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ESTUDOS URBANOS E REGIONAIS REVISTA BRASILEIRA DE publicação da associação nacional de pós-graduação e pesquisa em planejamento urbano e regional ISSN 1517-4115

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Page 1: REVISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS URBANOS BRASILEIRA DE ESTUDOS URBANOS E REGIONAIS Publicação semestral da Anpur Volume 13, número 2, novembro de 2011 EDITOR RESPONSÁVEL Sarah Feldman

ESTUDOS URBANOSE REGIONAIS

REVISTA BRASILEIRA DE

publicação da associação nacional de pós-graduação

e pesquisa em planejamento urbano e regional

ISSN 1517-4115

Page 2: REVISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS URBANOS BRASILEIRA DE ESTUDOS URBANOS E REGIONAIS Publicação semestral da Anpur Volume 13, número 2, novembro de 2011 EDITOR RESPONSÁVEL Sarah Feldman

REVISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS URBANOS E REGIONAISPublicação semestral da Anpur

Volume 13, número 2, novembro de 2011

EDITOR RESPONSÁVEL Sarah Feldman (IAU-USP/São Carlos)

EDITOR ASSISTENTE Renato Cymbalista (FAU-USP)COMISSÃO EDITORIAL

Ana Fernandes (UFBA), Carlos Antonio Brandão (IM/UFRRJ), Luciana Correa do Lago (UFRJ), Maria Cristina da Silva Leme (USP)CONSELHO EDITORIAL

Ana Clara Torres Ribeiro (UFRJ) In Memoriam, Ananya Roy (University of California, Berkeley), Ângela Lúcia de Araújo Ferreira (UFRN), Brasilmar Ferreira Nunes (UnB), Carlos de Mattos (Pontificia Universidad Católica de Chile),

Clara Irazabal (Columbia University, Nova York), Emilio Pradilla Cobos (Universidad Autonoma Metropolitana, Unidad Xochimilco, México), Ermínia Maricato (USP), Geraldo Magela Costa (UFMG), Heloisa Soares de Moura Costa (UFMG),

Henri Acselrad (UFRJ), João Rovati (UFRGS), Lia Osorio Machado (UFRJ), Linda Maria de Pontes Gondim (UFC), Marco Aurélio A. de F. Gomes (UFBA), Margareth Pereira (UFRJ), Martin Smolka (Lincoln Institute of Land Policy),

Nadia Somekh (Mackenzie), Norma Lacerda Gonçalves (UFPE), Paola Berenstein Jacques (UFBA), Paul Claval (Université Paris-IV, Sorbonne), Ricardo Cesar Pereira Lira (UERJ), Roberto Monte-Mór (UFMG), Rosa Acevedo (UFPA), Sandra Lencioni (USP),

Victor Ramiro Fernández (Universidad Nacional del Litoral, Argentina), Wrana Maria Panizzi (UFRGS)COLABORADORES

Alisson Flávio Barbieri (Cedeplar/UFMG); Ana Amélia Silva (PUC/SP); Ana Clara Mourão Moura (Geografia/UFMG); Andrea de Lacerda Pessôa Borde (PROURB/UFRJ); Ângela Maria Gordilho Souza (FAU/UFBA); Carlos Walter Porto Gonçalves

(POSGEO/UFF); Cláudio Egler (PPGG/UFRJ); Cristovão Fernandes Duarte (PROURB/UFRJ); Eber Pires Marzulo (PROPUR/UFGRS); Edna Castro (NAEA/UFPA); Fábio Duarte de Araújo (PUC/Paraná); Fania Fridman IPPUR/UFRJ); Fernanda Furtado (EAU/UFF); Guiomar Inês Germani (Geografia/UFBA); Helion Póvoa Neto (IPPUR/UFRJ); Ivaldo Lima (POSGEO/UFF); João Sette Whitaker Ferreira (FAU/USP); José Aldemir de Oliveira (UEAM); Jupira Gomes de Mendonça (FAU/UFMG); Lia Osório Machado (PPGG/

UFRJ); Márcio Moraes Valença (FAU/UFRN); Maria Teresa Franco Ribeiro (UFBA); Monica Arroyo (Geografia/USP); Nádia Somekh (FAU/Mackenzie); Orlando Alves Júnior (IPPUR/UFRJ); Regina Bienenstein (EAU/UFF); Sylvia Fischer (FAU/

UNB); Tomás de Albuquerque Lapa (MDU/UFPE); Vera Rezende (PPGAU/UFF); Wagner Costa Ribeiro (Geografia/USP)SECRETARIARaquel Cerqueira

PROJETO GRÁFICO João Baptista da Costa Aguiar

CAPA, COORDENAÇÃO E EDITORAÇÃO Ana Basaglia REVISÃO

Mônica Santos, Priscila Risso

Indexada na Library of Congress (EUA)

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais – v.13, n.2, 2011. – Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional; editor responsável Sarah Feldman : A Associação, 2011. v. Semestral. ISSN 1517-4115 O nº 1 foi publicado em maio de 1999.

1. Estudos Urbanos e Regionais. I. ANPUR (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional). II. Feldman, Sarah

711.4(05) CDU (2.Ed.) UFBA 711.405 CDD (21.Ed.) BC-2001-098

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S U M Á R I O

ESTUDOS URBANOSE REGIONAIS

REVISTA BRASILEIRA DE

publicação da associação nacional de pós-graduação

e pesquisa em planejamento urbano e regional

TERRITÓRIOS, REGIÕES, FRONTEIRAS

11 Desenvolvimento, Região e Poder Re-gional – A Visão de Celso Furtado – Hermes Magalhães Tavares

27 Novas Determinações Sobre as Questões Regional e Urbana Após 1980 – Wilson Cano

55 Estudos Recentes Sobre a Rede Urbana Brasileira – Diferenças e Complementari-dades – Alessandra d’Ávila Vieira, Liliane Janine Ni-zzola, Luana Miranda Esper Kallas, Manuelita Falcão Brito, Benny Schvasberg e Rodrigo Santos de Faria

71 Os Usos da Informação Estratégica sobre o Território – A Empresa de Consultoria PricewaterhouseCoopers e o Planejamento Territorial – Sérgio Henrique de Oliveira Teixeira e Adriana Maria Bernardes Silva

87 Desenhando Territórios – A Carto-grafia de Cândido Mendes e o “Nordeste” Brasileiro do Século XIX – George Alexandre Ferreira Dantas, Angela Lúcia Ferreira e Yuri Simonini

101 Território, Região e Fronteira – Aná-lise Geográfica Integrada da Fronteira Brasil/Paraguai – Edson Belo Clemente de Souza e Vanderléia Gemelli

117 O Programa Calha Norte – Redefi-nição das Políticas de Segurança e Defesa nas Fronteiras Internacionais da Amazônia Brasileira – Licio Caetano do Rego Monteiro

135 Cidades Médias na Amazônia Orien-tal – Das Novas Centralidades à Fragmen-tação do Território – Saint-Clair Cordeiro da Trindade Júnior

153 Agronegócio e Novas Regionalizações no Brasil – Denise Elias

RE SE NHAS

171 Capitalismo globalizado e recursos territoriais: fronteiras da acumulação no Brasil contemporâneo, vá-rios autores – por Humberto Miranda do Nascimento

174 A New Philosophy of Society – Assemblage Theory and Social Complexity, de Manuel DeLanda – por Henri Acselrad e Gustavo Bezerra

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associação nacional de pós-graduação e pesquisa em planejamento urbano e regional – anpur

Gestão 2011-2013presidente

Ana Clara Torres Ribeiro (IPPUR/UFRJ) In Memoriamsecretária executiva

Ester Limonad (POSGEO/UFF)secretário adjunto

Benny Schvasberg (PPGAU/FAU-UnB) diretores

Lilian Fessler Vaz (PROURB/UFRJ)Maria Ângela de Almeida Souza (PPDU/UFPE)

María Mónica Arroyo (PPGGE/USP)Paola Berenstein Jacques (PPGAU/FAU-UFBA)

conselho fiscal (titulares)Cibele Saliba Rizek (PPGAU/USP-SC)Elson Manoel Pereira (PPGG/UFSC)

Paulo Pereira de Gusmão (PPGG/UFRJ)conselho fiscal (suplentes)

Ângelo Serpa (PPGG/UFBA)Saint-Clair Cordeiro da Trindade Júnior (NAEA/UFPA)

Apoio

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E d i t o r i a lEsta edição se organiza a partir das discussões do XIV Encontro Nacional da

Anpur. As questões centrais propostas para reflexão neste Encontro foram a crescente relevância da esfera mundial na determinação de projetos para o futuro do país, a identificação e reflexão sobre os agentes econômicos e os atores políticos que hoje redesenham o território brasileiro, e a natureza projetiva do planejamento, envolven-do diferentes escalas de ação, interesses e estratégias. Os nove textos que compõem esta edição constituem um recorte destas questões e têm como foco conceitos, ações, agentes e estratégias na configuração e no planejamento de diferentes escalas: dos territórios, das regiões e das fronteiras. Reunindo o olhar de diferentes campos disci-plinares, oferecem elementos para o debate sobre o estágio atual do desenvolvimento e de políticas urbanas e regionais no Brasil contemporâneo.

Uma problematização do desenvolvimento urbano e regional brasileiro é realiza-da nos dois primeiros textos. Em Desenvolvimento, região e poder regional – A visão de Celso Furtado, Hermes Magalhães Tavares parte da visão macro-econômica e macro-espacial de Celso Furtado para discutir o desenvolvimento regional e estabelecer um contraponto à abordagem hoje dominante, ancorada no desenvolvimento local. Em Novas determinações sobre as questões regional e urbana após 1980, Wilson Cano analisa os principais efeitos das mudanças no padrão de crescimento após 1980 e as profundas alterações sobre as determinações mais gerais que agem sobre os processos de desenvol-vimento regional e de urbanização brasileiros. Para desvendar e entender os processos das últimas três décadas, Cano propõe uma Agenda de Pesquisa para o período.

A questão do território é abordada a partir dos instrumentos de representação para compreensão da ação sobre o problema das secas no Nordeste, das ferramentas de gestão governamental, econômica e social, e dos usos da informação por empresas de consultoria para o planejamento territorial nos três textos subseqüentes. Em Dese-nhando territórios – A cartografia de Cândido Mendes e o ‘Nordeste’ brasileiro do século XIX, George Dantas, Angela Lúcia Ferreira e Yuri Simonini recuperam o debate de meados do século XIX, quando a articulação sistematizada do território da nação bra-sileira é formulada como ponto chave para a estruturação da economia e da sociedade modernas. Discutem pertinências e limites do uso das fontes cartográficas como docu-mentos que permitem compreender as ações sistematizadas sobre o território. Tendo como referência o “Atlas do Imperio do Brazil”, organizado por Cândido Mendes de Almeida, em 1868, mostram seu papel na formação da cultura técnica moderna no Brasil e, mais especificamente, nos processos que levam à definição da região Nordeste.

Em Estudos recentes sobre a rede urbana brasileira – Diferenças e complementaridades, de autoria de um grupo composto por professores e alunos da Universidade de Brasilia, três estudos recentes de classificações da rede urbana brasileira são analisados. Os autores mostram a complementaridade entre os mesmos, as contribuições e avanços de cada um, assim como a sua incorporação às políticas públicas, inserindo-os no processo de constru-ção da política urbana nacional. A produção, a circulação e o poder articulador das infor-mações no território brasileiro são discutidos por Sérgio Henrique de Oliveira Teixeira e Adriana Maria Bernardes Silva em Os usos da informação estratégica sobre o território – A

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empresa de consultoria PricewaterhouseCoopers e o planejamento territorial. Os autores mos-tram como a estruturação da rede urbana brasileira foi central para a ramificação no terri-tório nacional de empresas internacionais de consultoria que atuam em áreas consideradas estratégicas. Através de um estudo de caso, desvendam a participação de uma empresa no processo de reestruturação produtiva das corporações, no processo de planejamento e privatização do território, assim como do aparelho estatal brasileiro na década de 1990.

A questão das fronteiras é abordada em Território, região e fronteira – Análise geográfica integrada da fronteira Brasil/Paraguai, de Edson Belo Clemente de Souza e Vanderléia Gemelli e em O Programa Calha Norte – Redefinição das políticas de segu-rança e defesa brasileira nas fronteiras internacionais da Amazônia brasileira, de Licio Caetano do Rego Monteiro. O primeiro texto analisa a fronteira com o Paraguai no plano das relações econômicas, culturais e geopolíticas com o Mercosul, como território de contradições e sob o efeito de dinâmicas locais e globais. No segundo, são abordadas as políticas de segurança e defesa do Estado brasileiro nas fronteiras internacionais da Amazônia nas últimas duas décadas. A partir de deslocamentos do Programa, o autor mostra que, também na área de segurança e defesa, a aplicação das políticas dirigidas pelo governo central dependem de mediações em escala local e regional. São estas mediações que legitimam e dão forma aos resultados obtidos.

Os dois últimos textos analisam processos de reorganização do território brasileiro. Em Cidades médias na Amazônia oriental – Das novas centralidades à fragmentação do território, Saint-Clair Cordeiro da Trindade Júnior discute a centralidade política da cidade média na Amazônia em um contexto de rearranjo espacial, emergência de novos interesses regionais e de propostas de divisão política do território. Os impactos sobre a (re)organização do território brasileiro inerentes ao agronegócio globalizado, a partir das transformações na atividade agropecuária brasileira, são o foco de Denise Elias em Agro-negócio e novas regionalizações no Brasil. A autora propõe a discussão da noção de Regiões Produtivas Agrícolas, onde as grandes corporações concernentes às redes agroindustriais são os principais agentes produtores do espaço agrário, urbano e regional.

Com as duas resenhas que completam este volume, à discussão dos processos em curso no Brasil no atual contexto econômico, político e social, acrescenta-se um debate te-órico. Capitalismo globalizado e recursos territoriais: fronteiras da acumulação no Brasil con-temporâneo, que reúne trabalhos de grupos de pesquisa brasileiros dedicados ao estudo e à geração de conhecimento aplicado sobre a relação capitalismo e território, é comentado por Humberto Miranda do Nascimento. Se nos trabalhos deste livro, como aponta Nas-cimento, destacam-se o enfoque estruturalista e perspectivas teóricas críticas oriundas de autores fundamentais do marxismo, em A New Philosophy of Society – Assemblage Theory and Social Complexity, de Manuel DeLanda, editado em Londres, e analisado por Henri Acselrad e Gustavo Bezerra, uma outra perspectiva teórica é colocada. Procurando escapar do território das teorias sociais que se baseiam na dialética e no construtivismo DeLanda desenvolve a aplicação da teoria do agenciamento de Gilles Deleuze à realidade social.

Não podemos deixar de registrar um agradecimento póstumo à querida colega Ana Clara Torres. O debate expresso nos textos aqui publicados tiveram por suporte a consistente e instigante formulação do Encontro realizado no Rio de Janeiro, em maio de 2011, no qual Ana Clara presidiu a Comissão Organizadora Acadêmica e foi eleita presidente da Anpur. Sua inquietação intelectual está presente nesta edição.

Sarah Feldman Edi tora res pon sá vel

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Ana Clara Torres Ribeiro

Acomunidade científica brasileira perdeu uma de suas mais brilhantes pensadoras. Além da perda

intelectual e política, a presença generosa e o espírito livre de Ana Clara Torres Ribeiro deixam saudades em todos que a conheciam dos muitos lugares por onde ela circulou. Formada em Harmonia pelo Conservatório Brasileiro de Música, concluiu a graduação em Ciências Políticas e Sociais na PUC do Rio de Janeiro em 1967, o Mestrado em Sociologia no IUPERJ em 1977 e o Doutorado em Sociologia na USP em 1988. Sua traje-tória profissional foi marcada pela liberdade de partir e começar algo novo sempre que condições precárias e instáveis de trabalho – como em episódios de repressão sob o regime ditatorial – ou seu olhar curioso sobre o mundo lhe impusessem.

Conheci Ana Clara no final dos anos 1970 no decorrer de uma pesquisa sobre a expansão da fron-teira na Amazônia, coordenada pela professora Bertha Becker. Poucos anos depois estivemos juntas em outro projeto coordenado pelo professor Milton Santos sobre o meio técnico-científico e a urbanização no Brasil. Nesses anos de convivência no Departamento de Geografia da UFRJ, onde ela também dava aulas de Sociologia Urbana no Programa de Pós-Graduação, éramos sempre surpreendidos pela agudeza de sua reflexão metodológica. Ana Clara tinha uma cabeça que, somente muitos anos depois eu aprendi, veio da música. Harmonia e estrutura lógica se combinavam para pensar totalidades complexas.

Em entrevista concedida à Revista Geosul em novembro de 2010, Ana Clara reconhecia ser uma socióloga, mas não fechada no campo da sociologia. Reconhecia igualmente que o trabalho no Lastro – Laboratório da Conjuntura Social: tecnologia e terri-

tório – fundado no Instituto de Planejamento Urbano e Regional da UFRJ em 1998, ao lado de orientandos vindos de campos disciplinares tão diversos como a engenharia, a geografia, a arquitetura e urbanismo e as ciências sociais estava ancorado metodologica-mente na problemática social, integrando tempo e espaço e buscando compreender novas formas de ação social: quem é que está nas ruas? Como isso está acontecendo? Por que aquilo acontece naquele lugar e não em outro? Interagindo com vários campos do conhecimento através da mediação da cultura, ela de-senvolvia uma pedagogia que se insubordinava diante das fronteiras disciplinares.

Nas duas últimas décadas Ana Clara participou ativamente da vida da Anpur, integrando sua diretoria entre 1991 e 1993, época em que Milton Santos este-ve na presidência. Dez anos depois, de 2003 a 2005, assumiu outra vez suas funções na Associação, sob a presidência de Heloisa Soares de Moura Costa, e em 2009 retornou ao cargo, permanecendo nele até 2011, período em que presidimos a Associação na UFSC. Em maio desse mesmo ano, ela foi eleita presidente da Anpur na Assembleia do XIV Enanpur, realizado no Rio de Janeiro. Atenta à realidade do país, curiosa e inova-dora na escuta de múltiplas vozes, Ana Clara questio-nou e problematizou a crise societária contemporânea no âmbito do pensamento e da ação do planejamento urbano e regional no Brasil. Instigadores e livres para interagir com muitos outros, seus escritos nos ajudam a experimentar e apreender a diversidade do mundo.

Leila Christina DiasProfessora associada da UFSC

Presidente da Anpur (2009-2001)

Somente na liberdade de falarmos uns com os outros é que surge, totalmente objetivo e visível desde todos os lados, o mun-do sobre o qual se fala. Viver num mundo real e falar uns com os outros sobre ele são basicamente a mesma coisa (...). Liberdade – liberdade de partir e começar algo novo e inaudito, liberdade de interagir oralmente com muitos outros e experimentar a diversidade que é a totalidade do mundo, é a substância e o significado de tudo que é político.

ARENDT, H. A promessa da política. Rio de Janeiro: Difel, 2008. p.185

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Territórios, Regiões,

Fronteiras

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DESENVOLVIMENTO, REGIÃO E PODER REGIONAL

A Visão de Celso Furtado

H e r m e s M a g a l h ã e s T a v a r e s

R e s u m o Um dos mais importantes economistas brasileiros e o de maior projeção fora do Brasil, Celso Furtado, deixou uma obra significativa sobre a economia brasileira e latino-americana. Ocupou-se ao mesmo tempo da questão regional, especialmente do Nordeste brasilei-ro. O nosso objetivo é tratar da evolução da economia brasileira sob o prisma do desenvolvimento das regiões do país, na visão de Furtado. Esse tema foi abordado pelo autor, principalmente em duas de suas obras, que focamos particularmente: ‘Formação econômica do Brasil’ e ‘Uma políti-ca para o desenvolvimento do Nordeste’ (GTDN). Buscamos na obra desse autor e em sua visão macroeconômica e macroespacial uma contribuição para que se possa estabelecer um contraponto com a abordagem hoje prevalecente, ancorada no desenvolvimento local.

P a l a v r a s - c h a v e Celso Furtado; desenvolvimento regional; poder re-gional; Nordeste; Brasil.

INTRODUÇÃO

Há cerca de duas ou três décadas, a problemática regional vem sendo tratada, nos pa-íses centrais, segundo a abordagem do desenvolvimento local, prática que se difundiu a um número crescente de países, inclusive o Brasil. Tal difusão ocorreu de forma rápida e avassa-ladora, fazendo surgir também nessa área do conhecimento uma espécie de discurso único.

Observa-se, contudo, que mesmo nos países de origem do novo modelo surgiram críticas, que podem ser sintetizadas em expressões como “nova ortodoxia”, “localismo”, “distritismo” etc.

Sabemos que o Brasil é um exemplo clássico de uma sociedade capitalista de desen-volvimento marcadamente desigual, o que se agrava com as enormes dimensões territo-riais do país. Pensar, porém, que em tal contexto os desequilíbrios regionais possam ser enfrentados com políticas que privilegiem abordagens do tipo microespacial é algo pouco compreensível.

Mas o fato de que a visão localista tenda a se tornar hegemônica neste país não cons-titui indicativo seguro de que a redução das desigualdades possa ser conseguida a médio ou longo prazo. Nesses termos, trazer de volta as ideias de Celso Furtado, cuja visão foi sempre macroespacial, macroeconômica, parece bastante oportuno. O tratamento da questão regional brasileira por esse autor surge a partir do estudo da evolução da econo-mia brasileira em seu tempo histórico, do início da colonização até meados da década de 1950. E esse estudo foi instruído por uma ampla discussão a respeito do desenvolvimento capitalista em sua estruturação global.

Este artigo está estruturado em três capítulos, cujas denominações dão uma ideia aproximada de seus respectivos conteúdos. São eles, sequencialmente: “O tema

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D E S E N V O L V I M E N T O , R E G I Ã O E P O D E R R E G I O N A L

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do desenvolvimento econômico”, “A formação histórica dos espaços regionais” e “O poder regional”.

O TEMA DO DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO

Sem dúvida o nome de Celso Furtado está ligado ao da Cepal (Comissão Econômi-ca para a América Latina e o Caribe), de cuja teorização sofreu influência e para a qual também contribuiu. De fato, a sua visão de desenvolvimento parte da de Raúl Prebisch, primeiro dirigente da Cepal, mas, como veremos, mais à frente, apresenta conotação pró-pria. Neste tópico, fazemos uma síntese das concepções de ambos separadamente.

A Relação Centro-Periferia O entendimento de que o desenvolvimento econômico resulta da acumulação de

capital e que este é fruto do aumento da produtividade do trabalho constitui um legado da economia clássica (Lange, 1966). Entretanto, preocupado com o possível estanca-mento da acumulação (estágio estacionário), Ricardo propôs que o sistema econômico mundial se pautasse pela divisão internacional do trabalho, o que passou a acontecer desde o terceiro decênio do século XIX. Essa política seria vantajosa não apenas para a Inglaterra, mas também para todos os países que participassem do sistema econômico mundial. O ponto de partida de Prebisch foi a crítica aos resultados da aplicação da teoria ricardiana.

Decorrido mais de um século de vigência desse princípio nas relações econômicas internacionais, Raúl Prebisch afirma, no Estudio económico de América Latina 1949, que aquele postulado estava em desacordo com os dados da realidade. Escrito em tom de manifesto, como observa Furtado, o Estudio começava por dizer:

La realidad está destruyendo en La América Latina aquel pretérito esquema de la división internacional del trabajo que, después de haber adquirido gran vigor en el siglo XIX, seguía prevaleciendo doctrinariamente hasta muy avanzado el presente.

Acrescentava em outra parte:

El movimiento se inicia en La Grande Bretaña, sigue con distintos grados de intensidad en el continente europeo, adquiere un impulso extraordinario en Estados Unidos y abarca final-mente al Japón, cuando este país se empeña en asimilar rápidamente los modos occidentales de producir. Fueron formándose así los grandes centros industriales del mundo, en torno a los cuales, la periferia del nuevo sistema, vasta y heterogénea, tomaba escasa parte en el mejoramiento de la productividad. (Cepal, 1949, apud Cepal, 1998, p.73). [Grifos nossos]

Prebisch busca comprovar empiricamente sua hipótese por meio das estatísticas de exportação e importação da Inglaterra com os países exportadores de bens primários, que mostravam que os termos de intercâmbio evoluíam desfavoravelmente aos países periféri-cos. Segundo essa óptica, os preços dos produtos industriais não decresciam relativamente devido a uma maior organização dos trabalhadores e aos controles de preços pelas formas de produção em monopólios nos países do centro.

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H E R M E S M A G A L H Ã E S T A V A R E S

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A estrutura centro-periferia não podia se alterar se os países da periferia não pudes-sem se industrializar. Industrialização e planejamento estatal passaram a se constituir nos componentes principais da agenda da Cepal durante cerca de dez ou doze anos.

A Contribuição de Furtado

Em texto escrito em 1972, por solicitação da Unesco, para uma publicação dos perfis de uma seleção de cientistas sociais do mundo todo, Celso Furtado citou autores e cor-rentes de pensamento que influenciaram na sua formação. Nenhuma referência foi feita então à obra de Prebisch, lacuna que, entretanto, deixa de existir na Fantasia organizada, autobiografia intelectual de Furtado publicada inicialmente em 1985.

Nessa obra, Celso Furtado sintetiza os dois textos de 1949, fundadores da doutrina da Cepal, e descreve o ambiente em que eles surgiram e foram divulgados. É também o momento em que o autor integra-se à equipe do órgão recém-criado. Ele foi um dos pri-meiros a perceber a importância do estudo de Prebisch, substrato do pensamento cepalino em sua origem, divulgado no Estudio económico de América Latina – 1949, cuja força explicativa provocaria uma verdadeira reviravolta na compreensão dos problemas econô-micos dessa região, segundo o próprio Furtado, e que poderia mudar a face da América Latina, caso fosse aceito pelos governos dessa região (Furtado, 1985).

Compreende-se assim o empenho de Furtado em traduzir o Estudio e divulgá-lo entre instituições influentes no Brasil, como a Fundação Getulio Vargas e a Confederação Nacional da Indústria, esta representada por Rômulo Almeida, Evaldo Correia Lima e Heitor Lima Rocha. Por este motivo, o Brasil acabou por funcionar, inicialmente, como verdadeira caixa de ressonância das ideias cepalinas.

Dois anos depois do início da Cepal, durante os preparativos para a reunião de São José da Costa Rica, havia fortes indícios de que os Estados Unidos vetariam a continui-dade desse órgão. Furtado fez gestões junto ao governo do presidente Vargas, no sentido de que este votasse pela permanência do órgão. Em suas memórias, Celso Furtado diz que a posição favorável assumida por Vargas, em defesa da Cepal, foi fundamental para a sua manutenção, pois o voto do Brasil contribuiu para que vários outros países latino-americanos assumissem idêntica posição (Furtado, 1985).

Voltemos à questão teórica no contexto em que se estruturava o arcabouço teórico da Cepal, centrado nas ideias de Prebisch e depois enriquecido por outros autores, entre os quais Celso Furtado. Este se refere a uma diferença entre a abordagem de Prebisch e a sua. Ele parte do pressuposto de que o atraso dos países periféricos não podia se explicar pela degradação dos termos de intercâmbio, mas sim, pela condição colonial.

No caso do Brasil, apesar de a Independência ter ocorrido em 1822, o país continua por mais de um século como mero exportador de produtos primários. Isso o leva a realizar um estudo aprofundado da economia brasileira desde o início da colonização. Para Furtado, somente na década de 1930, com a intensificação da produção industrial, é que termina a sua condição colonial. Diz o autor que há uma diferença de métodos (abordagens) empre-gados. O método de Prebisch seria sincrônico, pois estuda o sistema centro-periferia em dois cortes históricos: o primeiro, caracterizado pela hegemonia da Inglaterra e o segundo pela he-gemonia dos Estados Unidos. Tendo estudado a economia brasileira em sua evolução histó-rica, a sua abordagem, empregada na Formação econômica do Brasil, seria, então, diacrônica.

Apesar desse reparo, em vários momentos, Furtado reconheceu o significado e a im-portância da contribuição teórica de Prebisch para o estudo do desenvolvimento como na

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D E S E N V O L V I M E N T O , R E G I Ã O E P O D E R R E G I O N A L

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seguinte passagem: “Nenhuma ideia teve tanto significado para a percepção do problema do subdesenvolvimento quanto a da estrutura centro-periferia.” (Furtado, 1994, p.26). Ou ainda:

A visão centro-periferia foi a primeira desenvolvida pelos economistas que implicava em globalizar; e ao globalizarmos, percebíamos a desigualdade fundamental entre o centro e a periferia. A lógica do centro era uma, a da periferia era outra. Isso nos armava para formular uma teoria do imperialismo, que não necessitava desse nome, o qual afugentava por sua conotação marxista (Furtado, 1997, p.27).

A FORMAÇÃO HISTÓRICA DOS ESPAÇOS REGIONAIS

A Formação econômica do Brasil (1959) é, sem dúvida, um grande clássico das Ciên-cias Sociais no Brasil. As pesquisas econômica e histórica ali se conjugam para chegar a um resultado que é o melhor quadro sintético da evolução econômica do Brasil. Mas se na construção dessa panorâmica o tempo é fundamental, o elemento espaço não é irrelevante. Basta dizer que a palavra região ou termos equivalentes aparecem no texto em número incontável de vezes. A visão metodológica do autor teve aí sua completa aplicação. E é a partir das “manchas econômicas”, futuras economias regionais, em seus diversos momentos, que ele busca compreender a formação da economia brasileira em uma perspectiva histórica que vai do começo da colonização portuguesa até a primeira metade do século XIX.

O longo processo em que se dá o surgimento, a expansão e a decadência da econo-mia açucareira do Nordeste é estudado nos primeiros capítulos da Formação econômica do Brasil. Nela são distinguidos dois subsistemas: o de produção do açúcar e o de criatório, que interagem. A região produtora de açúcar atinge o auge entre o final do século XVI e o início do século XVII. Segue-se um período de decadência decorrente da concorrência da cana-de-açúcar que passou a ser cultivada nas Antilhas.

O empobrecimento da colônia e da metrópole portuguesas, provocado pelo declínio da economia do açúcar, leva à intensificação da busca de metais preciosos, que resultará finalmente na descoberta do ouro de aluvião em Minas Gerais. A economia da região aurífera, que se expande por várias décadas, estabelece articulações com as regiões Sul e Nordeste, na compra de gado para a alimentação, e de muares para o transporte de carga. O efeito de atração da economia mineira estendeu-se não apenas ao Sul e ao Nordeste, mas também para São Paulo e para o Centro-Oeste. Ela tornou “interdependentes as di-ferentes regiões, especializadas, umas na criação, outras na engorda e distribuição, e outras constituindo os principais mercados consumidores.” (Furtado, 1973, p.97).

Segue-se um longo período de três quartos de século de estagnação econômica. O autor nos fala das economias regionais que se formam, de seus ciclos expansivos e tam-bém de seus largos períodos de declínio e letargia. Com o café, inicia-se um novo ciclo econômico de maior duração e com maiores impactos econômicos sobre o conjunto do país. Com a introdução do trabalho assalariado, a economia cafeeira de São Paulo amplia o mercado interno e contribui para a industrialização. À altura, Furtado distingue no país as seguintes regiões no final do século XIX: a região do açúcar e do algodão (Nordeste) e a economia de subsistência a ela agregada; a região Sul, fundamentalmente de economia de subsistência, a região cafeeira e a região amazônica.

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A região cafeeira em seu processo de expansão vai consolidar a articulação de todas as regiões em torno dela e abrir caminho para a futura integração dos sistemas econômicos regionais. Esse quadro se mantém nas três primeiras décadas do século XX.

A crise da economia cafeeira (crise do setor exportador), exacerbada pela depressão mundial dos anos 30, e os mecanismos estatais de proteção das mesmas deram ensejo para que o mercado interno se transformasse na principal fonte de dinamismo da economia brasileira, substituindo o setor externo.

A explicação encontrada por Furtado para as mudanças que na década de 1930 impulsionam a industrialização no país tornou-se clássica. Sigamos o seu raciocínio. Se-gundo ele, a crise mundial marca o colapso da economia colonial no Brasil, fato que vai se configurar efetivamente a médio e longo prazo. De imediato o governo revolucionário, que assume o poder no Brasil em 1930, cuidou de garantir os interesses dos cafeicultores, ao dar continuidade à política de defesa do café, o que o levou muito além da simples estocagem do produto, passando a destruir parcela considerável da produção invendável (80 milhões de sacas de 60 quilos em menos de dez anos). E o que parecia mais estranho era que, na impossibilidade de recorrer ao financiamento externo, em decorrência da crise, o governo Vargas lançara mão da emissão monetária, o que acabou por estimular a retomada da economia. Esse paradoxo é assim explicado por Furtado:

À primeira vista parece um absurdo colher o produto para destruí-lo. Contudo, situações como essa se repetem todos os dias nas economias de mercado. Para induzirem o produtor a não colher, os preços teriam que baixar muito mais, particularmente se se tem em conta que os efeitos da baixa de preços eram parcialmente anulados pela depreciação da moeda. Ora, como o que se tinha em vista era evitar que continuasse a baixa de preços, compreende-se que se retirasse do mercado parte do café colhido para destruí-lo. Obtinha-se, dessa forma, o equilíbrio entre a oferta e a procura a nível mais elevado de preços (Furtado, 1973, p.199).

Diz, em outra parte, o autor:

O que importa ter em conta é que o valor do produto que se destruía era muito inferior ao montante da renda que se criava. Estávamos, em verdade, construindo as famosas pirâmides que anos depois preconizaria Keynes. Dessa forma, a política de defesa do setor cafeeiro nos anos da grande depressão concretiza-se num verdadeiro programa de fomento da renda na-cional. Praticou-se no Brasil, inconscientemente, uma política anticíclica de maior amplitude que a que se tenha sequer preconizado em qualquer dos países industrializados (Furtado, 1973, p.203).

A partir de 1933, a economia brasileira começa a se recuperar; nesse momento as atividades mais dinâmicas deixam de ser as do setor exportador, que são substituídas por aquelas voltadas para o mercado interno. E o impulso maior deriva das indústrias que substituem bens que antes se importavam, ou seja, destinavam-se a atender uma demanda preexistente. Esse momento, para Furtado, é significativo porque marca, de fato, o fim da dependência colonial.

Voltemos à questão regional que estamos tratando neste item. O último capítulo da Formação econômica brasileira traça um quadro das disparidades regionais no país na primeira metade do século XX. O ponto de partida ali é o desenvolvimento contraditório decorrente da industrialização que, naturalmente, ocorre na região cafeeira, transformada,

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por isso, em núcleo dinâmico, em torno do qual as demais regiões se articulam. O con-junto da economia se beneficia pelo fato de que esse núcleo se constitui; mas o reverso da medalha são as disparidades regionais.

Furtado ressalta empiricamente as disparidades regionais por meio de dados da produção industrial. As indústrias surgiram mais ou menos ao mesmo tempo em diversas regiões do país, em meados do século XIX. Mas o censo de 1920 já mostra uma grande concentração industrial em São Paulo, que continuará aumentando nas décadas seguintes. Entre 1948 e 1955 a participação de São Paulo no PIB industrial passa de 39,6% para 45,3% enquanto a do Nordeste (da Bahia ao Ceará), no mesmo período, cai de 16,3% para 9,6%. Por sua vez, a renda per capita de São Paulo era 4,7 vezes mais alta que a do Nordeste (Furtado, 1968).

O núcleo cafeeiro-industrial passou a articular as demais regiões do país em torno de si. A integração que se daria em tempo relativamente curto, segundo Furtado, implicaria na ruptura das formas arcaicas de produção em certas regiões. Mas ele vislumbra também outra hipótese em que a integração a partir daquele núcleo pudesse significar “o aprovei-tamento mais racional de recursos e fatores no conjunto da economia nacional”.

Sem dúvida, o último capítulo, o de número 36, da Formação econômica do Brasil faz a ligação dessa obra ao conteúdo de Uma política de desenvolvimento econômico para o Nordeste, escrito pouco tempo depois.

O Nordeste Como a Questão Regional Brasileira

Desde o final do século XIX, o Nordeste aparece como a questão regional brasileira, por excelência. Sob o impacto da grande seca de 1877-79, o governo central (imperial, à época) colocou em prática algumas medidas no campo da engenharia para acumular água na região semiárida. Em 1909, já na República, iniciou-se uma política do Governo Fede-ral destinada a construir açudes e estradas, com a intenção de resolver o que se considerava então como o principal problema nordestino: a seca. No decênio de 1950, o equívoco dessa política, a sua apropriação pelos grandes proprietários de terras e a malversação de recursos públicos conduziram à necessidade de rediscussão do problema do Nordeste e de suas soluções, no âmbito de uma nova política.

O sucesso norte-americano da Tennessee Valley Authority (TVA), a vitrine do New Deal, de Roosevelt, tornou-se no Brasil tema bastante discutido no Congresso Nacional, na segunda metade da década de 1940, em torno de projetos que aplicariam aquele modelo às bacias dos rios Amazonas e São Francisco. Deles resultou a criação da Superin-tendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia (SPVEA) e da Companhia de Valorização do São Francisco (CVSF), que, todavia, não passaram de arremedos do modelo norte-americano.

Na década de 1950, ocorreram no Nordeste novos fatos que criaram condições pro-pícias a novas ideias sobre a questão nordestina, e que levaram o Governo Federal a modi-ficar a sua política para aquela região. Em seu segundo governo, Vargas, orientado por sua assessoria econômica, criou o Banco do Nordeste Brasileiro (BNB) e acelerou a construção da Hidrelétrica de Paulo Afonso. Na mesma assessoria começou-se a discutir um plano econômico para o Nordeste e um estudo de Rômulo de Almeida concluíra que o atraso e a pobreza da região não se deviam a fatores climáticos (a falta de chuvas) e sim à organização econômica regional inadequada. Trabalhos realizados em 1953 pelo consultor da ONU Hans Singer reforçaram o argumento de Rômulo de Almeida. Singer (1962) abordou

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ainda outros pontos como o fato de que a política de desenvolvimento econômico para o país como um todo estava contribuindo para o empobrecimento relativo do Nordeste, bem como a falta de uma política de incentivos financeiros e fiscais para a região, prática que já era adotada em alguns países europeus. A tudo isso, se somaria a execução do Plano de Metas do governo Kubitschek, iniciado em 1956, cujos investimentos se concentraram nas regiões mais industrializadas do país, sem contar os enormes gastos com a construção de Brasília, a chamada meta-síntese do Plano.

As organizações da sociedade civil, sobretudo no meio rural, cresceram rapidamente no mesmo período e pressionaram o Governo Federal por medidas que iam da destinação de investimentos públicos compensatórios para a região à reforma agrária.

É nesse contexto que as ideias de Celso Furtado sobre o Nordeste tornam-se conhe-cidas e vão ganhar força política ao serem adotadas, em 1959, pelo Presidente Kubitschek, que buscava bases mais consistentes no sentido de uma nova ação governamental naquela região, podendo assim responder às demandas sociais que se colocavam fortemente du-rante o seu governo. Essas ideias foram sistematizadas no relatório já mencionado, que aborda vários temas como os desequilíbrios regionais e o seu agravamento devido, de um lado, à política do Governo Federal para expandir a industrialização do país e, de outro, à inadequação da estrutura agrária.

Os Desequilíbrios Regionais e o Nordeste

O estudo da economia brasileira sob o ângulo dos desequilíbrios regionais já aparece no texto de Furtado, A perspectiva da economia brasileira, de 1957. Ali diz o autor que o Brasil era “um imenso contínuo territorial, dotado de unidade política e cultural, mas des-contínuo e heterogêneo do ponto de vista econômico”. Dois terços do território nacional de 8,5 milhões de quilômetros quadrados seriam um imenso vazio demográfico (pouco mais de 7 milhões de habitantes) e econômico. No terço restante do território ele identifica dois subsistemas econômicos: o nordestino (da Bahia ao Ceará), com 18 milhões de habi-tantes e 1,3 milhões de km², e o sistema sulino (de Minas Gerais ao Rio Grande do Sul).

O sistema nordestino é caracterizado como uma economia de renda per capita de 100 dólares anuais, não integrada, composta de “manchas” econômicas que se articula-vam escassamente, sendo a atividade comercial (capital mercantil) dominante. O sistema sulino, com uma renda per capita de 340 dólares anuais, apesar de ainda possuir áreas de economia de subsistência, encontrava-se em processo relativamente avançado de integra-ção econômica.

Uma programação para desenvolver o Nordeste deveria levar em conta o fato de que essa região poderia contar com a expansão do mercado do Sul do país em franca expan-são. “No caso do Nordeste, observa-se a circunstância favorável de essa região ter acesso a um mercado relativamente grande e em expansão: o Sul do país.” (Furtado, 1957, p.16).

O PODER REGIONAL

Há, portanto, um conjunto de elaborações que se expressam nas duas obras, a de 1957 e a de 1959, que se projetam no relatório do Grupo de Trabalho para o Desen-volvimento do Nordeste (GTDN) apresentado ao Presidente Kubitschek em março de 1959. Esse documento é, na verdade, um diagnóstico detalhado e bastante articulado da

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economia do Nordeste, acompanhado de um esboço de plano de ação. Portanto, uma proposta de planejamento para aquela parte do país. Registre-se uma vez mais a importân-cia do planejamento econômico estatal no contexto do pós-guerra e particularmente no Brasil, cuja experiência nesse terreno foi das mais significativas. O conhecimento teórico de Celso Furtado sobre o tema e a sua permanência de alguns anos na Europa devastada pela guerra e em reconstrução certamente foram fundamentais para o resultado que seria obtido. Quanto ao primeiro aspecto, é clara no relatório a influência do conceito de de-senvolvimento na linha cepalina, bem como o enfoque dos processos sociais cumulativos de Myrdal (1972), que, segundo este, eram responsáveis pelos desequilíbrios regionais. O livro de Myrdal publicado a partir de conferências pronunciadas no Cairo em 1955 tratava de questões do desenvolvimento capitalista que haviam se tornado muito evidentes com a depressão de 1930. Quanto ao segundo aspecto, na Europa do imediato pós-guerra, as desigualdades sociais tanto quanto as desigualdades regionais constituíam questões candentes. De uma forma geral, os governos europeus viram no planejamento o caminho para solucionar essas questões. Experiências como a do Plano Marshall, para a Europa, e o Planejamento Indicativo francês tiveram grande êxito.

As discussões em torno dos desequilíbrios regionais expressos na forma de grandes concentrações econômicas nas metrópoles e empobrecimento de outras áreas, ao se torna-rem conhecidas de parcelas crescentes de população, contribuíram para que os governos adotassem políticas de desenvolvimento regional em escala nacional (Inglaterra, França e Itália, sobretudo). Entre 1946 e 1948, Celso Furtado viveu de perto essa realidade. Em 1947, foi publicado o livro de François Gravier, Paris et le désert français, a partir do qual houve um grande debate sobre os desequilíbrios regionais na França, que se desdobrou por alguns anos e contribuiu para os primeiros passos do aménagement du territoire. Agregue-se a isso o fato de que organização e planejamento foram sempre campos do conhecimento que despertaram interesse particular para o nosso autor, desde a época de seu curso de Direito e de Técnico de Administração do Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP).

No Brasil, as disparidades regionais aumentaram significativamente com a indus-trialização e não se poderia afirmar que elas diminuiriam espontaneamente com o passar do tempo. Na contramão dos pressupostos liberais, Myrdal (1972) afirmava que os de-sequilíbrios econômicos tendiam a aumentar sob o efeito do “laissez faire”. No GTDN, lê-se que as desigualdades econômicas muito acentuadas entre duas regiões (o Nordeste e o Centro-Sul) corriam o risco de “institucionalizar-se”.

Outra ideia-chave derivava da tese cepalina da degradação dos termos de intercâm-bio, que, aplicada à relação Nordeste/Centro-Sul, permitia concluir que a primeira região tivera uma perda econômica importante, que o documento chega a estimar em 24 milhões de dólares no período de 1948 a 1953.

A análise da região nordestina, por comparação com a região mais industrializada do Centro-Sul, indicava, em primeiro lugar, que a sua renda per capita era de 100 dólares anuais, correspondente a 1/3 da do Centro-Sul. O Nordeste aparecia, assim, como a mais extensa e populosa área de pobreza do hemisfério ocidental. Daí a gravidade do problema nordestino no contexto nacional.

Avançando na análise, o relatório indicava que o setor exportador, que até então impulsionara a economia nordestina, enfrentava cada vez mais dificuldades em continuar a cumprir tal papel, e deduzia que a industrialização constituía a única alternativa viável de desenvolvimento para a região.

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Um dos capítulos de maior força do estudo é o que trata dos aspectos socioeconômi-cos das secas. Observa o documento que na perspectiva da economia da região nordestina, “a seca é uma crise de produção de magnitude limitada”. Contudo, ela assume enorme dimensão porque atinge precisamente a parte da população que depende da “economia de subsistência”. Diz o relatório:

Analisando-se os efeitos da seca nas três camadas da economia das zonas semiáridas – a da agricultura de subsistência, a do algodão mocó e a da criação – vemos que a gravidade do fenômeno e seu prolongamento em crise social se devem ao fato de seus efeitos incidirem de forma concentrada na primeira das referidas camadas. Em algumas zonas típicas, a seca acar-retou a perda praticamente total da agricultura de subsistência, sendo menores seus efeitos, porém, na produção de algodão (GTDN, 1959, p.66-7).

O relatório detém-se no significado da economia de subsistência: “a renda real de grande parte da população encontra [nessa economia] a sua fonte primária, e as outras atividades, na forma como estão organizadas, pressupõem a existência de mão de obra barata”. Entende-se desse modo porque interessa ao fazendeiro dispor, na fazenda, do máximo de trabalhadores.

Partindo do pressuposto de que era necessário evitar que os efeitos mais graves das secas se concentrassem na camada da população menos resistente do sistema econômico, coloca-se a ideia do deslocamento da fronteira agrícola nordestina. Assim, o relatório propunha a colonização de terras úmidas em outros locais, para onde deveriam ser orien-tadas parcelas de camponesas do Semiárido, proposta essa que já se encontrava em outros estudiosos do Nordeste, particularmente em Guimarães Duque e Ignácio Rangel. Essa estratégia se tornaria viável com a incorporação do Estado do Maranhão, onde havia terras públicas na pré-hileia amazônica, e o Estado do Piauí, à região-plano do novo órgão fede-ral a ser criado. Surgia ali a ideia do projeto de colonização do Maranhão. A transferência de nordestinos para outras regiões, espontânea ou estimulada por governos (notadamente a migração para a Amazônia, na forma de uma política à época do Império) sempre foi uma questão sensível no Nordeste. Assim, uma nova política econômica para a região que propusesse a retirada de população encontraria fortes resistências. Daí a ideia (estratégica) de incluir os Estados do Maranhão e do Piauí na região-plano da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), o que efetivamente iria ser feito a partir da lei que criou esse órgão em 1959.

A segunda estratégia agrícola consistia na irrigação das bacias dos açudes, mediante uma política que possibilitasse a desapropriação daquelas áreas. A primeira grande tarefa da nova política, ainda na fase do Conselho de Desenvolvimento do Nordeste (Codeno), foi a elaboração do projeto de lei de irrigação. A terceira estratégia era a reestruturação da área de monocultura da cana-de-açúcar, na Zona da Mata, destinando-a, prioritariamen-te, à produção diversificada de alimentos.

A indústria regional, em sua quase totalidade, de bens de consumo não duráveis, sobretudo têxteis e de alimentos, deveria ser modernizada, para ter condições de competir com a moderna indústria do Centro-Sul. Ao Estado caberia investir em infraestrutura (energia elétrica, transporte e saneamento) e em indústrias de base, como a siderúrgica. Além do financiamento através de bancos do Estado, seriam criados mecanismos de estí-mulos fiscais e financeiros, nos moldes dos praticados nos países desenvolvidos e mesmo no Centro-Sul do país.

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Tratava-se, portanto, de uma política de modernização, melhor dizendo, de desen-volvimento do capitalismo no Nordeste agrário e pobre. O movimento camponês organi-zado (Ligas Camponesas) discordava da política para o meio rural, que considerava con-servadora, mas não se opunha à proposta de industrialização. A oposição concentrava-se de fato no lado dos poderosos interesses agrários da região e na força de que dispunham junto à imprensa regional e ao Congresso Nacional. O jornalista e escritor Antônio Callado, em famosas reportagens do final dos anos 1950 para o jornal Correio da Manhã, descreveu de forma vibrante o processo popularmente denominado “indústria das secas”, isto é, as práticas espúrias de apropriação de recursos públicos destinados a ajudar os atin-gidos pelas secas (Callado, 1959).

Foi nesse contexto que, em 1959, Juscelino Kubitschek com a aprovação do Con-gresso Nacional, instituiu a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) para colocar em prática a política prevista no GTDN.

O plano foi bem aceito pelas principais forças sociais que, nos últimos anos da déca-da de 1950, reivindicavam um tratamento diferenciado para o Nordeste, com as restrições que já foram mencionadas. Em uma época em que se estava longe de ouvir falar em pla-nejamento participativo, é indiscutível que o projeto da nova política de desenvolvimento do Nordeste contou com grande apoio popular, o que concorreu em larga medida para que essa proposta não fosse derrotada desde o início, diante da enorme pressão da direita, majoritária no Congresso Nacional. Esse apoio ocorreu em vários momentos e situações, como em uma greve que paralisou Recife por um dia, para cobrar do Congresso a apro-vação do Primeiro Plano Diretor da Sudene. Uma manifestação popular desse tipo, com aquele fim, seria um fato inédito no mundo, segundo Hirschman (1963).

O nosso propósito não é reexaminar a política de desenvolvimento do Nordeste adotada a partir do GTDN, em sua totalidade e em seus diferentes momentos – tema, de resto, bastante visitado na literatura especializada. O que pretendemos é colocar em evi-dência alguns pontos de maior destaque dessa política e que guardam relação direta com as questões que abordamos neste texto.

A região-plano da Sudene – Há cerca de duas décadas, como já visto, as noções predominantes de região privilegiam as escalas micro e mesorregional. A influência neoliberal também aí está presente (“small is beautiful”). Vale lembrar que em Celso Furtado a preocupação é sempre com a escala macrorregional; as grandes regiões brasileiras e como essas se relacionam. Ou seja, o nível mais elevado da classificação de Vidal de la Blache, que é adequada aos países de dimensão continental, como o Brasil, à Rússia (Sibéria, Urais etc.) ou aos Estados Unidos (Apalaches, Colorado etc.).

No GTDN, Furtado estuda a dinâmica do Nordeste em relação ao Centro-Sul. De acordo com as regionalizações adotadas no Brasil desde o início da década de 1940, o Nor-deste compreendia os Estados da Bahia ao Ceará. Por um motivo estratégico (evitar o êxodo de nordestinos para outras áreas do país), a região-plano da Sudene passou a incluir também o Piauí e o Maranhão. Ela compreende, portanto, os seguintes estados: Bahia, Sergipe, Ala-goas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará, Piauí e Maranhão. Já o Centro-Sul não corresponde a uma das macrorregiões definidas pelos geógrafos e economistas. É uma noção um tanto vaga. Ela já aparece, embora apenas mencionada rapidamente, em Caio Prado Júnior, em seu livro História econômica do Brasil, publicado pela primeira vez em 1942. No GTDN, o Centro-Sul toma o lugar do Sul das obras anteriores de Furtado. Desse modo, supõe-se uma divisão da economia do país em apenas dois subsistemas, o do

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Nordeste e o do Centro-Sul, abstração possível graças ao argumento de Furtado de que dois terços do território nacional constituíam um vazio econômico e demográfico. Con-cretamente, o Centro-Sul do GTDN “compreende os Estados litorâneos do Espírito Santo ao Rio Grande do Sul e os Estados mediterrâneos (Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás)”.

Observando bem, esse tratamento da dinâmica regional do país é próximo da abor-dagem dualista, nos moldes dos “dois Brasis”. A diferença é que enquanto os dualistas viam o Nordeste como a região atrasada, tradicional e que, por isso, dificultava uma maior expansão do Centro-Sul, industrial e moderno, Furtado defendia uma política de desenvolvimento do Nordeste, para superar o atraso e a pobreza dessa região, e também com o argumento de que o agravamento dos desequilíbrios regionais colocaria em risco a unidade nacional. Esse conceito é central na visão do autor e explica também porque, tendo em conta as dimensões territoriais do Brasil, fica difícil pensar a questão da unidade nacional que não seja levando em conta a grande região.

O Conselho Deliberativo – A instituição do Conselho Deliberativo da Sudene foi, sem dúvida, uma figura original na administração pública federal brasileira, pois apontava na direção do fortalecimento dos Estados através de uma organização regional. A melhor explicação desse instrumento é a seguinte:

O recorte da federação brasileira prejudica o Nordeste, que é dividido em pedaços relativa-mente pequenos. Estado importante é Rio Grande do Sul, é Minas Gerais, é São Paulo, é o Rio de Janeiro. Portanto, era preciso compensar esse aspecto perverso da Constituição, mas como uma reforma constitucional era coisa impossível de se fazer no Brasil, apelamos para um truque, que consistiu em criar um mecanismo de discussão e votação entre o governo federal e os governos estaduais da região: foi o Conselho Deliberativo da Sudene, que reúne nove governadores para harmonizar pontos de vista sobre o que fazer na região. Assim, se reivindica conjuntamente e quando se vai ao Parlamento e ao Presidente da República, o Nordeste tem uma vontade só (Furtado, 2001, p.23).

Incentivos fiscais – A instituição de incentivos financeiros e fiscais, destinados às empresas privadas para aplicação em regiões atrasadas, teve início durante a crise de 1930, na Inglaterra, estendendo-se a praticamente todos os países centrais. No Brasil, tomou-se por base, principalmente, o modelo italiano destinado ao Mezzogiorno, com adaptações ao caso do Nordeste. Com o fim da isenção cambial, no governo Jânio Quadros (1961) criou-se o sistema de incentivos que permitia às empresas de todo país deixarem de pagar 50% do Imposto de Renda para aplicá-los em projetos de investimentos no Nordeste. Isso constituiu uma verdadeira inovação, graças à qual foi possível aumentar significativamente a produção industrial no Nordeste (Moreira, 1982).

Medidas à la TVA – Duas outras medidas, inspiradas na TVA, foram também impor-tantes no sentido de atribuir um maior poder de atuação e liderança e devem ser também mencionadas. A primeira diz respeito à subordinação da nova autarquia diretamente ao Presidente da República. A segunda foi a localização da sede do órgão no Nordeste (em Recife) e não na capital da República.

Planejamento regional e participação – O modelo de administração pública levada ao Nordeste com a implantação da Sudene, em 1959, pode ser considerado singular no

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Brasil dos anos 50/60. Para isso contribuíram as experiências de Furtado como Técnico de Administração do DASP e como funcionário por muitos anos da Cepal/ONU. Rigor no uso da coisa pública e formação de equipe de alto nível em um campo pouco desenvolvido no Brasil foram, entre outros fatores, características que tornaram a experiência da Sudene de suas origens conhecida em todo o Brasil. Há um depoimento de Francisco de Oliveira, em 1975, no Congresso Nacional, que merece registro:

Um vasto sopro de esperança varreu a região. Uma convergência nunca antes vista de classes e setores sociais, desde o campesinato, mobilizou-se para o que pensávamos ser a tarefa do século, a mais ingente e espinhosa de quantas reclamavam solução para a construção de uma Nação harmônica, sem gritantes disparidades que se constatavam e que, infelizmente, estes 20 anos não conseguiram desfazer. Minha geração jogou-se por inteiro naquele empreendi-mento, e tentamos converter nossa fraqueza em força: despreparados para tão grande come-timento, substituímos o conhecimento científico, de que não dispúnhamos, pelo ardor, pelo vigor e, por que não dizê-lo, pelo desprendimento. Com o inteiro apoio da população, vale à pena lembrar, sem que isso seja uma vanglória, que a Sudene inovava completamente o estilo de desempenho dos poderes públicos, não apenas na escala regional, mas até mesmo medida pela escala nacional [...] (Oliveira, 1978, apud Tavares, 2004, p.118).

Naturalmente, falamos da chamada Sudene “original”, de 1959-64, com sobre-vida até os primeiros anos da década seguinte. Repercussão dessa experiência encontra-se ainda nos primeiros anos da década de 1970, como se nota na fala do historiador Francis-co Iglesias:

[...] a Sudene representa força significativa: é elemento renovador por pretender constituir administração racional; era preciso recrutar gente para o trabalho, mas como não se pretendia apenas fazer uma repartição a mais, sobre o obsoleto sistema administrativo, era indispensável formar pessoal técnico. A essa tarefa Celso Furtado se entregou, organizando cursos para os quais obteve direções eminentemente técnicas, especializadas, o que não lhe foi difícil pelos muitos anos que passou na Cepal. Armou-se no Nordeste, notadamente na capital de Per-nambuco, um sistema de pessoal qualificado que pode vir a representar papel importante no país (Iglesias, 1971, p.67).

Esse é um quadro sucinto daquilo que foi o planejamento do Nordeste liderado pela Sudene, em seus cinco primeiros anos.

Descentralização Territorial do Poder

As avaliações da política de desenvolvimento para o Nordeste, segundo o modelo Sudene, quase sem exceção, pecam por não levar em conta as duas mudanças ocorridas durante a ditadura militar: a primeira, que restringiu tal política a praticamente coordenar a industrialização através dos incentivos fiscais e financeiros; a segunda, reduzindo forte-mente os recursos dos incentivos fiscais, destinando parte importante deles para outras finalidades (construção da rodovia Transamazônica, os chamados perímetros irrigados, turismo, reflorestamento, Embraer etc.).

Nas décadas de 1980 e 1990, o sistema de planejamento regional do Nordeste entrou em franco declínio. Inversamente à redução dos recursos dos incentivos fiscais,

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cresceram de forma considerável as práticas lesivas ao erário público, tanto na Sudene quanto na Sudam. Nisso baseou-se Fernando Henrique Cardoso para extinguir os dois órgãos em 2001.

O Presidente Luís Inácio Lula da Silva assinou ato que recriou as duas instituições em julho de 2003, cumprindo promessa feita publicamente nesse sentido. O seu governo tentou construir uma política regional de âmbito nacional. Mas os resultados foram bas-tante tímidos, do mesmo modo que a sua visibilidade junto ao público.

Os motivos principais para o ocorrido são: a) os dois ministros que ocuparam a pasta do Ministério da Integração Nacional, respectivamente Ciro Gomes e Geddel Vieira, foram nomeados exclusivamente por motivos políticos; b) o modelo adotado, que divide o país em micro e mesorregiões, inspira-se no modelo da União Europeia; c) esta subdi-vide a Europa dos países-membros em mais de uma centena de regiões, muitas das quais com áreas reduzidíssimas, e conta por outro lado com um enorme volume de recursos, enquanto os recursos da política brasileira para os mesmos fins são escassos; d) a escolha, pelo governo, da escala microrregional explica-se pela inspiração na política da União Europeia, mas também por motivações políticas do governo, para o qual a opção pelo local se torna bem mais cômoda.

Esse último ponto remete a um tema muito discutido na área de planejamento ur-bano e regional, no Brasil nos últimos anos, a saber, o tema das escalas. A visão de Celso Furtado sobre região e poder regional, pouco explorada em nossa literatura especializada, pode servir de contraponto valioso com a abordagem localista atual, filha dileta do neoli-beralismo nas pesquisas atuais sobre território.

Os textos de Furtado de 1959 a 1964 sugerem dois tipos de preocupação: a) o receio de que o crescimento excessivo das disparidades regionais colocasse em risco a unidade nacional; b) o sistema federativo brasileiro levara ao aumento crescente do poder da União em relação ao dos Estados; c) os Estados nordestinos em particular tornaram-se econô-mica e politicamente frágeis, sendo por isso reduzido o seu poder de barganha junto ao Governo Federal.

Na montagem da estrutura da Sudene, em 1959, o Conselho Deliberativo tornou-se peça-chave. Reunidos nesse órgão responsável pela política econômica e social da região, os governadores, atuando de forma unificada, levariam as propostas econômicas ao gover-no central, em geral sob a forma de projetos aprovados coletivamente.

Entre 1959 e 1964, Furtado referiu-se muitas vezes à importância do Conselho Deli-berativo, ao seu significado político (ou até estratégico). Mas é na Fantasia desfeita (1986) que ele explicita, de fato, o objetivo de longo prazo, visado já em 1959: a instituição da região como instância de poder territorial. Em reunião com Kubitschek, para explicar-lhe o conteúdo da nova política, cujo objetivo era administrar os recursos da união por consenso entre as autoridades federais e estaduais, e face ao interesse despertado pelo interlocutor, disse Furtado: “Presidente [...] vamos criar um embrião de uma instância regional de governo.” (Furtado, 1997, p.88).

O dispositivo efetivamente criado foi, como vimos, o Conselho Deliberativo da Sudene. Este na visão de Furtado, ao mesmo tempo em que fortalecia os governadores de Estado e difundia um espírito regional, libertaria “a aplicação dos recursos federais das politicagens locais”.

Nos últimos anos da década de 1990, Furtado volta a esse tema. No opúsculo de O longo amanhecer (1997), ele reafirma que, quando da criação da Sudene, discutira-se a necessidade de instâncias decisórias entre os níveis de poder estadual e nacional. Em face

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da fraqueza dos Estados, somente tal instância “poderia exercer uma ação promocional efetiva no campo do desenvolvimento econômico” (Furtado, 1999, p.55). Refere-se à necessidade de uma regionalização do poder central, o qual não seria apenas delegado, mas passaria a encarnar uma efetiva vontade regional. Na mesma página, ele diz de forma categórica: “No caso de uma reformulação constitucional, não será fora de propósito discutir a possibilidade de uma esfera regional de poder”. Para ele, esse poder regional, ao mesmo tempo em que pressionaria os atuais Estados, buscaria “corrigir os aspectos mais negativos das desigualdades demográficas e territoriais existentes” (Furtado, 1999, p.55).

Furtado refere-se também com frequência à identidade em seu aspecto econômico e, sobretudo cultural, como elemento organizador de uma região. Em decorrência de seu passado histórico, a identidade cultural marca fortemente o Nordeste, mais do que as regiões Norte e Centro-Oeste, cujas formações são mais recentes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste texto, buscamos recolocar a questão do desenvolvimento regional, na pers-pectiva macro (econômica e espacial). Com essa preocupação recorremos à obra de Celso Furtado, autor que desenvolveu essa abordagem no Brasil, do ponto de vista teórico e prático. O seu conceito teórico foi sendo construído à medida que avançou a sua pesqui-sa da evolução histórica da economia brasileira. Seguimos esse processo tal como ele se mostra na Formação econômica do Brasil, obra publicada em 1959. As conclusões desse livro servem de ligação para o estudo dos desequilíbrios espaciais do país nos anos 50 e a política de desenvolvimento do Nordeste proposta no conhecido estudo Uma política de desenvolvimento para o Nordeste (GTDN), também de autoria de Furtado.

