revista cisma - enquanto tudo acontece (4ª edição)

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revista de crítica literária e tradução ano iii – número iv – 2014 issn 2238-7013 Cma Enquanto tudo acontece Michelangelo Antonioni, Aline Rocha, Wu Ming, Augusto Guimaraens Cavalcanti, Abdellatif Kechiche e Roland Barthes, João Cabral de Melo Neto, Carlito Azevedo, Tom Zé Poemas traduzidos de Ingeborg Bachmann

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Número 4 da Revista Cisma, dos estudantes de Letras da Universidade de São Paulo - USP

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  • revista de crtica literria e traduoano iii nmero iv 2014

    issn 2238-7013

    CismaEnquanto tudo acontece

    Michelangelo Antonioni, Aline Rocha, Wu Ming, Augusto Guimaraens Cavalcanti,

    Abdellatif Kechiche e Roland Barthes, Joo Cabral de Melo Neto, Carlito Azevedo, Tom Z

    Poemas traduzidos deIngeborg Bachmann

  • IdealizadoresSofia NestrovskiTiago Bentivoglio

    2014Ano III - Nmero IV

    EditoresAna Lusa RodriguesBernardo Dias CeccantiniBruna ThalenbergGreta CoutinhoGuilherme TauilHenrique AmaralLucas Alves FerreiraMilena VaralloPatrcia Anette Schroeder Sofia Nestrovski

    Comisso de eventosAdalton Orefice Jr.Ana Lusa RodriguesBernardo Dias CeccantiniBruna ThalenbergCamille LohmeyerGreta CoutinhoGuilherme TauilHenrique AmaralJuliano SalustianoLucas Alves FerreiraMariana HolmsMilena VaralloPatrcia Anette SchroederPriscila GenelhSofia NestrovskiThiago Teixeira LopesTiago Mouallem

    REVISOAna lusa RodriguesBernardo Dias CeccantiniBruna ThalenbergCaroline Micaelia Danilo HorDaniel VarleseGabriel ProvinzanoGuilherme TauilHenrique AmaralIsabela Benassi

    Lucas Alves FerreiraMilena VaralloPatrcia Anette SchroederSofia Nestrovski

    DiagramaoCamille Laurent

    Projeto grficoBruno Tenan, com alter-aes por Camille Laurent IlustraesIsabela Benassi

    CapaMarcos Cartum

    Universidade de So PauloReitor Marco Antonio ZagoVice-reitor Vahan Agopyanfflch-uspDiretor Srgio Frana Adorno de Abreuvice-diretor Joo Roberto Gomes de Faria

    Cisma

    [email protected]/revistacismawww.revistacisma.comwww.revistas.fflch.usp.br/cisma

  • Editorial

    As eleies, a copa do mundo, o primeiro aniversrio dos pro-testos de junho, o cinquentenrio do golpe militar, o centenrio da primeira guerra mundial No faltaro grandes acontecimentos em 2014. Pensando nisso, ou melhor, tentanto resistir a essa espcie de eu-foria difusa, ns da Revista Cisma propusemos a seguinte reflexo: que tipo de crtica possvel fazer com tantos acontecimentos ao redor? Que tipo de literatura? Vejam bem, no se trata de eleger um ou mais tipos de crtica e de literatura em detrimento de outros. At porque somos um gru-po de editores preocupados antes em dar voz a alunos de graduao que se atrevam traduo e crtica literria, que em defender este ou aquele gnero literrio, esta ou aquela corrente crtica. As questes que colocamos trouxeram tona o problema da possibilidade de reflexo no calor da hora, pois, se por um lado as manchetes escancaram a todo instante os temas, por outro o tumulto parece encobrir as formas de trat-los. Felizmente, apenas parece. Pois o que os ensaios aqui reunidos mostram que h, sim, inteligncia crtica e artstica, apesar - ou talvez por causa - dos acontecimentos. Refletindo agora sobre os textos que compem este quarto nmero da Cisma, observamos que eles se valem de duas estratgias principais. A primeira d vazo dimenso da literatura que de fato acontece, seja nas polmicas, nos festivais literrios ou nos literais hap-penings. Desse ponto de vista, a arte de alguma maneira se irmana da rotina, e esse parentesco parece oferecer ao crtico o acesso para que

  • ele penetre na obra e a investigue, agora desde dentro. Referimo-nos principalmente ao texto que aborda o filme Azul a cor mais quente e quele sobre a polmica recente em torno de Tom Z. Tambm cabe nessa descrio o ensaio dedicado ao Projeto Wu Ming, coletivo italia-no responsvel por diversos best-sellers, ainda que no se acomode aos supostos lugares-comuns de uma literatura amplamente comercial. A segunda estratgia, inversa, consiste em voltar-se ao pas-sado, mas no para furtar-se ao desafio do presente, e sim para buscar naquele o termo de comparao (ainda que implcita) tambm neces-sria ao exerccio crtico. o caso, por exemplo, da resenha que (re)descobre em A casa de farinha, livro pstumo de Joo Cabral de Melo Neto, o modo como nele se combinam crtica social e reflexo sobre a linguagem. Ou de outra resenha, que surpreende em Fui Bulgria procurar por Campos de Carvalho, de Augusto Guimaraens Cavalcan-ti, o dilogo tenso e contemporneo entre as referncias explcitas e o pastiche puro e simples. Essas observaes preliminares talvez ajudem o leitor a se aventurar pelos textos, assim como nos ajudaram a apresent-los. Afi-nal, o mergulho nos acontecimentos e a referncia a algo j estabiliza-do continuam a ser boas estratgias para refletir. A escolha final, leitor, cabe a voc: ler a Cisma no silncio do seu quarto ou em trnsito pelas ruas da cidade, enquanto tudo acontece.

  • Sumrio

    Blowing Up: por uma crtica da traduo, Patrick Gert Bange e Sofia Glria de A. Soares

    Resenha: 1,2,3, gravando!, Isabela C. C. A. Mota

    O Projeto Wu Ming: possibilidades narrativas e interveno poltica, Jos Antnio de Oliveira Salom

    Resenha: Fui Bulgria procurar por Campos de Carvalho, de Augusto Guimaraens Cavalcanti, Maurcio Gomes

    Alguns fragmentos do discurso amoroso de Barthes no filme La vie dAdle, de Abdellatif Kechiche, Ana Lusa Rodrigues

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  • Resenha: Notas sobre uma possvel A casa de farinha, de Joo Cabral de Melo Neto, Marcos Vincius Ferrari

    Corredores da histria-museu, Stefano Manzolli

    Aqui Copa Coca acol fazendo propaganda do Tom Z, Patrcia Anette Schroeder Gonalves

    Traduo: Dois poemas de Ingeborg Bachmann, Matheus Jacob Barreto

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    Blowing-up: por uma crtica da traduoPatrick Gert Bange e Sofia Glria de A. Soares

    A partir de discusses sobre arte e verdade, realidade e iluso, procuramos analisar o filme Blow-up, de Michelangelo Antonioni, que constitui uma traduo do conto As babas do diabo, de Julio Cortzar, com o intuito de pensarmos uma crtica possvel para o ano de 2014.

    i. as babas da fotografia

    O signo mundano surge como substituto de uma ao ou de um pensamento, ocupando-lhes o lugar. Trata-se, portanto, de um signo que no remete a nenhuma outra coisa, significao transcendente ou contedo ideal, mas que usurpou o suposto valor de seu sentido.Gilles Deleuze, Proust e os signos1

    O trecho de Gilles Deleuze, destacado de Proust e os signos, remete-nos discusso proposta por Plato acerca da problemtica da mimesis ao indicar que o signo mundano substitui, ocupa o lugar de algo, no o representa. Nos captulos O simulacro e Mostrar, de O trabalho da citao, Antoine Compagnon identifica um tipo

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    de construo que se faz atravs do afastamento da verdade. Dessa maneira, essa construo no mantm com a verdade qualquer relao de semelhana e constitui uma m imagem, criadora de iluso: o simulacro. A afirmao de Deleuze , ento, importante para pensarmos a condio de simulacro. Em Proust e os signos, Deleuze arquiteta um sistema de leitura de Em busca do tempo perdido, reorientando a obra de Proust para o futuro: a Recherche um trabalho de aprendizagem do tornar-se escritor. Assim, dentro da obra operam os signos mundanos, bem como os signos amorosos e os da arte. Os signos mundanos, que nos interessam aqui pela sua similaridade com o conceito de simulacro, so como que a primeira camada, a mais superficial, uma vez que se reportam no-existncia, ao nada, ao vazio. O filme Blow-up expe uma questo cujo debate imprescindvel para a modernidade e para a ps-modernidade: a fotografia, sua relao com o homem e com o mundo. Esta seo do artigo se dedica s cenas em que o fotgrafo se esfora para recriar as circunstncias da situao fotografada, bem como s cenas de retorno ao parque. O incio da montagem da narrativa fotogrfica sucede a cena da primeira revelao de algumas fotos do parque, depois de 1 hora e 34 segundos de exibio do filme. Na perspectiva do espectador, a escolha de um enquadramento inusitado marca o incio da cena de organizao dos fatos: a cmera est posicionada atrs de um sof onde se encontra o fotgrafo. Dele, v-se apenas parte da cabea e de uma das mos. Ao fundo, h duas fotografias penduradas lado a lado. Ele acende um cigarro. nesse momento, a despeito de uma experincia corporal limitada, a experincia do no-saber radical, que ele se precipita a construir uma realidade que o ultrapassa, uma realidade que a fotografia espelha perfeitamente. Depois de revelar vrias fotos e organiz-las segundo a lgica de seu pensamento, o fotgrafo, agora como um detetive, est visualmente cercado pelas fotografias fixadas na madeira ou na parede da sala. Cercado pelo seu simulacro produzido, j que, como afirma Compagnon, o outro, o usurio e o enganado, que faz o simulacro, que responsvel por ele ), o fotgrafo parece estar num labirinto2 semelhana do que sua casa/estdio de auto-engano, malicioso e instigador do erro. A busca pela verdade dos fatos introduz o fotgrafo numa lgica de leitura exaustiva, porm no h o que possa ser lido

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    objetivamente, da a necessidade de preencher a imagem com discurso. Susan Sontag, no captulo O mundo-imagem, argumenta que o processo fotogrfico redefine a realidade como algo a ser investigado. Ainda segundo a autora, a manipulao fotogrfica desconstri continuidades e lana ao espao fragmentos de revelao. Novamente nos encontramos numa situao que requer a organizao dos fatos numa sequncia linear. Ao se dedicar ao trabalho de construo de um sentido a princpio inexistente, o fotgrafo fixa as fotos na parede ao mesmo tempo em que dispe os fatos numa narrativa, e, sob essa perspectiva, ele se torna um leitor de signos. Atravs de sucessivas selees e ampliaes, e de posse de uma inquietude interminvel por no conseguir desvendar o segredo das fotos, o fotgrafo refaz o caminho percorrido pelo olhar da mulher da foto e encontra um vulto de homem armado em meio aos arbustos. Sob o choque da sbita revelao, ele acredita que salvou a vida do homem fotografado que acompanhava a mulher. Mais tarde, porm, ele percebe a presena de uma mancha no cho e conclui se tratar de um corpo. A partir desse instante, completamente envolto pelas babas do discurso fotogrfico, ele acredita ter presenciado um assassinato e se esfora para comprovar concretamente o acontecimento. Em outras palavras, o fotgrafo se agarra expectativa de encontrar o real, conceito que Jean Baudrillard, autor do livro Simulacros e simulaes, coloca em xeque, como se ver a seguir. importante notar o destaque dado fotografia conclusiva, a que parece demonstrar a presena do cadver na cena. O fotgrafo a mantm separada de todas as outras, num local parte, sugerindo que ali a realidade se deu: ele acredita que a fotografia o permitiu acessar a verdade. Na primeira cena de retorno ao parque noite e, depois de o fotgrafo passar por um local onde, ao fundo, h um letreiro luminoso (apresentando a sigla foa), a cmera se concentra, esttica, por alguns instantes nesse objeto. O formato da sigla nos remete ao de uma arma3, e, aqui, este smbolo funciona como o prenncio de um assassinato. Porm, a quem ou a qu ele se refere? Ao suposto corpo encontrado pelo fotgrafo no parque naquela mesma noite? Ao discurso construdo pelo fotgrafo em busca da verdade? noo de realidade concreta buscada pelo fotgrafo ao longo do filme? No possvel saber ao certo. No sabemos sequer se a ida ao parque se concretizou.

