revista contextos da alimentação edição completa vol. 1 n. 2

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A Contextos da Alimentação é uma Publicação Científica do Centro Universitário Senac que publica trabalhos originais que envolvam estudos sobre contextos da alimentação: histórico, geográfico, nutricional, sociológico, antropológico, literário, culinário e artístico. Confira na edição Vol. 1 nº 2 artigos relacionados aos assuntos: - Seguranças dos alimentos - Alimentação e cultura - As Leis Dietéticas da Culinária Judaica Entre outros! Acesse a revista na íntegra! http://www3.sp.senac.br/hotsites/blogs/revistacontextos/

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>editorial

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A revista Contextos da Alimentação em seu segundo numero foi capaz de atrair artigos que refletem a natureza da revista, multidisciplinar.

Com um olhar aberto sobre o ato de se alimentar a concepção desta revista foi a de fazer com que este espaço seja um refle-xo do que sentar-se à mesa representa nas mais diferentes culturas, compartilhar.

Vem do latim cum panis que significa aquele com quem dividimos o pão e neste caso pode-se expandir este conceito de pão por ideias.

Estas ideias organizadas de forma ló-gica, coerente e fundamentadas, que mesmo discordante fazem com que o conheci-mento em determinada área possa ser disseminado.

Com este caráter gregário e tendo o alimento e ato de se alimentar como ele-mentos de ligação os artigos nesta edição trazem ricas reflexões sobre o tema de formas distintas.

Seja sob a perspectiva histórica, cultural, fisiológica ou religiosa o ato de se ali-mentar promove discussões interessantes e enriquecedoras.

Enriquece na medida em que se descobrem novas formas de olhar para o pas-sado de uma nação e descobrir que um doce pode estar associado ao fortalecimento do caráter identitário desta.

Alimentação tem recebido cada vez mais atenção em nossas sociedades, seja pelo aspecto lúdico ou pela saúde e todas as outras variáveis que estão ao redor.

Vive-se um paradoxo da ciência e da consciência, onde nunca soubemos tanto sobre alimentos, suas características, composições, benefícios e impactos, porém de forma geral, cotidianamente a qualidade da alimentação não reflete este conhecimen-to, podendo dizer até que nunca comemos tão mal (qualitativamente falando).

Trocamos cereais e verduras por gorduras e carboidratos, elementos ricos em nutrientes por ricos em açúcares e a população, especialmente nossas crianças, en-frenta problemas de obesidade (e suas consequências) em níveis cada vez maiores.

Mudanças na alimentação fazem parte de um processo cultural dinâmico, afinal da mesma forma que não nos vestimos como fazíamos a 50 anos, ou não nos expres-samos, oral ou escrita, da mesma forma, assim também fazemos com a alimentação.

Novos produtos, novas técnicas, novas influências fazem com que a forma de encararmos o que é um alimento seguro ou bonito sejam alteradas, qual não foi a sur-presa de muitos ao comer peixe cru pela primeira vez, ou o sabor do wasabi ou para gerações anteriores o primeiro contato com a Coca Cola.

Assim é a contexto, trazendo novas formas de pensar sobre este assunto tão importante e cheio de variações possíveis, a alimentação.

Boa leitura.

Marcelo Traldi Fonseca (editor)

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>Artigos

Desafios da gestão da segurança dos alimentos em unidades de alimentação

e nutrição no Brasil: uma revisão

Fernanda Maria Farias Cunha1

Maida Blandina Honório Magalhães2

Deborah Santesso Bonnas3

Resumo

O conceito de segurança alimentar teve origem no início do século XX, a partir da II Grande Guerra quando mais de metade da Europa estava devastada e sem condições de produzir alimentos. A partir daí, observou-se que a fome e a desnutri-ção eram oriundas não só da produção, como também da falta do acesso ao alimen-to seguro e, com isso, houve ampliação do conceito de segurança alimentar para o acesso ao alimento em quantidade e qualidade suficiente sem comprometimento das outras necessidades básicas do ser humano. Assim surgiram várias legislações e sistemas no sentido de auxiliar a gestão das empresas do setor alimentício como as Boas Práticas na Fabricação de Alimentos (BPF’s), os Procedimentos Operacionais Padronizados (POP’s) e Análise de Perigos e Pontos Críticos de Controle (APPCC) com objetivo principal de evitar as Doenças Transmitidas por Alimentos (DTA’s). Com o objetivo de compreender os principais desafios para implantação de sistemas de gestão em segurança alimentar no Brasil foi feita a presente revisão bibliográfica em busca de artigos publicados desde o ano 2001 até 2012, além de portarias e legisla-ções pertinentes ao assunto. Diante dos trabalhos avaliados, verificou-se uma evolu-ção no processo histórico da segurança alimentar no Brasil bem como dos sistemas de gestão que a regem, o que possibilitou a constatação de que a implantação desses sistemas necessita estar associada à capacitação efetiva de gestores e manipulado-res de alimentos para favorecer o fornecimento do alimento seguro em Unidades de Alimentação e Nutrição (UAN).

Palavras-chave: Segurança Alimentar. Boas Práticas de Fabricação. Manipu-ladores.

1 Mestranda em Ciência e Tecnologia de Alimentos - Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Triângulo Mineiro (IFTM) Uberaba, MG, Brasil; ); [email protected], *Autor para correspondência2 Mestranda em Ciência e Tecnologia de Alimentos - Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Triângulo Mineiro (IFTM) Uberaba, MG, Brasil; );[email protected], *Autor para correspondência.3 Prof.a Dra. do Programa de Pós-Graduação Strictu Sensu em Ciência e Tecnologia de Alimentos (IFTM); [email protected]

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>Artigos

Abstract

The concept of food security dates back to the first half of the 20th century, after the II World War when more than half Europe was devastated and unable to produce food. From this time on, it was observed that hunger and malnutrition originated not only from production but also from the difficulty in having access to safe food and be-cause of this, the concept of food security was expanded in order to guarantee quan-tity and quality in the foods without hazards to the other needs of the human beings. Hence, several legislations and systems were created in order to assist the manage-ment of the companies in the food sector as Good Manufacturing Practices (GMPs) of foods, Sanitation Standard Operating Procedures (SSOPs) and Hazard Analysis and Critical Control Points (HACCP) with the main aim of preventing foodborne diseases (FBD). Aiming at understanding the main challenges of the implementation of food safety management systems in Brazil, the current review was carried out, searching for papers published between 2001 and 2012, besides resolutions and legislations which are adequate for the topic. In the papers evaluated, it was observed an evolu-tion in the historical process of Food security management in Brazil, as well as in the management systems which control it, what lead us to testify that the implementation of these systems needs to be associated with the effective capacity of food handlers and managers to favor the supply of safe food in the Food and Nutrition Units (FNU).

Key-words: Food Safety. GMPs. Handlers.

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>Artigos

Introdução

As dificuldades impostas pelos longos deslocamentos e a extensa jornada de trabalho nas sociedades modernas, impedem que um grande número de pessoas rea-lize suas refeições regulares em família. Para uma expressiva camada da população, a refeição fora do lar, em Unidades de Alimentação e Nutrição (UAN’s), é uma das alternativas viáveis (ROSSI, 2006).

No Brasil, estima-se que, de cada cinco refeições, uma é feita fora de casa, na Europa duas em cada seis e, nos EUA, uma em cada duas. Esses números in-dicam que ainda pode haver um grande aumento e desenvolvimento dos locais que produzem refeições para consumo imediato no país. Tais estabelecimentos incluem unidades de produção de porte e tipos de organização diferentes entre si, como res-taurantes comerciais, restaurantes de hotéis, serviços de motéis, coffee shops, bu-ffets, lanchonetes, cozinhas industriais, fast food, catering e cozinhas hospitalares (ARAÚJO; CARDOSO, 2002).

Com o crescimento do mercado de alimentação, torna-se imprescindível criar um diferencial competitivo nas empresas por meio da melhoria da qualidade dos pro-dutos e serviços oferecidos, para que esse diferencial determine quais permanecerão no mercado (AKUTSU, 2005). Sendo assim, fazem-se cada vez mais necessárias competência e qualificação dos funcionários em prol da manutenção do diferencial competitivo no mercado.

Embora o termo qualidade há muito tempo faça parte do vocabulário de muitas pessoas, defini-lo de forma a atingir toda a dimensão do seu significado é bastante complexo. A qualidade envolve muitos aspectos simultaneamente e sofre alterações conceituais ao longo do tempo (PALADINI, 1996).

A qualidade hoje é uma vantagem competitiva que diferencia uma empresa de outra, pois os consumidores estão cada vez mais exigentes em relação à sua expec-tativa no momento de adquirir um determinado produto. Logo, as empresas que não estiverem preocupadas com esta busca pela qualidade poderão ficar à margem do mercado consumidor (FIGUEIREDO; COSTA NETO, 2001).

Em relação às UAN’s, a qualidade está associada a aspectos intrínsecos do alimento (qualidade nutricional e sensorial), à segurança (qualidades higiênico-sanitá-rias), ao atendimento (relação cliente-fornecedor), e ao preço (AKUTSU, 2005).

No entanto, a alta rotatividade e a dificuldade na obtenção da qualidade podem ser provenientes da produção de refeições com baixo custo e presença de mão de obra não qualificada formalmente para o setor (AGUIAR; KRAEMER, 2009).

De acordo com Souza (2006) a manipulação de alimentos mostra-se como um fator que, caso não seja gerenciado e controlado, é responsável por desencadear contaminações e afetar a segurança dos alimentos.

A qualidade higiênico-sanitária como fator de segurança alimentar tem sido am-plamente estudada e discutida, uma vez que as doenças veiculadas por alimentos são um dos principais fatores que contribuem para os índices de morbidade nos países da América Latina e do Caribe. O Comitê da Organização Mundial da Saúde/Organi-zação das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (OMS/FAO) admite que

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>Artigos

doenças oriundas de alimentos contaminados seja, provavelmente, o maior problema de saúde no mundo contemporâneo (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 1984). Os principais problemas são consequência do reaquecimento e refrigeração inadequa-dos e da preparação de alimentos com muita antecedência, aumentando o tempo de espera (WEINGOLD, 1994). Sendo assim, o presente artigo de revisão teve como objetivo identificar os principais desafios para implantação de sistemas de gestão da qualidade dos alimentos em UAN´s no Brasil.

Metodologia

Os artigos selecionados foram coletados por meio de buscas nas bases de da-dos: BVS (Biblioteca Virtual em Saúde), LILACS (Centro Latino-Americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde) SCIELO (Scientific Electronic Library Online). Para tanto, foram utilizadas as seguintes expressões: “implantação de gestão de qua-lidade”, “gestão de qualidade”, “segurança alimentar”, “qualidade de restaurantes”, “alimentação coletiva”, “higiene alimentar” e “segurança alimentar em restaurantes”. A busca envolveu artigos publicados desde 1996 até julho de 2012.

Utilizou-se, também, o Codex Alimentarius da OMS/FAO e o Regulamento de Inspeção e Industrialização de Produtos de Origem Animal (RIISPOA) do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), a portaria n°368 do MAPA, as por-tarias n° 58 de 1993, n° 1428 de 1993, n° 326 de 1997, n° 275 de 2002 e n° 216 de 2004 do Ministério da Saúde.

Evolução da gestão da qualidade na área alimentícia

O conceito de segurança alimentar tem sua origem no início do século XX, a partir da II Grande Guerra quando mais de metade da Europa estava devastada e sem condições de produzir alimento (BELIK, 2003). Assim, estabeleceram-se políticas con-tinentais para que fosse garantido o acesso à alimentação em quaisquer situações, seja em caso de guerra ou em caso de dificuldades econômicas (GALEAZZI, 1996).

No início dos anos 1970, com a crise de escassez associada a uma política de manutenção de estoques de alimentos e a Conferência Mundial de Alimentação, a segurança alimentar passou a ser uma questão de produção de alimentos (produ-tivista), com ênfase na comida. Na década de 1980, com a superação da crise de alimentos, concluiu-se que os problemas da fome e da desnutrição eram decorrentes de problemas de demanda, ou seja, de acesso e não só de produção. No final dessa década e início dos anos 1990, observou-se maior ampliação do conceito, incluindo oferta adequada e estável de alimentos e principalmente garantia de acesso, além de questões referentes à qualidade sanitária, biológica, nutricional e cultural dos alimen-tos (VALENTE, 1997).

O termo alimento seguro é um conceito que está crescendo na conjuntura global, não somente pela sua importância para a saúde pública, mas também pelo seu importante papel no comércio internacional (BARENDSZ, 1998). Nesse contexto surge o sistema de Análise de Perigos e Pontos Críticos de Controle, o APPCC. Este

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>Artigos

sistema foi utilizado pela primeira vez, nos anos 60, pela Pillsburg Company, junto com a National Aeronautics and Space Administration (NASA) e o U.S. Army Laboratories em Natick, com o objetivo de desenvolver um programa de qualidade que, utilizando algumas técnicas, desenvolvesse o fornecimento de alimentos para os astronautas da NASA (BENNET; STEED, 1999), sendo apresentado ao público pela primeira vez em 1971, durante a Conferência Nacional para Proteção de Alimentos, realizada nos Estados Unidos (ATHAYDE, 1999). Embora tenha sido uma ferramenta desenvolvida originalmente pelo setor privado para garantir a segurança do produto, atualmente está presente na legislação de vários países (JOUVE, 1998).

A legislação em segurança do alimento é geralmente entendida como um con-junto de procedimentos, diretrizes e regulamentos elaborados pelas autoridades, dire-cionados para a proteção da saúde pública. O Codex Alimentarius (CODEX ALIMEN-TARIUS, 2001) estabelece as condições necessárias para a higiene e produção de alimentos seguros. Seus princípios são pré-requisitos para a implantação do APPCC, em que ocorre o controle de cada etapa de processamento.

O Sistema APPCC é uma técnica racional para se prevenir a produção de ali-mentos contaminados, baseada em análises e evidências científicas. Representa uma atitude pró-ativa para prevenir danos à saúde e enfatizar a prevenção de problemas, ao invés de se focar no teste do produto final. Pode ser utilizado em qualquer estágio da cadeia de produção, desde a produção primária até a distribuição, e até mesmo nos locais que oferecem serviços de alimentação e em casa (JOUVE, 1998).

O uso do APPCC requer também procedimentos simultâneos com outras ferra-mentas, tais como BPF (Boas Práticas na Fabricação de Alimentos) e sistemas avan-çados de qualidade na avaliação da produção de alimentos (HUGGETT, 2001).

Segundo a Portaria n° 58 de 1993 do Ministério da Saúde, BPF são normas de procedimentos a fim de atingir um determinado padrão de identidade e qualidade de um produto e/ou serviço na área de alimentos, incluindo-se bebidas, utensílios e materiais em contato com alimentos (BRASIL, 1993). Sendo assim, o Ministério da Saúde, dentro da sua competência, elaborou as portarias 1428 de 26/12/1993 e 326 de 30/7/1997, que estabelecem as orientações necessárias para inspeção sanitária por meio da verificação do Sistema de Análise de Perigo e Ponto Crítico de Controle (APPCC) da empresa produtora e de serviços de alimentos e os aspectos que devem ser levados em conta para a aplicação de boas práticas de fabricação (BPF), respec-tivamente.

Em 4 de setembro de 1997, o MAPA publicou no Diário Oficial da União a por-taria no 368 (BRASIL, 1997), que define Boas Práticas de Fabricação como sendo os procedimentos necessários para a obtenção de alimentos inócuos e saudáveis. Nessa portaria, encontramos regulamento técnico sobre condições higienicossanitárias de boas práticas de fabricação para estabelecimentos produtores/industrializadores de alimentos. Segundo o regulamento técnico, as Boas Práticas de Fabricação devem in-cluir: higiene das instalações, adequado tratamento de resíduos e efluentes, facilidade de limpeza e de manutenção, adequada qualidade da água: potável, adequado nível de qualidade das matérias primas e insumos, adequado procedimento para seleção de matérias primas e insumos, adequado procedimento para seleção e manutenção de fornecedores, conhecimento do grau de contaminação das matérias primas, análi-

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se e inspeções de matérias primas e produtos auxiliares, corretas operações de rece-bimento e estocagem, higiene pessoal, equipamentos e utensílios sanitários, aferição de instrumentos, programa de manutenção preventiva, higiene no processamento.

Em 06/11/2002 a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) publicou a RDC no 275 (BRASIL, 2002). Essa Resolução aprovou o Regulamento Técnico de Procedimentos Operacionais Padronizados (POP’s) aplicados aos estabelecimentos produtores/industrializadores de alimentos e a lista de verificação das boas práticas de fabricação em estabelecimentos produtores/industrializadores de alimentos.

Devido à inexistência de portarias e normativas regulamentadoras das BPF’s em relação aos estabelecimentos fornecedores de alimentação, em 2004 a ANVISA publi-cou a RDC n°216 de 15 de setembro de 2004 (BRASIL, 2004), que abrange os proce-dimentos que devem ser adotados nos serviços de alimentação, a fim de garantir as condições higienicossanitárias do alimento preparado. Essa legislação federal pode ser complementada pelos órgãos de vigilância sanitária estadual, distrital e municipal, visando abranger requisitos inerentes às realidades locais e promover a melhoria das condições higienicossanitárias dos serviços de alimentação.

Aplicação de sistemas de gestão da qualidade

Diante do exposto, observa-se que a produção de alimentos e de refeições se-guras envolve uma série de fatores, os quais merecem atenção no processo de ges-tão. Tal atenção deve-se tanto em função da legislação atual, mas principalmente pela ocorrência das doenças transmitidas por alimentos as quais geralmente se de-senvolvem por múltiplas falhas peculiares aos serviços de alimentação, entre elas: refrigeração inadequada, preparo do alimento com amplo intervalo antes do consu-mo, manipuladores infectados/contaminados, processamento térmico insuficiente, má conservação, alimentos contaminados, contaminação cruzada, utilização de sobras e produtos clandestinos (CARDOSO; SOUZA; SANTOS, 2005, BRICIO; LEITE; VIANA, 2005).

Muitos estabelecimentos que produzem refeições apresentam qualidade defi-ciente nos serviços prestados, como observado em um estudo descritivo transversal com 22 restaurantes do município de Cerqueira César em São Paulo. Destaca-se o fato que esses estabelecimentos não apresentavam responsáveis técnicos. Houve avaliação de: higiene, processos e produtos, controle de pragas, boas práticas de produção e gestão, sendo que nenhum restaurante foi classificado como bom ou ex-celente, 91% foram classificados como deficientes e 9% como regular, sugerindo risco potencial para ocorrência de Doenças Transmitidas por Alimentos (DTA’s). Entre as conclusões do estudo tem-se que tal cenário poderia ser melhorado pela presença nos estabelecimentos de um responsável técnico devidamente capacitado (ESPE-RANÇA, MARCHIONI; 2011).

