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Revista Brasileira de História da Educação Respeite o direito autoral Reprodução não autorizada é crime

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Revista Brasileira deHistória da Educação

Respeite o direito autoralReprodução não autorizada é crime

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Revista

Comissão EditorialAna Maria de Oliveira Galvão (UFMG-MG); DislaneZerbinatti Moraes (USP); José Gonçalves Gondra(UERJ); Maurilane de Sousa Biccas (USP).Secretaria – Lilianne Souza Magalhães

Conselho Consultivo

Membros nacionais:Álvaro Albuquerque (UFAC); Ana Chrystina VenâncioMignot (UERJ); Ana Maria Casassanta Peixoto (SED-MG); Clarice Nunes (UFF e UNESA); Décio Gatti Jr.(UFU e Centro Universitário do Triângulo); DeniceB. Catani (USP); Ester Buffa (UFSCAR); Gilberto LuizAlves (UEMS); Jane Soares de Almeida (UNESP); JoséSilvério Baia Horta (UFRJ); Luciano Mendes deFaria Filho (UFMG); Lúcio Kreutz (UNISINOS); MariaArisnete Câmara de Moraes (UFRN); Maria deLourdes de A. Fávero (UFRJ); Maria do AmparoBorges Ferro (UFPI); Maria Helena Camara Bastos(PUCRS); Maria Stephanou (UFRGS); Marta Mariade Araújo (UFRN); Paolo Nosella (UFSCAR).

Membros internacionais:Anne-Marie Chartier (França); António Nóvoa (Por-tugal); Antonio Viñao Frago (Espanha); DarioRagazzini (Itália); David Hamilton (Suécia); NicolásCruz (Chile); Roberto Rodriguez (México); RogérioFernandes (Portugal); Silvina Gvirtz (Argentina);Thérèse Hamel (Canadá).

Revista Brasileira de História da EducaçãoPublicação semestral da Sociedade Brasileira de História da Educação – SBHE

COMERCIALIZAÇÃO

Editora Autores AssociadosAv. Albino J. B. de Oliveira, 901CEP 13084-008 – Barão Geraldo

Campinas (SP)Pabx/Fax: (19) 3289-5930

e-mail: [email protected]

Sociedade Brasileira de História daEducação – SBHE

A Sociedade Brasileira de História da Educação(SBHE), fundada em 28 de setembro de 1999, é umasociedade civil sem fins lucrativos, pessoa jurídicade direito privado. Tem como objetivos congregarprofissionais brasileiros que realizam atividades depesquisa e/ou docência em História da Educação eestimular estudos interdisciplinares, promovendointercâmbios com entidades congêneres nacionaise internacionais e especialistas de áreas afins. Éfiliada à ISCHE (International Standing Conferencefor the History of Education), a Associação Interna-cional de História da Educação.

Diretoria NacionalPresidente: Diana Gonçalves Vidal (USP)Vice-presidente: Luciano Mendes de Faria Filho (UFMG)Secretária: Maria Elisabeth Blanck Miguel (PUC-PR)Tesoureiro: Elomar Antonio Callegaro Tambara (UFPEL)

Diretores RegionaisNorte:Titular: Andréa Lopes Dantas (UFAC)Suplente: Clarice Nascimento de Melo (UFPA)Nordeste:Titular: Jorge Carvalho do Nascimento (UFSE)Suplente: Diomar das Graças Motta (UFMA)Centro-Oeste:Titular: Maria de Araújo Nepomuceno (UCG)Suplente: Regina Tereza Cestari de Oliveira (UFMS)Sudeste:Titular: José Carlos de Souza Araújo (UFU)Suplente: Cláudia Maria Costa Alves (UERJ)Sul:Titular: Flávia Werle (UNISINOS)Suplente: Norberto Dallabrida (UDESC)

SecretariaRev. Bras. de História da EducaçãoFaculdade de EducaçãoUniversidade de São PauloAv. da Universidade, 308 – Bloco A – sala 219CEP 05508-900 – São Paulo-SPTel.: (11) 3091-3195 – ramal 282E-mail: [email protected]

Indexada em/Indexed in:BBE – Bibliografia Brasileira de Educação (Brasil, Inep)EDUBASE (Brasil, FE/UNICAMP)

Versão on-line/version online:http://www.sbhe.org.br/

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Revista Brasileira deHISTÓRIAEDUCAÇÃO

SBHE

Sociedade Brasileira de História da Educação

da

julho/dezembro 2006 no 12

ISSN 1519-5902

A publicação deste no 10 da Revista Brasileira de História daEducação contou com o apoio financeiro do Conselho Nacionalde Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq – EntidadeGovernamental Brasileira Promotora do Desenvolvimento Científicoe Tecnológico.

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EDITORA AUTORES ASSOCIADOS LTDA.Uma editora educativa a serviço da cultura brasileira

Av. Albino J. B. de Oliveira, 901Barão Geraldo – CEP 13084-008Campinas-SP – Pabx/Fax: (19) 3289-5930e-mail: [email protected]álogo on-line: www.autoresassociados.com.br

Conselho Editorial “Prof. Casemiro dos Reis Filho”Bernardete A. GattiCarlos Roberto Jamil CuryDermeval SavianiGilberta S. de M. JannuzziMaria Aparecida MottaWalter E. Garcia

Diretor ExecutivoFlávio Baldy dos Reis

Coordenadora EditorialÉrica Bombardi

Assistente EditorialAline Marques

RevisãoCyntia Belgini AndrettaEdson Estavarengo Jr.

Diagramação e ComposiçãoDPG Ltda.

Projeto Gráfico e CapaÉrica Bombardi

Arte-finalÉrica Bombardi

Impressão e AcabamentoGráfica Paym

Revista Brasileira de História da Educação

ISSN 1519-5902

1º NÚMERO – 2001Editora Autores Associados – Campinas-SP

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Sumário

CONTENTS 7

EDITORIAL 9

ARTIGOS

Poder-saber-querer: os terrenos disciplinares da alma e doautogoverno no primeiro mapa das ciências da educação (1879-1911) 11Jorge Ramos do Ó

Aspectos históricos da cadeira de sociologia nos estudossecundários (1892-1925) 31Eva Maria S. Alves e Patrícia Rosalba Salvador Moura Costa

História cultural e história da educação na América portuguesa 53Thaís Nívia de Lima Fonseca

No compasso do progresso: a música na escola nas primeirasdécadas republicanas 75Ailton Pereira Morila

Em defesa de “legítimos interesses”: o ensino secundário no discursoeducacional de O Estado de S. Paulo (1946-1957) 121Bruno Bontempi Jr.

A produção acadêmica sobre os institutos isolados de ensino 159superior do estado de São Paulo (1951-1964)Rosane Michelli de Castro

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RESENHAS

História & Ensino de História 193Por Diogo da Silva Roiz

Os caminhos dos livros 197Por Christianni Cardoso Morais

ORIENTAÇÃO AOS COLABORADORES 207

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EDITORIAL 9

ARTICLES

Power-know-want: the disciplinary field of soul andself-government in the first map of sciences of education (1879-1911) 12Jorge Ramos do Ó

Historical aspects of the chair of sociology in the secondarystudies (1892-1925) 32Eva Maria S. Alves, Patrícia Rosalba Salvador Moura Costa

Cultural history and history of education in the portuguese America 54Thaís Nívia de Lima Fonseca

In the compass of the progress: school music in first republican decades 76Ailton Pereira Morila

In defense of “real interest”: secondary education in the educational 122speech of O Estado de S. Paulo (1946-1957)Bruno Bontempi Jr.

The academic production about the isolated institutes of highereducation of the state of São Paulo – Brazil (1951-1964) 160Rosane Michelli de Castro

Contents

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BOOK REVIEWS

História & Ensino de História 193By Diogo da Silva Roiz

Os caminhos dos livros 197By Christianni Cardoso Morais

GUIDES FOR AUTHORS 207

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Editorial

É com imenso prazer que apresentamos o número 12 da RevistaBrasileira de História da Educação. Este foi um ano de muito trabalhocom vistas à implementação de mudanças previstas pela Comissão Edi-torial passada. Nosso objetivo foi aperfeiçoar o modelo de editoração equalificá-lo de acordo com os padrões das agências de fomento à pes-quisa. Nesse sentido, conquistamos, com esta edição, uma das metas doprojeto: a publicação de três números por ano. Assim, esperamos ex-pressar, por meio dessa periodicidade, o dinamismo da produção cientí-fica da área de conhecimento. Aproveitamos a oportunidade para convi-dar os pesquisadores e estudiosos da nossa área a colaborarem com arevista, enviando propostas de artigos, resenhas, notas de leitura, tradu-ções e sugestões de dossiês temáticos.

Esta edição contém seis significativos artigos sobre temas de inte-resse geral para o grupo de pesquisadores da área de história da educa-ção e historiografia e duas resenhas de livros de comprovado valor aca-dêmico. O artigo do professor Jorge Ramos do Ó analisa a produção dasciências da educação em face dos princípios do autogoverno e das “tec-nologias do eu”, efetivadas com o processo de modernização da socie-dade européia. É um artigo de amplitude interdisciplinar, aproveitandocom criatividade, a abordagem da mundialização dos modelos de edu-cação escolar.

Thaís Nívia de Lima Fonseca, em artigo instigante, conclama ospesquisadores a se voltarem para o estudo da educação brasileira noperíodo colonial. Lembra-nos que, para além da ação do Estado e daIgreja, houve variadas formas de aprendizagem e processos de forma-

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ção, os quais revelam as intensas trocas culturais manifestadas nesseperíodo da história do Brasil.

Três são os textos atentos à história das disciplinas escolares. Abor-da-se no texto de Eva Maria S. Alves e Patrícia Rosalba Salvador MouraCosta a história da cadeira de sociologia em Recife. A música, comocomponente curricular, é analisada no texto de Ailton Pereira Morila.Diogo Roiz nos dá notícia da pesquisa desenvolvida pela professoraThaís Nívia de Lima Fonseca sobre a história do ensino de história. Ointeresse pelo tema da história das disciplinas escolares é manifestadonesta pequena mostra; a qual, sem dúvida, enseja reflexões relevantessobre a articulação entre os saberes escolares e as políticas educacio-nais.

Por fim, faremos aqui uma aproximação entre os textos de BrunoBontempi Jr., – “Em defesa de ‘legítimos interesses’: o ensino secundá-rio no discurso educacional de O Estado de S. Paulo (1946-1957)” –,Rosane Michelli de Castro, – “A produção acadêmica sobre os institutosisolados de ensino superior no estado de São Paulo (1951-1964)” –, eChristianni Cardoso Morais, – resenha do livro de Márcia Abreu, Oscaminhos dos livros. O ponto de convergência dessas análises situa-sena investigação a respeito da complexa circulação dos saberes pedagó-gicos, educacionais e culturais em lugares discursivos determinados: osjornais, as escolas de ensino superior e em um objeto por excelênciadessa circulação, que são os livros. Muitos fios, alguns nós, nessa gran-de paixão pela história da educação, paixão essa que esperamos com-partilhar com vocês, leitores.

Comissão Editorial

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Poder-saber-querer

os terrenos disciplinares da almae do autogoverno no primeiro mapa

das ciências da educação (1879-1911)

Jorge Ramos do Ó*

Resumo:Este artigo procura mostrar que a sedimentação histórica de um discurso coerente, quersobre o estatuto científico da pedagogia, quer sobre os fins do ato educativo moderno,pode ser igualmente discutida no quadro geral da secularização da moral e da expansãodo princípio político do self-government.Para tanto nele se defende que uma formação discursiva de caráter pedagógico assumiuem finais do século XIX a centralidade do material ético, assimilando-o ao axioma dopoder iluminista-humanista em que o comportamento cívico do cidadão deve decorrerdos compromissos e decisões da esfera privada da sua consciência. Como é analisadaaqui, a psicopedagogia moderna foi estruturada historicamente como mais um regimedo eu.

ciências da educação a partir de finais do século XIX; autogoverno do aluno; tecnologiasdo eu; pedagogia moderna; moral cívica.

* Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa.

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Power-know-want

the disciplinary field of soul and self-government in the first map of sciences of

education (1879-1911)

Jorge Ramos do Ó*

* Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa.

Abstract:This article tries to show that the historical sedimentation of one coherent speech, wantsabout the pedagogical scientific statute, wants about the objectives of modern educativeact, would be equally discussed in the general chart of moral secularization and theexpansion of political essence of self- government.Therefore in itself defend that one deductive formation from pedagogical nature tookover in the end of XIX century the centralization of ethical material, assimilating it onthe axiom of illuminist-humanistic power that refer us about the civic behavior of citizensshould result from the obligations and decisions of private environment of yourconscience. In the way it’s analyzed here, the modern psycho pedagogy would behistorically structured as the one more self rule.

educational sciences from the end of the XIX century; self-government of the pupil;technologies of the self; modern pedagogy; civic moral.

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poder-saber-querer 13

L’objet de l’éducation, ne l’oublions jamais,est de former l’enfant à l’indépendance, de le

rendre capable de se gouverner lui-même.Élie Pécaut, 1887.

Inicio este texto com uma evidência que tomo de empréstimo deTomaz Tadeu da Silva (1995, pp. 318-319): a escola moderna de massasé fruto da combinação entre o modo cristão de organização da condutapessoal e as formas de governo desencadeadas pela burocracia estatal.Essa associação estratégica parecerá improvável para muitos, que to-mam como suas as clivagens presentes nos diferentes programas políti-cos do passado, mas foi absolutamente conveniente aos objectivos dasadministrações do Estado-Nação. Desde sempre, a escola pública pare-ceu tomar-se do propósito de estabelecer no seu interior uma moral laicae, para isso, assenhoreou-se do sentido e das práticas anteriores activadaspela pedagogia cristã: “os sistemas estatais de ensino não são portado-res de uma nova imagem da infância ou de um novo projecto pedagógi-co”; “bem pelo contrário, limitam-se a aprofundar o modelo escolar postoem prática entre os séculos XVI e XVII” (Nóvoa, 1994, p. 169).

Pretendo demonstrar que a sedimentação histórica de um discursocoerente quer sobre o estatuto científico da pedagogia quer sobre os finsdo acto educativo moderno deve ser entendida no quadro geral da secu-larização da moral e da expansão do princípio político do self-government. Para tanto defenderei que uma formação discursiva decarácter pedagógico assumiu em finais do século XIX a centralidade domaterial ético, assimilando-o ao axioma do poder iluminista-humanistaque nos refere que o comportamento cívico do cidadão deve decorrerdos compromissos e decisões da esfera privada da sua consciência. Apsicopedagogia moderna estruturou-se historicamente como mais umregime do eu.

Acredito que o grosso das polémicas e disputas que estiveram nabase da afirmação da escola pública pode ser historicamente percebidocomo expressão directa das lutas pelo monopólio do governo da alma.Tratou-se sobretudo nelas do problema da reformulação da moral. Omodelo de uma educação tutelada pelo Estado não representaria mais

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do que uma actualização – certamente mais articulada na ambição maiorde constituir-se como um sistema efectivamente capaz de caldear toda anação no Estado – da escola pastoral, ainda que as suas sucessivas auto-ridades nos falem, à medida que o liberalismo avançava, e até com inu-sitado vigor a partir do momento em que se foi implantando a sua ver-são republicana, do desígnio de construir um homem novo, inteiramentediferente daquele que o obscuratismo religioso gerara. O material éticoque o cristianismo mobilizara, assim como as técnicas utilizadas para asua incorporação individualizada, passaram directamente para a lógicado poder iluminista-humanista. Do que em rigor poderemos falar é doseu aprofundamento na modernidade, de uma crescente sofisticação tec-nológica para responder, reiterando os mesmos princípios e procurandoobter resultados semelhantes, a um quadro de interacções cada vez maiscomplexo porque marcado pela sua extrema massificação. É claro queestou a desvalorizar, esquecendo-os deliberadamente, os enunciadosprogramáticos e, perdoe-se-me a insistência, a falar tão-somente dessetrabalho de subjectivação, do esforço que a Igreja dispendera tendo emvista a constituição da pessoa reflexiva e do equipamento que criararelativo à disciplina espiritual dos indivíduos, procurando dessa sorteobter seres humanos cada vez mais mobilizados em torno da sua perfei-ção moral e, portanto, auto-regulados. De todo em todo, e disso estourealmente convencido, as administrações burocratizadas puderam dis-pensar os absolutos espirituais subjacentes àquelas operações, adequan-do-os com muita facilidade à socialização das crianças e dos jovens. Asua esfera de deliberação política nunca deixou de subordinar aosobjectivos governamentalizados tanto o comportamento cívico do cida-dão como a esfera mais privada da sua consciência.

A incorporação de princípios morais através de uma prática, cadavez mais definida como da autonomia funcional e da liberdade, surgecomo a marca mais distintiva e consensual da escola pública que acentúria de novecentos disseminou por todo o nosso planeta. No tam-bém designado “século da criança”, a disciplina é, de facto, um exercí-cio crescentemente solitário e associado à independência ideal do alu-no: as regras que permitem a vida colectiva já não se impõem pelaviolência das sanções, pela rigidez dos princípios, nem sequer são pas-

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síveis de ser ensinadas pelo professor; inversamente, cada um está obri-gado a inferi-las, a descobri-las num jogo relacional com o mundo exte-rior – em que, é claro, a velha lógica da emulação e do mimetismoidentitário mantem muito do seu peso socializador –, mas que deve ter asua origem e o seu termo dentro dos limites do sujeito. Liberdade eautoridade são invariavelmente descritas como realidades justapostassenão mesmo simbióticas: o discurso pedagógico projecta um ideal-tipode estudante independente-responsável. É aquele que sabe medir asconsequências tanto dos seus actos como das formas de comportamentoatravés de regras interiores que resultam das suas experiências pessoais,quer dizer, de uma adaptação espontânea à vida escolar. Tudo se passacomo se cada um aprenda a instituir um lugar social no espaço que elepróprio ocupa. É por tal razão que a escola pública contemporânea nossurge como o espaço das múltiplas heteropias, é certo, mas das heteropiassocialmente compatíveis. De rostos dir-se-ia sempre familiares uns aosoutros.

O período histórico sobre o qual incide a análise é relativamentecurto. Tratarei o chamado “momento Compayré”, na designação cunha-da por Charbonnel (1988), e que teve como balizas a publicação, em1879, por Gabriel Compayré, da Histoire critique des doctrines del’éducation en France depuis le seizième siècle e encerrou-se com osartigos “Education” e “Pédagogie” que Durkheim publicou em 1911 noNouveau dictionnarie de pédagogie et d’instruction primaire, dirigidopor Ferdinand Buisson. Discuto os textos de uma geração inteira depedagogos francófonos que primeiramente reflectiu sobre o estatutoepistemológico das ciências da educação e que sistematizou igualmenteum saber enciclopédico sobre a uma educação e um ensino de caracte-rísticas modernas. Procuro mostrar que o governo da alma ou o treinodisciplinar da vontade do aluno se inscreveu no centro das propostasreformadoras defendidas por essa geração de pedagogos.

A minha ideia é continuar aqui um tipo de reflexão teórica iniciadapor Michel Foucault no contexto de escrita e publicação dos três volu-mes da História da sexualidade. Foucault define aí um campo de análi-se que entrecruza os domínios da ética com os da política. O termogovernmentalidade e a expressão tecnologias do eu, operando entre si e

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esclarecendo-se mutuamente, são as que melhor definem a inflexão ope-rada nos seus derradeiros projectos historiográficos, que procuram en-tender as bases sobre as quais as práticas de subjectivação têm vindo aser construídas na modernidade (Foucault, 1978). Essa perspectiva ana-lítica tem tido inúmeras ramificações na investigação social actual. Sin-to-me particularmente inspirado pelos trabalhos críticos de Nikolas Rose,nos domínios do poder-saber que caracterizam a afirmação e consoli-dação social da ciência psicológica, e do modo como Thomas Popkewitzquestiona da teoria educacional e investigação pedagógica com o eu e ooutro (Rose, 1996; Popkewitz, 1998). Analisando os dispositivosdiscursivos por meio dos quais os actores são representados, classifica-dos e normalizados, esses investigadores permitem-nos perceber a es-cola de massas, ora como uma tecnologia humana, ora como uma tec-nologia moral; mostram-nos como as dinâmicas de promoção dasubjectividade se encontram profundamente articuladas com osobjectivos de governo das populações no seu conjunto.

A racionalização da conduta no contextode definição das ciências da educação

Começo a minha reflexão com a pergunta lançada por GabrielCompayré em 1885, e que depois o século XX tornaria banal: há ou nãouma ciência da educação, tem ou não tem ela um objecto distinto dasrestantes ciências sociais em afirmação nessa altura. Ao autor do Coursde pédagogie théorique et pratique, a resposta surgia-lhe de imediato:“personne ne conteste plus aujourd’hui la possibilité d’une science del’éducation”. E para isso Compayré distinguia entre pedagogia – queseria, por assim dizer, a teoria da educação – e educação, constituindoessa a prática da pedagogia. “Il ya donc une science de l’éducation”,continuava, “science pratique, appliquée, qui a désormais ses principes,ses lois, qui témoigne de sa vitalité par un grand nombre de publications”.A primeira vertente, a da habilidade prática, permitia à ciência reivindi-car-se como mais uma arte, o que exactamente remetia para uma moda-lidade de conhecimento afastada do universo da cultura livresca.

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Compayré fez-se eco das teses que então valorizavam a experiência eessa espécie de alquimia moral concretizada na acção do professor: “unecertaine chaleur de coeur” aliado a “une véritable inspiration del’intelligence”. No plano conceptual metodológico, a pedagogia aspira-va a legitimar-se como apenas como uma psicologia aplicada. O cien-tista da educação tomava como suas regras as máximas que decorriamdas leis da organização mental, ou seja, do trabalho desenvolvido pelaciência psicólogica. Eis a razão fundamental para este casamento: “lapsycologie est le principe de toutes les sciences pratiques qui ont rapportaux facultés morales de l’homme”; “la pédagogie seule embrasse toutesles parties de l’âme et doit recourir à la psychologie tout entière”(Compayré, 1885, pp. 10-13).

E verificamos como uma frase na aparência inocente, porquecentrada apenas no plano da matriz epistemológica de uma disciplina,deixa perceber muito bem o exercício de formas de regulação socialespecíficas. A pedagogia ou a ciência da educação tomou-se desde sem-pre da ambição de agir sobre o espírito e o corpo das crianças e jovens.Surgiu, pois, historicamente, como mais uma versão do biopoder. O seumétodo consistiria tão-só em observar os factos da vida física e moraldo homem. O seu problema maior era o de tornar visível e manipulávelcada um daqueles sujeitos, tarefa esta que apenas se imaginava possívelse realizada a partir de uma dissecação sistemática da espiritualidade doeducando: as leis gerais e a respectiva reflexão indutiva da pedagogiadireccionar-se-iam para o levantamento e a construção racional dos fac-tos da intimidade, em ordem a um cabal estabelecimento do mapa daalma humana.

Desde o início que falar do objecto da nova ciência era falar dapossibilidade de uma moral laica. De Compayré passarei a outro autor,Henri Marion, tendo por agora presente o artigo “Pédagogie” (1887a)que redigiu para a primeira versão do influente Dictionnaire de pédagogieet d’instruction primaire. Marion começou por reproduzir a definiçãoclássica de Littré, segundo o qual a pedagogia é a educação moral dascrianças, e fez derivar todas as suas considerações desse postulado. Asubstância propriamente ética obrigava-o a discutir a posição da disci-plina no espectro geral das ciências. Não tinha dúvidas de que ela esta-

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ria impedida de classificar-se junto das ciências exactas, que faziamsuceder os seus raciocínios em cadeias de noções puras e complexas. Apedagogia não se parecia, igualmente, com as ciências ditas físicas enaturais porque não poderia nunca se propor atingir leis de uma absolu-ta necessidade e infalibilidade. Porém, essa ambiguidade, ou melhor,essa incerteza posicional, não seria um problema para Marion. Era, an-tes, uma realidade que a pedagogia partilhava “avec toute la famille dessciences morales, soit qu’elle tienne simplement” (1887b, p. 2.238). Adisciplina pedagógica deveria ser arrumada numa espécie de terceirosector do campo científico, o dos saberes que concorreriam para umalibertação do homem pela via da razão. O seu objectivo primordial era o demostrar que toda a vida humana podia ser racionalizada e, assim, viabilizara criação de um estado de hiperconsciência em cada educando.

O esforço ligado ao debate inicial em torno das ciências da educa-ção teve pressuposta a possibilidade, por meio delas, constituir-se umamoralidade independente de qualquer dado religioso ou metafísico. “Laquestion”, logo lembrava Ferdinand Buisson, “est de savoir si l’on peutcréer cet état d’âme par une éducation morale purement laïque, c’est-à-dire par une morale qui n’empruntera sa force, son prestige, son autorité,à aucune considération étrangère à l’idée morale pure et simple; c’estsur cette conviction qu’est fondée la pédagogie républicaine française”(1911, pp. 1.348-1.349). Os princípios do catecismo da ciência progres-siva eram já perspectivados como um eficaz dispositivo de regulaçãosocial. Henri Marion, no programa do seu Cours d’Instruction Moralepour les Écoles Normales Primaires, pôs logo a abrir a grande “Secçãode Moral Prática” um elenco exaustivo dos deveres individuais. E, quandoquis definir o espaço desse território, já só teve em conta o que designa-va de “principales formes du respect de soi-même: les vertus individuelles(tempérance, prudence, courage, respect de la vérité, de la parole donnée,dignité personnelle etc.)” (Marion, 1882, p. 1.768). Daí a afirmar, comoo fez Compayré (1885, p. 92), que a educação da consciência se confun-dia com a educação de todas as faculdades da alma seria apenas umpasso, e um passo muito curto. A acção a exercer deveria fortificar areflexão psicológica com o objectivo de assegurar à pessoa humana aposse de si mesma. Não pareciam existir dúvidas no espírito de nin-

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guém quanto à moral ser, fundamentalmente, “une technique, la techniquede l’action humaine en société” (Buisson, 1911, p. 1.350).

O par conceptual razão-responsabilidade inscreveu-se no âmagodessa lógica de desenvolvimento de uma racionalidade científica devocação prática. No fundo da consciência moral encontraríamos entãoo primeiro elemento. A razão era vista como “l’esprit lui-même considérédans sa constitution, ses exigences innées, ses besoins universels etéternels” (Marion, 1887c, p. 2.529). Respondia-se, assim, à necessidadede encontrar um fundo comum a todos os homens e, ao mesmo tempo,de definir o pensamento e a civilização como elementos naturais. Aquise estabelecia a ideia de que os mandamentos éticos eram realidades,mas realidades que supunham uma aceitação esclarecida dos cidadãos.A educação era justificada, assim, como a operação capaz de levar ascrianças e os jovens a incorporar as regras sociais pela via da inteligên-cia e do conhecimento racional. Como se um mandamento, para existire crescer nos espíritos, tivesse primeiro que ser conhecido. Para ospedagogos de finais do século XIX, a responsabilidade supunha então“une éducation morale qui ait éclairé la conscience et développé l’idéedu bien et du devoir” (idem, p. 2.530), um trabalho de mentalizaçãoconstante das leis obrigatórias. O mais importante passava por uma as-sociação directa ao conceito político mais importante da modernidade,o conceito de liberdade. A responsabilidade supunha-a inteiramente. Odiscurso pedagógico informava então que a condição do homem era ade submeter-se voluntariamente aos mandamentos da lei. “Laresponsabilité”, informava ainda Compayré, “peut être définie lecaractère d’un être intelligent et libre, qui, sachant ce qu’il fait et pouvantagir autrement qu’il n’agit, doit répondre de ses actes; nous sommesresponsables dans la mesure où nous sommes libres” (Compayré, 1882b,pp. 1.855-1.856). As reflexões pedagógicas visavam associar, senãomesmo unificar, o que o senso comum seria levado a entender comocorrespondendo a realidades antinómicas ou a hipóteses paradoxais.

O sociólogo Durkheim consagrou igualmente muitas páginas decariz doutrinário-justificativo à fusão dos contrários, partindo invaria-velmente do valor absoluto da razão científica e da consciência da mo-ral. Insistiu no princípio de que qualquer projecto educativo para apre-

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sentar-se como moderno teria de traduzir autonomia pessoal por domí-nio de si. Durkheim pretendeu justificar a tese de que só o trabalho desubjectivação das regras da moral seria uma base segura para uma vidasocial saudável. Teve, por isso, necessidade de unificar as grandes opo-sições binárias que qualquer relação educativa suscita. Liberdade e au-toridade, constrangimento e consentimento, devoção e sacrifício, razãoe consciência não eram para si territórios de modo algum separáveis. Oseu longo artigo “Éducation” encerra com um parágrafo que sintetizatodo um programa de power-knowledge e de promoção dos regimes deself-government que a escola do século XX iria efectivamenteuniversalizar. Reproduzo-o integralmente:

On a quelquefois opposé la liberté et l’autorité comme si ceux deux facteurs

de l’éducation se contredisaient et se limitaient l’un l’autre. Mais cette

opposition est factice. En réalité, ces deux termes s’impliquent loin de

s’exclure. La liberté est fille de la liberté bien entendue. Car être libre, ce

n’est pas faire ce qui plait; c’est être maître de soi, c’est savoir agir par raison

et faire son devoir. Or c’est justement à doter l’enfant de cette maîtrise de soi

que l’autorité du maître doit être employée. L’autorité du maître n’est qu’un

aspect de l’autorité du devoir et de la raison. L’enfant doit donc être exercé à

la reconnaître dans la parole de l’éducateur et à en subir l’ascendant; c’est à

cette condition qu’il saura plus tard la retrouver dans sa conscience et y déferer

[Durkheim, 1911a, p. 536].

As faculdades da alma e a individualizaçãopsicológica do aluno

A concepção de relação educativa de tipo moderno estabelece umnexo causal entre o conhecimento particularizado das tendências, hábi-tos, desejos ou emoções dos alunos e a moldagem da sua sensibilidademoral. Foi a tentativa de viabilizar essa tecnologia socializadora, decarácter disciplinar, que esteve na origem da descoberta do aluno e doseu tratamento diferenciado a partir do último quartel do século XIX. Sea personalidade individual se havia tornado o elemento central da cultu-

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ra intelectual desse tempo, da política à economia até à arte, era tambémnecessário que o educador passasse a ter em conta o germe de indivi-dualidade que se escondia em cada criança. Em vez de tratar a popula-ção escolar de forma uniforme e invariável, o professor moderno deve-ria variar as suas metodologias “suivant les tempéraments et la tournurede chaque intelligence”. E, para que as práticas educativas se acomo-dassem com justeza à diversidade de casos particulares, “il faut savoir àquoi elles tendent, quelles sont les raisons des différents procédés”, no-tava Durkheim no seu outro artigo “Pédagogie” (1911b, p. 1.541).

Era sobretudo a psicologia infantil que devia responder à necessi-dade de conhecer as três faculdades da alma laica – “sensibilidade”,“vontade” e “inteligência” –, porque ela se obrigava a reconhecer a di-versidade dos caracteres individuais. Henri Marion fornece-nos, de novo,uma adequada definição da disciplina: “psychologie veut dire sciencede l’âme: le domaine de la psychologie varie selon la façon d’entendrel’âme, et selon ce qu’on croit pouvoir connaître d’elle scientifiquement”(Marion, 1882, p. 1.761).

A primeira faculdade era a que davam mais importância e era mes-mo vista como fundo comum a todos os fenómenos da moral. Seria pelainteligência que devia começar o todo o educador. Quanto mais se de-senvolvessem os poderes da inteligência mais se iluminariam as per-cepções da consciência do dever. Numa inteligência bem organizada,todos os outros segmentos da alma teriam também a uma posição defi-nida. O objectivo era mostrar que o trabalho intelectual da memóriafortaleceria a identidade individual: “chaque nouveau fait de conscienceest un élément nouveu de l’idée du moi” (Compayré, 1882b, p. 1.555).Ora, a parte da inteligência que teria por objecto o eu, e respectivo sen-timento da personalidade, seria trabalhada pela educação escolar pormeio da fortificação da reflexão psicológica, a única, aliás, capaz deassegurar a cada um dos alunos a posse e o governo de si mesmo. Odiscurso psicopedagógico reclamou a possibilidade de uma metodolo-gia de ensino de tipo naturalista. Toda a lógica em que se estruturava otrabalho escolar – a constante repetição de processos aliada a uma pro-gressão na aprendizagem por níveis de complexidade e abstracção cres-centes – surgia ali já como a reprodução das regras observáveis na pró-

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pria natureza, visando, também por isso, proporcionar o pleno encontrodo aluno consigo próprio. Demonstrava-se, assim, que a razão estariainscrita no mundo das coisas e era tão natural como elas. Compayréexplicava:

l’action pédagogique dans les facultés de l’âme doit se rapprocher le plus

possible de l’ordre de la nature; par là on favorisera l’évolution qui les conduit

du concret à l’abstrait, de la vie instinctive à la vie réfléchie; par là aussi on

donnera aux facultés une activité propre, un élan et une énergie qui lui

permettront de se développer elles-mêmes de plus en plus et de tendre à la

perfection pendant toute la vie, afin qu’à l’éducation de l’école succède une

éducation personnelle, une éducation de soi-même qui convient à touts les

âges [Compayré, 1882a, p. 986].

A faculdade da sensibilidade seria tratada por intermédio de pro-cessos idênticos de progressão racional. Explicava-se, por exemplo, quenão se poderia exigir a um menino que amasse a pátria sem que primei-ro fosse informado da sua existência e da importância histórica para avida em sociedade, ou que praticasse a caridade sem antes estar emcondições de perceber o que seria o amor pelos homens. Mas, ao contrá-rio do que sucedia com a faculdade anterior, aqui o problema não estavaapenas em desenvolver e ampliar. Os sentimentos de elevada nobreza,para enraizarem-se, supunham que outros seus oponentes fossem emsimultâneo regulados e vigiados, moderados e contidos, senão mesmoaté proibidos. Se era fácil celebrar a força criativa da imaginação, paten-te em muitas criações culturais que a escola deveria promover, era tam-bém imperioso denunciar os perigos, os erros e as ilusões perniciosasque muitas vezes se escondiam no seu interior. Importaria que a criançapercebesse que a razão deveria prevalecer sobre o coração, que eram asfantasias descontroladas deste que a podiam desviar do caminho da ver-dade. O mundo das pulsões passou, nestes termos, a ser definido comopuramente ficcional, enquanto o da razão se identificou inteiramentecom o princípio da realidade. Então, ao longo do ciclo escolar, à medidaque os anos se sucedessem, primeiro no espírito da criança e depois nodo jovem adolescente, deveria operar-se naturalmente a passagem das

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modalidades inferiores de um (i) “amor-próprio”, apresentado comoegoísta, para outro tipo de inclinações definidas como (ii) “altruístas” –e ilustradas já com casos de patriotismo e de sacrifício pelo próximo oumesmo até pela humanidade –, processo este que terminaria com airrupção de um (iii) “amor puramente abstracto” pelos valores do verda-deiro, do belo e do bem. A questão maior da educação popular seria,portanto, a da gradual e consolidada substituição da sensação pela idéia.“Le développement de la sensibilité”, sentenciava Compayré, “est doncintimement lié au progrès de l’intelligence” (1885, p. 183). Não haveriavirtude que não aquela que tendesse para um amor da virtude em si. Asquimeras da imaginação ardente das crianças e dos jovens seriam conti-das por intermédio de formas de conhecimento positivo, de uma refle-xão judiciosa e de exemplos sãos.

De difícil, a tarefa moralizadora passava a delicada quando aplica-da à terceira faculdade, a da vontade. Importaria que a escola conse-guisse, numa outra aproximação à natureza, que a vontade superasse odesejo. Este identificava-se com uma solicitação exterior ao sujeito,enquanto aquela seria o resultado de uma resolução livre e como talassumida. Mas nem mesmo assim a vontade se poderia estruturar contraa espontaneidade infantil, uma vez que era aí que residia a marca distin-tiva e a independência de cada criança que era necessário preservar. EliePécaut atacou esse problema melindroso sem medo. Não teve proble-mas em afirmar que “l’obéissance est la condition première etindispensable de toute éducation” (Pécaut, 1887, pp. 2.121-2.127). Tra-duzia inclusive a relação educativa por “contrainte spirituelle, dominationmorale, empire bienfaisant, mais absolu, noble et sacré dans ses fins,mais inflexible, de la science sur l’ignorance, ou, pour tout dire, de laforce sur la faiblesse” (idem, ibidem). E essa clara consciência acercada ortopedia das almas não impedia o autor de tratar, igualmente, a ques-tão da possibilidade da autonomia e da vontade livre. Pécaut descreveucuidadosamente os dois paradigmas educacionais em presença à época.O primeiro, a que chamou teocrático, fundava-se no princípio de quetoda a natureza humana seria má, não podendo por isso a pessoa ficarentregue ao seu próprio génio e arbítrio. Todo o esforço conjugado deinfluências, da instrução à educação, da moral à opinião, passando do

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costume ao uso reiterado da força, provara historicamente ser insufi-ciente ante a gigantesca tarefa de “réduire à l’impuissance la spontanéitéde l’homme, qui n’est qu’erreur et corruption, et pour cela destituerl’homme du gouvernement de soi et le remettre en des mains sûres, à laseule tutrice digne de foi, à la puissance qui tient de source divine sonautorité terrestre” (idem, ibidem). O espírito autoritário, alicerçado poruma tradição milenar, procurara o apoio para a obra civilizadora fora dacriança, sendo, nessa exacta medida, absolutamente condenável. O seuerro estivera em não querer nunca compreender que nada poderá salvaro homem senão unicamente o próprio homem. O segundo modelo, deinspiração rousseauniana e filho das Luzes e do Progresso, crente nabondade original da natureza humana, procurava, ao contrário, estimu-lar e fortificar todos os instintos de independência e direitos inerentes àrealização da pessoa. Era essa a sua grande promessa. Pécaut concorda-va com o modelo liberal quando ele preceituava que o mais importante,na tarefa civilizadora de humanização da criança, era que se contassecom a criança ela mesma. Tudo estaria em conseguir-se uma obediênciaconsentida e dócil, mas que não colidisse com a energia pessoal de cadaum dos educandos. A verdade, a justiça, a bondade, o dever e o sacrifí-cio seriam ensinados como correspondendo a uma lei inscrita na pró-pria consciência da criança (Pécaut, 1887, pp. 2.121-2.123).

O dispositivo disciplinar circunscrito pelapedagogia moderna

As práticas disciplinares deveriam sofrer uma mutação completatendo em conta essa idealização da criança e da relação educativa. Arecusa das modalidades repressivas no contexto escolar seria, portanto,a última medida tendente a impor como natural a ideia civilizadora deque a um estímulo de fora corresponderia um movimento voluntário dedentro. O dispositivo normalizador moderno ergueu-se, de facto, sobrea grande idéia da disciplina espontânea. Os pedagogos modernos puse-ram-se de acordo neste ponto: “le système qui convient le mieux à l’enfantest celui qui lui apprendra le mieux à se contrôler lui-même” (Buisson,

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1882a, p. 716). Esse princípio pôde ser traduzido em várias máximas.Desde logo, e no plano intelectual, o aluno seria levado a valorizar oestudo e a reflectir por si próprio. Daí os constantes apelos ao trabalhopessoal, livre e voluntário. Depois, no plano moral, o velho sistema,todo ele estranho ao aluno, da recompensa material-punição corporal,deveria ser trocado por estratégias da responsabilização directa: os alu-nos cumpririam os vários ciclos da escolarização a ouvir que a expe-riência do bem e do mal, da dor e da alegria seriam sempre consequênciasnaturais dos actos por si individualmente praticados. A cada aluno deviaser dito que a única recompensa que poderia obter era a da satisfaçãodas suas inclinações mais elevadas. Na verdade, a pedagogia modernasugeria que a escola apenas fornecesse a garantia antecipada de quecada um seria capaz de se vencer a si próprio.

Importa, ainda, verificar que o modelo autoritário foi identificadopor esses pedagogos como essencialmente ligado a fórmulas regula-mentares inspiradas directamente da disciplina militar e de uma lógicade tipo criminal. As prerrogativas punitivas e compensatórias que omestre-escola utilizava, desde a Antiguidade clássica, aplicavam-se, emlarguíssima medida, a sancionar ou castigar a falta de conhecimentos.Diziam, pois, respeito apenas à instrução e não à educação do aluno.Na sua materialidade absurda, a violência sobre a criança passou a servista por essa geração progressista como artificial e sem qualquer valorsobre a conduta. A dinâmica liberal do governo de si mesmo exigia, nocampo educativo, um dispositivo bem mais complexo que agisse sobreo conjunto das inclinações comportamentais e não unicamente sobre omedo. Mas determinar o fim do castigo corporal e da humilhação nãosignificava uma restrição ou uma economia de meios. Pelo contrário,tratava-se de ampliar e diversificar, levando a disciplina o mais longepossível, isto é, exactamente até aquele ponto em que ela não fosse maisnecessária. Compayré confessava-o claramente: “son but, en quelquesorte, est de se rendre inutile” (1885, p. 457).

A disciplina não podia viver sem uma cuidada e completa encena-ção dos espaços abertos. A afirmação é muitíssimo subtil e cheia dealcance histórico: “Il n’y a pas d’autre secret pour appeler l’esprit à laliberté que de l’emprisonner d’abord dans des sensations continues et

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forcées” (Compayré, 1885, p. 97). Nesses termos, o novo aparato disci-plinar visava criar as estruturas objectivas de comportamento, mas atra-vés de uma disposição à prática que atendia sobretudo às situaçõesinvoluntárias e às movimentações multidireccionais nos diversos locaisem que decorresse a acção. Foi nesse ponto que se passou a centrar oessencial do discurso da inovação educativa em finais do século XIX.No artigo “ Éducation”, que escreveu para o seu dicionário (1882b),Buisson tomava-se já inteiramente dessa matriz de origem psi. As facul-dades da alma e a própria liberdade da criança eram, também para ele,desenvolvidas pelo instrumento mais poderoso que a educação tinha aoseu dispor, o hábito. As virtudes e os vícios seriam disposições corren-tes em qualquer espírito; a vontade era, porém, filha exclusiva do hábi-to. Buisson, e os restantes companheiros, afirmavam que a regularida-de, a repetição e a disciplina, em horários devidamente escalonados emciclos semanais, acabariam por configurar, com o desenrolar do tempo,todo um quadro de existência. A aprendizagem dos conteúdos curricu-lares corria em paralelo com um trabalho de aquisição de valores mo-rais cuja repetição quotidiana os transformaria em energia voluntária. Aconformação ao dever far-se-ia sentir como um “perpétuel et douxemprisonnement” (Buisson, 1882b, p. 809). No final da escolaridade, ohábito de praticar o bem devia transformar-se numa segunda natureza.Identificar-se-ia já com a própria subjectividade (Carrau, 1880, p. 948).

Não é demais afirmar que a descoberta da criança – ou a regra daindividualização – decorreu directamente desse projecto de poder. FoiGaillard (1882) quem, ainda no Dictionnaire de pédagogie, se empe-nhou em mostrar as vantagens de um estudo diferenciado dos caracteresindividuais. O seu artigo intitulava-se, nada por acaso, “Disciplina es-colar”. Depois de afirmar que a ciência psicológica provara a impossi-bilidade de existirem duas almas gémeas, Gaillard fez depender o co-nhecimento da diversidade individual de uma vigilância panóptica sobreo aluno – na sala de aula, no recreio, no caminho que a criança percorriaaté casa e por que não até no interior desta –, provando assim que, umpor um e separadamente, todos os alunos podiam ser governados. Oseu relato deve ser lido como expressão remota dos métodos que infor-mariam o dispositivo disciplinar moderno, aquele que faz observar sis-

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tematicamente e em profundidade para não ter nunca necessidade deagir directamente sobre os corpos e as consciências. As consideraçõesde Gaillard terminam com um elenco de conselhos práticos ao professordiante dos seus alunos-problema. Era sobre eles que se fixavam já asbaterias do poder psi.

