revista cultura edc 95

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revista cultura,livros e ebook

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  • Seria outro o som de Jimi Hendrix, Eric

    Clapton e Slash se no fosse por Les Paul

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    | sumrio |

    Kid Vinil no tem medo de assumir

    que bicho-papo da msica brasileira

    64O convite de Dudu Azevedo vale pra

    quem j foi, est indo ou vai pra Bahia

    Mauricio de Sousa convida: faa parte

    desta famlia, que unida e ouriada

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    TAMBM NESTA EDIO

    08 Quando o inverno chegar, o Drops vai estar aqui!

    14 As delcias culturais esto na mesa. Atacar!

    62 O nosso muito obrigado s peripcias da Turma da Mnica

    Nos trs tempos de Daniel Drexler,

    tem Bauman, subtropicalismo e vazio

    50No se iluda: a escravido acabou,

    mas o racismo est longe de ser abolido

    Que Mrio? Aquele que te surpreendeu

    com a multiplicidade andradeana

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    NOSSA CAPACarol Grespan

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    Jairo Bouer pede enxurradas de ideias

    para a harmonia entre os jovens e a web

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    selo FSC aqui

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    Rememorar a emoo, mas receber o que novo. Talvez seja um pouco essa a sensao de quem visitar, a partir do dia 18, a exposio Gerao 80: Ousadia & Armao, na Simes de Assis Galeria de Arte, em Curitiba. Trata-se de uma revisita ao histrico encontro, em 1984, de 123 artistas plsticos no Rio de Janeiro, na mostra intitulada Como vai voc, Gerao 80? Ago-ra, com curadoria de Marcus Lontra, responsvel tambm pela exposio de trs dcadas atrs ao lado de Paulo Roberto Leal e Sandra Mager , a nova mostra apresenta a produo atual fazendo ligaes com obras anteriores de importantes nomes que estiveram em 1984, incluindo a Beatriz Milhazes, Leonilson, Cristina Canale, Daniel Senise, Jorge Guinle e Leda Catunda. (Gustavo Ranieri)

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  • 9Com textos da atriz Malu Mader e do diretor Daniel Filho, alm de uma entrevista com o autor de novelas Euclydes Marinho, Nelson Rodrigues na TV: As melhores histrias de A vida como ela ... rene 30 contos escritos pelo dramaturgo e adaptados para o Fantstico em 1996. Mais do que uma coletnea, a compilao serve como referncia para os fs do autor e para os que querem descobrir como foi transportar seus textos para a telinha. (Clariana Zanutto)

    NADA SOA MAIS FALSO QUE A ALEGRIA

    Agora, cou ainda mais fcil para os gringos desbravarem a Pauliceia Desvairada e conhecer o que de melhor a cidade tem a oferecer. Em Piecing Together So Paulo, os irmos americanos Aron e Gabriel Lesser propem uma forma diferente para turistas conhecerem So Paulo. Dividido em trs partes, culinria, roteiros a p e vida noturna, eles sugerem passeios de graa ou gastando pouco, destrincham a identidade gastronmica paulistana e mostram diversos espaos culturais para o visitante no botar defeito. J o guia So Paulo 10 Walking Tours para aqueles que acreditam que a melhor forma de conhecer uma cidade sair andando por a! (CZ)

    A GENTE SE V EM SP

    A 25 edio do Cine Cear Festival Ibero-americano de cinema exibe, entre os dias 18 e 24 deste ms, nove longas-metragens que concorrem ao Trofu Mucuripe em diversas categorias. Destaques para O clube, do chileno Pablo Larran, indito no pas e vencedor do Urso de Prata no Festival de Berlim, Real beleza, de Jorge Furtado, e Cordilheiras no mar: A fria do fogo brbaro, de Geneton Moraes Neto. H ainda 16 produes na Mostra compe-titiva de curtas e mais 13 na Mostra ohar do Cear, que integram o festival. (Lucas Rolfsen)

    ENTRE SEM BATER

    Os fs de Muse j tm mais um motivo para comemo-rar: alm de a banda ter confirmado shows no pas, o novo lbum do grupo britnico ser lanado nes-te ms. Intitulado Drones, o disco narra a histria de um ser humano vazio de sentimentos que doutrina-do pelo sistema a tornar-se um drone humano, uma crtica feroz a nossa sociedade. (Renata Vomero)

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    Incessante e incansvel parece ser a obstinao do ser humano procura de dens perdi-dos, shangri-las e parasos em que reinam harmonia e fartura. Assim, na Patagnia argentina, lendas antigas do conta de que Jauja uma terra mitolgica de abundncia e felicidade. As expedies, porm, perdiam-se no caminho, deixando rastros de mistrio e crescente cobia.

    Em seu embriagante e belssimo Jauja, premiado pela crtica da mostra Un Cer-tain Regard, no festival de Cannes de 2014, o argentino Lisandro Alonso nos lana a re-corrente pergunta: O que faz com que a vida funcione e v adiante?. Por meio da saga do capito dinamarqus Gunnar Dinesen (o sempre instigante Viggo Mortensen), ele mesmo um expedicionrio em busca de riquezas, cuja bela filha desaparece no meio da noite. O elemento feminino, potico e ertico, objeto do desejo dos homens da re-gio, entre ndios progressivamente dizimados e soldados, torna-se o mote de sua busca.

    Transitando entre elipses e eloquentes silncios, em que paira a violncia ora la-tente ora manifesta, Alonso desafia tempos cronolgicos, entre o sculo 19 e os dias de hoje, e remete a uma narrativa em que o tempo interior mestre condutor, dire-cionando-se para um desfecho que abre caminhos para novas utopias. (Tuna Dwek)

    UTOPIAS RECALCITRANTES

    DE VOLTA AO ESCAMBO

    Que atire a primeira pedra aquele que no abre um sorriso cheio de dentes quando pinta na telinha um de seus personagens preferidos da Disney. Se voc daqueles que sempre quis peg-los, toc-los ou t-los para si, sua hora chegou! Eles acompanham as gurinhas autocolantes do novo lbum Disney Gogos. De princesas e heris a bru-xas e viles, passando pelos monstrinhos mais queridos, a parte boa de colecionar que, se voc der a sorte de pegar duas Boos, por exemplo, vai poder trocar pelo Jack Skellington do seu colega de trabalho ou voc acha que o nico que est colocan-do a mo nos gogos? (Camila Azenha)

    IMAGINRIO ETERNO

    Durante mais de meio sculo, a pintora brasileira Niobe

    Xand (1915-2010) caminhou por onde sua arte a mandou

    seguir. Autoditada e vanguardista, ela experenciou diver-

    sas tendncias, abastecendo sua obra por meio de um

    estilo nico e de um imaginrio fantasioso. Para celebrar

    o seu centenrio, pode ser visitada at dia 27 prximo

    a mostra A surpresa das coisas sempre novas, na Ga-

    leria Marcelo Guarnieri, em So Paulo. Trata-se de uma

    retrospectiva da produo de Niobe, enriquecida com o

    lanamento de um livro homnimo de colecionador. (GR) FOTO

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    DIVERTIDAMENTE BRILHANTEJ se perguntou o que acontece em nossa mente? Agora, vai car mais fcil de imaginar com Divertida Mente, nova animao da Pixar. Nela conhecemos o centro de controle do crebro de Riley, uma garota de 11 anos. Ali esto presentes a Alegria, o Medo, a Raiva, o Nojinho e a Tristeza, que se revezam no con-trole emocional da jovenzinha, mas tudo muda quando, aps uma grande virada na vida da pequena, a Tristeza e a Alegria vo parar nas profundezas da mente da menina e, a, o comando ca com as outras emoes. Imagine a confuso! (RV)

    Consequncia de sua ltima turn, Por elas, quan-do homenageou intrpretes femininas que gravaram canes suas, o carioca Pedro Lus lana o CD e DVD Aposto. No novo show, o repertrio traz m-sicas suas consagradas na voz de outras pessoas, alm de algumas inditas. O msico conversou com a Revista da Cultura sobre o trabalho. (LR)

    O que preciso para um compositor acreditar naquilo que ele escreve? Acho que um exerc-cio. Virei prossional h praticamente 30 anos e es-tar com pessoas como Fernanda [Abreu] e [grupos como] O Rappa e Cidade Negra [entre outros] te d uma certeza.

    E de que maneira voc enxerga a construo de sua identidade nestes anos de carreira? Estou construindo minha identidade e vou estar sempre construindo. Agora, acho que as pessoas j identi-cam algumas coisas, isso bom para o autor.

    ALL

    IN!

    Nate Ruess, a inconfundvel voz do trio fun., re-

    solveu colocar a banda em stand by para lanar

    seu primeiro lbum solo, Grand Romantic. Com

    melodias marcantes, o som do cantor e com-

    positor americano est mais livre do que com o

    Fun. e as letras apresentam temas profundos,

    como a morte e a necessidade de lidar com o

    seu lado mais obscuro. (CZ)

    PRIMEIRO EU!

    Em 2015, a Virada Cultural de So Paulo acontecer entre os dias 20 e 21, agregando sua programao os eventos do Dia da Msica, que ocorrero, no entanto, em So Paulo e no Rio de Janeiro, trazendo bandas e msicos inscritos e que sero selecionados pelo pblico. O idealizador do projeto Gustavo Steinberg, que destaca: A proposta dar espao produo autoral. Por isso, estamos trabalhando vrios nveis, como se-leo de curadores, seleo de locais e seleo do pblico. Alm de dar espao s bandas brasileiras, a iniciativa tambm faz um panorama interessante do cenrio musical nacional e ajuda a divulgar este contedo ao pblico, tambm por meio do Circuito Off. Integrado Virada, ainda, acontecer o 19 Cul-tura Inglesa Festival, que rola at o dia 21. Esto conrmadas as apresentaes de Johnny Marr e Gaby Amarantos, alm de bate-papo com o maquiador do lme Harry Potter e outras pre-miadas atraes. (RV)

    DE OLHO NA VIRADA!

