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Revista de Direito das Faculdades Integradas de Jaú ISSN 2318-566X
GUARDA COMPARTILHADA COM PARENTE SOCIOAFETIVO
Elimei Paleari do Amaral Camargo1
Maria Priscila Soares Berro2
RESUMO
A regulamentação da Guarda Compartilhada representa um importante avanço do
Direito de Família, pois já era um modelo acolhido pela doutrina e pela
jurisprudência. Entretanto, deixou o legislador de contemplar explicitamente a
possibilidade de o magistrado atribuir o exercício desta modalidade de guarda a
terceira pessoa – não necessariamente parente consanguíneo do menor. O
fenômeno da parentalidade socioafetiva é realidade nas novas formas de Família
hodiernamente existentes, devendo, portanto, ser considerado quando da decisão
de compartilhamento da guarda nos caso sub judice, tendo em vista o principio do
maior interesse da criança.
PALAVRAS-CHAVE
Direito de Família. Guarda Compartilhada. Parentalidade Socioafetiva.
1 INTRODUÇÃO
A Guarda Compartilhada, regulamentada pela Lei 11.698 de 13 de junho de
2008, é considerada um avanço do Direito de Família na esfera protetiva do menor.
Esta lei atribui a ambos os genitores responsabilidade conjunta, conferindo-lhes, de
1 Professora do departamento de Direito da Universidade Federal de Rondônia – campus Cacoal.
2 Professora do departamento de Direito da Universidade Federal de Rondônia – campus Cacoal.
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forma igualitária, o exercício dos direitos e deveres concernentes à autoridade
parental.
A norma deixou de priorizar a guarda unilateral, tradicionalmente aplicada
pelos nossos tribunais, para priorizar o compartilhamento (CC 1.584 §2º). Foi
imposto ao juiz o dever de informar aos pais sobre o significado da guarda
compartilhada, podendo impô-la, mesmo que não haja consenso e a disputa seja
pela guarda única (DIAS, 2010, p.398).
Como preceitua Magalhães Filho (2008), nos casos de ruptura conjugal, a
guarda dos menores deve ser fixada pelo magistrado, sempre visando os interesses
primaciais dos infantes, assegurando-lhes bem-estar físico e mental, em
consonância com os preceitos constitucionais que desbordam dos textos
infraconstitucionais, da Cártula Civil e do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Diante destas premissas, não raras são as hipóteses em que a guarda
compartilhada se revela a melhor opção para a criança, ainda que, conforme
entendimento de Gonçalves (2010, p. 85), deve-se ressaltar que o compartilhamento
“trata-se, naturalmente, de modelo de guarda que não deve ser imposto como
solução para todos os casos, sendo contraindicado para alguns”.
Atribuir-se a uma terceira pessoa a guarda compartilhada conjuntamente com
um dos genitores, entretanto, ainda é um assunto que merece atenção. Diante da
realidade das novas formas de Família – já constitucionalmente reconhecidas,
vemos surgir a pessoa do “parente socioafetivo” que pode ter ou não ligação
sanguínea com o infante, mas que desempenha papel primordial na sua educação
e desenvolvimento, exercendo sobre ele autoridade parental e dele recebendo amor
e respeito filial. Configura-se, assim, verdadeira posse do estado de filho3.
Partindo deste contexto, este estudo tem como intento analisar a
aplicabilidade do Instituto da Guarda Compartilhada entre um dos genitores e
terceira pessoa, tendo como parâmetro a parentalidadesocioafetiva e o principio do
melhor interesse da criança. Para atingir tal objetivo, recorreu-se à análise da
legislação pátria e da jurisprudência, bem como ao estudo da doutrina civilista, de
artigos científicos e de monografias que abordaram o tema em referência.
3 Para Tânia da Silva Pereira, apud Magalhães Filho (2008, p. 55), “a posse de estado de filho representa um
conjunto de comportamentos e atitudes que refletem uma relação de afeto com uma pessoa, seja ela criança, jovem ou adulta. Para que se caracterize a posse do estado de filho, é necessário que dirijam a ele os mesmos cuidados, carinho e a mesma formação que dariam se pais biológicos fossem”.
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2 GUARDA COMPARTILHADA
De forma específica, a guarda de filhos “é locução indicativa, seja do direito
ou do dever, que compete aos pais ou a um dos cônjuges, de ter em sua companhia
ou de protegê-los, nas diversas circunstancias indicadas na lei civil” (AKEL, 2008, p.