Touts ne peuvent donc être traités de la même manière. Les uns opposent à

nos efforts une légèreté qui nos semble invincible; les autres, une insouciance

désespérante; chez plusieurs, il faut abattre l’orgueil; quelques-uns sont lourds

et apathiques, il faut les aiguillonner sans cesse et réveiller leur attention; les

timides ont besoin d’ encouragement, les ardents et les impétueux doivent

être calmés sans cesse. Tels se laissent toujours conduire par les condisciples,

n’ayant aucune initiative, tels autres toujours commandent et fond des petits

despotes [...] Le tableau serait long des caractères divers que le maître peut

rencontrer et des procédés appropriés qu’il doit employer pour les conduire

et surtout pour essayer de les modifier. Car des caractères divers, le maître

les connaîtra bientôt s’il veut prendre la peine d’observer les enfants, non

seulement en classe, où ils se dissimulent plus ou moins, mais au dehors et

pendent les récréations, alors que libres de toute contrainte, ils se montrent

tels qu’ils sont; il les connaîtra également par les relations qu’il entretiendra

avec les familles [...] Il suffit toutefois de réfléchir un instant pour comprendre

tout le profit qu’il peut tirer de cette étude; elle lui permettra d’éviter bien des

fautes. On le verra jamais, par exemple, entrer en lutte ouverte avec l’enfant

dont il connaît l’opiniâtreté; le mauvais exemple de sa résistance serait trop

funeste à l’ordre général. Il fermera les yeux, trois fois sur quatre, sur les

peccadilles de l’enfant léger qui se dissipe et se dérange, sans presque s’en

apercevoir; il gardera les admonestations vives pour les apathiques, sachant

bien qu’elles profiteront à toute la classe. Les paroles encourageantes seront

surtout réservées aux timides; les éloges un peut vifs ne seront jamais pour les

orgueilleux. A ceux qui ne savent qu’obéir, il donnera quelquefois le droit de

commander; à ceux qui manquent d’initiative, il saura confier de temps à autres

petites missions faciles qui les enhardissent et les obligent à tirer quelque chose

leur propre fonds [...] [Le maître] prendra les enfants tels qu’ils sont et il

s’efforcera de les rendre tels qu’ils devraient être. La discipline qu’il aura ainsi

établie leur aura enseigné à se vaincre eux-mêmes [Gaillard, 1882, p. 719].

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Conclusão

Sabemos que os discursos à volta do problema moral e a correspon-dente criação de tecnologias disciplinares conheceram uma significati-va aceleração e complexificação na modernidade. Também a pedagogiaquis traduzir esse programa político, enquanto reivindicou para si o es-tatuto de ciência positiva. A formação discursiva que circunscreveu, apartir do último quartel do século XIX, devolve-nos, sem dúvida, a idéiade que a liberdade seria o grande acelerador da autoridade e da discipli-na. As considerações psicopedagógicas acerca da estrutura interna daalma e do jogo de contrastes que marcariam as paixões infanto-juvenisnão eram mais do que a transferência, para o campo educativo, dos inte-resses e investimentos da subjectivação governamentalizada. Recusan-do qualquer tipo de imposição moral externa à criança, que ela não pu-desse por si mesma compreender e aceitar livremente, a psicopedagogiaemergente no último quartel de oitocentos procurou somar argumentosde natureza científica susceptíveis de demonstrar legitimamente que oespírito de disciplina corresponderia à moderação dos desejos e este,por sua vez, a um domínio de si próprio: De facto, para esse conjunto deprimeiros pedagogos estava já muito claro que cada singularidade sedeveria transformar num ponto de passagem directo de princípios e for-ças de poder. Na sua perspectiva, a modernidade passou a ser caracteri-zada pelo permanente esforço de governar sem governar, de estender opoder até aos limites mais distantes, isto é, até às escolhas de sujeitosautónomos nas suas decisões.

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Endereço para correspondência:Jorge Ramos do Ó

Faculdade de Psicologia e de

Ciências da Educação

da Universidade de Lisboa

Alameda da Universidade

1649-013 – Lisboa-Portugal

E-mail: [email protected]

Recebido em: 5 maio 2006Aprovado em: 10 maio 2006

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Aspectos históricos da cadeirade sociologia nos estudossecundários (1892-1925)

Eva Maria S. Alves*

Patrícia Rosalba Salvador Moura Costa**

Resumo:Qual a gênese da cadeira de sociologia? Com que finalidade esses estudos foram alocadosno ensino secundário? Quais os conteúdos abordados? Quais os conhecimentos exigi-dos para os candidatos à professor dessa cadeira? Partindo de tais indagações, o presen-te artigo tem como foco central investigar a estrutura interna, o núcleo da disciplina,finalidades e funções da institucionalização da sociologia nos estudos secundários emSergipe, desde os primeiros sinais, no ano de 1892, ao ser criada com a denominação de“sociologia, moral, noções de economia política e direito pátrio”, até o ano de 1925,quando se tornou uma cadeira autônoma. As fontes documentais utilizadas prioritaria-mente para análise são os textos normativos, bem como os documentos produzidos peloAtheneu Sergipense.

sociologia; estudos secundários; história das disciplinas; Atheneu Sergipense.

* Doutora em educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), mestre em educação e licenciada em matemática pela Universidade Federalde Sergipe (UFS). É professora do Programa de Pós-Graduação em Educação e doDepartamento de Educação da UFS.

** Socióloga, mestre em sociologia e professora substituta do Departamento de Educa-ção da Universidade Federal de Sergipe (UFS).

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Historical aspects of the chairof sociology in the secondary

studies (1892-1925)

Eva Maria S. Alves*

Patrícia Rosalba Salvador Moura Costa**

Abstract:What’s the genesis of the chair of sociology? What’s the objective of its inclusion insecondary studies? What are its contents? What are the knowledges demanded for thecandidates to teach that chair? Starting form these inquiries, this article has as a centralfocus the chair of sociology, aiming to expose the historical traces of its institutionalizationin the secondary studies of Sergipe, since its first signs, in 1892, when it was createdunder the name of “sociologia, moral, noções de economia política e direito pátrio”(sociology, moral, notions of political economy and national law), until 1925, when itbecame an autonomous chair. The documental sources used were primarily legislativetexts, as well as documents produced by the Atheneu Sergipense.

sociology; secondary studies; history of disciplines; Atheneu Sergipense.

* Doutora em educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), mestre em educação e licenciada em matemática pela Universidade Federalde Sergipe (UFS). É professora do Programa de Pós-Graduação em Educação e doDepartamento de Educação da UFS.

** Socióloga, mestre em sociologia e professora substituta do Departamento de Educa-ção da Universidade Federal de Sergipe (UFS).

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O cenário inicial da sociologia

O estudo e a consolidação das ciências humanas ganham fôlego,força e ares novos a partir do século XIX, quando surge a necessidadede explicar o comportamento humano e a sociedade pelos critérios pau-tados na razão e, conseqüentemente, no conhecimento científico. A so-ciologia é fruto desse contexto e emerge em um cenário social e políticode profundas transformações introduzidas, a princípio, no continenteeuropeu, pelas duas grandes revoluções: a Francesa e a Industrial. Taisacontecimentos possibilitaram uma série de modificações econômicas,políticas e sociais que influenciaram e transformaram, sobremaneira, aestrutura da sociedade e o modo de vida que as pessoas haviam mantidopor muitos anos, provocando a necessidade de desenvolver novas com-preensões e explicações do mundo social, na medida em que houve umrompimento com as formas tradicionais, motivando a introdução e con-cretização de um novo modelo societário alicerçado nas bases da mo-dernidade.

O quadro de crises que se estabeleceu a partir do novo paradigmaexigia respostas urgentes. A sociedade tornou-se um problema que ti-nha de ser explicado e solucionado. Os pensadores, nesse momento pau-tados em concepções positivistas, concentravam suas reflexões no en-tendimento dos problemas causados pelas mudanças sociais e chegavamà conclusão de que era necessário restaurar a ordem social.

Augusto Comte (1798-1857), tido como um dos fundadores da so-ciologia, referia-se à nova ciência como física social e defendia que aorganização da sociedade e a manutenção da ordem eram fundamentaispara o (re)estabelecimento da moralidade e civilidade. A relação entreconteúdos conservadores e reformistas foi uma característica marcantedo pensamento comtiano e influenciou, significativamente, a forma comoa sociologia foi disseminada e incorporada por outras sociedades. É im-portante destacar que as idéias de Comte, da mesma forma que as deoutros estudiosos da época, foram fundamentais para o estabelecimentodas bases teóricas da sociologia e contribuíram para o desenvolvimentoe para a institucionalização dessa disciplina nos moldes e objetivos quehoje possui.

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De acordo com Giddens (2005), a sociologia pode ser identificadacomo o estudo sistemático das sociedades humanas, dando ênfase espe-cial aos sistemas modernos e industrializados. Ela surge como uma ten-tativa de entender as mudanças abrangentes que ocorreram nas socieda-des. Tais mudanças, além de atingir a amplitude da sociedade, afetaramsignificativamente as formas mais íntimas e pessoais, características davida das pessoas. Nesse sentido, a sociologia possibilitou olhares ino-vadores sobre as questões que envolvem a sociedade, tais como: a di-versidade sociocultural, a divisão do trabalho, a produção econômica eos valores morais, entre outros.

O cenário de desenvolvimento da sociologia no Brasil começa a serdesenhado no final do século XIX. As mudanças sociais, políticas eeconômicas que ocorreram nesse período se apoiaram nas idéias e trans-formações advindas das sociedades européias, principalmente a france-sa, e contribuíram efetivamente para a introdução e consolidação dessadisciplina. De acordo com Tomazini e Guimarães (2004), a sociologiaaqui é recebida como “novidade” intelectual, surgindo no momento emque o país reclama por uma identidade nacional. As referidas autoraschamam ainda a atenção para o fato de que foram os educadores osprimeiros que procuraram enfrentar as necessidades de análise da novasituação de racionalidade da sociedade brasileira e a propor reformasque ajustassem o ensino do país à ordem social democrática.

Santos (2004) aponta três momentos distintos que envolveram asreformas educacionais brasileiras, direcionando o olhar para a discipli-na de sociologia: período da institucionalização da disciplina no ensinosecundário (1891-1941); período de ausência da sociologia como disci-plina obrigatória (1941-1981) e período de sua reinserção gradativa noensino médio (1982-2001). Declara ainda, o autor, que BenjaminConstant Botelho de Magalhães contribuiu para que a sociologia fosseincluída nos cursos superiores e secundários com a Reforma de 1891.

Apoiando-se em Machado, Moraes (2003) indica uma outra perio-dização, colocando que no período de 1890 a 1897, com a ReformaBenjamin Constant, a disciplina de sociologia é incluída como obriga-tória nos cursos preparatórios, porém sem essa ordem ter sido posta emprática. É importante registrar que as fontes analisadas nessa pesquisa

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indicam a presença dos conteúdos de ensino da sociologia no AtheneuSergipense desse período, fato que demonstra que a província de Sergipeestava atenta aos debates, questão que pode estar relacionada à presençade intelectuais importantíssimos no território sergipano, tais como TobiasBarreto e Sílvio Romero.

No entanto, em Sergipe, a sociologia não é introduzida como disci-plina específica. Pelo contrário, a cadeira que se institui no AtheneuSergipense no século XIX foi intitulada de “sociologia, moral, noçõesde economia política e direito pátrio”. Como veremos adiante, os con-teúdos dessa disciplina voltam-se para a civilidade, a moralidade, o res-peito à ordem, o civismo, a responsabilidade moral, a política-social, aformas de governo, a importância da família e do Estado, além de mui-tas noções de direito, ou seja, pautam-se nas idéias da ciência positivis-ta, principalmente na instauração da razão para a busca da ordem social.

A escola secundária e a história das disciplinasescolares

A escola secundária brasileira do século XIX surge fundamental-mente pela força das humanidades, pelo caráter de preparatória aos cur-sos superiores e pelo atendimento às necessidades da cultura de elite. Acategoria de equiparação fazia parte, conforme acentua Gasparello(2003), das diferentes estratégias de controle e normatização do ensinosecundário, consolidando o Colégio Pedro II, na Corte, como padrão doscolégios secundários particulares e oficiais que surgiam nas províncias.

As modificações introduzidas ao longo do século XIX e início doXX fizeram parte do

Processo de institucionalização da forma escolar do secundário no Brasil e

buscaram responder ao desafio das novas exigências em relação a esse ensi-

no, e que em grande parte opunham-se aos próprios alicerces que fundamen-

taram o surgimento desse tipo de ensino: a força das humanidades, o caráter

de preparatórios aos cursos superiores e o atendimento às necessidades de

uma cultura de elite [Gasparello, 2003, p. 1].

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A preocupação em Sergipe, como em outras províncias do Brasil noséculo XIX, concentrava-se na criação de uma instituição que pudesseagregar as novas gerações de lideranças políticas e demais membros daburocracia, reunindo em um só local as matérias exigidas nos examespreparatórios para o ingresso nas Academias do Império, de modo queseus filhos não mais necessitassem sair dos limites do seu “torrão natal” –nas palavras de um relatório do período – para estudar em outros locais.

Com esse objetivo e após anteriores tentativas, foi criado (peloRegulamento orgânico da instrução pública de 24 de outubro de 1870,assinado pelo presidente da província de Sergipe, o coronel FranciscoJosé Cardoso Júnior) o Atheneu Sergipense, oferecendo os cursos dehumanidades com quatro anos de duração e o curso normal com doisanos. Investigando os planos de estudos da primeira instituição oficialde estudos secundários em Sergipe, Alves (2005) buscou responder ques-tões relativas à história das disciplinas escolares. Para este artigo desta-camos como objeto, a cadeira de “sociologia, moral, noções de econo-mia política e direito pátrio”.

Qual a gênese da cadeira de sociologia nos estudos secundários emSergipe? Com que finalidade esses estudos foram alocados no ensinosecundário? Quais os conteúdos abordados ao ministrar a cadeira? Comofuncionou essa cadeira – professores, compêndios, avaliação? Partindode tais indagações é possível investigar nas fontes documentaisselecionadas a estrutura interna, o núcleo da disciplina, sua configura-ção original, enfim, a gênese, a finalidade e a função da sociologia nosestudos secundários em Sergipe.

Em seu texto, marco para a pesquisa no campo da história das dis-ciplinas escolares, André Chervel (1990) aponta um programa de pes-quisas pautado na busca de respostas às questões anteriormente postas,chamando-nos a atenção para não nos basearmos unicamente nos textosoficiais, mas em uma outra literatura abundantemente produzida pelainstituição que põe em ação o desenvolvimento da disciplina.

Assim, para alcançar os objetivos propostos de modo a expor tra-ços históricos da institucionalização da cadeira de sociologia nos estu-dos secundários em Sergipe, foram investigadas fontes documentais,entendendo que:

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As fontes não falam per se. São vestígios, testemunhas que respondem –

como podem e por um número limitado de fatos – às perguntas que lhe são

apresentadas. A fonte é uma construção do pesquisador, isto é, um reconhe-

cimento que se constitui em uma denominação e em uma atribuição de senti-

do; é uma parte da operação historiográfica. [...] A fonte é uma ponte, um

veículo, uma testemunha, um lugar de verificação, um elemento capaz de

propiciar conhecimentos acertados sobre o passado. As fontes permitem en-

contrar e reconhecer: encontrar materialmente e reconhecer culturalmente a

intencionalidade inerente ao seu processo de produção. Para encontrar é ne-

cessário procurar e estar disponível ao encontro: não basta olhar, é necessário

ver. Para reconhecer é necessário atribuir significado, isto é, ler e indicar os

signos e os vestígios como sinais [Ragazzini, 2001, p. 14, grifos do original].

Segundo Chervel (1990), a história das disciplinas escolares reno-va os problemas tradicionais, colocando os conteúdos do ensino no cen-tro de suas preocupações. Ele declara:

Se é verdade que a sociedade impõe à escola suas finalidades, estando a

cargo dessa última buscar naquela apoio para criar suas próprias disciplinas,

há toda razão em pensar que é ao redor dessas finalidades que se elaboram as

políticas educacionais, os programas e os planos de estudo, e que se realizam

a construção e a transformação históricas da escola [Chervel, 1990, p. 219].

Assim, como primeiro requisito da educação moderna, como baseda reorganização social, defende Júlio Ribeiro (1908) a universalidadede conhecimentos:

O homem cientificamente preparado deve conhecer, ao menos elementar-

mente, as mathematicas, a physico-khimica, a bio-physiologia, a psykhologia-

moral. Deve ter boas noções de arithmetica, de algebra, de geometria, de

mekhanica, de cosmologia, de astronomia sideral e planetaria, de geodesia,

de geographia physica, de geologia, de mineralogia, de paleontologia, de

botanica, de zoologia, de anatomia, de histologia, de pathologia, de psyhologia,

de moral, de anthropologia, de ethnologia, de linguistica, de historia e

geographia-historia, de industria, de arte, de litteratura, de sociologia, de le-

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gislação, de politica. E mais, deve ter estudos classicos solidos [Julio Ribei-

ro, 1908 em Morse, 1970, p. 212].

Nesse plano de Júlio Ribeiro para universalizar os conhecimentosdo homem cientificamente preparado, há lugar para os estudos de so-ciologia, de moral, de legislação, de política, ampliando sobremaneiraos saberes. Autores como Santos (2004), Moraes (2003), Tomazini eGuimarães (2004) têm voltado a atenção na tentativa de melhor respon-der qual a finalidade da cadeira de sociologia para os estudos secundá-rios no Brasil, mesmo sabendo das dificuldades, especificidades e fron-teiras que orientam o estudo de qualquer disciplina. Goodson (1998), aoindagar por que estudar as disciplinas escolares, aponta como aspectocrucial o estudo da forma e do conteúdo das disciplinas, situando-senuma perspectiva histórica.

Século XIX: a inclusão da sociologia no AtheneuSergipense

Em Sergipe, ao reorganizar o ensino público, dividido em primário,normal e secundário, o presidente José Calazans assinou a lei n. 35, de18 de agosto de 1892, decretando que houvesse, entre as 12 cadeirasofertadas no Atheneu Sergipense, a de “sociologia, moral, noções deeconomia política e direito pátrio” (art. 29), alocada no 6o e último anodo curso de humanidades. As outras cadeiras assim se denominavam:português e literatura nacional; língua latina; língua francesa; línguainglesa; língua alemã; aritmética e álgebra; geometria e trigonometria;contabilidade e escrituração mercantil extensiva às repartições da fa-zenda; ciências físicas e naturais; geografia e cosmografia; história uni-versal e do Brasil. Orientava ainda a legislação que o ensino público emqualquer estabelecimento do Estado deveria ser “quanto possivel intui-tivo e practico, marchando sempre do simples para o composto, do par-ticular para o geral, do concreto para o abstrato, do definido para o inde-finido” (art. 3o, decreto n. 45, de 19 de janeiro de 1893).

Dessa forma, os estudos feitos no Atheneu Sergipense tinham comofinalidade proporcionar à mocidade a instrução secundária e fundamen-

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tal, necessária e suficiente para a matrícula nos cursos superiores daRepública, como em geral para o bom desempenho das funções doscidadãos na vida social.

De acordo com as finalidades do Atheneu Sergipense e as cadeiraslá ofertadas, direcionando a atenção para os sinais deixados em outrasdocumentações, observamos as Atas da Congregação para percebermosos indícios e vestígios (Ginzburg, 2001) do percurso dos estudos desociologia. Em 8 de fevereiro de 1893, a Congregação apresentou oprograma para os cursos de humanidades e normal. No sexto ano docurso de humanidades as aulas seriam de: português: noções de literatu-ra portuguesa, breve notícia sobre a história da língua, desde o séculoXVI; ciências físicas e naturais: física e química, noções de mineralo-gia, geologia, zoologia, higiene e biologia, principais noções do assun-to; história: história de Sergipe, desde sua colonização; sociologia emoral: principais noções sobre o assunto, explicação da constituição daRepública brasileira e do estado de Sergipe.

A cadeira de sociologia e moral seria ministrada na 3a sala, às ter-ças, quartas, quintas, sextas e sábados, no último horário, das 13 às 14horas, perfazendo um total de cinco horas semanais. A distinção entre ascadeiras pode ser observada em relação à carga horária disponibilizadapara cada uma delas. Sociologia, por exemplo, apresenta uma cargahorária superior aos estudos de português, duas horas semanais. ciên-cias físicas e naturais, 3 horas semanais e história de Sergipe, 2 horassemanais, porém havia história do Brasil no 5o ano.

Uma interpretação possível para a localização das ciências físicas enaturais e da sociologia e moral serem alocadas no último ano do cursopode ter relação com os exames preparatórios, uma vez que, quando osalunos se sentiam aptos para prestar tais exames, não cursavam todas ascadeiras, mas sim aquelas cujos conteúdos eram neles exigidos1.

1. Os exames preparatórios foram instituídos no século XIX para serem prestados porcandidatos aos estudos superiores, “numa época em que não havia cursos secundá-rios com modelo definido em número de séries, planos de estudos, sistemas deaulas e exames para todos os estabelecimentos provinciais e particulares”(Gasparello, 2002, p. 17).

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A preocupação em definir termos utilizados no cotidiano escolar éperceptível no caso do professor da cadeira de moral e instrução cívica,Francisco Monteiro Filho, que buscou no Dicionário universal de edu-cação cívica, de E. M. Compagne, a definição de programa, colocando-a como epígrafe2. Assim transcreve o professor:

A expressão programa applicada ás coisas do ensino pode ser tomada em

dois sentidos: uma delas serve para designar simplismente a enumeração das

materias de ensino; mas geralmente, porem designa a exposição minunciosa

do desenvolvimento com que deve ser ensinada cada disciplina [Ata da Con-

gregação do Atheneu Sergipense, 28 de fevereiro de 1913].

Dessa feita, o programa pode ser entendido como uma listagem dasmatérias lecionadas, ou, como opta o professor e a nossa análise, comoexposição minuciosa dos conteúdos a serem ensinados em cada disci-plina.

Dentre os componentes de uma disciplina escolar, Chervel (1990)destaca a importância de se estudar os conteúdos explícitos, o conjuntode conteúdos de conhecimentos3. Observa-se assim que a estrutura in-terna, o eixo da cadeira examinada é a Constituição brasileira e de Sergipe.Há que se destacar ainda a atenção dirigida aos temas sergipanos, pre-sente não só na cadeira de sociologia e moral, mas também em geogra-fia e história, como demonstrou Alves (2005).

No ano de 1897, o presidente Martinho Garcez, pelo decreto n.231, de 9 de julho, apregoava que a sociologia deveria ser ministrada no7o e último ano do curso integral, abordando no primeiro semestre ostemas: noções de sociologia moral e direito pátrio, com exames finais, e

2. Francisco Monteiro Filho nasceu a 13 de março de 1866 em Itabaiana-SE. Advoga-do provisionado, foi deputado estadual nas legislaturas de 1903 a 1909 e de 1912 a1913, não completando o último mandato em virtude da nomeação para professorvitalício de moral e instrução cívica do Atheneu Sergipense (cf. Guaraná, 1925).

3. Um outro constituinte necessário ao historiador das disciplinas escolares são osexercícios feitos pelos alunos por determinação do professor, mas que na pesquisanão foram localizados.

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que no segundo semestre os alunos deveriam prestar o exame de madu-reza (art. 108)4. No ano seguinte, na organização do horário das aulas doAtheneu Sergipense, a denominação da cadeira analisada passou a ser“sociologia”, com aulas ministradas das 12 às 13 horas, sem designar osdias da semana (cf. Ata da Congregação do Atheneu Sergipense, 2 demaio de 1898).

O decreto n. 351, de 9 de junho de 1899, ao estabelecer seis anospara o curso integral, não indica a presença dos estudos de sociologia.No entanto, registra-se na Ata da Congregação de 4 de setembro de1900 a distribuição horária para “sociologia e moral”, das duas às trêsda tarde. No ano seguinte, restabeleceu a legislação, pelo decreto n.501, de 5 de agosto, como 12a cadeira a de “elementos de sociologia,moral e direito pátrio”, ministrada no 6o ano do curso integral, sendoregida das 13 às 14 horas nos anos de 1901, 1902 e 1903. Em 1904, o 6o

ano do curso estava reservado apenas ao estudo da sociologia, moral edireito pátrio, bem como à revisão das outras matérias lecionadas nosanos anteriores.

O indício referente à presença de um professor da cadeira em ques-tão é localizado em 2 de outubro de 1911, quando Leonardo Gomes deCarvalho Leite é introduzido no seio da Congregação do AtheneuSergipense, apresentando, conforme a exigência da legislação, o pro-grama de “moral, educação cívica e noções de direito”, omitindo dessafeita o termo “sociologia”:

1. A moral é a sciencia dos costumes. Formação e desenvolvimento da moral

na humanidade.

2. Vontade, obrigação, dever e responsabilidade moral.

3. Da moral egoistica á moral reciproca. Varios problemas.

4. Os exames finais, com provas escritas realizadas a portas fechadas e provas oraispúblicas, destinavam-se aos alunos que tivessem concluído os estudos da matéria.Os exames de madureza destinavam-se aos concludentes do curso, aprovados emtodos os exames finais, de modo que verifica se possuíam “a cultura intellectualindispensavel”, dando-lhes o direito, se aprovados, a matricular-se em qualquer cur-so superior da República (artigos 118 e 131, decreto n. 321, de 9 de julho de 1897).

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42 revista brasileira de história da educação n° 12 jul./dez. 2006

4. Moral pratica. Individuo, família e sociedade. Relações morais.

5. Moral politica. Educação civica.

6. Noção de Patria. A Patria é una e indivisivel. O vicio do bairrismo.

7. A bandeira e o hymno nacional. Os hymnos dos Estados.

8. Vista ao passado. Desenvolvimento do Brazil. Da Colonia ao Imperio e

deste á Republica.

9. Breves considerações sobre formas de governo.

10. Historia da proclamação da republica no Brazil. Causas determinantes.

11. As datas nacionais. Exemplos dos nomes maiores. O civismo dos brazileiros.

12. Noções do direito. Direito publico e privado.

13. Pessôas sob o aspecto juridico.

14. Instincto de conservação. Legitima defeza.

15. Propriedade. Dominio e posse. Restricção ao direito de propriedade.

16. Liberdade. O instituto do habeas-corpur.

17. Direito publico e constitucional. Constituição brazileira. Fontes do direi-

to constitucional patrio.

18. Presidencialismo e parlamentarismo.

19. Regimen federativo. Democracia.

20. A soberania. Orgãos da soberania.

21. Divisão dos poderes, sua independencia e harmonia.

22. A União, os Estados Federados e o Districto Federal.

23. O que compete aos Estados e o que lhes é vedado.

24. Autonomia dos municipios.

25. Dos cidadãos brazileiros.

26. Pode ser renunciada a qualidade de cidadão brazileiro?

27. Brazileiros e extrangeiros residentes no Brazil.

28. Igualdade perante a Lei.

29. Liberdade de culto. Casamento.

30. Direito de associação, reunião, petição e locomoção.

31. A caza é o asylo inviolavel do individuo.

32. A liberdade de pensamento. Não é permitido o anonymato.

33. Sigillo de correspondencias.

34. Nenhuma pena passará da pessôa do delinqüente.

35. Liberdade de profissão.

36. A instituição do jury.

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37. Demais direitos do cidadão brazileiro.

38. Estado de sitio.

39. Serviço militar obrigatorio.

40. Amnistia. Condenação e perdão [Ata da Congregação do Atheneu

Sergipense, 2 de outubro de 1911].

Assim, com esse amplo programa abordando temas do direito, damoral, do civismo, do Estado com maior ênfase e destaque, é mantido oespaço para a dedicação ao estudo do indivíduo e das relações sociais. Aexplicação oferecida por Santos (2004) aponta para o fato de que osconteúdos da cadeira de sociologia estariam voltados para os princípiosque regulavam o comportamento racional e científico necessários paraa consolidação da organização social republicana. Por isso, a disciplinamesclava-se de conteúdos que enfatizavam a moral, o respeito, a pátria,elementos de economia política (produção de riquezas, trabalho, consu-mo, capital, impostos e orçamento), noções de direito pátrio (organiza-ção política, administrativa, judicial e econômica do Brasil, direito civile direito comercial).

Daí a cautela ao pesquisar a história das disciplinas escolares nãosomente pela presença ou ausência de sua nomenclatura e regularidadenos programas, mas também pela análise dos conteúdos estudados. Es-tes podem, pois, estar alocados em outras cadeiras, com rubricas dife-renciadas. É o que adverte Chervel: “a história de uma disciplina esco-lar não pode fazer abstração da natureza das relações que ela mantémcom as disciplinas vizinhas” (1990, p. 214).

Perseguindo os vestígios da cadeira de sociologia nos estudos se-cundários em Sergipe, observa-se nesse movimento uma bifurcação, poisela passa a se denominar, no ano de 1912, lógica e noções de direito;moral e instrução cívica5. Joaquim do Prado Sampaio Leite, professorda primeira cadeira, assim apresenta o seu programa6:

5. Quanto a disciplina educação moral e cívica no período da ditadura militar, verMartins (2003) e para o período anterior ver Horta (1994).

6. Nascido em Aracaju a 3 de junho de 1865, Joaquim do Prado Sampaio Leite fez ocurso secundário no Atheneu Sergipense, bacharelando-se pela Faculdade de Di-

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44 revista brasileira de história da educação n° 12 jul./dez. 2006

Logica

Logar da Logica entre as sciencias. Conte e Spencer.

Do que é a Logica.

Sua divisão: Aristoteles.

A logica como arte e como sciencia. Stuart Mill.

Do methodo em geral: Bacon e Whussel.

Da theoria do raciocinio: Stuart Mill.

Formulas do raciocinio: Aristóteles.

Indução: Whewel.

Dedução: Bacon.

Do testemunho humano

Da certeza e do erro: Alexandre Bain.

Critica do conhecimento: Kant.

Direito Publico

Que é Direito?

Elemento natural, cultural e irracional do Direito.

Ramos diversos da expansão jurídica.

Noção de Povo, Nação, Estado e Sociedade.

Necessidade do Estado. Extensão e limites de sua acção.

Fim do Estado. Como podem acabar os Estados.

Formas de Governo.

Da soberania. Seu conceito fundamental.

Da Nação Brazileira

Sua historia até os nossos dias. Forma de governo adotado pela Revolução

de 15 de novembro de 1889.

Dos poderes públicos. Divisão e harmonia dos poderes.

Declaração de direitos e garantias constitucionais [Ata da Congregação do

Atheneu Sergipense, 28 de fevereiro de 1913].

O estudo da lógica, “a doutrina geral dos methodos e a theoria geralda sciencia” (Romero, 1901, p. 201), pelo programa exposto, é feito em

reito de Recife em 1889. Foi promotor público, juiz de direito e deputado, além deescrever diversos artigos para os jornais locais. Ensinou no Atheneu Sergipense arit-mética e álgebra, literatura, psicologia, lógica e noções de direito (cf. Guaraná, 1925).

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conjunto com o estudo do direito. Defendia Sílvio Romero que o estudodevia seguir a marcha natural do espírito humano, estudar os processosindutivos e depois os processos dedutivos, isto é, do concreto para oabstrato (Romero, 1901, p. 216).

Regia a legislação que um dos deveres dos professores do AtheneuSergipense era apresentar no início de cada ano letivo os programas desuas disciplinas. Embora esse tenha sido o ponto de pauta das reuniõesda Congregação, não encontramos registros dos programas da cadeiraanalisada. É o que expõe, por exemplo, a Ata de 1º de setembro de 1916,declarando ter o professor Leonardo Gomes de Carvalho Leite apresen-tado o programa da cadeira de “educação moral e cívica, noções desociologia e de direito usual”.

Por força do regulamento de 1921, os cursos normal, comercial eintegral foram suspensos no Atheneu Sergipense, permanecendo ape-nas o curso ginasial. Nele foram unificadas as cadeiras, até então sepa-radas, de psicologia, lógica e história da psicologia; e a de noções dedireito público e de direito comercial, suprimindo a parte que tratava dodireito público e comercial. A cadeira de psicologia, lógica e história dapsicologia passou a ser regida pelo bacharel Virginio Sant’Anna (cf.Relatório do diretor do Atheneu Sergipense, Jucundino Souza Andrade,28 de julho de 1921, em Livro de Correspondências Expedidas doAtheneu Sergipense). Em 1925 retornou a cadeira de educação moral ecívica, regida pelo professor Leonardo Gomes de Carvalho Leite (cf.Livro de Registro de Títulos do Atheneu Sergipense 1904 a 1940).

Criadas as cadeiras de sociologia; literatura brasileira e literaturadas línguas latinas no ano de 1925, houve necessidade de serem abertosconcursos. Os rituais, métodos, as personagens e formas de julgamentosão minuciosos detalhes dos documentos legais que tratam das questõesque regimentavam os concursos para professores. Exigia-se do candi-dato o curso completo de humanidades ou a diplomação por escola su-perior, com defesa de tese de livre escolha, defesa de tese sobre assuntosorteado, prova prática (quando a natureza da disciplina exigia) e oral(cf. decreto n. 912, de 12 de dezembro de 1925).

Para a cadeira de sociologia, a Congregação do Atheneu Sergipenseselecionou os seguintes pontos:

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1o A organização social como factor no desenvolvimento da civilização. 2o O

meio geographico. As conquistas, a agricultura, a industria e o capital. Sua

influencia na sociedade e no progresso humano. 3o Darwin. Applicações de

suas theorias nas sociedades humanas. Objecções apresentadas. 4o O proces-

so de selecções nas sociedades. Até que ponto a selecção natural pode influir

nas sociedades. 5o A selecção social, desde os primitivos acampamentos hu-

manos até as sociedades civilisadas. 6o A aristocracia nas sociedades. Sua

influencia no progresso humano. 7o Influencia dos grandes homens e deles

na vida dos povos, das sociedades e das civilisações. 8o O desenvolvimento

da intelligencia na evolução humana. Suas causas, suas leis. 9o Qual o factor

mais influente e que mais intensamente actua na evolução do typo humano?

10o Influencia das religiões na vida dos povos e na formação das civilisações

[Ata da Congregação do Atheneu Sergipense, 13 de janeiro de 1926].

Estes eram, pois, os conhecimentos exigidos para os candidatos aoconcurso da cadeira de sociologia. Na mesma reunião foi sorteado, comodeterminava a legislação em vigor, o ponto para a tese do concurso a serapresentada, qual seja, o ponto de número quatro: “O processo deselecções nas sociedades. Até que ponto a selecção natural pode influirnas sociedades”. O concurso realizou-se em agosto de 1926, concorren-do um único candidato, o senhor Florentino Teles de Menezes, que apre-sentou a tese de livre escolha sobre o tema: “Influencia do clima nascivilisações”7.

Ainda a respeito desse concurso, a Congregação do AtheneuSergipense expôs outra lista de pontos, agora para o sorteio referente àprova oral:

1o. Organisação das sociedades. Differentes phases de sua evolução.

2o. Conservação das sociedades. Causas e leis.

7. Florentino Teles de Menezes nasceu em Aracaju a 7 de novembro de 1886. Inicia-dor da idéia da fundação do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe escreveuartigos na imprensa local. Tem de sua autoria obras como:Desenvolvimento intelectual dos povos; Leis da sociologia aplicadas ao Brasil; Estu-do de corografia social do Brasil; Escola social positiva (cf. Guaraná, 1925, p. 89).

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3o. Como progridem as sociedades. Causas e leis.

4o. Decadencia e morte das sociedades. Suas causas.

5o. Factores biológicos. Sua influencia nas sociedades.

6o. Factores psycologicos. Sua influencia nas sociedades.

7o. Factores sociaes. Sua influencia na evolucção hummmana.

8o. A civilisação. Suas causas e conseqüências.

9o. Processos de differenciacções observadas nas sociedades. A lei dos

escolares.

10o. Phenomenos intellectuaes observados nas sociedades. Sua influencia

no progresso humano.

11o. O casamento. Sua influencia na evolucção humana.

12o. Influencia da raça na evolucção social.

13o. O progresso social e o desenvolvimento humano. Suas relações.

14o. Leis e factores que agem concorrentemente nas sociedades humana e

dos animaes. Relações entre estas sociedades.

15o. Complexidade dos phenomenos sociaes.

16o. Influencia da sociedade na evolução humana.

17o. A religião e a moral. Sua influencia na civilisação.

18o. Influencia da guerra na evolução humana.

19o. A família. Sua origem, evolução e influencia na civilisação.

20o. A agricultura, a industria, o commercio e o capital. Sua influencia nas

sociedades e na evolução mental dos povos.

21o. Classificação das sociedades. Critica dos methodos empregados.

22o. A insitação. Sua influencia nas sociedades.

23o. Phenomenos sociaes. Suas relações com os outros phenomenos da

natureza.

24o. Lei da solidariedade social. Lei do gregarismo.

25o. Lei dos formalismos sociaes. Lei da mentira do grupo.

26o. A hereditariedade e sua influencia nas sociedades.

27o. O equilíbrio social. Sua influencia na conservação e no progresso das

sociedades.

28o. A complexidade circular nos phenomenos sociaes. Sua influencia no

progresso humano.

29o. A repetição dos phenomenos em sociologia. Formas sob as quaes se

manifesta.

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30o. Determinar as causas que provocaram o estacionamento de certas

civilisações como a chinesa, a hindu e a musulmana [Ata da Congrega-

ção do Atheneu Sergipense, 16 de agosto de 1927].

Sorteado o ponto de número 26, o candidato obteve como média naprova oral 9,92, na tese de livre escolha a média obtida foi de 9,84, e nasorteada 9,76, e teve como média final o valor de 9,84 (Ata do Concur-so, 17 de agosto de 1926, Livro de Atas de Concursos), sendo aprovadoo candidato Florentino Teles de Menezes como professor da cadeira desociologia do Atheneu Sergipense.

Enfim, com o decreto n. 912, de 12 de dezembro de 1925, atenden-do à Reforma Rocha Vaz, a cadeira adquiriu autonomia pelo menos ter-minológica, denominando-se sociologia, com uma carga horária de trêshoras semanais, ministrada no 6o ano do curso, devendo o programadessa e das outras cadeiras organizar-se de modo a poder ser lecionadatoda a matéria do ano letivo: “Os programas de filosofia e sociologiaabrangerão, em síntese, a generalidade das matérias” (§ 2o, art. 25).

Considerações finais

Para atingir as metas apregoadas como fins principais da institui-ção, os presidentes da província e depois governadores do estado deSergipe esforçavam-se por prover o Atheneu Sergipense de material cien-tífico “indispensavel para o regular funcionamento das aulas” e por ins-tituir uma “biblioteca e um muzeu no referido estabelecimento com ofim de proporcionar aos alumnos os meios practicos indispensaveis paraa efficiencia dos respectivos estudos”(Arts. 120 e 121, decreto 351, de 9de junho de 1899). Sempre atentos ao método prático, cabia ao corpodocente elaborar o programa de suas cadeiras, de modo que se torneefetivo a instrução secundária no Atheneu Sergipense.

É certo que, mesmo havendo essa atenção por parte do governo emapregoar nas legislações elementos necessários para uma eficiente for-mação, havia, nas palavras dos diretores, em seus relatórios, reclama-ções constantes quando seus pleitos não eram atendidos. Solicitavam

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melhorias nas instalações das salas, materiais para os laboratórios, maiornúmero de funcionários, aumento dos proventos dos professores, entreoutras reivindicações. São as ações e falas dos dirigentes para instituirno Atheneu Sergipense um ambiente propício formador da intelectuali-dade sergipana.

É nesse ambiente profícuo que o estudo da sociologia germina, ini-ciando em 1892 com a cadeira de “sociologia, moral, noções de econo-mia política e direito pátrio”. É importante relembrar que os estudos desociologia no Brasil foram iniciados no ensino secundário, mais preci-samente no final dos oitocentos, quando ocorria o processo de Procla-mação da República, e só posteriormente, no início dos anos 30 do sé-culo XX, é que surgiram os primeiros cursos de formação específica naárea de ciências sociais, os quais se iniciaram na cidade de São Paulo.De acordo com Santos (2004), o ideal republicano baseava-se nas leisda evolução social, ou seja, a ordem que deveria imperar no novo cená-rio nacional necessitava alicerçar-se cientificamente. Em outras pala-vras, a nova organização social deveria ser constituída em função dasleis descobertas pelas ciências, ou seja, era o caráter positivista defendi-do por Augusto Comte que adentrava os campos do saber e da manuten-ção da ordem no Brasil.

Estabelecendo-se como cadeira autônoma, a sociologia no AtheneuSergipense ganhou fôlego no ano de 1925, possibilitando aos seus dis-centes saberes específicos daquela disciplina. Com a contratação do pro-fessor Florentino Teles de Menezes, um outro processo inicia-se.

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52 revista brasileira de história da educação n° 12 jul./dez. 2006

Endereço para correspondência:Cidade Universitária

Professor José Aloísio de Campos, Centro de Educação e Ciências

Humanas, Departamento de Educação.

São Cristóvão – Sergipe

CEP 49100-000

E-mail: [email protected]

E-mail: [email protected]

Recebido em: 23 maio 2006Aprovado em: 15 jul. 2006

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História cultural e história daeducação na América portuguesa

Thaís Nívia de Lima Fonseca*

Resumo:É cada vez mais necessário estimular a discussão da investigação da história da educa-ção na América portuguesa. O avanço e a inovação no estudo da educação brasileira noperíodo colonial implicam a investigação de processos e de práticas educativas queextrapolem a ação do Estado ou da Igreja, e que se privilegie tais práticas no cotidianoda sociedade brasileira colonial, envolvendo os aprendizados e as trocas culturais sobretécnicas, ofícios e saberes provenientes de várias origens culturais que aqui se encontra-vam. Isso não significa deixar de vê-las, também, no conjunto das iniciativas oficiaispara a implementação da educação escolar, mas de entendê-las no contexto de umasociedade mestiça.

educação colonial; historiografia da educação; práticas educativas; mestiçagemcultural; história cultural.

* Pós-doutorada na Universidade Federal Fluminense (UFF) e na Universidade deLisboa, doutora em história social. Professora-adjunta de história da educação naUniversidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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Cultural history and history ofeducation in the portuguese America

Thaís Nívia de Lima Fonseca*

Abstract:It is necessary to stimulate the discussion of investigation of the history of education inthe Portuguese America. The advance and innovation of the study of Brazilian educationin the colonial time imply the investigation of educational processes and practices thatgo beyond the action of the State or of the Church, and that favor such practices in theday-to-day life of the colonial Brazilian society, involving apprenticeships and culturalexchanges about techniques, trades, and knowledges derived from several cultural originsthat could be found here. This does not mean quitting looking at them in the whole set ofofficial initiatives for the implementation of schooling, but rather attempting to understandthem in the context of a miscegenated society.

cultural history; historiography of education; educational practices; culturalmiscegenation; cultural history.

* Pós-doutorada na Universidade Federal Fluminense (UFF) e na Universidade deLisboa, doutora em história social. Professora-adjunta de história da educação naUniversidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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Assistimos nos últimos anos a uma vasta produção de balanços eanálises de conjunto sobre a historiografia brasileira, movimento queprocura analisar a sua trajetória refletindo, também, nos rumos recente-mente tomados pela pesquisa histórica no Brasil. Muitas obras procu-ram analisar a produção historiográfica brasileira, desde o século XIX,apontando os caminhos por ela traçados, as influências consolidadas eas tendências mais recentes (Cardoso & Vainfas, 1997; Freitas, 1998;Mota, 1999; Reis, 1999; Iglésias, 2000; Del Priore, 2000). A história daeducação, infelizmente, só aparece como campo de apreciação historio-gráfica em uma coletânea (Freitas, 1998), estando ausente dos balançosque analisam os vários campos da investigação histórica no Brasil. Emcontrapartida, inúmeras têm sido as publicações atinentes especifica-mente à história da educação que procuram analisar essa produção(Saviani; Lombardi & Sanfelice, 1998; 1999; SBHE, 2001; Lopes &Galvão, 2001; Warde, 1990; Nunes & Carvalho, 1993). Tem sido tam-bém profícua a publicação de obras coletivas que reúnem trabalhos so-bre temas e períodos específicos e outras que apresentam estudostemáticos e temporalmente diversos (Lopes; Faria Filho & Veiga, 2000;Vidal & Hilsdorf, 2001). Nas obras analíticas sobre a historiografia bra-sileira de uma forma geral, o período colonial tem sido particularmenteprivilegiado, não podendo deixar de ser mencionada a influência da his-tória cultural, campo no qual têm sido feitas algumas das mais expressi-vas pesquisas, além dos estudos que vêm promovendo sensível inova-ção historiográfica nas dimensões administrativa e econômica do período.Ele não tem, contudo, despertado muito interesse nos historiadores daeducação há várias décadas, ao contrário do que ocorre com o Império ea República. Nos balanços historiográficos e coletâneas são raras asmenções a trabalhos sobre a educação antes da independência. Nos con-gressos da área realizados mais recentemente1, a proporção de trabalhossobre o período colonial em relação ao total de inscritos e/ou apresenta-dos não ultrapassa 3%.

1. O III Congresso luso-brasileiro de história da educação (Coimbra, 2000), o I Con-gresso de ensino e pesquisa em história da educação em Minas Gerais (Belo Hori-zonte, 2001) e o II Congresso brasileiro de história da educação (Natal, 2002).

