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363 Revista - Centro Universitário São Camilo - 2013;7(4):363-366 EDITORIAL Bioética e religião: um diálogo necessário O pluralismo de valores em nossa sociedade é a marca registrada desse nosso tempo denominado “pós-moder- no”. A tão sonhada unidade entre povos e culturas não se conquista pela uniformidade forçada, mas pelo apren- dizado nada simples de respeitar o diverso e diferente de nós. Diversidade não pode mais significar “adversidade” e, para além da mera tolerância, precisamos aprender a sermos respeitosos e dialogantes com os “diferentes”. Para além daquilo que nos foi legado pela “tradição”, precisa- mos construir nossas vidas e projetos em cima de “convic- ções profundas”, sendo capazes de “darmos as razões de nossa esperança”. Nesse contexto, sem mútuos anátemas, a bioética tem de aprofundar o diálogo com a religião e vice-versa, mesmo porque, como diz Mieth, “quem luta pelo bom e correto frequentemente vive em diálogos in- termináveis” (p. 13) 1 . William E. Stempsey, no artigo Religião e Bioética: podemos conversar?, publicado na revista Bioethical Inquiry, ao analisar o processo histórico da “secularização da bioética e a perda da influência da religião”, diz que “O mundo contemporâneo da bioética busca uma língua franca em seu papel como mediadora nas disputas no âmbito do discurso público. Todos sabemos que a religião pode ser fator de divisão e assim ganha sentido a busca da bioética em outro lugar, que não a religião para encontrar mediação. Não que a bioética ignore a religião ou que a diminua, sem dar-lhe importância. Ocorre que ela se voltou para outras fontes, especialmente para a filosofia analítica, à lei e até mesmo para outras disciplinas, como a literatura e a tão falada ‘humanidades médicas’, em suas tentativas de implementar o diálogo” (p. 339) 2 . Esse autor argumenta que “o discurso público sobre questões bioéticas e políticas públicas perdeu algo de es- sencial quando ele ignora a dimensão religiosa. (...) A bioética perdeu de vista o fato de que os substitutos para a linguagem religiosa falham em capturar a importância da contribuição da religião para o discurso bioético” (p. 339) 2 . “Existe a necessidade de se elaborar um papel re- novado para os teólogos e pensadores de outras religiões em articular a importância da fé religiosa para o discurso público da bioética” (p. 340) 2 . A rejeição da reflexão teológica empobrece a bioéti- ca, porque as questões centrais da bioética – relacionadas com a morte e o morrer, início de vida, pesquisa com células-tronco embrionárias, abortamento, questões de genética que lidam com a natureza de nós humanos – são essencialmente questões religiosas. As ideias que estão na fundamentação desses tópicos são aquelas pelas quais a religião está fundamentalmente preocupada. Ignorar os milhares de anos desse insight religioso nessas questões se- ria empobrecer a discussão. O desafio para o futuro da bioética, segundo Stempsey, “é encontrar caminhos para articular os elementos transcendentes de nossa experiência de sofrimento humano e da morte, matéria-prima da bioética, de maneira a torná-la mais compreensível em nossa atual sociedade pluralista. O objetivo deve ser implementar o diálogo e a mútua compreensão. (...) A bioética necessita de um novo influxo de teólogos, e mesmo de pensadores religiosos que podem até rejeitar serem denominados de ‘teólogos’, com novas visões que podem nos ajudar a entender os vários pontos de vista que constituem a experiência pluralista religiosa do século XXI e facilitar o diálogo” (p. 350) 2 . Para Lipovetski, a inter-relação entre religião e moral é tão clássica que leva esse autor a afirmar que no “prin- cípio da moral estava Deus. Deus é o alfa e o ômega da moral” 3 . A propósito, é bom lembrar, ainda, que um dos ra- mos mais importantes da teologia é o da teologia moral. Cabe esclarecer que entendemos como valores morais aqueles consagrados pelos usos e costumes de uma deter- minada sociedade (podem, pois, variar de uma socieda- de a outra e dentro de uma mesma sociedade através do tempo), ao passo que entendemos a ética como reflexão crítica e juízo sobre valores, levando a uma deliberação de opção desses valores. A nosso ver, tal deliberação poderá ser melhor equa- cionada utilizando a teoria dos referenciais 4 . À medida que a bioética consolida sua fase paradigmática (emble- maticamente atingida, segundo Fourez 5 , quando se ins- tala a pós-graduação na nova área do conhecimento), outros referenciais podem ser lembrados e considerados.