73).
Segundo a lição de Maria Helena Diniz a guarda é:
um conjunto de relações jurídicas existentes entre o genitor e o filho
menor, decorrentes do fato de estar este sob o poder e companhia
daquele e da responsabilidade daquele relativamente a este, quanto
à sua criação, educação e vigilância. A guarda é um poder-dever
exercido no interesse do filho menor de obter boa formação moral,
social e psicológica, saúde mental e preservação de sua estrutura
emocional (2010, p. 289).
Com o fim do vínculo conjugal de casais com filhos ocorre o surgimento da
guarda judicial, em que o magistrado deverá conferir a um dos pais, ou a ambos,
este múnus conforme a regra que melhor interessa para o menor. A doutrina e a
jurisprudência vêm admitindo diversas maneiras de os pais exercerem a guarda dos
filhos, com o intento de minimizar o sofrimento e o sentimento de perda do menor
que tem, com a separação, um dos genitores afastado de sua convivência diária,
podendo dessa forma o magistrado seguir cinco rumos na sua decisão final: optar
pela guarda única, compartilhada, alternada, dividida ou nidação. (FIUZA 2009, p.
998)
Contudo, Mota, apud Dias, pondera que “o maior conhecimento do dinamismo
das relações familiares fez vingar a guarda conjunta ou compartilhada, que assegura
maior aproximação física e imediata dos filhos com ambos os genitores, mesmo
quando cessado o vinculo de conjugalidade” (2009, p. 401).
A origem da guarda compartilhada é inglesa, ocorrida há pouco mais de 20
anos, trasladando-se para a Europa Continental e sendo desenvolvida,
primeiramente, na França, para, em seguida, atravessar o Atlântico, atingindo o
Canadá e Estados Unidos, observando-se, atualmente, sua aplicação na Argentina,
Uruguai e, também, no Brasil (AKEL, 2008, p. 115).
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Embora as discussões pelo legislador brasileiro acerca do instituto da guarda
compartilhada tenham sido longas, a preocupação com a proteção do menor sempre
esteve presente. Os dispositivos sobre a proteção dos filhos na dissolução da
sociedade conjugal estavam no Código Civil de 1916, arts. 325 a 3294. A Lei do
Divórcio revogou esses artigos, trazendo regras sobre a matéria nos arts. 9º a 165. O
Código Civil de 2002 disciplinou a proteção da pessoa dos filhos nessas situações
nos arts. 1.583 a 1.590, recentemente alterado pela Lei 11.698 de 13 de junho de
2008. O que se percebe nitidamente, partindo de um exame destes dispositivos, é
que houve uma inversão do critério norteador da fixação da guarda – da culpa pelo
desenlace conjugal, interesse ou conveniência dos genitores para o melhor interesse
do menor.
4 CAPÍTULO II. DA PROTEÇÃO DA PESSOA DOS FILHOS
Art. 325. No caso de dissolução da sociedade conjugal por desquite amigável, observar-se á o que os cônjuges
acordarem sobre a guarda dos filhos.
Art. 326. Sendo desquite judicial ficarão os filhos menores com o cônjuge inocente.§ 1º Se ambos os conjuges
forem culpados ficarão em poder da mãe os filhos menores, salvo se o juiz verificar que de tal solução possa
advir prejuízo de ordem moral para eles. (Redação dada pela Lei nº 4.121, de 27.8.1962)
§ 2º Verificado que não devem os filhos permanecer em poder da mãe nem do pai, deferirá o juiz a sua guarda a
pessoa notoriamente idônea da família de qualquer dos conjuges ainda que não mantenha relações sociais com o
outro, a que, entretanto, será assegurado o direito de visita. (Redação dada pela Lei nº 4.121, de 27.8.1962)
Art. 327. Havendo motivos graves, poderá o juiz, em qualquer caso, a bem dos filhos, regular por maneira
diferente da estabelecida nos artigos anteriores a situação deles para com o s pais. Parágrafo único. Se todos os
filhos couberem a um só cônjuge, fixará o juiz a contribuição com que, para o sustendo deles, haja de concorrer
o outro.
Art. 328. No caso de anulação do casamento havendo filhos comuns, observar-se-á o disposto nos arts. 326 e
327.
Art. 329. A mãe, que contrai novas núpcias, não perde o direito de ter consigo os filhos, que só lhe poderão ser
retirados, mandando o juiz, provado que ela, ou o padrasto, não os trata convenientemente (arts. 248, I, e 393).
