revista contexto - 5ª edição

37
1

Upload: priscila-bellini

Post on 12-Mar-2016

223 views

Category:

Documents


1 download

DESCRIPTION

Revista online sobre política, movimentos sociais e cultura, escrita por jovens.

TRANSCRIPT

1

5ª edição

O Propinatudo Tucano Carlos Brickmann, Entremundos

janeiro 2014

contexto

2

Índice

#editorial

#ilustra

#Brasil

O Propinatudo Tucano

Periferia em movimento

A hora e a vez dos imigrantes

A censura das biografias não autorizadas

#opinião

Dia da Consciência Negra: Importância histórica e atual

#prosa&poesia

#fotocontexto

p.4

p.5

p.7

p.12

p.15

p.20

p.25

p.32

p.33

3

Ao fim do semestre da revista, é necessário lembrar alguns aspec­

tos essenciais da Contexto. Em suma, é necessário que nos lembremos da luta e de continuar lutando. Dias como o da Consciência Negra e da Visibilidade Trans* deixam clara a desigualdade presente no Brasil. Todos os dias nos mostram o quan­to é essencial lutar contra tais desigual­dades e de preconceitos.Nesta edição da Revista Contexto, você confere matérias sobre a trans* Daniela Andrade, sobre a corrupção do PSDB e o cartel no metrô, sobre a questão das bio­grafias. Também dá pra ver o trabalho do “Periferia em movimento”, o racismo no Brasil e as iniciativas para políticas públi­cas voltadas para os imigrantes no Brasil e outros países da América Latina. Na parte de prosa e poesia, bem como na de ilus­tração, você encontra trabalhos reunidos de todos os que já participaram da revista, para essa última edição de 2013.Depois de meses de trabalho, os agrade­cimentos para todos os que participaram do projeto e para os que pretendem par­ticipar em 2014. Um grande “obrigada” à Qatar Foundation International e to­dos os que apoiaram a iniciativa desde o começo.

Seja bem­vindo à Contexto! Welcome! Ahlan wa sahlan!

À luta (sempre)

Priscila BelliniEditora-Chefe

#editorial

Expediente

Editora-ChefePriscila Bellini

JornalistasJúlia DolceMarcela ReisMuriel VieiraRodrigo Borges DelfimVanessa Panerari

PoesiaJaqueline Araújo

IlustraçãoJúlia Dolce

DesignFernanda Tottero

FotografiaVictoria Azevedo

TraduçãoPriscila Bellini

4

#ilustra

5

Júli

a D

olc

e é

est

ud

ante

de

Jo

rnal

ism

o d

a P

UC

­SP.

#Brasil

O Propinatudo Tucano Por Muriel Vieira

Após diversas reclamações da popu­lação em relação ao transporte público, as reformas do metrô se iniciaram. Porém, essas reformas trouxeram mais compli­cações do que se era esperado, e menos satisfação do que era desejado. Isto foi comprovado com os documentos des­cobertos que mostram movimentações bilionárias feitas pelo governo tucano em uma conta denominada “Marília”, no Multi Commercial Bank.

Através de investigações, o Tribunal de Contas chegou a Arthur Teixeira e Geraldo Vilas Boas, lobistas responsáveis por intermediar a entrega de propina às multinacionais que estavam disputando a licitação da CPTM. Indícios apontam que Arthur Teixeira teria maior proximi­dade com Jurandir Fernandes, Secretário de Transportes Metropolitanos, o que te­ria facilitado os acordos fraudulentos que foram finalizados por José Luiz Varolete, Diretor de Operação e Manutenção

da CPTM e responsável por distribuir a propina.

O esquema ocorria desde 1998 e permaneceu ativo por todos os gover­nos tucanos sem ser interrompido ou ao menos disfarçado, levando empresas como Siemens, Bombardier, CAF, Mitsui e Alston a assinarem mais contratos a cada ano, recheando as contas suíças e super­faturando as obras do Metrô e CPTM. O cartel foi formado entre tais empresas, garantindo o monopólio do mercado atra vés do combinado de preços e man­tendo sua liderança entre as licitações superfaturadas. O contrato firmado entre 2000 e 2007 aumentou cerca de 30% o valor das obras, o que levou a um fatura­mento, em dados atualizados, de cerca de R$1,9 bilhão.

Recentemente, o esquema foi confir­mado e denunciado pela Siemens, o que garantiu, a ela e seus executivos, leniência (isenção caso o cartel seja confirmado),

Carlos Brickmann, Entremundos

7

livrando­a da possível multa que pode al­cançar até 20% do faturamento bruto de cada empresa e possibilitando redução da pena de prisão para alguns envolvi­dos. Sua parte no acordo com a polícia Federal vem sendo executada através da doação de informações e acompanha­mento do esquema, auxiliando no anda­mento das investigações.

Foi confirmado um superfaturamento de aproximadamente R$12,5 bilhões ape­nas entre as empresas Siemens e Alston, demonstrando o sucesso do propinodu­to que atravessou diversos governos impunemente. Não há previsão para o fim das investigações, mas estas vêm avançando e levando a novos nomes a cada passo. O Governador Geraldo Alckmin afirma que é necessário máximo rigor no processo investigativo e eficiên­cia, exigindo uma resolução rápida e efi­caz. Além disso, Alckmin sugeriu também que todo o dinheiro desviado deverá ser devolvido aos cofres públicos e destina­do aos fins corretos, às construções do metrô e CPTM.

As boas intenções do Governador, porém, são questionadas no relatório en­tregue ao Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) no dia 17 de abril, em que dados apontam para Edson Aparecido, secretário da Casa Civil e braço ativo do governo Alckmin, e Arnaldo Jardins (PPS – SP), como bene­ficiários de comissão. Além disso, den­tre os governos que realizaram os atos fraudulentos desde 1998 está o de Mário Covas (1995 – 2001), José Serra (2007 – 2011) e o próprio Geraldo Alckmin (2001 – 2006). Aparentemente, o obje­tivo dos superfaturamentos era engor­dar os co fres do DEM e PSDB. Segundo a Siemens, mais de 8 milhões de Euros, cerca de 24 milhões de reais, foram pa­gos a dois representantes de funcionári­os públicos durante o mandato do atual governador, além da afirmação de um executivo da empresa, em e­mail a seu superior em 2008, dizendo que o então governador, José Serra, havia sugerido à Siemens que entrasse em acordo com a espanhola CAF para evitar disputas na

Edson Aparecido – divulgação

8

compra de 40 trens da CPTM, fato este negado por Serra.

Os dados fornecidos por Arthur Teixeira também apontam a proximi­dade de mais três políticos envolvidos com a Procint Projetos e Consultoria – pertencente a Arthur Teixeira – acu­sada de intermediar o pagamento das propinas. Estes são o senador Aloysio Nunes Ferreira (PSDB – SP), José Aníbal (Secretário de Minas e Energia) e Rodrigo Garcia (Secretário de Desenvolvimento Econômico).

Everton Rheinheimer, um dos lenien­tes (que afirma ser o responsável pela carta anônima enviada ao ombudsman da Siemens em 2008), firma em seu relatório que, em relação a Aparecido e Jardins, “seus nomes foram menciona­dos pelo diretor­presidente da Procint, Arthur Teixeira, como sendo os des­tinatários de parte da comissão paga pelas empresas de sistemas (Alstom, Bombardier, Siemens, CAF, MGE, T’Trans, Temoinsa e Tejofran) à Procint”. Ao men­cionar Aloysio, Jurandir e Garcia, diz ter tido “a oportunidade de presenciar o es­treito relacionamento do diretor­presi­dente da Procint, Arthur Teixeira, com estes políticos”, e ao tratar de Aníbal, pontuou, “Tratava diretamente com seu assessor, vice­prefeito de Mairiporã, Silvio Ranciaro”.