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    SOB O MESMO CU, de Cameron Crowe

    Diretor de clssicos como Quase famosos e Jerry Maguire, Cameron Crowe nos transporta ao Hava para contar a histria de Brian Gilcrest, um militar interpretado por Bradley Cooper, que passa por uma fase ruim e recebe a chance de retomar sua carreira com a misso de supervisionar o lanamento de um satlite. Em sua terra natal, ele se reaproxima de um antigo amor (Rachel McAdams), ao mesmo tempo que se apaixona por uma piloto da Fora Area (Emma Stone). De forma sutil e generosa, Crowe nos instiga a lidar com os sentimentos inesperados das personagens e coloca, como sempre, aquele sorriso de satisfao em nossos rostos. E a trilha sonora de matar, como em todos os seus filmes! (CZ)

    DIREITOS HUMANOS NO BANQUETE DOS MENDIGOS,

    de vrios artistasRegistro independente, cru e original de um importante perodo histrico brasileiro. Jards Macal e Xico Chaves produziram na raa e, juntando gente boa do calibre de

    Paulinho da Viola, Jorge Mautner, Milton Nascimento, Raul Seixas, Chico Buarque e outros tantos, a noite de 10 de dezembro de 1973 no Museu de Arte Moderna

    do Rio de Janeiro (MAM) teve at leitura dos artigos da Declarao Universal dos Direitos Humanos pelo poeta

    Ivan Junqueira. A iniciativa artstica, lanada em trs discos, foi e continuar sendo fundamental. (LR)

    CURIOSIDADE MRBIDA A CINCIA E A VIDA SECRETA DOS CADVERES,de Mary Roach

    O ttulo talvez assuste anal, por que tanto medo da morte, n? , mas revela-se uma possibilidade para aguar nossos sentidos e conhecer questes delicadas de maneira descontrada e bem-humorada, passando tambm pela histria e pelo

    desenvolvimento tcnico da anatomia humana. Uma escrita que rene extenso trabalho de pesquisa para informar diversas questes da cincia. (Lucas Rolfsen)

    Quando o paciente j estava l, o cirurgio podia convidar um aluno a praticar uma apendicectomia. No importava que o paciente no tivesse apendicite.

    THE 59 SOUND, de The Gaslight Anthem

    Donos de um rock bem meldico e com uma forte pegada punk de arrepiar, os americanos do The Gaslight Anthem tm seu disco mais conhecido lanado por aqui pela primeira vez. Gravado em 2008, o segundo lbum da banda reete muito bem a essncia do quarteto, que concilia sua paixo por cones do rock clssico como Bruce Springsteen, Otis Redding e Tom Petty, com suas razes do punk de New Jersey, criando um som que transcende gneros e esteretipos. colocar para ouvir e no largar mais! (CZ)

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    | entrevista | mauricio de sousa

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    P O R F R A N C I S C O U C H A

    Correr, jogar bola, atirar pedras, pe-gar nos chifres do boi, brincar na rua sem hora para voltar. Mau-ricio de Sousa viveu uma infn-cia intensa e re-pleta de liberdade em uma rua sem

    asfalto onde morava boa parte de sua famlia, en-tre avs, tios e primos. Isso certamente explica a grande empatia que o desenhista, criador de tantas personagens de sucesso, tem com as crianas. Ao enfatizar profundos valores familiares, suas hist-rias so o retrato do perodo mais feliz da vida de cada um de ns. Eu soube que havia preconcei-to no mundo depois que cresci. Na sua infncia, Mauricio construiu a base de sua vida adulta. Ele via cinema diariamente, lia quadrinhos, cantava. Depois cresceu, foi trabalhar em jornal, casou-se escondido da famlia. Uma verdadeira revoluo. Hoje, sua famlia ampliou muito. E ela no se res-tringe aos laos sanguneos. Em seu estdio de criao, muitos prossionais o acompanham h anos e renovam a cumplicidade do seu dia a dia.

    Prestes a completar 80 anos, o pai da Mnica e do Cebolinha nos revela, nesta conversa, algumas de suas memrias da infncia e juventude, e con-ta como superou momentos de grande fora dra-mtica como a morte de sua segunda mulher. Ele diz que no se sente velho: Estou certinho, com as mesmas sensaes e emoes, sob todos os aspectos. Fisicamente e espiritualmente, tenho os mesmos anseios de sempre. Com a palavra, Mau-ricio de Sousa.

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  • Voc uma pessoa que acha importante os valores familiares, inclusive na sua empresa, e norteou seu trabalho estimulando a criatividade infantil. O que faz voc sentir mais saudades da sua infncia? A infncia! A estiquei o quanto pude! Mas... lgico, era a li-ber-da-de! Quando voc nasce em uma famlia mais liberal, mais aberta para as peraltices que criana gosta de fazer, voc est no paraso! A melhor fase da vida essa: voc fazer o que gosta e quer, com a cumplicidade dos pais.

    Ento, voc viveu no paraso... De todo mundo que conheo, eu tive uma das melhores infncias que j ouvi falar! Alm disso, vou juntar alguns pontos: eu morava em uma rua em Mogi das Cruzes [no interior de So Paulo] chamada Ipiranga. Nessa rua, ainda de terra, era normal a boiada passar por l e o berrante vinha avisando para todo mundo sair da frente. A, eu pulava a janela da casa da minha v. Era uma casa com parede de taipa e eu e alguns amiguinhos cvamos na janela pegando os chifres dos bois quando eles passavam... A gente fazia cada coisa! Se mi-nha me soubesse... (risos) Mas a gente tinha liberdade! E nessa Rua Ipiranga, em dois quarteires, morava toda a minha famlia: duas avs, tios, primos... E em um tempo em que no se trancava a porta, no se marcava hora para ir para casa. Eu e a molecada brincvamos na rua, jogando bolinha, empinando papagaio. E dava fome, dava vontade de comer alguma coisa, a gente entra-va na primeira porta que encontrava e lava bia, caf, doce... E comidas exticas. Por qu? Ali moravam tambm imigrantes do mundo inteiro! L eu comi as primeiras comidas japonesas, srias, rabes, espanholas... E era entrar, comer, bater um papo e sair pra brincar de novo. No havia grade, no havia porta fe-chada, no havia proibio, no havia preconceito. A crianada se tratava de igual para igual! Eu soube que havia preconceito no mundo depois que cresci! Ali, no havia.

    | entrevista | mauricio de sousa

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    por isso que voc tem tanto esse sentido de famlia, inclusi-ve na sua empresa? Sim. uma grande famlia. E, dos meus dez lhos, seis trabalham aqui, e o stimo est se preparando. E tem tambm os lhos dos funcionrios. Os agregados... E depois casam aqui tambm, e assim vai. Alm disso, extrapolo! Quando mudei para [o bairro paulistano de] Pinheiros, e meus lhos caram em dvida de onde eles iam morar, sugeri que viessem morar aqui por perto. Facilitava! Hoje, nove deles moram em volta da minha casa. D para sair e ir almoar em uma casa, jantar na outra. Agora, fao isso com uma chcara. No ano de 1981, comprei uma chacrinha em Caapava... 3.500 metros quadrados. Na poca, tinha poucas crianas, mas rapidamente o lugar comeou a car pequeno para levar a crianada l. Da, comprei uma casinha ao lado para au-mentar. Ento, comeou a ir mais gente e comprei outra casinha, e outra e outra. No outro dia, chegou um cara e me mostrou o mor-ro prximo com uma vista muito bonita. E o cara me perguntou: Mauricio, quer comprar esse terreno, esse morro?. Eu respondi: No tenho dinheiro.... Ento, ele me disse que ia lotear o morro em terrenos pequenos. Ah! Isso ia estragar a minha vista! Fiz uma oferta: Eu compro, mas s posso pagar dentro das minhas pos-sibilidades, a perder de vista!. Ele aceitou e fechamos negcio. A chcara agora tem quase 20 alqueires!

    Ento, cabe todo mundo e mais um pouco! Hoje, quando meus lhos [dez, no total] vo, eles levam 60, 70 amigos. Tive que mon-tar quase um servio de hotelaria para receber esse pessoal todo e a famlia, logicamente! No rveillon estouro fogos de artifcio que eu compro baratinho de um pessoal em Minas Gerais, que tem a mesma frmula dos que so usados na Disney. Eu solto fogos iguais ao rveillon da Disney. (risos) Lgico, isso acabou virando uma atrao turstica para a cidade. Como zona rural, o pessoal da cidade vem, dorme nas casas que tem por ali ou faz tendas pra ver os fogos de artifcio. E a famlia se rene. A Marina [uma das lhas], por exemplo, pega o nibus e leva a turma para l. Virou um clubo. No tem luxo! No quero que tenha luxo. Se quiser, sobe na mesa e dana. Mas tudo tem que ser resistente, legal, ba-cana e, de alguma maneira, que d saudade para essa turma, de sua infncia, como eu tenho da minha. Agora est na hora de meus bisnetos crescerem l, brincarem, aprenderem a andar! Isso me alimenta de tudo o que preciso aqui no trabalho!

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    Te inspira tambm? No, no inspira. Me alimenta de sensaes e coisas que preciso na hora de criar. Nunca quis ter a preocupao de car olhando as coisas para me inspirar, porque seno vou -car preso a isso, escravo disso. Quero sentir a coisa naturalmente, como nos velhos tempos. No vou lembrar do que aconteceu... Simplesmente vem! s vezes parecido com o que aconteceu, s vezes no, mas me abre a possibilidade de criao.

    Realmente, voc reproduz nas histrias da Turma da Mnica um ambiente familiar que lembra a sua infncia... Porque vivi isso. E com isso eu pego o lado livre do leitor, de como ele gostaria de viver.

    Quais eram os quadrinhos que voc lia na sua infncia? Sei que voc gostava muito de banca de revistas. O que que o atraa ne-las? O trem chegava na cidade e trazia os pacotes de revistas. E eu cava esperando o trem chegar! Todo nal de ano, meu pai com-prava o Almanaque do Globo Juvenil, que vinha em um envelopo pardo! Nossa, eu levava para casa adorando! Meu pai fazia melhor ainda: ele me levava para comprar almanaque e gibis e depois me levava ao cinema ou, s vezes, ao teatro. Naquela poca, no cine-ma tambm havia sesses de teatro. Me lembro tambm que meu pai me levava toda noite para assistir a algum lme. Toda noite.

    Que tipo de lme? Tudo o que voc imaginar... Mas nada proibido. Peguei a Nouvelle Vague, o comeo da Gina Lollobrigida, da So-phia Loren... Havia algumas cenas e meu pai era muito liberal e me dizia: Ah, lho, depois voc vai entender (risos). Com isso, eu tive um curso de cinema desde rapazinho que pouca gente teve. Eu via as coisas acontecendo. Lanamento do CinemaScope, das sries... Havia dois cinemas em Mogi das Cruzes. Depois, papai veio para So Paulo. Ele trabalhava na Rdio Cruzeiro do Sul, que cava na Praa do Patriarca e era muito poderosa, a Globo da poca, na d-cada de 1940. E ele tinha um bom cargo. E s vezes eu ia cantar l...