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Revista - Centro Universitário São Camilo - 2013;7(4):363-366

Editorial

Bioética e religião: um diálogo necessário

O pluralismo de valores em nossa sociedade é a marca registrada desse nosso tempo denominado “pós-moder-no”. A tão sonhada unidade entre povos e culturas não se conquista pela uniformidade forçada, mas pelo apren-dizado nada simples de respeitar o diverso e diferente de nós. Diversidade não pode mais significar “adversidade” e, para além da mera tolerância, precisamos aprender a sermos respeitosos e dialogantes com os “diferentes”. Para além daquilo que nos foi legado pela “tradição”, precisa-mos construir nossas vidas e projetos em cima de “convic-ções profundas”, sendo capazes de “darmos as razões de nossa esperança”. Nesse contexto, sem mútuos anátemas, a bioética tem de aprofundar o diálogo com a religião e vice-versa, mesmo porque, como diz Mieth, “quem luta pelo bom e correto frequentemente vive em diálogos in-termináveis” (p. 13)1.

William E. Stempsey, no artigo Religião e Bioética: podemos conversar?, publicado na revista Bioethical Inquiry, ao analisar o processo histórico da “secularização da bioética e a perda da influência da religião”, diz que “O mundo contemporâneo da bioética busca uma língua franca em seu papel como mediadora nas disputas no âmbito do discurso público. Todos sabemos que a religião pode ser fator de divisão e assim ganha sentido a busca da bioética em outro lugar, que não a religião para encontrar mediação. Não que a bioética ignore a religião ou que a diminua, sem dar-lhe importância. Ocorre que ela se voltou para outras fontes, especialmente para a filosofia analítica, à lei e até mesmo para outras disciplinas, como a literatura e a tão falada ‘humanidades médicas’, em suas tentativas de implementar o diálogo” (p. 339)2.

Esse autor argumenta que “o discurso público sobre questões bioéticas e políticas públicas perdeu algo de es-sencial quando ele ignora a dimensão religiosa. (...) A bioética perdeu de vista o fato de que os substitutos para a linguagem religiosa falham em capturar a importância da contribuição da religião para o discurso bioético” (p. 339)2. “Existe a necessidade de se elaborar um papel re-novado para os teólogos e pensadores de outras religiões em articular a importância da fé religiosa para o discurso público da bioética” (p. 340)2.

A rejeição da reflexão teológica empobrece a bioéti-ca, porque as questões centrais da bioética – relacionadas com a morte e o morrer, início de vida, pesquisa com células-tronco embrionárias, abortamento, questões de genética que lidam com a natureza de nós humanos – são essencialmente questões religiosas. As ideias que estão na fundamentação desses tópicos são aquelas pelas quais a religião está fundamentalmente preocupada. Ignorar os milhares de anos desse insight religioso nessas questões se-ria empobrecer a discussão.

O desafio para o futuro da bioética, segundo Stempsey, “é encontrar caminhos para articular os elementos transcendentes de nossa experiência de sofrimento humano e da morte, matéria-prima da bioética, de maneira a torná-la mais compreensível em nossa atual sociedade pluralista. O objetivo deve ser implementar o diálogo e a mútua compreensão. (...) A bioética necessita de um novo influxo de teólogos, e mesmo de pensadores religiosos que podem até rejeitar serem denominados de ‘teólogos’, com novas visões que podem nos ajudar a entender os vários pontos de vista que constituem a experiência pluralista religiosa do século XXI e facilitar o diálogo” (p. 350)2.