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Não é meu objetivo fazer, neste texto, uma revisão bibliográfica,mas julgo necessário incluir algumas referências, passo importante paraa discussão sobre as possibilidades de inovação e as questões metodoló-gicas que envolvem o estudo da história da educação na América portu-guesa pela perspectiva da história cultural. Cumpre, assim, notar a gran-de influência de obras tradicionais, que privilegiam as análises sobre aatuação educacional da Companhia de Jesus no Brasil e as reformaspromovidas pela administração do Marquês de Pombal, na segundametade do século XVIII. A maior parte dessa produção analisa a estru-tura da educação escolar em Portugal e em seus domínios do ponto devista da legislação, dos projetos governamentais, da tributação e, algu-mas vezes, das idéias pedagógicas, privilegiando as fontes escritas eoficiais, emanadas no Estado ou da Igreja (Almeida, 2000; Carvalho,1933; Azevedo, 1963; Briquet, 1944; Vianna, 1945; Carrato, 1968;Tobias, 1972; Andrade, 1978; Carvalho, 1978). São trabalhos que tra-tam a educação colonial de forma bastante generalizada, pouco se de-tendo nas especificidades regionais e nas condições concretas de reali-zação das determinações governamentais a respeito da instrução. Nãoraro tomam situações ocorridas em uma capitania como sendo válidaspara todo o território português na América. Considerando os pressu-postos que os orientam – de procurar preferencialmente pela educaçãoescolar e pelas iniciativas oficiais no sentido de organizar, minimamen-te que fosse, esse tipo de educação – fica a idéia de uma relação unifor-me entre Portugal e as várias partes de seus domínios.

Algumas linhas-mestras podem ser notadas desde os mais antigostextos, publicados ainda no século XIX: o caráter brutal e despótico dacolonização explicaria, em parte, o desprezo da Coroa portuguesa paracom a instrução no Brasil, deixando essa tarefa aos jesuítas, apresenta-dos com indisfarçáveis elogios ao seu pioneirismo e eficácia. Entretan-to, valoriza-se também a ação do Estado, especialmente durante a admi-nistração do Marquês de Pombal, em detrimento da ação da Igreja,apontada como obstáculo ao progresso cultural, em vista de sua resis-tência às idéias ilustradas. São, assim, trabalhos inscritos numa tradiçãohistoriográfica na qual as instituições dominantes – o Estado e a Igreja –são os principais sujeitos. Deixam entrever que seu olhar sobre o passa-

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do está fincado em concepções do presente, pois atribuem ao Estadofunções que ele, efetivamente, só assumiria com o advento do liberalis-mo, como a organização de um sistema público de educação, por exem-plo. Poucos são os estudos, mesmo os mais recentes que, não obstanteprocurem explorar mais verticalmente as fontes, avançam sensivelmen-te nas abordagens, incorporando pressupostos teórico-metodológicos quepermitam o estabelecimento de olhares críticos sobre concepções bas-tante arraigadas na historiografia, como aquelas que vêm as relaçõespolarizadas entre metrópole e Colônia como indicativos de uma depen-dência absoluta da última em relação à primeira. Essa é uma das razõespelas quais os estudos sobre a educação colonial concentram-se nas açõesdo Estado ou da Igreja, como instâncias unicamente impositivas, nãoconsiderando outras possibilidades de conexões no mundo colonial,mesmo que envolvessem aquelas duas instituições2. Curiosamente, emrelação ao período colonial, a diversidade temática tem ficado por contade trabalhos de historiadores de outros campos, mas que fazem referên-cia à educação quando tratam de questões tais como a história dos livrose da leitura, a história das crianças e a história das mulheres ou a socie-dade escravista. São estudos em geral referenciados na história cultural,tratando das práticas culturais e das representações coletivas envolvidasnas relações cotidianas estabelecidas entre grupos e indivíduos3. A con-tribuição desses estudos tem sido largamente reconhecida, porém pou-co aproveitada pelos historiadores da educação como inspiração ou re-

2. Nos últimos anos, alguns poucos estudos têm procurado aprofundar a análise dasfontes, mas raramente investem na diversificação documental, procedendo a novasleituras de fontes conhecidas, por perspectivas de análise mais afinadas com ahistoriografia contemporânea. Em um deles, As luzes da educação: fundamentos,raízes históricas e prática das aulas régias no Rio de Janeiro, 1759-1834 (Cardo-so, 2002), a autora estuda as aulas régias implantadas a partir das reformaspombalinas analisando documentos (como requerimentos e cartas de professores)que ampliam a visão acerca do problema das situações cotidianas decorrentes dacriação e funcionamento das referidas aulas, nos quadros do reformismo ilustradoe das condições específicas, no Brasil, do seu processo de implantação.

3. São conhecidos os trabalhos de Leila Mezan Algranti e Maria Beatriz Nizza daSilva, sobre a educação feminina e masculina no contexto da história da família; osde Luiz Carlos Villalta sobre os livros e a leitura no século XVIII.

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ferência para a pesquisa sobre a educação no período colonial. Há aindaestudos mais pontuais, praticamente desconhecidos, dos historiadoresda educação, mas que tocam em questões de interesse para esse campoquando analisam o trabalho em colégios jesuítas no Pará nos séculosXVII e XVIII, a atuação de escravos letrados em Minas Gerais no sécu-lo XVIII, ou o ensino de artes e ofícios nas missões guaranis nas frontei-ras do atual Rio Grande do Sul, nos séculos XVII e XVIII (Guzman,2001; Paiva, 2001; Neumann, 2002).

O rompimento com a predominância das abordagens tradicionais,centradas nas ações do Estado ou da Igreja, implica a discussão sobre ocaráter do processo colonizador, ou mais especificamente, das relaçõesentre as várias partes do Império português e as dinâmicas próprias decada uma. Isso tem orientado, inclusive, a reflexão sobre a denominaçãoa ser dada a esse período histórico. Questão semântica para uns, metodo-lógica para outros, a discussão sobre o uso dos termos “América portu-guesa” ou “Brasil colônia” acentuou-se nos últimos anos, estimulada porpesquisas que têm posto em xeque algumas concepções há muitosedimentadas. Trata-se, principalmente, da definição de posicionamen-tos em relação não somente ao Brasil em si, mas de sua inserção noconjunto dos domínios portugueses. O debate tem-se alimentado de di-ferentes argumentos, alguns deles marcados por intenso relativismo, comoo apresentado por Fernando Novais (1997), que aponta o “anacronismo”do uso do termo “Brasil Colônia”, pois “não podemos fazer a históriadesse período como se os protagonistas que a viveram soubessem que aColônia iria se constituir, no século XIX, num Estado nacional” (Novais,1997, p. 17). Laura de Mello e Souza (1998) argumenta que o termo“Brasil Colônia” se refere a uma totalidade que não estava constituídanaquele momento, era “alheia à realidade das pessoas que viviam noterritório que hoje é o Brasil”, pois o que o marcava era a fragmentação,como na América espanhola, dividida em vice-reinados (Souza, 1998, p.12). Embora também preocupada com o mesmo tipo de anacronismoapontado por Novais, a autora introduz, no entanto, uma questão impor-tante que é a da fragmentação, que impediria, evidentemente, o trabalhocom a idéia de totalidade. Ronaldo Vainfas (1998) também toca na ques-tão, mas com um esclarecimento particular que, não raro, passa desper-

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cebido, isto é, de que o termo “América portuguesa” denomina um espa-ço e não necessariamente substitui a idéia de temporalidade presente notermo “Brasil Colônia” (Vainfas, 1998, p. 23). Mas a discussão sobre ouso ou o abandono do termo não pode se restringir à idéia de anacronis-mo tal como apontada pelos autores citados. É uma questão historiográ-fica mais profunda, relacionada ao próprio entendimento acerca das ca-racterísticas dos domínios portugueses no continente americano e de suasformas de inserção no conjunto mais amplo, incluindo os domínios afri-canos e asiáticos, além do próprio Portugal.

A constituição de uma historiografia no Brasil fundamentou-se,desde meados do século XIX, nas idéias de unidade e coesão, marcas deuma história de herança iluminista e nacionalista, que apresentava umsentido evolutivo, civilizatório e progressista. Uma história que, centradano papel do Estado, caracterizaria a produção sobre a história do Brasildesde as obras de Varnhagen (1978) e de Capistrano de Abreu. Essatradição teria vida longa, estando presente até nos tempos em que outratradição historiográfica começava a se constituir, nas primeiras décadasdo século XX. Mesmo Gilberto Freyre (1996), embora preocupado comquestões de outra natureza e cuidando de uma realidade complexa ehíbrida, longe da rigidez da história do Estado, não abandonaria aquelanoção. Sérgio Buarque de Holanda (1995), como outros, colocaria aquestão nos termos da afirmação nacional pela oposição à dominaçãocolonial. Caio Prado Júnior (1981) seria o primeiro a produzir uma aná-lise que afirmaria a idéia de Brasil Colônia, não mais como meio delegitimação da origem nacional, mas como uma formação sustentada narelação desigual entre metrópole e Colônia. Tem sido considerável ainfluência dessa abordagem na historiografia colonial brasileira, só muitorecentemente questionada em alguns de seus aspectos, sobretudo quan-to à polarização Colônia/metrópole e ao entendimento da colonizaçãocomo algo previamente projetado no âmbito do mercantilismo da épocamoderna. A percepção desse processo para além das relações exclusivasentre aqueles dois pólos demonstra uma dimensão muito mais ampla emenos rígida do que fora apresentada pela abordagem inaugurada comPrado Júnior. Nesse sentido, a idéia de uma América portuguesa ganhaoutros contornos, demonstrando que unidade e fragmentação, depen-

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dência e autonomia, exploração e integração são algumas das proble-máticas que alimentam essas reflexões. Como, então, pensar essas ques-tões em relação à história da educação? Em que medida a flexibilizaçãodo entendimento das relações coloniais nos ajudaria a desenvolver pes-quisas que façam avançar a compreensão acerca da educação no Brasilantes da sua constituição como Estado nacional?

É inegável que, a se pensar na existência de um projeto ou de proje-tos de educação no Brasil naquele período, se deve considerar as ques-tões da presença dos jesuítas na América portuguesa e da política maissistemática implementada pela administração pombalina, na segundametade do século XVIII. Se a educação no Brasil nesse momento pare-ce limitada em termos de escolarização formal, e sobretudo pública, nãose pode dizer o mesmo de processos educativos mais amplos que, reali-zados intencionalmente ou não, implicavam no estabelecimento de re-lações nas quais alguma forma de saber circulava e era apropriado. Esseprocesso ocorria, em geral, mas não exclusivamente, entre as pessoasde grupos sociais subalternos, no amplo espectro que incluía os bran-cos, livres e pobres, os indígenas, os negros livres e escravos e a popu-lação mestiça. Essa população estava quase sempre afastada da escola,ou pelas restrições impostas pelas condições materiais ou pelo precon-ceito. Brancos pobres raramente podiam freqüentá-la pela falta de re-cursos para sustentar a mobilidade exigida pelo sistema de aulas avul-sas ou para o pagamento dos professores, quando o Estado não o fazia;os negros e mestiços, livres ou escravos, eram raramente admitidos nasescolas, sobretudo porque estavam associados ao trabalho manual e nãodeveriam dele ser apartados a fim de não prejudicar a produção e nãodegradarem o trabalho intelectual; os indígenas, quando não estavamvinculados às escolas missionárias, estavam diante da mesma situaçãode rejeição e preconceito.

Mas, não obstante a exclusão do espaço escolar, uma parcela dessapopulação envolveu-se em alguma forma de processo educativo e demuitas maneiras soube dele se beneficiar. Algumas situações têm sidopesquisadas de maneira mais sistemática, como as diversas formas doaprendizado profissional, como é o caso da formação dos oficiais mecâ-nicos, sobretudo nos centros urbanos, onde oficinas e ateliês se transfor-

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mavam em espaços de circulação de saberes e de formação profissional.Em Minas Gerais, por exemplo, é conhecido o desenvolvimento dessasatividades, movidas por um dinâmico mercado consumidor envolvendoo que hoje chamaríamos de bens culturais. É clara, também, a grandemobilidade de artistas e artesãos pelo território das minas setecentistas,promovendo o trânsito de saberes, técnicas e objetos. Os mais requisita-dos mantinham oficinas e ateliês com ajudantes, que acabavam por setornar espaços de formação. A inexistência entre nós das corporações deofício à moda européia – e conseqüentemente dos processos mais rígi-dos de formação e de controle profissional – criava ambientes mais fle-xíveis e plásticos, favorecendo múltiplas apropriações dos conhecimen-tos técnicos ali ensinados. O processo de aprendizagem também se faziapela consulta a modelos vindos da Europa, aqui recriados com o con-curso das múltiplas referências culturais em permanente contato. Essequadro permite-nos refletir sobre o papel desses indivíduos dedicadosaos ofícios mecânicos em suas atividades não somente de produtores,mas também de transmissores de saberes técnicos, e o significado quesua mobilidade possa ter causado na circulação desses saberes no uni-verso cultural colonial. Já são também conhecidos casos de escravosque, tendo aprendido a ler e a escrever a fim de se tornarem mais rentá-veis para seus senhores, chegavam a trabalhar nos órgãos da adminis-tração colonial e acabaram por utilizar esses saberes como instrumentosde negociação de benefícios pessoais, inclusive a sua própria liberdade.

Os processos educativos na América portuguesa podiam ocorrer aindaem outras dimensões. Ainda em relação ao mundo do trabalho e da pro-dução, a aprendizagem técnica dava-se em intensa movimentação decoisas e de pessoas, com o contributo de tradições culturais diversas emsua dimensão mais informal, ou mesmo com a utilização de recursosadvindos da formalidade da produção intelectual, como é o caso dosmanuais agrícolas encontrados no Brasil, procurados pelos fazendeirosinteressados em melhorias em suas lavouras e criações, mas nem sempreúteis diante do pragmatismo dos conhecimentos desenvolvidos na rela-ção direta com as condições concretas da terra. Ou no desenvolvimentode técnicas de mineração originárias da África, aprendidas pelos coloni-zadores no emprego da mão-de-obra vinda daquele continente, em detri-

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mento de seus próprios conhecimentos e materiais. Os indígenas foramtambém educadores, bastando lembrar a importância de todo um con-junto de saberes aprendidos com eles e que foram cruciais para os explo-radores do sertão, nos séculos XVII e XVIII, situação registrada por inú-meros viajantes estrangeiros que aqui estiveram e magistralmenteanalisada por Sérgio Buarque de Holanda (1995) no seu Caminhos efronteiras. Não se deve pensar, contudo, que a educação escolar estives-se totalmente apartada dessas práticas mais flexíveis, dinâmicas e plu-rais, freqüentes na sociedade colonial brasileira. Os jesuítas são dissoexemplo, pois souberam se aproveitar de elementos da cultura indígenana construção de seus programas de catequese e empreenderam a organi-zação dos aldeamentos levando em conta não apenas os saberes trazidose ensinados por eles, como também se apropriando dos saberes nativos,estratégia que facilitou, sem dúvida, o processo educativo junto àquelaspopulações. Tal quadro aponta para uma reflexão a ser feita mediante anoção de mediadores culturais, os passeurs culturels, como a chamamseus principais formuladores, como o historiador do México colonialSerge Gruzinski (Gruzinski, 1991; 2001). Essa noção tem sido utilizadarecentemente por historiadores interessados na análise das sociedadesmestiças coloniais americanas, e os mediadores podem ser entendidoscomo pessoas ou objetos capazes de aproximar hábitos, práticas, conhe-cimentos, fazendo-os misturar, adquirir novos significados, novas fun-ções. Entre muitos campos da pesquisa histórica, a educação é particu-larmente privilegiada para a investigação à luz dessa noção, e os exemplosaqui utilizados indicam essas possibilidades.

O Brasil no período colonial não era, na prática, administrado comouma unidade em si mesmo e pensar a questão de projetos de educaçãonessa perspectiva particularizada é correr o risco do anacronismo, nãoobstante existisse uma política administrativa emanada da metrópole eteoricamente válida para todos os domínios portugueses. Ashistoriografias brasileira e portuguesa contemporâneas estão hoje aten-tas à noção de um Império descontínuo do ponto de vista geográfico eculturalmente plural. Os projetos de educação possíveis no período co-lonial consideraram, ora a dominação por meio da evangelização do“gentio” e pela homogeneização cultural via religião católica, ora a in-

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tegração da América portuguesa e de sua população ao Império, comoforma de mantê-lo e de fazê-lo render lucros. Em ambos os casos, seusidealizadores defrontaram-se com uma realidade que em quase tudo es-capava à sua capacidade de previsão e lhes dificultava o controle. Ainvestigação sobre a educação no período colonial deve, assim, levarem conta a diversidade e as particularidades da sociedade brasileira deentão, considerando-se, é claro, suas especificidades regionais. Isso sig-nifica colocar no centro da problematização a existência de idéias acer-ca de uma educação escolar de matriz européia, calcada em seus mode-los de civilidade e progresso, em seus preceitos políticos e morais, e emsua implantação numa sociedade mestiça, que relia e reelaborava ospressupostos europeizantes, no contexto de práticas culturais híbridas.Dessa maneira, muitas delas podiam adquirir novos significados, mes-mo quando mantinham suas formas originais, incorporando valoresadvindos tanto de suas matrizes européias quanto de outras referênciasculturais. Nesse sentido, o papel de grupos e de indivíduos é crucialpara a compreensão desses movimentos na perspectiva de mudanças ede permanências, atuando como mediadores entre tempos, espaços eculturas.

Os estudos sobre a cultura na América portuguesa têm, enfim,descortinado realidades complexas, muito diferentes da linearidade apre-sentada pela historiografia tradicional e mais críticos em relação aoesquematismo das análises globalizantes e deterministas da historiogra-fia marxista mais aferrada aos modelos. Uma das contribuições recentesmais importantes diz respeito à discussão sobre a mestiçagem comofator fundamental na formação cultural brasileira e suas implicaçõesnas diversas dimensões da vida da sociedade colonial. Nesses estudos amestiçagem deixa de ser a resultante da mistura entre as “três raças irre-dutíveis”, no dizer de Capistrano de Abreu, emergindo como elementoexplicativo fundamental para a compreensão do universo cultural colo-nial no qual está mergulhada, evidentemente, a educação. O tema é an-tigo na historiografia brasileira e já preocupava o alemão Karl Philippvon Martius em 1847, em seu trabalho vencedor do concurso de mono-grafias promovido pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, noqual ele propunha uma leitura da história do Brasil na perspectiva de

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sua formação como resultante da mistura de três raças, vistas hierarqui-camente: o branco, elemento civilizador; o indígena, o habitante origi-nal da terra, passível de ser civilizado pelo branco; o negro, agentelimitador do processo de civilização. A produção historiográfica do sé-culo XIX e do início do século XX notabilizou-se pela influência desseesquema, mantendo-o como um elemento importante das reflexões daprodução historiográfica brasileira até meados da década de 1930.

A publicação de Casa-grande & senzala, em 1933, foi, sem dúvida,marco na abordagem do tema da mestiçagem. Gilberto Freyre (1996)seria o primeiro a ousar colocar o negro na posição de elemento de pesona formação brasileira, não somente do ponto de vista étnico, mas sobre-tudo cultural. Freyre estava longe da visão simplista de Martius e seusseguidores, de que a sociedade brasileira seria o somatório da contribui-ção de brancos, negros e índios. A idéia da mestiçagem ganhava aquinova dimensão, mais complexa e intrigante, entendida muito mais comoo imbricamento incessante de práticas culturais diversas nos intercursosentre negros, brancos e indígenas. Além disso, outro importante elemen-to para a análise da formação cultural brasileira foi a abordagem do temadas origens mestiças do colonizador português. Gilberto Freyre (1996) eSérgio Buarque de Holanda (1995) deram grande importância a essa ques-tão, apontada como fator facilitador do contato entre os portugueses e ospovos das regiões nas quais eles tinham seus negócios e seus domínios,devido a um traço da cultura portuguesa, a “plasticidade social”. Issoajudaria, assim, a explicar a intensa mestiçagem que formaria a comple-xa e singular sociedade brasileira. A questão da “plasticidade social” édiscutível, se considerarmos as condições da presença portuguesa naAmérica e a permanência, até decorridos mais de dois séculos de coloni-zação, de valores vindos do Antigo Regime português, como a busca deprestígio e de honrarias às quais não se teria acesso se se tivesse o “san-gue infecto”. Não seria o fato de uma remota mestiçagem ocorrida emPortugal a dotar o povo luso de uma “natural” tolerância racial. Nãoobstante, a mestiçagem ocorreu e o estudo de suas várias dimensões éfundamental para a compreensão da sociedade colonial no Brasil.

Depois de um relativo esquecimento até os anos de 1980, a revalo-rização das obras desses dois autores, nos dias atuais, reveste-se de um

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significado ainda maior, na medida em que a discussão sobre a mestiça-gem, num sentido mais amplo, faz-se na perspectiva de um mundoglobalizado, no qual as questões de caráter cultural se mostram muitoclaramente envolvidas com as relações políticas. A historiografia, aoretomar a análise do movimento da expansão marítima da época moder-na, aponta para um mundo que já se globalizava pela ação dos conquis-tadores, sobretudo ibéricos. O trânsito de pessoas, mercadorias, cren-ças, valores e concepções de mundo, faria daquele um mundo mestiço,que as pesquisas mais recentes têm descortinado, com a retomada deantigas discussões com aportes metodológicos mais consistentes. Sãopesquisas desenvolvidas no âmbito da história cultural, mais claramen-te direcionadas para a discussão da mestiçagem e dos mediadores cultu-rais. Em alguns países, como a França, Espanha, México e Peru, já se vêa utilização da noção de mediadores culturais em estudos sobre proces-sos e práticas educativas no contexto da expansão européia da épocamoderna, nos quais são analisados os processos de transmissão de sabe-res vindos da Europa nas sociedades indígenas e mestiças americanas,mais especificamente na América espanhola (Diego, 2001; Girard, 2001;Salazar-Soler, 2002; Safier, 2002; Toscano, 2002; Fonseca, 2002).

Entendo que o avanço e a inovação no estudo da educação na Amé-rica portuguesa resulte da investigação de tais processos e práticas nes-se duplo movimento, isto é, do encontro entre uma educação escolar demodelo europeu com as referências culturais de outras origens. Procu-rar apenas pelas ações das instituições dominantes, seus sucessos e fra-cassos nas tentativas de implantação de modelos de educação não é su-ficiente para a compreensão de uma realidade muito mais complexa.Além de ainda não estar razoavelmente constituída e menos ainda con-solidada naquela época, a escola não pode ser vista como a única di-mensão possível para a reflexão sobre a educação no Brasil colonial.Faz-se necessário enfrentar o desafio da análise das práticas e dos pro-cessos educativos que extrapolem a ação do Estado ou da Igreja, e queprivilegie tais práticas no cotidiano da sociedade brasileira colonial,envolvendo os aprendizados e as trocas culturais sobre técnicas, ofíciose saberes provenientes de várias origens culturais que aqui se encontra-vam e se misturavam. Isso não significa, porém, deixar de vê-las, tam-

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bém, no conjunto das iniciativas oficiais para a implementação da edu-cação escolar.

Uma tal perspectiva de investigação, inscrita no campo da históriacultural, implica a consideração de algumas questões de fundo. Confor-me já tem sido apontado em vários estudos críticos (Rioux & Sirinelli,1997; Vainfas, 1997; Palhares-Burke, 2000; Falcon, 2002), a história cul-tural tem-se mostrado bastante diversa teórica e metodologicamente, emalguns casos atraindo sob sua sombra diferentes posicionamentos sobrehistória e sobre cultura. Não são poucos os estudos que, por essa deno-minação, acabam utilizando múltiplas indicações teóricas, às vezes con-flitantes entre si. Não há dúvida de que a aproximação com a antropolo-gia muito esclareceu para os historiadores acerca da cultura como umaampla dimensão da vida das sociedades, mas não se pode perder de vistadimensões caras à análise histórica, como as temporalidades e as distin-ções sociais. Por isso a idéia de cultura deve ser entendida à luz dessasdimensões, ou corre-se o risco de cometer o equívoco de alguns pionei-ros da história das mentalidades, convictos do caráter uniforme e exten-sivo do que pensavam e acreditavam todos os indivíduos de uma deter-minada época (Le Goff, 1986). A valorização do cotidiano não significanegligência em relação aos conflitos sociais e culturais, na verdade pre-sentes nele. A questão é que nem sempre os conflitos se mostram comclara evidência, como numa análise mais voltada para a luta de classes.Eles podem estar nas pequenas estratégias cotidianas, nas diversas apro-priações de valores, saberes, poderes. Por isso se torna importante a refe-rência às noções de representação e de apropriação, tal como desenvol-vidas por Roger Chartier (1990), por permitirem a visualização de práticasculturais – para o caso em foco, práticas educativas – presentes na socie-dade brasileira colonial e em suas diferentes formas de manifestação.

Muito embora, para alguns críticos, haja um certo distanciamentoentre as idéias de Chartier (1990) e de Carlo Ginzburg (1997) comoautores identificados à história cultural, creio ser pertinente considerarcomo possibilidade teórica a noção de circularidade cultural forjada porGinzburg para o estudo das interações entre culturas numa mesma so-ciedade, útil para pensarmos os movimentos culturais ocorridos no Bra-sil do período colonial, nos quais as práticas e processos educativos

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estavam imersos. De certa forma, é de apropriações culturais de quetrata Ginzburg em suas análises, não obstante ele e Chartier partam depressupostos diversos – mas não excludentes – quanto ao conceito decultura. Se essas duas propostas metodológicas mostram sua operacio-nalidade para o estudo da educação na América portuguesa, é importan-te salientar que a idéia das interpenetrações culturais nelas presente podeser verticalizada no contexto da mestiçagem cultural, talvez mais ade-quada para a análise da complexidade da sociedade brasileira colonial.Não se tratava, aqui, de mera troca ou apropriação de referências cultu-rais entre classes sociais distintas, mas de uma construção cultural mui-to mais elaborada, devedora, é claro, das diversas heranças culturais emcontato, mas delas apartada pelas condições específicas de uma “socie-dade colonial que se nutre de fragmentos importados, crenças truncadas,conceitos descontextualizados e, volta e meia, mal assimilados, impro-visos e ajustes nem sempre bem sucedidos” (Gruzinski, 2001, p. 196).Embora se refira a uma situação do México colonial, a afirmativa deGruzinski cabe bem ao Brasil, e pode ajudar na compreensão dos movi-mentos culturais que envolviam práticas educativas, fossem elas esco-lares ou não.

Para o desenvolvimento de pesquisas na perspectiva aqui apresenta-da, há clara necessidade de uma maior diversificação das fontes, de ummovimento em direção àquelas que, muito embora já recorrentes em ou-tros campos da pesquisa histórica, não chamaram a atenção dos historia-dores da educação. Esse movimento requer, num primeiro momento, umtrabalho árduo de levantamento e identificação de documentos nos prin-cipais arquivos depositários de fontes do período colonial, ação indis-pensável para retirar da sombra informações dispersas e não imediata-mente identificadas ao tema da educação, se entendidas numa perspectivahistoriográfica de cunho tradicional. Além das fontes escritas4, emana-

4. Inventários e testamentos; correspondências e atas de reuniões das câmaras; regis-tros de patentes e provisões; registros de licenças e alvarás; registros de despesas eprestações de contas; registros do subsídio literário; correspondências de governa-dores; requerimentos e petições; cartas régias; processos criminais; relatos de via-gens; diários; sermões; documentação eclesiástica.

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das ou não das instituições dominantes, têm que ser consideradas tam-bém as fontes iconográficas produzidas regiamente no período, mani-festações incomparáveis da cultura mestiça aqui desenvolvida.

As dificuldades impostas à pesquisa sobre a educação na Américaportuguesa têm sido atribuídas, por muitos, às dificuldades de localiza-ção das fontes, de leitura dos documentos, manuscritos em sua grandemaioria e, por outros, à sua simples inexistência. O fato de que, dadas ascaracterísticas da estrutura política e administrativa do período, nãohouvesse, como para o Império e a República, setores governamentaisclaramente responsáveis pela instrução, não implica que não existamdocumentos que contenham informações relativas ao tema. A nós, his-toriadores, cabe utilizar as ferramentas adequadas para localizar as fon-tes e saber fazer-lhes perguntas. Para romper o tradicionalismo imperantenos estudos sobre a educação colonial, impõe-se a abertura para novasformas de abordagem que permitam o tratamento mais amplo e flexíveldas fontes, mesmo quando se tratar das oficiais. A construção do conhe-cimento histórico se faz também pelas releituras e pela atribuição denovos sentidos, ao lado do ineditismo temático e analítico. E tambémpela necessidade de romper com visões simplificadoras da história, queconstroem explicações mecânicas, que vão sendo singelamente aceitase repetidas ao longo tempo. O que cabe ao historiador, como nos lembraDaniel Roche, é “mostrar que as coisas são sempre muito mais compli-cadas do que se pensa” (Roche apud Palhares-Burke, 2000. p. 181).

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Endereço para correspondência:Faculdade de Educação da UFMG

Avenida Antônio Carlos, 6627

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E-mail: tní[email protected]

Recebido em: 30 abr. 2005Aprovado em: 16 fev. 2006

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No compasso do progresso

a música na escola nas primeirasdécadas republicanas*

Ailton Pereira Morila**

Resumo:Este trabalho tem por objetivo discutir a utilização da música na escola e as funções quea mesma desempenhava no cotidiano escolar nas primeiras décadas republicanas. Amúsica, além de amenizar e equilibrar o ambiente escolar – a música higiênica –, serviucomo educação sensorial, adquire uma posição de educadora moral e estética e, ainda,como espetáculo escolar, servindo para irradiar e propagandear a escola republicanapara toda a sociedade. A partir da produção musical escolar, apresentada nos periódicosda época, inferir sobre as temáticas que as canções carregavam, e de que maneira essastemáticas auxiliavam no projeto modernizador da sociedade. A música escolar trouxetemas como progresso e ordem, pátria, heróis nacionais, ideologia do trabalho e ciência.

música na escola; escola republicana; projeto modernizador; ideologia do trabalho;nação.

* Este artigo é uma parte da minha tese de doutorado, apresentada à Faculdade deEducação da Universidade de São Paulo (USP).

** Doutor e mestre em educação pela Faculdade de Educação da USP. Bacharel emhistória pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.

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In the compass of the progress

school music in first republican decades

Ailton Pereira Morila*

Abstract:This work has for objective to discuss the use of the music in the school and the functionsthat the same carried out in the daily school in the first republican decades. The musicbrightens up and balances the school environment – hygienic music. It served as senso-rial education, acquired the position of moral and aesthetic education, and, as spectacle,serving to advertise the republican school for all the society. Starting from the schoolmusical production, presented in the newspapers of the time, infer on the thematic, andhow this thematic aided in the project of modernization of the society. The school songhad themes like progress and order, country, national heroes, ideology of work and science.

music in the school; republican school; project of modernization; work ideology; nation.

* Doutor e mestre em educação pela Faculdade de Educação da USP. Bacharel emhistória pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.

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O projeto de modernização impetrado pelas elites republicanas éamplamente discutido na historiografia brasileira das últimas décadas.Nesse sentido, a historiografia educacional tem percebido a importân-cia da escola nesse projeto. Uma variedade de temas concernentes àescola republicana vem sendo desenvolvida ao longo dos anos, e recen-temente a música aparece como um dos temas.

Analisando os programas das escolas públicas de São Paulo pode-se perceber a grande importância da música no cotidiano escolar (Morila,2004). Diante disso alguns questionamentos podem ser pensados:

Qual a importância da música na escola? Quais as funções da músi-ca na escola? Quais as temáticas apresentadas nas canções escolares?Em que medida essas temáticas contribuíram para a realização do proje-to modernizador da República?

São essas questões que o artigo busca responder. Analisando algunsdiscursos da época se pode perceber – no primeiro item – as funções quea música desempenhou no ambiente escolar. No segundo item, procu-rou-se, a partir da produção escolar, entrever as temáticas presentes nascanções, os valores, as normas e os preceitos que se pretendia ensinar.Finalizando, os métodos utilizados para a confecção das letras e, ainda, oprocesso de ressignificação das canções populares é apresentado.

Funções da música na escola

Verificando os programas, percebemos que a música se coloca noambiente escolar em dois momentos distintos: 1) como uma disciplinaespecífica e 2) entremeando outras atividades escolares. É possível no-tar ainda que, quanto mais jovem a criança, mais a música permeia seucotidiano escolar. João Lourenço Rodrigues (1930), ao escrever suasmemórias, parece indicar o porquê:

[...] As crianças, que outrora fugiam com horror da escola, eram agora as

primeiras a chegar. Pudera! À imobilidade de outrora, que as fazia morrer de

tédio, sucediam agora, alternando com lições curtas, exercícios de marcha e

canto, que imprimiam à vida escolar um tom [1930, p. 217].

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Assim, a criança entrava na escola cantando, saia cantando e, entreas lições, cantava. Gabriel Prestes (1895), diretor da Escola Normal,justifica-se:

Mas como a natural actividade infantil faz com que o seu espírito não possa

applicar-se demoradamente sobre um mesmo objecto, o tempo escolar é sub-

dividido em períodos de 15 minutos no maximo.

Além disso, para manter-se um justo equilíbrio entre a actividade e a attenção

que as crianças tem de manter, os exercícios são geralmente intercalados de

marchas entre bancos, de canto ou de gymnastica, que constituem verdadei-

ros períodos de recreio, em que as crianças descansam o espírito, predispon-

do-se para novos exercícios [1895, p. 131].

Assim, ao mesmo tempo em que amenizavam o ambiente escolar,utilizando um recurso tão próximo à criança como a música e a brinca-deira, transformavam-na, ressignificando para valores consideradosimportantes. Mais que isso, reelaboravam o trabalho-lazer1, tão comumnas classes populares, isto é, dividiam e racionalizavam os tempos deum e de outro (trabalho e lazer), dentro de uma lógica industrial, aplica-da à escola (Hilsdorf, 2003, p. 66; Morila, 1999, p. 242).

Como poderíamos nomear essa atribuição da música na escola?Da mesma maneira que a arquitetura escolar foi influenciada pelos

saberes médicos, o ambiente e o cotidiano da escola também o foram.Gondra (2000), analisando a medicina e a educação escolar no séculoXIX no Brasil, fornece-nos um panorama elucidativo. “Os homens daciência médica” imbuídos com a construção de uma ordem civilizadanos trópicos e, respaldados pelos ideais que circulavam entre as Améri-cas e a Europa não se satisfazem em restringir seu campo de interven-ção ao corpo do indivíduo e à doença desse corpo. Os saberes médicosdeslocam-se constantemente para a sociedade e para a saúde. Preocu-pando-se com questões de ordem social, como o tabagismo, a poluição,

1. O termo trabalho-lazer indica um trabalho não industrial e não rotineiro no qual otrabalho não pode ser dissociado do lazer (Morila, 1999, p. 91).

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o clima, o infanticídio e incorporando outros saberes como a geografia,a demografia, a estatística, a topografia e a história, definem um novoramo da medicina:

O ramo da medicina que se ocupou da descrição e redescrição dos objetos

sociais, em conformidade com os cânones dessa Ciência, foi designado como

Higiene, ramo que se preocupou, sobretudo, com uma medicina do social

[Gondra, 2000, p. 251].

Dessa maneira caberia à higiene – como ramo social da medicina –atuar na sociedade com o intuito de evitar doenças, ou seja, cuidar da saúdesocial, intervindo nos ambientes, no viver cotidiano, enfim nos espaçossociais, garantindo a saúde social e com isso a ordem civilizada.

Nesse sentido, a música na escola também se torna objeto dos sabe-res médicos:

Ao caracterizar a educação na infância como tempo do repouso para o cére-

bro e exercício para os músculos, ele complementa a codificação do tempo

escolar, invadindo os recreios, indicando os exercícios que deveriam ser pri-

vilegiados nessa ocasião: a música, o canto e a dança. A primeira porque

“desenvolve e regula as aptidões do orgão da audição”; o segundo porque

“põe em acção os orgãos respiratorios, communica-lhes a força, e engrande-

ce o peito” e a dança porque “além de desenvolver, [...] os membros inferio-

res, imprime ao corpo movimentos regulares e regula a cadencia.” Aliás, a

preocupação com o preenchimento do tempo livre é um princípio caro à hi-

giene, na medida em que o tempo cheio e ocupado, especialmente pelos exer-

cícios físicos, era entendido como uma eficaz medida preventiva [idem,

p. 536].

Assim, a música – o canto e a dança – que entremeia as atividadesescolares, preenche o tempo livre segundo os preceitos desse ramo damedicina, auxiliando ainda no desenvolvimento e saúde da audição, darespiração e dos músculos, pode ser nomeada de música higiênica.

Essa concepção está em acordo com os princípios froebelianos. Aatividade física, as brincadeiras e os ritmos musicais auxiliam a criança

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a interiorizar regras bem como a perceber a racionalidade do universo –evidentemente uma transposição em termos laicos e burgueses da “uni-dade total do universo” de Froebel, concebida por este como “analogiaentre o mundo físico e espiritual” (Hilsdorf, 1998, p. 102).

Outra utilização da música na escola é a música como linguagem.No final do século XIX, a música vai galgando o status de linguagem,distanciando-se da definição romantizada e mitificada de arte e aproxi-mando-se do discurso científico-racional da época. (Morila, 2004).

Dessa maneira, a música é vista como um elemento importante naeducação das massas como sugere um artigo publicado n’A Provinciade São Paulo:

É considerando a musica como linguagem do sentimento que se póde facil-

mente explicar o grande prestigio que ella exerce sobre as massas compostas

dos mais disparatados elementos; um discurso, um effeito oratório póde dei-

xar insensível parte dos ouvintes; o discurso determina-se com muita justeza

e por isso mesmo póde estar de accordo com poucos [A Provincia de São

Paulo, 17/11/1882, p. 1, grifos meus].

A música – antes mesmo da linguagem falada – é considerada umalinguagem do sentimento e da sensibilidade. Uma linguagem que falamais aos sentidos e sentimentos do que à razão.

Rui Barbosa, no ano seguinte à publicação desse artigo, atenta paraa educação dos sentidos, aproximando-se da definição de música comolinguagem dos sentidos:

[...] é pelo exercício dos sentidos que a primeira educação há de atuar sobre

o espírito nascente, durante a idade inicial da existência humana, as im-

pressões sensoriais encerram em si o único meio possível de despertar a

alma – educar a vista o ouvido, o olfato [...] [Barbosa apud Veiga, 2000,

p. 408].

Gabriel Prestes concorda e vai além, em artigo n’A Provincia deSão Paulo, explica a importância de se ensinar música já nos primeiros

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anos. Partindo do princípio de que a capacidade de raciocínio2 aindanão está desenvolvida na criança, propõe, como uma primeira fase doensino “o desenvolvimento sensorial das creanças”. Tomando comoexemplo3 os chineses que preferem as cores intensas às gradações e, emmúsicas mais rítmicas do que harmônicas (preferem o tambor em detri-mento a instrumentos de corda) e justificando isso como uma falta deeducação sensorial, propõe:

Um programma, convenientemente organisado, deve, pois, prescrever exer-

cícios de toda a espécie sobre as cores primitivas e combinadas, de modo a

dar o conhecimento de todos os tons e matizes; e quanto ao desenvolvimento

dos orgams auditivos, exigir que nas escolas se ensine o canto, a principio

por simples imitação, que é também uma das faculdades infantis, e mais

tarde systematicamente por exercícios de musica [A Provincia de São Paulo,

20/05/1892, p. 1].

Como ele mesmo diz ao final do artigo, essa proposta está de acor-do com o método intuitivo. Jardim (2003) percebeu essa conexão entremúsica e método intuitivo, pois se o método intuitivo privilegia a edu-cação pela experiência através dos sentidos,

A música materializava estes intentos, pois ao mesmo tempo sensibilizava,

cativava e envolvia os alunos para diversas atividades; servia como forma-

ção e apoio para a educação total [Jardim, 2003, p.10].

Pestalozzi, um dos educadores em voga no discurso republicano, éa base teórica do método intuitivo proposto. Hilsdorf (1998) resume aconcepção de Pestalozzi:

2. Nesse sentido, a proposta de Gabriel Prestes (1892) está bem próxima à definiçãoanteriormente exposta. Por considerar que a capacidade de raciocínio não está com-pletamente desenvolvida na criança, lança-se mão de uma linguagem que fale dire-tamente aos sentidos.

3. Exemplo negativo, o que se deve evitar.

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O desenvolvimento mental, cognitivo, está fundado sobre a experiência, isto

é, sobre a intuição, que Pestalozzi define como a apreensão sensível das coi-

sas pela observação. A intuição permite apreender as propriedades dos obje-

tos, a forma, o número e o nome, que são as estruturas essenciais do mundo

criado pelo Divino construtor. Pestalozzi propõe começar pela experiência

intuitiva, concreta, não das palavras, como nos humanistas, ou das imagens,

como em Comênio, mas das coisas: a essa intuição ele chama de “lição das

coisas”. Depois, a criança passará à representação delas no desenho (a for-

ma), na aritmética (o número) e na língua (o nome), procedendo gradativa-

mente do mais fácil para o mais difícil, do mais próximo para o mais distan-

te, do mais concreto para o mais abstrato [1998, p. 97].

Note-se, da mesma maneira que o fez com Froebel, a República,que se pretendia laica, suprimiu a concepção religiosa de Pestalozzi,substituindo-a, sempre que possível, pelo ideal burguês de pátria. Por-tanto, os cantos aprendidos inicialmente por audição devem ser sim-ples, de fácil apreensão, caminhando para o mais difícil, educando as-sim o ouvido, os sentidos, para depois chegar à sua representação gráfica,a notação musical. Assim a música alcança um status privilegiado naeducação: a música como educação sensorial. Mas, ainda que GabrielPrestes (1892) proponha essa utilização da música como uma educaçãosensorial, identificando-a com o método intuitivo e também com as de-finições de música que estão sendo construídas no momento, como lin-guagem do sentimento e da sensibilidade, ele vai além, ao propor, noartigo citado, uma educação estética: “Este ensino de que me occupotem, portanto, uma pronunciada influencia esthética” (A Provincia deSão Paulo, 20/05/1892, p. 1).

Se a função higiênica e a educação sensorial explicam a presençamarcante da música entremeando e mesmo compondo as atividades es-colares, em especial nos primeiros anos de escolarização, a função esté-tica explicaria a presença marcante da música como disciplina na esco-la. Mas quais os motivos de educar esteticamente a população,considerando que o belo não estava mais na unidade da criação por umCriador, nos termos pestalozzianos?

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Quem nos auxilia nessa questão é Veiga, no texto “Educação esté-tica para o povo”. Enquanto alguns autores se preocupam com a “igno-rância” do povo e a necessidade de instruí-los, outros autores:

[...] se debruçaram sobre a questão da ausência de gosto ou do sentimento do

belo na população brasileira e que era tarefa urgente instituí-los. Essa educa-

ção estética referia-se às mais variadas formas de expressão artística como o

canto, a dança, a música, a literatura, o teatro, os trabalhos manuais, mas

principalmente às formas de educar para produzir uma emoção estética. A

concretização dessa educação se faria no desenvolvimento da capacidade de

contemplar a beleza urbana, seus jardins e edificações, a nova estética dos

prédios escolares e das salas de aula; pensou-se também nas festas cívicas e

escolares, auge de uma comunhão nacional e da homogeneidade cultural, em

que tocados são um só canto e uma só imagem [2000, p. 406].

A educação estética assim entendida possibilitaria a união da naçãoem um só gosto, em uma só cultura. A abstração liberal “todos são iguaisperante a lei” fundiria-se a uma estética una e para que isso fosse possí-vel era necessário educar o povo na estética da modernidade. Não só amúsica, mas a arquitetura urbana, os costumes burgueses, os valores dotrabalho e a racionalidade, a dança, a literatura amalgamavam a concep-ção de estética (Veiga, 2000, p. 400).

O sujeito “plástico” ou flexível criado a partir dessa estética estariapossibilitado de produzir estética, mas principalmente de “produzir umarecepção estética”, ou, em outras palavras, aceitar o acervo cultural dahumanidade; aceitar, entender e apreciar o belo. (Veiga, 2000, p. 406 e409).

O estético, assim entendido, e a educação estética devem aprimorarou criar no sujeito olhos e ouvidos atentos a uma concepção de belezacara a uma elite. O belo passaria a ser patrimônio social e não concepçãode uma determinada facção da sociedade. Pretendia-se hegemônico. Otrecho a seguir é extremamente elucidativo: “O trabalho de um professorde música deveria ter como objetivo educar os ouvidos para que a criançaestime a harmonia e ‘deteste a dissonância’” (Veiga, 2000, p. 412).