    Cantar? Como assim? ... Primeiro, participando de programas de calouros. Mas depois o pessoal achou que eu cantava bem e cantava mesmo. Minha me cismou que eu queria ser cantor. Eu no gostava muito. Mas ela obrigava, eu cantava e acontecia! Ela me levou em todos os programas de calouros de So Paulo daquele tempo e eu ganhava em todos. Se fosse no e Voice, hoje... Eu cava to nervoso que batia um joelho no outro e doa depois. Machucava o joelho de tanto bater.

    Que idade voc tinha? 11, 12...

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    Nessa poca voc morava em So Paulo? Onde? Sim, no Tatuap. Depois, voltei para Mogi... Eu vinha de bonde para o Centro. Antes eu morei na Rua Maria Paula e estudava no Externato So Francisco. Ali vivi um monte de aventuras! Era muito moleque!

    Que tipo de aventuras voc viveu nessa rua? Estavam asfal-tando a rua e eu saa para brincar com a molecada e a gente invadia as casas abandonadas. Formvamos grupos para jogar pedras uns contra os outros... Tudo o que moleque pode fazer e a me no v, a gente fazia. Teve uma coisa que aconteceu que muito estranha at hoje! Nessa rua tem a Federao Es-prita. Um pouquinho pra l, perto do Palcio Anchieta de hoje, tinha uma casa velha que eles iam demolir. Tamparam com tbuas as janelas, tudo fechado. Mas a gente gostava de ir l jogar pedra e quebrar vidraa, essas coisas. Ali aconte-cia uma coisa estranha, porque a gente chegava perto dela e comeava a chover pedras que vinham da casa na nossa dire-o. Pedras voando! E a gente olhava e ficava se perguntando: Como que algum consegue jogar pedras com as janelas fechadas? Ah, deve ter uma molecada a querendo pegar a gente!. Ento, a gente pegava tambm um monte de pedras e jogava de volta. As pedras que vinham da casa batiam no asfalto... Zim! Zum!...

    Se pegasse em algum ia machucar muito! Nenhuma pedra pegava em ningum! No era para pegar, provavelmente... A, contamos para minha me e ela falou: Isso coisa de assom-brao!. E no dia seguinte a gente ia l de novo jogar pedras. A gente ficou brigando com os fantasmas por semanas! As pe-dras vinham em nossa direo e no batiam em ningum! De-via ser um desses fenmenos estranhos do mundo paranormal. E, para ns, aquilo era normal... A gente no tinha medo. Pra que explicar? (risos)

    Voc se casou com a sua primeira mulher, Marilene, com 23 anos, mas foi escondido. Como foi isso? Minha me era contra. Todo mundo era contra... Era normal ser contra o ca-samento dos primognitos de qualquer famlia... (risos). Se eu avisasse, era capaz de eles irem ao cartrio e impedir! A, eu armei tudo, combinei com a Marilene, me da Mnica, e deci-dimos casar. Sa da reportagem da Folha, onde eu trabalhava, e combinei com um fotgrafo, o Valentim, para me acompa-nhar para fotografar um casamento. E ele perguntou: Quem vai casar?. Respondi: Voc vai ver l. Quando ele soube que eu era o noivo, me chamou de maluco. (risos) E a famlia?, ele perguntou. Vou convidar para o religioso, respondi. Aca-bou o casamento, me despedi da Marilene, ela voltou pra casa e eu voltei para o trabalho! Depois, ela foi para Bauru, onde morava a famlia dela, para preparar o casamento religioso. Mas, a, eu tive que ir l pedir a mo dela em casamento...

    NUNCA QUIS TER A PREOCUPAO DE FICAR OLHANDO AS COISAS PARA ME INSPIRAR, PORQUE SENO VOU FICAR

    PRESO A ISSO, ESCRAVO DISSO. QUERO SENTIR A COISA NATURALMENTE,

    COMO NOS VELHOS TEMPOS.

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    Voc s pediu a mo dela depois que vocs se casaram? Sim... Ainda bem que concordaram! (risos)

    E a sua me? Como ela recebeu a notcia? No jornal, tinha um esquema de fazer uma vaquinha para quem se casava, e eu re-cebi uma grana muito especial que deu para viajar, ir a Poos de Caldas. A vaquinha dos meus colegas de jornal deu pra fazer tudo o que a gente queria. Graas a deus, porque, seno, no dava para ir do outro lado da rua! Mas a, quando voltamos, teve a parte mais difcil: minha mulher morar com a sogra, traz-la para casa, pois minha me no estava aceitando naturalmente. Durante algum tempo, deu para morar junto. Eu ia apaziguando as coisas... No tinha briga; tinha certa animosidade, era normal. Chega uma moa, casa escondido e leva o lho? Lgico que mi-nha me reagiu... Mas no casamento foi tudo tranquilo. As coisas se resolveram. Em seguida, minha mulher cou grvida e l veio a Maringela, minha primeira lha, depois a Mnica, a Magali, depois veio todo mundo!

    A comearam a surgir as personagens... Eu nunca contei pra ningum esse negcio de que casei escondido! No um bom exemplo para a crianada! (risos) Mas o objetivo no era s casar. Era me responsabilizar por um sentimento, por um na-moro, noivado...

    ESTOU CERTINHO COM AS MESMAS SENSAES E EMOES, SOB TODOS OS ASPECTOS. FISICAMENTE E ESPIRITUALMENTE, TENHO OS MESMOS ANSEIOS DE SEMPRE. NO ME SINTO VELHO, MAS TAMBM NO POSSO ME SENTIR MOCINHO. ACHO QUE ESTOU MADURO.

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    | entrevista | mauricio de sousa

  • 23r e v i s t a d a c u l t u r a . c o m . b r

    Em uma entrevista quando o Ziraldo fez 80 anos, ele me falou que nunca se sentiu velho, idoso, mas nalmente achou que chegara idade de se sentir ancio, no sentido de sbio. Voc compartilha dessa ideia? Como chegar aos 80 anos? Primeiro, voc no v o tempo passar. Voc no sente o tempo, nem com 60, nem 70. Acho que a idade marcante entre 30 e 40. Depois, voc no sente mais nada. O bom estar com sade e vivendo a vida do jeito que voc consegue. Alm disso, estou sempre com a minha cabea do mesmo jeito, com o mesmo entendimento das coisas! E, quando eu era criana, tinha esse mesmo entendimen-to! No me lembro de no ter entendido alguma coisa por causa da idade, ou de ter entendido melhor. A cabea da gente est funcionando viva e dinmica a toda hora e reagindo ao que est acontecendo. As reaes ao que est acontecendo que me ensi-nam alguns truques de sobrevivncia. No me sinto mais sbio, mais inteligente ou menos. Me sinto como sempre me senti. L-gico que, com a idade, voc percebe que podia ser mais gil, em lembranas, no registro de seu acervo de vida. Estou certinho com as mesmas sensaes e emoes, sob todos os aspectos. Fisi-camente e espiritualmente, tenho os mesmos anseios de sempre. No me sinto velho, mas tambm no posso me sentir mocinho. Acho que estou maduro.

    Voc j construiu seu sonho e realizado prossionalmente. O que mais te emociona agora? Quando a gente trabalha, como eu, com todo um aparato, uma equipe to grande, as emoes que sobram so aquelas vividas pelo pessoal que, de alguma manei-ra, est sob minha responsabilidade, porque trabalha conosco, seguindo o que ns fazemos, sugerindo. Ento, comeo a vibrar com a emoo e as conquistas dos outros. As minhas j foram su-cientes para mim; alis, mais at do que eu imaginava, do que eu queria na vida. As vitrias da minha rapaziada, dos lhos deles, da turma toda, so as grandes vitrias minhas. c

    Como vocs se conheceram? Ela trabalhava em uma empresa que tirava fotos de crianas. Antigamente, iam de casa em casa, tira-vam a foto e faziam os lbuns. Da, uma colega dela sequestrou uma criana. Gostou, queria car com ela e levou pra casa! Ela no estava regulando muito bem. Da, deu aquela confuso, a polcia chegou logo, as colegas dela foram chamadas, e ali eu conheci a Marilene. Uma moa bonita, elegante, parecia a Kim Novak, e eu pensei: Nossa, que moa bonita! Acho que eu vou casar com ela!. Ento, eu cheguei redao do jornal, naquela noite, depois desse evento todo, e fui pulando de mesa em mesa, igual a bailarino de lme, gritando e cantando encontrei a minha futura mulher hoje, vou casar com ela!. Nem sabia se eu ia v-la de novo!

    E como vocs se viram de novo? Ela deixou na delegacia, nos au-tos, o endereo dela, e eu a procurei. Passei uma conversa, cha-mei para sair, tomar um ch, caf, e terminamos namorando. Nos aproximamos e resolvemos nos casar.

    J a sua segunda mulher, Vera Lcia, morreu em um acidente de carro quando voc estava na Europa. Voc conta essa histria em uma crnica muito sensvel. Mas como foi o dia seguinte? Como isso te abalou? Eu no tive muito tempo de car sentindo porque ela me deixou com duas lhas de um ano de idade e eu tinha que pensar mais nisso do que na ausncia. Alm disso, eu tinha me desquitado da minha primeira mulher e quei com a guarda das trs meninas tambm. Fiquei vivo, sozinho e cuidan-do de cinco crianas! Ento, pedi socorro para meu pai e minha me, e eles vieram morar comigo.

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  • QUANTOS MRIOS CABEM DENTRO DE MRIO DE ANDRADE?

