecimento ilícito e buscando a solução indenizatória mais justa ao litígio.

No entanto, pode-se notar também que há uma discre-pância no quantum indenizatório arbitrado quando se fala em dano moral e dano estético, por serem bens juridicamente tute-lados e autônomos. Em muitos casos, o valor do dano estético é minorado de tal forma em relação ao dano moral que indaga-se se aquele é realmente considerado autônomo para certos tribunais.

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3.4 Consentimento Informado – Proteção ao paciente e instrumento de defesa para o profissional de saúde

O consentimento informado trata-se do assentimento dado pelo paciente, baseado no conhecimento da natureza do procedimento a ser submetido, dos riscos, complicações, bene-fícios e alternativas do tratamento. É a concordância na aceita-ção dos serviços a serem prestados pelo profissional de saúde em troca do pagamento do paciente, estando este informado do que está consentindo (ROBERTO, 2012).

Esse instrumento é um direito do paciente que manifesta de forma expressa a autonomia da sua vontade em querer ou não o tratamento indicado pelo profissional de saúde. Para tan-to, o mesmo deve ser formalizado por escrito, evitando-se assim maiores discussões acerca de sua forma correta. O instrumento deve informar o paciente de eventuais dúvidas acerca das van-tagens e desvantagens do procedimento; existência de riscos do tratamento ou da intervenção; cuidados necessários no pré e pós-operatório. Ainda, deve conter os seguintes elementos: informação clara e objetiva; assegurar-se da compreensão da in-formação pelo paciente; voluntariedade na aceitação do proce-dimento exposto e, finalmente, o consentimento ao tratamento ou intervenção sugerida.

O profissional de saúde deve usar o consentimento in-formado, o qual é um direito do paciente e pode, inclusive, ser um instrumento de defesa de grande valia dos atos praticados pelo profissional. Este instrumento é de grande importância na medida em que demonstra se há ou não responsabilidade civil do profissional, bem como para se apurar a existência dos ele-

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mentos da culpa: imprudência, negligência ou imperícia. Evita-se também o ajuizamento de ações por pacientes que agem de má fé, como por aqueles insatisfeitos com o resultado do tratamento. Através deste, o paciente tem plena consciência do possível insucesso do procedimento a ser realizado, além dos riscos do tratamento ou intervenção.

O jurista Miguel Kfouri Neto (2007, p. 192) afirma, em um debate produzido pela Sociedade Brasileira de Cirurgia Plás-tica, que:

O Consentimento Informado insere-se no âmbito dos direitos humanos fundamentais. Deverá ser documentado e registrado, sob pena de o profis-sional ver-se impossibilitado de provar a efetiva obtenção do assentimento do paciente – fato que também poderá redundar em consequências gra-vosas, no âmbito da responsabilidade civil. Quanto mais complexo ou arriscado o ato, maiores cuida-dos deverão ser adotados, para se documentar a aquiescência do paciente.

E continua Miguel Kfouri Neto: “Com a saúde não se pode transigir. É dever imposto ao profissional de saúde, por imperativo ético-moral, informar o paciente e dele obter adesão livre e espontânea à terapêutica recomendada” (KFOURI NETO, 2007, p. 188).

O profissional não estará isento de possíveis danos que possam vir do tratamento em função de dolo ou culpa (negli-gência, imprudência ou imperícia), mas terá respaldo na con-

cordância prévia do paciente e terá um documento para instruir a defesa caso venha a ser acionado judicialmente.

Pode-se confirmar tal posição no caso descrito abaixo, no

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qual o profissional foi isento de responsabilidade:

AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E ESTÉTICOS. CIRURGIA DE MAMOPLASTIA REDU-TORA – PLÁSTICA PARA REDUÇÃO DOS SEIOS. LAUDO PERICIAL QUE APONTOU QUE O PROFIS-SIONAL AGIU COM ATENÇÃO AOS PRECEITOS DA TÉCNICA MÉDICA. TERMO DE CONSENTIMENTO INFORMADO, ASSINADO PELA EMBARGADA, QUE CONTÉM ORIENTAÇÃO PRÉ-OPERATÓRIA E DIVER-SAS RECOMENDAÇÕES A SEREM OBSERVADAS. IMPRUDÊNCIA, NEGLIGÊNCIA OU IMPERÍCIA POR PARTE DO PROFISSIONAL DE MEDICINA NÃO COMPROVADOS. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. CRITÉRIO DE EQUIDADE. CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, ART. 20, § 4º. RECURSO PROVIDO (Embar-gos Infringentes n. 2010.071452-6, de Lages, rel. Des. Nelson Schaefer Martins).

Em outro caso, não houve assinatura do termo de con-sentimento informado e sim o de um documento padrão que nada esclarece sobre os riscos do procedimento nem do pré e nem do pós-operatório adequado. Neste caso, o profissional foi condenado.

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO DE DANO MATERIAL, MORAL E ESTÉTICO. CIRURGIA EXCLUSIVAMENTE EMBELEZADORA. CORREÇÃO DE PTOSE E AUMENTO DE MAMA. OBRIGAÇÃO DE RESULTADO. PRESUNÇÃO DE CULPA. MÉ-DICO QUE NÃO ESCLARECE À PACIENTE O FATO DE NÃO POSSUIR TÍTULO DE CIRURGIÃO PLÁSTI-CO, ALÉM DE NÃO COMPROVAR TER TOMADO OS CUIDADOS EXIGIDOS TANTO NO PRÉ COMO NO PÓS-OPERATÓRIO. FALTA DO DEVER DE INFOR-MAÇÃO. DOCUMENTO PADRÃO QUE NÃO CONFI-GURA CONSENTIMENTO INFORMADO. PACIENTE COM SÉRIAS DEFORMAÇÕES ESTÉTICAS E POS-

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SÍVEIS COMPLICAÇÕES FUNCIONAIS. DANOS MA-TERIAIS, MORAIS E ESTÉTICOS EVIDENCIADOS. REPARAÇÃO DEVIDA. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. 1. O direito à informação, materializa-do pelo consentimento informado, é uma garantia consagrada pelo Código de Defesa do Consumi-dor, além de um importante instrumento no equilí-brio da relação médico-paciente, conforme se ex-trai do disposto no artigo 6º, inciso III, da referida legislação. Serve, inclusive, para a minoração da vulnerabilidade do paciente que deve possuir to-das as informações possíveis à formação do seu convencimento, sobretudo no que concerne a um procedimento eletivo, de cunho estritamente es-tético (…) (Apelação Cível n. 2008.023951-9, de Lages, rel. Des. Ronei Danielli).