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Essa “educação dos ouvidos” sugere uma tentativa de inserir a crian-ça no que Gilioli (2003) chamou de “audição de mundo”, ou em outraspalavras no paradigma musical ocidental.

O paralelo entre esea concepção de educação e as intenções procla-madas por muitos dos músicos é evidente. Primeiro, produzir uma re-cepção estética significaria um aumento de público, e, mais ainda, deum público “esteticamente educado” e, portanto, apto a ouvir e enten-der a obra musical. E ainda “joeirar o joio do trigo” (A música paratodos, 1897 n. 36 p. 299-300), isto é, classificar, hierarquizar e mesmorepudiar determinadas obras musicais, consideradas “dissonantes” anteuma estética que se pretendia hegemônica (Morila, 2004).

A educação estética musical e também a educação estética atravésda música foram concepções importantes no período em questão.

A música adquiriu na escola outra função importante, e que muitasvezes aparece associada à sua qualidade de criadora de estética. Hilsdorf(1986), ao analisar a utilização de versos e canções nos textos didáticosproduzidos por Köpke, conclui que:

Essa orientação explica o permanente interesse de Köpke pela literatura in-

fantil e pela utilização de canções e versos como material de seus textos

didáticos, dos quais retirava valoração moral tanto quanto fruição estética

[1986, pp. 66-67].

A música serviria de veículo de valoração moral assim como defruição estética.

Tristão Mariano da Costa concordava com essa função estético-moral da música, propugnando o ensino da mesma, ainda em 1879:

A esta arte muito devem a civilisação, os bons costumes e o heroísmo militar.

Quando empregada na educação da mocidade é um poderoso meio de

moralidade: e a educação moral e intellectual, despertando em nosso coração

sentimentos de benevolencia e de amor, dá á intelligencia mais movimento e

vivacidade [1879, p. 78).

Ponto de concórdia entre educadores e músicos, o assunto era reto-mado sempre que possível. Em artigo de Ramalho Ortigão, cujo objeti-

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no compasso do progresso 85

vo era comentar uma obra de Verdi apresentada em Lisboa em março de1879, o autor não perde a oportunidade e afirma:

Os concertos deste genero são um dos grandes elementos da educação publi-

ca, elevam as faculdades estheticas, imprimem uma orientação moral [...] [A

Provincia de São Paulo, 8/5/1879, p. 1].

A educação musical, assim entendida, tornava-se uma bandeira co-mum levantada por músicos e educadores, capaz de elevar os costumes,o heroísmo, enfim imprimir uma “orientação moral”. Poderíamos no-mear de a música como orientação moral.

Alguns artigos fazem uma análise mais detalhada da questão, pro-curando sensibilizar não só os educadores, mas as autoridades governa-mentais. Tertuliano Euzébio de Souza, em artigo n’A Provincia de SãoPaulo, retoma, ainda que sinteticamente, o processo de colonização daAmérica, para demonstrar sua tese. A América, diz ele, tem sido o obje-tivo de aventureiros ávidos por fortuna fácil, relegando a arte e a ciên-cia. Em tom de lamento, conclui:

Não julgaríamos inteiramente perdidas estas linhas se convencessem alguns

espíritos da necessidade de uma educação artistica aprimorada. Certamente

nem todos os homens devem ser artistas; mas não se pode apparecer com

dignidade entre uma sociedade civilisada, com o espírito inteiramente inca-

paz de apreciar as grandes obras artísticas do mundo [A Provincia de São

Paulo, 28/10/1880, p. 1].

Ao falar em “sociedade civilisada” o autor remete-se à uma ques-tão cara ao período: a idéia de civilização.

Outro artigo, de Alonso Fonseca, escrito para o mesmo jornal em1882, faz a mesma aproximação entre música e civilização. Inicia oartigo explicando que “Paiz algum pode se considerar civilisado” senão procura “operar o progresso” na educação, unindo, no mesmo pará-grafo do texto, três conceitos básicos da vanguarda republicana, e queestavam em discussão no período: civilização, progresso e educação.Aproveitando, portanto, a discussão da época, o autor continua sua re-

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flexão, procurando demonstrar que sem o tripé formado pela ciência,pela moral e pela arte não há civilização. A arte deveria ganhar, segundoele, nos discursos e nas preocupações do governo, o mesmo status que amoral e que a ciência, pois:

Da harmonia que decorre d’estas tres faculdades humanas, devem partir to-

dos os esforços empregados em prol da educação popular, no sentido de se

elevar tanto uma como as outras ao mesmo nível e ao mesmo gráu de cultivo

e aperfeiçoamento [A Provincia de São Paulo, 27/08/1882, p. 2].

Para completar, destaca a música, tão menosprezada pelo governo,mas que “d’entre todas as artes a mais intima e a que melhores e maissalutares influxos exerce aos costumes, inquestionavelmente é a musica”(idem, ibidem).

O discurso apresentado pelo autor é extremamente elucidativo. Aomesmo tempo em que se põe ao lado dos que criticam o governo Impe-rial, tomando para si a “sciencia”, o progresso e a civilização e, portan-to, tirando essas características do Império, une, por assim dizer, a mú-sica a esse discurso progressista, falando diretamente aos leitores dojornal republicano.

Criar uma civilização dependeria, portanto, de elevar o gosto popu-lar, educá-lo esteticamente e, ao mesmo tempo, transformar os costu-mes, incutir novos valores e dar uma orientação moral. A música, noentender dos músicos e com anuência dos educadores, teria um papelprivilegiado nessa criação.

A mesma função da música pode ser observada nas festas escola-res. As festas escolares tinham uma função específica, como percebe-mos no Regimento Interno das escolas públicas do estado de São Paulo:

Atendendo a que as festas escolares têm por fim interessar o povo na educa-

ção da infância e despertar o estimulo e a emulação entre os alunos, os inspe-

tores deverão dar a maior solenidade possível a tais festas e procurar associar

a esses atos as autoridades, as famílias, e as pessoas gradas de cada localida-

de de seu distrito [decreto 248, de 26/7/1894 apud Souza, 1996. p. 229].

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No ano de 1894, na Escola Normal de São Paulo ocorreram cincofestas a fim de “solennisar algumas das datas notaveis da nossa historia”,nas quais afluía um público considerável: 21 de abril, 13 de maio, 8 dejunho, 29 de novembro e 7 de dezembro. (Prestes, 1895, p. 179).

Ao mesmo tempo em que serviam para marcar datas cívicas consi-deradas importantes para a nacionalidade, serviam como momentos paramostrar a escola. A escola republicana, que já se fazia ver através dosseus suntuosos edifícios, mostrava-se nessas festas como irradiadora deum saber e de um ethos republicano. Os exames eram festivos, compoesias declamadas por alunos, demonstrações de ginástica, exercíciosmilitares, representações teatrais e apresentações musicais nas quais sedestacava os hinos escolares cantados em coro e regidos pelo professorde música ou pelo diretor:

A parte musical da solemnidade esteve sob regencia do professor Honorato

Faustino de Oliveira, actual Director da Escola Normal [...].

Fez questão que na festa inaugural só figurassem alumnos da Escola [O Es-

tado de São Paulo, 3/08/1894].

Dessa maneira, a escola não se fechava em si, mas se expunha àsociedade, mostrando com isso o papel que procurava desempenhar paraessa sociedade. Inspetores, diretores e professores percebiam a impor-tância de se fazer ver, tanto que essas festas, cuidadosamente espalha-das ao longo do ano letivo, eram anunciadas nos principais jornais, pro-curando atingir boa parte da sociedade, tendo também a freqüência depolíticos e autoridades convidados individualmente.

A festa escolar e mais especificamente a música ganha o status deirradiadora, de propagadora. Podemos nomeá-la de música como espe-táculo escolar.

Esses discursos que elevavam a música à qualidade de civilizadora,de essencial em uma nação moderna (republicana), conseguiram seusobjetivos, se observarmos os programas das Escolas Preliminares eNormal. Assim, a música, além de amenizar e equilibrar o ambienteescolar – a música higiênica – e de servir como educação sensorial,adquire uma posição de educadora moral e estética, indispensável para

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a civilização moderna, segundo seus interlocutores. E ainda, como es-petáculo escolar, servindo para irradiar e propagandear a escola repu-blicana para toda a sociedade.

Respondidos os questionamentos iniciais, a saber, sobre a impor-tância e a função da música na escola, procuremos agora mostrar astemáticas das canções escolares.

Produção musical na escola

O número de canções escolares produzidas depois das primeirasreformas republicanas é grande. Hinos, canções escolares, brinquedos,adivinhações, cantos de despedida, de encerramento, de entrada. Cadamomento do trabalho escolar possui uma canção específica. A produçãomusical na escola pode ser encontrada principalmente nas publicaçõesdo período tais como A Eschola Publica, a Revista de Ensino e a Revistado Jardim da Infância.

Conforme Jardim, as melodias são compostas geralmente em tommaior4, “que dão uma característica alegre, abrangente, à música”. Alémdisso, são compostas em compassos binários (simples e compostos) equaternários, garantindo “o estímulo empolgante, marcado e animadodas composições” (2003, p. 92)5.

Encontramos na temática dessas canções os mesmos valores e pre-ceitos que permeiam os discursos oficiais sobre a sociedade brasileira eo papel da escola na construção da sociedade.

As canções assumem assim o papel de propagadoras desses valoresque se quer incutir. Se o discurso, quer seja escrito ou falado, ecoa porentre os letrados, a canção é o veículo mais eficiente para os estudantes

4. Uma peça no tom de dó maior é construída na escala de dó maior e gravita emtorno dessa nota, a tônica da escala. (Brandão, 2003).

5. Apesar disso, outros compassos aparecem como o ternário. Para uma apreciaçãomusical mais pormenorizada dessas canções, ver Jardim (2003). Para além do pe-ríodo em questão (1906), aparecem algumas inversões, como por exemplo, o usodo tom menor, “assemelhando-se às modinhas brasileiras”.

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e para grande parte da população. Na própria canção vemos essa impor-tância ser anunciada, como nos artigos precedentes:

[...] De manhan cedo á noite escura

Vamos cantar, cantar!

O canto é a vóz de uma alma pura,

Da vida é o despertar [Revista do Jardim da Infância, 1897, v. 2, p. 198].

A canção explicita o papel desempenhado pela música na socieda-de e assume essa função, ressignificando as canções para os valores quese quer incutir. Esse recurso, de ressignificar as canções, está explícitonesta canção:

[...] Como o trillar de um passaro, é seu canto

Hymno de amor [...]

Do berço os cantos troca pelos hymnos

Do estudo, aqui! [...] [A Eschola Publica, n. 9, 1894, pp. 71-72]

Assumindo o papel da música na sociedade, o que se faz é trocar ascanções da rua por canções escolares. As canções populares que acom-panham o cotidiano das classes populares quase como uma trilha sono-ra – envolvendo a criança desde o berço com as canções de ninar, eposteriormente na rua com as brincadeiras de roda e mais adiante comas diversas canções que retratam e criticam as condições de vida destasclasses – são preteridas em relação às canções escolares, repletas devalores que se quer incutir. Do berço passar-se-ia para a escola. As can-ções seriam substituídas pelos hinos, como sugere a canção acima. Res-significação do papel da música na sociedade.

Podemos agrupar as canções escolares de acordo com a temáticaapresentada.

“Marchar! Marchar!”

Um dos temas que aparecem com freqüência é a idéia de marchar –há aqui uma coincidência entre gênero (marcha) e tema (marchar):

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Vamos todos alegrinhos

Nosso guia acompanhar,

Bem marcados os passinhos,

Um após outro marchar [...] [Revista do Jardim da Infância, 1897, v. 2, p. 193].

Sintomaticamente, a marcha constituiu um dos gêneros de cançãoescolar e eram bastante empregados. N’A Eschola Publica encontramosuma cujo título é marchar: “Avante! Avante! Ó companheiros. Marchar!Marchar! [...]” (A Eschola Publica, ano I, n. I, 1896, p. 55).

A marcha no ambiente escolar está intimamente ligada à disciplina-rização dos corpos, e é freqüentemente associada aos exercícios físicos,aos exercícios marciais ou “gymnastica”. O corpo é disciplinado pelarepetição dos exercícios físicos responsáveis – segundo a ciência médi-ca da época – pela saúde. Ao mesmo tempo em que a disciplina docorpo é construída, a disciplina da mente também, e mais ainda, umsenso de hierarquia e racionalidade é construído. Assim se marcha se-guindo o guia (por vezes a professora, por vezes um aluno), lado a ladocom os colegas, como resume a professora Joana Grassi: “[...] além dohabito da ordem que sempre infundem, conduzem tambem a fins moraese uteis [...]” (Revista do Jardim de Infância, 1896, p. 254).

Mas a marcha assume, por vezes, um papel metafórico:

Não recuemos da frente um instante,

Não baixemos os olhos pr’o chão

Estudar e marchar para diante,

Seja a nossa divisa e brazão [A Eschola Publica, ano I, n. 3, 1896, p. 403].

O marchar associa-se ao ir em frente, adiante, não recuar, olharaltaneiro para um futuro que se quer conquistar. Mas ir para aonde?“Com amor, ao progresso, pela ordem”. A canção responde ao questio-namento: “[...] Tudo tende, no mundo, ao progresso: A progresso é quetudo collima [...]” (Revista de Ensino, ano V, n. 2, 09/1906, pp. 64-65).

O andar para o futuro tem asseio, ordem, disciplina e hierarquia. Oandar para o futuro transforma-se em “marcha para o futuro” como enun-cia a continuação do hino de autoria de João Köpke:

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[...] Tudo medra no mundo si nelle

Base dos actos a ordem prospera

Marca a Ordem, aos homens, Nova Era,

Si, por ella, se sabem guiar

Conjungidos por laços fraternos

Nos labores da paz empenhados,

Por lei livre, entre si vinculados,

A ventura hão de, ao certo, alcançar [...] [idem, ibidem].

A ordem é conseguida pela lei republicana, vista como uma vincu-lação entre todos os homens, como anseio e marca maior da sociedade.

Devemos ir, portanto, em direção a esse futuro tão almejado, mar-chando, mas com ordem, como sintetiza o mesmo hino:

[...] Com Amôr, ao progresso, pela Ordem,

As phalanges infantes marchando,

Vão contentes, ás mil, se casando [...] [idem, ibidem].

O futuro é uma marcha ascendente. Uma evolução. Vai-se para umlugar melhor, apesar de percalços existirem:

[...] Vacilla [...] o passo é incerto e mal seguro [...]

Teme cahir [...]

Mas, pela estrada larga do futuro

Eil-o a seguir! [...] [A Eschola Publica, n. 9, 1894, pp. 71-72].

Olhai em frente [...] Além daquele muro,

que separa o presente do futuro,

- que estará reservado á vossa vida?! [Revista de Ensino, ano III, n. 2, 06/

1904, p. 190].

Está claro o final:

[...] Patria! nascestes para a luz da historia!

Patria! surgistes para o nosso amor! [...] [Revista de Ensino, ano III, n. 4, 10/

1904, pp. 425-428].

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Cabe aqui um parêntese. A ontogênese confunde-se com asociogênese, a criança com seu passo incerto vai para frente, o estudan-te, mesmo receoso de seu futuro a ele se entrega. Do sucesso dessaontogênese depende o futuro da sociogênese, isto é, do sucesso da esco-la depende o futuro da sociedade brasileira, do lugar da nação no mun-do, na história.

Um é o espelho do outro. A cada valor de um corresponde a umvalor no outro. A canção mostra para o indivíduo e para a sociedade aslições a serem seguidas para alcançar o futuro grandioso.

A trajetória individual começa em casa. Afinal, como dizia JoãoKöpke, a família co-educa (Hilsdorf, 1986, p. 66). Não qualquer casa,não qualquer lar. Mas um lar em que os preceitos do viver modernoimperam. Não é por acaso que esses preceitos de lar burguês encontramressonância nas canções do jardim-da-infância, não exclusivamente, masprincipalmente. Mais do que nunca o amor materno – e com ele o papelda mulher na construção da sociedade – se transforma em arquétipo:

[...] Foi de mamãe que vieste,

Com beijos, doce viajor,

Em paga do que me deste,

Leva todo o meu amor [Revista do Jardim da Infância, 1896, v. 1, p. 60].

A mãe amorosa, que tem em seus filhos o principal objeto de suaexistência, acompanha carinhosamente o despertar:

De manhan quem me desperta

É de mamãezinha a vóz,

Que vai, cariciosa e certa,

Ao seio de todos nós [Revista do Jardim da Infância, 1897, v. 2, p. 198].

É a mãe presente também ao longo do dia, como seu olhar sempreatento:

[...] Mas eu sou creancinha,

E brinco, noite e dia,

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Com mamãesinha

Que me vigia [Revista do Jardim da Infância, 1896, v. 1, p. 62].

E na chegada da escola a mãe é quem recebe a criança, premiando-a pelo trabalho e esforço desprendidos na escola:

E quando alegres volvemos

Aos lares, no fim do dia,

No olhar de mamãe nós temos

Mais o premio da alegria [Revista do Jardim da Infância, 1897, v. 2, p. 199].

O lar, a casa, cujo centro é a mulher que rege ao mesmo tempo emque compartilha seu amor é também o local de obrigações que desdecedo são aprendidas:

Gosto muito de accordar

E levantar-me cedinho;

Quem madruga no meu lar

Somos eu e o canarinho.

Vou para o banho sósinho,

Depois vestir-me e pentear,

E mamãe e papaesinho

Muito contente abraçar.

Corro e brinco emquanto posso [...]

Depois, vou a mesa e almóço

Com appetite sem fim.

E então, no braço o cestinho,

Alegre tomo o caminho

Do nosso bello Jardim [Revista do Jardim da Infância, 1896, v. 1, p. 248].

Assim a casa é o lugar onde os primeiros comportamentos são apren-didos, onde sempre se deve retornar:

[...] Mas, da tardinha ao brando açoite

Voltae, voltae depressa aos lares,

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Que vem pertinho a escura noite.

Vinde que á hora habitual [...] [idem, p. 51].

A divisão entre o público e o privado. Finda as atividades públicas,nada de ficar pelas ruas. A volta ao lar é um ensinamento que cedo seapresenta. Também o é acordar cedo: [...] Quem na caminha ficou. Nãosabe a vida gozar [...] [Revista do Jardim da Infância, 1897, v. 2, p. 197].

Ser gentil, meigo são caracteres desejados e incentivados: [...] Vózmeiga e doce riso. Devemos ter [...] [idem, ibidem].

Falar pouco, saber ouvir, ter bons modos são atributos para viverem sociedade:

Minha bocca tem juizo,

Não desperdiça um thesouro;

Só falla quando é preciso,

Sabe que o silencio é de ouro,

Olhos abertos

E fino tacto,

Ouvidos certos

E gosto e olfacto [...] [Revista do Jardim da Infância, 1896, v. 1, p. 256].

Poder-se-ia dizer que a canção acima teria simplesmente o objetivode ensinar sobre os sentidos, ainda mais se pensarmos que toda a educa-ção da criança está voltada para os sentidos6. Entretanto, a canção nãosó ensina os sentidos, mas o bom modo de usá-los.

Um outro exemplo disso é o seguinte exercício de dicção:

[...] Em boa companhia

A gente a vida goza,

E cousa proveitosa

Aprende cada dia [...] [idem, ibidem].

6. Segundo Pestalozzi: “Começai pelos sentidos e nunca ensineis a um menino o queele puder descobrir por si”. Máxima do ensino da época pode ser encontrada emmuitos dos artigos do período. Ver Souza (1996. p. 142).

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Esse exercício de dicção almeja mais do que o bem falar, ser ouestar em boa companhia – como a dos colegas da escola – é a mensagemdo exercício.

Se os primeiros aprendizados dão-se no âmbito doméstico, é naescola, porém, que o ensino complementa-se necessariamente. A histo-riografia indica que é justamente nesse momento que, na cultura oci-dental, ganha força a idéia do jardim-da-infância como “segundo lar”7.A mestra assume as funções da mãe e a escola a função do lar. A criançadeve aceitar os ensinamentos da professora, assim como aceitou os damãe. A mestra deve comportar-se de maneira amorosa, carinhosa, asse-melhando-se às mães:

E as mestras são as mamãezinhas

Bemvindo todos, bom dia! [A Eschola Publica, ano I, n. III, 1896, p. 223].

O lar e o jardim-de-infância desempenham o papel de “ninho” ex-plícito em diversas canções:

[...] Adeus! Jardim formozo, amado ninho, adeus! [...] [Revista do Jardim da

Infância, 1897, v. 2, p. 200].

E:

Comnosco vae-se a alegria

Deste delicioso lar;

Da infancia a doce magia

7. De acordo com Kuhlman Jr., o primeiro kindergarten foi aberto em 1840 emBlankenburgo por Froebel, que “pretendia não apenas reformar a educação pré-escolar, mas por meio dela a estrutura familiar e os cuidados dedicados à infância,envolvendo a relação entre as esferas pública e privada”. Ainda segundo o autor,desde 1812 havia uma preocupação do que fazer com as crianças abaixo da idadeescolar. A difusão do Jardim da Infância pelo mundo ocorre principalmente a partirde 1860. Segundo Bastos (2001, p. 32), no Brasil, o primeiro jardim-de-infânciaque se tem notícia é de iniciativa particular, o Jardim de Crianças do Colégio MenezesVieira, no Rio de Janeiro, fundado em 1875.

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Vae deste ninho voar.

Vamos, portão, bem aberto!

Jardim, vaes ficar deserto! [idem, ibidem].

Se o lar, a mãe e a mestra são os instrumentos necessários para aboa formação da criança, indicando os caminhos corretos da ontogênese,a pátria e os grandes heróis da história o são para a sociogênese.

“Brazil esplendido, jardim em flor”

O Brasil, a exemplo do lar e da escola é um local maravilhoso, umjardim:

[...] Ó cara Patria

meu doce amor

Brazil esplendido

Jardim em flor

Tua belleza

Não tem rival

Ó terra fulgida

Sem outra egual!

Sempre no mundo [...] [Revista de Ensino, ano V, n. 2, 09/1906, p. 65].

A exuberante natureza, a riqueza dos solos e a pureza do clima sãoexaltados:

Minha Patria é um apiz magestoso,

de invejavel, suprema belleza,

paraiso da paz e do goso

onde é linda a immortal natureza!

Quem procura estas plagas respira

puros climas e vê-se feliz

Nosso céo tem a côr da saphyra

Rico é o solo do nosso paiz [...] [Revista de Ensino, ano IV, n. 4, 08/1905, p. 716].

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Da mesma maneira que se deve amar e respeitar a mãe, o lar, aescola e a professora, é preciso amar o Brasil:

[...] A tí, pois, ó querida

Mãe patria estremecida,

Meu sangue, minha vida

Meu coração [...] [Revista de Ensino, ano I, n. 2, 06/1902, p. 332-340].

Ou ainda, convenientemente fazendo a ligação mãe e pátria, ou pátriae família:

[...] O minha patria amada!

Ó mãe abençoada

de todos nós! [...] [idem, ibidem].

Ou:

[...] Quer co’o livro, quer co’o malho

A família e a Pátria honrando [...] [A Eschola Publica, ano I, n. I, 1896, p. 53].

A pátria é o lar, a mãe e como tal deve ser respeitada e defendida: éo que fizeram os grandes heróis da história, modelos e exemplos decomo se portar.

“Ante os vultos grandiosos da história”

Alguns heróis e alguns acontecimentos que são comemorados emdatas específicas são eleitos como marcos da história, marcos dasociogênese brasileira. Todos deveriam conhecê-los, e mais, imitá-losou memorizá-los.

O primeiro marco que aparece é o Descobrimento do Brasil. Houveum concurso para a escolha do hino do 4º Centenário do descobrimento.A Revista de Ensino publica dois desses hinos, um deles é publicadoduas vezes. O primeiro, de autoria de João Carlos Dias (melodia) e Gui-marães Passos (letra), indicado na revista como premiado, busca des-

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crever as intempéries da viagem de Cabral, as tormentas que enfrentoue a chegada à terra:

[...] Ha perigo de alguem naufragar?

Marinheiros não temem o mar.

Formidavel redobra a tormenta,

Mas as naus santa idéa conduz

Sua audacia o perigo accrescenta;

Tem de christo nas velas a Cruz [...] [Revista de Ensino, ano III, n. 5, 12/

1904, pp. 500-503].

A chegada à terra é tida como vontade divina:

[...] Diz Cabral, eis aqui Santa Cruz!

Gloria a Deus que nos fez aportar

A esta terra no mundo sem par [...] [idem, ibidem].

Enquanto esse primeiro procura erigir o Brasil como uma “terrasem par”, o outro vai além. Esse hino, de José Carlos Dias (melodia) eBrasilio Prisco (letra), fala das caravelas, da chegada, das terras virgense lindas, do acolhimento do “gentio”, glorificando Cabral, como o pri-meiro herói brasileiro:

[...] gloria áquelle varão que primeiro

nossa terra do mar avistou;

gloria ao grande, immortal marinheiro

que esta terra do nada tirou! [...] [Revista de Ensino, ano III, n. 4, 10/1904,

pp. 425-428].

O marco está claro. O Brasil era “nada”, não tinha história. Cabraltrouxe ao mundo esta terra. E se o Brasil entra para a história nessemomento, a música prevê um futuro grandioso:

[...] Gloria a quem o seu nome venera!

Gloria aos filhos da patria viril!

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Gloria a quem vêr maior inda espera

entre as grandes nações – o Brasil!

Patria! nascestes para a luz da historia!

Patria! surgistes para o nosso amor!

Gloria ao Passado renascente, e gloria

ao nome excelso do navegador! [...] [Revista de Ensino, ano III, n. 3, 08/

1904, pp. 349-352].

O Brasil estaria pronto – nesse momento específico da história –para brilhar, lançar-se na luz da história. Futuro grandioso por certo eque influenciaria toda a humanidade: “[...] quando em pról dos destinoshumanos, desvendou-se este bello paiz [...]” [Revista de Ensino, ano III,n. 4, 10/1904, pp. 425-428).

Um segundo marco de extrema importância é a Proclamação daRepública. Nos periódicos educacionais pesquisados não aparecem can-ções sobre a Independência. O “Hymno á Republica” de Luiz Galvãode Moura Lacerda (letra) e B. Machado (melodia) indica-nos o porquê:

[...] Bravos filhos de heroes esquecidos,

Hoje os feitos lembraes [...]

Derrocastes os thronos infindos,

Sem exemplos em historias eguaes

- Bravos filhos de heroes esquecidos

- Hoje os feitos de luz entoaes [...] [Revista de Ensino, ano I, n. 5, 12/1902,

pp. 987-990].

A República derrocou os “thronos infindos”. Mesmo após a Inde-pendência, o Brasil não tinha, supostamente, liberdade, pois era coman-dado por um monarca, um anacronismo no pensar dos republicanos. Aliberdade, pois, é conquistada na República, e não na Independência8:

8. A questão da não comemoração do 7 de setembro pode ser observada em outrasinstâncias. Um caso exemplar é o “museu do Ipiranga”. Disputas acaloradas en-volveram o projeto, segundo Hilsdorf (1993), Rangel Pestana tentava a todo custo

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[...] Sem o sangue dos Reis derramar

Liberdade clamamos, ó bravos

O Brazil hoje é livre d’escravos

Hoje livre o podemos cantar [...] [idem, ibidem].

Essa interpretação faz sentido se percebermos a construção de ou-tro herói nacional, o herói republicano:

[...] Salve, salve, inclito martyr,

Sanguinolento pharol,

Que accendeste no horisonte

Da liberdade o arrebol! [...] [A Eschola Publica, ano I, n. II, 1896, p.147].

Este hino, de Antonio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e Silva(melodia) e Bernardo Guimarães (letra), revela a saga de um herói queaté hoje nos recordamos ao ouvir um trecho da canção:

[...] Do teu mutilado corpo

Os membros esquartejados

Foram echos rugidores,

Aos quatro ventos lançados [...] [idem, ibidem].

Tiradentes. Murillo de Carvalho (1990) descreve a construção des-se ambíguo herói, misto de herói político, militar, místico e por vezesrevolucionário, que até hoje povoa o imaginário nacional. Carvalho ocaracteriza como o único herói possível da República – ao menos nosmomentos seguintes à Proclamação. Se não era o herói de todos os seto-res que fizeram a República, também não desagradava ninguém. Fazen-

utilizar o dinheiro advindo da “loteria do Ipiranga” para a educação, chegandomesmo a dizer que “nossa intenção não é celebrar o trotar do ginete imperial”.Mesmo depois de definido como museu – e já na República – a destinação foi deum museu de História Natural, pois segundo Hilsdorf “à falta do que evocar ecelebrar como instituição histórica – já que recentíssima, a República não iria esti-mular o imaginário monárquico [...]” (1993, pp. 153-155).

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deiros de café, militares, positivistas, todos o aceitaram como um possí-vel herói (1990, pp. 55 e ss.) Mas há um ou outro elemento a considerar.Não seria anacronismo eleger um homem do Brasil Colônia para heróida República? A escrita da história não se furta a cometer anacronismos,quando convém. Entretanto, mais do que um anacronismo, a figura deTiradentes remete o início do movimento republicano – ao menos emrepresentação – para um passado distante. No hino de Tiradentes, citadoanteriormente, está explicito:

[...] Esse sangue derramado

Pelo brutal

Despotismo

Foi da pátria brazileira

O sacrosanto baptismo [...] [A Eschola Publica, ano I, n. II, 1896, p.147].

Batismo. Se o Descobrimento é o nascimento, a Inconfidência Mi-neira é o batismo. Novamente a ligação ontogênese e sociogênese. Co-locar o início da República, da liberdade, da independência no séculoXVIII é desavalizar o papel do Império no Brasil, é desqualificá-lo en-quanto regime e enquanto independência. O Império visto dessa manei-ra é um percalço, um acidente histórico, que a República vem redimir9.

Essa ligação Tiradentes-República-Independência fica clara em outracanção:

[...] Satisfeitos e contentes

Devem sempre se abraçar

Os irmãos de Tiradentes

Os irmãos de Bolívar

9. Outra conveniência pode ainda ser apontada, coincidentemente ou não: a escolhade Tiradentes como herói republicano leva a iniciativa da República brasileira qua-se que coincidir, em termos temporais, com a independência americana. Esta simum nação digna de ser imitada no pensar de muitos republicanos do Brasil doséculo XIX.

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Nesse hino, “Saudação ao Chile” de René Barreto (letra) e AntonioCarlos Ribeiro de Andrada Machado e Silva, Tiradentes e Simon Bolívarsão apresentados como heróis da Independência.

Simbolizando todos os heróis que simbolizam o país, teríamos tam-bém a bandeira: “A bandeira que temos é santa [...]” (Revista de Ensino,ano IV, n. 4, 08/1905, p. 716).

A bandeira simboliza o amor à pátria, bem como o amor à pátriadeve ser uma bandeira, como sugere a canção num jogo de palavras:“[...] Terei como bandeira. O amor á patria” (Revista de Ensino, ano I, n.2, 06/1902, pp. 332-340). Convém atentarmos para os heróis escolares.Algumas das figuras que participaram ativamente da construção da es-cola republicana são lembradas e imortalizadas nas canções escolares.Uma delas é Caetano de Campos, diretor da Escola Normal de São Pau-lo e executor da reforma arquitetada por Rangel Pestana. Mas é Caetanode Campos que merece as honras:

[...] De Caetano de Campos tivemos

Bello exemplo que é nosso ideal;

Imitando-lhe a vida, teremos

O mais santo e seguro fanal?

E no peito de cada menino

O Brasil um bom filho terá

Mais brilhante será seu destino [...] [Revista de Ensino, ano I, n. 5, 12/1902,

pp. 984-986].

Em “Salve Escola”, de José Ivo (melodia) e Romão Puiggari (le-tra), o escolhido como herói escolar foi Gabriel Prestes, que mereceuum hino intitulado “hymno Gabriel Prestes”:

[...] Exultemos de jubilo immenso,

Ante os vultos grandiosos da historia

Que a honraram com luz e bom senso

Deparando-lhe um dia de gloria:

Imitemos em nossa romagem

A phalange que jaz esquecida,

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Contemplemos alegres a imagem,

Do futuro da Patria querida [A Eschola Publica, ano I, n. III, 1896, p. 403].

Cabe lembrar que as revistas publicavam biografias de educadoresnotórios, acompanhadas, por vezes, de seus retratos. Havia duas seçõesespecíficas na Revista de Ensino: “pantheon escolar” e “pantheonpedagogico”. A criação de uma cultura escolar passava pelo ver, ler eouvir a história de seus “construtores”.

Dessa maneira, vai-se construindo um ideal de história Pátria aomesmo tempo em que se constroem modelos de comportamento.

Mas, quais são as virtudes que unem os heróis e que ensinam comoproceder? Quais os valores que devemos ter conosco?

“Vence a miséria o trabalho”

Em um país recentemente saído da escravidão, no qual o trabalho éassociado ao negro, a ideologia do trabalho torna-se um item caro aosideais de modernização da sociedade. Dignificar o trabalho passa a fa-zer parte da agenda do dia, assim como a perseguição do não-trabalho.Uma das perspectivas da imigração era justamente apagar – em muitossentidos – o estigma do trabalho construído em séculos de escravidão10.Com práticas imediatistas, como a imigração, e práticas corretivas ecoercitivas, como a “invenção” e perseguição da vadiagem e da mendi-cância, a educação completa o conjunto de medidas para inculcar-seuma ideologia do trabalho. A canção tem o seu papel.

A ideologia do trabalho é construída desde a infância. Nas cançõesinfantis é fácil perceber:

Ja viste o moinho girando

Ao sopro de vento amigo?

10. Um dos autores que trabalharam a questão, Chalhoub (1986), afirma que “o con-ceito de trabalho precisava se despir de seu caráter aviltante e degradador caracte-rísticos de uma sociedade escravista” (1986, p. 40).

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Dia e noite trabalhando

Móe o milho, móe o trigo [...] [Revista do Jardim da Infância, 1896, v. 1,

p. 50 e p. 254].

Como a própria autora, Zalina Rolim, nos explica, esse brinquedo“desperta nas creancinhas o gosto pelo trabalho”. Outra canção coloca otrabalho como algo natural:

Ribeirinho, que vaes correndo,

Alegre, sem parar,

Fica um instante aqui comnosco [...]

Não gostas de brincar?

E o ribeirinho diz: não posso,

Eu tenho o que fazer;

O meu caminho é muito longo,

Seguil-o é o meu dever [...] [idem, pp. 63-64].

O trabalho é natural para o rio, mas é também um dever. O moinhode vento é novamente utilizado para remeter à questão do trabalho:

Gira, gira, meu moinho

Gira sem parar,

Presto, vivo, ligeirinho [...]

É bom trabalhar!

Vae e vem, rodinha agora,

Dia e noite a toda hora

Que has de por fim descançar [idem, p. 61].

Outro elemento entra em cena: o descanso. A ideologia do trabalhoque se quer inculcar se desvencilha da noção de trabalho das classespopulares. O trabalho das classes populares, ou melhor, a luta pela so-brevivência é algo ininterrupto, mas é também um misto entre trabalhoe lazer, como vimos. A separação entre tempo do trabalho e o tempo de

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descanso e lazer, fundamentado nas noções científicas da época, é pre-ceito novo que se quer incutir:

O dever das creancinhas

É brincar, brincar, brincar [...]

No brinquedo as cabecinhas

Ganham forças p’ra estudar.

E quando alegres volvemos

Aos lares, no fim do dia,

No olhar de mamãe nós temos

Mais o premio da alegria [Revista do Jardim da Infância, 1897, v. 2, p. 199].

Além da divisão em tempo de lazer (“brincar, brincar”), tempo dedescanso (“no fim do dia)” e tempo de trabalho (“estudar”), a cançãoescolar hierarquiza de certa forma o trabalho. As crianças devem brin-car e estudar. Esse é seu papel na hierarquia do trabalho. No “Hymno deabertura dos trabalhos escolares” de Luiz dos Reis está explicitada essahierarquia, não só no título como na letra: “[...] Pois só é digno da vida.Quem estuda e quem trabalha [...]” (A Eschola Publica, ano I, n. I, 1896,p. 53). Quem não estuda e não trabalha não é digno, está marginalizadoda sociedade. A vadiagem – conceito criado na época11 – é o nível maisbaixo da escala do trabalho e deve ser, portanto, corrigido. Como secorrigir o vício do não-trabalho? Com o trabalho:

[...] Vence á Miséria o Trabalho,

Do vicio nos libertando,

Quer co’o livro, quer co’o malho

A família e a Pátria honrando

É na eschola a luz da Sciencia

Que se illumina a Razão

Prepara-se a Consciencia,

Formando-se o Coração [...] [idem, ibidem].

11. Ver a esse respeito Fausto (1984) e Kowarick (1987).

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Não se deve temer o trabalho. Não se deve reclamar de seu papel nasociedade, de seu papel na hierarquia do trabalho, pois cada um tem suafunção. Se o trabalho das criancinhas é “riso e gozo” (idem, p. 223),contrastando com outros trabalhos menos prazerosos, o “Hymno ao Tra-balho” de Antonio S. de Castilho (letra) e Silvado (melodia) nos ensina:“[...] Lei suprema, o trabalho é a vida. Trabalhar! Trabalhar, meus ir-mãos! [...]” (idem, pp. 378-379). Se o trabalho dignifica e une todos oshomens, outro preceito deve ser também valorizado.

“Aprendamos a sciencia”

A crença inabalável na ciência aparece de forma sistemática nascanções: “[...] Aprendamos a sciencia. Amor puro. Consagremos á Patriagentil [...]” (Revista de Ensino, ano IV, n. 4, 08/1905, p. 716).Concomi-tantemente à crença na ciência, aparece o ideal das luzes, como nessehino de João Köpke:

[...] Progresso, aspira

Noss’alma a vós

Luz sobre nós

Vossa influencia! [...] [Revista de Ensino, ano V, n. 2, 09/1906, pp. 64-65].

O Iluminismo aparece mesmo como uma cruzada, uma guerra sim-bólica como nesta canção, “Grande Pátria”, de Julio Prestes (letra) eJosé Carlos Dias (melodia):

[...] Cruzada que não tem cruzes,

Guerra que o sangue não tem;

Nessa batalha de luzes

Espalharemos o bem [...] [Revista de Ensino, ano III, n. 3, 08/1904,

pp. 343-348].

As luzes, a ciência, a razão e o trabalho são as ferramentas necessá-rias para avançar, para evoluir, para o Brasil alcançar seu lugar na histó-

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ria. Lançar luzes ou iluminar, e obscurantismo e trevas são metáforascomplementares. Luzes são sinais de progresso de evolução, de moder-nidade. Obscurantismo e trevas representam atraso, involução. Nessaluta, ou melhor, nessa cruzada ou batalha de luzes, a escola assume opapel principal, ressaltado por Luiz dos Reis no “Hino de abertura dostrabalhos escolares”:

[...] É na eschola a luz da Sciencia

Que se illumina a Razão

Prepara-se a Consciencia,

Formando-se o Coração [...] [A Eschola Publica, ano I, n. I, 1896, p. 53].

Através da instrução e do ensinamento contido nos livros a que eladá acesso, os caminhos serão iluminados, o destino será traçado, comodiz “O livro”, de Maranhão Sobrinho (letra) e Maria Piedade (melodia):

[...] O livro arranca das almas

os mais secretos thesouros!

Aos heróes que o manuseiam

Tece corôas de louros!

O livro – broquel de luzes

Dos fastos do progredir,

ë a chave d’ouro das portas

Do pantheon do porvir! [...] [Revista de Ensino, ano I, n. 3, 08/1902,

pp. 560-563].

Ou ainda:

[...] Compre um santo apostolado

O Livro – um guia seguro -

É a obra do Passado

Que abre as portas do Futuro [...] [A Eschola Publica, ano I, n. I, 1896, p. 53]

As crianças e a mocidade são, então, “operários da luz”. São elasque, instruindo-se no ideal das luzes, garantirão a passagem do Brasil

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para a modernidade, como demonstra o “Hymno da Escola Normal deSão Paulo” de José Ivo: “[...] A caminho buscando a verdade. Segueimpávido a luz do futuro [...]” (Revista de Ensino, ano II, n. 1, 04/1903,pp. 75-77). Cumprido esse caminho, isto é, garantindo que os jovenssejam educados na luz da ciência e da razão – e nesse sentido a EscolaNormal e os normalistas teriam um importante papel, como vimos nohino anterior – o futuro mostra-se grandioso:

[...] No horizonte da Pátria fulgura

Com a aurora a Razão, a Alegria...

[...]

- No horizonte da Pátria fulgura

- com a aurora – a Razão, a Alegria [...] [Revista de Ensino, ano I, n. 5, 12/

1902, pp. 987-990].

A escola republicana, como sugere este “Hymno a Republica”, deLuiz Galvão de Moura Lacerda (letra) e B. Machado (melodia), deveriagarantir que esses preceitos fossem assimilados e transmitidos, garan-tindo então o futuro tanto almejado.

Ressignificando as canções populares

As temáticas apresentadas mostram os valores e os preceitos que sequer transmitir por meio da escola. Mas a metodologia empregada parase atingir a esses objetivos também pode ser percebida nas canções es-colares. Alguns padrões podem ser encontrados.

O primeiro princípio é o do exemplo, ou caso exemplar. Como jávimos acima, o exemplo dos “vultos grandiosos da história” deve serseguido. Na seqüência dos casos exemplares, o mestre aparece tambémcomo um exemplo a ser seguido e valorizado pelos seus esforços:

[...] Aqui, a esfórços insanos,

o mestre rasga os arcanos

á inteligencia infantil [...] [Revista de Ensino, ano III, n. 2, 06/1904, pp. 210-212].

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Ou como nesta:

[...] Olhos fitos no roteiro,

Embarquemos nos a [ilegível]

O mestre é bom timoneiro

Que nos conduz ao porvir [...] [A Eschola Publica, ano I, n. I, 1896, p. 53].

Além do exemplo, percebemos nessa última canção, de Luiz dosReis, uma outra metodologia: a comparação. O mestre é o timoneiro deum barco que o dirige rumo ao futuro. Em outra canção, a mesma com-paração é feita:

[...] E assim, repletos de fé,

bem como outr’ora Noé,

na barca que nos conduz

- marinheiros pertinazes -

chegaremos, sempre audazez,

ao grande porto da Luz! [...] [Revista de Ensino, ano III, n. 2, 06/1904, pp.

210-212].

Já Caetano de Campos em seus discursos utilizava-se da compara-ção e, coincidentemente, em um deles aparece a comparação com obarco, o navegar e o marinheiro que precisa de orientação: “Entregarum navio a um marinheiro que nuca navegou – é insensato” (Memóriaapresentada em 1891 ao Dr. Jorge Tibiriça pelo Dr. A. Caetano de Cam-pos apud Rodrigues, 1930, p. 266).

As comparações não terminam aí. O ensino, que nas duas cançõesanteriores se aproxima do ato de navegar, tendo como timoneiro o mestree como marujos os estudantes, rumo ao porto da “Luz”, também é compa-rado com uma batalha, uma guerra, ou uma cruzada. Assim, neste “hymnode encerramento dos trabalhos escolares” de Luiz dos Reis teríamos:

[...] Saudando o Mestre, – livros fechados -

É justo agora que descancemos;

Forças refeitas, quaes bons soldados

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P’ra novas luctas, nós voltaremos [...] [A Eschola Publica, ano I, n. I, 1896,

p. 54].

Ou nesta de Luiz Galvão, mais explícita:

[...] Avante! Avante! Ó companheiros,

Marchar! Marchar!

Somos na eschola os granadeiros

Que um nome illustre, – brazileiros,

Vão para a Pátria conquistar [...] [A Eschola Publica, ano I, n. I, 1896, p. 55].

Se a educação é uma luta, uma batalha, alguns elementos se desta-cam nessa guerra. Um deles é o mestre, de que já falamos. Outro é o livro:

[...] O livro, quando abre as folhas,

Desdobra as azas supremas,

Despejando sobre os mundos

Constellações de poemas! [...] [Revista de Ensino, ano I, n. 3, 08/1902, pp.

560-563].

Os cuidados com o livro, com a escola e com os mestres que emúltima instância representam o saber, vão pouco a pouco sendosacralizados em uma comparação religiosa:

[...] Os nossos livros – bons Evangelhos -

Guardar podemos com muito amor;

Do mestre amigo – lições, conselhos,

Nós já tivemos de alto valor [...] [A Eschola Publica, ano I, n. I, 1896, p. 54].

O livro merece uma canção própria composta por Maranhão Sobri-nho (letra) e Maria Piedade (melodia), obviamente intitulada “O livro”

[...] Façamos da Idéa um templo,

Façamos do livro um deus.

Mãos ao livro! O livro é tudo!