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  • P O R C E L S O S A B A D I N I L U S T R A O Z O T A V I O

    ESCRITOR, JORNALISTA, CRTICO DE ARTE, LDER DO MOVIMENTO MODERNISTA, NOME DE BIBLIOTECA, NOTA DE 500 MIL CRUZEIROS E AGORA HOMENAGEADO DA FLIP 2015, MRIO DE ANDRADE CONTINUA INSTIGANDO O IMAGINRIO CULTURAL BRASILEIRO COM SUAS MLTIPLAS FACETAS, QUE NO PARAM DE SER DESCOBERTAS

    25rev is tadacul tura.com.br

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    | literatura |

    A pauta parecia simples: escrever uma matria sobre o grande home-nageado da Festa Li-terria Internacional de Paraty (Flip) 2015, Mrio de Andrade. A iluso da facilidade rapidamente desapa-receria: que Mrio de Andrade? Qual de-les? Quanto mais se mergulha no universo marioandradeano, mais se depara com um incrvel leque de

    talentos que permeiam esta personalidade to marcante. A princpio, pensamos no Mrio de Andrade escritor, poe-

    ta e romancista. Mas h tambm o Mrio musiclogo, historia-dor e folclorista. O Mrio agitador cultural, o crtico de arte e fotgrafo. Mrio de Andrade virou biblioteca e at nota de 500 mil cruzeiros. um cone que no cabe em uma nica matria.

    Falando apenas do Mrio escritor, os livros publicados somam mais de 30. Desde a estreia literria em H uma gota de sangue em cada poema (1917), passando por clssicos como Pauliceia desvairada (1922), A escrava que no Isaura (1925), Amar verbo intransitivo (1927) e o mpar Macunama (1928), que cunha para o Brasil o heri sem nenhum carter.

    H tambm o Mrio jornalista, que escreveu na Revista de Antropofagia e publicou vrios artigos, crticas e ensaios sobre histria, literatura e msica brasileiras na imprensa da poca, como Revista do Brasil, Terra Roxa e Outras Terras, Dirio Nacional de So Paulo e Folha de S.Paulo.

    J o msico era um Mrio que no tocava. E por um motivo trgico. Considerado um exmio pianista ainda na infncia, o paulistano que nasceu em 9 de outubro de 1883 era aluno do Conservatrio Dramtico e Musical de So Paulo desde a adolescncia. Porm, em 1913, seu ir-mo Renato, de 14 anos, morreu ao tomar um forte gol-pe na cabea durante uma simples partida de futebol. O episdio chocou Mrio, que passou a ser incomodado por um incurvel tremor nas mos que o levou a abandonar o piano. Dedicou-se, porm, aos estudos de teoria musical, tornando-se grande professor, terico e ensasta. Entre seus

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    27rev is tadacul tura.com.br

    livros esto Ensaios sobre a msica brasileira (1928), Compndio de histria da msica (de 1929 e relanado, em 1942, como Pe-quena histria da msica bra-sileira), Modinhas imperiais (1930) e Msica do Brasil (1941).

    Mas, quando se fala em Mrio de Andrade, igual-mente vem mente a ima-gem do lder do movimento modernista. Inquieto, efusivo e com uma capacidade pro-dutiva e criativa que parecia inesgotvel, Mrio se envolvia de corpo e alma com toda e qualquer atividade relacionada s novas ideias europeias que re-pudiavam as antigas escolas clssi-cas. Rapidamente fez amizade com outros jovens artistas e escritores sim-patizantes do Modernismo e, ao lado de Oswald de Andrade, Menotti del Picchia, Tarsila do Amaral e Anita Malfatti, comps o Grupo dos Cinco, o embrio que desenca-deou a histrica Semana de Arte Moderna de 1922.

    Rejeitando o rtulo simplista de que o escritor, crtico ou articulista um profissional de gabinete, Mrio tam-bm empreendeu vrias viagens ao nordeste brasileiro e Amaznia, sempre colhendo e catalogando as mais diversas manifestaes folclricas e musicais. Em 1935, organizou o Departamento de Cultura da Cidade de So Paulo, um pouco do que atualmente conhecemos como Secretaria Municipal de Cultura. Mrio continuou fazendo viagens de pesquisas etnogrficas, folclricas e culturais pelo pas at 1938, quando passou a sofrer perseguio poltica de Getlio Vargas, governante que havia duramente criticado no ano anterior, pela instalao do Estado Novo. Mudou--se para o Rio de Janeiro, onde dirige o Instituto de Artes da ento Universidade do Distrito Federal. Retornou a So Paulo em 1941, reassumindo o Departamento de Cultura. Sua morte, em 1945, ainda sob a ditadura Vargas, foi sole-nemente ignorada pelo poder central.

    Tenho uma desconana vaga de que renei a raadis-se Mrio, com sua habitual falta de modstia, em depoimento para o livro Repblica das letras.

    QUAL O MELHOR?Completados 70 anos de sua

    morte em 25 de fevereiro ltimo, e diante de tamanha versatili-dade, a Revista da Cultura se pergunta: haveria um Mrio de Andrade mais importante que outro para a nossa cultura? A premiada escritora Noemi Jae acredita que sim: Sem dvida, ele foi, sobretudo, um escritor. Suas cartas, romances, contos, a poesia e, acima de tudo, Macu-nama, ajudaram a recongurar a literatura brasileira e o que se escreveria dali para a frente.

    J a professora de Portugus e pedagoga Leonor Salom Fernan-

    dez amplia este conceito, defen-dendo a tese de que, para escrever

    Macunama, Mrio teve de ser, alm de escritor, um grande musiclogo e

    folclorista: nesse livro que ele usa todo o conhecimento que tem do Brasil. Em suas

    viagens pelo pas, ele rene um acervo cultu-ral muito grande da cultura brasileira, e na obra

    resgata aspectos originais dessa cultura, como os mitos indgenas, as lendas e a criao de uma linguagem que repre-sentasse de fato o povo. Para Salom, por meio de sua partici-pao no Modernismo, Mrio chega ao consenso de que, no Brasil, a arte deveria ser uma mistura, uma fuso crtica, e se ele no tivesse o grande esprito de procura, o conhecimento como msico e o contato com o povo e a cultura, como pode-ria ele tornar pleno o seu grande projeto?.

    Por sua vez, o premiado cineasta Carlos Adriano, ps-dou-tor em artes pela PUC-SP, onde desenvolveu pesquisa justamen-te sobre a imagem cinematogrca de Mrio de Andrade, busca a resposta a esta pergunta na obra de ningum menos que... O prprio Mrio. Adriano relembra o verso Eu sou trezentos, que abre o livro de poemas Remate de males, de 1930. A simples meno deste verso me parece rebater, arrebentar e arrematar a pessoa fraturada e a personalidade mltipla de Mrio. Polmata e polgrafo, ele foi um intelectual-artista intermeios e as discipli-nas a que se dedicou dialogavam entre si para compor uma gu-ra complexa e fascinante, elabora o cineasta que, ato contnuo, aceita o desao proposto por esta matria: Se tivesse que esco-lher apenas duas esferas, apontaria a administrao cultural e o

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    | literatura |

    epistolrio. Dimenses opostas pblica e privada que teriam algo a nos ensinar nestes tempos de agruras humanas e institu-cionais, contempladas com uma mesma medida: a generosidade.

    Adriano lembra que Mrio foi o primeiro secretrio de cultu-ra do Brasil, quando dirigiu o Departamento de Cultura da cida-de de So Paulo e cheou sua Diviso de Expanso Cultural en-tre 1935 e 1938. Em 1936, ele redigiu o anteprojeto que foi base para a criao do Servio do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional. Servidor pblico visionrio, burocrata que inseminava despachos e relatrios com alguma poesia, instituiu programas e polticas notveis, como a discoteca, a rede de bibliotecas, planos de preservao, concertos, exposies, sesses de lmes, com n-fase em aspectos educativos (parques infantis), culminando na Misso de Pesquisas Folclricas, explica o cineasta, que comple-menta: Ao mesmo tempo, sua obra epistolar to importante quanto sua obra literria propriamente dita. O mesmo coleciona-dor compulsivo de cartas que Mrio era encontra-se no prolco autor de correspondncia, reveladora do processo criativo, de angstias ntimas, da situao social.

    Se o leitor se sente confuso com tantos talentos concentra-dos em uma nica pessoa, bem-vindo ao clube. Ou melhor, academia: a jornalista, escritora e membro da Academia Brasi-leira de Letras, Nlida Pion, tambm se sente assim. Mrio de Andrade um mistrio. Sua versatilidade me confunde, embora seja ela parte do seu imenso talento. Anal, ele no conseguia ver o Brasil apenas por partes, como fazem todos, ou por zonas, que j seriam sucientes para incendiar a sua e a nossa imagi-nao.Gosto do Mrio que inventou um Brasil a servio de sua arte e da sua reexo. Ele via o que era vedado aos demais do seu tempo. Sempre que releio sua obra, descono que pretendeu ser um arauto da realidade e que, no exerccio de tal funo, no devia obedincia irrestrita ao rei. Valia, pois, mentir, inventar, alargar os horizontes estticos do Brasil.

    As homenagens aos 70 anos da morte de Mrio de An-drade esto sendo marcadas por vrios lanamentos edito-riais, como seu romance indito Caf, de 1925, e uma verso em quadrinhos de Macunama, roteirizada por Isabel Aleixo e ilustrada por Kris Zullo. Alm disso, boa parte de seus ob-jetos pessoais e de suas colees de livros e discos j come-aram a ser abrigadas na casa onde ele morou, na Rua Lopes Chaves, no bairro paulistano da Barra Funda, que acaba de ser transformada em museu. Como se percebe, os vrios Mrios no param de chegar. c

    Crianas judias sobreviventes de Auschwitz, em fevereiro de 1945

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  • P O R J U N I O R B E L L

    I L U S T R A E S B E R N A R D O F R A N A

    UM MAL-

    ESTAR PRA

    CHAMAR DE SEU

    31rev is tadacul tura.com.br

    TODA POCA TEM SEU MAL-ESTAR, UM SENTIMENTO QUE BAIXA COMO GEADA E DESBOTA A VIDA COMO ESTA FAZ COM A GRAMA, COM AS PLANTAS, COM AS FLORES. ELE ENEVOA O HORIZONTE, ESFRIA OS SONHOS E DEMORA-SE AT QUE O SOL DE UM NOVO TEMPO POSSA DERRETER O ORVALHO E ACALORAR O VENTO DAS MUDANAS. MAS QUAL O DESALENTO DE NOSSOS TEMPOS? O QUE ELE CONTA SOBRE NS E COMO REAGIR A ELE?