5LEI DO DIVÓRCIO - CAPÍTULO I. SEÇÃO II. Da Proteção da Pessoa dos Filhos: Art 9º - No caso de
dissolução da sociedade conjugal pela separação judicial consensual (art. 4º), observar-se-á o que os cônjuges
acordarem sobre a guarda dos filhos.Art 10 - Na separação judicial fundada no " caput " do art. 5º, os filhos
menores ficarão com o cônjuge que a e não houver dado causa. § 1º - Se pela separação judicial forem
responsáveis ambos os cônjuges; os filhos menores ficarão em poder da mãe, salvo se o juiz verificar que de tal
solução possa adv prejuízo de ordem moral para eles. § 2º - Verificado que não devem os filhos permanecer em
poder da mãe nem do pai, deferirá o juiz a sua guarda a pessoa notoriamente idônea da família de qualquer dos
cônjuges. Art 11 - Quando a separação judicial ocorrer com fundamento no § 1º do art. 5º, os filhos ficarão em
poder do cônjuge em cuja companhia estavam durante o tempo de ruptura da vida em comum. Art 12 - Na
separação judicial fundada no § 2º do art. 5º, o juiz deferirá a entrega dos filhos ao cônjuge que estiver em
condições de assumir, normalmente, a responsabilidade de sua guarda e educação. Art 13 - Se houver motivos
graves, poderá o juiz, em qualquer caso, a bem dos filhos, regular por maneira diferente da estabelecida nos
artigos anteriores a situação deles com os pais. Art 14 - No caso de anulação do casamento, havendo filhos
comuns, observar-se-á o disposto nos arts. 10 e 13. Parágrafo único - Ainda que nenhum dos cônjuges esteja de
boa fé ao contrair o casamento, seus efeitos civis aproveitarão aos filhos comuns. Art 15 - Os pais, em cuja
guarda não estejam os filhos, poderão visitá-los e tê-los em sua companhia, segundo fixar o juiz, bem como
fiscalizar sua manutenção e educação. Art 16 - As disposições relativas à guarda e à prestação de alimentos aos
filhos menores estendem-se aos filhos maiores inválidos.
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A Lei 11.698/2008 definiu o que é guarda unilateral e guarda compartilhada
(CC 1.583, §1º), estabelecendo como regra geral a guarda compartilhada (CC 1.584,
§2º), “decorrendo a sua fixação de requerimento consensual das partes ou de
decisão direta do juiz, ouvido o Promotor de Justiça (cujo compromisso, em tais
demandas, não é com a manutenção do vínculo nupcial, mas com a proteção
integral infanto-juvenil)” (FARIAS; ROSENVALD, 2010, p. 344).
Na guarda compartilhada, a criança tem o referencial de uma casa principal,
na qual vive com um dos genitores, ficando a critério dos pais planejar a convivência
em suas rotina quotidianas e, obviamente, facultando-se as visitas a qualquer
tempo. Defere-se o dever de guarda de fato a ambos os genitores (GONÇALVES,
2010, p. 85).
De forma mais meticulosa, preceitua Maria Helena Diniz:
Guarda Compartilhada ou conjunta, forma de custódia em que, como
ensina Maria Antonieta Motta, os filhos têm uma residência principal,
para garantir sua estabilidade emocional e seu bom desenvolvimento
psíquico e educacional, não comprometendo sua necessidade de
experiência contínuas, no cotidiano, evitando desorganização na
rotina pessoal e escolar, embora não se exclua a possibilidade de
que possam ficar, algumas vezes, também na casa do outro genitor;
mas os pais têm responsabilidade conjunta na tomada das decisões
e igual responsabilidade legal sobre eles. Ambos os genitores têm,
de modo igualitário, a guarda jurídica, apesar de um deles ter a
guarda material. Há presença física da criança e do adolescente no
lar de um dos genitores, tendo o outro o direito de visitá-la
periodicamente, mas a responsabilidade legal sobre o filho e pela
sua educação seria bilateral, ou seja, do pai e da mãe. O poder
familiar seria exercido por ambos, que tomarão conjuntamente as
decisões no dia a dia através de uma boa comunicação,
compreensão e diálogo, conjugando esforços para o bem estar e a
melhor educação da prole. Ambos os genitores terão o direito de
participar, efetiva e decisivamente, na formação do filho. A guarda
conjunta não é, na verdade, guarda, mas o exercício comum do
poder familiar (CC, ART. 1.583, §1º, 2ª parte), acatando o principio
da continuidade das relações familiares e o da convivência familiar
(CF, ART. 227 E Lei n. 8.069/90, art. 19). Ter-se-á, nesta hipótese,
como diz Eduardo Oliveira Leite, o casal parental do
desaparecimento do casal conjugal. O casal parental, que abriu mão
da sociedade matrimonial, mas conscientes do laço de parentesco,
decidirá, então, sobre estudos, educação religiosa, férias, viagens,
lazer, praticas desportivas da prole (2010, p. 290).