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O livro hombreia com a cruz [...]

Messias – ensina ás almas

Os evangelhos da luz! [...] [Revista de Ensino, ano I, n. 3, 08/1902, pp. 560-563].

O livro é o evangelho desses novos tempos, é o messias, é Deus.Para pessoas acostumadas com o ensino religioso, essas comparaçõessão extremamente importantes. E se o livro ganha esse status, a escolamerece também sua sacralização:

[...] Aqui também neste templo,

Ninho de alegres creanças,

Em cujas faces contempla

Doce porvir de esperanças [...] [Revista de Ensino, ano II, n. 2, 06/1903, pp.

158-161].

Este hino, composto por Carlos Ferreira (letra) e Antonio CarlosRibeiro de Andrada Machado (melodia) para o segundo grupo escolarde Amparo, confere à instituição o patamar de ninho, mas também detemplo. Não um templo religioso, mas um templo do saber:

[...] O dever impeioso nos chama

ao altar sacrosanto da Escola

Gloria ao mestre que sabio derrama

sobre nós essa luz que consola!

Eia! entremos no templo do ensino!

seja o nosso ideal o Saber!

Gloria ao nosso Cruzeiro divino!

Pela Patria viver e morrer! [...] [Revista de Ensino, ano IV, n. 4, 08/1905, p. 716].

A escola é o altar (“sacrossanto”), é o “templo do ensino”. O livro éo evangelho, messias, verdade e luz. O mestre é quem dentro do templonos guia através da verdade do livro, do conhecimento. O mestre assu-me ares de pastor. Imagem forte, mas que ecoa no viver das pessoas dofinal do século XIX e início do XX.

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E os alunos o que são?

[...] Entremos neste sacrario,

Onde moureja o operario

da luz que aclara a Razão [...]

Vamos rezar nossas rezas

- almas devotas e presas -

deante do altar da instrucção [...] [Revista de Ensino, ano III, n. 2, 06/1904,

pp. 210-212].

Este “Hymno Infantil” de Antonio Carlos Ribeiro de Andrada Ma-chado (melodia) e P.S. (letra) completa a visão da escola enquanto tem-plo. Os alunos são as almas devotas rezando no altar da instrução. Al-mas que devem ser salvas pela verdade, pela luz dos livros, com oprovidencial auxílio do mestre.

Às comparações com a religião, com a batalha ou com a navegaçãosomam-se à comparação com a natureza. Essas, por serem mais sim-ples, mais imediatas, povoam os brinquedos e as canções infantis, em-bora apareçam por vezes nas demais canções escolares.

A escola, e mais especificamente o jardim-de-infância é um ninho:

Inda está fechado agóra

O portão deste jardim;

De abril-o é chegada a hora

Eis-nos em ferias por fim.

Vamos, portão, bem aberto!

Jardim, vaes ficar deserto!

Comnosco vae-se a alegria

Deste delicioso lar;

Da infancia a doce magia

Vae deste ninho voar [...] [Revista do Jardim da Infância, 1897, v. 2, p. 200].

Nesse sentido, a escola é um ninho, como também o é a casa. Acriança tal qual passarinho voa entre esses dois ninhos:

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E, findo o trabalho,

Têm os passarinhos

O doce agasalho.

Dos tépidos ninhos.

Trá, lá, lá etc.” [Revista do Jardim da Infância, 1897, v. 2, p. 227].

Por vezes a escola é um jardim e as flores são as crianças:

[...] No rosto alegres côres,

Branduras de setim;

Sejámos como as flôres

O encanto do jardim [Revista do Jardim da Infância, 1897, v. 2, p. 202].

Variações dessa comparação aparecem com freqüência:

[...] O canto infantil consola

E nos augmenta o vigor.

A creança é para a escola

Como o aroma é para a flôr! [...] [Revista de Ensino, ano III, n. 3, 08/1904, p.

323].

Em outra canção, de Julio Prestes (letra) e José Carlos Dias (melo-dia), as flores são ainda o tema, mas a comparação é outra: “[...] Temcomo livros – as flores. Tem como flôres – a escola [...]” (idem, pp. 343-348).

É, porém, nas canções intituladas “Flôres da primavera” e “Cantopara a entrada” que encontramos a imagem que caracteriza melhor essacomparação entre a natureza e o ensino:

[...] Amigas, da primavera,

O doce beijo divino,

Tambem na infancia aceléra

A florescencia do ensino [Revista do Jardim da Infância, 1896, v. 1, pp. 66-68].

E:

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[...] Salve, salve, Jardim formoso,

Que abres em flôr nossas alminhas! [...] [A Eschola Publica, ano I, n. III, p. 223].

A criança é uma flor, mas que necessita de cuidados para desabro-char. Carinho, compreensão e educação são por assim dizer o adubopara elas. As mestras dedicadas e carinhosas – como a mãe – são asjardineiras, título, aliás, dado às professoras do jardim-da-infância.

Outras comparações estão presentes, como esta a seguir, de Anto-nio Peixoto:

[...] Na escola nossa colmeia,

que nos prende e nos seduz,

A creança sempre anceia

Beber os favos da Luz! [...] [Revista de Ensino, ano III, n. 1, 02/1905, pp. 558-560].

Outra metodologia implícita nas canções escolares é a paródia. Uminteressante exemplo desse processo é a canção abaixo:

Fecho o dedo polegar

Para o indicador abrir

Vem o médio se deitar

E reto fica o anular

Que o mínimo vai dormir [A Escola Pública, 1896, pp. 225-226].

Comparando-a com uma conhecida canção popular infantil, perce-bemos a semelhança:

Dedo mindinho

Seu vizinho,

Pai de todos,

Fura-bolos

Mata-piolhos.

Este diz que quer comer

Este diz que não tem o que

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Este diz que vá furtar

Este diz que não vá lá

Este diz que Deus dará [Freitas, 1985, pp. 211-212].

Ressignificando os nomes dos dedos, os versos da canção escolarrepudiam algumas funções populares dos dedos (como “furar bolo” e“matar piolho”), atribuindo-lhes novas funções (“indicar”, por exem-plo) e novas nomenclaturas já cientificizadas. Por vezes essa metodolo-gia de parodiar, ou melhor dizendo, de ressignificar – ou da contrafa-ção, como nomeou Burke (1989, p. 249)12 – aparece de forma explícita,como na canção “Mamã, papá”, de Hypolito da Silva, que já vimos, masque vale a pena repetir:

[...] É do affecto dos pais, carinho santo

Luz e calor!

Como o trillar de um passaro, é seu canto

Hymno de amor

[...]

Eil-o afinal aqui! Na eschola agora,

Comnosco está

Seu riso fulge com clarões de aurora

Que raiou já!

Do berço os cantos troca pelos hymnos

Do estudo, aqui! [...] [A Eschola Publica, n. 9, 1894, pp. 71-72].

Aqui os cantos infantis, típicos da cultura popular devem ser subs-tituídos pelos cantos escolares como sugere a canção anterior: “do ber-ço os cantos troca pelos hymnos”. Reforçando a idéia de troca, de paró-dia, de contrafação, esta canção (“Mamã, papá”) deve ser cantada como

12. Burke explica o termo e sua origem na cultura protestante: “Ao escrever, eles em-pregavam freqüentemente o método de Contrafaktur, para empregar o termo deLutero; em tradução direta é ‘contrafação’, mas no sentido de transposição ou subs-tituição, como nos casos em que os hinos eram modelados por canções populares eadaptados às suas melodias” (1989, p. 249, grifos meus).

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a melodia da canção popular napolitana “Funiculi-funiculá” conformeindica a revista A Eschola Publica (1894, pp. 71-72).

Algumas considerações e comparações entre a música popular e amúsica escolar devem ser feitas. Em uma primeira impressão os temasapresentam-se como completamente distintos. A canção escolar traz,como vimos, os temas da marcha ao progresso com ordem (itens: “Mar-char, marchar” e “Com amor, ao progresso pela ordem”), pátria (“Brazilesplendido, jardim em flor”), heróis nacionais (“Ante os vultos grandio-sos da história”), ideologia do trabalho (“Vence a miséria o trabalho”) eciência (“Aprendamos a sciencia”). As canções populares trazem comotemas o trabalho e a luta pela sobrevivência, a fatalidade da vida, a sau-dade (da pátria, de um tempo passado, da infância), conselhos e adver-tências, anti-heróis, lutas e mudanças (Morila, 1999).

Mas, uma comparação pormenorizada entre elas revela dados maisinteressantes. A fatalidade da vida que envolve desilusões, perdas, cons-ciência de um futuro incerto e repleto de dificuldades (Morila, 1999, p.141 e ss.), e no limite, a morte, é substituída pela marcha inequívocapara o progresso, embasada pela ciência e norteada pela lei. Assim, se ocaminho das classes populares é um caminho tortuoso e perigoso, cheiode imprevistos, o caminho proposto pela escola republicana é uma es-trada reta e segura.

O trabalho para as classes populares é sempre relacionado a umaluta incessante pela sobrevivência permeado por momentos de lazer(Morila, 1999, p. 141 e ss.). Já na canção escolar o trabalho, racional-mente organizado e separado do lazer – é garantia de melhorias, garan-tia de vencer a condição de miséria.

As desilusões amorosas, as saudades da terra distante (África, Itáliaetc.), ou de um tempo passado, são substituídas pelo amor incontestequer seja à educação, expressa nos livros e mestres, quer seja ao Brasil,expresso nos seus heróis e símbolos. Aliás, a cultura popular tem tam-bém seus heróis, ou melhor, anti-heróis. Se o herói da escola é aqueleque com sua vida proba, íntegra e pública melhora o destino da pátria ese mostra, portanto, como exemplo a ser seguido, o anti-herói popular oé simplesmente por ter quebrado o cotidiano, muitas vezes independen-te de sua vontade (Morila, 2004).

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no compasso do progresso 117

A circulação de conselhos e advertências necessários à sobrevivên-cia das camadas populares é comum nas canções populares, ao passoque a canção escolar, utilizando-se de metodologias como a paródia, acomparação e o exemplo, transmite valores, normas e condutas caros àelite republicana, valores, normas e condutas que se deseja das demaiscamadas da sociedade.

Percebemos, portanto, um amplo processo de contrafação ou res-significação. A canção escolar (e a cultura escolar) transpõe, modela,substitui a canção (e a cultura) popular. Esta é de tal maneira transfor-mada que muitas vezes a vemos como completamente distinta. Trans-formada a canção, ela tem a função de ajudar na transformação da so-ciedade com valores que se quer transmitir, em um movimento dialético.

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Endereço para correspondência:Rua Gal Vicente de Paula Dale Coutinho, 343

Araraquara-SP

CEP 14806-230

E-mail: [email protected]

Recebido em: 22 jul. 2005Aprovado em: 17 fev. 2006

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Em defesa de “legítimos interesses”

o ensino secundário no discurso educacionalde O Estado de S. Paulo (1946-1957)

Bruno Bontempi Jr.*

Resumo:Este artigo apresenta o discurso educacional de O Estado de S. Paulo após o EstadoNovo, articulando sua atualização às mudanças do jornalismo. As reformas empresariale gráfica vividas a partir de 1945, que visavam à modernização do jornal e ao incremen-to de suas vendagens, conduziram à predominância das notícias e reportagens em detri-mento da opinião, transformando os editoriais em lugares privilegiados para a sua mani-festação. A nova política de recrutamento de colaboradores, por sua vez, trouxe daFaculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (USP) algunsde seus primeiros bacharéis, o que permitiu que os intelectuais da USP, por meio dosescritos de Laerte Ramos de Carvalho, convertessem suas idéias sobre o ensino secun-dário em “opinião pública esclarecida”.

O Estado de S. Paulo (jornal); Universidade de São Paulo; Laerte Ramos de Carvalho;opinião pública; ensino secundário.

* Doutor em educação: história e filosofia da educação. Pontifícia Universidade Ca-tólica de São Paulo.

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In defense of “real interest”

secondary education in the educationalspeech of O Estado de S. Paulo (1946-1957)

Bruno Bontempi Jr.*

Abstract:This article presents the educational speech of O Estado de S. Paulo after the EstadoNovo, articulating its update to the changes of the journalism. The reforms enterpriseand graphical developed from 1945, aimed to the modernization of the periodical andthe increment of its sales. That had lead to the predominance of the notice and newsarticles in detriment of the opinion, transforming the editorials into privileged places forits manifestation. The new politics of conscription of collaborators, in turn, brought ofthe College of Philosophy, Sciences and Letters of the University of São Paulo (USP)some of its first “bacharéis”. That allowed that the intellectuals of the USP, by means ofthe writings of Laerte Ramos de Carvalho, converted its ideas on secondary educationinto “clarified public opinion”.

O Estado de S. Paulo (newspaper); University of São Paulo; Laerte Ramos de Carvalho;public opinion; secondary education.

* Doutor em educação: história e filosofia da educação. Pontifícia Universidade Ca-tólica de São Paulo.

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em defesa de “legítimos interesses” 123

Este artigo trata da atualização do discurso educacional de O Esta-do de S. Paulo (OESP) nos anos que se seguem à queda do Estado Novo,momento crucial em que, ao acompanhar as mudanças em curso noâmbito da imprensa periódica de grande circulação, a sociedade anôni-ma que controlava o jornal empreendeu reformas empresariais e gráfi-cas visando à ampliação de suas vendas e do número de leitores, aomesmo tempo em que procurou assegurar o poder de persuasão da opi-nião pública e de influência na política nacional por meio da renovaçãode seu quadro de colaboradores. No que tange às questões educacio-nais, assunto considerado de maior importância pelos redatores do jor-nal desde os tempos do Império, a contratação para a redação das colu-nas sobre educação do jovem licenciado da Faculdade de Filosofia,Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (FFCL-USP), LaerteRamos de Carvalho (1922-1972), é indicativa do movimento de atuali-zação do jornal quanto a seu discurso educacional, em uma etapa deci-siva para os rumos da educação brasileira, em que transcorreu a tramita-ção do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB)1.

A pesquisa em que este texto se baseia consistiu de dois procedi-mentos: reunião, junto à literatura especializada, de informações sobreo processo de renovação da imprensa brasileira em curso nas décadasde 1940 e 1950, e seleção e leitura das colunas redigidas por Ramos deCarvalho em OESP sobre o ensino secundário, de 1946, data de seusprimeiros artigos assinados, até 1957, quando, após tramitação na Co-missão de Educação e Cultura, o projeto de LDB foi finalmente postona ordem do dia do Congresso Nacional2. A data limite justifica-se por

1. Lei n. 4.024, de 20 de dezembro de 1961, publicada no Diário Oficial da União em27 de dezembro de 1961.

2. Os editoriais redigidos por Ramos de Carvalho, identificados como tais e reunidospor Marta Maria Chagas de Carvalho, encontram-se preservados no acervo do Centrode Memória da Educação da Faculdade de Educação da USP. Dentre as fontes queforam associadas ao corpus documental desta pesquisa, destaque-se a série de Anu-ários da FFCL-USP, pertencente ao acervo do Projeto Memória da atual Faculdadede Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) e preservados no Centro deApoio à Pesquisa Sérgio Buarque de Holanda (CAPH), Departamento de História eGeografia da USP.

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ter esse fato imediatamente desencadeado uma volumosa série de edito-riais, em sua maior parte redigidos por Ramos de Carvalho, sobre aLDB. Essa série, cuja culminância dá-se na Campanha em Defesa daEscola Pública, desloca, seja quantitativamente, seja qualitativamente,o foco das atenções do jornal, anteriormente fixado nos problemas doensino secundário3.

O objetivo deste artigo, ao ensaiar a articulação entre as histórias daimprensa e da educação no Brasil, é sublinhar que a educação de fatoocupava um espaço considerável em órgãos de imprensa do porte de OESP,motivo pelo qual o trato de suas questões não pode ser omitido das narra-tivas da história da imprensa e da política brasileiras de após 1945; e, noque tange à história da educação brasileira, realizar mais um esforço dereconstituição do ambiente em que determinadas idéias e proposiçõeseducacionais foram formuladas e puderam circular. O tratamento articu-lado dos editoriais de Ramos de Carvalho sobre o ensino secundário aoprocesso de atualização de linguagem, formato e alcance do jornal, bemcomo a sua significação no movimento de reorganização das forças ideo-lógicas abafadas no Estado Novo, nas quais se inclui o “grupo d’O Esta-do”, permite estimar o alcance das idéias educacionais desse grupo sobreo conjunto da sociedade, por meio da conversão, que o veículo de comu-nicação de massa proporciona, de seu discurso em “opinião pública”4.

3. De 1946 a 1957, o tema do ensino secundário é o mais freqüentemente tratadopelos editoriais. O deslocamento de foco para a discussão da LDB dá-se logo noinício do ano de 1958: em fevereiro e março, o jornal publica dois importanteseditoriais, “Da liberdade de ensino” e “Educação e monopólio”, nos quais Ramosde Carvalho inaugura a série em que se posiciona, e ao grupo que representa, nadisputa em torno da questão desencadeada pelos substitutivos do deputado CarlosLacerda (1958 e 1959), de “monopólio estatal versus liberdade de ensino” (cf.Barros, 1960, p. XXII; Carvalho, 2003). Acrescente-se, ainda em favor da periodi-zação aqui adotada, o fato de ter sido iniciada em 1957 uma política de criação denovos estabelecimentos de ensino secundário pelo governo do estado de São Pau-lo, pela qual o número de ginásios elevou-se a proporções inauditas, notadamentenas áreas suburbanas e periféricas da capital, alterando assim o quadro do períodode 1946 a 1957, sobre o qual versa a maioria dos editoriais selecionados.

4. Dizer que a presente análise permite “estimar” o alcance das idéias consiste emreconhecer a necessidade de uma investigação complementar que possa operar

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em defesa de “legítimos interesses” 125

Redemocratização do país e atualização do jornal

Em janeiro de 1945, começou a circular a declaração de princípiosredigida durante o I Congresso Brasileiro de Escritores, em que eramdefendidas a legalidade democrática, a liberdade de expressão e a reali-zação de eleições diretas para a presidência da República. A 22 de feve-reiro, o Correio da Manhã ousou publicar uma entrevista em que JoséAmérico de Almeida (ex-ministro da Viação de Vargas e ex-candidato àpresidência pelo Partido Comunista do Brasil em 1937) tratava de elei-ções; no mesmo dia, o repórter Edgard da Mata Machado divulgou, emO Globo, que o brigadeiro Eduardo Gomes seria o candidato de oposi-ção à presidência da República. Em maio, fechou-se o Departamento deImprensa e Propaganda (DIP), órgão a que coubera, desde 1939, o con-trole e a censura à imprensa no Estado Novo. Dentre os fatos que assi-nalaram o fim da censura à imprensa na ditadura varguista destaca-se,ainda, a restituição, a 6 de dezembro de 1945, de OESP à família Mes-quita, após cinco anos de intervenção federal.

Os cinco anos de intervenção federal sob a ditadura de Vargas ja-mais foram apagados da memória de OESP, nela figurando como umatemporada de restrição à liberdade e à autonomia do jornal. Tanto éverdade, que o slogan escolhido em 1975 para as celebrações de seu

com os indícios de sua apropriação, não apenas pelos “leitores comuns”, mas tam-bém por aqueles que, no ambiente político, tiveram participação decisiva na for-mulação das leis e dos atos do Executivo que tocaram as questões educacionais noperíodo. Considera-se, entretanto, que os seguintes fatores possam ter pesado emfavor da penetração das idéias educacionais publicadas pelo jornal: OESP mante-ve-se, ao longo de toda a primeira metade do século XX, na condição de primeiroou segundo jornal diário mais lido no país; o leitor interessado encontrava em suaspáginas, desde o Império, o assunto educacional em grande destaque; OESP man-tinha a reconhecida tradição de organizar campanhas e inquéritos educacionais; oseu quadro de colaboradores contara sempre com intelectuais de prestígio. Sualegitimidade como porta-voz do discurso dos especialistas em educação torna-sepatente em fins da década de 1950, quando o jornal passou a publicar não só amaior parte dos artigos, mas também as declarações de princípios e manifestos doseducadores paulistas em combate aos substitutivos de Carlos Lacerda ao Projetode LDB e em favor da escola pública.

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centenário foi “cem anos de fundação e noventa e cinco de vida inde-pendente” (OESP, 1/1/1975). O que os narradores da memória de OESPnão contam, porém, é a vantagem que resultou da intervenção federal: aboa saúde econômica da empresa. Sodré (1983, p. 382), Abramo (1986,p. 28) e Andrade (apud Abreu, Lattman-Weltman & Rocha, 2003, p. 36)insinuam que a empresa teria saído economicamente fortalecida da in-tervenção, uma vez que sabidamente o DIP distribuía verbas aos jornaise emissoras por ele dirigidas.

Com dinheiro em caixa, Júlio de Mesquita Filho e Francisco Mes-quita investiram a partir de 1947 em um projeto que compreendia aaquisição de novas rotativas e de material gráfico e o envio de estagiá-rios para o exterior, nomeadamente aos Estados Unidos (Bahia, 1990, p.310). O objetivo era reorganizar a empresa sob molde dos modernoscomplexos jornalísticos norte-americanos, uma vez que os sinais dedecadência de OESP já se faziam sentir. De acordo com Abramo (1986,p. 29), que nele ingressou em 1948, o jornal vivia um “período de deca-dência jornalística, não por falta de imaginação, mas porque os quadroshaviam envelhecido. O dr. Julinho já era um homem de certa idade, osmeninos eram muito jovens – e naquele tempo os jovens não davammuito palpite”.

Os editoriais eram chefiados por Mesquita Filho e a redação eraconduzida por Sérgio Milliet, homens que, nascidos no século XIX,mantinham intactas a “ênfase à política” e a importância conferida aoseditoriais e “artigos de fundo”. Quanto ao aspecto sisudo de seu “espe-lho” e ao rigor de sua escrita, estes começaram a mudar lentamente,após Giannino Carta trazer dos Estados Unidos a inspiração gráfica doLouisville Courier Journal (Mino Carta apud Abreu, Lattman-Weltman& Rocha, 2003, p. 205) e até que se consolidasse a reforma iniciada em1952. As modernas máquinas instaladas no prédio da rua Major Quedinhopassaram a rodar um jornal remoçado sob a batuta de Cláudio Abramo,secretário de redação, quando OESP passou a contar com diagramadores,a adotar uma logística mais racional para a realização de coberturas ereportagens, a usar uma linguagem mais clara e precisa, progressiva-mente isenta do purismo e preciosismo que eram a sua marca registrada(Abramo, 1986, pp. 29-31; Ribeiro, 1998, p. 55).

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Com o movimento de renovação, essa empresa de fins lucrativosreagia em grande parte à concorrência dos jornais inovadores na apre-sentação gráfica e na cobertura jornalística, assim como à ameaça dorádio, que, com programas como o Repórter Esso, abalava a predomi-nância do jornal como fonte de informação cotidiana (Abreu, Lattman-Weltman & Rocha, 2003, p. 69; Ribeiro, 1998). Havia ainda as revistasilustradas, que desde a década de 1930 vinham encantando a classe médiacom variedades, ilustrações e linguagem simples, e a televisão, cujostelejornais diários começavam a ganhar espaço e angariar atenções. Es-timuladas pela necessidade de competir com outros veículos de comu-nicação de massa e apoiadas na evolução tecnológica dos processosgráficos, empresas jornalísticas como OESP completaram o círculo vir-tuoso da modernização com a alteração da base de sua receita, antesapoiada nos anúncios classificados, que a partir de 1950 passou a serescorada na publicidade das agências em até cerca de 80% de seu mon-tante (Bahia, 1990, p. 228). De acordo com Abreu (1996, p. 17), o “aportede novos recursos permitiu também a modernização gráfica da empresajornalística” ao final dessa mesma década, refletindo-se em transforma-ções formais e de conteúdo nos periódicos.

Com relação à apresentação das matérias, por exemplo, da evolu-ção da boneca tipográfica feita na oficina pelo paginador para o traçocalculado do diagramador na redação, resultava um jornal menos “po-luído” e mais atraente do que nos tempos em que coexistiam na primei-ra página mais de quatro dezenas de títulos misturados (Ribeiro, 1998,pp. 27-28). Modificações também houve na linguagem do jornalismoimpresso, que se deram um pouco mais tarde, aparentemente em sincro-nia com o tempo necessário para que os estagiários enviados ao exteriorpudessem aprender e trazer ao Brasil as maneiras do jornalismo “infor-mativo utilitário”, caracterizado pelo uso do lead5 e pela busca da clare-za, concisão e naturalidade de expressões. Tal mudança de estilo, iniciada

5. Lead, no jargão jornalístico, designa o parágrafo inicial da matéria escrita, no qualo jornalista anuncia os elementos básicos da notícia: que, quem, onde, como e porquê, a fim de orientar o leitor.

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nos jornais do Rio de Janeiro em meados dos anos de 1950, foi sendoaos poucos imitada e adotada por outros jornais, até disseminar-se comoum padrão que veio marcar a imprensa escrita brasileira por mais deduas décadas (Breguez, 2000; Seabra, 2002).

Na transição da imprensa escrita brasileira para um novo estilo, emque a informação correta e concisa se tornou a pedra de toque e em quea notícia prevalecia sobre a opinião, os jornais delimitam os espaçosreservados a cada um de seus componentes, sempre com a ajuda preci-osa dos diagramadores. Assim, aparecem com destaque as reportagens,textos que davam ao leitor a idéia de que o repórter estivera presente aolocal do acontecido, que falara com as pessoas e, por isso, relatava fiel-mente as informações (Ribeiro, 1998, p. 58). As reportagens combina-vam-se, pela mão do diagramador, com fotos testemunhais, em compo-sições que podiam prescindir da palavra escrita, como na televisão.

No mesmo movimento, os jornais diários de grande circulação ins-tituíam os suplementos literários, concentrando em um caderno editadoapenas nos finais de semana os temas da alta cultura, os intelectuais quedeles se ocupavam e, é claro, a sua linguagem característica (Abreu,1996)6. Convergindo para o processo de dar privilégio à notícia e deconfinar a literatura, a nova configuração dos jornais tornava os “edito-riais” e as “notas” ou “colunas” refúgios da opinião e do tratamentoaprofundado e “literário” dos temas do momento. Nesses espaços so-brevive um tipo mais aparentado ao antigo “jornalista intelectual”, que,em razão das mudanças na organização do trabalho experimentadas nasempresas de comunicação de massa, se distancia do jornalista típico demeados do século XX, este sim, empurrado para a proletarização.

A seção “Notas e Informações”, espaço opinativo diário e de desta-que na terceira página de OESP7, pela qual haviam passado intelectuais

6. OESP lançou o seu suplemento literário em 1953.7. Por serem lidas antes da página par e antes da parte inferior da página, tanto a parte

superior como as páginas ímpares são espaços considerados “nobres”, tanto porjornalistas como por anunciantes. De acordo com Travancas (1993, p. 30), não só oprestígio do jornalista que tem o seu texto publicado nesses espaços aumenta, mastambém os anúncios neles dispostos têm preço superior aos demais.

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de renome, atravessou incólume todo o período de reforma do jornal,permanecendo em seu espaço original e mantendo teor e linguagemusuais. A crença dos Mesquita de que o jornal deveria “influenciar opensamento das pessoas, [...] fazer com que os leitores [tivessem] argu-mentos para continuar pensando de determinada forma ou para mudarde idéia, depois de lerem certos textos” (Augusto Nunes apud Abreu,Lattman-Weltman & Rocha, 2003, p. 335), não permitiu que mudançasradicais atingissem os editoriais. Abramo (1986, p. 35) comentou maistarde que, “de 1956 a 1961 o Estado se tornou, talvez, um dos jornaismais bem-feitos do mundo, embora os editoriais fossem medievais...”.Ainda que as modificações empreendidas ao longo dos anos de 1950tivessem tornado o diário mais informativo, as colunas da seção “Notase Informações”, que estamparam os escritos de Ramos de Carvalho oraanalisados, preservaram, em sua linguagem e conteúdo, a tradição opi-nativa que distinguia OESP aos olhos do público8.

A renovação dos quadros

Tendo sido reconduzido à direção do jornal, que ocupara desde ofalecimento de Júlio de Mesquita, em 1927, Júlio de Mesquita Filhoprocurou renová-lo, a fim de tornar economicamente viável o principalproduto de uma empresa que se pretendia rentável. Isso implicava, diantedas condições da concorrência e de acordo com as tendências pressenti-das, alterações na linguagem utilizada, no formato e, portanto, no pro-cesso de produção do jornal.

Quanto aos aspectos político e ideológico, porém, é provável queuma outra mudança tenha sido considerada necessária para que OESP

8. Já em fins dos anos de 1980, o jornalista Augusto Nunes, então diretor de OESP,ouviu de Mauro Salles a seguinte instrução: “‘O Estadão é conhecido pela opinião,você tem que dar destaque a isso’. Na primeira reforma que fiz, três meses depoisde chegar, passei a chamar o editorial na capa. Foi o primeiro jornal que fez isso,ninguém fazia. O dr. Júlio ficou feliz” (apud Abreu, Lattman Weltman & Rocha,2003, pp. 309-310).

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pudesse manter a sua condição de legítimo portador de um discursocoerente e potente na fiscalização do poder público e na formação da“opinião pública esclarecida”. Urgia a renovação do quadro de reda-tores e colaboradores regulares do jornal, de modo que não fosse arra-nhada a cultivada tradição liberal, mas que as antigas posições fossematualizadas e até mesmo revistas, a fim de que o periódico pudesseenfrentar, com a proverbial galhardia, o novo momento político queentão se inaugurava.

O indício mais forte de que Mesquita Filho visava à atualização dojornal por meio da renovação de quadros é o fato de a empresa, imedia-tamente, ter contratado intelectuais recém-formados pela USP. Em 1946,foram incorporados ao quadro de colaboradores três ex-alunos da FFCL:Decio de Almeida Prado, que passou a escrever críticas de teatro, LourivalGomes Machado, incumbido de comentar política internacional, e LaerteRamos de Carvalho, encarregado dos assuntos educacionais. Decisãoapropriada, posto que fazia chegar às páginas de OESP os bacharéis daFFCL, que ao longo de duas décadas de funcionamento da USP forma-ram-se no programa de excelência projetado pelo próprio Mesquita Fi-lho, juntamente com Fernando de Azevedo e Paulo Duarte, e conduzidopelos mestres estrangeiros. Eles viriam dar continuidade à longa tradi-ção de OESP, de ser um jornal de intelectuais (Cardoso, 1982, p. 47),inaugurando, porém, uma “fase acadêmica”. Assim, se até os anos de1930, na ausência de uma “verdadeira” universidade, o jornal se incum-bira da tarefa de divulgar a cultura superior e lutar contra o“indiferentismo cultural” da pátria, a partir de meados dos anos de 1940a universidade engendrada já o municiava para tanto. Mesquita Filhoalimentava o periódico com os frutos recém-amadurecidos de sua pró-pria intervenção no mundo acadêmico paulista e brasileiro, ao incorpo-rar as perspectivas das “ciências desinteressadas” lá cultivadas, a fim deque o jornal interpretasse adequadamente (no duplo sentido de “corre-to” e de condizente com a linha ideológica adotada) os novos temposanunciados pela volta da democracia.

Da parte dos jovens intelectuais, é certo que a remuneração não erao fator mais atraente para a carreira jornalística, posto que nela os salá-rios eram baixos, mesmo se comparados aos dos professores secundári-

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os (Ribeiro, 1998, pp. 31-41)9. Talvez tenha movido os bacharéis a gal-gar postos na redação de OESP a oportunidade de ocupar uma tribunapública bem mais visível do que a universidade e de integrar um seletogrupo de formadores da “opinião pública”, exatamente no momento emque as empresas jornalísticas sustentadas por altos capitais eliminavamos pequenos jornais artesanais e semi-artesanais, promovendo o estrei-tamento dos canais de expressão popular e aumentando a desproporçãoentre produtores e consumidores de informação e opinião. Esse fenô-meno exigia dos interessados em opinar nas tribunas públicas que sedeslocassem para as redes formadas em torno das empresas de comuni-cação de massa.

A convergência da auto-imagem do intelectual moderno, “conscien-te” e “eloqüente” (Foucault, 2001, pp. 70-71), com a da própria impren-sa, pauta, certamente, o engajamento do primeiro na luta propalada pelasegunda. A imprensa, a quem a sociedade teria outorgado o direito e odever de fiscalizar o poder público, a fim de evitar os abusos e desviosautoritários do Estado e garantir a própria democracia ao dar visibilida-de à coisa pública (Silva, 2002, p. 48; Novelli, 2002, pp. 186-188), tor-na-se, pois, a sua cadeira cativa. O papel de “quarto poder” e a funçãode “cão de guarda”, alicerces do paradigma liberal da imprensa, adqui-rem nova configuração em OESP desde meados dos anos de 1940, coma realimentação acadêmica do antigo “jornal de intelectuais” pelos ba-charéis da FFCL da USP.

9. De acordo com Sodré (1983, pp. 417-420), o ano de 1944 marca o início de umlongo processo de deterioração dos salários da categoria. Se, em 1944, um re-dator recebia mensalmente o equivalente a cinco salários mínimos, em 1957passou a receber apenas 2,6 salários mínimos. De acordo com Sandroni (apudTravancas, 1993, p. 75), “todo jornalista tinha emprego público, isso porqueera uma tradição o jornal pagar mal. O jornal não passava de um trampolimpara o indivíduo se tornar político, funcionário público ou escritor”. O primei-ro plano de cargos, salários e funções no âmbito da imprensa brasileira, “com oqual os jornalistas passavam a ganhar um salário com o qual podiam viver semter emprego público”, teria sido organizado e posto em prática por Jânio deFreitas em meados dos anos de 1950, como um dos itens da reforma do Jornaldo Brasil (idem, p. 63).

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Laerte Ramos de Carvalho e a retomada dodiscurso educacional

Em 1946, em obediência ao dispositivo que atribuía à União a “com-petência de legislar sobre as diretrizes e bases da educação nacional”, anova Constituição projetara a elaboração da LDB. Em abril de 1947,uma comissão dava início aos trabalhos para, em 1948, produzir o ante-projeto que, enviado pelo presidente da República ao Congresso Nacio-nal em outubro de 1948, desencadearia uma intensa movimentação en-tre intelectuais e políticos ligados aos assuntos da educação, entre osquais, os homens e mulheres ligados a OESP. Tratava-se de momentodecisivo para o futuro da educação brasileira, diante do qual os educa-dores liberais paulistas, legatários de 1932, deveriam manter-se alertase agregados em torno de suas posições.

É muito provável que Mesquita Filho assim o tenha entendido e,por isso, decidido depositar em mãos de Ramos de Carvalho a incum-bência de avivar (e atualizar) os históricos ideais educacionais do jor-nal, fazendo das colunas da página três um espaço para a defesa dos“interesses paulistas”. Como afirmou mais tarde Mascaro (1975, p. 4),ao convite feito por Júlio de Mesquita Filho

[...] se associava grande dose de deferência e confiança, tendo em vista a

juventude do convidado e o fato de que, sobre Educação, pontificavam no

jornal os grandes mestres Fernando de Azevedo e Almeida Jr., companheiros

maiores de Júlio na campanha pela criação da Universidade e signatários

como ele do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, em 1932.

A razão da “grande dose de deferência e confiança” embutida noconvite e na investidura é compreensível, considerando que era grandea identidade de idéias entre Mesquita Filho e Ramos de Carvalho, cujasrelações pessoais viriam a ser tão intensas como duradouras. Essa longarelação teve seu início nos primeiros anos de bacharelado de Ramos deCarvalho, que ingressara na FFCL em 1940. Esse fato, segundorememorou mais tarde em “O Brasil, a cultura e a universidade”, artigo

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escrito a propósito do falecimento de Mesquita Filho, veio a ser dosmais significativos em sua vida:

Quando ainda aluno da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, li pela

primeira vez o discurso que, como paraninfo da primeira turma que então se

formava, Júlio de Mesquita Filho proferiu – lembro-me perfeitamente bem –

o sentimento de uma inesperada revelação subjugou o meu entendimento e

eu percebi claramente que a inadvertida opção que eu fizera ao ingressar

naquela escola se transformara numa das mais profundas e existenciais deci-

sões da minha vida. Descobri, então, que o significado eminentemente polí-

tico da opção que fizera e que a carreira que escolhera transcendia as limita-

das esferas de um possível exercício profissional para transformar-se numa

missão mais elevada, a de promover, conjuntamente com meus colegas de

outros cursos [...] o início da revolução espiritual brasileira, base e pressuposto

fundamental da revolução nacional pela educação [Carvalho, 1969, p. 5].

A primeira intenção “profissional” do ingressante foi subvertidapelo elevado desígnio enunciado por Mesquita Filho naquele discurso,em que retoma o argumento desenvolvido em A crise nacional (1925),de que a ausência de uma elite intelectual capaz de compreender osproblemas nacionais e de dar-lhes solução adequada era um fator deter-minante do caos político nacional. Sendo assim, a criação de uma “ver-dadeira universidade” em São Paulo representaria o início de uma revo-lução cultural e política no país, pois a seus egressos caberia a missão dereformular o problema brasileiro e colocar a nação nos trilhos do pro-gresso e da democracia.

A FFCL, no conjunto da universidade, teria a si reservado o papelde promover e divulgar a cultura livre e desinteressada, formando a elitede homens capazes de ver a sociedade sob o prisma do “interesse ge-ral”. Nas palavras do paraninfo, tais haviam sido as finalidades para elaprojetadas pelos mentores da universidade:

A vossa escola surgiria, assim, como o molde indispensável onde se fundiri-

am os futuros modeladores da juventude nacional. Nela se formariam os es-

píritos em condições de criar e praticar uma doutrina educativa que tivesse

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em vista, acima de tudo, como queria um grande espírito francês, assegurar a

seleção de capacidades, alevantar, no verdadeiro sentido da palavra, todos os

espíritos, só pensar naquilo que moraliza, que não traz o lucro imediato, que

leva o olhar a fixar-se alto e longe [Universidade de São Paulo, 1937, p. 204].

Segundo o paraninfo, os fundadores pretendiam que esse foco decultura desinteressada irradiasse para todo o país uma concepção nova,a combater a “velha e desagregadora idéia do saber pelo saber”, substi-tuindo-a pela idéia do “saber posto ao serviço da coletividade”, e a dotaro país de um “cérebro poderoso e coordenador que, a coberto da transi-toriedade dos governos, pudesse gerar o sentimento, a vontade, a orga-nização e a disciplina intelectual a que os povos verdadeiramente fortesdevem as suas melhores vitórias” (idem, pp. 204-205). Mesquita Filho,dirigindo-se aos formandos, sentencia:

Nessa obra de profunda remodelação caberá, pois, tanto a vós como à vossa

Faculdade, papel preponderante. Da vossa dedicação às disciplinas puramente

especulativas, do vosso exemplo de sacrifício pelo bem público, há de com

certeza originar-se um movimento de sadia transformação dos hábitos e mé-

todos dos demais institutos universitários. Fostes os primeiros a vos dedicar,

de um lado, à especialização para a prática do magistério secundário, de ou-

tro, à cultura pela cultura. Essas circunstâncias, a que deveis a vossa qualida-

de de elite dentro dos próprios domínios da nossa Universidade, vos confe-

rem as necessárias credenciais para imprimir à totalidade dos institutos que

constituem o organismo universitário a mesma fé criadora que vos anima e

vos distingue [idem, p. 205].

Para Mesquita Filho, referindo-se àqueles turbulentos anos de 1930,os “espíritos tacanhos” de nossos homens de cultura, “simuladores”desprovidos de originalidade e de poder de penetração na realidade dopaís, haviam trazido para o Brasil “a contrafação das lutas em que naEuropa se empenham, de um lado, os partidários do fascismo e, de ou-tro lado, sectários do comunismo” (idem, ibidem). Caberia à nova gera-ção compreender, através das lentes rigorosas da ciência, o país, suasnecessidades, suas potências, e então formular as políticas apropriadas,

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porque autóctones, para a solução de seus males e para a promoção deseu progresso dentro da ordem.

Ramos de Carvalho, que na juventude havia engrossado as fileirasintegralistas (Bontempi Jr., 2002), certamente tomou a mensagem deMesquita Filho como um conselho. Na cerimônia de formatura, na con-dição de orador da turma de 1942, o novo bacharel já se mostrava “con-vertido” ao credo do mentor da USP, reiterando a seu modo o que disse-ra o paraninfo da primeira turma: à universidade cabia a função de lavrara “carta de maioridade” para a inteligência nacional, para que esta pu-desse, enfim, “deixar de esperar pelo último figurino” e produzir umpensamento coerente com a realidade do país:

Até hoje temos lamentado a falta de uma inteligência nacional para a com-

preensão dos problemas nacionais. Sempre que nos deparamos com um pro-

blema, soubemos encontrar fórmulas estranhas que, pela sedução do seu con-

teúdo ideológico, fizeram calar descontentes e exaltados. Nunca pensamos

por conta própria. Sempre, ou por preguiça ou por pedantismo, sempre en-

contramos uma autoridade cheia de luzes para nos iluminar. Não, a nossa

vida intelectual deve estar ligada à terra, ao homem, ao nosso homem, e aos

seus problemas. Se esses problemas são tipicamente nossos, ou se serão um

dia, então toda a tentativa de olhar para esses problemas com óculos impor-

tados fracassará10.

A pregação de idéias como essas não cessou, porém, com o fim desua temporada de estudante universitário. Tendo concluído o bacharela-do (1942) e a licenciatura (1943), Ramos de Carvalho passou a ser as-sistente de João Cruz Costa na cadeira de Filosofia da FFCL, e, nasaulas em que eram discutidos assuntos relacionados à função da univer-sidade nos planos político e cultural do país, as suas idéias seguiamlinha idêntica à do jornal. Assim entenderam os filhos de Mesquita Fi-lho, Ruy e Júlio Neto, seus alunos nos anos de 1944 e 1945, que comu-

10. “Discurso de formatura” (datilografado), arquivo pessoal.

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nicaram o fato a seu pai, que de pronto teve a sua atenção atraída para ojovem professor (Mascaro, 1975).

A identidade de idéias sempre uniu Ramos de Carvalho e MesquitaFilho, tendo sido alimentada ao longo de suas vidas por sentimentosque extravasaram a convergência intelectual. De acordo com Mascaro,pouco mais tarde se estreitaram as relações do professor com a famíliaMesquita, pelo fato de ter sido ele “solicitado a desempenhar, sem qual-quer caráter formal, as funções de orientador dos estudos do caçula dafamília – o Carlão, que então realizava o seu curso ginasial” (idem).Roque Spencer Maciel de Barros, outro amigo comum, interpretou des-ta forma a intensa relação entre os dois:

[...] o dr. Júlio Mesquita teve uma influência muito grande tanto sobre mim

quanto sobre o Laerte. Eu acho que comigo teve uma influência mais

jornalística [...] Mas com o Laerte ele teve influência intelectual e até afetiva.

Não sei se porque o Laerte perdeu o pai muito cedo, eu tenho a impressão

que ele via o Júlio um pouco do pai. Então, a ligação afetiva era muito gran-

de, e como o dr. Júlio tinha criado a Faculdade de Filosofia, o Laerte nunca

se afastou dessa concepção [apud Piletti, 1991].

Ramos de Carvalho indica, no discurso de posse como reitor daUniversidade de Brasília (1965), que o peso de sua crença nas idéiasdefendidas pelo diretor do jornal teria mesmo sido decisivo em sua op-ção por aceitar o convite de Mesquita Filho para seguir carreirajornalística naquela empresa:

Júlio de Mesquita Filho foi um dos fundadores da Universidade de São Pau-

lo. E foi ele que, com um grupo de intelectuais e educadores de escol, ao

criar a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, deu uma solução nova,

orgânica, estruturada, para o problema universitário brasileiro. Foram os ideais

dos fundadores da Universidade de São Paulo, e particularmente de Júlio de

Mesquita Filho, que atraíram o jovem professor de filosofia para o campo do

jornalismo educacional [...] O que me levou à redação de “O Estado de S.

Paulo” era esta idéia singular, a idéia de uma universidade estruturada de

forma que a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras pudesse ser efetiva-

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mente a escola em que se reunissem todos os cursos básicos da Universidade

[OESP, 9/9/1965, grifos meus].

