revista brasileira de estudos urbanos · r. b. estudos urbanos e regionais v.9, n.1 / maio 2007 3...

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ESTUDOS URBANOS E REGIONAIS REVISTA BRASILEIRA DE publicação da associação nacional de pós-graduação e pesquisa em planejamento urbano e regional ISSN 1517-4115

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ESTUDOS URBANOSE REGIONAIS

REVISTA BRASILEIRA DE

publicação da associação nacional de pós-graduação

e pesquisa em planejamento urbano e regional

ISSN 1517-4115

REVISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS URBANOS E REGIONAISPublicação semestral da ANPUR

Volume 9, número 1, maio de 2007

EDITOR RESPONSÁVELHenri Acselrad (UFRJ)

COMISSÃO EDITORIALGeraldo Magela Costa (UFMG), Leila Christina Duarte Dias (UFSC),

Lilian Fessler Vaz (UFRJ), Maria Flora Gonçalves (Unicamp)CONSELHO EDITORIAL

Ana Clara Torres Ribeiro (UFRJ), Ângela Lúcia de Araújo Ferreira (UFRN), Brasilmar Ferreira Nunes (UnB), Carlos Antonio Brandão (Unicamp), Ermínia Maricato (USP), Heloisa Soares de Moura Costa (UFMG), João Rovati (UFRS),

Lia Osorio Machado (UFRJ), Linda Maria de Pontes Gondim (UFC), Marco Aurélio A. de F. Gomes (UFBA), Margareth Pereira (UFRJ), Maria Cristina da Silva Leme (USP), Nadia Somekh (Mackenzie), Norma Lacerda Gonçalves

(UFPE), Paola Berenstein Jacques (UFBA), Ricardo Cesar Pereira Lira (UERJ), Roberto Monte-Mór (UFMG), Rosa Acevedo (UFPA), Sandra Lencioni (USP), Sarah Feldman (USP), Wrana Maria Panizzi (UFRS)

COLABORADORESÂngelo Serpa (UFBA), Antonio Ioris (Aberdeen), Brasilmar Ferreira Nunes (UnB), Carmen Silveira (UFRJ),

Claudia Pfeiffer (UFRJ), Eloísa Petit (UFBA), Ester Limonad (UFF), Fátima Furtado (UFPE), Fernanda Furtado (UFF), Helion Povoa (UFRJ), Ivone Salgado (PUCCAMP), Jan Bitoun (UFPE), José Aldemir de Oliveira (UFAM),

José Julio Lima (UFPA), Lígia Simonian (UFPA), Luciana Correa do Lago (UFRJ), Luis Eduardo Aragon (UFPA), Luis OctavioSilva (S.J.Tadeu), Maria Flora Gonçalves (UNICAMP), Maria Josefina Gabriel Sant’Anna (UERJ), Martim Smolka (UFRJ), Orlando Junior (UFRJ), Ricardo Farret (UnB), Roberto Monte-Mór (UFMG), Rogério Haesbert (UFF), Rose Compans (IPP)

PROJETO GRÁFICOJoão Baptista da Costa Aguiar

CAPA, COORDENAÇÃO E EDITORAÇÃO Ana Basaglia REVISÃO

Ana Paula GomesIMPRESSÃO CTP

Assahi Gráfica e Editora

Indexada na Library of Congress (EUA)

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais – v.9, n.1,2007. – Associação Nacional de Pós-Graduação ePesquisa em Planejamento Urbano e Regional; editor responsável Henri Acselrad : A Associação, 2007.

v.

Semestral.ISSN 1517-4115O nº 1 foi publicado em maio de 1999.

1. Estudos Urbanos e Regionais. I. ANPUR (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional). II. Acselrad, Henri

711.4(05) CDU (2.Ed.) UFBA711.405 CDD (21.Ed.) BC-2001-098

3R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 9 , N . 1 / M A I O 2 0 0 7

ARTIGOS

9 PLANEJAMENTO TERRITORIAL E PROJETO NA-CIONAL – OS DESAFIOS DA FRAGMENTAÇÃO –Carlos B. Vainer

25 DESIGUALDADES SOCIOESPACIAIS NAS CIDADES

DO AGRONEGÓCIO – Denise Elias e Renato Pequeno

41 ENTRE O NÓ E A REDE, DIALÉTICAS ESPA-CIAIS CONTEMPORÂNEAS – O CASO DA METRÓPO-LE DE CAMPINAS DIANTE DA MEGALÓPOLE DO SU-DESTE DO BRASIL – Eugenio Fernandes Queiroga eDenio Munia Benfatti

53 APONTAMENTOS SOBRE A MARÉ – UMA COM-PREENSÃO – Maria Julieta Nunes de Souza

69 CARMEN PORTINHO E O HABITAR MODERNO

– TEORIA E TRAJETÓRIA DE UMA URBANISTA –Flávia Brito do Nascimento

83 A CIDADE CONTRA A FAVELA – A NOVA

AMEAÇA AMBIENTAL – Rose Compans

101 O SEQÜESTRO DAS RENDAS PETROLÍFERAS PE-LO PODER LOCAL – A GÊNESE DAS QUASE SORTU-DAS REGIÕES PRODUTORAS – Rodrigo Valente Serra

115 ARQUITETURA SOCIOLÓGICA – Frederico deHolanda

131 REFLEXÕES SOBRE A INTEGRAÇÃO PAN-AMA-ZÔNICA – O PAPEL DA ORGANIZAÇÃO DO TRATADO

DE COOPERAÇÃO AMAZÔNICA (OTCA) NA REGU-LAÇÃO DA ÁGUA – Nírvia Ravena e Voyner R. Cañetei

RESENHAS

147 Financiers, philantropes: vocations éthiques etréproduction du capital à Wall Street depuis 1970, deNicolas Guilhot – por Cecília Campello do A. Mello149 Cidade: impasses e perspectivas, de Maria LúciaCaira Gitahy e José Tavares de Lira Correia – por Na-dia Somekh152 A era da indeterminação, de Francisco de Olivei-ra e Cibele Saliba Rizek – por Gabriel de Santis Feltran

ESTUDOS URBANOSE REGIONAIS

REVISTA BRASILEIRA DE

publicação da associação nacional de pós-graduação

e pesquisa em planejamento urbano e regional

S U M Á R I O

ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA

EM PLANEJAMENTO URBANO E REGIONAL – ANPUR

GESTÃO 2007-2009PRESIDENTE

Edna Castro (NAEA/UFPA)SECRETÁRIO EXECUTIVO

Luiz Aragon (NAEA/UFPA)SECRETÁRIO ADJUNTO

José Júlio Lima (FAU/UFPA)DIRETORES

Adauto Lúcio Cardoso (IPPUR/UFRJ)Leila Dias (CFH/UFSC)

Roberto Monte-Mór (CEDEPLAR/UFMG)Virgínia Pontual (MDU/UFPE)

CONSELHO FISCAL

Brasilmar Nunes (SOC/UNB)João Rovati (PROPUR/UFRS)Renato Anelli (EESC/USP)

Apoios

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E D I T O R I A L

O presente fascículo reúne as versões revistas de nove trabalhos apresentados noXII Encontro Nacional da ANPUR, realizado em Belém, em maio de 2007. Os textosforam selecionados em duas etapas: na primeira, os membros da comissão científicado Encontro, que foram responsáveis pela coordenação de suas sessões temáticas, in-dicaram os dois melhores trabalhos de cada respectiva sessão; na segunda, os integran-tes da comissão editorial da Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais selecio-naram o que julgaram ser os nove melhores trabalhos entre os quatorze indicados pelacomissão científica do Encontro. Os textos aqui agrupados já incorporam, pois, ele-mentos do debate a que foram submetidos no âmbito das reuniões das sessões temáti-cas. Procuramos, assim, trazer aos leitores a expressão do conjunto das discussões de-senvolvidas nessas sessões, que foram organizadas segundo os seguintes temas:“Gestão urbana e regional: modelos, práticas e implicações”; “Rede urbana e estrutu-ra territorial”; “Forma e dinâmica intra-urbana”; “História, cidade e urbanismo”;“Território, conflitos e gestão ambiental”; “Cidade, cultura e sociabilidade”; “Amazô-nia no cenário sul-americano”.

No primeiro artigo, Carlos B. Vainer discute as conseqüências do processo defragmentação territorial, a partir das condições de exercício do planejamento urbanoe regional no Brasil. Após analisar criticamente as bases conceituais dos grandes pro-jetos de investimento – que denomina neo-localismo competitivo – apontados comoimportantes vetores da referida fragmentação, o autor identifica as contra-tendênciasque poderiam conduzir a projetos nacionais, em que o planejamento territorial de-sempenharia papel central.

Denise Elias e Renato Pequeno analisam os impactos urbanos do agronegócio,assinalando o caráter socialmente excludente da reestruturação que ele induz nas ci-dades, notadamente no que diz respeito ao acesso à moradia. O trabalho aplica-se aoscasos de quatro cidades do Nordeste, duas caracterizadas pela presença da fruticultu-ra e duas pela produção de grãos. Eugenio Fernandes Queiroga e Denio Munia Ben-fatti discutem, por sua vez, a formação de uma nova entidade urbana no país – a me-galópole do Sudeste. Os autores debruçam-se sobre o caso de Campinas, pólointermediário de uma rede urbana complexa, considerando-o exemplar para o estudoda urbanização dispersa e para a compreensão de dialéticas espaciais contemporâneas.

Explorando as formas espaciais e dispositivos arquitetônicos que equacionam apresença de bolsões de pobreza nas cidades, Maria Julieta Nunes de Souza aponta, a par-tir do caso da favela da Maré na cidade do Rio de Janeiro, os mecanismos de afastamen-to, invisibilização e confinamento de tais áreas com relação aos bairros vizinhos. Com aperspectiva histórica adotada em seu trabalho, Flávia Brito do Nascimento traça a traje-tória profissional da urbanista Carmen Portinho, Diretora do Departamento de Habi-tação Popular (DHP) da Prefeitura do antigo Distrito Federal entre 1946 e 1960, bemcomo da sua luta pela implementação de um programa de habitação popular na cidadedo Rio de Janeiro. A autora sugere que o perfil profissional de Carmen Portinho é em-blemático das aproximações entre a disciplina da Engenharia e o campo do Urbanismona estruturação de propostas para a superação da crise habitacional no Rio de Janeiro.

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Rodrigo Valente Serra discute o regime de repartição das rendas petrolíferas en-tre Estados e Municípios litorâneos das regiões petrolíferas nacionais, assinalando que,diferentemente de certos regimes internacionais, ele fornece aos beneficiários de taisrendas, principalmente aos Municípios, uma grande capacidade de investimento. To-mando por fonte básica de informação os debates realizados na Câmara e no SenadoFederal, o autor discute a hipótese de que, durante o processo de aprovação do regi-me de cobrança, rateio e aplicação dos royalties do petróleo, deu-se uma captura devultosos recursos por parte de interesses locais. O artigo de Rose Compans, por suavez, trata da apropriação do discurso da preservação ambiental por forças sociais inte-ressadas na retomada da estratégia de remoção de favelas no Rio de Janeiro. Para a au-tora, observa-se em meados da primeira década do século XXI, a constituição de ummovimento conservador que busca pressionar os poderes públicos a reprimir tais ocu-pações, sobretudo nas áreas mais valorizadas da cidade, recorrendo ao saber técnico-científico sobre os danos ao meio ambiente, ao lado de campanhas jornalísticas quereclamam da Prefeitura a remoção de áreas favelizadas.

Frederico de Holanda argumenta que a Arquitetura, mais comumente conside-rada como ofício, arte ou técnica, deveria ser considerada também uma ciência queaborda os lugares a partir de uma perspectiva própria. O artigo sugere que houve, nasúltimas décadas, uma mudança paradigmática que resgatou o pensamento teórico-re-flexivo no campo da Arquitetura, fortalecendo a interdisciplinaridade no trato dasquestões relativas aos lugares produzidos ou usufruídos pelas pessoas. O trabalho deNírvia Ravena e Voyner R. Cañete, por sua vez, aborda os marcos regulatórios doacesso e uso da água no Brasil, assim como sua influência na busca de uma gestão in-tegrada dos recursos hídricos na Pan-Amazônia. As autoras enfatizam as dificuldadesrelativas à coordenação de políticas domésticas setoriais voltadas à gestão de recursosnaturais na região, assim como a importância, no âmbito da Organização do Tratadode Cooperação Amazônica (OTCA), de um sistema de freios e contrapesos que seja ca-paz de evitar as investidas daqueles que buscam capturar para si os benefícios das po-líticas setoriais. O presente fascículo traz, por fim, três resenhas: do livro Financiers,philantropes: vocations éthiques et réproduction du capital à Wall Street depuis 1970, deNicolas Guilhot, publicado em 2004, analisando a recente difusão do discurso da res-ponsabilidade social de empresas no tratamento da questão social e urbana; da co-letânea Cidade: impasses e perspectiva, organizada, em 2007, por Maria Lúcia Caira Gi-tahy e José Tavares de Lira Correia e A era da indeterminação, publicação organizada,também em 2007, por Francisco de Oliveira e Cibele Saliba Rizek.