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    Na manh seguinte, depois de passar a noite numa festa na casa de um amigo, o fotgrafo retorna ao parque procura de evidncias (fotografveis) que comprovassem o assassinato. Ao se aproximar do local onde na noite anterior estava o corpo, ele se surpreende com a sua ausncia. Restou o nada, a falta. Sobre esse processo de desapontamento, Deleuze afirma que a decepo um momento fundamental da busca ou do aprendizado: em cada campo de signos ficamos decepcionados quando o objeto no nos revela o segredo que espervamos. A decepo coloca o fotgrafo num caminho de aprendizado. Ele se abaixa e a cmera focaliza a parte posterior da sua cabea. Ele olha para o cu, a cmera realiza o trajeto do seu olhar e, poucos instantes depois, ocorre uma quebra de plano: ele est de p, pensativo, percebe que a linearidade no se d, no garante um sentido. O mecanismo da quebra da linearidade cinematogrfica utilizado por Antonioni constitui um erro, uma imperfeio, uma quebra. Esse gesto dialoga com o que Baudrillard aponta como a inexistncia da realidade. Para ele, no h correspondncia, no h representao: o espelho fotografia/mundo est quebrado. A passagem de cena tratada acima dialoga com o segundo aparecimento da sigla foa, com o mesmo formato de arma. Quando a equivalncia ideolgica entre fotografia e realidade se rompe, o letreiro reaparece e se acende, o que nos permite estabelecer uma relao com a morte da realidade. Esse momento marca, segundo Baudrillard, a viragem decisiva dos signos que ocultam algo rumo queles que no se referem a nada. Contudo, o fotgrafo ainda no tem plena conscincia do jogo hiper-real.

    ii. os palhaos hiper-reais

    A finalidade da anlise ideolgica continua a ser restituir o processo objetivo, sempre um falso problema querer reinserir a verdade sob o simulacro.Jean Baudrillard4

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    No princpio e no final do filme Blow-Up o espectador surpreendido por figuras circenses, carnavalescas, bagunceiras: os palhaos de Antonioni. So as primeiras figuras que invadem o plano esttico da cmera, que filma as janelas de um prdio cinza. O recurso , naturalmente, esttico e no poder ser considerado gratuito. O fato de eles invadirem o plano esttico da cmera j os coloca em uma categoria avessa ordem das janelas cinzas. O barulho que fazem tambm. A cmera, depois de girar com os palhaos, para seu foco, por meio segundo, em uma obra de arte pblica, muito geomtrica e regular. Como se v, h uma disritmia entre a baguna dos palhaos e a ordem da realidade, que a cmera flagra. Adiante, os palhaos estacionam o carro em que vm montados e saem correndo, comeando por bagunar algumas damas, que parecem da alta sociedade. Nisso, h um corte: a cmera filma uma espcie de clnica, com muitas grades no primeiro plano, de onde saem algumas pessoas, dentre as quais est (o espectador de primeira viagem talvez no o perceba) o personagem principal, o fotgrafo, cujo nome no se sabe. A cena silenciosa funciona em um registro radicalmente distinto da gritaria dos palhaos, no mesmo registro, pode-se dizer, da obra de arte geomtrica de h pouco. Acompanhamos os personagens um pouco, quando a cmera atua um novo corte: de volta aos palhaos barulhentos, que correm por entre alguns carros, dentre os quais um de uma transportadora chamada Road Transport Contractors. Depois de alguns planos no ritmo cinzento das pessoas que saram da clnica, voltamos aos palhaos, que, dessa vez, enquanto a cmera foca duas freiras que dobram a esquina, aproximam-se correndo, aos gritos, passando por um guarda real ingls e depois pelas duas freiras, que saem correndo. A descrio desses primeiros momentos do filme permite interpretar os palhaos como agentes da galhofa: os palhaos riem do real, fazem escrnio dele. Ou, baudrillardamente, matam o real: a vida burguesa, a logstica do capital, o trnsito, a segurana nacional, Deus. H, claro, j a uma diferena do tom dos palhaos, se comparado ao de Baudrillard, cuja escrita sugere uma gravidade: grave para Baudrillard falar da morte do real, falar do que chama de hiper-real, isto , a irreferncia pura, o imprio dos simulacros, que so a quarta fase da imagem, segundo a qual ela [a imagem] no tem relao com qualquer realidade: ela o seu prprio simulacro puro. Nesse sentido, embora anunciem uma posio baudrillardiana, eixo

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    terico para pens-los, os palhaos so mais felizes, porque parecem propor um modo de lidar com a hiper-realidade, especialmente na cena final. Baudrillard, ao longo do primeiro captulo, s faz implodir a sensao do real, com todos os seus exemplos: o escndalo Watergate, Deus, a medicina, a psicanlise, os lderes de governo, a exumao de Ramss, a Disneylndia, os comunistas, os socialistas, a arte. O leitor de Baudrillard est sentenciado ao luto da realidade. A percepo de que o texto de Baudrillard solicita um luto de seu leitor permite ler seu texto em comparao com o filme por uma chave freudiana, possvel a partir de Luto e melancolia. Esforando-nos por no psicologizar os dois autores, podemos dizer de suas respectivas posies filosficas e estticas: ao menos no primeiro captulo, Baudrillard no atravessa um luto, tudo que faz recorrer a inmeros exemplos que flagram a falncia do real, sua morte, a era dos simulacros puros. Est, portanto, trabalhando a sada de uma melancolia e enveredando o caminho do luto do real isso nos levaria a relacionar a melancolia com uma perda de objeto que foi retirada da conscincia, diferena do luto, no qual nada do que diz respeito perda inconsciente (freud, grifo nosso). Baudrillard, por essa via (talvez uma via anti-baudrillardiana), est trazendo conscincia a perda do real, como Antonioni tambm est, como se viu na seo I. O diretor de Blow-Up parece atravessar o mesmo luto, mas, diferena de Baudrillard, Antonioni restitui a capacidade de escolher um novo objeto de amor (freud) nos ltimos momentos do filme. No fim do filme, os palhaos reaparecem andando de carro, no parque, onde o fotgrafo est, tendo acabado de verificar que o cadver que vira no est mais l. O carro d uma volta no parque. A cmera filma de dentro da quadra de tnis. O fotgrafo os v, enquanto desce umas escadas. Os palhaos completam a volta e param o carro, enquanto o fotgrafo os observa. Correm para a quadra de tnis, dois deles entram, os demais formam uma fila de observadores junto grade. Os dois palhaos de dentro da quadra se aquecem com suas bolas e raquetes invisveis. Posicionam-se e comeam a jogar com a bola invisvel. O personagem se aproxima, se junta para assistir ao jogo na ponta da quadra. Os palhaos acompanham a bola invisvel com o olhar. A cmera foca em alguns deles. A bola acerta a grade, na frente de uma palhaa que observava. O fotgrafo ri. Em seguida, tambm parece acompanhar sutilmente a trajetria da bola com os olhos. A

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    bola cai no fim da quadra, a palhaa vai buscar e encara o fotgrafo, brincando com ele. Ele sorri. A cmera foca a bola, acompanhando-a pelo ar, danando junto com ela. Os palhaos que observam vibram em silncio com um ponto marcado. O palhao que joga bate muito forte na bola, que ultrapassa a grade da quadra, indo parar fora dela. A cmera acompanha a bola, na grama, at ela parar. A palhaa pede que o fotgrafo v pegar. Todos os palhaos olham estticos, to diferentes do incio do filme. O fotgrafo corre at a bola, deixa a cmera no cho. Pega a bola e a arremessa de volta para a quadra, observando a trajetria que a bola invisvel faz no ar. O fotgrafo acompanha com o olhar a continuao do jogo. O som da bola quicando e da raquete batendo na bola, agora, so audveis. O fotgrafo filmado de longe, do alto, no centro da tela. Pega de volta sua cmera. E desaparece. O final admirvel. Em sua interpretao do filme, alis fundamental para este trabalho, Patrick Pessoa apoia-se em Nietzsche para pensar o filme, pretendendo tratar do nascimento da filosofia contempornea: a filosofia que descobre o perspectivismo, isto , a morte de Deus. A despeito das duas posies categricas da filosofia, a saber, a realista e a idealista, Nietzsche afirma:

    Uma vez que a palavra conhecimento possui antes de mais nada um sentido, o mundo passvel de ser conhecido: mas ele pode receber outras significaes. Ele no possui nenhum sentido por detrs de si mesmo, mas inumerveis sentidos: Perspectivismo. (nietzsche apud costa & pessoa)

    Por essa via, a leitura da ltima cena com os palhaos aponta um modo de lidar com o perspectivismo: entrar para o jogo da ambiguidade, que nega a existncia de uma bola de tnis total em si. Da a cmera danar com o no-sentido-total, quando acompanha a bola que no existe. Ns adicionamos a possibilidade de ler a cena, no com o pressuposto filosfico da morte de Deus, como faz Pessoa, mas tambm com o da morte da realidade: o jogo que os palhaos jogam o da hiper-realidade de que fala Baudrillard, um jogo certamente, para

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    ns, mais grave do que o jogo da morte da totalidade de um objeto. Os palhaos encenam o simulacro puro e convidam o fotgrafo, antes esperanoso da existncia de uma realidade, para lidar com ele. Como? Diante da imposio da hiper-realidade, os palhaos bagunam de uma vez a insistncia crena na realidade, advogada pelas freiras, pela guarda nacional inglesa, pela alta burguesia, pelo capitalismo, pelos artistas nostlgicos da obra de arte geomtrica, aquela que deseja a ordem do sentido e da realidade das coisas. O simulacro detona essas esperanas, os palhaos parecem sab-lo, mas, a despeito disso, jogam com a hiper-realidade, at mesmo riem dela, propondo uma sada: a criao de uma linguagem, que naturalmente simulacro, mas um simulacro sabido, a perda sabida da realidade. Tendo atravessado esse luto, os palhaos no matam o humor, o riso, nem tampouco a possibilidade da arte. O fotgrafo, quando devolve a bola de tnis hiper-real, parece dar sinais de entrar para o mesmo jogo, com uma nova lente para a sua cmera: no a lente total, nem a lente real, mas uma lente hiper-real, que no se nega a fazer uma bela fotografia, atitude cuja prova o prprio filme. Walter Benjamin que , como Nietzsche, necessrio5 para o pensamento de Baudrillard, como foi para o pensamento de Guy Debord, escreve sobre Proust e sua asma em seu ensaio, que Sergio Paulo Rouanet traduz como A imagem de Proust6:

    Os mdicos ficaram impotentes diante dessa doena. O mesmo no ocorreu com o romancista, que a colocou deliberadamente a seu servio. [...] A asma entrou em sua arte, se que ela no responsvel por essa arte. Sua sintaxe imita o ritmo de suas crises de asfixia. (benjamin).

    maneira do Proust de Benjamin, Antonioni pe a servio da arte a falta de ar do real.