Consciente dos problemas que acentuados desequilíbrios econômicos espaciais podem colocar para a nação, Furtado sempre entendeu que a região, no Brasil, deve ser pensada em primeiro lugar em sua dimensão ampla (a grande região). Essa posição foi mantida pelo autor até o final. Nos últimos anos, ele procurou explicitar a sua defesa da instituição de uma instância de poder regional, ideia colocada já em 1959, mas na época de forma indireta, implícita.

Essa última proposição que, à primeira vista pode ser tida como irrealista, é, entre-tanto, considerada pelo autor como necessária para dar estabilidade ao sistema federativo brasileiro, que convive com fortes contrastes econômicos entre os Estados da Federação.

Ao reavivar a lembrança das ideias de Celso Furtado no campo do desenvolvimento regional, pensamos também em contribuir para a discussão desse tema, em um momento em que tende a se firmar, entre nós, abordagem que se preocupa apenas com o recorte microespacial (e também microeconômico), como se as dimensões dos países europeus fossem equivalentes às do Brasil.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Hermes Magalhães Tava-res é professor associado do IPPUR/UFRJ; pesquisador do CNPq. Email: smtavares @uol.com.br

Ar ti go re ce bi do em junho de 2011 e apro va do pa ra pu­bli ca ção em setembro de 2011.

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A b s t r a c t One of the most important Brazilian economists and the most proeminent outside the country, Celso Furtado left an expressive work about Brazilian and Latin-American economy. He also emphasized the study of Regional issues, particularly on the Northeast of Brazil. This paper adresses the relationship between the Brazilian economic evolution and the development of the country’s different regions according to Furtado’s ideas. This subject was approached by the author, especially in two of his works:

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“Formação econômica do Brasil (Brazilian economic Formation) and “Uma Política para o desenvolvimento do Nordeste” (A policy for the Northeast development). We sought in his works and macroeconomic and macrospatial’s vision a contribution to establish a counterpoint to the local development current approach.

K e y w o r d s Celso Furtado; regional development; regional power; Northeastern Brazil.

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NOVAS DETERMINAÇÕES SOBRE AS QUESTÕES REGIONAL E

URBANA APÓS 1980*

W i l s o n C a n o

R e s u m o Entre 1930 e 1980 as principais determinações sobre nossa urbanização, integração do mercado nacional e desenvolvimento regional decorreram basicamente da indus-trialização, da política macroeconômica e de políticas de desenvolvimento regional. Após 1980, com a “Década perdida” e as políticas neoliberais, aquelas determinações foram em grande parte modificadas pelas novas formas de nossa inserção externa, pelo câmbio apreciado e juro alto, e pela Guerra Fiscal. Assim, além dos determinantes anteriores – enfraquecidos –, há os novos, de sentido nacional, sendo alguns específicos a cada região. Em que pese as mudanças, os efeitos nocivos de nossa forma de crescer e de nossa urbanização se transmitiram a todo o território nacional. O artigo se encerra com uma proposta de Agenda de Pesquisa sobre os temas regional e urbano para o período 1980-2010, com intuito de entender melhor aquelas determinações e efeitos desses processos.

P a l a v r a s - c h a v e Questão regional; urbanização; novos determinantes; guerra fiscal; fronteira agro-mineral; inserção externa.

Este texto visa um exame e reflexão sobre os principais efeitos das mudanças mais relevantes sofridas pelo padrão de crescimento vigente após 1980, que causaram profundas alterações sobre as determinações mais gerais que agem sobre os processos de desenvolvimento regional e de urbanização brasileiros. Esse período de análise se situa entre 1980, com a “Crise da Dívida” e a posterior adoção de políticas neoliberais, estendendo-se até 2010.

No primeiro tópico, e para comparação com o restante do texto, farei breve síntese sobre as anteriores determinações, as ocorridas entre 1930 e 1980, destacando, contu-do o transcurso da década de 1970. No segundo tópico o objetivo central é desenhar e justificar uma agenda de pesquisa para o período 1980-2010, indagando as novas determinações mais gerais daqueles processos. Para tanto, se fará um esforço teórico e metodológico que possa dar conta da realidade do período. Desde já tenho consciência do tamanho da tarefa e que sua realização só será possível com um grande esforço co-letivo de pesquisa.

Obviamente, ao longo de todo esse processo, a questão ambiental ganhou relevância no debate nacional, face à degradação que ocorre, principalmente, no período pós 1980, seja pela extensão do desmatamento ou pela contaminação das principais bacias hidrográ-ficas, seja pelas várias formas degradantes que se multiplicam no processo de urbanização (lixo, água, esgoto, ar, paisagem, enchentes etc.). Contudo, dada a dimensão e escopo des-te artigo e, principalmente, a complexidade envolvida nesse tema, não tratarei do referido processo, embora o entenda como uma das questões prioritárias a examinar nos temas da questão regional e da urbanização.

* Agradeço os comentários e sugestões de meus cole-gas do IE, Professores Fer-nando M. Mota e Humberto M. Nascimento, que me per-mitiram esclarecer melhor algumas questões cruciais que envolvem o momento atual.

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AS PRINCIPAIS DETERMINAÇÕES NO PADRÃO ANTERIOR (1930 A 1970 E 1970 A 1980)1

A ruptura política e econômica desencadeada pela “Crise de 29” e pela Revolução de 1930, fez a economia do Brasil transitar do antigo modelo “primário exportador” (de crescimento para fora), para o da industrialização (crescimento para dentro), mudando o “centro dinâmico da economia”, e alterando as bases do antigo padrão de acumulação, que passa a ter no investimento autônomo sua principal determinação.

Isto reforçou a internalização de tomada de decisões, notadamente na órbita do Estado, que implantou, gradativamente, uma Política Nacional de Desenvolvimento, am-pliando sobremodo suas funções de estímulo, indução e ação diretas, com forte ampliação do gasto e do investimento públicos.

A despeito da Depressão e da II Guerra, o novo padrão acelerou o crescimento do PIB, cuja taxa média anual, entre 1930 e 1970, atingiu 6%, ou seja, bem acima dos 4,3% da média 1900-1930. O PIB da indústria de transformação cresceu ainda mais, entre 1930 e 1970, a 8,2% com o que a participação desse setor no PIB saltou, de cerca de 12,5% para 29,3% em 1970.

A política econômica reforçou sobremodo o inexorável processo de integração do mercado nacional, que a industrialização desencadearia. Para isso muito colaboraram, além de outras medidas, os investimentos públicos em infraestrutura, que estreitaram a enorme dispersão territorial do país. Os investimentos industriais, públicos e privados, além de elevar a capacidade produtiva do setor, diversificaram-na, com a implantação da indústria de bens de produção e de consumo durável. A expansão regional, no período, caracterizou-se por uma forma de complementaridade com a economia de São Paulo, intensificando-se bastante o comércio inter-regional do país.

Embora tenha ocorrido enorme concentração da produção da indústria de transfor-mação em São Paulo – que passa de 40,7% para 58,2% do total nacional entre 1939 e 1970 –, isso não causou qualquer perda absoluta a nenhuma das demais regiões do país. Com efeito, enquanto esse setor cresceu, entre 1939 e 1970, à taxa média nacional de 8,1%, a de São Paulo foi de 9,3% e a do agregado Brasil-SP, de 6,9%. Mesmo o Nordeste, a região que mais perdeu participação relativa, obteve a elevada taxa de 5,9%.

A produção agropecuária do país também cresceu satisfatoriamente, em torno de 3,7% anuais, intensificando-se também as trocas de várias regiões com São Paulo. Os destaques maiores para esse setor, no período, foram:• a profunda transformação, modernização e diversificação do agro paulista, reduzindo

a cafeicultura e expandindo, notadamente, a cana de açúcar e o algodão, que inibi-riam, a longo prazo, essas culturas no NE. Isto provocou um grande fluxo de saída de pequenos produtores e trabalhadores rurais que migrariam, fundamentalmente, para a agricultura do Paraná e Centro-Oeste, e em parte, para a economia urbana de SP, que crescia com a industrialização. A partir da “Crise de 29”, o agro paulista atraiu importantes fluxos de trabalhadores rurais de Minas Gerais e do Nordeste. Entre 1940 e 1970, migraram para o estado de São Paulo, 2,5 milhões de brasileiros não paulistas (81% dos quais, de MG e do NE), consolidando o Estado como principal receptor da emigração nacional;

• a colonização do norte do Paraná e do oeste de Santa Catarina, que se estende até a década de 1960, com base em agropecuária diversificada e caracterizada pela pequena e média propriedade;

1 Para este tópico, apóio-me basicamente em Cano (2007a, b).

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• fato semelhante, mas de menor impacto, ocorreu com o sul de Goiás e ainda em menor escala no sul do atual Mato Grosso do Sul, para o que contribuiu a política federal da “Marcha para o Oeste” e mais tarde a construção de Brasília e da Belém-Brasília.

Esses novos espaços – no CO, no PR e em SC – que constituíram uma “fronteira exuberante”, com produção eficiente e melhor distribuição de renda, receberam grandes fluxos migratórios de habitantes do NE, de MG, do Rio Grande do Sul e de São Paulo: os que se dirigiram ao Sul somaram (em 1.000 pessoas), respectivamente, cerca de 400, 500, 450 e 700; os fluxos em direção ao CO foram ainda modestos, predominando os de paulistas (cerca de 200).• a grande ocupação no Maranhão e no norte de Goías (atual norte do Tocantins), e

mais ao fim deste período, no sudeste do Pará, que se pode caracterizar como uma “fronteira de pobres”, dada a questão fundiária local, a precariedade de sua agricultura e as perversas relações sociais de produção. Este espaço constituiu, claramente, uma perversa manifestação do fenômeno da agricultura itinerante de que falou Furtado (1972). Para esta fronteira acorreram grandes fluxos de nordestinos não residentes (cer-ca de 400.000) no MA. Com a continuidade da itinerância dessa agricultura, as levas de nordestinos (maranhenses ou não) migraram também para o atual norte do TO e o sudeste do PA; foram cerca de 100.000 pessoas.

Há que ter presente, no caso da agropecuária, que, à medida que ela se moderniza e cresce, embora expulse parte de seu emprego direto, gera outros empregos indiretos urbanos, seja na agroindustrialização ou na indústria que lhe fornece bens de produção, seja em várias atividades produtoras de serviços. É isto que explica, por exemplo, a notável rede urbana gerada pela cafeicultura paulista antes de 1929, e a do norte do PR, durante a “colonização” agropecuária que ali se deu entre 1925 e fins da década de 1960.2 O oposto disso se deu na ocupação do MA, do antigo norte de GO (atual TO) e do sudeste do PA, no período posterior à década de 1940.

Em termos regionais, a demografia sofreu forte influência dos fluxos migratórios, cujo total nacional passa de 2,7 milhões em 1940 para 11,9 milhões em 1970.3 Entre 1940 e 1970 (em 1.000 pessoas), as entradas acumuladas em São Paulo passaram de 726 para 3.185; no Paraná, passaram de 214 para 2.467 e no Rio de Janeiro, de 602 para 2009.

A população brasileira, que entre 1920 e 1940 crescera à modesta taxa média anual de 1,5%, com as transformações econômicas e sociais que ocorreram após 1930, acelera seu crescimento, para 2,3% em 1940-1950 e para cerca de 3% em 1950-1970. Mas a população urbana cresceria muito mais: 3,8% em 1949-1950, 5,3% em 1950-1960 e 5,1% em 1960-1970.

Durante todo esse período, as taxas nacionais foram ligeiramente superadas pelas paulistas. Contudo, a urbanização gerada pela cafeicultura em São Paulo – e sua notável rede urbana – era relativamente maior do que a nacional: foi acelerada com o aumento de seus fluxos imigratórios e com parte de seu próprio êxodo rural, com o que, em 1940, as taxas de urbanização do Brasil e de São Paulo eram respectivamente 31% e 44%, dis-tância que aumenta em 1970, para 56% e 80%. Cabe ainda apontar que, se excluirmos São Paulo e o Rio de Janeiro, o restante do Brasil apresentaria, naqueles anos, as taxas de 25% e 45% apenas.

A estratificação das cidades, por tamanho, também é útil para examinarmos essa evo-lução. Em 1920, o país tinha apenas uma cidade com mais de um milhão de habitantes, o Rio de Janeiro, e uma com mais de 500 mil, São Paulo, que só em 1940 figuraria com mais de um milhão. Em meados dos anos 1950, São Paulo (e o aglomerado que viria a

2 Sobre as redes urbanas do Brasil até a década de 1950, ver o excelente trabalho de Geiger (1963).

3 Cifras calculadas com eli-minação das migrações en-tre as UFs das regiões NO, NE e CO.

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ser sua região metropolitana) ultrapassavam o Rio de Janeiro e sua futura RM. Na escala de 500 mil, só em 1950 teríamos uma – Recife –; em 1960 seriam cinco e seis em 1970, com o surgimento de Brasília.

Se baixada a escala para cidades entre 250.000 e 500.000, também seria escasso seu número: apenas Salvador em 1920; mais duas (Recife e Porto Alegre) em 1940; mas em 1970 já figuravam 14, das quais 9 sediadas em SP e no RJ. Tínhamos em 1920, na escala de 100.000 a 250.000, 10 cidades (3 em São Paulo); em 1940, 18 (2 em São Paulo e 4 no Rio de Janeiro) e em 1970 elas seriam 66 (17 em São Paulo e 5 no Rio de Janeiro).

Assim, a maior concentração urbana no período se restringe a São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e a algumas capitais estaduais. Nova Iguaçu, na baixada fluminense, mu-nicípio agrícola até meados da II Guerra e depois, predominantemente, cidade-dormitório do Rio de Janeiro, fazia parte desse grupo, com seus 727.000 habitantes.

Contudo, o que predomina em todos os estados brasileiros é a grande presença de cidades menores, notadamente abaixo de 100.000 habitantes. Mas isso, longe de repre-sentar uma identidade, oculta, na verdade, uma dura realidade de diferenciação regional de crescimento, renda, ocupação e melhor nível de vida.

O exame da estrutura do emprego mostra o mesmo processo: em 1940, Brasil e São Paulo empregavam, respectivamente, 67% e 58% da População Economicamente Ativa (PEA), nas atividades primárias, 13% e 17% na indústria e os serviços ocupavam apenas 20% e 25%. Em 1970, os mesmos dados eram de 44% e 20%, 18% e 31% e 38% e 49%, mostrando o grande distanciamento entre aquelas estruturas ocupacionais. Con-tudo, o agregado Brasil – (São Paulo + Rio de Janeiro) em 1970 tinha ainda a seguinte estrutura: 57% em primários, 12,5% no setor industrial e apenas 30,5% em serviços. O país estava se transformando e urbanizando em “alta velocidade”, contudo, as reduzidas bases periféricas de industrialização e urbanização impediam que a evolução regional fosse tão avançada quanto a que se dava em São Paulo.

Concluindo este subperíodo, cabe dizer que, a despeito da velocidade do processo de urbanização, notadamente nos estados mais industrializados, há que entendê-lo co-mo de uma urbanização suportável, dada a existência de mecanismos de assentamento e acomodação das camadas de baixa renda, em termos de possibilidade de uma perife-rização ainda próxima aos centros urbanos, acesso a lotes baratos ou ocupação de áreas até então não disputadas com o capital mercantil, como morros, alagados e outras áreas ruins ou inapropriadas.

Por outro lado, e a despeito dessa velocidade de crescimento, como o emprego ur-bano cresceu aceleradamente, a fiscalidade estadual e municipal também cresceu, não na mesma proporção da expansão urbana, mas mesmo que de forma ainda parcial elevou o gasto público urbano e a oferta de serviços sociais, amenizando o drama social que em um futuro próximo surgiria.

A Década de 19704

Contudo, a velocidade e o adensamento urbano – notadamente em São Paulo e no Rio de Janeiro –, amplificaram as tensões sociais, desencadeando, no plano político, uma crescente massa de reivindicações que se consubstanciaram nas chamadas “Reformas de Base” (agrária, urbana, tributária, financeira, educacional, da saúde e outras), com fortes conteúdos de justiça social e nacionalismo. Essa efervescência, entretanto, atemorizou suas conservadoras elites, conduzindo esse caudal para o golpe militar de abril de 1964.

4 Como base deste tópico temos Cano (2008).

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A ditadura fez algumas das reformas, não como as sonhávamos, e sim com um estrito sentido capitalista praticamente desprovido do social. Destaquemos as duas principais reformas econômicas: • a tributária, que modernizou a estrutura fiscal ao mesmo tempo em que centralizou,

na órbita do governo federal, uma massa crescente de recursos diminuindo a partici-pação dos estados e municípios, o que afetaria sobremodo seus potenciais de gastos e, portanto, de atendimento das crescentes demandas sociais;

• a financeira, instituindo a correção monetária, ampliando os canais de financiamento para os segmentos de bens de consumo duráveis e de capital e para a modernização da agricultura de exportação.

Essas duas reformas ampliaram muito a capacidade federal de gasto e investimento público, com o que a política macroeconômica, a partir de 1966-67 pode retomar e acelerar o crescimento e a diversificação da economia. As novas bases de financiamento de médio e longo prazos deram maior apoio ao investimento e à produção privada. O investimento total, como porcentagem do Produto Interno Bruto (PIB), atingiria no auge do período (1970-74) cerca de 25%.

As políticas sociais foram em certa medida negligenciadas, principalmente, a do salá-rio mínimo, que continuaria a sofrer maiores quedas reais. A agrária foi transformada em um simulacro, para, justamente, não fazê-la. Exemplo notável foi a construção da Rodovia Transamazônica, instrumento para agilizar as migrações nordestinas rumo ao Noroeste, com o que se esvaziava a pressão fundiária no Nordeste. A política urbana limitou-se às novas formas de financiamento de habitação e saneamento básico (Poupança, Fundo de Garantia por Tempo de Serviço e Banco Nacional de Habitação), com o que a política habitacional expandiu sobremodo a construção residencial, e isto acomodava o problema do emprego e cooptava politicamente a população beneficiada com esse programa.

A questão regional, para a qual havia sido implantada em 1960 uma Política de Desenvolvimento Regional com incentivos econômicos para o Nordeste, teve, a partir de 1967, seus recursos direcionados também para o Noroeste e, em seguida, dispersados pelo surgimento de novos programas, a maior parte dos quais para todo o território na-cional, como os investimentos em turismo, pesca, reflorestamento, mercado de capitais e indústria aeronáutica.

A intensidade do crescimento entre 1967 e 1980 “compensou” esses constrangimen-tos: a queda do salário mínimo foi atenuada pelo excepcional crescimento do emprego urbano, que elevou o salário médio e dispersou a estrutura salarial. A dispersão dos recur-sos financeiros regionais do Noroeste e Nordeste foi compensada pela desconcentração regional do investimento, pois o aprofundamento e diversificação imprimidos à industria-lização obrigavam a uma utilização mais intensa das bases regionais de recursos naturais (terras, água e minérios).5 Isso também obrigou a uma forte desconcentração regional da infraestrutura energética, de comunicações e de transporte.

A taxa média anual do PIB entre 1970-1980 foi de 8,7% para o Brasil (8,2% para São Paulo). A agropecuária cresceu a 3,8%, alta, se confrontada com a demográfica, que foi de 2,5%. Os serviços, impulsionados pela industrialização, cresceram a 8% e a indús-tria de transformação a 9% (8,1% em São Paulo e 10,2% no agregado Brasil-São Paulo).

A participação da periferia nacional aumentou a desconcentração industrial, passan-do de 0,8% para 2,4% no Noroeste, basicamente explicada pela implantação da Zona Franca de Manaus; o Nordeste saltou de 5,7% para 8,1%, recuperando parte das perdas sofridas no período anterior; Minas Gerais, foi de 6,5% para 6,7% e o Espírito Santo,

5 Implantação ou expansão de celulose e papel, metais não ferrosos, química, ál-cool de cana, petroquímica e outros.

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de 0,5% para 0,9%, foram os principais beneficiados. Os maiores perdedores foram São Paulo (cai de 58,1% para 53,4%) e o Rio de Janeiro (de 15,7% para 10,6%). A des-concentração industrial em São Paulo também teve um vetor interno: a participação da Região Metropolitana de São Paulo no total nacional cai de 43,5% para 33,6% enquanto a do interior sobe de 14,7% para 19,8%, desenvolvendo, também nesse espaço estadual, a urbanização e a produção de serviços.

A modernização e expansão da agropecuária se concentraram mais em São Paulo e região Sul, e em menor escala no Centro-Oeste. Seus principais produtos foram a soja, o trigo, a laranja, a cana-de-açúcar e as carnes. Ressalte-se que a expansão no Paraná deu-se nas áreas em que antes predominava a pequena e média propriedade, transformando as es-truturas produtivas e da propriedade, resultando na expulsão, nessa década, de paranaenses (predominantemente rurais), do equivalente a 22,8% de sua população de 1970. A ocu-pação do Noroeste se iniciava, notadamente no Pará, em pecuária e cultivos tradicionais.

Os fluxos migratórios inter-regionais saltaram de 12 milhões de pessoas em 1970 para 16,5 milhões em 1980. As maiores saídas continuaram a ser de nordestinos (2,3 milhões), paranaenses (1,6 milhões) e mineiros (800 mil). A principal área receptora foi São Paulo, com o recorde de 2,8 milhões de pessoas (cerca de 1,5 de nordestinos, 0,6 de mineiros e 0,55 de paranaenses, além de outros). O Rio de Janeiro diminuía sua recepção, para cerca de 500 mil, mas aumentava sua própria expulsão, para cerca de 180 mil.

A fronteira Noroeste receberia 650 mil pessoas (260 mil do Nordeste; de Minas Gerais, Paraná e Centro-Oeste-DF, 90 mil de cada e outros). A do Centro-Oeste-Distrito Federal, recebeu 500 mil: 180 mil do Paraná; do Nordeste e de São Paulo, 100 mil de cada, além de outros. Brasília continuou sendo importante receptor, acusando entrada de 380 mil pessoas.

A taxa média anual de crescimento demográfico caíra de 2,9% nos anos 1960 para 2,5% nos 1970, mas o acréscimo absoluto da população foi maior: (23 milhões contra 26). A da população rural, que já fora pequena nos anos 1960 (0,7%), torna-se negativa nos 1970 (-0,5%). A taxa de crescimento da população urbana também caiu nos mesmos períodos de 5,2% para 4,4%, mas o acréscimo absoluto foi ainda maior: 28 milhões nos anos 1970 contra 21 nos anos 1960.

A taxa de urbanização para o total do Brasil sobe de 55,9 % em 1970 para 67,3% em 1980, mas enquanto as áreas mais industrializadas (SP e RJ) apresentavam cifras que ultrapassaram os 80% para cerca de 90%; o NO (51,7%), NE (50,6%) e CO-DF (pouco mais de 60%) eram as áreas menos urbanizadas do país.

A aceleração do crescimento industrial, induzindo fortemente a expansão diversifi-cada dos serviços fez com que, pela primeira vez na história recente do país, a taxa média anual de crescimento do emprego da PEA não agrícola (6,16%, contra 4,62% na década anterior) superasse a taxa de crescimento da população urbana (4,4% contra 5,2% da década anterior). Isso certamente representou um enorme amortecedor de tensões sociais e possibilitou ganhos reais nos salários médios, dada a grande pressão no mercado urbano de trabalho.

A estrutura da PEA empregada mostra o positivo efeito da industrialização: para o Brasil, o emprego agrícola cai de 44% para 30%, o industrial sobe de 18% para 25% e o de serviços, de 38% para 44,5%; para SP, as cifras correspondentes foram de 20% para 11,5%, de 31% para 39% e de 49% para 49,5%. O agregado Brasil (SP+RJ) mostrava ainda elevado emprego agrícola (41,3%) e baixo terciário (apenas 38,7%) embora tivesse duplicado a participação do industrial que passa de 12,5% a 20%.

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Em termos de tamanho de cidades, a urbanização do período concentrou-se um pou-co mais, embora com menor intensidade. Na década de 1960, a população total cresceu 33%, mas as 10 maiores cidades (7 delas com mais de 500 mil habitantes) cresceram em média 54%, e o conjunto das demais cresceu apenas 29%, as quais perfaziam 84% da população. Na década de 1970, enquanto a população total cresceu 27,8%, as 11 maiores cidades (aquelas 10 mais Brasília), cresceram em média 39,5% e a média das demais 25%, perfazendo agora 79% da população total.

De 2 cidades com mais de 1 milhão de habitantes em 1960, passamos a contar com 5 em 1970 e com 10 em 1980. Esse movimento intensificou ainda a conurbação com mu-nicípios vizinhos, que seria o processo de transmissão intermunicipal de todas as mazelas e efeitos nocivos dessa descontrolada urbanização (a urbanização explosiva). O aumento dessas aglomerações urbanas ensejou sua transformação em regiões metropolitanas, insti-tucionalizadas a partir da década de 1970, mas sem contar com fiscalidade própria. Em 1970, as 9 RMs (São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Recife, Salvador, Fortaleza, Belém, Porto Alegre e Curitiba) perfaziam 23,7 milhões de habitantes e em 1980, 34,4 milhões ou o equivalente a 28,8% da população total do país.

A urbanização acelerada gerou uma série de efeitos complexos. A periferização de populações de média e baixa renda foi a tônica desse processo, para o que muito contri-buiu a própria política habitacional do regime militar. Esse efeito estimulou o aumento da especulação imobiliária, encareceu sobremodo os custos da infraestrutura urbana e piorou a qualidade de vida urbana.6 Além disso, o elevado encarecimento da moradia e a omis-são e corrupção política dos órgãos públicos amplificou também a ocupação de espaços impróprios para assentamentos humanos, como morros, encostas, alagadiços e outros.

Por outro lado, conurbação, aglomeração e metropolização superdimensionaram vários problemas de ordem municipal e de solução local, multiplicando seus tamanhos e custos, tornando-os, assim, problemas regionais, estaduais ou mesmo federais. Isso agra-varia ainda mais essa situação, diante da concentração de receita fiscal na órbita federal e do aumento desses problemas. É o que passou a ocorrer com o tratamento do lixo, da questão da água e do esgoto, do transporte coletivo etc.

O PERÍODO PÓS 1980: NOVAS DETERMINAÇÕES SOBRE OS PROCESSOS DE DESENVOLVIMENTO REGIONAL E DE URBANIZAÇÃO7

As principais mudanças, em seu patamar mais geral, ocorreram a partir das novas bases da Política Econômica Nacional, resultando em alterações radicais no ritmo e na forma de crescimento econômico do país, mudando significativamente nossas estruturas produtivas, de emprego e de relações internacionais. Elas também impactaram sobre as estruturas sociais e políticas, e causaram importantes alterações no processo de integração e desenvolvimento regional e no próprio processo de urbanização.

Não tratarei aqui da questão macroeconômica nacional, já examinada pela am-pla literatura atual, mas embora não vá tratar dela, adianto que sua análise geral está hoje parcialmente comprometida pelas muitas mudanças espaciais que ocorreram na economia. Dito de outra forma, essas mudanças mais gerais e de caráter nacional ge-raram efeitos espacialmente muito diferenciados. Corre-se hoje o risco de falarmos em “Brasil”, tomando como dados para análise, simples médias estatísticas nacionais, que

6 Sobre os efeitos da urbani-zação do período, ver Cano (2011).

7 Para este tópico, no que tange à questão regional no período 1980-2003, usei lar-gamente a pesquisa que fiz para o período 1970-2003, editada em Cano (2008). Por isso, poupei o leitor com reduzido número de notas de rodapé.

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encobrem movimentos e determinações espaciais muito mais diversos do que os que se observavam antes de 1980.

Como primeiro ponto para essa Agenda de Pesquisa, cabe estabelecer uma perio-dização, de caráter nacional, que distinga as grandes linhas do período e suas maiores modificações. Assim, o período como um todo será seccionado em três: o da década de 1980; o do período 1989-2003 e o de 2003-2010. Vejamos os principais fatos marcantes de cada subperíodo.

1980-1989: A “Década Perdida”

A crise, que vinha desde 1976, se agrava a partir de 1979, devido à brutal elevação internacional dos juros, tornando a dívida externa impagável, desestruturando as finanças públicas, desencadeando um processo inflacionário e de estagnação. A crise só não foi pior graças à forte expansão das exportações, que cresceram 71% entre 1980 e 1989, em que pese a queda dos preços internacionais de produtos básicos.

A recessão conteve as importações, que cresceram apenas 24%, com o que geramos na década, US$97 bilhões de saldos comerciais, incapazes, contudo – frente ao que remetemos de juros (US$87 bilhões) além de outros pagamentos –, de evitar o aumento da dívida externa, a qual, entre o início e o fim da década saltou de 64 para 115 bilhões de dólares.

O elevado impacto orçamentário dos juros da dívida pública contaminou também os governos subnacionais, que exacerbaram suas dívidas e também sofreriam os percalços de-correntes de seu crescente serviço. Esse forte desequilíbrio financeiro do estado restringiu suas ações no plano nacional e regional debilitando não só o gasto público, mas também o investimento privado, notadamente o industrial, atingindo, principalmente, o núcleo da dinâmica industrial – o parque produtivo de São Paulo –, que estagnou, diminuindo os efeitos dinâmicos para a desconcentração industrial regional.

O crescimento médio anual do PIB foi medíocre, tanto para o Brasil (2,2%) como para São Paulo (1,5%). O setor agropecuário continuou obtendo taxas (3,2%) de cres-cimento em torno de sua trajetória anterior, graças ao programa energético do álcool de cana e à expansão das exportações agrícolas e agroindustriais, em parte decorrentes da expansão da fronteira no CO.

A indústria de transformação, o setor antes mais dinâmico, teve desempenho ainda pior, pífio, de 0,9% para o Brasil e ainda mais baixo para SP (0,2%), sendo de 1,6% para o agregado Brasil-SP. A continuidade da diversificação industrial parou, com sua estrutura regredindo, pois os segmentos de bens de produção e de consumo durável foram mais afetados do que os de bens de consumo não durável. Demos um passo atrás na evolução industrial, em um período em que o capitalismo mundial acelerava sua reestruturação produtiva.

A crise industrial só não foi pior graças aos segmentos mais vinculados às exportações agroindustriais, minerais e de insumos básicos, além dos vinculados à questão energética, como álcool de cana-de-açúcar e petróleo, este decorrente da forte expansão da extração na Bacia de Campos, no RJ.

A desconcentração industrial prosseguiu, com SP perdendo 3,2 pontos percentuais na produção nacional do setor. Adverte-se, porém, que se no período 1980-1985, a par-ticipação paulista caiu de 53,4% para 51,9% isso se deu mais porque a taxa negativa de crescimento de SP foi maior do que a do Brasil. Em 1989 a participação cairia um pouco mais, para 50,2%, não por um crescimento satisfatório da periferia, mas sim porque a

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taxa positiva de crescimento de SP foi medíocre, e abaixo da reles taxa verificada para o conjunto do país. Desconcentração espacial, em tempo de crise profunda, tem sentido muito diverso da que ocorre quando se dá crescimento normal ou alto. No período, ela foi espúria, um resultado meramente estatístico.

Até mesmo o setor de serviços cresceu pouco (médias anuais de 3,1% para o Brasil e 2,2% para SP) e sua expansão nesse período decorre não só da continuidade da des-concentração dos outros setores produtivos. Uma explicação para isso é a de que o êxodo rural cresceu muito, diminuindo a população rural, entre 1980 e 1991, em 2,8 milhões de habitantes. Mas o fraco desempenho industrial fez com que seu emprego aumentasse apenas 19%, enquanto a população urbana aumentava 38%, pressionando pelo aumento da oferta de vários serviços.

O Censo de 1991 mostra que a diferença entre a PEA total e a ocupada atingiu 3,2 milhões de pessoas, cifra muito acima da verificada pelo Censo de 1980, no qual a não ocupação era de 964 mil pessoas. Assim, além do aumento da desocupação aberta, também aumentou o desemprego urbano oculto. A “válvula de escape” foi, como de costume, o emprego do terciário, que passou de 18,8 milhões em 1980 para 29,7 milhões em 1991, já dando mostras de precarização do mercado de trabalho e expansão da economia informal.

O setor de serviços, entre 1980 e 1991, foi responsável por 83% do aumento do emprego, gerando 10,9 milhões de novas ocupações, das quais sobressaíam 1,2 milhões de empregados domésticos remunerados e 1,7 milhões de outros empregos com predomínio de autônomos e outros serviços precários e forte queda do rendimento médio do trabalhador.

A crise afetou profundamente o fluxo migratório inter-regional: a média anual entre os Censos de 1980 e 1991 diminuiu 40% em relação à da década de 1970 e as entradas médias em SP sofreram queda de 65%. O que atenuou esse movimento foi a continuida-de da expansão da fronteira agrícola no NO e CO, o melhor desempenho da agricultura nordestina e a forte expansão urbana ocorrida nessas três regiões.

A taxa média anual (1980-1991) do crescimento populacional caiu ainda mais, dos 2,48% da década anterior para 1,93%, mas as regiões NO e CO-DF apresentavam taxas pouco acima de 3%, graças à atração da fronteira agropecuária. A da população urbana também caiu de 4,44% para 2,97%, em proporção similar nas demais regiões, salvo no NO (5,4%) e no CO-DF (4,8%). Mesmo assim, a taxa de urbanização subiu expressiva-mente, de 67,3% para 75,6%, com um grande diferencial entre o NO e NE (com cerca de 60%) e SP, RJ e DF (acima de 93%).

O número de cidades acima de um milhão de habitantes passou de 10 para 12 (com a inclusão de Belém e Manaus), enquanto o das acima de 500.000 e abaixo de um milhão passaram de 8 para 13 (das quais 6 fora de SP e RJ), e as de mais de 250.000 e menos de 500.000, de 24 para 40 (das quais, 23 fora de SP e RJ).

Período 1989-2003

Na década de 1990, o receituário neoliberal implicou na submissão consentida

dos países subdesenvolvidos à Nova Ordem, representada pelos preceitos contidos no chamado Consenso de Washington, com o que abdicamos de nossa soberania nacional, no desenho, implementação e manejo da política econômica.8

Esse Consenso está assentado para atender a duas ordens de questões: a financeira e a produtiva. A primeira, dada a crise financeira internacional, que explicitou a supremacia do capital financeiro (financeirização da economia) sobre as outras formas de capital,

8 Para uma descrição des-sas reformas e a análise de seus efeitos na América Latina e Brasil, ver Cano (2000), que apresenta, inclu-sive ampla bibliografia sobre o tema nessa região.

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impondo a quebra da soberania nacional de nossos países, para liberar seu movimento internacional na busca incessante da valorização. A segunda, da reestruturação produtiva e comercial feita pelas grandes empresas transnacionais (ETs), em suas bases localizadas nos países desenvolvidos, que também exigiria, na década de 1990, reestruturações seme-lhantes em suas bases localizadas nos subdesenvolvidos. Isto foi reforçado pela voracidade do capital estrangeiro na compra de empresas públicas e privadas nacionais, debilitando ainda mais nossa já precária soberania nacional.

Destas duas ordens derivaram os objetivos para impor um conjunto de reformas institucionais liberais, que constituem um todo articulado para permitir a funcionalidade do modelo neoliberal. Elas, resumidamente, compreendem:• desregulamentação dos fluxos financeiros internacionais, para adequar nossa economia

aos interesses do capital financeiro internacional;• a reforma do sistema financeiro nacional para compatibilizá-lo com o sistema inter-

nacional;• a abertura comercial, potenciada pela grande valorização do câmbio, reduziu fortemen-

te os custos dos importados, debilitou as exportações, e gerou grandes deficits comer-ciais e de serviços. Constituiu ainda forte apoio à política anti-inflacionária;

• flexibilização das relações trabalho-capital, para diminuir ainda mais o custo do tra-balho, adequar contratos ao novo timing da tecnologia e debilitar estruturas sindicais;

• reformas previdenciárias, para criar mais um importante segmento para o mercado financeiro e abrir maior espaço no orçamento público para os juros das dívidas públicas interna e externa;

• reforma do estado nacional, para desmantelar suas estruturas, diminuir seu tamanho e sua ação, eliminar vários órgãos públicos, dispensar funcionários e reduzir seus salá-rios reais, privatizar ativos públicos9 e desmantelar os sistemas de planejamento e de regulamentação;

• os estados subnacionais (governos estaduais e prefeituras) que também estavam com sua fiscalidade debilitada e fortemente endividados, foram obrigados a negociar suas dívidas com o governo federal, entre 1996 e 1998, comprometendo por 30 anos parte de suas receitas com o pagamento compulsório de amortizações e juros, reduzindo fortemente suas capacidades de gasto, em especial de investimentos.

Esse quadro foi complementado pela nova política de estabilização, implantada en-tre fins de 1993 e junho de 1994, bem-sucedida, mas que teve como lastro uma elevada valorização da moeda nacional ante o dólar e um ciclópico crescimento da dívida pública interna, inflada por elevados juros reais.

Ocorre que a dinâmica de funcionamento desse novo “modelo”, à medida que o PIB cresce, aumenta aceleradamente as importações e outros gastos externos, exigindo altos, crescentes e persistentes fluxos de capital estrangeiro, forte aumento das dívidas externa e interna, contaminando as contas públicas, dados os elevados juros.10

É fato que houve importante entrada de capitais como Investimento Direto Estran-geiro (IDE), mas a maior fração dele destinou-se a comprar empresas públicas e privadas nacionais, predominantemente na área de serviços (distribuição de energia, transportes, telecomunicações, instituições financeiras etc.). Com isso, tais empresas passaram a re-meter juros e lucros ao exterior, tornando-se consumidoras líquidas de divisas e o país ampliou sobremodo seus gastos com serviços importados.

Contudo, a provável deterioração do balanço de pagamentos e das contas públicas, sensibiliza as finanças internacionais, freando a entrada de capital, e com isso gerando uma

9 Várias antigas estatais – como a Companhia Vale do Rio Doce – tinham positiva ação sobre diversas partes do território nacional, agindo muitas vezes como verdadei-ros agentes de desenvolvi-mento regional. Com a priva-tização essas atitudes foram sumariamente reduzidas.

10 O gasto com juros pas-sou a ser de cerca de 8% a 9% do PIB, estrangulando as finanças públicas e res-tringindo o crédito ao setor privado, que se reduziu, até 2003, a um volume em torno de apenas 22% do PIB.

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crise cambial e uma recessão.11 Com isto, o câmbio se desvaloriza, as importações se con-traem e as exportações crescem. Porém, a taxa de crescimento do PIB cai, só retomando patamares mais altos, quando a “festa” de gastos internacionais pôde ser reiniciada.

Dessa forma, o crescimento só pode ser ciclotímico e baixo, resultando em uma taxa média anual tão medíocre quanto a observada na década anterior: entre 1989 e 2003 a taxa do PIB foi 2,3% para o Brasil e 1,5% para SP. O investimento despencou, de cerca de 25% no final da década de 1970, para cerca de 18%: 1) o público, porque não há nem política de desenvolvimento, nem, muito menos, recursos no orçamento público; 2) o privado, dada a incerteza do movimento da economia e os elevados juros internos. Também a estrutura do investimento mudou com predomínio do setor de serviços e de construção civil, e em detrimento da indústria.

A estrutura produtiva também mostra fortes danos: diminuiu o peso da indústria de transformação, que cai, para o Brasil, de 30,8% em 1989 para 18,1% e em SP de 40,9% para 35,0%; a agropecuária passaria, para o Brasil, de 9,1% para 7,4% (em SP, subiria de 3,5% para 7,7%); o setor de serviços aumentaria, no Brasil, de 50,3% para 64,8% e em SP, de 48,2% para 48,5%.12

Assim, as restrições externas e internas ao crescimento foram aumentando ao longo do período inibindo o investimento, pelas razões já apontadas. É preciso também lembrar que a crescente contaminação dos juros no orçamento público leva a novos e crescentes cortes do gasto corrente, inclusive em áreas sociais.

Ainda assim, após 1999, graças à desvalorização cambial e ao início do “efeito China” as exportações (principalmente de commodities) cresceram mais e as importações se contra-íram, fazendo com que exportações e consumo liderassem o pífio crescimento do período.

Vale notar que em 2003, a despeito da negociação e em que pese o elevado com-prometimento compulsório (de 9% a 13%) da receita corrente líquida, dos 27 estados, a relação dívida líquida/receita líquida corrente era pouco menor que 1 em apenas três deles. No entanto, em quinze deles, ela era superior a 1 e em oito, superior a 2, mostrando a enorme dificuldade de sua liquidação na maioria das unidades federadas.

A QUESTÃO REGIONAL NO PERÍODO

O período foi fértil em discussões sobre a questão regional brasileira, em especial frente às vicissitudes da crise do Estado, da globalização e dos efeitos das políticas neoli-berais.13 Com a deterioração fiscal e financeira dos entes públicos subnacionais, os investi-mentos públicos estaduais e municipais também caíram. Com a crise federal, feneceram as políticas nacionais e regionais de desenvolvimento, crescendo então a famigerada Guerra Fiscal envolvendo praticamente todas as UFs e muitos municípios de um mesmo estado, com intuito de atrair investimentos de uma área para outra.14 Lembremos, porém, que a Guerra Fiscal já se inicia em fins da década de 1970, sendo seus dois mais notáveis casos a transferência de grande parte da produção de aparelhos de “som e imagem” para a Zona Franca de Manaus (ZFM) e da implantação da Fiat em Minas Gerais.

Ao longo desse processo, aumentou também a deterioração técnica, política e econô-mica dos órgãos regionais de fomento (Sudam e Sudene) que acabaram por ser extintos em 2001 e só recriados em 2007, porém em bases precárias.

Abandonando a opção de uma verdadeira Política de Desenvolvimento Regional, o governo federal criou em 1995, a política dos Grandes Eixos,15 os quais seriam vetores

11 De 1995 a 2002, o de-ficit em transações corren-tes acumulou a fantástica cifra de US$199 bilhões; nossa dívida externa saltou de US$150 bilhões para US$235 bilhões e nosso passivo externo atingiu cer-ca de US$400 bilhões. Isso nos levou às crises cambiais de 1999 e 2003.

12 Os dados de SP são os das Contas Regionais, na base de 1985. Se mudadas para a nova metodologia com a base em 2002, as cifras resultantes para 2003 são simplesmente incompre-ensíveis, principalmente a da agropecuária, que passa a ser de apenas 2,2%, enquan-to a da indústria de transfor-mação passava a 23,9% e os serviços a 65,9%.

13 Entre os principais tra-balhos publicados sobre o assunto, cabe citar: Affonso e Silva (1995), Araújo (1999 e 2000), Cano (2007b) e Diniz (2005). Nos aspectos da inovação frente à questão regional, Galvão (2004) faz uma profícua discussão so-bre as políticas regionais da União Europeia.

14 Sobre a Guerra Fiscal, ver Cavalcanti e Prado (1998) e Silva (2001); e prin-cipalmente a pesquisa mais atual, a tese de doutorado de Cardoso (2010).

15 Para uma crítica à polí-tica dos Grandes Eixos, ver Galvão e Brandão (2003). Para a questão do Poder Local, ver Brandão (2003).

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ligando zonas produtivas a portos de exportação, e receberiam grandes investimentos para aumentar a eficiência e competitividade exportadora. Contudo, eles apenas ligariam pontos de origem-destino, e pouco ou nada fariam em prol dos maiores espaços regionais em que estivessem inseridos, e nem tratavam dos problemas urbanos e sociais das cidades maiores por eles envolvidas. Mais de dois terços desses investimentos viriam do setor pri-vado, mas, dados os juros escorchantes e a incerteza pelo pífio crescimento, “ficaram ao largo”, retardados e aguardando dias melhores.

Esse esvaziamento das políticas e dos recursos para o desenvolvimento regional deu azo à disseminação, junto à Academia e aos órgãos públicos que tratam da matéria, “novas e modernas” ideias, como as do poder local, da região (ou cidade) competitiva, submetendo-se a verdadeiros leilões de localização industrial promovidos por empresas de grande porte (geralmente transnacionais), transferindo dinheiro de pobres para milionários, e fomentando a localização pelo subsídio e pelo trabalho periférico ainda mais precarizado e mais barato. Cabe acrescentar que, nesse movimento, as antigas ideias de planejamen-to e desenvolvimento foram substituídas pelas políticas dos APLs (Arranjos Produtivos Locais), nome inventado no Brasil, para substituir, com fragilidade, os de cluster ou dos verdadeiros distritos industriais.

No que se refere aos recursos públicos constitucionais, eles foram restaurados pela Constituição de 1988 (A 159), porém em outros níveis:16 3% não sobre a arrecadação total, como antes, mas apenas sobre o Imposto de Renda (IR) e Imposto de Produtos In-dustrializados (IPI); criou, para isso, Fundos Constitucionais para as três regiões beneficia-das: Fundo Constitucional de Financiamento do Centro-Oeste (FCO), com 0,6%, Fundo Constitucional de Financiamento do Norte (FNO) com 0,6% e Fundo Constitucional de Financiamento do Nordeste (FNE) com 1,8%.17 Essas dotações representavam muito pouco, se comparadas com os respectivos PIBs regionais: em 2003, equivaliam a 0,5% pa-ra o CO e 0,8% para o NO e para o NE. Se tivesse sido mantido o que dizia a Constituição de 1946, essas cifras seriam muito maiores, de 11,2% para o NO e de 5,4% para o NE.

Quanto aos incentivos fiscais, que consistem em isenções parciais de imposto de renda, para aplicação em investimentos privados regionais aprovados pela Sudene ou pela Sudam, exigiam uma contraparte de recursos pelo investidor privado. Esse subsídio perfa-zia cerca de 40% do investimento entre 1965 e 1970, baixando depois para cerca de 25%. Para o NO, os incentivos representaram cerca de 5,7% do PIB médio regional do período 1963-1970, caindo para 4,8% na média de 1971-1975. Para o NE, embora os valores absolutos tivessem sido em média o dobro dos alocados na região NO, as cifras represen-taram apenas 2,1% do PIB do NE para o período 1965-1970 e 1,8% para 1971-1975.

Além disso, os percentuais de incentivos foram sendo reduzidos, tanto em termos de captação quanto de aplicação, com o que em 2000 seus repasses representavam, em termos dos PIBs regionais, tão somente 1,2% para o NO e 0,3% para o NE.18 Em 1997 pela Lei 9532, os fundos de incentivos fiscais (Finam e Finor) tiveram sua permanência limitada ao ano de 2013, com redução gradativa dos percentuais do incentivo.

Em 2001, foram criados dois novos Fundos de Desenvolvimento Regional (não substitutivos dos existentes), o FDA e o FDNE, com recursos orçamentários que comple-mentariam os demais fundos. Contudo, o FDA só começou a operar em 2007 e o FDNE em 2009. O montante de recursos liberados em 2007 e 2008 para o FDA representou tão somente 0,28% e 0,16% do PIB regional, e as cifras de 2009 e 2010 foram ainda mais baixas. Para o FDNE, em 2009 e 2010 as cifras são também baixas e representariam algo como 0,07% e 0,33% do PIB do NE. Essa demora decorreu de problemas burocráticos,

16 Eles foram suspensos pelas Constituições de 1937 e de 1967, ambas em pe-ríodos ditatoriais, que além disso recentralizaram na União a maior parte da recei-ta fiscal do país.

17 Além da criação desses Fundos, foi também incluída na Carta, a obrigatoriedade da distribuição regionalizada dos recursos alocados no Plano Plurianual de Investi-mentos.

18 Ver legislação específica nos sites da Receita Federal (IR) e do Ministério da Inte-gração Nacional. Da ampla bibliografia sobre a matéria, ver: Bercovici (2003), Carva-lho (2001), Mahar (1978) e PIMES (1984, v. 3).

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de alto custo de seus financiamentos e dos drásticos contingenciamentos e cortes orça-mentários, em parte hoje atenuados.

Entretanto, a diminuição dos prazos, dos percentuais e dos recursos desses fundos foi em parte compensada graças às alterações constitucionais que reverteram parte da con-centração fiscal exercida pela União. Na década de 1970, dos recursos fiscais, deduzidas e somadas as transferências intergovernamentais, a União ficava com 69%, os estados com 22% e os municípios com 9%; ao final da década de 1990, as cifras respectivas eram de cerca de 56%, 27% e 17%. Mas boa parte desse acréscimo aos entes subnacionais consiste em recursos vinculados (notadamente para a saúde e educação) e mais de caráter corrente e redistributivo que, se bem sejam sumamente necessários, limitam a capacidade de investimento.

Em termos regionais, o NO, que tinha receitas próprias mais transferências federais líquidas de cerca de 21% de seu PIB em 1970, e que havia baixado para 8% em 1980, obteria 18% em 2000; o NE, nas mesmas datas, passou de 11%, para 8% e saltou para 22% e o CO, de 30%, para 16% e para 21%. O Sul e o Sudeste são regiões perdedoras líquidas, redistribuindo frações elevadas de suas rendas tributárias paras as demais. Entre seus estados, SP é o campeão das perdas, com -17% em 1970, -11% em 1980 e -14% em 2000.19 Contudo, a reformulação das dividas estaduais e municipais, imposta pelo governo federal a partir de 1995, comprometeu cerca de 13% da receita líquida corrente dos entes endividados, fazendo com que, mesmo as regiões ganhadoras tivessem dimi-nuído seus ganhos, e as perdedoras aumentado suas perdas, com o pagamento anual de amortizações e juros: o NO, que em 2000 recebera 17,7% do equivalente de seu PIB, tem a cifra reduzida para 16,4%; o NE, de 22,2% para 20,5%; o CO, de 21% para 19,9%; SP, de -14,3% para -15,2%.20

Há um complexo conjunto de fatos e ações que permitiram a continuidade da desconcentração produtiva regional, como as políticas de incentivo às exportações, nota-damente de commodities agropecuárias, agroindustriais e minerais; à Guerra Fiscal, princi-palmente em termos da indústria de transformação; a execução de alguns investimentos de infraestrutura descentralizados; e os efeitos estatísticos da desconcentração industrial espú-ria, de que já tratei. Os resultados mais flagrantes desse processo foram, resumidamente:• emtermosdePIB total, embora todas as Unidades Federativas tenham tido taxas mé-

dias anuais positivas, o RJ (1,2%) foi o maior perdedor, seguido por SP (1,5%); NE, MG e RS (os três com 2,2%) cresceram pouco abaixo da média nacional e os demais estados acima, com as maiores taxas no NO, MS e MT (os três em torno de 5%);

• naindústriaextrativamineral,porsuaespecificidade,sócabeapontarosgrandesga-nhadores: com petróleo, o RJ, NE e ES ou com minérios metálicos, o NO;

• naagropecuária,oSudesteperdepontos,principalmente,maisparaoNO e CO-DF e um pouco para o Sul;

• naindústriadetransformação,emboratodoscrescessem,sóperderamparticipaçãonototal nacional, PE, RJ e SP (a maior perda: cai de 50% para 41%). A dinâmica expor-tadora fez com que MG e ES transformassem suas estruturas produtivas predominan-temente na produção de commodities industriais;

• nos serviços, tantoadesconcentraçãoprodutivamaterialquantoa crescenteurbani-zação, somente RJ e SP perdem alguns pontos. Pela óptica da renda, a diversificação estrutural do setor continuou, diminuindo o peso dos segmentos mais tradicionais, como o comércio e domésticos remunerados. Contudo, pela óptica do emprego, estes segmentos estão entre os que mais cresceram, e a queda de seus pesos se deve à grande

19 Essas cifras e informa-ções estão na Tese Doutoral de Monteiro Neto (2005, cap. 3). Ver ainda, Afonso e Varsano (2004) e Prado (2003). Sobre o endivida-mento estadual ver Lopreato (2002), Pinto, Cintra e Ca-valcanti (2006) e Cavalcanti, Novais e Bonini (2007).

20 Ver o citado trabalho de Monteiro Neto (2005).

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precarização do trabalho no período e ao rebaixamento dos salários ocorridos nesses segmentos. Aliás, o Brasil ostenta hoje uma das mais altas taxas de participação do em-prego doméstico no total da PEA não agrícola, de 9,8% mas uma taxa de participação na renda não agrícola, de irrisórios 0,57%!

Seria de esperar um aumento da desconcentração produtiva agropecuária e da mi-neração, dada a expansão territorial do uso de recursos naturais para aquela produção, notadamente no NO e no CO-DF. Isto e mais a expansão territorial da urbanização, fez também com que houvesse uma importante desconcentração dos serviços, pelo menos dos mais comuns.

Contudo, no caso da indústria de transformação, a Guerra Fiscal, a abertura co-mercial e a valorização cambial enfraqueceram sobremodo a articulação da periferia com SP, a despeito de que se criaram fluxos de comércio de insumos produzidos em SP, para fornecimento às plantas desconcentradas. Mas também foram criados fluxos que subs-tituíram a produção nacional (antes concentrada em SP) por importações, ampliando a quebra de cadeias produtivas e debilitando importantes segmentos da indústria paulista, notadamente nos setores automobilístico e no eletrônico.21

Esses fatos levaram alguns autores, em meados da década de 1990, a formularem a hipótese de que estaria ocorrendo uma fragmentação da economia nacional tanto pela quebra de alguns encadeamentos industriais intrassetoriais e intrarregionais, como pela so-bredeterminação que as novas exportações causavam a grande parte da periferia nacional.22 Seria desnecessário dizer que a fragmentação, se continuada e aprofundada, causaria, a longo prazo, um sério debilitamento na ordenação do desenvolvimento nacional e regio-nal do país, constrangendo, inclusive, suas tomadas de decisões. Voltarei a esse assunto no tópico referente ao período posterior a 2003.

A QUESTÃO URBANA NO PERÍODO

Entre 1991 e 2000, os Censos Demográficos mostram que a população cresceu à média anual de 1,6%, menor do que a anterior, com o que o crescimento da renda média por habitante (0,8%) só não foi pior do que o da década anterior. Em SP, (cuja taxa demográfica caiu de 2,1% para 1,8%), o crescimento da renda por habitante, que foi negativo no primeiro período passou a ser nulo no segundo. As taxas demográficas do NO (2,8%) e do CO-DF (2,3%) continuaram sendo as mais altas, contendo assim parte do crescimento de suas rendas médias por habitante.

As diferenças regionais de renda por habitante diminuíram, mas há que repetir a forte influência da queda do crescimento demográfico regional, diferenciado, e do desem-penho econômico pior de vários estados, como mostrei acima. Como a taxa demográfica do NE (1,3%) foi ainda menor do que a do país, sua renda média ganhou alguns pontos, atingindo o nível equivalente a 47% da renda média nacional.

Enfim, os dados mostram que o tema da convergência/divergência em termos regio-nais, não pode ser analisado apenas pelos dados da renda média, salvo quando a economia cresce vigorosamente por todo o território nacional, e não como tem ocorrido nestas últimas décadas de crise.

Quanto ao movimento migratório inter-regional, analisado entre 1991 e 2000, seus dados são muito preocupantes. O fluxo do período somou 4 milhões de pessoas, média anual 66% maior do que no período anterior. Por outro lado:

21 Os absurdos incentivos recentemente criados para desconcentrar espacial -mente a indústria automo-bilística são exemplo disso. Essas plantas montadoras foram beneficiadas pelas Leis 9440/97 e 9826/99 que concediam isenção de impostos federais ao setor. Entre os casos mais conhe-cidos, instalaram-se, entre 1998 e 2002, as seguintes plantas: Ford na BA; GM no RS; Mitsubishi em GO; Mer-cedes-Benz em MG; Peugeot- Citroen no RJ; e Peugeot, Renault, Audi e Volvo no PR.

22 As principais discussões sobre o tema são as de Pacheco (1998, cap. 5) e Guimarães Neto (1997).

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• para a região NO rumaram apenas 255 mil, o que causou surpresa, contra 832 mil do período anterior, e suas saídas aumentaram 50%, ameaçando converter a região, de receptora em expulsora;

• no CO-DF, entraram 507 mil contra 636 mil no período anterior e suas saídas cres-ceram 10%;

• para SP, que se pensava como uma área que não permitiria maiores fluxos entraram 1,7 milhão, cuja média anual é o dobro da verificada no período anterior;

• o NE continuou a ser o maior expulsador, dele emigrando 2,3 milhões, 1,3 milhões para SP, 246 mil para o NO e 232 mil para o CO-DF;

• o PR continuou a “limpeza” de seu campo, expulsando mais 232 mil pessoas e MG 126 mil.

Resultou assim que ao final do período, praticamente apenas SP – com todos os seus graves problemas urbanos e sociais – permanecia como o grande receptor da migração na-cional, e as demais regiões (além do NO e CO) ou se tornaram expulsadoras ou reduziram drasticamente suas capacidades de recepção.

Enquanto a população rural diminuía (de 35,8 milhões para 31,9 milhões), a urbana crescia à media anual de 2,44% abaixo da taxa da década anterior (2,97%). Cresceram abaixo da média nacional: SP, RJ, RS, RN, PB e PE; o NO teve a mais alta (4,8%), seguido pelo CO-DF (3,2%). Desconcentração produtiva, expansão da fronteira agro-mineral e fluxos migratórios ampliaram e desconcentraram a urbanização. A taxa de urbanização do Brasil passou a 81,2%, sendo as do NO e NE as menores, pouco acima de 69% e SP, RJ e DF as maiores, acima de 93%. A do CO-DF foi a quarta maior (84,8%), resultado da transformação de sua moderna agropecuária e da agroindustrialização.

A PEA total cresceu à média anual de 2,98% mas a PEA ocupada só de 1,92%, mostrando cerca de 12 milhões de pessoas desocupadas. A PEA agrícola diminuiu de 12 milhões para 11,8 milhões e a não agrícola, aumentou de 43,3 milhões para 53,9 milhões.

Dados da PEA mostram a grave situação do emprego.23 Os censos de 1991 e 2000 mostram forte redução de 30% na PEA agrícola ocupada do Brasil; no NO e CO-DF, as reduções respectivas foram de 22% e 20%, em que pese o forte aumento de seus PIBs agrícolas (32%) e de suas áreas plantadas (53%). É óbvio que os efeitos mais perversos dis-so atingem mais os trabalhadores de baixa renda. Trabalho recente, abarcando as PNADs de 1999 a 2003, mostra a continuidade do fenômeno: forte aumento da área plantada e redução do emprego em 5,5%.24 É ainda mais grave que a proporção dos trabalhadores rurais sem remuneração (mais de 15 horas semanais trabalhadas) na PEA, só diminuiu um pouco para o agregado Brasil (de 3,2% para 3,1%), no Sul e CO-DF, aumentando nas demais regiões. Em termos absolutos, essa categoria só diminuiu em SP e no Sul.

Na indústria não foi melhor: a criação de 575 mil empregos na construção civil não pode compensar os 1.109 mil desempregados nos outros setores industriais, restringindo-se a criação de empregos urbanos praticamente ao setor de serviços. Porém, o que cresceu mais no urbano foi o grupo dos sem remuneração (mais de 15 horas semanais trabalhadas), em todas as regiões, crescendo 166% no Brasil; em segundo, o de empregado doméstico re-munerado, com 36% e em terceiro os autônomos (onde predomina o trabalho precarizado e informal) com 19%. Se “tudo ou mais ficasse constante”, a situação dos trabalhadores de baixa renda teria piorado, em consequência do forte aumento da informalidade e pre-carização no trabalho urbano.

Mas os números mascaram um mero efeito estatístico de “melhoria distributiva”, uma vez que grande parte desses novos empregos está na verdade substituindo outros

23 Estou usando os dados da chamada PEA restrita, ou seja, estimada pela mes-ma metodologia do Censo de 1991, dado que a PEA, na metodologia do Censo de 2000, não é diretamen-te comparável à de 1991. Os dados foram gentilmen-te cedidos por meu colega professor Cláudio Dedecca. Para essa discussão me-todológica. ver Dedecca e Rosandiski (2003).

24 O texto é o de Balsadi (2005). Ver também Belik e outros (2003).

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tipos de trabalho (menos precários), anteriormente exercidos por essas pessoas, nos quais seus rendimentos eram maiores. Baltar, em trabalho recente, já havia mostrado isso, analisando as PNADs de 1989 e 1999. Nele se vê que os aumentos mais expressivos no mercado de trabalho urbano foram os mais precarizados e informais, notadamente de emprego domiciliar, limpeza, segurança e serviços auxiliares. O emprego urbano, naquele período, cresceu apenas 16,8% ao passo que o dos autônomos aumentou 42,3% e dos domésticos 37,7%.

O DIEESE confirma esses fatos. Entre 1991 e 2000, para a RMSP, a taxa de desem-prego aberto saltou de 7,9% para 11% e a do desemprego total de 11,7% para 17,6%. O rendimento real médio anual do total dos trabalhadores assalariados do setor privado caiu 26,2%, o dos com carteira assinada caiu 25,3% mas o dos sem carteira caiu apenas 2,1%. Esta última cifra esconde o citado “efeito estatístico de melhoria”, que pode ser melhor observado na relação entre o rendimento médio dos sem carteira e o dos com carteira assinada: era de 48,4% em 1991, subindo para 70,7% em 2000. Em que pese isso, entre 1980 e 2000, o número de famílias ricas no Estado de São Paulo passou de 192 mil para 674 mil, ou 58% do total nacional. Só na cidade de São Paulo residem 40% do total estadual. Isso se deve, em grande medida, ao rentismo que crassa nas famílias de alta renda no Brasil.25

Como essa dinâmica afetou mais seriamente RJ e SP, e dada a situação prévia em que se encontrava o problema social nessas áreas, não é difícil entender as razões básicas que explicam o extraordinário aumento da violência nesses dois estados, agora já não mais radicada apenas em suas duas maiores cidades, mas já espraiada em quase todas as cidades de médio e grande porte do país. Entre 1985 e 2005, o emprego formal ligado à segurança pessoal e pública na cidade de São Paulo passou de 95,6 mil pessoas para 446 mil, ou seja, 366% de aumento, enquanto o dos professores aumentou apenas 38%. Na cidade do Rio de Janeiro, os números passaram de 67,8 mil pessoas para 245 mil, ou 270% de aumento.26

Por tamanho de cidade, as maiores de 1 milhão de habitantes incorporam Guarulhos (SP), passando a 13 e as maiores de 500 mil e menores de 1 milhão passam de 13 a 18, das quais faziam parte 6 do NE, 6 de SP e 3 do RJ. As cidades médias, que já vinham crescendo mais do que as RMs na década anterior, continuaram a fazê-lo, assimilando não só os efeitos positivos da expansão urbana, mas, principalmente, os nocivos: conurbação, periferização, favelização; insuficiência de recursos públicos, insegurança, degradação ambiental e outros males.27

O Período 2003-2010

Neste tópico, as principais questões macroeconômicas nacionais serão tratadas mais resumidamente do que nos anteriores. Os temas da questão regional e da urbanização, por terem sido muito menos pesquisados, serão aqui apontados em suas linhas muito gerais, e deverão, portanto, receber atenção mais detalhada nas proposições que faço para a pesquisa.