HENRI ACSELRAD

Editor responsável

ARTIGOS

PLANEJAMENTO TERRITORIALE PROJETO NACIONAL

OS DESAFIOS DA FRAGMENTAÇÃO

C A R L O S B . V A I N E R

R E S U M O A história recente do planejamento territorial no Brasil poderia ser narra-da como uma trajetória continuada, embora não linear, de desconstituição – política, intelectuale institucional. Este processo é resultado e fator de aceleração do processo de fragmentação terri-torial que desafia todos os que se preocupam com a necessidade de um projeto nacional digno des-ta abrangência. O presente trabalho busca identificar e analisar os principais vetores do processode fragmentação, a saber: grandes projetos de investimento (GPIs), neo-localismo competitivo e ovelho regionalismo, com suas redes de clientela-patronagem. Em seguida, são examinados rapi-damente os referentes teórico-conceituais dos GPIs e, em particular, do neo-localismo competiti-vo, que constitui hoje a principal receita distribuída aos países periférios e dependentes por agên-cias multilaterais e consultores internacionais. Ao final, busca-se explorar em que medidaestariam emergindo no processo social contemporâneo tendências e forças capazes de neutraliza-rem os vetores da fragmentação e conduzirem um projeto nacional, no qual, necessariamente, oplanejamento territorial deverá ocupar lugar central.

P A L A V R A S - C H A V E Projeto nacional; planejamento territorial; neo-lo-calismo; grandes projetos de investimento.

INTRODUÇÃO: DA RELEVÂNCIA DA QUESTÃOTERRITORIAL1

A história recente do planejamento territorial no Brasil poderia ser narrada comouma trajetória continuada, embora não linear, de desconstituição. Em primeiro lugar,desconstituição política, evidenciada no desaparecimento progressivo da questão regionalda agenda nacional. Se é verdade que o próprio processo de elaboração e confronto deperspectivas nacionais abrangentes torna-se cada vez menos visível e audível, também éverdade que quando esboços de uma agenda nacional ainda conseguem vir à tona, trans-cendendo a gestão quotidiana da economia, a questão regional e, de modo mais amplo, oterritório recebem pouca ou nenhuma atenção.

Paralelamente, reflexo e fator deste processo, a desconstituição tem sido tambémoperacional – ou instrumental, se preferível –, com a desmontagem dos aparatos institu-cionais que, na segunda metade do século passado, foram implantados pelo governo fe-deral para conceber e implementar políticas, planos e projetos cujo objetivo explicitamen-te enunciado era o ordenamento territorial e a redução das desigualdades regionais.Esvaziados de função e sentido, agências e órgãos regionais, onde sobreviveram, transfor-maram-se, via de regra, em nichos de articulação de interesses paroquiais e de reproduçãode elites quase sempre decadentes.

Este processo de desconstituição lança raízes nas transformações econômicas, sociais,políticas e culturais que integraram o território nacional e o submeteram, em seu conjun-

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1 Uma primeira versão destetexto foi apresentada no Painel“Desigualdades Regionais, Ur-banização e Ordenamento Terri-torial no Brasil: Desafios ePerspectivas”, no Seminário In-ternacional “Políticas de Desen-volvimento Regional: Desafiose Perspectivas à Luz das Expe-riências da União Européia eBrasil”, promovido pelo Ministé-rio da Integração Nacional, Bra-sília, 23-24/03/2006.

to e diversidade, às lógicas e dinâmicas da expansão de nosso capitalismo periférico e de-pendente a partir dos anos 60 e 70.2 Desdobrou-se, em seguida, na longa e dramática cri-se dos anos 80 e na transição que se lhe seguiu, comumente chamada de ajuste estrutu-ral, caracterizada pela adesão às diretrizes do Consenso de Washington. Hoje, adesconstituição parece atualizar-se numa espécie de conformada aceitação da fragmenta-ção territorial que consagra a acomodação subordinada às formas contemporâneas da glo-balização. A contrapartida ou compensação parece ser bastante magra: uma integraçãocontinental que, a cada momento, se mostra condenada a levar adiante apenas e simples-mente a criação de espaços mercantis adequados às novas escalas e dinâmicas espaciais doscapitais transnacionais presentes urbi et orbi.3

No entanto, talvez nunca como atualmente o debate sobre o território tenha sido tãodecisivo para a tão necessária quanto urgente recomposição teórico-conceitual, política ecultural que permitirá repensar uma nação que parece navegar à deriva, carente de agen-tes ou coalizões políticas e sociais expressivas capazes de vocalizar qualquer projeto nacio-nal digno desse nome.

Todo texto é datado, ou melhor, situado espacial e temporalmente. Este texto nãoescapa à regra. Ele é de um tempo em que o debate político se degrada e em que se assis-te ao empobrecimento da esfera pública e da esfera estatal como fóruns privilegiados doencontro e confronto de propostas. Por isso mesmo, mais que nunca se impõe colocar empauta aqueles temas que, pela sua abrangência e complexidade, ajudam a pensar perspec-tivas e projetos que busquem transcender a conjuntura imediata, as próximas eleições, ohumor do mercado financeiro e as últimas oscilações do risco-Brasil, cuja centralidade nodebate da mídia amesquinha e emascula a cena política nacional. Ora, a questão territo-rial é uma dessas, mesmo porque fala da necessidade e possibilidade de manter a perspec-tiva de um projeto nacional no mesmo momento em que forças poderosas põem em dú-vida a viabilidade e, inclusive, o sentido de perseverar em um horizonte que a globalizaçãocontemporânea já teria condenado, por anacronismo, ao lixo da história.4

O contexto econômico, social e político, de um lado, e o campo intelectual, de outro,sugerem que o desafio é reverter tendências, desfazer consensos, desmontar certezas e bus-car introduzir na análise dimensões e aspectos da realidade que normalmente são desconsi-derados. Assim, talvez seja possível arejar o debate e escapar às mesmices do que, na falta deoutro nome, poderíamos chamar de ajuste urbano e regional, mera adequação territorial àsdinâmicas e fluxos dominantes. Eis tarefa mais fácil de enunciar que de realizar, que certa-mente escapa às possibilidades de um texto, um trabalho, um autor, mesmo porque será ne-cessariamente obra coletiva. Os objetivos deste texto são, pois, mais modestos: apresentarum roteiro que ajude a balizar o caminho – intelectual e político, analítico e propositivo –de um esforço para abrir novos horizontes para as políticas territoriais, urbanas e regionais.

Neste roteiro, que certamente está longe de ser exaustivo, buscamos contemplar uma mi-rada sobre os seguintes pontos: vetores da fragmentação territorial; bases teórico-conceituaisda fragmentação; bases sociais, econômicas e políticas da fragmentação; contra-tendências.

VETORES DA FRAGMENTAÇÃO TERRITORIAL

Como as condições que nos estão dadas são permanentemente lembradas pelos queconvidam a acomodarmo-nos a elas, quando não a reiterá-las e reforçá-las, esta sessão so-bre vetores de fragmentação territorial concentrará sua atenção em práticas e dinâmicas

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2 Ver, por exemplo: Guima-rães, 1989; Diniz, 1995; Bace-lar, 2000; Oliveira, 1977; Vai-ner e Araújo, 19923 A agenda da IIRSA – Iniciativade Integração Regional Sul-ame-ricana – é típica, resumindo-se auma carteira de mega-empreen-dimentos de infraestutura quese limitam a “alisar” o espaçopara a circulação do grande ca-pital em suas várias formas.Por outro lado, são risíveis asperipécias de discussões eacordos Brasil-Argentina sobreo setor automotivo, em que osgovernos nacionais aparecemfalando em nome de suas indús-trias nacionais, comandadas, lácomo cá, pelos mesmos gigan-tes da indústria automobilísticamundial – Fiat, Volkswagen, Ge-neral Motors, etc. A recente cri-se em torno do contrato do gásBrasil-Bolívia, resultante da na-cionalização no país vizinho dei-xou à sombra uma das princi-pais personagens do drama, atransnacional, que, na verdade,falou pelo lado boliviano até suafalência.

4 Vale a pena lembrar que, em-bora esgrimindo razões e pro-jetos distintos, exorcismos dadimensão nacional são pratica-dos tanto no campo considera-do de esquerda (Hardt e Negri,2001 e Castells, 2001), quantopor arautos celebrados do mer-cado global (ver, por exemplo,Ohmae, 1966)

que, em tudo e por tudo, são resultado de processos decisórios e, desta maneira, passíveisde reversão, ou pelo menos profundas alterações, em função de decisões e projetos polí-ticos. Em outros termos, o que se pretende é mostrar que, pelo menos em parte, são de-cisões políticas e não tendências objetivas inexoráveis e inescapáveis que produzem e re-produzem a fragmentação.

GRANDES PROJETOS DE INVESTIMENTO

Desde a metade do século passado, mas sobretudo a partir de seu último quartel,grandes projetos miínero-metalúrgicos, petroquímicos, energéticos e viários reconfigura-ram o território nacional. Enquanto as agências de planejamento do desenvolvimento re-gional (Sudene, Sudam, Sudeco) se debruçavam sobre planos nunca concretizados e dis-tribuíam incentivos fiscais entre grupos dominantes locais e nacionais, o território ia seconfigurando conforme decisões tomadas em grandes agências setoriais. Não eram os pla-nejadores regionais que desenhavam a região, mas os planejadores e tomadores de decisãoem cada um dos macro-setores de infra-estrutura: no setor elétrico, a Eletrobrás e suas co-ligadas (CHESF, Eletronorte, Furnas, Eletrosul, Light), bem como algumas grandes em-presas estaduais (Eletropaulo, Copel); no setor mínero-metalúrgico, a Companhia Valedo Rio Doce, as grandes companhias siderúrgicas estatais; no setor petroquímico, a Pe-trobrás. Já nos anos 50, Brasília e a rodovia Belém-Brasília, assim como mais tarde a Tran-samazônica e outras intervenções viárias, redesenhavam o território regional, trazendo àvida novas regiões e novas regionalizações.

Desconcentrando a seu modo a produção industrial, estes grandes projetos de inves-timento (GPIs) foram decisivos para produzir uma forma muito particular de integraçãonacional, ao gerarem nexos entre o núcleo urbano-industrial do Sudeste e o resto do país.5

Ao mesmo tempo, e como já foi largamente demonstrado na literatura, em muitos casosestes GPIs conformaram verdadeiros enclaves territoriais – econômicos, sociais, políticos,culturais e, por que não dizer, ecológicos, introduzindo um importante fator de fragmen-tação territorial (Vainer, 1992).6

Constata-se, pois, que à época, os GPIs conformavam, ou pelo menos contribuíamfortemente para conformar, um espaço nacional integrado – profundamente desigual,mas integrado.

Os grandes projetos voltam à pauta nos últimos anos, de que são exemplares mega-empreendimentos hídricos – transposição das águas da bacia do São Francisco, hidrelétricasde Belo Monte e Madeira. Há, porém, uma decisiva mudança do que se passa hoje em re-lação ao que aconteceu nos anos 70: agora, grande parte das empresas e de seus empreendi-mentos territoriais não estão mais sob controle do Estado brasileiro. A privatização do Se-tor Elétrico, da CVRD, da CSN, da rede ferroviária, etc, ao lado da ausência ou fragilidadedo planejamento em uma série de setores estratégicos, tem como conseqüência o impériode opções e decisões de empresas privadas, estas sim tornadas soberanas. A privatização dossetores responsáveis pela infra-estrutura acabou tendo como corolário a privatização dosprocessos de planejamento e controle territorial que são intrínsecos aos grandes projetos.

Em outras palavras: os grandes projetos continuam portadores de um grande poten-cial de organização e transformação dos espaços, um grande potencial para decompor ecompor regiões. Por sua própria natureza, projetam sobre os espaços locais e regionais in-teresses quase sempre globais, o que faz deles eventos que são globais-locais – ou, para usara feliz expressão cunhada por Swyngedouw (1997), glocalizados.

C A R L O S B . V A I N E R

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5 Para uma discussão sobre oefeito desconcentrador destesgrandes projetos e algumas desuas consequências, ver, porexemplo, Torres, 1993.

6 Em seu favor poder-se-ia ar-gumentar que alguns GPIs ex-ploravam complementaridadesinter-regionais, transformandoparcelas do território nacionalem fornecedoras de insumosde vários tipos para a indústriado Sudeste e favorecendo, des-ta forma, uma integração eco-nômico-industrial antes inexis-tente. Mas não se deveesquecer que, já nos anos 70 einício dos 80, surgiram encla-ves mínero-metalúrgicos-ener-géticos – o mais exemplar é ocomplexo Carajás-Tucuruí-ferro-via-indústria do alumínio-porto–, quase inteiramente voltadospara a exportação, prenuncian-do processos que viriam a seaprofundar anos depois.