  • primeiro semestre 2014 Cisma 15

    Escolhemos trabalhar com o filme de Antonioni, de 1966, que conserva o conceito de simulacro como enigma, e que uma adaptao, ou uma traduo do conto de Cortzar, publicado pela primeira vez em 1959. Depois de 47 anos de Blow-up, e de 54 da publicao do conto, e escrevendo de 2013, perguntamos: que tipo de crtica possvel fazer em 2014? Que tipo de crtica possvel no ano da Copa no Brasil? Dois anos antes das Olimpadas? Dois anos depois da Rio+20? Um ano depois do pas receber a Copa das Confederaes, a Jornada Mundial da Juventude, o Rock in Rio? Uma pergunta que talvez parea indiferente aos que entendem a universidade como ilha, mas uma pergunta-chave para quem a entende no centro das coisas. Ao leitor de Baudrillard, ao leitor que est com o simulacro na ponta da lngua, no ser possvel passar ao largo de um acontecimento como a Copa impunemente, principalmente quando, no Brasil, a Copa ocupa, comparativamente, o lugar de Disneylndia. Sobre a Disneylndia, fala Baudrillard:

    iii. traduo como crtica literria

    Na Disneylndia desenha-se, pois, por toda a parte, o perfil objectivo da Amrica, at na morfologia dos indivduos e da multido. Todos os valores so a exaltados pela miniatura e pela banda desenhada. Embalsamados e pacificados. Donde a possibilidade [...] de uma anlise ideolgica da Disneylndia: seleco do american way of life, panegrico dos valores americanos, transposio idealizada de uma realidade contraditria. Decerto. Mas isto esconde uma outra coisa e esta trama ideolgica serve ela prpria de cobertura a uma simulao de terceira categoria: a Disneylndia existe para esconder que o pas real, toda a Amrica real que a Disneylndia (de certo modo como as prises existem para esconder que

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    todo o social, na sua omnipresena banal, que carceral). A Disneylndia colocada como imaginrio a fim de fazer crer que o resto real, quando toda Los Angeles e a Amrica que a rodeia j no so reais, mas do domnio do hiper-real e da simulao. J no se trata de uma representao falsa da realidade (a ideologia), trata-se de esconder que o real j no o real e portanto de salvaguardar o princpio de realidade. (baudrillard, grifo nosso)

    Como no entender os grandes eventos que o Brasil recebe, a realidade do progresso, como uma estratgia para cobrir a irreferncia pura? Como, em meio a tantos acontecimentos, aprender a decepo? Como traduzir o trajeto do luto do fotgrafo aprendiz, que perde a realidade (da verdade, da linearidade, do progresso, do avano)? Como entrar no Maracan para ver palhaos jogando? Como traduzir um jogo hiper-real? A lio que Antonioni, leitor de Cortzar, ensina a de empreender uma crtica literria por meio de um exerccio de traduo. No uma traduo de uma lngua em outra, mas uma traduo de uma linguagem em outra linguagem: da literria para a cinematogrfica. Convidamos o crtico Antonioni para o ano de 2014, para ler com ele Cortzar: e depois do se, o que porei, como vou fechar corretamente a orao? Mas se comeo a fazer perguntas no contarei nada; melhor contar, talvez contar seja uma resposta, pelo menos para algum que esteja lendo. Antonioni, em sua releitura de Cortzar, d um segundo passo: o diretor de Blow-up conta e l ao mesmo tempo. Por isso, um leitor interditado diante da expectativa de ler a realidade, inclusive a realidade do conto, e um escritor-cineasta que engendra uma crtica fora da lgica melanclica: um jogo hiper-real, no o de futebol, mas o jogo que o futebol, as Olimpadas, todo o grande Progresso encobrem. Como em Proust, aprendiz de escritor segundo Deleuze, uma crtica que se esforce por fazer sair da penumbra . Uma crtica por uma traduo em linguagem.

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    referncias bibliogrficas:antonioni, Michelangelo. Blow-up. Gr Bretanha / EUA, 1966, 111 min.baudrillard, Jean. A precesso dos simulacros. In: Simulacros e simulaes. Trad. Maria da Costa Pereira. Lisboa: Relgio dgua, 1991.benjamin, Walter. Magia e tcnica, arte e poltica: ensaios sobre literatura e histria da cultura. Trad. Sergio Paulo Rouanet. So Paulo: Brasiliense, 1994.compagnon, Antoine. O Simulacro e Mostrar. In: O Trabalho da Citao. Trad. Cleonice P. B. Duro. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1996.cortzar, Julio. As babas do diabo. In: As armas secretas. Rio de Janeiro: BestBolso, 2012.costa, Alexandre & pessoa, Patrick. Blow up (Michelangelo Antonioni). In: A histria da filosofia em 40 filmes. Rio de Janeiro: Nau, 2013.deleuze, Gilles. Os tipos de signos; O aprendizado. In: Proust e os signos. Trad. Antonio Carlos Piquet e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1987freud, Sigmund. Luto e Melancolia. Trad. Marilene Carone. So Paulo: Cosac Naify, 2011.proust, Marcel. Tempo redescoberto. Trad. Lcia Miguel Pereira. So Paulo: Globo, 2004sontag, Susan. Ensaios sobre a fotografia. Trad. Joaquim Paiva. Rio de Janeiro: Arbor, 1981.Pgina sobre cinema: http://www.filmsite.org/blow.html (acessado em 16 de novembro de 2013).

    notas 1; Deleuze, 1996, p. 62; A ideia de reconhecer a casa/estdio do fotgrafo como um labirinto est na palestra de Patrick Pessoa sobre o mesmo filme, no livro A histria da filosofia em 40 filmes (2013).3; A ideia de perceber que o letreiro luminoso tem formato de arma est na pgina sobre cinema FilmSite, cujo endereo http://www.filmsite.org/blow.html (acessado em 16 de novembro de 2013).4; Baudrillard, 1991, p. 39.5; Aqui, estamos pensando especialmente no ensaio A obra de arte na era de sua reprodutibilidade tcnica, em que Benjamin fala da perda da aura da obra de arte.6; O ttulo original Zum Bilde Prousts.

  • 18 Cisma primeiro semestre 2014

    1, 2, 3, Gravando! Isabela C. C. A. Mota

    O livro de estreia de Aline Rocha, lanado no final de 2013 pela Editora Patu, no poderia ter outro nome: Gravando! Anncio inicial, o que acontece aps gravando! se eterniza. Essa uma das relaes que temos com esse termo que nasceu nos sets de filmagens para indicar o comeo das gravaes, momento em que tudo para e se volta construo da cena. O cinema, assim como a fotografia, carrega em sua essncia uma caracterstica: precisa da simultaneidade entre o que registrado e a ao de registrar. Alm de se vincular, em maior ou menor grau, com a realidade material que nos cerca. Portanto, de alguma forma, o presente e a criao dele esto ligados ao vdeo e foto. Susan Sontag fala do incio da produo cinematogrfica:

    Naquele primeiro ano, 1985, produziram-se dois tipos de filme, propondo para o cinema dois possveis modos de ser: cinema como transcrio do real, vida no encenada (os irmos Lumire), e cinema como inveno, artifcio, iluso, fantasia (Melis). Mas essa nunca foi uma oposio verdadeira. Para as primeiras platias que assistiram ao filme Chegada de um trem estao La Ciotat, dos irmos Lumire, a transmisso

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    por uma cmera de uma imagem banal era uma experincia fantstica. O cinema comeou no assombro, o assombro de que a realidade pudesse ser transcrita com tamanho imediatismo mgico. Tudo no cinema uma tentativa de perpetuar e reinventar aquela sensao de assombro. (p. 156)

    Esse imediatismo mgico do qual fala Susan Sontag ainda nos perturba, j que existe um teor de imortalidade naquilo que se registra. Hoje, com cmeras, inclusive nos celulares, registramos tudo que podemos, somos at capazes de questionar se o que no foi fotografado ou filmado de fato aconteceu. As cmeras nos fazem sentir que existimos, e registrar o presente o torna real. Da mesma forma que as grandes produes criam suas realidades, criamos a nossa, qualquer pessoa pode ter seu momento gravando!. Com isso, estamos construindo nossas vivncias o tempo todo, no como na memria que se transforma atravs da passagem do tempo, mas no prprio presente, no gerndio, assim como o ttulo do livro. Aline Rocha coloca seu olhar crtico sobre essa espetacularizao da vida. Em seus poemas, trata de amenidades, banalidades, utilizando uma linguagem muito coloquial e humor leve, que acaba por aproxim-la da poesia marginal. A autora critica a idealizao da vida, colocando luz sobre a vida comum. Ao tomar por tema o cotidiano, dando a ele seu olhar potico, ela o torna importante, j que a poesia uma forma de eternizar. A delicadeza de sua obra est justamente nisso: denunciar a vida glamourizada, mostrando que ela uma farsa distanciada da realidade, e valorizar a vida que de fato existe. E a autora o faz justamente glamourizando as vivncias triviais. O poema que abre o livro, homnimo, uma espcie de sntese desse olhar crtico, mas nem um pouco moralista:

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    Gravandoporque a gente s sabe amar feito cinemaa gente tudo frescoe precisa ter a maldita cenado casal correndo na chuva do beijoem cmera lentaou a gente ama feito novelaaquele melodrama todoa gente devia era desligar a cmerapra se amar, apagar as luzesdevia era se amar no camarimme espera na sada(p. 19)

    Nos identificamos com o imaginrio de amor romntico, que, justamente por ser idealizado, colocado em todo seu pieguismo. Junto com o eu-lrico, fazemos o caminho gradativo da frente para atrs das cmeras (desligar a cmera, apagar as luzes, se amar no camarim e me espera na sada), onde a vida mais sincera e privada, no com menos fascnio ou menor importncia. Ademais, a criao de um jeito diferente de amar que subverte o que seria o nico jeito que a gente sabe (porque a gente s sabe amar feito cinema), uma forma de idealizar tanto o amor quanto a ao autntica. O poema coloca essa forma indisciplinada de amar como mais verdadeira, simplesmente porque ela existe.