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Todavia, não encontra o julgador uma realidade familiar padrão em todos os
casos apresentados, se deparando, invariavelmente, com situações sui generis.
Conforme explica Tatiana Cardoso6:
… existem famílias compostas de formas que a sociedade não estava habituada a observar, deste modo surgem as familias monoparentais que compreendem um adulto (pai ou mãe) a viver com o filho(s), familias recompostas que reagrupam pelo menos um membro do casal que é divorciado com filhos a outro membro também já com filhos de outra relação, surgem também as famílias homossexuais, embora ainda não aceitas de forma legal.
Como colaciona Magalhães Filho, embora o juiz deva primar por preservar a
convivência do menor com os pais biológicos, nem sempre estes “apresentam
melhores condições para ser guardiães de um infante, e isto significa que o judiciário
deve interceder, de modo a conferir a guarda a uma terceira pessoa, a quem
preferencialmente, se aponte a parentalidade socioafetiva”. Nestes casos, continua,
“a decisão do juiz nada mais faz do que trazer ao mundo jurídico uma situação de
fato já existente” (2008, p. 59).
Feita esta breve consideração, mister discorrer sobre a aplicabilidade da
guarda compartilhada face à parentalidade socioafetiva, tendo em vista o princípio
do melhor interesse do menor.
3 PARENTALIDADE SOCIOAFETIVA E O MELHOR INTERESSE DO MENOR
As novas formas de constituição da família descritas na CF/88 trouxeram
consigo uma nova visão do Direito de Família, que passou de discriminador a
igualitário e de autoritário a protetor da afetividade. A pessoa humana e sua
dignidade encontram-se no vértice da pirâmide constitucional.
A afetividade tem um forte elo com o princípio do respeito à dignidade da
pessoa humana, constituindo a base da comunidade familiar, seja esta biológica ou
socioafetiva, e garantindo o pleno desenvolvimento e a realização de todos os seus
membros, em especial da criança e do adolescente (DINIZ, 2010).
6 Artigo: “Novas formas de família da sociedade contemporânea”. Disponível em:
http://www.sociologiaemfoco.com/index.php/blog/117-novas-formas-de-familia-da-sociedade-contemporanea/
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Lôbo, apud Carossi (2010), afirma que “o princípio da afetividade tem
fundamento constitucional”, pois a carta constitucional trás nos artigos 226 e 227 os
elementos essenciais da afetividade que traduzem a evolução social da família,
dentre eles a igualdade entre os filhos e a família monoparental.
Hodiernamente, o afeto caracteriza-se como “o grande continente que recebe
todos os mananciais do Direito de Família, podendo (rectius, devendo) ser o
fundamento jurídico de soluções concretas para os mais variados conflitos de
interesses estabelecidos nessa sede” (FARIAS; ROSENVALD, 2010).
Os artigos 1.583, inciso I, e 1.584, § 5º, ambos com redação dada pela Lei
11.698/2008, ao tratarem da proteção dos filhos, trazem o afeto como condição para
exercer a guarda unilateral ou compartilhada. Depreende-se, então, que “o direito
das famílias instalou uma nova ordem jurídica para a família, atribuindo valor jurídico
ao afeto” (DIAS, 2009).
Guimarães (2003) esclarece que a parentalidade tem pertinência com os
“laços que se constroem e que têm uma representação estruturante na vida psíquica
da criança”. Ressalte-se que o exercício da parentalidade não tem relação com a
consanguinidade ou com o sexo biológico, estando umbilicalmente ligado à
capacidade de acolher e responder às necessidades físicas e emocionais da
criança.
O parágrafo 5º do artigo 1.584 explicita que o juiz, quando verificar que o filho
não deve permanecer sob a guarda dos genitores, deferirá a guarda para quem
melhor atender aos interesses do menor, demonstrando “a preocupação do
legislador em repetir incansavelmente que o julgador deverá ter como norte o
prestígio ao interesse do menor” (EVANGELISTA, 2008).