Nota-se que a utilização do consentimento informado é de suma importância no meio médico da atualidade, uma vez que pode impedir a feitura de lides desnecessárias que somente vem a engessar ainda mais o judiciário.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Súmula 387 do STJ pacificou a questão da autonomia jurídica do dano estético, mas não explicitou a sua natureza jurí-dica. O Código Civil de 2002, por sua vez, não regulamentou de forma específica o dano estético, sendo enquadrado, por mui-tos, na parte final do art. 949 do referido diploma legal. Também a Constituição Federal em seu artigo 5º incisos V e X abre a possibilidade de indenização por dano à imagem e sua violação.

Neste ínterim, sabe-se que os danos estéticos podem se originar de responsabilidade contratual, extracontratual ou legal; de obrigações de meio ou de resultado. Também são inúmeras

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as situações que podem ocasioná-lo, sendo que o que importa juridicamente é que a indenização seja total e efetiva.

Outrossim, conclui-se que não existe um método prático e eficiente para a mensuração do dano estético. O juiz deverá usar da razoabilidade e proporcionalidade para que se cumpra a função indenizatória do dano, não acarretando o enriquecimen-to ilícito da vítima, porém, apto a cumprir a função pedagógica da medida.

Oportuno também ressaltar a existência da discrepância no valor arbitrado para o dano estético em relação ao dano mo-ral, o que, como exposto, ocorre em vários tribunais brasileiros. Tal situação carece de maiores indagações acerca do motivo (ou motivos) que geram tal fato.

Ao final do estudo, chega-se à conclusão da importân-cia do consentimento informado nas relações entre consumi-dor e fornecedor dos serviços de saúde (deveres e direitos), pois este é um importante elo de uma relação de confiança entre ambos, além da necessidade de serem promovidos mais estudos a respeito da temática em relação à natureza jurídica do dano estético, o qual se encontra no limbo do ordenamento jurídico pátrio.

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NÚMERO 04 - MAIO 2015ISSN 2238-9180

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0A RESPONSABILIDADE PELA POLUIÇÃO DO MEIO AMBIENTE POR DERRAMAMENTO DE ÓLEO AO MAR E SUA REPARAÇÃOThaís Fernanda Viana Sena FeltrimCátia Rejane Liczbinski Sarreta

LIBERDADE TESTAMENTÁRIA VERSUS SUCESSÃO FORÇADA: ANOTAÇÕES PRELIMINARES SOBRE O DIREITO SUCESSÓRIO BRASILEIROEroulths Cortiano JuniorAndré Luiz Arnt Ramos

REFUGIADOS DO BRASIL AO RIO GRANDE DO SUL: NOVOS DESAFIOS PARA A COMUNIDADE QUE ACOLHEPatricia Grazziotin NoschangRafaela Machado Cardona

ANÁLISE ECONÔMICA DO DIREITO E DECISÃO JUDICIAL: DIÁLOGO ENTRE SUB-JUÍZO DE NECESSIDADE E ARGUMENTO ECONÔMICOCláudio de Oliveira Santos ColnagoVitor Seidel Sarmento

UMA VISÃO CRÍTICA DA TRANSMISSÃO IMOBILIÁRIA PELO REGISTRO A PARTIR DOS COMPROMISSOS POLÍTICOS CONSTITUCIONAIS NO BRASILAlexandre Barbosa da Silva

COISA JULGADA E CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADEAdauto CoutoPaulo Roberto Pegoraro Junior

O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA EM KANT: CAMINHO PARA UMA HERMENÊUTICA DO DEVERKátia R. SalomãoWaldomiro Salles Svolinski Júnior

SUSTENTABILIDADE AMBIENTAL: UM PRINCÍPIO FUNDAMENTAL, UM DIREITO COLETIVO E UM PENSAR CONSCIENTE COM FIO CONDUTOR NA CONSTITUIÇÃO Cleiton Lixieski SellFátima Fagundes Barasuol Hammarströn

INFLUÊNCIA DA TÓPICA NA INTERPRETAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAISCOMO UM SISTEMA ABERTO E FLEXÍVELHewerstton Humenhuk

PRESSUPOSTOS DA PATERNIDADE SOCIOAFETIVAFranciane Dal’Boit

ATIVISMO JUDICIAL: APLICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA PROPORCIONALIDADE E DA RAZOABILIDADE OU CRIAÇÃO JURISDICIONAL DE NOVOS DIREITOSViviane Tereza PereiraCatia Rejane Liczbinski Sarreta

A EFETIVIDADE DAS POLÍTICAS PÚBLICAS NO ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE E O DIREITO À CONVIVÊNCIA FAMILIAR E COMUNITÁRIA Francielle Aparecida LavagnoliJackson Mateus Porfírio

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DANO ESTÉTICO CUMULADO COM DANO MORAL: UMA NOVA PERSPECTIVANívia Cristina Oliva RichardLauren Pons da Silva Possobon