Observa-se em alguns estudos que vários estabelecimentos têm como gerente o proprietário. Assim o gestor do setor de alimentação coletiva necessita conhecer os sistemas de gestão de qualidade como BPF’s, POP’s e APPCC. Outro estudo re-alizado com gerentes de 16 Unidades Produtoras de Refeições (UPR’s) comerciais na região centro-sul de Belo Horizonte identificou que 81,2% eram gerenciadas por

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>Artigos

profissionais contratados como gerentes e 18,8% pelos próprios proprietários, porém nenhuma delas tinha responsável técnico com conhecimento na RDC 216/04 (BRA-SIL, 2004). Quando os gestores foram questionados sobre aspectos que garantem a segurança alimentar na produção de refeições com base na RDC 216/04, observou--se que mais da metade dos temas abordados nesta resolução não foram citados, o que reflete uma visão limitada dos gestores em relação às boas práticas na fabricação de alimentos (BARROS et al, 2011).

Para tanto, a capacitação de gestores pode ser determinante na segurança ali-mentar, observando-se a importância de se avaliar a efetividade de um treinamento (EBAN et al, 2007). Porém, quando se procura segurança alimentar em alimentação coletiva, as ações devem ser direcionadas não só com os gestores, mas também com os manipuladores de alimentos. Por isso, de acordo com Aguiar e Kraemer (2009) as empresas de refeições coletivas devem repensar o gerenciamento de pessoas e investir em formação profissional.

Quintiliano et al. (2008) avaliaram as condições higienicossanitárias em restau-rantes comerciais da Baixada Santista, face à nova Legislação Federal RDC n. 216. Tais autores observaram elevados índices de não conformidades frente a legislação destacando-se a falta de registros e documentação. Entre as conclusões do estudo os autores destacam que os proprietários eram os responsáveis técnicos dos esta-belecimentos e não estavam preparados para cumprir as exigências da legislação (QUINTILIANO et al., 2008).

Há necessidade de qualificar os trabalhadores em alimentação coletiva visando o oferecimento de uma refeição de qualidade. Esta afirmação é reforçada por estudo que discutiu o nível de educação formal (desenvolvida em escolas e universidades) e não formal (capacitação) dos trabalhadores de alimentação coletiva em restaurantes populares do Rio de Janeiro por meio de entrevistas com 426 funcionários, incluin-do desde auxiliar de serviços gerais à nutricionista. Referente à educação formal, constatou-se que 39,2% dos entrevistados possuíam ensino fundamental incompleto e 14,3% completo. Já para o ensino médio, foram encontrados 25,1% completo e 14,9% incompletos. Com relação à educação não formal, 60,5% relataram participa-ção em treinamento para exercer cargo atual, sendo os nutricionistas responsáveis pelos treinamentos (AGUIAR; KRAEMER, 2010). Assim, percebe-se a importância da educação não formal em prol da segurança alimentar em UAN’s.

Santos, Rangel e Azeredo (2010) avaliando as condições higienicossanitárias em restaurantes no Rio de Janeiro afirmam em seu estudo, que a capacitação dos manipuladores de alimentos, embora não tenha sido o item avaliado com maior per-centual de não conformidades (60%), é a parte mais crítica de todo o processo de produção de alimentos, uma vez que eles estão ligados a todos os itens, devendo por isto, estar capacitados em relação às Boas Práticas.

Tal afirmação concorda com resultados obtidos por Oliveira e Faria (2012), os quais avaliaram a contaminação nas mãos de manipuladores de alimentos em uma UAN em Cuiabá, MT. Os autores identificaram que, após a capacitação dos manipu-ladores para utilização de Procedimento Operacional Padronizado de higienização de mãos, os resultados obtidos para Estafilococos coagulase positiva foram satisfatórios.

Outro aspecto identificado nessa revisão foi em relação à percepção do risco,

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>Artigos

por parte dos manipuladores de alimentos sobre higiene alimentar em restaurantes comerciais, a qual pode comprometer a qualidade da refeição por não ser satisfatória, como mostra um estudo transversal realizado por Gonzalez (2009) em 42 restauran-tes na cidade de Santos. Nesse estudo os manipuladores de alimentos foram ques-tionados quanto ao perfil demográfico e educacional, conhecimento e à percepção do risco. O estudo identificou que a percepção do risco de intoxicação alimentar ao comer verduras cruas foi classificada como baixa, ao contrário da percepção do risco de um funcionário doente contaminar alimentos, que foi classificada como alta. Dos manipuladores de alimentos entrevistados 46% nunca haviam participado de treina-mentos em Boas Práticas de Produção (BPP). Com isso, o autor questiona a eficácia dos treinamentos bem como a frequência e as técnicas aplicadas sugerindo reformu-lações desses treinamentos.

Considerações finais

A gestão na qualidade de alimentos é subsidiada por várias legislações com a finalidade de oferecer alimentos seguros, além de favorecer a manutenção das em-presas no mercado consumidor.

Nos estudos que vem sendo realizados no País em relação à implantação de sis-temas de gestão da qualidade em alimentos, foram destacados os seguintes aspec-tos: relação entre a má qualidade do ambiente e a ausência de responsável técnico qualificado; falta ou deficiência de capacitação dos gestores dos estabelecimentos em relação às ferramentas de qualidade, destacando-se as Boas Práticas de Fabricação e desconhecimento da legislação; necessidade de capacitação especifica para os manipuladores de alimentos visando, entre outros aspectos, fornecer subsídios para que eles tenham real percepção dos perigos associados à manipulação incorreta dos alimentos e os riscos gerados para o consumidor.

Portanto, para garantia da qualidade dos alimentos, é de fundamental impor-tância que as empresas do ramo possuam no quadro de funcionários gestores e ma-nipuladores de alimentos com conhecimentos e práticas de trabalho compatíveis às legislações vigentes e requisitos para segurança dos alimentos, além de possuírem e implementarem planos de capacitação periódicos em relação as ferramentas da qua-lidade para gerentes e manipuladores.

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>Artigos

Referências

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>Artigos

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Alimentação e cultura: caminhos para o estudo da Gastronomia.

Frederico de Oliveira Toscano1

Resumo

O presente artigo tem como objetivo apontar caminhos e estratégias para se pensar a alimentação através da História sob uma perspectiva cultural. Através do trabalho de autores que abordam não apenas as relações do homem com o alimento, mas também as formas como a cultura alimentar se move dinamicamente através do tempo, pretende-se compreender melhor o papel que a comida, junto com os rituais a ela associados, influencia e sofre influências, refletindo a complexidade do desenvol-vimento humano.

Palavras-chave: História, Cultura, Alimentação.

1 Mestrando em História - Programa de Pós-graduação em História – Centro de Filosofia e Ciências Humanas - UFPE - Univ. Federal de Pernam-buco, Campus do Recife, CEP: 50670-901, Recife, Pernambuco - Brasil. Bolsista CNPq. Mestrando – UFPE.

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Abstract

The present article intends to point out pathways and strategies to think the act of feeding throughout History under a cultural perspective. Through the works of authors who approach not only the relationship between men and their food, but also the ways by which the food culture moves dynamically through time, this paper intends to better comprehend the role that food, along with the rituals associated with it, influences and suffers influences, thus reflecting the complexity of human development.

Key-words: History, Culture, Food.

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Alimentação, Cultura, e Identidade

O arcabuzeiro alemão Hans Staden de Homberg, oriundo da cidade de Hessen, estava em sua segunda viagem ao Novo Mundo. Na primeira, em 1549 havia visitado as costas das capitanias de Pernambuco e da Paraíba, tendo deixado a Europa a partir do reino de Portugal, metrópole que, poucas décadas antes, havia se deparado com uma parte das Américas de Cristóvão Colombo, tomando posse desse territó-rio. Retornou às terras natais e no ano seguinte, zarpando da Espanha, tornou à possessão portuguesa abaixo do Equador, dessa vez aportando no Sul do território, posteriormente seguindo viagem para a capitania de São Vicente. Era esta a terra que mais tarde originaria o estado de São Paulo e cujas matas fervilhavam de nações indígenas rivais, tais como os Tupiniquins, os Goitacás, os Carajás, os Maracajás, os Guaianás e os Tupinambás. Estes últimos haviam capturado o alemão enquanto este caçava pelas matas, decidindo, por fim, levar a presa para sua aldeia. E foi lá que Staden conversou com os seus captores, aprendeu parte dos seus costumes e língua, observou suas técnicas e artes, registrou o que pôde e aguardou a hora de ser morto e devorado pela tribo (STADEN, 2010).

O sacrifício, uma forma de entregar aos seres sobrenaturais uma dádiva, pode ser entendido, em sua “gênese”, como uma ligação entre o ordinário e o divino, uma forma primitiva de se estabelecer uma comunicação entre homens e deuses. Sua prática poderia envolver a morte de animais ou de homens, mas a constância do holo-causto, da morte em oferenda a algo ou alguém, tem perpassado diversas civilizações através do tempo, cada qual munida de rituais próprios que regem a relação entre o grupo que deseja o sacrifício e a vítima. Os costumes que porventura visassem pro-teger a sociedade dos Tupinambás, talvez proscrevendo o ritual do sacrifício, eviden-temente se aplicavam apenas aos indivíduos da tribo. Staden, um prisioneiro branco, jamais poderia tirar vantagem de tais benefícios, mesmo que os indígenas decidissem observar tais práticas. Passou algum tempo trocando de mãos entre chefes tribais, sendo por vezes bem tratado, em outras temido, sempre tratado com desconfiança e jamais como um igual. Seu papel era o de iguaria. Ao morrer, o europeu estaria dando algo para a tribo, representada pelo sacrificante, o carrasco que lhe tomaria a vida. E ao final, todos estariam modificados, pois como indica os antropólogos Marcel Mauss e Henry Hubert, “o sacrifício é um ato religioso que, mediante a consagração de uma vítima, modifica o estado da pessoa moral que o efetua ou de certos objetos pelos quais ela se interessa (MAUSS, 2005, p 19)”.

O banquete antropofágico, do qual Staden deveria, eventualmente, fazer parte na desafortunada posição de prato principal, já havia sido observado pelo europeu que, ainda que horrorizado pelo espetáculo que se apresentava aos seus sentidos, nem por isso deixou de buscar compreendê-lo. Interessado nos pormenores do que talvez viesse a ser o seu destino, o arcabuzeiro detalhou a forma como os indígenas escolhiam um carrasco que, munido de uma maça cerimonial, daria o golpe final na nuca do prisioneiro, matando-o imediatamente. Em seguida, seria arrastado pelas mulheres em direção à fogueira, tendo toda a sua pele arrancada e lá sendo deixa-do, para que finalmente seu corpo fosse separado em quatro pedaços. Estes seriam divididos entre os espectadores, sendo as vísceras reservadas para as mulheres, fervidas e transformadas em uma espécie de mingau, enquanto que às crianças ca-

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beriam o cérebro e a língua. Aquele que havia executado o prisioneiro era recoberto de grande honra, e era admirado até mesmo por membros de outras aldeias, também presentes durante o ritual. Staden, que acabaria por escapar do tenebroso fim que lhe era reservado, viveu para contar a história dos “selvagens” canibais que quase o haviam devorado na terra que viria a ser conhecia como Brasil (Idem, 2010).

Este relato, um dos mais antigos acerca da colônia, nessa época recém “desco-berta” pela coroa portuguesa, impressiona tanto pela assustadora riqueza de detalhes proporcionada por seu autor, quanto pela propensão de Staden de buscar entender os comos e porquês dos fatos que havia presenciado. Os Tupinambás, afinal de contas, eram caçadores, coletores e possuíam até mesmo sua própria agricultura, ainda que limitada. Alimentavam-se de peixes moquecados, farinha de mandioca e carne de animais diversos, tais como porcos selvagens, capivaras e tatus. Do milho, produziam o cauim, uma bebida sagrada utilizada em rituais (Idem, 2010). Se sua dieta era até certo ponto variada e, em dadas épocas, farta, por que, Staden pode ter se pergunta-do, matam outros homens e comem sua carne? É o próprio aventureiro que fornece a resposta, afirmando que

“Não fazem isto para saciar sua fome, mas por hos-tilidade e muito ódio, e, quando estão guerreando uns contra os outros, gritam cheios de ódio: debe marã pá, xe remiu ram begué, sobre você abata-se toda a des-graça, você será minha comida (Idem, 2010, p 157).”

E é nesse momento que se forma uma diferença crucial, que separa o simples ato de alimentar-se, ou seja, ingerir alimentos para saciar uma necessidade biológica, do de comer. O primeiro atende aos desmandos do corpo, enquanto o segundo dá vazão a um costume profundamente enraizado no espírito de um povo. Em outras palavras, é o homem que reveste de significado essa ação, atribuindo valores que orientam as causas, as formas e suas relações. Compreende-se então que o ato de comer é uma criação humana. Animais se alimentam para providenciar sustento para seu corpo e assegurar sua existência. Já as pessoas ressignificam essa necessidade fisiológica, cercando-a de simbolismos e fazendo do ato de comer uma ação social, religiosa e, em alguns casos, até mesmo política. A antropóloga Lilia Schwarcz, ao prefaciar a obra Farinha, feijão e carne-seca: um tripé culinário no Brasil colonial, de autoria de Paula Pinto e Silva, aponta bem esta distinção, quando afirma que

“... em um nível mais concreto simplesmente comemos – temos fome e nos saciamos -, de maneira mais abstrata pro-duzimos valores e sentidos quando pensamos estar lidando apenas com a nossa satisfação e mera sobrevivência. Tudo isso porque o homem não sobrevive apenas, mas antes in-venta significados para tudo o que faz (Silva, 2005, p 10).”

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Comer se compreende, portanto, como uma invenção, que é praticada por uma sociedade em sua totalidade e cuja complexidade independe do seu avanço tecno-lógico, adequando-se não apenas às necessidades nutricionais de um grupo, mas principalmente ao conjunto de crenças, práticas e tradições firmemente arraigadas na vivência de indivíduos que são tanto racionais quanto emocionais e que metamorfo-seiam alimentação em ritual. Ritual este que é praticado em diferentes níveis de pro-fundidade, porém inescapável, visto que se atrela a uma necessidade perene. Pode--se viver sem o consolo da religião, a satisfação da intelectualidade, os debates da política, a abstração da arte ou os prazeres do sexo, mas jamais sem o ato de comer e beber. Essa prática constante, cujas ramificações extrapolam a esfera da refeição em si, e que se alia a tantas outras que plasmam o comportamento dos sujeitos inseridos nas mais diversas realidades, converge junto a outras criações para formar aquilo que se convencionou chamar de cultura (RIEOX , 1999).

Os conceitos de cultura e, especialmente, o de História da Cultura, são até certo ponto fugidios e propensos a suscitar debates quanto a sua definição, mas sem dúvida partilham de um conceito que Peter Burke deixa bastante claro em sua obra Cultura Popular na Idade Moderna: a cultura é fruto de um aprendizado. Conhecimen-tos e tradições são passadas adiante através das gerações, repletas das particulari-dades que remetem à identidade de um determinado povo (BURKE, 2010). Aprende--se não apenas a falar a língua pátria, mas também, quase que junto ao leite materno que alimenta o ser humano em formação, as noções do que comer, como comer e por que comer. Dessa forma, fortalece-se a noção de unidade em um determinado grupo, seja ele uma tribo, um estado, uma região ou um país. Os indígenas que aprisionaram Hans Staden haviam desenvolvido uma identidade própria, uma criação cultural que atribuía significados fortemente identitários ao ato de devorar a carne dos inimigos derrotados. Ao fazê-lo, legitimavam não apenas sua vitória sobre o rival, mas também reafirmavam sua cultura e o sentido de união de sua nação. Banqueteando-se, pare-ciam clamar “Sou Tupinambá”.

Essa ideia de cultura atrelada à formação de uma identidade, especialmente a cultura alimentar, foi bem observada pelo sociólogo pernambucano Gilberto Freyre, ao afirmar que

“O paladar defende no homem a sua personalidade nacio-nal. É dentro da personalidade nacional e regional que prende o indivíduo de modo tão íntimo às arvores, às águas, às igre-jas velhas do lugar onde nasceu, onde brincou menino, onde comeu os primeiros frutos proibidos” (FREYRE, 2002, p 64).

Aprendemos a gostar e as desgostar de certas comidas dentro das idiossincra-sias inerentes à nossa cultura. E ao fazê-lo, contribuímos para a formação de uma identidade coletiva que nos define enquanto povo. Hans Staden, inconformado com um fim desprovido de sentido na barriga de um guerreiro Tupinambá, buscou enten-der as causas de um dos aspectos formadores da cultura dos seus captores. Se por um lado o europeu abominava a prática, por outro não se furtou a buscar explicar os motivos que levavam os indígenas ao banquete antropofágico. Dessa forma, pode-se

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pensar no relato de Staden como uma das primeiras discussões da cultura alimentar do Brasil e a sua inquietação lança reflexos que alcançam os dias atuais. O alemão, que por muito pouco escapou de ser devorado, segue sendo canibalizado a cada refeição entendida dentro da perspectiva cultural de um povo e como elemento defi-nidor de um grupo social. Assim é que, no Brasil, há quase quinhentos anos se come Staden e se sente a boca o gosto de feijoada, vatapá, buchada e cachaça. Porque ao comer, exercita-se não apenas o trato digestivo, mas também os músculos culturais, dessa forma desenvolvendo uma ideia de povo e de nação.

Alimentação e folclore

No início da segunda década do século XX, um jovem Gilberto Freyre caminha-va pelas ruas do Recife, perdido em pensamentos. Tendo chegado de viagens que o fizeram passar por Nova York, Nova Orleans, Munique, Londres, Paris e outras gran-des cidades do mundo, o estudioso andava desgostoso com a ambientação dos cafés que se haviam estabelecido na capital pernambucana. Tudo muito chic. Tudo muito afrancesado. Freyre, que nessa época já criava textos para o Diário de Pernambuco, pôs-se então a imaginar, em forma de artigo, qual seria o café ideal para o Recife. Que, em suas palavras, possuísse “cor local”. “Atmosfera”. O objetivo, pontificava o jovem escritor, seria fazer com que o turista, chegando de algum país estrangeiro, fosse capaz de desfrutar dos prazeres de uma mesa e um clima verdadeira e tipica-mente pernambucanos. Entusiasmado, o sociólogo entregava-se verborragicamente ao exercício de inventar tal lugar, que deveria comportar

“... uns papagaios em gaiolas de lata, côco verde à vontade pelo chão – não se serve côco verde nos café do Recife! – uma fartura de vinho de jenipapo, folhas de canela aromatizando o ar com seu pungente cheiro tropical. À noite, menestréis – cantado-res! – cantando ao violão trovas de desafio; num canto uma dessas pretalhonas vastas e boas, assando castanhas ou fazendo pamo-nha. Ao seu lado, quitutes e doces, ingenuamente enfeitados com flores de papel recortado, anunciando uma culinária e uma con-feitaria que constituem talvez a única arte que verdadeiramente nos honra. Isso sim, seria uma delícia de café” (Idem, 2009, p 21).