Caio Mário (2007) ensina que “o princípio do melhor interesse da criança
identifica-se como direito fundamental na Constituição Federal em razão da
ratificação da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança – ONU/89.”
Discorrendo sobre este princípio, Ana Cristina Silveira Guimarães7 argumenta
que, ao decidir sobre questões de guarda, não se deve perder de vista o maior
interesse da criança, pois “esse princípio consolidou-se na cultura e é hoje valor
tutelado pelo Estado”. Lembra, ainda, que “os sistemas jurídicos mais avançados
7 Artigo: “Guarda: um olhar interdisciplinar sobre casosjudiciais complexos” Disponível em:
http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=100.
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são regidos por esse princípio supralegal – o do melhor interesse da criança – que
desde 1989 passou a integrar a Convenção Internacional dos Direitos da Criança”
(GUIMARÃES; GUIMARÃES, 2003).
4 GUARDA COMPARTILHADA ENTRE UM DOS GENITORES E TERCEIRA PESSOA
Adentrando especificamente ao tema do presente trabalho, será analisada a
possibilidade de compartilhamento da guarda entre um dos genitores e terceira
pessoa, bem como entre duas pessoas que não vivam sob o mesmo teto e que
estejam capacitadas para substituição dos pais do menor.
O parágrafo 1º do art. 1.583 do Código Civil limita a substituição dos genitores
por outra pessoa apenas na guarda unilateral:
Compreende-se por guarda unilateral a atribuída a um só dos
genitores ou alguém que o substitua (art. 1.584, § 5º) e, por guarda
compartilhada a responsabilização conjunta e o exercício de direitos
e deveres do pai e da mãe que não vivam sob o mesmo teto,
concernentes ao poder familiar dos filhos comuns (grifo nosso).
Por sua vez, o art. 1.584, no parágrafo 5º, estabelece que “se o juiz verificar
que o filho não deve permanecer sob a guarda do pai ou da mãe, deferirá a guarda à
pessoa que revele compatibilidade com a natureza da medida, considerados, de
preferência, o grau de parentesco e as relações de afinidade e afetividade” (grifo
nosso).
Segundo Alves (2009), o conceito dado pelo art. 1.583, § 1º, supratranscrito,
“restringe o exercício da guarda compartilhada aos pais, vedando a utilização deste
instituto por outras pessoas que eventualmente venham a cuidar dos menores,
vedação esta que se distancia do conceito moderno de família”. O aludido autor
afirma, ainda, que atualmente os vínculos de parentesco são muito menos jurídicos
e muito mais afetivos.
Entretanto, pela ótica da doutrina do melhor interesse da criança, não deve
prosperar a interpretação restritiva, eis que o legislador civilista no art. 1.586 dispôs
que “havendo motivos graves, poderá o juiz, em qualquer caso, a bem dos filhos,
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regular de maneira diferente da estabelecida nos artigos antecedentes a situação
deles para com os pais” (grifo nosso).
Caio Mário (2007) leciona que em matéria de Família, a autoridade judiciária
é investida dos mais amplos poderes, sendo-lhe, então, lícito decidir de maneira que
venha a “prevalecer o interesse dos filhos, sobre quaisquer outras ponderações de
natureza pessoal ou sentimental dos pais”.
Barruffini (2008)8 reconhece que, à primeira vista, a redação do art. 1.583, §
1º, “restringe aos genitores o exercício da guarda compartilhada”, entretanto, o
parágrafo 5º do art. 1584 trás a ressalva que possibilita a concessão da guarda
compartilhada a pessoas distintas dos genitores. Por oportuno, consoante alegação
do referido autor, não deve prevalecer uma interpretação restritiva dos citados
artigos, haja vista que o caput do art. 1.584 menciona: “A guarda, unilateral ou
compartilhada, poderá ser:” (grifo nosso). Devendo, portanto, ser realizada a leitura
conjunta de tais dispositivos.
Carlos Roberto Gonçalves (2010), lecionando acerca da disposição contida
no § 5º do art. 1.584, corrobora:
Não há dúvida de que tal dispositivo se aplica não só à guarda unilateral
como também à compartilhada, malgrado nenhuma referência a esse
respeito tenha sido feita. Observa-se, no entanto, que o parágrafo
supratranscrito deve ser interpretado em conjunto com o caput do artigo,
que assim preceitua: “A guarda, unilateral ou compartilhada, poderá ser:”.