É interessante, nesta rápida reflexão sobre os GPIs, lembrar a natureza dos processosdecisórios que lhes dão origem. Ora, quase sempre se fazem nos corredores e gabinetes, àmargem de qualquer exercício de planejamento compreensivo e distante de qualquer de-bate público. Antes de estruturar territórios e enclaves, o grande projeto estrutura e se es-trutura através de grupos de interesses e lobbies, coalizões políticas que expressam, quasesem mediações, articulações econômico-financeiras e políticas. O local, o regional, o na-cional e o global se entrelaçam e convergem, na constituição de consórcios empresariais ecoalizões políticas. Projeto industrial, controle territorial, empreendimento econômico eempreendimento político se misturam nos meandros dos financiamentos públicos, dasdotações orçamentárias, das trocas de favores e, como vem à tona uma vez ou outra, dacorrupção institucional e individual. O cacique local se dá ares de importância quandoentra em contato com o dirigente de um grande grupo econômico internacional e nego-cia praças e igrejas, ao mesmo tempo em que pressiona seus deputados a pressionarem ins-tâncias sub-nacionais e nacionais para a concessão de licenças e favores. O exame da eco-nomia política de cada grande projeto permitiria identificar de que forma atores políticose empresas nacionais e internacionais se associam e mobilizam elites locais e regionais pa-ra exercer o controle do território, constituindo uma nova geografia física, econômica epolítica que decompõe o território nacional em novos fragmentos glocalizados.

O que se pretende sugerir, após estas considerações, é que os GPIs são uma forma deorganização territorial que a tudo se sobrepõe, fragmentando o território e instaurandocircunscrições e distritos que, no limite, configuram verdadeiros enclaves. Por esta razãoé possível afirmar que estes constituem, quase sempre, importantes vetores do processo defragmentação do território. Ademais, hoje seu potencial estruturador reafirma a privatiza-ção de nossos recursos territoriais e reforça tendências ao enclave e à fragmentação.

GUERRA DOS LUGARES

Se os grandes projetos, enquanto modo de apropriação e organização territorial, sãoos dos anos 60 e 70, a disputa entre municípios e estados para atrair capitais é fato maisrecente entre nós, passando a assumir relevância na última década do século passado. Aguerra fiscal expressa, de um lado, o vácuo de políticas territoriais na escala federal e, deoutro, a emergência de novas formas de articulação entre capitais e forças políticas que fa-vorecem uma redefinição das relações entre as escalas sub-nacionais (municipal, estadual,regional), nacional e global.

Com efeito, falta um pacto territorial democraticamente estabelecido que reconhe-ça a autonomia de estados e municípios, mas, também, ao mesmo tempo, sua necessáriasolidariedade e complementaridade. Esta situação propicia a eclosão de uma guerra de to-dos contra todos, da qual saem vencedoras, como se sabe, as empresas privadas, que pro-movem verdadeiros leilões para os que ofereçam maiores vantagens – fiscais, fundiárias,ambientais, etc.

O Estado nacional parece ter abdicado de suas responsabilidades de mediar e liderarpráticas de cooperação federativa. Em suas relações com as instâncias sub-nacionais, o go-verno federal hoje praticamente se limita a exercer pressão para impor-lhes a responsabi-lidade fiscal – leia-se a solidariedade forçada ao arrocho fiscal –, em perfeita consonânciacom as orientações do FMI, que sempre se preocupou em assegurar que o esforço fiscalnão ficaria restrito à União e atingiria igualmente estados e municípios. Assim, apesar dereceberem atribuições crescentes, as instâncias sub-nacionais foram conduzidas a aceitar

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uma renegociação de suas dívidas com a União que comprometeu grande parte de suasparcas receitas.

Ademais, foram vítimas de um verdadeiro golpe fiscal com a criação de contribui-ções e taxas que, escapando ao conceito de receita tributária, não são obrigatoriamente re-distribuídas conforme as regras federativas e vinculações constitucionais. Em conseqüên-cia, a redistribuição de recursos em favor dos estados e municípios que havia sidoassegurada pela Constituição de 1988 acabou sendo driblada por expedientes que promo-veram nova e crescente concentração de recursos nas mãos da União.

Neste contexto de uma federação que, ela também, se desconstitui, estados e muni-cípios reiteram a inviabilidade de qualquer pacto federativo e tributário, lançando-se auma fuga para frente que não lhes oferece senão saídas ilusórias. Governantes de estadose cidades, magicamente transmutadas em empresas pela retórica dos consultores, agemcomo se operassem em um mercado livre e concorrencial de localizações. E, desta forma,a guerra dos lugares contribui de maneira decisiva para multiplicar as rupturas sócio-ter-ritoriais e aprofundar a fragmentação do território.

Desenvolvimento local, empreendedorismo territorial, atração de capitais, marke-ting urbano se transformam nos principais instrumentos de um planejamento estratégicoque não faz senão preparar a submissão da nação fragmentada a uma globalização que seprojeta sobre os lugares. Com o apoio de consultores internacionais ou de agências mul-tilaterais que elaboram e difundem a retórica do planejamento competitivo e das estraté-gias territoriais empreendedoristas, o neo-localismo competitivo, espécie de “paroquialis-mo mundializado”, constitui ele também vetor da fragmentação.

O VELHO REGIONALISMO E AS REDES DE CLIENTELA-PATRONAGEM

Se o neo-localismo competitivo e empreendedorista tem ares pós-modernos e datados anos 90, há que referir a permanência do velho regionalismo no cenário político bra-sileiro e em suas projeções territoriais. Em estudo clássico, Vitor Nunes Leal chamava aatenção para que, longe de ser simples sobrevivência ou resquício do passado, o corone-lismo constituía forma híbrida de articulação entre forças tradicionais decadentes e a de-mocracia eleitoral moderna.

(...) concebemos o “coronelismo” como resultado da superposição de formas desenvolvidas doregime representativo a uma estrutura econômica e social inadequada. Não é, pois, mera sobrevi-vência do poder privado, cuja hipertrofia constituiu fenômeno típico de nossa história colonial. Éantes uma adaptação em virtude da qual os resíduos de nosso antigo e exorbitante poder privadotêm conseguido coexistir com um regime político de extensa base representativa.

Por isso mesmo, o “coronelismo” é sobretudo um compromisso, uma troca de proveitos entreo poder público, progressivamente fortalecido, e a decadente influência social dos chefes locais, no-tadamente dos senhores de terra (Leal, 1975, p.20)

Em outros termos, o coronelismo era expressão, de um lado, de oligarquias decaden-tes que buscavam (re)negociar as condições de sua reprodução e, de outro, de grupos he-gemônicos em escala nacional que necessitavam ancorar eleitoralmente esta hegemoniasobre o conjunto do território nacional.

Ora, o coronelismo, em suas múltiplas formas e escalas, estruturou parte expressiva doEstado brasileiro; organizou formas de exercício da hegemonia nivelem âmbito nacional e

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assegurou a reprodução do regime oligárquico e das chefias políticas de tipo tradicional nasescalas sub-nacionais. Se o processo de urbanização e industrialização certamente reduziuem muito a força política e econômica dos velhos coronéis, as oligarquias de tipo tradicio-nal ainda detêm, é bom lembrar, expressivo controle de máquinas eleitorais locais e regio-nais, alcançando via de regra uma força político-parlamentar desproporcionalmente grande,quando comparada a sua expressão econômica e social. De outro lado, o modelo de relaçãopatronagem-clientela que fundava, em certa medida, a relação coronel-governo central ana-lisada por Leal, permanece como um dos eixos estruturantes do Estado brasileiro.

Os dois regimes ditatoriais que dominaram a vida política e, em certa medida, im-puseram suas marcas ao processo de modernização da vida brasileira – Vargas, de 1930 a1945, e regime militar, de 1964 a 1985 – foram fortemente centralizadores e, de manei-ra mais ou menos explícita, apontaram as oligarquias locais regionais como adversárias.De 1930 a 1945, estas foram diretamente interpeladas e desafiadas pelo governo central,denunciadas pela retórica e pelos teóricos do regime7 como fator de atraso e ameaça àconstrução nacional. Trinta anos mais tarde, a ditadura militar brandia a bandeira da in-tegração nacional como elemento central de uma estratégia que prometia superar as bar-reiras e limites impostos pelo regionalismo.8 Tanto em um período como em outro, o go-verno federal absorveu, embora de maneira diferenciada, o controle dos processos deindicação dos governadores. Estados e municípios foram postos de joelhos diante de umpoder central que concentrava todos os recursos e todas as competências. Durante a dita-dura militar, organismos regionais centralizados receberam o encargo de ordenar o terri-tório por cima das autoridades estaduais.

Certamente, tanto durante o Estado Novo quanto sob o regime militar, muitas ve-zes a intervenção do poder central acabou reentronizando velhos grupos ou engendrandonovas oligarquias (CPDOC, 1996). Mas, o fato é que, em quaisquer circunstâncias, pode-rosos eram os instrumentos para aquietar insatisfações e atender interesses localizados, en-quanto, simultaneamente, o governo federal exercia o poder de maneira soberana, incon-testável e, às vezes, brutal.

É com o processo de redemocratização, em 1945 e em 1985, que as relações entrepoder central e grupos dominantes com projeção local e/ou regional seriam redefinidas.Referindo-se à democratização que se seguiu à queda do Estado Novo, Leal observa queo fim da ditadura viera aumentar o poder de barganha de grupos dominantes locais. Omesmo processo parece ter-se produzido após a Constituição de 1988, embora em con-texto histórico diferente e com personagens quase sempre renovadas. Com efeito, a de-mocracia eleitoral impõe novos modos de articulação da hegemonia e das relações entregrupos dominantes em âmbito nacional e sub-nacional.

Não foram, porém, apenas os regimes autoritários que se propuseram a eliminar asbases políticas e institucionais das oligarquias regionais e suas formas “atrasadas” de exer-cício do poder e uso do aparelho estatal. Também as ideologias desenvolvimentistas, emseus inúmeros matizes, prometeram que a industrialização e urbanização conduziriam,enfim, à modernização da sociedade e do Estado brasileiros. Apenas para citar um exem-plo, vale lembrar que o Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste, em seufamoso relatório, propugnava uma plataforma desenvolvimentista e industrialista queenunciava claramente a necessidade da modernização também das elites dirigentes:

“Durante muitos anos o esfôrço da industrialização terá como objetivo reduzir o desem-prêgo disfarçado nas zonas urbanas, além de intensificar o processo de formação de nova classe

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7 Oliveira Vianna, AzevedoAmaral, Lourival Fontes, Fran-cisco Campos, Cassiano Ricar-do, entre outros.

8 “A Política de Integração Re-gional <...> repele a limitaçãoregional, a curto e médio pra-zos, do processo econômicobrasileiro” (Presidência da Re-pública, 1971, p. 27).

dirigente na região, até o presente orientada quase exclusivamente por homens ligados a umaagricultura tradicionalista e alheios à ideologia do desenvolvimento (GTDN, 1959 p.54 – ên-fase do autor)

Transcende o escopo deste trabalho o exame das origens e razões da longevidade dospadrões clientelísticos que perseveram nos processos de constituição e legitimação das re-presentações políticas em grande parte do espaço nacional, inclusive em grandes cidades.O fato que se faz necessário reconhecer é que as redes de patronagem/clientela, que tecemboa parte do Estado brasileiro, estabelecem formas de defesa e negociação de interessessegmentados totalmente estranhos e alheios a políticas e projetos nacionais. A incapaci-dade continuada dos partidos políticos brasileiros de se constituírem em verdadeiros par-tidos nacionais é apenas uma das conseqüências, e não a menos grave, desses processos. Étambém, sem dúvida, um importante fator de sua reprodução.

O processo de fragmentação clientelística, em que cargos e recursos públicos sãomercadejados nas trocas de votos e apoios cruzados entre forças e coalizões políticas na-cionais e sub-nacionais, aponta para algo muito mais profundo e grave que a crise éticado homem público brasileiro, como repete a retórica quase sempre vazia das mesmas per-sonagens que encenam o drama. Na verdade, estamos diante de novas e reiteradas mani-festações da forma através da qual se estrutura, reproduz e exerce a dominação política nopaís e, de modo mais concreto, a forma como funciona o aparato estatal brasileiro, emseus múltiplos níveis e instâncias.

Este padrão de constituição de interesses territorializados tem importante conse-qüência na escala nacional, na medida em que reproduz e reforça formas pretéritas de ar-ticulação entre escalas: local, estadual e nacional. O Congresso Nacional se transforma emuma Câmara Federal de Vereadores. Abstraídos os atos reiterados de corrupção individualou de quadrilhas, não se vislumbra hoje qualquer possibilidade de incluir na agenda denosso Congresso, tal como está fadado a se constituir a cada eleição o debate acerca deprojetos nacionais, de formas de equacionar e combater os riscos de fragmentação da na-ção e do território.