Nos dois mandatos do governo Lula, as linhas mais gerais da política macroeconô-mica seguiram praticamente a mesma orientação neoliberal do governo anterior: câmbio valorizado, abertura comercial, maior desregulamentação financeira, juros reais elevados, superávit fiscal primário, investimento público baixo e crédito (menos) contido.

No segundo mandato houve um abrandamento do crédito: seu provimento ao setor privado passou de 25% para cerca de 45% do PIB; aumento de prazos de financiamento

25 Cf. Pochmann (2006).

26 Dados contidos em ma-téria do jornalista Fernando Dantas, publicada no Estado de São Paulo, em 9-4-2007, Caderno Metrópole.

27 Sobre o tema das cida-des médias, ver Andrade e Serra (2002).

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ao consumo e forte expansão dos limites do BNDES. As políticas sociais foram positivas, com o Bolsa Família e recuperação parcial do salário mínimo e das aposentadorias. Isto reativou o crescimento do consumo, mas a taxa de investimento, embora crescesse, os-cilou entre os 18%-19% do PIB. A partir de 2003-2004 os estímulos internacionais da elevada expansão da China (“efeito China”) e os decorrentes da aceleração da especulação financeira internacional elevaram sobremodo os preços de quase todas as commodities, beneficiando extraordinariamente nossas exportações primárias.

O dólar barato constrangeu as exportações de manufaturados e alargou o deficit comer-cial nesses bens, diminuindo nossa competitividade externa e a participação desses produtos na pauta exportadora. Esse debilitamento e mais a guerra fiscal entre as UFs, tem desestru-turado nosso parque industrial, avançando o processo de desindustrialização. A participação da indústria de transformação no PIB caiu ainda mais, atingindo 15,7% em 2010!

Ao mesmo tempo o forte aumento dos gastos externos pessoais e de remessas de em-presas privadas provocaram crescentes deficits em transações correntes. Dada a elevada taxa real de juros e a situação internacional, o buraco de nossas contas externas foi coberto por uma enxurrada de dólares, com grandes sobras, aumentando nossas reservas, diminuindo a dívida externa pública e criando a ilusão de que “nossa vulnerabilidade externa agora é baixa”. Os otimistas “esqueceram” de analisar com mais responsabilidade nossos passivos externos, e mais precisamente, os enormes investimentos externos em carteira. Pior ainda, que o dólar barato também estimula a saída de capital nacional, atitude que também tem sido apoiada pelo crédito do BNDES.

A crise internacional também nos pegou em 2008-2009, mas graças às políticas “anticíclicas” implementadas – principalmente as grandes isenções e os largos prazos de financiamento ao setor automobilístico e a expansão do crédito público para o setor habi-tacional –, nos recuperamos a partir de fins de 2009.

O crescimento médio anual (2003-2010) do PIB foi de 4,4%, graças às taxas mais altas da mineração (5,5%) e dos serviços (4,5%), dado que a agropecuária (2,2%) e a indústria de transformação (2,8%) sentiram mais os efeitos da crise. Ainda assim, a ex-pansão do consumo e das exportações primárias está criando a ilusão do crescimento, e da hipótese de que a situação excepcional do mercado internacional perdure a longo prazo. Chegamos, portanto, a um ponto de saturação desse modelo, mas “ninguém quer pôr o guizo no gato”, ou “tirar o bode da sala”.

A boa média anual do crescimento do PIB entre 2003 e 2010 (salvo 2009) suscitou no governo, nos economistas conservadores e nas elites, uma euforia, anunciando que a “recuperação dos fundamentos” – o deficit público, o do comércio exterior e o menor ní-vel de inflação –, nos levara ao crescimento “sustentado” (no sentido econômico, não no ambiental). Que não teríamos mais nosso conhecido “voo da galinha”. Recusam-se a ver que os “bons fundamentos” e os “maus e escorchantes juros” não recuperaram a estrutura e o volume dos investimentos – notadamente do industrial –, e que nos mantemos em crescimento, graças à excepcional situação do mercado internacional de commodities e à ameaça de quebra de certos “fundamentos”, como o crédito contido e o gasto social e do aumento do salário mínimo, do que às virtudes de nossa política econômica.

Não é preciso repisar os males sociais advindos da dinâmica do modelo neoliberal: aumento do desemprego, queda dos salários reais, corte dos gastos sociais e aumento da violência, hoje presentes em todas as nossas regiões e cidades. Assim, é inerente a essa dinâmica, a corrosão (e não o equilíbrio) dos chamados fundamentos da economia, que, fatalmente, a conduz a um desastre cambial e financeiro.

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Existem alternativas a esse modelo.28 Mas é preciso que se entenda que é impossível, imediatamente, fazermos a reestruturação produtiva e da infraestrutura, dada a enorme massa de recursos para isso exigidos. Assim, é preciso estabelecer prioridades nacionais; uma nova política de crescimento e um maior controle dos capitais e do comércio exterior, e um radical enfrentamento da questão social do país.

Para tanto, necessitamos de muito tempo para fazê-lo, e de muita negociação polí-tica. Acima de tudo, necessitamos reconstruir o estado e dotá-lo de recursos compatíveis, tanto para o saneamento estrutural fiscal quanto para a retomada do investimento públi-co. Somente em uma alternativa como esta é que se pode pensar seriamente no trinômio estabilidade, retomada do crescimento e resgate da dívida social. Somente com ela é que se pode repensar a questão regional e a urbana em termos produtivos e sociais.

A Questão Regional no Período

Em termos regionais, continuou a ausência de Políticas de Desenvolvimento Re-gional e os recursos públicos minguados, a despeito de que o principal órgão do desen-volvimento regional – o Ministério da Integração Nacional – tenha se empenhado desde 2004 na formulação de planos regionais de desenvolvimento, os quais, apesar de sua boa qualidade, não têm sustentação do contexto macro nacional, pela ausência de uma política nacional de desenvolvimento.29

Contrapondo-se a essa crescente omissão do Estado, aumentou em muito o efetivo poder político e econômico de grandes grupos privados, nacionais ou não, sobre alguns importantes espaços do território nacional, mormente no NO, CO-DF e em algumas par-tes do NE. Contudo, há que examinar o quanto suas ações se prendem fundamentalmente ao objetivo de lucro e quanto delas resulta em benefícios para o desenvolvimento da região em que atuam. O desmatamento do NO e do CO-DF, a precariedade do emprego urbano e disseminação de centros urbanos de baixo padrão de qualidade, se não superam os efei-tos positivos daquelas ações, é evidente que anulam boa parte deles.

Pelas Contas Regionais (CRs), o PIB do Brasil, entre 2003 e 2008 teria crescido à média anual de 4,5% e o de SP 5,1%. Contudo, as mesmas CRs mostram que a partici-pação de SP no total nacional cai de 33,8% para 32,0%. O mesmo ocorre na indústria de transformação, em que a taxa do país foi de 3,8% e a de SP 4,7%, caindo de novo – sem que se saiba a causa – a participação paulista, de 44,1% para 43,7%. Idêntico fato no setor de serviços, com as respectivas taxas de crescimento de 4,8% e 5,5%, mas caindo a participação paulista de 33,8% para 33,4%.

Um rápido exame das participações de cada região e Unidade da Federação (UF) no total nacional mostra muitas outras contradições ou dados surpreendentes, como por exemplo, o insignificante aumento da participação do CO-DF no PIB total (de 5,4% para 5,5%) e no da agropecuária (de 17,4% para 17,5%). Evidentemente há que examinar cuidadosamente as CRs, comparar as mudanças entre as metodologias 1985 e 2002 e compará-las com outras informações.

É evidente que a desconcentração produtiva continuou em todos os grandes seto-res: é a consolidação da fronteira agropecuária do NO e do CO-DF – e do aumento da ocupação dos cerrados da BA, PI e MA pelas commodities exportáveis, da consolidação da província mineral de Carajás, da grande expansão do petróleo no RJ, ES e RN. Mesmo porque a guerra fiscal continuou a funcionar a todo vapor. É preciso advertir que essa “nova economia” tem sido equivocadamente chamada de especializações regionais, quando

28 Em Cano (2010) apresen-to as linhas gerais do que seria um Projeto Alternativo para o Brasil, com o vetor principal do crescimento voltado para a distribuição de renda e de ativos e a ex-pansão do mercado interno, não descurando contudo de retomar a atualização tec-nológica imprescindível para recuperarmos e ampliarmos nossas exportações de ma-nufaturados.

29 Para uma síntese crítica desses Planos, ver Guima-rães (2006).

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na verdade se trata das conhecidas bases produtivas de recursos naturais. O termo especiali-zação em economia tem um sentido claro como algo que decorre de um aprofundamento da divisão social do trabalho, de algo não comum, como é uma commodity.

Por outro lado, precisamos entender que mesmo que venhamos a ter no futuro longos períodos de firme crescimento, a expansão da periferia estará atrelada, em grande medida, à região de São Paulo. Tanto porque não há sentido teórico nem prático em se pensar em uma “industrialização autônoma” para o resto do Brasil. A exceção a esse pro-cesso reside na “autonomia” regional ganha por algumas áreas do país, com a expansão de produção destinada a exportações (notadamente de commodities) e à produção energética, como o álcool de cana, o petróleo e a hidroeletricidade.

Contudo, à medida que o mercado interno cresça espacialmente e possa ser ampara-do por uma infraestrutura adequada e dissemine economias de escala e externas – ambas no sentido produtivo e tecnológico – para a industrialização, esta seguirá se desconcen-trando. Pistas para essas possibilidades podem e devem ser buscadas por meio da análise dos dados do comércio inter-regional e das estruturas produtivas regionais. Os últimos dados que pude acessar sobre esse comércio são para 1999 e eles mostram que suas expor-tações para o restante do país equivaliam a 45% do PIB paulista e as importações a 34%, afluxos que representavam o dobro de seus fluxos de comércio exterior.

Isto não elimina a necessidade de se discutir e implantar medidas específicas de crescimento ou que possam atenuar ou corrigir os desequilíbrios regionais e sociais mais gritantes existentes no país. É óbvio que esforços no sentido de alocação de projetos em outras áreas do país devem e podem ser feitos por meio de programas e projetos de im-pacto detalhados de forma “mais fina”. Os de recursos privados, contudo, em sua busca por maiores “vantagens locacionais”, ajudaram a aumentar a suicida “guerra fiscal” entre estados brasileiros, promovendo verdadeiros leilões de localização.

A desconcentração no sentido São Paulo para o restante do país, se mantida a política neoliberal, continuará tendo um alto componente espúrio, e padecerá, crescentemente, dos efeitos perversos que a desestruturação industrial está causando. Tais efeitos não só têm prejudicado ainda mais a economia paulista, como também afetam o parque indus-trial nacional, destruindo cadeias produtivas e inibindo economias de escala e externas.

A Questão Urbana no Período

A taxa de crescimento da população total caiu fortemente entre os períodos 1991-2000, quando foi 1,61% e o de 2000 e 2010, quando atingiu 1,18%. Redução ainda mais drástica deu-se na taxa de crescimento da população urbana, caiu de 2,44% para 1,57%. Enquanto nossa população rural diminuía em 2 milhões, a urbana crescia mais 23 milhões. A redução daquelas taxas se deu em todas as regiões e UFs, sendo as taxas mais altas, respectivamente a total e a urbana, as do NO (2% e 2,6%) e CO-DF (1,8% e 2,1%).

Por corte de tamanhos de cidades, Campinas-SP e São Luis-MA aumentam para 15 o número de cidades milionárias e o de cidades entre 500 mil e 1 milhão passa de 18 para 23, das quais estão 7 no NE e 6 em SP. Contudo, a expansão foi maior no número de cidades médias e pequenas, pelo fato de seu crescimento demográfico continuar a ser maior do que nas grandes, e ainda devido à criação de 58 municípios na década.

Cabe aqui repisar uma questão importante, mas que tem sido menos considerada nos estudos propositivos para as cidades médias e pequenas, em termos de políticas so-ciais. Não se pode esquecer que suas dinâmicas de crescimento e a forma que ele assume

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decorrem de suas inserções nas redes urbanas principais ou mais relevantes de que fazem parte. O que se pode ver nos dados existentes, é que as cidades de porte médio e grande têm assimilado os efeitos perversos das maiores e das RMs, muitas vezes sem assimilar seus principais efeitos positivos. Assim, o sentido dessas propostas de políticas públicas é parcial, aparentemente esquecendo que a massa maior daqueles problemas se encontra nas maiores.

A taxa de urbanização atingiu 84,4% para o Brasil, próxima à do Sul (84,9%). As do NO e NE subiram, de cerca de 69% para 73% tornando territorialmente menos con-centrado o processo de urbanização.

Até agora (junho de 2011) foram poucos os dados divulgados do Censo de 2011, razão pela qual o tema urbano, neste tópico, será bem menos tratado. Para as migrações, usei provisoriamente os dados de várias PNADs (de 1999 a 2009) apenas para ter algumas informações que me possibilitassem conhecer pelo menos a “tendência” ao longo do pe-ríodo. Com esses dados, pude fazer o seguinte resumo, que deverá ser confrontado pelos dados do Censo:• as entradas no NO e no CO-DF devem ter se mantido em torno de, respectivamente,

300 mil e 500 mil pessoas, com pequena diminuição no NO. As saídas do CO-DF tiveram pequeno aumento, mas as do NO aumentaram em 100 mil, diminuindo sua capacidade receptora;

• as entradas em SP teriam sido fortemente reduzidas, de 1,7 milhões na década anterior, para cerca de 650 mil nesta, também diminuindo a capacidade receptora. Os imigran-tes do NE teriam somado 330 mil e os de MG, 200 mil;

• as saídas do NE tiveram forte redução, caindo de 2,3 milhões para 1,1 milhão nos mesmos períodos. Esse fluxo teria um destino majoritário para o NO, CO-DF e SP, distribuído em proporções semelhantes pelas três regiões;

• de MG, as saídas aumentaram muito, passando de 127 mil para 350 mil;• as do PR caem, de 366 mil para 150 mil, dando a entender que sua reestruturação

agrícola e agrária tenha sido concluída.Aparentemente, os fluxos neste período, teriam tido um destino muito mais urbano

do que rural, mas isto requer o exame aprofundado dos dados censitários de 2010, tanto os migratórios quanto os de emprego. Vejamos dois fatos. O maior fluxo de emigrantes nordestinos se dirigiu a SP, onde a população rural diminuiu em 760 mil pessoas, número maior do que o total de imigrantes do estado e o dobro do de nordestinos. Em GO tam-bém diminuiu a população rural (menos 23 mil pessoas), mas o fluxo de nordestinos teria sido em torno de 180 mil. Em MS e MT a população rural aumentou pouco mais de 6% com números absolutos bem próximos aos dos imigrantes.

Já na região NO, em que a população rural aumentou 8% (309 mil pessoas) o fluxo nordestino (cerca de 300 mil pessoas) distribuiu-se entre todos os estados que também ampliaram a população rural, e se concentraram no PA (cerca de 180 mil). Neste estado, fiz um teste sobre a região Sudeste, que foi a que mais cresceu – em termos econômicos e demográficos – mas que se caracterizou pela forte presença da mineração em Carajás, da pecuária latifundiária e da subsistência rural. Dado o pouco emprego gerado pela mineração e pela pecuária, é surpreendente que 90% do crescimento da população total foi urbano.

Estes fatos apontam para a grande diversidade das determinações regional e urbana que ocorreu nos últimos períodos, tanto em termos econômicos, quanto ocupacionais e demográficos, o que está exigindo uma série de pesquisas específicas para tentar explicar

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esses fatos e, quiçá, poder estimular a elaboração e posta em prática de políticas públicas para enfrentar os graves problemas regionais e urbanos do país.

É sabido que vários indicadores sociais no Brasil têm melhorado, mas não se sabe o quanto dessa melhora se deve à efetividade de políticas públicas e quanto ao fato de que nossa estrutura etária mudou muito, diminuindo fortemente certas demandas sociais. Por exemplo, quanto da “melhoria” do grau de atendimento educacional nos últimos 20 anos se deve à política educacional e quanto se deve ao simples fato de que entre 1991 e 2010 o número de crianças com menos de 10 anos de idade se reduziu em 15%, ou seja, porque temos hoje 5,2 milhões delas a menos.

Contudo, e pensando no futuro, já ingressamos, há vários anos, em um processo que nos está conduzindo a um expressivo amadurecimento e envelhecimento da população bra-sileira, e isto nos traz a certeza de que no futuro teremos duas questões muito importantes que deveriam, desde já, ser analisadas: • as demandas sociais estão crescendo e vão crescer ainda mais, pois o grupo etário maior

de 60 anos dobrou, aumentando em 10 milhões de pessoas, e isto pressiona fortemente os gastos com saúde, assistência social e previdência, muito mais do que se fossem 10 milhões de crianças;

• o grupo entre 14 e 65 anos cresceu 46% ou 39 milhões de pessoas em idade de traba-lhar, e também crescerá ainda mais nos próximos anos, pressionando energicamente o mercado de trabalho.

PROPOSTAS DE INVESTIGAÇÃO

As propostas de pesquisa que seguem terão a periodização aqui anunciada, ou, quan-do for o caso, terão uma periodização específica.

As Questões de Ordem Geral

Em termos macroeconômicos, há uma questão central que decorre da sustentabilida-de econômica do atual modelo, à qual já me referi. Ou seja, é preciso fazer uma reflexão crítica sobre as circunstâncias atuais da economia internacional e sobre as condições inter-nas. A médio prazo, que desfecho ou que rumos poderão ter a crise financeira internacio-nal? Qual a duração provável do extraordinário boom dos preços das commodities? Idem, quanto ao chamado “efeito China”? Creio que enquanto essas questões não sofrerem alterações profundas, tampouco será possível repensar sobre a integração sul-americana.

Não se trata aqui de fazer pesquisa propriamente dita, mas sim de refletir sobre os caminhos e cenários mais prováveis e, daí, pesquisar os efeitos que deles emanariam sobre as dinâmicas de crescimento nacional e regional e do processo de urbanização.

Arrisco um exercício de simulação: que diferenças substanciais teríamos naquelas dinâmicas, se fizéssemos uma radical mudança em direção mais ao mercado interno e à redistribuição de renda, e menos à manutenção da abertura comercial e financeira?

Mas há ainda pesquisas que tanto cabem em termos nacionais quanto regionais, por exemplo, a da desindustrialização e a guerra fiscal, às quais voltarei no item seguinte. Será útil um mapeamento das principais políticas públicas criadas ao longo dos períodos de análise, em especial as de infraestrutura geral e urbana, as principais políticas sociais e as poucas medidas de caráter regional ou urbano.

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Sobre a Questão Regional

A pesquisa a que me referi30 e que estou usando largamente neste texto, informa várias questões sobre as novas determinações, particularmente as emanadas do aparelho produtivo, que vem sofrendo alterações estruturais ao longo do período 1970-2003. Con-tudo, é preciso examinar outras, que não foram objeto daquela pesquisa ou que, por suas especificidades, foram tratadas de modo parcial ou pouco detalhado.

A guerra fiscal e a desindustrialização, embora já tenham sido objeto de vários es-tudos e pesquisas, se ressentem ainda da falta de dados concretos sobre seus efeitos. São exemplos: que fins esses processos têm sobre os custos de inversão e de produção e da rentabilidade privada? Eles seriam rentáveis e competitivos sem os incentivos recebidos? Em que medida estes investimentos incentivados pela guerra fiscal são do tipo footloose, e, portanto podem ter uma temporalidade mais curta? As destruições causadas por esse processo e pela desindustrialização são reversíveis? Sob que condições? Lideranças empre-sariais desaparecidas, empresas falidas ou alienadas, elos eliminados de cadeias produtivas, mercados externos perdidos, podem ser facilmente recriados?

Ainda, pode-se especular sobre a Zona Franca de Manaus, instituição peculiar, pois que, como Zona Franca, deveria ser exportadora líquida para o exterior, mas que na realidade é deficitária, desde sua origem. Se o modelo macroeconômico nacional fosse alterado, diminuindo drasticamente a abertura e desvalorizando o câmbio, haveria condi-ções para sua reversão?

Os dados do comércio interestadual depois de 1985 ficaram ainda mais precários propositadamente ocultos ou de pobre informação, face aos problemas políticos gerados por sua divulgação, frente à guerra fiscal. Os do comércio exterior de cada UF são for-necidos pelo Ministério do Desenvolvimento, para o período posterior a 1989 e foram objeto de recente pesquisa que analisou seus impactos estruturais sobre a economia e a urbanização das várias UFs, mas requerem ainda um aprofundamento analítico sobre o emprego e a renda, e, no período posterior a 2003, sobre o efeito negativo do crescimento desproporcional das importações.31

Essa pesquisa mostra, por exemplo, que as exportações do PA representam 90% das do NO, mas as importações do Amazonas (ZFM) totalizam cerca de 90% da região, mostrando impactos distintos nesses dois estados. Indica ainda que as exportações de pro-dutos básicos em recursos naturais têm elevado peso no total exportado pelo NO (80%), NE (60%) e CO-DF (905%). Já os produtos industriais predominam nas exportações do Sul e SP, e as importações de manufaturados estão fortemente presentes em praticamente todas as UFs.

Essas e as questões abaixo devem constituir uma pesquisa sobre as determinações do crescimento regional: • principalmente para o período mais recente, analisar as mudanças nas estruturas pro-

dutivas e de emprego das regiões;• a expansão da produção nas áreas de fronteira agropecuária e mineral: regiões NO,

CO-DF e os cerrados da BA, PI e MA;• a forma e os resultados da profunda reestruturação agrária e agrícola que se verificou

nos estados do PR e RS, com a implantação e expansão do complexo soja-trigo; • surgimento ou expansão de novos pontos de concentração de atividades que não

existiam em seus respectivos novos espaços. São exemplos: a forte expansão da ativi-dade petrolífera nas regiões norte fluminense, sul do ES, e litoral de SE e do RN; a

30 Cano (2008).

31 A pesquisa referida é a da Tese de Livre Docên-cia de Fernando M. Mota (2010) que mostra forte elevação dos coeficientes de exportação e de importa-ção. Contudo, as mudanças metodológicas das CRs, al-terando valores e estrutu-ras dos PIBs regionais e a valorização cambial podem distorcer muito os valores desses coeficientes. Os da-dos anteriores a 1989 estão contidos em antigas publica-ções do IBGE ou do Banco Central, mas envolvem pro-blemas metodológicos sobre a origem estadual de várias dessas exportações.

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maturação da fábrica da Fiat em MG, os novos polos automobilísticos do RS, PR, BA e GO; a fruticultura de Petrolina-Juazeiro; o polo calçadista do CE; perspectivas para o polo de Suape (PE). Examinar ainda os investimentos no RN, CE e PE da ordem de 25 bilhões para energia eólica, aumentando a participação dela na matriz energética de 1,3% para 5,3% até 2014;32

• pesquisar a articulação de novos investimentos em minérios e para além dos mi-nérios pela Vale na região Norte, provocando efeitos espacialmente diferenciados; retomada dos grandes projetos hidrelétricos; expansão das usinas de biocombustí-veis (etanol);

• estudo especial deve ser feito sobre e Zona Franca de Manaus, implantada em 1967 e que vai amadurecendo a partir da década de 1980;

• aprofundar estudo dos principais impactos espaciais da expansão do comércio exte-rior na década, notadamente de commodities (soja, carnes e minérios);

• idem quanto ao comércio inter-regional, cujos dados são muito precários para esse período;

• principais efeitos da guerra fiscal sobre as estruturas de custos de produção e compe-titividade com empresas que não foram incentivadas. Sua continuidade será capaz de confirmar as teses sobre fragmentação da economia nacional? ;

• idem quanto à desindustrialização e principais efeitos destrutivos de cadeias produtivas, mormente nos setores automobilísticos e de eletrônica.

Sobre a Questão Urbana

Existem muitos trabalhos publicados sobre essas questões, mas é indispensável a realização (ou aprofundamento) de análises de vários problemas que ocorreram no período.33 As dificuldades com o necessário processamento dos Censos Demográficos de 1980 e de 1991 constituem sérios obstáculos, alguns dos quais talvez possam ser solucionados com o uso de fontes alternativas, usadas com muita cautela. Como prin-cipais fatos a pesquisar:• a expansão, extensão e o aumento da densidade da urbanização foram espacialmente

diferenciados, e, portanto é preciso fazer um mapeamento dos principais focos de expansão e tentar, com o auxílio das pesquisas aqui apontadas, esclarecer suas deter-minações. Como exemplos disto: a forte expansão e concentração urbana em Manaus; a elevada expulsão de trabalhadores e pequenos proprietários rurais do PR; o início da ocupação rural e mineral no Sudeste do PA, e outros;

• as principais mudanças na estrutura do emprego regional (se necessário, com recortes sub-regionais) emanadas das transformações produtivas tratadas neste tópico;

• examinar as mudanças da estrutura espacial da distribuição de renda;• aprofundar a análise do setor de serviços (via Censo Demográfico), e a interdepen-

dência direta e indireta deste fato com as mudanças produtivas. Em outras palavras: indagar que mudanças no emprego – especialmente do urbano – e na oferta/demanda de serviços, que foram geradas pela expansão da fronteira agropecuária ou pelos fatos especiais ocorridos na década (Zona Franca de Manaus, petróleo no RJ, ES, SE e RN; principais polos automobilísticos etc.);

• aprofundar os estudos das migrações inter-regionais para poder relacioná-las com as grandes mudanças produtivas acima referidas. Em alguns estados – como no PA, exa-minar as migrações intrarregionais recentes;

32 Valor Econômico, 28/04/2011.

33 Dos trabalhos mais ge-rais cabe citar: IPEA-NESUR (2001), IBGE (2008) e IPEA (2011).

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• fazer um mapeamento dos assentamentos de reforma agrária para entendê-los como novos componentes desses movimentos demográficos regionais;

• utilizar as pesquisas disponíveis sobre rede urbana, para localizar e separar, nas UFs, os efeitos decorrentes de metropolização, aglomeração, conurbação e periferização;

• confrontar via Censos e outras fontes, indicadores sociais urbanos nos espaços das UFs e em seus respectivos espaços realçados nestas pesquisas, em especial os indicadores vinculados ao tema do saneamento básico (água, esgoto, lixo e meio ambiente);

• exame sumário da situação das finanças públicas municipais: capitais, RMs e cidades de maior relevância para a urbanização do período;

• exame circunstanciado da expansão do setor imobiliário e estudos sobre a questão habitacional (questão fundiária: produção e uso de solo urbano).

ALGUNS PROBLEMAS METODOLÓGICOS

Por último, cabe advertir que existem vários problemas de ordem metodológica e de informação, para os quais devemos estar alertas e tentar, na medida do possível, contorná-los. Entre os principais, cabe destacar os seguintes:• a difícil e, em alguns casos impossível compatibilização (não só de caráter espacial)

entre as PNADs e os Censos Demográficos; • idem, quanto às Contas Regionais e os Censos Agrícolas, as PIAs e as PINPFs no pe-

ríodo pós 1985, que comumente apresentam dados controvertidos entre essas fontes, especialmente com relação à desconcentração produtiva regional;

• o fato de que as PNADs só a partir de 2004 apresentam dados sobre a zona rural da região Norte;

• o fato de que os dados do comércio inter-regional têm divulgação precária e muito interrupta, embora os dados primários estejam centralizados no Confaz;

• para o movimento e estrutura do emprego, embora a RAIS seja anual, só abarca o emprego formal; para o emprego total praticamente só contamos com os Censos De-mográficos (decenais), dados os problemas de compatibilidade já apontados para com as PNADs;

• as Contas Nacionais e as Regionais têm sofrido recentemente várias mudanças metodo-lógicas que muitas vezes alteram fortemente dados passados já divulgados e analisados. Por outro lado, a forte valorização cambial que padecemos desde 1994 certamente alterou muitos preços relativos e os próprios coeficientes de comércio exterior;

• com relação às PIAs, embora o IBGE proporcione tabulações especiais (nacionais ou regionais) detalhando os dados a 3 ou mais dígitos, ele não evita o problema do sigilo estatístico,34 tornando, em muitos casos, inviável o uso daqueles dados.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDRADE, T.; SERRA, R. “Notas sobre a experiência de crescimento recente das Ci-dades Médias Brasileiras”. In: KON, A. Unidade e Fragmentação: a questão regional no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 2002.AFFONSO, R.B.A.; SILVA, P.B. (Orgs.) Federalismo no Brasil – desigualdades regionais e desenvolvimento. São Paulo: FUNDAP-UNESP, 1995, 2v.

34 Sempre que não existam, naquele recorte espacial, pelo menos três estabeleci-mentos do mesmo segmen-to produtivo.

Wilson Cano é professor ti-tular do Centro de Estudos de Desenvolvimento Econômico do Instituto de Economia/Uni-camp. Email: wcano@eco. unicamp.br

Ar ti go re ce bi do em agosto de 2011 e apro va do pa ra pu bli ca ção em outubro de 2011.

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A b s t r a c t Between 1930 and 1980, urbanization process, domestic market in-tegration and regional development in Brazil were basically determined by the combination of industrialization process, macroeconomic and regional development policies. After 1980,

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as a result of the so called “Lost decade” and the implementation of neoliberal policies, those determinants were significantly modified by the new paths of external insertion, overvalued exchange rate, high interest rates, and “fiscal war” between regions. Beyond those weakened previous determinants, new ones have aroused; some are national and others specific to each region. Despite the changes in the determinants mentioned above, the harmful side-effects of the economic growth and urbanization processes have affected the whole national territory. As a conclusion, the article proposes a Research Agenda focused on regional and urban subjects for the period 1980-2010 in order to better understand how those determinants have affected these processes.

K e y w o r d s Regional development; urbanization; new determinants; fiscal war; Brazil’s international position.

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ESTUDOS RECENTES SOBRE A REDE URBANA BRASILEIRA

Diferenças e Complementaridades

A l e s s a n d r a d ’ Á v i l a V i e i r a L i l i a n e J a n i n e N i z z o l a

L u a n a M i r a n d a E s p e r K a l l a s M a n u e l i t a F a l c ã o B r i t o

B e n n y S c h v a s b e r g R o d r i g o S a n t o s d e F a r i a

R e s u m o A classificação da rede urbana brasileira é importante ferramenta de gestão governamental, econômica e social, pois possibilita um direcionamento mais acertado de investimentos urbanos. Partindo-se da análise de três estudos recentes que elaboraram classificações para a Rede Urbana – o primeiro, Configuração Atual e Tendências da Rede Urbana, desenvolvido pelo Instituto de Pesquisas Aplicadas juntamente com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; o segundo, Política Nacional de Desenvolvimento Regional, do Ministério da Integração Nacional, e o terceiro, Tipologia das Cidades Bra-sileiras, elaborado pelo Observatório das Metrópoles, – percebe-se a permeabilidade e com-plementaridade entre eles, as grandes contribuições trazidas e o desafio que é produzir uma classificação condizente com a diversidade das cidades brasileiras. Destaca-se ainda como as diferentes leituras da rede urbana incorporam-se às políticas públicas, sendo os estudos realizados parte do processo de construção da política urbana nacional. Assim, acredita-se que grandes desafios foram vencidos.

P a l a v r a s - c h a v e Cidades; desenvolvimento urbano; gestão governa-mental; políticas públicas; rede urbana brasileira.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A partir dos anos 1930, registra-se uma produção institucional mais abrangente de estudos de geografia urbana destinados a subsidiar o planejamento regional, embora este já fosse adotado no Brasil desde o século XIX. Mas é só a partir da primeira metade do século XX que a vinculação entre geografia, desenvolvimento econômico e redes urbanas torna-se mais presente. Almeida (2004), ao resgatar as etapas do “pensamento geográfico do IBGE”, registra que nos anos 40:

A demanda governamental para o estudo dos processos de ocupação do território via me-canismos de colonização, de certa forma, deu o tom das principais orientações da pesquisa, como os estudos do habitat rural, e as novas interpretações dos processos geomorfológicos. Paralelamente, os estudos urbanos também já tinham um desenvolvimento, principalmen-te com os trabalhos de Deffontaines no Rio e Mombeig em São Paulo (Almeida, 2004, p.411).

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E S T U D O S R E C E N T E S S O B R E A R E D E U R B A N A

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De acordo com o mesmo autor, nos anos 1960, as linhas de pesquisa da geografia passaram por uma transição significativa, orientando-se de forma mais expressiva para a questão dos estudos urbanos e das redes urbanas. Data de 1963 o trabalho considerado como “a primeira obra completa sobre o processo de organização urbana do Brasil”, inti-tulado Evolução da Rede Urbana Brasileira, de Pedro Geiger:

Classificando cidades, definindo metrópoles nacionais e delimitando hierarquicamente suas respectivas redes, correlacionando explicitamente as relações entre industrialização e urbani-zação, que começavam a se delinear no Brasil no final dos anos 50 e início dos 60 (Almeida, 2004, p. 412).

O período militar marcou uma forte vinculação da geografia com as demandas desenvolvimentistas do país, ampliando os estudos sobre planejamento regional e o uso sistemático de estatísticas pelos órgãos oficiais de planejamento. Constata-se, portanto, que não são recentes as análises críticas e propositivas baseadas em leitura e cruzamento de dados estatísticos contemplando dinâmicas demográficas, econômicas e sociais. Não obstante, cada documento parte de uma ou de múltiplas necessidades e, via de regra, são produzidos para atender uma demanda específica, sobretudo de entidades públicas. Em outras vezes, surgem como forma de contrapor-se ou desfazer um senso comum, mas em todos os casos, partem de premissas e utilizam técnicas que, desde a origem, trazem a marca de quem as produziu e de quem as encomendou.

Este artigo resgata três propostas de classificação da rede urbana brasileira e uma polí-tica pública apoiada na última delas. O objetivo é identificar, em um primeiro momento, complementaridades e diferenças entre as abordagens e, adicionalmente, identificar algu-mas implicações ou consequências que tais contribuições geraram no desenho das políticas urbanas e de desenvolvimento regional.

O primeiro objeto de análise é o trabalho intitulado Configuração Atual e Tendên-cias da Rede Urbana, desenvolvido pelo Instituto de Pesquisas Aplicadas (IPEA) com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e a Universidade Estadual de Cam-pinas (Unicamp), concluído em 1999 e publicado em 2001. A leitura do território adotou a escala macrorregional e envolveu um conjunto amplo de indicadores, análises regionais e informações qualitativas, estabelecendo correlações entre eles.

O segundo estudo sob análise é a Política Nacional de Desenvolvimento Regional (PNDR), cuja elaboração demandou a construção de uma tipologia própria que pudesse atender uma das suas principais premissas, qual seja, abordar o problema das desigualda-des regionais em múltiplas escalas (nacional, macrorregional, sub-regional e intraurbana). A elaboração da PNDR foi conduzida pelo Ministério da Integração Nacional e o recorte adotado neste artigo foca mais o esforço teórico de classificação e menos na política em si.

A Tipologia das Cidades Brasileiras (Fernandes, Bitoun, Araújo, 2009), publicado pelo Observatório das Metrópoles, é o terceiro estudo analisado. Neste trabalho, os au-tores desenvolveram uma metodologia que reuniu parâmetros e propostas oriundas dos dois estudos mencionados anteriormente, além do trabalho desenvolvido pelo Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional de Minas Gerais (Cedeplar), “A nova geogra-fia econômica do Brasil: uma proposta de regionalização com base nos polos econômicos e suas áreas de influência” (2000). Dentre os objetivos do estudo de Fernandes, Bitoun, Araújo (2009) busca-se categorizar as unidades regionais a partir da identificação e classi-ficação dos municípios brasileiros, com vistas a subsidiar uma ação efetiva do Estado na

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A. D. VIEIRA, L. J. NIZZOLA, L. M. E. KALLAS, M. F. BRITO, B. SCHVASBERG, R. S. FARIA

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rede urbana brasileira por meio da indicação de um conjunto de ações específicas para cada situação.

A política pública apresentada baseia-se no Caderno 1 do Ministério das Cidades, que trata da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano, de 2004. Ressalta-se, desde já, que o foco da análise são as diretrizes e eixos da política e não as ações efetivas do Go-verno para a sua implementação.

Os estudos analisados estão divididos em três tópicos: um breve contexto, destaques da metodologia e um resumo da classificação proposta (no caso dos três primeiros docu-mentos). Quando relevante, foi incluída uma síntese com as principais conclusões. Na parte final, são tecidos comentários que buscam correlacionar as diferentes abordagens e apresentar contribuições para o debate.

CONFIGURAÇÃO ATUAL E TENDÊNCIAS DA REDE URBANA

O estudo do IPEA apresenta as transformações da rede urbana no Brasil durante as décadas de 1980 e 1990, e apoia-se em três linhas principais de análise: i) os processos econômicos gerais; ii) os processos econômicos regionais e; iii) a manifestação de proces-sos característicos da hierarquia da rede urbana. Visa identificar as transformações então recentes da rede urbana, partindo da observação das macrorregiões e analisando uma série de variáveis que possibilitaram a classificação das cidades por classes de tamanho, reunin-do um conjunto de fatores além da população. Considera-se ali que a urbanização, assim como o sistema urbano, faz parte de um longo processo de mudança territorial no Brasil, fruto de uma atividade econômica bem localizada e dinâmica e que a urbanização não é um resultado dessa atividade e sim parte constitutiva desse processo. O estudo pontua alguns eventos relevantes em cada uma das décadas analisadas e tenta suprir uma lacuna de aproximadamente 15 anos sem avaliações da espécie.

Neste sentido, a contextualização do estudo do IPEA (2001) destaca que os anos 1980 foram marcados por crises e instabilidade econômica causadas pela dívida externa, pelas elevadas taxas de inflação e por uma profunda crise do Estado, que contribuiu para a paralisação do investimento industrial e permitiu um maior grau de abertura da economia brasileira, estimulando de forma distinta a articulação das economias regionais, refletindo sobre a urbanização e o sistema de cidades no Brasil. Adicionalmente, a heterogeneidade da produção e as novas organizações espaciais propiciadas pelo deslocamento das indústrias para regiões fora das áreas metropolitanas e o crescimento das áreas de fronteira resultante do desempenho da agricultura e dos grandes complexos minerais aumentou a exportação ao longo da década de 1980, resultando no surgimento das chamadas ilhas de produtivi-dade. Esse novo dinamismo das economias regionais estimulou uma distinção interna da estrutura produtiva e aprofundou as desigualdades inter e intrarregionais do país.

Além disso, o contexto da crise econômica também abriu alternativas para cidades de menor porte, com saldos migratórios negativos (migração de retorno), ou a periferização dos centros urbanos, diminuindo o crescimento das áreas metropolitanas e fazendo surgir novos espaços economicamente dinâmicos que alteraram o comportamento do emprego urbano, da dinâmica migratória e das exportações.

O início dos anos 1990, por sua vez, marcou um momento diferente em relação à década anterior em função do crescimento da agroindústria, da urbanização na fronteira,

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E S T U D O S R E C E N T E S S O B R E A R E D E U R B A N A

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da agricultura irrigada, de maiores empreendimentos para exploração dos recursos natu-rais e do maior desempenho e participação econômica das cidades de pequeno e médio porte. Por fim, a desconcentração industrial nas regiões metropolitanas foi concomitante ao crescimento das cidades do interior de São Paulo, das capitais regionais, como as do Norte, Nordeste e Centro-Oeste, as cidades médias e as aglomerações não metropolitanas, áreas de fronteira agrícola e de expansão da agricultura. Este movimento resulta, segundo o documento sob análise, em uma forte desconcentração da economia e consequente desaceleração do crescimento metropolitano.

Metodologia

A realização do estudo do IPEA aconteceu em quatro etapas, sendo que a primeira procurou estabelecer uma classificação dos centros urbanos das regiões, incluindo tipo-logia de tamanhos; funcional (grau de centralidade) considerando dados como: posição dos centros urbanos na Região de Influência das Cidades (REGIC); porcentagem da População Economicamente Ativa (PEA) urbana; total da população em 1980, 1991 e 1996; taxa de crescimento da população no período 1991-96; porcentagem de acréscimo da população (1980-91/ 1991-96); densidade demográfica dos centros urbanos em 1996 e análise de agrupamento dos centros urbanos nas regiões.

A segunda etapa consistiu na montagem de um quadro de classificação da rede urba-na do Brasil, identificando centros decisórios e escalas de urbanização, incorporando, para tanto, critérios de discriminação da posição hierárquica ocupada pelos centros urbanos na rede. Para tanto, foram utilizados dados relativos à: localização das sedes das 500 maiores empresas do Brasil; número de passageiros domésticos e internacionais e volume de cargas nos aeroportos da Infraero; localização de agências bancárias e valor total dos depósitos; indicadores populacionais e estrutura ocupacional.

A terceira etapa resultou na definição da estrutura urbana e dos sistemas urbano-regionais, por meio da caracterização e análise da dinâmica espacial da rede urbana, con-siderando informações como: identificação de espaços territoriais submetidos à influência dos centros urbanos; identificação de sistemas urbano-regionais definidos com base em critérios de contiguidade espacial e dependência funcional; diferenciação das estruturas urbanas, segundo o ritmo de urbanização, o nível de adensamento da rede de cidades e o grau de complementaridade entre núcleos componentes.

Por fim, a quarta etapa focou na identificação de presença de processo de conurbação entre centros urbanos e considerou as seguintes leituras: identificação de espaços urbanos descontínuos com presença de centros urbanos com articulação econômica e urbana; porte populacional dos centros urbanos (1991 e 1996); densidade populacional em 1991; taxa de crescimento do núcleo (1980-91 e 1991-96); taxa de crescimento da periferia (1980-91 e 1991-96); e indicadores de peculiaridades regionais indicativas de articulação entre centros urbanos.

Classificação Proposta

Considerando que a caracterização e a análise da dinâmica espacial da rede urbana nacional são os principais objetivos do estudo em análise e que o processo acelerado de urbanização do país requeria leituras até então inexistentes, foi necessário definir novos procedimentos que resultaram em diferentes possibilidades de leitura da rede urbana

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A. D. VIEIRA, L. J. NIZZOLA, L. M. E. KALLAS, M. F. BRITO, B. SCHVASBERG, R. S. FARIA

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brasileira. Uma das categorias utilizadas é a Região de Influência das Cidades (REGIC), que são porções do espaço submetidas à influência de centros urbanos, cujos fluxos de pessoas, mercadorias e informações permitem a conformação de estruturas territoriais relativamen-te estáveis no decorrer do tempo.

Figura 1 – Estruturas urbanas. Fonte: IPEA, IBGE, Unicamp, 2001.

Segundo o IBGE existem 33 regiões de influência das cidades, sendo duas na região Norte (Manaus e Belém), nove na região Nordeste (São Luis, Teresina, Fortaleza, Recife, João Pessoa, Campina Grande, Caruaru, Salvador e Feira de Santana), doze no Sudeste (Belo Horizonte, Juiz de Fora, Uberlândia, Vitória, Rio de Janeiro, São Paulo, Campi-nas, Bauru, Ribeirão Preto, Marília, São José do Rio Preto e Presidente Prudente), oito na região Sul (Curitiba, Londrina, Maringá, Florianópolis, Porto Alegre, Santa Maria, Pelotas e Passo Fundo) e duas no Centro-Oeste (Brasília e Goiânia). Os Sistemas Urbano-Regionais, por sua vez, são definidos com base na REGIC e agrupados segundo critérios de contiguidade espacial e de dependência funcional. Foram identificados 12 sistemas urbano-regionais no Brasil, sendo um no Norte, dois no Centro-Oeste, quatro no Nor-deste, três no Sudeste e dois no Sul.

Outra categoria adotada são as Estruturas Urbanas, que formam a armadura da rede urbana brasileira, mas não constituem uma região ou qualquer outra dimensão territorial em si. Foram definidas em três grandes estruturas urbanas articuladas e diferenciadas: o Centro-Sul; o Nordeste e o Centro-Norte, que agrupam os seguintes lugares:• Centro-Sul(5)–PortoAlegre,Curitiba,SãoPaulo,RiodeJaneiroeBeloHorizonte;• Nordeste(4)–Salvador,Recife,FortalezaeMeioNorte;• Centro-Norte(3)–Norte,CuiabáeBrasília-Goiânia.

Por fim, a Rede Urbana Nacional é o resultado dessas três porções e “compreende o conjunto das cidades que polarizam o território nacional e os fluxos de bens, pessoas e serviços que se estabelecem entre elas com as respectivas áreas rurais” (IPEA, 2001). Este conjunto é composto por 111 centros urbanos, 440 municípios e o Distrito Federal e totalizam pouco mais de 55% da população.

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Síntese

Uma análise sintética do estudo do IPEA permite concluir que a dinâmica da rede urbana nacional apresenta aspectos importantes para a proposição de políticas públicas, tais como:• Diferenciaçãonaconfiguraçãoespacialenoritmodedesenvolvimentoentreossiste-

mas urbanos;• Disparidadesentreossistemasurbanosnoquetangeàscondiçõesdevidaedeacesso

aos serviços públicos;• Adensamentonoentornodosnúcleosmetropolitanosoucentrosurbanosdegrande

porte e que encabeçam a expansão e suas áreas de influência;• Metropolizaçãopresenteemquasetodooterritórionacional,masdiferenteentreos

sistemas urbanos com características regionais distintas;• Dispersãoespacialdepequenoscentrosurbanosseopondoaoprocessodemetropoli-

zação que se considerava importante na dinâmica dos sistemas urbanos brasileiros.O estudo em questão (IPEA, 2001) também resume em três tópicos os problemas

fundamentais da configuração da rede urbana do Brasil, a saber: 1. O agravamento entre as disparidades inter e intrarregionais do país e das disparidades

sociais nas cidades, ampliando a escala dos problemas e carências sociais e urbanas;2. O aumento das demandas associadas à urbanização, envolvendo os três níveis de go-

verno, contribuindo para a deterioração das condições de vida;3. O padrão de intervenção do poder público, em especial nas aglomerações urbanas e

nos centros urbanos de grande e médio porte, em relação ao aumento das demandas e à crise fiscal-financeira do setor público.

Por fim, o estudo (IPEA, 2001) apresenta algumas recomendações servindo de subsí-dios para formulação de políticas públicas, dentre as quais se sobressaem:• Elaborarplanos,programaseprojetosdedesenvolvimentourbanoapartirdoplaneja-

mento regional, a fim de beneficiar centros urbanos articulados em uma sub-região;• Desenvolver políticas dirigidas prioritariamente à gestão das aglomerações urbanas

metropolitanas e centros de grande e médio porte;• Criar e fortalecer os mecanismos de gestão compartilhada, incentivando a parceria

público-privada e a comunidade envolvida, visando à convergência de ações, coopera-ção, participação comunitária e atuação de longo prazo;

• Aumentaraeficiênciadoscentrosurbanostornando-osmaiscompetitivos,pormeiode estratégias de desenvolvimento que incentivem novas atividades focalizadas no perfil econômico e na atração de investimentos;

• Adotarpolíticascompensatóriasparamunicípiosperiféricos;• Desenvolverumprocessodeplanejamentoquedefinaprioridadessetoriaiselocaispara

grandes investimentos envolvendo agentes do governo e da sociedade;• Desenvolveráreasdebaixodinamismoereduzirasheterogeneidadesintereintrarregionais.

POLÍTICA NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO REGIONAL – PNDR

Concebida e formulada pelo Ministério da Integração Nacional, a PNDR vem no bojo da (re)criação das Agências Regionais de Desenvolvimento – Superintendência do

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A. D. VIEIRA, L. J. NIZZOLA, L. M. E. KALLAS, M. F. BRITO, B. SCHVASBERG, R. S. FARIA

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Desenvolvimento da Amazônia (Sudam), Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) e Superintendência do Desenvolvimento do Centro-Oeste (Sudeco) –, da reorientação dos fundos constitucionais de financiamento – Fundo Constitucional de Financiamento do Norte (FNO) e Fundo Constitucional de Financiamento do Nor-deste (FNE) – e dos fundos de desenvolvimento regional – Fundo de Desenvolvimento da Amazônia (FDA) e Fundo de Desenvolvimento do Nordeste (FDNE), além dos programas de desenvolvimento regional e demais instrumentos e mecanismos de apoio à sua imple-mentação. Depois de formulada, em 2004, foi instituído o marco legal que a orienta, que é o Decreto 6.047/2007.

De acordo com o Sumário Executivo da PNDR:

A Política Nacional de Desenvolvimento Regional é parte indissociável da estratégia de desenvolvimento do país e expressão da prioridade que é dada ao tema na agenda nacional de desenvolvimento. A Constituição de 1988 já determinava a redução das desigualdades regionais como um dos eixos da estratégia de desenvolvimento nacional, fato esse que se consolida no enunciado do PPA 2004-2007, que eleva o tema da redução das desigualdades regionais brasileiras a um dos mega-objetivos do Plano Plurianual (Ministério da Integração, 2004, p.11 e 12).

O mesmo documento esclarece que o objeto da PNDR não é estritamente o combate à pobreza, que a faria privilegiar a periferia das grandes metrópoles, como acontece com a política urbana e as políticas sociais, mas sim a coincidência espacial entre pobreza in-dividual e regional. Em outras palavras, ela focaliza a causa da desigualdade e da pobreza no território e se concentra nas regiões estagnadas, origem dos fluxos migratórios. Nesse sentido, é necessariamente uma política redistributiva, o que torna a participação direta da União imprescindível, em virtude da sua legitimidade, capacidade de convergência de ações e disponibilidade de recursos para sua implementação.

Metodologia

A PNDR enfatiza as diversidades territoriais e econômicas que caracterizam o terri-tório, mensurando-as através do estoque de riquezas acumuladas e da dinâmica da criação de novas riquezas. Uma das principais diferenças em relação ao estudo anterior é que a PNDR adota a escala microrregional para identificar o território, visando possibilitar uma percepção mais detalhada das desigualdades que nem sempre são percebidas nas escala macro ou mesorregional. Todavia, o estudo não aborda as especificidades de cada muni-cípio individualmente, o que tornaria o resultado final pouco compreensível em função da grande quantidade de municípios brasileiros.

A tipologia estabelecida procura exprimir padrões e dinâmicas então recentes da distribuição da população no território, bem como características da população quanto ao rendimento médio; local de residência (rural ou urbano) e nível de educação, além do di-namismo econômico captado pela variação do PIB per capita. Os dados básicos do estudo foram obtidos a partir dos Censos Demográficos do IBGE (1991 e 2000) e das estimativas do PIB municipal (elaboradas pelo IPEA). Observe-se, portanto, que as fontes são muitas vezes coincidentes, o que não significa resultados semelhantes.

No caso do rendimento, os dados foram ajustados à paridade do poder de compra, agregando os dados por microrregião. Já os indicadores de dinamismo foram obtidos pela

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média geométrica do crescimento do PIB per capita no período 1990–1993 e 1999–2002 de cada município, agregando-os em microrregiões. A combinação de técnicas para dis-tribuição das variáveis e o conjunto de dados obtidos possibilitaram a geração de diversos cartogramas que, quando combinados, permitiram leituras espacializadas.

Classificação Proposta

O resultado da PNDR foi a divisão do território brasileiro em quatro grupos, a saber:1. Microrregiões de alta renda: com alto rendimento domiciliar por habitante, indepen-

dente do dinamismo observado, não são prioritárias para a PNDR. Predominam nas regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste, sendo praticamente insignificantes no Norte e Nordeste. Respondem por 76% do PIB e concentram 53,7% da população;

2. Microrregiões dinâmicas: rendimentos médios e baixos, mas com dinâmica econômica significativa. Possuem baixo grau de urbanização e são mais frequentes no Centro-Oes-te e Nordeste. O grau de urbanização é inferior a 60%, concentram 9% da população e respondem por apenas 4% do PIB;

3. Microrregiões estagnadas: com rendimento domiciliar médio, mas com baixo cres-cimento econômico. Possuem estrutura econômica e capital social relevantes, e grau de urbanização relativamente elevado (mais de 75%). Concentram cerca de 29% da população e participam com 18% do PIB, mas apesar de dispersas em todo o território nacional, predominam nas regiões Sul e Sudeste;

4. Microrregiões de baixa renda: baixo rendimento domiciliar e baixo dinamismo. Com-binam pobreza e base econômica frágil. É o mais baixo grau de urbanização e de nível de educação. Concentram-se no Norte e Nordeste, reúnem cerca de 8,4% da popula-ção mas respondem por apenas 1,7% do PIB.

Figura 2 – Níveis de Renda Domiciliar/hab 2000 e Níveis de Variação do PIB/hab 90/98 Fonte: Ministério da Integração – PNDR 2004

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Síntese

As leituras obtidas a partir dos cartogramas resultaram em um conjunto de diretrizes que orientam a PNDR e esclarecem os seus principais objetivos, expressos da seguinte forma:

A desigualdade regional é resultado da dinâmica assimétrica do crescimento capitalista, que se concentra em alguns espaços, enquanto condena outros à estagnação e ao desperdício de fatores produtivos. A PNDR atua no sentido de contrabalançar a lógica centrípeta das forças de mercado, por meio da promoção e valorização da diversidade regional, conciliando, as-sim, competitividade e expressão produtiva de valores socioculturais diversos (Ministério da Integração, 2004, p. 12).

O material produzido revelou dois contrastes marcantes. O primeiro refere-se à já conhecida concentração no litoral, sobretudo no entorno das regiões metropolitanas, em contraposição às regiões de baixa densidade, em especial em porções da Amazônia, Centro-Oeste e semiárido nordestino. Apesar disso, o documento afirma que os in-dicadores das últimas décadas apontam para uma interiorização constante (ainda que lenta), coincidindo em certa medida com movimentos já sinalizados pelo estudo do IPEA (2001).

O segundo contraste exposto pelos cartogramas refere-se às diferenças norte/sul, sobretudo no que tange à educação, ao rendimento domiciliar e à urbanização. Na con-traparte, segundo o estudo em tela, não se registra o mesmo dinamismo econômico entre as áreas predominantemente agrícolas e os grandes centros urbanos.

Assim, de forma resumida, o documento aponta o seguinte:1. A coexistência, em todas as macrorregiões do país, de sub-regiões dinâmicas e com ele-

vados rendimentos médios com sub-regiões estagnadas com precárias condições de vida;2. Dinâmicas microrregionais demográficas e de crescimento do PIB com perfil territorial

disperso;3. Padrão macrorregional expressivo de diferenciação das principais variáveis;4. Grande distância de níveis de rendimento e outras variáveis na Amazônia e semiárido

nordestino.Destaque-se ainda que a PNDR apresenta também os mecanismos de promoção da

articulação intra e intergovernamental e de acordo com as escalas de intervenção são defi-nidas as competências das instâncias de articulação, formulação e operação das iniciativas destinadas a reduzir as desigualdades intra e inter-regionais.

TIPOLOGIA DAS CIDADES BRASILEIRAS

Elaborado para subsidiar o Plano Nacional das Cidades, em 2004, e publicado pelo Observatório das Metrópoles, em 2009, o estudo Tipologia das Cidades Brasileiras (Fernandes, Bitoun, Araújo, 2009) toma como base para a classificação o processo de ur-banização brasileira a partir da institucionalização das regiões metropolitanas no Brasil, a partir dos anos 70, e cita que as diferentes legislações criaram unidades regionais distintas, dificultando comparações devido à ausência de critérios para as novas categorias espaciais instituídas. Além disso, a maior autonomia adquirida para promover a regionalização teria induzido a distorções no âmbito da hierarquização dessas categorias, o que ilustraria a

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falta de um marco legal nacional que regulasse as relações entre os governos das diferentes esferas e uniformizasse a hierarquização e classificação das unidades.

É, portanto, à luz do panorama metropolitano que o estudo de Fernandes; Bitoun; Araújo (2009) objetiva: 1. Organizar uma base de indicadores para a classificação e a identificação dos espaços

metropolitanos brasileiros;2. Desenvolver uma tipologia de espaços segundo a forma e o conteúdo, ordenados em

escala de acordo com seu grau de importância na rede urbana brasileira;3. Identificar os territórios socialmente vulneráveis no interior das áreas metropolitanas e

seu diagnóstico;4. Avaliar a capacidade das unidades municipais, inseridas nas regiões metropolitanas, de

responder à implementação de políticas públicas de desenvolvimento urbano.Como premissas considera-se que uma proposta de tipologia deveria fundamentar-se

em duas abordagens: partindo do território (enfatizando as diversidades territoriais e eco-nômicas que o caracterizam, mensuradas por meio do estoque de riquezas acumuladas e da dinâmica da criação de novas riquezas); e partindo da rede de cidades e sua capacidade de estruturar o território em regiões polarizadas. A primeira abordagem norteou a já cita-da proposta para discussão da Política Nacional de Desenvolvimento Regional – PNDR (2004) e a segunda originou os estudos elaborados pelo Cedeplar/UFMG (2000) e pelo IPEA/IBGE/Unicamp (2001), este último também já comentado.

Adicionalmente, Fernandes; Bitoun; Araújo (2009) considera que não poderiam ser ignoradas situações tanto de concentração como do urbano não metropolitano, mais isola-do ou rural, adequando-se as estratégias às situações encontradas, por meio da observação da totalidade, almejando o desenvolvimento do país como um todo.

Metodologia

Conforme mencionado, a metodologia adotada na construção do estudo (Fernandes, Bitoun, Araújo, 2009) buscou associar a visão territorial da PNDR à visão da rede urbana. Em uma primeira etapa, o objetivo foi elaborar uma tipologia dos municípios brasileiros no âmbito de cada um dos quatro conjuntos microrregionais definidos na PNDR (2004). Para tanto, foram realizados sucessivamente:

» Uma avaliação da densidade econômica característica de cada uma das 84 mesorregiões polarizadas, por meio da identificação dos pesos, no total da população residente da mesorre-gião, das populações residentes em microrregiões de tipo 1 (alto estoque), 3 (médio estoque), 2 (baixo estoque com PIB crescente) e 4 (baixo estoque e baixo crescimento do PIB); » Um levantamento de variáveis concernentes a todos os municípios sob a forma de um banco de dados;» Uma observação da distribuição dos municípios por faixas de tamanhos populacionais em cada um dos quatro conjuntos microrregionais;» Uma série de análises multivariadas, com base em variáveis selecionadas no banco de dados, seguidas por identificações de clusters correspondendo a classes de municípios, levando em conta faixas de tamanho populacional e posição em conjuntos microrregionais;» Uma primeira caracterização das classes de municípios identificados visando sugerir o papel que exercem no território e, consequentemente, quais diretrizes de política urbana poderiam ser concebidas num âmbito de uma ação integrada dos diversos ministérios

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encarregados do desenvolvimento urbano e territorial do país (Fernandes, Bitoun, Araújo, 2009, p.22-3).

Salienta-se que as análises não levaram em consideração dados de crescimento popu-lacional devido à criação de grande quantidade de municípios no período intercensos 1991 –2000, pois tal comparação extrapolaria o limite de tempo para a conclusão do trabalho.

As classes criadas (A, B, C e D) em cada um dos universos analisados foram subdivi-didas pelo valor dos fatores encontrados, sendo que o fator 1 indica o padrão de riqueza (quanto maior o seu valor, maior o padrão de riqueza) e o fator 2 indica o padrão de pobreza (quanto maior o seu valor, maior o padrão de pobreza). De modo simplificado, pode-se dizer que a classe A apresentaria alto fator 1 e baixo fator 2; a classe B apresentaria fator 1 mais baixo que a classe A e fator 2 mais alto; a classe C apresentaria valores muito baixos nos fatores 1 e 2; e a classe D apresentaria valores muito baixos no fator 1 e altos no fator 2.

Classificação Proposta

Os dados encontrados e a classificação proposta possibilitam uma leitura dos mu-nicípios e regiões brasileiras, bem como uma correlação da situação econômico-social com a posição geográfica e a dimensão populacional, obtendo-se assim uma visualização dos principais problemas urbanos a serem resolvidos e onde estão localizados. Tais dados também permitem constatar as prioridades e os tipos de investimentos demandados pelas regiões e municípios, possibilitando o emprego mais eficiente dos recursos.

POLÍTICA NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO URBANO – PNDU

Buscar-se-á aqui ilustrar como as diferentes leituras sobre a rede urbana são incorpo-radas às políticas nacionais, tomando como objeto de análise a PNDU, que foi construída na 1ª Conferência Nacional das Cidades, por meio dos delegados eleitos em todo o país.

O processo, que pressupôs a participação de diversos atores governamentais e da sociedade, veio do entendimento da necessidade de construção de alguns consensos que orientassem as ações dos diversos níveis de governo, sem as quais não seria possível um efetivo impacto urbano. As propostas estruturantes têm natureza intraurbana e o docu-mento somente tange as questões de desigualdade regional. Sendo assim, se relaciona com a Tipologia das Cidades Brasileiras, encomendada pelo Ministério das Cidades, conforme já citado, e que olha para as questões intra e inter-municípios.

A PNDU define o desenvolvimento urbano como “melhoria das condições materiais e subjetivas de vida nas cidades, com diminuição da desigualdade social e garantia de sustentabilidade ambiental, social e econômica” (Ministério das Cidades, 2004, p. 8), e entende que a cidade não é neutra, mas uma força ativa capaz de produzir desenvolvimen-to econômico, gerando emprego e renda. Nessa lógica, se propõe a não encarar as políticas urbanas no âmbito das políticas sociais, ou seja, no sentido de operar somente nos efeitos das desigualdades, mas sim em suas causas.

Quando discute a desigualdade regional e as cidades, a PNDU reconhece que as ten-dências locacionais das atividades econômicas influenciam e são influenciadas pela rede

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urbana, e destaca quatro grandes movimentos do ponto de vista industrial, que reorientam parte dos fluxos migratórios e contribuem para o crescimento da rede de cidades:1. Ampliação da área metropolitana de São Paulo e sua integração com a região de Cam-

pinas, São José dos Campos, Sorocaba e Santos;2. Aglomeração macroespacial da indústria entre a região central de Minas Gerais e o

Nordeste do Rio Grande do Sul;3. Retomada da indústria da região Nordeste com o setor têxtil, confecções, calçados e

alimentos, devido aos incentivos fiscais e à mão de obra mais barata;4. Avanço da produção agrícola no Centro-Oeste (cerrado) e exploração mineral no Norte.