    Outra delicadeza da autora foi conseguir reproduzir a fora do imediatismo mgico do cinema em suas poesias de forma perspicaz. Logo tudo se vincula ao presente. Grande parte dos poemas est nesse tempo verbal, e mesmo os que esto no pretrito parecem estar acontecendo (no gerndio) na retina do leitor. De natureza plstica, acompanhamos os poemas como em um filme que passa no presente da leitura. Susan Sontag, ainda no

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    ensaio citado, prope uma forma de ver a stima arte:Tudo comea com aquele momento, cem anos atrs, quando o trem entrou e parou na estao. As pessoas trouxeram os filmes para dentro de si, assim como a plateia gritava alvoroada, e at se abaixava, medida que o trem parecia vir na direo deles. At o advento da televiso esvaziar as salas de cinema, era com uma visita semanal ao cinema que as pessoas aprendiam (ou tentavam aprender) como caminhar com elegncia, como fumar, como beijar, como brigar, como se entristecer. Os filmes nos davam dicas sobre como ser atraente, como por exemplo... parece bacana usar capa de chuva mesmo quando no est chovendo. Mas tudo o que se levava dos filmes para casa era apenas uma parte da experincia mais vasta de perder-se em rostos e vidas que no eram os nossos o que a modalidade mais abrangente de desejo corporificada pela experincia do cinema. A experincia mais forte era simplesmente render-se ao que estava na tela, ser transportado por aquilo. As pessoas queriam ser sequestradas pelo filme. (pp. 156-157)

    O espectador da poesia de Aline Rocha tambm sequestrado por ela, assim como os filmes, ela nos leva para alm do envolvimento, embarcamos nas cenas criadas com simplicidade no ritmo envolvente que colabora com sua forma imagtica e que apela para nossa imaginao visual, nos deixamos levar. Nos identificamos com os poemas, ao ponto de que, ao sorrir na leitura, estaramos rindo de ns mesmos e de nossas contradies. A compulso por gravar, filmar, memorizar tudo que acontece, faz parte de um desejo de no deixar que a coisa acabe, que o tempo passe, que haja fim, e no mais extremo, que a morte chegue.

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    Deste modo o agora o lugar onde tudo possvel, ele no o passado que no volta e nem o futuro que ainda no chegou. Temos o presente em nossas mos e isso nos pe ativos, com todos os perigos que isso implica. Isso tratado no poema O Sangue:

    O sangue o elemento que expe a contradio entre se perceber vivo ou estar morrendo. Com a percepo de que esses fatos no so opostos e sim implicados, fica claro o grande risco que vem com a latncia de estar vivo: a certeza da morte. E essa certeza nos coloca em nostalgia, no com o que fomos, e sim com o que somos, porque logo no seremos mais. Temos saudade do hoje enquanto ele ainda est aqui.

    Se quando escovar os dentes pela manh [sentir o gosto de sanguee perceber na gua avermelhada a substncia [vitalSe em dias ensolarados lamber o suor que lhe [pinga da carae sorver algo mais espesso mais adocicadoOu ainda se coar os cabelos enquanto dirige [evoltar as mos ao volante agora castanhoSe o amigo mostrar cicatrizes permeadas de [vermelhidoSe o pigmento amerndio envolver tua escritaSe no teto notar manchas que antes no [existiamou nas paredes tal qual mofo porm h algo [errado com a corSe quando distrado caminhar pela paragem [dos diase perceber no vo enegrecido uma poa de [sangueTenha cuidado(p. 41)

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    Esse clima nostlgico envolve o livro todo. A escolha lexical que nos remete a outras dcadas colabora para instal-lo, com grias dos anos 70 e 80, emprstimos americanos e a poesia marginal, que vem no lxico mais solto, na mensagem direta, ainda no tema cotidiano e no humor que doce e desbocado. Proporcionando, desde a ressignificao de um infame si, pero no mucho ( saudade d pero no mucho), piada antiga que fazemos com a lngua espanhola, at algo mais gracioso, como brincar com a importncia do correio elegante, elemento de paquera, e portanto de aflio, entre crianas e adolescentes nas quermesses (correio elegante preldio do bilhetinho na garrafa/ atravessando sete mares por voc). Em meio a tantas recordaes e um dia-a-dia supercomum, temos marcas da atualidade: o metr de So Paulo, o ex-prefeito Gilberto Kassab, a polmica da busca da aprovao prvia de biografias. Essas marcas nos trazem para um presente pontual, o tornam menos atemporal, assim o hoje do qual estamos falando o contemporneo. A frase saudosa dita por geraes passadas: no meu tempo que era bom tambm adequada para essa obra, posto que aqui o no meu tempo o hoje, atual e datado. Com isso, ao mudar nosso ponto de vista sobre o presente, a autora est mudando nosso ponto de vista sobre o contemporneo, que, como o presente do livro, melhor porque concreto, e no virtual como o passado ou o futuro. Aline Rocha nos diverte com universos to nossos, to do nosso tempo. Com uma atmosfera que vai desde filmes hollywoodianos exibidos na Sesso da tarde at a saudade mais verdadeira do agora que nunca volta e di nostlgico. Ela prope um jogo de inverses, nem um pouco moralista, no qual ora a vida se torna o mximo e a arte no nada, ora a arte o melhor que se pode fazer da vida.

    referncias bibliogrficas

    rocha, Aline. Gravando. So Paulo: Editora Patu, 2013.sontag, Susan.Questo de nfase: ensaios. So Paulo: Companhia das Letras, 2005.

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    O Projeto Wu Ming: possibilidades narrativas e interveno poltica Jos Antnio de Oliveira Salom

    O objetivo deste texto realizar uma apresentao breve das principais questes levantadas pelo coletivo italiano Wu Ming, com foco nas caratersticas e discusses literrias do projeto, mas sem ignorar o lado poltico, fundamental para a compreenso do tipo de narrativa que o grupo prope, desde suas origens no Luther Blissett Project em meados da dcada de 1990. As reflexes aqui apresentadas tero como base tanto os textos ficcionais, como o best-seller Q, publicado sob o pseudnimo Luther Blissett, o romance 54 e o objeto narrativo no identificado New Thing, da autoria de Wu Ming 1 todos com tradues brasileiras e ensaios escritos pelos integrantes do grupo.

    ps-modernismo, neoliberalismo e projeto luther blissett

    As ltimas dcadas do sculo XX viram florescer o debate em torno do ps-modernismo, que de um modo mais amplo poderia ser relacionado com um perodo histrico ps-moderno, com caractersticas prprias na poltica, cincias, artes, estudos da mdia, etc. Alfonso Berardinelli identifica nesse perodo o momento mximo do sculo americano e uma alienao europeia, que transforma a modernidade em pea de museu (2007b, pp. 177-178).

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    Apesar de divergncias entre os crticos a respeito do ps-modernismo, alguns pontos so em geral comumente aceitos: esgotamento e contestao das narrativas mestras surgidas nos sculos XVIII e XIX; a ideia de morte da arte; o ato de escrever como jogo meta-narrativo; a ironia e a pardia como elementos constitutivos; a recusa em distinguir arte erudita superior e arte popular inferior, ou cultura de massas. Entre os crticos que buscam o vis positivo do ps-modernismo, Arthur C. Danto relaciona a ideia de fim da arte nas artes plsticas com a de morte das grandes narrativas, onde o artista teria liberdade de escolher entre todas as formas do passado, sem precisar se reportar a alguma narrativa mestra pr-definida (2006, p. 3-23). Entre os muitos crticos que apontam os aspectos negativos do ps-modernismo, em especial no contraste com o modernismo, o mais citado talvez seja Fredric Jameson, para quem a ideologia ps-modernista dialoga com o momento do capitalismo financeiro internacional (1984, p. 55), alm de Terry Eagleton, que v uma negao ps-moderna a qualquer tentativa de mudana das condies sociais (2006, p. 352-357). No que se refere questo da prosa, Berardinelli aponta o best-seller ps-moderno como principal caracterstica do perodo, em que o vnculo com a indstria cultural revelaria os sintomas da mentalidade de uma poca, alm de dar origem a uma prosa que no consola, no cria problemas, ensina e diverte (berardinelli, 2007a, p. 165). Se por um lado possvel identificar que muitos escritores tenham assumido pressupostos ps-modernos em suas obras, seria natural que nem todos compartilhassem das mesmas ideias, de modo que autores com vises das mais dspares acabaram enquadrados pela crtica como ps-modernos. Em 1999, sob o pseudnimo Luther Blissett, foi publicado na Itlia o romance Q, um best-seller traduzido em diversas lnguas (Q: o caador de hereges, 2002). A princpio, Q compartilha de caractersticas apontadas no ps-modernismo em geral, em especial pelo que Linda Hutcheon chama de meta-narrativa historiogrfica (1991, pp. 63-64), por se tratar de um romance histrico ambientado durante as perseguies religiosas do sculo XVI, misturando linguagem erudita com a de fices populares, nos moldes dos romances de Umberto Eco, por exemplo.

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    O mistrio em torno da identidade do autor por trs do pseudnimo poderia ser facilmente relacionado com escritores como Thomas Pynchon ou J. D. Salinger, que evitaram ao longo dos anos qualquer apario pblica, o que gerou discusses sobre as razes da recluso ou mesmo sobre a real existncia desses autores, que muitas vezes superou o debate em torno da obra. O que diferenciava Luther Blissett era que o pseudnimo no escondia um autor, mas sim um coletivo surgido em Bolonha e que desde meados da dcada de 1990 divulgava textos de sabotagem cultural e praticava verdadeiras aes de guerrilha, pelas quais discutia e contestava o modo como a mdia transforma cotidiano em espetculo, tudo sob o lema qualquer um pode ser Luther Blissett (blissett, 2001, pp. 15-26). Apesar do ncleo italiano, aes atribudas Luther Blissett foram realizadas em diversos pases. A lista de influncias do grupo passa pelas culturas punk e cyberpunk das dcadas de 1970 e 1980, pelo romantismo alemo, por Karl Marx, pelo budismo e pelos estudos sobre os mitos, na busca da criao de um heri popular e ao mesmo tempo sem rosto, para que fosse identificado no com um sujeito mas com a comunidade. Colaborou para as aes do grupo o uso da internet como meio de divulgao, vnculo de fundamental importncia para o estabelecimento posterior do Wu Ming. As aes da comunidade aberta Luther Blissett chegaram ao auge durante os protestos ocorridos durante as reunies do G8 (grupo das sete naes mais ricas do mundo e a Rssia), entre 1999 e 2000, especialmente durante as chamadas batalhas de Seattle e Gnova, quando a crtica terica transformou-se em prtica e milhares de jovens protestaram nas ruas contra os desmandos do capital por meio dos chefes de Estado. Em um primeiro momento poderia ser dito que os protestos ocorridos no teriam conseguido resultados prticos (uma ideia que poderia ser vinculada ao racionalismo de mercado) e teriam tido repercusso limitada. Porm, a crise econmica de 2008 nos EUA e na Unio Europeia demonstrou as fragilidades da economia neoliberal e trouxe insatisfao popular em diversos pases centrais; tambm a chamada primavera rabe que derrubou ou ps em crise inmeros governos no norte da frica e Oriente Mdio, somada aos protestos de 2012 na Turquia e no Brasil, trazem muitos dos procedimentos do Luther Blissett. No caso do Brasil, a confuso - e a distoro de fatos - por parte da grande mdia e de governantes