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    Um jovem anni-mo olha as ruas de Porto Alegre do alto de sua janela. A me-galpole engole seus habitantes, minsculos vis-tos l de cima. E l a o s t r a g a

    garganta abaixo em uma espiral catica e acelerada, e incrivelmente toda aquela gente, em vez de fugir apressada, apressa--se em entrar em seu ritmo alucinado, em descer at o estmago e arder, em sentir--se parte, seno importante, ao menos integrante e normal dessa capitalista sel-va urbana. Para nosso jovem annimo, entretanto, tanto faz como tanto fez. Ele no gosta muito de sair, mas, se gostas-se, tambm no seria nada demais. No d bola para isso. Tampouco tem amigos, algo que parece irrelevante enquanto pu-der entocar-se em seu pequeno latifndio nas alturas. Ele vive de espordicos bicos de traduo e seguidos pedidos de ajuda financeira ao pai. Ainda assim, por ele, tudo bem. Gosta de coisas simples, como beber uma cerveja enquanto caminha so-zinho pela vizinhana de desconhecidos. Mas nada de ir muito longe, passeios bre-ves s vezes bastam. Durante uma dessas andanas, um vira-lata o seguiu pela rua e ele deixou que o cachorro entrasse no prdio, avanasse pela porta e se instalas-se em sua sala. Para ele, indiferente se o quatro patas v ou que, a porta perma-necer aberta e assim qualquer um pode se mandar quando bem entender. Somen-te a bela Marcela, com seu entusiasmo e empolgao, conseguiu de fato abalar sua impassividade, e, mesmo que levemente, arranhar sua lentido perante a toada alu-cinada da existncia.

    Ele construiu ambas impassividade e lentido com esmero suciente para que fossem mais resistentes que um muro de ao, e mais altas que uma cordilheira nevada. Queria estar protegido do mun-

    do, s ento se sentiria finalmente livre para deprimir-se sem maiores constran-gimentos sociais. Desde cedo, ele fez uma escolha difcil: de um lado, uma roti-na socialmente asctica e, por isso, sem grandes riscos emocionais; de outro, as incrveis e perigosas possibilidades ine-rentes ao afeto, s paixes e convivncia com o Outro, esse monstro de mil faces que ora aparece travestido de amigo, ora de carrasco. Com algumas licenas po-ticas e geogrcas, esse jovem annimo poderia muito bem ser seu amigo, primo, sua tia ou mesmo sua namorada. assus-tadora a facilidade de encontrar um co-nhecido ou mesmo algum muito pr-ximo, qui voc mesmo remoendo um azedo sentimento de mal-estar, que no raro erta com a depresso e a ansiedade e costuma ser vomitado no mundo por meio do isolamento, do entristecimento crnico, das pastilhas, fumaas e tragos e nos casos mais graves, do suicdio.

    Um bom conselho ao nosso jovem annimo seria procurar o consultrio do psiclogo e professor paulistano Chris-tian Ingo Lenz Dunker. Ele se debruou sobre a relao entre esse sentimento de mal-estar, que nos toma e nos solavanca para dentro de um fosso fundo, ou, em casos como de nosso jovem annimo, nos pendura e nos trancafia no alto de apartamentos, como falces em gaiolas de concreto armado. O resultado o livro recm-publicado Mal-estar, sofri-mento e sintoma. Tudo isso que nosso jovem annimo sente seria culpa dessa insana sociedade ps-moderna, de uma brutal mquina de moer sonhos chama-da capitalismo? Quando a gente atribui a ansiedade vida moderna; a acelera-o e a impessoalidade exigncia de desempenho, isso verdade, mas no toda a verdade, explica. O excesso de preocupaes, sublinha Dunker, estimu-la a criao de ansiedade, mas h uma terapia espontnea e muito, muito efi-caz para regul-la: Nossas relaes com outras pessoas. A vida moderna s gera

    | comportamento |

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    ansiedades sem nome, sem origem e sem lugar quando ns mesmos estamos pri-vados de ler nossa experincia de modo compartilhado, em contextos de perda de intimidade, de isolamento e de hi-perindividualizao. Dunker alerta, no entanto, sobre a importncia de jamais apartar o sofrimento individual das for-as sociais que lhe deram origem. Afinal, como ele mesmo disse, a voraz espiral do mundo no inocente. O sofrimento o fator poltico do mal-estar, enuncia. O psiclogo defende que a politizao do sofrimento imprescindvel para que uma deciso importante no fique a car-go de tecnocratas ou gestores da sade, sempre to afveis com o temperamental mercado: A deciso de qual sofrimento deve ser tratado e qual deve ser invisi-bilizado. Politizar quer dizer que isso um assunto que depende de como certos acontecimentos, histrias ou sries so reconhecidos. Isso no quer dizer parti-darizao, mas uma espcie de incluso generalizada de todos ns nos problemas relativos ao sofrimento mental.

    GALERA DO CONDOMNIO Voltemos ao nosso jovem annimo.

    Ele poderia morar em qualquer lugar,

    mas mora em Porto Alegre, que, como metrpole brasileira, est sujeita a for-as sociais, econmicas e polticas bas-tante especficas. O interessante que o capitalismo brasileiro tardio e avan-ado ao mesmo tempo, uma espcie de tnel temporal pelo qual os antigos vcios, em termos de nosso liberalismo mal implantado, nossa produo de leis para usurios customizados, nossa cor-rupo organizada, nosso precariado, nossa produo calculada de anomia para criar novos negcios de repente se tornaram um modelo de produo e consumo, que faz inveja Indonsia e ao Chile, bem como a todos os outros pases que esto na linha intermediria entre a implantao do neoliberalismo como poltica de Estado e a mera oferta de mo de obra e facilitao trabalhista para a produo deslocalizada. uma espcie de grande salto para trs que caiu bem na nossa casa, e que nos torna cada vez mais uma espcie de modelo avanado do pior.

    Para ajudar a entender como a trade mal-estar, sofrimento e sintoma opera em ns, Dunker criou a metfora do condo-mnio, ou, como a batizou, a Lgica do Condomnio, muito apropriada para

    A VIDA MODERNA S GERA ANSIEDADES SEM NOME, SEM ORIGEM E SEM LUGAR QUANDO NS MESMOS ESTAMOS PRIVADOS DE LER NOSSA EXPERINCIA DE MODO COMPARTILHADO, EM CONTEXTOS DE PERDA DE INTIMIDADE, DE ISOLAMENTO E DE HIPERINDIVIDUALIZAO.Christian Ingo Lenz Dunker, psiclogo e professor

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    nosso personagem annimo. A partir da dcada de 1970, conta Dunker, acelera--se no Brasil a construo de grandiosos condomnios cercados por todos os la-dos e apartados do convvio com a socie-dade ao redor. Com eles nasce um novo modo de vida semelhante ao mal-estar adequado a um capitalismo brasileira. Significa dizer que problemas de sade pblica, mental e geral so transfor-mados em meros problemas de gesto, responsabilidades do sndico, claro. O tecnicismo sobe ao trono e se torna tec-nicinismo. Mas essa vida condominial seria capaz de criar uma espcie de fan-tasia, que, como seus muros, nos apar-tam da realidade?

    um pouco pior que isso, corri-ge Dunker. No h posio no mundo e ponto de vista sobre a realidade que no esteja enquadrado por uma fantasia. Ocorre que o condomnio uma fanta-sia encarnada, que comea pela passagem bruta do ideal ao real. Esta a primeira e decisiva fase de incorporao da fanta-sia de condomnio, depois vm os muros, que correspondem produo de uma liberdade por excluso, que volta na gu-ra do ressentimento, da inveja e do dio projetado nos que esto de fora. A tercei-ra fase a do sndico, que representa a reinstituio da lei, agora domesticada e para consumo prprio. A quarta fase a da produo de sintomas: a separao p-blico e privado esvazia o interesse na con-vivncia, a vida entre iguais cria insupor-tveis diferenas mnimas, as pequenas contingncias originam uma hipertroa dos regulamentos e, ao nal, estamos em ansiedade, pnico, depresso e consumo, seja de drogas, seja de experincias.

    Nosso jovem annimo distrai-se com suas cervejas e, at onde sabemos, elas no podem ser culpadas de nada alm de umas tantas ressacas. Mas nem todos tm essa sorte. Na Lgica do Condom-nio, o uso e abuso dos frmacos entra na ordem do dia e despenca das recei-tas mdicas em embalagens milagrosas,

    | comportamento |

  • 35rev is tadacul tura.com.br

    cuja qumica e o marketing so frequen-temente reformulados em nome do bom azeitamento tanto da mquina econmi-ca como da mquina mental. Dentro dos muros do condomnio, ou entre as pa-redes do apartamento, h uma promessa de controle das sensaes. dessa forma que, batendo de porta em porta em cada casa ou apartamento do condomnio, vende-se a sensao de bem-estar. Mas o contrrio do mal-estar no o bem--estar. Essa s a promessa neoliberal. O contrrio do mal-estar a apenas estar. Estar comporta variaes e contingn-cias que no queremos, da que utilize-mos filtros anestsicos ou estimulantes para o bem-estar. Por tabela, ganhamos este condomnio no qual todo sofrimen-to corresponde a um sintoma e todo sin-toma expresso de um mal-estar. Tudo tem que ser tratado, administrado, e a temos este novo capital simblico a ex-plorar que o sofrimento segmentado da vida das pessoas.

    LIVREMENTE INSPIRADOPara deslindar os trs os da Lgica

    do Condomnio mal-estar, sofrimento e sintoma , e aproxim-la de ns, Dunker se vale da literatura, convidando an-lise de grandes narrativas e personagens emblemticos, como Simo Bacamarte, o alienista de Machado de Assis.

    Emprestei o mtodo neste artigo, ainda que luz da literatura contempo-rnea, apresentando nesta reportagem a histria de nosso jovem annimo, aque-le que poderia ser eu ou voc, mas , na verdade, o personagem principal do livro At o dia em que o co morreu, de Daniel Galera, que agora tem a oportunidade de apresent-lo em suas prprias palavras: O protagonista deste livro um jovem adulto com educao superior, instrudo e esclarecido, mas que se v intimidado diante do excesso de escolhas e dos ris-cos dos envolvimentos afetivos. Ele, claro, no v dessa maneira. Pelo contr-rio, apegado prpria apatia e acredi-

    ta que h algo de puro e valioso em sua solido e inatividade. Galera delineou o personagem como uma verso proble-mtica de alguns sinais e sintomas que detectava em si mesmo e em seus conhe-cidos, especialmente na poca em que terminou a faculdade. No , portanto, um personagem biogrfico, mas pode ser visto como uma verso alternativa de mim mesmo, caso eu tivesse feito esco-lhas bem diferentes na vida e sucumbido presso de certas dvidas e anseios.