Quando se tratava de propina atra­vés de subcontratações, a empresa MGE Transportes contava com o apoio do vice­governador do Distrito Federal Filippelli (PMDB), que entrou com uma interpelação judicial contra Rheinheimer, negando “conhecer ou ter qualquer tipo de contato com o autor dessa suposta denúncia ou com a empresa citada pelo

denunciante.”, e o Ex­ Governador tam­bém do DF, José Arruda que por meio de sua assessoria, declarou “não conhecer a suposta empresa, os envolvidos no caso e jamais teve qualquer relação com ne­nhum dos envolvidos nas investigações”.

Diante das informações obtidas pelo Cade, Alckmin pediu cópias dos relatóri­os de investigação e declarou que não irá afastar os acusados, uma vez que “Não tem sentido fazer afastamento se [o go­verno] não teve nem acesso aos docu­mentos”. Apesar dos dados serem claros, o secretário da Casa Civil insiste em negar seu envolvimento, afirmando que tam­bém irá interpelar Rheinheimer, e o acusa de tráfico de influência, jogando a res­ponsabilidade dobre os Petistas através do deputado estadual Simão Pedro, ao apontar encontros entre eles e o presi­dente do Cade Vinícius Carvalho, para acertar os detalhes do “acordo de leniên­cia firmado entre a Siemens e o órgão”.

Agora, cerca de um ano e meio depois do início das investigações, ainda são pu­blicados relatórios que indicam irregula­ridades durante os governos acima, como as reformas nas linhas 1­azul e 3­verme­lha durante o governo Serra entre 2008 e 2010, segundo o promotor de Defesa do Patrimônio Público Marcelo Milani. Segundo ele, 1,622 bi lhão de reais do va­lor inicial dos quatro contratos envolvi­dos nas reformas saltaram para cerca de 2,5 bilhões de reais graças ao acréscimo de 875 milhões ge rados com o fraciona­mento em dez contratos. O fracionamen­to, de acordo com Milani, era ilegal. Ele ainda afirma, “Isso é um escândalo total, um prejuízo total aos cofres públicos. Não existe fora de São Paulo outra cidade em que esses trens sejam reformados.”.

9

Além das óbvias infrações e da ligação dos contratos com a Siemens e Alston, segundo o promotor, o proble­ma é complexo também quando levado em conta que, dos 98 trens reforma­dos, cerca de 36 estarão parados até o ano seguinte. Cópias de e­mails envia­dos por funcionários do metrô forneci­dos pela Siemens também comprovam a operação do cartel nestes contratos, ao demonstrarem o encontro convoca­do por ele com os diretores de ambas as empresas, para que as duas montassem um consórcio. “Ao menos nesse contra­to, orçado em 708 milhões de reais, o cartel operou. Porque não houve com­petitividade”, disse. “Uma das empresas envolvidas na licitação, e que também trabalha na reforma dos trens, recente­mente fechou um contrato com o metrô de Nova York. E os trens novos lá de Nova York vão ter um preço menor do que os trens reformados aqui.”

Segundo o Ministério Público, três dos trens orçados nestes contratos e já en­tregues ao metrô fora responsáveis por acidentes no decorrer dos últimos anos, entre eles, a colisão de dois trens na linha 3­vermelha no dia 16 de Maio deste ano.

O mensalão e o propinodutoNo momento em que os olhos do

Brasil voltaram­se para o Mensalão, de maioria petista, muito foi esquecido em relação às investigações referentes ao propinoduto. Entretanto, por mais desonroso que o mensalão também tenha sido ao país, este movimentou cerca de R$101 milhões, enquanto que, o desvio realizado durante os anos de fraude do governo tucano são de aproxi­madamente R$1 bilhão.

O esquema apontado pelo deputado Roberto Jefferson levou à investigação, julgamento e, em alguns casos, prisão, cerca de 39 políticos de participação ativa durante o governo Lula, entre

Everton Rheinheimer – divulgação

10

eles, José Dirceu, na época Ministro da Casa Civil, José Genuíno, ex­deputa­do federal, Katia Rabelo, presidente do Conselho de Administração do Banco Rural, Marcos Valério, chefe do esque­ma, Delúbio Soares, ex tesoureiro (PT – SP), Valdemar Costa Neto, ex­deputa­do federal, Henrique Pizzolato, ex­pre­sidente da CUT e diretor de marketing do Banco do Brasil, foragido e procura­do pela INTERPOL, o próprio Roberto Jefferson, etc.

Nas últimas semanas, estes foram as principais manchetes do país, que acom­panharam cuidadosamente os julgamen­tos pelos crimes de lavagem de dinheiro, gestão fraudulenta, corrupção ativa, pe­culato, corrupção passiva, entre outros. Alguns dos acusados tiveram de devolver ao menos parte do dinheiro roubado aos cofres públicos e cumprem pena.

No momento, é aguardado que o propinoduto volte a ganhar a atenção merecida, sendo este um esquema tão, se não mais, criminoso quanto o próprio mensalão, e que vem sendo executa­do há tanto tempo. O STF, bem como o Cade e a Polícia Federal tratam de prosseguir com as investigações em sigi­lo, publicando relatórios apenas após as necessárias averiguações, o que garante a veracidade da investigação sem com­prometimentos, e prometem trazer à tona a real quantia desviada desde 1998 e os culpados, que serão julgado e en­caminhados às suas respectivas penas.

Muito ainda está para ser analisado, porém, a certeza que resta é o claro en­volvimento tucano nas irregularidades e a necessidade extrema de reaver o di­nheiro desviado dos cofres públicos e a moral de alguns importantes represen­tantes públicos.

11

Periferia em movimento Por Vanessa Panerari

A periferia ganhou visibilidade, tornou-se o público alvo de corporações e da mídia e luta para ter voz ativa e quebrar estereótipos

Ainda hoje, em pleno século XXI, há quem acredite na velha ideia de que é preciso “levar cultura” às comunidades afastadas dos grandes centros finan­ceiros e comerciais. Este ponto de vista, extremamente normativo, ignora a exis­tência de outra acepção a respeito de cultura, que é completamente oposta à pregada e desenvolvida ao longo do pro­cesso de colonização e imperialismo dos séculos passados, que associava cultura à “civilização” e elite.

A periferia não necessita da “política do favor”, que surge a partir da desigual­dade causada pela má distribuição de fundos públicos. Não precisa ser incluí­da em uma realidade apresentada como melhor por aqueles que estão inseridos

nela. Ela precisa que haja estrutura para firmar sua própria identidade política, cultural e exercer seu direito à cidade, que é um patrimônio construído social e historicamente, mas cuja apropriação é extremamente desproporcional.

Nesse cenário , atuam os coleti­vos de comunicação e cultura, no in­tuito de preencher lacunas que não são preenchidas pelo Estado e nem por em­presas, muito menos pela cultura “con­vencional” que atua nos centros, por exemplo. São mais de 9000 coletivos apenas na cidade de São Paulo, fato con­siderado positivo na visão do coletivo Periferia em Movimento, já que cada um desses coletivos atua em determinada área, reconhecendo suas necessidades,

Divulgação Periferia em Movimento

12

amplificando as visões e trabalhando com públicos distintos a partir do meio de comunicação que adotam, impresso ou audiovisual.