Pela premissa e dinâmica territorial das aglomerações apresentadas, o documento mostra a clara influência do estudo sobre a rede urbana elaborado pelo IPEA, bem como da tipologia de microrregiões da PNDR, ambos já citados.

Antes de explicitar os eixos e ações da PNDU, o documento aponta hipóteses para a reconfiguração da rede urbana. A primeira seria a criação de novas centralidades urbanas, como suporte de desenvolvimento econômico de seus entornos e para reorientação de fluxos migratórios e freio do crescimento demográfico das grandes metrópoles. A PNDU ressalta que, para tanto, são necessários dois elementos centrais: os sistemas de transportes inter e intrarregionais e a concentração de equipamentos urbanos.

A segunda hipótese parte da definição de políticas públicas específicas segundo a diversidade da rede urbana, mas com a priorização de investimentos e ações nas regiões metropolitanas, pois “o desperdício da força produtiva concentrada nas metrópoles e os constrangimentos advindos da metropolização da vida social inviabilizariam qualquer projeto de desenvolvimento e coesão nacional” (Ministério das Cidades, 2004, p. 39).

Ao apontar a segunda hipótese (priorização das regiões metropolitanas) como áreas de investimento prioritário, a PNDU explicita sua opção por atuar no passivo urbano (nos deficits acumulados especialmente nos setores de saneamento, habitação e regularização fundiária).

Abaixo, estão destacadas as propostas estruturantes da PNDU e que refletem este direcionamento.

Implementação dos Instrumentos Fundiários do Estatuto da Cidade

Visando combater a apropriação privada dos investimentos públicos na cidade, a aplicação desses instrumentos persegue a função social da cidade e da propriedade. Apesar de ambas serem de competência constitucional municipal, por meio do Plano Diretor, o Governo Federal tem papel fundamental por concentrar recursos financeiros e técnicos, especialmente se comparado à fragilidade institucional de boa parte dos municípios.

Para alcançar o objetivo de promover a inclusão territorial (Ministério das Cidades, 2004, p. 56), foi desenvolvida a Política de Apoio à Elaboração e Revisão de Planos Dire-tores que, para além do financiamento, buscou orientar conceitual, programática e meto-dologicamente os municípios, sobretudo para a promoção da habitação de interesse social.

Estrutura do Sistema Nacional de Habitação

No sentido da reestruturação institucional e legal do setor, a Política Nacional de Ha-bitação, aprovada pelo Conselho das Cidades (ConCidades) e instituída a partir de 2004, apontou medidas políticas, legais e administrativas visando efetivar o exercício do direito

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social à moradia e previu a organização de um Sistema Nacional de Habitação (SNH), o qual organiza os agentes que atuam na área de habitação e reúne os esforços dos três níveis de governo e do mercado, além de cooperativas, associações e movimentos sociais.

O Sistema está subdividido em dois sistemas que operam com diferentes fontes de recursos, formas, condições de financiamento e, de forma complementar, estabelecem me-canismos para a provisão de moradias em todos os segmentos sociais: o Sistema Nacional de Habitação de Mercado (SNHM) e o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS). Este último, instituído pela Lei Federal 11.124/2005,1 é voltado exclusivamente para a faixa de interesse social, definindo um modelo de gestão descentralizado e com instâncias de participação, que busca compatibilizar as políticas habitacionais federal, es-tadual, do Distrito Federal e municipal, e as demais políticas setoriais de desenvolvimento urbano, ambientais e sociais. A adesão dos entes subnacionais ao SNHIS caracteriza-se como voluntária, mas é condição necessária para que o FNHIS seja operado.

Promoção da Mobilidade Urbana Sustentável e Cidadania no Trânsito

Os principais objetivos da Política Nacional de Mobilidade Urbana são a integração entre transporte e controle territorial, redução das deseconomias de circulação e a oferta de transporte público eficiente e de qualidade, além do uso equânime do espaço urbano, melhoria da qualidade do ar e a valorização da acessibilidade universal e dos deslocamen-tos de pedestres e ciclistas.

Para promover uma mobilidade urbana sustentável, a PNDU considera a necessidade de um planejamento integrado de transporte e uso do solo, a atualização da regulação e gestão do transporte coletivo urbano e a promoção da circulação não motorizada.

Marco Legal para o Saneamento Ambiental

A Política Nacional de Saneamento Ambiental considerou fundamental a retomada da capacidade orientadora do Estado na condução da política pública de saneamento básico visando à universalização do acesso a esses serviços como um direito social. Para tanto, propôs a revisão do marco regulatório para o setor, concretizado na Lei Federal 11.445/2007, assim como a cooperação entre os entes, especialmente metropolitanos, que também contou com a Lei dos Consórcios Públicos – Lei Federal 11.107/2005. Recentemente, as diretrizes para a Política Nacional de Resíduos Sólidos foi consolidada na Lei Federal 12.305/2010. Tais providências foram acompanhadas pela retomada dos investimentos na área, destinadas a enfrentar a imensa carência de infraestrutura no Bra-sil, sobretudo no Norte e Nordeste.

Capacitar e Informar As Cidades

A PNDU estabeleceu como público prioritário do Programa Nacional de Ca-pacitação das Cidades (PNCC) (executado essencialmente por meio de parcerias) os técnicos das administrações públicas municipais, os atores sociais envolvidos com a implementação da política urbana e os técnicos das Gerências de Desenvolvimento Urbano – GIDUR/Caixa.

Outra ferramenta designada como fundamental para a gestão das cidades foi o Sistema Nacional de Informações das Cidades – SNIC, que consiste na sistematização,

1 O projeto de lei para o SNHIS foi apresentado ao Congresso Nacional em 1991 por organizações e movimentos populares urba-nos filiados ao Fórum Nacio-nal de Reforma Urbana, assi-nado por mais de um milhão de pessoas e tramitou por 13 anos. Assim, sua apro-vação é considerada uma conquista dos movimentos sociais.

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digitalização e georreferenciamento de informações e indicadores e sua disponibilização não só para os municípios, mas para toda sociedade.

Cabe destacar que algumas políticas setoriais tiveram mais prioridade política, es-pecialmente com a disponibilização de recursos, por parte da Presidência da República, causando certo desequilíbrio em termos das metas e objetivos almejados pela PNDU, so-bretudo quando se comparam às iniciativas incluídas ou não no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). É o caso das ações de saneamento ambiental em relação às ações de desenvolvimento institucional previstas na PNDU, não priorizadas.

Apesar de obras fundamentais para a garantia de condições mínimas de qualidade de vida urbana, o descasamento entre o vultoso investimento em infraestrutura face às iniciativas de desenvolvimento institucional e capacitação na gestão urbana tendem a gerar externalidades indesejáveis ao processo, tais como valorização imobiliária ou a “expulsão branca” de moradores de áreas que receberam investimentos públicos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Destaca-se, inicialmente, a complementaridade entre os estudos, dado que o estudo do IPEA (2001) – que traz uma abordagem macrorregional e extrapola o uso das variáveis populacionais – foi utilizado ou serviu de subsídio para os demais estudos analisados. Sua contribuição é significativa, entre outras razões, por suprir a defasagem de quase duas décadas na produção de uma leitura mais ampla da rede urbana do Brasil de final do século XX.

O IPEA (2001) aponta evidências observadas em estudos antecedentes (como o agravamento das disparidades e as diferenciações nas configurações espaciais e ritmos de desenvolvimento, presentes em planos desde a década de 1970), antecipa tendências ratificadas pelos estudos posteriores (como a dinâmica das cidades médias e áreas de fronteira) e traz sugestões também aperfeiçoadas pelos trabalhos que lhe seguiram (como a necessidade de elaboração de planos específicos e o fortalecimento dos mecanismos de gestão). Naturalmente, o estudo do IPEA não conseguiu antecipar movimentos que só surgiriam a partir de análises mais focadas e, principalmente, das políticas públicas e do contexto econômico que caracterizam esses dez anos desde a sua publicação, limitando o uso das suas conclusões nos dias atuais.

Ainda avaliando a complementaridade, constata-se que a PNDR adota fontes próxi-mas ou semelhantes ao IPEA (2001), mas opta por um recorte microrregional, coerente com o seu objetivo de identificação e atuação em áreas mais deprimidas. E mais: como a PNDR surge no bojo da retomada do planejamento nacional e regional (ignorados nas duas décadas anteriores), ela visa não apenas ler, mas extrair evidências que orientem um conjunto de políticas públicas destinadas a reduzir as disparidades regionais e, neste senti-do, realiza uma leitura mais eficiente na identificação de áreas vulneráveis.

Fernandes; Bitoun; Araújo (2009), por sua vez, reúne contribuições do IPEA (2001), da PNDR (2004) e dos estudos do Cedeplar (2000), orientando o seu olhar para as áreas metropolitanas (ainda que não desconsidere as demais). Tal escolha evidencia a opção do órgão demandante (o Ministério das Cidades) no sentido de atuar em áreas de maior concentração populacional e representa uma proposta bastante instrumental, na medida em que sobrepõe e relaciona visões múltiplas sobre os territórios, possibilitando escolhas mais ponderadas.

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Constata-se também a forte correlação entre a PNDR e o PNDU, uma vez que a primeira opta exatamente pela alternativa rejeitada pelo segundo, ou seja, busca me-canismos que, ao final, estimulem o desenvolvimento de novas centralidades, fora das áreas mais pressionadas. Naturalmente, este movimento não representa a intersetoriali-dade almejada pela Administração Pública nem significa uma estratégia suficientemente abrangente, mas pode sugerir avanços, dado que escolhas isoladas tenderiam a agravar problemas já instalados. Ainda assim, é fundamental avaliar em que medida estas polí-ticas têm sido efetivamente complementares ou se ainda restam vazios conceituais não alcançados por nenhuma delas, por exemplo, no caso de territórios nem tão vulneráveis nem tão pressionados – como talvez seja o caso das cidades com população entre 20 e 50 mil habitantes.

Outra evidência é o papel determinante das variáveis econômicas na construção das análises, mas, sobre este assunto, a questão que merece atenção especial é o que deter-minou a escolha do método, que começa com a definição e coleta das variáveis; avança no tratamento dos dados e nos pesos atribuídos às variáveis escolhidas; consolida-se nas leituras extraídas, no uso dados às informações e, sobretudo, nas propostas e políticas que se originam a partir dali. Tais escolhas refletem, em grande medida, a própria concepção de desenvolvimento das instituições responsáveis e dos órgãos demandantes e reforça a preocupação com as ideologias subjetivas que interferem no resultado final.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, R. S. O pensamento geográfico do IBGE no contexto do planejamento estat-al brasileiro. In: MARTINS, R. A.; MARTINS, L. A. C. P.; SILVA, C. C.; FERREIRA, J. M. H. (Eds.). Filosofia e história da ciência no cone sul: 3º encontro. Campinas: AFHIC, 2004. p.410-5. Disponível em: <http://ghtc.ifi.unicamp.br/AFHIC3/Trabalhos/55-Roberto-Schmidt-Almeida.pdf>. Acesso em: 06 out. 2010.BRASIL. Ministério das Cidades. Política Nacional de Desenvolvimento Urbano. Brasília, DF, 2004.BRASIL. Ministério da Integração. Política Nacional de Desenvolvimento Regional. Brasí-lia, DF, 2004. Disponível em: <http://www.integracao.gov.br/desenvolvimentoregional/pndr/>. Acesso em: 08 out. 2010.FERNANDES, A. C., BITOUN, J., ARAÚJO, T. B. Tipologia das cidades brasileiras (Vol. 2) BITOUN, J., MIRANDA, L. (Orgs.). Rio de Janeiro: Letra Capital: Obser-vatório das Metrópoles, 2009. Disponível em: <http://www.observatoriodasmetropoles.ufrj.br/Vol2_tipologia_cidades_brasileiras.pdf>. Acesso em: 30 set. 2010.IPEA, IBGE e UNICAMP. Configuração Atual e Tendências da Rede Urbana (Vol. 1), Série Caracterização e Tendências da Rede Urbana do Brasil, IPEA, IBGE, NESUR, Universidade Estadual de Campinas, Brasília, 2001.

A b s t r a c t The Brazilian urban network classification is an important tool of political, economic and social management, since it allows a more accurate direction for urban investments. Analyzing three recent studies that have developed ratings for Urban Network – Configuração Atual e Tendências da Rede Urbana, developed by Instituto de Pesquisas Aplicadas and Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; Política Nacional

Alessandra d’Ávila Viei-ra é arquiteta e urbanista do Ministério das Cidades; doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Arquite-tura e Urbanismo da UNB. Email: [email protected] Liliane Janine Nizzola é arquiteta e urbanista do Insti-tuto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional; mestre em Arquitetura e Urbanis-mo pela UFSC. Email: liliane. [email protected] Luana Miranda Esper Kallas é arquiteta e urba-nista; doutoranda do Progra-ma de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da UNB. Email: [email protected] Manuelita Falcão Brito é gestora pública do Ministé-rio da Educação; mestre em Políticas Públicas pela Funda-ção Joaquim Nabuco; douto-randa do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da UnB. Email: [email protected] Benny Schvasberg é mes-tre em Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ); doutor em Sociologia Urbana (UnB); Professor Associado II da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e do Programa de Pós-Graduação em Arqui-tetura e Urbanismo da UnB. Email: [email protected] Rodrigo Santos de Faria é mestre e doutor em História (IFCH-UNICAMP); Professor Adjunto II da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da UnB. Email: [email protected]

Ar ti go re ce bi do em junho de 2011 e apro va do pa ra pu-bli ca ção em setembro de 2011.

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de Desenvolvimento Regional, by Ministério da Integração Nacional, and, Tipologia das Cidades Brasileiras, by Observatório das Metrópoles – we can detect the permeability and complementarity between them, their contributions of them and the challenge to produce a consistent classification with the diversity of Brazilian cities. We highlight how the different interpretations of the urban network are incorporated into public policies, showing that the studies are part of the construction of a national urban policy. In this way, we believe that major challenges have been overcome.

K e y w o r d s Cities; urban development; public management; public policies; Brazilian urban network.

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OS USOS DA INFORMAÇÃO ESTRATÉGICA SOBRE

O TERRITÓRIO A Empresa de Consultoria PricewaterhouseCoopers

e o Planejamento Territorial

S é r g i o H e n r i q u e d e O l i v e i r a T e i x e i r aA d r i a n a M a r i a B e r n a r d e s S i l v a

R e s u m o O presente trabalho busca contribuir para a investigação da produção, da circulação e do poder articulador das informações no território brasileiro. Para tanto, partimos da investigação das empresas de consultoria em geral e da empresa de consultoria transnacional PricewaterhouseCoopers em particular. São analisadas a topologia da empresa, a tipologia das informações produzidas e a articulação de seus escritórios com a rede de cidades brasileiras. A estruturação da rede urbana brasileira foi central para a ramificação da empresa no território nacional. Trata-se de uma grande empresa de consultoria com importante participação no processo de reestruturação produtiva das corporações, bem como no processo de planejamento e privatização do território, assim como do aparelho estatal brasileiro na década de 1990. Analisamos, por fim, como esse planejamento foi colocado em contraposição ao planejamento participativo e democrático, voltado à totalidade da sociedade e do território.

P a l a v r a s - c h a v e Uso do território; círculos de cooperação; Pricewa-terhouseCoopers; empresas de consultoria; planejamento; privatização.

A INFORMAÇÃO, A REORGANIZAÇÃO E O USO DO TERRITÓRIO BRASILEIRO

A informação está no centro de vários debates contemporâneos. Quem controla a in-formação, quem a difunde, seus usos e seu papel na reestruturação da economia e do espa-ço têm sido constantemente debatidos. No entanto, poucas são as análises que conseguem sair do senso comum e depurar o que seria a informação e seu estatuto. Nossa intenção é enfocar a informação organizacional produzida por poucas empresas especializadas, exata-mente por serem estratégicas à acumulação, ao poder e ao controle do uso do território.

Conforme assinalou Benko (1996) foi em busca de uma mais valia cada vez mais sequiosa de agilidade que no último quartel do século XX o capitalismo foi marcado por uma ampla reestruturação da produção. A divisão social e territorial do trabalho foi aprofundada e a organização mundial passa a se dar de forma mais complexa e interde-pendente, conformando e destruindo, criando e reproduzindo, novas articulações e redes. Neste contexto, a informação ascende como uma de suas forças motrizes trazendo consigo a possibilidade (e a imposição) de um comando ágil, Just in Time. O menor tempo de circulação, distribuição e consumo torna-se central para a reprodução do capital (Harvey, 2005). A nova divisão do trabalho, portanto, também está sustentada na emergência e

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O S U S O S D A I N F O R M A Ç Ã O E S T R A T É G I C A

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difusão das tecnologias da informação (TI), uma vez que a informação estratégica tornou-se também elemento estruturador do território.

Parte da informação nascente nesse período é sigilosa e preenchida de valor de troca, pois, em um período em que a base do sistema capitalista globalizado é a especulação financeira, as incertezas e riscos gerados pelo sistema econômico exigem informações cada vez mais trabalhadas. Tais informações, diga-se de passagem, são fundadas em práticas científicas e utilizadas para orientar análises de conjuntura e criar vantagens competitivas.

Não deve nos surpreender, portanto, o fato de a informação tornar-se cada vez mais necessária ao processo de acumulação – para conhecer, organizar e planejar a produção a partir de um trabalho imaterial. Como assinalou Castillho (1999, p.34):

A informação assume características de conhecimento, controle e comando do território, sendo agora mais hierárquica e corporativa, uma vez mediada pelas novas tecnologias infor-macionais.

Essa é, portanto, a característica fundamental do período atual em que a associação intrínseca entre produção, técnica e ciência, com a informação, assumem papel central. Passa-se, assim, de um meio técnico a um meio ambiente técnico-científico-informacional (Santos, 1999 [1996]). É o período da grande indústria transnacional, das grandes corpo-rações, da internacionalização excessiva, da rapidez, da difusão (seletiva) das inovações e da indiferença dos sistemas técnicos em relação ao lugar em que se instalam.

Segundo Santos (1999 [1996], p.191), hoje “a informação não apenas está presente nas coisas, nos objetos técnicos que formam o espaço, como ela é necessária à ação reali-zada sobre essas coisas”. Portanto, ao analisarmos as mudanças constituídas e constituintes do território, após o advento da “revolução informacional” (Lojkine, 1995), veremos que o território foi (e é) moldado para se adaptar ao capital informatizado, a partir de uma intencionalidade verticalizada dos atores globais.

AS CONSULTORIAS E A EMPRESA PRICEWATERHOOSECOOPERS

Nas últimas décadas, configurou-se no mundo um grupo de empresas de consul-toria, constituindo uma rede planetária de informação e incluindo nessa arquitetura os países subdesenvolvidos. Essas empresas ganharam relevância, principalmente, após a re-volução informacional da década de 1970, que possibilitou o uso da informação aplicada a modelos de gestão e à reestruturação industrial, responsável por uma nova organização empresarial.

As empresas de consultoria nasceram no final do século XIX, mas só tomaram a forma das atuais empresas depois de um longo processo de fusões e aquisições. Em sua origem, estão ligadas ao processo de desenvolvimento do capitalismo nos Estados Unidos e na Inglaterra. Segundo Donadone (2003, p.4), das dez maiores empresas de consultoria no mundo, nove têm origem nesses países e apenas uma na França.

A enorme complexidade que assumiu a produção nesses dois países trouxe a neces-sidade de organizar a indústria com informações mais precisas. No início, seus maiores clientes eram bancos. Estes buscavam assessoria para questões específicas de engenharia, contabilidade e direito, a fim de avaliar as transações de fusões e aquisições que passam a

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ser cada vez mais demandadas, principalmente a partir dos anos 1920. Note-se que, desde o princípio, as empresas de auditoria (posteriormente também de consultoria) lidam com a informação organizacional e estão ligadas com o desenvolvimento territorial e industrial dos países centrais. Por isso, concordamos com Lojkine (1995, p.115) quando o autor afirma que “não se pode separar a transformação de natureza material do grande desen-volvimento das funções informacionais”.

Um novo impulso a essas empresas se deu na década de 1930; após a quebra da bolsa de Nova York, as empresas de auditoria/consultoria foram requisitadas para esta-belecer planos de salvamento das grandes empresas. De fato, nesse momento os Estados nacionais também passam a requisitar serviços de tais empresas, no contexto de origem e disseminação do planejamento moderno do século XX. Como evidenciou Santos (2003), o planejamento, que até agora vivemos, é fruto de um processo desencadeado a partir da crise mundial da década de 30, que teria colocado a necessidade cada vez mais premente de um planejamento que não deixasse a “rédea solta” do mercado. Segundo Donadone (2003, p.4), “entre as décadas de 1930 e 1940, o número de empresas de consultoria cresceu a uma taxa de 15% ao ano, passando de 100 empresas, em 1930, para 400, em 1940”. Outro momento de fortalecimento dessas empresas é verificado nos anos de 1940. Desta vez, a relação entre empresas de consultoria e Estado terá como finalidade a organização da guerra e a reconstrução da Europa. Como exemplo, podemos identificar a contratação pelo governo estadunidense de inúmeras consultoras. Os estudos da Booz Allen & Hamilton para a reorganização do exército e da marinha, e a transferência de seu principal escritório para Washington, evidenciam esse processo (Manzoni Neto, 2007).

Como vemos, o uso da informação é cada vez mais presente para a organização do Estado e das empresas. Tal processo ganhará novo impulso, mas dessa vez decisivo, a partir das décadas de 1970 e 1980, por conta da reestruturação produtiva. Muitas plantas fordistas são substituídas por uma produção flexível dispersa pelos territórios, especiali-zando cada setor aos lugares, formando-se verdadeiros circuitos espaciais de produção em escala planetária.

Nesses circuitos, ganha destaque a função gerenciadora. Tendo seu papel cada vez mais destacado, ela permite a descentralização da produção e a concentração do comando. Autonomia e interdependência é um par que se aprofunda, já que para o bom funcio-namento dos circuitos espaciais produtivos é necessária uma rede articulada em círculos de cooperação.1 É também neste processo que a terceirização é aprofundada e gestada.

É, portanto, a partir do desenvolvimento das tecnologias de informação, tributárias da guerra, que vêm à tona novas possibilidades de organização calcadas em novos sistemas técnicos. Há um aprofundamento na divisão social e territorial do trabalho, que especia-liza ainda mais cada parte do processo produtivo, complexificando o que Marx (1983, p.259) chama de “cooperação”. A ascendência das tecnologias da informação muda a forma de organização e planejamento das empresas, atesta Donadone (2003, p.7),

O incremento da informatização de aspectos administrativos e da produção com o intuito de ganhos de produtividade e utilização de softwares voltados à gestão de aspectos organizacio-nais possibilitaram um importante mercado para as consultorias.

As empresas de consultoria são requisitadas para a venda de planos de gestão e ava-liação estratégica. Auditorias e relatórios de fusões e aquisições começam a ser produzidos

1 Circuitos espaciais de produção “são definidos pela circulação de bens e produtos e, por isso, ofe-recem uma visão dinâmica, apontando a maneira como os fluxos perpassam o ter-ritório” (Santos & Silveira, 2001, p.143). Os círculos de cooperação, tratam da comunicação, presentes na transferência de capitais, ordens e informações (flu-xos imateriais), garantindo a organização de agentes dispersos geograficamente.

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em grande quantidade por essas empresas, principalmente no contexto dos anos 1990 por conta dos macro processos de fusões.

Destaca-se que as próprias empresas de consultoria passarão por esse processo de fusões. Trata-se de empresas que levaram o nome, segundo Donadone (2002), de accou-ting Firms, empresas de informação relacionadas a auditorias e consultorias tais como as “big Five” – PricewaterhouseCoopers, Accenture Consulting, KPMG, Ernst & Young e Delloitte Touche Tohmatsu – que controlam a maior parte do mercado de consultoria e auditoria no mundo. Estas empresas controlam boa parte do mercado mundial e latino-americano de consultoria, que tiveram, nas últimas décadas, um crescimento vertiginoso.

Como atesta Medeiros (2005, p.15),

Em 1977, Price e Peat cindiram suas atividades. Em 1987, nasceu a atual KPMG, união das empresas Peat Marwick & Mitchel, Robert Dreyfuss e Klynveld Main Goerdeler. A Price Waterhouse realizou, em 1998, fusão com a empresa Coopers & Librand, surgindo a PricewaterhouseCoopers.

Vemos, portanto, que a reestruturação produtiva associada às mudanças gerenciais posicionaram essas empresas como grandes agentes de organização da produção em escala mundial. As mudanças decorrentes da ascendência do meio técnico-científico-informacio-nal, por sua vez, tornaram possível a difusão dessas empresas em nível global.

As grandes empresas de consultoria ganham papel ainda mais relevante no mercado capitalista nas últimas décadas, pois, preparadas e organizadas com base em um vasto co-nhecimento sobre os mercados e os territórios (incluindo suas normas), dão suporte às cor-porações na nova política neoliberal de privatizações. Segundo Manzoni Neto (2007, p.40),

Uma vez que elas detêm um conjunto de informações estratégicas e valiosas sobre os lugares, seus serviços tornam-se insumos fundamentais nas estratégias corporativas, na busca pela fluidez mediante novos marcos normativos nacionais.

O desenvolvimento do capitalismo monopolista também vai favorecer o crescimento das consultorias, uma vez que a competitividade das empresas tornará as informações guardadas nos bancos de dados das consultorias ainda mais valiosas. Como assinalaram Farias & Silva (2008, p.8),

Os imperativos da globalização – com a busca desenfreada pela competitividade entre os grupos empresariais e, inclusive, entre territórios – fortalecem a atuação das empresas de consultoria, uma vez que elas especializaram-se no conhecimento de métodos e de modelos administrativos e gerenciais, sendo, portanto, detentoras de um “know-how” que escapa a especialização produtiva das corporações.

Esse mercado das consultorias se expande rapidamente, obtendo um ganho de escala vertiginoso. A tabela a seguir demonstra isso.

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Tabela 1 – Comparativo de receitas das quatro principais consultorias do mundo em 1996/2009

Consultorias em 1996 Consultorias em 2009

Empresas Receitas Funcionários Empresas Receitas Funcionários

Andersen Consulting $5.3bl 45000Pricewaterhouse-Coopers

$26.2bl 163000

Ernst & Young $3.5bl 11200 Delloitte Touche $26.bl 169000

Coopers & Lybrand $2.9bl 9000 Ernst & Young $21.4bl 144441

Mckinsei & Co $2.9bl 3900 KPMG $22.7bl 135000

Fonte: Elaborado a partir de Donadone (2003) e PWC Global Anual Review (2009)

Nota-se que, em 14 anos, os números mudam vultosamente. As empresas atingem um crescimento acima de 300% em renda e em número de funcionários.

Dentre as empresas de consultoria no mundo, destaca-se o fato de todas terem escri-tórios no Brasil. Nos chama ainda a atenção a vasta história de atuação no país. É o que atesta Medeiros (2005, p.15),

Em razão da chegada dos investidores estrangeiros [...] as firmas de auditoria provenientes dos países onde as bases do capitalismo já estavam sedimentadas (Estados Unidos da América do Norte e Inglaterra), abriram filiais no Brasil, logo nas primeiras décadas do século XX. Assim, a firma antecessora da atual multinacional Deloitte Touche Tohmatsu abriu seu pri-meiro escritório em solo brasileiro em 1911, na cidade do Rio de Janeiro (RJ), e um segundo na cidade de Recife (PE), em 1917. A Price Waterhouse & Peat Marwick chegou ao Brasil em 1915. Anos depois, ingressaram no país, a Arthur Andersen (1957) e a Artur & Young (1959), antecessora da atual Ernst & Young. No Brasil, a atuação das empresas de consultoria não é recente. Entretanto, so-

mente nas últimas décadas elas ganharam peso nas articulações do mercado nacional-internacional, visto que tal processo também acompanhou e subsidiou a financeirização da economia e as privatizações.

É sabido que a partir da década de 1990, aprofunda-se no Brasil o processo de privatização dos setores estratégicos do Estado, em consonância com uma concorrência cada vez maior entre as transnacionais, que passam a ocupar maiores espaços no território nacional. Para isso, as empresas de consultoria foram chamadas a gerenciar e administrar os processos de fusão, aquisição e privatização. E é neste contexto que surgirá a gigante PricewaterhouseCoopers, fruto de uma mega fusão. Segundo Donadone (2001, p.37), essa empresa já nasce como a segunda maior consultoria mundial, contando com um fatura-mento que superava 9 bilhões de dólares, e tendo escritórios espalhados por 149 países, com um corpo de 140 mil funcionários.

A Pricewaterhouse e a Coopers & Lybrand, grandes empresas com atuação no Brasil desde a década de 1980, foram responsáveis por importantes contratos no país. Em 1993, a Coopers & Lyabrand foi contratada pelo BNDES como empresa responsável para orga-nizar a auditoria e o processo de privatização do setor de energia elétrica no Brasil (Plano RE-SEB – Projeto de Reestruturação do Setor Elétrico Brasileiro2).

2 O projeto foi o responsável por concretizar a privatiza-ção do setor em 1997 sob uma lógica clara: “implemen-tar a concorrência em um setor monopolizado pelo Estado e controlado pela holding (estatal) Eletrobrás” (Antas Jr., 2005, p.210).

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Em 1998, após a fusão das empresas, a PricewaterhouseCoopers (PWC) chegará a ser a primeira do setor em faturamento, no mundo e no Brasil. Segundo a Bovespa, a PWC situa-se sempre entre as cinco primeiras empresas em número de clientes no Brasil.

Entre os clientes da PWC estão quase todas as maiores empresas em atividade no globo – Ford Motor Company, Chevron Texaco e IBM. A seguir, sintetizamos todos os clientes da PWC no Brasil, a partir de dados da Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Note-se que as empresas clientes foram agrupadas por setores de atuação da PWC.

Tabela 2 – Empresas clientes da PWC no Brasil em 2010

AgrobusinessBrasilagro Cia Bras. de Prop. Agrícolas, Fertilizantes Fosfatados S.A., Fosfertil – Fertilizantes Heringer S.A., Cia Bras de Agropec – Cobrape

Automotivo/Aéreo e Logística

Marcopolo S.A., Trip Linhas Aéreas S.A., Tam S.A., Concessionária Rota das Bandeiras S.A., Tegma Gestão Logística S.A.

Celulose Araucária Participações S.A., Santher Fab. de Papel Santa Therezinha S.A.

Comunicação e Informação

Telemar Participações S.A., 202 Participações S.A., Agv Holding S.A.

Consumo e Varejo

Iguatemi Empresa de Shopping Centers S.A., Ind Azulejos Bahia S.A., Lojas Renner S.A., Shopping Center Tacaruna S.A., Sdv Adm. de Shopping Centers S.A., Souza Cruz S.A., Br Malls Participações S.A, Csu Cardsystem S.A., Gbarbosa Holding S.A., Kroton Educacional S.A., Multiplus S.A., Paramount Têxteis Indústria e Comércio S.A., Companhia de Fiação e Tecidos Santo Antônio

Engenharia de Construção

CP Cimento e Participações S.A., Even Construtora e Incorporadora S.A. João Fortes Engenharia S.A., Mills Estruturas e Serviços de Engenharia S.A., Duratex S.A.

FarmacêuticoDrogasil S.A., Lab. Americano de Farmacoterapia S.A., Lab. Americano de Farmacoterapia S.A., Raia S.A., Hypermarcas S.A.

Financeiro

Banco Bradesco S.A., Banco Indusval S.A., Banco Mercantil Brasil S.A., Bco Mercantil Invs Sabm&F Bovespa S.A. – Bolsa de Valores, Mercadorias e Futuros, Bradesco Leasing S.A., BRB Banco de Brasília S.A., Brazilian Finance & Real Estate S.A., Itaú Unibanco Holding S.A., Itaúsa – Investimentos Itaú S.A., Itauseg Participações S.A., Itautec S.A. – Grupo Itautec, Redecard S.A., BFB Leasing S.A. Arrendamento Mercantil, Bmg Leasing S.A. Arrend. Mercantil, Brz Investimentos S.A., Dhb Ind. e Comércio S.A., Dibens Leasing S.A., Grv Solutions S.A., Habitasec Securitizadora, Investimentos Bemge S.A, Mercantil do Br Finc S.A. Cfi, Mercantil Do Brasil Leasing S.A., Multichem Trust S.A., Porto Seguro S.A., Prolan Soluções Integradas S.A., Safra Companhia Securitizadora de Créditos Imobiliários, Safra Leasing S.A. Arrendamento Mercantil, Safra Leasing S.A. Arrendamento Mercantil, Serasa S.A.

Governo Não há dados de serviços governamentais na CVM

Mineração e MetaisUsinas Siderúrgicas de Minas Gerais S.A., Vale S.A., Litel Participações S.A., Magnesita Refratários S.A.

Petróleo e gásQuattor Petroquímica S.A., Petroquímicas S.A., White Martins Gases Industriais do Norte S.A., Gec Participações S.A., Unipar – União de Indústrias Petroquímicas

QuímicoCompanhia Providência Ind. e Comércio, Dixie Toga S.A., Millennium Inorganic Chemicals do Brasil

Elétrico e Utilidade

Pública

Duke Energy Int Geração Paranapanema S.A., Eletrobrás Participações S.A. – Eletropar, Energipar Captação S.A., Centrais Elétricas Brasileiras S.A., Cia Hidro Elétrica Do São Francisco, Cia Saneamento Básico Estado São Paulo, Ita Energética S.A., Machadinho Energética S.A., Serra do Facão Participações S.A., Tempo Participações S.A.

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O faturamento líquido global da PricewaterhouseCoopers foi de US$ 17,6 bilhões no ano fiscal de 2004. Em 2009, essa cifra atingiu US$ 26,2 bilhões, tornando-a a maior empresa de consultoria do mundo depois que a consultoria líder até então, a Arthur An-dersen, quebrou devido ao escândalo envolvendo a empresa Enron.4

Tabela 3 – Receitas e funcionários das “Big For” (2009)

Empresas Receitas Funcionários

PricewaterhouseCoopers $26.2bl 163.000

Deloitte Touche Tohmatsu $26.1bl 169.000

Ernst & Young $21.4bl 144.441

KPMG $22.7bl 135.000

Fonte: Elaborado a partir de PWC Global Anual Review (2009)

A partir dos usos do território, ou seja, da dinâmica social associada aos seus desdo-bramentos espaciais, buscamos uma aproximação da dinâmica dessas empresas. Partindo da análise das redes de cidades da atual urbanização brasileira e de seus centros de polari-zação, vemos a sobreposição do mapa dos escritórios da PricewaterhouseCoopers no Brasil com as regiões de influência de cidades.

PRICEWATERHOUSECOOPERS: ARTICULAÇÃO DOS ESCRITÓRIOS NAS CIDADES POLARIZADORAS DA REDE URBANA BRASILEIRA – SÃO PAULO

No Brasil, a empresa PWC conta com uma rede de 16 escritórios. São 2.800 fun-cionários atuando em diversas áreas consideradas estratégicas (agrobusiness, automotivo, celulose, comunicação e informação, consumo e varejo, elétrico e serviços de utilidade pública, entretenimento e mídia, engenharia de construção, farmacêutico, financeiro, governo, metais, mineração, petróleo e gás, químico e tecnológico). Seus escritórios se distribuem pelas principais cidades do país, sendo 12 deles na Região Concentrada e cinco localizados no Estado de São Paulo. Para Santos (1994), a região concentrada coincide com a área contínua de manifestação do meio técnico-científico-informacional, ao passo que nas demais regiões do país tal manifestação ocorre de maneira seletiva e pontual.4 Em São Paulo, os escritórios da empresa encontram-se em nós dinâmicos da rede urbana paulista: São Paulo, Campinas, Ribeirão Preto, Sorocaba e São José dos Campos.

Todas são cidades preparadas para receber o aporte informacional da empresa. Ci-dades com universidades de ponta, setor de serviços diversificado e modernizado e setor produtivo de alta tecnologia.

Levantamos a hipótese de uma relação estreita, e não casual, entre a localização dos escritórios da empresa e os nós mais dinâmicos (e articuladores) da rede urbana. Isso porque estes lugares configurar-se-iam como espaços privilegiados para conformação e co-mando dos círculos de cooperação no território: um espaço de fluxos reguladores. A própria empresa ressalta essa estratégia em seu site

4 “Em decorrência do caso Enron, a Arthur Andersen, em 07/03/2002, foi acusa-da formalmente por obstru-ção à Justiça, pelo fato de funcionários da referida firma de auditoria terem procedido à destruição de documentos e provas de sua conivên-cia com as irregularidades provocadas por sua cliente. Tal fato gerou um colap-so na empresa, não só em nível local (mercado norte-americano), como em nível mundial. Em 31/08/2002, a Arthur Andersen encerrou suas atividades como em-presa de auditoria externa nos EUA. Nos demais países em que atuava, seus escri-tórios e profissionais foram absorvidos por firmas con-correntes, acabando assim a história da quase centenária grife “Arthur Andersen” (Me-deiros, 2005, p. 47).

4 Escritórios na Região Con-centrada: São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Belo Ho-rizonte, Curitiba, Joinville, Porto Alegre, Caxias do Sul, Ribeirão Preto, Campinas, São José dos Campos, Soro-caba, Vitória; Norte: Manaus; Nordeste: Recife, Salvador. www.pwc.com página Brasil, 14/04/2009.

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O alcance geográfico da PwC Brasil permite a seus profissionais conhecer as vocações econômicas de cada região brasileira, compreender as particularidades culturais e absorver experiências próprias de cada localidade, o que garante ainda maior eficiência na prestação de serviços (<http://www.pwc.com/>, 2010).

No intuito de aprofundar essas questões, e demonstrar como as empresas de consul-toria escolhem, criteriosamente, os lugares onde se instalam, tomaremos por base a análise das Regiões de Influências de Cidades (REGIC) do IBGE de 2007.

Usaremos, também, aquilo que acreditamos ser as variáveis-chave escolhidas pela empresa para a instalação de seus escritórios na rede, quais sejam: a densidade, a topologia e a configuração hierárquica da rede de cidades. E, nesse sentido, os estudos e contribuições de Egler (2001) e Moreira (2004) são fundamentais. De acordo com os autores, a den-sidade expressa a relação entre o número de núcleos urbanos e o território definido pelo sistema urbano-regional. Como indicador simples da topologia, utiliza-se a relação entre o número de ligações e o número de cidades que formam o sistema urbano-regional ana-lisado, melhor caracterizando o sistema em questão. Por fim, é através da hierarquia que vemos como o ordenamento espacial se adequa às funções urbanas, e vice-versa.

Do ponto de vista da dinâmica espacial, o principal aspecto é o potencial de desen-volvimento da cidade, isto é, a sua capacidade de adensamento e expansão futura. Isso porque, este critério ajuda-nos a entender como se conformam as metrópoles globais e nacionais, bem como as capitais regionais. Tem-se, assim, um esboço sobre a Rede Urba-na Brasileira, como demonstra o mapa da rede urbana.

Note-se que das 12 cidades polarizadoras como metrópoles nacionais da rede 9 têm escritórios da PWC (São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Belo Horizonte, Curitiba, Manaus, Brasília, Recife e Salvador) além de outras 7 capitais regionais (Campinas, Caxias do Sul, Vitória, Ribeirão Preto, Joinville, Sorocaba e São José dos Campos).

Nessa verdadeira arquitetura informacional chama a atenção o papel de São Paulo. A região metropolitana de São Paulo passa, assim, por um processo de expansão de sua in-dústria e, posteriormente, em um período mais recente, a uma desconcentração industrial, no sentido de uma expansão do dinamismo da cidade de São Paulo para outras cidades da região metropolitana. Ao mesmo tempo, o que se verifica é uma concentração dos serviços avançados ou quaternário na capital paulista.

Figura 1 – Rede Urbana do Brasil

Fonte: IBGE, Regic 2007

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Figura 2 – Rede de escritórios da PricewaterhouseCoopers no Brasil, 2010

Fonte: elaboração própria, a partir de www.pwc.com

Concordamos com Lencioni (2004, p.70), quando a autora afirma:

Trata-se de um processo de expansão da concentração, de um processo de desconcentração territorial da indústria da região metropolitana, no qual a cidade de São Paulo afirma e desenvolve sua centralidade, se inserindo como um nó da rede mundial de cidades globais. Tanto que os serviços especializados relativos às finanças, à propaganda, ao marketing, ao planejamento e à consultoria tendem a se concentrarem na Capital.

Mantendo as atividades mais avançadas, a cidade de São Paulo desenvolverá sua centralidade,5 abrigando a indústria em setores de vanguarda e os serviços mais avançados ligados à informação (finanças, propaganda, marketing, planejamento e consultoria) tor-nando-se nó da rede mundial de cidades. Assim, a cidade, por suas rugosidades,6 seu dina-mismo econômico e sua complexa divisão do trabalho, recebeu as atividades relacionadas ao circuito superior da economia urbana da fase atual de mundialização do capitalismo. Ela concentrou as atividades do setor quaternário da economia dando início à formação da metrópole informacional.

As grandes empresas de consultoria, configuradas dentro desses circuitos informa-cionais, têm em São Paulo abrigo para se desenvolverem. Como já destacamos, o setor quaternário da economia se espacializa em lugares onde as rugosidades, materializadas em uma base técnica, uma tecnosfera, apresentam maior desenvolvimento.

O rompimento das múltiplas ordens locais com a mundialização do capitalismo, for-jou um planeta em reconstrução permanente. Plásticas, as redes globais seguem sua trama em busca de lucro e a custas de uma quantidade infinita de informações. Os territórios onde se instalam são objetos de eximia avaliação sendo, em seguida, convidados a uma informatização na forma de novos objetos e novas ações.

Frise-se que este processo se dá de forma vertical, é hierárquico. Portanto, a concen-tração dos serviços superiores da economia urbana, das grandes empresas de consultoria, na cidade de São Paulo é fruto do papel de comando da cidade na rede de cidades do território brasileiro. É por meio da concentração técnica, situada na capital paulista, que

5 “A principal contribuição do conceito de centralização para a interpretação do urba-no é que a gestão empresa-rial dos grupos econômicos e das grandes empresas em rede priorizam a metrópole e, no caso brasileiro, prioriza a metrópole de São Paulo. É no exercício da função central da metrópole, que é de controle do capital, que se adensam os serviços pro-dutivos, os serviços voltados às empresas, muitas vezes denominados de serviços avançados” (Lencioni, 2008, p.14).

6 “Ainda que sem tradução imediata, as rugosidades nos trazem os restos da divi-são do trabalho já passadas (todas as escalas da divi-são social do trabalho), os restos dos tipos de capital utilizados e suas combina-ções técnicas e sociais com o trabalho (Santos, 2004, p.140).

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as ordens se dão para o restante do território. Isso porque, o meio técnico-científico-informacional não se instala em todos os lugares, ainda que comande todo o território. Os fluxos de informação, com seu poder articulador, acabam por moldar as áreas de influ-ências das cidades. Ao analisarmos os dados sobre as empresas de consultoria e os serviços superiores da economia, podemos notar sua tendência à concentração em alguns pontos do território. E a cidade de São Paulo, ponto de comando, destaca-se notavelmente como abrigo desses setores.

Tabela 4 – Número de ocupações envolvendo as atividades de consultoria

Ano 1995 2000 2005

Brasil 282.135 362.031 365.477

São Paulo 131.277 163.099 155.384

Região Metropolitana de São Paulo 94.158 126.614 123.259

Região Metropolitana de Campinas 5.191 6.224 5.978

Fonte: RAIS

A análise dos dados é salutar como exemplo da polarização em relação às atividades informacionais. Se excluirmos a cidade de São Paulo, a RMSP concentra cerca de 30% de ocupações envolvendo atividades de consultoria no Brasil e a região metropolitana de Campinas cerca de 15%. No entanto, ao levarmos em consideração a cidade de São Paulo, o número é surpreendente: por volta de 50% destas atividades estão na cidade de São Paulo. Não é, portanto, coincidência que seja exatamente nessa cidade a sede da PWC no território brasileiro. Mais exatamente na região da Marginal Pinheiros, centro informacional que concentra a densidade técnico-científica-informacional necessária à atual articulação mundial da empresa.

A informação e as empresas de consultoria impulsionam mudanças substanciais na divisão técnica, social e territorial do trabalho contemporâneo, contribuindo para trans-formar as regiões em que atuam em pontos luminosos das redes corporativas globalizadas.

EMPRESAS DE CONSULTORIA, PLANEJAMENTO E PRIVATIZAÇÕES

A dinâmica e os desdobramentos desse novo espaço de fluxos reguladores articulado pelas grandes empresas globais e nacionais de consultoria podem ser apreendidos por meio da aprovação e implantação do Programa Nacional de Desestatização, bem como por meio da institucionalização e operacionalização do novo planejamento territorial. Proble-matizamos, conforme Vainer (2007, p.5), que “a privatização dos setores responsáveis pela infraestrutura acabou tendo como corolário a privatização dos processos de planejamento e controle territorial que são intrínsecos aos grandes projetos”.

Ora, as empresas de consultoria entram nesse processo com o aval do Estado através do BNDES,7 pois ficou a cargo deste banco, gerenciar, acompanhar e realizar a venda das empresas incluídas no PND (Programa Nacional de Desnacionalização). Nesse sentido é que Antas Jr. (2005), aponta o PND como uma das mais radicais transformações na estrutura territorial na história da formação socioespacial brasileira: ao privatizar grandes

7 Ficou a cargo do BNDES a contratação das empresas de consultoria para conferir credibilidade as empresas privatizadas no âmbito do mercado mundial. “O BNDES é um dos principais atores no processo de privatização no Brasil pois é, ao mesmo tempo, mentor, administra-dor e financiador do Progra-ma Nacional de Desestatiza-ção” (Silva, 2001, p.219).

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sistemas técnicos incrustados no território, entrega-se também a gestão e a regulação ter-ritorial à iniciativa privada, sobretudo às empresas de consultoria.

No mesmo período, a Secretaria Nacional de Energia do Ministério das Minas e Energia por meio do BNDES encarregou a empresa inglesa Coopers & Lybrand de pro-por um novo formato para o SEB (Sistema Elétrico Brasileiro) que contemplasse a livre concorrência entre os agentes. O relatório final da consultoria foi entregue em meados de 1997 e conformou-se como balizador das decisões governamentais a respeito da reestrutu-ração e privatização do setor. Os consultores confirmaram algumas medidas que já tinham sido tomadas e propuseram novas.

Segundo Pedroso Neto (2006, p.126)

Em termos de mudanças institucionais as principais foram: a regulamentação do papel do produtor independente de energia; a regulamentação do mercado Atacadista de Energia, onde se negocia energia elétrica dos sistemas interligados; a criação do Comitê Coordenador da Expansão de Sistemas Elétricos, também vinculados ao Ministério das Minas e Energia, para planejar e coordenar a expansão do sistema em longo prazo (antes a atividade estava a cargo da Eletrobrás via o Grupo Coordenador do Planejamento dos Sistemas Elétricos), e, por fim, a criação do Operador Nacional do Sistema Elétrico, no lugar do Sistema Nacional de Transmissão de Energia Elétrica.

Os produtores independentes passam a multiplicar-se, são entidades de direito privado cuja propriedade é compartilhada pelos agentes do setor. Eles têm por função garantir o suprimento de energia nas redes de transmissão a tarifas equitativas e otimizar e coordenar a operação do sistema (antes a coordenação e operação estavam sob responsabi-lidade da Eletrobrás via o Grupo de Operações Interligadas). O setor passa a ser regulado pela ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica) e é supervisionado pelo Ministério de Minas e Energia.

Mais especificamente em relação às empresas do setor, os consultores recomendaram a desverticalização das atividades (antes realizadas em conjunto por cada empresa) e a pri-vatização das empresas que se originariam. Da desverticalização resultou a separação das atividades de geração, transmissão, distribuição e comercialização. As empresas de geração deveriam ser privatizadas; a atividade de transmissão deveria ficar por conta de uma empresa de capital aberto, mas controlada pelo governo; as empresas de distribuição deveriam ser privatizadas, mas suas redes, como a da empresa de transmissão, poderiam ser utilizadas livremente por outros fornecedores de energia, mediante uma tarifa equânime. Para isso, em todas elas, sem exceção, deveria ocorrer a separação contábil das atividades de operação e desenvolvimento das redes de distribuição. O objetivo era viabilizar a criação de uma tarifa para o uso das redes de distribuição, e assim fomentar a concorrência nas vendas no varejo.

Antes do relatório Coopers & Lybrand, o governo federal tinha vendido duas subsi-diárias da Eletrobrás: a Escelsa e a Light. Após, ele promoveu a reestruturação da holding federal e de suas subsidiárias regionais, segundo as recomendações dos consultores. E, na sequência, foram leiloados os ativos de geração da Eletrosul (1998) que, desde então, ficou encarregada somente da transmissão de energia. As outras subsidiárias da Eletrobrás foram reestruturadas em parte, mas não foram leiloadas. O objetivo proposto pela consultoria foi o de privatizar, principalmente, a distribuição, setor de melhor lucro em relação aos investimentos, e privatizar parcialmente a geração de energia, parte mais custosa que de-veria em sua maioria provir do Estado.

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Assim, o Estado sustentava a lógica global no território: uma lógica fragmentada dentro dos aspectos da reestruturação organizacional. O problema então é que a partir dessa lógica as usinas hidroelétricas passam a existir apenas como forma rentável e não a de suprir a demanda como pode ser visto na análise de Ramalho (2006) sobre o projeto da Coopers & Lybrand,

umas das propostas da consultoria avaliava que dentro de um contexto de uma análise basea-da em mercado, o critério de risco de déficit é um fator de menor importância […]. A usina só deveria ser adicionada ao sistema uma vez comprovada a eficiência disto, do ponto de vista econômico. Seria o caso então de basear-se em critérios econômicos para o planejamento da geração e não na probabilidade de déficit, assim uma nova usina deve ser incorporada ao sistema apenas se for economicamente interessante.

Até 2002 o governo federal procurou instalar um modelo de relacionamento entre os agentes do SEB que permitisse a concorrência tanto entre os produtores de energia, como entre os comercializadores de energia no atacado e no varejo buscando a energia não mais como um direito, mas como mercadoria. Ao mesmo tempo, criou um novo aparato institucional para regular e arbitrar os relacionamentos entre o conjunto dos agentes envolvidos. De modo geral, iniciativas do mesmo gênero ocorreram nos estados, em maior ou menor grau.

Podemos dizer que a empresa de consultoria cumpriu com as mudanças anuncia-das: o papel de organizador do sistema com vistas a facilitar o lucro das empresas e para isso se utilizou do território como controle do aparato energético. O planejamento, ou melhor, a gestão do lucro se sobrepôs ao planejamento o que levou a uma crise ener-gética9 gigantesca no país quando se escancarou que o sistema não dava mais conta das necessidades da população. É essa, pois, em termos gerais, a consequência da gerência do território pautado nessa lógica verticalizada pelas empresas de consultoria em que o Estado concede espaço de atuação para as empresas privadas, de modo que a ideia de competitividade se sobrepõe a de desenvolvimento da nação, uma vez que as firmas entendem o território como espaço econômico, a partir do potencial de receita e de valorização do capital.

O PLANEJAMENTO POSSÍVEL

Discutimos que as empresas de consultoria são as detentoras de racionalidades da globalização que se aplicam ao território de forma vertical, hierárquica. No entanto, essa lógica de planejamento se sobrepõe a outra, a do planejamento democrático e participa-tivo que existiu parcialmente no final da década de 1980 em algumas cidades brasileiras (notadamente ressalta-se a experiência de Belém do Pará e Porto Alegre, ambas em 1989). Esse planejamento foi abandonado, na medida em que se recriou e se reforçou a áurea do planejamento neutro e estratégico.

O planejamento territorial tem servido historicamente e exclusivamente à reprodu-ção do capital para garantir “dentro da lei e da ordem” o desenvolvimento da acumulação. Para tanto, o planejamento ganhou status de ciência já que assim pode se afirmar como “neutro”. Em verdade, troca-se hoje a noção de Planejamento pela de Gestão. Acreditamos que planejamento e gestão não são práticas contraditórias em si, pois o planejamento

9 Não temos condições de tratar da crise do setor nes-se artigo, no entanto, res-saltamos que a crise ener-gética teve seu centro na administração do Estado que ao priorizar a construção de usinas sob a lógica do lucro deixou para segundo plano a questão do déficit que estou-rou no Apagão de 2002.

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cumpre uma função norteadora para a gestão, enquanto esta cumpre a função de efetivar o futuro que se planeja. Claro que entre essas determinações, para nós, existe o ponto de partida que deve ser o planejamento já que esse é o futuro; e, ao contrário, quando se escolhe a gestão como ponto de partida busca-se uma típica ilusão do capitalismo: projetar o presente como se esse fosse o futuro imanente.

Assim, uma lição histórica importante é que não devemos aceitar o planejamento como produto exclusivo de uma razão técnica e neutra, mas temos que identificá-lo como fruto do interesse de quem o promove. Dessa forma, entende-se que o planejamento ao abarcar tais dimensões pode ser instrumento político de controle ou libertação (Monteiro, 2001). Ao contrário de um “discurso competente” da gestão – preconizado pelas elites como planejamento técnico – deve-se construir uma práxis planejadora que se norteie pela construção de conjunto com os atores sociais envolvidos no planejamento. O plane-jamento visto enquanto técnica, logo, com roupagem de neutro, só serve aos interesses dominantes. Foi o que vimos ao analisar o setor elétrico sob tutela dos consultores:

Por exemplo, mesmo em um contexto de crise de abastecimento eminente, eles não tiveram o porque investir no sistema uma vez que o retorno econômico de sua ação não se mostrava atraente, o que se traduziu em um pesado racionamento de energia imposto à nação (Rama-lho, 2006, p.163).

Devemos então, a luz do que vimos, tentar superar esse planejamento e nesse sen-tido cabe a pergunta: seria possível uma neutralidade do planejamento dos territórios? Obviamente que não, por isso o planejamento deve ser encarado no que ele realmente é: um instrumento político de dominação de uma classe sobre a outra. Esta nos parece a problemática central diante do avanço da racionalidade global corporativa, sobretudo em territórios periféricos como o brasileiro.

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A b s t r a c t This article seeks to contribute to the investigation of the information as the articulating power concerning production and circulation in the Brazilian territory. The consulting companies, and more specifically the transnational PricewaterhouseCoopers are analyzed. The article considers the company’s topology as well as the information typology that it produces and also the link between the PricewaterhouseCoopers’ offices and Brazilian cities network. The structure of such network was an important factor to the company scattering throughout the territory. This company plays an important role in the corporations’ productive restructuring as well as in the territory planning and privatization. It is also relevant the influence it had in the state apparatus in the 1990s. Finally, the article analyzes the opposition between the planning headed by the company and the participatory and democratic planning, which focuses on the entire territory and society.

K e y w o r d s Used territory; cooperation circles; PricewaterhouseCoopers; consulting companies; planning; privatization.

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DESENHANDO TERRITÓRIOS A Cartografia de Cândido Mendes

e o “Nordeste” Brasileiro do Século XIX

G e o r g e A l e x a n d r e F e r r e i r a D a n t a sA n g e l a L ú c i a F e r r e i r a

Y u r i S i m o n i n i

R e s u m o Em meados do século XIX, a articulação sistematizada do território da nação brasileira foi formulada como ponto-chave para a estruturação da economia e da sociedade modernas. Esse intento ultrapassava as antigas demandas de controle geopolítico e encontrou nas estiagens prolongadas nas “províncias do norte” um sério problema. Falar de nova estrutura territorial pressupõe indagar: que conhecimentos e informações iconográficas sobre o território em reorganização tinham aqueles que adentraram no “Brasil desconhecido”? Discutir pertinências e limites do uso das fontes cartográficas como documentos que permitam compreender as ações sistematizadas sobre o território nordestino é o objetivo deste artigo. Para tanto, privilegiar-se-á o “Atlas do Império do Brazil”, organizado por Cândido Mendes de Almeida, em 1868, com ênfase nas províncias mais atingidas pelas secas: CE, RN, PE e PB. O Atlas é lido assim dentro da trama de relações da formação da cultura técnica moderna no Brasil e, mais especificamente, dos processos que levariam à definição da região Nordeste.

P a l a v r a s - c h a v e Atlas; Cândido Mendes; cultura técnica; Império; reconfiguração territorial; Nordeste/Brasil.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O processo de superação da estrutura e do estatuto coloniais levou décadas para se completar no Brasil – em grande medida alterados, como dimensão física e de maior visi-bilidade, com as reformas urbanas realizadas, grosso modo, entre 1890 e 1920. Contudo, além das formulações e ações políticas e econômicas que secundaram essas reformas, as propostas para transformação da dimensão material foram fundamentais para estabelecer o suporte às novas demandas de produção e de circulação de mercadorias e pessoas. Mais ainda, exigiu uma reestruturação da rede urbana que apontava para novas configurações territoriais que teriam desdobramentos em grande parte do país.

Os esforços para pensar o território ultrapassaram os processos de fundação de núcleos urbanos – de resto, elemento fundamental da política de colonização portuguesa – como bem o demonstraram Roberta Delson (1979) e Nestor Goulart Reis (2000), de maneira decisiva a partir do final do século XVII. Em linhas gerais, a partir de meados do século XIX, no Brasil, a articulação eficiente do território – da Nação, da região e ou da cidade – seria formulada como uma questão-chave para a estruturação da economia e da sociedade modernas, para além das exigências geopolíticas coloniais. Articulação que implicou necessariamente uma nova estruturação ou mesmo a construção de um sistema – suporte físico, burocracia, maquinismos, administração, entre outros – de circulação e de comunicação. Ademais, demandou a produção de conhecimento sobre os objetos a

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serem controlados e mesmo transformados – paisagens, acidentes, relevos, bacias e cursos d’água etc.

O fenômeno climático de irregularidade das chuvas, principalmente no que se refe-re à estiagem, foi erigido como um dos problemas centrais para pensar as articulações das partes do Brasil, como formulariam muitos técnicos, políticos, intelectuais e publicistas de maneira geral, na segunda metade do século XIX. Tornou-se um tema privilegiado, portanto, e não apenas pelo recorte crítico do pesquisador atual, para investigar e pro-blematizar a delimitação de um campo disciplinar e institucional de discussão – a esfera pública da cultura técnica moderna – e ao mesmo tempo a delimitação de um espaço geográfico e econômico, social e cultural (no caso, a região que, no início do século XX, seria denominada “Nordeste”). Afinal, as secas, “lidas como problema, mobilizaram consciências e esforços para a sua superação”, processo pelo qual se permite, direta ou indiretamente, “mapear e discutir algumas das ideias-chave, das visões, dos projetos articulados para a modernização do Brasil assim como as representações que os funda-mentaram” (Ferreira, Dantas, Farias; 2008; 2006).

As discussões sobre a problemática das estiagens periódicas implicaram abordar a reestruturação do território que se urgia realizar a partir, sobretudo, de meados do século XIX. As secas foram transformadas em problema para se pensar a integração do território da nascente Nação1 no contexto das transformações gerais do mundo ociden-tal no período, de amadurecimento das relações capitalistas, da lógica de reprodução da força de trabalho, das necessidades de produção, circulação e comunicação. Isso exigia outra estrutura territorial, diversa daquela oriunda do período colonial e para a qual – diante das necessidades de novos arranjos – as prolongadas estiagens constituíram-se um entrave.

Mas, falar em nova estrutura territorial pressupõe estabelecer, pelo menos, um marco comparativo: que território estava sendo transformado? Quais suas características físicas e como era representado graficamente? Que conhecimento e informações cartográficas tinham aqueles que adentraram os sertões? Enfim, qual(is) a(s) referência(s) a partir de que se pôde articular um conjunto de conhecimentos – aqui referidos como cultura técnica moderna – que embasaria desde o entendimento e ações de enfrentamento contra as secas aos projetos de construção da Nação e as perspectivas de integração?

Essas questões apontam para um tema mais específico, dentro do escopo do projeto de pesquisa, desenvolvido pelo Grupo de Pesquisa História da Cidade, do Território e do Urbanismo (HCUrb, do Departamento de Arquitetura da UFRN), ao qual os autores estão vinculados, intitulado “Cultura técnica, projetos e reconfigurações urbanas e territoriais (Nordeste/Brasil, 1850-1930).2 Além disso, conformam também o objetivo deste artigo, a dizer – ainda como uma primeira aproximação para análises –, discutir as pertinências e os limites do uso das fontes cartográficas como documentos que permitam compreender as ações sistematizadas sobre o território nordestino a partir de dois aspectos: primeiro, os instrumentos e suportes intelectivos utilizados e construídos no âmbito de formação de uma cultura técnica moderna no século XIX; e, segundo, a própria realidade geográfica para os quais se construíam estratégias de investigação e, sobremodo, transformação pela ação planejada sobre o território.

Para tanto, toma-se aqui como objeto privilegiado o “Atlas do Império do Brazil”,3 organizado e publicado pelo professor e jurista Cândido Mendes de Almeida, em 1868. Destinado originalmente aos estudantes do Colégio Dom Pedro II, no Rio de Janeiro – local de formação secundarista de parte da elite do país e daqueles que iriam compor a

1 É certo que, como o de-monstram o relato de vários cronistas do período colonial ou mesmo o de um viajan-te do início do século XIX, como Henry Koster, que as secas eram problematiza-das havia tempos; contudo, dentro de outra lógica e ordem de valores, como os morais e familiares – porque, por exemplo, ao quebrar as possibilidades de produção autossuficiente do latifúndio por longos períodos, forçava o deslocamento das famílias e seu séquito de agregados do mundo rural para o mun-do urbano.

2 O projeto aponta para a possibilidade de investigar a dimensão técnica que se-cundou o processo histórico de construção do território brasileiro – com ênfase para a porção do território que, depois, no início do século XX, seria denomina-da Nordeste. Para possibi-litar o entendimento dessa dimensão – e em especial o seu rebatimento sobre o espaço físico e cultural do Nordeste do Brasil –, a pes-quisa contempla as matrizes ideológicas e culturais que a fundamentaram, os sabe-res que a compuseram e justificaram as práticas dela originadas, os profissionais e instituições que foram pro-tagonistas dessa trajetória e as intervenções a ela relacio-nadas e que transformaram e estruturaram territórios e cidades, ocupando uma po-sição central no processo de configuração do Nordes-te moderno dentro da Nação que se formava em fins do século XIX e início do XX.