Freyre encerra o artigo lamentando a hesitação do seu tio, que o acompanhava em visita a uma confeitaria à francesa, em pedir um mate ou um caldo de cana. Mais elegante, naqueles tempos, era degustar de “um desses gelados de nome exótico”. Se a descrição do escritor de um café que exibia papagaios engaiolados e cocos rolando pelo assoalho chega a impressionar pelo regionalismo exacerbado, mais sintomático ainda é perceber que Freyre, na verdade, sente saudades de um lugar que jamais existiu, a não ser talvez em seu coração. Para ele, esse deveria ser o café pernambu-cano, ainda que inventado, embora admita em certo momento que “isso de atmosfera não se improvisa”. Em outras palavras, apenas os elementos típicos locais, de acordo com sua ótica, não eram suficientes. Era necessária também a vivência, a tradição. O

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costume legitimado pelo tempo. Além, evidentemente, de uma ferrenha indisposição acerca de elementos estrangeiros, especialmente os franceses, que nessa época se mostravam cada vez mais pronunciados no Recife (REZENDE, 2005).

Finalmente, o autor introduz um elemento que, mais do que os cantadores e seus violões, escancara sua visão particular do que é “popular”, ao se referir à negra quituteira, confortavelmente entregue ao seu papel na sociedade e ao seu ofício, re-miniscente ainda da época da escravidão. Uma carinhosa e patriarcal imagem que, possivelmente, remete à infância do sociólogo. Todas essas características da cons-trução do café tipicamente pernambucano de Freyre – a defesa de uma forma pura, um sentido não tão claro, porém prevalecente, de origem, a ideia de tradição, a opo-sição aos estrangeirismos, uma criação erudita e, possivelmente, elitista do conceito de “popular” atrelado a elementos de exotismo – se unem para formar uma imagem idealizada de um aspecto supostamente frágil da cultura nacional, que deveria ser protegido da mudança e defendido das influências externas. Um café, em suma, pro-fundamente folclórico.

As preocupações de Freyre remontam, em parte, ao “espírito de antiquário” apontado pelo historiador Renato Ortiz, em seu livro Românticos e Folcloristas, onde o autor discorre acerca das raízes da pesquisa folclórica na Europa, a partir do século XVI. Originando-se como uma coleta de curiosidades exibida por parte da intelectu-alidade de países como França, Inglaterra e Alemanha, inicialmente se concentrava em uma perspectiva elitista que observava os hábitos, superstições e histórias que faziam parte da vivência do “povo”. Essa problemática noção existia em oposição à de elite e era criada e sustentada pela mesma, que enxergava as vidas dos campo-neses sob um viés de exotismo, direcionando sua atenção até mesmo para o que poderia ser considerado bizarro ou estranho para as classes mais elevadas. Ou seja, uma cultura em separado, dona de características próprias, “popular” (CHARTIER, 1995). Contudo, é somente a partir do século XIX que os pesquisadores da cultura do “povo” passam a usar a denominação “folclorista”, com clubes de folclore surgindo em diversas cidades europeias. Já sob uma perspectiva romântica, o “povo” passa a ser ressignificados enquanto matriz original da nação, detentor de saberes e fazeres “au-tênticos”, necessitando ser protegidos das investidas exteriores que buscariam minar o patrimônio cultural da nação (ORTIZ, 2006).

O tempo passa a ser um inimigo, engolindo cruelmente tradições, que estariam fadadas ao esquecimento não fosse o trabalho árduo dos intelectuais que buscam não entender como a cultura de um povo opera suas mudanças através da História, mas de fato procuram preservar uma noção construída, romântica, idealizada e imu-tável de “popular”. Como afirma Ortiz

“Os folcloristas, no entanto, se assemelham mais aos inte-lectuais de província, Gramsci descreve como tradicionais. Reco-nhecendo a radicalidade das mudanças em curso, eles se voltam para uma operação de resgate. Os intelectuais orgânicos cami-nham a favor do tempo histórico, os tradicionais nadam contra a corrente, e procuram armazenar, em seus museus e bibliotecas, a maior quantidade de uma beleza morta” (Idem, 2006, p 40).

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O folclorista é, antes de tudo, um saudosista. Amedrontado pela inexorabilidade temporal, busca prender a cultura, cerceando seus movimentos. Procura pelo unicór-nio por sua pureza e exotismo e, ao encontrá-lo, cerca-o para que jamais escape, para que nenhum perigo possa vir a abater-se sobre ele, esperando que o mítico animal ali permaneça para sempre. Constrói um “museu de tranquilidade” para a fantástica cria-tura, empalhada por toda a eternidade em uma demonstração atemporal (CERTEAU, 1995).

Esse pensamento, evidentemente, não ficaria restrito apenas à Europa. O Brasil começou a produzir seus próprios folcloristas, mais notadamente a partir de 1922, quando aconteceu a Semana de Arte Moderna em São Paulo que, com resquícios de Hans Staden entre os dentes, professava uma antropofagia cultural. Os escritores Mario de Andrade e Rodrigo Melo Franco de Andrade buscaram coletivizar a cultura, tanto vertical quanto horizontalmente, buscando diminuir a distinção entre o saber culto e o popular. A partir de 1935, cursos de formação para folcloristas passaram a ser abertos, incentivando o estudo etnográfico de manifestações ditas “populares” (ABREU, 2003). Assim como fora do país, o folclore suscitou suas querelas, não ape-nas por sua propensão à buscar congelar práticas culturais no tempo e pela sua pro-blemática definição de “popular”, mas também por sua metodologia incipiente e a falta de um problemática acerca do objeto estudado, preocupando-se mais em preservar do que em reconstruir. Chamados de “intelectuais de província”, os folcloristas tiveram as portas da Academia fechadas para seus estudos e sua disciplina não chegou a ser reconhecida como uma ciência, ainda que tomasse emprestados conceitos da Antro-pologia e da Etnografia (OLIVEIRA, 2008).

Gilberto Freyre, que não era um folclorista e escreveu seu Manifesto Regionalis-ta como uma resposta as ideias divulgadas na Semana de Arte Moderna, ainda assim carregava consigo uma visão patriarcalista acerca de diversos aspectos da socieda-de brasileira. Sua nostalgia, principalmente acera de uma alimentação tipicamente pernambucana, evoca imagens de um romantismo protetor, que busca legitimar a tradição alimentar local, ainda que esta seja uma construção idealizada. Esse tradi-cionalismo ecoa fortemente nas palavras do folclorista potiguar Câmara Cascudo, que defendia a ideia de uma

“... eleição de certos sabores que constituem o alicer-ce de patrimônio seletivo no domínio familiar, de regiões intei-ras, unânimes na convicção da excelência nutritiva ou agradá-vel, cimentada através dos séculos (CASCUDO, 1983, P 19).”

Essas “eleições” de sabores, “unânimes” em “regiões inteiras”, como afirma o autor, levam a um sentido de pertencimento de um alimento, geralmente junto com os ingredientes e técnicas a ele associados, a uma determinada região ou localidade. Dessa forma, cria-se uma imagem coletiva de um patrimônio alimentar que precisa ser protegido e que jamais deve abandonar suas características originais, marchando incólume pela História, sendo preparado e consumido exatamente da mesma maneira desde a sua criação, ainda que não seja possível identificar com precisão de que for-ma ela se deu. A problemática desse pensamento pode ser sentida ao se buscar com-

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preender uma preparação culinária de forte apelo regionalista e intimamente ligada à cultura de um povo, como é o caso do acarajé. A iguaria, tradicionalmente associada à Bahia, possui uma reconhecida carga étnica e religiosa, sendo comida dos iorubas da África Ocidental, sofrendo influências do falafel árabe, tendo o grão-de-bico sendo substituído pelo feijão fradinho no Brasil. Frito em óleo de dendê fervente, tem sua massa aberta e acrescida de recheios variados, tais como vatapá, caruru, camarão refogado, pimenta e salada crua. Sua imagem é quase indissociável da baiana que o prepara e vende pelas ruas da cidade, quase sempre coberta da cabeça aos pés de trajes típicos e de forte apelo comercial e turístico (GOSTO, 2009, p 87).

Uma visão folclorista do acarajé poderia levar a crer que o alimento manteve sua forma, função e elementos constitutivos através do tempo, pouco ou nada mudan-do desde que trazido para o Brasil da África, na forma de bolinho de fogo, o acará, as-sociado ao verbo comer, ajeum. Contudo, como demonstra o antropólogo baiano Raul Lody, o prato sofreu, ao longo do tempo, diversas modificações, sendo os recheios e a forma de partir a massa, como um pão, inclusões tardias remontando à época da segunda guerra mundial e à presença de soldados americanos principalmente no nordeste do Brasil que, quando estacionados em Salvador, consumiam seus acarajés como uma espécie de sanduíche, um “acaraburguer” nas palavras de Lody (LODY, 2008). Por outro lado, o acarajé de Pernambuco, que pode ser encontrado em diver-sas vias do Recife, tais como a Dantas Barreto, a Agamenon Magalhães e várias ruas paralelas à Avenida Conde da Boa Vista, conserva características que o aproximam mais dos encontrados ainda nos dias de hoje em cidades africanas como Lagos e Por-to Novo. Bem menor do que soteropolitano, o acarajé recifense é produzido com feijão macassa e frito em óleo de soja ou milho mesmo. Trajes e adereços típicos inexistem e a conotação religiosa raramente é lembrada. Não há recheios, sendo acompanha-do, quando muito, de pimenta malagueta e algum camarão defumado (CARVALHO, 2010).

Apresenta-se aí uma questão interessante, opondo duas preparações culiná-rias que possuem significados e composições diversos, mas que partilham do mesmo nome e de algumas características em comum. O acarajé de Salvador, midiático, ge-neroso, enxergado como um patrimônio da cultura baiana, servido entre os paralele-pípedos e o casario colorido do alto do Pelourinho, que sofreu influências americanas em sua composição, é considerado como representativo dentro de uma ideia de pure-za construída através das décadas. Já o do Recife, diminuto, discreto, quase tímido, vendido entre os sebos e vendedores de rolete de cana do bairro da Boa Vista ou à sombra das palmeiras imperiais da Praça do Derby, possui uma aproximação muito maior com suas origens africanas e assim permanece até os dias de hoje, contudo não é costumeiramente reconhecido como tal. Qual seria, então, o acarajé verdadei-ro? A resposta, de fato, é “ambos”. A compreensão folclorista e estanque de cultura não é suficiente para explicar as mudanças ocorridas com a alimentação através da História.

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Culturas alimentares

As preparações culinárias se ressignificam, sofrem e exercem influências, trans-formando-se constantemente. Para se compreender tais processos, é preciso, antes de tudo, buscar entender as trocas operadas pelas culturas e de quais formas elas se modificam através do tempo. A ideia, como já se falou, de uma cultura intocada, espe-cialmente aquela que se convencionou a se referir como “popular”, como algo recal-cado em um nicho limitado, à parte do mainstream, suspenso no tempo e invulnerável às influências externas perde cada vez mais o seu sentido. Ao contrário, já é possível pensar em um folclore maleável, que exibe características regionais marcantes, mas que dialogue com as mudanças que ocorrem no mundo ao seu redor. Essa relação se dá, em grande parte, através de necessidades comerciais, que empurram o detentor do fazer popular, seja ele artesão, cantor, poeta ou quituteiro, a uma aproximação natural com uma ideia de modernidade. Ao se expandir os horizontes econômicos, abrem-se as portas para trocas culturais que, ao contrário do que se poderia pensar, não contribuem para a destruição de um bem cultural. Como brilhantemente afirma o pesquisador mexicano Néstor Canclini,

“O que não se pode dizer é que a tendência da moder-nização é simplesmente provocar o desaparecimento das cul-turas tradicionais. O problema não se reduz, então, a conser-var e resgatar tradições supostamente inalteradas. Trata-se de perguntar como estão se transformando, como interagem com as forças da modernidade (CANCLINI, 1997, p 218).”

O autor segue afirmando que o popular, afinal de contas, não se concentra nos objetos que fabrica, nem deve ser “congelado em patrimônios de bens estáveis”. Essa noção corrói a ideia do folclore engessado, aproximando sua visualização não de um lago de águas mortas, mas sim de um rio, em constante movimento, mas que não dei-xa para trás sua nascente. Como explica Canclini, “em vez de uma coleção de objetos ou de costumes objetivados, a tradição é pensada como ‘um mecanismo de seleção, e mesmo de invenção, projetado em direção ao passado para legitimar o presente’” (Idem, 1997, p 219).

Não é difícil trazer essa compreensão para o campo da alimentação, uma vez que essa dinamização acontece todos os dias. A tapioca, por exemplo, alimento de origem indígena, fabricado da massa de mandioca e cuja etnografia parte da palavra tupi mbeiú, que quer dizer “enrolado”, é considerada patrimônio imaterial da cidade de Olinda. Consumida pelos índios ensopada junto ao caldo da preparação de peixes e carne de caça, o beiju popularizou-se com o acompanhamento de coco adocica-do através das escravas de ganho das senhoras de engenho pernambucanas, que saíam pelas ruas da cidade a apregoar seus produtos (SOUTO MAIOR, 2004). A tapioca, bastante popular, continua sendo vendida nos dias de hoje, mas raramente é encontrada como um simples beiju dobrado com raspas de coco doce. No Alto da Sé, um dos pontos turísticos mais visitados da cidade de Olinda, tapiocas são ven-didas com os mais variados recheios e o limite dessa criatividade parece ser apenas

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a imaginação dos vendedores. Em cardápios de plástico, alguns até mesmo apre-sentando capengas explicações em inglês, é possível encontrar massas não apenas recheadas com queijo coalho, mas também camarão, bacon, catupiry, strogonoff, cho-colate, banana caramelada e até mesmo tapiocas vegetarianas, grávidas de rúcula e tomate seco. Continuam sendo tapiocas, mas seu leque de sabores, visando atender as necessidades de um mercado cada vez mais exigente e dinamizado, aumentou consideravelmente.

A mistura de ingredientes possui reflexos nas inter-relações culturais, mas anti-gas do que se poderia inicialmente supor. A ideia, evidentemente, vai se encontro ao pensamento folclórico de culturas “puras”, que estariam sob o risco de perder suas identidades através da internacionalização cultural. Como explica Gruzinsky,

“Mesmo reconhecendo que todas as culturas são híbridas e que as misturas datam das origens da história do homem, não podemos reduzir o fenômeno à formulação de uma nova ideologia nascida da globalização” (GRUZINSKY, 2001, p 41).

O autor quebra o conceito de um sistema impecável, que se desestabiliza com a introdução de um elemento estrangeiro. Na verdade, as misturas ou mestiçagens es-tariam, de fato, na raiz da ideia de cultura e não como um exotismo distante e desas-sociado de um elemento anterior puro. Não existe uma evolução ou marcha ordenada rumo á uma realidade idealizada, e sim uma aceitação de que a cultura é formada por elementos imprevistos e aleatórios, que interagem entre si de maneira caótica e ines-perada. Esse movimento constante, esse devir enlouquecido, rodopiando através do tempo entre paradoxos que não se limitam a um tempo presente, fundindo passado e futuro em um movimento incessante, se recusa a aceitar noções de “pureza” ou de “autenticidade”. Assim sendo, o estudo da alimentação sob uma ótica cultural deve ser encarado não dentro de limitações que cerceiem seu movimento, mas inserido nas inúmeras possibilidades que se apresentam ao pesquisador (DELEUZE, 2009).

Estas começam a ser percebidas com mais clareza não apenas pelo meio aca-dêmico, mas também pelo poder público e mesmo pela população, formando um triangulo de vértices claramente desiguais, mas que exibem uma crescente preocu-pação, cada um à sua maneira, com os rumos da Gastronomia local. Se por um lado existe um esforço de cunho folclorista para encapsular certas práticas e insumos em um nicho apartado do tempo e das inescapáveis mudanças que ele enseja, por outro a cultura alimentar frequentemente se mostra indomável, uma fera de beleza selva-gem e mutante, incapaz de dobrar-se docilmente ante o cabresto de limitações artifi-cialmente impostas. “É longo o tempo da culinária”, afirma o sociólogo Carlos Alberto Dória, ao referir-se à sua construção e sua relação com o ser humano que, afinal, a cria, mas raramente controla (DÓRIA, 2009, p 13). É longo também o tempo da cultu-ra, onde a alimentação está inexoravelmente inserida e cujo caminho se estende para um horizonte distante que promete apenas mutabilidade e incerteza. Serão estes os ingredientes primordiais de todos aqueles que se dedicarem ao estudo da Gastrono-mia, um cardápio em constante e imprevisível transformação. A mesa está posta.

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Cozinha de ingredientes: uma forma de atualizar tradições gastronômicas?

Joana A. Pellerano1

Luana Budel2

Talitha Ferreira3

Resumo

Apesar de passar, muitas vezes, despercebida diante da correria cotidiana cau-sada pela organização da sociedade contemporânea, a comida traz discussões que vão muito além da mesa. As crises de identidade regional e nacional; o uso de novos produtos brasileiros; a massificação dos gostos e texturas por conta da indústria ali-mentícia; a falta de compreensão e paciência dos comensais mediante a sazonalidade da natureza, e até mesmo o atual papel assumido pelos chefs de cozinha e cozinhei-ros, chamam a atenção e remetem a pensar a essência da comida: seus ingredientes. A junção de técnicas advindas da industrialização com as ideias que surgem dentro das cozinhas, além dos estudos à luz da História, Sociologia e Antropologia voltados à alimentação, a valorização e o maior conhecimento dos ingredientes - desde o trato com a terra à finalização de um prato - podem ser pensados justamente como uma metodologia de aproximação da teoria e da prática, sendo a cozinha de ingredientes um dos espaços possíveis para que isso aconteça. A cozinha de ingredientes visa explorar novas técnicas culinárias em produtos já cotidianamente utilizados, alterar as formas de lidar com os ingredientes de uma receita tida como tradicional ou típica e apresentar novos formatos para antigas preparações sem que se tema a perda de uma história e identidade que a sociedade estabeleceu com a comida, por meio da cultura, ao longo do tempo. O objetivo desse artigo é entender de que forma isso acontece, com base em pesquisas bibliográficas que exploram o conceito e as espe-cificidades dessa forma de cozinhar.