Periferia em movimentoO Periferia em Movimento é um co­

letivo de comunicação que tem por ob­jetivo criar espaço para divulgar o que acontece na periferia de São Paulo, prin­cipalmente na zona sul, onde residem seus idealizadores. Buscam pautar assuntos que a grande mídia não abor­da, ou o faz de maneira estereotipada. O principal lema do coletivo é a frase de Hermano Vianna: “A periferia se cansou de esperar a oportunidade que nunca chegava, e que viria de fora, do centro”.

Por serem moradores da periferia, os jornalistas que integram o coletivo vi­ram­se com a oportunidade de falar com propriedade e dar espaço para voz­es que já existem, mas que ninguém se preocupa em escutar. A iniciativa surgiu justamente do incômodo que sentiam por não se sentirem retratados nem pela grande mídia e nem pela mídia alternati­va, que geralmente se coloca com uma visão do centro da cidade.

“Somos educados para ser o que es­peram que sejamos, para modificar a própria realidade e sair da periferia, não há valor em permanecer ali”, afirma Thiago Borges. “E isso tudo acontece por conta de estruturas que existem: edu­cação, igreja, sistema político, a mídia”, completa. O trabalho do coletivo está na construção do olhar crítico, em fazer com que as pessoas olhem com outros olhos para a própria realidade.

Apesar de poderem se articular, prin­cipalmente pela internet e redes so­ciais, a mídia tradicional ainda detém

fortemente o poder de tornar as coisas públicas e propagar discursos normati­vos, fatos que limitam o alcance do tra­balho que realizam. Para contornar esses obstáculos e atrair mais gente ao debate, o coletivo trabalha falando de movimen­tos sociais, fazendo cobertura de even­tos, entrevistas com artistas que atuam nas periferias, realizando palestras e ofi­cinas de comunicação.

O sentimento de pertencer“Tem a questão de um sentimento de

pertencer. As coisas que acontecem nos centros culturais me pertencem?”– Aline Rodrigues da Silva.

Foi pensado por quem? Foi pensa­do para quem? A questão das atividades culturais não se restringe a ser gratuito ou não. O poder de consumo na perife­ria aumentou, mas os espaços criados na própria periferia sob a “política do favor” pelo poder público ou por empresas não correspondem às necessidades reais da população. Os coletivos culturais não conseguem desenvolver atividades em tais locais, devido à burocracia para rea­lizar qualquer projeto, desestimulando o uso desses locais.

Assim como centros culturais e parques no centro das cidades, mui­tos destes espaços são gratuitos, com a proposta de levar cultura a todos. Entretanto, além da questão da mobili­dade urbana que torna inviável gastar, por exemplo, 3 horas para chegar a estes locais, existe a questão do sentimento de pertencer. Por mais fácil e econômi­co que seja o acesso a estes espaços, os moradores da periferia não se identifi­cam com aquilo, não sentem que per­tencem ao local.

Por outro lado, na zona Sul, em frente

13

a um centro de cultura, há um calçadão que se tornou local de encontro entre os jovens, fazendo contraponto aos lo­cais que vivem vazios por não terem sido pensados com a comunidade, para atender às necessidades dela. A gestão dessas áreas é centralizada no poder pú­blico, que não vive aquela realidade e se­ria preciso repensar esses espaços.

Hoje, acontecem vários saraus nas periferias da cidade de São Paulo, rea­lizados em bares, espaços com os quais as pessoas já estão acostuma­das. O Sarau da Cooperifa, por exemplo, começou nos bares. “A periferia produz cultura desde sempre, não existe isso de levar cultura para a periferia”, afirma Aline Rodrigues da Silva. “A cultura não está só nas expressões artísticas, a cultu­ra está no jeito de enxergar o mundo. É uma questão de identidade”.

“O ideal é que não haja separação entre periferia e centro. A gente se posiciona assim como jornalismo da periferia e sobre a periferia por necessi-dade.“ – Thiago

“Como exigir de uma pessoa que não tem onde morar que ela vá a um sarau? Elas não tem o básico. Essas pessoas es-tão a margem da margem.“ – Thiago

“A periferia produz cultura desde sem-pre, não existe isso de levar cultura para a periferia. A cultura não está só nas ex-pressões artísticas, a cultura está no jeito de enxergar o mundo. É uma questão de identidade.” – Aline.

Divulgação Cooperifa

14

A hora e a vez dos migrantesPor Rodrigo Borges Delfim

Conquistas recentes em São Paulo encorajam as comunidades a avançar em reivindicações históricas; o caminho a ser percorrido, no entanto, ainda é longo

Segundo estimativa da Prefeitura, 360 mil imigrantes estão vivendo em situação regular em São Paulo, cifra que pode passar de 500 mil com a inclusão dos estrangeiros que ainda estão indo­cumentados (em todo o país são cer­ca de 950 mil regularizados, de acordo com a Polícia Federal). Pode até parecer pouco frente ao total de 11 mi lhões de pessoas que vivem na capital paulista, mas é uma população facilmente no­tada nas ruas, especialmente em bair­ros como Brás, Liberdade, Bom Retiro, Barra Funda e Mooca. E uma vez partici­pando ativamente da vida da metrópole, eles têm direito de reivindicar direitos e melhores condições de vida.

Diante disso, não é – ou pelo menos não deveria – ser surpresa o fato de São Paulo ser um dos polos de debate

da questão migratória no país. Apesar de ter ficado adormecido durante dé­cadas, o tema volta em meio a um contexto que engloba também a ne­cessidade urgente de o Brasil se ade­quar à realidade de ser também um destino procurado por estrangeiros – a situação econômica relativamente es­tável e a imagem de local acolhedor são dois dos maiores atrativos.

Não deveria ser surpresa porque a vida dos imigrantes em São Paulo e no Brasil não é nada fácil. Eles enfren­tam dificuldades de acesso a serviços básicos para qualquer cidadão, como saúde e educação; também encontram empecilhos burocráticos para abrir conta em banco e obter documen­tos que re gularizam a situação deles em território nacional; existe ainda o

Convite conferência: CPMig

15

preconceito de parte do poder públi­co e da sociedade, que os enxergam como “invasores” dos serviços públicos e “ladrões de empregos”.

Mesmo diante desse quadro, os mi­grantes que residem em São Paulo já conseguem colher os primeiros fru­tos de anos de mobilização e reivindi­cações. E tais conquistas já encorajam as comunidades a dar novos passos no debate migratório, com grande poten­cial para influenciar a questão também em nível federal.

Conferência municipal, olhar local e nacional

A 1ª Conferência Municipal de Politicas para Imigrantes, realizada entre os dias 29 de novembro e 1º de dezembro na capital paulista, pode ser vista tanto como marco desses avanços como do longo caminho ainda a ser percorrido. A própria realização do evento era uma reivindicação antiga das comunidades migrantes, em busca de mais espaços para discussão e ela­boração de projetos.