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    durante as manifestaes de junho de 2012, teve muito de sua origem no funcionamento descentralizado e annimo e na mobilizao prvia via redes sociais de grupos como os Anonymous, os Black Blocs, e na atuao da Mdia Ninja (ver torturra, 2012).surge wu ming Com origem to identificada s tecnologias de comunicao e crtica da mdia, surpreende o fato de Q passar longe de qualquer assunto relacionado; porm seu cenrio histrico, a Alemanha do sculo XVII durante a Guerra dos Trinta Anos, permitiu a construo de um personagem que pudesse simbolizar as aspiraes do grupo em relao ao heri sem rosto e apontou o que seria o melhor caminho para agir dentro da indstria cultural em uma nova fase. Em 2000 ocorre o seppuku, suicdio ritual das fileiras italianas de Luther Blissett, o que no impedia a utilizao do nome por qualquer um que assim desejasse (blissett, pp 11-13). Cinco dos ex-integrantes do grupo fundaram o coletivo Wu Ming, sem nome em mandarim. Diferente do Projeto Luther Blissett, o Wu Ming exclusivamente voltado para a escrita, sem a realizao de aes no mundo real, o que no significa negao em participar do debate poltico. Ao direcionar seus esforos unicamente para a realizao de um projeto literrio, os integrantes do Wu Ming passaram a discutir com maior intensidade certos pressupostos da escrita contempornea, quase sempre dentro das prprias obras. Os cinco integrantes originais receberam um nmero ao lado do pseudnimo como nica identificao individual, o que permite o reconhecimento do estilo de cada um em suas obras individuais, mas mantm o foco nos textos. Apesar dos nomes dos integrantes originais serem conhecidos, o grupo evita ao mximo relacionar nomes e rostos com as obras, o que ser respeitado neste trabalho. A escolha de um nome comum aos integrantes, e a prpria opo por um projeto coletivo, so formas de criticar aquilo que Jameson denomina cultura da imagem e do simulacro do ps-modernismo (1984, p. 58). No processo de criao e divulgao do Wu Ming o contato com o pblico fundamental; como prova, temos as centenas de participaes em debates e encontros com leitores para divulgao dos livros, parte do sistema por trs das editoras, o que no pode ser confundido na concepo do grupo com marketing pessoal ou culto imagem do artista. No processo de recepo da obra, a intermediao

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    feita pelo mundo escrito e pela palavra oral diante do leitor, ao invs da intermediao por imagens, dominada na sociedade contempornea pela televiso (zekri, 2010, p. 122) O vnculo com a rede mundial de computadores foi reforado como meio de contato com o pblico e, em uma atitude ainda incomum, todos os livros do grupo, mesmo se publicados por grandes editoras, e as suas tradues em diversas lnguas, esto disponveis gratuitamente na pgina do grupo, o que indica uma tomada de posio clara em relao livre circulao de ideias e informaes e bate de frente com iniciativas de restries, por parte de empresas e artistas, disponibilizao gratuita de msicas, livros e qualquer obra intelectual ou artstica.

    a obra

    O primeiro livro publicado pelo Luther Blissett, Q, parece inicialmente seguir a frmula da meta-narrativa historiogrfica comum ao ps-modernismo, representada na Itlia pelos livros de Umberto Eco (mas tambm por alguns escritos de Italo Calvino aps a trilogia Os nossos antepassados). Por um lado, a narrativa se vale do uso de tradicionais modelos do romance do sculo XIX, da literatura de massas e das narrativas pulp norte-americanas do sculo XX, misturando aventura de capa-e-espada com histria de espionagem. Por outro lado, ao leitor mais atento no escapa o uso alegrico de personagens e acontecimentos histricos dos sculos XVI e XVII, que remetem s reflexes sobre o momento da Europa em geral, e da Itlia em particular, no final do sculo XX (Unio Europeia, integrao dos pases do antigo bloco comunista, conflitos tnicos e religiosos nos Balcs, xenofobia em relao aos imigrantes, poltica econmica neoliberal). preciso destacar que o desaparecimento de Luther Blissett e o surgimento do Wu Ming no fez estes mesmos integrantes abandonarem o universo ficcional criado em Q, que foi reaproveitado no romance Altai, publicado em 2009 pelo coletivo Wu Ming. O primeiro romance publicado com o nome Wu Ming foi 54, cuja narrativa move-se entre Itlia, Iugoslvia, Estados Unidos e Unio Sovitica nos anos ps-Segunda Guerra Mundial, com personagens

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    reais ligados ao mundo da televiso e cinema, mfia e veteranos da resistncia italiana durante a ocupao alem na guerra. Enquanto costura uma trama ficcional nos moldes dos romances de espionagem, o texto tambm dialoga com problemas contemporneos, em especial as questes de simulacro e do espao ocupado pelas celebridades miditicas. Nas ltimas pginas, o grupo incluiu algo que passaria a ser comum em seus livros, inclusive nos escritos individuais e projetos paralelos: uma espcie de apndice com informaes sobre fatos e pessoas reais que surgem ao longo do romance. Neste apndice, explicam referncias cultura pop contempornea e apresentam fontes de consulta e bibliografia para os leitores. Longe de transformar a fico em ensaio ou texto acadmico, o objetivo de tais complementos histria reforar posies do grupo sobre o papel da narrativa no mundo contemporneo, algumas delas que sero discutidas a seguir. O uso da linguagem e de cones da cultura pop uma constante nos livros do Wu Ming. Astros da TV e cinema, jazzistas, msicos de rock, todas ocupam algum espao nas obras cujo tempo de enunciao esteja ligado ao sculo XX, do mesmo modo que figuras histricas cuja existncia s pode ser acessada por poucos documentos sobreviventes, o que indica um cuidado especial do Wu Ming com a pesquisa para a produo de seu material narrativo. Em New Thing, de Wu Ming 1, a agitao da dcada de 1960, os movimentos pelos direitos civis dos negros e as aes dos Black Panthers so o pano de fundo para uma histria que envolve assassinatos de msicos de jazz de vanguarda. Em uma narrativa polifnica, composta por vrios narradores, relatrios policiais e reportagens, os ltimos dias de vida do saxofonista John Coltrane costuram os captulos do livro. Wu Ming 1 no somente utiliza o recurso do apndice com a origem das informaes utilizadas, como tambm explica o processo de criao do livro. Para uma compreenso das posies de Wu Ming sobre as questes que envolvem o trabalho do grupo, o longo ensaio da autoria de Wu Ming 2 La salvezza di Euridice (A salvao de Eurdice, 2009), tratado como a declarao da potica do grupo. O ensaio pretende deixar claro qual o objetivo do coletivo ao tratar da realidade, no como uma representao exata, mas como parte integrante da obra (portanto justificando o uso da pesquisa histrica), sem fechar a narrativa na representao realista; pois o texto de fico deve conter elementos visionrios, metforas, smbolos e analogias e, especialmente,

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    o uso de imaginao como fundamento para que o texto apresente pontos de vista diferenciados, como forma de criticar as convenes afirmadas ideologicamente. O texto apresenta consideraes que envolvem tambm o papel da lngua, da transformao social, e o papel do narrador no mundo contemporneo: No se trata de uma sensibilidade especial, mas da familiaridade no uso de uma ferramenta do ofcio. O escritor no o albatroz de Charles Baudelaire, capaz de grandes voos no cu, mas desajeitado com suas asas no convs do navio. O escritor um marinheiro que aprendeu a voar com as palavras (p. 188, traduo nossa). O que o Wu Ming parece sugerir uma nova relao entre narrao e experincia que parece evocar as consideraes de Walter Benjamin sobre o ato de narrar e de Theodor W. Adorno sobre a perda da experincia no mundo contemporneo (benjamin, 1980, pp. 52-53; adorno, 2012, pp. 55-56).

    o new italian epic

    Provavelmente um dos mais importantes e debatidos textos do grupo tenha sido o ensaio New Italian Epic, (wu ming 1, 2008), onde o autor apresenta sua percepo de que existiria um conjunto de obras italianas, de aparncia diversa, mas com razes comuns, todas escritas a partir de meados da dcada de 1990. De modo geral seria possvel identificar nessas obras diferentes tentativas de superar debates relacionados com a questo do ps-modernismo. Alm dos livros publicados pelo prprio Wu Ming, o ensaio enquadra autores como Valerio Evangelisti, Giancarlo de Cataldo, Andrea Camilleri, Carlo Lucarelli, Massimo Carlotto (os trs ltimos advindos do gnero policial e depois partindo para o que Wu Ming 1 classifica como romances histricos mutantes), Pico Cacucci, Giuseppe Genna, alm do best-seller Gomorra, de Roberto Savianno, denominado no ensaio como objeto narrativo no identificado. Todos os autores citados teriam uma preferncia pela forma romance, mas com preocupaes ensasticas e com pesquisa em arquivos para fundamentar seus livros, mas sem o abandono da experincia na estrada, o que dificultaria o enquadramento em gneros. Dentre as

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    caractersticas citadas, muitas poderiam ser encontradas no trabalho de escritores ps-modernos. A diferena fundamental entre os autores citados no ensaio e a escrita ps-moderna seria a recusa fria ironia, to caraterstica das ltimas dcadas do sculo XX. Segundo Hutcheon quem usa de ironia sai do reino do verdadeiro e do falso e entra no reino do ditoso e do desditoso (...). A ironia remove a certeza de que as palavras signifiquem apenas o que elas dizem. Mentir faz o mesmo, claro... ( 2000, p. 32). Para o Wu Ming, o uso da ironia em outros momentos histricos configuraria um abalo moral em certezas, mas diante do relativismo ps-moderno generalizado teria perdido sua fora e se tornado incapaz de desvelar a ideologia dominante. O grande marco contemporneo, segundo Wu Ming 1, foi o ataque terrorista aos Estados Unidos em 11 de Setembro de 2001. Ele marca o fim de um perodo, cujo auge foi representado pelo mundo aps a queda do Muro de Berlim, com o domnio da ideologia ligada Nova ordem mundial, baseada na democracia americana e no liberalismo vitorioso, que reflete na arte e na literatura do perodo na forma de atos indulgentes, citaes em exagero, pardia, pastiche, remake, revivals irnicos ou nostlgicos, alm de vrias outras caractersticas relacionadas com o ps-modernismo: os anos noventa no foram somente o decnio mais vido da histria (segundo a definio de Joseph Stiglitz), como tambm o mais iludido, megalomanaco, autoindulgente e barroco (wu ming 1, 2008, p. 4, traduo nossa). Portanto, uma juno de consumismo acelerado e viso irnica de mundo no seria um ambiente que favorecesse a narrativa ficcional. O 11 de setembro teve resultados especficos ao ambiente cultural italiano, pas com questes histricas do ps-guerra, posio geogrfica estratgica durante a Guerra Fria, instabilidade interna causada pela existncia de um grande partido comunista, movimento operrio forte, crime organizado e corrupo. Tudo isso seguido de crises polticas liberou energias diferentes do que acontecia com o ps-modernismo e a discusso do fim da histria no resto do mundo aps o fim da Guerra Fria. O sentido do uso do termo pico para denominar o conjunto apresentado no teria nenhuma ligao com o teatro de Bertolt Brecht, mas antes com a prpria produo das obras, picas por serem grandes e ambiciosas. Os problemas expostos tambm possuem dimenses picas, assim como o prprio processo de escrita,

