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[REVISTA CONTEMPORÂNEA DOSSIÊ 1964-2014: 50 ANOS DEPOIS, A CULTURA AUTORITÁRIA EM QUESTÃO] Ano 4, n° 5 | 2014, vol.1 ISSN [2236-4846] 1 1 Sobre a curta duração Alejandra Estevez VILLA, Marco Antônio. Ditadura à brasileira: 1964-1985: a democracia golpeada à esquerda e à direita. São Paulo: LeYa, 2014. O livro de Marco Antônio Villa, um dos mais recentes lançamentos editoriais por ocasião dos 50 anos do Golpe de 1964, traz poucas novidades em termos de conteúdo, mas é recheado de polêmicas, nem sempre sustentadas historicamente. O autor defende que a ditadura militar brasileira teria sua duração restrita aos anos de vigência do Ato Institucional n° 5 (1968 a 1978). Seu trabalho corrobora com a tese vale dizer, muito melhor estruturada do ponto de vista teórico do também historiador Daniel Aarão Reis, que diferencia o período ditatorial do que ele vai denominar de estado autoritário de direito. Embora não faça referência direta à interpretação de Aarão Reis, seu trabalho caminha no mesmo sentido. Villa busca desassociar o regime militar instaurado no Brasil entre 1964 e 1985 das demais ditaduras militares existentes no Cone Sul. A causa de tal diferenciação deve-se à especificidade desta ter mantido alguns mecanismos democráticos funcionando durante certos períodos (1964-1968 e 1979-1985). O clima de efervescência cultural apontado nos quatro primeiros anos dos governos militares e as eleições estaduais de 1982, a Lei de Anistia e as Diretas Já são acontecimentos que visam validar o discurso em torno da “curta ditadura militar” ou, nas palavras do próprio Villa, da “ditadura à brasileira”. A expressão que dá título ao livro pretende minimizar o controle autoritário das Forças Armadas sobre a política nos anos 1964-1968 e 1979-1985. Para o autor, apesar das cassações, o Legislativo foi um “espaço de discussão política e de crítica ao regime”. Ou seja, a ditadura à brasileira aparece como uma ditadura branda, à exceção do período de vigência do AI-5. É difícil concordar com esta interpretação quando o próprio autor nos diz que durante o governo Castello Branco foram editados 4 atos institucionais, 37 atos complementares, 312 decretos-leis e milhares de atos punitivos. Doutora em Sociologia pela UFRJ, onde investigou a atuação de líderes católicos na Diocese de Barra do Piraí/Volta Redonda (1966-2010). Atualmente trabalha como pesquisadora da Comissão Nacional da Verdade.

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[REVISTA CONTEMPORÂNEA – DOSSIÊ 1964-2014: 50 ANOS DEPOIS, A CULTURA AUTORITÁRIA EM QUESTÃO]

Ano 4, n° 5 | 2014, vol.1 ISSN [2236-4846]

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Sobre a curta duração

Alejandra Estevez

VILLA, Marco Antônio. Ditadura à brasileira: 1964-1985: a democracia golpeada à

esquerda e à direita. São Paulo: LeYa, 2014.

O livro de Marco Antônio Villa, um dos mais recentes lançamentos editoriais por

ocasião dos 50 anos do Golpe de 1964, traz poucas novidades em termos de conteúdo, mas

é recheado de polêmicas, nem sempre sustentadas historicamente. O autor defende que a

ditadura militar brasileira teria sua duração restrita aos anos de vigência do Ato

Institucional n° 5 (1968 a 1978). Seu trabalho corrobora com a tese – vale dizer, muito

melhor estruturada do ponto de vista teórico – do também historiador Daniel Aarão Reis,

que diferencia o período ditatorial do que ele vai denominar de “estado autoritário de

direito”. Embora não faça referência direta à interpretação de Aarão Reis, seu trabalho

caminha no mesmo sentido. Villa busca desassociar o regime militar instaurado no Brasil

entre 1964 e 1985 das demais ditaduras militares existentes no Cone Sul. A causa de tal

diferenciação deve-se à especificidade desta ter mantido alguns mecanismos democráticos

funcionando durante certos períodos (1964-1968 e 1979-1985). O clima de efervescência

cultural apontado nos quatro primeiros anos dos governos militares e as eleições estaduais

de 1982, a Lei de Anistia e as Diretas Já são acontecimentos que visam validar o discurso

em torno da “curta ditadura militar” ou, nas palavras do próprio Villa, da “ditadura à

brasileira”.

A expressão que dá título ao livro pretende minimizar o controle autoritário das

Forças Armadas sobre a política nos anos 1964-1968 e 1979-1985. Para o autor, apesar das

cassações, o Legislativo foi um “espaço de discussão política e de crítica ao regime”. Ou

seja, a ditadura à brasileira aparece como uma ditadura branda, à exceção do período de

vigência do AI-5. É difícil concordar com esta interpretação quando o próprio autor nos diz

que durante o governo Castello Branco foram editados 4 atos institucionais, 37 atos

complementares, 312 decretos-leis e milhares de atos punitivos.