Desde o ponto de partida, e tal como Mesquita Filho, Ramos deCarvalho concebia associadamente liberalismo e educação, academia eimprensa, ciência e ideal, OESP e USP. Seu ingresso na redação do jor-nal não foi apenas o aproveitamento de uma oportunidade profissional,muito embora, do ponto de vista das ambições de carreira de um inte-lectual, publicar artigos na grande imprensa fosse um meio de adquirirnotoriedade e legitimidade. Ramos de Carvalho escolheu OESP “por-que sabia que a defesa dos ideais perenes do liberalismo nele encontra-va um dos mais inconquistáveis de seus redutos” (idem), e por isso,como afirmou mais tarde, não hesitou em alterar os rumos de sua carrei-ra profissional:

Lembro-me perfeitamente que um dia, numa das salas do velho casarão da

rua Boa Vista, no instante em que aguardava uma entrevista com o dr. Júlio

de Mesquita Filho, ao observar atentamente os retratos de algumas figuras

que tanto se assinalaram no mundo das letras, da ciência e da política do

nosso País, senti que aquela entrevista poderia marcar o início de um desdo-

bramento harmonioso de minhas atividades profissionais. Agora avalio muito

bem, pois se passaram vinte anos e os fatos vividos no seu transcurso adqui-

riram significações imprevistas: esta entrevista alterou profundamente os

rumos de minha vida intelectual [idem, grifos meus].

Essa alteração dos rumos desdobrou-se, em termos de trajetóriaacadêmica, na migração de Ramos de Carvalho da cadeira de filosofiapara a de história e filosofia da educação11. Em 1948, dois anos depoisde ter publicado os primeiros artigos assinados em OESP, deslocou-separa o cargo de assistente da cadeira de história e filosofia da educação,

11. Quando foi criada, no Instituto de Educação (IE), em 1933, a cadeira chamava-se“filosofia e história da educação”. A mudança de nome para história e filosofia daeducação deu-se em 1942 (Universidade de São Paulo, 1953b, p. 465).

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ocupando o lugar de José Querino Ribeiro, que por sua vez migrara paraa de administração escolar e educação comparada. Começava aí o per-curso de Ramos de Carvalho em direção à cátedra, conquistada por con-curso público em 1955, em substituição a Roldão Lopes de Barros, an-tigo lente do IE, falecido em 1951 (Bontempi Jr., 2001).

Considerando que o interesse de Ramos de Carvalho por assuntoseducacionais ainda não se havia manifestado em trabalhos acadêmicos(idem) e que a Seção de Pedagogia desfrutava de um prestígio incontes-tavelmente menor do que a de Filosofia na hierarquia informal da FFCL(Castro, 1992), a referida mudança pode ser compreendida como o efei-to da conjugação de três fatores: o entendimento de que a ascensão dosjovens de esquerda representava uma ameaça à sua carreira acadêmicano “departamento” de filosofia, posto ser ele o herdeiro de Cruz Costana linha de estudos de história do pensamento brasileiro (Giannotti,1974); a oportunidade de ascender rapidamente ao posto de catedráti-co12 de história e filosofia da educação, quando era eminente o afasta-mento de Roldão Lopes de Barros; e a necessidade de imergir com “pro-fundidade acadêmica” nos assuntos da educação.

Quanto a este último fator, tudo indica que a cadeira de história efilosofia da educação foi mesmo o lugar mais adequado para o exercícioconjugado das duas carreiras, haja vista o fato de nela terem-se concen-trado, ao longo de todo o período de regência de Ramos de Carvalho, osesforços investigativos de uma geração de pesquisadores em história daeducação brasileira, que com seus resultados municiaram os arrazoadosdo colunista quando os assuntos remetiam ao passado educacional dopaís (Bontempi Jr., 2003).

12. Em termos de política universitária, ser professor catedrático significava ter assen-to cativo na congregação. Além dos catedráticos contratados e interinos, faziamparte desse órgão um representante dos livres-docentes e, de 1950 em diante, umrepresentante dos assistentes (Universidade de São Paulo, 1952, p. 85). A congre-gação foi regulamentada pelo decreto n. 12.038, de 1 de julho de 1941, tendo suaprimeira reunião sido realizada no dia 7 de agosto de 1941 e presidida por Fernandode Azevedo (Universidade de São Paulo, 1953c, p. 413).

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O ensino secundário por Laerte Ramos de Carvalho

Expressa no celebrado discurso de paraninfo de Mesquita Filho, atese da necessidade de educar as elites era compartilhada por váriosintelectuais ligados ao chamado “grupo d’O Estado”, notadamente porFernando de Azevedo. Ancorava-se na premissa de que a extensão cul-tural seria o meio mais eficaz de aproximar as massas das fontes detransmissão da cultura e elevar-lhes o nível de conhecimentos, com oque se suprimiria o hiato existente entre os criadores da cultura e o povo.Lograda a instrução das massas e das elites seria possível a democracia,uma vez que a legitimação da superioridade técnica e política da elitedirigente, formada pelos cidadãos mais capazes dentre todos os estratossociais, sustentar-se-ia no sufrágio de uma população instruída.

Aos olhos de OESP, tendo sido realizada a criação da USP (1934),à arquitetura ideal do sistema de ensino brasileiro ainda ficava faltandouma peça-chave de articulação: um ensino secundário capaz de prepa-rar os jovens para a formação alta e desinteressada a ser ministrada naFFCL, que, por sua vez, faria deles pesquisadores e cientistas de sólidaformação e, fechando o círculo virtuoso, competentes professores parao ensino secundário. Em 1957, na segunda edição de A educação naencruzilhada, livro que estampa o inquérito promovido por OESP em1926, Fernando de Azevedo concluía que em prol do ensino secundárioainda havia muito a fazer: em razão da falta de planejamento da educa-ção, ao divórcio verificado entre fins e meios, ao triunfo da burocraciano ensino, à rigidez e artificialidade dos currículos e planos de ensino,ao empirismo no trato com os problemas educacionais, à “legislaçãodraconiana” e aos demais ranços do sistema escolar brasileiro, a suasituação precária, verificada em 1926, atravessara as duas décadas se-guintes e ainda se mostrava resistente em 1957 (1960).

Quando, em meados da década de 1940, Ramos de Carvalho foiconvidado a colaborar com o jornal em artigos sobre educação, a situa-ção do ensino secundário já era apontada como crítica, e temia-se queviesse a ficar inteiramente fora de controle, tal havia sido o crescimento,que não cessava, das matrículas e dos estabelecimentos de ensino se-cundário no Brasil e, muito particularmente, em São Paulo.

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Em relatório apresentado ao Conselho Nacional de Educação em1950, Lourenço Filho alertava para o fato de ter havido entre 1932 e1946 um aumento de matrículas no ensino secundário quase três vezesmaior do que o revelado para todo o conjunto do sistema escolar brasi-leiro13. Dentre os ramos do ensino médio, de acordo com os dados ofi-ciais, o mais procurado vinha sendo justamente aquele que dava acessoao ensino superior, significando que a maioria dos egressos do ensinoelementar não se mostrava interessada em cursar o ensino de tipo técni-co-profissional14. Ainda de acordo com o relatório, no ano de 1945 amatrícula no ramo secundário no estado de São Paulo havia chegado àcifra de 96 alunos para cada 10 mil habitantes (Lourenço Filho, 1950,pp. 81-82)15.

13. Encontrava-se em vigência o conjunto de decretos promulgados entre janeiro de1942 e dezembro de 1943 (e também as Leis Orgânicas do Ensino Primário, doensino normal e do ensino agrícola, assinadas em 1946), conhecido como “Refor-ma Capanema”. Tais decretos estabeleciam objetivos, currículos e organização geralpara os ensinos industrial, secundário e comercial, separadamente e especifica-mente tratados. Quanto à organização do ensino secundário, destinado à formaçãoda personalidade do adolescente e à preparação das individualidades condutoras, areforma consagrou a divisão entre o ginásio (ciclo de quatro anos) e o colégio (ciclode três anos), com a obrigatoriedade do “exame de licença” para todos os alunos aofim de cada ciclo, a fim de garantir o padrão nacional de todos os aprovados.

14. De acordo com Sposito (1984, p. 20), a preferência dos egressos pelo secundáriopode ser entendida como um gesto de incorporação pelas classes populares demodelos presentes no projeto de vida das camadas mais favorecidas. Segundo aautora, “no quadro das escolhas possíveis, a escola secundária, caminho naturalpara a carreira de jovens de classes dominantes, acaba sendo desejada pelas famí-lias de jovens de outras classes sociais; os efeitos reais que a instrução secundáriapropiciava para certas parcelas da sociedade – o acesso a carreiras prestigiadas, oreconhecimento social, a boa remuneração – passam a ser reivindicados, cada vezmais nitidamente, por segmentos heterogêneos da coletividade”.

15. Para outros índices dessa expansão, consultar Silva (1969, p.307 e ss.), para quem“nos vinte anos de vigência da Lei Orgânica, a matrícula do ano de sua promulga-ção [1942] se multiplicou por cinco, ultrapassando o milhão de alunos no primeiroano de vigência da Lei de Diretrizes, e chegando a 1.553.000 alunos em 1965”.Para o caso de São Paulo, além de Sposito (1984), consulte-se Pereira (1969, p.16), que informa que, até 1940, a rede de ginásios estaduais era formada de 37estabelecimentos no interior e três na capital; em 1950, já havia 143 ginásios nointerior e 12 na capital; em 1958, os números chegavam a 294 escolas no interior e65 na capital.

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Segundo Sposito (1984, p. 29), no caso de São Paulo, a razão daexpansão encontra-se no fato de que a demanda pela criação de ginásiosestaduais no interior do estado e nas regiões periféricas da capital mobi-lizava a população, que encontrava acolhida para o seu pleito de ampli-ação das vagas no executivo estadual, posto que este buscava consoli-dar suas bases eleitorais por meio de negociações com os municípios,em que os serviços públicos eram moeda de troca. Sob o beneplácito dapolítica populista vigente, o processo de expansão da escolaridade ele-mentar e obrigatória para o secundário teve, particularmente na capital,dois movimentos complementares, que possibilitaram à iniciativa ofi-cial a ampliação de suas unidades e da oferta de matrículas: a introdu-ção, desde 1947, do curso ginasial noturno, alojado nos mesmos edifíci-os em que funcionavam os grupos escolares, e a instalação deestabelecimentos na forma de seções, recurso de que lançou mão o go-vernador Jânio Quadros nos anos de 1957 e 1958, que permitiu a aber-tura de novos ginásios na periferia da capital sem o cumprimento dasexigências legais (Sposito, 1984, pp. 49-50, pp. 61-62)16.

O secundário era, pois, o assunto mais “candente” para OESP, naretomada de sua “vida independente. Tanto é verdade, que Ramos deCarvalho dele se ocupou já em seus primeiros artigos assinados, publi-cados no ano de 1946. Em “Do ensino particular” (1946a) e “Do profes-sor secundário” (1946c), o professor reitera as seminais posições deMesquita Filho e Azevedo, ao tomá-lo como ponto nevrálgico da orga-nização da educação e da cultura, a que cabia formar a mentalidademédia nacional e selecionar os elementos mais capazes para, nas insti-tuições superiores, serem preparados para dirigir inteligentemente o país.

Ramos de Carvalho vai além dos predecessores, entretanto, ao acres-centar à argumentação tópicos a respeito do ensino secundário e do pro-

16. Após 1945, a criação de novas unidades estaduais de ensino passou a depender dapromulgação de lei aprovada pela Assembléia Legislativa do Estado, atendendo amensagens do Executivo ou a projetos de deputados. Como o Executivo estadualtinha pressa em atender às exigências da “clientela eleitoral”, passou a usar o se-guinte artifício: por força de decreto, criava ginásios como “extensões” de outroscolégios estaduais já existentes. Desse artifício resultou a triplicação do número deginásios estaduais criados na capital (Pereira, 1969; Sposito, 1984).

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fessor secundário então em voga na Faculdade de Filosofia: nos doisartigos mencionados, Ramos de Carvalho reproduz as idéias que AndréDreyfus, catedrático de biologia geral, antes proferira em sessões sole-nes da FFCL17. Quanto ao diagnóstico da situação, em que os ginásios,mercê da conivência de governos corruptos e ignorantes, vinham ser-vindo para enriquecer certos empreendedores particulares; e quanto àsolução, para a qual sugere o endurecimento da fiscalização, o recruta-mento exclusivo de licenciados da FFCL para os cargos de docência e aoferta de dignas condições de trabalho, as opiniões de Ramos de Carva-lho coincidem integralmente com as de Dreyfus, provavelmente bemaceitas e divulgadas na comunidade acadêmica formada na FFCL, semque, no entanto, isso seja dito nos artigos de um modo explícito.

O ensino secundário por OESP

No ano de 1947, trazendo consigo as idéias da comunidade da FFCL-USP, Ramos de Carvalho assumiu uma nova e importante incumbênciaem OESP: a de expressar as idéias educacionais do próprio jornal, redi-gindo “Notas e Informações”, coluna não assinada que trazia verdadei-ros editoriais sobre educação18. Com a contratação de Ramos de Carva-lho, antes colaborador, para esse fim, Mesquita Filho permitia que aFFCL, ou, ao menos, o agrupamento que nela pensava as questões deeducação, pudesse reverberar as suas idéias para um público bem mais

17. Trata-se da aula inaugural de 1938 e do discurso de paraninfo aos formandos de1942, entre os quais figurava Laerte Ramos de Carvalho, que nessa cerimônia dis-cursou em nome dos alunos (Universidade de São Paulo, 1953a).

18. De acordo como Fonseca (apud Jornal da PUC, 2001, p. 7), “os editoriais expres-sam não apenas a linha editorial (em sentido estrito) como a ideológica dos perió-dicos. Servem para orientar os jornalistas e dialogar com os pólos de poder, confe-rindo homogeneidade ideológica ao periódico [...]. Representam, portanto, a vozdo proprietário dos jornais, que começa nas manchetes e fotos e perpassa todo ojornal. Isto não exclui contradições e ambigüidades, o que é insuficiente para reti-rar o papel do editorial como síntese do pensamento ideológico e da linha ideológi-ca impressa pelos donos dos jornais”.

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amplo do que o estrito círculo dos intelectuais acadêmicos. A partir deentão, esse agrupamento “pautou” o assunto educacional na mídia, oque se pode aferir pelo exame dos títulos das matérias publicadas noperíodo, em que pouco se trata, por exemplo, do ensino primário, umavez que os temas tidos como mais importantes naquele ambiente e na-quele momento eram, haja vista os discursos das seções solenes, justa-mente o ensino secundário e a própria universidade.

Quanto ao ensino secundário, o crescimento da demanda e as vicis-situdes que as iniciativas para o seu atendimento engendraram foramproduzindo entre os educadores paulistas o consenso de que a situaçãodo ensino secundário era a que lhes deveria inspirar maiores cuidados,uma vez que a sua expansão vinha sendo feita, não só nos interstícios dalei, como também ao arrepio dos “interesses gerais” de que OESP sem-pre se julgara porta-voz autorizado (Capelato & Prado, 1982). Com efeito,em “Notas e Informações” do período entre 1947 e 1957 reitera-se queo ensino secundário, “no sistema brasileiro, constitui sem dúvida o maissério e mais grave de todos os problemas educacionais” (OESP, 6/3/1949).

O motivo do alarme é óbvio: o fato de ser esse ramo de ensino oponto de chegada preferencial dos egressos da escolaridade elementar,e por isso mesmo, alvo da demagogia “multiplicadora” do Executivo,conspurcava a “arquitetura educacional” da Comunhão Paulista, na qualo ensino secundário figurava como lugar da formação do caráter nacio-nal e da cultura média do país, gargalo do processo de filtragem dosindivíduos que integrariam a nata de condutores das massas, a ser for-mada nas universidades (Azevedo, 1960).

Estando, pois, ameaçado o caráter seletivo da escola secundária, ascolunas da seção “Notas e Informações” tomam as colorações domi-nantes de denúncia e de advertência, mantendo o jornal uma posturasempre reativa e retrógrada com relação a sua expansão19. Fundamen-

19. A postura reativa de OESP à política de expansão dos ginásios em São Paulo foiobjeto de análise de Sposito (1984, capítulo II), à qual o presente artigo pouco tema acrescentar.

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talmente, a opinião do jornal é a de que o ensino secundário não estariaem situação “tão lamentável” se os responsáveis pela administração doorganismo escolar não tivessem se afastado deliberadamente das nor-mas estabelecidas pelos fundadores da USP (OESP, 16/8/1947). Decor-rem dessa posição as propostas de moralização e de contenção do avan-ço, bem como de reabilitação, como será visto adiante, de modelos deginásio e colégio anteriores e opostos à concepção em vigor durante oEstado Novo.

OESP interpretou a expansão dos estabelecimentos oficiais de en-sino secundário como um resultado direto do “relaxamento” dos anti-gos obstáculos ao seu crescimento (OESP, 4/1/1948), em movimentoentão propalado como de democratização20. Para o jornal, o uso de taldenominação para a política de difusão do ensino padecia da mesmaignorância conceitual que a promovera:

Entende-se comumente por ensino democrático a possibilidade de tornar a

escola acessível, em todos os seus graus, ao maior número de pessoas. Não

cuida o governo de realizar a acessibilidade do ensino sem prejudicar os

legítimos ideais educativos. Para os nossos técnicos e pedagogos tudo se

resume na linguagem expressiva dos números. Chamam eles de democrati-

zação a um processo que só pode ter o nome de difusão do ensino [OESP, 13/

4/1947].

Ao menos nesse momento, em que se encontravam latentes os “in-teresses privatistas” que emergiriam no debate sobre a LDB durante osegundo lustro da década de 195021, a OESP incomodava menos o cres-cimento do número de estabelecimentos particulares de ensino secun-

20 .De acordo com Sposito (1984, p. 158), no governo Adhemar de Barros (1947-1950) foram criados na capital dois ginásios e instalados mais sete, dois dos quaishaviam sido criados em 1945 como cursos noturnos abrigados em prédios de gru-pos escolares. Ainda de acordo com a autora (p. 108), “os deputados estaduaistiveram a possibilidade de criar durante o seu mandato, sem restrições, 99 ginásiosestaduais e 45 escolas normais em todo o Estado de São Paulo”.

21. A respeito das etapas de discussão da LDB, ver Carvalho (1960).

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dário do que a multiplicação “indiscriminada” dos ginásios oficiais, como sacrifício da “qualidade” do ensino neles ministrado. Se, no ensinoparticular, o problema maior eram os “abusos e irregularidades” come-tidos por inescrupulosos empresários, os quais poderiam ser coibidosmediante intensificação dos serviços de inspeção22, a queda da qualida-de do ensino oficial do ramo secundário vinculava-se visceralmente asua expansão, que criava um número de vagas para o quadro do magis-tério secundário que excedia a capacidade do estado de fornecer pessoalqualificado, leia-se, formado pelas faculdades de filosofia, ciências eletras “ou equivalentes”. O resultado era “o aproveitamento de pessoalsem nenhuma qualificação para os exercícios docentes” (OESP, 17/8/1947), ato daninho, haja vista que “o problema fundamental do ensinosecundário, não nos cansamos de repeti-lo, é o da formação e recruta-mento de nosso professorado” (OESP, 10/4/1948).

Por sua vez, as provas de suficiência criadas pelo decreto-lei n.8.777/46 a fim de habilitar para a obtenção do registro de professor oscandidatos ao magistério secundário que não possuíssem o diploma delicenciado eram verdadeiros simulacros a conferir “aparência de legiti-midade” às nomeações encetadas pelo Poder Executivo, que padecia decerta febre multiplicadora de caráter “politiqueiro”. De acordo com o

22. O estatuto que presidia à inspeção federal era a portaria n. 501, elaborada com basena Lei Orgânica do Ensino Secundário, que procurava legislar sobre “a admissão,ano escolar, matrícula, transferência, tempo de trabalhos escolares, aulas, livrosdidáticos, alunos, atribuição de notas critérios de aprovação e reprovação, provasparciais e finais, exames de 2ª época e de 2ª chamada, exames especiais, modelos etipos de certificados e de fichas de transferência, inspeção, administração escolar,corpo docente, medidas disciplinares (em relação ao aluno), contribuições eemolumentos, condições materiais do estabelecimento, penalidades (em relaçãoao estabelecimento), e [...] disposições gerais e transitórias” (Pereira, 1969, p. 30).OESP defende que a excessiva centralização dos órgãos de inspeção do ensinotornava inviável a fiscalização eficiente dos estabelecimentos particulares, cujonúmero crescia, permitindo assim a existência de desvios quanto ao cumprimentode currículos, à contratação e ao pagamento de professores (OESP, 25/5/1947).Para efetivar uma melhor inspeção do sistema escolar, o jornal sugere a transferên-cia do serviço de inspeção para o âmbito estadual, com o que melhor se cumpririaa vigilância do ensino particular (idem), além de insistir na necessidade de umaformação sólida para os inspetores de ensino (OESP, 9/2/1949).

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jornal, os exames de suficiência eram apenas uma maneira poucodispendiosa que o governo encontrara de habilitar professores, contor-nando assim a cara e demorada formação nas instituições superioresoficiais23.

O jornal acreditava que todas essas iniciativas encontravam-se qua-litativamente aquém da que antes fora dada pelos “pioneiros do ensinopaulista”, pois a criação da FFCL, unidade incumbida de “cuidar da for-mação técnica do professorado” (OESP, 17/8/1947), havia sido “o passomais sério” dado na direção de resolver a questão da formação e recruta-mento do magistério secundário. A política desejável era, pois, retroce-der ao tempo anterior a 1937, quando “São Paulo estava a caminho depossuir insuperável organização de ensino em todos os seus graus”:

Do mesmo modo que no caso da Universidade, o nosso ensino secundário

constitui organização exemplar. Foi em nosso estado que se consagrou pela

lei e pela prática a necessidade de uma qualificação universitária para o exer-

cício de nossas cátedras, com a exigência da licenciatura na Faculdade de

Filosofia, Ciências e Letras. [...] É em função desse passado educacional que

deve agir o nosso legislador [OESP, 21/8/1947].

A um Estado imbuído da tarefa de “realizar através da democraciauma verdadeira nação” (OESP, 6/6/1948) seria suficiente zelar pela pre-servação da qualidade desse centro de excelência, bem como “protegero ensino contra as aventuras do autodidatismo e da improvisação cultu-ral”, ao garantir que o direito legalmente adquirido pelos licenciadosfosse respeitado (OESP, 27/9/1947). O jornal mostra-se incansável nadefesa dos concursos públicos para o magistério: por serem as nomea-ções “poderosos instrumentos de penetração política”, os concursos atu-ariam sobre elas como “o único meio de evitar que o ser amigo de polí-ticos ou ser parente do diretor do colégio ou do prefeito seja o único

23. Pela mesma razão, incomodaram o jornal as iniciativas de habilitação que o governofederal implantou mais tarde, com vistas a suprir a falta de docentes para o ensinosecundário em expansão em vários estados brasileiros, tais como a Campanha deAperfeiçoamento e Difusão do Ensino Secundário (CADES), instituída em 1953.

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título a exigir daqueles que pretendem ingressar no magistério” (idem),garantindo assim que só os profissionais comprovadamente habilitadospudessem seguir carreira no ensino secundário e normal.

OESP mantém-se contra a multiplicação de ginásios, colégios eescolas normais durante todo o período analisado, defendendo que taisestabelecimentos só deveriam ser criados quando fosse possível provê-los de professores formados na FFCL (OESP, 24/7/1949). De uma mes-ma ordem de razões derivaria, já nos anos de 1950, a crítica à “multipli-cação” ou “proliferação” das faculdades de filosofia no estado de SãoPaulo, porque essa política “demagógica” vinha trazendo o “abastarda-mento do título de licenciado”, em outras palavras, conspurcando a le-gitimidade dos diplomas conferidos pela USP24.

Proposições: os modelos desejados para o ensinosecundário

OESP não se limitou, entretanto, a reagir com denúncias, repreen-sões e recomendações diante do “derrame” de estabelecimentos de en-sino secundário e superior. Além de repetir incansavelmente os princí-pios que regiam o seu entendimento do que deveria ser um sistemaeducacional orgânico e “verdadeiramente democrático”, o jornal não sefurtou, ao longo do período, de indicar os elementos essenciais do ensi-

24. Quanto à “proliferação” dos institutos superiores no interior do estado, são signi-ficativos os editoriais de 18 de abril de 1953, 17 de julho de 1953, 7 de novembrode 1954, 14 de novembro de 1954, 2 de setembro de 1956 e 16 de setembro de1956. Esse último expressa sinteticamente a posição do jornal diante do fenômeno:“O problema da criação de novas escolas superiores no nosso Estado constitui umdesses assuntos que servem de exemplo para demonstrar a ausência de um planoeducacional criteriosamente elaborado, pois está provado que não convém a cria-ção de novos institutos superiores. As necessidades educacionais do País mostramque é preciso, em primeiro lugar, alfabetizar em larga escala, e depois criar obriga-toriamente em certas regiões uma categoria de ensino – não especializado – capazde satisfazer as exigências mínimas das populações regionais que até agora nãoencontraram, dentro da rede educacional existente, as oportunidades de direito àescola elementar que a Constituição Federal lhes assegura” (OESP, 2/9/1949, p. 3).

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no secundário ideal. Os modelos acalentados por OESP têm em comumserem iniciativas já experimentadas no passado educacional brasileiro:os liceus do século XIX e o Colégio Universitário anexo à universidade.

Quanto aos ginásios, o “caráter pragmático” de que teriam sido in-vestidos os “ginásios novos” criados sob a ditadura os afastara, de acor-do com o jornal, da orientação humanística que era própria aos liceus doséculo XIX, em troca da opção pela “escola para o trabalho nacional”.De acordo com OESP, a prejudicial reforma dos ginásios decorreu doerro de “nossos educadores” em “proclamar que o mal dos liceus era oprograma de formação literária e retórica a que obedeciam”. Ainda deacordo com o jornal,

O bacharel passou a ser tema de nossa sociologia nascente e foi responsabi-

lizado de tudo por sua cultura ornamental, distante do trabalho, do espírito de

pesquisa e da realidade. Era preciso, portanto, criar o “ginásio novo”, ex-

pressão de nossas necessidades e de nossas atividades. Daí a natureza das

matérias lecionadas em nossos estabelecimentos que fazem deles uma escola

muito mais próxima dos institutos de ensino profissional do que dos velhos

liceus [OESP, 4/1/1948].

Além disso, a nova configuração dos ginásios enfraquecia a suaantiga ligação com o ensino superior, o que conspurcava a sua finalida-de e razão de ser (idem). A obra de “democratização do ensino”, inicia-da na República, tendia a desligar o ensino secundário do superior, atan-do-o ao primário:

O ginásio preenchia [...] dupla função: ao mesmo tempo em que fornecia aos

alunos os elementos de uma cultura geral e humanística, dava-lhes os rudi-

mentos de uma formação propedêutica indispensável aos cursos universitá-

rios, enquanto a democratização da instituição, que se efetuou de modo pro-

gressivo na época republicana, transformou a escola secundária num simples

curso de continuação do ensino primário, sacrificando, desta forma, um de

seus principais objetivos, a saber: preparar os alunos para o ingresso nos

estudos universitários [OESP, 12/8/1951].

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A fim de suprir a lacuna deixada pela extinção do tipo de ensinoministrado pelo liceu imperial, no que tange à ligação do segundo ciclodo ensino secundário com o superior, o jornal defende a reabilitação doColégio Universitário, “feliz experiência realizada nos primeiros anosda Universidade de São Paulo” e interrompida pelos decretos da Refor-ma Capanema, justamente no momento em que “começava a apresentarexcelentes resultados”. Na opinião do jornal, se aquela reforma permi-tiu “a difusão do ensino propedêutico universitário” nos centros urba-nos e no interior do país, ela também trouxe a “inevitável decadênciados padrões pedagógicos e o conseqüente sacrifício do nível e da efi-ciência da aprendizagem”:

O certo é que os atuais colégios, no que se refere às necessidades do ensino

superior, deixam muito a desejar. A rigidez de seu currículo, com apenas dois

tipos de organização curricular, quando as escolas superiores pela sua diver-

sidade reclamam modalidades de ensino propedêutico mais próximas e ajus-

tadas às suas necessidades, patenteou a ineficácia do ciclo colegial do curso

que, ao lado de outros objetivos, deveria estar a serviço das universidades e

dos institutos universitários isolados [OESP, 6/1/1955].

O Colégio Universitário atenderia melhor às exigências da univer-sidade, porque trazia em seu currículo diversas seções com currículospróprios, de acordo com as necessidades de cada uma das escolas uni-versitárias. Sua implantação traria como vantagens imediatas a possibi-lidade de reduzir o demasiadamente largo currículo da escola secundá-ria e de promover modificações na natureza das disciplinas que a integram(idem):

Nestas condições o curso secundário reforçará o ensino das disciplinas que

melhor possam favorecer os ideais de uma educação humanística, compre-

endida em função dos interesses espirituais do nosso tempo. No Colégio

Universitário, o estudante encontrará um ensino de matérias básicas para os

conhecimentos de nível superior ao mesmo tempo que estudará disciplinas

de cultura geral com o objetivo de evitar os prejuízos de uma especialização

precoce [OESP, 23/8/1953].

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Nesse particular, o jornal dá a entender que seria desejável a resti-tuição da organização do secundário assinalada na Reforma FranciscoCampos, de 1931. Nessa, previa-se a duração do ensino secundário parasete anos (cinco anos de “curso fundamental” e dois de “curso comple-mentar”), tendo o segundo ciclo o objetivo precípuo de promover a adap-tação dos candidatos aos cursos superiores em suas três diferentes se-ções, diretamente relacionadas às áreas em que se dividia o ensinosuperior. Com isso, de acordo com Chagas (1980, p. 48), “o plano de1931 de tal modo vinculou os ‘cursos pré’, como eram comumente de-nominados naqueles dias, a determinadas carreiras de nível universitá-rio, que acabou, de fato, por estruturar o ensino secundário com cincoanos e acrescer o superior de dois”.

A defesa que o jornal faz do Colégio Universitário, que fora experi-mentado pela universidade em fins dos anos de 1930, era coerente com aposição das faculdades de filosofia então existentes. Um mês antes deserem publicados os comentários reproduzidos anteriormente, o jornaldava notícia das propostas aprovadas no Congresso das faculdades defilosofia, realizado a propósito da iminência da LDB. Uma delas consis-tia na substituição da terceira série do segundo ciclo e na modificaçãodeste para complementar o primeiro, eliminando assim o curso “científi-co”. Com isso se reconhecia, segundo o jornal, “a necessidade de o ensi-no secundário se transformar num núcleo pedagógico de trabalho comum único objetivo: a formação humanística”. Os “cursos pré”, desejava-se nas faculdades de filosofia, deveriam ser orientados para as técnicas,ciências e letras, na órbita do ensino superior e visando ao preparo paraeste (OESP, 19/7/1953), tal como ordenava a reforma de 1931.

De acordo com um contemporâneo de Ramos de Carvalho, Anto-nio Candido de Mello e Souza (nascido em 1918), que cursou entre1937 e 1939 o Colégio Universitário anexo à USP, a opinião a respeitode sua qualidade – e dos benefícios de uma futura reabilitação – era amesma. Para Candido (1999, p. 33), o curso complementar tinha a qua-lidade de “situar o estudante no ambiente universitário, como uma espé-cie de ensaio geral do curso superior”. Graças ao Colégio Universitário,prossegue, pôde melhorar a formação trazida do secundário e, ainda,abrir-se “para o universo da cultura superior” (p. 33). Em outro depoi-

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mento, Candido lamenta a extinção do colégio – “ótima instituição, quenão durou muito” – que lhe permitiu “sanar lacunas do secundário” (1998,pp. 586-587).

O jornal entendia que as lacunas do secundário – que foram verda-deiros empecilhos para os estudantes das primeiras turmas da FFCL,cujos professores nem mesmo lecionavam em português – poderiam sercorrigidas na “ante-sala” da universidade, desde que os estudantes pas-sassem pelos estudos preparatórios ministrados no Colégio Universitá-rio. Um melhor preparo dos ingressantes viria garantir que a formaçãooferecida pelas faculdades de filosofia fosse aproveitada ao máximo.Por esse motivo, defende o jornal que os colégios universitários ficas-sem subordinados à congregação e diretoria das faculdades de filosofia.

E as maiores razões que se podem invocar para justificar a medida são as

seguintes: a) as faculdades de filosofia ministram em seis cursos as matérias

básicas de todas as escolas universitárias; b) só as escolas de filosofia cui-

dam da formação de professores. [...] Este é o ideal: o colégio universitário

[...] deve fazer parte das faculdades de filosofia. E que de seu curso se encar-

reguem as cadeiras das mesmas escolas. Isto será sem dúvida medida de

grande alcance para a formação do espírito universitário, que é uma das

maiores lacunas de nossas instituições educacionais [OESP, 31/7/1949, grifos

do original].

A reabilitação do secundário como curso humanístico voltado paraa cultura geral, e não para uma futura profissão, representava a possibili-dade de realização de seu ideal, que não era a continuação do ensinoprimário, mas a preparação para o ensino superior, tal como se dava noséculo XIX e conforme registrava a história da educação. Tendo os seuscurrículos organizados de acordo com as necessidades do ensino supe-rior “desinteressado”, o ginásio e o colégio não se ocupariam senão dosfuturos produtores e transmissores da cultura, deixando aos demais ra-mos do ensino médio a tarefa de preparar os egressos do ensino primáriopara as profissões. Por último, mas não menos importante, o controledidático da universidade sobre o colégio traria a tão desejada articulaçãoentre os graus de ensino, imaginada desde a fundação da universidade.

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Considerações finais

No que concerne ao tratamento dos temas educacionais em “Notase Informações” durante os anos de 1940 e de 1950, foi visto que a polí-tica educacional do Estado Novo se viu acerbamente criticada e respon-sabilizada por OESP por grande parte dos grandes males de que entãopadecia a educação brasileira. Quando o regime democrático instauradoem 1945 parecia seguir, no âmbito da educação, as tendências demagó-gicas e centralizadoras do período anterior, o jornal brandiu os discur-sos da autonomia federativa, da superioridade de São Paulo e da des-centralização administrativa, assim como procurou “corrigir” osignificado da expressão “democratização do ensino”, qualificando ofenômeno então observado como de “difusão”, imputando-lhe ainda aconotação negativa de ter sido engendrado pela “política adhemarista”,a que o jornal nutria a mais profunda aversão. O mesmo diagnósticonegativo acompanhava os comentários sobre as maneiras profissionali-zantes e o sentido de prolongamento da escolaridade básica, que vi-nham caracterizando os “ginásios novos”, assim como a constatação dainsuficiência dos colégios como preparatórios para o ensino superior“desinteressado”.

A idéia de levar a educação a todas as camadas da sociedade eraconsiderada pelo jornal um imperativo da sobrevivência de uma naçãodemocrática, afinal, só haveria democracia quando todos se tornassemcientes de seus direitos e deveres civis e, portanto, aptos a escolher seuslíderes entre os que possuíssem capacidades intelectuais e morais parabem conduzir o país na direção do progresso (OESP, 8/10/1950, 4/11/1951). Contudo, OESP considerava que uma escola que nãocorrespondesse à filosofia política do Estado e que fosse “despojada”de suas “funções sociais, políticas e éticas”, atenderia apenas a interes-ses e éticas “particularistas”, transformando-se “numa agênciaantipolítica de deseducação das massas” (OESP, 13/6/1954). Em nomede uma “filosofia política do Estado”, que não era a vigente, mas a dogrupo de intelectuais e políticos reunidos na órbita de OESP-FFCL, a“difusão” do ensino secundário não poderia ser um sinônimo de demo-cracia, uma vez que só deveria ser expandida a escola que portasse os

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“legítimos ideais educativos”, ou seja, a razão e a moral convenientes aum Estado liberal-democrático. De outra forma, as massas ora contem-pladas pelo poder público em suas demandas por acesso à escola pode-riam tornar-se tiranas, oferecendo riscos à própria democracia.

Para OESP, o ensino secundário não fazia parte dos planos de demo-cratização do ensino senão obliquamente, ou seja, ao formar uma eliteconsciente dos compromissos do Estado democrático, no que toca à con-dução de uma política educativa hábil para formar o cidadão de que neces-sita. A peça-chave da democratização, ou ainda, da extensão da escolarida-de, continuava sendo a escola pública de nível primário e a subseqüenteramificação profissionalizante – de acesso vedado ao nível superior.

A fração propositiva do discurso de OESP, para além da repetiçãodos velhos princípios e da crítica “udenista” ao clientelismo, consistiuem aconselhar ao legislador o retorno aos liceus do século XIX e à ex-periência do Colégio Universitário, encarecendo a reabilitação do cará-ter humanista do ensino secundário e, além disso, propugnando o con-trole do segundo ciclo propedêutico pela direção das faculdades defilosofia. Por esse modelo, o secundário deveria permanecer fiel a suasfunções no arcabouço educacional da Comunhão Paulista: formar a cul-tura média nacional ou, na linguagem jornalística, a “opinião públicaesclarecida”, selecionar e preparar para o ensino superior humanístico edesinteressado uma elite condutora sustentada por legítimo sufrágio.

A semelhança apontada entre as falas de Dreyfus, professor da Fa-culdade de Filosofia, e os artigos assinados de Ramos de Carvalho, bemcomo a manutenção da intensa interlocução da coluna “Notas e Infor-mações” com aquela faculdade, reiteram os laços ideológicos existentesentre FFCL e OESP, tais como foram atados no projeto da “Universida-de da Comunhão Paulista”. A partir de 1947, quando Ramos de Carva-lho passou a ser redator dos editoriais e a ocupar simultaneamente posi-ções importantes nos campos acadêmico e jornalístico, esse “complexoideológico” amplificou o volume de seu discurso, de modo que atingis-se uma sociedade de massas em constituição. Roque Spencer Maciel deBarros e João Eduardo Rodrigues Villalobos, igualmente filósofos deformação e conduzidos à condição de assistentes da cadeira de históriae filosofia da educação por Ramos de Carvalho, seguiram na redação de

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OESP idêntico trajeto, ao tornarem-se sucessores do catedrático na co-luna “Notas e Informações”.

Ainda que a lei n. 4.024/61, solução política final do projeto quetramitou entre 1948 e 1961, tenha significado a derrota desse grupopara a coligação dos interesses empresariais e confessionais agregadosem torno do substitutivo Lacerda, por parte do jornal não houve retrai-mento. Até o final da década de 1970, quando Villalobos publicou a suaúltima colaboração, o discurso educacional de OESP, guardadas as dife-renças entre os redatores, persistiu irradiando o pensamento dos setoresda universidade mais próximos a Júlio de Mesquita Filho, que em suaspáginas opinativas se converteu em “legítimos interesses do ensino”.

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Endereço para correspondência:Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,

Setor de Pós-Graduação, Programa de Estudos Pós-Graduados em

Educação: História, Política, Sociedade

Rua Ministro de Godói, 969, 4 andar, sala 4E-19

Perdizes – São Paulo-SP

CEP 05015-901

E-mail: [email protected]

Recebido em: 10 set. 2005Aprovado em: 10 jan. 2006

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A produção acadêmica sobre osinstitutos isolados de ensino superiordo estado de São Paulo (1951-1964)*

Rosane Michelli de Castro**

Resumo:Este artigo tem como objetivo oferecer uma visão de conjunto dos estudos e das pesqui-sas sobre nove institutos isolados de ensino superior criados, ou então incorporados aoSistema Estadual de Ensino Público Paulista, entre 1951 e 1964. Mesmo procurando daro mesmo tratamento a todos esses estudos e pesquisas, algumas sínteses apresentam-semais desenvolvidas que outras. Entretanto, todas elas corroboram a afirmação de que astrajetórias dos referidos institutos isolados de ensino superior do estado de São Pauloforam delineadas, ao mesmo tempo, pelas projeções políticos, sociais, econômicas eculturais e pelos ideais intelectuais, a partir do que os docentes desses institutos teriamprocurado desenvolver as suas atividades.

visão de conjunto; institutos isolados de ensino superior do estado de São Paulo; questõese contradições contextuais.

* Este artigo teve origem por ocasião da qualificação da tese de doutoramento dapresente autora, realizado em 14 de abril de 2003.

** Mestre em educação (2000) e doutora em educação (2005), pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Filosofia e Ciências Universidade Esta-dual Paulista (UNESP-Campus de Marília). Atualmente, é professora assistente doDepartamento de Didática da Faculdade de Filosofia e Ciências UNESP.

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The academic production about theisolated institutes of higher education

of the state of São Paulo – Brazil(1951-1964)

Rosane Michelli de Castro**

Abstract:This article has as objective to offer a group view on studies and researches on nineIsolated Institutes of Higher Education that were created or later incorporated into thePublic Teaching State System of São Paulo (Brazil) from 1951 to 1964. Although theyhad tried to give all those studies and researches, the same treatment, some of the synthesesrevealed than the other ones. However, all of them corroborated the statement and thefact that the pathways to the above-mentioned Isolated Institutes of Higher Education ofthe State of São Paulo were simultaneously delineated by socioeconomic, political andcultural projections as well as by some intellectuals’ ideals, from which on the professorsof those institutes would have tried to develop their teaching activities.

A group view; isolated institutes of higher education of the state of São Paulo (Brazil);questions and contradictions on the context.

** Mestre em educação (2000) e doutora em educação (2005), pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Filosofia e Ciências Universidade Esta-dual Paulista (UNESP-Campus de Marília). Atualmente, é professora assistente doDepartamento de Didática da Faculdade de Filosofia e Ciências UNESP.

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A produção acadêmica sobre os institutos isolados de ensino superior... 161

Introdução

Do conjunto dos institutos isolados de ensino superior constituídopor 16 faculdades nas diversas áreas do conhecimento Faculdade deFarmácia e Odontologia de Araraquara, Faculdade de Farmácia e Odon-tologia de São José dos Campos e de Araçatuba, Faculdade de Odonto-logia de Piracicaba, Faculdade de Ciências Médicas e Biológicas deBotucatu, Faculdade de Engenharia de Guaratinguetá, Faculdade deAgronomia e Medicina Veterinária de Jaboticabal, Faculdade de Músi-ca Maestro Julião São Paulo, e as Faculdades de Filosofia, Ciências eLetras de Araraquara, Assis, Franca, Marília, Presidente Prudente, RioClaro, Ribeirão Preto e São José do Rio Preto, foram contempladas emestudos e pesquisas acadêmicas que puderam ser localizados, os seguin-tes: a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Marília, por AntonioF. Furtado (1969); a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de SãoJosé do Rio Preto, por Zuleika Aum Attab (1973); a Faculdade de Ciên-cias Agrárias e Veterinárias de Jaboticabal, por Luiz Carlos Beduschi(1986); a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Rio Claro, porAntonio Buschinelli (1988); a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letrasde Presidente Prudente, por Dióres Santos Abreu (1989); novamente aFaculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São José do Rio Preto, porNewton Ramos de Oliveira (1989); a Faculdade de Ciências Médicas eBiológicas de Botucatu, por Isaura Maria Accioli N. Bretan (1995); asseis Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) – Araraquara,Assis, Marília, Presidente Prudente, Rio Claro e São José do Rio Preto,por José Vaidergorn (1995); a Faculdade de Farmácia e Odontologia deAraraquara, por Anna Maria Martínez Corrêa (1998); novamente a Fa-culdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFC) de Marília, por LeonorMaria Tanuri (2001) e por Rosane Michelli de Castro (2005).

Ainda, referente às especificidades do processo geral de criação, ins-talação e funcionamento dos institutos isolados de ensino superior do es-tado de São Paulo, foram localizados os resultados dos estudos de BeatrizWestin de Cerqueira Leite (1997) e de Márcia Regina Tosta Dias (2004).

Os resultados de todos esses estudos e pesquisas se encontram ma-terializados mediante textos monográficos, de dissertações e teses, al-

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guns dos quais se encontram publicados no formato de livros, folhetosou artigos. A todos eles aqui reunidos procurei dar o mesmo tratamento.Entretanto, considerando o grau do detalhamento dos aspectos tratadosem cada um deles, algumas sínteses apresentam-se mais desenvolvidasque outras.

Sintetizando alguns estudos e pesquisasdesenvolvidas sobre os institutos isoladosde ensino superior do estado de São Paulo

Iniciando pelo artigo de Antonio Furtado (1969), é possível afirmarque esse memorialista mariliense escreveu em resposta às críticas con-trárias à interiorização do ensino superior no estado de São Paulo, em-preendidas por aqueles que, segundo ele, advogavam pela manutençãoda Universidade de São Paulo (USP) e de sua Faculdade de FilosofiaCiências e Letras como centro para a renovação das elites dirigentespaulistas1.

Para Furtado (1969), a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras deMarília, assim como as demais faculdades da cidade e de localidades dointerior paulista criadas até a década de 1960, faziam parte da “verda-deira revolução pedagógica” que, segundo ele, implantava-se de forma“irreversível”.

As preocupações desse pesquisador apresentaram-se no seu artigocom o intuito de situar essa faculdade no âmbito das “conquistas” dacidade de Marília e do ensino superior com a sua interiorização no esta-do de São Paulo diante das críticas contrárias sobre esse processo, em-preendidas, sobretudo, por parte da intelectualidade da USP.