Apesar de tímida, a jurisprudência tem manifestado a possibilidade de
participação de terceiros no compartilhamento da guarda de menores. Cite-se a
ação julgada pela justiça paulista, deferindo o exercício compartilhado da guarda
entre a mãe e o tio materno de um menor9.
Ressalta-se que o caso em questão foi apreciado anteriormente à edição da
lei n. 11.698/2008. É uma decisão de vanguarda e independência do julgador, pois
atribuir-se a uma terceira pessoa a guarda compartilhada conjuntamente
com um dos genitores é uma solução até recentemente não contemplada
comumente por nossos tribunais, até porque esse compartilhamento, em
8 Artigo: “A lei n. 11.698/2008 e a guarda compartilhada: primeiras considerações sobre acertos e
desacertos”,publicado no site Âmbito Jurídico,. Disponível em: http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.phpnlink=revista_artigos_leitura&artigo_id=3042
9 Artigo: “Guarda Compartilhada Entre Mãe e Tio do Menor”, publicado na Revista Brasileira de Direito das
Famílias e Sucessões.
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geral, só era suscitado pelos genitores ou, na melhor das hipóteses, por
progenitores (MAGALHÃES FILHO, 2008).
Os papéis de pai ou de mãe não se restringem aos laços de sangue e sim
aos elos socioafetivos traduzidos na participação no crescimento e desenvolvimento
saudáveis da criança, podendo, perfeitamente, ser desempenhados por uma terceira
pessoa, mesmo que esta não detenha vínculos de parentesco sanguíneo.
Em decisão pioneira da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça foi
deferida a guarda de uma adolescente de forma compartilhada entre a avó e o tio
paternos, confirmando a aplicabilidade desta modalidade de guarda a outrem que
não os pais biológicos, levando-se em consideração o bem-estar da menor:
GUARDA COMPARTILHADA. TIO E AVÓ PATERNOS. Os recorrentes,
avó e tio paternos, ajuizaram ação de guarda e responsabilidade na qual
alegam que estão com a guarda fática da menor desde os quatro meses
de idade, ou seja, há 12 anos, e que seus genitores não têm condições de
criar a filha. Necessitam da regulamentação da guarda da menor para
incluí-la como dependente, daí originando direito a ela, inclusive
assistência médica. Alegam, ainda, que os pais não se opõem ao pedido.
A Turma conheceu e deu provimento ao recurso para conceder a guarda
compartilhada ao tio e à avó, uma vez que não há outra perspectiva para a
criança a não ser continuar recebendo o cuidado dos parentes que sempre
fizeram o melhor para ela. Ademais, existem dois fatores que sopesaram
na decisão: o desejo da própria criança em permanecer com os
recorrentes e a concordância dos genitores com a guarda pretendida,
havendo o reconhecimento de que a menor recebe bons cuidados. STJ,
Quarta Turma, REsp 1.147.138-SP, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior,
julgado em 11/5/2010.
O poder judiciário, nas situações em que os pais biológicos não detenham
condições para desempenhar o papel de guardiões do menor, deve, quando
provocado, conceder a guarda a uma terceira pessoa, preferencialmente àquela que
ostente a parentalidade socioafetiva (MAGALHÃES FILHO, 2008).
Digna de menção a sentença proferida pela Juíza de Direito Maria da Graças
Guerra de Santana Hamilton 10 , da 14ª Vara de Família de Salvador/BA, em
28.03.2003. A respectiva ação versava acerca de pedido de guarda por parte do
avô paterno de um menor, órfão de pai, que vivia a expensas da mãe e do avô
10
Disponível em: http://www.amab.com.br/site_old/sentencas.php?cod=180
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materno. Deferiu-se a guarda compartilhada, conforme trecho da sentença transcrito
a seguir:
Por ser a guarda um direito fracionável em relação àqueles que exercem
algum poder sobre o menor (legal, moral e econômico), nada obsta possa
ser exercido simultaneamente por dois obrigados, aliás, sobre esta matéria
não soa estranho o partilhamento entre ospais, não devendo sê-lo em
relação ao parente provedor. Por esta razão, com base no artigo do ECA,
defiro o pedido para conferir ao avô paterno o múnus de guardião do
menor, em compartilhamento com a genitora deste.