Doutora em Sociologia pela UFRJ, onde investigou a atuação de líderes católicos na Diocese de Barra do

Piraí/Volta Redonda (1966-2010). Atualmente trabalha como pesquisadora da Comissão Nacional da

Verdade.

[REVISTA CONTEMPORÂNEA – DOSSIÊ 1964-2014: 50 ANOS DEPOIS, A CULTURA AUTORITÁRIA EM QUESTÃO]

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Em artigo publicado em 2011, Marcos Napolitano apontou quatro principais

temáticas que não podem estar ausentes de qualquer revisão historiográfica sobre a

ditadura militar. São elas o golpe, a guerrilha, a repressão e a transição. Concordando com

a análise de Napolitano, iremos avaliar como a obra em tela trata cada um desses assuntos.

O primeiro deles, o golpe, não apresenta maiores novidades. Ao reeditar a tese de

Alfred Stepan (1975), para quem o golpe de 1964 seria resultado da inabilidade do

presidente João Goulart em “reequilibrar” as forças políticas à direita e à esquerda, o

historiador paulista vai acusar Jango de haver abandonado o país “à beira de uma guerra

civil”. Ainda referindo-se ao contexto do Golpe, outra afirmação polêmica buscará

convencer o leitor a respeito da não participação dos EUA na instalação do regime militar

brasileiro, asseverando que os atores políticos se moveram pela dinâmica interna e não

como “marionetes do imperialismo” (p. 55). Villa afirma que “a participação dos Estados

Unidos nos acontecimentos de 1964 é ínfima” (p. 370). Longe de se tratar de uma “lenda”

ou teoria da conspiração, a Operação Brother Sam – que nem mesmo é lembrada pelo autor

– tinha o objetivo claro de oferecer apoio logístico por parte da Marinha americana para a

deposição de João Goulart. O fato desse arsenal não ter sido utilizado no contexto do pré-

Golpe não significa que não houve apoio da potência norte-americana (FICO, 2008).

Em seguida, ao pretender refutar “versões falaciosas”, como coloca na sua

apresentação, categoriza as esquerdas de maneira geral, e mais especificamente os

militantes que optaram pela luta armada, como autoritárias. Sua estratégia é, aproximando-

a da direita militarista no que diz respeito ao desprezo pelos valores democráticos,

desqualificá-la sem apresentar maiores argumentos. Sua intenção é provar o isolamento

destes grupos guerrilheiros, desprovidos de apoio popular, chegando a afirmar que a “luta

armada não passou de ações isoladas de assaltos a bancos, sequestros, ataques a instalações

militares e só” (p. 11).

Assim, sustenta o velho argumento – defendido por setores militares, diga-se de

passagem – de que devido às ações dos grupos armados, houve a necessidade de

fechamento do regime político militar, com a decretação do AI-5, em dezembro de 1968.

Carlos Fico já havia demonstrado em trabalhos produzidos há uma década atrás (2004),

que a perspectiva da instauração de um regime de caráter violento e de mais longa duração

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já estava presente desde os primeiros momentos após o golpe, sob o governo de Castello

Branco. Uma análise mais atenta reconheceria, no mínimo, que a evocada efervescência

cultural dos primeiros anos do regime foi obrigada a conviver com as cerca de 500

intervenções ocorridas a sindicatos apenas no ano de 1964, com as ondas de demissões,

aposentadorias compulsórias e expulsões de parte significativa do corpo docente e

discentes das principais universidades públicas do país, para não nos referirmos a fatos

mais conhecidos como as perdas dos direitos políticos dos opositores ao regime, o sistema

de bipartidarismo etc.

Em verdade, Villa defende uma “versão falaciosa” pela qual parte da historiografia

legitima o governo Castello Branco e busca diferenciá-lo consequentemente dos governos

militares que se seguirão. Ao invés de tomar o AI-5 como marco histórico da instauração

da ditadura e fim da democracia, mais apropriado seria compreendê-lo como o ápice de um

processo de perseguição e violência que já se iniciara anos antes.