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    que pode levar anos. Os romances tratariam de feitos histricos, mticos, heroicos ou aventurosos: guerra, viagens de iniciao, luta pela sobrevivncia, contadas de dentro de conflitos maiores e decisivos da histria. A narrao funde elementos histricos e lendrios e at mesmo sobrenaturais. As razes literrias podem ter as mais variadas origens, mas passam pela prpria tradio italiana do romance histrico (como Os Noivos, de Alessandro Manzoni, obra inaugural do romance italiano moderno), alm do contato com outras tradies, como o romance latino-americano (realismo mgico), e a obra de James Ellroy somada linha italiana de narrativas populares, como romances e quadrinhos policiais. Por fim, a recusa do experimentalismo na forma no se repete na linguagem, como forma de causar o estranhamento do leitor diante dos problemas apresentados. Em todos os casos o texto o centro, pois, diferente de cinema e televiso, ele exige do leitor a imaginao e a participao como co-criador da obra. Dentro das narrativas existe a valorizao do olhar oblquo, que explora diversos pontos de vista: a multido se torna o heri; o uso de histrias baseadas em linhas do tempo alternativas, nos moldes da literatura fantstica, como modo de expandir o potencial narrativo; o conceito de obra aberta, no sentido de contestar o formato das leis de direitos autorais e de tornar possvel que outros retrabalhem o que j foi feito o que aproxima a literatura das tcnicas de remix. Por trs de tudo que deve existir uma posio tica do narrador: ele no pode simplesmente contestar se a verdade ou no possvel, mas justificar suas posies. O que Wu Ming 1 identifica no conjunto de obras do New Italian Epic acaba se tornando tambm uma busca de significado da arte no mundo contemporneo, significado que teria sido completamente perdido, segundo Giorgio Agamben, entre os sculos XVIII e XIX ( 2012, pp. 98-99). Por trs de tudo o que apresentado por Wu Ming 1 e tambm por Wu Ming 2 em La salvezza di Euridice existiria o projeto de criar um novo estatuto para a pro-duo (sic) artstica e reintegr-la ao mundo da vida, experincia e ao humana, que a esttica, segundo Agamben teria separado (2012, pp. 121-122).

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    Nunca o mundo foi to vido e prdigo de imagens como hoje. O aparato tecnolgico-organizativo da economia industrial no limita, e sim potencia a funo da imagem. Existem grandes indstrias que produzem e vendem apenas imagens: o cinema, a radioteleviso, a publicidade, etc. Sem a informao por meio da imagem, no existiria cultura de massa, e a cultura de uma sociedade industrial no pode ser seno uma cultura de massa. (p. 509).

    consideraes finais

    O maior risco que Argan via na arte contempornea seria a transformao do artista em um tcnico da imagem ou, no caso de poetas, tcnicos da lngua, na busca de uma reinsero da arte na vida. O que o artista deveria evitar a renncia autonomia de sua disciplina, coloc-la a servio de um sistema de poder (2010, p. 509). O consumo, que guia a sociedade contempornea de forma destrutiva, no deveria ser aceito passivamente pela arte. De modo simultneo o crtico questionava as relaes entre arte e cultura de massa, ainda no contexto dos anos finais de guerra fria, quando a opo que a Unio Sovitica apresentava questo esttica j havia se revelado como uma ausncia de opo, mera propaganda poltica (2010, p. 511). esse o tipo de pergunta que se coloca o Wu Ming, a recuperao ou manuteno de uma experincia narrativa em plena sociedade de consumo, o trabalho e o uso com as imagens e palavras que essa sociedade disponibiliza ao mesmo tempo em que demonstra a lgica perversa de seu funcionamento. O que podemos ver no Wu Ming no a negao da possibilidade de escolha, mas uma busca tica, que justifique as escolhas realizadas.

    Ao tratar, no fim da dcada de 1980, sobre um possvel fim da arte, ou da experincia esttica relacionada arte, Giulio Argan comentou:

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    referncias bibliogrficas

    adorno, Theodor w. Notas de Literatura I. So Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2012.agamben, Giorgio. O homem sem contedo. Belo Horizonte: Autntica, 2012.argan, Giulio Carlo Arte Moderna. So Paulo: Companhia das Letras, 2006.benjamin, Walter O narrador: observaes sobre a obra de Nikolai Leskow. In: Textos escolhidos: Walter Benjamin, Max Horkheimer, Theodor W. Adorno, Jrgen Habermas. So Paulo: Abril Cultural, 1980. (Coleo Os Pensadores)berardinelli, Alfonso. O best-seller ps-moderno: de O Gattopardo a Stephen King. In: No incentivem o romance e outros ensaios. So Paulo: Nova Alexandria; Humanitas, 2007a, p. 141-169._________. Poesia e gnero lrico: vicissitudes ps-modernas. In: Da poesia prosa. So Paulo: Cosac Naify, 2007b, p. 143-174.blissett, luther. Guerrilha psquica. So Paulo: Conrad Editora, 2001._________. Q, o caador de hereges. So Paulo: Conrad Editora, 2002.danto, Arthur C. Aps o fim da arte: a arte contempornea e os limites da histria. So Paulo: Edusp; Odysseus. 2006.eagleton, Terry. Teoria da literatura: uma introduo. So Paulo: Martins Fontes, 2006.hutcheon, linda. Potica do ps-modernismo: histria, teoria, fico. Rio de Janeiro: Imago, 1991._________. Teoria e poltica da ironia. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000.jameson, Fredric. Postmodernism, or the Cultural Logic of Late Capitalism. In: New Left Review 146, JulyAugust 1984, p. 52-92.torturra, Bruno. Olho da rua. In: Revista piau 82, dezembro de 2013.wu ming. 54. Torino: Giulio Einaudi editore s.p.a., 2002.

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    Fui Bulgria procurar por Campos de Carvalho, de Augusto Guimaraens CavalcantiMaurcio Gomes

    Embora a maioria dos mapas insista em contradiz-lo, no h no mundo quem possa assegurar a existncia legtima e incontestvel da Bulgria, o que torna foroso descobri-la ou ao menos invent-la: assim poderamos resumir o pressuposto bsico de O pcaro blgaro, ltima novela de Walter Campos de Carvalho, publicada em 1964. Atravessado pelo humor nonsense, o texto narra os preparativos para a viagem definitiva rumo descoberta ou inveno da nao blgara viagem que, no entanto, jamais abandona o terreno das elucubraes e do discurso, consumindo-se na mais absoluta imobilidade. No deixa de ser curioso que o autor mineiro tenha abandonado a literatura logo aps narrar essa inslita expedio, com direito a todo o mistrio que cerca a figura quase mtica do viajante desaparecido. Em outras palavras, Campos de Carvalho foi Bulgria para nunca mais voltar (sua obra esteve sumida at 1995, quando foi reeditada pela Jos Olympio). Contudo, h quem ainda o procure, como nos mostra o romance de estreia do carioca Augusto Guimaraens Cavalcanti, que j no ttulo diz a que veio: Fui Bulgria procurar por Campos de Carvalho (7letras, 2012). Se buscssemos definir o texto de Augusto Cavalcanti, poderamos dizer que se trata de um romance-colagem, j que a narrativa, para alm das colagens fotogrficas entre os captulos, se constri no apenas pela imitao do estilo carvalhino, mas tambm pela citao direta dos textos de Campos de Carvalho. Como afirma o prprio Augusto Cavalcanti em Fui Bulgria, as aspas entram em

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    estado festivo de decomposio, de forma que as palavras do autor mineiro se mesclam de forma quase indistinta s do autor carioca. A partir dessa incorporao, ao que parece, o romance desenvolve-se em trs nveis distintos, embora complementares: na investigao da Bulgria enquanto metfora, no desenvolvimento de Campos de Carvalho como personagem e no comentrio da obra carvalhina. Entre todos esses nveis, o que julgo de maior interesse o primeiro, no s por render as melhores pginas do romance, mas sobretudo por sublinhar a preciso de Augusto enquanto leitor de Campos de Carvalho. Nesse aspecto, creio, Fui Bulgria vai ao mago dO pcaro blgaro: a Bulgria tomada como signo misterioso, significante sem significado preciso, convertendo-se numa forma de pensar as possibilidades da prpria linguagem frente ao mundo a Bulgria, como significante, existe, mas preciso buscar seu significado, da o sentido da viagem. Isso tudo, mesmo que de forma implcita, est posto na novela de Campos de Carvalho, mas no texto de Augusto Cavalcanti retomado, exposto e retrabalhado sob forma de especulao constante. Dessa forma, a Bulgria converte-se em metfora para o insondvel, para tudo o que est muito para alm do bvio; um estado de suspenso da certeza, reino eterno das perguntas sem respostas e dos bailes de mscaras da subjetividade:

    Alis, para muitos bulgarsofos, a Bulgria s nascer de fato, no dia em que cada blgaro for respeitado em toda a sua abstrao, sem roteiros prvios. Esta Bulgria ainda estaria no tero de um n dos acontecimentos ainda por vir. Os nossos tantos eus se dissolveriam aqui, na sustentao latejante de uma irresoluo, no crcere das perguntas em soluo, germinando sem maiores culpas. (p. 63)

    , portanto, a partir da reiterada especulao sobre o estado blgaro que Fui Bulgria se constri, em meio a referncias que vo de Barthes a figuras da seleo de futebol blgara em que o

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    humor pretendido, no entanto, volta e meia se aproxima da piada gasta e cansativa. Em meio a isso, h o comentrio da obra carvalhina e a busca por ampliar seus sentidos possveis, de lan-la condio blgara, poderamos dizer: No alto da Gvea, em sua cada vez mais nublada disputa geogrfica, Walter Campos de Carvalho comeava a escrever o seu O pcaro blgaro (1964) livro de sondagem do insondvel (p. 13). Avaliando em linhas gerais o romance de Augusto Cavalcanti, fico em dvida sobre a recepo do texto pelos leitores que desconhecem a obra do autor mineiro. A forma intensa como Fui Bulgria procurar por Campos de Carvalho est ligado ao Pcaro blgaro e obra carvalhina em geral me faz pensar se, em sua busca por Campos de Carvalho, o autor carioca no acabou por esquecer a si mesmo, transpondo o limite da referncia construtiva para ingressar no terreno do pastiche puro e simples. Em outras palavras, provvel que o leitor de Fui Bulgria, a fim de lhe atribuir sentidos, sinta grande necessidade de ir obra do autor mineiro, o que me faz crer que o texto de Augusto Cavalcanti acerta mais como incentivo para novos leitores de Campos de Carvalho do que como romance em si.

    referncia bibliogrfica

    cavalcanti, Augusto Guimaraens. Fui Bulgria procurar por Campos de Carvalho. Rio de Janeiro: 7Letras, 2012.

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    Alguns fragmentos do discurso amoroso de Barthes no filme La vie dAdle, de Abdellatif KechicheAna Lusa Rodrigues

    A figura o amante em ao

    Roland Barthes, em Fragmentos de um Discurso Amoroso (1977)

    Desde o comeo de seus estudos, Roland Barthes mexeu com um tema bastante delicado para os pensadores de sua poca: o mtodo de se fazer crtica literria. Para isso, ele reformulou tambm as ideias sobre a definio de literatura, onde o papel do autor termina e de que forma comea a anlise do crtico. Ao contrrio do que se costumava fazer na poca, e do que ainda bastante feito hoje, Barthes prope transferir o lugar do crtico literrio para o de recriador da obra e no o de um simples intrprete. Algum que, com sua anlise, recriasse de alguma forma o texto, tornando-se um co-autor. Para fundamentar essa ideia, Barthes fez a distino entre os conceitos de sentido e significao. O autor divide essas duas ideias para explicar que o sentido de um sistema significante o contedo dele; enquanto a significao o processo sistemtico da produo desses sentidos. A literatura no se enquadra no lado do sentido, pois no mensagem, mas fim em si prpria. A linguagem no denuncia ou relata o mundo em que vivemos, mas cria um novo, este, agora, regido apenas pelas leis prprias a ela.