Assim, regionalismo e clientelismo tradicionais, longe de serem meros fantasmas deum passado que teima em assombrar nossa sociedade e nosso Estado, por paradoxal quepareça, se reatualizam e enrijecem a partir do momento em que a democratização refor-ça o papel das eleições e, em conseqüência, daqueles chefes e grupos políticos locais ouestaduais que conseguem montar máquinas eleitorais eficazes. Evidentemente, o proble-ma não está nas eleições e, menos ainda, na democracia; ao contrário, está, pelo menosem parte, no déficit de democracia que consagra um Estado que permanece fora do al-cance de controles sociais efetivos. Apropriado, patrimonialística ou tecnocraticamente,por elites – tradicionais, modernizantes, não raras vezes híbridas –, o fato é que esta for-ma de Estado nacional, contraditoriamente, contribui também para a fragmentação po-lítica, econômica e, certamente, territorial da nação.9

Grandes projetos, neo-localismo competitivo e empreendedorista, velhos regionalis-mos e localismos, eis 3 poderosos vetores que apontam e operam na direção da fragmen-tação. Some-se o fato de que, muitas vezes, coalizões articulam e associam estas tendên-cias e seus agentes, aumentando seu potencial de disrupção. É o que acontece, porexemplo, quando empresas operando em escala transnacional se associam a grupos tradi-cionais para constituir as irão adquirindo bases de sustentação e pressão em favor de umdeterminado projeto. É o que acontece, também, quando grupos tradicionais passam por

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9 O paradoxo ganha tons ver-dadeiramente dramáticos quan-do se evidencia que os três úl-timos mandatos presidenciaisforam exercidos por duas li-deranças político-partidáriassurgidas no ocaso da ditadura,enraizadas política e cultural-mente no estado de São Pauloe expressão do que ali haveriade mais moderno – a classetrabalhadora do espaço indus-trial-metropolitano (PT) e as eli-tes burguesas esclarecidas(PSDB). Vocacionadas e origi-nalmente comprometidas coma modernização do estado e dademocracia brasileiras, estas li-deranças, assim como as for-ças políticas e sociais que asconstituíram, acabaram, cadauma a seu modo, engajadasem alianças que reafirmaram aforça política das redes de pa-tronagem-clientela, reforçaramoligarquias de tipo tradicional,colocando no centro do proces-so político atores que apare-cem como anões – sem jogode palavras – com relação à ta-refa gigantesca de construirum projeto nacional nos mar-cos da formas contemporâ-neas da globalização.

processos de renovação e/ou composição com segmentos renovadores, gerando coalizõeshíbridas em que se combinam as práticas dos velhos caciques com a agressividade com-petitiva dos empreendedores. Estudos aprofundados destas formas de coalizão e consti-tuição de alianças e convergências trans-escalares muito ajudariam à leitura e elucidaçãode processos decisórios que se passam nas entranhas do poder federal.

AS BASES TEÓRICO-CONCEITUAIS DA FRAGMENTAÇÃO

Certamente que as forças sociais que sustentam cada uma das práticas e dinâmicasacima alinhadas não operam num espaço puramente eleitoral, nem se manifestam apenasatravés de porta-vozes políticos. A cada momento histórico, ou em cada conjuntura espa-ço-temporal específica, estas forças contam com o apoio de acadêmicos e experts que sus-tentam a coerência, pertinência e consistência históricas e teórico-conceituais, assim co-mo metodológicas, de seus modos particulares de intervenção territorial. Embora nãosejam diretas e imediatas as relações entre produção de modelos de desenvolvimento ur-bano-regional, metodologias de planejamento e práticas sociais, há um laço que articulaestas distintas instâncias da experiência social. Em termos mais simples, é possível dizerque práticas e teorias de organização territorial ou, se preferível, de estruturação e trans-formação territoriais, dialogam e interagem.

Examinam-se a seguir os referenciais teórico-conceituais que têm amparado práticasaqui examinadas, em particular os GPIs e o neo-localismo competitivo.

GPIS E A TEORIA DOS PÓLOS DE CRESCIMENTO

Nos anos 70, os trabalhos de François Perroux vão conferir direito de cidadania teó-rica ao conceito de pólo de crescimento ou desenvolvimento. Em sua crítica ao modelos neo-clássicos de equilíbrio espacial, Perroux (1955)10 mostrava que a heterogeneidade e o de-sequilíbrio, e não a homogeneidade e o equilíbrio, constituiriam as formas através dasquais o crescimento se manifestaria no espaço econômico. Se a obra de referência teóricade Perroux se referia a um espaço econômico abstratamente concebido, que não deveriaser confundido com o que chamava de espaço geonômico ou banal, o fato é que suas no-ções e conceitos foram apropriados – vulgarizados, sugere Egler (1993) – e traduzidos emtermos de uma teoria da dinâmica territorial propriamente dita. Na esteira de Perroux,Boudeville (1973) e outros vão opor a noção de região polarizada à de região homogênea,herdada da geografia humana. Estava elaborado o fundamento teórico que autorizariaabandonar progressivamente as antigas macro-regiões que eram o espaço no qual estavamenraizados teórica e historicamente os modelos de planejamento regional do tipo Sudene.O passo seguinte era mais ou menos inevitável: de descritiva, a teoria do crescimento es-pacialmente desequilibrado através de pólos de crescimento se tornaria prescritiva, dandoorigem a políticas e estratégias de polarização.

O abandono das velhas regiões homogêneas também se justificava teoricamente pelasanálises conduzidas por Perroux sobre as relações entre Estado, grande empresa e territó-rio. Egler destaca a relevância da teoria perrouxiana de economia dominante, que, em con-fronto direto com o mundo abstrato da concorrência perfeita, enfatizava o papel das gran-des empresas e de sua capacidade para gerar “zonas ativas”, portadoras de uma “dinâmica

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10 Mais ou menos à mesmaépoca, foi também de granderelevância o trabalho de Myrdal(1960), segundo o qual umefeito de causação circular le-varia ao agravamento das dis-paridades regionais, não haven-do razões para esperar, comopropunham os pensadores neo-clássicos, que estas desapare-ceriam graças ao funcionamen-to do mercado e à circulaçãode fatores num espaço livre debarreiras.

da desigualdade”, “que produz resultados semelhantes às inovações schumpeterianas, no que dizrespeito ao rompimento do ‘circuito estacionário’ da economia e de promoção do desenvolvimen-to”. Caberia, então, “ao Estado buscar plasmar, através de ‘pólos de crescimento’ situados no in-terior do espaço econômico nacional, as forças motrizes que atuam na economia internacional.”(Egler, 1993, p.7). Assim, a “questão regional passa (...) a ser um aspecto subordinado da ques-tão nacional”, oferecendo àquelas teorias “um excelente argumento para a utilização do terri-tório nacional como instrumento de afirmação do Estado” (Egler, 1993, p.8).

Ora, não há como não reconhecer o eco destas teorias na convocação lançada peloPrograma de Integração Nacional de 1970 para romper os limites regionais da Amazô-nia e Nordeste, que oferecem “um quadro de soluções limitadas” (Presidência da Repúbli-ca, 1970).

Não se encontra nas proposições atuais de GPIs a invocação das teorias do desenvol-vimento polarizado, caídas em desgraça sobretudo por sua forte vocação estatista. Na ver-dade, seria difícil identificar uma teoria, merecedora desta qualificação, na justificativadestes projetos; ali onde comparece alguma retórica mais elaborada, quando muito se fa-la de redes logísticas – quando se trata de portos e investimentos viários – ou de nichoscompetitivos a serem explorados, com baixo custo da energia, a justificarem os projetosenergético-mínero-metalúrgicos, e baixo custo da terra para projetos agro-florestais.11 Ateoria dos nichos competitivos nos leva diretamente ao campo das teorias que subjazemàs propostas de competitividade territorial e ao neo-localismo empreendedorista.

A TEORIA DAS VANTAGENS COMPETITIVAS NO TERRITÓRIO

Se há um pensador cuja trajetória intelectual nos últimos 30 anos pode ser tomadacomo testemunha capaz de narrar as transformações por que passou o campo do planeja-mento urbano e regional, este é Manuel Castells. Nos anos 70, assumiu e foi celebradocomo o mais refinado e representativo de quantos fizeram a aplicação do estruturalismomarxista francês ao território e, mais particularmente, à cidade. Nesta condição, foi por-ta-voz de uma radicalidade que rejeitava até mesmo a pertinência, menos ainda a relevân-cia, de uma sociologia ou uma questão urbanas, denunciadas como véus ideológicos queescondiam e tornavam ininteligível a cidade, locus das relações contraditórias (e conflituo-sas) de reprodução da força de trabalho (Castells, 2000).

Ora, é este mesmo pensador que no início dos anos 90, em um texto emblemático,se perguntava: “O mundo mudou: pode o planejamento mudar?” (Castells, 1990). Nes-ta palestra, proferida na Conferência Anual da Association of Collegiate Schools of Plan-ning, Castells formulou de maneira incisiva temas e questões que viria posteriormente adesenvolver e sofisticar. Via, então, no desmantelamento do socialismo real, razões parareconhecer: a) “o mercado como o menos irracional mecanismo para alocar recursos es-cassos”; b) “a falência histórica do estatismo” (p.4).12 Neste novo mundo, espaço unifica-do pela soberania do capitalismo globalizado, não restava aos lugares senão tentarem re-sistir ao movimento dos fluxos, e para dar eficácia a esta resistência deveriam recorrer aoplanejamento estratégico:

A flexibilidade, globalização e complexidade da nova economia mundial requerem o desen-volvimento do planejamento estratégico, apto a introduzir uma metodologia coerente e adaptati-va na multiplicidade de significados e sinais da nova estrutura de produção e gestão (Castells,1990, p.14).

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11 É verdade que tanto no ca-so de grandes projetos agro-florestais (expansão da soja naAmazônia) quanto energéticos(grandes aproveitamentos hi-drelétricos), a questão da com-petitividade e dos baixos cus-tos tem sido questionada, umavez que os cálculos custo/be-nefício não consideram as per-das sociais e ambientais resul-tantes dos GPIs. Para umadiscussão da questão no casode projetos hidrelétricos, ver,por exemplo, Vainer, 2005.

12 A ruptura decisiva de Cas-tells com toda sua produçãodos anos 60 e início dos anos70 fica clara no seu reconheci-mento de alguns dos pressu-postos básicos da Escola deChicago, alvo principal de seupesado, embora nem sempreconsistente, ataque à sociolo-gia urbana. “<…> la ciudad,tanto en la tradición de la socio-logía urbana como en la con-ciencia de los ciudadanos entodo el mundo, implica un siste-ma específico de relaciones so-ciales, de cultura (...)” (Borja eCastells, 1997, p. 13).

A senha dos novos tempos: planejamento estratégico. A adesão de Castells apenasilustra um movimento intelectual que, ao longo dos anos 1990, conferiria à palavra estra-tégia e à expressão planejamento estratégico lugar de honra no jargão dos planejadores. Emum primeiro momento, Sun Tzu, Clausewitz e outros menos votados foram importadosdas escolas militares para as escolas de business, em primeiro lugar a escola-líder – a Har-vard Business School. Em seguida, com os devidos cuidados e adaptações, foram condu-zidos às escolas e práticas de planejamento regional e urbano.

Esta transposição está fundada numa convicção básica: é possível e, mais que isso, énecessário estabelecer uma analogia entre, de um lado, empresas capitalistas concorrendoem um mercado livre e, de outro, cidades e regiões competindo em um mercado globali-zado de localizações. É este o problema teórico, mas também metodológico e operacio-nal, que se resolveria pela transposição do planejamento estratégico para a gestão territo-rial. A cidade e a região empreendedoras são, isto é, devem ser, antes de mais nada,concebidas e planejadas como uma empresa (Vainer, 2002). Em um mundo cada vez maispragmático, trata-se agora não apenas de explicar os sucessos e os insucessos de cidades eregiões, mas, sobretudo, formular os planos de guerra, os planos estratégicos que as con-duzirão à vitória.

Se o planejamento em estados capitalistas emergiu no pós-guerra como um instru-mento para complementar, ajustar ou corrigir tendências e processos supostamente per-versos gerados pelo funcionamento das forças de mercado, agora, como anunciou Cas-tells, o mundo mudou... e o planejamento deve mudar. Agora, o planejamento e oplanejador devem ter em vista como favorecer a racionalidade própria ao mercado: na or-dem do dia o planejamento orientado pelo e para o mercado – market oriented planninge market friendly planning.