3 Para este artigo, foi con-sultado o exemplar original do Atlas que se encontra na Seção de Obras Raras da Biblioteca Central da UNICAMP, além das cópias digitalizadas disponibiliza-das pelo site Domínio Pú-blico [http://www.dominio-publico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=28870] e pela Biblioteca do Congres-so (Geography and Map Di-vision) dos Estados Unidos, Washington, DC, coligido pe-lo projeto American Memory [http://memory.loc.gov/cgi-bin/query/h?ammem/gmd:@field%28NUMBER+@

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burocracia e os corpos técnicos de vários órgãos estatais4 –, o Atlas buscava suprir o que considerava as imensas lacunas do saber e do ensino da geografia do país, disciplina fun-damental para a formação do estadista, do legislador, do administrador (Almeida, 1868, p.7, col. 1-3).

Para desenvolver as ideias aqui colocadas de forma sintética se apresenta inicialmente a dimensão política da cartografia e, em seguida, se comenta acerca da trajetória do pro-fissional Cândido Mendes e de sua obra, detalhada no momento posterior para dar conta de sua contribuição na leitura específica das províncias do Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco.

UMA CARTOGRAFIA DO PODER

Ao se debruçar sobre um mapa, o leitor tem à sua disposição uma representação cartográfica de um determinado espaço geográfico. Os dados ali registrados fornecem uma série de informações de acordo com a necessidade daquele que o produziu e daque-les que o leem.

Em um primeiro momento, ressalta-se o seu apelo imagético que se reveste com uma “linguagem poética na medida em que os versos não são feitos de rimas sonoras, mas de rigor técnico e plasticidade visual” (Lassalle, 1990 apud Teixeira Neto, 2006, p.54). Seu papel principal, contudo, sempre esteve atrelado ao poder, seja para delimitar e administrar a extensão dos territórios dominados seja para fins de estratégia – afinal, se, para Yves Lacoste (1998), a Geografia serve para fazer a guerra, pode-se dizer que então os mapas são os seus generais. Essa estreita relação entre a cartografia e o poder político resultou na produção de mapas que possuíam certas funções específicas, que vão “[...] da construção de um Império Mundial à manutenção do Estado-Nação e à afirmação local dos direitos de propriedade individuais” (Harley, 2009, p.5). Nesse sentido, Brian Harley (2009, p.5) conclui que “[...] as dimensões do regime político e do território são compiladas em imagens que, assim como o ordenamento jurídico, fazem parte do arsenal intelectual do poder”.

Inclusive, a própria definição dos mapas que ilustraram o Atlas de Cândido Mendes foi sopesada e marcada pela discussão sobre as disputas territoriais e sobre os tratados internacionais (desde o de Utrecht, de 1713, até os mais recentes, como o de Viena, de 1815, e os específicos para delimitação das fronteiras com a Venezuela, com o Equador e com a Colômbia, e.g.). Em especial, os mapas gerais do Atlas – II, III e IV, com as divisões administrativas, a marcação das ilhas e lagos e demais acidentes geográficos – são antes de tudo peças de afirmação do Império, tanto para seus limites internos quanto, e princi-palmente, nesse momento, para os limites com os demais países (incluindo aí também os domínios sobre o Atlântico Sul).

Isso significa que o mapa ou o seu conjunto – o atlas – não podem ser tratados como uma fonte isenta de subjetividade sob o aparente manto tecnicista da sua forma de produ-ção.5 E a sua análise como um texto, afirma Harley (2009, p.5), carece de maiores estudos, apesar de reconhecer que “os cartógrafos e historiadores de mapas têm consciência, há bastante tempo, que o conteúdo dos mapas tem uma tendência a criar o que eles chamam de desvios, distorções ou de abusos em relação à realidade”. Dentro dessa perspectiva, as atuais pesquisas sobre a história da cartografia reforçam a postura metodológica de que, como apontam Hector Mendoza Vargas e Carla Lois, (2009, p.10) “el mapa no puede

band%28g5400m+gbr0000 1%29%29]. Sempre que possível, indicamos, além da página, a coluna onde se encontra a informação ou passagem citada.

4 Convém destacar que, segundo Fernando de Azeve-do (1976 apud Zotti, 2005, p.36) “o Colégio D. Pedro II, [...] consagra um ensino secundário do tipo clássi-co, muito mais atrelado à tradição intelectual do país (diga-se da elite), de tradi-ção europeizante, do que propriamente adaptado as condições do meio, portanto estudos de caráter desin-teressado. Estes estudos são dirigidos aos filhos da classe abastada e cumpre a função de estudos prepara-tórios ao curso superior”. As reestruturações curriculares no período imperial tiveram como consequência “[...] a formação diferenciada das classes sociais: a formação do trabalhador, como reflexo das novas necessidades do país diante da tendência de uma sociedade urbano-agrí-cola-comercial; a formação da elite, visando ao ingres-so nos cursos superiores, representa a continuidade da formação clássico-huma-nista, historicamente patri-mônio cultural desta classe” (Zotti, 2005, p.37).

5 Sobre a questão tecni-cista, Antônio Teixeira Neto (2006, p.55) expõe que “di-ferentemente de uma obra de arte, que exige talento de quem a executa, o mapa não é uma construção livre, pois está submetido ao mais rigoroso respeito às leis de percepção visual, ou melhor, à gramática gráfica”.

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ser abordado como si hubiera sido pensado, diseñado, producido y circulado dentro de uma burbuja”.

Para tanto, se faz necessário que as análises desse produto cartográfico enfatizem que a sua seletividade das informações e a representatividade nele constante se constituem como meios de se entender as relações humanas. Afinal, trata-se de uma “[...] imagem do mundo do mesmo modo que somos a imagem de nós mesmos” (Teixeira Neto, 2006, p.67) e deve-se analisá-lo sob ângulos: 1. “a universalidade dos contextos políticos na história da cartografia”; 2. “a maneira pela qual o exercício do poder estrutura o conteúdo dos mapas; e 3. “a maneira pela qual a comunicação cartográfica, em um nível simbólico, pode reforçar este poder por intermédio do conhecimento cartográfico” (Harley, 2009, p.4).

No que se refere ao Brasil, a utilização dos mapas manteve um forte viés político – tal qual nos países europeus. Se, em um primeiro momento, os mapas do período colonial fo-ram mantidos em segredo em decorrência de possíveis invasões estrangeiras, no Império, o mesmo foi amplamente utilizado para justificar a incorporação e a manutenção territorial, como aponta Antonio Teixeira Neto (2006, p.55): “não creio que exista no planeta uma nação [a brasileira] cujos domínios territoriais foram garantidos e mantidos à custa de um general que jamais disparou uma única arma sequer contra o inimigo: o mapa”.6 Ademais,

No período imperial, verifica-se a preocupação com a formação cartográfica de profissionais no Brasil. Em 1810, foi criada a primeira escola de formação de Engenheiros Geógrafos Mi-litares na Academia Real Militar, [...] na qual a formação profissional em cartografia se dava num período de oito anos (Archela, 2007, p.215).

Não seria coincidência, portanto, nesse período, a criação de diversas instituições oficiais com o intuito de mapear o território brasileiro. Rosely Sampaio Archela (2007) destaca alguns desses órgãos: a Comissão do Império do Brasil – 1825 – e da carta Ge-ral do Império – 1830-1878 –; a Imperial Comissão Geológica – 1874 –; a Repartição Hidrográfica do Ministério da Marinha – 1876 –; e a Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo – 1886 (Archela, 2007). E dentre as fases da cartografia brasileira, uma em particular tratou da elaboração de mapas em escalas pequenas, na qual inclui os levan-tamentos feitos no Nordeste, pela Inspetoria de Obras Contra a Seca, já no início do século XX (Archela, 2007).

Neste contexto, o “Brasil desconhecido” – como será tratado no item seguinte – vai ganhando contornos mais nítidos. E a relevância do Atlas de Cândido Mendes se insere em um momento em que o conhecimento cartográfico brasileiro ultrapassa os círculos militares e institucionais para ganhar maior visibilidade.

CÂNDIDO MENDES DE ALMEIDA E O ATLAS IMPERIAL

A imagem do Brasil como um arquipélago é um tema corrente nas discussões e na historiografia que considera as estruturas econômicas, sociais e culturais daquele imenso território que assoma o século XIX atravessado pelas injunções da crise do sistema colonial e pelo avanço e aprofundamento de novas lógicas produtivas e das novas relações de poder daí decorrentes. Imagem que diz respeito tanto às estruturas do empreendimento colonial, cujas porções do território – as ilhas socioeconômicas – guardavam relações mais estreitas

6 O autor se refere aos fa-tos ocorridos no século XIX, quando diversos territórios pertencentes ao Brasil foram questionados por diferentes países europeus. Graças a ação do Barão do Rio Branco e dos mapas coloniais refe-rentes ao Tratado de Madrid (1750), a nação brasileira assegurou a sua soberania nacional.

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com a Metrópole portuguesa do que entre si; quanto ao (des)conhecimento do próprio suporte físico da colônia.7

Figura 1 – Frontispício do Atlas Imperial, elaborado por Cândido Mendes, 1868

Fonte: <http://memory.loc.gov/cgi-bin/query/h?ammem/gmd:@field(NUMBER+@band(g5400m+gbr

00001))>

Trata-se, portanto, de um conjunto de retalhos que comportam uma série de ilhas mapeadas, vastidões ignoradas ou parcamente conhecidas, invariavelmente com muitas distorções no registro cartográfico. Se essa poderia ser uma síntese da cartografia do Brasil colonial, não é incorreto apontar a persistência dessa condição (de precariedade e irregulari-dade do conhecimento da geografia do Brasil) ao longo da primeira metade do século XIX. Condição que se expressaria na produção leiga, e mesmo na erudita, como bem exemplifi-cam as gravuras de Henry Koster (ilustração que abre o seu livro, Travels to Brazil, de 1816), de John Luffman (intitulado Brazil, or trans-atlantic Portugal, publicado em Londres, 1808) e de Henry Charles Carey (Brazil, publicado em Londres, por H. C. Carey, 1823).

Essa condição – sobretudo em relação ao vasto interior do país (e.g., ver Figura 2) – seria problematizada cada vez mais no contexto pós-independência como um entrave às possibilidades de constituição efetiva do Império, enfim, do Brasil como um Estado-Nação moderno.

É nesse contexto, aqui rapidamente sumarizado, que se entende o esforço e a impor-tância da elaboração e da publicação do “Atlas do Império do Brazil”. Nascido em 1818, na província do Maranhão, Cândido Mendes de Almeida se tornou bacharel em Direito pela Faculdade de Olinda, em 1839. Um ano depois, de volta à sua cidade natal, tornou-se promotor e professor de Geografia e de História no Lyceu de São Luiz. Exerceu o cargo de deputado geral por cinco legislaturas e em 1871 seria eleito para o cargo de senador.

No campo acadêmico, embora tenha abandonado o cargo de lente em 1850, mante-ve estreitos laços com diversas sociedades científicas. Um dos seus possíveis primeiros tra-balhos cartográficos consistiu na elaboração de um mapa sobre a questão de limites entre a província do Maranhão e Goiás (Borges, 2007). É possível que a feitura desse mapa o tenha capacitado a dar início à realização do Atlas Imperial. Ao contrário dos cartógrafos

7 Mesmo a noção de arqui-pélago deve ser matizada, pois “havia fluxo interno de mercadorias e de linhas de comunicação”, embora não abrangesse toda a colônia e tivesse pouca expressão na composição da base do sis-tema econômico (Carvalho, 1981, p.19-20); ainda as-sim, a metáfora é operativa para discutir e compreender o que estava em jogo nas discussões e nos projetos de construção do Brasil como nação independente, como se percebe em vários autores (Cf., e.g., Moraes, 2003 e 2005; Pechman, 2002).

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europeus – que possuíam a tradição de fundamentar suas obras com argumentos de au-toridade –, Cândido Mendes buscou se apoiar em diferentes fontes documentais, como relatórios provinciais, mapas anteriores e fontes orais. Ou seja, para Maria Elisa Linhares Borges (2007, p.381),

A julgar pelos mapas presentes em seu atlas, [...] muito provavelmente Cândido Mendes aproveitou informações contidas em memórias, corografias, nos dicionários topográficos e nos relatos de viagem, produzidos pelos membros da Comissão Estatística da Corte instituída pela Corte em 25 de novembro de 1829.

Todo esse material coletado servia para dotar a obra de Cândido Mendes de uma legitimação e aceitação do público-alvo do atlas – alunos secundaristas, a “‘mocidade letrada brasileira’ de onde certamente sairia os quadros da vida pública e burocrática do Brasil do futuro” (Borges, 2007, p.383), enfim, esperava-se, os futuros estadistas, legis-ladores, administradores –, a partir de dados considerados cientificamente comprovados provenientes de fontes documentais. Aos mapas constantes foram acrescidos textos com-plementares de História e de Geografia para cada província, enfatizando principalmente as questões limítrofes.

Seja como for, o Atlas, como introduziu o seu próprio autor (1868, p.7, col. 1-3), buscava sistematizar um conjunto crescente de informações com o intuito de melhorar as bases do ensino de geografia do país. E, mais ainda, como corolário, estabelecia um marco comum para fixar os novos dados (como aqueles provenientes do novo mapa do Brasil utilizado por William Scully, editor do Anglo-Brazilian Times, publicado em New York, compilando os trabalhos mais recentes do governo brasileiro), para mediar e comparar informações, permitir novas investigações e, enfim, sustentar estratégias e políticas de controle do território.

Figura 2 – Brazil, or trans-atlantic Portugal, publicado por J. Luffman, Londres, 1808. Atente-se para a advertência: “interior of the country very imperfectly known”

Fonte: <http://hdl.loc.gov/loc.gmd/g5400.br000016>

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Em suas entrelinhas, percebe-se um claro projeto político a orientar a normalização do conjunto de informações e de mapas, “antigos e modernos”, que, construindo-se pro-víncia a província, reduzidas a uma escala comum, comporiam uma visão integrada do Império. Projeto que levaria o autor a propor até mesmo a criação de uma nova província, Pinsonia, rearranjando parte da porção extrema do norte, o que incluía as negociações com as Guianas, a francesa em especial, e partes da província do Grão-Pará. Buscava-se valorizar a cidade de Macapá, cuja comarca seria o centro provincial, como um nó co-mercial e portuário para articular o comércio e a circulação entre o Amazonas e Belém. Com isso – e a consequente criação de uma estrutura administrativa própria –, poder-se-ia reverter o quadro de quase abandono que marcara aquela região, a despeito dos mais de três séculos de “descobrimento” (Almeida, 1868, p.32, col.4-5, p.33, col.1).8

E o que os mapas de Cândido Mendes de Almeida podem apontar para compreender o “Nordeste”? A pergunta, aqui, tem ao menos dupla face: implica questionar o território representado então pela delimitação que seria construído a posteriori e, como corolário, implica relacionar o conjunto documental do Atlas à trama de relações, saberes e ações que levariam, no início do século XX, à primeira definição mais precisa do que seria o Nordeste como entidade regional específica, com singularidades que a permitiram ser distinguida e reclamar políticas e investimentos específicos.

AS PROVÍNCIAS DAS SECAS: CEARÁ, RIO GRANDE DO NORTE, PARAÍBA E PERNAMBUCO

Deve-se, inicialmente, enfatizar que não há Nordeste no Atlas. De fato, comumente usava-se falar então – como se percebe em registros literários de um Joaquim Manuel de Macedo, de José de Alencar ou de Machado de Assis – de maneira genérica em Províncias do Norte e do Sul, cujo ponto mediador era a Corte. Cândido Mendes, de certo modo, mantém essa perspectiva, ao mesmo tempo em que consolida a reorganização das províncias que se processara na primeira metade do século XIX:9 propôs então sistematizar a divisão administrativa do Império entre províncias setentrionais e meridionais, orientais e ocidentais. As províncias do Norte ficaram então abarcadas nas setentrionais, que iriam da Província do Amazonas até a do Espírito Santo; as meridionais, do Município Neutro – a Corte – e da Província do Rio de Janeiro até a de São Pedro do Sul; as ocidentais eram compostas pelas províncias de Minas Gerais, de Goiás e de Mato Grosso (Almeida, 1868, p.8, col.1; p.10-32).

Reiterava-se no Atlas essa indistinção que, na verdade, apenas reforçava a centralida-de política e econômica da Corte. Há aí vários movimentos contraditórios, mas que reve-lam parte das disputas e da complexidade de como se figurava e se desdobrava a questão nacional no período: reafirmava-se e legitimava-se uma imagem de unidade nacional, mais ainda, de nacionalidade (Süssekind, 1990, p.17), por meio da normalização dos mapas; ao mesmo tempo, tal unidade fundava-se na estratégia política primeira de manutenção da unidade pós-independência, com um Estado cada vez mais forte e voraz em relação aos re-cursos necessários – que deveriam ser e eram de fato remetidos pelas províncias – para sua consolidação e expansão (Dias, 1972; Carvalho, 1981). Essa estratégia não contemplava, como apontaram muitos da geração romântica, a tarefa de construção e ocupação efetiva do território de um Estado-Nação moderno como pretendiam – o que exigia reestrutu-ração territorial e um novo sistema de circulação e comunicação, cujo paroxismo seria o desejo de construção de uma nova capital nacional no interior do país, expresso em vários

8 Antes, em julho de 1853, como deputado da Assem-bleia Legislativa Federal, Mendes de Almeida apre-sentou projeto semelhante para criação da Província de Oyapockia, cujas bases territoriais, centradas na Co-marca de Macapá, seriam aproveitadas na elaboração do Atlas, quinze anos depois (Almeida, 1868, p.33, col. 1 e 2).

9 A província do Amazonas, e.g., foi desmembrada da do Pará em 1850; antes disso, a do Pará fazia parte do Es-tado do Maranhão até 1775; a do Paraná desmembrou-se da de São Paulo apenas em 1853 (Cf. Carvalho, 1981, p.17).

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e avultados projetos, como o do historiador e diplomata Francisco Varnhagen (Vidal, 2009, p.81-101). Não é à toa que Cândido Mendes diria que a permanência do Rio de Janeiro como Corte, território do Município Neutro com administração independente, deveria ser provisória, “enquanto não se fundar a verdadeira e permanente Capital do Império” (Almeida, 1868, p.8, col. 2).

Figura 3 – A Província do Ceará, 1864

Fonte: Almeida, 1868

Em meio aos projetos que se expressam no Atlas como peça, antes de mais nada, política, percebem-se as dificuldades que estavam postas para consecução dos intentos de modernização do Brasil. Neste sentido, propõe-se aqui analisar – vinculando-se dessa maneira ao projeto maior de pesquisa que secunda este artigo – com mais atenção à do-cumentação das províncias do Ceará, do Rio Grande do Norte, da Paraíba e de Pernam-buco. Elas foram as províncias que primeiro, sobretudo a do Ceará, se tornaram objeto de investigação sistemática para enfrentamento do fenômeno climático das secas; ademais, compõem desde o início as delimitações oficiais da região Nordeste.10

Figura 4 – A Província do Rio Grande, 1864

Fonte: Almeida, 1868

10 Quando o IBGE estabe-lece a primeira delimitação oficial das regiões do Brasil, em 1938, os Estados da Bahia, de Sergipe, do Mara-nhão e do Piauí não faziam parte do Nordeste; estes seriam incluídos apenas em 1969 (Cf. Avelar Jr., 1994, p.6-10).

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É recorrente o registro, e não somente para essas quatro províncias, sobre a impre-cisão dos limites. A precariedade da cartografia e de documentos confiáveis levaria, e.g., Cândido Mendes a anotar sobre a província do Rio Grande do Norte que “é muito de-ficiente em trabalhos topográficos”. As fronteiras com o Ceará e com a Paraíba que pôde desenhar “são os que no geral são conhecidos; mas nem suas divisas são claras, naturais e incontestadas, como nunca foram demarcadas” (Almeida, 1868, p.12, col. 1-2). O pro-blema da demarcação atingia inclusive a província de Pernambuco, para a qual havia farta documentação (proveniente de fontes diversas, incluindo peças técnicas mais acuradas, como os levantamentos topo-hidrográficos do porto de Recife).

Figura 5 – A Província de Pernambuco, 1864

Fonte: Almeida, 1868

Diante de tamanha precariedade, não parece forçoso afirmar que o projeto do Atlas só não se inviabilizou pela contribuição decisiva do engenheiro militar Beaurepaire Rohan:

O nosso credor é o Exm. Sr. Conselheiro Henrique de Beaurepaire Rohan, que quando Ministro da Guerra dignou-se de expedir o Aviso de 21 de dezembro de 1864, a fim de que nos fosse franqueado o Arquivo Militar, que é um tesouro em documentos cartográficos da Geografia pátria, para que pudéssemos fazer os estudos e investigações de que necessitávamos

(Almeida, 1868, p.36, col.3-4).

Nascido em 1812, em Niterói, formou-se engenheiro militar, tornou-se membro do IHGB e ocupou cargos públicos importantes na estrutura política do Segundo Reinado, dentre os quais se deve nominar o governo das províncias do Paraná (como vice-presi-dente), entre 1855-56, e (como presidente) do Pará (1856-57) e da Paraíba (1857-59). Rohan não apenas franqueou o acesso aos arquivos; a sua própria produção, em relatórios, pareceres e memórias técnicas, embasariam várias decisões sobre os desenhos dos mapas de Cândido Mendes. A “Carta Corográfica” da Paraíba, então ainda em elaboração pelos engenheiros Carlos Bless e David Polemann, sob supervisão de Rohan, serviria para defi-nir com mais precisão os limites dos municípios e as próprias fronteiras interprovinciais.

A citação do documento de Rohan é lapidar: “Para dissolver todas as dúvidas que existem sobre os limites e extensão do território [...], não temos uma só carta corográfica que nos possa guiar. As que existem estão inçadas de erros tais, que nenhum crédito me-recem” (apud Almeida, 1868, p.13, col.5).

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Além da contribuição do engenheiro Beaurepaire Rohan e dos muitos manuscritos cedidos por Antônio José de Mello Moraes – médico, político e autor de vasta bibliografia, na qual se destaca “A Independência e o Império do Brasil”, de 1877 –, a organização das informações do Atlas baseou-se largamente na produção dos viajantes, intelectuais e cien-tistas estrangeiros. Para a província do Ceará, as “Memórias Históricas”, do Monsenhor Pizarro, a “História do Brazil”, de Francisco Solano Constancio e a “Viagem ao Interior do Brazil”, de George Gardner, e.g., seriam colocadas junto à documentação oficial dos relatórios dos presidentes de província. O padrão de documentação é recorrente para as demais províncias, acrescentando uma ou outra publicação mais específica. Para a provín-cia do Rio Grande do Norte, Cândido Mendes faz uso dos relatos de Henry Koster, autor que seria útil também para compor a normalização referente às províncias de Pernambuco e da Paraíba.

As dificuldades recorrentes para composição da cartografia do Atlas, que se explici-tam nos textos de cada província, expõem os limites do conhecimento do território do Império. A observação dos mapas das províncias (Figuras 3 a 6) revela que sua lógica de composição gráfica estava muito mais vinculada, de fato, à montagem de um grande mapa do Império, permitindo que fosse difundida uma imagem integrada de país, de Estado, de Nação. Era esse o objetivo primeiro do Atlas, não se pode esquecer, afinal. Olhar com detalhes para a representação do relevo da província do Rio Grande do Norte, e.g., ilustra as limitações dos dados disponíveis e a impossibilidade do material tornar-se base para estudos técnicos.

Não havia possibilidade, diante dessa peça gráfica, de detalhes para esquadrinha-mento, mensuração precisa e quantificação. Na verdade, há alguns trechos imprecisos na representação da topografia no sentido de penetração para o interior, de leste a oeste. As áreas costeiras eram bem representadas, de maneira geral, afinal, havia um acúmulo significativo de informações detalhadas voltadas para a navegação.

Figura 6 – A Província da Parahyba do Norte, 1864.

Fonte: Almeida, 1868

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O problema que avultava, ao fim, assentava-se no que implicavam tantas dificulda-des e limitações para composição do Atlas. Como reconheceria Cândido Mendes,

O levantamento de cartas topográficas de cada Província, definindo os seus limites, seria de interesse incalculável tanto para o bom regime administrativo, judicial e eclesiástico, como para as relações comerciais, que teriam por certo outro desenvolvimento se tais territórios fossem melhor conhecidos. (Almeida, 1868, p.13, col. 4, grifos nossos)

Era imperativo conhecer o território para transformá-lo. Essa seria uma tarefa na qual se lançariam muitos profissionais nas décadas seguintes e que teriam papel decisivo nos processos e projetos de modernização urbana e territorial na virada para o século XX. As imprecisões, a falta de um melhor detalhamento e o uso de fontes secundárias não impediram que este trabalho cartográfico se tornasse público em um conjunto de conhe-cimentos sobre o Brasil ainda desconhecido e que contribuiu, posteriormente – pode-se inferir –, para a delimitação do que seria denominado Nordeste.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para além do caráter meramente representativo, os mapas permitiam o seu uso, ao mesmo tempo, como instrumento pedagógico e ferramenta política. Ainda assim, uma das questões que permanece volta-se para a difícil tarefa de pensar o lugar do Atlas de Cândido Mendes dentro da trama de relações da formação da cultura técnica moderna no Brasil e, mais especificamente, com os processos que levariam à definição da região Nordeste. Há aqui indícios e possíveis inferências. Utilizado no principal centro de en-sino secundário do Império, o colégio Pedro II, e enviado a associações profissionais e instituições, sobremaneira os Institutos Históricos e Geográficos, é de se supor que tenha cumprido, ainda que parcialmente, seu objetivo de informar e materializar em mapas a imagem de um Império, mais ainda, de uma Nação em formação – para uma parcela privilegiada que tinha acesso à educação formal. Não se pode esquecer, ademais, que o Pedro II era um dos caminhos principais para o ensino superior.

É significativo também que, dentre as interlocuções e fontes principais utilizadas para composição do Atlas, estejam Beaurepaire Rohan, já citado, e o senador Thomaz Pompeu de Souza Brasil, cujo “Dicionário topographico e estatístico da Província do Cea-rá” seria diversas vezes citado. Ambos teriam participação destacada, apresentando teses e contribuindo largamente para o debate que se seguiu, em um dos momentos cruciais para consolidação da dimensão técnica das secas:11 a sessão do Instituto Politécnico do Rio de Janeiro, reunida em 1877 para discutir teorias e propostas para enfrentamento de um novo ciclo das secas que iria recrudescer e se tornar o pior do século XIX. Os dois profissionais seriam, assim, algumas das possíveis pontes de conhecimento entre as gerações de intelec-tuais e profissionais que marcariam a formação da cultura técnica moderna no Brasil – e que teria como uma das primeiras e mais duradouras tarefas a chamada questão das secas.

Não se pode esperar, contudo, uma relação direta entre as representações cartográfi-cas do Atlas e possíveis formulações de políticas de controle ou transformação do territó-rio. Ou em relação aos estudos que começariam a se avolumar e se aperfeiçoar em relação ao território das províncias setentrionais e, em especial, daquela que se definiria a partir das ações de combate ao fenômeno das secas.

11 Entende-se a dimensão técnica das secas como “1) a delimitação das secas como um problema cientí-fico que, por conseguinte, implicou 2) a constituição de um campo disciplinar de embates técnicos e políticos e 3) a formulação de pro-postas e o desenvolvimento de ações para enfrentar e, pretendia-se, solucionar es-se problema” (Ferreira, Dan-tas, Farias, 2008, p.45).

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O conjunto de informações não estava voltado, de fato, para embasar estudos técni-cos que subsidiariam projetos. Era muito mais parte de um esforço para dar a conhecer o Brasil aos brasileiros. O Atlas fazia parte de um ambiente técnico e cultural que se esfor-çava por superar a noção corrente de que o Brasil não conhecia a si mesmo – um correlato que pode ser citado, dentre vários, no campo da produção historiográfica, é o “Compên-dio de História do Brasil”, do militar e professor de matemática José de Abreu e Lima, publicado em 1843 para a “mocidade brasileira” (Mattos, 2007). O brasileiro formava um povo “antigeográfico”, diria Cândido Mendes, que mal conhecia o Atlântico e, muito menos, os rios do país – i.e., pouco conhecia do seu interior. O Atlas buscava assim ajudar a montar um repertório básico e abrangente imagético sobre o território para os jovens – a “mocidade” que comporia, esperava-se, a elite política, técnica e burocrática do país.

AGRADECIMENTOS

Gostaríamos de agradecer ao CNPq, pelas bolsas e recursos financeiros concedidos; ao professor Hector Mendoza Vargas, da Universidade Autônoma do México, pelas ins-tigantes observações e contribuições teóricas; ao HCUrb/DArq/UFRN pelo apoio e pelo material disponibilizado para este artigo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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George Alexandre Ferrei-ra Dantas é professor do Departamento de Arquitetu-ra e do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFRN; doutor em Arquitetura e Urbanismo pela EESC/USP; pesquisa-dor do HCUrb. Email: george [email protected]

Angela Lúcia Ferreira é professora do Departamento de Arquitetura e dos Progra-mas de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo e em Estudos Urbanos e Re-gionais da UFRN; doutora em Geografia pela Universitat de Barcelona/Espanha; coorde-nadora do HCUrb; pesquisa-dora do CNPq. Email: angela. [email protected]

Yuri Simonini é historiador e pesquisador do HCUrb; mestre em Arquitetura e Ur-banismo pela UFRN. Email: [email protected] Ar ti go re ce bi do em junho de 2011 e apro va do pa ra pu-bli ca ção em setembro de 2011.

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A b s t r a c t In the mid-nineteenth century, the systematic articulation of Brazilian territory was formulated as an essential issue to forge modern economy and society. This attempt overcame old geopolitical control demands and delineated long-term droughts in “northern provinces” as one of the major problems. Thus, it is fundamental to investigate which knowledge and cartographical information were handled by those who went upon “unknown Brazil”. This article aims to analyze the limits of cartographical sources as historical documents to comprehend planned and systematic actions on the territory of Brazilian Northeast. For this analysis, we focus on the “Atlas do Império do Brazil” [Atlas of Brazilian Empire], edited by Cândido Mendes de Almeida, in 1868, emphasizing the provinces of Ceará, Rio Grande do Norte, Pernambuco and Paraíba, the most affected by the climate phenomena. The Atlas may be understood, therefore, as part of the arena of relationships which developed modern technical culture in Brazil and, more specifically, as part of the processes that lead to the definition of Northeast as an official region.

K e y w o r d s Atlas; Cândido Mendes; technical culture; Empire; territorial reconfiguration, Northeast/Brazil.

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TERRITÓRIO, REGIÃO E FRONTEIRA

Análise Geográfica Integrada da Fronteira Brasil/Paraguai

E d s o n B e l o C l e m e n t e d e S o u z a V a n d e r l é i a G e m e l l i

R e s u m o O presente artigo busca interpretar a região de fronteira entre Brasil e Pa-raguai por meio de uma análise geográfica integrada, envolvendo território, região e fronteira. Compreende-se essa fronteira como um espaço com características contrastantes que constituem uma realidade contígua, mas também reticular, que está tanto sob os efeitos de uma dinâmica local como também global. Trata-se de um território dotado de contradições, com espaços que compartilham de alguns problemas e de algumas características em comum ou completamente diversas. Como procedimento metodológico foram utilizados levantamento bibliográfico, tra-balho de campo, dados estatísticos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do Dirección General de Estadísticas, Encuestas y Censos (DGEEC), que permitiram, no conjunto, interpretar uma região de territórios transfronteiriços.

P a l a v r a s - c h a v e Fronteira; Brasil/Paraguai; território; região.

INTRODUÇÃO

Este artigo tem por objetivo analisar a região fronteiriça entre Brasil e Paraguai como um espaço com características contrastantes que constituem uma realidade contígua e re-ticular, o que demanda uma análise geográfica integrada, envolvendo o território, a região e a fronteira, enquanto conceitos indissociáveis.

Com o advento do que alguns autores chamam globalização, o espaço se torna cada vez mais fluido, constituindo-se no meio-técnico-científico-informacional (Santos, 1996; 2000), interligado por redes e por densas relações entre seus atores, sobrepondo ou conectando os territórios em um processo em constante movimento de territorialização-desterritorialização-reterritorialização, movimento conhecido pela sigla t-d-r (Haesbaert, 2006; 2004).

Não obstante, tal fluidez não ocorre de maneira contínua e uniforme por todo o espaço e, consequentemente, pelo território, uma vez que o espaço é dotado de diferencia-ções advindas das diversas apropriações que se fazem dele. Sob esse viés, como nos ensina Milton Santos, as relações entre os objetos e as ações existentes variam conforme o lugar em vista de suas diferentes condições históricas, apropriações do espaço e acessos disponí-veis em relação ao meio-técnico-científico-informacional, entre outros fatores.

Com base nessa premissa é possível justificar as diferenças socioespaciais verificadas nos dois lados da região de fronteira entre Brasil e Paraguai. O processo histórico de forma-ção desses dois países se deu em condições diferenciadas, apesar da proximidade entre eles e de similaridades latino-americanas existentes, como a condição de subdesenvolvimento.

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Para uma efetiva compreensão dessa região de fronteira, é necessária uma análise geográfica integrada do território, da região e da fronteira, haja vista que, embora as reali-dades apresentem condições reticulares, elas são influenciadas também por componentes de espaços contíguos, como a proximidade do Lago de Itaipu.

Para o desenvolvimento deste trabalho foram utilizados os seguintes procedimentos metodológicos: levantamento bibliográfico de teóricos que contribuem para a elucidação dos objetivos e do objeto investigado; trabalho de campo com entrevistas a agentes rele-vantes da realidade fronteiriça como o vice-cônsul do Brasil no Paraguai e o vice-cônsul do Paraguai no Brasil, moradores brasileiros e paraguaios, policiais militares, motoristas de vans, moto-taxistas; fotografias que evidenciaram a paisagem da fronteira com repre-sentações do uso do território; e dados estatísticos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e da Direción General de Estatísticas, Encuestas y Censos (DGEEC), que permitiram, no conjunto, interpretar uma região de territórios transfronteiriços.

O texto está alinhavado no seguinte sentido: além desta breve introdução, a discussão do território, da região e da fronteira busca dar base teórica para subsidiar o que vem a seguir, a saber: a caracterização da fronteira do Brasil com o Paraguai, inserindo o turismo como indutor do desenvolvimento regional, pois esta é uma das diversas manifestações da dinâmica territorial. As considerações finais tratam de demonstrar alguns resultados alcançados na pesquisa, bem como encaminhar ações vistas como necessárias para que a fronteira entre Brasil e Paraguai seja mais integrada.

TERRITÓRIO, REGIÃO E FRONTEIRA

A globalização configura lugares, tornando-os cada vez mais heterogêneos, dotados de uma diferenciação espacial caracterizada pelo surgimento de múltiplos territórios (Ha-esbaert & Porto Gonçalves, 2006), que, ao mesmo tempo em que se distinguem pelas suas diferenças identitárias, também se conectam e se sobrepõem no emaranhado complexo das redes que constituem o espaço geográfico atual. Segundo Moreira (1997), assim como ontem era a contiguidade que integrava em uma mesma regionalidade pessoas diferentes, hoje a acessibilidade à informação é o dado integrador dos homens na rede, estando ou não próximos.

Para Santos (1996), os lugares se expressam pelas horizontalidades e pelas verticalida-des. As relações de horizontalidades podem ser lidas nos serviços que a cidade presta em seu entorno e que exigem deslocamentos periódicos da população: saúde, educação, comércio especializado, serviços públicos e bancários, dentre outros. Já a verticalidade insere os espa-ços em graus e em formas variadas nesse contexto global, os quais se utilizam dos benefícios da informação, haja vista a capacidade que possuem de unir em redes os diferentes espaços.

Território e região, enquanto categorias de análise geográfica, são indissociáveis, não podendo ser analisadas separadamente, uma vez que possuem estreita relação devido ao fato de que o movimento do território, que implica t-d-r, está intimamente ligado ao movimento de construção, de desconstrução e de reconstrução de novas regiões.

A região é assim uma realidade que se concretiza por meio da ação de atores sociais, evidenciada a partir do momento em que se definem similaridades e relações internas co-muns, capazes de delimitá-las: “A região é, portanto, uma dimensão real da vivência dos indivíduos e dos grupos, e é a partir dela que se cria uma base territorial comum para um dado quadro de referência de pertencimento e identidades” (Haesbaert, 2004).

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A partir do momento em que há a construção do espaço geográfico por determinada sociedade, se dá também a formação do território, que nada mais é do que a expressão da apropriação e das relações (abstratas) que ocorrem no espaço geográfico entre os indi-víduos, envolvendo poder. O espaço é, portanto, anterior ao território, como preconiza Raffestin (1993).

Sob esse aspecto, Santos (1994, p.78) sublinha que o território “[...] significa objetos, ações e a constituição de redes, podendo ser compreendido como sinônimo de espaço geográfico socialmente organizado [...]”.

Uma vez que o território se constitui na organização espaço-social, ele se transforma e se redefine constantemente, tendo em vista que a sociedade sempre está em movimento, o que também indica uma centralidade na relação espaço-tempo na constante redefinição do espaço e, consequentemente, do território.

Raffestin (1993) compreende o território como sendo constituído a partir da apro-priação do espaço, ou seja, “[...] é o espaço transformado historicamente pelas socieda-des” (Raffestin, 1993 apud Saquet, 2009, p.78). A diferenciação entre Milton Santos e Claude Raffestin na concepção de espaço e de território é que, para o primeiro, o espaço geográfico é o conceito principal, e, para o segundo, o território é a categoria principal de análise geográfica. Embora distintos, espaço e território não podem ser separados, pois um é condição para a existência do outro.

Cada território possui uma identidade que o caracteriza no espaço, o que implica ser essa sua territorialidade, podendo assim haver, em uma determinada porção do espaço geográfico, vários territórios sobrepostos, com suas respectivas territorialidades. “A terri-torialidade é compreendida como relacional e dinâmica, mudando no tempo e no espaço, conforme as características de cada sociedade” (Raffestin, 1978 apud Saquet, 2009, p.78).

Assim, o território pode ser interpretado como um espaço social, historicamente produzido e organizado, permeado por relações de poder, por redes e por identidades, que estão em constante transformação no tempo.

O arranjo espacial e suas transformações são diretamente influenciados pela ação de alguns agentes principais, como o capital e o Estado, os quais intervêm na organização da sociedade. Sob esse aspecto, Corrêa (1998, p.60-1) afirma:

A organização espacial é o resultado do trabalho humano acumulado ao longo do tempo. No capitalismo, este trabalho realiza-se sob o comando do capital, quer dizer, dos diferentes proprietários dos diversos tipos de capital. Também é realizado através da ação do Estado capitalista. Isto quer dizer que o capital e seu Estado são os agentes da organização do espaço. Daí falar-se em espaço do capital.

A região de fronteira brasileira foi estabelecida com o nome de Faixa de Fronteira em 1974, delimitada a 150 km a partir do limite internacional, respeitando o recorte munici-pal. A criação desse território foi feita sob a óptica da segurança nacional, sendo até hoje um espaço carente de políticas públicas consistentes que promovam o desenvolvimento econômico (Machado, 2005).

Pensar a fronteira como forma diferenciada de organização territorial daquela da lógica capitalista também é necessário, pois a fronteira constitui um recorte analítico e espacial de diversas realidades sociais, políticas, econômicas e culturais. Enquanto categoria de análise espacial, ela envolve a problemática da volatilidade do capital e das relações de produção pelo território. Além disso, a fronteira é palco para conflitos transculturais e identitários.

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Em função do modo de produção e das representações simbólicas, ideológicas e cul-turais, esses elementos se transformam e se condicionam mutuamente, sempre de maneira singular. Singularidade, todavia, não significa ausência de diferenciações internas e con-flitantes. Logo, é pertinente pensar a fronteira como forma diferenciada de organização territorial no bojo da ordem territorial capitalista.

A questão das relações bilaterais e multilaterais com o país vizinho – isto é, os temas transfronteiriços – também faz parte da pauta de uma política de ordenamento territorial no âmbito nacional, pois possui importantes repercussões nos fluxos e mesmo em regiões às vezes distantes das fronteiras.

Para Corrêa (2004), a existência da fronteira internacional está associada a diferen-ças entre os dois lados. Descrevendo tipologias de posição geográfica de cidades, o autor comenta as características de cidades de fronteiras:

Diferenças de padrão monetário, regime político, etnias, língua e religião levam a que, em certos pontos da fronteira, estabeleçam-se postos de controle daquilo que atravessa de um lado para o ou-tro. Nesses postos estabelece-se um conjunto de atividades em torno das quais se desenvolve uma cidade. Ela pode agregar outras funções, mas a de posto fronteiriço tende a ser muito importante. Sua área de influência tende a ser ampla, incluindo pelo menos dois países. E de modo corrente, há uma outra cidade do outro lado da fronteira que, de certo modo, cumpre papel semelhante. Exemplos: Foz do Iguaçu (Brasil) e Ciudad del Este (Paraguai) (Corrêa, 2004, p.319).

É na lógica capitalista que se nega a fronteira, conforme Gonçalves (2004), o qual afirma que o capital quer fluir pelo mundo sem fronteiras. Segundo Smith (1988), o ca-pital não somente produz o espaço em geral, mas também produz as reais escalas espaciais que dão ao desenvolvimento desigual sua coerência, pois aprimorou sua capacidade de ser transescalar em seu próprio benefício, isto é, o do ganho rápido e sem constrangimentos escalares. Conforme Vitte (2007), as escalas são produzidas e não dadas ontologicamente a priori, pois são conteúdos e relações fluidas, contestadas e perpetuamente transgredidas. Apesar de fluidas e interpostas entre si, a autora acrescenta que toda escala é central e decisiva, material e politicamente, para estruturar os processos dialéticos da acumulação.

De acordo com Gonçalves (2004), a fronteira deriva do front, expressão militar que designa aquele espaço onde a guerra está sendo travada exatamente pelo controle do espaço. Definida a vitória pelo controle do espaço, o front transforma-se em fronteira e o espaço, em território. A fronteira substantiva tende a esconder o front que a fez.

Não obstante a etimologia da palavra fronteira, não há território sem sujeitos, portanto, todo o território se faz por meio dos sujeitos sociais. É preciso identificar as territorialidades que subjazem aos territórios.

Martins (1997, p.150) nos ajuda a compreender a fronteira como:

[...] essencialmente o lugar da alteridade. É isso que faz dela um lugar singular. À primeira vista é o lugar de encontro dos que, por diferentes razões, são diferentes entre si, como o índio de um lado e os civilizados do outro; como os grandes proprietários de terra, de um lado e os camponeses pobres, de outro. Mas o conflito faz com que a fronteira seja essencialmente, a um só tempo, um lugar de descoberta do outro e de desencontro.

Para José de Souza Martins, a fronteira é uma linha de separação, seja concreta ou abstrata, não necessariamente rígida, como bem observa Haesbaert (2004). Para esse

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autor, há duas “lógicas espaciais” de fronteira. Uma é a “lógica territorial tradicional” e a outra é a “lógica reticular”. Ambas são distintas, porém articuladas.

A “lógica territorial tradicional” é o modelo de ordenamento territorial por exce-lência dos Estados nacionais modernos, expressa por áreas onde as relações sociais estão delimitadas e reguladas de forma a serem estabelecidos recortes espaciais contínuos e con-tíguos que servem como quadro de referência para a ação dos agentes sociais. A identidade territorial tende a legitimar ou a ser legitimada pelas fronteiras político-territoriais.

A outra lógica, “espacial”, é o padrão reticular de organização do território que envolve outras relações. Conforme observa Souza (2009a), a lógica da vida dos povos em áreas transfronteiriças questiona aqueles pressupostos, no vai e vem de brasileiros e de paraguaios na fronteira de Foz do Iguaçu com a Ciudad del Leste, como também no entrelaçamento de brasileiros e paraguaios vistos em território brasileiro e paraguaio. Essa realidade é uma demonstração do cotidiano da fronteira, com aspectos contraditórios, complexos e de complementaridade, seja pelos fluxos de serviços, de informações e de mercadorias ou pelas relações das culturas que os unem e os desunem.

As comunidades de fronteira, especialmente o estudo de caso de brasileiros e para-guaios, sejam migrantes ou não, vivenciam a ambiguidade dessas duas lógicas territoriais: ao mesmo tempo em que se deparam com o controle rígido das barreiras fronteiriças internacionais, convivem com múltiplas redes de solidariedade, de trocas comerciais, culturais e até mesmo políticas, de caráter transfronteiriço.

Nesses espaços o local e o internacional se articulam, estabelecendo vínculos e dinâ-micas próprias, construídas e reforçadas pelos povos fronteiriços. Neles estão presentes as identidades e as culturas nacionais de cada um dos países envolvidos, que constroem, ree-laboram e constituem outra cultura e identidade diferenciada, capaz de criar um novo lu-gar, com aspectos regionais. São regiões que não “respeitam” as barreiras existentes, já que há ação e interação dos agentes fronteiriços, estimulando dinâmicas fronteiriças informais.

CARACTERIZAÇÃO DA REGIÃO DE FRONTEIRA ENTRE BRASIL E PARAGUAI

A região em estudo se destaca no plano de relações internacionais. A exemplo das

relações econômicas, culturais e geopolíticas com o Mercosul, a mobilidade populacional constante para o Paraguai influencia, no cotidiano da fronteira, outras identidades socio-culturais. São territorialidades1 expressas nos costumes, nos ritmos, nos ritos e nos valores desses povos.

A área analisada compreende os municípios brasileiros e distritos paraguaios limí-trofes ao Lago de Itaipu, pertencentes às faixas de fronteira de ambos os países. Os muni-cípios brasileiros lindeiros ao Lago de Itaipu, que fazem fronteira com o Paraguai, estão inseridos na Mesorregião Oeste Paranaense, de acordo com a divisão regional proposta pelo IBGE.

Ao longo do tempo, essa região passou por mudanças e por transformações do espaço geográfico, as quais caracterizam o movimento da sociedade no processo de territorializa-ção-desterritorialização-reterritorialização (t-d-r).

A construção da Hidrelétrica de Itaipu e, consequentemente, a formação do Lago em 1982 constituem um dos acontecimentos que ocasionaram significativas mudanças no arranjo espacial da região em estudo, visto que a formação do Lago propiciou uma nova

1 De acordo com Guiseppe Dematteis (apud Saquet, 2007), a territorialidade não é o resultado do compor-tamento humano sobre o território, mas o processo de construção de tais com-portamentos, o conjunto das práticas e dos conhecimen-tos dos homens em relação à realidade material, a soma das relações estabelecidas por um sujeito com o terri-tório (a exterioridade) e com outros sujeitos (a alteridade).

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feição à região Oeste do Paraná (Souza, 2009a). Assim, as inundações proporcionadas pelo represamento culminaram em novos limites de extensões territoriais aos municípios impactados, bem como reconfiguraram a paisagem e as características dos municípios que tiveram parte de suas terras alagadas. No momento da formação do lago, em 1982, oito municípios2 foram atingidos do lado brasileiro, e hoje, após alguns desmembramentos e emancipações distritais, a região é composta por quinze municípios.3

Nesse contexto, de acordo com o IBGE, entre 1970 e 1996, a mesorregião Oeste do Paraná passou por intenso processo de urbanização. Tal ocorrência se deve, principalmen-te, ao fato de essa região ser a última fronteira de ocupação do Paraná, aliado ao processo de expansão da modernização da agricultura e à atração de mão de obra para trabalhar na construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu.

A construção da hidrelétrica causou fortes impactos em toda região extremo-oeste do Paraná. Em Foz do Iguaçu, por exemplo, um dos principais impactos foi o grande aumento, em um curto espaço de tempo, da população: saltou de 33.966 habitantes em 1970, para 136.321 em 1980, de acordo com o IBGE.4 Tal fato traz consigo outras conse-quências, como a necessidade de maior atendimento nos postos de saúde, mais moradias e toda a infraestrutura que necessitam, como saneamento básico, educação, lazer etc.

A partir de 1982 iniciou-se uma nova fase de desenvolvimento para a região dos municípios impactados pela construção da Hidrelétrica de Itaipu. Nesse período, formu-lou-se uma visão de região, uma vez que as mudanças proporcionadas pela hidrelétrica fizeram (e fazem) com que os municípios que se situam em torno do lago se encontrem inseridos em um mesmo contexto regional. Assim, por meio da relação entre tecnologia e sociedade, responsável pela transformação da realidade com a construção de um grande empreendimento, o espaço se reconfigurou e adquiriu um novo sentido.

Ocorre que a formação do Lago de Itaipu não modificou apenas a estrutura territo-rial, mas também as relações no território. De acordo com Souza (2009b, p.126), “[...] a formação do lago não mudou apenas o aspecto geográfico da região, alterou sua própria essência. A agricultura, base da economia regional, começou a ceder lugar à atividade turística [...]”.

Esse novo empreendimento, portanto, culminou em grandes transformações sociais, econômicas e políticas, que constantemente se reorganizam. De acordo com Lima (2004, p.305):

[...] além do impacto favorável à economia capitalista, outros se sucederam, surpreendendo a população, especialmente a mais próxima das obras. Novos rumos foram tomados para a história regional, que foi reconstruída, mediante os desejos e necessidades emergentes da geração de energia para o provimento do progresso.

Esse novo cenário regional conferiu a possibilidade e a necessidade de novos pro-jetos/programas e políticas para desenvolver a região de acordo com a nova realidade. Destacam-se, principalmente, as políticas voltadas para o desenvolvimento do turismo, haja vista a possibilidade de exploração dessa atividade pela criação, principalmente, de pequenas praias artificiais nas águas do Lago de Itaipu.

Segundo Souza (2009b, p.131): “Toda a infraestrutura turística começou a ser mon-tada a partir de 1982[...]”, momento de formação do Lago da Hidrelétrica, uma vez que o apoio técnico e financeiro inicial para alavancar o turismo partiu da própria Itaipu. O autor considera ainda “[...] que a criação do Lago de Itaipu definiu uma nova ‘paisagem’,

2 Guaíra, Terra Roxa, Mal. Cândido Rondon, Santa He-lena, Matelândia, Medianeira, São Miguel do Iguaçu e Foz do Iguaçu.

3 Diamante do Oeste, Foz do Iguaçu, Entre Rios do Oeste, Guaíra, Itaipulândia, Marechal Cândido Rondon, Medianeira, Mercedes, Mis-sal, Pato Bragado, Santa Helena, Santa Terezinha de Itaipu, São José das Palmei-ras, São Miguel do Iguaçu e Terra Roxa. Todos esses municípios, que compõem a região Costa Oeste do Pa-raná, estão localizados em uma linha de fronteira ou em uma faixa de fronteira, ou são cidades-gêmeas (Foz do Iguaçu com Ciudad del Este e Guaíra com Salto Del Guairá), de acordo com a classificação do Programa de Desenvolvimento da Faixa de Fronteira (PDFF). Dispo-nível em: <http:/www.inte-gracao.gov.br/programas/programasregionais/faixa/municipios.asp?area=spr_fronteira>. Acesso em: 15 fev. 2010.

4 Segundo os Censos do IBGE de 1990, de 2000 e de 2010, a população de Foz do Iguaçu é de, respec-tivamente, 190.123 hab., de 258.543 hab. e de 256.081 (diminuiu nos últimos dez anos em 0,95%).

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uma ‘nova regionalização’, que está sendo apropriada para alavancar a atividade turística” (Souza, 2009b, p.131).

A partir disso, a construção de Itaipu culminou em uma reterritorialização do espa-ço, ou seja, em uma mudança na estrutura social existente, fazendo com que a sociedade se adequasse ao impacto do alagamento, no sentido de superá-lo, bem como criasse novas formas de produção econômica, como a atividade turística. Sob esse viés, Lima (2004, p.307) sublinha: “A nova configuração espacial fora proporcionada não simplesmente pela inundação, mas por um novo agente modelador, o turismo”.

Desse modo, a atividade turística constitui um elemento novo para essa região, que culmina em transformações na organização do espaço e abre caminhos para novas ações, caracterizadas pelas políticas públicas estatais.

Não obstante, notam-se diferenças entre Brasil e Paraguai na região de fronteira, pois, tratando-se de economia, o segundo apresenta o menor crescimento nos últimos vinte anos em relação aos países pertencentes ao Mercosul (Mercado Comum do Sul). Como explica Masi (2006, p.23), a economia paraguaia:

É a mais atrasada do Mercosul não por ser a menor, mas por ter se desenvolvido dentro de um modelo econômico com características adversas [...] caracterizou-se pela exportação de matérias-primas, pela triangulação comercial, com alta dose de informalidade e pela especu-lação financeira.

Nesse panorama econômico paraguaio, o Brasil desenvolve grande interferência devido à intensificação da relação comercial entre os dois países, principalmente a partir de 1970, período em que ocorreram muitas mudanças relacionadas à intensificação do processo de modernização da agricultura no Brasil e também no Paraguai. Vale ressaltar que a modernização da agricultura paraguaia foi alavancada pelo General Alfredo Stroess-ner, o qual pretendia, com esta modernização, a inserção do país no mercado externo; essa inserção coincide com o início da construção da Hidrelétrica de Itaipu.

É nesse período que inicia a migração de brasileiros para o Paraguai. Este fenômeno se deu em virtude da expulsão do campo brasileiro decorrente do processo de moderniza-ção e também pelo incentivo à ocupação da região leste paraguaia, até então esparsamente habitada. Para a modernização dessa região, eram necessárias pessoas que ocupassem a terra e nela trabalhassem. No intuito de seguir em seu projeto de modernização da agricul-tura, Stroessner iniciou um processo de incentivo à colonização da região por brasileiros, tarefa confiada a grandes colonizadoras. Forte propaganda foi feita no Brasil quanto às terras paraguaias, baratas e praticamente inabitadas, o que representava uma solução para aqueles que estavam sendo “expulsos” do campo brasileiro:

A mecanização da agricultura e a concentração fundiária na sociedade brasileira foram os principais fatores de “expulsão” de arrendatários, posseiros e pequenos agricultores brasilei-ros, enquanto que o preço baixo da terra e dos impostos e as facilidades de créditos agrícolas no Paraguai foram alguns dos mecanismos de atração (Albuquerque, 2008, p.3).

Mas mesmo com o incentivo à modernização, o Paraguai:

[…] caracterizou-se por ser um país mais comercial do que produtivo, com uma economia aberta (principalmente em razão do comércio ilegal ou contrabando) e, portanto, não pro-

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tecionista, com um escasso desenvolvimento industrial e agroindustrial, e especializado na exportação de duas ou três matérias-primas (soja, algodão e carne) (Masi, 2006, p.23). A introdução do cultivo da soja no Paraguai se deve aos brasileiros que migraram

para lá a partir da década de 1970. Mesmo se destacando no comércio, legal ou ilegal, a produção de soja no Paraguai tem sua expressividade: atualmente, ainda de acordo com Masi (2006), esse produto é responsável por 50% das exportações do país.

Um dos tipos de comercialização mais comuns verificado no Paraguai é o comércio de triangulação pela re-exportação. Ou seja, produtos são importados de países como Brasil e Argentina, que formam um triângulo com o Paraguai, e depois retornam a esses países pela re-exportação ou contrabando, livrando-se do pagamento de impostos. Ou, conforme Masi (2006, p.24), muitos produtos são “[...] provenientes, principalmente, dos Estados Unidos e dos países asiáticos em direção aos mercados altamente protegidos do Brasil e da Argenti-na, majoritariamente através de canais ilegais.”. Ocorre, porém, que esse tipo de comércio de re-exportação não garantiu ao Paraguai um crescimento considerável de sua economia.

Em trabalhos de campo realizados em 17/4/2010 e 18/10/2010, no distrito de Ma-rangatu, no Paraguai, pertencente ao departamento de Canindeyú, que faz fronteira com Pato Bragado, no Brasil, e em Salto del Guairá, também pertencente ao departamento de Canindeyú, em fronteira com Guaíra-PR, pode-se perceber uma série de aspectos que distinguem os respectivos países analisados.

Percebeu-se, do ponto de vista da infraestrutura básica (estradas pavimentadas, trans-porte, educação, saúde), do acesso a serviços e a produtos, dentre outros, que se trata de uma realidade oposta, “distante” da vivida no Brasil, pois se constitui em um espaço com grande carência de ações e de investimentos por parte do Estado.

Na localidade visitada durante trabalho de campo há o Puerto de Marangatu, do lado paraguaio, em precárias condições, responsável pela travessia somente de pessoas pelo Lago de Itaipu até o Porto de Pato Bragado do lado brasileiro. É por esse porto que mui-tos brasileiros residentes no Paraguai vêm até o Brasil para utilizar serviços (como saúde, assistência social e jurídica, aposentadoria, educação etc.).

Atualmente, existem 112 mil brasileiros (chamados de brasiguaios) residentes no Paraguai, segundo estatísticas oficiais. Já as estatísticas extraoficiais5 apontam para mais de 1 milhão de brasileiros, concentrados principalmente na porção leste paraguaia, região de fronteira com o Brasil, nos departamentos paraguaios de Alto Paraná, Canindeyú, Amambay, Itapua, Caaguazu e Caazapá.

No caso da fronteira entre Brasil e Paraguai, a oscilação cambial interfere diretamente nas relações de compra e venda de mercadorias. Ciudad del Este (cidade que faz fronteira com Foz do Iguaçu-PR) e Salto del Guairá (localizada na fronteira com Guaíra-PR) são duas cidades de compristas brasileiros por mercadorias de preço baixo, em relação aos similares brasileiros.

A fronteira apresenta-se como espaço de complementaridade (na medida em que convivem em uma mesma realidade diferentes territorialidades) e, ao mesmo tempo, espa-ço de diferenciações (visto que há uma seletividade espacial que tende a favorecer grupos dominantes). Tal seletividade pode ser empregada tanto pelo capital, como pelo Estado, dotando determinados lugares com uma maior infraestrutura de acordo com as condições de organização socioespacial que apresentem e com o interesse do capital e do Estado.

Na fronteira Brasil/Paraguai entende-se que essa seletividade espacial se aplica aos diferentes tratamentos direcionados aos dois lados da fronteira quanto à implantação de políticas públicas por parte dos Estados paraguaio e brasileiro.

5 Conforme o depoimento do vice-cônsul do Brasil no Paraguai, em Salto del Guai-rá, Sr. José Lima.

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A atuação do Estado é diferencial em ambos os lados da fronteira. No Paraguai, o sistema político-administrativo possui autonomia centralizada, enquanto que, no Brasil, essa autonomia é descentralizada em cada Estado da Federação. Desse modo, há, no Bra-sil, uma atuação maior do Estado pelo território que no Paraguai. Esse é um dos fatores que contribuem para a diferenciação ligada à infraestrutura turística existente na faixa de fronteira entre os dois países.

A atividade turística6 é o exemplo emblemático da compreensão desse estudo, pois, por possibilitar a integração dos povos e dinamicidade pela inerente prática social e eco-nômica, a implantação de alguns programas turísticos brasileiros7 tem se reproduzido na fronteira paraguaia. A Itaipu Binacional representa um grande elo entre os dois países, haja vista suas atuações na região fronteiriça.8

No Brasil, além de o turismo receber maiores investimentos que no Paraguai, sua economia estatal favorece as potencialidades locais, em contraposição ao outro país, onde, em muitas cidades, a presença estatal é restrita, como é o caso da Ciudad del Este e de Marangatu. Por outro lado, observou-se que no Paraguai há uma grande atuação do ca-pital na transformação do espaço geográfico, e o turismo de compras é bastante evidente na Ciudad del Este e em Salto del Guairá, por exemplo.

Nesse sentido, os atores que protagonizam as transformações do espaço geográfico são, principalmente, o Estado (instituições públicas), o capital (iniciativa privada) e a própria sociedade civil organizada.

De acordo com Corrêa (1998, p.48), “[...] o Estado, surgido dentro do modo de produção dominante, é o agente da regionalização”. Assim, também a iniciativa privada e a sociedade civil organizada, muitas vezes agindo em conjunto com o Estado, ou na pró-pria mobilização da sociedade, atuam no sentido de criar uma mesma realidade específica, contribuindo para a regionalização do espaço.

Todas essas transformações, inseridas no processo de globalização, criam múltiplos territórios, tornando o espaço geográfico complexo, que, longe de ser aniquilado pelo tempo, como defendem alguns estudiosos,9 torna-se cada vez mais heterogêneo e dife-renciado, conectado, no entanto, pelo advento das redes. Torna-se imperativa, assim, a “multiterritorialidade”, conforme Haesbaert (2004), em um complexo espaço global, ao mesmo tempo em ordem e em desordem com os territórios-redes.

Nesse contexto, assim como os territórios e as regiões, também as fronteiras estão longe de se dissolverem nesse emaranhado complexo de relações que caracteriza o mun-do globalizado. O que ocorre é uma afirmação ainda maior dessas categorias de análise geográfica, tornadas ainda mais complexas e que vêm caracterizar a multiplicidade de tempos-espaços concretizados e em constante movimento pelo processo de t-d-r. Haesbert (2004, p.178) enfatiza:

Sintetizando, a chamada desterritorialização, ou melhor, des-reterritorialização, e, conse-quentemente, os atuais processos de regionalização, estão fortemente vinculados ao fenôme-no da compressão tempo-espaço – não no sentido de uma “superação do espaço pelo tempo” ou de um “fim das distâncias”, mas de um emaranhado complexo de “geometrias de poder” de um espaço social profundamente desigual e diferenciado.

Dentro dessa dinâmica atual, também as fronteiras por vezes mudam de sentido, passando a significar muito mais do que simples limites político-organizacionais dos territórios institucionais. Em consonância com o Brasil, por meio do Ministério da

6 Estudos sobre turismo e fronteira estão se efetivando nos seminários internacio-nais de turismo de fronteiras, sendo que no ano de 2010 foi realizado o VII Seminário Internacional de Turismo de Fronteiras – Frontur 2010, em Assunção-Paraguai, cujo tema foi “La integración se hace más concreta”.

7 No sentido de atender ao desenvolvimento da ativida-de e procurar dar-lhe um caráter mais relevante na agenda de governo, foram formuladas políticas, planos e programas que atualmente estão sob a coordenação do Ministério do Turismo – MTur. A ação de maior ex-pressividade do MTur no que diz respeito ao planejamento e à organização do território nacional para o turismo é o Programa de Regionaliza-ção do Turismo – Roteiro do Brasil.