Organizada pela Coordenação de Políticas para Imigrantes, criada neste ano e vinculada à Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania da Prefeitura de São Paulo, a Conferência reuniu cerca de 400 pessoas de 40 na­cionalidades e sintetizou alguns dos principais anseios dos migrantes no país: o direito a votar e de ser vota­do; substituição do atual Estatuto do Estrangeiro por uma lei que contem­ple os direitos humanos da população imigrante; melhorar o atendimento e garantir o acesso e a permanência nos serviços públicos; desburocratizar

procedimentos e agilizar os processos para emissão do Registro Nacional de Estrangeiro, entre outras.

O resultado do encontro foi con­siderado positivo pelos participantes e organizadores. “Saímos extrema­mente felizes porque conseguimos estabelecer alguns consensos funda­mentais para qualquer imigrante no país”, afirma o professor universitário Ailton dos Santos, militante na área de Direitos Humanos e um dos organiza­dores do evento. “A Conferência é boa porque dá para falar aquilo que você sente, compartilhar ideias”, diz o jor­nalista Alphonse Nyembo, da República Democrática do Congo e há quase dois anos vivendo no Brasil.

Já o coordenador de Políticas para Imigrantes da Prefeitura, Paulo Illes, destaca a necessidade de concretizar essas reivindicações. “Precisamos es­tar preparados para dar respostas à al­tura do que se espera de São Paulo. A criação da Coordenação (de Políticas para Imigrantes) já é um avanço, mas agora temos de ir para a prática e im­plementar essas políticas”.

A criação de cursos gratuitos de por­tuguês, a capacitação de servidores pú­blicos para lidar com as comunidades estrangeiras e uma cartilha explicati­va sobre os direitos dos migrantes es­tão entre as metas da Coordenação para 2014.

Inclusão bancária e conselhos participativos

A própria conferência foi precedida de dois avanços importantes para os mi­grantes. Em 29 de novembro, o prefeito Fernando Haddad assinou um decreto

16

criando cadeiras para imigrantes nos conselhos deliberativos de 22 das 32 subprefeituras de São Paulo que têm mais de 0,5% da população composta por imigrantes, de acordo com o Censo de 2010 do IBGE. Impedidos pela legis­lação nacional de votarem nas eleições, a medida do governo municipal abre espaço para que estrangeiros possam de alguma forma tomar parte nas de­cisões sobre as regiões onde vivem.

Outra vitória recente foi o acor­do assinado em outubro passado en­tre a Prefeitura de São Paulo e a Caixa Econômica Federal para facilitar a aber tura de contas por imigrantes resi­dentes. De acordo com a medida, o ban­co passará a aceitar como documento de identidade o protocolo do RNE acompanhado da cédula de identidade

do país de origem. Eles terão acesso a conta corrente, poupança, microcrédi­to, remessas ao exterior e educação fi­nanceira. Por um prazo de seis meses, no âmbito desse acordo, as remessas de até US$ 3 mil serão isentas de co­brança de tarifa.

A medida é simples, mas representa um enorme ganho em questão de se­gurança. A demora na emissão do RNE e a dificuldade na comprovação de en­dereço (muitos vivem em residências coletivas) faz com que boa parte dos migrantes prefira guardar dinheiro em casa, tornando­os alvo fácil de assaltos.

COMIGRAR, pautas nacionais e expectativa

A conferência municipal serviu ain­da como pontapé inicial para ou tro evento, a Conferência Nacional de Migração e Refúgio (COMIGRAR), or­ganizada pelo Ministério da Justiça e prevista para maio de 2014 também na capital paulista.

A exemplo da Conferência de São Paulo, a COMIGRAR também será pre­cedida de etapas preliminares chama­das de oficinas preparatórias, que tem como objetivo coletar propostas a se­rem apresentadas na etapa nacional. Manaus e Rio de Janeiro são duas das cidades que já receberam essas oficinas.

Para Jana Petaccia, uma das orga­nizadoras da COMIGRAR, a conferên­cia paulista foi um importante marco de referência para todo o processo da etapa nacional. “O evento demonstrou a relevância do tema para um conjunto bastante diversificado de organizações não governamentais e para o próprio governo municipal. Aliado a isso, o fato

Imigrantes_conferência: Rodrigo Borges Delfim

17

de São Paulo ser um dos municípios brasileiros com maior intensidade de integração das comunidades mi­grantes vivendo no país, nos sinaliza que um debate participativo para cons­truir a agenda de migrações e refúgio para o conjunto das políticas públicas é uma iniciativa não somente necessária como oportuna”.

Duas reivindicações têm potencial para concentrar as atenções durante a COMIGRAR. Uma delas é o direito aos migrantes de votar e de ser votado nas eleições – que deve ter ainda mais vi­sibilidade em 2014 por se tratar justa­mente de um ano eleitoral.

O fato mais concreto nessa direção atualmente é a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 347/2013, apre­sentada no Congresso Nacional pelo deputado federal Carlos Zarattini. Ela altera o § 2º do artigo 14 da Constituição visando conceder direitos políticos a imigrantes residentes no Brasil há mais de quatro anos e que estejam em situ­ação migratória regular. De acordo com a Constituição, somente brasilei­ros natos e portugueses naturalizados têm direito a voto nas eleições.

Outra questão que deve gerar fortes debates é a atualização da legislação migratória brasileira. O código vi­gente hoje é o chamado Estatuto do Estrangeiro (1980), herdado da ditadu­ra militar e que vê o migrante como um ser estranho e uma potencial ameaça à ordem social do país. Embora par­te dele tenha perdido o efeito com a Constituição de 1988, somente o cresci­mento da questão migratória levou o governo federal a estudar formas de atu alizar sua legislação migratória.

A reivindicação das comunidades mi­grantes e da sociedade civil organizada é que seja elaborada uma lei abrangen­te, que trate das migrações sob o pon­to de vista dos Direitos Humanos e não fique restrita a uma faceta meramente econômica e focada em selecionar ape­nas estrangeiros com alta qualificação para suprir carências profissiona is. Ironicamente, esse tipo de política – já adotada pela maioria dos chamados países desenvolvidos – costuma ser criticada pelo próprio Brasil em eventos internacionais.

“A expectativa é que nossa conferên­cia municipal possa servir como base e referência para que venha a criar uma lei mais humanitária em relação ao mi­grante em âmbito brasileiro”, acredita o professor Ailton sobre a influência que as etapas paulista e nacional podem e ­xercer sobre uma futura lei migratória. Já Paulo Illes enfatiza a necessidade de englobar essas duas reivindicações principais e garantir a presença mi­grante no evento. “Vamos pautar o direito ao voto dos imigrantes, a nova lei de migração e que possa ter uma participação ampla de imigrantes. E,

Centro de Direitos Humanos e Cidadania do Imigrante

18

sobretudo, que possamos ter uma pau­ta progressista na Conferência”.

Jana crê que, ao final da Conferência nacional, a sociedade brasileira terá fortalecido o tecido social em torno da integração dos migrantes na vida do país. “Muitas propostas surgirão que poderão aperfeiçoar as políticas públicas brasileiras para alcançarmos progressos substantivos na garantia de direitos dos estrangeiros que escolhem o Brasil como sua pátria”.

Teriam tais conferências e outros lo­cais de expressão e debate o poder de ajudar a influenciar o governo a adotar tais medidas? É importante não perder

de vista os efeitos que um tema tão complexo como as migrações exercem sobre um país igualmente diverso como o Brasil. “Temos problemas na conjun­tura nacional e visões divergentes sobre imigração”, lembra Paulo Illes. No en­tanto, os avanços já obtidos pelos mi­grantes – especialmente em São Paulo – após anos de organização encorajam as comunidades a lutar e ajudam a mo­bilizar cada vez mais seus integrantes e a conquistar simpatizantes em meio à sociedade. O caminho é longo e os resultados podem demorar anos, mas a persistência tem trazido suas recompensas.