Palavras-chave: gastronomia, cozinha, ingredientes, tradição, sazonalidade

1 Possui graduação em Comunicação Social - Jornalismo pela Universidade Federal do Espírito Santo (2004), mestrado em Comunicação e Gas-tronomia - Universitat de Vic (2007) e pós-graduação em Gastronomia: Vivências Culturais - Centro Universitário Senac (2010). Está cursando mestrado em Ciências Sociais na PUC-SP - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e coordena a especialização Gastronomia: História e Cultura da unidade Aclimação, Senac São Paulo. 2 Formou-se em Gastronomia pela Universidade FMU de São Paulo, tem pós-graduação em Gastronomia: Vivências Culturais pelo Centro Uni-versitário Senac e atua como docente nos cursos de graduação em Tecnologia em Gastronomia e na pós-graduação em Gastronomia Funcional da Faculdade Método de São Paulo (Famesp) 3 Formou-se em Hotelaria (2005), especializou-se em Cozinha Internacional (2007) e tem pós-graduação em Gastronomia: Vivências Culturais (2009) pelo Centro Universitário Senac. Está cursando graduação em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

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Abstract

Though often unnoticed in face of the daily rush and the organization of contem-porary society, food can generate discussions that go far beyond the table. The crises of regional and national identity, the use of new Brazilian products, the massification of tastes and textures due to food industry; the lack of understanding and patience of the diners in face of seasonal nature and even the role played by chefs and cooks get our attention and lead us to think the essence of food: ingredients. The encounter between industrialization’s techniques and the ideas that emerge inside the kitchens, besides the studies in light of History, Sociology and Anthropology about food, the appreciation and greater knowledge about ingredients – from the labor with the soil to the final pre-sentation of a dish - can be thought as a methodology of approaching theory and prac-tice, and this form of looking to ingredients is one of the possible places to make this happen. The focus on ingredients aims to explore new culinary techniques in everyday products, change the ways of dealing with the ingredients of a typical or traditional re-cipe and show new ways for presenting ancient preparations without being subject to loss of identity or history that society established with the food through the culture over time. The goal of this paper is to understand how this happens, based on bibliographic research that explore the concept and characteristics of this form of cooking.

Keywords: gastronomy, cuisine, ingredients, tradition, seasonality

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Cozinha de ingredientes: uma forma de atualizar tradições gastro-nômicas?

Valorizar o ingrediente, fazendo com que seu sabor e frescor sejam notados pelo comensal: assim pode ser definida a cozinha de ingredientes. De acordo com Dória (2009. p.58), essa forma de cozinhar é “a expressão do esforço por inovar sem pagar tributo aos receituários tradicionais, isto é, aos usos históricos dos mesmos”.

As técnicas culinárias – seguidas à risca pelos profissionais da gastronomia e amplamente ensinadas dentro das escolas profissionalizantes de culinária e hotelaria – tendem a se difundir pelo mundo, perdendo a capacidade de diferenciar as especi-ficidades de uma culinária das demais. A vulgarização e estabilização de tais técnicas nas mãos de diferentes cozinheiros é fato já consumado e pode levar os muitos sabo-res de uma cozinha a uma homogeneidade e consequente monotonia: a cozinha de ingredientes aparece, portanto, como possibilidade de melhor desenvolver as prepa-rações culinárias e aguçar o conhecimento e criatividade dos cozinheiros, a favor do prazer do comensal. O objetivo desse artigo é entender de que forma isso acontece, com base em pesquisas bibliográficas que exploram o conceito e as especificidades dessa forma de cozinhar.

A cozinha de ingredientes implica em uma missão principalmente para os cozi-nheiros de conhecer a fundo, pensar e utilizar os ingredientes independentemente de seus “conceitos” pré-estabelecidos, suas origens, suas “amarras” histórico-culturais. Assim, tratando-se de culinária brasileira, todos os ingredientes aos quais os brasi-leiros podem ter acesso (sem restrições relacionadas às fronteiras geopolíticas) se tornariam possibilidades de criações culinárias criativas e originais. “O regionalismo culinário é [...] uma armadilha para o conhecimento. Ele serve para o turismo mais do que para a gastronomia”. (ATALA; DÓRIA, 2008, p. 197).

Para Dória, a capacidade de inovar depende justamente do repertório de ingre-dientes e produtos utilizados na experimentação gastronômica:

“A visão hierárquica do trabalho culinário é essencial para que a cozinha de ingredientes não se perca em discus-sões estéreis que só limitam o impulso criativo e renovador dos chefs de cozinha atuais. Ao mesmo tempo, ela exige que observemos nossa própria história culinária sob nova óptica – como história de ingredientes plasmados pela cultura bra-sileira, sejam eles nativos ou exóticos.” (Idem, 2009, p.61).

Relativamente nova, a cozinha de ingredientes depende da compreensão do consumidor a respeito da sazonalidade dos ingredientes e dos problemas energéti-cos e ambientais envolvidos na logística de transportar comida pelo mundo todo para tornar os alimentos eternamente disponíveis (DELIND, 2006). A lógica da sociedade moderna em relação ao consumo nem sempre caminha paralelamente à lógica da produção dos ingredientes que vêm diretamente da natureza: o deslocamento e alon-gamento das noções de tempo e espaço na modernidade, bem como descrito por

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Giddens (1998), faz com que as pessoas percam de vista as restrições atreladas a ambos, o que gera a constante impressão de que tudo está ao alcance em todos os lugares, o tempo todo.

Embora a qualidade dos produtos locais e, consequentemente, mais frescos, tenha sido reconhecida ao longo da História, o movimento de valorização das cozi-nhas regionais tem somente um par de séculos (MONTANARI, 2008). Até meados do século XVII, superar a dimensão local e encher a mesa de especialidades e experiên-cias - o que hoje é a síntese dos restaurantes self-service a quilo - era sinal de poder e ostentação. O conceito “local” surge quando se consolidam as identidades nacionais, e apenas o início do processo de globalização dos mercados e dos modelos alimenta-res faz germinar no homem o “gosto da geografia” (Ibidem, p.141).

Como o século XX evidenciou a potencial uniformidade dos estilos de vida, sur-ge entre as populações o medo de perder sua identidade. Cascudo, por exemplo, crê que o alimento representa o povo que o consome, dá “a impressão confusa e viva do temperamento e maneira de viver, de conquistar os víveres, de transformar o ato de nutrição numa cerimônia indispensável de convívio humano” (CASCUDO, 2004. p.387). A comida assume, então, uma categoria simbólica relevante na construção da identidade social, o que confere a ela grande importância dentro da estrutura da sociedade na qual se insere.

Para Fischler, “se a fórmula ‘diga o que comes que te direi quem és’ reflete [...] uma verdade não só biológica e social, mas também simbólica e subjetiva, há de se admitir que o comensal moderno, duvidando do que come, pode muito bem duvidar de quem ele é” (1995, p.212). As tradições alimentares, portanto, podem ter uma função emblemática de resistência cultural, e a identidade nacional - que é uma das principais fontes de uma identidade cultural, pois está relacionada ao que as pessoas são (ou acham e mostram ser) –, quando ameaçada, também pode ser reafirmada por meio de escolhas feitas à mesa. Esta última, então, torna-se terreno de disputa entre os ditames da história e as novidades do momento atual.

Para Poulain, a supervalorização do menu regional é sinal de crise identitária: “a patrimonialização do alimentar e do gastronômico emerge num contexto de transfor-mação das práticas alimentares vividas no modo da degradação e mais amplamente no do risco de perda da identidade” (Idem, 2004. p.38). Já Fonseca et al (2009, p.3856) reforçam que, apesar da “diversidade inerente aos sistemas alimentares, um aspecto é fundamental na significação da alimentação: a identidade. O comensal precisa se identificar com o alimento para reconhecê-lo e significá-lo” - necessidade que acaba se vendo ameaçada pelos mercados transnacionais, que causam o deslocamento dos alimentos de determinada origem geográfica para locais onde não são tradicio-nalmente associados. Nas palavras de Fischler (1995. p.211): “o alimento moderno já não tem identidade, pois não é identificável”.

O desconhecimento da origem de um alimento, portanto, cria a possibilidade da incorporação de algo possivelmente nocivo ao físico ou ao psicológico. Dessa forma cria-se, em especial nas grandes cidades, a valorização da “volta à natureza”, do sim-ples e do rústico; uma “nostalgia de um ‘espaço social’ em que o comedor viva sem angústia, ao abrigo de uma cultura culinária claramente identificada e identificante” (POULAIN, 2004, p.34).

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Assim nasce uma visão utópica da ruralidade: os habitantes do interior - que em teoria têm contato com a terra, local de onde nascem os alimentos - passam a ser guardiões do patrimônio gastronômico, e os ingredientes e modos de preparo típicos, baluartes da tradição, que devem ser valorizados e protegidos das coisas da moder-nidade. O ser cosmopolita, que habita as grandes cidades e que sente a pressão da variedade mundial roubar-lhe as lembranças do simples, passa a buscar refúgio na utopia desse lugar privilegiado, onde tudo é descomplicado, livre das pressões e im-pressões da vida contemporânea.

A partir disto, os ingredientes tradicionais passam a simbolizar esse estilo de vida simples e conquistam os interesses da sociedade não apenas por seu valor nos-tálgico, mas por sua raridade no espaço habitado pelo cosmopolita. Montanari ressal-ta que os ingredientes sempre foram causadores de uma interessante dicotomia: há comidas que se apresentam nas mesas simples e sofisticadas sem ao menos agradar aos comensais em volta delas. Os mais pobres as consomem por necessidade, e os mais ricos pela utopia de uma simplicidade (Idem, 2009).

Na gastronomia, a discussão e a reflexão teórica sobre os paradoxos da ali-mentação contemporânea auxiliam a se compreender assuntos cada vez mais pro-curados não só por quem cozinha, mas principalmente por quem come: slow food, cozinha tecnoemocional e comfort food são somente alguns dos vários movimentos (e conceitos) já criados em torno dos alimentos para determinar não só um ingrediente, mas também um conjunto de hábitos, preparos, espaços e características específicas que precedem o comer daqueles que buscam, por exemplo, resposta às produções de alimentos em larga escala, ou até mesmo à agitada vida urbana que impede que as pessoas apreciem suas comidas em um tempo considerado “ideal”. Assim, tem-se a impressão que esses movimentos trazem ao cotidiano da sociedade moderna, mesmo que lentamente, novos padrões alimentares e maiores transformações no hábito de comer, que serão realmente estabelecidos num futuro próximo, como que para as próximas gerações.

A cozinha de ingredientes aparece neste contexto de hiperexposição às novida-des, especialmente aquelas vinculadas à alimentação. Por conta disso, sua proposta funciona como um meio termo entre utilização de novas técnicas e aplicação de novos conhecimentos, e um paladar já costumeiro. É como observa Dória:

“Interessante é que nos grandes centros urbanos, onde é forte a pressão das culinárias do mundo todo, vivemos uma nova fase – talvez defensiva – de celebração da culinária bra-sileira. Com esforços próprios de estilização, muitos chefs ino-vadores buscam situar essa tradição no imaginário e nos dese-jos de um público consumidor ávido por novidades” (2009, p.9).

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Todavia, não há necessidade de enaltecer o passado com o intuito de preser-var-se das incertezas futuras. Ainda que fortemente enraizados na identidade social, os sistemas alimentares estão sempre expostos a influências externas e potenciais adaptações. Os cardápios vêm passando por processos de globalização há milhares de anos, iniciados com a troca de plantas e animais recém-domesticados muito antes das Grandes Navegações e do atual intercâmbio frenético de economias e culturas (KIPLE; ORNELAS, 2000).

A culinária de um povo, fazendo parte das estruturas sociais dele, mostra-se também como um sistema aberto e fica exposta às mudanças que provém do passar do tempo. Para Morin, uma mudança nestes sistemas acontece quando “sua exis-tência e a manutenção de sua diversidade são inseparáveis de inter-relações com o ambiente” (Idem, 2000. p.292). Elucidando as estrtuturas sociais: se um determinado sistema é fechado e monolítico, como uma pedra, representa aquele que está em estado de equilíbrio, visto que não troca matéria ou energia com o exterior. Já um sistema aberto possui uma relação termodinâmica com o exterior: “[...] as estruturas permanecem as mesmas, ainda que os constituintes sejam mutantes; assim acontece [...] com nossos organismos, onde nossas moléculas e nossas células renovam-se sem cessar, enquanto o conjunto permanece aparentemente estável e estacionário” (Idem, 2006, p.21).

Para Poulain (2004. p.31), “os particularismos nacionais e regionais não desa-parecem tão rapidamente”, pois são mais fortes e enraizados que qualquer novidade. Além disso, como aponta Montanari, as identidades culturais não são partes do DNA de um povo, mas estão constantemente adaptando-se às influências externas e às trocas com outras culturas: “as identidades, portanto, não existem sem as trocas cul-turais, e proteger a biodiversidade cultural não significa enclausurar cada identidade numa concha, mas, sim, conectá-las” (Idem, 2009. p.12).

Prova disso é que, mesmo em uma época em que as refeições já não feitas em casa, o interesse pela cozinha brasileira cresce a cada dia (DÓRIA, 2009). Seja por moda, saudosismo ou preocupação com os caminhos que a identidade nacional anda percorrendo, enquanto o local for valorizado, o foco no ingrediente - seja tanto por par-te de quem cozinha quanto de quem come- promete ter lugar garantido nos cardápios rotineiros e trazer novas experiências aos comensais, que poderão provar o novo por meio do tradicional.

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A restauração nos meios de hospedagem: uma abordagem

teórica sobre a importância da garantia da qualidade nos alimentos

Rosislene de Fátima Fontana1

Resumo

Partindo do princípio de que os empreendimentos hoteleiros não fornecem so-mente o serviço de hospedagem, mas sim também serviços de alimentação, o pre-sente artigo caracteriza-se como um estudo teórico a respeito da importância das Boas Práticas para o setor de restauração dentro dos meios de hospedagem, sendo esse o objetivo geral do mesmo. Visando um melhor entendimento dos leitores, apre-senta conceitos e explanações sobre o setor de restauração dos empreendimentos hoteleiros, bem como sobre a segurança de alimentos, as boas práticas e, do manual de boas práticas.

Palavras-chave: empreendimentos hoteleiros; restauração; manual de boas práticas.

1 Possui graduação em Turismo e Hotelaria pela Universidade Norte do Parana (2001), graduação em Processamento de Dados pela Universida-de Norte do Parana (1994), mestrado em Hospitalidade pela Universidade Anhembi Morumbi (2005). Especialização em Gestão da Segurança de Alimentos pelo SENAC - PR (2011). Doutoranda em Turismo e Hotelaria pela Universidade do Vale do Itajaí - SC. Docente titular da UNIOESTE - campus Foz do Iguaçu, trabalhando com o curso de Hotelaria. Atualmente está como Coordenadora do Curso de Hotelaria. Tem experiência na área de Turismo, atuando principalmente nos seguintes temas: turismo, turismo rural, hospitalidade, hotelaria e comunicação.

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Abstract

Assuming that the tourist resorts not only provide the hosting service, but also food services, this article is characterized as a theoretical study about the importance of Practice for the catering industry within the means hosting, which is the general purpose of it. Seeking a better understanding of readers, presenting concepts and ex-planations about the sector of restoration of tourist resorts, as well as food safety, best practices, and the manual of good practice.

Keywords: tourist resorts, restaurants, good practice manual.

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Introdução

Feliz o homem que come comida, bebe bebida, e por isso tem alegria (FERNAN-DO PESSOA).

A refeição tem sido uma ocasião ímpar para a prática da sociabilidade do ser humano e, desta forma, a alimentação está ligada aos setores de produção, abasteci-mento e consumo, tendo ainda vínculo com a nutrição.

Com origem no ‘caldo restaurador’, a palavra restauração deu origem ao restau-rante. Hoje, o setor da restauração engloba não apenas os restaurantes, mas todos os estabelecimentos comerciais destinados a alimentar as pessoas (FREIXA; CHAVES, 2008).

A empresa hoteleira tem como princípio básico oferecer hospedagem a determi-nada clientela. Porém, a maioria dos estabelecimentos hoteleiros oferece não somen-te o alojamento, como também a alimentação e demais serviços.

A área de restauração é a mais complexa dentro da estrutura organizacional e funcional do empreendimento hoteleiro, contemplando espaços como, por exemplo, restaurante, cozinha, copa, bar e banquetes, dependendo do tamanho da estrutura física e dos serviços oferecidos aos clientes (CASTELI, 2006).

Dessa forma, entende-se que os serviços de restauração oferecidos dentro de uma empresa hoteleira devem primar pela qualidade dos mesmos. Qualidade essa que aliada a inocuidade dos alimentos tem se constituído uma das principais preocu-pações dos consumidores.

Dia após dia, os consumidores vêm se conscientizando de seus direitos com relação à aquisição de produtos ou serviços, inclusive os que tangem a produção e comercialização de alimentos.

A produção de alimentos com qualidade assegurada representa um importante desafio ao setor de restauração. Implementar ações para assegurar a qualidade exige muito comprometimento e envolvimento de todo o pessoal relacionado ao processo produtivo.

Diversos são os instrumentos utilizados para atingir os objetivos referentes à qualidade do alimento oferecido ao consumidor e, um destes instrumentos é a adoção das Boas Práticas de Fabricação (BPF) (NETO, 2005).

Sendo assim, entende-se que o empreendimento hoteleiro também deve buscar pela qualidade e segurança dos alimentos oferecidos no setor da restauração hote-leira.

Dessa forma, o presente artigo tem como objetivo demonstrar, por meio de um estudo teórico, a importância das Boas Práticas na Restauração para a segurança alimentar nos empreendimentos hoteleiros.

A metodologia deste artigo está centrada na pesquisa e coleta de informações de ordem teórica viabilizada, portanto, através de levantamento bibliográfico em livros e em periódicos que abordam o tema em questão.