Com relação à repressão, o livro não apresenta grande preocupação, limitando-se a

citar de maneira superficial a clandestinidade, o exílio, as cassações e prisões como facetas

do novo regime autoritário. De acordo com sua interpretação, enfatiza justamente a

intensificação da repressão no período que considera efetivamente como o da ditadura

militar – o período de vigência do AI-5 – reforçando a ideia de moderados ou castellistas

versus linhas dura. Assim, a “radicalidade” que começa a delinear-se no governo Castello

Branco seria fruto da pressão dos duros e não resultado da vontade política do presidente

moderado. Na gestão de Costa e Silva, o autor irá enfatizar as transformações advindas da

mudança ministerial e reforçar a ideia do avanço das organizações da luta armada como

causa explicativa para a institucionalização da tortura como método de investigação do

aparato repressivo militar. Nesta interpretação, o movimento estudantil aparece

praticamente como a única iniciativa relevante, que teria conseguido mobilizar a sociedade

civil, evocando a Passeata dos Cem Mil como símbolo máximo dessa sintonia entre

estudantes e sociedade, um “espaço de liberdade” como define o evento.

Ponto igualmente polêmico é seu esforço em demonstrar o crescimento econômico

durante o período ditatorial como mérito do regime autoritário. O suposto cenário

favorável oferecido pelo “milagre econômico”, caracterizado por uma expansão do

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emprego, do crédito e do consumo, mascara a forte política de arrocho salarial que recaía

sobre a classe trabalhadora. Fishlow (1972) demonstra que houve um grande aumento da

desigualdade de renda entre 1960 e 1970, e mesmo nos anos subsequentes o Brasil se

manteria como o país mais desigual em toda América Latina. Nos governos Castello

Branco e Costa e Silva, a estabilização da economia foi mais importante que o crescimento

econômico em si. Segundo a visão do economista, as prioridades do período foram a

destruição do proletariado urbano como ameaça política e o restabelecimento de uma

ordem econômica voltada para a acumulação privada de capital. Considerando todo este

contexto anterior e o funcionamento do aparato repressivo desde os primeiros meses do

regime, torna-se difícil avaliar o “milagre” como um modelo econômico de sucesso, como

sugere Villa.

A transição, último tema apontado por Napolitano, mereceu maior atenção em sua

obra, a começar pelo número de capítulos: enquanto os demais governos militares tiveram

um capítulo apenas dedicado a eles, o mandato de Figueiredo é tratado em dois capítulos.

Não somente o número de páginas deixa evidente a preocupação maior de Villa, como são

nestes capítulos que o autor atribui papel decisivo à eleição de Tancredo Neves no

processo de abertura política negociada. De acordo com este ponto de vista, após o

fracasso das Diretas Já, a eleição presidencial de Tancredo via Colégio Eleitoral era a única

opção para encerrar o ciclo militar, na ocasião, representado por seu adversário político,

Paulo Maluf.

A obra ora analisada tem formato de um manual da história do período militar que

procura expor, ano a ano, os principais acontecimentos de cada governo, privilegiando uma

história institucional: os governos militares e suas transações e acordos políticos travados

com outras instâncias do poder estadual e municipal organizam a estrutura narrativa do

livro. Ao optar por uma divisão anual, não consegue elaborar análises mais complexas, que

englobem contextos maiores. A obra não dialoga com a historiografia mais recente,

baseando sua análise em literatura datada dos anos 1970 e 1980. Sem revelar nenhum fato

inédito ou apresentar análises mais densas sobre as temáticas que se propõe tratar, o livro

pode até obedecer a função de divulgação para o grande público, mas não passa de um

conjunto de “causos”, narrados em tom de anedotas ou fofoca, bem ao gosto de

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historiadores que fazem sucesso entre o público leigo. Não deixa, no entanto, de assumir

uma posição marcadamente ideológica. A curta duração assume duplo sentido em

Ditadura à brasileira: a ênfase na dimensão narrativa e a compreensão do regime

autoritário em espaço de tempo mais breve que o convencional. Nesse sentido, o autor

parece não ter aprendido a lição deixada por Braudel (2011), segundo a qual o historiador

não deve “renunciar ao drama do tempo breve”, mas necessita estar atento às conjunturas

que obedecem a outras temporalidades da História.

Referências Bibliográficas:

BRAUDEL, Fernand. “História e Ciências Sociais: a longa duração” in NOVAIS, F. A. e

SILVA, R. F. Nova História em Perspectiva. Vol. 1. São Paulo: Cosac Naify, 2011, pp. 86-

127.

FICO, Carlos. O Grande Irmão: Da Operação Brother Sam aos Anos de Chumbo. São

Paulo: Civilização Brasileira, 2008.

FICO, Carlos. Versões e Controvérsias sore 1964 e a ditadura militar in Rev. Bras.

Hist., vol.24 n°.47, São Paulo 2004.

FISHLOW, Albert. “Brazilian size distribution of income”. American Economic Review,

n° 62, mar-mai 1972, p. 391-402.

NAPOLITANO, Marcos. “O Golpe de 1964 e o regime militar brasileiro – apontamentos

para uma revisão historiográfica” in Historia y problemas del siglo XX, Volume 2, Ano 2,

2011, p. 209-217.

STEPAN, Alfred. Os militares na política. As mudanças de padrões na vida brasileira. Rio

de Janeiro: Artenova, 1975.