Em 1973, Zuleika Aum Attab, ex-aluna da Faculdade de Filosofia,Ciências e Letras de São José do Rio Preto, entre 1959-1964, defendeutese de doutoramento, resultado de um trabalho de pesquisa que foi con-

1. Sobre a função política projetada para Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras daUSP, ver análise realizada por: Cardoso (1982, p. 98) e Vaidergorn (1995, p. 63 e ss).

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A produção acadêmica sobre os institutos isolados de ensino superior... 163

siderado pioneiro, com o objetivo de realizar “[...] uma análiseinterpretativa da experiência da reforma universitária [...]” (Attab, 1973,p. 1) realizada principalmente nos cursos de pedagogia e letras, entre1959 a 1964, naquela faculdade, em que havia ainda o curso de histórianatural. Attab afirmou que o texto resultante do seu trabalho de pesqui-sa não se constituiu em “[...] um relato sistemático e cronologicamenteordenado dos eventos [...]” (idem, p. 3) ocorridos no período delimita-do, pois considerou que, se assim o tivesse feito, talvez não pudesse tercompreendido o sentido subjacente a esses eventos. Dentre outras justi-ficativas para a realização dessa sua pesquisa, considerou o fato de ter-se criado, à época, em torno da chamada “experiência da reforma uni-versitária” da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São José doRio Preto, várias interpretações que considerou “[...] precipitadas, atitu-des radicais de aceitação e rejeição [...]” (idem, p. 1) e que acabaram, nasua opinião, transformando essa faculdade num “mito”. Assim, obser-va-se nesse trabalho uma retomada de um foco de discussão em tornodas críticas e interpretações a respeito do processo de interiorização doensino superior no estado de São Paulo, mediante a criação dos institu-tos isolados, o que fez a pesquisadora considerar necessário contextua-lizar tal “experiência”, observando seus antecedentes socioeconômico eculturais.

Primeiramente, Attab (1973) caracterizou a “experiência da refor-ma universitária”, ocorrida na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letrasde São José do Rio Preto como um conjunto de medidas ali empreendi-das, desde a criação dessa faculdade. Tais medidas pretendiam-se ino-vadoras e teriam partido da iniciativa dos docentes dos departamentosde pedagogia e letras, o que a pesquisadora afirmou ter sido possível,sobretudo, porque a lei de criação da faculdade havia sido omissa noque tangia os aspectos técnico-pedagógicos, sem qualquer congruênciacom o processo educativo que pretendeu reger, e, também, porque taismedidas estavam impregnadas de elementos condicionados por, e con-dicionantes de, um contexto marcado por oposições internas de umaminoria de professores do curso de letras e da maioria dos professoresdo curso de história natural –, e externas – tanto na esfera municipalquanto por parte dos círculos universitários da capital do estado. Segun-

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do Attab (1973), as oposições que ali se constituíram, influíram de ma-neira decisiva em todas as etapas pelas quais passou a faculdade; desdea formulação do seu “ideário pedagógico”, passando pelo seu funciona-mento como “agência de escolarização”, até a concretização de práticasentão decorrentes, às quais se constituíram em malogros de tudo que sepretendeu “inovador”.

Para Attab (1973), as camadas abastadas de São José do Rio Pretoaspiravam pela criação de uma faculdade de filosofia para que suas fi-lhas obtivessem um diploma, diferentemente dos políticos da cidade,sobretudo os de origem popular, que tomaram a proposta de criação detal faculdade como objeto para angariarem votos. Tais políticos passa-ram a defender a criação de uma escola pública, gratuita, para atendertoda a população, situação que não agradava à camada enriquecida.Assim, apesar de a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de SãoJosé do Rio Preto ter sido concebida a partir das aspirações de umacamada social, a de pessoas abastadas da cidade, Attab (1973) afirmouque essa faculdade passou a sofrer a oposição dessa mesma camada,devido ao modo como se concretizou, como “escola pública”.

Um outro fato que, segundo essa pesquisadora, teria corroboradopara que essa oposição se firmasse foi a nomeação do primeiro diretordessa faculdade, vindo da capital paulista por imposição do governo doestado e em concordância com os planos do prefeito, de estadualizaçãodessa faculdade. Assim, a camada enriquecida que aspirava por umafaculdade de filosofia na própria cidade de São José do Rio Preto, a fimde evitar “[...] que suas filhas convivessem com os marxistas e positi-vistas da Universidade de São Paulo” (idem, pp. 15-16), tiveram que sesubmeter à imposição do governo e aceitar um diretor que considera-vam compartilhar desses mesmos ideais. Resultou, segundo Attab (1973),que as camadas enriquecidas não matricularam suas filhas na faculdadee instalou-se um clima de tensão.

Ainda no âmbito municipal, a Faculdade de Filosofia, Ciências eLetras de São José do Rio Preto teria sofrido, na opinião de Attab (1973),um outro tipo de rejeição, agora dos seus professores, que foram acusa-dos de agirem de maneira agressiva com a população local, mediantesuas idéias tidas como “profanas”, “[...] no sentido durkeiminiano da

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palavra” (idem, p. 22), às vezes, por aconselhamento do próprio diretor.Ocorreu, segundo a pesquisadora, um “choque de duas culturas: a urba-na secularizada e a rural patriarcal”. Posteriormente, o modo “indepen-dente” de agir do diretor, teria ainda indisposto a faculdade com a suamantenedora.

A oposição sofrida pela faculdade por parte dos círculos universitá-rios teria sido bastante radical. “A Universidade de São Paulo, princi-palmente a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, opôs-se tenaz-mente à criação de cursos superiores no interior” (idem, p. 17). Na opiniãoda pesquisadora, parcela dos intelectuais da USP acreditava que a cria-ção dos institutos isolados de ensino superior dava-se de “[...] formacaótica e indiscriminada, carente de estudos prévios a respeito da viabi-lidade dessas novas instituições” (idem, ibidem), sem qualquer planeja-mento, o que as condenaria ao fracasso. Ainda afirmou que esses inte-lectuais acreditavam que, se a USP não recebia as dotações orçamentáriasnecessárias ao seu funcionamento, o mesmo ou o pior aconteceria aesses institutos.

Essa maneira hostil de os círculos da Faculdade de Filosofia, Ciên-cias e Letras da USP tratarem o que consideraram ter-se constituído em“problemática” dos institutos isolados de ensino superior do interior doestado, “traumatizou”, nas palavras de Attab, “[...] a maioria dos profes-sores do curso de Pedagogia e boa parte dos professores do curso deLetras, que aceitando o desafio [para lá] se deslocaram visando, antesde mais nada, refutar a prática pedagógica, o voto de desconfiança quehavia recebido” (idem, p. 28). Segundo Attab (1973), com exceção dosprofessores do curso de história natural, que ela afirmou não terem tidoesse problema, tratava-se de professores descontentes com o ensinoministrado na maioria das seções da Faculdade de Filosofia, Ciências eLetras da USP, os quais entendiam que “a Faculdade da Rua MariaAntonia havia atingido um ponto de estagnação, caminhando rapida-mente para o esclerosamento, em virtude do abuso da liberdade de cáte-dra e da ausência da organização departamental” (idem, p. 29).

Disso, teriam surgido as oposições internas na faculdade, decorren-tes, conforme Attab (1973), ao menos na sua gênese, da omissão porparte do primeiro diretor da faculdade nos debates ligados à adoção ou

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não, inicialmente, do modelo pedagógico “uspiano”, e, posteriormente,à adoção de um esquema departamental, e à participação dos alunos nasquestões tanto de caráter técnico-pedagógico quanto político-burocráti-cas. Daí o surgimento dos dois grupos com idéias radicalmente discor-dantes um do outro.

Também, uma outra divergência apontada por Attab (1973), e que,na sua opinião, possuía cunho inovador, foi a fixação da corrente psico-lógica adequada a um curso de formação de professores, ou seja, dachamada psicologia educacional. Decidiram, os professores do departa-mento de pedagogia, pela teoria psicológica. Buscaram, conforme Attab(1973), “piagetizar” a didática, o que não teve êxito.

Portanto, Attab (1973) acreditou que todas as medidas introduzidaspela “experiência de reforma universitária” na Faculdade de Filosofia,Ciências e Letras de São José do Rio Preto, algumas das quais aquiapontadas, representaram, na época, manifestações de “progresso”, po-rém, malograram.

Em 1986, Luiz Carlos Beduschi publicou um “relato” em homena-gem aos 20 anos da Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias deJaboticabal, procurando evidenciar os aspectos positivos da trajetóriade criação e instalação desse instituto isolado.

Nesse “relato”, publicado sobre o funcionamento da faculdade,parece-me que Beduschi não o fez em resposta a qualquer crítica, con-trária ou favorável à criação dessa faculdade. Entretanto houve uma preo-cupação em evidência: a relevância desse feito para a cidade deJaboticabal e região, pois, conforme ele mesmo, se tratou de um traba-lho para o “reconhecimento” de todos que participaram de sua criação einstalação.

Publicado em formato de “folheto”, Beduschi (1986) caracterizouesse seu trabalho como sendo o primeiro capítulo da história da referidafaculdade que ele viria escrever posteriormente. No entanto, um traba-lho contendo a história da Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinári-as de Jaboticabal, durante o período que funcionou como instituto isola-do de ensino superior, parece-me ter ficado no plano das intenções doautor, uma vez que, além desse “folheto”, não foi encontrado qualquertrabalho de outra natureza.

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Beduschi (1986), utilizando-se de informações contidas em docu-mentos legais, e da sua própria memória de “professor mais antigo” daFaculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias de Jaboticabal, afirmou terrealizado esse “relato”, “[...] por ser saudosista, e amar como poucos [...]”(Beduschi, 1986, p. 26), essa faculdade e também com o objetivo de “[...]perpetuar em registro para a História e conhecimento dos pósteros [...]”(idem, s.p.) os fatos que culminaram na sua criação e instalação, fatosesses marcados pelos esforços de uma comunidade local políticos dosvários partidos, “[...] entidades de classe, clube de serviço, associaçõesculturais, estabelecimentos de ensino, todos os jaboticabalenses enfim [...]”(idem, pp. 6-7) “forças-vivas do Município” (Beduschi, 1986, p. 11), di-ferentemente do que, segundo Attab (1973), teria ocorrido por ocasião dacriação e instalação da Faculdade São José do Rio Preto.

Também, diversamente das afirmações de Attab (1973) quanto aosepisódios que envolveram o percurso inicial da Faculdade de Filosofia,Ciências e Letras de São José do Rio Preto, Beduschi (1986) afirmouque Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias de Jaboticabal cor-respondeu às expectativas de sua criação, o que, segundo ele, pode serevidenciado mediante as ações que ali foram concretizadas, ao longo de20 anos de seu funcionamento.

Segundo Beduschi (1986), as iniciativas para a criação de uma “Es-cola de Agronomia” em Jaboticabal tiveram início em 1956, a partir dasaspirações de oferecer um ensino de nível superior para o aprimoramen-to de métodos e técnicas agrícolas, que em nível médio já era desenvol-vido em “[...] tradicional e excelente núcleo de ensino técnico-agrícola[...]” (idem, p. 19), o Colégio Agrícola José Bonifácio, capaz de favore-cer, ainda mais, as atividades de produção desenvolvidas em Jaboticabale região. Afirmou que os “jaboticabalenses” encontravam forças para assuas reivindicações nas metas constantes do plano de governo do dr.Adhemar de Barros a serem atingidas pelo setor agrícola em todo oestado, de acabar com a “[...] escassez de técnicos de nível superior naagricultura paulista” (idem, p. 5), apesar de, nesse setor, a situação doestado ser, à época, superior à grande parte dos estados do país.

Beduschi (1986) ressaltou que a Faculdade de Ciências Agrárias eVeterinárias de Jaboticabal passou, sobretudo no seu primeiro ano de

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existência, por dificuldades financeiras, devido à falta de dotação porparte do governo do estado, e somente pôde contar com o apoio doprefeito Alberto Botino e dos vereadores da Câmara Municipal, que“[...] tiveram visão administrativa suficiente para investir em algo deque se orgulhariam mais tarde” (idem, p. 26).

Assim como Beduschi (1986), Antonio Buschinelli (1988) realizouum trabalho de pesquisa sobre a Faculdade de Filosofia, Ciências e Le-tras de Rio Claro, tomando-a como feito positivo para a cidade que asubsidiou.

Publicado em 1988, Buschinelli, então professor emérito do Insti-tuto de Biociências – UNESP-campus de Rio Claro, buscou “resumir”nesse “simples relatório” “subsídios para uma avaliação futura do ensi-no superior oficial em Rio Claro”. Julgou-se “[...] credenciado pelasinformações que tinha para esta tarefa [...]” (Buschinelli, 1988, p. 1),informações que, segundo ele, haviam sido recolhidas durante o seutrabalho com o professor João Dias da Silveira, considerado o responsá-vel pela implantação do ensino superior oficial em Rio Claro.

Buschinelli (1988) iniciou o seu trabalho evidenciando a mesmapreocupação presente em outros trabalhos, quanto às críticas à interiori-zação do ensino superior no estado de São Paulo.

Conforme esse pesquisador, desde 1947, época da primeira tentati-va de implantação de um curso superior oficial na cidade de Rio Claro,de uma faculdade de ciências econômicas, houve resistências contra ainteriorização no estado de São Paulo desse nível de ensino. Entretanto,Buschinelli (1988) afirmou que a comunidade local – os estudantes e osprofessores do ensino médio, e as “forças político-sociais” – não desis-tiu da idéia e, em 1955, contando ainda com as influências políticas dacidade de Rio Claro no que se refere ao governo do estado e à assem-bléia legislativa, voltou a mobilizar-se em prol da criação de uma facul-dade oficial na cidade.

Decidiu-se, então, conforme o pesquisador, pela criação de uma fa-culdade de filosofia, ciências e letras e, em 1957, foi promulgada, pelogovernador Jânio da Silva Quadros, a lei n. 3.895, de 7 de junho, de cria-ção dessa faculdade, como instituto isolado de ensino superior, juntamen-te com as Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras de Marília e Assis.

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Buschinelli (1988), além da preocupação de “registrar” os fatos quemarcaram a criação, a instalação e o funcionamento dessa faculdade,“permitiu-se” fazer “[...] algumas interpretações pessoais sobre um ououtro fato que [considerou] importante” (idem, ibidem). Utilizou-se defonte documental escrita, sobretudo dos periódicos de circulação local ena capital do estado, e dos documentos legais da faculdade.

Entre as suas interpretações, Buschinelli (1988) afirmou que o en-sino superior em Rio Claro, “[...] foi uma excelente contribuição dopoder público estadual, da qual a cidade haverá de ser sempre muitoreconhecida” (idem, p. 2), porque beneficiou, sobretudo, a populaçãojovem que o aspirou, população essa que não havia encontrando nasatividades industriais, “[...] motivo de ocupação e preparo [...]” (idem,ibidem) – porque Rio Claro, por várias razões, não havia se desenvolvi-do industrialmente até então.

Sem realizar uma análise em profundidade sobre o modelo pedagó-gico ou mesmo burocrático-administrativo, e apenas se limitando emregistrar fatos que atestaram a viabilidade da Faculdade de Filosofia,Ciências e Letras de Rio Claro, Buschinelli (idem, p. 3) afirmou queessa faculdade se constituiu em “[...] inegável valor para o aumento dopoder da cultura” para a população rio-clarense e de toda a região.

Em 1989 foi privilegiada para estudo, por Dióres Santos Abreu, aFaculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Presidente Prudente, criadaem 1959. Abreu (1989) teria pesquisado com o objetivo de “[...] informare refletir sobre parte das condições do aparecimento do ensino universitá-rio público no interior de São Paulo e dos primórdios da UNESP” (p. 87).

Particularmente sobre a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letrasde Presidente Prudente, Abreu (1989) buscou realizar uma análise “com-preensiva” da “conjuntura” em que ela foi criada e das transformaçõesestruturais que a influenciaram, nos planos: local, estadual e nacional,no interior das quais tentou evidenciar todos os esforços dessa faculda-de para vencer as dificuldades e mostrar a sua pujança. Abreu (1989)valeu-se de informações recuperadas da sua própria memória, algumasdas quais procurou comprovar mediante referências feitas aos documen-tos escritos, como, por exemplo, às leis de organização e regulamenta-ção da faculdade.

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Em seu trabalho de pesquisa, da mesma forma como se observa emoutros trabalhos, Abreu (1989) ressaltou, como focos de resistência àexpansão do ensino superior oficial pelo interior paulista, as críticas deparcela significativa de professores da USP que tinham como argumen-to a falta de quadros e de recursos materiais por parte dos institutosisolados para o resguardo da qualidade do ensino superior no interior.Assim, Abreu (1989) afirmou que, diante dessas resistências, as facul-dades interioranas, entre elas a Faculdade de Filosofia, Ciências e Le-tras de Presidente Prudente, teriam levado anos para provarem sua via-bilidade – o que teriam feito graças à sua produção na docência e napesquisa, mesmo tendo que conviver com o problema “[...] da subordi-nação e adulação melancólicas de seus professores [...]” (idem, pp. 89-90) para com os professores da USP.

Conforme Abreu (1989), além desse problema, a Faculdade de Fi-losofia, Ciências e Letras de Presidente Prudente passou, sobretudo du-rante os primeiros tempos do seu funcionamento, por dificuldades deobtenção de recursos financeiros para a obtenção de instalações físicasadequadas, para a organização burocrática, montagem de laboratório ede biblioteca, e, ainda, sofreu com o peso de ter sido uma “escola” queiniciou suas atividades de uma maneira que pode ser considerada comodesfavorável, pelo fato de seu primeiro diretor, um profissional da Pon-tifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), ter sido nomeadoem decorrência de uma desavença entre o governador do estado e aFaculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP.

Para o pesquisador, as dificuldades com as quais a Faculdade deFilosofia, Ciências e Letras de Presidente Prudente teve que conviver,não pararam por aí, visto que outras surgiram e foram decorrentes dasintervenções das forças sociais e políticas da cidade. Essa faculdade,conforme afirmou, havia nascido como parte do processo de ampliaçãoda rede escolar mediado pelo “[...] poder público através de liderançaspolíticas prudentinas da época que, pelo assistencialismo, pelo paterna-lismo e pela intermediação, controlaram o poder político local por 40anos” (idem, p. 88).

Diante desse quadro, nem mesmo a organização burocrática da fa-culdade, produzida pelo poder público estadual e federal, para dar

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organicidade ao sistema estadual de ensino superior, foi, segundo Abreu,suficiente para afastar “[...] os obstáculos das injunções político-parti-dárias” (idem, p. 91).

Conforme Abreu (1989), os professores da Faculdade de Filosofia,Ciências e Letras de Presidente Prudente souberam, além de se dedica-rem à organização dos cursos de suas disciplinas de graduação, dedica-vam-se à pesquisa, sobretudo, para a obtenção do doutoramento. Afir-mou que os trabalhos de pesquisa dessa faculdade teriam sido bemrecebidos pela crítica e os seus professores produziram artigos que fo-ram publicados em boletins de departamentos e obras editadas pela pró-pria faculdade. Também, para esse pesquisador, a Faculdade de Filoso-fia, Ciências e Letras de Presidente Prudente não negligenciou na suamissão a “[...] formação de um alunado crítico [...]” (idem, p. 93), “sin-tonizados” com o seu tempo, o que, segundo ele, teria sido comprovadonos acontecimentos de 1968.

Com o mesmo tom de enaltecimento a partir do qual Furtado (1969),Beduschi (1986), Buschinelli (1988) e Abreu (1989) realizou seu traba-lho, cada qual sobre um instituto isolado de ensino superior distinto,Newton Ramos de Oliveira realizou trabalho de pesquisa que deu ori-gem a um texto de dissertação de mestrado datado de 1989, sobre aFaculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São José do Rio Preto, emtorno da qual, como vimos anteriormente, também Attab (1973) haviadesenvolvido a sua pesquisa de doutoramento.

Tendo como fio condutor a idéia de que a Faculdade de Filosofia,Ciências e Letras de São José do Rio Preto esteve profundamente identi-ficada ao seu tempo e espaço, quando e onde as suas peculiaridades te-riam se refletido e ampliado, Oliveira (1989) realizou uma pesquisa como objetivo de “analisar” o que denominou “uma experiência de ensinorenovador” ocorrido nessa faculdade, cujo período de existência foi de1957 a 1964.

Na condição de aluno e, posteriormente, como professor-assistentedurante o período por ele estudado, esse pesquisador, conforme ele pró-prio relatou, vivenciou o processo de criação, de instalação e de funcio-namento dessa faculdade; conheceu o seu corpo discente e docente, e

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seus funcionários e, portanto, considerou sua pesquisa um trabalho de“reconstituição do passado” da faculdade.

Mediante um “[...] diálogo intelectual com documentos da época[...]” (Oliveira, 1989, p. 214) – documentação escrita (materiais técni-co-pedagógicos de docentes, relatórios e atas institucionais) – e com osdepoimentos orais de outros partícipes, à luz de uma bibliografia espe-cífica sobre os contextos histórico-social, nos planos: local, regional enacional, Oliveira acreditou ter podido “[...] revelar a essência [...]” (idem,p. 22) da faculdade. Para ele, tal trabalho somente teria sentido se de-senvolvido no conjunto das relações com “[...] as forças infra e supra-estruturais que se exprimiam com vigor e entravam mutuamente emconflito [...]” (idem, p. 17) naquele tempo e espaço. Acreditou que “asuperposição e imbricamento de contextos (à superfície e em profundi-dade, nacional e local) [...]” lhe seriam necessários diante dos seus obje-tivos (idem, p. 22).

Dessa maneira, Oliveira (1989) iniciou o seu trabalho de análise einterpretação do contexto de 1957 a 1964, inserindo-o no período deno-minado como “populista” (1930-1964), quando, na sua opinião, se ins-tauraram e aprofundaram-se as contradições entre o modelo político e omodelo econômico e, no plano social, surgiram as possibilidades deabertura de um espaço de ação e reivindicação para o que chamou declasses populares. A esse contexto, Oliveira (1989) integrou o subcon-texto, a cidade de São José do Rio Preto.

Relativamente ao setor econômico, Oliveira (1989) afirmou queSão José do Rio Preto se tornou centro de toda a região, sobretudo pelasua localização estratégica, por onde passava toda a produção agrope-cuária que se dirigia ao restante das localidades do interior paulista, viaestrada de ferro. Segundo ele, São José do Rio Preto tornou-se aindapólo comercial para onde convergiram populações de outras cidades dointerior e onde se agregaram as forças políticas e sociais.

A condição de desenvolvimento econômico que a cidade de SãoJosé do Rio Preto havia atingido clamava, conforme Oliveira (1989),por um desenvolvimento cultural à altura. Afirmou que, durante a déca-da de 1950, o município já havia ultrapassado as fronteiras regionais ehavia tornado-se ponto de acesso ao Triângulo Mineiro, ao estado de

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Mato-Grosso e de Goiás, onde, posteriormente, foi construída a cidadede Brasília.

Oliveira (1989) afirmou que a Faculdade de Filosofia, Ciências eLetras de São José do Rio Preto foi a primeira escola desse tipo mantidapelo governo do estado no interior paulista, e o resultado do espírito dospolíticos locais capazes de grandes “pioneirismos” em busca da hege-monia regional nos setores econômicos, políticos e culturais.

Após esse trabalho de caracterização da cidade, Oliveira (1989)buscou demonstrar qual o modelo de faculdade que estava nas preten-sões dos “rio-pretenses”. Para ele, buscou-se, desde o início, um mode-lo próprio. O seu modelo estrutural foi a organização departamental quepretendia englobar “[...] todos os professores de um mesmo curso paraatividades legislativas internas, atividades de interdisciplinariedade ede entrosamento entre cursos, atividades de ensino e pesquisa [...]”(idem, p. 94), e com a participação de alunos. Posteriormente, demons-trou o quadro geral do nível docente, caracterizando-o como coeso ecoerente, e os relacionamentos intra e intergrupais que envolviam osdiscentes.

Oliveira (1989) recuperou informações que evidenciaram a dinâ-mica da faculdade na criação de cursos, na organização de seminários ede outras atividades pedagógico-culturais.

O modelo desenvolvido na faculdade, Oliveira (1989) afirmou tersido incompatível com o regime que se instalou em 1964. Para demons-trar isso, realizou um trabalho de análise e interpretação sobre a maneiraa partir da qual a faculdade se mesclou, pela natureza de seu modelo deensino e pesquisa, ao Brasil em seus contextos histórico-sociais em ní-vel local, regional e nacional. Utilizou-se para tanto de textos de apoio,de jornais e documentos de arquivos.

Mediante tais fontes, sobretudo dos documentos escritos, demons-trou fatos comprobatórios de que a faculdade “[...] fizera uma opçãopela classe trabalhadora como objeto de estudo e pesquisa e como sujei-to de emancipação futura” (idem, p. 205). Com essa opção, ressaltouque muitos professores e muitos alunos da “filosofia” foram presos esuas bibliotecas foram devassadas, o que, com tamanha dimensão, nãoteria ocorrido em nenhum instituto isolado, nem mesmo na USP.

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Após o trabalho de pesquisa de Oliveira (1989) que contemplou aFaculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São José do Rio Preto, JoséVaidergorn apresentou a sua tese de doutoramento, em 1995, sobre asseis faculdades de filosofia, ciências e letras públicas, criadas entre 1957e 1959, em Araraquara, Assis, Marília, Presidente Prudente, Rio Claro eSão José do Rio Preto.

Pesquisador que não se colocou como partícipe das trajetórias denenhum desses institutos isolados de ensino superior que pesquisou,Vaidergorn (1995) valeu-se de depoimentos orais inéditos ou já escri-tos, de participantes diretos ou indiretos dos fatos pesquisados, além doque chamou de formas quantitativas (documentos de época), formasqualitativas (fontes secundárias para subsidiar a sua análise e interpreta-ção), e “[...] imagens, ilustrações e ‘monumentos’ da época” (1995, p.3). Com esse entrecruzamento de fontes, Vaidergorn (1995) acreditouter proporcionado um “contraponto” entre memória e história, medianteo qual buscou recuperar o movimento das idéias que circularam no pe-ríodo, e o significado e sentido dessas faculdades.

Vaidergorn (1995) realizou o seu trabalho a partir de referenciaissociopolíticos e econômicos, tal como fez relativamente ao processo deinteriorização do desenvolvimento econômico, sobretudo nas cidadesonde tais faculdades se instalaram, entre 1957 e 1959. Conforme afir-mou, tratava-se de um conjunto de cidades que passaram a assumir,relativamente ao ensino superior, o mesmo papel desempenhado pelacapital paulista no setor econômico estadual.

Ao traçar uma trajetória do sentido da instalação dos nossos pri-meiros cursos superiores, desde a chegada das Cortes portuguesas naantiga Colônia, em 1808, até chegar à criação das faculdades de filoso-fia em referência, Vaidergorn (1995) aproximou-se do sentido que, paraele, teria tido a universidade e, em particular, a Faculdade de Filosofia,Ciências e Letras no Brasil: o de universidade como serviço público,“[...] que depende de leis e da supervisão do Estado (inclusive particula-res), embora [tenha havido] uma tendência a uma situação intermediá-ria, com grande independência e autonomia” (idem, p. 42).

Segundo Vaidergorn (1995), foi com o intuito de atender a umademanda do poder político oligárquico mediante a formação de uma

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elite intelectual dirigente, que a Faculdade de Filosofia, Ciências e Le-tras da USP, modelo para as faculdades do interior, foi criada na décadade 1930 e atingiu o seu reconhecimento nacionalmente. Grupos como odo jornal O Estado de S. Paulo, à frente dos interesses dos grupos nopoder, teriam advogado pela formação de uma elite com um saber ca-racterístico das ciências humanas, o conhecimento científico da socie-dade, cujos conteúdos estariam concentrados na Faculdade de Filoso-fia, concebida, segundo os interesses políticos, como regeneradora dasociedade brasileira.

Para esse pesquisador, configurou-se o que deveria ser as duas fun-ções básicas das faculdades de filosofia, ciências e letras: a de preparar eaperfeiçoar as elites dirigentes e a de formar pessoal especializado para osoutros níveis do ensino (particularmente para o secundário e o superior).Viriam então dessas faculdades “[...] as verdadeiras forças criadoras dacivilização” (Cunha, 1986, p. 262, apud Vaidergorn, 1995, p. 84).

Segundo Vaidergorn (1995), foi a partir desse referencial herdadoda Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP que as faculdadesde filosofia, ciências e letras – institutos isolados de ensino superior –teriam sido concebidas nas cidades do interior paulista, criadas e impul-sionadas, sobretudo economicamente, com a construção da linha férrea,no final do século XIX.

Afirmou que, originalmente, todas essas cidades estavam, na épo-ca, em situação privilegiada perante as demais regiões, devido ao suces-so com a atividade cafeeira e a presença da linha férrea, elemento res-ponsável pelo desenvolvimento econômico de cada uma delas. Após adécada de 1920, mais precisamente após 1929 com a decadência dacultura do café, teria havido, conforme suas afirmações, uma diversifi-cação agrícola, o que teria feito surgir outras atividades nas regiões ondeforam criadas as faculdades de filosofia, ciências e letras, favorecidaspela permanência das rotas ferroviárias e também pelas rodoviárias. Essadiversidade agrícola que então se observava acelerou, conformeVaidergorn (1995), o processo de urbanização que pôde contar com osinvestimentos dos capitais mercantis locais. Afirmou, ainda, que o co-mércio foi um dos maiores responsáveis pela instalação dos novos con-tingentes populacionais urbanos.

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Segundo Vaidergorn (1995), diante de um quadro de diversificaçãoeconômica, constituído pela industrialização, fortalecimento do setorterciário e novas atividades rurais, as cidades pioneiras do interior pau-lista passaram a exigir novos serviços, entre eles uma rede de ensinocomposta, sobretudo, pelo ensino superior, como medida política estra-tégica para demonstrar o grau de modernização que haviam alcançado.Daí a criação das faculdades de filosofia, ciências e letras, pois, a crençaera a de que tais faculdades solucionariam, em um curto prazo, o pro-blema de falta de pessoal especializado supostamente responsável pelo“progresso” da nação.

Para Vaidergorn (1995), a opção pela criação de faculdades de filo-sofia, ciências e letras nas cidades em referência, tem como uma de suasjustificativas o fato de ter-se constituído, na época, como uma maneirade “[...] garantir a qualidade do ensino e disposição para reproduzir omodelo pedagógico da ‘celula-mater’ também na pesquisa”, mediante aabsorção de professores oriundos da USP (Vaidergorn, 1995, p. 165).Além disso, tal opção traduziu, conforme esse pesquisador, uma sériede aspirações, por vezes curiosas, pois além da formação de professoressecundários dentro dos padrões da alta cultura, havia também aquelasrelacionadas à formação de moças no interior, sem terem que se deslo-car até a capital, e as relacionadas às possibilidades de ascensão profis-sional e de classe social dos seus formandos.

Conforme afirmou, os aspectos da dinâmica política e social quepossibilitavam a interiorização do ensino superior no estado de São Pauloforam os mesmos que favoreceram o desenvolvimento econômico noestado, particularmente das cidades onde se instalaram as referidas fa-culdades, entre 1957-1959. Tais aspectos teriam a sua gênese nas rela-ções de mandonismo local que, relativamente às faculdades de filoso-fia, ciências e letras públicas, buscaram ditar as normas a partir das quaiselas seriam criadas e pudessem funcionar.

Afirmou que os poderes políticos locais passaram a considerar suasessas faculdades e tentaram, de toda forma, controlá-las e fiscalizá-las,o que teria gerado a dependência das instituições em relação aos gover-nantes, a fim de se conseguir, sobretudo, as verbas. Com essa situaçãoque acarretava a falta de autonomia das faculdades públicas, mesmo

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buscando atender a uma concepção liberal, essas faculdades estiveram,na opinião desse pesquisador, à mercê dos interesses do Estado ao invésda burguesia a quem pretendiam servir, o que as teria afastado da socie-dade e dos demais poderes públicos.

Finalmente, Vaidergorn (1995) concluiu afirmando que a criação eo funcionamento das faculdades de filosofia, ciências e letras – institu-tos isolados de ensino superior:

[...] foi ao mesmo tempo fértil e desastroso. As faculdades, se não trouxeram

para as cidades o império das luzes, favoreceram as condições para o pro-

gresso regional. A formação de docentes para o ensino médio; as pesquisas

científicas “desinteressadas” e aplicadas em todos os campos do saber que

nelas estão representados; o preparo profissional para o setor terciário que

favoreceu iniciativas de produção do setor secundário e, acima de tudo, o

enriquecimento da cidade, a pujança da vida urbana, o acesso à alta cultura e

o preparo das elites dirigentes, contradizem com o distanciamento (que em

muitas oportunidades se transformava em hostilidade) com que os municí-

pios trataram suas faculdades [idem, p. 205].

Também em 1995, Isaura Maria Accioli N. Bretan apresentou a suadissertação de mestrado com algumas das mesmas preocupações deVaidergorn (1995), anteriormente citadas. No entanto, Bretan (1995)restringiu o seu trabalho de análise e interpretação à Faculdade de Ciên-cias Médicas e Biológicas – instituto isolado público de ensino superior– criada em 22 de julho de 1962, no distrito de Rubião Júnior, na cidadede Botucatu.

Pesquisadora que não se colocou como partícipe da trajetória daFaculdade de Ciências Médicas e Biológicas de Botucatu, Bretan (1995)teve como objetivo central oferecer informações sobre o processo deexpansão da educação de nível superior pelo interior paulista. Privile-giou analisar e interpretar os aspectos sociais e políticos dessa expansãoe teve como preocupação, entre outras, demonstrar como e porquê apresença dessa faculdade foi “[...] estimulante e aparentemente defini-dora das transformações da Botucatu urbana [...]” (Bretan, 1995, p. 2).Preocupou-se também com as questões que considerou, “[...] fora das

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fronteiras municipais [...]” (idem, pp. 3-4), relacionadas ao ensino dasciências médicas, em particular, e do ensino superior, de modo geral.Voltou o seu trabalho de análise e interpretação tanto para as questõesque, na sua opinião, foram favoráveis à criação da faculdade quantopara aquelas julgadas desfavoráveis, “[...] em termos da atividade polí-tico-partidária e em relação à ação de intelectuais e/ou professores uni-versitários” (idem, p. 4). Procurou, ainda, “[...] analisar ações da USPfrente à expansão do ensino superior no interior paulista, significandoisso o debate de outros temas, tais como: qualidade do ensino superior,ensino e pesquisa e peculiaridades em torno do ensino das ciências [...]”(idem, ibidem).

Conforme Bretan (1995), o seu trabalho baseou-se em fontes docu-mentais escritas, mas teve como apoio as informações da memória oral.

Inicialmente, Bretan (1995) buscou situar a cidade de Botucatu nointerior da conjuntura histórica do estado de São Paulo, particularmenteno final da década de 1950. Nesse sentido, evidenciou que se tratava deum momento de crise cafeeira e de reorganização econômica, quandoessa cidade apresentava “[...] sinais de declínio demográfico e econô-mico, acompanhado por concentração de propriedade e por forte movi-mento de urbanização” (idem, p. 39).

Diante dessa situação, Bretan (1995) afirmou que as forças políti-cas locais passaram a visualizar a educação, sobretudo a educação denível superior, como “[...] veículo ideal para o reforço e [para] a(re)criação de uma identidade antiga, a de centro de cultura” (idem, p.48), mediante o que se esperava promover a “[...] dinamização do setorterciário, de serviços, conforme acontecera na década de 10 com a inau-guração da Escola Normal” (idem, ibidem).

Conforme Bretan (1995), no início das suas reivindicações os re-presentantes políticos botucatuenses pleitearam junto às autoridadesestaduais “[...] qualquer tipo de faculdade [...]” (idem, p. 69), sem im-portarem-se se seria uma instituição pública ou privada. Essa atitude, deaparente indiferença quanto ao tipo de faculdade a ser criada, Bretan(idem, p. 70) caracterizou “[...] um dos aspectos marcantes do sistemaeducacional brasileiro do período”, o de omissão, por parte do Estado,das questões educacionais de interesse da coletividade, em prol de uma

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concepção de educação conservadora, correspondente aos anseios deuma educação aristocrática, “[...] que preparava o indivíduo para usu-fruir a cultura como privilégio social ou para exercer diferentes lideran-ças político-sociais” (idem, p. 70). Assim, afirmou que atitudes comoessa, teriam dado margem para que surgissem, de início através da im-prensa, críticas por parte de contemporâneos, de contestação a propósi-to da criação de faculdades no interior paulista.

Predominou, conforme suas afirmações, para fins de escolha dequal faculdade pretendiam para Botucatu, “[...] o pensamento dos seto-res dominantes quanto à imagem ideal do urbano, ou seja, uma cidadelimpa, sem mazelas, sem doenças e desocupados, e, quanto a represen-tação que faziam da educação e da cultura” (idem, p. 67). Assim, segun-do a pesquisadora, “[...] aos 21 de fevereiro de 1956, os vereadores daCâmara Municipal apresentaram uma indicação de criação de faculda-de de medicina naquele município” (idem, p. 88).

Bretan (1995) evidenciou em seu trabalho, preocupações quanto aoposicionamento do pessoal da USP, como os demais pesquisadores aquiabordados. Nesse sentido, afirmou que o Conselho Universitário da USPmanifestou-se contrariamente à criação de uma faculdade de medicinaem Botucatu, após repetidas solicitações por parte da Assessoria TécnicaLegislativa do governo, para que esse órgão se manifestasse a propósito.

Ao remeter-se ao parecer 19/56, do Conselho Estadual de ensinosuperior, sobre o processo que tratou da instalação da faculdade de me-dicina de Campinas-SP, criada em 30 de junho de 1953, Bretan (idem,p. 96) transcreveu um trecho desse parecer, no qual o professor Antoniode Almeida Júnior ressaltava o porquê da posição contrária do Conse-lho Universitário da USP com relação à criação de uma faculdade demedicina em Campinas ou em qualquer outra cidade do interior paulis-ta: “Em princípio, [...] em face da ‘enorme responsabilidade financeira’[...] e, também, por entender conveniente aguardar-se a elaboração deum ‘plano ordenado e sistemático’ da rede escolar paulista” (idem, p.96). Considerou, também, “[...] ser satisfatória a proporção entre o nú-mero de médicos e a população [...]” (idem, ibidem) e declarou que aadministração paulista se encontrava ante um impasse: ou despenderrecursos com a instalação e atividades de uma escola médica, que con-

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siderava desnecessária naquele momento, ou com a saúde pública e coma educação popular, ambas consideradas assunto “urgente e imperioso”,e em favor do que optavam.

Conforme essa pesquisadora, algumas dessas considerações foramcontrapostas, em 1958, “[...] pelo Professor Zeferino Vaz em seu planode estudos sobre a criação e instalação da Faculdade de medicina deBotucatu” (idem, ibidem).

Finalmente, Bretan (1995) afirmou que prevaleceu a vontade dospolíticos estaduais que, segundo ela, “[...] não pareciam concordar como CO/USP [...]” (1995, p. 97), e então, conforme o Projeto de Lei n. 721/58, foi criada a Faculdade de Medicina e o seu Hospital das Clínicas, emBotucatu.

Com o propósito de evidenciar ações e captar o pensamento do CO/USP, Beatriz Westin de Cerqueira Leite, publicou em formato de artigo,em 1997, os resultados de um estudo por ela realizado, integrante de umprograma que visou preservar a memória dos Institutos Isolados de En-sino Superior do Estado de São Paulo. Conforme Leite (1997, p. 255),por tratar-se de um primeiro levantamento das questões surgidas no CO/USP sobre o processo de criação, instalação e funcionamento dessesinstitutos, esse seu trabalho conservava a forma de quase relatório.

Leite (1997) afirmou que o CO/USP recusava todas as propostas notocante à criação e instalação de faculdades oficiais no interior do esta-do. Afirmou que para os membros desse conselho, “[...] figuras de escolda inteligência brasileira e com destaque mesmo no exterior” (Leite,1997, p. 258), até mesmo a idéia de faculdades no interior apresentava-se como um problema, pois achavam impossível visualizar uma únicamaneira mediante a qual fosse possível “[...] levar a cultura às circuns-crições limitadas de um Instituto Isolado de Ensino Superior no Inte-rior” (idem, ibidem). Temiam, segundo Leite (1997), pela limitação,empobrecimento e perda de profundidade do campo de conhecimentodo e sobre o ensino superior.

Assim sendo, essa pesquisadora afirmou que o então governadordo estado, dr. Jânio da Silva Quadros, mesmo à revelia do CO/USP,criou e instalou diversas faculdades no interior do estado, o que faziaaumentar os ressentimentos entre essas duas instâncias; primeiramente

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porque esse conselho sempre fizera questão de afirmar-se como “[...]órgão que oficialmente representava a Inteligência do Estado, do País e,como tal, responsável por promover a educação superior estadual” (idem,p. 267), e, em segundo lugar, porque consideravam tais medidas estraté-gicas para obtenção de apoio, prestígio e aceitação junto aos políticosdas localidades interioranas que, por sua vez, também empreendiam seusesforços em prol do cumprimento dessas medidas com vistas à obten-ção de benefícios de cunho eleitoreiro junto às suas comunidades, emdetrimento dos interesses reais do ensino superior estadual.

Orientadora de Bretan (1995) em seu trabalho de pesquisa anterior-mente analisado, Anna Maria Martínez Corrêa, coordenadora do proje-to Memória dos institutos isolados de ensino superior do estado de SãoPaulo, 1923-1976, do Centro de Documentação e Memória (CEDEM) daUNESP, realizou um trabalho de pesquisa sobre a “história” da Faculda-de de Farmácia e Odontologia de Araraquara, publicado em 1998.

Historiadora, Corrêa não foi partícipe da história dessa faculdadeque pesquisou, entretanto afirmou que, “[...] ao debruçar-se sobre a his-tória da Faculdade de Farmácia e Odontologia de Araraquara [...]”(Corrêa, 1998, p. 16), desenvolveu um “relato” sobre essa faculdadecomo integrante de um instituto isolado e com a sensação de ter feitosua própria história, embora sendo de uma outra área. Acreditou, comesse trabalho de pesquisa, desenvolvido a partir de documentação escri-ta e mediante depoimento oral de partícipes da trajetória da Faculdadede Farmácia e Odontologia de Araraquara, ter reunido “informaçõesesclarecedoras”, que considerou “[...] úteis para um conhecimento maisamplo da história da expansão do ensino superior pelo interior do Esta-do de São Paulo” (idem, p. 9).

Corrêa (1998) apresentou como parte das suas justificativas para aescolha da Faculdade de Farmácia e Odontologia de Araraquara comoobjeto de investigação, o fato de essa faculdade, apesar das interferênci-as do pessoal da USP, ter tido a possibilidade de construir um projetopróprio, produto da comunidade araraquarense, “[...] com suas tradi-ções consolidadas [já ocupando] um espaço na vida cultural da cidade[e também como] prestadora de serviços na área da saúde” (idem, p.146). Mediante essa sua justificativa, Corrêa (1998) evidenciou a pre-

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sença de uma preocupação em demonstrar o quanto a Faculdade de Far-mácia e Odontologia de Araraquara foi viável desde a sua origem, em1923, apesar das interferências externas por ela sofrida.

Nesse sentido, a pesquisadora destacou que a “escola” em referên-cia precisou, primeiramente para que fosse estabelecida, de “[...] umarotina que pudesse garantir seu funcionamento [...] e conquistar um con-ceito favorável que a credenciasse como instituição respeitada.” (idem,p. 29). A esse obstáculo, afirmou que se somaram as “[...] restrições àabertura de novas escolas e uma certa desconfiança em relação às defuncionamento recente, especialmente no interior do Estado” (idem,ibidem). Como ressaltou, tais objeções teriam surgido em favor da uni-formização do ensino farmacêutico e odontológico, nos moldes do ensi-no da Escola da Rua Três Rios para a manutenção e qualidade desseensino. Entretanto, na sua opinião, os discursos que defendiam tal uni-formização tinham como principal objetivo atender aos interesses depolíticos da capital paulista, sobretudo daqueles que tinham bases elei-torais no interior e temiam a concorrência de outras “escolas” que pu-dessem diminuir o prestígio das cidades onde angariavam votos que,por conta disso, deixariam de apóia-los.

Corrêa (1998) tratou da criação da Faculdade de Farmácia e Odon-tologia como “escola”, parte de um conjunto de empreendimentos paraAraraquara proposto a partir dos interesses de políticos de prestígio, dacidade, da região e da capital paulista.