Trata-se portanto de um trabalho de caráter descritivo qualitativo, com pesqui-

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sa bibliográfica e documental. Para Andrade (2006), na pesquisa descritiva os fatos são registrados, analisados, classificados e interpretados, sem a interferência do pes-quisador, ou seja, procura-se descobrir a freqüência com que um fato ocorre, sua natureza, características, causas, relações com outros fatos. Caracteriza-se como pesquisa qualitativa, pois busca-se a análise de dados para a elaboração do trabalho a partir de fontes fidedignas sobre o tema em questão. De acordo com Gil (1999) a pesquisa bibliográfica é desenvolvida a partir de livros e artigos científicos, pautada no levantamento e na análise de diferentes fontes bibliográficas já tratadas. Similarmente à pesquisa bibliográfica, a pesquisa documental consiste em uma abordagem de apoio às diversas pesquisas. O que difere essencialmente a pesquisa bibliográfica e documental é a natureza das fontes (GIL, 1999).

1. Conhecendo o empreendimento hoteleiro e a restauração nele praticada

O desenvolvimento dos meios de hospedagem iniciou há muito tempo, devido à necessidade de abrigo durante viagens.

De acordo com o Regulamento Geral dos Meios de Hospedagem (BRASIL, 2002, p.1), no seu artigo 2º, “[...] considera-se empresa hoteleira a pessoa jurídica, constituída na forma de sociedade anônima ou sociedade por quotas de responsabi-lidade limitada, que explore ou administre meio de hospedagem e que tenha em seus objetivos sociais o exercício da atividade hoteleira [...]”.

Para Castelli (2003, p.56) “Uma empresa hoteleira pode ser entendida como sendo uma organização que, mediante pagamento de diárias oferece alojamento a clientela indiscriminada”.

Na atualidade existem variações de meios de hospedagem adequados para atender as necessidades dos mais variados públicos, desde mochileiros, até hóspe-des exigentes que procuram atendimento de alta qualidade e luxuosas instalações.

Os meios de hospedagem são empreendimentos que prestam serviços, - quan-do vendem apartamentos, serviços de lavanderia, etc. -, transformam matérias primas em produtos - como é o caso do setor de A&B – Alimentos e bebidas (Restauração) -, e revendem produtos que não foram transformados no estabelecimento, como re-frigerantes, chocolates, dentre outros, exercendo uma atividade comercial (BOEGER, YAMASHITA, 2005).

1.1 A restauração nos meios de hospedagem

O setor de restauração (conhecido também como A&B) constitui peça funda-mental para o funcionamento de um hotel e é, geralmente, entendido como o setor de organização mais complexa dentro deste tipo de empreendimento. Ali, a exigência de mão-de-obra qualificada e especializada é maior, e seu custo é cerca de 2,5 vezes mais alto do que nos outros setores do negócio (CASTELLI, 2006).

Para muitos hotéis a restauração é um negócio rentável na medida em que ela é dotada de excelente organização e controle, sob o comando de um bom adminis-trador.

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O agrupamento de setores como cozinha, restaurante, bar, copa, banquetes e stewarding sob a direção única do gerente de A&B oferece vantagens como: poder coordenar os setores sob sua responsabilidade em razão de sua vasta experiência na área que o cargo exige, bem como distribuir o trabalho de seu pessoal em função das necessidades do serviço (CASTELLI, 2006).

O setor de restauração de um hotel de grande porte pode oferecer diversas opções de restaurantes, desde lugares mais econômicos até restaurantes caros e sofisticados. Pode ainda operar em banquetes, eventos, chás, serviço de buffet, room service e diversos bares e lounges (DAVIES, 2001).

2. As boas práticas de fabricação e a restauração

Quando o homem aprendeu a cozinhar os alimentos, surgiu uma profunda dife-rença entre ele e os outros animais (ARIOVALDO FRANCO).

“O alimento seguro para o consumo é aquele que não oferece riscos significati-vos de promover qualquer alteração deletéria nos mecanismos fisiológicos do consu-midor [...]” (NETO, 2005, p. 12).

A alimentação oferecida em hotéis, restaurantes e demais locais de atendimento ao público faz parte da chamada alimentação coletiva, a qual difere da alimentação doméstica e dos alimentos processados industrialmente.

Dessa forma, é fundamental que todo estabelecimento de alimentação coletiva, se preocupe e busque preparar e oferecer aos seus clientes alimentos de qualidade, visando a saúde e bem estar dos mesmos.

Essa preocupação é justificada pela necessidade de redução de desperdício, para atender as expectativas dos consumidores, exigências de legislação, para evitar custos para a própria empresa e principalmente, oferecer alimentos seguros aos con-sumidores, entendendo por alimento seguro aquele que não causa danos à saúde e à integridade dos consumidores.

Sendo assim, a ideia básica em qualquer processo de produção de alimentos é a segurança alimentar, visando garantir o oferecimento de alimentos seguros aos consumidores.

Como conseguir a produção de alimentos seguros?

A adoção das Boas Práticas de Fabricação (BPF) representa uma importante ferramenta para o alcance de níveis adequados de qualidade e, mais especificamen-te, de segurança alimentar, contribuindo significativamente para a garantia da qualida-de global do produto final (NETO, 2005).

A Resolução RDC 216, que dispõe sobre o Regulamento Técnico de Boas Práti-cas para Serviços de Alimentação, considera locais que oferecem serviços de alimen-tação o estabelecimento onde o alimento é manipulado, preparado, armazenado e ou exposto à venda, podendo ser consumido ou não no local (ANVISA, 2004).

Dessa forma, como um dos produtos/serviços oferecidos pelos meios de hospe-dagem é a alimentação, os empreendimentos hoteleiros devem estar atentos às boas condições higiênico-sanitárias, procurando obedecer às normas técnicas pré-estabe-

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lecidas por órgãos da vigilância sanitária, os quais citam a higienização adequada da edificação, instalações, equipamentos, utensílios, armazenamento, temperatura, hi-giene pessoal dos manipuladores de alimentos, entre outros, pois obedecendo todas as normas seguramente estará servindo um alimento inócuo e de qualidade.

2.1 Falando sobre segurança alimentar

Sabendo que o alimento seguro é aquele que não causa danos à saúde do con-sumidor, a produção de alimentos com qualidade assegurada representa um impor-tante desafio para o setor de alimentação (NETO, 2005).

Para Kuaye (1995 apud CARDOSO, 2005, p. 4), “[...] na área de alimentos quan-do se pensa em qualidade, o primeiro parâmetro evidenciado é a inocuidade dos alimentos, seguido por características físico-químicas e sensoriais [...]”. Sendo assim, além de apresentar características de sabor, aroma, textura e aparência agradáveis aos consumidores, os alimentos não devem causar danos à saúde de quem os ingere.

O termo ‘segurança alimentar’ começou a ser utilizado após a I Guerra Mundial, uma vez que ficou claro durante a guerra que um país poderia dominar o outro con-trolando o fornecimento de seus alimentos, sendo portanto a alimentação, uma arma poderosa, adquirindo assim, um significado de segurança nacional para cada país (MALUF; MENEZES, [S.I]).

Segundo a Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (apud MILAGRES, 2005, p. 3):

Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) é a realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base prá-ticas alimentares promotoras de saúde, que respeitem a diversidade cultural e que sejam social, econômica e ambientalmente sustentáveis.

Como a preocupação com a qualidade dos alimentos oferecidos ao consumidor é constante em todos os níveis da cadeia alimentar, e ainda, tendo em conta que uma das maneiras de se oferecer alimentos seguros é evitar que alguns perigos estejam presentes nos alimentos, faz-se necessário alguns esclarecimentos sobre tais perigos.

A ideia básica a ser estabelecida em qualquer processo de produção de alimentos é a detecção de perigos potenciais inerentes às matérias-primas, aos processos e produtos e o seu estudo para reduzir, tanto quanto possível, sua probabilidade de ocorrência (NETO, 2005, p.12-13).

Os perigos nos alimentos podem ser divididos em: biológicos, químicos e físicos. Os perigos biológicos “[...] são provocados por microrganismos (bactérias, vírus, fun-gos, entre outros) que não podemos ver a olho nu, mas que são as principais causas de contaminação dos alimentos” (SEBRAE-SP, 2004, p. 6). Já os perigos químicos são aqueles provocados por desinfetantes, produtos para matar pragas, antibióticos,

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agrotóxicos entre outros venenos, enquanto que os perigos físicos são os materiais que podem machucar, como pregos, espinhas de peixe, pedaços de vidros, entre ou-tros. (SEBRAE-SP, 2004).

Os perigos podem ser controlados através das Boas Práticas de Fabricação, nas indústrias de alimentos, ou Boas Práticas de Manipulação (BPM) ou ainda, para a produção primária, Boas Práticas Agrícolas (BPA).

Portanto, de acordo com os conceitos abordados, é possível definir segurança alimentar como a garantia de acesso ao alimento em quantidade e qualidade adequa-das, de forma permanente, aproveitando o máximo dos nutrientes, onde os mesmos são preparados de forma a não oferecer perigo à saúde do consumidor.

2.2 Entendendo as Boas Práticas

De acordo com a Cartilha para Boas Práticas para Serviços de Alimentação, elaborada pela ANVISA, as Boas Práticas são “[...] práticas de higiene que devem ser obedecidas pelos manipuladores desde a escolha e compra dos produtos a serem utilizados no preparo do alimento até a venda para o consumidor” (ANVISA, p. 6).

Portanto, as Boas Práticas são procedimentos de higiene adotados na condução de etapas produtivas que visam à segurança da saúde do consumidor nos diferentes setores da cadeia produtiva, do campo à mesa.

Boas Práticas são práticas de higiene recomendadas para o manuseio de ali-mentos, visando à obtenção de produtos seguros. São práticas preventivas, incluindo aspectos desde a produção no campo até a mesa do consumidor final (SEBRAE-SP, 2004).

Aspectos como higiene pessoal, limpeza e sanificação de equipamentos e uten-sílios, exame regular de áreas internas e externas para detecção de insetos e roedo-res e a qualidade da água assegurada, são alguns fatores que devem ser observados para que a empresa aplique as Boas Práticas.

As Boas Práticas são práticas internacionais, tendo como base o Codex Ali-mentarius2, utilizadas em quase todos os países. A falta da implementação das Boas Práticas pode levar à contaminação dos alimentos, causando males aos indivíduos que os consumirem.

2 Codex Alimentarius: Programa conjunto da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação – FAO – e da Organização Mundial da Saúde - OMS. Trata-se de um fórum internacional de normalização sobre alimentos, criado em 1962, e suas normas tem como finalidade proteger a saúde da população, assegurando práticas equitativas no comércio regional e internacional de alimentos, criando mecanis-mos internacionais dirigidos à remoção de barreiras tarifárias, fomentando e coordenando todos os trabalhos que se realizam em normalização (SENAC, [S.I.]).

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A legislação prevê que alguns procedimentos contemplados pelas Boas Práticas sejam destacados com uma estrutura diferenciada em relação à descrição, ao moni-toramento, à determinação de ações corretivas, registro e verificação. Esses proce-dimentos são os POP3 ou os PPHO4, cuja utilização, de um ou do outro, depende do setor a ser trabalhado, do órgão responsável pela fiscalização (MS ou MAPA) e da consequente legislação (SENAC, [S.I]).

Se as Boas Práticas são um conjunto de procedimentos higiênico-sanitários em-pregados na produção de alimentos, o sistema APPCC – Análise dos Perigos e Pon-tos Críticos de Controle - é uma metodologia que garante a produção de alimentos seguros à saúde do consumidor, por meio da identificação, avaliação e controle dos perigos nas etapas onde o controle é considerado crítico (SENAC, [S.I.]. A metodolo-gia APPCC é o mais recente conceito de controle higiênico-sanitário em alimentação, responsável por avaliar a eficácia e efetividade dos processos, meios e instalações, bem como dos controles utilizados na produção, armazenamento, transporte, distri-buição, comercialização e consumo de alimentos de forma a proteger a saúde do consumidor (CASTELLI, 2006).

O sistema APPCC consiste basicamente nos seguintes passos (CASTELLI, 2006, p. 367):

a) conhecer as operações por que passam os alimentos em seu processo de produção, identificando os perigos, avaliando sua severidade e seus riscos;

b) identificar os pontos críticos de controle de cada operação;

c) instituir medidas preventivas e estabelecer critérios para assegurar o controle;

d) monitorar rotineiramente cada ponto crítico de controle e registrar os dados;

e) agir corretivamente sempre que os resultados do monitoramento não forem satisfatórios.

Os perigos podem estar presentes nas matérias primas, no ambiente, no homem e nos animais, desta forma, torna-se imprescindível que o APPCC seja aplicado com a máxima seriedade e obedecendo ao rigor necessário para assegurar a segurança do alimento a ser oferecido ao consumidor.

Como uma das principais causas de contaminação dos alimentos está no ser humano, a higiene pessoal é de suma importância para a implementação das Boas Práticas. Cuidados com as mãos, cabelos, roupa de proteção, hábito de fumar e, re-alização de exames médicos periódicos, fazem parte da higiene pessoal (CASTELLI, 2006).

Com relação à higiene ambiental, cabe ressaltar que é necessário conhecer os materiais e métodos utilizados para a higienização de pisos, paredes, tetos, equipa-mentos e utensílios, uma vez que a contaminação dos alimentos também ocorre em decorrência da falta de higiene ambiental. 3 POP: Procedimento Operacional Padronizado.4PPHO: Procedimento Padrão de Higiene Operacional.

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O efeito geral da adoção das Boas Práticas é a redução de custos de um proces-so em sua concepção mais ampla.

2.3 O Manual de Boas Práticas

A Resolução RDC 216/2004, da ANVISA, dispõe sobre o Regulamento Técnico de Boas Práticas para Serviços de Alimentação e foi criada para proteger a saúde da população contra doenças provocadas pelo consumo de alimentos contaminados. Suas regras auxiliam comerciantes e manipuladores a prepararem, armazenarem e venderem os alimentos de forma adequada, higiênica e segura, com o objetivo de oferecer alimentos saudáveis aos consumidores.

A RDC nº 216/2004, em seu anexo C, considera como Manual de Boas Práticas (CASTELLI, 2006, p.355):

O documento que descreve as operações realizadas pelo estabelecimento, in-cluindo, no mínimo, os requisitos higiênico-sanitários dos edifícios, a manutenção e higienização das instalações, dos equipamentos e dos utensílios, o controle da água de abastecimento, o controle integrado de vetores e pragas urbanas, a capacitação profissional, o controle da higiene e saúde dos manipuladores, o manejo de resíduos e o controle e garantia de qualidade do alimento preparado.

Desde a publicação da Portaria 1428/MS, de 1993, as empresas que produzem ou de serviços de alimentação devem descrever os procedimentos de Boas Práticas implementados na empresa em documento específico denominado Manual de Boas Práticas. Desta forma, o Manual de Boas Práticas deve expressar a realidade da empresa, ou seja, que a mesma faz efetivamente com relação aos procedimentos de Boas Práticas (SENAC, [S.I.]).

Segundo o Anexo C da RDC 216/2004, os serviços de alimentação devem dispor de um Manual de Boas Práticas e de POP’s, de tal forma que tais documentos estejam acessíveis aos funcionários envolvidos e ainda, disponíveis à autoridade sanitária, quando requerido.

Os POP’s devem conter as instruções seqüenciais das operações e a freqüência de execução, especificando o nome, o cargo e ou a função dos responsáveis pelas atividades. Devem ser aprovados, datados e assinados pelo responsável do estabe-lecimento (ANVISA, 2004).

Sendo o POP um documento que descreve passo a passo como executar as ta-refas no estabelecimento, destacando as etapas da tarefa, os responsáveis por fazê--la, os materiais necessários e a freqüência em que deve ser feita, torna-se dever de cada manipulador, seguí-lo, objetivando a inocuidade dos alimentos a serem disponi-bilizados para o consumo.

Os serviços de alimentação devem implementar POP’s relacionados aos seguin-tes itens (ANVISA, 2004): higienização de instalações, equipamentos e móveis; con-trole integrado de vetores e pragas urbanas; higienização de reservatórios; higiene e saúde dos manipuladores.

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Os POP’s referentes às operações de higienização de instalações, equipamen-tos e móveis devem conter as seguintes informações: natureza da superfície a ser higienizada, método de higienização, princípio ativo selecionado e sua concentração, tempo de contato dos agentes químicos e ou físicos utilizados na operação de higie-nização, temperatura e outras informações que se fizerem necessárias. Quando apli-cável, o POP deve contemplar a operação de desmonte dos equipamentos (ANVISA, 2004).

Com relação a controle integrado de vetores e pragas urbanas, os POP’s de-vem contemplar as medidas preventivas e corretivas destinadas a impedir a atração, o abrigo, o acesso e ou a proliferação dos mesmos. Quando da adoção de controle químico, o estabelecimento deve apresentar comprovante da execução de serviço fornecido pela empresa especializada contratada, com as informações estabelecidas em legislação sanitária específica (ANVISA, 2004).

Os POP’s referentes à higienização do reservatório devem seguir as mesmas especificações dos utilizados para a higienização de instalações, equipamentos e mó-veis, mesmo quando realizada por empresa terceirizada, sendo que neste caso deve ser apresentado o certificado de execução do serviço.

Quanto a higiene e saúde dos manipuladores, devem contemplar as etapas, a freqüência e os princípios ativos usados na lavagem e anti-sepsia das mãos dos mes-mos, assim como as medidas adotadas nos casos em que estes apresentarem lesão nas mãos, sintomas de enfermidade ou suspeita de problemas de saúde que possa comprometer a qualidade higiênico-sanitária dos alimentos. Deve ainda especificar os exames aos quais os manipuladores de alimentos devem ser submetidos, bem como a periodicidade de sua execução. O programa de capacitação dos manipuladores em higiene deve ser descrito, sendo determinada a carga horária, o conteúdo programá-tico e a freqüência de sua realização, mantendo-se em arquivo os registros da partici-pação nominal dos funcionários (ANVISA, 2004).

Sendo assim, o Manual de Boas Práticas é um documento que descreve o tra-balho executado no estabelecimento e a forma correta de fazê-lo. Nele podemos en-contrar informações gerais da operacionalidade dos serviços executados tais como: limpeza, controle de pragas, a água a ser utilizada, os procedimentos de higiene e controle de saúde dos manipuladores, o treinamento dos funcionários, a destinação do lixo; buscando portanto, a garantia da produção de alimento seguros e saudáveis para o consumidor.

2.4 A Importância das boas práticas para os meios de hospedagem

A busca pela excelência é hoje uma preocupação primordial dos estabelecimen-tos turísticos, hoteleiros e gastronômicos, visando atender às necessidades dos con-sumidores.