    Para o escritor, o elemento mais im-portante o apartamento elevado no centro histrico de Porto Alegre. Dali ele pode ver o horizonte: Algo que lhe pare-ce quase innito, como o horizonte de es-colhas que ele supostamente possui. Essa ideia de ver a cidade de cima importante para a psicologia do personagem. como ele se sente, vendo de longe uma trama complicada, vibrante, mas tambm inti-midante, de possibilidades. Para conse-guir um emprego, viver a vida com Mar-cela ou viajar com ela para o exterior, ele precisa descer do alto dessa torre, que sustentada por seus pais, mas ele gosta da torre, se sente bem no apartamento. Esse bem-estar, essa convico de ter alcana-do o que queria, a armadilha que prende o narrador, e que, ao contrrio dele, o lei-tor enxerga claramente.

    J que possvel fazer um paralelo, ainda que no direto, entre personagem e escritor, Galera afirma que no consi-dera o jovem annimo uma pessoa de-primida, assim como acha que nunca, realmente, se deprimiu. Claro que s vezes se v desanimado e entristecido, o que pode durar algumas horas. Mas ento o escritor deita em sua cama e pa-cientemente espera tudo aquilo passar. Cidades grandes so o local do exces-so, entre eles, o excesso de vida social. A vida social pode ajudar ou piorar um estado depressivo. O importante , no interessa as circunstncias, conseguir olhar de frente para a vida, sem idealis-mo nem niilismo. c

    ESSA IDEIA DE VER A CIDADE DE CIMA IMPORTANTE PARA A PSICOLOGIA DO PERSONAGEM. COMO ELE SE SENTE, VENDO DE LONGE UMA TRAMA COMPLICADA, VIBRANTE, MAS TAMBM INTIMIDANTE, DE POSSIBILIDADES. (...) ELE PRECISA DESCER DO ALTO DESSA TORRE, QUE SUSTENTADA POR SEUS PAIS, MAS ELE GOSTA DA TORRE, SE SENTE BEM NO APARTAMENTO. ESSE BEM-ESTAR, ESSA CONVICO DE TER ALCANADO O QUE QUERIA, A ARMADILHA QUE PRENDE O NARRADOR, E QUE, AO CONTRRIO DELE, O LEITOR ENXERGA CLARAMENTE.Daniel Galera, escritor

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    | sociedade |

    POLCIA! PARA QUEM PRECISA!

    POLCIA! PARA QUEM PRECISA!

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    Freddie Carlos Gray Jr. tinha 25 anos. Seu vizinho, Allen Bullock, um rapaz de 18 anos. Outro vizinho, Dimitri Reeves, tem 22. Um pouco mais velho, DeRay Mckesson, 29, abandonou o emprego em uma escola pblica para se dedicar ao que o e New York Times classificou, em reportagem de capa de sua revista dominical, de o mais

    formidvel movimento de ativismo social do sculo 21 na Amrica. Estes jovens negros da regio de Balti-more, na costa sudeste dos EUA, foram, cada qual a seu modo, destacados personagens da revolta popular deagrada em abril passado na maior cidade do estado de Maryland, batizada de Primavera Negra por mili-tantes dispostos a confrontar a crescente militarizao da polcia norte-americana e o uso de fora, de forma desproporcional, contra jovens negros pas afora. Bal-timore foi o captulo mais escancarado de confrontos iniciados em agosto do ano passado, em Ferguson, Missouri; bisados na virada do ano em Milwaukee, Wisconsin, e em Nova York; e novamente no comeo do mesmo abril em North Charleston, Carolina do Sul. Em todas as ocasies, um cidado negro tombou, viti-mado por aes da polcia, quase sempre desarmado.

    Em Baltimore, Freddie Gray morreu quando estava sob custdia da polcia, acusado de porte ilegal de uma faca automtica. Duas testemunhas lmaram a priso e a procuradoria garante que o jovem alto e atltico leva-va no bolso apenas um canivete. Allen Bullock apare-ceu na capa do maior jornal de Baltimore, o Sun, e sua imagem, gorro na cabea, no topo de um veculo poli-cial, atacando o carro com um cone de trnsito laranja, se tornou um dos smbolos mais dramticos e incmo-dos de um movimento cuja palavra de ordem central as vidas dos negros tambm importam. O adoles-cente, pressionado pelos pais, se entregou s autorida-des e pode pegar at oito anos de deteno por dani-car veculo pblico e desaar autoridades policiais. Sua ana foi estipulada em meio milho de dlares.

    Dimitri Reeves viu, pela TV, Bullock e os gigantes-cos protestos que tomaram sua cidade. O danarino passara dias a o naquelas mesmas ruas, anos atrs, repetindo com perfeio movimentos imortalizados por Michael Jackson. Camisa branca colada no corpo musculoso, culos escuros, cala de couro preta, sa-patos da mesma cor, ele resolveu que aquele seria seu momento James Brown. A referncia ao antolgico espetculo do padrinho dasoul musicem 1968, em Boston, logo aps o assassinato de Martin Luther King Jr., conferido por milhares de espectadores do pas e

    P O R E D U A R D O G R A A ,

    D E N O V A Y O R K

    | sociedade |

    COM A PUBLICAO DO LIVRO GHETTOSIDE: A

    TRUE STORY OF MURDER IN AMERICA, A JORNALISTA DO LOS ANGELES TIMES,

    JILL LEOVY, COLOCA AINDA MAIS O DEDO NA FERIDA

    AO ABORDAR AS MORTES NA COMUNIDADE NEGRA

    DOS ESTADOS UNIDOS PRATICADAS PELA POLCIA E

    TRATAR DAS PARCELAS DA POPULAO QUE NO SE

    BENEFICIAM DO MONOPLIO ESTATAL DA VIOLNCIA

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    visto como pea fundamental na reduo dos saques e das cenas de violncia nos centros urbanos dos Esta-dos Unidos em um dos captulos mais devastadores da luta pelos direitos civis dos negros norte-americanos.

    Dimitri Reeves no James Brown. E a sucesso de protestos que sacode os EUA ininterruptamente desde agosto de 2014, na localidade de Ferguson, Missouri, um subrbio de Saint Louis, localizado no corao da Amrica Profunda devido morte de outro jovem negro, Michael Brown, 18 anos, pelas mos da polcia , no pode ser comparada de forma exata ao histrico movimento pelos direitos civis. DeRay Mckesson tem conscincia disso. Mas, munido de um celular, cioso de seus 85 mil seguidores no Twitter, armou ao Ti-mes, depois de percorrer todo o circuito de protestos pas afora e retornar sua Baltimore em tempo de pre-senciar a cidade virada do avesso: Sei que parece um clich, mas faz mais sentido do que nunca a frase re-petida exausto em Ferguson: h um Michael Brown em cada cidade americana.

    O reprter Jay Caspian Kang aponta como princi-pal inovao dos protagonistas da Primavera Negra a capacidade de usar as redes sociais para de fato mobi-lizar as comunidades locais em protestos de peso nas ruas das cidades vitimadas tanto pela violncia urbana quanto pela ao brutal da polcia. A frase mais forte da reportagem foi parar no ttulo: O que exigimos simples: parem de nos assassinar.

    HERANA SEM FIM A discusso em torno da violncia policial direcio-

    nada de forma desproporcional a negros o mais novo episdio da batalha contra a excluso social-racial em um momento histrico indito, em que um lho de pai negro, Barack Hussein Obama, ocupa, h sete anos, a Casa Branca. Em suas comedidas reaes Primavera Negra, o ex-senador de Illinois, um dos estados com nmeros mais abismais de vtimas negras de violn-cia urbana, condenou a destruio de comrcio e bens pblicos, mas bateu na tecla da necessidade urgente de a sociedade americana reetir sobre a maneira como a polcia age nas comunidades negras.

    Autora do impressionante Ghettoside: a True Story of Murder in America, lanado nos EUA em janeiro l-timo, com edio em espanhol saindo do forno e ainda em busca de uma editora para o mercado brasileiro, a jornalista Jill Leovy, uma das estrelas do Los Angeles Times, lembra que so histricos o descaso do policia-mento em reas majoritariamente de populao negra e a negligncia em relao investigao de crimes cujas vtimas so negras. Ela atesta que essas so prticas comuns desde a reconstruo, perodo iniciado ime-diatamente aps a Guerra Civil e o m da escravido, marcado pelas nmas polticas de reparao social aos

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    afro-americanos, pelo incio da segregao racial no sul do pas e pela migrao de famlias negras para as ci-dades industriais do norte e do oeste. Formam-se a os guetos presentes no ttulo do livro da reprter. Como os gastos com a polcia saam dos impostos da popu-lao, a progresso natural foi deixar ao deus-dar as localidades mais pobres. Descobri registros em que representantes da Justia declaravam, sem cerimnia, se tratar de mais um caso de um negro matando ou-tro. Ou, em casos mais extremos, menos um negro vivo nem pensavam em apurar nada, conta a jornalista.

    A secular ausncia do policiamento nos guetos aproxima, acredita Leovy, a realidade dos bairros ne-gros das favelas brasileiras. E a mudana gradual na ao da polcia americana, nos EUA, a partir de re-formas iniciadas na metade do sculo 20, resultante em parte dos choques durante os protestos no auge do movimento pelos direitos civis, no to distan-te assim da experincia das UPPs no Rio de Janeiro do sculo 21. Nos dois casos, a polcia passa a entrar de forma regular em comunidades abandonadas pelo poder pblico. E a voc vive o paradoxo de defender a presena da polcia, que exerce o monoplio da violn-cia em estados democrticos, e de criticar a maneira

    comomuitas vezes este encontro se d, com prticas violentas e registro de abusos inadmissveis.

    A jornalista lembra, no entanto, que grandes ci-dades como a prpria Baltimore, Washington e Nova Orleans j contam h tempos com um contingente enorme de policiais negros. E a violncia segue inten-sa. a chegada do Estado, de forma no exatamente cordial, em reas anteriormente deixadas de lado, um dos principais combustveis do que vemos agora nas ruas dos EUA, diz Levoy.