19

A censura das biografias não autorizadas

O PL que garante a publicação de biografias sem autorização está em trâmite e tem sido muito criticado por artistas que tiveram sua arte inviabilizada durante a ditadura

O projeto de lei 393/11, mais conheci­do como “lei das biografias” foi aprovado em duas comissões da Câmara e ainda não em data para ser votado. A proposta, que altera o Código Civil, libera de forma expressa a publicação de biografias não autorizadas, além da divulgação de ima­gens, escritos e informações biográficas sem autorização. Esse projeto, de au­toria do deputado federal Newton Lima (PT­SP), começou a ser muito discutido na mídia, após algumas biografias terem suas publicações proibidas, por falta de autorização dos biografados ou dos fa­miliares. Uma delas foi a quarta edição da biografia “Paulo Leminski ­ O Bandido que Sabia Latim” de autoria de Toninho Vaz, que foi barrada pela família do poe­ta devido ao enfoque “depreciativo à imagem do retratado e seus familiares”. Artistas como Roberto Carlos, Gilberto Gil, Chico Buarque e Djavan prontamen­te se posicionaram contra o projeto de lei e, em contrapartida, biógrafos como Ruy Castro e Mário Magalhães se mostra­ram a favor.

Para o poeta cearense Floriano Martins “nada justifica a existência de uma biogra­fia autorizada, o texto em si é a história de uma vida e não a correção da mes­ma; é tão indevido eliminar passagens controversas da vida de um biografado quanto o biógrafo passar a tecer críti­cas a elas. Evidente que tampouco nada justifica a inserção de informações não confirmadas em uma biografia, fato tão danoso quanto a exclusão de passagens

que ajudem a compreender o caráter do biografado. A existência de profissionais incompetentes não legitima a censura sobre o exercício de nenhuma profissão, ela não pode ser evocada como medida preventiva em circunstância alguma”.

O inciso IX, do artigo 5, da Constituição decreta que “é livre a expressão da ativi­dade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. Porém, o artigo 20 do atual Código Civil deslegitima o artigo 5 da Constituição ao defender que a uti­lização da imagem ou exposição de uma

Por Marcela Reis

Biografia de Roberto Carlos, que moveu uma ação judicial para que a obra não circulasse mais – divulgação

20

pessoa pode ser proibida. Ao afrontar a Constituição, o Código Civil também afronta um dos princípios fundamentais da sociedade aberta, que é a liberdade de expressão. Dessa forma, através da censura, a lei legitima a publicação das chamadas biografias “chapa­branca”.

O escritor Ronaldo Cagiano defende que não autorizar biografias é antide­mocrático e censurador, acrescentando que “é o dever de intelectuais, jornalistas e escritores fazer o registro da História e cuidar para que ela seja compreendi­da à luz de uma inflexão dialética, para que os erros e mazelas jamais se repitam. Escrever é correr riscos, mas nunca se deve pecar pela ausência da verdade, pela omissão da realidade ou pelo escamotea­mento de qualquer informação. A liber­dade deve ser total, ampla e irrestrita para escrever e biografar o que quiser, porque se há algum desvio ou inverdade, se há erros a reparar, esses devem ser buscados

na via jurídica por quem se sentir atingi­do, e não na força ou na mordaça”.

De acordo com inciso X, do artigo 5, da Constituição “são invioláveis a intimi­dade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurando o direito a in­denização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”. O Código Civil também apresenta ações como o direito de resposta e processos por di­famação. A lei já protege qualquer ci­dadão que se sente lesado de alguma forma através da exposição de sua vida, reparando danos morais e até materi­ais, com a devida punição do culpado. A justiça brasileira muitas vezes se mostra ineficiente e lenta, mas nesse caso é pre­ciso melhorá­la e não privar a liberdade de expressão censurando obras.

A associação Procure Saber, forma­da por Caetano Veloso, Chico Buarque, Gilberto Gil, Djavan, Roberto Carlos, en­tre outros, faz lobby contra as biografias

Caetano e Gil, contrários à lei das biografias, em suas fases tropicalistas – divulgação

21

não autorizadas com a justificativa de temor em relação às calúnias. Paula Lavigne, presidente da associação, afir­mou recentemente que eles não querem censurar ou proibir alguma coisa, apenas discutir como a privacidade será prote­gida. Esse posicionamento de artistas como Caetano, Gil e Chico, que na épo­ca da ditadura tiveram sua arte inviabili­zada, é oportunista, leviano e cerceador. Contrariando a letra da música “Como nossos pais”, de Belchior, nossos ídolos já não são mais os mesmos.

“Eles estão repetindo a mesma trucu­lência do estado autoritário que os pros­creveu, só que com a sutileza de uma argumentação que não se sustenta, con­trariando, inclusive, o jargão que ficou famoso a partir da música que tanto ce­lebrizou a Tropicália, “É proibido proibir””, aponta Cagiano.

Roberto Carlos, que moveu uma ação judicial em 2007 para que sua biografia, escrita por Paulo César de Araújo, não circulasse mais, voltou atrás há mais de um mês e não defende mais a necessi­dade de aprovação prévia para a publi­cação. Argumenta que deve haver um diálogo entre autores e biografados ou seus re presentantes, o que mostra clara­mente que o cantor ainda mantém uma postura que continua na contramão da liberdade de expressão. “Não somos censores (...) não queremos calar nin­guém. Mas quere mos que nos ouçam”. Essas são palavras proferidas por Roberto Carlos, que só explicitam mais como os “Procure Saber” estão se enrolando em suas próprias contradições.

Traçando uma analogia entre a asso­ciação, que defende a manutenção do artigo 20 do Código Civil, e o PT, o poeta Luís Dolhnikoff aponta: “o PT, até che­gar ao poder, era um partido moderno e

reformista, mas depois se aliou a gente como Sarney. É que a sociedade brasilei­ra é marcada pela herança oligárquica. Todos são iguais perante a lei, mas al­guns são “mais iguais”. Como o PT intoxi­cado pelo poderio, esse pequeno grupo, que se encontra nessa questão ao lado de gente como Paulo Maluf e Ronaldo Caiado, defende uma legislação em causa própria, consciente ou inconsci­entemente, acreditando que deveria ter direito a um “tratamento especial’”.

‘’Biografia não autorizada’’A expressão “biografia não autoriza­

da” é um completo equívoco, ela surgiu no mundo saxônico como “unautho­rized bio graphy” e tem, originalmente, tanto um contexto legal quanto comer­cial, mas se tornou popularizada no se­gundo caso. De acordo com o mercado norte­americano, se trata de uma biogra­fia “picante”, com revelações “quentes”, que uma versão autorizada não conteria. O problema é que no Brasil, a partir da implantação do artigo 20, essa expressão impregnou o gênero biográfico com o conceito de autorização. Obviamente não é o caso nos EUA, onde escrever uma biografia autorizada ou não é, na verdade, apenas uma opção. Uma “au­thorized biography” não tem absoluta­mente nada a ver com a necessidade da autorização do biografado ou da família, é apenas uma característica da obra. Mas a importação desinformada, descontex­tualizada e deturpada da expressão aca­bou por falsear toda a discussão, bem como suas implicações.