Ao se pensar nos fatores que determinam a escolha dos consumidores por de-terminado empreendimento ao invés do outro com a oferta do mesmo serviço, pode-mos nos deparar com uma gama enorme de motivos que levam a tal escolha.

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Sendo assim, não basta apenas vender o serviço, é necessário criar experiên-cias novas e prazerosas aos consumidores e, em se tratando de serviços de alimen-tação, isso se torna, em muitos casos, o diferencial entre um estabelecimento e outro.

Para Molina (apud FISCHER, 2003, p.9):

En el contexto de los mercados modernos los restaurantes y hoteles, para lograr altos índices de competitividad, calidad y productividad, deberán promover el diseño y desarrollo de Sistemas de Servicios desestandarizados, para atender con éxito a una demanda conciente del valor de lo diferente, de lo único, y de la individualidad de sus miembros5.

Os clientes de hoje são pessoas mais informadas e exigentes e conhecedoras de seus direitos, desta forma, quanto mais qualidade de serviços puder ser apreciada pelo consumidor, maior será a garantia de clientes fiéis e consequentemente, maior rentabilidade financeira para o empreendimento.

As Boas Práticas devem ser elaboradas e implantadas como requisito inicial de uma empresa de produtos ou de serviços de alimentação: onde será a produção; que características organizacionais (administrativas, para a produção e para o gerencia-mento ou gestão) existem; o que é necessário dispor para uma produção higiênica (equipamentos, água, pessoal treinado, higiene e saúde dos operadores, matérias--primas e ingredientes, insumos, procedimentos de higiene e de operacionalização e outros); o que será produzido – identidade e qualidade do produto final; que aspectos da legislação devem ser cumpridos, como dizeres de rotulagem, cumprimento das normas e especificações do produto final, etc.

Buscando garantir a implementação das Boas Práticas, todos os procedimentos são descritos no Manual de Boas Práticas, sendo que todos os manipuladores tem acesso ao mesmo.

Ora, se por meio das Boas Práticas é possível garantir um alimento seguro para o consumo dos seres humanos, o setor de restauração nos meios de hospedagem tem, com base na legislação vigente para os serviços de alimentação, a necessidade de implementação das mesmas.

E, para garantir que os processos de manipulação dos alimentos sejam execu-tados de acordo com o contido na RDC 216/2004, torna-se necessário a elaboração do Manual de Boas Práticas, de tal forma que fique documentado e disponível para os funcionários e autoridade sanitária, os procedimentos operacionais seguidos pelo empreendimento.

Acredita-se que com a elaboração do Manual de Boas Práticas para o setor de restauração dos meios de hospedagem, haverá um maior controle e rigor com rela-ção à produção dos alimentos servidos aos hóspedes e clientes de um modo geral, garantindo a segurança alimentar e consequentemente, uma qualidade assegurada para os consumidores.

Observa-se também que, com a implementação das Boas Práticas e a elabo-ração do Manual de Boas Práticas para o setor de restauração dos meios de hospe-dagem, o empreendimento terá um diferencial a ser oferecido aos seus clientes, uma 5 No contexto de mercados modernos restaurantes e hotéis, para alcançar altos níveis de qualidade, competitividade e produtividade, deve promover a concepção e desenvolvimento de normas de Sistema de Serviço para cumprir com êxito a uma demanda consciente do valor do diferente, do único, e da individualidade de seus membros (traduçao nossa).

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vez que os consumidores tem buscado por alimentos seguros e ambientes adequa-dos ao seu grau de exigência, necessidades e desejos.

Considerações Finais

A preocupação constante com os problemas causados à saúde em razão do consumo de alimentos contaminados tem contribuído de forma substancial para que as empresas do ramo da alimentação estejam cada vez mais preocupadas com a qualidade do produto/serviço oferecido ao mercado.

Todas as empresas tem por obrigação cumprir com as legislações pertinentes à higiene de manipulação dos alimentos, de tal forma que se evite a contaminação dos mesmos.

Além de cumprir com a legislação vigente, algumas empresas tem adotado como diferencial a implantação das Boas Práticas por meio da elaboração e aplicabilidade de um manual, o qual a empresa segue para garantir a qualidade e segurança alimen-tar dos produtos/serviços ofertados ao mercado.

Sendo assim, a criação do Manual de Boas Práticas para o setor de restauração nos meios de hospedagem torna-se um aliado essencial para a garantia de práticas corretas de higiene, objetivando a produção de qualidade e evitando-se dessa forma, as DTA’s – doenças transmitidas por alimentos, tão comuns no dia-a-dia dos consumi-dores, elevando o padrão dos serviços prestados.

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Referências

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CARDOSO, G. S. P. Introdução e ensino de aplicação dos procedimentos padrão de higie-ne operacional (PPHO) em uma unidade de alimentação e nutrição (UAN). Dissertação de Mestra-do. Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, 2005.

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MALUF, R. S.; MENEZES, F. Caderno ‘Segurança Alimentar’. [S.I]. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/sos/alimentacao/tconferencias.html. acesso em: 10/05/2011.

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SEBRAE-SP. Segurança dos alimentos: necessária para garantir a saúde dos consumidores. São Paulo: SENAC, 2004. PAS – Programa Alimentos Seguros. Fascículo 1.

SENAC. Especialização em Gestão da Segurança de Alimentos: Modulo 1: Unidade 1. Glossário. Curitiba: Senac, [S.I]. Disponível em: http://senac.eduead.com.br/ead2010/course/view.php?id=955.

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As Leis Dietéticas da Culinária Judaica

Karlla Karinne Gomes de Oliveira1

Maria do Rosário de Fátima Padilha2

Neide Kazue Sakugawa Shinohara3

Marcos José Correia4

Resumo

Desde a diáspora os hábitos e costumes alimentares dos judeus têm variado muito conforme às necessidades de adaptações, os períodos históricos e os locais onde os judeus se estabeleceram. Da relação dialética da tradição judaica com a his-tória, resulta uma diversidade de hábitos e costumes gastronômicos regidos sempre pela Torá, livro sagrado dos judeus. Na cidade do Recife, Pernambuco, foi inaugurada a primeira sinagoga das Américas no século XVII. Por causa da inquisição católica no Brasil, em especial no nordeste, muitas famílias judias se mudaram para a nova Ams-terdã, hoje conhecida como Nova York, outros foram para a zona da mata e sertão nordestino, onde praticamente exerciam a atividade de produção de açúcar. A fixação dos judeus e seus descendentes no nordeste provavelmente possibilitou o surgimento de novas preparações culinárias como a carne de sol, para retirada dos resíduos de sangue; o beiju em substituição do matzá, oferecido no Pessach e o tcholent, que in-fluenciou a feijoada nordestina. Em decorrência da fundamentação religiosa, cultural, econômica e política, a culinária judaica no nordeste brasileiro, incorporou os ingre-dientes locais, se adaptou e influenciou gerações posteriores de descendentes e não descendentes, contribuindo na construção de uma culinária nordestina em formação, mas mesmo sendo forçados à adaptação de sua culinária, estes se mantiveram fiéis aos rituais judaicos da culinária kasher.

Palavras-chave: Culinária judaica, alimento kasher, sinagoga Kahal Zur Israel.

1 Discente UFRPE. Departamento de Tecnologia Rural. Curso de Bacharelado em Gastronomia e Segurança Alimentar. E-mail: [email protected] Docente UFRPE. Departamento de Tecnologia Rural, Universidade Federal Rural de Pernambuco. Av. Dom Manoel de Medeiros s/n. Recife, PE, CEP 52171-900. E-mail: [email protected] Docente UFRPE. Departamento de Tecnologia Rural, Universidade Federal Rural de Pernambuco. Av. Dom Manoel de Medeiros s/n. Recife, PE, CEP 52171-900. E-mail: [email protected] 4 Docente UFRPE. Departamento de Morfologia e Fisiologia Animal, Universidade Federal Rural de Pernambuco. Av. Dom Manoel de Medeiros s/n. Recife, PE, CEP 52171-900. E-mail: [email protected]

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Abstract

Since the Jewish Diaspora the dietary customs of Hebrew people have been changed have been modified according to the need for adaptation, historical periods, and places where the Jewish people settled. The dialectical relationship of Jewish cul-ture has produced a variety of gastronomic habits and customs, always governed by the Torah, the holy book of the Jews. In the 17th century, the first synagogue in the New World was founded in Recife, Pernambuco State. Because of the Catholic Inquisition in Brazil, particularly in the Northeast, many Jewish families move to New Amsterdam, actually New York, and many other went to Sertão and Zona da Mata, where dedicated to sugar production. The settlement of the Jews and their descendants in the northeast probably made possible the emergence of new culinary preparations such as salted meat to remove residual blood, cassava Beiju instead of matzah offered on pessach, as well as the northeastern feijoada was influenced by the tcholent. Due to the reasons religious, cultural, economic and political, the Jewish cuisine in northeast Brazil, incor-porating local ingredients, adapted and influenced later generations of descendants and descendants not contributing in building a culinary training at Northeastern, but even being forced to adapt their cooking, they remained faithful to the Jewish ritual of kosher cuisine.

Keywords: Jewish culinary, kasher foods, Sinagogue Kahal Zur Israel.

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Introdução

“Uma terra onde corre o leite e o mel”: é essa expressão, muitas vezes retoma-da na bíblia, que os hebreus utilizam para designar a terra que Deus lhes prometeu. Nessa fórmula emblemática, é em relação à comida, aos recursos alimentares, que se define a terra prometida. A expressão aparece pela primeira vez no livro Êxodo (Ex 3, 8). Entre a saída do Egito e o estabelecimento em Canaã, os hebreus erram pelo Sinai durante quarenta anos. Na aridez do deserto, com seus animais mirrados, eles sonham com uma terra onde a água jorre. Como lá a água é abundante, o pasto para os animais também é, da mesma forma que o leite para os homens. As abelhas encontram uma grande quantidade de flores e fazem mel por toda a parte, nas cavi-dades das rochas, em troncos de árvores, à beira dos riachos. A terra prometida é o anti-deserto (FLANDRIN, MONTANARI, 1998).

A diversidade da cultura alimentar do Oriente Médio é diretamente ligada à iden-tidade religiosa de seu povo. Pode-se notar nitidamente a influência da religião na cultura alimentar do povo do Oriente Médio ao analisar a alimentação dos judeus e dos mulçumanos. Portanto, a cultura alimentar judaica segue as leis da Kashrut, que derivam de preceitos bíblicos e tem como objetivo trazer para a alma e o corpo judaico muita santidade e não apenas visando os aspectos sanitários e de higiene. As leis da Kashrut são normas de alimentação que envolvem seleção da matéria-prima, abate de animais, higienização, cuidados na manipulação, preparo e consumo de alimentos e uso de determinados utensílios, específicos para cada grupo de alimentos (Associa-ção Israelita de Beneficência Beit Chabad do Brasil, 2001).

A culinária judaica é uma das mais saborosas e tradicionais que se têm registro, no entanto, pouco se modificou no decorrer de séculos de história em sua formação cultural. Originalmente, essa cozinha enfatizava os sete elementos bíblicos citados no Deuteronômio: a cevada, o trigo, a azeitona, o figo, a romã, a tâmara e as ervas. E há alguns milênios atrás, as comidas eram rústicas, elaboradas pelas mãos de cam-ponesas judias, que foram transmitindo as receitas oralmente para suas filhas, como uma das formas de manter a identidade e a união de um povo escolhido (ALGRANTI, 2003).

A culinária de um país reflete história, hábitos e costumes de seus cidadãos. Nada mais verdadeiro quando pensamos na comida judaica, que se adaptou às ne-cessidades de seu povo no decorrer da história. Quando os romanos expulsaram os judeus da Palestina, no século I d.C., estes últimos se dispersaram por muitos lugares do mundo e tiveram que se adaptar às diferentes formas de vida da diáspora. Neste sentido, eles adquiriram novos hábitos alimentares e passaram a utilizar os ingredien-tes que estavam disponíveis. Os seus pratos incorporaram vários temperos, ervas e especiarias nativas, que eram cultivadas em função do solo, da temperatura, do clima e dos hábitos das diversas regiões (QUEVICI, 1996).

Por outro lado, mesmo aqueles novos hábitos alimentares adquiridos por meio da adaptação a novos lugares, tiveram que se adaptar às leis da Kashrut - as leis dietéticas da religião judaica - mais conhecidas como a cozinha kasher. De acordo com as leis da alimentação judaica (Kashrut), todo alimento apto e apropriado para consumo é considerado kasher. O termo kasher significa apto, idôneo, e é usado para

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designar as comidas devidamente preparadas para o consumo dos judeus, e também objetos e pessoas (TOPEL, 2003).

A Kashrut especifica o tipo de carne que pode ou não ser consumida. As carnes para o consumo dos judeus devem ser de animais kasher, ou seja, que ruminam e possuem cascos fendidos, como por exemplo, vaca, carneiro, cabra, bode, etc., porém animais que só ruminam e não têm o casco fendido (coelho, etc.), ou que só têm o casco fendido e não ruminam, como o caso do porco, não podem ser consumidos, pois não são kasher. As aves consideradas kasher são as espécies domésticas, como pomba, frango, patos, ganso e peru. É importante ressaltar que para serem considerados kasher, além dos requisitos citados, tanto o animal quanto a ave devem ser abatidos e examinados de acordo com as normas alimentares do livro sagrado, a Torá, e o processamento deve ser realizado com utensílios kasher. Frangos e carnes pré-embalados devem apresentar um selo de Kashrut confiável e inviolável. O certifi-cado da carne pode ser simplesmente kasher, ou pode ser Chalak ou Glat, isso signi-fica que existe um rigor a mais na Kashrut da carne (ENDE, 2006; EMUNAH BRASIL, 2010).

De acordo com as Leis Judaicas é proibido misturar carnes e derivados com leite e derivados, ou seja, ser preparados, servidos ou consumidos ao mesmo tempo. Portanto, deve haver separação total entre leite e carne, bem como dos utensílios utilizados para os laticínios, de forma que não possam ser confundidos com os desti-nados para a carne. Além disso, é exigido um período de espera de seis horas após comer todos os tipos de carnes e aves antes que qualquer laticínio possa ser ingerido. (TOPEL, 2003; FLANDRIN, MONTANARI, 1998).

A Lei Judaica requer que o leite para ser consumido deve ser supervisionado por um mashguiach (supervisor judeu), desde o início da ordenha até o fim do processa-mento, e é investigada a procedência do animal, assim como a ausência de mistura do leite de um animal kasher e outro não kasher. Os derivados do leite também devem ser supervisionados e requerem um certificado de Kashrut, para serem considerados kasher devem atender aos seguintes critérios: o leite utilizado e ingredientes devem ser de animal kasher, os equipamentos e utensílios utilizados no processamento de-vem ser kasher. Os queijos merecem atenção especial, pois o coalho, utilizado para a fabricação de queijos possui origem animal. O iogurte também merece atenção, pois às vezes contém gelatina e a manteiga pode conter aditivos não kasher (AIBBCB, 2001).

Por outro lado existem os judeus que não consomem leite por alguma intolerân-cia e então são adicionados os produtos isentos de leite que utilizam o termo Parve ou Pareve. Há uma certificação internacional emitida por instituições especializadas que fazem uma rígida inspeção ao longo de todo o processo de fabricação, garantindo assim que o alimento esteja dentro dos padrões da alimentação kasher. Os alimentos inspecionados por rabinos recebem o selo KosherParve (ou KasherPareve) e são encontrados em supermercados e lojas especializadas em produtos kasher em todo o mundo. Há lojas especializadas em São Paulo, Rio de Janeiro, Belém, Porto Alegre, Curitiba e também no Recife (BALDO, 2011).

A cultura alimentar nas Américas está fortemente relacionada aos imigrantes, que trouxeram seus hábitos, receitas, crenças, tabus, seus próprios temperos, origi-

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nários de seus países e elementos diferenciados. Sabemos que a cozinha brasileira apresenta intensa influência portuguesa, indígena e africana, porém devemos consi-derar que o país possui uma dimensão continental não somente do aspecto geográ-fico, mas principalmente na sua diversidade cultural implantada por outros imigrantes que aqui se instalaram como: italianos, alemães, japoneses, espanhóis, árabes, suí-ços, judeus entre outros (SONATI et al, 2010).

Atualmente, os judeus se concentram, em sua maior parte, nos Estados Unidos e em Israel. Estima-se que, no Brasil, vivem cerca de 180 mil judeus, sendo, só no Estado de São Paulo, aproximadamente 80 mil (KLEIMAN, 2007). No Estado de Per-nambuco, cerca de 1.500 pessoas representam a família judaica (ARQUIVO HISTÓ-RICO JUDAICO DE PERNAMBUCO, 2009).

Diante dessa dispersão dos judeus por todo o mundo houve uma assimilação cultural e incorporação de alguns elementos desta cultura à cultura dos locais por onde eles foram se estabelecendo (CLAVAL, 1999). Esta inclusão e crescimento da assimilação dos hábitos culturais desse povo não foram diferentes no novo continente, onde foram obrigados a se adaptar e também deixaram registradas suas impressões culinárias na zona da mata do nordeste brasileiro. Sendo assim, procurou-se obter maiores informações sobre a história da culinária kasher, princípios e incorporação na culinária nordestina, divulgando como a imigração dos Judeus contribuiu no século XVII na construção desta culinária.

Metodologia

A técnica de coleta de dados foi realizada através de pesquisas bibliográficas em livros, acesso a sítios da internet, e de pesquisa de campo, onde realizou-se no mês de setembro de 2012, visita à Sinagoga Judaica Kahal Zur Israel, localizada na Rua do Bom Jesus, 197, conhecida como a Rua dos Judeus, no Bairro do Recife, reconhecido Centro Cultural Turístico e Religioso da cultura judaica em Pernambuco com entrevis-ta a duas pesquisadoras da área: Tânia Kaufman e Beatriz Schvartz, integrantes do Arquivo Histórico Judaico de Pernambuco. O instrumento de pesquisa utilizado para a entrevista exigiu a aplicação de um roteiro semi-estruturado. Além disso, buscou-se ampliar o leque de informações através de imagens fotográficas citadas no artigo para clara divulgação da cultura estudada.

Resultados e Discussão

A entrevista realizada com as pesquisadoras, além do conteúdo de elementos colhidos com a visitação, se tornaram importante ferramenta na obtenção da matéria para o desenvolvimento deste artigo, bem como possibilitaram divulgar importantes características das tradições judaicas, conforme se analisa e compara com a literatura nos relatos que se seguem

A alimentação revela alguns dos códigos mais intrínsecos de uma cultura. Ao analisar a alimentação dos povos, descobrem-se valores, as práticas sociais, a hierar-quia dos grupos humanos, bem como os limites que estes estabelecem com o mundo. Segundo o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss, em seu livro O Cru e o Cozido, “quando se percebe a lógica e o conteúdo da alimentação, a ordem que regula a comi-

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da, a mesa (o que se come, como se come, com quem se come, a lógica dos diversos lugares e funções à mesa), alcança-se um saber antropológico decisivo” (FREIXA, CHAVES, 2009).