Ezequiel Morais (2009) discorre acerca da teoria da desbiologização do poder
de guarda, argumentando que, em sendo atendido o princípio do melhor interesse
do menor, pessoas alheias ao relacionamento familiar podem criar os filhos de
outrem11. Tal situação é possível quando da existência de vínculo de afetividade
entre o menor e um terceiro - independentemente do laço familiar - especificamente
quanto este detenha capacidade para criar um ambiente propício para o
desenvolvimento daquele.
O autor supramencionado enfatiza que os novos artigos 1.583 e 1.584 do
Código Civil devem ser interpretados extensivamente e sob o enfoque constitucional,
conforme as cláusulas gerais, do contrário, “pela leitura do § 5º do referido art.
1.584, só haverá previsão de guarda do menor para uma pessoa que não seja o seu
genitor. Porém, inexiste referência à modalidade de guarda – se é conjunta ou
compartilhada.” Finaliza aduzindo que “a interpretação restritiva da norma conduz à
conclusão de que não é possível compartilhar a guarda quando esta é deferida a
terceiro (no caso, aos avós).”
A interpretação extensiva é fundamental para desvendar o espírito da lei,
conforme o julgado do Tribunal de Justiça de São Paulo, estabelecendo o
compartilhamento da guarda entre um dos genitores (o pai) e a avó materna:
Apelação nº 5123364600; Relator(a): Marco César. Data de registro: 10/09/2007. “Ação de regularização de guarda de menor impúbere proposta pela avó materna à mãe da criança - Oposição trazida pelo pai - Julgamento de procedência, estabelecendo a guarda compartilhada entre a autora e o opoente - Apelo da ré improvido.”
O deferimento ou não do exercício da guarda em compartilhamento com
terceira pessoa dependerá das circunstâncias de cada caso concreto, quando serão
11
Artigo: “Os avós, a guarda compartilhada e a mens legis”.
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analisadas as condições que atendam ao melhor interesse do menor. Domingues
(2010) esclarece que é imprecisa a noção de interesse do menor, haja vista que
“não é um conceito claro e limitado, e nem deveria ser. É o juiz que, examinando a
situação fática, determina a partir de elementos objetivos e subjetivos qual é o
interesse de determinado menor em determinada situação”.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Depreende-se dos posicionamentos apontados que o conceito legal de
guarda compartilhada (art. 1.583, § 1º) é falho, eis que restringe o exercício desta
modalidade de guarda aos pais, não alcançando outras pessoas que, de fato,
exerçam tal função. Esta restrição distancia-se da moderna concepção de família, na
qual os vínculos socioafetivos, em muitos casos, preponderam sobre os de
parentesco sanguíneo.
Observa-se, contudo, pela jurisprudência colacionada que os critérios
norteadores das decisões judiciais têm sido pautados pelo princípio do melhor
interesse do menor, demonstrando que a interpretação extensiva tem sido
imprescindível para acompanhar os movimentos sociais e aclarar a verdadeira razão
da lei.
Barruffini (2008) aponta que o legislador, ao redigir o dispositivo
supramencionado, deveria ter optado por uma cláusula aberta, e sugere uma
definição legal que iria ao encontro das necessidades sociais contemporâneas:
guarda compartilhada é a responsabilização conjunta e o exercício de
direitos e deveres do pai, da mãe, de um deles e alguém que o substitua
ou de duas ou mais pessoas aptas que os substituam e que não vivam
sob o mesmo teto, nos casos previstos em lei e conforme prudente
avaliação do juiz.
Considerando que nem sempre os pais biológicos possuem as melhores
condições para exercerem a tarefa de guardiões do menor, bem como que em
inúmeras situações torna-se impossível a convivência deste com seus genitores,
deve a guarda conjunta com terceiros ser concedida, tendo como parâmetro o
princípio do melhor interesse do menor.
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Embora ausente legislação explícita a este respeito, a partir da interpretação
extensiva e sistemática das normas acerca da guarda do menor, e sob a ótica da
parentalidadesocioafetiva, torna-se plenamente possível o compartilhamento do
instituto em estudo, pautando-se nos princípios da dignidade da pessoa humana, da
solidariedade e da afetividade. Desta forma, serão trazidos para o mundo jurídico
inúmeros casos de guarda compartilhada de fato e aplicada a finalidade maior do
Capítulo XI -Título I – do Livro IV do Código Civil: a proteção da pessoa dos filhos.
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