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    Portanto, no sendo a literatura o sentido, mas o processo lingustico de produo dos sentidos, a crtica literria no poder buscar, por meio de sua anlise, interpretar uma obra. Passar da simples leitura anlise mudar a inteno de lugar: deixar de desejar a obra para desejar a prpria linguagem. Ainda no processo da escrita, Barthes v os primeiros traos dessa relao autor-leitor j se formando. A literatura, para ele, um sistema deceptivo, conceito que pode ser explicado por suas prprias palavras em Crtica e verdade: O escritor concebe a literatura como fim, o mundo lhe devolve como meio; e nessa decepo infinita que o escritor reencontra o mundo, um mundo estranho, alis, j que a literatura o representa como uma pergunta, nunca, definitivamente, como uma resposta (p. 31). A funo da crtica , portanto, descrever o funcionamento desse sistema produtor de significao. Entender no o que a obra significa, mas as etapas e escolhas do autor para chegar significao. Desse modo, o texto crtico literrio deseja tambm possuir sua prpria linguagem e est submetido s mesmas exigncias que a linguagem literria. O sentido do texto crtico est to suspenso quanto o da literatura. Essencialmente metalingustica, a anlise ganha qualidade, ento, no por seu compromisso em expor a verdade, mas por sua validade, eixo principal de seu sistema. Barthes considera tambm a linguagem literria como essencialmente conotativa e no denotativa, ou seja, o que interessa para a literatura no o significado (aquilo que denotado), mas o prprio poder conotativo do signo lingustico. O conceito de signo lingustico o que vai iniciar os estudos da semiologia e, futuramente, da prpria semitica. Em Fragmentos de um discurso amoroso (1977), j no final de sua vida, Barthes rene em uma espcie de antologia Goethe, Plato, Diderot, Freud, Nietzsche, entre outros, conversas entre amigos e pensamentos soltos. Visando analisar o modo como cada um desses autores retrata os mesmos temas, Barthes est mais uma vez provando que o objeto do crtico literrio nada mais do que o texto. No vem ao caso em qual sculo viveu o autor, qual era sua posio poltica, a qual corrente literria ou filosfica ele fazia parte. O que importa aqui o modo como cada um deles pensou, um dia, os signos literrios recorrentes no discurso amoroso.

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    O filme La vie dAdle, traduzido no Brasil por Azul a cor mais quente, traz muitas das figuras analisadas por Roland Barthes. Dirigido pelo diretor franco-tunsio Abdellatif Kechiche, o filme estreou no festival de Cannes em 24 de maio de 2013. Baseado no romance em quadrinhos Le bleu est une couleur chaude, de Julie Maroh, o filme teve uma grande repercusso na Europa e no mundo. O longa-metragem apresenta com naturalidade o cotidiano da jovem Adle (Adle Exarchopoulos) em um cenrio que se limita entre sua casa e o colgio. Suas amigas da escola a incentivam a se aproximar de um menino de outra sala para namor-lo e ter finalmente sua primeira relao sexual. O ritmo cotidiano e pacato se quebra quando Adle esbarra com Emma (La Seydoux) e a v como uma figura exata que rene todos os seus desejos. Talvez ela pudesse descrev-la ali como algum adorvel. A protagonista se encanta no apenas pelo olhar sensual de Emma, ou pelo jeito que esta joga seu cabelo, mas por entender que dentro daquele objeto esto todos os seus desejos que, em um encontro nico, ela descobriu. No apenas com Emma o encontro, mas com uma parte de si mesma que ela percebe a existncia pela primeira vez, at ento, adormecida: isso! exatamente isso (que eu amo) (2003, p.12). O olhar que as duas trocam, seguido pelo modo como Adle se distrai, no v os carros e invade a rua, mostra o enunciado da fascinao, estado atual da personagem. Aps esse encontro, nada mais na vida de Adle est no mesmo lugar. O relacionamento com o menino j no faz mais sentido. Na escola, ela no consegue ser honesta com suas amigas e em casa est sempre com a cabea em outro lugar. apenas no momento em que sonha com Emma e acorda se masturbando que a histria se revela. Porm, o prazer algo to poderoso a ponto de se tornar assustador para Adle que comea a se sentir culpada pelo que sente. O choro que ocorre aps o orgasmo durante a masturbao um smbolo do prazer e da dor que esse novo sentimento envolve. No dia seguinte, na aula de literatura, a professora ensina mitologia grega e alerta, em um papel quase de orculo, que a tragdia inevitvel. Aps a aula, Adle volta a se encontrar com Emma em um bar e as duas conversam pela primeira vez. Desse ponto em diante elas comeam a sair juntas, construindo memrias e a cada conversa elas se conhecem um pouco mais. Mais do que conhecer uma a outra, Emma

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    ajuda Adle a entender seus desejos homossexuais e a afirm-los para a sociedade, ainda que a menina sofra preconceito das amigas na escola. Porm, nessa parte do filme, a escola j no tem mais tanta importncia e passa a ser plano de fundo para o relacionamento das duas, que comea a tomar completamente o enredo da histria. As cenas de longa durao das relaes sexuais, suas conversas no parque, cmeras fechadas nos sorrisos so alguns detalhes que mostram, com delicadeza, o amor entre as duas. Como encontramos no livro de Barthes, h duas afirmaes do amor. Com certeza Emma e Adle esto, nesse momento, vivendo a primeira, em que o deslumbramento pela pessoa amada faz com que a ideia de um futuro pleno seja instaurada na relao: sou devorado pelo desejo, pelo impulso de ser feliz (2003, p. 18). Porm, aps esse momento de exaltao, vem um longo tnel, onde a dvida comea a surgir, ameaando o contrato at ento estabelecido. Interessante destacar que a partir desse momento vemos uma mudana esttica no filme. Emma, inicialmente com cabelos azuis bagunados, pinta-os de loiro e muda seu corte. O azul, inicialmente a cor mais quente, esfria, assim como o relacionamento das duas. Emma est envolvida com o lanamento de sua exposio e Adle tenta sentir compaixo de seu sofrimento. Porm, vemos no comportamento de Adle exatamente o que define Barthes: o sofrimento de Emma no processo de trabalho de sua exposio deixa Adle de lado, fazendo-a se sentir anulada. J que o outro sofre sem mim, por que sofrer em seu lugar? (2003, p. 72). a partir dessa dvida que as duas comeam a se distanciar. Adle comea a viver um estado de abismo. No encontra mais aquela imagem inicial em que via em seu objeto, que a fazia sentir plena e segura. Algumas discusses comeam a acontecer entre elas, cenas do desgaste comuns a uma relao que caminha para o fim. O dilogo que as duas constroem no mais algo que fazem juntas, mas um exerccio lingustico no qual as duas desejam castrar a outra de toda ou qualquer palavra. A cena interminvel, como explica Barthes na pgina 55, j que ela uma disputa pela linguagem e no pela resoluo dos problemas em si. Adle se v perdida dentro dessa relao e comea a ter um relacionamento paralelo com um homem do trabalho. Em uma noite, voltando para casa de carona com ele, Emma v os dois no carro e

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    descobre a traio. Esse dilogo intenso, triste e longo porque o ltimo, porque o fim. Inicialmente, Adle nega o envolvimento com outra pessoa, mas as duas passam por um momento de constrangimento, exatamente do modo como ele definido: o peso do saber silencioso: eu sei que voc sabe que eu sei (2003, p. 83). Uma vez revelada a verdade, Emma expulsa Adle de sua casa. A protagonista tenta tudo que pode, grita, chora e implora o perdo, mas algo j foi quebrado naquele contrato que um dia fora to bonito, puro e verdadeiro. Ela ainda pede um ltimo abrao como forma desesperada de buscar a plenitude um dia alcanada, tambm em vo. A cena acaba, enfim, pelo cansao das duas, que desistem. Desse momento at o final do filme, Adle experimenta a sensao da ausncia. Apesar de ter sido ela quem foi embora da casa, Emma quem parte: Ora, s existe a ausncia do outro: o outro quem parte, sou eu quem fica (2003, p. 35). Sendo Adle a protagonista da histria, a ausncia s pode ser contada por ela, por quem fica. Sua personagem se constitui pela ausncia da outra. Adle no sente mais prazer dando aula, indo ao parque, ficando em casa. o abismo, novamente, mas dessa vez quase que conscientemente, como escolha da personagem: lamentava jamais poder desaparecer voluntariamente, quando tivesse vontade (2003, p. 6). Adle comea, ento, a suportar a ausncia e esse movimento nada mais do que o esquecimento. Pois, se no esquecesse, eu morreria (2003, p. 37), diz Barthes analisando o jovem Werther. essa a condio de sua sobrevivncia. A ltima cena do filme Adle caminhando, saindo da exposio de Emma, consciente do vazio que aquele amor tem dentro dela, mas livre para ir aonde quiser e ser o que ela , ou ainda, livre para existir de um jeito novo, como aprendeu com seu primeiro grande amor. Barthes une ideias comuns ao discurso amoroso em um texto s, costurando cuidadosamente cada figura que aparece, formando ao final do livro um verdadeiro tecido uniforme e coerente. Uma base pronta para ser utilizada por quem aceitar o desafio. Desde o prefcio, intitulado Como feito este livro, o escritor deixa claro a abertura de sua obra: Tal cdigo, cada um pode preench-lo ao sabor de sua prpria histria. [...] O que aqui pudemos dizer da espera, da angstia, da lembrana nunca passar de um modesto suplemento, oferecido ao leitor, para que este dele se aproprie, adicione, subtraia e passe-o a

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    outros (2003, p. 19).Faamos, ento, como prope Barthes. Se tanto a literatura como o texto crtico literrio criam uma linguagem prpria, analisemos as imagens dos discursos amorosos palavra por palavra. At porque, citando mais uma vez o prefcio de seu livro, as palavras nunca so loucas (no mximo perversas) (2003, p. 21).

    referncias bibliogrficas

    barthes, Roland. Crtica e verdade. Trad. Leyla Perrone-Moiss. So Paulo: Perspectiva, 2011.____________. Fragmentos de um discurso amoroso. Trad. Mrcia Valria Martinez de Aguiar. So Paulo: Martins Fontes, 2003.kechiche, Abdellatif. La vie dAdle. Frana, 2013, 179 min.

    notas1 Este trabalho foi fruto do curso de Perspectivas da Crtica Francesa, ministrado pela prof. Claudia Consuelo Amigo Pino no segundo semestre de 2013.