Muitas publicações descrevem que a alimentação kasher é sinônimo de saúde. Mas quem segue as tradições e cuida estritamente das Leis no interior da cozinha, sabe que a comida kasher não somente cuida da saúde física do ser humano, mas o mais importante, cuida da saúde da alma das famílias judias. As leis de Kashrut for-mam parte das 613 mitzvot que foram dadas por Deus ao povo judeu; deixar de cum-prir uma delas faz mal à sua alma; significa deixar de lado leis muito específicas que trazem para o lar judeu a possibilidade de se elevar espiritualmente. É por esse motivo que os judeus comparam Kashrut com saúde da alma e em consequência do seu cumprimento, ganham saúde no corpo. Ao escolher de forma tão restrita os alimentos que a eles é permitido comer, a Torá transformou e elevou o tema; de algo puramente material, passou a ser também espiritual (EMUNAH BRASIL, 2010).

A culinária judaica sempre teve características populares e os ingredientes que utiliza são simples e de baixo custo. As mulheres, diante das interdições que a lei rigo-rosa impõe sobre certos alimentos, deram provas de astúcia ao transformar produtos em pratos deliciosos. A agricultura israelense é moderna e próspera, é hoje muito rica em frutas e legumes. Encontram-se em Israel produtos destinados ao preparo dos pratos próprios de cada comunidade, até para os mais ortodoxos como os Sefardi localizados no norte da África e Asquenaze na Europa Central e Rússia (LAROUSSE, 2005).

A cozinha judaica tem um sabor de memória, apesar de apátrida por séculos, por conta de ter sofrido o difícil caminho da diáspora, o que obrigou os judeus a fazer uso daquilo que se encontrasse disponível (DIDIO, 2012). Desde o Século XVII crescia a população judia em Pernambuco. Na antiga Rua dos Judeus, em Recife, conforme observamos na Figura 01, residiam aqueles que tinham alcançado as melhores con-dições econômicas.

FONTE: Portfólio do autor.

FIGURA 01 – Rua do Bom Jesus, antiga Rua dos Judeus

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Nas casas dessa rua, a parte residencial situava-se no andar superior. Numa delas foi construída a primeira sinagoga de toda a América do Sul, a “Sinagoga Judai-ca Kahal Zur Israel” (FIGURA 02). Os judeus exerciam as mais diferentes atividades econômicas, em especial o comércio. Muitos eram senhores de engenho e profis-sionais liberais. Os que fixaram residência na Rua dos Judeus encontraram muitas dificuldades, pois a cidade do Recife estava sitiada pelos portugueses que, muitas das vezes se mostravam intolerantes quanto a prática religiosa dos judeus. Não havia gêneros de primeira necessidade para manter uma alimentação kasher com regula-ridade. Comia-se de tudo, incorporando assim elementos locais à sua culinária. Com a Inquisição, alguns dos judeus do Recife foram para outros países, mas a maioria ia se refugiar no interior do estado, principalmente no Sertão, onde muitos se tornaram senhores de engenho de açúcar (KAUFMAN, 2010).

Os resíduos culturais das práticas alimentares judias persistem até hoje em mui-tas famílias dispersas pelo sertão nordestino, às vezes de forma inconsciente em concentrações familiares. É comum relatos sobre costumes familiares de alimentação baseados nas restrições da Kashrut, mesmo sem uma identificação com a cultura judaica. Fazem parte de traços culturais pouco conhecidos. É preciso lembrar que inovar e adaptar são ações recorrentes na cultura judaica. No caso dos hábitos e cos-tumes alimentares dos judeus, eles têm variado muito conforme as necessidades de adaptações, os períodos históricos e os lugares onde os judeus se estabelecem. Da relação dialética da tradição judaica com a história, resulta uma diversidade de hábi-tos e costumes gastronômicos regidos sempre pelo livro sagrado, a Torá (HUUSSEN JR, 1993).

FONTE: Portfólio do autor.

FIGURA 02 – Sinagoga Kahal Zur Israel

Arrisca-se levantar suposições sobre a origem de certos costumes no Nordeste do Brasil estar diretamente ligados a alguns hábitos judaicos. Por exemplo, muitas vezes as pessoas nem sempre sabem porque não misturar certos alimentos com leite

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ou a razão de não comerem carne de porco ou a origem das mesas com gavetas. Conta-se que as gavetas eram para esconder de visitas inoportunas os alimentos denunciadores da origem judaica, substituindo-os por pratos com outros alimentos mais usuais da população. A carne de sol também poderia estar relacionada com o dessangramento da carne dos animais abatidos para o consumo dos judeus. Por ou-tro lado, o beiju feito com a farinha de mandioca pode ter substituído a matzá ou pão ázimo, representado na Figura 03, na época da Páscoa judaica (KOLATCH, 1996). A adaptação com o beiju atendeu a interpretação do matzá, pois este deve ser plano e fino, simbolizando a humildade e a submissão à vontade divina (GANSBURG, 2008).

FONTE: KAUFMAN, 2010.

FIGURA 03 – Matzá original e adaptação com farinha de madioca

O feijão também pode ter servido como ingrediente para o tcholent (Figura 04) ou adafina, preparação judaica tradicional, que por ser muito energética guarda pa-rentesco com a feijoada nordestina. Estima-se que as calorias desta preparação, pro-venientes dos ingredientes utilizados, como o feijão, batata inglesa, ovos de galinha cozidos, grão-de-bico, peito de frango, peito do boi, cevadinha, cebola branca, cenou-ra e feijão branco temperados com louro, pimenta do reino e páprica são suficientes para que um adulto jovem possa cumprir com sua obrigação religiosa no Shabat, sem comprometer sua integridade física e emocional (OLIVEIRA, et al. 2012).

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FONTE: Portfólio do autor

FIGURA 04 – Tcholent, “Feijoada Judaica”

A culinária judaica é marcada por tradições e princípios religiosos. Os judeus, quando foram expulsos de sua terra, procuraram adaptar seus hábitos alimentares às matérias-primas e costumes de cada uma das regiões por onde passaram. Os que emigraram para regiões como o centro e o norte da Europa, que são regiões mais frias, passaram a consumir alimentos com mais calorias como os peixes defumados, principalmente o arenque, gordura de aves, carneiro e vegetais como a beterraba, cenoura, batata e repolho, além dos cereais, que são essenciais na cozinha judaica. Os que se estabeleceram em lugares como Espanha, Portugal, sul da África, Oriente Médio, Américas e países mediterrâneos, que são mais quentes, tiveram contato com peixes frescos, grãos, legumes e verduras, queijos brancos, azeite, frutas secas e es-peciarias. Bastante aromática, a cozinha judaica é marcada pelo uso de condimentos e ervas (CARMELL, 2003).

As refeições cotidianas são o café-da-manhã (haruatboker), almoço (haru-atshraim) e o jantar (haruaterev). O café-da-manhã tem como principal característica ser uma refeição farta, são servidos pães variados, coalhadas, frutas secas, geléia e mel. O almoço é geralmente a principal refeição do dia, são servidas uma entrada (sopa ou salada) e uma sobremesa (fruta, salada de fruta ou compota), em volta de um prato de carne. O jantar é normalmente composto de derivados do leite e saladas, ás vezes de quiches, de uma pashtida (quiche de abobrinha), ou de pratos à base de ovos. Na sexta-feira à noite e nos dias de festa o jantar é a principal refeição do dia e sua constituição é de pratos típicos da festa comemorada (PATAI, 1997).

A interdição de ingerir sangue dos animais, de acordo com as leis do Kashrut, fez com que os judeus para cumprir tal ritual, passem a carne por um processo de imer-são na água durante meia hora, quando é retirada para ser coberta com sal grosso e deixada para repousar a fim de retirar todo o sangue. Alguma relação com a carne de sol, tão consumida no Nordeste de Brasil? (KAUFMAN, 2010).

A culinária judaica é uma das poucas culinárias que atribui aos alimentos tanto símbolos e significados religiosos. O calendário judeu, o Luach, baseado no ciclo lu-nar dita as datas importantes e em cada data há a prática de um ritual e o preparo de um prato específico (MASSIMO, 2009).

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O sábado (Shabat) é o dia do descanso, período sagrado onde ninguém trabalha e os judeus praticantes devem se consagrar à sua família e a Deus. Inicia-se a partir do entardecer da sexta-feira, no pôr do sol, com as velas sendo acesas e uma refeição familiar caracterizada pelo chalá (um pão doce arredondado e trançado), que simbo-liza a unidade, e por uma entrada de peixe, simbolizando a abundância, e acaba no pôr-do-sol do sábado. Durante o Shabat não se cozinha, portanto os pratos que serão servidos devem ser preparados na véspera e ser mantidos aquecidos. É muito comum o preparo do tcholent, que se trata de uma preparação que leva carne, batata, ovos cozidos, grão-de-bico, carnes de frango, do peito do boi, cevadinha, batata, legumes e feijão branco temperados com louro, pimenta e páprica. Esse prato é preparado lentamente e, no Brasil, é conhecido como “a feijoada judaica”, havendo indícios da adaptação dessa preparação com ingredientes locais. A sopa de beterraba (borscht) também é tradicional do Shabat (ALGRANTI, 2003).

O Ano Novo (Rosh Hashaná) é comemorado durante dois dias entre o final de setembro e meados de outubro, época do outono no hemisfério norte, conforme o Luach. Essa é a festa onde a mesa encontra-se mais farta. São pronunciadas, na véspera, bênçãos sobre os alimentos que serão consumidos, como legumes, frutas, cereais, verduras, peixe ou carne. As comidas típicas preparadas para esse dia: o chalá, simbolizando a natureza cíclica; a torta de mel (leikch), maçãs mergulhadas no mel, ambos expressando a esperança de um bom ano repleto de doçuras; o peixe, que é um ícone de fertilidade devido à sua multiplicação rápida; os tsimnes (rodelas de cenoura refogadas com mel) que são comparados com moedas, evocando rique-zas e significando prosperidade. Alimentos como o alho-poró e a abóbora são popu-lares entre os judeus de origens ibéricas, ambos são sinal de abundância devido ao seu rápido crescimento. As lentilhas representam fartura. Também é servido o cuscuz marroquino, com legumes e de formato arredondado, para que o ano novo seja cheio e redondo. No dia seguinte ao Rosh (cabeça) Hashaná (mudança) come-se uma fruta que ainda não se comeu naquele ano (especialmente a romã), simbolizando o princí-pio de algo (AUSUBEL, 1967). A simbologia da fruta romã (fruta da prosperidade) em que se come e se coloca 3 sementes na carteira ou em partes da casa, é uma prática muito comum no Nordeste, após as festas de final de ano que culminam com a festa católica que celebra o dia de Reis.

O dia do perdão (Yom Kipuri) é a segunda das festas do início do ano, é celebra-da dez dias após o Rosh Hashaná. Nesse dia sagrado é proibido ingerir qualquer tipo de alimentos ou bebida, sendo marcado por um jejum absoluto, porém no dia anterior é preparada uma refeição bastante farta, à base de carnes, sopas, aves, salgados e doces. Os temperos fortes e bebidas alcoólicas são evitados, por provocarem sede. Um dia após o Yom Kipuri costuma-se tomar um caldo de frango preparado com sal-são, legumes, cebola e cravo-da-índia, o guildene (LAROUSSE, 2005).

A Chanucah, cerimônia que ocorre em meados do mês de Dezembro é também chamada de Festa da Luz, e se estende por oito dias, nos quais são acesas, sucessi-vamente, as velas de um candelabro com nove braços. As comidas típicas dessa festa são os latkes (pequenas panquecas de batata) e o sufganiyot, espécie de sonhos com geléia, ambos fritos no óleo (EMUNAH BRASIL, 2010).

A Tu-bishevat é a comemoração do ano novo das árvores, onde são apresenta-das aos comensais as sete espécies de frutos com os quais as terras de Israel foram

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abençoadas: amêndoas, figos, tâmaras, romãs, uvas, azeitonas e trigo, tradicional-mente consumidos secos nesse dia (BRAUDEL, 1984).

Em 14 de março comemora-se o Purim, que é uma das celebrações mais ale-gres do ano, com máscaras, fantasias e bailes. Essa data perpetuou-se como recor-dação pela salvação do povo de Israel, de forma milagrosa, da sombra de extermínio que ameaçava o povo durante o reino persa, sob o comando do Rei Achashverosh. Precedida por um jejum no dia anterior, é costume servir muito vinho e vários pratos doces, como o “Orelha de Aman”, um bolinho recheado com grãos de papoula ou no-zes (LAROUSSE, 2005; EMUNAH BRASIL, 2010).

A Pessach (Páscoa) acontece em abril, celebrando a saída dos judeus do Egito. É a mais importante do ano, com duração de sete dias, iniciada na véspera com uma faxina completa da casa e da louça. Durante esses dias são consumidas iguarias pró-prias do Pessach, baseadas em matzá (pão ázimo não fermentado). Junto com ele são consumidos os gefiltefish (bolinhos de peixe) servidor com chrein, um molho frito, feito com beterraba cozida e raiz forte. Na primeira noite da festa celebra-se o Seder, onde todos os participantes se reúnem em torno da mesa posta, lêem a Haggada (narrativa da fuga do Egito) e fazem uma refeição festiva composta de matzá, pei-xe, caldo de galinha servido com Kneidalah (bolinhos de farinha), raiz forte, charoset (mistura de maçãs e avelãs raladas) e maror ou ervas amargas (GANSBURG, 2008).

A última festa é a Shavuot (Pentecostes). Nessa celebração costuma-se consu-mir iguarias à base de leite.

De maneira geral, em todas as comemorações destacam-se os doces. Além de possuírem um lugar especial em todas as comemorações, estão ligados historica-mente às cerimônias de núpcias, onde eram ofertados aos convidados pela família dos noivos. Ao término da cerimônia, o noivo agradecia aos convidados, oferecendo roscas e doces preparados por sua mãe. Já a noiva, levava um bombom ou um torrão de açúcar ao cruzar a porta da casa paterna em direção à vida nova. Bolos, tortas e pastéis à base de mel são os doces mais populares, mas também existem doces com batata-doce, laranja, ricota e damasco.

As avós, chamadas de babe, são as responsáveis por manter a culinária judaica preservada. As receitas sobreviveram ao longo dos séculos, mesmo dispersas por vários países, sendo passadas de mãe para filha. A oralidade culinária não é exclusivi-dade da culinária judaica, mas uma reafirmação do ser humano quanto à importância de se transmitir informações preciosas, na tentativa de preservar valores culturais familiares.

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FONTE: Portfólio do autor.

FIGURA 07 – Caixa de Sidra utilizada na festa de Succot

A dieta alimentar judaica não só preserva o corpo e a alma do judeu, mas tam-bém lhe serve como documento de identidade. A Kashrut é algo que une o povo. Todo judeu observante, ao viajar pelo mundo, já passou pela situação de chegar numa cidade nova e procurar um restaurante kasher onde pode comer. Lá, aproveita para conhecer alguns judeus locais, perguntar onde fica a sinagoga e, quem sabe, com um pouco de sorte, já e convidado para passar o Shabat na casa de alguma família judia. O alimento é algo que une as pessoas. Ao comer kasher, descrevem os judeus: estaremos unindo os integrantes do povo judeu e quem sabe, aproximando a vinda do Mashiach (DAYAN, 2006).

Afirma-se em geral, que as práticas da alimentação judaica estão essencialmen-te enquadradas na ótica do sistema religioso, fundamentadas em proibições bíbli-cas, ampliadas e interpretadas pelas normativas rabínicas. Em outros termos, o judeu come alimentos que são permitidos, descartando todos aqueles que, de uma forma ou outra, entram nas categorias explicitamente proibidas pela bíblia ou pela herme-nêutica, geralmente extensa, da ritualística posterior. Nesse sentido, suas escolhas alimentares devem ser consideradas como fundamentos de sua identidade cultural e religiosa (MONTANARI, 2009).

Conclusão

A culinária kasher faz parte do lirismo religioso de um povo, no princípio nômade, que sofreu privações e perseguições religiosas, mas que incorporou elementos por onde transitou. No entanto, não esqueceu o seu passado como “o escolhido”, e por isso obediente às rígidas leis dietéticas do ritualismo judaico ortodoxo.

A fixação dos judeus e seus descendentes no nordeste provavelmente possibili-taram o surgimento de novas preparações culinárias como a carne de sol, para retira-

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>Artigos

da dos resíduos de sangue; o beiju em substituição do matzá, oferecido no Pessach e o tcholent, que influenciou a feijoada. Em decorrência da fundamentação religiosa, cultural, econômica e política, a culinária judaica no Nordeste brasileiro, incorporou os ingredientes locais, se adaptou e influenciou gerações posteriores de descendentes e não descendentes.

Logo, a globalização na gastronomia é entendida de formas diferentes, mas de forma geral, esta se caracteriza por eliminar distâncias entre os povos, promovendo os intercâmbios culturais, sociais e religiosos. A gastronomia tende a padronizar os hábitos e comportamentos das populações mundiais, entretanto respeitando e valori-zando as culturas locais.

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>Resenhas

Resenha de livro SOMMERS, Brian J. Geografia do

Vinho. Tradução de Pamela Andrade. São Paulo: Novo Século, 2010. 237p.

ISBN: 9788576794004.

Ewerton Reubens Coelho Costa1

O livro Geografia do vinho obra de autoria do professor estadunidense Brian J. Sommers foi originalmente escrito em inglês, no ano de 2008, com o titulo de: The ge-ography of wine: how landscapes, cultures, terroir and the weather make a good drop. A referida obra foi traduzida para a língua portuguesa por Pamela Andrade, em 2010, e teve seu titulo reduzido simplesmente para Geografia do Vinho. O texto tem cunho didático, por vezes chegando a ser ensaístico.