    O outro a crescente desigualdade socioeconmi-ca americana, que afeta os negros de forma despro-porcional. O que era um debate exclusivamente sobre violncia policial, com Baltimore, se tornou parte de algo maior, e mais honesto, escreve o editor de repor-tagens especiais da semanal e Nation, Kai Wright. A lder em todas as pesquisas para a sucesso de Oba-ma no ano que vem, a ex-secretria de Estado Hillary Clinton, se pronunciou sobre o tema enfatizando ser importante perceber que as falhas na Justia Criminal e no policiamento so sintomas, no as causas do pro-blema enfrentado pelas comunidades negras nos EUA.

    Wright percebe Gray Jr., Bullock, Reeves e Mckes-son como a parte mais visvel da Gerao Perdida de negros norte-americanos. E oferece nmeros impres-sionantes: em 2015, o desemprego entre negros norte--americanos 2,4 pontos mais alto do que no auge da crise nanceira global de 2008. Durante a curta vida destes meninos, os EUA entraram e saram duas vezes de recesses. E em ambas, s vezes, eles caram para trs, continua.

    Jill Levoy, por sua vez, se debrua sobre nmeros relacionados violncia policial desde 2007, quando iniciou e Homicide Report, sua coluna digital no L.A. Times, motivada pela discrepncia da cobertura da grande imprensa de crimes cujas vtimas eram negras em relao s de origem caucasiana. Seu objetivo po-ca era fazer os leitores encararem o fato de as vtimas de homicdio, majoritariamente, nos EUA, serem ne-gras. E de que a Justia no era feita na maior parte dos casos. O resumo da pera que a comunidade negra nos EUA jamais se beneciou do direito do governo de exercer o monoplio da fora legtima. A violncia foi e , assim, inevitavelmente maior nos guetos, e segue sendo responsvel pela morte de milhares de cidados norte-americanos todos os anos. Infelizmente, preciso ser honesta: no sou otimistaem curto prazo, diz. Para ela, a discusso do tema dentro da necessidade de com-bater as desigualdades sociais no pas e o aperfeioa-mento de uma polcia cada vez mais treinada para agir nos guetos a nica sada, lenta e gradual, para o resga-te da Gerao Perdida afro-americana do sculo 21. c

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    RACISTA HOJE?

    NO TEXTO A SEGUIR, REPETIMOS A PALAVRA

    RACISTA 17 VEZES, A PALAVRA RACISMO 15, A PALAVRA NEGRO 8 E A

    PALAVRA PRECONCEITO 5 S PARA VOC ENTENDER

    QUE AINDA VIVEMOS EM UM PAS RACISTA

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    Es c u t a a q u i . O primo do cunhado do meu genro mestio, racis-mo no existe, comigo no tem disso. O verso com o d i s c u rs o d e

    um policial se explicando em uma abordagem da msica Qual mentira vou acreditar, do gru-po de rap paulistano Racionais MCs, talvez seja a melhor denio sobre preconceito ra-cial no Brasil: um pas miscigenado, at o lti-mo cromossomo racista na essncia. A letra da cano continua com quem tomou o bacu-lejo ngindo que acredita no papo do gamb. Falou, falou. Deixa pra l. Vou escolher em qual mentira vou acreditar. Falar que o cabelo ruim por ser crespo racismo. Chamar de macaco, de caf-com-leite, moreninho, mesmo que o cara seja muito seu brother, racismo. Usar a expresso a coisa t preta racista. Utilizar a palavra denegrir etimologica-mente racista. Fazer uma telenovela em que o cenrio principal a favela de Paraispolis, no extremo sul da capital paulista, e no ter ne-gros no ncleo principal de atores , alm de fora da realidade, um bocado racista. Pintar de preto o rosto de um ator branco para repre-sentar uma pessoa negra, apesar de fomentar uma discusso, racismo. Um homem branco escrever essas linhas lhe d o saboroso e inex-pugnvel poder de acusao. Sim, talvez isso tambm seja racismo. E voc, cidado branco, j foi racista hoje?

    Uma anedota triste de uma vida real. Des-sas que facilmente ilustrariam um caderninho de piadas dos anos 1970. Um garoto branco olha para o colega de sala, negro, e o chama de neguinho, em uma demonstrao eviden-te de racismo. Um amigo do menino de pele escura, tambm branco, em um mix de sen-timentos heroicos distorcidos, avana sobre o pequeno racista e o agride. Como justicativa, o algoz usa o brilhante argumento. Mano, o que isso? Ele no preto, ele moreninho. Protagonista da cena, artista grco, produtor de contedo e MC, Oga Mendona conta um pouco sobre o que ter a pele escura em um pas como o nosso: Por mais que as pessoas

    confundam os conitos raciais com sociais, o tratamento da polcia, por exemplo, com um branco pobre ou um negro pobre muito di-ferente. O branco sempre vai ter mais privil-gios do que um negro na sociedade brasileira. O branco sempre vai ter o privilgio de no se importar com essa questo, o negro, no. A partir do momento em que voc sai de casa, j tem que se importar com isso, porque algumas pessoas vo ter medo de voc, outras vo achar que voc menor, vo te subjugar.

    Um desses julgamentos recentes foi o casa-mento da cantora Preta Gil, lha de Gilberto Gil. Ela se casou com o personal trainer, bran-co, Rodrigo Godoy, no dia 12 de maio ltimo e o dia seguinte foi marcado por brincadeiras e memes. Oga comenta: muito difcil para a nossa sociedade entender que uma mulher negra e gorda pode casar e ser feliz com um cara bonito entenda branco e sarado para o padro de beleza racista vigente.

    Dono de um prolfico discurso contra o racismo, o tambm rapper Leandro Roque de Oliveira, o Emicida, completa o papo sobre o primo do cunhado do meu genro mestio, do policial l do primeiro pargrafo. Os nmeros da Anistia Internacional no Brasil [de acordo com estudo divulgado em 2014 referente ao nmero de pessoas assassinadas no pas em 2012] revelam que 77% das vtimas da polcia so pretas. T ligado? Voc tem todos esses nmeros de pessoas que vo fazer Boletim de Ocorrncia e no so ouvidas, porque a polcia ridiculariza a denncia de racismo. E, quando a leva a srio, ainda induz a vtima a caracte-rizar o crime como injria racial, que uma tipicao que acaba passando um pano para o racista. Isso a realidade do sculo 21. E deita o falatrio sobre outro policiamento, o digital: Todo mundo quer ser o polcia do outro nas redes sociais. Todo mundo quer ser o cara que desmascarou o racista. Como voc foi racista, como voc foi machista, como voc foi homo-fbico. S que voc tambm tem que comba-ter esses demnios internamente. As pessoas apontam aquilo, transferem para um segundo ou terceiro, mas mantm o preconceito delas bem guardadinho no armrio.

    As rimas, o discurso, o punho erguido e fe-chado esto na retrica do rapper, que explica suas escolhas. Tenho um receio muito grande de que as coisas sejam entendidas de uma ma-

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    neira errada, de uma maneira equivocada. T ligado, mano? Na minha msica, eu falo muito disso; na minha postura, eu tambm mostro muito disso, conta Emicida, apontando um norte para uma possvel luz no fim do tnel sobre o preconceito racial brasileiro. A gente precisa construir uma ideia de beleza negra, de produo cultural, de manifestao artstica. uma coisa que tem que estar fundida com a beleza. E revela nas passarelas e comerciais de TV a mudana no olhar. Eu ajudo as minhas amigas a aparecer nesses negcios de moda, eu me envolvo mais com isso, porque sei o quanto importante a gente ter representao nos es-paos onde a beleza o tema principal. isso a que vai mudar a realidade da minha lha. Junto com as letras das minhas msicas e o meu posicionamento.

    ESCOLHA UMA DAS ALTERNATIVAS

    Diariamente, quem tem a pele escura obri-gado a lidar com o preconceito com as opes:

    a) deixar pra lb) acreditar na mentira c) partir para o enfrentamento

    Sem dvida, uma das grandes trincheiras nessa batalha sim, essa uma luta diria e sofrida sem dvida o rap, e uma de suas maiores representaes tem nome e sobre-nome, Kleber Geraldo Lelis Simes, vulgo KL Jay, DJ do Racionais MCs e um dos caras mais generosos e ativos do hip hop nacional. Para inibir o preconceito, ele usa, alm do seu sorriso estampado e quase sempre presente, a sua cabea erguida. E no h nada mais ofen-sivo para um racista do que um preto orgu-lhoso. Eu lido com o racismo mostrando a minha autoestima. Ela indestrutvel, explica e revela que acha a intolerncia nos olhares.

    Empresria, produtora e esposa do rapper Mano Brown, Eliane Dias integra uma fatia sofrida da sociedade brasileira, a mulher ne-gra. No preciso citar o socilogo nascido em Serra Leoa Francis Musa Boakari ou qual-quer outro terico para armar categorica-mente isso. Ela sabe que a intolerncia est por toda parte, mas usa de ferramentas prximas s de KL Jay para se defender. Ela conta. Vejo o racismo no Brasil no ar que respiro, racismo

    que vem da parte de todas as raas, racismo que vem da ignorncia, vem da incapacidade, racismo que vem da maldade. Racismo que s entra em ao para impedir a ascenso. Toda as vezes que sou aviltada de forma ra-cista, luto mais ainda pelo que estava desejan-do, pois sei que s esto sendo racistas para me fazerem desistir, para me tirarem do meu foco. Olho bem nos olhos do racista e digo: Seu racismo me fortalece, vai segurando.

    O rapper Rico Dalasam descreve uma cena que voc pode achar inofensiva, mas veja bem, no to inocente assim. Eu es-tava ali no Copan usando o wi- e o pessoal do comrcio chamou a segurana e o cara foi falar comigo: P, c t esperando algum?. O cantor questiona o porqu de estar parado gerar suspeita e explica como reagiu. Eu dei uma orelhada braba nele, explicando que o fato de eu parecer ser o que as pessoas tm como marginal, como suspeito, no condiz com o que na maioria das vezes e isso acon-tece em vrios lugares, em diversas situaes.