8 Alguns dos projetos e programas da Itaipu implan-tados no Brasil e com pers-pectivas de implantação no Paraguai: Cultivando Água Boa, Desenvolvimento Rural Sustentável, Plantas Medici-nais, Coleta Solidária, Jovem Jardineiro, Produção de Pei-xes em Nossas Águas etc.

9 Segundo Virilio (1994 apud Araújo, 1998): “[...] este tempo único, universal, astronômico, se transformou no tempo do mundo rápido. Existe assim uma desqualifi-cação do tempo local, mas também do espaço local, em proveito do tempo mundial e de um não-lugar […] que diz respeito ao fim do hic et nunc (grifo do autor) ao fim do aqui e agora. (p. 130-1)”. Para Virilio (1994), a corri-da da sociedade é sempre em proveito da redução das distâncias, onde os espaços são eliminados.

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Integração (2005), as novas condições técnico-tecnológicas, como o sistema global de telecomunicações, tornam imperativas as mudanças no tratamento da fronteira. Muitas fronteiras da atualidade se constituem em espaços onde há uma mescla entre os dois la-dos, com interação constante pelo contínuo movimento dos fixos e dos fluxos, como é o caso da fronteira entre Brasil e Paraguai. São costumes, identidades, cotidianos próprios da fronteira e realidades que não veem a fronteira como uma linha rígida, intransponível, mas, sim, como uma região onde o lado de lá e o lado de cá se mesclam, se interpõem e convivem em uma só realidade. Não obstante, existe um quadro de diferenças sociais, políticas, infraestruturais e culturais, entre outras, que forma uma realidade complexa.

Vários fatores corroboram o panorama apresentado, como o fluxo contínuo de pessoas, de informações, de mercadorias, de ideias etc., para que a fronteira represente, principalmente para quem nela vive, uma realidade única, a qual pode ser percebida/constatada na fronteira entre Brasil e Paraguai.

Desse modo, a partir do momento em que há um espaço construído e, consequen-temente, uma sociedade nele instalada, dá-se a formação do território. Este último é a expressão da organização que há em uma determinada porção do espaço, pelas relações que existem de dominação, de controle e de poder. Dessa perspectiva, o território é o

[...] produto de processos de controle, dominação e/ou apropriação do espaço físico por agentes estatais e não estatais. Os processos de controle (jurídico/político/administrativo), dominação (econômico-social) e apropriação (cultural-simbólica) do espaço geográfico nem sempre são coincidentes em seus limites e propósitos. (Brasil – Ministério da Integração, 2005, p.21).

Sob essa lógica, a territorialização pode ser resultante tanto das ações do Estado por meio de políticas públicas, como também pelas empresas e ou pelas práticas das comuni-dades, através das identidades e das significações do espaço vivido.

Nesse sentido, as territorialidades nem sempre coincidem com os limites de um território formalmente instituído, como é o caso da fronteira entre Brasil e Paraguai. Na região de fronteira desses países existem territorialidades que ultrapassam seus limites territoriais e institucionais como a territorialidade dos brasiguaios, do narcotráfico, dos indígenas, do capital, entre outros. Sobretudo, “[...] o território é compreendido como um espaço de organização e luta, de vivência da cidadania e do caráter participativo da gestão do diferente e do desigual” (Saquet, 2007, p.91).

A fronteira entre Brasil e Paraguai constitui-se, portanto, em um espaço que possui a sobreposição de diversos territórios que apresentam semelhanças, mas também diferenças oriundas da seletividade espacial e econômica, pois, conforme Dias (2007, p.3):

A localização geográfica torna-se [...] portadora de um valor estratégico ainda mais seletivo. As vantagens locacionais são fortalecidas e os lugares passam a ser cada vez mais diferenciados pelo seu conteúdo – recursos naturais, mão de obra, infraestrutura de transportes, energia ou telecomunicações, etc.

Dias se reporta a uma diferença de atratividade dos lugares para o capital, de acordo com a incorporação da técnica e da informação que apresentam. Assim, essa incorporação é desigualmente distribuída pelo território: aqueles que apresentam uma incorporação maior são mais atrativos ao capital. Dias (2007), assim como Haesbaert (2004), discorda

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de Virilio (1994 apud Araújo, 1998) em relação à aniquilação do espaço, uma vez que a instantaneidade, a rapidez da informação e a incorporação de novas técnicas se distribuem desigualmente pelo espaço, dotando-o de um valor estratégico diferencial e seletivo. Para a autora, “[...] associar contração de distâncias à negação do espaço situa-se no plano da utopia [...]” (Dias, 2007, p.3).

Por meio da análise da região de fronteira entre Brasil e Paraguai percebe-se que a seletividade dos lugares é o diferencial dos dois lados da fronteira. Na faixa de fronteira brasileira, o Estado atua enquanto criador de políticas públicas ligadas ao turismo, que contribuem para uma singularidade regional, caracterizando também uma seletividade espacial, o que não ocorre no Paraguai.

Nesse contexto, a regionalização enquanto processo de classificação de regiões, ins-titucionais ou não, é forjada também, de acordo com Brasil – Ministério da Integração (2005, p.20-1):

[...] na própria ação dos indivíduos e comunidades que, conjugando múltiplos interesses, eco-nômicos e políticos, e produzindo identificações sócio-culturais diversificadas, redesenham constantemente seus espaços. Outro elemento de diferenciação entre os dois países que deve ser destacado é a

infraestrutura para o turismo existente no Brasil e no Paraguai. O primeiro possui uma estrutura forte e mais consolidada se comparada à do Paraguai, que, praticamente, não possui ou é muito incipiente. Isso, em parte, pode ser explicado pelo seguinte fator: no que diz respeito à Itaipu, os recursos liberados para Brasil e Paraguai são igualmente divididos, porém os direcionamentos dados a esses recursos são diferentes. O Paraguai, por exemplo, direciona os recursos recebidos para investimentos em obras sociais, ou em ajuda aos distritos, enquanto que muitos dos investimentos no Brasil são dirigidos para o turismo. Assim, também, o governo central paraguaio não oferece autonomia aos depar-tamentos, atuando apenas nas áreas consideradas prioritárias, tendo por base as condições e os problemas sociais do país; o turismo não constitui uma delas.

Embora incipientes, os investimentos ligados ao turismo no Paraguai não são, no entanto, inexistentes. Exemplo disso é a recente criação da Polícia de Turismo, em 2009, que atua em Ciudad del Este e em Salto del Guairá, cidades que se destacam no turismo de compras. A Polícia está ligada à Comandancia de la Policía Nacional e atua no sentido de orientar e de defender os turistas. Para tanto, são promovidas medidas de proteção, de apoio e de assistência aos turistas que visitam essas cidades e, de acordo com esse órgão: “La División de Seguridad Turística contribuye al mejoramiento de la calidad de la in-formación, protección y seguridad en la entrada al país, en las rutas, caminos y centros de concentración de turistas”.10 A criação da Polícia de Turismo destaca a vocação turística paraguaia, ligada ao turismo de compras provindo do Brasil.

Por outro lado, do ponto de vista do processo de urbanização, de acordo com dados do IBGE, no Brasil, e da DGEEC, no Paraguai, pode-se constatar que do lado brasileiro da faixa de fronteira o grau de urbanização é maior, e na fronteira paraguaia, na maioria dos distritos possui população rural superior à urbana. As Tabelas 1 e 2 caracterizam cada um dos municípios e distritos da região, do Brasil e do Paraguai, com dados referentes à área territorial, ao número de habitantes e ao total de população rural e urbana:

10 “A Divisão de Segu-rança Turística contribui o melhoramento da qualidade da informação, proteção e segurança na entrada ao país, nas estradas, caminhos e centros de concentração de turistas”. Disponível em: <www.seguridadurbanaytu-ristica.gov.py>. Acesso em 06 dez. 2011.

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Tabela 1 – População e área territorial dos municípios lindeiros ao Lago de Itaipu no Brasil – 2010

MunicípioNº de

habitantes (Censo 2010)

População urbana

(Censo 2010)

População rural

(Censo 2010)

Área territorial (km2)

Foz do Iguaçu 256.081 253.950 2.131 610,209

Santa Terezinha de Itaipu 20.834 18.832 2.002 267,49

São Miguel do Iguaçu 25.755 16.476 9.279 848,67

Itaipulândia 9.027 4.742 4.285 332,32

Medianeira 41.830 37.403 4.427 325,17

Missal 10.474 5.420 5.054 232,04

Santa Helena 23.425 12.596 10.829 759,12

Diamante D’Oeste 5.027 2.561 2.466 309,147

São José das Palmeiras 3.831 2.412 1.419 183,28

Mal. Cândido Rondon 46.799 39.134 7.665 748,28

Mercedes 5.046 2.439 2.607 199,08

Pato Bragado 4.823 2.991 1.832 539,03

Entre Rios do Oeste 3.922 2.641 1.281 120,33

Terra Roxa 16.763 12.802 3.961 803,48

Guaíra 30.669 28.176 2.493 568,845

Total 508.110 445.011 63.099 6.937,491

Fonte: IBGE, <www.ibge.gov.br>.

Quanto aos municípios lindeiros ao Lago de Itaipu, pertencentes à faixa de fronteira brasileira, pode-se constatar, de acordo com a Tabela 1, que se trata de municípios com grande parte da população vivendo na zona urbana. Os municípios de Foz do Iguaçu, Santa Terezinha de Itaipu, Medianeira, Marechal Cândido Rondon, Terra Roxa e Guaíra são os que apresentam maior diferença entre população urbana e rural. O único muni-cípio com população rural superior à urbana é Mercedes, mas a diferença é pequena.11

Segundo Limonad (2008), para entender a urbanização brasileira hoje é necessário perceber as diferenças e as diversidades das transformações. A urbanização está ligada à estruturação do território, compreendendo a reprodução dos meios de produção, a re-produção da força de trabalho e da família, e, por conseguinte, a distribuição espacial da população e das atividades produtivas.

Na Tabela 2, referente aos distritos do Paraguai, percebe-se que os dados da popula-ção são relativamente diferentes dos do Brasil:

11 Estudo mais detalhado sobre a urbanização da re-gião Costa Oeste do Para-ná pode ser visto em Graff (2010).

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Tabela 2 – População e área territorial dos distritos lindeiros ao Lago de Itaipu no Paraguai

DistritoNº de

habitantes (Censo 2002)

População urbana

(Censo 2002)

População rural

(Censo 2002)

Área territorial (km2)

Salto del Guairá 11.298 6.653 4.645 1382,48

La Paloma 6.373 3.929 2.444 728,76

Gral. Francisco C. Alvarez 8.884 2.692 6.192 1043,91

Nueva Esperanza 9.951 3.018 6.933 1342,44

San Alberto 11.523 4.221 7.302 1046,8

Minga Porá 11.180 1.393 9.787 881,25

Mbaracayú 8.337 449 7.888 1174,43

Hernandárias 63.248 47.266 15.982 1519,27

Total 130.794 69.621 61.173 9.119,34

Fonte: DGEEC, Censo Nacional de Población y Vivienda, 2002.

De acordo com a Tabela 2, ocorre o oposto em relação ao lado brasileiro, uma vez que, no Paraguai, os distritos apresentam menor grau de urbanização. Dos oito distritos, apenas três (Salto del Guairá, La Paloma e Hernandárias) possuem maior contingente de população vivendo na zona urbana. Os demais (Gral. Francisco Caballero Alvarez, Nueva Esperanza, San Alberto, Minga Porá e Mbaracayú) possuem maior população rural. Além disso, em alguns desses distritos, a diferença entre população rural e população urbana é bastante representativa, como é o caso do distrito de Minga Porá, onde a população urbana soma 1.393 habitantes e a rural 9.787 habitantes.

A urbanização representa a estruturação do território que é condicionada pelos as-pectos sociais, econômicos e políticos de determinados momentos da sociedade, que se diferenciam de acordo com as possibilidades e as características de cada lugar: “O urbano é o modo como a reprodução do espaço se realiza na contemporaneidade, como realidade e possibilidade” (Carlos, 2008, p.183). Essa autora geógrafa e muitos outros, inclusive não geógrafos,12 balizam suas análises na relação espaço-tempo, contextualizando as caracte-rísticas de cada período e em determinado lugar com as singularidades que o identificam.

Assim, compreende-se que a distribuição da população e a análise das bases produ-tivas são instrumentos valiosos para entender o fenômeno urbano nas diferentes regiões e em diferentes esferas, capaz de traduzir informações importantes sobre a organização social, cultural e política, demonstrando aspectos peculiares de cada região e o grau de envolvimento na expansão do sistema capitalista.

Essa caracterização permite ter uma visão geral da região de fronteira entre Bra-sil e Paraguai e constatar que, ao mesmo tempo em que a fronteira possui situações e preocupações em comum, ligadas à segurança, à saúde, à educação e demais serviços, as condições de cada lado são diferentes, visto que no Brasil a qualidade e a quantidade dos serviços ofertados são em maior proporção que no país vizinho. Esse é um fato que explica a grande quantidade de pessoas (brasileiros ou paraguaios) que vivem na faixa de fronteira paraguaia e procuram o atendimento no Brasil. Essa é uma das características marcantes da fronteira, pois se reflete no fluxo constante de pessoas, de mercadorias e de serviços.

12 Bergmann (1986); Lefe-bre (1991); Castells (1983); Gottdiener (1993) e outros.

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T E R R I T Ó R I O , R E G I Ã O E F R O N T E I R A

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A fronteira entre Brasil e Paraguai constitui-se em local privilegiado para o estudo do território e da região, pois se concretiza em campos de força, de conflitos, de solidariedade e de contradições onde se dá a sobreposição de vários territórios,13 destacando-se determi-nadas características peculiares que diferenciam esse espaço dos demais.

A organização da estrutura socioespacial entre os dois lados da fronteira Brasil/Para-guai abriga espaços contíguos, mas as populações vivem em realidades distintas, oriundas de um processo histórico diferencial de ambas as sociedades. Apesar da contiguidade, o território, a região e a fronteira estão permeados por realidades contrastantes.

As informações obtidas demonstram diferentes dinâmicas socioespaciais entre esses lugares da fronteira. Os municípios do lado brasileiro, considerados de forte projeção agrícola, tiveram alteração em sua base econômica com a construção da Hidroelétrica de Itaipu, quando perderam parte de suas terras produtivas, fator principal que resultou na reestruturação de seu território e mudanças na paisagem.

A Itaipu é um “divisor de águas” na história do desenvolvimento urbano desses municípios, pois promoveu significativas alterações sob o ponto de vista urbano e eco-nômico, implicando em transformações espaciais, configurando na região uma nova rea-lidade e um novo cenário pelo incentivo da atividade turística como forma de produção desse espaço.

Para uma efetiva compreensão desse espaço fronteiriço, é necessário que a análise seja integrada, permitindo compreender a complexidade espacial de lógicas contíguas e reticulares. Assim, a interpretação dessa região de fronteira perpassa pela análise integrada de questões referentes ao território, à região e à fronteira, na medida em que esses fatores fazem parte do cotidiano desse lugar, estando sobrepostos em um emaranhado de relações complexas, característico do mundo globalizado atual.

A localização dos municípios dessa região pressupõe uma lógica de relações econô-micas, políticas, sociais e culturais, articulando-os através de um sistema de objetos e de ações. O estudo dessa região revela alguns eixos transversais representados pela viabilidade de algumas reflexões que constituem a região de fronteira.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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13 Gemelli & Souza (2010); Guimarães (2010).

Edson Belo Clemente de Souza é geógrafo; Profes­sor Associado da Unioeste; membro do Grupo de Es­tudos Fronteiriços (GEF) e coordenador do Laboratório de Estudos Regionais (LA­BER); pesquisador do CNPq e Fundação Araucária. Email: [email protected]. Vanderléia Gemelli é mes­tranda em Geografia (Unio­este/Campus de Francisco Beltrão); pesquisadora do GEF e do LABER. Email: leia [email protected] Ar ti go re ce bi do em julho de 2011 e apro va do pa ra pu­bli ca ção em setembro de 2011.

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T E R R I T Ó R I O , R E G I Ã O E F R O N T E I R A

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A b s t r a c t This article seeks to examine the border between Brazil and Paraguay through an integrated geographical analysis, which involves territory, region and border. This border is understood as an area with contrasting characteristics that constitute a contiguous but also a reticulated reality, which is under the effects of both local and global dynamics. It is a territory endowed with contradictions, with areas that share some problems and characteristics that are similar or completely diverse. Literature review, fieldwork, statistical data from Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE (Brazilian Institute of Geography and Statistics) and from Dirección General de Estadísticas, Encuestas y Censos – DGEEC (General Directorate of Statistics, Surveys and Censuses of Paraguay) were used as methodology. These procedures allowed to interpret a region of cross-border territories.

K e y w o r d s Border; Brazil/Paraguay; territory; region.

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O PROGRAMA CALHA NORTE Redefinição das Políticas de Segurança e Defesa nas

Fronteiras Internacionais da Amazônia Brasileira

L i c i o C a e t a n o d o R e g o M o n t e i r o

R e s u m o O Programa Calha Norte (PCN) foi concebido na década de 1980, mas assumiu novas configurações após sua retomada em 2003. Neste artigo, analisamos o PCN a partir da diferença entre os momentos inicial e atual, considerando a redefinição das políticas de segurança e defesa do Estado brasileiro nas fronteiras internacionais da Amazônia nas últi-mas duas décadas. O argumento principal é o de que as mudanças de concepção do PCN entre esses dois períodos demonstram como a aplicação das políticas dirigidas pelo governo central, mesmo na área de segurança e defesa, depende das mediações em escalas local e regional que legitimam e dão forma aos resultados obtidos. Para isso, analisamos os documentos relativos ao PCN, a relação entre o PCN e as demais políticas de controle territorial na Amazônia e o mapeamento das verbas aplicadas pelo PCN nos municípios de sua área de abrangência, entre 2003 e 2007.

P a l a v r a s - c h a v e Programa Calha Norte; segurança; Amazônia bra-sileira; fronteiras; Forças Armadas.

COMPARAÇÃO ENTRE DOIS MOMENTOS DO PROGRAMA CALHA NORTE

Três argumentos principais orientam a construção de nossa abordagem sobre o Programa Calha Norte (PCN).

Em primeiro lugar, o Programa, apesar de possuir o mesmo nome desde sua concep-ção na década de 1980, não manteve uma mesma configuração em mais de duas décadas de existência. Podemos demarcar pelo menos três períodos distintos em seu funciona-mento, que serão explicitados ao longo de nossa análise. Particularmente, ressaltamos a diferença acentuada de motivações e formato entre os anos finais da década de 1980 e o período de retomada do PCN, a partir de 2003.

Em segundo lugar, uma das características que singularizam o período de retomada do Programa Calha Norte na década de 2000 é a relação estabelecida entre o comando definido desde cima pelo Estado central e as mediações efetuadas pelos poderes munici-pais e estaduais.

Por fim, a retomada do Calha Norte apresenta uma versão atualizada do binômio segurança e desenvolvimento na Amazônia brasileira, em um contexto bastante diferente daquele marcado pela doutrina de segurança nacional dos anos 1970.

Apesar da permanência do nome e de vários aspectos formais, o Programa Calha Norte apresenta diversas diferenças entre o momento inicial na década de 1980 e o mo-mento atual de retomada, dentre as quais podemos destacar as motivações geopolíticas, a área de abrangência, a obtenção e o direcionamento dos recursos, o órgão de comando e o nível de centralização.

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O P R O G R A M A C A L H A N O R T E

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O Programa Calha Norte começou a ser concebido em 1985, no momento de aber-tura democrática e de transição do papel das Forças Armadas na política nacional. Novas questões eram apresentadas naquele momento como problemáticas para a administração da fronteira norte, entre elas, a proteção das comunidades indígenas, a garimpagem de metais preciosos e o tráfico de drogas (Mattos, 1990, p. 106), principalmente em Rorai-ma, com o conflito entre garimpeiros e indígenas.

O contexto da Guerra Fria ainda vigorava como uma preocupação geopolítica para o Estado brasileiro. Uma das principais justificativas para o PCN apresentadas pelo Conse-lho de Segurança Nacional em 1985 era a possível “projeção do antagonismo Leste-Oeste na parte norte da América do Sul” (Exposição de Motivos 018 apud Oliveira, 1990, p.19), por meio das disputas fronteiriças envolvendo Venezuela, Guiana e Suriname, da emer-gência de lideranças personalistas nos governos da Guiana e do Suriname, da projeção dos movimentos revolucionários do Caribe e da influência cubana (Oliveira, 1990, p. 19). Durbens Nascimento (2006, p. 100) acrescenta ainda a permanência de reflexos do combate à guerrilha do Araguaia como um dos motivos que mobilizavam as iniciativas das Forças Armadas na Amazônia.

O projeto assumiu três objetivos principais desde o seu início: colonização e de-senvolvimento, controle territorial e defesa nacional, e relações bilaterais com os países vizinhos, embora este último objetivo tenha sido relegado para o segundo plano. Ao longo dos anos, algumas mudanças ocorreram em suas justificativas e em sua forma de apresen-tação. A página do Ministério da Defesa assim apresenta o programa:

O Programa Calha Norte (PCN) tem como objetivo principal contribuir com a manutenção da soberania na Amazônia e contribuir com a promoção do seu desenvolvimento ordenado.Foi criado em 1985 pelo Governo Federal e atualmente é subordinado ao Ministério da Defesa. Visa aumentar a presença do poder público na sua área de atuação e contribuir para a Defesa Nacional.Na sua etapa de implantação era chamado Projeto Calha Norte e tinha uma atuação limitada, prioritariamente, na área de fronteira. Hoje, o Programa foi expandido e ganhou importân-cia em vista do agravamento de alguns fatores. Entre eles, o esvaziamento demográfico das áreas mais remotas e a intensificação das práticas ilícitas na região. Nesse contexto, cresce a necessidade de vigilância de fronteira e proteção da população. Ao proporcionar assistência às populações, as ações do Programa pretendem fixar o homem na região amazônica.O PCN busca desenvolver ações de desenvolvimento que sejam socialmente justas e ecolo-gicamente sustentáveis. Para isso, é indispensável respeitar as características regionais e os interesses da Nação (Ministério da Defesa, 2009, grifos nossos).

Nessa apresentação podemos identificar algumas ideias que orientam a formulação do programa. Em primeiro lugar, a soberania e o desenvolvimento ordenado estão asso-ciados à maior presença do Estado, que possibilita, por meio da assistência às populações, “fixar o homem na região” – ideia que permanece como elemento simbólico do controle combinado sobre o território e a população na Amazônia. Em segundo lugar, existe a percepção de que os problemas que deram origem ao PCN se agravaram, o que justifica a ampliação de sua área de abrangência para além da faixa de fronteira da Calha Norte, definida inicialmente. Enquanto o “esvaziamento demográfico” permanece como preo-cupação seguindo uma visão tradicional das concepções de segurança e defesa, a “inten-sificação das práticas ilícitas” assume uma importância cada vez maior como elemento de

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L I C I O C A E T A N O D O R E G O M O N T E I R O

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insegurança. Em terceiro lugar, pode-se notar a incorporação de um discurso que valoriza questões ambientais, justiça social e características regionais, o que pode ser interpretado como uma tentativa de renovação da imagem conservadora tradicionalmente vinculada às Forças Armadas.

A atual área de abrangência do PCN cobre 194 municípios, que correspondem à totalidade dos municípios dos Estados de Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima, Ama-pá e ao entorno da Ilha de Marajó na porção norte do Estado do Pará. Inicialmente, a área do PCN circunscrevia-se aos municípios da faixa de fronteira situados entre o rio Solimões (município de Tabatinga-AM) e a foz do rio Amazonas, nas proximidades da Ilha de Marajó. A ampliação da área de atuação do PCN ocorreu em dezembro de 2003, concomitantemente à reestruturação e ao aumento das verbas direcionadas ao programa. Atualmente, o PCN cobre 32% do território nacional. Dos 194 municípios atendidos, 96 estão situados na faixa de fronteira.

A gestão do PCN está vinculada ao Ministério da Defesa, depois de já ter passado por diversos órgãos diretamente vinculados à Presidência da República.1 São duas di-mensões de atuação do PCN: a “vertente militar”, que corresponde à “Manutenção da Soberania e Integridade Territorial”, e a “vertente civil”, que corresponde ao “Apoio às Ações de Governo na Promoção do Desenvolvimento Regional” (Ministério da Defesa, 2007, p. 8). A vertente civil, vinculada ao desenvolvimento local, tem sido realizada por meio dos convênios municipais, que são parcerias com as prefeituras municipais da área de atuação do PCN. São sete áreas temáticas de atuação dos convênios: 1) infraestrutura social; 2) infraestrutura de transportes; 3) infraestrutura econômica; 4) viaturas, má-quinas e equipamentos; 5) esportes; 6) educação e saúde e 7) segurança e defesa (Roppa, 2007, p. 45).

Na vertente civil, os parlamentares do Congresso Nacional apresentam emendas ao Programa para que os convênios sejam estabelecidos. Essa opção fica facultada também aos governos municipal e estadual, bem como a entidades civis. Até 1997, foram 90 municípios atendidos pelos convênios com o PCN. As Diretrizes Estratégicas para o Pro-grama Calha Norte e o manual Convênios: Normas e Instruções estão disponíveis no site do Ministério da Defesa para orientarem a relação entre os proponentes e os concedentes dos recursos destinados às ações. As ações propostas pelos convênios têm de estar enqua-dradas dentro dos objetivos do Programa, mas não há algum direcionamento explícito sobre regiões ou locais prioritários dentro da área do PCN.

Em 1990, o PCN sofreu uma acentuada redução de verbas e ficou limitado a ações internas às Forças Armadas, como apoio à melhoria e à implantação de infraestrutura militar na região amazônica, que ganhava cada vez maior importância nas políticas de segurança e defesa. Os recursos destinados ao PCN se mantiveram escassos até 2004, quando o programa se reestrutura, já com verbas ampliadas para a efetivação de seus objetivos.

O Gráfico 1 indica os recursos aplicados no PCN desde sua criação até o ano de 2007. Percebe-se um crescimento dos valores entre 1986 e 1989, seguido de um acentuado decréscimo em 1990 e da permanência de baixos valores até o ponto mais baixo em 1999. Entre 2000 e 2004, o Programa recupera um patamar pouco acima dos US$ 10 milhões (com exceção de 2003) para retomar um acentuado crescimento entre 2005 e 2007.

1 Originalmente, o PCN esteve sob coordenação da SEPLAN (1986-1988), da Saden (1988-1990), da SAE, (1990-1998), do MEPE (1999), quando finalmente passou a estar vinculado ao Departamento de Política e Estratégia da Secretaria de Política, Estratégia e Assun-tos Internacionais, no âmbi-to do Ministério da Defesa (cf. Nascimento, 2006, p. 104-5).

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Gráfico 1 – Recursos do PCN (1986-2007)

Fonte: Ministério da Defesa, 2007

A periodização proposta nesta pesquisa diferencia três momentos do PCN: 1) entre 1985 e 1989, período marcado pela concepção inicial do Programa, pela transição do con-texto político interno e externo, cujos marcos foram a redemocratização e o fim da Guerra Fria, e pelo patamar relativamente elevado dos investimentos; 2) entre 1990 e 2002, período de recursos escassos para as Forças Armadas como um todo e especificamente para o PCN, quando a relação civil-militar foi redefinida em novas bases, com destaque para o lançamento da Política de Defesa Nacional (1996) e a criação do Ministério da Defesa (1998); e 3) a partir de 2003, período de retomada, principalmente em relação aos recursos e à ampliação da área de abrangência. Nossa análise focaliza sobretudo esse terceiro período.

As perspectivas do Calha Norte no primeiro e no segundo períodos podem ser ilus-tradas por duas abordagens contrastantes, escritas em 1990 e 2003. Meira Mattos (1990) enfatiza, principalmente, o aspecto de presença institucional na fronteira amazônica, concebida como a ação direta dos agentes do governo central, em particular das Forças Armadas. O Calha Norte, analisado ainda em seu início, demonstrava a atualização da perspectiva de que as Forças Armadas e a diplomacia eram as únicas instituições que mantinham uma preocupação permanente com as fronteiras ao longo da história do Bra-sil. A segurança e o desenvolvimento da região seriam obtidos por meio do povoamento em torno das unidades militares instaladas e as Forças Armadas dariam suporte às popu-lações locais por meio de sua infraestrutura.

O entusiasmo de Meira Mattos em 1990 contrasta com a cautela de Lourenção em 2003. A pergunta inicial de sua tese é: “levando-se em conta que a Amazônia já é assistida militarmente através do projeto Calha Norte, qual a necessidade estratégica de mais um projeto de defesa como o Sivam?” (Lourenção, 2003, p. 10). A resposta encontrada apon-ta as limitações do PCN e as inovações tecnológicas propiciadas pelo Sivam. Lourenção se refere às limitações tanto de ordem orçamentária, visto que, diferentemente da expec-tativa de Meira Mattos em 1990, o PCN teve suas verbas drasticamente reduzidas entre 1990 e 2003; quanto de ordem política e operacional, pois o PCN ficou estigmatizado como um projeto de militarização da Amazônia, visto que cerca de 80% das verbas eram direcionadas para os ministérios militares e os projetos eram tratados em caráter sigiloso. Apesar disso, Lourenção critica, tanto no PCN quanto no Sivam, a ausência de um foro

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definido para as tomadas de decisão, o que resulta em uma centralização que está sempre submetida, em última instância, ao Presidente da República (Lourenção, 2003, p. 52).

Seguindo um viés diferente dos autores citados, analisaremos o programa a partir do papel do governo local e a relação entre segurança e desenvolvimento. Em nossa abor-dagem chamamos atenção para os efeitos paralelos e os objetivos emergentes do Calha Norte, reconhecendo a importância da dinâmica local na redefinição e na reorientação das ações concebidas de cima para baixo. Embora a estrutura do programa ainda perma-neça centralizada, as formas de obtenção de recursos e de escolha dos investimentos têm proporcionado uma dinâmica que favorece uma gestão menos hierárquica em termos de interação entre os entes federativos.

CONTEXTO GEOPOLÍTICO

Os diferentes momentos do Programa Calha Norte podem ser confrontados com as mudanças no contexto geopolítico interno e externo entre 1985 e a década atual. Os três momentos em que se divide o PCN estão inseridos dentro de um contexto geral pós-Guerra Fria e pós-Ditadura Militar, que se demarca da geopolítica vigente na década de 1970. O período inicial do programa está situado justamente em uma transição entre dois modelos e guardava ainda aspectos fortemente relacionados ao modelo geopolítico anterior. Essa transição é verificada em diferentes escalas de análise.

Em primeiro lugar, no plano global, o fim da Guerra Fria deu lugar a um sistema internacional marcado pela supremacia militar dos Estados Unidos, pela expectativa de uma governança global mais harmoniosa e multilateral e pela emergência de novos temas na agenda global de segurança. A perspectiva de conflito internacional era pouco presente na sociedade e o neoliberalismo e a ideia de governo mundial eram os paradigmas domi-nantes nas relações internacionais.

Durante a década de 1990, crises humanitárias, problemas ambientais globais, tráfico de drogas, criminalidade transnacional, imigração ilegal, estados falidos e pro-liferação de armas nucleares se tornaram novas fontes de preocupação e motivos para o engajamento dos Estados e das organizações internacionais em conflitos e intervenções. Com os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, houve uma reorientação da política internacional, dentro de uma condução unilateral norte-americana, para inserir os conflitos emergentes dentro de um paradigma de “guerra global contra o terrorismo”.

Para o Brasil, essa nova agenda global foi assimilada por meio das iniciativas de proteção ambiental da floresta amazônica, da adesão aos regimes internacionais de com-bate ao tráfico de drogas e não proliferação de armas nucleares. Em relação ao terrorismo internacional, o envolvimento do Brasil foi relativamente distante.

No plano regional sul-americano, a década de 1990 foi marcada pela emergência da Guerra às Drogas (War on Drugs). Os países do norte andino – principalmente Peru, Colômbia e Bolívia, maiores produtores de coca e cocaína – passaram a realizar, sob os auspícios dos EUA, políticas de repressão com o objetivo de erradicar os cultivos ilícitos e combater a produção de cocaína. A Iniciativa Andina, iniciada pelo Governo Bush I buscava comprometer as forças armadas dos países sul-americanos com a luta antidrogas (Vargas, 2005). A Guerra às Drogas foi o resultado da difusão do discurso jurídico-político transnacional em relação ao tráfico de drogas (Del Omo, 1990, p. 68) a partir da experiência norte-americana, que se consolida como modelo dominante com a

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Convenção da ONU em Viena, 1988. Além de ratificar a Convenção de Viena, o Brasil estabelece nesse período diversos acordos bilaterais para “prevenção, controle, fiscalização e repressão ao uso indevido e ao tráfico ilícito de entorpecentes e de substâncias psicotró-picas” (MRE, 2009).

O direcionamento dos militares para a região amazônica ocorreu simultaneamente ao processo de integração Brasil-Argentina. Enquanto a Argentina era tida como um potencial inimigo, a preocupação geopolítica militar estava centrada na questão platina. Nesse período, a questão amazônica permanecia em segundo plano, do ponto de vista internacional, apesar das medidas de impacto aplicadas na década de 1970 com os Planos Nacionais de Desenvolvimento I e II (Miyamoto, 1990, p. 54).

No plano nacional, a segunda metade da década de 1980 foi marcada pela abertura política e pela descentralização do Estado, principalmente a partir da Constituição de 1988.

O encerramento do ciclo militar no comando do Estado brasileiro teve implicações diretas na redefinição da atuação das Forças Armadas, principalmente nos anos 1990. A neutralização da influência política dos militares no Estado brasileiro correspondeu à subordinação do poder militar ao poder civil e teve como marcos a definição da Política de Defesa Nacional (1996) e a criação do Ministério da Defesa (1998). Diferentemente do que ocorreu em outros países da América Latina, os militares brasileiros resistiram à pressão norte-americana para que assumissem o papel de polícia contra o tráfico de drogas. No entanto, o Brasil assimilou de forma adaptada as prescrições globais para o combate ao tráfico de drogas e aos crimes conexos. Nesse contexto podemos enquadrar as medidas empreendidas em dois momentos: no início da década de 1990 – como a criação do Sivam e acordos bilaterais para o controle do tráfico de drogas (entre 1987 e 1991) – e a partir da segunda metade da década de 1990 – como o controle de precursores químicos para a fabricação de cocaína (1995), a aprovação da Lei do Abate (1998) e a criação do Sistema Nacional Antidrogas (1998).

A descentralização do Estado e a valorização da esfera local a partir da Constituição de 1988 aumentou o poder de negociação dos governos subnacionais em relação às políti-cas do Estado central. O desconforto com as relações hierárquicas entre centro e periferia tem levado à crítica às decisões tomadas em esfera federal com desconhecimento de seus efeitos nas esferas subnacionais (Machado et al, 2007, p. 88).

Aqui cabe abrir uma observação para avaliar os impactos específicos da mudança ocorrida na geopolítica da Amazônia entre as décadas de 1970 e 1990. A instabilidade econômica da região amazônica foi objeto de preocupação do governo central, que ao longo do século XX orientou esforços coordenados de integração e desenvolvimento. Tais esforços tiveram como objetivo, do ponto de vista do governo central, a garantia de soberania interna e externa sobre a Amazônia brasileira e o aproveitamento econômico da região. Daí a convergência entre as políticas de segurança e de desenvolvimento, com diferentes formas de articulação em cada período.

O processo de expansão da fronteira, sob a orientação do Estado central, se deparou com o duplo desafio de atrair população para as terras devolutas e fixá-la como força de trabalho sem dar-lhe a propriedade da terra (Machado, 1990, p. 109). A solução em tempos autoritários foi a manipulação do espaço, por meio de políticas de distribuição controlada de terras e seletiva de créditos agrícolas, somada à política de desenvolvimento urbano (Machado, 1990, p. 109). O viés de desenvolvimento centralizado e autoritário teve como ator principal o Estado. No caso da Amazônia, a ocupação dirigida favoreceu a apropriação privada da terra pelos agentes monopolistas, principalmente empresas agro-

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pecuárias e fazendeiros individuais (Becker, 2001, p. 25). Em 1980, a preocupação do Conselho de Segurança Nacional com a escalada de conflitos de terra e resistências em escala local resultou à delegação de plenos poderes às Forças Armadas para intervirem na região amazônica, militarizando a política regional (Becker, 2001, p. 40-2).

O sistema de povoamento regional da Amazônia sofreu uma retração dos investi-mentos do governo federal, principalmente após 1984 (Machado, 1999, p.123). Apesar disso, a população na região continuou crescendo, principalmente a população urbana, processo que esteve mais relacionado com o crescimento urbano das cidades já existentes do que com a criação de novos municípios (Machado, 1999, p. 124). Após a Constituição de 1988, que retirou da União e restituiu aos Estados a prerrogativa de conceder auto-nomia municipal, houve um aumento explosivo no número de municípios na Amazônia (Machado, 1999, p. 130). A questão então passou a ser como garantir as condições econômicas necessárias para o desenvolvimento local e para uma gestão autônoma dos municípios amazônicos.

O rearranjo do federalismo brasileiro promovido com a descentralização política pós 1988 inaugurou novas relações entre as esferas de poder, nas quais os municípios buscaram ampliar o espectro de possibilidades de arrecadação para que se tornassem mais autônomos financeiramente e menos dependentes da União. Exemplo disso é a tributação do ICMS para a comercialização de produtos minero-metalúrgicos e a Compensação Fi-nanceira sobre a Exploração Mineral (Coelho et al., 2003, p. 667), com benefícios diretos aos municípios, principalmente na Amazônia Oriental.

Por fim, destacamos mudanças no nível operativo das políticas de segurança e defe-sa. As relações hierárquicas e a capacidade de centralização e comando do Estado central em relação às regiões e lugares foram alteradas, não só pela incorporação de novas mo-dalidades de controle, mas também pelas práticas interativas e adaptativas dos diferentes agentes envolvidos na aplicação das políticas.

Alguns elementos característicos das novas modalidades apontam para a redefinição dos papéis das agências e suas jurisdições, as interações interagências para o compartilha-mento de informações, sistemas de vigilância e procedimentos normativos e a cooperação internacional em matéria de segurança e defesa. As atuais lógicas de controle territorial são redefinidas frente aos desafios à soberania estatal, tais como a maior autonomia dos poderes locais em relação ao Estado central, a “proliferação de atores no sistema interna-cional acima, abaixo, ao lado e no interior do Estado” (Slaughter, 2002, p. 13) e a securiti-zação de questões como criminalidade transnacional, direitos indígenas e meio ambiente.

Muitas vezes a dinâmica cooperativa de abertura das fronteiras para os fluxos econô-micos é pensada em oposição aos mecanismos de fechamento para a garantia da seguran-ça nacional. Para além dessa visão dicotômica, as iniciativas de cooperação internacional para a segurança e controle de uma fronteira compartilhada contra ameaças comuns a mais de um Estado podem abrir uma nova possibilidade de integração. Por outro lado, a necessidade de combinar segurança e desenvolvimento tende a originar formas de con-trole que pressupõem espaços seguros, abertos e conectados, nos quais a ação do Estado interage com outros importantes agentes econômicos interessados mais em oportunidades do que em defesa e proteção.

A delimitação tradicional entre esferas de atuação dos agentes estatais no controle do território tende a ser substituída pela imbricação de agências que operam de forma combinada sobre temas transversais e muitas vezes combinam esferas públicas e privadas/não governamentais. Essa tendência ocorre também na cooperação internacional: agentes

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de diferentes países podem atuar de formas combinadas através de conexões que não per-correm todos os níveis hierárquicos do Estado. É o que Didier Bigo (2005, p. 63) carac-teriza como “arquipélagos institucionais” em um estudo sobre a transnacionalização dos agentes de segurança. Em todos esses casos, existe uma oposição entre hierarquia e rede que acaba por se expressar no interior do próprio Estado, visto que algumas iniciativas de incorporar a lógica das redes nas instituições do Estado se defrontam com as estruturas hierárquicas já estabelecidas.

“É preciso redes para enfrentar redes” – reconhecem Arquilla e Ronfeldt (2001, p. 15) – e o lado que melhor dimensionar a forma rede obtém vantagem em relação ao adversário. Isso não significa somente o uso de novas tecnologias em rede, mas sim a capacidade de inovar nos modos de organização, com a formação de novos mecanismos interagências, interserviços, multijurisdicionais e de cooperação transnacional (Ronfeldt, 2003, p. XVII). Apesar da supervalorização da dimensão cibernética e tecnológica, é o aspecto organizacional das redes que determina sua operabilidade, por meio da comuni-cação e da coordenação dos agentes, desde o compartilhar de informações até operações táticas conjuntas.

Junto desse processo, podemos destacar que a relação entre comando e controle é alterada pela consideração de dinâmicas adaptativas e complexas que inviabilizam as operações unidirecionais de cima para baixo.

Mais do que pensar que “comando” e “controle” operam ambos de cima para baixo nas orga-nizações, nós devemos pensá-los como um processo adaptativo no qual o “comando” é gerido de cima para baixo e o “controle” é a resposta de baixo para cima. […] Comando e controle são desse modo fundamentalmente uma atividade de influência recíproca envolvendo trocas entre todas as parte de cima para baixo e lado a lado” (Schmitt, 1997, p. 108-109).

A sincronização não é efetuada por meio de operações centralizadas de comando e controle, mas da cooperação entre múltiplos agentes que atuam independentes um do outro em resposta às condições locais (Schmitt, 1997, p. 110). A distância entre “a geo-estratégia elaborada linearmente de cima para baixo pelos governos centrais e as atuações efetivas dos diversos agentes no terreno” reforça o quadro de incerteza em que se operam as negociações internas e externas do espaço soberano (Machado, 2007, p. 27).

CONTROLE ESTATAL E MEDIAÇÕES LOCAIS

O Programa Calha Norte oferece um ponto de vista privilegiado para explicitar as novas configurações de comando e controle, por meio da negociação entre governo cen-tral e esferas locais e regionais para a aplicação de políticas de controle estatal. A questão a ser demonstrada nesse tópico é o modo como o envolvimento dos municípios e unidades da federação interfere nos direcionamentos do Programa Calha Norte conferindo-lhe legitimidade local.

No período de retomada do PCN verificamos mudanças simultâneas ocorridas na forma de captação de recursos e na relação entre as Forças Armadas e os governos subnacionais. A justificativa social do PCN passa a incorporar interesses locais, fazendo com que agentes dos governos municipais e estaduais se mobilizem para obter verbas que possam ser incorporadas ao Programa. É o que se pode ver através do montante dos

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recursos do PCN levantados pelas bancadas estaduais no Congresso Nacional. Em 2007, foram R$ 136,5 milhões liberados por emendas individuais, R$ 13 milhões por comissões e R$ 271,5 milhões pelas bancadas dos estados cobertos pelo PCN (Ministério da Defesa, 2007, p. 2).

O aumento das verbas recebidas pelo Programa Calha Norte está diretamente rela-cionado à ampliação do número de convênios e a ampliação da vertente civil das ações do programa. A partir de 2005, as verbas são discriminadas entre “recursos do MD” e “emendas parlamentares”, sendo que esta última representa a maioria do montante des-tinado ao PCN. A introdução de “emendas parlamentares” no orçamento do programa explica o boom de recursos disponíveis nos últimos três anos.

Gráfico 2 – Verbas do PCN, vertente civil e militar (2003-2007)

Fonte: Ministério da Defesa, 2011

A mudança fica evidente se compararmos à centralização característica de progra-mas federais nas décadas de 1970 e 1980. Se antes a relação vertical se estabelecia como uma via única – de cima para baixo –, atualmente o desenvolvimento institucional local e a perda de influência política das Forças Armadas na política nacional propiciam situa-ções de negociação entre as partes. Ao mesmo tempo, a condição especial de estar situado em áreas pretensamente vulneráveis a ameaças externas favorece a obtenção de recursos para os municípios, pois os benefícios proporcionados pela maior segurança do Estado são apresentados como compartilhados por todas as unidades da federação.

A leitura dos Relatórios de Situação (2003-2007) permite verificar essa mudança, embora sua quantificação seja difícil de estabelecer. Segundo os Relatórios, existe um montante total destinado pela Lei Orçamentária Anual (LOA) que inclui uma parte das verbas alocadas diretamente ao Ministério da Defesa e outra parte alocada a partir de Emendas Parlamentares. Somente uma porcentagem dos créditos alocados pela LOA é liberada pelo Ministério da Defesa, sendo distribuídos entre as ações do programa re-ferentes ao próprio ano e os restos a pagar dos anos anteriores. Portanto, a definição do valor total destinado a cada ação ou vertente é variável, embora seja notável o aumento dos recursos destinados à vertente civil, bem como sua importância em relação aos recur-sos da vertente militar (ver Gráfico 2 e Tabela 1). Entre as Forças Armadas, o Exército é o que recebe o maior montante.

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Tabela 1 – Valores destinados ao PCN pela LOA e parte destinada a cada Força (R$)

2003 2004 2005 2006 2007LOA 42.445.611 67.327.280 235.694.311 191.531.197 455.021.000

Gastos Efetivados 14.330.430 41.606.205 132.802.582 163.802.582 273.298.120

Vertente civil 6.295.955 23.658.516 115.242.367 147.967.707 250.637.781

Exército 5.102.359 12.876.183 11.359.784 15.589.636 13.596.432

Marinha 2.207.916 2.526.506 4.150.500 3.829.739 5.580.800

Aeronáutica 724.200 2.545.000 2.148.716 1.765.500 3.483.108

Fonte: Ministério da Defesa. Relatórios de Situação do PCN (2003 a 2007)

O número de convênios e de municípios envolvidos aumentou consideravelmente entre 2003 e 2007, saindo de um patamar de 9 para 63 municípios, entre 2003 e 2006. Nesse período, nenhum estado concentrou fortemente a maioria dos convênios, havendo alternância ao longo dos anos. Os estados do Amapá e de Roraima possuem convênios em todos os municípios. O valor total empenhado nos convênios é superior em Roraima e no Acre, enquanto o Pará é o menos favorecido tanto em número de municípios conveniados quanto em valores totais (ver Gráficos 3 e 4).

Gráfico 3 – Participação dos municípios no PCN, por UF (2003-2007)

Fonte: Ministério da Defesa (2003 a 2007)

Gráfico 4 – Verbas destinadas aos municípios, por UF (2003-2007)

Fonte: Ministério da Defesa (2003 a 2007)

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Embora o montante destinado a cada município não seja tão expressivo nas contas municipais, as verbas do PCN são muito requisitadas devido à maior facilidade dos trâmi-tes necessários para sua obtenção. Segundo informações do trabalho de campo realizado no Acre em 2006, a representante da Associação dos Municípios do Estado do Acre des-tacou a eficiência do Programa em disponibilizar as verbas pedidas. Os investimentos do PCN nos municípios do Acre podiam ser notados em diversas placas de obra (Fotos 1 e 2).

Fotos 1 e 2 – Placas indicam os investimentos do Programa Calha Norte em conjunto com a Prefeitura Municipal e o Ministério das Cidades, em Epitaciolândia-AC.

Fonte: Ribeiro e Monteiro (2006). Fotos: Licio Monteiro

Ao analisarmos as verbas destinadas a cada vertente do Programa Calha Norte, verificamos que as ações da vertente militar se referem, principalmente, à infraestrutura das Organizações Militares (OM) presentes na região, podendo também servir às ativida-des de assistência às populações locais. As Organizações Militares são responsáveis pela execução das ações, que podem ocorrer em seus municípios de localização ou em outros municípios, o que dificulta o entendimento sobre a área de abrangência de cada ação. Por conta disso, as Organizações Militares situadas em Manaus-AM e Belém-PA, que possuem o maior número de OM da região amazônica, recebem grande parte das verbas, apesar de as ações estarem localizadas em outros municípios.

Comparando-se com a vertente civil, notamos que Manaus-AM e Belém-PA não aparecem entre os municípios favorecidos por convênios.2 Já as capitais estaduais Boa Vista-RR e Rio Branco-AC receberam quase um terço dos recursos totais empenhados em convênios entre 2003 e 2007.

Na vertente militar, a presença das Forças Armadas nos municípios e localidades justifica os investimentos. As verbas são destinadas à manutenção de aerovias, rodovias, embarcações, portos e pequenas centrais elétricas, implantação de unidades militares, infraestrutura dos Pelotões Especiais de Fronteira e infraestrutura básica local. O apoio às comunidades do Calha Norte é realizado por meio de Ações Cívico Sociais, apoio às comunidades indígenas e às comunidades dos municípios mais carentes da região.

As capitais estaduais assumem papel de comando na hierarquia das Organizações Militares, principalmente Manaus (AM) e Belém (PA), e também nos convênios munici-pais, principalmente Boa Vista (RR) e Rio Branco (AC).

Capitais estaduais:• Manaus(AM) e Belém (PA) que receberam recursos somente na vertente militar, prin-

cipalmente para equipamentos e infraestrutura das OM situadas nesses municípios;

2 Belém-PA não está na área coberta pelo PCN e só rece-be recursos direcionados à vertente militar por estarem localizadas na cidade diver-sas Organizações Militares que executam suas ações em municípios cobertos pe-lo PCN, principalmente na localidade de Tiriós, onde foi implantado um Pelotão Especial de Fronteira.

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• BoaVista(RR) e Rio Branco (AC), grandes receptores de verbas dos convênios muni-cipais (acima de R$ 10 milhões), estabelecidos na vertente civil do PCN e receptores de recursos da vertente militar, em valor muito menor;

• PortoVelho(RO) e Macapá (AP) receberam recursos dos convênios municipais entre R$ 1 milhão e R$ 2 milhões e recursos da vertente militar em valor aproximado.

Os municípios e localidades que aparecem entre os receptores dos investimentos exe-cutados pelas Organizações Militares se distinguem entre aqueles que possuem unidades militares e aqueles que são identificados como carentes de infraestrutura. A partir dessa diferenciação podemos classificar alguns tipos de investimento feitos pelo PCN.

Municípios:• grandesreceptoresderecursosviaconvêniomunicipal,semqualquerrecursoadvindo

da vertente militar. Ex: Alto Alegre (RR), Rurainópolis (RR), São Luiz (RR), Iracema (RR), Sena Madureira (AC), Cantá (RR) e Santana (AP);

• grandesreceptoresderecursosviaconvêniomunicipal,comrecebimentoderecursosda vertente militar, para infraestrutura militar. Ex: Cruzeiro do Sul (AC), Bonfim (RR) e Tabatinga (AM);

• grandesreceptoresderecursosviaconvêniomunicipal,comrecebimentoderecursosda vertente militar, como apoio à infraestrutura local e assistência social. Ex: Caracaraí (RR), Uiramutã (RR) e Mâncio Lima (AC);

• pequenosreceptoresderecursosviaconvêniomunicipal,comrecebimentoderecursosda vertente militar, para infraestrutura militar. Ex: Pacaraima (RR), Normandia (RR), São Gabriel da Cachoeira (AM), Barcelos (AM) e Assis Brasil (AC);

• pequenosreceptoresderecursosviaconvêniomunicipal,comrecebimentoderecursosda vertente militar, como apoio à infraestrutura local e assistência social. Ex: Laranjal do Jari (AP), Rio Preto da Eva (AM);

• receptoresde recursosda vertentemilitar,para infraestruturamilitar, semqualquerconvênio estabelecido. Ex: Santarém (PA) e Tefé (AM);

• receptoresderecursosdavertentemilitar,comoapoioàinfraestruturalocaleassistên-cia social, sem qualquer convênio estabelecido. Ex: Santa Rosa do Purus (AC), Porto Walter (AC) e Jordão (AC).

Quadro 1 – Caracterização dos municípios do PCN, por tipo de recurso

Vertente civilVertente militar

ExemploInfra militar Infra civil

XXX Alto Alegre (RR)

XXX X X Tabatinga (AM)

XXX X Cruzeiro do Sul (AC)

XXX X Caracaraí (RR)

X XXX X São Gabriel da Cachoeira (AM)

X X Pacaraima (RR)

X X Laranjal do Jari (AP)

X Cabixi (RO)

X X Santa Rosa do Purús (AC)

X Santarém (PA) e Tefé (AM)

X Jordão (AC)

Legenda: XXX: acima de R$ 2 milhões. X: valor qualquer. Monteiro (2009)

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Finalizada a categorização dos municípios pelo montante, fonte e finalidade dos recursos recebidos, buscamos interpretar a distribuição espacial dos recursos do PCN por meio do mapeamento dos recursos, diferenciados pelas vertentes civil e militar. Os mapas indicam uma dissociação das áreas de investimento dos recursos para as duas vertentes. Na vertente civil, os municípios do estado de Roraima aparecem como os principais re-ceptores, seguidos pelo Acre. Na vertente militar, os principais receptores são as capitais estaduais Manaus-AM e Belém-PA, sedes dos comandos das Forças Armadas.

Os ganhos das Organizações Militares de Tabatinga-AM (R$ 2 milhões) e São Gabriel da Cachoeira-AM (R$ 9 milhões) se destacam em relação aos demais municípios situados na faixa de fronteira, inclusive capitais estaduais como Porto Velho-RO, Rio Branco-AC e Macapá-AP. Outra característica específica desses dois municípios, situados no segmento da faixa de fronteira Brasil-Colômbia, é que eles apresentam ganhos na vertente civil e nas duas modalidades da vertente militar (infraestrutura militar e civil). Essa situação demonstra uma tentativa de estabelecer uma redundância de vínculos insti-tucionais entre Forças Armadas, municípios e comunidades locais para operar as políticas de segurança no segmento fronteiriço Brasil-Colômbia (Monteiro, 2010, p. 199). A fron-teira Brasil-Colômbia foi foco de diversas outras políticas de controle territorial, como as Operações Combinadas das Forças Armadas, desde 2002, a Operação Cobra, iniciada em 2000, a transferência e a instalação de bases militares do Exército e da Aeronáutica e acordos bilaterais de cooperação em segurança e defesa (Monteiro, 2009).

Mapa 1 – Programa Calha Norte – Vertente civil (2003-2007)

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Mapa 2 – Programa Calha Norte – Vertente militar (2003-2007)

A hipótese sobre a relação entre gastos civis e militares é de que as ações de apoio à infraestrutura civil executadas diretamente pelas Organizações Militares ocorrem em municípios com pouca capacidade de captação de recursos por outras vias institucionais. Em alguns casos, as comunidades mais isoladas acabam dependendo das ações sociais das Forças Armadas, um dos poucos agentes estatais com capacidade logística de atendê-las. Por outro lado, reforça a ideia de poder tutelar exercido pelos militares como agente do Estado responsável pela assistência às populações locais. Essa hipótese é reforçada ainda pelo papel desempenhado pelos militares junto às populações indígenas.

Outra ideia recorrente é a necessidade de atuação do Estado nos vazios demográficos da Amazônia. Entre os municípios atendidos pelas OM, seis estão entre os 20 municípios de menor densidade demográfica da área do PCN.

O peso do estado de Roraima no direcionamento das verbas destinadas à vertente civil do PCN pode ser explicado pelo papel dos militares na disputa, vigente nos últimos anos, em torno da demarcação em área contínua da Reserva Indígena Raposa/Serra do Sol. Vários setores das Forças Armadas se manifestaram contrariamente à demarcação em área contínua, com o argumento de que a reserva indígena na faixa de fronteira poderia representar uma ameaça à soberania brasileira. As negociações políticas para a concretização da demarcação em área contínua dependem das contrapartidas do governo brasileiro para atender aos interesses das partes envolvidas. Recentemente, o Governo Federal transferiu cerca de seis milhões de hectares da União para o estado de Roraima, como forma de compensar as perdas territoriais com a demarcação das terras indígenas. No caso dos militares, a garantia da permanência das unidades militares e a ampliação do número de Pelotões Especiais de Fronteira nas terras indígenas neutralizaram as posições radicalmente contrárias.3

O pertencimento à faixa de fronteira também influi no direcionamento dos recur-sos, visto que dos 194 municípios, 98 estão situados na faixa de fronteira (50,5%) e dos 107 municípios que firmaram convênios, 78 estão situados na faixa de fronteira (72,9%).

3 União doa 6 milhões de hectares de terra a Roraima, O Globo, 29/01/2009.

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Com o lançamento da Estratégia de Defesa Nacional (2008), houve uma orientação para combinar esforços entre o Programa Calha Norte e o Programa de Desenvolvimento da Faixa de Fronteira (PDFF) na Amazônia, o que poderia ampliar o papel dos municípios situados na faixa de fronteira dentro do PCN. O apoio às interações transfronteiriças, aspec-to com pouca importância no PCN até então, poderia representar um novo vetor de investi-mento. Em 2009, a iniciativa de integrar a gestão do PCN ao PDFF no âmbito do Ministério da Integração não avançou, devido à dificuldade de ajuste gerencial entre os programas.

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Licio Caetano do Rego Monteiro é geógrafo; mes-tre e doutorando em Geo-grafia (UFRJ); pesquisador vinculado ao Grupo RETIS/UFRJ; bolsista CNPq. Email: [email protected] Ar ti go re ce bi do em agosto de 2011 e apro va do pa ra pu bli ca ção em outubro de 2011.

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A b s t r a c t The Programa Calha Norte – PCN (The “Calha Norte” Programme) was designed in the 1980s but took on new configurations after its resumption in 2003. This article analyzes the differences between the former and the later moments at the PCN, considering the redefinition of Brazilian security and defense policies for the Amazon international borders in the last two decades. The main argument is that changes in the PCN between these two periods show how the implementation of policies directed by the central government, even in security and defense, depends on the mediation of local and regional scale

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that legitimize and shape the results. For this argumentation the documents relating to the PCN, the relationship between the PCN and other policies of territorial control in Amazônia and the mapping of the funds applied by the PCN in the municipalities of their coverage area, between 2003 and 2007, are analysed.

K e y w o r d s Calha Norte Programme; security; Brazilian Amazon; borders; military.

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CIDADES MÉDIAS NA AMAZÔNIA ORIENTAL

Das Novas Centralidades à Fragmentação do Território

S a i n t - C l a i r C o r d e i r o d a T r i n d a d e J ú n i o r

R e s u m o O artigo apresenta elementos da centralidade urbano-regional de cidades médias na Amazônia brasileira e discute o papel desse tipo de cidade em um contexto de rees-truturação territorial. Para efeitos de análise considera a diferença conceitual entre “centro” e “centralidade”, assim como entre “fluxos” e “fixos”. As referências empíricas da análise são duas cidades situadas na Amazônia Oriental – Marabá e Santarém. O estudo faz uma abordagem a propósito da importância dessas cidades para a produção do espaço regional e considera ele-mentos históricos da formação territorial da Amazônia brasileira, assim como dados estatísticos e informações documentais sobre essa região e seu processo de urbanização. Ao final é destacado o papel da centralidade política desempenhado pela cidade média na Amazônia em um con-texto regional de rearranjo espacial, de emergência de novos interesses regionais e de propostas de divisão política do território.

P a l a v r a s - c h a v e Cidades médias; Amazônia Oriental; centralidade; divisão territorial.

INTRODUÇÃO

O quadro regional da Amazônia brasileira das últimas décadas nos faz concluir pela existência de uma nova dinâmica de urbanização que toma forma difusa e diversa na re-gião. Há uma mudança no padrão de organização do espaço que desemboca, igualmente, em uma maior complexidade relacionada não só às formas das cidades, como também aos seus conteúdos, confirmando o processo diferenciado de produção do espaço.

Evidentemente que não se tratam de tipos isolados, mas, sobretudo, de expressões da urbanização que se combinam dentro de um mesmo subespaço, ou que acabam por revelar, em um mesmo ambiente urbano, faces diferenciadas da dinâmica econômica, política e cultural em curso no plano regional. Tal complexidade é fruto de um processo de transfor-mação recente, que provocou profundas alterações na paisagem urbana, mas que também nos revela resíduos de uma urbanização anterior que não foi definitivamente aniquilada.

A reestruturação da rede urbana e os novos papéis conferidos às cidades confirmam o perfil de uma nova estrutura produtiva, do mercado de trabalho e da importância política desses núcleos urbanos na Amazônia, o que implica, necessariamente, na ruptura de an-tigos padrões de organização espacial. Isso ocorre pelo caráter disseminado e pulverizado em que ocorreram os investimentos econômicos e as ações governamentais na região com a abertura da fronteira econômica desde a segunda metade do século XX.

Em que pese o grau elevado de urbanização da população, acima de 70% do contin-gente total de habitantes da região, as políticas de desenvolvimento parecem ter assumido

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um perfil notadamente não urbano. Ou, quando se preocupam com essa dimensão da rea-lidade regional, tratam-na como se fosse de uma natureza notadamente metropolitana. De maneira geral, entretanto, é recorrente a leitura da realidade regional como se as cidades não assumissem tanta importância, ou ainda, como se diferentes tipos e níveis de cidades não compusessem a urbanodiversidade regional, termo aqui utilizado para identificar as diferentes e plurais realidades urbanas da região.

De forma diferenciada, busca-se aqui trilhar um caminho em que seja possível falar de uma Amazônia urbana e, mais do que isso, de uma Amazônia onde a diversidade de pequenas e médias cidades desperte atenção na compreensão do atual quadro regional. Particularmente, na presente análise,1 pretende-se contribuir com conhecimentos a respei-to deste último perfil de cidades, as cidades médias, que passaram a ter importância mais recentemente, inclusive do ponto de vista político, dentro da estrutura urbana regional. Esse empreendimento tem como base de reflexão as cidades de Marabá e Santarém, loca-lizadas no Estado do Pará, na Amazônia Oriental brasileira, discutindo-se elementos da centralidade urbana nelas presentes.

A noção de centralidade aqui tratada busca ultrapassar a dimensão econômica dos fluxos que definem a importância das cidades médias. Nessa perspectiva, alcança também a noção de centralidade política, que, na presente discussão, sugere-se fazer parte da ca-racterização dessas cidades, quando as mesmas assumem a condição de centros urbanos sub-regionais em face do processo de reestruturação da rede urbana amazônica.

A PRODUÇÃO DO ESPAÇO REGIONAL AMAZÔNICO E A IMPORTÂNCIA DAS CIDADES MÉDIAS

Para o estudo das cidades médias, a relação das mesmas com a região se coloca como de extrema importância dado o seu caráter definidor da dinâmica urbana e do padrão de organização interna por elas apresentado. Nesse aspecto, acompanhando o raciocínio de Villaça (1998), diferentemente dos estudos metropolitanos, em que o deslocamento e a localização da força de trabalho no interior do espaço urbano definem, em sua maior par-te, a dinâmica urbana, nas cidades médias essa importância possui um menor peso quando comparada à circulação de mercadorias em geral (capital constante, energia, informações etc.) no contexto regional; daí o estudo da cidade média ser também e, ao mesmo tempo, um estudo de uma dada dinâmica sub-regional. Os exemplos de Marabá e de Santarém, no Estado do Pará, tendem a ratificar essa proposição.