“As biografias feitas de maneira inde­pendente das vontades e dos favores do biografado e/ou dos herdeiros deveri­am ser, no Brasil, chamadas assim mes­mo, “biografias independentes”. Uma vez

22

chamadas por seu próprio nome, toda a discussão se aclara – e se inverte. Pois não se trata mais de permitir ou não a biografia não autorizada, mas sim de proibir ou não a biografia independente” explica Dolhnikoff.

A biografia “John Lennon ­ A Vida”, de Philip Norman, foi inicialmente aprova­da por Yoko Ono, viúva do beatle, mas depois o apoio foi retirado, sem que o autor entendesse a razão. A biografia passou a ser não autorizada, mas pôde ser publicada. Apenas o acesso à Yoko e aos documentos pessoais que ela guar­dava se tornaram restritos. E o principal: em momento algum a viúva questionou a legitimidade da obra, alegando que não pudesse ser escrita e publicada.

Proibir a publicação de biografias é limitar a liberdade de expressão, que é a base essencial de qualquer regime democrático. Nos países modernos e democraticamente consolidados como EUA, Inglaterra e França essa discussão soaria absurda, pois proibir gêneros literários não é uma opção. Biografias são instrumentos da História, “como es­crever a história europeia do século XIX sem pesquisar a vida de Napoleão? E como pesquisá­la tendo que ficar refém de seus herdeiros? A história de toda a Europa deve ficar refém dos herdeiros de um só homem?” aponta Dolhnikoff.

Esse projeto vem dar continuidade a um esforço de banir, de uma vez por todas, alguns resquícios autoritários da ditadura, que enxergava perigo e sub­versão em tudo, principalmente nas opiniões e na expressão artístico­in­telectual. Negar a publicação de biogra­fias é um retrocesso para esse período conturbado e censurador.

Para o escritor André Caramuru Aubert, essa discussão acerca das biografias

pode estar acontecendo no Brasil por ser uma democracia recente, que tem uma Constituição complexa e com aspectos contraditórios, portanto, uma série de questões que em outros países foram resolvidas há muito tempo, continuam sendo pauta entre nós. “Como bem es­creveu Benjamin Moser, o biógrafo de Clarice Lispector, naquela carta aberta a Caetano, atualizando as palavras de Voltaire: “liberdade de expressão não existe para proteger elogios’” completa.

A biografia é um trabalho literário, e não mero entretenimento como muitos pensam, é um tipo de obra importante em termos históricos e culturais. Quando tem cunho jornalístico é considerada re­portagem, portanto é essencial para a construção da própria História. Há mui­ta discussão acerca do pagamento dos biografados e do trabalho e ganho dos

Biografia não autorizada do Beatle – divulgação

23

biógrafos. No primeiro caso, não há jus­tificativa plausível, pois as matérias jor­nalísticas inúmeras vezes se valem da vida de figuras públicas sem lhes dar nenhum tostão. Já no caso dos lucros dos escri­tores de biografias, é um equívoco achar que eles ganham fortunas e que seu tra­balho não é tão louvável por relatarem histórias de vida de terceiros. As biogra­fias refletem muito sobre um período e sobre a sociedade, proibi­las dessa forma empobrece o conhecimento humano.

Há muitos argumentos contrários ao projeto, expressando que as biografias contam aspectos da vida privada, o que deslegitima o trabalho do biógrafo. Uma

grande tolice. Como contar a história do Brasil sem estudar a vida de D. Pedro I e seu relacionamento com a Marquesa de Santos, que influenciou o primeiro reinado? A relevância de se conhecer a intimidade de figuras públicas é relativa, há situações em que isso influencia dire­tamente o contexto social e histórico de uma época, já em outros casos não pas­sa de mercadoria, de indústria cultural. A discussão sobre as biografias vai mui­to além do direito de publicar fofocas e notícias “picantes” sobre alguém famoso, a natureza da esfera pública brasileira e a existência da censura (herança da di­tadura) estão em jogo.

24

No último 20 de novembro foi com­pletada uma década da inclusão do Dia da Consciência Negra nos calendári­os escolares, a partir da Lei de n°10.639, que também tornou obrigatório o en­sino sobre a História e Cultura Afro­Brasileiras. O Dia da Consciência Negra foi cunhado após a revelação da data do assassinato de Zumbi, líder do Quilombo dos Palmares, como 20 de novembro de 1695, por membros do Grupo Palmares – que reunia militantes e pesquisa­dores da cultura negra brasileira – em 1971. Porém, apenas em 2003 ganhou importância nacional entrando no calendário escolar, e em 2011 foi instituí­do, através da aprovação da Lei n°12.519. Desde então, a data se tornou feriado em 1.047 municípios brasileiros.

Ao pesquisar o Dia da Consciência Negra na Wikipédia e no Site da Secretária de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, assim como ao ler a Lei n°12.519 e observar as notícias publi cadas nos portais no ultimo 20 de novembro, algo chama a atenção: o verbo ‘comemorar’ é amplamente utilizado para designar a forma como devemos agir e agimos nes­sa data. Apesar das legen das comemora­tivas, as fotos do portal de notícias UOL exibiam jovens negras e negros em uma manifestação por direitos e igualdade. Um dos cartazes, segurado por uma mu­lher, dizia ‘Não queremos ser globeleza’, enquanto em outro estava escrito “Cotas raciais nas universidades paulistanas Já!”.

Dia da Consciência Negra: Importância histórica e atual

Por Júlia Dolce

#opinião

Zumbi, Amarildo, Douglas Rodrigues e Mandela: terroristas de ontem, terroristas de hoje.

Após muito pensar sobre minha posição social e falta de propriedade para escrever um texto sobre racismo, cheguei à débil conclusão de que esses fatores, de certa forma, poderiam con­tribuir para a argumentação. Sou branca, moro em um bairro nobre da cidade de São Paulo e estudo em uma faculdade particular, na qual entrei diretamente do ensino médio, pelo que a sociedade considera como ‘meu mérito’, mas eu entendo bastante como privilégio. Tenho pouquíssimos amigos negros, e nun­ca estudei com mais de dois negros em uma sala de aula. A grande maioria de empregadas domésticas que já trabalha­ram em casa são negras. Quando o dia 20 de novembro se tornou feriado em São Paulo eu fui para o litoral paulis­ta “comemorar” a falta de aulas, que de maneira muito propícia se encaixou com o feriado da Proclamação da República, formando um recesso de praticamente

Manifestação por democracia racial no Vão do Masp durante o dia da Consciência Negra

25

uma semana, quando emendado. A des­crição do meu aproveitamento do Dia da Consciência Negra foi magistralmente ilustrada por Angeli, na seguinte charge:

O 20 de novembro de 2013 foi o pri­meiro em que eu realmente entendi minha posição no Dia da Consciência Negra, assim como seu objetivo. E desde então, o uso da palavra “comemoração” começou a me incomodar, exatamente o que eu não queria fazer no dia 20 era comemorar. Passei o dia fazendo o que geralmente não se faz em nenhuma ou­tra data do ano: reconhecendo minha posição histórica opressora como bran­ca, lendo, ouvindo, e tentando de algu­ma forma dar voz à população negra.