    Alm de ser negro e ter vindo da perife-ria, Dalasam assumidamente gay. Precisa dizer alguma coisa mais sobre intolerncia? Em um primeiro instante, ser negro grita muito mais alto, porque depois que a pessoa vai conhecer a histria, vai ter uma conversa, alguma coisa, a ela vai ter esse pensamento, essa posio racista, preconceituosa. No fcil voc abertamente colocar as suas ideias no meio em que voc vive. E finaliza: O conservadorismo das pessoas, o formato de famlia que elas acreditam que exato, todo esse pensamento, mano, constri sim uma se-gregao, uma coisa de separar, t ligado? Do mesmo jeito que se separa o negro e ele no t em um monte de lugar, quando vem a hetero-normatividade, ela tambm separa o gay dos demais. A, junta essas duas coisas, mano. A gente o separado do separado. a margem da margem em grande parte das vezes.

    Enquanto a Tia Nastcia no sair da co-zinha, ainda teremos esse osso na goela. En-quanto mulheres negras, vestidas de branco, carregarem galeguinhos nas praas e shop-pings, teremos esse rano. Enquanto um joga-dor de futebol for chamado de macaco durante uma partida ou um ginasta for menosprezado pela escurido de sua pele, seremos, sim, um pas racista. E, a? Voc j foi racista hoje? c

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    DIETA RICA E BALANCEADAEmbora tenha uma considervel coleo de gibis adquirida na minha infncia em sua maior parte das dcadas de 1970 e 1980 , a Turma da Mnica e, consequentemente, Mauricio de Sousa, ainda me trouxeram um complemento anos mais tarde, j na faculdade. Retornei e reli todas as minhas pginas pra l de amarelas. Havia me interessado por trabalhos aca-dmicos que tratavam da intertextualidade na turminha, o que se conrmou ainda mais: a habilidade de um autor de misturar positivamente um mosaico de informaes que ajudam a consolidar o conhecimento nos pequenos. (Lucas Rolfsen Assistente de redao) IM

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    VALEU!MAURICIO DE SOUSA SABE CONTAR HISTRIAS MUITO BEM, DISSO NINGUM

    PODE DUVIDAR! MAS MELHORES AINDA SO OS CAUSOS QUE ESTO POR TRS DE SUAS HISTRIAS: AQUELES QUE LEVAMOS PARA A VIDA. O

    CARTUNISTA E TODAS AS PERSONAGENS CRIADAS AO LONGO DE SEUS 80 ANOS, QUE SERO COMEMORADOS EM OUTUBRO PRXIMO, FAZEM PARTE

    DO IMAGINRIO DE ADULTOS E CRIANAS DESTE BRASIL. E SEU LEGADO VAI ALM DOS QUADRINHOS, POIS RESPONSVEL, MUITAS VEZES, POR

    TER AJUDADO NA ALFABETIZAO E NO DESENVOLVIMENTO HUMANO DOS BRASILEIROS. AQUI ESTO APENAS ALGUNS EXEMPLOS DE COMO SUA

    CONTRIBUIO PARA A NOSSA CULTURA FOI ESSENCIAL.

    NA COLA DO HORCIOMeu sonho de criana (e confesso que continua at hoje) era ter uma festa com tema do Horcio. Passava horas imaginando os pratinhos, os copi-nhos, os enfeites de isopor (que cafona!), as lem-brancinhas, bales verde e amarelo, o bolo e at a velinha, tudo com a estampa do dinossaurinho. O problema que no encontrava essa decorao em lugar nenhum. Ento, acabava escolhendo ou-tras mesmo. Quando tive a oportunidade de entre-vistar o Mauricio de Sousa, no pensei duas vezes e pedi para ele desenhar meu personagem favo-rito da Turma da Mnica. Mesmo sem a festa, sei que ganhei um presento, que guardo com muito carinho. (Clariana Zanutto Editora)

    SOU A MNICA, SOU A MNICA...O Mauricio de Sousa no sabe, mas ele me desenhou quando criou a Mnica. No quero soar petulante ao dizer isso, mas a mais pura verdade. Notei isso aos 5 anos, quando cantamos e danamos a msica Sou a Mnica na escola. At a professora cou embas-baca com a semelhana, e o ttulo de dentucinha e sabichona passou a me perseguir para sempre. s falar em Mnica que todos se lembram de mim. At ganhei parabns em seus 50 anos. Agora, s falta arranjar um Sanso! (Renata Vomero Reprter)

    | preferidas | da redao

    AL! ME CONTA UMA HISTORINHA, POR FAVOR?A Turma da Mnica me traz lembranas muito boas, mas nem tantas para meus pais (risos). No incio dos anos 1990, quando eu estava com cerca de 10 anos, pirei com o lanamento de um servio para ouvir histrias da Mnica por telefone. Basta-va discar um nmero para, a cada vez, uma nova histria povoar a imaginao. O problema que, um tanto ingnuo que era, no sabia que a ligao tinha um custo alto por minuto. Concluso: meus pais no caram nada felizes quando a conta che-gou no m do ms. Mauricio de Sousa agradece. E eu tambm. (Gustavo Ranieri Editor-chefe)

  • CIDADE BAIXA, DE SRGIO MACHADOIndico este lme por abordar a pobreza, a prostituio e as drogas sob uma tica extremamente realista.

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    O| preferidas | dudu azevedo

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    CAPITES DA AREIA, DE JORGE AMADO Pela importncia poltica e cultural que ele tem at os dias de hoje. Livro de um dos mais importantes escritores baianos que retrata a violncia, o erotismo e o romantismo sob o ponto de vista dos meninos de rua.

    A HISTRIA QUE ENVOLVE O TRIO TATI (CLEO PIRES),

    CONRADO (MALVINO SALVADOR) E O ATRAPALHADO MARCELO,

    INTERPRETADO POR DUDU AZEVEDO, EM QUALQUER

    GATO VIRA-LATA, ACABA DE GANHAR SUA CONTINUAO,

    COM QUALQUER GATO VIRA-LATA 2. CONTINUA SENDO

    UMA COMDIA ROMNTICA, MAS, DESSA VEZ, AINDA MAIS

    COMDIA, COMENTA DUDU AZEVEDO, CUJO PERSONAGEM

    UM ANTAGONISTA QUE NO ACEITA TER PERDIDO SUA

    NAMORADA PARA O BONZINHO PROFESSOR CONRADO.

    NESTA SEQUNCIA, ELE V SUA CHANCE DE RECUPERAR SEU

    AMOR. ELE UM CARA QUE NUNCA PRECISOU SE ESFORAR

    MUITO PARA CONQUISTAR NADA NEM NINGUM, NO TEVE

    GRANDES REFERNCIAS E, EM CONSEQUNCIA DISSO,

    TEM DIFICULDADES DE SE RELACIONAR COM UMA MULHER

    DE MANEIRA RESPEITOSA. PERDEU A TATI E AGORA QUER

    RECUPER-LA COM OS RECURSOS QUE TEM. ACREDITO NO

    AMOR DO MARCELO POR ELA. O SUCESSO DO PRIMEIRO

    FILME S AUMENTA A ANSIEDADE DO ATOR E DO ELENCO

    PELO LANAMENTO DE SUA CONTINUAO. SEMPRE

    UMA GRANDE RESPONSABILIDADE LANAR UM FILME DESSE

    TAMANHO NO MERCADO. UMA EXPECTATIVA QUE EST EM

    NS E NO GRANDE PBLICO QUE O QUALQUER GATO VIRA-

    LATA J CONQUISTOU. A BAHIA, ESTADO NO QUAL PARTE DAS

    FILMAGENS FORAM REALIZADAS, INSPIRAROU AS DICAS DO

    ATOR. (RENATA VOMERO)

    NEM TO VIRA-LATA ASSIMSORVETERIA A CUBANA

    Alm de ser muito boa, fica ao lado do Elevador Lacerda e do Mercado Modelo, no centro histrico. uma tima localizao para conhecer tudo por ali.

    MORRO DE SO PAULO E A PRAIA DE ITACAR, NA BAHIA

    Pelo cenrio lindo que temos no Nordeste brasileiro.

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    TRANSA E CAETANO VELOSO, DE CAETANO VELOSO Retratos de uma poca de criatividade renovada, com arranjos invulgares.

    THE SUNSET LIMITED, DE TOMMY LEE JONESOs dilogos sobre temas como a existncia de Deus e o absurdo da condio humana so de arrepiar.

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    | preferidas | sergio vilas-boas

    YOU MUST BELIEVE IN SPRING, DE BILL EVANS Concentrao, suavidade e delicadeza altamente inspiradoras. Costumo parar o que estou fazendo s para ouvi-lo.

    A MARCA HUMANA, DE PHILIP ROTH

    Abre nossos olhos para os moralismos

    do pensamento politicamente correto

    e as inuncias da memria coletiva sobre a memria individual.

    A ARTE DO AUTOCONHECIMENTOENTENDER DIFERENAS E BUSCAR NOSSAS VERDADES. ESTA

    PERSPECTIVA EST PRESENTE EM A SUPERFCIE SOBRE NS,

    LTIMO TRABALHO DO JORNALISTA, PROFESSOR E ESCRITOR

    MINEIRO SERGIO VILAS-BOAS. COMPREENDER UMA PESSOA,

    PORM, NO SIGNIFICA QUE VOC TENHA, NECESSARIAMENTE,

    QUE CONCORDAR COM O QUE ELA PENSA OU FAZ. O AUTOR DE

    OS ESTRANGEIROS DO TREM N E RUMORES DO SILNCIO (2010),

    ENTRE OUTROS, NOS DIZ UM POUCO MAIS SOBRE A INESPERA-

    DA AMIZADE ENTRE OS PROTAGONISTAS DE SUA MAIS RECENTE

    PUBLICAO: ENQUANTO O HUGO FOI EDUCADO PARA ADORAR

    O CONSUMO E O ENTRETENIMENTO, JAIME SE PREPAROU A VIDA

    TODA PARA DERROTAR A PREVISIBILIDADE E OS IDEAIS DE PER-

    TENCIMENTO. A SINCERIDADE DOS DOIS PERSONAGENS ALGO

    RARO DE SE VER, FRUTO DE UMA HABILIDADE ADQUIRIDA E PAR-

    TE DE UM LENTO E RDUO PROCESSO DE AMADURECIMENTO,

    QUE DEPENDE TANTO DA MEMRIA INDIVIDUAL QUANTO DA CO-

    LETIVA. S VERDADEIRAMENTE SINCERO QUEM SE CONHECE

    BEM. (LUCAS ROLFSEN)

    CATSKILL MOUNTAINS, NORTE DA CIDADE DE NOVA YORKA paisagem em torno da Rota 97, que margeia o rio Delaware, espetacular, principalmente no outono.