Assim, as práticas concretas que coalizões locais adotam na promoção da guerra doslugares, aprofundando os processos de fragmentação territorial, encontram-se ancoradasem teorias de circulação internacional, altamente valorizadas no mercado das agênciasmultilateriais e dos consultores internacionais.13

É bom não esquecer que os teóricos do planejamento estratégico se apóiam em tãoabundante quanto repetitiva literatura que vai reinventar as virtudes das dinâmicas tecno-lógicas e econômicas locais. Capital social, interfaces e interações dos clusters ou arranjosprodutivos territorializados, solidariedades, redes de pequenos produtores independentes,tudo isso emerge em espaços dinâmicos de um outro mundo capitalista, livre do capitalfinanceiro e dos oligopólios. Tomando alguns exemplos vistos como sucesso, como a ine-xorável Terceira Itália, esta literatura promete o paraíso às cidades e regiões que forem ca-pazes de explorar suas vantagens, superar os conflitos internos através de uma atitude coo-perativa, enfrentar confiantes e sem temores o mundo hostil da globalização. Afinal, olugar estaria se revalorizando pelo que tem de flexível, diverso, específico, já que se esta-ria no limiar de uma nova era, caracterizada pelo “fim da centralização, da concentração,da massificação e da estandardização e [a vitória] de uma utopia antifordista, caracteriza-da pela flexibilidade, pela diversidade e, em termos espaciais, pelo localismo” (Ash Amine Kevin Robins, apud. Brandão, 2005).

Não se pretende ter desenvolvido aqui uma crítica extensiva e aprofundada dos fun-damentos teórico-conceituais das concepções e práticas que contribuem para a fragmen-tação territorial e que são hoje hegemônicas no campo do planejamento territorial – ur-bano e regional. Outro era o objetivo desta sessão: identificar os fundamentos teóricosdestas práticas e sugerir que a crítica às práticas não será completa, nem mesmo possível,

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13 Apenas um exemplo: o Pro-grama de Administração Muni-cipal e Desenvolvimento de In-fra-Estrutura Urbana (PRODUR),financiado pelo Banco Mundiale levado à frente pelo governobaiano, entre 1997 e 2004,exigia que os municípios inte-ressados em obter recursospara obras de infra-estrutura eoutras elaborassem um planoestratégico (Browne, 2006).Para um discussão inicial acer-ca do mercado de consultoriasurbanas, ver 2003.

se não estiver, ela também, calcada em um esforço teórico que submeta à crítica as teoriase conceitos com que operam planejadores, decisores e dirigentes políticos.

AS BASES SOCIAIS DA FRAGMENTAÇÃO

Nas sessões anteriores buscou-se alinhar os vetores que operam a fragmentação emcurso do território nacional, bem como as referências teóricas e retóricas que apóiam se-mântica e conceitualmente as práticas fragmentadoras. Acontece, porém, que se não sãopuras manifestações epifenomênicas das estruturas, as práticas tampouco se explicam pe-las explicações que elas mesmas e seus operadores avançam como justificativas. Dito deoutra maneira, embora as teorias contribuam para reforçar práticas, não é naquelas que seencontra a origem destas. Em sua gestação e na luta pela sua imposição estão segmentose coalizões sociais, com interesses e objetivos que apontam para determinadas formas deapropriação, controle e uso do território e dos recursos que lhe estão associados.

Desde Vitor Nunes Leal (1975) está desvendada, em boa medida, a natureza do ve-lho regionalismo e de suas formas típicas de dominação – as redes de patronagem-clien-tela. São, com efeito, em primeiro lugar, expressão de grupos dominantes tradicionais,com projeção local e regional e que, decadentes, abdicam de qualquer pretensão hegemô-nica e se limitam a negociar com o Estado central, de forma permanente, o comércio debenesses em troca de apoio político.

Mas haveria que agregar à análise original de Leal novos elementos capazes de darconta da complexidade resultante das transformações por que passou a sociedade brasilei-ra nos últimos 50 anos. Em particular, parece necessário observar que alguns grupos tra-dicionais foram capazes, sob a proteção da ditadura militar, de construir, ao lado das re-des de clientela, novas fontes de poder econômico e político. Em alguns casos, isto foialcançado por alianças com grupos nacionais e mesmo internacionais; em outros casos, acaptura e mobilização eficaz de diferentes tipos de recursos estatais (subsídios, contratos,corrupção, etc) propiciaram processos localizados de acumulação que acabaram por tor-nar nacionais, quando não internacionais, alguns grupos econômicos locais. Estas formashíbridas certamente ajudam a desvendar alguns paradoxos, como a existências de grupospolíticos que, simultaneamente, fazem prova de modernidade através da presença em se-tores avançados do ponto de vista econômico e tecnológico – setor elétrico, telecomuni-cações, etc –, ao mesmo tempo em que conduzem seus grotões e currais com a mesma econhecida brutalidade de seus ancestrais.

Por sua vez, o neo-localismo competitivo se estrutura, via de regra, a partir de posi-ções adquiridas ou pretendidas em circuitos produtivos que, de maneira direta ou indire-ta, se conectam verticalmente nas escalas nacional e, sobretudo, internacional. No caso deposições já adquiridas, não raro se observa a forma do neo-paroquialismo mundializado,de que é exemplar o agrarismo aggiornado de certos grandes proprietários fundiários pre-sentes em setores fortemente exportadores. A faceta urbana destes interesses se encontraem cidades médias que se fecham ao espaço regional e nacional. Assim, nestas cidades, cu-jas elites promovem como ilhas de prosperidade e a televisão de tempos em tempos apre-senta como “o Brasil que deu certo”, se assiste à forte difusão de ideologias do que se po-deria chamar de um exclusivismo territorial, algumas vezes próximas da xenofobia.14

No caso de cidades médias e grandes, o neo-localismo competitivo aparece tambémcomo expressão ideológica e política de coalizões que buscam estabelecer projetos hege-

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14 É sabido, embora não hajaestudos abrangentes detalha-dos a respeito, quão extensivaé a difusão de práticas de res-trição à entrada em grande nú-mero de municípios médios dointerior do país, buscando im-pedir, ou pelo menos dificultar,a entrada de imigrantes po-bres. Ver, a este respeito, Vai-ner, 1996.

mônicos pela construção de um patriotismo cívico que se sobreponha aos conflitos. SeBarcelona é hoje quase o modelo mitológico destas coalizões, na verdade o DNA de seuempreendorismo também pode ser encontrado nas cidades americanas estudadas por Mo-lotch (1976).

Se o neo-localismo parte, por assim dizer, de um esforço de grupos dominantes lo-cais para encontrar inserção global que favoreça uma saída para a crise; no caso dos GPIs,ao contrário, grupos locais são simplesmente paisagem, ou, na melhor das hipóteses, só-cios menores de dinâmicas territoriais que se elaboram e decidem nas esferas nacional einternacional. Pela própria massa de capital, território e recursos ambientais mobilizados,os interesses que se movem através dos GPIs se situam nas grandes corporações nacionaise multinacionais. Como visto, no passado, e ainda no presente para certos setores, o Es-tado desempenha papel central na viabilização financeira, industrial e política dos em-preendimentos; isto significa que a legibilidade destes processos passa por um exame dasformas prevalecentes de representação e disputa de interesses no interior mesmo do apa-relho estatal.

Cabe, porém, destacar que as mediações entre interesses globais e a implantação lo-calizada dos grandes projetos podem ser várias e complexas. Assim, por exemplo, ao mes-mo tempo em que o GPI engole o lugar ou a região, grupos de interesse local podem acio-nar mecanismos e práticas típicas do neo-localismo competitivo, oferecendo a grandescapitais benefícios e vantagens, além de apoio político. Estas vantagens, em muitos casos,assumem a forma de isenções fiscais ou ambientais, cujos custos sociais serão assumidospelo conjunto da sociedade local, ou mesmo, em certos casos, nacional. O próprio esta-do nacional tem incorrido em práticas deste tipo, quando, por exemplo, através de em-presas energéticas estatais, disponibiliza energia elétrica a preços subsidiados para o fo-mento de indústrias eletro-intensivas.

Os padrões e formatos de organização territorial, assim como os vetores de fragmen-tação, não se atualizam senão porque são expressão de forças sociais e econômicas que seestruturam em coalizões de poder, quase sempre associando grupos locais, regionais, na-cionais e internacionais. Avançando um pouco mais, seria possível sugerir que a identifi-cação e análise destas múltiplas formas de organização dos interesses dominantes trariamimportantes elementos para uma análise das formas de estruturação e operação do Esta-do brasileiro.15 Afinal, o que é o Estado brasileiro pós-Constituição de 1988 senão, emboa medida, a combinação heteróclita destas (e outras) múltiplas formas de organização,manifestação, articulação e defesa de interesses corporativos e segmentários, em que dife-rentes coalizões de grupos disputam recursos – inclusive territoriais – nas escalas local, es-tadual, regional e nacional?

DESAFIOS

A reversão das tendências dominantes, que hoje submetem a dinâmica territorialbrasileira às forças fragmentadoras, não é uma operação teórica, muito embora não pos-sa abdicar de uma teoria. Tampouco é uma operação metodológica, embora certamenteestejamos desafiados a elaborar metodologias inovadoras. Também não pode ser vista co-mo uma simples operação institucional, o que não significa que possa ir adiante sem des-montar mecanismos institucionais construídos nos últimos anos e inventar novos modosde institucionalizar práticas republicanas e democráticas.

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15 Apenas para citar as poten-cialidades deste tipo de abor-dagem. O Setor Elétrico brasi-leiro tem em carteira doismega-empreendimentos, am-bos na Amazônia: a Usina Hi-drelétrica de Belomonte, no rioXingu, e as Usinas Hidrelétricasde Jirau e Santo Antônio, no rioMadeira. Pelos vultososos in-vestimentos e por seus impac-tos, se levados adiante estesdois projetos redesenharão tan-to a bacia do rio Xingu e, decerta maneira, parte expressi-va da Amazônia Oriental, quan-to a do rio Madeira e a Amazô-nia Ocidental. Estes projetosestão em disputa e são levadosadiante por diferentes coali-zões. O paradoxal é que o esta-do brasileiro, de uma maneiraou de outra, ele também seg-mentado, se divide: a Eletronor-te defende com unhas e denteso projeto Belomonte, enquantoFurnas, associada à Oder-brecht, se lança à luta e a todotipo de lobby para asseguraruma decisão favorável ao proje-to Madeira.

Mas um novo projeto territorial, inseparável de um novo projeto nacional, remete, so-bretudo, à questão da constituição de sujeitos políticos. Desencarnados de grupos sociaisque os sustentem, novas projetos territoriais não serão mais que exercícios diletantes, pro-dução de planos natimortos.

Cabe, pois, aos analistas e aos que pretendem se engajar seriamente na elaboração deum novo projeto territorial, perscrutar na sociedade brasileira se, e em que medida, emer-gem forças sociais capazes de assumi-lo, encarná-lo.

Com uma pequena dose de otimismo e certo esforço, é possível vislumbrar a emer-gência destas forças. São os movimentos sociais territorializados que elaboram, emboramuitas vezes de maneira ainda insuficiente, novos projetos para suas regiões. Assim, porexemplo, o Movimento de Defesa da Transamazônica e do Xingu, os movimentos de atin-gidos por barragens, os movimentos de luta contra o deserto verde implantado pelo com-plexo agro-florestal. Não seria exagero afirmar que, pela primeira vez em nossa história,movimentos populares se confrontam, de maneira direta e consciente, com a problemá-tica da estruturação e desenvolvimento territoriais.

Há que considerar também a consolidação de organizações populares de âmbito na-cional: Movimento dos Sem Terra, Movimento de Pequenos Agricultores, Central de Mo-vimentos Populares. Também as Centrais Sindicais são hoje forças nacionais – CUT, CGT,Força Sindical CONTAG, Federações de Servidores. Enquanto partidos e grupos dominan-tes parecem absolutamente despreparados para a nacionalização da política, as forças po-pulares importantes, ao contrário, se mostram vocacionadas para a escala nacional.

Seria certamente um equívoco exagerar a consistência e amadurecimento das ba-ses sociais do que poderia vir a ser um novo projeto territorial em escala nacional. Masnão se pode desconhecê-las, mesmo porque elas convocam acadêmicos e planejadores –os poucos que ainda sobrevivem no Estado brasileiro – a intensificarem a reflexão e odiálogo.

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Carlos B. Vainer é profes-sor do Instituto de Pesquisae Planejamento Urbano e Re-gional IPPUR-UFRJ. E-mail: [email protected]

Artigo recebido em maio de2007 e aprovado para publi-cação em julho de 2007.

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A B S T R A C T The recent history of Brazilian territorial planning can be describedas a continuous although not linear process of its political discontruction. This fact results fromthe territorial fragmentation of the country itself, defying all those that are concerned with anational development project. The article aims at identifying and analizing the main factorsof this process: huge investment projects, competitive neo-localism and old regionalism, withits patriomnialistic networks. Are also examined the teoretical references of the hugeinvestment projects and, particularly, the competitive neolocalism, considered as the mainmodel diffused through dependent economies by multilateral agencies and internationalconsultants. Finnally, are discussed some emerging trends that seem able to neutralize thevectors of fragmentation, leading to a national project in which territorial planning shouldhave a central role.

K E Y W O R D S National development project; territorial planning; neo-localism;huge investment projects.