Acreditei por um momento que a tal ‘comemoração’ tão divulgada não dizia respeito à mim, eu deveria me incomo­dar sim, enquanto a população negra projetava seu orgulho racial e conquistas nessa data. Porém, usando mais uma vez a charge de Angeli como exemplo, qual a parte da população que realmente tem a possiblidade de comemorar o Dia da Consciência Negra, da forma como

nós brasileiros estamos acostumados a comemorar?

Um texto escrito por Fernanda Sousa no blog Blogueiras Feministas, expôs es­tatísticas assustadoras sobre a população negra brasileira: 70,8% da população que vive em extrema pobreza no Brasil é negra, assim como 60% da população carcerária. A chance e um jovem negro ser assassinado é 139% maior que a de um jovem branco e 60,9% das empre­gadas domésticas são mulheres negras. A renda média de uma mulher negra equivale a 30,5% da renda de um homem branco e no ensino superior brasileiro apenas 8,9% dos estudantes são negros.

A forma como nós brasileiros descar­tamos a memória sobre os fatos históri­cos do país é alarmante, e pode ser claramente observada durante os feria­dos, quando a comemoração ultrapassa o debate a cerca das datas e seus obje­tivos. É o caso do Dia Internacional do Trabalho, que nasceu como homena­gem aos trabalhadores mortos nas lutas sindicais da Revolta de Haymarket, em Chicago, e hoje tem seu objetivo desco­nhecido por grande parte da população. Também pode ser observada através da ineficiência da Lei n°10.639, exempli­ficada nos inúmeros casos de profes­sores criticados por pais e demitidos ao ensina rem a história e cultura Afro­Brasileiras, e também na minha ‘exem­plar’ formação acadêmica, que exige que eu procure ‘Quilombo dos Palmares’ no Google antes de escrever essa matéria.

O Dia da Consciência Negra não pode perder o caráter que está repre­sentado em seu nome, de conscien­tizar o brasilei ro sobre a luta histórica de emancipação dos negros, e principal­mente, sobre a situação atual da popu­lação negra em um país popularmente

26

caracterizado como ‘uma mistura de raças, onde não existe racismo’. A cele­bração da cultura e história afrodescen­dentes não pode ser confundida com o entretenimento barato que nos é ven­dido, garantindo uma democracia racial que inexiste. O verbo ‘comemoração’ não pode ser usado como legenda para fotos de protestos por igualdade.

O Racismo IntrojetadoO ano de 2013 foi marcado pe­

los protestos das Jornadas de Junho no Brasil, que suscitaram críticas de várias questões anteriormente ignora­das por boa parte da população, forma­da principalmente por uma classe média alienada de temas políticos. Uma dessas questões foi o racismo evidente no tra­tamento da Polícia Militar à população periférica, quando comparado ao trata­mento dispensado aos jovens brancos e de maior poder aquisitivo, durante as manifestações.

Entre os acontecimentos que pro­moveram a revolta popular, alguns se destacaram. Foi o caso do assassinato do ajudante de pedreiro, e negro, Amarildo, considerado desaparecido após ser leva­do por policiais à uma UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) da Rocinha, no Rio de Janeiro; do assassinato do jovem ne­gro Douglas Rodrigues, estudante mor­to por um policial em frente a um bar, que se tornou conhecido pela pergunta

que tem rodado a internet em forma de protesto: “Porque o senhor atirou em mim?”; e também do massacre pro­movido no complexo da Maré, no Rio de Janeiro, quando policiais do 22° bata­lhão da PM invadiram a favela em busca de traficantes, e mataram 9 inocentes, tornando famoso o bordão “Na periferia as balas não são de borracha”.

Além da violência policial, situações como os protestos contra a vinda de cu­banos para o Programa Mais Médicos, nos quais o médico negro Juan Delgado foi chamado de escravo; assim como a recente escolha da FIFA, ao trocar os atores negros Camila Pitanga e Lázaro Ramos pelo casal branco Fernanda Lima e Rodrigo Hilbert, para a apresentação do sorteio da Copa; têm conquistado a atenção popular. Esse último caso fo­mentou discussões sobre racismo que tem sido desprezadas por muitos, inclu­sive a atriz caucasiana, que respondeu em entrevista estar sendo injustiçada apenas por ser “branquinha”, além de acrescen­tar o clichê argumento brasileiro para honestidade: “Eu pago meus impostos!”

Entrevista com Ailton SantosApós essa sucessão fria de dados e

estatísticas, dou voz a quem realmente entende e sofre com a discriminação ra­cial no Brasil: O professor universitário, militante do Comitê Contra o Genocídio da População Pobre, Preta e Periférica e do Movimento Pró­Cotas, Ailton Santos, que cedeu entrevista à Revista Contexto. Ailton dizia ter o tempo dividi do em 80% questões acadêmicas e 20% militância, mas viu essa porcentagem se inverter após ganhar maior contato com a reali­dade periférica brasileira, através de seus estudos sobre a cifra negra do genocí­dio da população preta, pelos quais diz

27

ter se tornado um intelectual orgânico e de base.

Você pode nos contar um pouco sobre suas pesquisas em relação ao genocídio da população negra?

AS: O racismo no Brasil é estrutural, mas nós estamos vivendo ele de uma for-ma conjuntural. Nós estamos no Casa Grande e Senzala, a diferença agora é quem tem e quem não tem. Somos o país que mais mata o jovem, o preto, o pobre, o periférico. De cada 10 jovens que são mortos pela violência hoje, 7 são negros. Nós somos divididos em 96 dis-tritos na cidade de São Paulo, e 60 de-les não tem uma biblioteca. Quem mora nesses distritos? O negro, o pobre. Aí se torna uma área vulnerável, onde o Estado democrático é ausente. Quem paga o preço? Esse cidadão que geral-mente demora 3 horas pra ir e voltar do trabalho. Um cidadão que paga impos-tos e não tem acesso à educação, saúde e lazer. Por isso esses números são im-pressionantes, mas verdadeiros.

Eu reconheço de uma forma mui-to clara avanços e retrocessos de vários governos. Posso dizer que nesses últi-mos anos nós criamos muitos consumi-dores e poucos cidadãos. Não tivemos mudanças claras e absolutas na estrutu-ra brasileira, principalmente porque não existem instituições que tratam do racis-mo. Para que elas existam, tem que haver uma consciência de quem está no poder, que é justamente o branco racista.

A construção do nosso processo é formada por negros, por índios e por brancos: é um tripé. Brasileiro é vira-la-ta, como dizia Darcy Ribeiro. Mas nós não aceitamos esse Brasil real, nós o

veiculamos de uma forma burra e li-mitada. Acontece que o negro foi nega-do, visto como objeto até pelos Jesuítas. Negro não tinha alma, não precisava nem ser catequizado. O brasileiro preci-sa assumir primeiro que o racismo existe, que não existe uma tentativa de integrar o outro na sociedade e que a nossa elite econômica é alienada culturalmente e politicamente.

Como você vê a importância do Dia da Consciência Negra e o modo como ele vem sendo encarado pela sociedade?