Para Lipovetski, a inter-relação entre religião e moral é tão clássica que leva esse autor a afirmar que no “prin-cípio da moral estava Deus. Deus é o alfa e o ômega da moral”3.

A propósito, é bom lembrar, ainda, que um dos ra-mos mais importantes da teologia é o da teologia moral.

Cabe esclarecer que entendemos como valores morais aqueles consagrados pelos usos e costumes de uma deter-minada sociedade (podem, pois, variar de uma socieda-de a outra e dentro de uma mesma sociedade através do tempo), ao passo que entendemos a ética como reflexão crítica e juízo sobre valores, levando a uma deliberação de opção desses valores.

A nosso ver, tal deliberação poderá ser melhor equa-cionada utilizando a teoria dos referenciais4. À medida que a bioética consolida sua fase paradigmática (emble-maticamente atingida, segundo Fourez5, quando se ins-tala a pós-graduação na nova área do conhecimento), outros referenciais podem ser lembrados e considerados.

Page 2: Revista - Centro Universitário São Camilo - 2013;7(4 ... pt-br.pdf · 363 Revista - Centro Universitário São Camilo - 2013;7(4):363-366 Editorial Bioética e religião: um diálogo

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Editorial

Revista - Centro Universitário São Camilo - 2013;7(4):363-366

* Doutor em Teologia/Bioética. Pós-graduado em Clinical Pastoral Education and Bioethics, St Luke’s Medical Center. Docente do Programa Stricto sensu em Bioética do Centro Universitário São Camilo-SP, Brasil. E-mail: [email protected]** Médico. Professor Emérito (Cirurgia) da Universidade Estadual Paulista – UNESP, Faculdade de Medicina, campus Botucatu-SP, Brasil. Membro da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa – CONEP. Membro do Comitê Internacional de Bioética da UNESCO. Coordenador do Programa Stricto sensu em Bioética (Mestrado, Doutorado e Pós--Doutorado) do Centro Universitário São Camilo-SP, Brasil. E-mail: [email protected]

Nota-se, progressivamente, crescente atenção para a relação entre bioética e religião, melhor dizendo, entre bioética e espiritualidade.

Com base em fonte de dados (PubMed, Lilacs, Philosopher’s Index), encontramos registradas 2.319 publi-cações em cujo título consta a expressão “espiritualidade”. Cruzando espiritualidade com ética e bioética, constata-mos 35 publicações (1,5% do total). Quando se avalia a associação entre religião e ética ou bioética, encontramos 228 publicações (10%).

Julgamos que o diálogo entre bioética e espiritualida-de (aí incluída a religiosidade) deve acontecer no sentido

de nos indicar a necessidade de avaliar se a espiritualidade deve ser considerada como outro referencial de bioética, enquanto deliberação para opção de valores.

Pretendemos voltar à questão.Sem cairmos em fundamentalismos intolerantes, nos-

so caminhar necessita ser nutrido pelo respeito, diálogo e compreensão pelo diferente, sem abdicar de nossas con-vicções profundas de valores que nos dão “as razões de nossa esperança”! Enfim, temos que assumir nossa condi-ção de sermos eternos aprendizes!

Leo Pessini* William Saad Hossne**

RefeRências

1. Mieth D. Pequeno Estudo da Ética. Aparecida (SP): Idéias & Letras; 2007.2. Stempsey WE. Religion and Bioethics: can we talk? J Bioethical Inquiry. 2011;8(4):339-50.3. Lipovetski G. O Crepúsculo do Dever. Lisboa: Dom Quixote; 2010. p. 27.4. Hossne WS. Bioética – Princípios ou Referenciais? Mundo Saúde. 2006;(4):673-6.5. Fourez G. A Construção da Ciência. São Paulo: UNESP; 1995. cap. 5, p. 103.