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DESIGUALDADESSOCIOESPACIAISNAS CIDADES DO AGRONEGÓCIO1

D E N I S E E L I A SR E N A T O P E Q U E N O

R E S U M O No Brasil, a territorialização do capital e a oligopolização do espaço agrá-rio têm promovido profundos impactos socioespaciais, tanto no campo como nas cidades. Isto ex-plica em parte a reestruturação do território e a organização de um novo sistema urbano, mui-to mais complexo – resultado da difusão da agricultura científica e do agronegócio globalizados– e que têm poder de impor especializações produtivas ao território. Neste artigo, defende-se a te-se de que é possível identificar no Brasil agrícola moderno vários municípios cuja urbanização sedeve diretamente à consecução e expansão do agronegócio, formando-se cidades cuja função prin-cipal claramente se associa às demandas produtivas dos setores associados à modernização da agri-cultura – sendo que nestas cidades se realiza a materialização das condições gerais de reproduçãodo capital do agronegócio. Para tanto, são apresentados alguns pressupostos que explicariam estetipo de cidade, que denominamos de cidade do agronegócio. Da mesma forma, considerando quea difusão do agronegócio se dá de forma social e espacialmente excludentes, promovendo o acir-ramento das desigualdades, buscamos mostrar algumas das formas como elas se reproduzem nascidades do agronegócio. A moradia é a principal variável de análise destas desigualdades.

P A L A V R A S - C H A V E Agricultura científica; agronegócio; reestruturaçãourbana; cidade do agronegócio; desigualdades socioespaciais.

INTRODUÇÃO

A aceleração da urbanização e o crescimento numérico e territorial das cidades estãoentre os mais contundentes impactos do processo de globalização econômica. No Brasil,sob a égide da revolução tecnológica, ocorre um intenso processo de urbanização, trans-formando seu espaço geográfico, cuja organização, dinâmica e paisagem contrastam comas existentes antes do atual sistema, e que conforme a denominação de Santos (1985,1988, 1996), classificamos de período técnico-científico-informacional.

A expansão dos modernos sistemas de objetos (Santos, 1994, 1996), especialmente as-sociados aos transportes, às comunicações, à eletrificação e ao saneamento, equipou o ter-ritório nacional para a modernização agrícola e industrial, assim como para a intensifica-ção das trocas comerciais, possibilitando a integração territorial do país, interligando áreasaté então desconectadas. O resultado foi uma significativa dispersão espacial da produçãoe do consumo, com um conseqüente processo de especialização da produção, estreitandoas relações entre as diferentes regiões do país, multiplicando a quantidade de fixos e flu-xos, de matéria e de informação por todo o território nacional, e disseminando diferen-tes arranjos produtivos.

Tudo isso fez da urbanização brasileira contemporânea um fenômeno complexo e di-ferenciado, dada a multiplicidade de variáveis que nela passam a interferir. Quanto maior

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1 Trabalho apresentado noXII Encontro da AssociaçãoNacional de Pós-Graduaçãoe Pesquisa em Planejamen-to Urbano e Regional, de 21a 25 de maio de 2007, nacidade de Belém (Pará). Opresente artigo é fruto deestudos desenvolvidos pe-los autores no projeto inte-grado de pesquisa intitulado“Economia Política da Urba-nização do Baixo Jaguaribe(CE)”, que contou com oapoio do CNPq.

e mais extensa se torna a divisão do trabalho, mais intenso e complexo é o processo de ur-banização. Paralelamente, ocorre um grande crescimento populacional, culminando emuma nova divisão territorial e social do trabalho, uma nova repartição dos instrumentosde trabalho, do emprego e dos homens e mulheres no território do país.

No período de cinqüenta anos ocorre uma verdadeira inversão da distribuição da po-pulação no Brasil, com uma generalização da urbanização da sociedade e do território.Com a globalização, reestruturaram-se a produção e o território preexistentes, desorgani-zando as estruturas, as funções e as formas antigas. Cada vez que o território é reelabora-do para atender à produção globalizada, superpõem-se novos fixos artificiais, aumentan-do a complexidade dos seus sistemas técnicos e de suas rugosidades.

O dinamismo da produção do território brasileiro das últimas décadas pode ser re-velado pela reestruturação produtiva da agropecuária e da indústria; pela expansão do co-mércio e dos serviços; pelas novas localizações da indústria, em parte propiciadas pela lu-ta dos lugares pelos investimentos produtivos; pela expansão das indústrias de basetecnológica; pelo aumento da quantidade e qualidade do trabalho intelectual; pela expan-são de novas formas de consumo; pelos intensos movimentos migratórios, entre outros.

Uma das vias de reconhecimento da sociedade e do território brasileiros atuais é oestudo da reestruturação produtiva da agropecuária, que se processa nas últimas décadas.Desde então, organiza-se e difunde-se um novo modelo econômico de produção agrope-cuária, que aqui denominamos de agronegócio. Muitos novos espaços agrícolas são dis-ponibilizados à produção agrícola moderna nas últimas décadas.

Nesse contexto, também o semi-árido e os cerrados nordestinos, que, de certa forma,compunham o exército de lugares de reserva, tornaram-se atrativos e foram ou estão sendoincorporados ao agronegócio, especialmente os vales úmidos (São Francisco, Açu, Jaguari-be), associados à fruticultura, e os cerrados (sul do Maranhão, do Piauí e oeste da Bahia),associados à expansão da produção de soja, ampliando formas intensivas de produção.

Dentre as características do agronegócio globalizado está sua forte integração à eco-nomia urbana, gerando uma extensa gama de novas relações campo-cidade, diluindo, emparte, a clássica dicotomia entre estes dois subespaços. As cidades próximas às áreas de rea-lização do agronegócio tornam-se responsáveis pelo suprimento de suas principais de-mandas, seja de mão-de-obra, de recursos financeiros, aportes jurídicos, de insumos, demáquinas, de assistência técnica etc, aumentando a economia urbana e promovendo re-definições regionais – denotando o que Milton Santos (1988, 1993, 1994, 1996, 2000)chamou de cidade do campo. Considerando nossos estudos atuais, acreditamos que pode-mos adaptar a noção de cidade do campo para cidade do agronegócio para classificar algu-mas das cidades, locais e médias, do Brasil agrícola com áreas urbanas.

Esta noção deve ser vista como a materialização das condições gerais de reproduçãodo capital do agronegócio globalizado, cujas funções principais associam-se às crescentesdemandas de novos produtos e serviços especializados, o que promove o crescimento dotamanho e do número das cidades no Brasil agrícola moderno, onde se processa a rees-truturação produtiva da agropecuária.

Assim sendo, quanto mais se intensifica o capitalismo no campo, mais urbana se tor-na a regulação da agropecuária, sua gestão, sua normatização. Quanto mais dinâmica areestruturação produtiva da agropecuária, quanto mais globalizados os seus circuitos espa-ciais da produção e seus círculos de cooperação (Santos, 1986a, 1988; Elias, 2003), maiorese mais complexas se tornam as relações campo-cidade, resultando em uma significativa re-modelação do território e na organização de um novo sistema urbano, com a multiplica-

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ção de pequenas e médias cidades, que compõem lugares importantes para a realização doagronegócio globalizado. Da mesma forma, considerando que a difusão do agronegócioglobalizado se dá de forma social e espacialmente excludentes, sua difusão promove o acir-ramento das desigualdades socioespaciais também nas cidades do agronegócio.

O presente artigo tem, assim, o objetivo de discutir esta tipologia de cidade, queaqui denominamos de cidade do agronegócio, assim como as desigualdades socioespaciaisque nela se reproduzem. Como objetos de análise, foram escolhidas algumas cidades quepoderiam ser classificadas como do agronegócio do Nordeste, especialmente Limoeiro doNorte (CE), Petrolina (PE), Balsas (MA) e Barreiras (BA), sendo que as duas primeiras as-sociam-se ao agronegócio da fruticultura e as duas últimas ao agronegócio dos grãos, emespecial da soja.

Vale destacar que cada uma destas cidades polariza uma respectiva região, assumin-do posição de destaque em redes de cidades já consolidadas, reunindo tanto aquelas asso-ciadas ao agronegócio quanto outras que ainda permanecem em padrões tradicionais deprodução, o que configura intensas disparidades intra-regionais. A moradia é a variávelprincipal escolhida para análise, o que leva a constituir um conjunto de processos adja-centes e a evidenciar as especificidades que as distinguem de outras realidades urbanas.

São, a seguir, apresentados alguns elementos metodológicos utilizados, de forma acontribuir com a identificação das interfaces axiais presentes nas cidades supracitadas e aformulação de uma síntese que possa nortear as similaridades entre as realidades percebi-das nos diferentes municípios analisados. São discutidos, também, os principais processosaté aqui constatados, com o objetivo de sistematizar o conjunto de pressões que levam àocorrência dos mesmos, assim como os impactos derivados e as possíveis respostas até aquipropostas pelos diferentes atores. São trabalhados, ainda, alguns elementos relacionados àquestão do déficit habitacional e da condição inadequada de moradia nestes municípios.

URBANIZAÇÃO DISPERSA E EMERGÊNCIA DA CIDADE DO AGRONEGÓCIO

No Brasil, o intenso processo de urbanização das últimas décadas contrasta com opaís do período pré-técnico-científico-informacional, essencialmente agrário. O fenôme-no da metropolização se implanta a partir dos anos 1950 e, há muito, suplanta a classifi-cação inicial que admitia a classificação de nove Regiões Metropolitanas.

Em um primeiro momento da aceleração urbana brasileira ocorre uma crescenteconcentração das atividades econômicas e da população em algumas poucas cidades, quecrescem de maneira caótica. As novas formas de produção e consumo, associadas aos no-vos padrões econômicos e culturais, não poderiam se instalar em outro meio que não odessas grandes cidades, as quais se tornam metrópoles como resultado da aceleração doprocesso de modernização e urbanização que lhes atribui um papel de macro-organizaçãoda economia e do território.

Entre 1950 e 1980, ocorreu uma crescente concentração das atividades econômicase da sua população em umas poucas cidades. Uma parte bastante substancial do incre-mento demográfico do país ocorreu justamente nas áreas metropolitanas, para as quais sedirigiram grandes levas de migrantes, especialmente nas décadas de 1960 e 1970, uma vezque, em razão das economias de aglomeração, as metrópoles tiveram reforçado o seu pa-pel de principais focos da atividade econômica do país.

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Considerando a tendência predominante no capitalismo de algumas áreas acumula-rem a maior parte dos recursos técnicos e econômicos, a base atual da organização da pro-dução brasileira, resultado da herança histórica e da velocidade de difusão das inovações,revela-nos que a reestruturação produtiva se processou de forma mais intensa nas RegiõesSudeste e Sul. Nestas, a difusão de inovações foi mais veloz e complexa, com uma contí-nua renovação das forças produtivas e do território, que responderam com grande rapi-dez às necessidades colocadas pelos agentes econômicos.

Esta seria, de acordo com Santos (1986b, 1993), a Região Concentrada do Brasil, naqual, desde o primeiro momento da mecanização do território, ocorre uma adaptaçãoprogressiva e eficiente aos interesses do capital hegemônico, reconstituindo-se à imagemdo presente, transformando-se na área com maior expressão dos fixos artificiais e dos flu-xos de todas as naturezas. Esta seria a área do país onde o meio técnico-científico-infor-macional (Santos, 1988, 1996) se dá de forma contígua. Mas, mesmo na Região Concen-trada há acumulação dos recursos em certas áreas, e o Estado de São Paulo se destacacomo o seu núcleo principal, onde as inovações mais se difundiram.

Porém, desde a década de 1980, segundo Milton Santos (1993) em seu livro A Ur-banização Brasileira, processa-se uma verdadeira revolução urbana no Brasil. Desde então,a urbanização deixa de ser apenas litorânea e se interioriza, com uma forte tendência àocupação periférica do território, levando à generalização do processo de urbanização tan-to da sociedade quanto do território, desencadeando um incomensurável número detransformações nas áreas mais longínquas do país. Concomitantemente aos processos deurbanização e metropolização, com a construção de grandes cidades desenvolveram-setambém cidades médias e pequenas, tornando muito mais complexa a rede urbana brasi-leira, uma vez que aumentaram tanto os fatores de concentração quanto os de dispersão.A divisão do trabalho resultante, mais intensa e extensa, acabou por consagrar a tendên-cia à ocupação periférica do território nacional.

Diante disso, durante o processo de aceleração da difusão de inovações, as migraçõespassam a ocupar não apenas as regiões metropolitanas, mas também as cidades menores, es-pecialmente nas áreas que de maneira mais rápida reorganizaram a produção e o território.

A adição de produtos químicos, a utilização da biotecnologia, o uso intensivo de má-quinas agrícolas, entre outros, mudando a composição técnica e orgânica da terra (San-tos, 1994), fizeram se difundir também no espaço agrário o meio técnico-científico-infor-macional, o que explica, em parte, a interiorização da urbanização. Processa-se, assim, umcrescimento de áreas urbanizadas também no campo, notadamente nas áreas que se mo-dernizam, uma vez que, entre outras coisas, a gestão do agronegócio globalizado necessi-ta da sociabilidade e dos espaços urbanos.