O livro em português traz logo na capa a primeira divergência com a proposta do autor: a imagem da obra na versão brasileira apresenta uma taça com uvas em um 1 Graduado em Gestão de Turismo pelo IFCE; Especialista em Gestão Pública; Mestrando em Educação Brasileira; Formador de Gestores das Políticas Públicas do Turismo pelo Ministério de Turismo – MTUR e Universidade Federal de Santa; Professor do MBA em Hotelaria e Eventos do Instituto de Pós-Graduação CV & C Ateneu, IGP; Membro do Grupo de Pesquisa Gestão do Turismo e da Hospitalidade nos Territórios – IFCE/CNPQ; Consultor de negócios turísticos – dedicando com ênfase nas pesquisas de segmentação de mercado e nos estudos culturais, atuando principalmente nos seguintes temas: Estudos Culturais - com foco na gastronomia regional, Gestão do Turismo, Gestão do Luxo, Gestão de A&B (alimentos e bebidas), Gastronomia, Turismo Cultural e LGBT. E-mail: [email protected]

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fundo negro; enquanto a versão em inglês mostra uma área com a plantação de videi-ras, evidenciando o espaço (característica fundamental da geografia) de cultivo das vinhas - sendo, portanto, esta última uma imagem mais apropriada para representar um texto que versa sobre geografia. Na versão em português também se pode encon-trar uma quantidade considerável de erros de ortografia que provavelmente deva-se a tradução/impressão.

A obra Geografia do vinho é composta por dezoito capítulos (Capítulo 1: A ge-ografia e o estudo do vinho; Capítulo 2: Paisagens e regiões do vinho; Capítulo 3: A climatologia e a viticultura; Capítulo 4: Microclimas e vinho; Capítulo 5: Uvas, solo e terroir; Capítulo 6: Biogeografia e uva; Capítulo 7: Viticultura, agricultura e ameaças naturais; Capítulo 8: Viticultura e os sistemas de informação geográfica; Capítulo 9: Produção de vinho e geografia; Capítulo 10: Difusão do vinho, colonização e geografia política; Capítulo 11: Urbanização e geografia do vinho; Capítulo 12: Geografia eco-nômica e vinho; Capítulo 13: Comunismo, geografia e vinho; Capítulo 14: A geografia e os concorrentes do vinho; Capítulo 15: Vinho, cultura e geografia da sobriedade; Capítulo 16: Identidade regional, vinho e multinacionais; Capítulo 17: Regionalismo e turismo do vinho; Capítulo 18: Até onde o vinho pode me levar), que trazem análises, a partir do ponto de vista da geografia, sobre o panorama espacial, histórico, econô-mico, turístico e cultural do vinho.

O interesse do autor pelo tema em questão deve-se a sua entrada no mundo dos vinhos a partir das aulas de geografia do vinho, no mestrado da Universidade de Mia-mi, ministradas pelo Professor Jonh Dome. Com objetivo de contribuir para o processo ensino-aprendizagem e valorização dos estudos da geografia, sobretudo nos campos do planejamento de atividades como o turismo, a obra surge em prol da sistematiza-ção e aplicação dos saberes geográficos na cultura do vinho.

O livro está direcionado a todos os interessados pelo vinho ou pela geografia – e ainda, para aqueles que lidam com o turismo e planejamento de atividades que se utilizam da cadeia produtiva do vinho e buscam a geografia como fonte para entender o meio onde ocorre o processo de produção e consumo do vinho.

Brian J. Sommers justifica que o vinho é “mais do que sabor, essência e aparên-cia” (p. 9), que é um assunto como qualquer outro e que, por tanto, pode ser analisado pela geografia. Com este pensamento ele cunhou uma dinâmica bastante interes-sante para sua escrita usando seus conhecimentos teóricos e práticos, que pode ser observada através da:

a) fidelidade ao mote (vinhos) - utiliza o vinho como assunto para desenvolver todos os capítulos do livro levando em consideração disciplinas dos cursos de geo-grafia (biogeografia, geografia cultural, geografia política, geografia urbana, geografia econômica, etc.).

b) utilização do pensamento clássico da geografia – oferece ao longo do texto a oportunidade de profissionais de outras áreas, que não a geografia, ter contato com autores renomados da geografia científica com, por exemplo: Willian Pattison (Ca-pítulo 1); Carl Sauer (Capítulo 2); Wilhelm Köppen (Capítulo 3); Johann von Thünen (Capítulos 7, 8, 14, 15); Walter Christaller (Capítulo 12); Charles Darwin (Capítulo 7).

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Sommers apresenta ainda uma explanação sobre o preconceito explicitamente direcionado à geografia (p.10) e denuncia uma possível ignorância geográfica das pessoas quando elas pensam na geografia.

O autor faz referência à aplicabilidade educacional da geografia quanto ao seu caráter existencial, presentes no cotidiano, demonstrando vínculos da geografia (lu-gares, saberes, fazeres, transformação do espaço, regionalização) com os processos localizados de produção do vinho e empregando conceitos fundamentais em todos os dezoito capítulos. A abordagem permite que a geografia torne-se um meio de se conhecer o vinho através de uma geografia cultural vívida, que tem dimensão espacial e econômica bastante influente, principalmente com a atividade turística.

O livro contempla uma vasta gama de conceitos teóricos que são emitidos em linguagem sucinta e direta que o torna prático e de fácil compreensão - sem deixar de ter o imprescindível cunho científico -, demonstrado através da escrita e do em-basamento evidenciado pela vida acadêmica e pelas experiências práticas do autor. Trata-se, definitivamente, de um material didático complementar para a formação da geografia e na viticultura.

Pode-se também ampliar a complementariedade da obra considerando que áre-as como o turismo, a hotelaria e a gastronomia oferecem em seus cursos disciplinas que utilizam a geografia para entender fenômenos sociais e organização do espaço. E considerando que a atividade turística e áreas afins se utilizam da regionalização como atrativo, este livro serve como apoio para ampliar o conhecimento sobre áre-as segmentadas do turismo (enoturismo, enogastronomia, turismo cultural), inclusas numa geografia cultural, que se utiliza do vinho para permanecer no mercado.

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À mesa com o historiador: resenha do livro “Comida como cultura”

Joana Pellerano1

“A ideia de comida remete de bom grado à natureza, mas o nexo é ambíguo e fundamentalmente inadequado” (MONTANARI, 2008: p. 15). Assim, inspirando refle-xões sobre o cotidiano ato alimentar, Massimo Montanari inicia “Comida como cultu-ra”, obra publicada originalmente em 2004 e trazida para o Brasil pela Editora Senac São Paulo em 2008. No livro, o autor explora a premissa de que todos os processos envolvendo comida – coleta, cultivo, preparação e consumo – são culturais, já que a alimentação é formada por escolhas baseadas em infinitas combinações de preceitos nutricionais, climáticos, geográficos, políticos, religiosos e sociais, entre outros.

“Comida como cultura” tem como proposta repensar frutos de pesquisas e refle-xões que o autor realizou dentro de seu campo de estudo: a história da Idade Média.

Na breve introdução, Montanari promete ao leitor uma abordagem superficial do papel cultural da alimentação – que considera ser o elemento decisivo e comuni-cador da identidade humana –, começando já pelo conceito abrangente de cultura. A didática está presente até mesmo nas referências bibliográficas. Em vez de apenas citar livros consultados, o estudioso optou por guiar o leitor em uma viagem pelos ca-1 Possui graduação em Comunicação Social - Jornalismo pela Universidade Federal do Espírito Santo (2004), mestrado em Comunicação e Gas-tronomia - Universitat de Vic (2007) e pós-graduação em Gastronomia: Vivências Culturais - Centro Universitário Senac (2010). Está cursando mestrado em Ciências Sociais na PUC-SP - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e coordena a especialização Gastronomia: História e Cultura da unidade Aclimação, Senac São Paulo.

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pítulos, mostrando os conteúdos que o ajudaram em suas reflexões e que obras se aprofundam mais sobre o tema.

Mas ainda que a obra seja acessível aos iniciantes no estudo da alimentação por sua linguagem simples e riqueza de exemplos, não deixa de apresentar uma análise embasada e abrangente, lançando um interessante olhar sobre como o ato alimentar, uma necessidade fisiológica, é também um ator fundamental na formação das socie-dades e identidades culturais.

Na primeira parte da obra, “Fabricar a própria comida”, o autor viaja para o Orien-te Médio de 10 mil anos atrás, onde a agricultura surge separando o homem selvagem, dependente da natureza, do homem civil, que a domina, produzindo artificialmente a própria comida. A busca por novos espaços para cultivar disseminou a descoberta, que não apenas eliminava a necessidade do nomadismo, mas implicava no estabele-cimento de um núcleo habitacional fixo, de uma comunidade.

Mas a disseminação da agricultura foi lenta e gradual, e as oposições entre cul-tura e natureza, campo cultivado e floresta, permaneceram até a Idade Média. Guer-ras e dominações forçaram um diálogo entre o sistema agrário dos gregos e romanos e o sistema de caça e pastoreio dos povos germânicos, gerando a cultura alimentar hoje conhecida como europeia, que dá igual importância ao pão e à carne, mostrando que aproveitar o que a natureza dá não é a anti-cultura, mas um modo igualmente válido de se relacionar com o meio ambiente.

Apesar de já não ser refém da natureza, o homem ainda dependia da sazonali-dade dos produtos. As sociedades buscavam formas de estabilizar o abastecimento dos bens agrícolas, e a busca por formas de conservação dos víveres também era sistemática, gerando as tecnologias de desidratação (por sol, fumaça ou salga) e fer-mentação.

A segunda parte da obra, “A invenção da cozinha”, começa com uma reflexão sobre uma diferença fundamental entre o homem e os outros animais. Além de “mo-dificar” a natureza para benefício próprio, por meio da agricultura e da pecuária, o homem é o único animal capaz de transformar sua comida por meio da cozinha. Nos antigos mitos, a descoberta do fogo representava de forma simbólica o momento fun-dador da civilização, ainda que o fogo não seja indispensável no ato de cozinhar. Os conceitos de cultura e natureza eram tão opostos no imaginário popular que até o século XVII o papel do cozinheiro era “desnaturalizar” o alimento, fazendo-o artificial.

As diferentes formas de se transformar o alimento são há muito objetos de refle-xão para sociólogos. Para esses estudiosos, apenas sociedades complexas e forte-mente hierarquizadas foram capazes de produzir uma culinária profissional, diferente da praticada no âmbito doméstico. E somente países com tradição escrita puderam registrar seus saberes culinários, ato que “torna possível o desenvolvimento cumula-tivo dos conhecimentos, que concretiza um saber constituído” (MONTANARI, 2008: p. 62).

A máxima aplica-se não apenas a diferentes sociedades, mas a distintas ca-madas de uma mesma sociedade. As classes dominantes registravam seus hábitos alimentares, mas não existe um inventário sobre o cardápio camponês. Mas existem

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pistas. Não seria necessário à elite adotar símbolos diferenciados se não houvessem pontos de convergência com os hábitos de outras camadas da sociedade. Contudo os gostos em comum sempre eram modificados levemente antes de chegar à mesa no-bre. A necessidade tinha que dar lugar ao prazer: pratos protagonistas perdiam status e viravam acompanhamento, e ingredientes “simplórios” eram associados a produtos sofisticados ou preparados com técnicas complexas.

Montanari mostra que todas as formas de cozer são escolhas culturais, até mes-mo a opção por não cozinhar. Ao longo da história, muitas ideologias pregaram o dis-tanciamento da sociedade “civilizada” e a adoção de um estilo de vida mais simples, sustentado por alimentos “naturais”, livres da intervenção humana. Além de contar com o cru como seu antagonista, o cozido também tinha significado simbólico oposto ao assado, tido como um método de cocção mais “natural”, que dispensava artefatos culturais (como a panela) e remetia à caçada, domínio direto das forças da natureza.

O objetivo ao cozer um alimento é de melhorar não somente seu sabor, mas a segurança e saúde do consumidor. A medicina pré-moderna ocidental se baseava no equilíbrio dos humores, proporcionado por um profissional metade cozinheiro, meta-de médico, que combinava elementos quentes, frios, secos e úmidos, naturalmente desequilibrados, para “temperar” o comensal. O gosto exercia forte influência no car-dápio, porque o alimento de sabor agradável era considerado saudável. Isso muda nos séculos XVII e XVIII, quando a ciência dietética passa a se basear em análises químicas e propriedades nutricionais, que nada tinham a ver com o paladar.

A terceira parte da obra, “O prazer (e o dever) da escolha”, ressalta que tudo que é óbvio e universal em relação à alimentação foi aprendido culturalmente. Nos lembra bem o folclorista Luís da Câmara Cascudo que “comer é um ato orgânico que a inte-ligência tornou social” (2004: pg. 37). Os gostos e predileções variam no tempo e no espaço, e ajudam a desenvolver os valores da sociedade. Por isso Montanari critica a moda da “cozinha histórica”, que visa recriar menus antigos com ingredientes diversos dos especificados nas receitas do passado e servi-los a um público diferente, que já não despreza o garfo e valoriza a cozinha artificial e a combinação de métodos de preparo ou de sabores para equilibrar a saúde, como os convivas de outrora.

O trecho do livro lembra ainda que as sociedades têm diferentes motivos para eleger determinados ingredientes. Há comidas que se apresentam nas mesas simples e sofisticadas sem ao menos agradar aos comensais em volta delas: os mais pobres as consomem por necessidade, e os mais ricos pela utopia de simplicidade. A oferta de determinados alimentos também influencia em seu poder de atração: o que abun-da é sempre desinteressante, enquanto o raro é valorizado.

A mesa era a primeira chance que as camadas mais ricas tinham de mostrar sua superioridade. A ostentação vinha mostrar que a fome, um fantasma presente em todas as sociedades tradicionais, não atingia os poderosos. No século IX, o modelo ideal de soberano era um homem forte, voraz, capaz de dominar os animais com ar-mas na floresta e com dentes na mesa. Com a gradual extinção da nobreza e a forma-ção de uma nova aristocracia de reis absolutistas, o poder passa a ser nato e já não pode ser conquistado, e o ideal de força aos poucos é substituído pelo de civilidade. Montanari lembra que demonstrar poder passa a ser ter controle sobre seus instintos animais, conceito explorado por Nobert Elias (1994. v. 1: p. 111).

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A mesa mais uma vez exprimia identidade social: o soberano cercado de fartura deveria ser capar de gerir o próprio desejo, evitando bocados indignos de sua con-dição. A magreza se fortalece como virtude no século XVIII, quando os burgueses a associam à produtividade e os puritanos, à penitência. O exagero passa então a ser “típico” das classes inferiores, “descontroladas e animalescas”.

Ainda mostrando o quanto é possível entender sobre a cultura local por meio da cozinha, o autor explora outro tipo de vínculo entre consumo alimentar e estilo de vida. Embora a qualidade dos produtos locais, mais frescos, sempre tenha sido reconhe-cida, o movimento de valorização das cozinhas regionais tem só um par de séculos. Superar a dimensão local e encher a mesa de especialidades e experiências (o que hoje encontra-se nos restaurantes self-service a quilo) era sinal de poder, como o au-tor já havia demonstrado na primeira parte da obra. O conceito surge quando consoli-dam-se as identidades nacionais, e apenas o início do processo de globalização dos mercados e dos modelos alimentares faz germinar no homem o “gosto da geografia” (MONTANARI, 2008, p. 141).

É justamente esse o paradoxo: em um mundo efetiva-mente fracionado como o antigo e o medieval, a aspiração era construir um modelo de consumo universal em que to-dos (aqueles que se podiam permitir) pudessem ser reco-nhecidos. Na aldeia global da nossa época, pelo contrário, afirmam-se os valores do específico local (Ibidem: p. 145).

Como o século XX evidenciou a potencial uniformidade dos cardápios, surgiu entre as populações o medo de perder sua identidade, exemplificado por Gilberto Freyre na máxima “uma cozinha em crise significa uma civilização inteira em perigo: o perigo de descaracterizar-se” (FREYRE, 1967: p. 61). Mas Montanari garante que a globalização pode enriquecer os sistemas alimentares sem eliminar as diferenças:

[…] As identidades, além de serem mutáveis no tem-po, são múltiplas: o fato de que eu seja um cidadão do mun-do não me impede de ser um cidadão europeu, e cidadão italiano, e cidadão da minha cidade, e cidadão da minha família, e assim por diante, multiplicando (2008: p. 153).

Para finalizar o livro, o estudioso discute “Comida, linguagem, identidade”. Res-salta que faz parte da natureza humana comer junto, e esse convívio acaba por dar uma dimensão mais que funcional aos gestos ligados ao comer: atribui-lhes sentido, valor comunicativo. A comida passa a ser um discurso eloquente, com vocabulário próprio(disponível em função dos recursos territoriais, econômicos e culturais), mor-fologia (que transforma os ingredientes em receitas), sintaxe (a refeição) e retórica, a adaptação do discurso (a comida) ao argumento (o comensal), sob forma de preparo, serviço e consumo.

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Assim como o idioma, os sistemas alimentares são fortemente enraizados na identidade humana, e por isso a aceitação de novidades é complicada. Mesmo em situações de carestia, quando adotar ingredientes estrangeiros é necessário para a sobrevivência, eles entram no menu apenas para substituir o que falta. Mas muitos acabam tendo sua origem esquecida e virando “autóctones”, como o tomate na Itália, a batata na Alemanha e o coco no Brasil. Isso mostra que o confronto entre diferen-tes culturas não é prejudicial ao patrimônio cultural, mas pode enriquecê-lo e torná-lo mais interessante.

O idioma alimentar é um veículo de auto-representação e transmite valores sim-bólicos, mediando trocas culturais. Já que comer a comida dos outros é teoricamente mais fácil que entender sua língua, a cozinha seria a porta de entrada para conta-minações culturais. O importante então, afirma o autor, não é saber de onde vieram nossos hábitos e costumes, mas entender seu papel na sociedade atual. “O produto está na superfície, visível, claro, definido: somos nós. As raízes estão abaixo, amplas, numerosas, difusas: é a história que nos construiu” (Ibidem: p. 190).

Uma leitura cuidadosa revela que o autor manteve-se fiel a sua proposta inicial de expor a riqueza cultural e ideológica intrínseca ao ato alimentar, que a princípio pode ser encarado apenas como solução para uma necessidade fisiológica. Além disso, Montanari realiza em “Comida como cultura” um tratado que desestabiliza os argumentos do chauvinismo à mesa, expandindo as possibilidades do cardápio para encaixar uma refeição rica em necessidades biológicas, recursos econômicos e sen-tidos culturais.

Referências Bibliográficas

CASCUDO, Luís da Câmara. História da alimentação no Brasil. São Paulo: Glo-bal, 2004.

ELIAS, Nobert. O processo civilizador. Volume 1: Uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994. Cap 2, pg. 65-155.

FREYRE, Gilberto. Manifesto regionalista. Recife: IJNPS/MEC, 1967.

MONTANARI, Massimo. Comida como cultura. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2008.