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    Notas sobre uma possvel A casa de farinha, de Joo Cabral de Melo NetoMarcos Vincius Ferrari

    Em 1966, o auto Morte e vida severina, de Joo Cabral de Melo Neto (1920 - 1999), foi levado cena pela primeira vez, musicado por Chico Buarque, na premiada montagem do grupo do Teatro Tuca de So Paulo. No mesmo ano, Cabral deu incio escrita de outro auto A casa de farinha , em que novamente o rigor da construo potica aliava-se dico popular. Contrariando a mitologia pessoal do poeta, segundo a qual a encenao do auto natalino teria desagra-dado a Cabral, A casa de farinha parece desdobrar e aprofundar preo-cupaes j esboadas em Morte e vida severina e, vindo a lume quase quinze anos aps a morte do escritor, incide luz renovada sobre a obra cabralina ao comprovar a organicidade e a coerncia de um projeto potico original, em que a tensa investigao da linguagem e a crtica social se alimentam mutuamente. A casa de farinha ocupou Cabral durante quase trs dcadas; a cegueira, entretanto, no permitiu que o poeta conclusse a obra. Antes de morrer, entregou a sua filha Ins manuscritos e folhas da-tilografadas que apresentam todo o material reunido quela altura pelo poeta e ora publicado: notas de pesquisa, esquemas, hipteses, citaes, ideias ainda soltas, esboos de enredo que se vo abrindo em mltiplas solues dramatrgicas e aqueles que seriam os versos inici-ais do auto. Percorrer esse mosaico sedutor empreender uma viagem pelo mtodo criativo de Joo Cabral, ainda hoje objeto de fascnio e mistificao. Pouco a pouco, enquanto o poeta pe de p a sua casa de farinha, descortina-se a luta corpo a corpo com a palavra de que

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    conhecamos apenas o resultado acabado, a pedra j lapidada, o metal j domado. Recolhendo fragmentos dispersos, o leitor atento segue as pegadas deixadas pelo grande poeta e vai edificando na imaginao o seu prprio poema, num caminho de volta que tambm de ida. E se falamos aqui de um poeta para quem a materialidade da palavra e a concreo do signo potico ocupavam lugar privilegiado, outro inter-esse reside em acompanhar a tortuosa batalha de Cabral com a folha em branco: medida que a cegueira avana, a caligrafia do poeta visiv-elmente tropea, a letra antes ntida e elegante torna-se, muitas vezes, borro indistinto. Embora Cabral tenha realizado uma pesquisa minuciosa a re-speito das casas de farinha nordestinas, destinadas moagem da man-dioca e fabricao artesanal da farinha, certo que, antes de tudo, vai busc-las nos espaos da prpria memria, nas casas de farinha que ele prprio conhecera e que, em meados da dcada de 60, encontra-vam-se em vias de extino e substituio por mecanismos industriais de produo. justamente a que reside o n dramtico do auto, de acordo com o projeto do poeta: diversas personagens renem-se de madrugada numa casa de farinha e ali descobrem que esta funcionar pela ltima vez. A dvida quanto ao futuro d margem s mais des-encontradas ilaes: uns, pessimistas, acreditam que a casa de farinha ser fechada, vendida ou se transformar numa grande fbrica; outros, otimistas, sustentam que ela ser reformada ou ampliada. O embate entre otimismo e pessimismo e a expectativa em relao ao destino da casa de farinha carreiam a tenso dramtica que anima o auto. As anotaes de Cabral sinalizam para uma arquitetura potica basicamente dupla: como no h propriamente ao, o auto seria todo sustentado por duelos verbais que ora apontariam para o polo positivo, ora para o negativo. A inteno didtica do texto se deixa entrever no andamento dialtico que Cabral planejava imprimir ao poema: o dilogo, em consonncia com as regras dramticas mais convencionais, afigura-se como choque de vontades, como expresso de contrrios, numa cadeia em que cada fala surge como anttese da anterior. A composio das personagens, a que Cabral dedica parte significativa das notas de seu itinerrio criativo, incorpora a tendncia abstrao e desindividualizao dos autos medievais .Todas as per-sonagens so identificadas pelo grupo a que pertencem e pela funo

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    que exercem no interior da casa de farinha: carregadores, raspadoras, raladoras, prensadores, quebradores etc. A crtica face alienante do trabalho evidencia-se ainda mais na identidade existente entre a psic-ologia das personagens e a funo que executam: as raspadoras, que descascam e limpam a mandioca de sua pele de terra, abririam o auto com uma visada otimista e quase infantil; os raladores, que transfor-mam violentamente a mandioca numa massa informe, rebateriam o otimismo das primeiras com um pessimismo radical; o prensador, que espreme a mandioca e separa a massa compacta da manipuera veneno-sa, surge como personagem contemporizadora e representa a sntese em relao aos dois grupos anteriores. E assim prossegue a ciranda de personagens, enlaadas num jogo de afirmao e negao altamente elaborado e consciente, como mostra o detalhado planejamento de Cabral. Os versos que deveriam abrir o auto j instalam a tenso exigida e do mostra do que viria adiante: o bom dia corriqueiro, moeda corrente da comunicao intersubjetiva, investigado em suas diversas possibilidades, revelando as incertezas daqueles que aguar-dam na casa de farinha e expondo a contradio entre o cumprimento cotidiano e o futuro difuso que os espera:

    [Os carregadores] Bom bom-dia, minha gente, Bom dia para os presentes. Bom dia, futuramente. Bom dia, ainda no ventre.

    [As mulheres de descascar] Bom dia tem que dizerquem chega a todo presente. Bom dia como Dizer bom dia tiraro chapu, cumpridamente Bom-dia no antecipa o dia que espera em frente. Nem bom-dia tem a verse sol ou chuvadamente.

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    [Os carregadores] Ns respondemos bom-diaa quem amigavelmente. Retribumos o chapusem tir-lo, mulhermente. No h bom-dia ao p da letra;sei que ele nada promete. Que bom-dia pode terquem ouviu: trabalhe e espere?

    [As mulheres de descascar] Vocs que chegam de foramo bom-dia de valer? Por que aqui de madrugadacorujamos sem saber? Bom dia o que precisamosquem est aqui sem saber. Que floresa num bom diao dia que est a florescer.(p. 130)

    Conforme o poeta-engenheiro desenha o mapa de sua casa de farinha, vai tornando-se clara a estrutura dupla do seu poema dram-tico. O choque fundante entre otimismo e pessimismo pode, quando avultam os boatos acerca da transformao da casa em indstria, ceder espao ao embate entre tradio e modernidade. Contrapem-se di-daticamente o fabrico artesanal da farinha e a sua produo em escala industrial: o que os separa a possibilidade de a farinha, produto final, trazer as marcas vivas do processo, a marca humana intransfervel, el-emento tico fundamental para a viso humanista de trabalho defen-dida por Cabral neste e em outros momentos de sua obra:

    Quem j viu que a farinha possa dispensar a sova,o suor, o amassar de moso torrar cantado com trovas

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    Essa nova fbrica que vemsubstituir aquela nossaser capaz de trazer farinha a marca nossa.(p. 118, grifo do poeta)

    Ronda A casa da farinha o fantasma da modernizao con-servadora, alis, j divisado nos passos finais de Morte e vida severina, quando as ciganas leem a sorte do recm-nascido e o vislumbram sujo, no da lama do mangue, mas da graxa de uma fbrica. A ironia aguda e o humor negro de Cabral tambm comparecem no projeto de auto na figura do Doutor Sudene (referncia explcita Superintendn-cia de Desenvolvimento do Nordeste, rgo criado em 1959). Como uma espcie de Godot ou um inspetor-geral gogoliano, o Doutor Sudene percorreria o auto como figura, a um tempo s, presente e ausente: embora no se revele, algumas personagens depositam nele suas esperanas de que a casa de farinha continue tal e qual, outras culpam-no pelo fechamento da casa e pelas desgraas da decorrentes, at o possvel desfecho quando algum, finalmente, comunica aos demais que Sudene no gente. Numa das anotaes de Cabral, l-se: um auto assim coletivo e cheio de personagens impede que o especta-dor se identifique com algum. Botar o Dr. Sudene importante, mas no creio que ele seja o heri. Foi bom bot-lo para eu poder gozar a Sudene. Mas no creio que ele seja heri: como Godot no heri (p. 72). O poeta parece desconfiar de reformas incapazes de alterar a estrutura geral e que apenas perpetuam as desigualdades sem atacar-lhes a raiz. Em resumo, o funcionamento de uma casa de farinha inclui as seguintes etapas: colher a mandioca, limp-la (descascar com a quic/ dessa coisa da cor de terra/ da cor de sujo, do que ), despi-la da feiura da terra (temos de despi-la do feio/ desse corosco concreto/ temos de despindo fingir/ que o mundo real secreto), raspar, amassar, es-premer, secar a gua, peneirar, torrar, at que se obtenha a brancura e a pureza da farinha mais que alimento, smbolo. A eleio da casa de farinha como motor do auto no arbitrria. Como no melhor Joo Cabral, aqui a acurada reflexo sobre a sociedade insinua-se tambm como reflexo metalingustica: no estariam inscritas em todas essas

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    atividades concretas ndices de sua prpria atividade potica, centrada no obsessivo trabalho sobre a matria, no desbaste do ftil e do exces-sivo, na depurao, na reduo, no menos? A faca s lmina com que o poeta perfura o denso real e descasca o objeto potico reflete-se de vis nessa humilde casa de farinha em que, ao transformar a raiz impregnada de terra em alimento, conclui-se que o mundo tem mos de terra/calos na vida e nos dedos. No nos dado o resultado final de A casa da farinha. A in-completude do texto e as suas muitas lacunas so fartamente compen-sadas pelo raro encanto de acompanhar de perto o poeta em sua ofici-na e compreender o tecido (refinado, embora o alvo seja a voz popular e prosaica) da renda de nervos que a escrita cabralina. Trata-se, sem dvida, de obra muito bem-vinda, que vem se juntar s outras criaes de um poeta que orientou seu projeto esttico no sentido de desnudar a aura do poema e revel-lo como mquina de comover, como mecni-ca impessoal e antilrica, como linguagem que recai sobre si mesma, desvendando mais que alimentando seu prprio mistrio. Ao adentrar os bastidores da labuta potica, mergulhamos fundo no universo de Cabral, cuja obra sempre aguou no seu leitor a vontade de corr-la/ por dentro, de visit-la.

    referncias bibliogrficas

    melo neto, Joo Cabral de. Notas sobre uma possvel A casa de farinha. Organizao de Inez Cabral. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013. __________. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008.

    nota1. A mulher e a casa. In: melo neto, Joo Cabral de. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008, p. 218.

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    Corredores da histria-museuStefano Manzolli

    no museu

    para Antnio Risrio

    no museu vidro e acrlicoprotegem a mscara katchina hopi

    no depsito de lixo meninos brincamcom a mscara contra gases da 1a guerra*engenhoca mecnica movimentaa mscara articulada haida

    esplende e flameja a mscara de ferroda monja inexorvel de lezama*o escudo pintado de maprika efgie de antepassado adu

    no foyer soupault e bretonposam com mscaras navajo*agora o vazio: objeto invisvelde giacometti: antimonumento ao quesumiu (mas por trs de tudo issoj foi prece, carne, calafrio)

  • primeiro semestre 2014 Cisma 53

  • 54 Cisma primeiro semestre 2014

    carlito entra no museu eis a cena.

    Silncio e contemplao diante das mscaras que, out-rora, foram deuses e, diante de seus prprios rituais, invocaram a paz ou o grito de guerra, a chuva ou a devastao. O poeta passeia calado diante dos monumentos Histria que se erguem camuflados de en-tidades. Ento, escreve e dedica ao amigo antroplogo as impresses que lhe ocorrem a respeito do carter ritualstico que permanece como invlucro na sociedade moderna. Assim como nas sociedades tribais, o homem (dito) moderno venda-se com mscaras para ri