A abordagem sugere também como pressuposto de análise a diferenciação entre cida-de de porte médio, cidade intermediária e cidade média. No primeiro caso, considera-se o patamar populacional para reconhecer tão simplesmente o tamanho demográfico das cidades. As cidades intermediárias, por sua vez, são definidas tendo em vista sua posição relativa e intermediária (entre as pequenas cidades e as metrópoles regionais), indepen-dentemente de sua expressividade político-econômica no contexto hierárquico de uma rede urbana. São noções, portanto, que se diferenciam daquela que identifica o que seja a cidade média. Esta última leva em conta a importância sub-regional apresentada por uma dada cidade intermediária, ipso facto, pelas fortes centralidades que aí se materializam por meio de fluxos, a ponto de contribuírem significativamente para o ordenamento do espaço regional em que se inserem.

1 O presente trabalho con-tou com o apoio financeiro do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientí-fico e Tecnológico), através dos projetos de pesquisa “Cidades médias na Amazô-nia: novos agentes econô-micos e novas centralidades urbano-regionais no sudeste paraense” e “A cidade e o rio na Amazônia: mudanças e permanências face às trans-formações sub-regionais”.

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Em consequência, são consideradas cidades médias aquelas que assumem um deter-minado papel na estrutura urbana regional como centro sub-regional, não sendo simples-mente centros locais, mas núcleos urbanos com capacidade de polarizar e influenciar um número significativo de cidades menores e articular relações de toda ordem. Funcionam, assim, como anteparos e suportes às metrópoles regionais, não compondo junto com estas uma unidade funcional contínua e/ou contígua (Sposito, 2001b).

Com inspiração também no raciocínio da mesma autora, consideramos que, não obstante as cidades médias possam ser reconhecidas como intermediárias, tais definições não são intercambiáveis. As cidades intermediárias são aquelas que se colocam em um intervalo da hierarquia urbana entre as principais cidades regionais e as cidades locais, podendo ou não assumir importância regional. Da mesma forma, existem centros urba-nos de porte médio que não são cidades médias por integrarem áreas metropolitanas. Há, ainda, cidades que, mesmo não atingindo o porte médio, assumem o papel de centros urbanos regionais, alçando-se, portanto, à condição de cidade média (Trindade Jr.; Pe-reira, 2007).

Como cidades médias, Marabá e Santarém, na Amazônia Oriental, chamam atenção pelo fato de desempenharem funções que servem de mediação entre as pequenas cidades da região e as metrópoles regionais e extrarregionais. Nessa condição, definem seus dina-mismos em função da forte centralidade exercida em determinado contexto sub-regional, fato este que nos leva à compreensão da noção de centralidade. Para Sposito (2001a), é preciso estabelecer a diferença entre centro e centralidade, sendo o primeiro definido por aquilo que Santos (1996) considerou como sistema de fixos (o que se localiza) e o segundo, também denominado por Santos (1996), como sistema de fluxos (o que circula). Assim, a localização, sob a forma de concentração de atividades comerciais e de serviços, e, portanto, de fixos, revela o que se considera como central, ao passo que o movimento, ou seja, os fluxos, institui o que se mostra como centralidade. Tratam-se, na verdade, de duas experiências da realidade urbana que articulam, respectivamente, com pesos diferenciados, a dimensão espacial e temporal desses espaços (Sposito, 2001a).

Para a realidade aqui tratada, a referência ao sistema de fixos se faz importante, mas é na definição dos fluxos que se pode reconhecer o perfil de cidades médias assumidas por Marabá e Santarém ao longo da formação territorial amazônica. Portanto, não é exa-tamente a densidade dos fixos que define a importância dessas cidades nos últimos anos na região, mas principalmente a centralidade – os fluxos –, que muitas vezes intensifica o uso dos fixos disponíveis. Neste caso, a centralidade passa a ser compreendida pela con-vergência de fluxos e pelo caráter centrípeto por eles exercido em direção a um determi-nado ponto da rede urbana, devido a uma dada disponibilidade de infraestrutura e a uma relativa densidade técnica, de atividades econômicas, sociais e políticas que nesse ponto se concentram (Trindade Jr.; Ribeiro, 2008).

No caso amazônico, a urbanização guarda, em grande parte, profunda relação com uma lógica intencional do Estado (Machado, 2000), principalmente a partir da década de 1960, quando o índice anual de urbanização se intensificou. O controle da terra, a política de migração induzida e financiada pelo poder público e o incentivo a grandes empreendimentos, asseguraram o desenvolvimento da fronteira urbana.2 Esta última, segundo Becker (1990) e Machado (2000), funcionou como recurso estratégico para a rápida ocupação da região, antes mesmo da implantação de projetos de produção agríco-la, pecuarista, energética, mineral e/ou industrial. É uma realidade, assim, que reproduz características de fronteira econômica, representando, para as empresas e investidores

2 Base logística para o projeto de rápida ocupação da região, implicando em proliferação e crescimento de cidades, bem como em difusão do modo de vida urbano (Becker, 1990).

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capitalistas, um espaço de valor onde se podem implantar rapidamente novas estruturas produtivas e de circulação, servindo, ainda, como reserva mundial de matérias-primas.

Desse modo, as cidades tornaram-se bases logísticas para as políticas de desenvol-vimento pensadas para a região e para a ressocialização da população migrante (Becker, 1990). Essas políticas definiram um conjunto de elementos novos na urbanização da região, cujas características, para as décadas de 1970 e 1980, podem ser elencadas da seguinte forma: a valorização dos centros localizados às margens das rodovias; a repro-dução de pequenos núcleos dispersos vinculados à mobilidade do trabalho; a retração de núcleos antigos, que ficaram isolados à margem das novas formas de circulação; a implantação de franjas urbanas avançadas, correspondentes às cidades das companhias; e a concentração nas capitais estaduais (Becker, 1990; Corrêa, 1987; Vicentini, 1994). Esses elementos definiram uma urbanização polimorfa e desarticulada, atribuída a dife-rentes formas de interações socioespaciais e a diversas formações microssociais híbridas (Browder; Godfrey, 1997).

Outros estudos indicam novas tendências, não presentes no passado (Quadro 1). De um lado, o reforço da metrópole dispersa como parte do processo de “metropolização”, de outro, a proliferação de pequenas cidades e o crescimento dinâmico de novos núcleos urbanos – as “cidades médias” – que, na Amazônia, cumprem o papel de centros regio-nais (Ribeiro, 1998; Machado, 2000). São exemplos desse nível de cidades, as capitais de alguns estados, como Rio Branco (no Estado do Acre), Porto Velho (no Estado de Ron-dônia), Boa Vista (no Estado de Roraima), e outras cidades, que não são capitais, mas que se alçam à categoria de cidades médias dada à importância na nova dinâmica econômica regional. É o caso, por exemplo, de Marabá, Santarém e Castanhal, no Estado do Pará, e de Imperatriz, no Estado do Maranhão; todas integrantes da Amazônia Oriental, onde a expansão do fenômeno urbano no território é mais intenso e bastante diferenciado, quando comparado à Amazônia Ocidental.

Quadro 1 – Amazônia: a rede urbana em dois momentos

Forma Dendrítica (Antes de 1960) Forma Anastomosada (Após 1960)

Atividades econômicas tradicionais Frentes econômicas e de modernização

Circulação fluvial e ferroviária Circulação multimodal: destaque às rodovias

Cidades dos notáveis: pequenas e semelhantes Cidades híbridas: dos “notáveis” e econômicas

Cidade primaz Difusão do fenômeno de metropolização

Concentração econômica Desconcentração econômica

Pouco destaque às cidades intermediárias Importância das cidades médias

Elaboração: Saint-Clair C. da Trindade Júnior.

Tanto as médias quanto as pequenas cidades apresentaram interessantes índices de crescimento populacional nas últimas décadas, algumas delas, inclusive, superiores aos grandes centros urbanos. Tais cidades detêm, segundo dados oficiais, grande parte da população regional. Entretanto, a expansão da fronteira econômica não se deu de maneira igual quando consideramos a especificidade das sub-regiões. A Amazônia Oriental, em particular, tende a acompanhar um processo que já vem sendo verificado há algum tem-po no restante do território brasileiro. Conforme nos mostra Santos (1993), as grandes cidades já apresentam taxas de crescimento econômico menores do que suas respectivas

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regiões, repercutindo no maior dinamismo e importância dos outros níveis de cidades, como as cidades médias, conforme também acontece na Amazônia Oriental.

FLUXOS ECONÔMICOS E NOVAS CENTRALIDADES

As cidades selecionadas como exemplos para a presente análise, assumidas aqui como representativas de suas respectivas sub-regiões, são classificadas, para efeitos de discussão, como centros urbanos regionais. No caso de Marabá, trata-se de uma cidade que vem sendo lócus de grandes investimentos na região, pela importância produtiva, comercial, distribuição de serviços e liderança política no sul/sudeste paraense, tornando-se, com isso, uma das mais importantes no ranking econômico do Estado do Pará. Constitui-se também um importante nó da rede urbana, viária e elétrica da Amazônia Oriental, e com destaque para a sua base produtiva assentada na agropecuária, na indústria mínerometa-lúrgica e no extrativismo vegetal e mineral (Tavares, 1999).

Há, nesse caso, uma trajetória histórica a ser considerada no seu processo de forma-ção e de dinamização, que se deu a partir de frentes pioneiras de atividades extrativas, mi-nerais e vegetais, responsável pela formação de oligarquias tradicionais ligadas a atividades como a exploração da castanha-do-pará (Emmi, 1987). Mesmo o declínio da atividade gomífera na Amazônia afetou apenas parcialmente a sub-região onde se localiza Marabá. A exploração de produtos como a castanha-do-pará no vale do Tocantins-Itacaiúnas, possibilitou certo dinamismo a essa cidade, reafirmando seu papel como sub-centro com o processo de integração da região, que se consolidou a partir da década de 1960, quando se tornou o principal centro urbano de apoio à colonização agrária. Nesse contexto, foi definida, pelas políticas territoriais do governo federal, como rurópolis, o nível mais ele-vado de cidade, pensado a partir do modelo de urbanismo rural do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), que orientava o processo de ocupação ao longo das rodovias, como no caso da Transamazônica,

Hoje, além de sua importância econômica para o sul/sudeste paraense, é notável seu papel como entroncamento aeroviário e rodoferroviário para as cidades menores de sua sub-região. Ademais, a articulação de Marabá com regiões vizinhas, inclusive fora da Amazônia, por meio das novas vias de circulação, fez da mesma uma das principais cidades da Amazônia brasileira, após os maiores centros urbanos regionais. Assumem importância, nesse caso, as rodovias Transamazônica, PA-150, BR-222 e a Estrada de Ferro Carajás, que articulam a Amazônia brasileira a diversos municípios considerados espaços de novas oportunidades econômicas e de investimentos capitalistas.

Nesse contexto, de novas redes de circulação, o rio Tocantins, de fundamental im-portância na formação da sub-região e da cidade de Marabá, tem seu papel econômico relativizado em face das novas estratégias de ordenamento territorial. O modelo de ocupa-ção assentado no tripé “rodovia - terra-firme – subsolo” (Porto-Gonçalves, 2005) parece confirmar a importância dessa cidade para a nova configuração sub-regional e para uma tendência de “negação do rio” face às novas frentes de expansão econômica.

Para o caso de Santarém, conforme os estudos de Pereira (2004), os fluxos de mer-cadoria e pessoas das capitais estaduais, notadamente Belém e Manaus, como também de outros centros urbanos da região, têm naquela cidade uma referência nodal. Tal impor-tância se projeta, seja do ponto de vista da circulação aérea – o aeroporto de Santarém é o

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segundo maior em movimento de passageiros do Estado do Pará –, seja do ponto de vista da circulação rodoviária (rodovia Cuiabá-Santarém articulada à Transamazônica) e fluvial (rio Amazonas e Tapajós). Neste caso, circulação rodoviária, aeroviária e hidroviária pa-rece se complementar, em uma forma de organização do espaço um pouco diferenciada daquela verificada no sul/sudeste do Pará.

A articulação da cidade de Santarém se dá tanto com o Baixo Amazonas como tam-bém com o sudoeste paraense, consideradas aqui como parte de uma sub-região maior, o oeste do Pará, e, ainda, com a parte oriental do Estado do Amazonas. Esse papel foi construído ao longo de sua trajetória de formação territorial, como pode ser observado por seus antecedentes históricos. Desde o início do processo de colonização da região no século XVII, Santarém assumiu um importante papel na consolidação do novo povoamen-to regional. Isso se reafirma no século XIX, com a economia gomífera, e se ratifica com as políticas de integração regional e, mais recentemente, com a expansão da produção da soja em direção à rodovia Cuiabá-Santarém.

A exemplo de Marabá, e diferentemente de outras cidades ligadas à economia da borracha e que passaram por um período de estagnação com a queda dos preços do produto no mercado mundial, a existência de outras atividades na área de polarização de Santarém, como a produção de juta, praticada nas várzeas dos rios, fizeram com que essa cidade mantivesse um relativo dinamismo econômico, conferindo-lhe certo destaque na economia regional no período imediato pós-borracha (Corrêa, 1987) e mantendo esse destaque até os dias atuais.

Ainda de acordo com Pereira (2004), na divisão territorial do trabalho, o Município de Santarém é um dos mais novos polos produtores de soja da Amazônia, principalmente ao longo da BR-163 (Cuiabá-Santarém), e a sede municipal cumpre um importante papel no corredor de escoamento da produção de grãos da região central do Brasil, que do porto local de Santarém parte em direção aos Estados Unidos e Europa, devido à localização estratégica desta cidade em relação aos grandes centros consumidores de grãos exportados pelo Brasil. A farta disponibilidade de recursos naturais constitui outro fator de atração do grande capital. As grandes reservas florestais também têm sido alvos da ação de madeirei-ros, devido ao alto valor comercial e da variedade de espécies existentes, como já acontece em outros estados da Amazônia (Pereira, 2004).

A importância dessas duas cidades reflete, portanto, a dinâmica da sub-região nas quais se localizam, constituindo-se dentro desse quadro sub-regional (Quadro 2) os prin-cipais centros urbanos de dinamismo econômico.

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Quadro 2 – Marabá e Santarém e suas unidades sub-regionais

Unidades Sub-Regionais Sudeste do Pará Baixo Amazonas

Principal cidade (População)

Marabá (176.834 habitantes) Santarém (134.258 habitantes)

Localização Sul e sudeste do estado do Pará, vales do rio Araguaia e do Tocantins e afluentes

Baixo Amazonas e parte da área de influência da rodovia BR-163 (Cuiabá-Santarém)

Principais elementos relacionados à formação socioespacial

Ocupada de forma mais intensa a partir da exploração das drogas do sertão, teve sua dinâmica reforçada posteriormente com a exploração do caucho e da castanha, que contribuíram para desterritorializar populações tradicionais e formar uma forte oligarquia da castanha, que perdurou até a primeira metade da década de 1970. Com a expansão de frentes econômicas diversas (madeireiras, agrícolas pecuaristas, minerais etc.) novos agentes se fizeram presentes a partir da década de 1960, formando uma região dinâmica do ponto de vista econômico e de intensos conflitos pela apropriação do território e de seus recursos.

Grande presença do Estado através da implantação de infraestrutura, políticas migratórias e incentivos fiscais.

Área de antiga colonização com importância na extração de produtos da floresta e na agricultura, especialmente a juta, e de expansão recente de frentes econômicas que provocaram a reorganização capitalista do espaço de caráter pontual e linear.Presença de frentes de modernização recente que incluem grandes projetos de exploração mineral, rodovias, hidrelétrica e infraestrutura portuária definiram uma nova ordem territorial que combina ações estatais com ordenamento espontâneo com a presença de agentes econômicos diversos.

Papel na divisão territorial do trabalho

A importância do diamante e da castanha no passado cede lugar nos dias atuais à forte presença de atividades mais modernas como a agricultura, a pecuária leiteira e de corte, e a exploração mineral; atividades estas praticadas por agentes de pequeno, médio e grande porte.

Área com a presença de grandes projetos, de atividades tradicionais e de atividades recentes em expansão e consolidação, a exemplo da agropecuária, notadamente a expansão da soja, e da produção extrativa vegetal e mineral.

Agentes econômico- políticos e territorialidades

Grande disputa pelo espaço, com conflitos de territorialidade de caráter pontual ou ao longo de linhas, decorrentes da expansão capitalista. Movimento de criação do Estado de Carajás, comandado especialmente por novos agentes econômicos que referendam uma nova identidade política, econômica e cultural em consolidação e que vem sendo utilizada pelos diversos atores como demarcatória de uma nova unidade territorial com intenções separatistas.

Presença de elite tradicional e de espaço de conflitos entre formas novas de apropriação do território decorrente de novos agentes (grandes empresas, colonos e migrantes sem capital, Estado etc.) e de formas tradicionais de apropriação do território e de seus recursos (oligarquias, populações tradicionais etc.). Presença de relativa identidade territorial que sustenta a criação de um novo estado da federação a partir da fragmentação do território paraense.

Fontes: GUERRA, G. A. D. “Apropriação, uso da terra e desenvolvimento territorial na Amazônia”. In: RO-

CHA, G. M.; MAGALHÃES, S. B; TELSSERENC, P. Territórios de desenvolvimento e ações públicas. Belém:

Edufpa, 2009. p.185-205; MAGNANO, A. “A estrutura do espaço regional”. In: IBGE. Geografia do Brasil:

região norte. Rio de Janeiro, 1989, v. 3, p.275-307.

A importância quanto ao repasse na arrecadação de impostos, ainda que inferior ao aglomerado metropolitano do qual fazem parte Belém e Ananindeua, colocam Santarém e Marabá entre os 10 (dez) municípios com maiores arrecadações no conjunto de 144 (cento e quarenta e quatro) municípios de todo o Estado do Pará.

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Tabela 1 – Pará: Repasse em Reais da arrecadação do Imposto Sobre Circulação de Mer-cadorias e Serviços (ICMS) aos principais municípios – 2º Semestre de 2007

Municípios Total do Semestre Quota-Parte (%)

Altamira 1.331.831,89 1,65

Ananindeua 3.438.547,78 4,26

Barcarena 4.988.315,80 6,18

Belém 16.409.783,20 20,33

Canaã dos Carajás 1.234.971,39 1,53

Marabá 4.407.152,79 5,46

Oriximiná 2.421.512,52 3,0

Parauapebas 7.522.832,24 9,32

Santarém 2.025.998,81 2,51

Tucuruí 3.858.276,62 4,78

Fonte: Governo do Estado do Pará. Secretaria de Estado de Planejamento, Orçamento e Finanças, Diretoria

do Tesouro Estadual, 2007. Obs.: Deduzidos 15% de contribuição ao FUNDEF.

Tabela 2 – Pará – Repasse em Reais de Imposto Sobre Produtos Industrializados (IPI) aos principais municípios – 1º Semestre de 2008

Municípios Total do Semestre Quota-Parte (%)

Altamira 189.048,52 1,62

Ananindeua 506.463,31 4,34

Barcarena 750.359,23 6,43

Belém 2.405.117,23 20,61

Canaã dos Carajás 210.053,91 1,80

Marabá 682.675,20 5,85

Oriximiná 316.247,83 2,71

Parauapebas 1.051.436,50 9,01

Santarém 268.402,21 2,30

Tucuruí 547.307,12 4,69

Fonte: Governo do Estado do Pará. Secretaria de Estado da Fazenda, Diretoria do Tesouro Estadual, 2008.

Poder-se-ia questionar se as outras cidades que apresentam melhor desempenho na arrecadação também não se caracterizariam como cidades médias, tal a importância econômica que possuem no espaço paraense. Na verdade, os municípios que apresentam melhores arrecadações no conjunto do Estado, ou integram a Região Metropolitana de Belém – caso de Belém e Ananindeua –, ou são sedes de importantes projetos econô-micos. Diferentemente, Marabá, Santarém e Altamira justificam seu desempenho na arrecadação pela importância como centros urbanos sub-regionais, definindo significa-tivos fluxos de pessoas, mercadorias e informações no contexto do espaço paraense e da Amazônia Oriental.

Daquelas cidades cujo papel da arrecadação está associado a um grande projeto, provavelmente apenas Tucuruí possa ser considerada uma cidade média, pelo papel que

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assume do ponto de vista econômico, notadamente da distribuição de bens e serviços, para um conjunto de municípios direta ou indiretamente afetados pelo grande empreendimen-to hidrelétrico ali construído.

As demais cidades, mesmo com forte dinamismo econômico assentado no grande empreendimento instalado, são de pequeno porte e/ou com bases logísticas urbanas bem definidas, que estabelecem relações mais verticais (extrarregionais) que horizontais (dentro da própria região), e articulações muito mais organizacionais (corporativas) que orgânicas (relacionadas a vivências cotidianas) (Santos, 1996) com o restante do espaço paraense. Não são, portanto, centros regionais, mas verdadeiros enclaves urbanos no conjunto da rede urbana. Assim, mesmo com status econômico e equipamentos urbanos que as poten-cializam à condição de cidades médias, não definem polarizações regionais significativas e não se constituem propriamente como centros de distribuição e oferta de bens e serviços, apresentando, portanto, frágeis centralidades econômicas. Isso mostra, inclusive, a insu-ficiência de considerarmos o dinamismo econômico como critério isolado para definir as cidades médias.

Em que pese a tendência, no Brasil, de associar as cidades médias à modernização econômica e à melhoria da qualidade de vida da população, é preciso considerar que deter-minados critérios relacionados diretamente ao padrão de vida da população residente não ajudam muito a reconhecer a centralidade dessas cidades e a identificá-las como centros urbanos regionais. Assim, associar a importância das cidades médias à melhoria da quali-dade de vida parece induzir a equívocos, principalmente se considerarmos a diversidade territorial brasileira e amazônica e as especificidades dos centros urbanos regionais dentro dos diferentes contextos territoriais. É o que podemos concluir, por exemplo, se cotejar-mos a situação de pobreza e renda (Tabela 3) e de saneamento básico (Tabela 4) das duas cidades amazônicas aqui exemplificadas com outras cidades de sub-regiões mais dinâmicas e consolidadas economicamente, como as do estado de São Paulo.

Tabela 3 – Pobreza e renda em municípios com sedes porte médio nos estados do Pará e de São Paulo – 2001

MunicípiosRenda Média – Resp.

p/ Dom. (R$)Proporção de pobres (%)

Renda Per Capita (R$)

PARAENSES

Marabá 614 44,0 188,6

Santarém 451 54,0 139,9

PAULISTAS

Presidente Prudente 1.073 12,0 482,6

Sorocaba 1.089 10,6 448,2

Marília 979 11,5 421,2

Franca 854 8,3 359,6

Fonte: IPEA, FJP e PNUD apud Trindade Jr. e Pereira (2007)

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Tabela 4 – Acesso aos serviços de saneamento em municípios com sedes de porte médio nos estados do Pará e de São Paulo – 2000

Municípios Saneamento Adequado (%) Saneamento Inadequado (%)

PARAENSES

Marabá 15,6 29,4

Santarém 20,0 28,5

PAULISTAS

Marília 93,4 1,8

Franca 97,3 1,3

Presidente Prudente 94,6 1,5

Sorocaba 96,1 0,3

Fonte: Indicadores Sociais Municipais 2000 – Brasil apud Trindade Jr. e Pereira (2007)

Muito mais que definir a cidade média pelo seu patamar demográfico ou pelo seu grau de modernização, parece ser importante considerar o seu papel enquanto espaço re-lacional no contexto regional em que se insere. Nesse sentido, o papel das cidades médias na Amazônia sugere levar em conta a relação das mesmas em face dos novos processos que se desdobram no plano regional. Considerando Marabá e Santarém, constata-se que o perfil desse nível de cidades é bem diferenciado quanto às demais cidades de outras regiões brasileiras. Tal diferenciação não se confirma apenas quanto ao patamar popula-cional, que nas cidades do centro-sul brasileiro é bem superior, mas igualmente no que diz respeito à capacidade de acumulação e de canalização de riquezas em comparação ao espaço metropolitano.

Assim, muito mais que definir um perfil de cidade moderna, que se caracteriza por melhor qualidade de vida, faz-se necessário reconhecer a centralidade dessas mesmas cida-des. Isso se coloca, pois nem sempre tais cidades revelam uma possível incorporação dos processos de acumulação de capitais decorrentes dos investimentos realizados no contexto regional em que se inserem. Essa constatação nos induz a pensar, de fato, o que seja a cida-de média na região amazônica. A nosso ver tais cidades são marcadas menos pela presença de fixos modernos, que pela presença de fluxos de mesma ordem.

Com essa preocupação, o estudo de Ribeiro (1998) arrolou importantes centros regionais no espaço amazônico que incluem as cidades aqui referenciadas. No tocante à distribuição de bens e serviços, Ribeiro (1998) identificou cinco níveis de centralidade. Dentre esses níveis, destacam-se as cidades de nível intermediário, que ocupam a segunda posição hierárquica em sua região e são representados por quinze centros que refletem a desigualdade socioespacial regional, subordinando-se, em sua maioria, àquelas cidades de primeiro nível (Belém, São Luís, Cuiabá e Manaus).

Tais cidades constituem importantes “nós” de distribuição de bens e serviços e podem ser identificadas por suas características distintas e particulares em: centros que apresentam traço da frente pioneira agropastoril e mineral; centros que estão situados nas bordas nordestinas no Estado do Maranhão; centros que fazem parte da Amazônia tradicional e seu sistema dendrítico–ribeirinho, geralmente antigos e revitalizados, aqui incluindo Santarém; e centros que margeiam as estradas, como é o caso de Marabá (Ri-beiro, 1998).

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Na verdade, são os fluxos os responsáveis por garantir uma rede de relações ho-rizontais e verticais que dão um novo sentido aos subespaços regionais como “nós” importantes de circulação de capitais, mercadorias, informações e pessoas em contextos de fronteiras de expansão econômicas e tecno-ecológicas (Becker, 2004), ou como cen-tros difusores de “manchas pioneiras”,3 conforme prefere denominar Huertas (2009), que reconhece dez centros que cumprem esse papel na Amazônia, dentre eles Marabá e Santarém (Quadro 3).

No caso de Santarém e Marabá, tratam-se de cidades mais antigas que passaram por um processo de revigoramento oriundo da valorização econômica de produtos econômi-cos locais e da abertura de rodovias de penetração. Por isso são núcleos mais consolidados e irradiadores de dinamismo econômico, que reafirmam a centralidade regional. Esta, por sua vez, está ancorada em fluxos centrípetos, fortemente definidos pela presença de fun-ções terciárias ampliadas que incluem: abastecimento regular de combustível, comércio de insumos e máquinas agrícolas, empresas de geoprocessamento e licenciamento ambiental, linhas aéreas regionais, agências bancárias, recrutamento de mão de obra qualificada e re-presentações de órgãos públicos relevantes (Huertas, 2009). Essa centralidade econômica aqui considerada, todavia, repercute também em outras dimensões da dinâmica regional, como as relações de poder, definindo o papel político que passa a ser assumido por essas cidades médias no conjunto da rede urbana regional.

Quadro 3 – Amazônia: centros difusores da “mancha pioneira”

Municípios(1)

População PIB(2) (em mil R$) Estrutura Financeira(3)

Total

Urbana(%)

VAA VAI VAS IMP NOMAgências bancárias

Total das operações de créditos (em mil R$)

Santarém (PA) 1661 262.538 70,96 94.786 177.552 858.027 136.173 1.266.535 10 142.426

Itaituba (PA) 1935 94.750 68,06 39.871 68.813 250.013 31.331 390.028 05 43.745

Altamira (PA)1911 77.439 80,43 47.813 47.956 242.629 29.845 368.243 06 83.260

Marabá (PA) 1913 168.020 79,98 68.144 711.182 1.041.289 259.224 2.079.838 10 193.821

Humaitá (AM)1890 32.796 73,15 23.725 10.413 82.426 8.763 125.326 03 11.280

Vilhena (RO)1977 53.598 94,41 113.889 157.943 415.710 109.738 797.280 06 101.510

Sinop (MT)1979 74.831 90,48 114.233 261.460 611.400 141.430 1.128.523 09 401.025

Alta Floresta (MT) 1914 46.982 79,36 78.227 75.879 197.899 35.702 387.707 05 125.609

Barra do Garças (MT) 1914 52.092 91,12 46.002 135.119 285.935 52.871 519.927 06 277.533

Redenção (PA)1982 63.251 94,25 43.158 97.352 235.276 35.385 411.171 06 102.096

Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística apud Huertas (2009)

Obs.: (1) Nome do município, estado da federação onde se localiza e ano de criação. (2) Valor adicionado

da agropecuária (VAA), indústria (VAI), serviços (VAS), impostos (IMP) e valor nominal (NOM) – Dados

de 2005. (3) Dados de 2007

3 Para Huertas (2009), no período atual, constatam-se novas frentes de expansão que são comandadas por frentes antigas, onde algu-mas cidades se tornaram centros regionais relevan-tes ao longo das últimas quatro décadas. O autor denomina essas cidades de centros difusores, nas quais estão os centros sub-regionais, identificados aqui como cidades médias, que apresentam, no contexto regional, alta capacidade de fornecimento de ordens e serviços para os peque-nos municípios que gravi-tam ao seu redor.

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PARA ALÉM DO ECONÔMICO, A CENTRALIDADE POLÍTICA

Nos últimos anos, devido à expansão das frentes econômicas e ao intenso processo de urbanização, notadamente na Amazônia Oriental, várias cidades que apresentaram um novo dinamismo econômico alçaram-se à condição de novas sedes municipais, contri-buindo para o processo de fragmentação política do território. O Pará, o Estado de maior dinamismo econômico e populacional da Amazônia Oriental, destaca-se entre aqueles onde esse processo redefiniu a geografia política regional.

Mas não é apenas na escala municipal que a fragmentação política do território se manifesta. Fruto da diferenciação verificada no plano econômico vislumbram-se também recortes e emancipações no sentido de surgimento de novas unidades da federação em nível estadual a partir do território paraense. A diferenciação espacial e territorial tem suscitado propostas de emancipação, do ponto de vista político, por parte de algumas sub-regiões do estado do Pará. Bem recentemente (ano de 2004) um Projeto de Decreto Legislativo (PDC), o de número 1.217, foi apresentado no Congresso Nacional. Segundo esse projeto, a partir do Estado do Pará surgiriam outros como o do Tapajós e o de Carajás (Quadro 4).

Quadro 4 – Dados socioeconômicos e territoriais de novos estados propostos a partir do território paraense – 2004

EstadoPIB(R$ MIL)

População Área km2

Nº de muni-cípios

Municípios Integrantes

Carajás 8.204.007 907.270 228.347 29

Água Azul do Norte, Bannach, Bom Jesus do Tocantins, Brejo Grande do Araguaia, Canaã dos Carajás, C. do Araguaia, Cumaru do Norte, Curionópolis, Eldorado dos Carajás, Floresta do Araguaia, Itupiranga, Marabá, Nova Ipixuna, Ourilândia do Norte, Palestina do Pará, Parauapebas, Pau D’Arco, Piçarra, Redenção, Rio Maria, Santa Ma. Das Barreiras, Santana do Araguaia, São Domingos do Araguaia, São Félix do Xingu, São Geraldo do Araguaia, São João do Araguaia Sapucaia, Tucumã, Xinguara

Tapajós 3.743.117 844.687 392.947 20

Alenquer, Almerim, Aveiro, Belterra, Brasil Novo, Curuá, Faro, Juruti, Medicilândia, Monte Alegre, Óbidos, Oriximiná, Placas, Porto de Moz, Prainha, Rurópolis, Santarém, Terra Santa, Uruará, Vitória do Xingu

Fonte: BOUERI, R. “Custos de funcionamento das unidades federativas brasileiras e suas implicações sobre a

criação de novos estados”. Textos para discussão nº. 1367, Rio de Janeiro, IPEA, dez. 2008

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Os estados sugeridos possuem grande extensão territorial e uma população relativa-mente reduzida. As cidades propostas como sedes estaduais são as mesmas que nas últimas décadas têm assumido a centralidade no contexto regional. Trata-se de uma mediação, do ponto de vista político, dada à importância e centralidade daquelas cidades tendo em vista a descentralização econômica no território estadual. Suas condições de fóruns regionais de decisões políticas e debates em torno de questões que afetam diretamente a sub-região em que se inserem (Pereira, 2004), tornam essas cidades importantes espaços de centralidades econômicas e políticas em face da projeção dessas sub-regiões, que se alçam à condição de novos estados da federação.

As elites locais não se resumem mais às oligarquias tradicionais, mas incluem novos agentes, que chegaram com as novas frentes de expansão, inclusive grandes empresários, pecuaristas etc., como no caso sudeste paraense (Emmi, 1987), ou dos sojeiros, como no caso do oeste paraense. Esses novos agentes têm comandado a proposta de emancipação e difundido a propaganda de criação desses mesmos estados, com sedes em Marabá (Estado de Carajás), no sul/sudeste do Pará, e Santarém (Estado do Tapajós), no oeste paraense.

Nesses casos busca-se associar uma identidade regionalista na escala sub-regional a um discurso de melhor distribuição das arrecadações e de um possível redirecionamento do desenvolvimento econômico regional. Trata-se, entretanto, muito mais da formaliza-ção política de novas territorialidades já desenhadas, responsável por dar apoio ao poder local que se redefiniu nas últimas décadas e que exerce uma grande influência política no interior do território paraense (Trindade Jr.; Pereira, 2007).

Ademais, a presença de grandes projetos econômicos ou de importantes atividades econômicas em expansão sob sua área de influência revelam uma relativização do papel de Belém, uma das metrópoles regionais, frente às cidades médias, especialmente Marabá e Santarém, que definem novos papéis no contexto da participação econômica da Amazônia oriental, e especialmente do Estado do Pará.

Associada a isto está a situação de perda da condição de Belém de ser a única porta de entrada da região, que foi dominante até a abertura de rodovias na Amazônia, respon-sável por fragilizar a função portuária e a importância dos rios como principais vias de circulação na região. As tentativas de emancipação política, notadamente do sul/sudeste e do oeste paraense revelariam, portanto, essa situação de “fragilidade” de Belém também do ponto de vista político.

Nesse caso, as novas lideranças políticas do Estado do Pará, localizadas fora da área de influência imediata de Belém e fortalecidas economicamente pelas frentes de moderni-zação recentes no interior da Amazônia, conforme acontece no caso das sub-regiões aqui consideradas, postulam a formação de novos estados da federação; portanto, com maior autonomia dentro do território nacional e sem subordinação política a Belém.

Esse processo resulta de uma espécie de balcanização política dentro do território paraense, já definida em termos não formais, e de uma estratégia de afirmação dos poderes locais em nível sub-regional. Tais forças políticas se reforçam pela importância assumida pelas cidades médias; daí a recorrente mobilização para fins de autonomia estadual assen-tadas nessas bases territoriais sub-regionais e com referência de centralidade em cidades médias, que, nas últimas décadas, passaram a expressar importante destaque do ponto de vista da centralidade econômica, conforme já mencionado.

Ideias de que “Belém explora Marabá” ou de que as arrecadações de Santarém não são devidamente repassadas e investidas no plano local devido ao controle metropolitano, definem um sentimento de perda, de exploração e de exclusão, que acaba por caracterizar

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uma dada identidade territorial de base sub-regional, responsável por mobilizar ações emancipatórias. O discurso apresentado nesse nível leva a crer que é na instância territorial almejada – um novo estado da federação – que os problemas apresentados na escala mais imediata serão resolvidos. Trata-se, como nos diz Sack (1986), de designar a solução des-ses problemas para a escala errada, pois é sabido que, no caso amazônico, é na produção do espaço regional e de sua articulação com outras escalas externas que eles se constituem. Ademais, a apropriação dos movimentos de emancipação por parte das lideranças políticas e projetados a partir das cidades que lhes servem de base – as cidades médias – associa-se, igualmente, ao potencial eleitoral dessas localidades, definido pela dinâmica mais recente de produção do espaço regional amazônico.

Presencia-se, com isso, a emergência ou fortalecimento de forças políticas setoriza-das e balcanizadas no interior do espaço amazônico, configurando propostas de partilhas territoriais na geografia eleitoral regional. Isso acontece na medida em que passa a existir um maior crescimento relativo dos eleitores nos novos espaços de povoamento induzidos por novas dinâmicas econômicas. Por outro lado, faz-se interessante analisar quais têm sido as respostas a essas intenções, de uso político do território, por parte do próprio Estado. Tomando como exemplo essa escala sub-regional, várias têm sido as estratégias que se têm procurado usar diante das perspectivas de fragmentação do território definidas pelos novos agentes estabelecidos na Amazônia Oriental, e mais especificamente ainda no território paraense.

Uma delas aconteceu quando então, tendo em vista a possibilidade de construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, foi sugerida a transferência da capital de Belém para aquela localidade. Tratava-se da construção de uma nova capital, nos moldes da estratégia geopolítica de construção de Brasília. Essa parecia ser uma resposta das elites políticas sediadas em Belém no sentido de definição de um novo pacto de base territorial visando à recuperação do controle político em sub-regiões que foram fortemente afetadas pelas frentes de expansão econômica, a exemplo daquelas cortadas e/ou influenciadas pela rodovia Transamazônica, como é o caso de Marabá e Santarém.

Buscava-se, com isso, arrefecer os ânimos em relação a três propostas de emancipa-ção política, a do estado de Carajás (com capital em Marabá), a do estado do Tapajós (com capital em Santarém) e a do estado do Xingu (com capital em Altamira), dado o potencial dessas cidades e de suas respectivas regiões, responsáveis por colocar em xeque as forças políticas sediadas em Belém. Assim sendo, a construção de uma nova capital, mais centralizada do ponto de vista da disposição física do território, passou a representar o enfrentamento do discurso de canalização dos recursos econômicos originados nessas sub-regiões para Belém, sob o pretexto da descentralização política das decisões. A impor-tância histórico-cultural de Belém e a força política ainda sediada nessa cidade, entretanto, fizeram abortar essa ideia.

Outra estratégia foi assumida mais recentemente pelo governo estadual na gestão do Partido dos Trabalhadores (2007-2010), dizendo respeito a um novo formato de pacto territorial que pressupunha a discussão participativa da distribuição dos recursos e dos in-vestimentos territoriais e sociais. Esse formato, denominado de Planejamento Territorial Participativo do Estado do Pará (PTP-PA), consistiu em uma espécie de “orçamento par-ticipativo” em nível estadual, que primava pela participação social e pela descentralização da tomada de decisão por parte do governo estadual. Neste caso, a contra-ação se colocava a partir de uma nova estratégia de gestão que desconstruía o discurso da centralização das decisões e da canalização de recursos e investimentos em direção à capital. O recorte

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territorial proposto, nesse caso, estava baseado em uma estratégia que buscava levar em conta a nova dinâmica espacial e os graus de urbanização do território e de distribui-ção populacional no espaço, sugerindo, portanto, a não necessidade de novos recortes político-administrativos.

Tanto em uma quanto em outra proposta, a centralidade política das cidades parece estar presente no processo de gestão do território e faz essas mesmas cidades tornarem-se, do ponto de vista territorial, protagonistas de projetos políticos, como espaços relacionais que são, das proposições de emancipação em curso. Revelam-se, portanto, correlações de forças que têm em vista o controle de tributos, de recursos e de eleitores, cuja mediação é dada a partir da dimensão territorial, como uma forma de rearranjo de antigas estruturas sociopolíticas e espaciais que foram alteradas pela presença de novos agentes econômicos e pelo incremento de novas atividades econômicas no interior da Amazônia Oriental.

Essa é a razão pela qual a gestão do território passa a estar no jogo das estratégias do Estado, dos grupos sociais, das instituições e dos agentes econômicos, pressupondo ações que objetivam a criação e o controle da organização do espaço e, por meio disso, viabilizar a existência e a reprodução das novas relações que se fazem presentes nessas sub-regiões da Amazônia, caracterizadas pelo dinamismo econômico, pela alteridade e pelas tensões de base territorial.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na Amazônia, a cidade média pode ser considerada como um elemento relativa-mente recente na rede urbana regional. O sentido dado a essas cidades na análise aqui realizada as coloca como centros urbanos regionais e, portanto, como espaços relacionais, no sentido de que só podem ser compreendidos a partir dos contextos em que se inserem (Harvey, 1980). Não se confundem, portanto, nem com as cidades intermediárias, que sempre estiveram presentes na estrutura da rede urbana, e nem com as cidades de porte médio, caracterizadas a partir de um patamar demográfico mínimo.

Como centros urbanos regionais, assumem importantes centralidades, devido ao conjunto de fluxos que definem um caráter centrípeto a determinados pontos do terri-tório, relativamente bem articulados pelas novas vias de circulação, mas igualmente pela capacidade de oferecer infraestrutura, serviços, mão de obra e mercadorias de um modo geral; fatores estes que são fundamentais à reprodução econômica em nível territorial.

Normalmente associadas à modernização econômica e à boa qualidade de vida, na Amazônia, as cidades médias tendem a se diferenciar daquelas outras onde as relações ca-pitalistas já se mostram mais consolidadas e não se apresentam como espaços de expansão das novas relações capitalistas. É nesse sentido que os fixos modernos, no caso de cidades amazônicas como Santarém e Marabá, parecem assumir menos importância que a capa-cidade de gerar e de possibilitar a dinâmica dos fluxos; elementos cruciais na definição das centralidades urbano-regionais aqui consideradas. Para além da dimensão econômica, entretanto, outras centralidades se fazem presentes, como aquelas que evidenciam novas relações de poder no espaço regional, denominadas, para efeitos de nossa análise, de cen-tralidades políticas.

Estas reflexões buscam contribuir para pensar as cidades médias no espaço brasileiro contemporâneo, considerando particularidades regionais e possibilidades de reconhecer formas urbanas diversas, tendo em vista a produção desigual e diferenciada do espaço

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geográfico. Mais importante ainda para a reflexão teórica, e pouco importando a denomi-nação que se queira dar a esse nível de cidade, são os processos que podem ser evidenciados na análise dessas dinâmicas regionais, associando-os à importância assumida por esses expressivos núcleos urbanos de destaque regional.

Conforme já demonstrado, tais cidades não podem ser definidas somente pelo patamar demográfico – o que parece ser consenso nas discussões mais atuais. Da mesma forma, parece pouco esclarecedor associá-las mecanicamente à modernização do território, que decorre em grande parte dos processos de desconcentração econômica. Insistir nesse empreendimento sugere caminhar para uma teorização sobre essas cidades com base em referências espaciais etnocêntricas. Além disso, outras dimensões da centralidade devem ser levadas em conta, no sentido de ultrapassar o perfil econômico normalmente mobili-zado para compreender os papéis dessas cidades. Aqui a dimensão política foi discutida e articulada à dimensão econômica para tratar a condição de Marabá e Santarém como ci-dades médias da Amazônia Oriental brasileira, mas mesmo outras dimensões da realidade espacial e territorial podem ser consideradas, a exemplo daquelas que envolvem elementos da cultura e da formação histórico-social dessas cidades, que revelam, igualmente, novas expressões do regionalismo, responsáveis por alimentar os pactos territoriais que dão sen-tido às propostas de fragmentação política.

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Saint-Clair Cordeiro da Trindade Júnior é Profes­sor Associado III da UFPA; pesquisador do CNPq. Email: [email protected] Ar ti go re ce bi do em junho de 2011 e apro va do pa ra pu bli­ca ção em agosto de 2011.

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A b s t r a c t This paper presents elements of the urban-regional centrality of middle-size cities in the Brazilian Amazonia and discusses the role of these cities in a context of territorial restructuring. For that analysis it is considered conceptual differences between “center” and “centrality”, as well as between “flux” and “fix” are considered. The empirical references of the analysis are two cities located in the eastern Amazonia – Marabá and Santarém. The study approaches the importance of these cities for the regional production of space and considers historical elements of the territorial formation of Brazilian Amazonia, as well as statistical data and documental information about that region and its urbanization process. The analysis finishes whith the discussion of the role played by middle cities in the Amazon region and its political centrality in a context of spatial re-arrangement, of emergence of new political interests and of political territory division intentions.

K e y w o r d s Middle-size cities; Eastern Amazon; centrality; territorial division.

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AGRONEGÓCIO E NOVAS REGIONALIZAÇÕES NO BRASIL

D e n i s e E l i a s

R e s u m o As transformações ocorridas na atividade agropecuária brasileira nas últimas cinco décadas têm profundos impactos sobre a (re)organização do território brasileiro, resultando em novos arranjos territoriais. Entre esses, destacam-se os inerentes ao agronegócio globalizado, áreas escolhidas para receber os mais expressivos investimentos produtivos do setor, representando suas áreas mais competitivas, as quais denominamos Regiões Produtivas Agrícolas (RPAs). Os principais objetivos desse texto são: debater a noção de RPA; apresentar os elementos de identificação e caracterização da mencionada região; aperfeiçoar o caminho analítico que vem sendo trilhado e incrementar a noção no contexto dos estudos geográficos, na perspectiva de uma possível consolidação conceitual dessa ideia.

P a l a v r a s - c h a v e Agronegócio; urbanização dispersa; reestruturação urbana e regional.

INTRODUÇÃO1

O presente texto faz parte da linha de pesquisa Agronegócio e Novas Dinâmicas Socioespaciais, com a qual tenho trabalhado desde o início da década de 1990, processo reforçado com a criação do Grupo de Pesquisa Globalização, Agricultura e Urbanização (GLOBAU), certificado pelo CNPq. Essa linha de pesquisa tem como objetivo central a análise das dinâmicas de produção e reprodução dos espaços agrícolas e urbanos as-sociados ao processo de reestruturação produtiva da agropecuária brasileira. Sua meta principal é avançar na compreensão da (re)estruturação urbana e regional resultante da difusão do modelo econômico e social de produção agropecuária preconizado com a globalização.

Como tenho defendido, as transformações ocorridas na atividade agropecuária no Brasil, nas últimas cinco décadas, têm profundos impactos sobre a (re)organização do território brasileiro, resultando em novos arranjos territoriais. Entre esses, destacarei aqui o que tenho chamado, nos últimos anos, de Regiões Produtivas Agrícolas (RPAs).

As RPAs são os novos arranjos territoriais produtivos agrícolas, os territórios das re-des agroindustriais, escolhidos para receber os mais expressivos investimentos produtivos inerentes ao agronegócio globalizado, representando suas áreas mais competitivas. Nelas encontram-se partes dos circuitos espaciais da produção e círculos de cooperação de im-portantes commodities agrícolas, evidenciando a dinâmica territorial do agronegócio.

Nas RPAs, as grandes corporações concernentes às redes agroindustriais são os maio-res agentes produtores do espaço agrário e urbano. Como consequência de tais processos, intensificam-se as relações campo-cidade e a urbanização, uma vez que as redes agroindus-triais necessitam também de processos que se dão no espaço urbano próximo às áreas de produção agrícola e agroindustrial, incrementando o crescimento de cidades totalmente funcionais ao agronegócio, as quais passam a ter novas funções, tal como a de gestão desse

1 Agradeço ao CNPq pelo financiamento de algumas das minhas pesquisas nos últimos anos. Agradeço, também, ao professor Dr. Renato Pequeno, do Depar-tamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Ceará (UFC), pela leitura cuidadosa e sugestões. Não lhe cabe, no entanto, nenhuma res-ponsabilidade por qualquer equívoco aqui encontrado ou por alguns caminhos teórico-conceituais adotados.

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agronegócio globalizado. Processa-se, em última instância, a produção de territórios espe-cializados e corporativos inerentes a esse agronegócio.

O estudo das Regiões Produtivas Agrícolas não se limita a um campo de estudo da Geografia, mas demanda e perpassa vários campos, tais como da Geografia Agrária, da Geografia Econômica, da Geografia Urbana, da Geografia Regional, Economia Política, assim como da Economia Espacial, Sociologia Rural, entre outros. Consequen-temente, a realização de estudos e pesquisas sobre as RPAs torna-se bastante complexa. Assim, há muito trabalho pela frente para podermos, de fato, avançar no caminho da construção teórico-conceitual para a elaboração do conceito e, especialmente, da meto-dologia visando à operacionalização de pesquisas com tais objetivos.

Para finalizar esta introdução, destaco que para o estudo das Regiões Produtivas Agrícolas valorizo, de um lado, o diálogo com aqueles que estudam o espaço agrário bra-sileiro, e também com aqueles que estudam os espaços urbanos não metropolitanos e os processos de (re)estruturação urbana e regional, reconhecendo as respectivas contribuições para o desenvolvimento de noções, teorias e conceitos sobre os processos e dinâmicas socioespaciais emergentes no território brasileiro.

Por outro lado, é importante reconhecer a existência de especificidades nas formas de produção e apropriação do espaço agrícola e urbano nas diferentes Regiões Produtivas Agrícolas, importantes nós, pontos ou manchas de redes agroindustriais com circuitos espaciais de produção globalizados, com poder de promover significativas (re)estrutura-ções urbanas e regionais. Todas merecem atenção em um país de grandes dimensões e diversidade regional como o Brasil.

Dessa maneira, os estudos que alicerçam este texto refletem um caminho que vem sendo trilhado e, ao mesmo tempo, mostra haver muito ainda a ser feito para podermos, efetivamente, conhecer melhor as mudanças em curso nos papéis desempenhados pelos espaços agrícolas, urbanos e regionais componentes das redes agroindustriais, à medida que se amplia o movimento de ocupação do território brasileiro de forma mais articulada à economia internacional.

A utilização desse recorte espacial baseado nas Regiões Produtivas Agrícolas para o estudo do território nacional pode auxiliar a melhor entender a divisão territorial do trabalho hoje vigente no país, pois leva em conta o impacto da reestruturação produtiva da agropecuária e a organização das redes agroindustriais. Portanto, considera a base da organização de uma parte significativa do território brasileiro atual, resultado da herança histórica e das metamorfoses do presente, marcado pela velocidade das inovações.

REGIÕES PRODUTIVAS AGRÍCOLAS:2 CARACTERÍSTICAS E ELEMENTOS DE ARGUMENTAÇÃO

Como tese central, segundo tenho defendido, as transformações ocorridas na ativida-de agropecuária no Brasil, nas últimas cinco décadas, exercem profundos impactos sobre a (re)organização do território brasileiro, resultando em novos arranjos territoriais, entre os quais o ora denominado Regiões Produtivas Agrícolas (RPAs).

A reestruturação produtiva da agropecuária, entendida como processo promotor de transformações nos elementos técnicos e sociais da estrutura agrária (especialmente alte-rando a base técnica da produção, as relações sociais de produção e a estrutura fundiária), que atinge tanto a base técnica quanto a econômica e social do setor, tem profundos

2 Sobre o tema pode ser visto, em especial, Elias (2006a, b, 2008, 2010).

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impactos sobre os espaços agrícolas e urbanos. Estes passam, então, por um processo acele-rado de reorganização, com incremento da urbanização e de processos de (re)estruturação urbana e regional, com a formação ou consolidação de Regiões Produtivas Agrícolas, por todo o Brasil.

As RPAs são os novos arranjos territoriais produtivos totalmente associados ao agronegócio globalizado e, assim, inerentes às redes agroindustriais.3 Dessa forma, são compostas tanto pelos espaços agrícolas como pelos urbanos escolhidos para receber os mais sólidos investimentos privados, formando os focos dinâmicos da economia agrária, ou seja, são áreas de difusão de vários ramos do agronegócio, palco de circuitos superiores do agronegócio globalizado.

As RPAs compõem lugares propícios ao exercício dos capitais hegemônicos porquan-to apresentam muitas novas possibilidades para a acumulação ampliada no setor, cada vez menos resistente às ingerências exógenas e aos novos signos do período histórico atual. Nas RPAs estão partes dos circuitos espaciais da produção e círculos de cooperação (San-tos, 1988) de importantes commodities. Logo, encontram-se sob o comando de grandes empresas, nacionais e multinacionais, as mesmas que estão à frente das redes agroindus-triais globalizadas, representando lugares funcionais dessas.

Como o agronegócio globalizado se realiza totalmente a partir da dialética entre a ordem global e a ordem local, as RPAs estão conectadas diretamente aos centros de poder e consumo em nível mundial e, assim, as escalas locais e regionais articulam-se permanen-temente com a internacional e o território organiza-se com base em imposições do mer-cado, comandado por grandes empresas nacionais e multinacionais. Isso significa que nas RPAs temos novos espaços de fluxos rápidos inerentes às redes agroindustriais, nas quais as verticalidades têm predominância sobre as horizontalidades.4 Mas, em contrapartida, as horizontalidades são extremamente difundidas, como evidenciado pela expansão das ati-vidades econômicas, pelo aumento da população e do mercado de trabalho, pela chegada dos novos agentes econômicos representativos das atividades modernas etc.

Nas RPAs a solidariedade organizacional imposta pelas empresas hegemônicas do agronegócio é preponderante sobre a solidariedade orgânica,5 localmente e historicamen-te tecida, que fica extremamente comprometida. Processa-se, dessa forma e em última instância, a produção de territórios especializados e corporativos inerentes aos diversos circuitos da economia agrária e agroindustrial, notadamente relacionados ao circuito superior do agronegócio globalizado. Adaptando noções elaboradas por Milton Santos, aqui no caso de pontos luminosos, diria que as RPAs são os pontos luminosos do espaço agrário brasileiro.

Contudo, o fato de os circuitos superiores do agronegócio serem hegemônicos nas RPAs não elimina a existência de superposições de divisões territoriais do trabalho parti-culares, responsáveis pela formação de vários circuitos da economia agrária, tais como os formados a partir da agricultura camponesa não integrada ao agronegócio. O que nos dá que as RPAs são também o lugar de conflitos de várias naturezas.

Diante das demandas da produção agropecuária globalizada, as RPAs compõem-se tanto por modernos espaços agrícolas, extremamente racionalizados, quanto por espaços urbanos não metropolitanos (especialmente cidades pequenas, mas também cidades de porte médio). Esses formam nós, pontos ou manchas de redes agroindustriais e são per-passados pelos circuitos espaciais locais e regionais daquelas. Isso ocorre seja nos lugares de reserva,6 inseridos mais recentemente à agropecuária globalizada, passíveis de serem exemplificados, principalmente, a partir de casos nas Regiões Norte, Nordeste e Centro-

3 As redes agroindustriais associam todas as ativida-des inerentes ao agrone-gócio, seja a agropecuária propriamente dita, sejam as atividades que antece-dem essa produção e lhe são fundamentais (pesquisa agropecuária, produção de máquinas agrícolas, semen-tes selecionadas, fertilizan-tes etc.), sejam as atividades de transformação industrial cuja matéria-prima provém da atividade agropecuária, seja de distribuição dos ali-mentos prontos etc.

4 Sobre verticalidades e horizontalidades ver Santos (1996).

5 Sobre solidariedades or-gânica e organizacional ver Santos (1996).

6 Mais comumente chama-dos de fronteira agrícola, aos quais preferimos chamar de lugares de reserva, base-ando-nos na noção utilizada por Santos (1993).

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Oeste, seja nas regiões agrícolas que há mais tempo participam do circuito superior da economia agrária, fortemente concentradas nas Regiões Sudeste e Sul.

Entre os resultados da formação das RPAs, surge um aumento da dialética na orga-nização do espaço brasileiro, denotando significativas fragmentações deste espaço, com permanentes processos de (re)estruturação urbana e regional. Dessa maneira, a reestru-turação produtiva da agropecuária tem profundos impactos sobre os espaços agrícolas e urbanos não metropolitanos, ainda em processo acelerado de reorganização, compondo novos arranjos territoriais fortemente alicerçados no agronegócio globalizado. Tal realida-de acirra a refuncionalização desses arranjos e leva à difusão de especializações territoriais produtivas, denotando-se inúmeras seletividades, seja da organização da produção, seja da dinâmica dos respectivos espaços. Do mesmo modo, as RPAs são os novos espaços de exclusão e de toda sorte de desigualdades socioespaciais.

É fundamental, nesse ponto, destacar o seguinte: as RPAs em nada lembram a forma mais clássica inerente ao conceito de região, à forma como foi por longo período enten-dida e trabalhada pela Geografia. A RPA em nada lembra a categoria de região que foi dominante na Geografia por longo tempo, ou seja, não se assemelha à categoria região de fases históricas precedentes. Na noção clássica de região essa parecia dotada de certa autonomia, independente das relações do país como um todo e com o sistema mundial, assim como marcada por certa imobilidade dos fatores de produção, muito fechada em si mesma. Tais características em nada lembram as RPAs.

Portanto, as RPAs devem ser estudadas como lugares funcionais de circuitos espaciais da produção e círculos de cooperação da produção de importantes commodities, cada vez menos resistente às ingerências exógenas e aos novos signos do período histórico atual, comandado por algumas empresas hegemônicas do setor, tornando-se lugares do fazer do agronegócio globalizado. Assim, na definição das RPAs, estamos longe daquela solidarie-dade orgânica que era o próprio cerne da definição do fenômeno regional.

As mencionadas regiões são frações do espaço total das redes agroindustriais glo-balizadas, cada vez mais abertas às influências exógenas e aos novos signos do período atual. Existem porque sobre elas se impõem arranjos organizacionais, criadores de coesão organizacional baseada em racionalidades de origens distantes, mas que se tornam o fun-damento da existência e da definição desses subespaços. Diante disso, a RPA é resultado do impacto das forças externas/modernizantes e a capacidade de suas virtualidades, lugar funcional das redes agroindustriais globalizadas. Como objeto e sujeito da economia glo-balizada, é um espaço que nada mais tem de autônomo, não se fechando sobre si mesmo, de forma independente do restante do mundo, com o qual interage permanentemente para a renovação tecnológica, para a complementação da produção e, em última instân-cia, para a acumulação ampliada do capital do agronegócio.

Como já evidenciei em outros momentos, com o advento da globalização, inú-meros pesquisadores têm afirmado que as características desse novo período histórico apagaram o espaço e que a expansão do capital e da tecnologia teria eliminado as dife-renciações regionais e, até mesmo, proibido se prosseguir pensando que a região existe. Vou em sentido inverso a essa compreensão. Concordo com Santos (1994b; 1988), para quem, muito ao contrário, nunca os lugares foram tão distintos uns dos outros, porquanto, o tempo acelerado, ao acentuar a diferenciação dos eventos, aumenta a di-ferenciação dos lugares.

Diria, então, que as RPAs ajudam a pensar sobre essas questões, pois também apresentam muitas diferenças entre si, sobretudo porque cada commodity possui suas

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próprias exigências de insumos químicos, serviços, força de trabalho, tecnologia, capital, maquinário etc. o que resulta em arranjos territoriais produtivos distintos. Por exemplo, nas RPAs comandadas pela produção e transformação da soja, o mercado de trabalho agrícola formal não tem o mesmo crescimento das RPAs comandadas pela produção de frutas tropicais: a primeira tem seu processo produtivo quase totalmente mecanizado, a segunda demanda maior quantidade de mão de obra, especialmente em alguns momentos do processo de produção.

Delimitação das RPAs

Para chegar à delimitação espacial precisa de uma RPA é necessário cuidado, até porque, em fase da dinâmica dos processos adjacentes, essa delimitação sofre mudan-ças permanentemente. Mesmo que assim não fosse, é sempre difícil, no início de uma pesquisa sobre as RPAs, saber exatamente quais os limites a serem considerados para ela, até porque só os estudos e pesquisas sobre as regiões é que efetivamente mostrarão seu desenho preciso. Nesse ponto, destaco: a configuração das RPAs não respeita os limites político-administrativos oficiais e, assim, é bastante comum uma mesma RPA ser formada por municípios de diferentes Estados. Algumas dessas delimitações, muito embora não existam oficialmente, são reconhecidas pelas populações locais e empresas atuantes nas respectivas áreas.

Como exemplo desse processo, mencionamos uma pesquisa desenvolvida na Região Nordeste, relacionada ao estudo das áreas de difusão do agronegócio de soja e de fruti-cultura tropical. Essa pesquisa nos levou à conclusão de estarmos lidando com três prin-cipais RPAs. Uma composta, grosso modo, pelas microrregiões do Baixo Jaguaribe (CE), Mossoró e Vale do Açu (ambas no RN),7 destaca-se pela produção de frutas tropicais, especialmente melão, banana e abacaxi, tem seu espaço comandado a partir de Mossoró, cidade de porte médio, a segunda mais importante do Estado do Rio Grande do Norte;8 uma segunda RPA formada pelas microrregiões de Juazeiro (BA) e Petrolina (PE) , nacio-nalmente conhecida por ser um dos primeiros vales úmidos do Nordeste ocupado pela pro-dução intensiva de frutas tropicais, especialmente uva, é uma região comandada a partir da cidade de Petrolina; uma terceira Região Produtiva Agrícola composta pelas microrregiões com destacada produção de soja, Alto Parnaíba Piauiense (PI), Barreiras (BA) e Gerais de Balsas (MA), comandadas, especialmente, por Barreiras, uma cidade de porte médio.9

Naturalmente, as RPAs abarcam somente uma parte dos circuitos espaciais da pro-dução e dos círculos de cooperação, os circuitos locais e regionais. Os demais só podem ser visualizados ao se considerar todas as etapas do processo produtivo da commodity a ser estudada, pois muitos deles não se dão na RPA ou mesmo no país. Basta lembrarmos, por exemplo, que a maior parte das commodities tem como destino o mercado internacional. Portanto, as RPAs são um lugar funcional do agronegócio globalizado, meras regiões do fazer,10 com pouquíssima ou nenhuma ingerência efetiva sobre as respectivas produções agrícolas e agroindustriais nelas ocorridas.

Processos Inerentes à Difusão do Agronegócio

São muitos os processos associados ao rearranjo do território nas áreas de difusão do agronegócio globalizado. Elencá-los é fundamental para a tarefa de melhor compreender a ocorrência do fenômeno principal em foco. Cito alguns dos mais importantes: a intensa

7 As microrregiões do IBGE não compõem, necessaria-mente, a melhor forma de delimitação das RPAs. Mas são, indubitavelmente, um bom começo para os estu-dos com tal objetivo. Uma referência também importan-te para iniciar uma pesqui-sa sobre uma RPA são os estudos da Regic, do IBGE (1993, 2009).

8 Sobre a cidade de Mosso-ró e sua respectiva região de influência de maneira geral, assim como sobre os papéis desempenhados por Mos-soró inerentes ao consumo produtivo agrícola ver Elias e Pequeno (2010).