Embora as grandes cidades se constituam no âmago da dinâmica econômica globa-lizada, outros agentes passam a se apresentar com força para receber e emitir fluxos de vá-rias naturezas e intensidades, o que resulta na criação de uma gama de novas relações so-bre o território. Hoje se conhece uma série de atividades, incluindo as agropecuárias e asagroindustriais, que criam relações que escapam ao seu entorno imediato e buscam nexosdistantes, desenhando uma verdadeira teia de circuitos espaciais de produção e círculos decooperação globalizados (Santos, 1986a; Elias, 2003), sendo que vários destes circuitos ecírculos encontram-se no Brasil agrícola.

O Brasil chega, assim, ao século XXI com uma generalização do fenômeno da urba-nização da sociedade e do território. A conseqüência é a geração de um território altamen-te diferenciado, e muito mais complexo na sua definição, do que o foi no período pré-

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técnico-científico-informacional, o que torna praticamente inviável a continuidade da se-paração tradicional entre um Brasil urbano e um Brasil rural, assim como a falência dosesquemas clássicos de análise da rede urbana, da definição das regiões metropolitanas e dadivisão regional do país. Com isso, revela-se a necessidade de uma revisão de uma série decritérios – em parte até hoje muito utilizados – que considere a complexidade da reali-dade atual.

Diante disso, concordamos com Santos (1993) que é impossível continuar simples-mente dividindo o Brasil entre urbano e rural. Para o autor, uma divisão entre o Brasilurbano com áreas agrícolas e um Brasil agrícola com áreas urbanas refletiria melhor a reali-dade contemporânea do país.

É possível identificar várias áreas nas quais a urbanização se deve diretamente à con-secução do agronegócio globalizado. A reestruturação destas atividades acelera o processode urbanização e de produção de espaços urbanos não metropolitanos, cujos vínculos im-portantes se devem às inter-relações cada vez maiores entre o campo e a cidade. Estas sedesenvolvem atreladas às atividades agrícolas circundantes e dependem delas, em graus di-versos, e cuja produção e consumo se dão de forma globalizada.

Dessa forma, a reestruturação produtiva da agropecuária brasileira está entre os pro-cessos que promovem o aprofundamento da divisão social e territorial do trabalho, con-tribuindo para uma total remodelação do território e a organização de um novo sistemaurbano. As novas relações campo-cidade impostas pelo agronegócio globalizado represen-tam um papel fundamental para a expansão da urbanização e para o crescimento das ci-dades médias e locais, fortalecendo-as, em termos demográficos ou econômicos. E seuselementos estruturantes podem ser encontrados na expansão das novas relações de traba-lho agropecuário, promovendo o êxodo rural (migração ascendente) e a migração descen-dente (Santos, 1993) de profissionais especializados no agronegócio, assim como na difu-são do consumo produtivo agrícola (Santos, 1988; Elias, 2003), dinamizando o terciário e,conseqüentemente, a economia urbana – o que revela que é na cidade que se realizam aregulação, a gestão e a normatização das transformações do campo moderno.

A consecução do agronegócio globalizado se dá com a formação de redes agroindus-triais globalizadas que associam empresas agropecuárias, fornecedores de insumos quími-cos e implementos mecânicos, laboratórios de pesquisa biotecnológica, prestadores de ser-viços, agroindústrias, empresas de distribuição comercial, empresas de pesquisaagropecuária, empresas de marketing, cadeias de supermercados, empresas de fast food etc.E que resultam na intensificação da divisão do trabalho, das trocas intersetoriais, da espe-cialização da produção e em diferentes arranjos territoriais produtivos no campo e nas ci-dades que lhe são próximas, evidenciando o aprofundamento da territorialização do capi-tal no campo e da oligopolização do espaço agrário.

O impacto de todas essas transformações na dinâmica populacional e na estruturademográfica vem sendo intenso. Concomitantemente a uma reestruturação produtivaagropecuária e agroindustrial, ocorre uma revolução demográfica e urbana, marcada porgrande crescimento populacional. Uma das características do processo de modernizaçãodas atividades agropecuárias no Brasil é o desenvolvimento de uma gama muito extensade novas relações campo-cidade, dada a crescente integração da agropecuária ao circuitoda economia urbana. Isto se dá, principalmente, porque o agronegócio globalizado tem opoder de impor especializações territoriais cada vez mais profundas.

Dessa forma, quanto mais se difunde o agronegócio globalizado, mais urbana setorna a sua regulação, e se produzem cidades do agronegócio, que passam a desempenhar

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novas funções, transformando-se em lugares de todas as formas de cooperação erigidas pe-lo agronegócio globalizado e resultando em muitas novas territorialidades. Se a cidade éa materialização das condições gerais de reprodução do capital (Carlos, 2004), a cidade doagronegócio é aquela cujas funções de atendimento às demandas do agronegócio globali-zado são hegemônicas sobre as demais funções.

Nas áreas de expansão do agronegócio globalizado é visível o crescimento da urba-nização e de aglomerados urbanos, assim como a criação de novos municípios. É possí-vel mesmo observar uma rede de cidades do agronegócio, considerando as diferentes de-mandas de seus diversos ramos. Isto pode ser observado especialmente na RegiãoConcentrada, tendo destaque as cidades médias, que já estariam em estágio mais avan-çado de urbanização.

As cidades do agronegócio no Brasil têm-se desenvolvido atreladas às atividades agrí-colas e agroindustriais circundantes, e dependem, em graus diversos, dessas atividades, cu-ja produção e consumo se dão, em grande parte, de forma globalizada. Rio Verde (GO),Sorriso, Primavera do Leste e Rondonópolis (MT), Sertãozinho, Matão e Bebedouro (SP)são exemplos de cidades do agronegócio.

Poderíamos citar alguns exemplos da recente ocupação de lugares de reserva na Re-gião Nordeste, sejam associados à expansão da fruticultura nos vales úmidos, como Petro-lina (PE) e, mais recentemente, Limoeiro do Norte (CE), ou à expansão da soja nos cerra-dos, que se dá em uníssono com a implantação das multinacionais Cargill e Bunge –desestruturando a formação socioespacial anterior, trazendo novas dinâmicas territoriais,políticas e socioculturais ao entorno, como ocorre em Balsas (MA), Uruçuí e Bom Jesus(PI), Barreiras e Luís Eduardo Magalhães (BA).

Luis Eduardo Magalhães é um dos últimos municípios criados como resultado dasnovas formas de uso e gestão do território brasileiro inerentes à expansão do agronegócioglobalizado da soja. Criado no ano de 2000, pertencia ao município de Barreiras, princi-pal centro urbano dos cerrados nordestinos, o primeiro a despontar com a economia atre-lada ao agronegócio da soja no Nordeste, como já apontavam Santos Filho e Fernandes(1988), ainda na década de 1980.

DESIGUALDADES SOCIOESPACIAIS NAS CIDADES DO AGRONEGÓCIO

A difusão do agronegócio globalizado no Nordeste brasileiro, seja de frutas tropicaisou de soja, vem promovendo metamorfoses de inúmeras naturezas. Dentre os impactosnegativos deste processo, destacaríamos: a crescente desarticulação da agricultura de sub-sistência e aumento da participação de empresas agropecuárias no total da produção agro-pecuária regional; a expansão da monocultura e, conseqüentemente, diminuição da bio-diversidade e aumento do processo de erosão genética; a mudança dos sistemas técnicosagrícolas, com difusão de um pacote tecnológico dominado por uma produção oligopoli-zada e muitas vezes impróprio para as condições ambientais regionais, destruindo saberese fazeres historicamente construídos. E ainda: o aumento da concentração fundiária, coma expropriação de agricultores que não detêm a propriedade da terra; o aquecimento domercado de terras, que tem seus preços aumentados, contrariando ainda mais as aspira-ções pela Reforma Agrária; o acirramento da privatização da água, com as novas formasde normatização de seu uso, configurando uma situação de hidronegócio; a formação de

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um mercado de trabalho agrícola formal, com a expansão do trabalho assalariado, sejabraçal ou especializado; a fragmentação do espaço agrário, diferenciando cada vez mais osespaços da produção e compondo arranjos territoriais produtivos agrícolas; o incrementoda economia urbana e das cidades locais e médias; o crescimento desordenado de algumascidades, com o conseqüente aumento das periferias urbanas e carências de infra-estrutura.

São visíveis as novas territorialidades na região Nordeste, no campo e nas cidades,pontos de transformação da natureza, de criação de novas horizontalidades e verticalida-des e da articulação da escala local com a planetária, expandindo o processo de territoria-lização do capital no campo. Mas, a reestruturação produtiva da agropecuária acentua ashistóricas desigualdades socioespaciais, além de criar muitas outras. Dessa forma, se pro-cessa uma produção regulada pelo mercado associado aos novos padrões de consumo ali-mentar de frutas frescas e de derivados de soja, sob o comando de grandes grupos hege-mônicos do sistema alimentar, o que resulta na refuncionalização dos espaços agrários eurbanos e na difusão de especializações produtivas que mantêm traços estruturais da re-gião, dissociados do projeto de formação de uma sociedade mais justa e equilibrada.

Tudo isto vem se refletindo nas cidades do agronegócio, que passam a reproduzir osmesmos problemas urbanos das cidades maiores. Destacaríamos: ausência ou insuficiên-cia de infra-estrutura social (creches, escolas, postos de saúde) nas áreas habitadas pela po-pulação de menor renda; surgimento de áreas de ocupação em situação de risco ambien-tal; favelização nos espaços destinados a usos institucionais e áreas verdes; disseminaçãode vazios urbanos promovendo a especulação imobiliária; loteamentos periféricos clan-destinos desprovidos de infra-estrutura; congestionamento nas áreas centrais por movi-mentação de carga e descarga, dentre outros.

Na busca da compreensão do processo de urbanização e das transformações intra-urbanas vigentes nos pontos luminosos de crescimento econômico associados ao agronegó-cio globalizado nas fronteiras agrícolas da fruticultura e da soja no Nordeste, foram iden-tificados vários processos que se repetem, apesar da diversidade da realidade econômica,sócio-ambiental e cultural presente no semi-árido e nos cerrados nordestinos. Estes pro-cessos se encontram diretamente relacionados ao intenso e rápido crescimento demográ-fico pelo qual têm passado as sedes dos municípios-pólo, assim como a uma redistribui-ção espacial da população nas respectivas regiões, levando a uma aceleração da migraçãointra-regional. Além disso, vale mencionar o maior fluxo migratório proveniente das re-giões vizinhas e de outros Estados, o que deflagra um crescimento urbano desordenado,visível na forma como as cidades se expandem ao longo de seu sistema viário regional, oumesmo nas vias intra-municipais de acesso às sedes distritais e localidades rurais. Com is-so, surge uma série de problemas atrelados à circulação e à mobilidade urbana e regional,atingindo tanto as áreas centrais das cidades como as periféricas, os espaços de transiçãoe as localidades rurais mais longínquas.

Fato é que a possibilidade desigual de acesso aos equipamentos sociais e às redes deinfra-estrutura entre as populações das áreas urbana e rural, assim como a centralização dasinstituições públicas e dos serviços nos municípios-pólos já vêm contribuindo para a acelera-ção desse fenômeno de urbanização, tornando-se ainda mais evidentes nas áreas onde a rees-truturação produtiva da agropecuária concentra a propriedade da terra e diferencia as par-tes que compõem a região – seja nas relações de trabalho, seja na alocação de investimentos.

Deste crescimento urbano predominantemente excludente emergem diversas ques-tões associadas à forma desigual como se dá o acesso aos benefícios trazidos pela urbani-zação, assim como aos conflitos e incompatibilidades de uso e ocupação do território, le-

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vando ao surgimento de marcas de degradação ambiental comprometedoras das condi-ções de habitabilidade em diferentes escalas. A implantação de agroindústrias dissociadade estudos de adequação do uso do solo; a presença de estabelecimentos comerciais ata-cadistas que remanescem nos centros; usos institucionais considerados impactantes sobreo meio urbano (como matadouros, aterros sanitários, cemitérios) são alguns dos proces-sos que têm colaborado de forma negativa para a deterioração da paisagem em determi-nadas cidades do agronegócio.

Todavia, é na construção dos espaços residenciais, sejam eles formais ou informais,legais ou ilegais, promovidos pelo poder público ou pelo setor privado, tecnicamente as-sistidos ou auto-construídos, que se perceberá a forma mais predatória com que a expan-são da urbanização tem se dado, tanto nas áreas centrais como nas áreas intermediárias,peri-urbanas ou mesmo em zonas de transição urbano-rural.

Compreendendo o espaço como síntese da interação entre os processos naturais e asrelações sociais de produção e adotando-se as formas como a moradia se configura na pai-sagem como referência, os diferentes fenômenos foram agrupados segundo as seguintesquestões: favelização; mercado imobiliário; produção de habitação de interesse social pelo Es-tado; déficit habitacional e condições inadequadas de moradia.