AS: Eu gosto de lembrar da citação de Gramsci que fala que o pessimismo da realidade não pode tirar o otimismo da ação. Eu acho que estou mais ou menos nessa situação. Acho que o dia 20 é um primeiro passo de uma longa caminha-da. Eu participei da passeata no último dia 20 em São Paulo, e fiquei muito feliz com a grande maioria de negros partici-pando, mas também com uma parcela de 30% de brancos e pessoas de outras na-cionalidades. Isso demonstra que a im-portância do Dia da Consciência Negra é que ele permite que mais um dia se torne oficial, mesmo que não seja um feria-do nacional e que a gente não tenha um herói nacional negro. A presidenta Dilma precisa continuar a política que o gover-no Lula iniciou, ele foi o presidente que mais abriu embaixadas no continente africano, e a primeira Lei que ele assinou foi a Lei 10.639. Então é um retrocesso falar que nem 25% dos municípios es-tabeleceram essa data como feriado, e também que as pessoas não utilizam esse feriado pra refletir. Não existe uma conscientização, então temos que fa-zer um trabalho de base, educacional, de comunicação, pra que esse dia seja não

28

só de um movimento negro, mas de vári-os outros grupos sociais.

Como você encara a efetividade da Lei n°10.639, principalmente em relação ao artigo que torna obrigatório o ensi­no da cultura e história afro­americana nas escolas.

AS: Eu não sei se ainda vou ter tempo pra ver essa lei se fazer presente de fato no currículo de todas as escolas, sejam elas públicas ou particulares, porque muitas escolas ainda são resistentes por uma questão claramente ideológica. Não adi-anta a existência da Lei n°10.639 se ela não se faz presente. Se o Estado colo-casse o Art. 5° (todos são iguais perante a lei) em ação, não precisaríamos criar hoje as cotas, que permitem que grupos de etnias oriundas principalmente de es-colas públicas, tenham acesso à facul-dades como a USP. Mesmo São Paulo sendo o estado mais rico da União, con-tinua negando nas suas universidades a condição das cotas, coisa que já foi

aprovada pelo Supremo Tribunal Federal. Isso demonstra que a nossa elite conti-nua ainda extremamente racista.

Você já foi discriminado na condição de professor negro, principalmente ao tra­tar da história e cultura afro­americana em aula?

AS: Olha, eu vou ser muito franco: claro que eu nunca fui diretamente destratado em sala pela minha condição de ser ne-gro, mas já deixei de ser melhor acolhido justamente por essa condição.

Você relaciona a democracia racial à de­smilitarização da polícia?

AS: Eu acabei de ler uma tese que foi de-fendida na faculdade de Direito do Largo São Francisco sobre direitos humanos e educação na Polícia Militar, na qual os números claramente mostram que a PM é racista e classista. Por conta disso, ela faz com que o pobre, preto e periférico, seja o mais sujeito a uma abordagem,

Geledes Instituto da Mulher Negra

29

que infelizmente não é determinada pela condição do direito de ser. Se a polícia criasse protocolos de abordagem, nos quais seria justificada a razão pela qual o policial parou aquele cidadão, a gente conseguiria observar com maior pontu-alidade as razões muitas vezes racistas da abordagem. A Polícia militar, infe-lizmente desrespeita imensamente os di reitos humanos, e isso não sou eu mili-tante negro que falo, mas números e es-tudos sobre a PM.

Você acha que o fato da atenção públi­ca ter se voltado para negros periféricos nos casos recentes de violência policial (como o caso do Amarildo e do Douglas Rodrigues), significa um progresso na luta por democracia racial?

AS: Se a gente não criar instituições e políticas que pressupõem uma axiolo-gia da sociedade brasileira, não vamos avançar. Recentemente, um represen-tante da Secretária de Segurança falou na Assembleia Legislativa que não exi s te racismo na polícia. Esse discurso não é real para o negro e pobre, o genocídio é claro para essa população. O racis mo não está só na atitude física, mas já está intro-jetado. As vezes questionam até quando eu falo que sou professor, porque exis-tem estereótipos de quem são os negros, esses criados pela elite branca.

Qual a sua resposta pra afirmações que negam a existência do racismo no Brasil?

AS: Na faculdade de Direito eu pergun-tava muitas vezes quantos professores negros eles tinham, e não era uma sur-presa quando falavam que eu era o único. Quantos médicos ou engenheiros ne-gros eles tinham visto? O que acontece,

os negros são preguiçosos, não gos-tam de trabalhar? Quantos negros na história brasileira eles tinham referência? A Avenida Rebouças em São Paulo por exemplo, ou a Teodoro Sampaio, tem o nome de negros. O criador da Academia Brasileira de Letras, Machado de Assis, era negro. Mas ouve uma negação, e o Brasil é feito dessa negação. Já está na hora de quebrarmos essa estrutura e reconhecermos a nossa história.

MandelaAos 45‘ do segundo tempo na pro­

dução dessa matéria, tive contato com a notícia da morte de Nelson Mandela. Mandela, ou Madiba, como é conhecido na África do Sul, faleceu na quinta feira 5 de dezembro, aos 95 anos, após ser leva­do para sua residência em Johanesburgo depois de ficar três meses internado para tratamento de uma infecção pulmonar. Meios de comunicação do mundo in­teiro veicularam a imagem do ex­presi­dente sul­africano, construindo uma opinião pública positiva através de uma áurea de pacifismo atribuída à Mandela.

A morte de Mandela trouxe os fatos históricos da luta pela democracia racial para o nosso cotidiano e o luto interna­cional por um líder negro tem um valor inquestionável. Porém, veículos conser­vadores que por tantos anos apoiaram o apartheid, ou se abstiveram de denunciar esse sistema opressor, têm utilizado uma imagem conciliadora de Mandela para não assumir uma divergência de valores que em si os criminaliza. São os mes­mos veículos que ignoram diariamente o genocídio da população negra bra­sileira. É o caso da Revista Veja, coman­dada pelo grupo midiático sul­africano

30

Naspers (sócio da Editora Abril), que du­rante décadas esteve estreitamente vin­culado ao Partido Nacional, organização partidária que legalizou o apartheid.

Mandela foi um revolucionário, co­munista e adepto da resistência arma­da, classificado como “terrorista” pelos EUA até pouco tempo atrás. Apesar de sua importância histórica, sua revolução ainda não aconteceu: o racismo ainda é uma questão presente em todo o mun­do. O fenômeno de distorção dos valores de líderes políticos, neutralizando­os, tem um potencial alienante tão grande quanto a “comemoração” rasa de datas que deveriam pregar a conscientização. Que a morte de Mandela alimente a dis­cussão sobre o apartheid enrustido dos dias de hoje, para que a indignação e o luto por sua morte se estenda à periferia e aos negros assassinados diariamente.

“Veículos conservadores que por tan-tos anos apoiaram o apartheid, ou se abstiveram de denunciar esse sistema opressor, têm utilizado uma imagem conciliadora de Mandela para não as-sumir uma divergência de valores que os criminaliza. São os mesmos veículos que ignoram diariamente o genocídio da população negra brasileira.”

31

#prosa&poesia

Na força da luta revelo a mulher que sou

o peso da vida sobe o pretencioso olhar

espectro da alma

Carne viva do amor

Lembrança de viagem

Armadura de cor

De dor

Rancor e mágoas,

Desfeitas em puras e singelas lágrimas

Simples e fugazes

Exacerbam o peito

Penetro o tempo

e eternizam-se no toque

Vida vida vida, querida, quem dera um dia dedicar uma ode a ti

uma fugaz memória

uma triste filosofia

um desapego, regado pelo desejo

de um dia compor a ti

simples e puramente poesia

Jaqueline araúJo é estudante de Direito da Universidade de Guarulhos.

32

Beco do BatmanVictoria azeVeDo é estudante de Jornalismo da PUC­SP

#fotocontexto

34

35

36

37

contexto