9 Somadas a terras em Tocantins, comporia o que alguns vêm chamando de Mapitoba, região a qual abar-caria terras no Maranhão, Piauí, Tocantins e Bahia. So-bre a referida pesquisa ver Elias e Pequeno (2006).

10 Sobre regiões do fazer e regiões do gerir ver Santos (1996, 2000).

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substituição dos sistemas técnicos agrícolas, que passam a ter alta densidade de capital e tecnologia; a significativa mudança das formas de uso e ocupação do espaço agrícola, com forte substituição da produção de alimentos pela produção de commodities, com a im-plantação de monoculturas, substituindo vocações naturais pelas imposições econômicas, difundindo especializações produtivas.

Os processos supracitados estão entre os que ajudam a evidenciar a refuncionaliza-ção do espaço agrícola, por meio do aumento da racionalização deste, uma vez que passa a ter forte densidade técnica e normativa, e já evidencia outro processo também bastante significativo associado, qual seja, o de destruição de saberes e fazeres historicamente cons-truídos, porquanto, como a difusão do agronegócio não se dá sobre espaços desocupados, inviabiliza a atividade para milhares de pequenos agricultores, que viviam da subsistência ou da produção simples de mercadorias. Esses são expropriados ou expulsos, em grande parte, gerando muitos conflitos sociais.

A partir desse ponto, podemos destacar os processos incluídos entre os mais devasta-dores da reestruturação produtiva da agropecuária e da organização das redes agroindus-triais, qual seja, o acirramento da privatização do acesso à terra e à água, dois dos fatores principais de produção para a agropecuária, não passíveis de serem reproduzidos ao livre arbítrio do homem, como outros. Naturalmente, tal processo está vinculado à territoria-lização do grande capital e à monopolização do território.

Ainda hoje o baixo preço da terra é um dos fatores atrativos das novas Regiões Produ-tivas Agrícolas. Entretanto, a intensificação do valor de troca em detrimento do valor de uso vem promovendo um crescimento geométrico do preço desta. Atualmente, embora tenha se instalado uma nova dinâmica do mercado de terras no que considero sejam os pontos luminosos do espaço agrário brasileiro, nos quais já se observa claramente a forte presença de especuladores, brasileiros e estrangeiros, algumas dessas áreas ainda possuem preços mais baixos do que as áreas onde a capitalização do campo é mais antiga e complexa.11

Esses processos levam ao aumento da concentração fundiária e êxodo rural, motivado pela expulsão e expropriação de uma série de pequenos agricultores, de parceiros, posseiros que não detinham a propriedade da terra. Imbricada a essa realidade, há a significativa mudança de parte das relações sociais de produção, com o incremento da formação de um mercado de trabalho agrícola formal, em parte composto por pequenos agricultores expulsos ou expropriados pela difusão do agronegócio. Dessa forma, parcela expressiva das relações de trabalho no espaço agrícola nas RPAs é dominada por relações assalariadas.

Ao mesmo tempo, observam-se movimentos migratórios descendentes (da cidade maior para a cidade menor) advindos de profissionais especializados para o agronegócio. Observa-se, também, o aumento da divisão social e territorial do trabalho agropecuário.

Outro processo bastante expressivo para compreendermos a organização das RPAs associa-se ao incremento das trocas verificadas entre os diferentes ramos do agronegócio e os demais setores da economia. Isso acontece pelo fato de o agronegócio globalizado não se dar sem uma série de diferentes insumos e implementos, assim como de inúmeros serviços especializados. Igualmente, as relações com o setor industrial são bastante incrementadas, seja porque esses fornecem uma série de máquinas e insumos demandados pela agropecuária, seja porque os frutos dessa atividade sofrem, em grande parte, algum processamento indus-trial, com vistas à produção de mercadorias padronizadas, com objetivo de agregar valor.

Alguns outros processos serão ressaltados nas seções a seguir, tais como o da inten-sificação de novas relações campo-cidade; do aumento da urbanização; da reestruturação urbana e regional.

11 Em entrevistas durante trabalho de campo no oeste da Bahia e demais áreas dos cerrados nordestinos, con-forme mencionado, a terra ficou muito cara e chegou a aumentar até setenta vezes desde a década de 1970 até meados da década de 2010. Da mesma forma, em algumas áreas o processo de regularização fundiária é bem mais recente. Merecem destaque as áreas do sul do Maranhão e do Piauí, onde a violência é a regra. No tocante a estas áreas, as narrativas quanto aos confli-tos de terra e processos de grilagem foram recorrentes.

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NOVAS RELAÇÕES CAMPO-CIDADE E (RE)ESTRUTURAÇÃO URBANA E REGIONAL

A reestruturação produtiva da agropecuária cria demandas até então inexistentes nas áreas de difusão do agronegócio. Tais demandas incrementam o crescimento de uma série de atividades comerciais e de serviços especializados. Dessa forma, a difusão do agronegó-cio não apenas amplia e reorganiza a produção material (agropecuária e industrial), como é determinante para a expansão quantitativa e qualitativa do comércio e dos serviços, espe-cialmente dos ramos associados ao circuito superior da economia agrária. O crescimento do terciário se deve ainda ao crescimento da população e à revolução do consumo, este último erigido sob os auspícios do consumo de massa associado à existência individual e das famílias.

Assim, a produção agrícola e agroindustrial intensiva exige que os espaços urbanos próximos ao espaço agrícola racionalizado se adaptem para atender às suas principais demandas, em virtude de fornecerem parte dos aportes técnicos, financeiros, jurídicos, de mão de obra e de todos os demais produtos e serviços necessários à sua realização.

Nesse âmbito, citaria as casas de comércio de implementos agrícolas, sementes, grãos e fertilizantes; os escritórios de marketing e de consultoria contábil; os centros de pesquisa biotecnológica; as empresas de assistência técnica e de transportes de cargas; os serviços de especialista em engenharia genética, veterinária, administração, meteorologia, agronomia, economia, administração pública; os cursos técnicos de nível médio e os cursos superiores voltados ao agronegócio, entre tantas outras atividades.

Conforme evidenciado, os espaços urbanos próximos às áreas de difusão do agrone-gócio passam a ter novas funções inerentes às demandas desse. Essas podem ser observadas pela expansão do consumo produtivo agrícola (Santos, 1988; Elias, 2003a, b), aquele associado diretamente às demandas da produção. Como resultado, temos o crescimento da economia urbana, a revelar que os circuitos espaciais da produção e os círculos de co-operação do agronegócio se realizam totalmente em uníssono com o espaço urbano. Isso denota que a materialização das condições gerais de reprodução do capital do agronegócio também se dá no espaço urbano, próximo e distante (Elias, 2006a, b, c, d). Dessa forma, os espaços urbanos das RPAs passam a se constituir como nós fundamentais na rede de relações desse agronegócio, seja em termos demográficos, econômicos ou espaciais.12

Em virtude de cada commodity ter diferentes demandas de produtos e serviços, esses espaços urbanos são cada vez mais especializados. O consumo produtivo do agronegócio ressalta demandas heterogêneas segundo as necessidades de produção (agrícola ou agroin-dustrial) de cada produto, nas diferentes etapas do processo produtivo, diferenciando, muitas vezes, os ramos dos comércios e dos serviços associados à expansão desse consumo. Tal situação acontece, principalmente, porque o agronegócio tem o poder de impor es-pecializações territoriais cada vez mais profundas e, assim, criar muitos novos fluxos, ma-teriais e de informação, próximos ou não, cujos circuitos espaciais da produção e círculos de cooperação buscam nexos distantes.

As diferentes especializações e funções exercidas por cada um desses espaços urbanos não metropolitanos podem mais facilmente ser percebidas durante as diferentes etapas do processo produtivo, como na safra e na entressafra. É no período de safra das principais culturas que podemos distinguir com maior nitidez a especialização das áreas de difusão do agronegócio. Esse é o momento mais dinâmico nas várias Regiões Produtivas Agrí-colas, afetando todos os setores econômicos. Um exemplo marcante é o funcionamento

12 Já realizamos alguns estudos sobre o consumo produtivo agrícola. Ver, por exemplo, Elias (2003) e Elias e Pequeno (2010).

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ininterrupto, durante vinte e quatro horas, de muitas das agroindústrias cuja manutenção se dá apenas durante a entressafra. É também no período da colheita que aumenta o nú-mero de empregos agrícolas temporários, especialmente para a colheita das culturas nas quais ainda não predomina a mecanização na realização desta etapa do processo produti-vo, como a produção de frutas (uva, banana, melão, entre outras).

O incremento das relações entre os diferentes setores econômicos associados à orga-nização das redes agroindustriais é um importante caminho para a compreensão de como se processa uma série de novas relações entre o campo e a cidade. Quanto mais dinâmica a reestruturação produtiva da agropecuária, quanto mais complexa a formação das redes agroindustriais e quanto mais globalizados seus circuitos espaciais de produção e seus círculos de cooperação, mais complexas se tornam as relações campo-cidade. Consequen-temente, cria-se uma gama de novas relações sobre o território. Essas relações ajudam a transformar radicalmente as clássicas relações campo-cidade e levam esses dois espaços a emitir e a receber larga quantidade de fluxos de matéria e informação, de várias naturezas e magnitudes. O resultado é uma total reorganização do território brasileiro, agrícola, urbano e regional.

Nas RPAs a oposição clássica entre a cidade e o campo torna-se bastante relativizada e a noção de complementaridade ganha mais força e importância. Tudo isso nos leva a dizer que as próprias contradições do desenvolvimento do capitalismo estão soldando a união contraditória que separou no início da sua expansão: a indústria e a agricultura, a cidade e o campo.

Essas dinâmicas socioespaciais culminam, entre outros, em processos de (re)estrutu-ração urbana e regional, com a organização de novos arranjos territoriais, entre os quais os ora denominados de Regiões Produtivas Agrícolas. Em resumo: o agronegócio globalizado exerce papel fundamental para a expansão da urbanização e para a reestruturação urbana e regional, sendo a formação das RPAs um exemplo dessa reestruturação. É mesmo bas-tante visível no Brasil a existência de uma série de espaços urbanos não metropolitanos na confluência do padrão agrário atual, ajudando a soldar as RPAs.

Conforme tenho defendido (Elias, 2003a, 2006a, b, c, d, 2007a, b, 2008, 2009a, b, 2010), é possível identificar no Brasil agrícola moderno, seja nos espaços de reserva, seja nas áreas já há mais tempo inseridas na produção moderna, vários municípios cuja urba-nização se deve diretamente à consecução e à expansão do agronegócio globalizado e cuja função principal claramente se associa às demandas produtivas dos setores relacionados à organização das redes agroindustriais.

Paralelamente à intensificação do capitalismo no campo com a difusão do agrone-gócio, processou-se um crescimento de áreas urbanizadas, porquanto, entre outras coisas, a gestão da agropecuária moderna necessita da sociabilidade e dos espaços urbanos. Tal fato colabora para o Brasil chegar ao século XXI com uma generalização do fenômeno da urbanização da sociedade e do território. Assim, ao lado da metropolização, principal característica da urbanização brasileira nas décadas de 1960 e 1970, Milton Santos (1993) advertia para o fato de o Brasil ter passado por verdadeira revolução urbana, a partir da dé-cada de 1980, com a expansão do fenômeno da involução metropolitana, quando crescem também as cidades médias e locais. Outros preferem usar os termos urbanização difusa, urbanização extensiva, e outros, ainda, cidade difusa e urbanização dispersa.

Sem dúvida, o impacto de todas essas transformações técnicas, econômicas e sociais na dinâmica populacional e na estrutura demográfica é intenso. Concomitantemente a uma verdadeira revolução tecnológica da produção agropecuária e agroindustrial e às

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transformações nas relações de trabalho, ocorreu uma revolução demográfica e urbana, marcada por grande crescimento populacional, particularmente nas cidades. Dessa for-ma, compreender como se processa a organização das RPAs contribui, também, para a compreensão de algumas das mais marcantes características e tendências da urbanização brasileira das últimas décadas.

Com a fluidez possível graças à construção dos sistemas de engenharia dos trans-portes e das comunicações que passam a se instalar nas áreas de difusão do agronegócio, intensificam-se as trocas de várias naturezas, muitas delas antes não existentes, com grandes impactos na vida social e no território, reformulando o sistema urbano antigo. A expansão das redes agroindustriais não apenas repercutiu na estrutura técnica das suas res-pectivas atividades econômicas como causou profundos reflexos nas relações de trabalho, transformando o conjunto de normas e padrões que as regulam. Como resultado, há uma nova divisão social e territorial do trabalho, com consequências na estrutura demográfica e do emprego, que também ajudam a melhor compreender o acelerado processo de urba-nização, o qual se realiza sobre novas bases, e gera novas práticas socioespaciais.

Cada vez que o território brasileiro é reelaborado para atender à produção das redes agroindustriais, novos fixos artificiais se sobrepõem à natureza, e, desse modo, amplia-se a complexidade dos sistemas técnicos do espaço agrário. Diante disso, o território do agronegócio globalizado torna-se cada vez mais rígido, mais rugoso, promovendo uma urbanização corporativa (Santos, 1993; Elias, 2003a), empreendida sob o comando dos interesses das holdings hegemônicas do sistema agroalimentar.

Tudo isso fez da (re)estruturação urbana e regional fenômeno bastante complexo, dada a multiplicidade de variáveis que nela passam a interferir, como: a reestruturação produtiva da agropecuária; a organização das redes agroindustriais; a crescente especializa-ção dessas produções; o crescimento da produção não material seja associado ao consumo produtivo do agronegócio ou ao consumo consultivo dos mais banais; o aumento da quan-tidade e da qualidade de trabalho intelectual associado ao agronegócio; o intenso processo de êxodo rural; a existência do agrícola não rural (trabalhador agrícola que mora na cidade); a migração descendente etc. É inviável, assim, considerar apenas as noções, conceitos e categorias que até então davam conta das análises na Geografia de maneira geral e, espe-cialmente, na Geografia Agrária, Econômica, Urbana ou Regional e Economia Espacial.

Cidades do Agronegócio

Uma das consequências da reestruturação produtiva da agropecuária no Brasil é o processo acelerado de urbanização e crescimento urbano promovido, entre outras, pelas novas relações entre o campo e a cidade, desencadeadas pelas novas necessidades de consu-mo produtivo (Santos, 1988) das redes agroindustriais, as quais crescem mais rapidamente do que o consumo consultivo. Isso denota o que Santos (1988, 1993, 1994, 1996, 2000) chamou de cidade do campo, noção que utilizei por cerca de uma década (Elias, 2003a, b), embora, há alguns anos, a tenha substituído por cidade do agronegócio (Elias, 2006a, b, c, d, 2007a, b, 2008, 2009a, b, 2010), visando uma possível consolidação conceitual dessa ideia.

A utilização de tal noção vem causando algumas celeumas e precisa ser mais bem compreendida e, principalmente, estudada e debatida. O que chamo de cidades do agro-negócio seriam os espaços urbanos inseridos em RPAs nos quais se dá a gestão local ou regional do agronegócio globalizado, que desempenham muitas novas funções urbanas,

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diretamente inerentes a esse. Transformam-se, então, em lugares de todas as formas de cooperação erigidas pelo agronegócio e resultam em muitas novas territorialidades. Se, como diz Carlos (2004), a cidade é a materialização das condições gerais de reprodução do capital, a cidade do agronegócio é aquela cujas funções de atendimento às demandas do agronegócio globalizado são hegemônicas sobre as demais funções, assim como de resto ocorre nas RPAs nas quais estão inseridas. Nessas, é nítida a dependência da economia urbana de alguma importante produção agrícola e/ou de sua transformação industrial.

Diria que a cidade do agronegócio é uma nova tipologia de cidade. Essa seria mais perceptível especialmente nos lugares de reserva recentemente inseridos à produção e ao consumo modernos, nos quais se realiza uma gama complexa de fluxos associados ao cir-cuito superior da economia agrária. Seriam cidades em regiões agrárias que vêm enrique-cendo, que conhecem uma dinâmica econômica recente que gera nova riqueza. A cidade do agronegócio polariza amplo espaço agrário dinâmico, é um centro urbano que organiza esse espaço. Em outras palavras, a cidade do agronegócio está inserida em Regiões Produ-tivas Agrícolas na confluência do agrário moderno com espaços urbanos não metropolita-nos, e configura um lugar central de uma Região Produtiva Agrícola, parte integrante das redes agroindustriais, reflexo, meio e condição para o funcionamento dessas.

A especialização da cidade pode ser captada mediante a leitura de suas funções urbanas. Dado que as cidades do agronegócio apresentam uma especialização funcional, não basta a cidade estar inserida em uma RPA para poder ser classificada como uma cidade do agronegócio. O que a caracterizaria e a distinguiria de outro espaço urbano seria justamente uma hegemonia das funções inerentes às redes agroindustriais sobre as demais funções urbanas.

É possível identificar várias cidades, em diferentes partes do país, cuja existência, crescimento econômico e aumento da urbanização se devem diretamente à consecução do agronegócio globalizado: Luis Eduardo Magalhães (BA), Balsas (MA), Uruçuí (PI), Sorriso, Lucas do Rio Verde, Rondonópolis, Primavera do Leste (MT), Dourados (MS), Rio Verde (GO), Limoeiro do Norte (CE), Açu (RN), Petrolina (PE) e Juazeiro (BA), entre outras.

Algumas cidades que poderiam ser classificadas como do agronegócio são cidades refuncionalizadas com a difusão das redes agroindustriais. Mas outras se compõem de núcleos urbanos recentes. Entre esses últimos, alguns exemplos poderiam ser dados. Ci-taria a cidade de Luis Eduardo Magalhães, sede de município criado no ano de 2.000, a partir de desmembramento de Barreiras, conhecido como a capital do oeste baiano. Esse principal centro urbano dos cerrados nordestinos foi o primeiro a despontar com sua economia atrelada ao agronegócio da soja nesse bioma.

Luis Eduardo Magalhães é um dos lugares de reserva recentemente tomado pelas grandes empresas associadas às redes agroindustriais hegemônicas do complexo carnes-grãos (especialmente a multinacional Bunge Fertilizantes e Bunge Alimentos, instaladas na década de 1980).

Estudos realizados sobre a expansão da produção de grãos (principalmente soja, algodão e café) nos cerrados nordestinos, faz-me arriscar a dizer que o desmembramento de Luis Eduardo Magalhães, a cerca de mil quilômetros de Salvador, já é resultado da luta política desencadeada pelos grupos hegemônicos, reunindo capitais extra locais (pes-soa jurídica e pessoa física), que se associam para buscar consolidar o próprio território, independente de outras forças políticas e econômicas locais, consideradas conservadoras pelos primeiros.

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Um visitante desavisado vai se surpreender ao chegar à cidade e se deparar com as grandes lojas de tratores, colheitadeiras, insumos químicos etc. que se perfilam pela entra-da principal de Luis Eduardo Magalhães. O espanto continua quando, logo em seguida, o visitante se depara com as plantas industriais da Bunge, com seus portentosos silos, dentro do perímetro urbano da cidade, junto à área residencial.

A dinâmica populacional de Luis Eduardo serve de exemplo para seu dinamismo econômico, uma vez que o ritmo de seu crescimento populacional supera de longe a média nacional: seu contingente populacional somava cerca de 10 mil habitantes no ano de 2000, atingiu os cerca de 40 mil quatro anos mais tarde, e soma pouco mais de 50 mil nos dias atuais, cerca de dez anos após sua emancipação.

Outro exemplo da especialização funcional dessa cidade é que a mesma é uma das quatro cidades que recebem a Agrishow,13 Feira Internacional de Tecnologia Agrícola em Ação, um dos principais signos de feira comercial inerente ao agronegócio, sem dúvida uma das principais vitrines do que há de mais moderno para ser utilizado em toda a cadeia produtiva no agronegócio. A primeira versão local da feira ocorreu em 2004.

Para uma cidade do agronegócio, a mais importante característica é a especialização funcional. Por vezes, uma cidade que, inicialmente, pudesse ser classificada como do agronegócio, aumenta seu papel multifuncional com o crescimento, o que naturalmente faz com que a mesma perca uma das características principais das cidades do agronegócio. Isso não significa obrigatoriamente que o agronegócio deixe de ter importância econômica de determinada cidade ou Região Produtiva Agrícola, mas que outras atividades passam a ser determinantes estabelecendo-se novas dinâmicas socioeconômicas.

PENSANDO A OPERACIONALIZAÇÃO DA PESQUISA SOBRE AS RPAS

Como estratégia de ação, com vistas ao desenvolvimento de estudos e pesquisas sobre as Regiões Produtivas Agrícolas, é fundamental selecionarmos alguns grupos de variáveis representativas para a realidade a ser estudada, tomando em conta o papel destas para a compreensão da produção das mencionadas regiões. As ideias arroladas nesta seção resul-tam de um esforço empreendido no intuito de aperfeiçoar a metodologia para o estudo das áreas de organização das redes agroindustriais.14

Conforme entendo, a compreensão do âmago da produção do território das RPAs passa, necessariamente, pelo conhecimento empírico dos processos emergentes apresenta-dos nas seções anteriores, da mesma forma que o contato direto com a realidade pesquisa-da contribui, indubitavelmente, para uma construção teórica mais consistente.

Nesse momento surge um ponto de inflexão importante. Se a revisão bibliográfica é tarefa difícil, o estudo do objeto a partir dessa é bem mais complexo, exige do pesquisador ou candidato a sê-lo, competência para operacionalizar a pesquisa, transpor a teoria para a prática, reconstruir o todo a partir do objeto.

No caso presente, a quantidade e complexidade dos campos teóricos exigidos para o estudo das RPAs, como já citado na introdução, é um agravante. O problema de conhecer e definir Regiões Produtivas Agrícolas é o de saber o que são hoje; como evolui a liga regional produtiva ao longo do tempo; os abalos a essa liga regional, como resultado de processos produtivos novos e, finalmente, os novos arranjos territoriais resultantes. Nesse sentido, para apreender a realidade das RPAs teremos, necessariamente, de reconhecer o

13 As outras são Ribeirão Preto (SP), onde se iniciou a feira e onde ela apresenta versão de maior dinamismo; Rio Verde (GO) e Rondonó-polis (MT).

14 Esta tarefa vem sendo particularmente implementa-da desde as pesquisas as-sociadas à minha tese de doutorado e incrementada nos últimos anos.

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processo produtivo inerente às redes agroindustriais em sua evolução; o funcionamento da economia em nível mundial e seu rebatimento na formação econômica e social brasi-leira, com a devida compreensão da intermediação do Estado e do conjunto de agentes econômicos hegemônicos.

A chegada de novos agentes econômicos associados às redes agroindustriais, muitas vezes grupos de capital multinacional, requer a ampliação e modernização das infraestru-turas e equipamentos que darão suporte ao desenvolvimento das atividades e ampliarão a fluidez espacial, no campo e na cidade, expandindo as redes de relações nas quais se inserem as modernas regiões agrícolas.

Há uma série de variáveis que são interdependentes e que devem fazer parte das pre-ocupações para estudar as RPAs, porém foram privilegiados os aspectos que refletem mais fortemente as condições da modernidade atual, aqui entendida como “[...] os processos e situações sociais que incorporem ou mostrem tendência a introduzir algo de novo, isto é, a inovar” (Sánchez, 1993, p.293).

A escolha de conduzir as análises tendo como pressupostos os temas e processos já citados nas seções anteriores somados às variáveis reunidas segundo eixos de operaciona-lização da pesquisa, a seguir mencionados, propiciarão: conhecer as dinâmicas de uso e ocupação do espaço agrícola; as dinâmicas de estruturação urbana dos espaços urbanos nelas inseridas e, ao mesmo tempo, compará-las entre si; avaliar os níveis diferentes de determinações decorrentes da atuação de novos agentes econômicos inerentes às redes agroindustriais; elaborar o pensamento com base não apenas em recortes territoriais, mas também a partir das articulações de diferentes unidades espaciais (escala geográfica), verificando os fluxos que articulam as RPAs, seja nos espaços agrícolas, seja nos espaços urbanos não metropolitanos. Dessa forma, devem ser levantados também dados relativos à presença ou não das infraestruturas e equipamentos associados às redes agroindustrias nas cidades e no campo, assim como dados sobre a dinâmica populacional e o mercado de trabalho etc.

Não será possível aqui abordar em profundidade todas as questões inerentes à meto-dologia. Privilegiarei a apresentação dos eixos que sirvam para operacionalizar a pesquisa sobre uma RPA.

Parece-me importante, como norte metodológico, a escolha de variáveis com as quais seja possível reconhecer a especificidade atual da racionalização do espaço agrícola, das relações campo-cidade e a produção dos espaços urbanos não metropolitanos, assim como a reestruturação regional. Como estratégia de ação, julgo adequado agrupar algumas variáveis imprescindíveis para análise, segundo eixos, quais sejam: Eixo 1 – uso e ocupação do espaço agrário; Eixo 2 – ramos industriais representativos das redes agroindustriais; Eixo 3 – economia urbana; Eixo 4 – mercado de trabalho e dinâmica populacional; Eixo 5 – infraestrutura e equipamentos urbanos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

De acordo com o exposto, a partir das RPAs teríamos um recorte espacial para análise de algumas das mudanças ocorridas no território brasileiro, aumentando nossa capacidade de interpretar e de reconhecer os recortes atuais para melhor reconhecer o território. Uma vez que a globalização só se realiza com a fragmentação do território, a RPA ganha força como uma das possibilidades para percepção de tais processos.

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Estudar a Região Produtiva Agrícola significa, diante do citado, a possibilidade de apreender o conjunto das relações fundamentais que lhes dão os contornos duradouros em sua gênese e desenvolvimento, lembrando, porém: a outra “cara” do processo de análise é um processo de síntese, sendo essa “a visão de conjunto que permite ao homem descobrir a estrutura significativa da realidade com que se defronta, em uma situação dada. E é essa estrutura significativa que a visão de conjunto proporciona que é chamada de totalidade” (Konder, 1982, p.37).

Quando da eclosão do atual sistema temporal, que tem na globalização uma das suas principais marcas (Santos, 2000; Ianni, 1996; Hirst e Thompson, 1998), os espaços agrícolas se mostravam extremamente abertos à expansão dos sistemas de objetos e dos sistemas de ação (Santos, 1996) característicos do período. Portanto, os espaços agrários também se mecanizam e, onde a atividade agropecuária se dá baseada na utilização inten-siva de capital, tecnologia e informação, principais forças produtivas do presente período histórico, é visível a expansão do meio técnico-científico-informacional (Santos, 1985, 1993, 1996, 2000), com o incremento da urbanização, do número e do tamanho das ci-dades e a organização de Regiões Produtivas Agrícolas. Com a aceleração contemporânea (Santos, 1996) ou compressão tempo-espaço (Harvey, 1996), o campo apresentava-se como um espaço com menos rugosidades (Santos, 1985), possuidor de uma flexibilidade muito superior à apresentada pelas cidades e, assim sendo, como um lócus preferencial de expansão dos capitais industriais e financeiros.

Com a expansão dos sistemas de objetos voltados a dotar o território de fluidez para os investimentos produtivos, os fatores locacionais clássicos são redimensionados. Ocorre, assim, uma verdadeira dispersão espacial da produção, acirrando a divisão social e territorial do trabalho e as trocas intersetoriais, a resultar em diferentes arranjos terri-toriais produtivos agrícolas, entre os quais as Regiões Produtivas Agrícolas em todo o país, compostas também por espaços urbanos, especialmente cidades locais e mesmo por cidades de porte médio.

Várias áreas foram plenamente incorporadas à produção, transformação e às trocas globalizadas de produtos agropecuários industrializados, ocupando um lugar privilegiado dentro da nova divisão do trabalho agropecuário e agroindustrial do Brasil, compondo nós ou manchas de modernas redes agroindustriais.

Podemos concluir ser impossível continuar simplesmente dividindo o Brasil entre urbano e rural. Os antigos esquemas adotados para classificar sua rede urbana, as divisões regionais encontram-se, em parte, ultrapassados. Requerem, portanto, urgente revisão capaz de dar conta da complexidade e da dinâmica da realidade atual. Uma das vias para essa revisão é, indubitavelmente, a compreensão de como se processa a (re)produção das Regiões Produtivas Agrícolas. Essas são formadas seja por espaços agrícolas altamente racionalizados, seja por espaços urbanos não metropolitanos, cidades de porte médio e cidades menores. Avançar na compreensão das novas dinâmicas socioespaciais promovidas com a reestruturação produtiva da agropecuária encontra-se no âmago de qualquer aná-lise destinada a melhor compreender as tendências da urbanização brasileira, das últimas quatro décadas de forma especial.

Compreender toda sorte de fluxos implicados nas RPAs, notadamente por meio das categorias de análise basilares representadas pelos circuitos espaciais de produção e dos círculos de cooperação, sobretudo os associados ao circuito superior da economia do agronegócio globalizado, é um exercício de análise. Tal exercício permite, de um lado, a síntese das estratégias de ação e processos inerentes às principais empresas associadas

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aos conglomerados atuantes no agronegócio e, de outro lado, a dinâmica do território resultante dessas estratégias, ou seja, das novas especializações territoriais produtivas, evi-denciando como se processam as dinâmicas territoriais inerentes ao setor. Logo, o estudo das Regiões Produtivas Agrícolas compõe um dos caminhos possíveis de interpretação da produção do espaço de numerosas áreas do território brasileiro que têm em seu âmago a difusão do agronegócio e a organização das redes agroindustriais.

Como um dos objetivos maiores do presente texto é promover o debate do seu conteúdo e, especialmente, aperfeiçoar os caminhos possíveis para o estudo do território brasileiro do presente, em particular nas áreas de expansão das redes agroindustriais, ouso afirmar que a noção de Região Produtiva Agrícola compõe, um dos caminhos de conhe-cimento e interpretação da sociedade e do território brasileiros atuais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Denise Elias é professora adjunta do Programa de Pós Graduação em Geografia da UECE; coordenadora do grupo de pesquisa Globali-zação, Agricultura e Urba-nização (GLOBAU); membro da Rede de Pesquisadores sobre Cidades Médias (Re-CiMe); pesquisadora do CNPq. Email: [email protected] Ar ti go re ce bi do em setem-bro de 2011 e apro va do pa ra pu bli ca ção em outubro de 2011.

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__________. (Orgs.) Difusão do agronegócio e novas dinâmicas socioespaciais. 1ª ed. For-taleza: BNB, 2006. 483 p.HARVEY, D. Condição pós-moderna. 6ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 1996. HIRST, P.; THOMPSON, G. Globalização em questão. A economia internacional e as possibilidades de governabilidade. Petrópolis: Vozes, 1998.IANNI, O. Teorias da globalização. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996. SANTOS, M. A natureza do espaço. São Paulo: Hucitec, 1996.__________. A Urbanização Brasileira. São Paulo: Hucitec, 1993.__________. Espaço e Método. São Paulo: Nobel, 1985.__________. Metamorfoses do Espaço Habitado. São Paulo: Hucitec, 1988. __________. Por uma outra globalização. Rio de Janeiro: Record, 2000.__________. Técnica, Espaco, Tempo. São Paulo: Editora Hucitec, 1994.

A b s t r a c t The changes in the agricultural activity in the last five decades have profound impacts on the (re) organization of the Brazilian territory, resulting in new territorial arrangements. Among them, we highlight those related to agribusiness globalized areas chosen to receive the most significant productive investments in the sector, that represent its most competitive areas, which we are calling Productive Agricultural Regions (RPA). The main objectives of this paper are: to discuss the concept of Productive Agricultural Region (RPA); to present evidences for the identification and characterization of the mentioned region; to improve the analytical path that has been trodden in the context of geographic studies, in order to consolidate this conceptual idea.

K e y w o r d s Agribusiness; disperse urbanization; urban and regional restructuring.

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Resenhas

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CAPITALISMO GLOBALIZADO E RECURSOS TERRITORIAIS: FRONTEIRAS DA ACUMULAÇÃO NO BRASIL CONTEMPORÂNEOA. W. B. Almeida, A. Zhouri, A. A. R. Ioris, C. Bran-dão, C. Bermann, F. M. Hernández, G. N. Bezerra, H. Acselrad, J. A. Paula, K. Laschefski, M. C. N. Coelho, M. A. Monteiro, L. F. N. Garzon, L. H. Cunha e L. J. Wanderley Rio de Janeiro: Lamparina, 2010

Humberto Miranda do Nascimento Professor do Instituto de Economia

e coordenador do CEDE – Centro de Estudos do Desenvolvimento Econômico da Unicamp

O livro conta com a participação de autores vinculados a cinco grupos de pesquisa brasileiros dedi-cados ao estudo e à geração de conhecimento aplicado sobre a relação capitalismo e território, desdobrando-a em nove temas que vão desde o amparo teórico neces-sário e permanente da crítica ao capital, como também aos novos desafios políticos colocados à sociedade pelas frentes de expansão do capital vis-à-vis aos crescentes conflitos pelo território. Os pesquisadores do Ettern-UFRJ, do Gesta-UFMG, do Gapta-UFRJ, do Nesur-Unicamp e do PNCSA-UEA/UFAM proporcionam, assim, ao leitor uma visão crítica enriquecedora do debate acadêmico.

No primeiro tema, Crise econômica e reiteração do capitalismo dependente no Brasil, de João Antônio de Almeida, a crise econômica atual é discutida à luz do enfoque estruturalista, chamando atenção para a distinção entre aquilo que chama de “crise financeira neoliberal” e a crise mais geral do capitalismo, uma “crise sistêmica, mundial e de hegemonia”. Trata-se da distinção entre seus elementos conjunturais e mais estruturais. Nesse sentido, o autor, além de retomar o que foi a crise de 1930 até o neoliberalismo, volta-se ao cenário da crise de 2007-2008 buscando entender as razões que reforçam o capitalismo dependente.

Acumulação primitiva permanente e desenvolvi-mento capitalista no Brasil contemporâneo, de Carlos Brandão, é o segundo tema e traz relevante discussão a respeito do caráter expropriador-(re)apropriador de

recursos territoriais no capitalismo brasileiro. Apresen-ta uma fecunda fusão de perspectivas teóricas críticas oriundas de autores fundamentais do marxismo (Marx, Lênin e Luxemburgo), passando por autores como Da-vid Harvey e Roman Rosdolsky e contextualizando a abordagem brasileira a partir de Wilson Cano, Concei-ção Tavares, Chico de Oliveira, Lúcio Kowarick, entre outros, retomando e sofisticando o conceito de acu-mulação primitiva, agora, permanente. Vai chamar a atenção para “a lógica econômica da valorização fácil e rápida... de natureza imediatista, rentista e patrimonia-lista” (p.49) que se estabelece na “estrutura genética” do capitalismo no Brasil ao articular as várias frações do capital, nacional e internacional, que operam (sobre) a “plataforma territorial-econômica” do país. Através da lógica mercantil, rentista, parasitária e financeira forja-se o descompromisso com o projeto nacional de desen-volvimento, gerando/gerindo verdadeiras “máquinas de produção de múltiplas desigualdades”.

No terceiro tema, Financiamento público ao desen-volvimento: enclave político e enclaves econômicos, de Luis Fernando Novoa Garzon, o autor analisa o papel do fi-nanciamento público dos investimentos em infraestru-tura no Brasil nos últimos anos, chamando a atenção para um importante agente, o Banco Nacional de De-senvolvimento Econômico e Social – BNDES. Aqui, o autor destaca o project finance do banco, amparado pela Lei das Parcerias Público-Privadas (Lei 11.196/2005), como instrumento central para viabilizar as garantias oferecidas. A observação importante está no fato de o Estado passar a negociar com o setor privado não mais por meio de vetores econômicos equivalentes e social-mente convalidados, mas tornando-se mero canal de negociação privada, impermeável às demandas sociais. O capital privado encontra, assim, um subsidiador franco da drenagem da base de recursos naturais do país, arrastando consigo uma sociobiodiversidade (por-tadora de valores de uso) que deveria servir de potencial de desenvolvimento das populações tradicionais, para commoditizar o território e seus frutos (criando valores de troca). Além de descrever a mudança na forma de atuação do banco, dentro daquilo que chama de “etapa superior do capitalismo brasileiro”, nas reflexões sobre o papel do BNDES, o autor sintetiza de forma perti-nente na expressão “O BNDES que temos e o país que não temos” aquilo que deveria ser o verdadeiro papel do banco público de investimento, o seu “S” , especial-

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mente no que se refere à garantia de investimento em infraestrutura social (urbana e rural).

Em Agroestratégias de desterritorialização: direitos territoriais e étnicos na mira dos estrategistas dos agrone-gócios, de Alfredo Wagner Berno de Almeida, o quarto tema, discutem-se as estratégias do agronegócio nos territórios que constituem suas fronteiras de expansão, a expensas do direito ao território das populações tra-dicionais. As agroestratégias, apoiadas pelas agências multilaterais (Bird, FMI e OMC), são conduzidas no Brasil pelos blocos ruralistas, suas entidades (CNA) e representantes no parlamento, para influenciar as polí-ticas governamentais e capturar dos planos, programas e projetos. O ataque frontal à legislação ambiental, à demarcação do território quilombola e indígena e ao processo de titulação definitiva de suas terras deve-se à redefinição do mercado de terras (a terra e seus recur-sos), o que remete às formas de remercantilização do espaço agrário/rural que comandam tais agroestratégias.

No quinto, A expansão da fronteira de expansão petrolífera: consequências sobre territórios e populações e populações tradicionais, de Francisco Del Moral Hernández e Clélio Bermann, a questão do petróleo é abordada dentro da perspectiva de integração da infraestrutura física sul-americana, especialmente a partir do eixo amazônico da Iniciativa para a Integra-ção da Infraestrutra Regional Sul-Americana – IRSA. A possibilidade de exploração de petróleo em território amazônico e da construção de gasoduto da Venezuela ao sul do continente é o foco de análise. A questão explorada pelos autores é como os novos interesses do capital na região amazônica continental podem revelar e aprofundar os conflitos de uso-ocupação do espaço, relacionados aos interesses das populações tradicionais. Após uma contextualização histórica dos conflitos em torno dos interesses petrolíferos no mundo, passando pela formação da indústria de petróleo no Brasil, o autor volta-se ao caso do petróleo na Amazônia e os gasodutos Urucu-Porto Velho e Coari-Manaus. É im-portante destacar, além da exploração hidrelétrica e mi-neral, a constituição de mais uma fronteira de expansão do capital, a da exploração da Amazônia petrolífera, dentro do contexto de integração sul-americana.

Encontramos no sexto tema, Desregulação, des-localização e conflito ambiental: considerações sobre o controle das demandas sociais, de Henri Acserald e Gus-tavo das Neves Bezerra, a investigação das demandas

sociais sob a óptica de sua (in)capacidade de resistir à nova mobilidade do capital no espaço. Os autores utilizam o conceito de “acumulação por espoliação”, de David Harvey, para chamar a atenção para a ação dos “portadores do poder de investir” que “recebem” a custo zero ou baixo um conjunto de ativos presentes no território (mão de obra farta, recursos genéticos, bens públicos, bens culturais etc.) para fins lucrativos. A acumulação por espoliação libera tais recursos cum-prindo a mesma função que a acumulação primitiva cumpria na óptica de Marx. O artigo, entretanto, tem a virtude de apresentar um conceito mediador chave, o de chantagem de localização/deslocalização, como uma nova etapa do capitalismo através da qual se exprime a maneira pela qual os grandes investimentos funcio-nam como “quase sujeitos” das políticas de regulação do território, sujeitando a população local ao que os autores chamam “alternativas infernais”: ou ela aceita docilmente os imperativos do progresso ou sofre a ame-aça de ser preterida por outra população ou localidade. A população tenderia a submeter-se à “chantagem” por ter um poder de barganha restringido pelas con-dições econômico-sociais débeis em que vive, ficando, assim, cada vez mais sujeita aos riscos socioambientais dos empreendimentos. Estaria em vigor, segundo os autores, uma “divisão socioespacial da degradação ambiental” reduzindo o potencial socioprodutivo de várias comunidades e, consequentemente, o bem-estar socioambiental das mesmas. O próprio poder público estaria legitimando a atração locacional chantagista de investimentos oferecendo uma série de benefícios, seja em recursos físicos ou fiscais, e estimulando inclusive uma “guerra predatória regional”. Os autores descre-vem algumas evidências empíricas da chantagem de localização/deslocalização para o caso brasileiro e o da fronteira de investimentos siderúrgicos na fronteira Brasil-Bolívia. A questão central, portanto, é qual de fato o poder dos atores locais (ribeirinhos, quilombo-las, indígenas, camponeses...) de resistir à chantagem locacional dos investimentos? Recusar ou consentir?

Em seguida, no sétimo tema apresentado, Da foz às nascentes: análise histórica e apropriação econômica dos recursos hídricos no Brasil, de Antonio Augusto Rossot-to Ioris, o autor traça um quadro histórico-evolutivo da apropriação econômica dos recursos hídricos no Brasil, chamando a atenção para o uso direto e indireto da água como mecanismo de acumulação. Seu mote é a

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relação entre a questão da água e o desenvolvimento nacional. Separa a discussão em duas fases históricas, a desenvolvimentista (anterior) e a neoliberal (mais recente). A diferença básica entre as duas fases, segundo o autor, é que, na primeira, a água foi utilizada como fonte indireta de acumulação (matéria-prima) e, na segunda, como fonte indireta (insumo) e direta, consi-derando também que a própria gestão da água torna-se objeto de transação econômica. A abordagem chama a atenção, no fundo, para as formas de apropriação dos recursos hídricos que aprofundam o caráter desigual e excludente do desenvolvimento, especialmente quando convivemos com crescentes problemas de uso das águas urbanas e rurais, o precário enfrentamento das enchen-tes nas cidades e ao mesmo tempo o incentivo ao uso/acesso privado das melhores fontes levando à produção permanente de escassez para fins de suprimento da co-letividade, além da própria degradação a que as águas são submetidas pelo modo mais extensivo/intensivo como se dá a apropriação/expropriação capitalista deste recurso ao longo do tempo.

Já no oitavo tema, Conflitos ambientais Norte-Sul: agrocombustíveis para quem?, de Klemens Laschefski e Andréa Zhouri, faz-se uma interessante exposição acerca das dimensões ambientais e territoriais do con-flito Norte-Sul sujeito às novas determinações do cres-cimento do mercado da economia agro-green-business. Chama-se a atenção para o fato de que a deslocalização das atividades causadoras de impactos ambientais cria de uma só vez um exército de atingidos por conta-minação, o que desafia o movimento por justiça am-biental a trabalhar em um projeto menos localizado e mais amplo de transformação da sociedade. Após tecer uma série de considerações técnicas/tecnológicas relativas aos agrobiocombustíveis e o discurso oficial em torno da sua matriz energética ambientalmente limpa, os autores vão ao cerne do problema ao associar a expansão dos agrobiocombustíveis aos efeitos sociais perversos que pode gerar. Explora a temática tanto do ponto de vista da organização desse mercado afeita aos interesses do agronegócio nacional e internacional, do tratamento dos países periféricos como “sumidouros de carbono”, a falta de garantia de que seja solução energética em um cenário de mudança climática, en-fim, de que prosperem em vez de evitar as tensões re-novadas entre expansão da fronteira agrícola e preser-vação de recursos naturais. Promove-se, desse modo,

uma segregação territorial entre áreas degradas versus áreas ecologicamente modernizadas (certificadas). As novas territorialidades incentivadas pelos interesses da indústria de combustíveis e do latifúndio estruturam uma relação de poder sobre o espaço desafiando os movimentos sociais a criarem estratégias mais amplas de enfrentamento, dado o potencial de conflitos am-bientais explícito-implícitos.

Por fim, no nono tema, Mineração de bauxita, industrialização de alumínio e territórios na Amazônia, de Maria Célia Nunes Coelho, Maurílio de Abreu Monteiro, Luis Henrique Cunha e Luiz Jardim Wan-derley, a Amazônia ganha foco através da mineração e seus impactos associados ao avanço da fronteira mine-ral na Amazônia oriental brasileira, produzindo novos processos de territorialização e de luta pelo território. Os autores situam a abordagem nos projetos voltados à produção de bauxita, alumina e alumínio naquela parte da Amazônia, considerando o contexto de crescimento da demanda externa. Acentuam o caráter conflitual que perpassa a implantação desses projetos de explo-ração mineral à medida que levam “à superposição e à convivência de diferentes economias ou territórios em construção”. Ao mesmo tempo, mudanças so-ciais decorrentes do processo de territorialização ou do dinamismo territorial, em função das formas de sujeição ou resistências ativas, acabam estruturando novas relações de poder e de disputas pelo território. Os autores percorrem vários momentos históricos em que a relação tensionada entre territórios de empresas e territórios dos moradores/atores locais modula as formas de resistência e dominação (controle efetivo do território pelo agente empresarial, por exemplo), sendo que nesse processo o papel do Estado tem de ser mais ativo, instituindo normas, restringindo comportamen-tos e regulando o destino nos territórios-palcos-de-luta-pelo-poder.

Finalmente, o que se pode dizer dos nove temas que compõem o livro é que eles não têm a pretensão de resultar em uma unicidade forçada de questões, mas de propor uma multiplicidade aberta e crítica de sub-sídios à reflexão-intervenção ou reflexão interferente sobre o atual processo de capitalista em que os recursos territoriais estão em jogo. Todavia, a nova forma que o processo de acumulação assume exige mais que uma retomada do papel regulador do Estado, compensando a materialização do poder dos interesses do capital pri-

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vado sobre o território, exige a constituição de novas bases sociais sobre as quais se poderá mover à ação reguladora do Estado, ou seja, é preciso reconhecer a necessidade de maior controle social por parte da sociedade e garantir um novo conteúdo social àquela ação reguladora, a fim de contra-arrestar a mobilidade dos capitais com as novas habilidades das lutas sociais. Este é, talvez, o grande sentido do livro.

A NEW PHILOSOPHY OF SOCIETY – ASSEMBLAGE THEORY AND SOCIAL COMPLEXITYManuel DeLanda London: Continuum, 2006

Henri Acselrad Professor Associado do IPPUR/UFRJ,

pesquisador CNPq

Gustavo Bezerra UFF Volta Redonda

Este livro de Manuel DeLanda reflete um esforço de pensar diferentemente ou, de acordo com a fórmula de Montaigne, pensar “ailleurs” – em outro lugar – isto é, dedicar-se a mudar de posição para experimentar um redirecionamento de pontos de vista.1 Trata-se, no caso, de procurar escapar do território das teorias sociais que se baseiam na dialética e no construtivismo em favor da aplicação da teoria do agenciamento de Gilles Deleuze à realidade social. Ainda que reconheça tratar-se de “rudimentos de uma teoria”, DeLanda bus-ca usar diferentes recursos conceituais para propor uma “nova teoria do agenciamento”, vendo a complexidade social como composta por uma variedade de todos que emergem de partes heterogêneas. O problema da cone-xão entre os níveis micro e macro da realidade social é enfrentado por meio de uma síntese não dialética das propriedades de um todo que não é redutível às suas partes. Com essa solução, DeLanda almeja conceituar um estado ontológico de múltiplos níveis intermediá-

rios situados entre o micro e o macro – exemplificados pelas interações sociais de Erwin Goffman e pelas instituições de Max Weber – nos quais as propriedades do todo supostamente emergem da interação entre suas partes.

Contrariamente aos sociólogos influenciados pela fenomenologia, DeLanda adota uma ontologia social “neorrealista”, considerando a existência da realidade social de forma independente das mentes. Para ele, as organizações institucionais, redes interpessoais e outras entidades sociais existentes deveriam ser tratadas como independentes de suas respectivas conceituações, resultando de processos objetivos de agenciamento. As entidades sociais são, pois, para ele, agenciamentos construídos por meio de processos históricos bem específicos, nos quais a linguagem exerce um papel importante, mas não constitutivo. A tarefa filosófica de clarificação ontológica deve, para DeLanda, contribuir para o trabalho de cientistas sociais naquilo em que seu esquema ontológico pode ser aplicado a diferentes en-tidades sociais através de movimentos ascendentes que vão desde a escala pessoal até Estados territoriais. A sua noção de ontologia plana refere-se à “univocidade do ser”, uma tese medieval reciclada por Deleuze segundo a qual “a univocidade é a síntese imediata do múltiplo: a unidade não diz nada além do múltiplo, cabendo substituir a concepção de que este último subordina-se ao anterior [ou seja, o múltiplo ao um] como a uma es-pécie comum e superior capaz de incluí-lo”.2 DeLanda busca aplicar o esquema do agenciamento de Deleuze e Guattari a objetos tais como classes, organizações, cidades e Estados-nação.

Em um eixo horizontal inicial, eles consideram esses agenciamentos como possuidores de dois seg-mentos: conteúdo e expressão; de um lado, um agen-ciamento mecânico dos corpos, ações e paixões, uma mistura de corpos reagindo uns aos outros; de outro, um agenciamento coletivo da enunciação que age e enuncia transformações incorpóreas que são atribuídas aos corpos. No segundo eixo, vertical, o agenciamento tem, por um lado, faces territoriais ou reterritoriali-

1 Lapierre, N. Penser Ailleurs. Paris: Folio Essais/Gallimard, 2004, p.12.

2 Zourabichvili, F. Le vocabulaire de Deleuze. Paris: Ellipses, 2003, p.82. Tradução por Taylor Adkins. Disponível em <http://fractalontol-ogy.wordpress.com/2007/11/03/two-entries-from-francois-zourabich-vilis-book-on-deleuzes-vocabulary-univocity-and-pre-individual-singulari-ties/>. Em português, ver <http://pt.scribd.com/doc/50483460/12/UNIVOCIDADE-DO-SER-univocite-de-I-etre>. Acesso em outubro 2011.

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zadas que o estabilizam e, por outro lado, picos de desterritorialização que o dissipam. O que interessa a DeLanda é, nos seus termos, “todo tipo de fenômeno de auto-organização, desde os padrões de vento que têm regulado a vida humana por longo tempo, como a monção, até padrões de auto-organização presentes dentro de nossos corpos, processos de auto-organização na economia e o processo de auto-organização que criou a Internet”.3 Esses padrões de conexão entre dife-rentes elementos diferem de sistemas centralizados na medida em que levam as operações a se coordenarem a si mesmas e o resultado final a se sincronizar, indepen-dentemente de uma agência central. Esse é um modo de coordenação horizontal, sem intervenção de uma agência hierárquica, no qual os agenciamentos são uma articulação de elementos discursivos e não discursivos de objetos e ações.

Em décadas recentes, a presença de conceitos deleuzianos (e deleuzianos-guattarianos) em inúmeras disciplinas ou campos de investigação contemporâne-os tem se manifestado por meio de amplos efeitos no ambiente cultural. Relações entre a antropologia e a filosofia deleuziana, por exemplo, têm se intensificado, confirmando o papel de Deleuze no estabelecimen-to do que Viveiros de Castro chama de “uma certa estética conceitual contemporânea”.4 A legitimidade da antiga premissa da descontinuidade ontológica entre signo e referente ou entre linguagem e mundo é contestada; a proposta, em vez disso, é a de promover o fracionário-fractal e o diferencial mais do que o unitário e o combinatório, a conexão de elementos heterogêneos em lugar da correspondência entre séries homogêneas, a continuidade de forças mais do que a descontinuidade da forma.5 A pressuposição de indis-tinguibilidade entre epistemologia e ontologia justifica o entendimento de que conhecer não é mais um meio de representar o (des)conhecido mas um meio de in-teragir com ele e de criar mais do que de contemplar, refletir ou comunicar.6

Vale a pena considerar em que medida a pro-posta de DeLanda realiza esse novo desafio inte-lectual de interagir com o mundo. Nas discussões provocadas pelo livro A New Philosophy of Society (Uma Nova Filosofia da Sociedade), algumas reações o veem como filosoficamente perspicaz e sociologi-camente problemático. Alguns críticos destacam que DeLanda toma como dado o rearranjo em curso en-tre o Estado e as esferas pública e privada, bem como a reformulação das instituições da sociedade civil. Assim, ele demonstra pouco interesse em explorar o diagrama do presente, as condições de sua efetivação em andamento ou as condições de sua mudança,7 ignorando categorias como poder, dominação, dissi-metria e antagonismo enquanto fatores cruciais para se entender as disputas.

As implicações sociológicas da intenção de De-Landa apresentar uma nova filosofia da sociedade de-veriam certamente ser examinadas e problematizadas. Primeiramente, a tradução de conceitos – como é o caso do agenciamento (agencement em francês, tradu-zido para assemblage em inglês) – implica no risco de que algo da força expressiva que tais conceitos acumu-laram historicamente através de seu uso seja perdida. Assinalou-se, por exemplo, que o uso de assemblage como tradução para agencement pode perder o sentido de tornar-se que Spinoza atribui a composições feitas de dois ou mais corpos que têm alguma coisa em comum.8 Em segundo lugar, vale a pena considerar as diferentes formas pelas quais os conceitos são corrente-mente mobilizados. Um modo possível, por exemplo, é o de se referir a seus conteúdos históricos empiri-camente observados; outro modo é o de vê-los como categorias heurísticas ou analíticas que visam organizar evidências históricas com bem pouca correspondência direta.9 Em particular, cabe notar que quando conteú-dos migram de um domínio para outro, eles adquirem “uma realidade que eles não tinham no ponto de

3 Entrevista com Konrad Becker e Miss M., Virtual Futures, Warwick 96. Disponível em <http://www.t0.or.at/delanda/intdelanda.htm>. Acesso em: 24 jun. 2008.

4 Castro, E. V. “Filiação intensiva e aliança demoníaca”. Novos Estudos do CEBRAP, São Paulo, n. 77, 2007.

5 ibid.

6 Castro, E. V. Ibid Deleuze, G. Qu’est-ce que la philosophie? Paris: Minuit, 1991.

7 Clough, P.; Han, S.; Schiff, R. “Book Review: A New Philosophy of Society: Assemblage Theory and Social Complexity by Manuel DeLanda London and New York: Continuum, 2006”. Theory, Culture & Society, Nottingham, 2007, 24 (7-8): 389.

8 Phillips, J. “Agencement/Assemblage”. Theory, Culture & Society, Nottingham, 2006; 23 (2-3): 108-109.

9 Thompson, E. P. “Algumas observações sobre classe e ‘falsa cons-ciência’ ” In: Thompson, E. P. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas: Ed. Unicamp, 2002 (originalmente publicado em Quaderni Storici, nº 36, 1977).

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partida”.10 Consequentemente, a migração de concei-tos, como sugere Stengers,11 exige que questionemos a capacidade desses conceitos organizarem o estudo em um campo fenomênico, e também que reflitamos sobre as condições socioculturais dessa operação, posto que a formação e a difusão de conceitos são atraves-sadas por dinâmicas distintas: de um lado, a história das batalhas simbólicas envolvendo sua criação e re-configuração; de outro, a tendência a se naturalizar a objetivação que o conceito adquire em suas sucessivas migrações entre campos do conhecimento. Quando um conceito é reconhecido como capaz de organizar o estudo de um campo fenomênico, a história tende a naturalizar seu processo de propagação. É, portanto, a “produtividade” do conceito – sua adaptabilidade, sua fertilidade, sua capacidade de anular o sentimento de que contém um caráter relativamente arbitrário, e seu poder intrínseco de organização ou, em uma perspec-tiva Deleuziana, de interação com o real – o que ex-plica seu sucesso. Uma reflexão metódica é, portanto, necessária sobre os limites e condições de validade dos instrumentos conceituais ou, em outras palavras, da pertinência de sua aplicação à teoria do objeto, dado que “para cada objeto construído, uma teoria”12 – em nosso caso, o objeto de uma filosofia “do social”.

DeLanda pretende reinterpelar a sociologia, as-sim como o fez Deleuze – nos termos do posfácio de Jacques Donzelot ao Anti-Édipo, por uma “antissocio-logia” que então tentava escapar das dicotomias que caracterizaram o surgimento da sociologia tais como: a alternativa entre funcionalismo e estruturalismo, a distinção entre infra e superestrutura, e a percepção do Estado como a secreção instrumental de uma vontade partidária ou coletiva.13 Para DeLanda, a questão hoje é a de enfrentar a dialética e o construtivismo. Mas o que a noção de “social” realmente significa aqui? O autor não apresenta uma definição sistematizada para isso. Fica para o leitor a tarefa de juntar as pistas deixadas

pelo autor – uma solução que não é de modo algum ca-sual, dado que o que vigora é a suposição de que todas as entidades e relações, sejam elas sociais ou não sociais, são ontologicamente indistintas, por se constituírem por meio de agenciamentos. Não é incomum encon-trarmos no texto exemplos de agenciamentos sociais junto a exemplos de agenciamentos orgânicos. O autor reivindica, porém, que as diferenças entre “o não social e o não biológico” existem: enquanto os agenciamentos biológicos seriam basicamente engendrados por proces-sos causais (multivariados e não lineares), os agencia-mentos sociais seriam largamente afetados também por mecanismos subjetivos como “razões e motivos”. Nis-so, a menção a Weber revela uma afinidade maior com a tradição sociológica alemã, que define o “social” pela presença da subjetividade – o espírito – do que com a tradição francesa, que define o social pela oposição a uma suposta rigidez e a historicidade do mundo natu-ral – a tradição intelectual que fala em “desnaturalizar” o social. Outro modo de se entender a distinção entre social e biológico seria pelo modo de expressão/codifi-cação – o modo de constituir a identidade/estabilidade de um agenciamento, ao lado de seus processos de ter-ritorialização: a codificação dos agenciamentos sociais ocorreria pela linguagem e não pelos genes. Assim, parece que linguagem e subjetividade são os diferen-ciais do “social” para DeLanda. Ele insistirá, porém, na lógica da continuidade entre o social e o não social ao afirmar que a dimensão expressiva dos agenciamentos é em larga medida “material” e não discursiva: apoiando-se em Goffman, ele argumenta que os entes materiais (roupas, gestos etc.) presentes em um agenciamento seriam igualmente – ou de forma mais forte – “ex-pressivos”, e, portanto, codificadores das relações entre os humanos. Assim, considera que no mundo social, como no mundo não social, a expressão também se dá pela matéria, só que de um modo menos intenso do que no mundo dos seres não humanos. Ao adotar esta perspectiva, o autor aproxima sua abordagem daquela de outros pensadores que se apropriam de Deleuze para empreender uma crítica da sociologia. Em Latour, por exemplo, a “antissociologia” de inspiração deleuzeana seria mais radical, visto sua substituição de intersubje-tividade por interobjetividade – rejeitando assim não só a definição de tradição francesa a respeito da espe-cificidade do “social”, mas a própria hermenêutica que marcou boa parte da sociologia alemã e a antropologia

10 Goriely, G. “Les Cadres Sociaux de la Pensée Biologique”. Cahiers Internationaux de Sociologie, v. XXVII, 1959, p.166.

11 Stengers, I. “La propagation des concepts”. D’une science à l’autre: des concepts nomades. Paris: Seuil, 1987, p.17.

12 Delaporte, Y. “De la distance à la distanciation. Enquête dans un milieu scientifique”. In. Gurwirth, J.; Pétonnet, C. (eds) Chemins de la Ville. Enquêtes Ethnologiques. Paris: Ed. du CTHS, 1987, p.229.

13 Donzelot, J. “Uma Anti-sociologia”. In. Capitalismo e esquizofrenia – dossier Anti-Édipo, Cadernos Peninsulares, Nova Série, Ensaio 20, Lisboa: Ed. Assírio e Alvim, 1976, p.172-3.

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norte-americana. De um modo geral, tais críticas da sociologia apoiam-se na recusa do “esquematismo” que caracterizaria esta disciplina. DeLanda busca então os agenciamentos como alternativas ao recurso a totalida-des descritivas – do tipo “a sociedade como um todo”, assim como a visões essencialistas de entes sociais.

Entretanto, é difícil não considerar que, ao fazê-lo, o autor tenha, por sua vez, recorrido a outros tipos de esquematismo. Seu texto é construído sobre um es-forço sistemático de adaptar a empiria à teoria, visando mostrar que a forma do social é a mesma – relações de exterioridade, materialidade/expressividade e territo-rialização/deterritorialização – independentemente de se estar falando de pessoas e redes, organizações e go-vernos, ou cidades e nações. Imerso em uma discussão basicamente formal, o autor lança mão de exemplos concretos retirados dos estudos empíricos, empreen-dendo as correções que acha necessárias em cada caso para que nele seja identificado um agenciamento ao invés de uma “ilusão” sociológica. Os exemplos não acumulam, porém, uma reflexão de conteúdo e, por isso, tanto faz que eles sejam referidos ao mercantilismo descrito por Fernand Braudel, aos movimentos por justiça social na Inglaterra nos séculos XVII e XVIII, descritos por Charles Tilly, ou às formas de dominação definidas por Weber.

Sem empreender uma reflexão original acerca da historicidade e dos “problemas públicos” que envolvem os seres/relações que busca evidenciar, este trabalho DeLanda não se aproxima das questões provocativas levantadas por Deleuze em suas reflexões sobre “Ca-pitalismo e Esquizofrenia”, estas mesmas questões que estiveram na raiz da emergência dos conceitos que DeLanda utiliza, como os de territorialização e desterritorialização. Fica assim no leitor a impressão de que o “A New Philosophy of Society” é uma versão desencarnada – e, de certo modo, domesticada – do pensamento deleuzeano sobre o social. Se, para Jacques Donzelot, o essencial da reflexão de Deleuze sobre o Estado consistiria em retirar “o véu mais ou menos pudico lançado sobre o problema do Estado” quando se constata a sua “aptidão para subordinar movimentos revolucionários”,14 DeLanda, por sua vez, vê o Estado como um agenciamento sem centro. Por conseguinte, sua preocupação em fazer migrar o conceito de agencia-

mento para a filosofia do social parece não responder suficientemente às demandas contemporâneas por con-ceitos que favoreçam o nosso entendimento do novo socius, como visto, por exemplo, nas áreas de indistin-ção na qual hoje o legal se funde com o ilegal, o público com o privado, o político com o econômico, a norma com a exceção. Esta demanda por conceituação nos lembra Walter Benjamin, para quem as palavras são como velas de um barco que, conforme sejam tecidas, podem tornar-se conceitos que, sob a ação dos ventos da história, nos ajudam a pensar o mundo.15

14 Donzelot, J. ibid., p.173.

15 Benjamin, W. “Das Passagen-werk”. In: Gesammelte Schriften, vol. 1, Suhrkamp, Frankfort-am-Main, 1972, apud Vandenberghe, F. Recon-figuration et rédemption des acteurs em réseaux – critique humaniste de la sociologie actancielle de Bruno Latour, Revue du MAUSS, n. 17, 2001, p.117.