Segundo Corrêa (1998), além do empenho do prefeito de Araraquara,que ganhava reconhecimento local, a criação da faculdade contou comos esforços de pessoas da cidade com prestígio e poder político-econô-mico que se reuniram num único grupo.

Como ressaltou, além das interferências “político-eleitoreiras”, astransformações econômicas regionais, em virtude das alterações na eco-nomia cafeeira, e as mudanças políticas da década de 1930, marcaram ahistória da “escola”.

A nova etapa, com ares de modernização da “história” da entãoEscola de Farmácia e Odontologia de Araraquara, iniciada durante adécada de 1940, Corrêa (1998) atribuiu, entre outras coisas, às novaspossibilidades surgidas no campo da economia após a Segunda Guerra

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Mundial; “[...] com a diversificação no campo da indústria e da medici-na, particularmente da medicina preventiva.” (idem, p. 65).

A transformação da Faculdade de Farmácia e Odontologia em Ins-tituição de Ensino Superior, Corrêa (1998) tratou como sendo parte daspropostas de criação de universidades pelo interior paulista, contidas noprograma de ação de Adhemar de Barros, além de ter sido determinadasegundo a constituição paulista de 1947.

Corrêa (1998) acreditou que a análise do processo de criação e de-senvolvimento da Escola de Farmácia e Odontologia de Araraquara de-via ser realizada juntamente com um trabalho de avaliação de comoocorreu o debate político em torno da criação de universidades públicaspelo interior. Assim, na sua opinião, a criação das universidades públi-cas, de escolas superiores no interior do estado, assim como a criação eestadualização da Faculdade de Farmácia e Odontologia de Araraquara,passaram a ter “uma conotação política” e a despertar “apoios, contesta-ções, ou mesmo condenações”.

O processo para estadualização da Faculdade de Farmácia e Odon-tologia de Araraquara, Corrêa analisou a partir das discussões e pontosde vistas do pessoal da USP, pois afirmou que a presença dessa univer-sidade era muito próxima dos órgãos públicos, e alguns deputados eramprofessores e integrantes do Conselho Universitário dessa faculdade.Assim, o primeiro momento de discussões pela incorporação à USP daEscola de Farmácia e Odontologia de Araraquara como uma de suasfaculdades teria sofrido, conforme Corrêa (1998), todo tipo de pressãocontrária, já que para a USP, “[...] a incorporação de faculdades do inte-rior não constava de seus projetos.” (idem, p. 87). Em outro nível, entãopela estadualização da faculdade, também afirmou que “[...] havia res-trições por parte da USP, pois na sua maneira de ver, mesmo não inte-grada à universidade, a estadualização poderia ser fator desencadeadorde uma série de outros atos semelhantes, contribuindo assim para a faci-litação do ensino e sua banalização” (idem, ibidem).

Também Corrêa (1998) afirmou ter havido uma total descrençaquanto às possibilidades de produção universitária no interior, no níveldesejado, aliado ao argumento da necessidade de, antes de se criar fa-culdades pelo interior, investir recursos na construção da “Cidade Uni-

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versitária”, na capital paulista. Aos olhos do pessoal da USP, havia ape-nas um ponto positivo quanto à criação de faculdades pelo interior: re-solver o problema de escassez do número de suas vagas. Chegou-se apensar, então, até na possibilidade de federalização da “escola”, entre-tanto, as resistências surgiram entre os seus próprios docentes.

Conforme Corrêa (1998), a nova etapa da “escola”, então como“faculdade” estadualizada, foi vista pelos seus docentes como momentopara preservação das tradições consolidadas durante três décadas e peloaprimoramento técnico-científico. Seus professores estavam otimistas,influenciados pelo cenário político-econômico desenvolvimentista tam-bém novo, iniciado com o governo de Juscelino Kubitschek. Nem mes-mo o fato de o governador ter nomeado um professor da USP, institui-ção com a qual a Faculdade de Farmácia e Odontologia de Araraquarateve maiores atritos, foi motivo de mal-estar a ponto de dificultar ostrabalhos dessa última.

A viabilização da Faculdade de Farmácia e Odontologia deAraraquara, bem como das propostas para a criação de novas faculda-des pelo interior paulista, Corrêa (1998) atribuiu às influências da polí-tica local e às ações do governo estadual no que diz respeito, sobretudo,aos investimentos em obras de infra-estrutura, à montagem de laborató-rios, bibliotecas e às condições necessárias para que os docentes pudes-sem obter suas titulações. Entretanto, afirmou que essa situação não seconfigurou como muito favorável para a Faculdade de Araraquara e paraos demais institutos isolados de ensino superior, porque o governo quehavia iniciado em 1959, de Carlos Alberto A. de Carvalho Pinto, tinhacomo meta superar a situação de suposto “subdesenvolvimento” do es-tado lançando mão de uma política econômica de redução de gastos ede racionalização dos recursos.

Conforme Corrêa (1998), no que diz respeito ao processo de ex-pansão do ensino superior pelo interior paulista, Plínio de ArrudaSampaio, consultor técnico do programa de ação de Carvalho Pinto,teria afirmado que este último considerava que o estado “[...] havia pas-sado por um grande crescimento econômico e cultural, mas de formadesordenada [...] “ (idem, p. 150), sendo preciso fazê-lo de forma plane-jada, “[...] com um norte para onde se vai, para não estar acumulando

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uma escola em cima da outra, para não estar concentrando especialida-de em uma região, em detrimento de outras coisas [...]” (Sampaio, 1995,s.p. apud Corrêa, 1998, p. 150). Segundo a pesquisadora, houve, então,escassez de recursos tendo que ser disputados pelos institutos isolados.Além dessa situação de disputas de recursos, as faculdades de filosofia,que se constituíam em institutos isolados, sofriam com as conseqüên-cias das críticas advindas do pessoal do jornal O Estado de S. Paulo edirigidas ao governador Carvalho Pinto, pelos investimentos ali realiza-dos. Entretanto, afirmou que, mesmo com as críticas, as faculdades defilosofia cresciam e da convivência de uma dessas, a de Araraquara,com a Faculdade de Farmácia e Odontologia, crescia também a idéia deambas pertencerem a uma universidade.

Em 2001, por ocasião da realização, em 1999 do “III Simpósio deFilosofia e Ciências: paradigmas do conhecimento no final do milênio”,Leonor Maria Tanuri escreveu um artigo no qual retomou algumas dascríticas contrárias à interiorização do ensino superior no estado de SãoPaulo, mediante a criação dos institutos isolados, sobretudo aquelasvoltadas à Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Marília, com ointuito de evidenciar que houve uma contribuição relevante e significa-tiva para as transformações sociais e educacionais na região advindascom as atividades de ensino e de pesquisa realizadas nessa faculdade, apartir de 1959.

Relativamente ao conjunto dos institutos isolados de ensino supe-rior, Tanuri afirmou que, mesmo tendo sido eles motivados “[...] maispor razões políticas do que propriamente educacionais [...] de iníciorestritos a segmentos minoritários da sociedade, passaram a ser objetode procura de camadas cada vez maiores e mais diversificadas da popu-lação [...]”, em virtude do que teria havido “[...] a transformação doprojeto pedagógico inicial e a adoção de medidas tendentes a adequá-las à ampliação da demanda.” (Tanuri, 2001, p. 219). Entretanto, ressal-tou que os professores da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras deMarília, e aí ela se inclui, nunca se apartaram da idéia de que os institu-tos isolados deveriam “[...] ser de alto nível e em linha renovadora”(idem, p. 220), a partir da qual haviam sido concebidos, “[...] num mo-mento em que se começava a desenvolver o processo de modernização

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do ensino superior, intensificando-se os debates e incorporando-se ino-vações administrativo-pedagógicas a algumas instituições” (idem,ibidem).

Conforme essa pesquisadora, sem dúvida que a USP “[...] principalfornecedora de docentes para os IIES [...]” (idem, p. 221), ofereceu ummodelo a ser seguido, “[...] em seu padrão de excelência [...]” (idem,ibidem), mas, os institutos isolados teriam sabido como superá-lo emseus aspectos tidos como conservadores. A propósito, Tanuri (2001) trans-creveu trechos de entrevistas cedidas por ex-professores desses institu-tos ao CEDEM da UNESP, em defesa dessa idéia.

Em 2004, Márcia Regina Tosta Dias defendeu sua tese de doutora-mento em que desenvolveu uma análise do nascimento da UNESP a par-tir da relação entre interiorização do ensino superior e a Reforma Uni-versitária de 1968. Além da análise bibliográfica, a pesquisadora valeu-sede fontes diversas como entrevistas, material de imprensa, legislação,processos, estudos, planos, pareceres e documentos oficiais, em suamaioria produzidos e coletados pelo CEDEM da UNESP.

Dias (2004) preocupou-se em evidenciar o rompimento de um pro-cesso embrionário de implantação de certa tradição humanista de inspi-ração uspiana, sobretudo nas então recém criadas faculdades de filoso-fia, ciências e letras, em função das exigências da Reforma Universitáriade 1968 de caráter instrumental ditada por critérios racionais de plane-jamento e gestão. Tratava-se, pois, de um momento de modernização dopaís que demandava profissionais de nível superior com formação “re-novada”, em um ensino superior remodelado, para atenderem às exi-gências da política desenvolvimentista da década de 1950, nas mais di-versas regiões do país, o que exigia, inclusive, a fixação dessesprofissionais nas cidades interioranas. Entre as políticas públicas quevisavam a tão almejada modernização, sobretudo as empreendidas pelogoverno de São Paulo, estava então a interiorização do ensino superiore de seus profissionais.

Nesse sentido, Dias (2004) afirma que a Reforma Universitária de1968 trouxe consigo um novo referencial de formação desses profissio-nais, voltado para o mercado de trabalho. Ainda ao encontro das consi-derações sobre a dinâmica de criação e instalação dos institutos isola-

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dos de ensino superior no interior paulista feitas nos trabalhos citadosanteriormente, a pesquisadora também afirmou que esses institutos fo-ram movidos por iniciativas que articulavam interesses municipais eestaduais liderados por elites e políticos locais que defendiam a idéia deque levar escolas superiores para suas regiões promovia o desenvolvi-mento.

Após percorrer percursos investigativos semelhantes aos dos pes-quisadores até então citados, e tendo como fontes algumas provavel-mente utilizadas por Dias (2004), como os depoimentos escritos de ex-docentes da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras cedidos peloCEDEM da UNESP, Rosane Michelli de Castro defendeu, em 2005, tese dedoutorado na qual se encontram materializados discursivamente os re-sultados de sua pesquisa sobre a Faculdade de Filosofia, Ciências e Le-tras de Marília, particularmente sobre as revistas Alfa, Estudos Históri-cos e Didática dessa faculdade.

Castro (2005) desenvolveu sua pesquisa com o objetivo central derecuperar os sentidos e seus processos de produção desenvolvidos coma feitura da Alfa, Estudos Históricos e Didática, norteadas pela hipótesede que tais revistas, mesmo tendo sido criadas a partir de uma idéiainicial de serem somente suportes de comunicação da prática acadêmi-co-científica dos intelectuais da faculdade, teriam-se firmado mais como“dispositivos”, como:

[...] estratégias para a institucionalização da idéia de uma faculdade orienta-

da e organizada pela partilha de princípios e objetivos, e cujas atividades

acadêmico-científicas eram organizadas como atividades-meio a serviço de

uma visão de organização institucional que se pretendia a tradução do con-

senso dos sujeitos envolvidos [Castro, 2005, p. 25].

Após a recuperação e a análise de algumas propriedades contex-tuais objetivas emergentes da dinâmica de interiorização do ensino su-perior no estado de São Paulo e da gênese e funcionamento da Faculda-de de Filosofia, Ciências e Letras de Marília, o que, na opinião dapesquisadora, teriam se constituído nas próprias condições objetivas deprodução acadêmico-científica dessa faculdade, Castro (2005) buscou

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repensar as revistas da faculdade como meios que, pela forma e peloconteúdo, teriam como objetivo a criação de condições necessárias, ouao menos a idéia de existência dessas condições, para que as ações dossujeitos envolvidos com a faculdade pudessem defender-se a propósitodas críticas contrárias à instalação e ao funcionamento dos institutosisolados de ensino superior no interior paulista, e responder com eficá-cia às exigências impostas pela política de criação desses institutos, deproduzir os meios que permitissem conceber, coordenar e viabilizar açõesmais racionalizadas.

Enfim, o que Castro (2005) ressaltou em seus estudos foi a produ-ção intelectual de um dos institutos isolados de eEnsino superior que,mesmo convivendo com o peso de ter que responder aos interesses de-correntes dos conchavos políticos, logrou legitimação no meio acadê-mico e científico da época.

Algumas considerações finais

Conforme as sínteses aqui realizadas, é possível afirmar, assim comofez Tanuri (2001), que os institutos isolados de ensino superior refleti-ram, durante a sua trajetória, “[...] a problemática, as aspirações e ascontradições [...]” (Tanuri, 2001, p. 219) do contexto em que foram cria-dos, marcado pelas ações de uma política desenvolvimentista em prolde uma modernização da educação, sobretudo do nível superior de ensi-no de maneira a promover a sua articulação com as ações de ordemeconômica.

Em decorrência das tentativas de promoção de tal articulação, queme pareceu capaz de caracterizar o processo de interiorização do ensinosuperior no estado de São Paulo, ocorrido mediante a criação de institu-tos isolados, como resultante mais das “trocas políticas” e menos dasurgências propriamente educacionais, também como afirmou Tanuri(idem, ibidem), muitas das críticas contrárias à interiorização do ensinosuperior no estado de São Paulo teriam surgido, algumas das quais ini-ciadas antes mesmo da criação dos institutos, que colocaram em dúvidaa capacidade de eles constituírem-se em faculdades “de alto nível e em

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linha renovadora” (Anais da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letrasde Marília, 1969, p. 9), idéia que surgiu a partir da qual teriam sidoconcebidos.

Diante desse “clima” de desconfiança, os partícipes da trajetória decada um dos institutos isolados de ensino superior, ao menos dos insti-tutos contemplados nos estudos e pesquisas aqui sintetizados, entre elesos pesquisadores aqui referenciados, mostraram-se, como se viu, sensí-veis quanto a essas críticas.

Finalmente, o que me pareceu ter ficado evidente foi a presença deduas idéias muito presente nas histórias de vida dos institutos isoladosde ensino superior: as projeções políticos, sociais, econômicas e cultu-rais coexistindo com os ideais de intelectual a partir do que os docentesdesses institutos teriam procurado desenvolver as suas atividades.

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Endereço para correspondência:Departamento de Didática – Faculdade de Filosofia e Ciências –

UNESP/Campus de Marília.

Av. Hygino Muzzi Filho, 737

CEP 17525-900

E-mail: [email protected]

Recebido em: 4 out. 2005Aprovado em: 31 maio 2006

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Resenhas

História & Ensino de História

autor Thaís Nívia de LimaFonseca

cidade Belo Horizonteeditora Autênticaano 2003

No Brasil ainda são escassos os estudos sistemáticos sobre ahistória do ensino de história, embora as fontes existentes e as possi-bilidades de se abordar o tema já houvessem indicado como seriamprofícuas tais investigações, como demonstrou, na França, FrançoisFuret, no seu livro A oficina da história, e, no Brasil, Selva Guima-rães Fonseca, no seu livro Caminhos da história ensinada, e CirceBitencourt, no seu livro Pátria, civilização e trabalho.

O texto de Thaís Nívia de Lima Fonseca, História & Ensino deHistória, impresso em 2003 pela editora Autêntica, teve entre seusprincipais objetivos reconstituir a história do ensino de história noBrasil, objetivo que em parte a autora conseguiu atingir com méri-tos. Outros objetivos foram: o de demonstrar as possíveis fontes eformas de se inquirir o objeto; demonstrar a prioridade de se conhe-cer o tema, que é pouco conhecido e investigado pelos historiadoresprofissionais e pelos estudantes de história em formação; e ainda,elencar as melhores maneiras de se abordar o objeto, objeto em cons-trução e em que quase tudo ainda está para ser feito.

O livro foi dividido em quatro capítulos. No primeiro a autoradiscute o objeto, as fontes e a historiografia sobre a história do ensinode história, tendo como base a historiografia francesa, para a qual adiscussão avança mais detidamente, e em menor proporção a autoradiscute a historiografia de outros países. Demonstra a importância dadefinição de disciplina escolar e acompanha o desenvolvimento dahistória enquanto uma disciplina tecnicamente ensinável. Para ela as

características do conjunto de conhecimentos definidos como His-tória, no universo escolar, nem sempre foram às mesmas nem se

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mantiveram fiéis a uma estrutura de organização semelhante a queconhecemos hoje para as disciplinas escolares. Na verdade, o pró-prio estatuto da História enquanto campo do conhecimento mudoucom o tempo, conforme suas relações com o debate científico deuma forma geral e com as Ciências Humanas em particular. A rigor,somente a partir do século XVIII é que a História começou a adqui-rir contornos mais precisos, como saber objetivamente elaborado eteoricamente fundamentado [2003, pp. 20-21].

Para ela, no século XVIII, ainda sob o impacto do Iluminismo,vários conteúdos foram introduzidos e outros repensados no elencodas disciplinas escolares. Como indica a

História, ainda não constituída como disciplina escolar e ainda nãototalmente desvencilhada do sentido providencial, passaria a serensinada, desde o final do Antigo Regime, com o intuito de expli-car a origem das nações. Sob a influência do Iluminismo, seria cadavez menos a história sagrada e cada vez mais a história da humani-dade [2003, pp. 22-23].

No segundo capítulo faz um recenseamento dos principais tra-balhos, com vistas a demonstrar as tendências das pesquisas sobre ahistória do ensino de história no Brasil. Observa que

a ausência ou a fragilidade da problematização compromete a dis-cussão de questões de grande relevância para a compreensão doprocesso de constituição da História como disciplina escolar no Bra-sil desde o século XIX, de seu ensino ao longo do tempo e de suasinúmeras relações, sobretudo com a política e com a cultura [2003,pp. 32].

Ressalta que as lacunas são ainda diversas e a história do ensinode história não deve ser buscada apenas nas fontes institucionaliza-das, ou somente na sala de aula, mas também em “outras instânciasdo cotidiano e a atenção a esta sua outra face irá, com certeza, enri-quecer e consolidar este campo de pesquisa” (2003, pp. 36).

No terceiro capítulo, o mais denso do livro, a autora aproveitousua dissertação de mestrado, Os combates pelo ensino de história,defendida em 1996, e o seu doutorado, Da infâmia ao altar da pá-tria: memória e representações da Inconfidência mineira e deTiradentes, defendida em 2001. Com o objetivo de promover umarevisão da história do ensino de história no Brasil, destacou o seu

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surgimento como um artefato de exaltação do Estado e da nação emformação no século XIX; e a entrada da sociedade civil no séculoXX, ao se priorizar a formação do trabalhador, e mais recentementedo cidadão (a partir dos anos de 1980). Para ela é “difícil precisar oensino de História no Brasil antes das primeiras décadas do séculoXIX, quando se constituía o Estado nacional e eram elaborados osprojetos para a educação no Império” (2003, p. 37). Porque a políti-ca implantada pelo Marquês de Pombal (1750-1777) no século XVIIIprocurava silenciar a herança do ensino jesuíta, até então o úniconessas terras, e que foi introduzido na América portuguesa a partirde 1549 com o padre Manuel da Nóbrega, e sendo expulsos em 1759.Nesse período, a história “não se constituía [...] como disciplina es-colar e tinha, na verdade, função instrumental, com objetivos exteri-ores a ela” (2003, p. 39). Para ela a “constituição da História comodisciplina escolar no Brasil [...] ocorreu após a Independência [em1822], no processo de estruturação de um sistema de ensino para oImpério” (2003, p. 42). Observa que o Colégio Pedro II, criado em1837, manteve a centralização da disposição curricular no ensinosecundário até a década de 1930. Durante esse período as elites te-riam pensado a questão da identidade nacional, em comparação coma mestiçagem, uma vez que a herança da cultura afro-brasileira eraconsideravelmente relevante. Quando em 1931, o então ministro daeducação e saúde Francisco de Campos promoveu reformas no en-sino público e privado em todos os níveis, e que foi implementada,nesse processo, a nacionalização da educação, por meio do projetocentralizador do Estado, que iria se dissolver o lugar central até en-tão ocupado pelo Colégio Pedro II. Mesmo na década de 1950 rea-vendo temporariamente seu “papel”, o Colégio Pedro II, nas décadasseguintes não mais ocuparia àquela importância.

Em contrapartida, até a década de 1930, o papel do InstitutoHistórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) foi primordial, inclusiveporque “produzia-se e ensinava-se, a julgar pelos programas e pelostextos dos livros didáticos, uma História eminentemente política,nacionalista e que exaltava a colonização portuguesa, a ação missio-nária da Igreja Católica e a monarquia” (2003, p. 47). Contudo, valedestacar, que a autora quase nada falou sobre o surgimento das uni-versidades, a partir da década de 1920. Sem contar que na narrativada autora, a contribuição das universidades para o ensino de história

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no Brasil pareceu senão nula, no mínimo muito incipiente, coisa quede fato não procederia. Mas, a partir da década de 1980, sua análiseno capítulo em questão centraliza-se mais no Estado de Minas Ge-rais do que no país, com ênfase na forma como a Inconfidência mi-neira foi interpretada pela historiografia brasileira e incorporada noslivros didáticos e pelos professores de ensino médio e fundamental,e na maneira como as propostas de ensino desse estado alcançavamrelevo nacional. Dimensão evidentemente importante, embora insu-ficiente para se compreender a história do ensino de história, emtoda sua complexidade, durante o período da chamada “redemocra-tização” do Brasil.

No quarto capítulo discute algumas conexões entre o ensino dehistória e a historiografia, valendo destaque para questões como a es-cravidão, tal como tratada nos livros didáticos e por professores doensino fundamental e médio. Novamente, a autora revela um tema opor-tuno para pesquisas, com destaque para a maneira como a questão foitratada nos meios de comunicação de massas, como as telenovelas.

Encerrada a leitura do texto, abrem-se possibilidades para reinter-pretar a história do ensino de história no Brasil até então conhecida,com destaque especial para um convite a novas pesquisas, porque, se-gundo destaca a autora, “talvez este livro fustigue algumas dessas ques-tões e estimule velhos e jovens historiadores e professores de Históriaa olhar seu próprio caminho, reconhecer-lhe as trilhas, os obstáculos,as pequenas pedras, os passantes, as paisagens” (2003, p. 106).

Diogo da Silva RoizMestre em história

Universidade Estadual de São Paulo (Unesp – Franca)Professor do Departamento de História

Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS,Campus de Amambaí).

Endereço para correspondência:Rua José Luiz Sampaio Ferraz, n. 1133, Vila Gisele

Amambai-MS

CEP 79.990-000

Recebido em: 05 abr. 2006Aprovado em: 05 maio 2006

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Os caminhos dos livros

autor Márcia Abreucidade Campinaseditora Mercado de Letrasano 2003

Nós brasileiros estamos acostumados a ouvir que, em nosso país,desde os primeiros anos de colonização até os dias atuais, há umacarência cultural, ora de livros, ora de leitores. Com desconfiança ecuriosidade, buscando analisar mais detidamente essa conjectura,nasceu em Márcia Abreu a idéia da pesquisa que, em 2003, foi pu-blicada com o título Os caminhos dos livros, mais um volume dacoleção Histórias de Leitura. Aliando o árduo trabalho de busca deindícios em variadas fontes documentais com a sensibilidade de lei-tora de romances e de professora de teoria literária, a pesquisa deAbreu insere-se no campo da história do livro e da leitura. De acor-do com André Belo, estamos diante de “uma área fortemente inter-disciplinar [...] em que dialogam a história, a sociologia, aantropologia e as ciências da linguagem e da informação” (2002,pp. 37-39). Atualmente, interessam aos estudiosos não só os livrosimpressos e encadernados, considerados como objetos materiais, umavez que “essa história [também] compreende a comunicação e todosos processos sociais, culturais e literários que os textos afetam eenvolvem” (idem, p. 39). Observa-se nesse campo interdisciplinarum crescente interesse pela historicidade do processo de constitui-ção de outras instituições difusoras das práticas da leitura e da escri-ta, além dos leitores, dos modos de alfabetização e das formas de lere escrever. Essas novas possibilidades para a pesquisa historiográfi-ca brasileira tem como representantes e interlocutores de Abreu ostrabalhos de Lajolo e Zilberman (1998), Antunes (1999) e Villalta(1999).

Em busca da reconstrução dos caminhos percorridos pelos li-vros, o primeiro passo de Abreu é analisar detidamente os sistemasde censura de Portugal e do Brasil (entre 1769-1826). Em princípio,

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pode-se pensar que os esforços oficiais de controle dos impressos edos leitores poderiam ser prejudiciais para que se disseminasse emuma Colônia uma prática consolidada da leitura, mas, apesar da vi-gilância, o ato de ler não era completamente proibido, mesmo setratando de livros condenados. Os leitores desejosos de ter sob suasvistas livros proibidos poderiam requisitar aos órgãos da censurauma permissão para leitura. Essas solicitações e as permissões paraaquisição dos livros são documentos repletos de detalhes sobre aspreferências dos leitores do período, o que Abreu nos dá a ler demodo exemplar. As instituições de censura produziram extensas sé-ries de documentos acerca da movimentação de materiais de leiturae, a partir de grande quantidade de dados recolhidos nos documen-tos oficiais mencionados, ela nos revela quais livros circulavam en-tre Europa e Brasil. Mesmo tendo sido decretada a Independênciaem 1822, até 1826 havia um esforço de controle dos livros que aquiaportavam, que circulavam entre os portos brasileiros ou que eramimpressos depois de 1808. Entre 1769 e 1826 a circulação dos livrosera policiada e, mesmo assim, foram feitos mais de 2.600 pedidosde autorização de envio de livros para o Brasil, totalizando 18.903obras para as quais foram solicitadas licenças. A quantidade de li-vros enviados à América portuguesa era muito maior do que a quese destinava a outras Colônias de Portugal. Dessa forma, Abreudemonstra que a idéia de lugar sem livros não corresponde à reali-dade vivida em terras brasileiras entre os séculos XVIII e XIX.Considerando-se apenas o Rio de Janeiro, foram importados 4.331livros de belas-letras no período referido (um total de 1.370 títulos).Abreu chama a atenção para o fato de que, após a vinda da famíliareal portuguesa para o Brasil, os pedidos e as remessas tornaram-semais freqüentes. Antes de 1808 a procura por títulos religiosos eprofissionais era maior do que por obras beletrísticas, o que indica aprofunda mudança cultural ocorrida no Rio de Janeiro após o de-sembarque da corte portuguesa.

A documentação permite que se saiba quem fazia o pedido deimportação de livros, quais suas intenções ao adquirir as obras e asdatas aproximadas das remessas. Poucos são os casos em que há aidentificação de quem receberia as encomendas no Brasil. Um outrolimite das fontes refere-se ao fato de haver pouca atenção quanto àdescrição da materialidade dos livros e de nem sempre as listas tra-

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zerem os nomes dos autores dos livros solicitados. Ninguém forne-ceu as indicações bibliográficas completas. Além disso, muitas rela-ções trazem os títulos dos livros incompletos, o que, de acordo comAbreu, poderia ser um costume da época, uma vez que os homensde letras estavam familiarizados com essa maneira simplificada dese referir a um livro ou mesmo que essa fosse uma estratégia paraburlar os censores. Todas essas variáveis dificultaram a identifica-ção das obras, mas a pesquisadora conseguiu estabelecer uma listaque demonstra de modo bastante detalhado as preferências dos lei-tores que se encontravam em terras brasileiras.

A liberação dos textos de cunho filosófico, político e históricogeralmente demorava para ser concedida. Mas, mesmo demandan-do maior tempo, quase todas as requisições eram atendidas positiva-mente. As obras ficcionais suscitavam grandes polêmicas entre oscensores, principalmente as edições ilustradas, que poderiam causarnos leitores, ou mesmo em curiosos que não soubessem ler, efeitosconsiderados, na época, como desastrosos. As obras ficcionais eramvistas com desconfiança pelos censores e consideradas, em sua maio-ria, perniciosas à imaginação, imorais, licenciosas, voluptuosas.

É importante ressaltar que, apesar de ter localizado documentosreferentes a diversas partes da América portuguesa, Abreu analisadetidamente os livros de belas-letras enviados para o Rio de Janeiro.Afirma que não examina obras literárias nem utiliza o termo litera-tura uma vez que cometeria um anacronismo ao se referir ao séculoXVIII e início do XIX. Prefere a noção de belas-letras, que diz res-peito a obras ficcionais em suas mais variadas formas, como poe-sias, novelas, contos fantasiosos, peças de teatro etc. Embora poucovalorizadas pelos eruditos, as “novelas” despertavam grande inte-resse do público leitor. Dentre os livros beletrísticos mais requisita-dos pelos leitores do Rio de Janeiro, o de maior sucesso intitula-seAs aventuras de Telêmaco, obra de François de Salignac de la Mothe-Fénelon. De forma resumida, o enredo desse livro desenrola-se apartir de uma narrativa da viagem empreendida por Telêmaco, filhode Ulisses, que parte da Ilha de Ítaca em busca de seu pai, que nãoretornou ao reino depois da Guerra de Tróia. Para ajudá-lo a deusada sabedoria, Minerva, transforma-se em um ancião identificadocomo Mentor. Telêmaco, sempre acompanhado por Mentor, faz vá-rias viagens em busca de seu pai, tendo em seu percurso “aulas” de

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geografia, de costumes dos povos visitados, noções de moral etc. Olivro, um gênero ficcional, possui um caráter didático-pedagógicoque parece bastante eficaz, pois apresenta ao leitor, de modo dinâ-mico, exemplos de boa conduta moral vividos pelos personagensque deveriam ser seguidos. Lançada em Paris em 1699, a obra foitraduzida e editada várias vezes. Mantendo-se como a mais requisi-tada no Rio de Janeiro, recebeu 38 solicitações entre 1769-1807 e65 entre 1808-1826 (não foram mencionados nos pedidos os núme-ros de exemplares). O idioma mais presente entre os livros maisrequisitados era o francês (46%) e, em segundo lugar, o português(30%).

Mas quem eram os leitores dos livros presentes no Rio de Janei-ro entre 1769 e 1826? A quantidade de pessoas citadas nos proces-sos produzidos pelos órgãos de censura é grande. Mas a tarefa deidentificação dessas pessoas é extremamente difícil. Muitos livrei-ros foram identificados, como Paulo Martin, Viúva Bertrand, JoãoFrancisco Rolland e, além desses, outros comerciantes que não eramespecializados no comércio livreiro, mas que negociavam livros. Foiinteressante constatar que sobre a pessoa que mais importou livrospara o Rio de Janeiro após 1808, João Gomes e Silva, não foi encon-trado um registro sequer. Talvez fosse um intermediário contratadopor outro(s) negociante(s), como era comum no período.

Em contrapartida, os leitores são dificilmente identificáveis emais difícil ainda é rastrear as práticas das leituras efetuadas. Nemtodos os que trabalham com a história do livro e da leitura têm apossibilidade de se deparar com fontes como os processos produzi-dos pela Inquisição italiana do século XVI analisados por CarloGinzburg em O queijo e os vermes (1989), ou com as memórias deum autodidata, material analisado por Jean Hébrard em seu trabalhointitulado “O autodidatismo exemplar. Como Jamerey-Duval apren-deu a ler?” (publicado em 1996 no livro Práticas da leitura). Nãocontando com esse tipo de fonte no qual o leitor se apresenta, Abreuprocura caminhar atrás dos leitores seguindo os indícios da docu-mentação de que dispomos. Ao pedir licença para entrar no Brasilcom seus livros, por exemplo, alguns proprietários faziam registrarsuas profissões (desembargadores, padres, advogados, ouvidoresetc.), mas se restringiam a dizer que os livros eram “de seu uzo”.Esforçando-se por não perder a trilha dos livros, Abreu recorre a

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estudos que se utilizam de inventários, testamentos e autos de de-vassa, justificando que, por mais limites que possam oferecer, essassão as poucas fontes em que as bibliotecas particulares podem serrastreadas pelos pesquisadores do campo. Nas poucas bibliotecasparticulares que encontra, observa, assim como Villalta (2002), umasignificativa ligação entre a ocupação dos proprietários e os temasdos livros. Dessa forma, perde o rastro dos livros de belas-letras. Namaioria das bibliotecas particulares os livros beletrísticos não sãoarrolados e, quando o são, os títulos não correspondem aos dos li-vros mais requisitados às instituições de censura. As obras de ficçãopraticamente não existem nessas outras fontes referidas. Como en-tender esse contraste? Teriam os avaliadores deixado de descreveresses livros fantasiosos por serem brochuras em formato pequeno ecom preços baixos? Outra possibilidade de análise apontada pelapesquisadora seria o fato de serem esses livros extremamente utili-zados e, portanto, muito deteriorados, tornando seu valor ainda maisbaixo e, portanto, não merecendo atenção dos avaliadores de bens.Poderiam ainda ter sido emprestados, doados, uma vez que os leito-res, após descobrir as tramas das “novelas”, não se interessariammais por relê-las. Mesmo perdendo por hora o rastro dos livros debelas-letras, Abreu defende firmemente o pressusposto de que nãose deve restringir a posse ou leitura de livros aos dados muitas vezesdecepcionantes dos inventários e tampouco reduzir o comércio delivros ao pequeno número de livrarias existentes no Rio de Janeiro.Deve-se considerar uma multiplicidade de possibilidades de acessoà palavra escrita e de locais de venda “oficiais”, além do mundo daclandestinidade, ao qual nem o sistema censório de outrora nem ospesquisadores da atualidade poderiam ter acesso. Com efeito, Abreuconstata, a propósito, que, após a vinda da família real portuguesa,58,5% dos livros que aqui aportavam eram enviados para o Rio deJaneiro por particulares ou negociantes não-especializados no co-mércio livreiro.

Havia aqui livros e, mesmo que a documentação seja lacunar oupouco detalhada, havia leitores. À questão: como as pessoas se rela-cionavam com os livros? Dois problemas já mencionados se colo-cam como pedras no caminho da pesquisa: de um lado, não se sabea quem as obras solicitadas eram destinadas; de outro, faltam docu-mentos que atestem as práticas de leitura e tampouco que tenham

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registrado os sentimentos despertados pelas leituras quando efetuadas.Não havendo registros diretos ou indiretos das leituras realizadas,e sendo os leitores fugidios no registro de suas práticas, Márcia Abreutenta abordar um público-leitor “virtual” a partir de um outro con-junto de fontes produzido com o objetivo de conformar, ou seja,domesticar as leituras. Assim nos são apresentados os tratados sobre“a maneira correta de ler”. Esses manuais, considerados por Abreutextos preceptivos, determinavam três funções para a leitura, quaissejam: formar um estilo, instruir e divertir. As duas primeiras fun-ções são aquelas descritas de modo mais detalhado pelos tratadistas.A leitura adquire, nos tratados, uma função utilitária, pois é formativa.Os tratados analisados não se referem às práticas de leituras corren-tes à época em que foram publicados, mas pretendem ensinar aosleitores procedimentos para que se coloquem num lugar de distin-ção com relação aos poucos letrados. A leitura de entretenimento éabordada apenas quando se quer alertar quanto aos perigos dessetipo de prática. Não só a leitura para distração como também a ex-tensiva, sem supervisão, são consideradas sem utilidade, perigosas emal-vistas. A leitura defendida é a intensiva, de poucos e bem-sele-cionados livros, aquela que consegue esmiuçar, rever, desfiar o tex-to para que suas idéias fossem mais tarde debatidas, recortadas e,quem sabe, alinhavadas a outras e reescritas. Nos tratados são ensi-nados métodos para o bom aproveitamento da leitura, como modosde se tomar notas, de estudar a organização dos livros, de estruturartextos, tendo como modelo os “melhores autores” ali indicados (osclássicos da Antigüidade greco-latina). O bom leitor precisava en-tender e julgar os textos lidos. Mas esse julgamento deveria ser feitoa partir da constatação de que o autor consegue se aproximar deregras estabelecidas para compor um bom texto e não fazê-lo deforma subjetiva. Os tratadistas valorizam a razão como boa julgadorae não os sentimentos despertados pelas leituras.

É difícil localizar títulos de livros no Rio de Janeiro que pudes-sem servir à leitura que procurava formar um estilo e instruir, umavez que os pedidos de remessa de livros trazem informações muitofragmentadas. A Arte poética, de Horácio, foi uma das mais requisi-tadas dentre as que poderiam servir àquele tipo de leitura utilitária(nove requisições entre 1769-1807). A partir de 1808 há uma mu-dança no perfil das requisições. Horatius ad usum Delphini foi soli-

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citado por 30 vezes. Os livros que trazem a expressão ad usumDelphini eram destinados, inicialmente, “para o uso do Delfim” (paraa educação do filho de Luis XIV). Ao longo do tempo, as expressõesin usum, ad usum ou ad usum scholae passaram a indicar obras queatingiram grande sucesso de venda na Europa e no Rio de Janeirodurante os séculos XVIII e XIX, impressas com a finalidade de edu-car a mocidade. O aumento da procura pelas versões de clássicos adusum indicam mais uma vez a mudança cultural pela qual passava oRio de Janeiro depois da chegada da Corte e as tentativas de seescolarizar a população feitas, após o Marquês de Pombal expulsaros jesuítas (1759), uma vez que se indicavam as obras ad usum paraque fossem utilizadas nas Aulas Régias. Outro grande sucesso derequisições eram as Selectas latinas. Publicada em Paris no ano de1752, a referida obra, cujo título completo é Selecta Latini Semonisexemplaria escriptoribus probatissimis, caracteriza-se por ser umaantologia de textos dos clássicos latinos. Elaborada por PierreChompré quase totalmente em francês e com citações em latim, foium dos livros mais comercializados em Portugal e no Brasil parainiciação das primeiras letras. Os textos originais dos autores latinoseram “expurgados” para que não oferecessem perigos à moralidadedos jovens ou dos leitores iniciantes a quem as Selectas eram desti-nadas. Nesse ponto da pesquisa os rastros dos textos ficcionais con-siderados perigosos tornam-se novamente pouco perceptíveis.

Ao fim do trabalho, Abreu demonstra que a tarefa de se locali-zar leitores de narrativas ficcionais é bastante ingrata. Cabe aquisalientar que a autora utiliza a nomenclatura romance, mas advertepara o fato de que não havia um nome consensual entre os que vive-ram nos setecentos e oitocentos para se referir a essas produções quedespertavam tanta curiosidade. Para os escritores e leitores de então,as denominações aventuras, novelas, contos, romances e outras eramequivalentes. Todos esses nomes se referem aos escritos de caráterfictício, fabulosos ou que recorrem à mentira. Apesar de bastanterequisitadas pela população, muitos letrados da época consideravamessas produções como “menores”. A novidade e o sucesso dos ro-mances incomodaram ao ponto de se produzirem estudos sobre essetipo de texto, havendo os que defendiam e os que atacavam sua lei-tura. Como último esforço para abordar esse tipo de livro que des-pertava “paixões” indesejadas pelos tratadistas da boa leitura, Márcia

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Abreu passa a analisar os argumentos dos defensores e os dosdetratores dos textos ficcionais.

Segundo os detratores, o primeiro problema da leitura dos ro-mances era o fato de não haver utilidade para esse tipo de prática. Oleitor estava, dessa forma, perdendo seu precioso tempo, que pode-ria ser empregado para instrução, por exemplo. Outro grande incon-veniente da dedicação à leitura dos romances era a falta de verdadeinserida em suas linhas. A leitura desenfreada, sem supervisão, feitana intimidade e, portanto, sem orientação de um leitor mais experi-ente ou fora do controle de uma instituição legítima era outro grandeestorvo, pois permitia uma perigosa liberdade que possibilitaria o“prazer solitário”. Muitos eram os problemas morais relacionados àleitura dos romances. Além de faltar com verdade, a narrativa pode-ria excitar os sentidos, inflamar os desejos, tornar as paixões desen-freadas e, muito perigosamente, insuflar a imaginação já“naturalmente” fértil das mulheres. Vários são os escritos sobre aimpropriedade da relação das mulheres com os livros fabulosos. Com“caráter” inclinado à fantasia, as mulheres poderiam, por exemplo,identificar-se com as personagens dos romances, não conseguindomais distinguir entre realidade e ficção, desejando fazer o que asheroínas dos romances faziam.

Mas havia duas principais linhas de defesa da leitura dos ro-mances. De uma parte, responder às críticas com relação à formaçãodo gosto e, de outra, acabar com a grande desconfiança que recaíasobre os romances: a de atentar contra a moral e os bons costumes.

Os primeiros argumentos em favor dos romances associam essetipo de escrito à épica ou epopéia. Portanto, não seria um gêneromenor, pois constituía uma família reconhecida pelos homens deletras. Há ainda a diferenciação entre romance moderno (novel) etextos romanescos (romance). As qualidades do romance modernoseriam as de aproximar os leitores do cotidiano dos personagens, dotempo e do espaço em que se desenrolava a trama, serverossimilhante, provocar no leitor sentimentos de identificação. Aapresentação do cotidiano, da intimidade e dos temas amorosos sãooutros grandes trunfos dos romances. Esses livros permitiriam queos leitores conhecessem o coração humano sem as “máscaras” nor-malmente utilizadas nas interações sociais, conforme a defesa doMarquês de Sade em 1800. Diferentemente do que prescreviam os

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“tratados da maneira correta de ler”, o bom romance deve ser avali-ado a partir dos efeitos que sua leitura causa no leitor. Portanto, paraos escritores de romances, o leitor era a preocupação fundamental,sendo o bom romancista aquele que conseguia prender a atenção doleitor do começo ao fim do livro.

Respondendo ao segundo grupo de acusações, os defensores dosromances acreditavam que é possível moralizar os leitores oferecen-do-lhes bons exemplos a serem seguidos. Dessa maneira, o romanceera visto como educativo, uma vez que ofereceria uma leitura útil eagradável, formadora e moralizadora, que ensinava sem que o leitorsentisse que estava aprendendo. Assim era a tessitura das Aventurasde Telêmaco, o romance mais requisitado pelos cariocas entre 1769-1826, que tinha claros propósitos de instruir e edificar seus leitores.

Márcia Abreu não só prende os leitores de Os caminhos doslivros como uma excelente escritora de romances, como generosa-mente nos apresenta os dados de sua pesquisa com análises inova-doras. Oferece aos pesquisadores da história da cultura letrada noBrasil uma verdadeira aula de como proceder diante da especifici-dade das relações de nossos antepassados com o escrito. Ao ampliaros tipos de fontes e ao propor um novo olhar sobre documentoscostumeiramente utilizados, revela formas alternativas de acesso aomundo dos livros que podem passar desapercebidas aos pesquisado-res menos experientes ou menos atentos. Assim é que se chega aofinal da leitura de seu trabalho com a convicção de que Os caminhosdos livros na América portuguesa eram trilhados a partir dainformalidade, inventividade e de inúmeras estratégias de acesso aoescrito por parte dos leitores daquele tempo. Pode-se falar de umaColônia que sobreviveu, durante séculos, com um número restritode escolas públicas, sem universidades, com poucas livrarias, pou-cas bibliotecas públicas, sem imprensa e outras instituições formaisque legitimam o campo da leitura, mas não se pode afirmar que aquiera um lugar sem livros e sem leitores, apesar de serem esses últi-mos caças extremamente ariscas.

Referências bibliográficas

ANTUNES, Álvaro de Araujo. Espelho de cem faces: o universorelacional do advogado setecentista José Pereira Ribeiro. Dissertação (Mes-

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trado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universi-dade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1999.

BELO, André. Livro e leitura. Belo Horizonte: Autêntica, 2002. (coleçãoHistória &...).

GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um molei-ro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Cia. das Letras, 1989.

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LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. A formação da leitura no Brasil. SãoPaulo: Ática, 1998.

VILLALTA, Luiz C. Reformismo ilustrado, censura e práticas da leitura: usosdo livro na América portuguesa. Tese (Doutorado em História) – Faculdadede Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, SãoPaulo, 1999.

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Mercado das Letras/ALB: São Paulo: Fapesp, 2002. p. 183-212.

Christianni Cardoso MoraisMestre pelo Programa de Pós-Graduação em Educação

Universidade Federal de Minas Gerais.Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História

Universidade Federal de Minas Gerais.Professora do Departamento das Ciências da Educação

Universidade Federal de São João del-Rei.

Endereço para correspondência:Departamento das Ciências da Educação, Universidade Federal de

São João del-Rei, Campus Dom Bosco, Praça Dom Helvécio, n. 74

Fábricas São João del-Rei-MG

CEP 36300-000

E-mail: [email protected]

Recebido em: 02 jun. 2006Aprovado em: 02 jul. 2006

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