No que concerne à favelização, considerando a favela como intervenção informal eforma mais precária de moradia, em que a população não detém a propriedade da terra,teríamos a situação de irregularidade fundiária em desacordo com as normas urbanísticas;a intensificação da favelização nos espaços de propriedade do poder público e nas áreas deproteção ambiental; o aumento das áreas em situação de risco; a precariedade das condi-ções de moradia refletindo na qualidade de vida da população; o surgimento de formasprecárias de moradia com características urbanas agrupadas em áreas rurais próximas àsáreas produtivas, acompanhado de crescimento populacional.

Outrora concentradas nas áreas metropolitanas, as áreas de ocupação passam a se in-corporar à paisagem urbana em número cada vez maior de cidades, independente do seucontingente populacional. Considerando a expansão da agricultura nas regiões polariza-das pelas cidades do agronegócio, os impactos da concentração da posse da terra e da me-canização da agricultura em áreas onde predominava a agricultura familiar podem ser per-cebidos com o surgimento de novas formas de moradia na cidade.

Utilizando a nomenclatura de Carvalho (2003), a presença de favelas, por ele deno-minadas como “pontas de rua”, pode ser minimamente quantificada a partir do númerode entradas da cidade, tanto de caráter regional como local, visto que em cada uma delasnormalmente se encontra uma área de ocupação que abriga famílias provenientes do cam-po, e que reúne habitações improvisadas, feitas em materiais rústicos, muitas vezes de ape-nas um cômodo, quase sempre sem banheiro.

Independentemente de padrões urbanísticos normativos e mesmo daqueles tradi-cionais historicamente construídos, as cidades passam a ter sua periferia constituída pormicro-espaços desordenados, o que dificulta a implantação das redes de infra-estrutura,bem como a sua acessibilidade, além de impedir as boas condições de mobilidade da po-pulação moradora (Pasternak, 1997).

Dentre os efeitos da favelização, pode ser mencionado o comprometimento das con-dições ambientais dos espaços livres periféricos e das margens de rios e lagoas, alvos pre-ferenciais das novas ocupações, nos quais se reproduzem as velhas formas de implantaçãode assentamentos, dando as costas para os recursos hídricos. Em casos extremos, já secomprova a presença de áreas de risco, dado que parte das cidades do agronegócio nor-

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destinas consideradas para análise apresenta condições de semi-aridez, com inundaçõesrecorrentes nas áreas alagáveis irregularmente ocupadas, assim como solapamento dasmargens de rios em situação de enchente, merecendo maiores cuidados no controle de fu-turas ocupações e na formulação de políticas de remoção e reassentamento em áreas am-bientalmente estáveis.

A condição socioeconômica de extrema carência associada à situação fundiária pre-cária da grande maioria das famílias também contribui para o estabelecimento de víncu-los de dependência com os novos senhores da terra, predominando a cessão de uso infor-mal para fins de moradia.

Nas cidades do agronegócio mais recentemente constituídas, na sua mudança defunção, o processo de favelização mostra-se ainda mais acentuado, e suas atuais condiçõespara construção de moradias colaboram para que estes espaços retratem ainda mais a si-tuação de pobreza, desigualdade e exclusão, como impactos característicos das novas rela-ções de produção trazidas pela intensificação do capitalismo no campo.

Verdadeiros guetos de miseráveis, as favelas já estão também no campo, alocadasnas pequenas localidades que margeiam as áreas de produção agrícola, como no municí-pio de Limoeiro do Norte (CE). Centenas de moradias precárias podem ser vistas em pe-lo menos quatro aglomerados próximos das áreas da produção intensiva de frutas naChapada do Apodi. Localidades denominadas Km 60, Sucupira, Cabeça Preta, Km 69,dentre outras, reúnem famílias que têm na oportunidade de oferta do trabalho informalsazonal sua grande motivação. Processo similar foi constatado no interior dos projetospúblicos de irrigação em Petrolina (PE), onde passaram a se formar alguns núcleos habi-tacionais de novas famílias constituídas no próprio perímetro, e mesmo de antigos irri-gantes que se desfizeram de seus lotes, e que nele permaneceram como trabalhadoresagrícolas assalariados.

A situação de precariedade, recentemente identificada, remonta aos padrões e aspec-tos da favelização nas grandes cidades durante a década de 1970 e 80, quando as famíliasnão investiam na melhoria da habitação, até mesmo por conta da instabilidade da nãopropriedade da terra, do predomínio de moradias feitas em taipa, desprovidas de infra-es-trutura. Todavia, a chegada de um número cada vez maior de migrantes provenientes demunicípios e estados vizinhos tende a consolidar a ocupação, antevendo-se futuros con-flitos fundiários.

No caso do mercado imobiliário, no que se refere à produção da moradia com a atua-ção do setor imobiliário local, ainda que incipiente, são apontados dentre outros fenôme-nos: a dinamização do mercado imobiliário a partir da implantação de loteamentos parafamílias de renda média e disponibilidade de imóveis para aluguel; a verticalização nasáreas centrais atendendo às demandas específicas, associadas à super utilização do lote ur-bano e à segregação socioespacial; a presença de vazios urbanos promovendo a especula-ção imobiliária; a implantação de loteamentos irregulares e clandestinos sem infra-estru-tura e sem nenhum critério urbanístico.

É notória a formação de um mercado imobiliário no âmbito do espaço intra-urba-no da cidade do agronegócio como reflexo da intensificação das demandas do mercadoglobalizado. Outrora pautada em procedimentos informais de locação para fins residen-ciais, a presença de imobiliárias já denota a diversificação do perfil de moradores, repre-sentando a chegada de profissionais demandados pelas novas funções assumidas pelas ci-dades, como a de fornecer os insumos modernos, a mão-de-obra especializada, osimplementos agrícolas, dentre outras.

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Em Limoeiro do Norte (CE), desde o início de 2005, passa a funcionar a primeiraimobiliária na cidade cuja especialidade é a realização de contratos de locação. Vale lem-brar que a mesma imobiliária já funcionava em outro município da região, e no entanto,tinha como principal produto a venda de lotes em parcelamentos periféricos para atendera demanda local. Situação semelhante foi observada em outros municípios, como em Bal-sas (MA), Barreiras (BA) e mesmo em outros de menor porte, como Uruçuí (PI), sempreatendendo à demanda de novos trabalhadores especializados, que passam a aquecer omercado imobiliário.

O mesmo pode ser dito a partir do crescimento da construção civil, percebido atra-vés do surgimento de uma verticalização, ainda de forma incipiente, abrigando morado-res temporários – como os representantes comerciais, os prestadores de serviços e mesmoos estudantes de cursos de nível superior, que também passam a simbolizar a moderniza-ção e a polarização destas cidades em relação às regiões circunvizinhas. Disto resulta umconjunto de edificações sob a forma de flats, semelhantes a antigos kitnets, especialmentelocalizados nas áreas centrais, em pisos superiores aos estabelecimentos comerciais, geral-mente de propriedade do mesmo empreendedor.

Situações extremas já foram percebidas, como o surgimento de edifícios verticais dealto padrão, apesar da disponibilidade de terra urbana, especialmente nas cidades maisconsolidadas, como Barreiras (BA) e Petrolina (PE), e mesmo em Luís Eduardo Magalhães(BA). O mesmo pode ser dito da implantação de pequenos condomínios fechados e lotea-mentos afastados da cidade, levando para estas cidades padrões residenciais metropolita-nos, o que exacerba a dicotomia entre as áreas de segregação voluntária daqueles commaior poder aquisitivo e as áreas de exclusão social de outros desprovidos dos benefíciostrazidos com a urbanização e seus rebatimentos na cidade do agronegócio. Desta manei-ra, percebe-se a reprodução de estratégias de apropriação dos investimentos públicos pe-las classes dominantes, com a segregação em áreas de maior valor imobiliário devido àsinfra-estruturas e aos serviços disponíveis (Villaça, 1999).

O processo de verticalização ao longo das margens do rio São Francisco, em Petro-lina (PE), no trecho já urbanizado próximo ao centro, pode ser mencionado como claroexemplo de apropriação dos investimentos em infra-estrutura, o que eleva o preço da ter-ra e consolida o processo de substituição de antigas residências por edifícios multi-fami-liares. Mesmo nas partes mais distantes do centro, porém, ainda margeando o rio SãoFrancisco, observa-se a implantação de condomínios fechados, os quais se apropriam dasboas condições de mobilidade e das vantagens paisagísticas. Em Barreiras (BA), a segrega-ção socioespacial também se dá nos bairros próximos ao centro, áreas melhor providas deinfra-estrutura, que fazem emergir uma verticalização pontual, denotando, porém, a altaconcentração de riqueza gerada pelo agronegócio.

Como impacto deste processo, há a ocorrência de vazios urbanos mantidos emáreas dotadas de infra-estrutura para empreendimentos imobiliários futuros; o poder decompra das classes melhor favorecidas contribui, por sua vez, para o encarecimento daimplantação de redes de infra-estrutura para as periferias, cada vez mais distantes.

Vale ressaltar que em municípios cujas atividades produtivas permitem um maioremprego da população local, como nas cidades que possuem agroindústrias, o merca-do imobiliário formal também já se faz presente, promovendo, muitas vezes, lotea-mentos irregulares, desconectados de diretrizes urbanísticas. Com isso, a população in-serida no mercado formal de trabalho procura adquirir lotes urbanos para possíveisinvestimentos.

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No caso do município de Balsas (MA), onde a taxa de urbanização já ultrapassa84%, observa-se a proliferação de loteamentos, os quais, ainda que justapostos, contri-buem com o crescimento desordenado da cidade. Com isso, ocorre uma setorização dasfamílias de melhor poder aquisitivo ao sudeste da área central, onde se verifica a presen-ça de condomínios fechados, que constroem parte da sua própria infra-estrutura. Mesmona pequena Uruçui (PI) já se observa um loteamento a 15 km da sede municipal, nas pro-ximidades da unidade esmagadora de soja instalada no município, pertencente à multi-nacional Bunge, o que indica uma nova frente de urbanização isolada e diferenciada daprecária situação existente na cidade. Em Barreiras (BA), e especialmente em Luís Eduar-do Magalhães (BA), é possível notar a clara distinção entre os alvos do mercado imobiliá-rio, a partir do eixo de ligação entre as duas cidades como lócus preferido para loteamen-tos de melhor padrão, ao contrário das vias de saídas para o Piauí (Barreiras) e Brasília(Luis Eduardo Magalhães), locais em que as famílias de menor poder aquisitivo têm seassentado, ainda que desprovidas de infra-estrutura.

Para que esse novo perfil de demanda possa ser incorporado, segundo a lógica deacumulação que domina o mercado imobiliário formal, faz-se necessária sua precarização,transferindo-se para o poder público e para a municipalidade como um todo os custos daurbanização. Com isso, produzem-se loteamentos irregulares conforme o que determinaa lei, e desconsidera-se também a doação de áreas para equipamentos sociais, espaços li-vres e preservação ambiental. (Campos, 1992)

No que concerne à produção de habitação de interesse social, diríamos que na inter-venção do poder público, nas diferentes esferas de governo em ações voltadas para a pro-dução da moradia, é possível identificar alguns processos, dentre os quais: construção deconjuntos habitacionais em áreas periféricas desprovidas de infra-estrutura e sem qualquerinterligação à malha urbana existente, induzindo à expansão urbana; acessibilidade desi-gual às redes de serviço e infra-estrutura urbanas e aos equipamentos sociais, associada àpobreza urbana; fragmentação das ações habitacionais promovidas pelo poder público,tanto no que se refere à sua materialização como objeto do espaço urbano quanto no as-pecto político, relacionado aos planos e programas implementados; fragilidade dos instru-mentos de planejamento e gestão do solo urbano, incapazes de amenizar os problemas de-correntes da urbanização, tanto no que se refere à habitação quanto aos problemasrelacionados à organização do território.

Observando a realidade da produção da moradia de interesse social, verifica-se queas intervenções realizadas decorrem de programas conduzidos pelo Governo Federal, sejaatravés do extinto Banco Nacional de Habitação (BNH), seja da Caixa Econômica Fede-ral, executados pelos Governos Estaduais através de suas Companhias de Habitação –COHABs ou órgãos equivalentes. Nestas ações, pode ser apontada como regra a localiza-ção periférica dos conjuntos habitacionais produzidos, o que contribui para um cresci-mento urbano ainda mais desordenado, permitindo remanescentes espaços vazios nos in-terstícios das franjas peri-urbanas e áreas centrais. (Maricatto, 2001)

Ainda há grandes vazios urbanos entre a periferia de Limoeiro do Norte (CE) e aárea central, com as franjas peri-urbanas formadas a partir de projetos habitacionais deinteresse social promovidos pelo poder público nas últimas três décadas. Em Barreiras(BA), observa-se um recente projeto habitacional implantado pela prefeitura na saídapara o Piauí, que promove o assentamento de famílias provenientes das favelas situadasnas demais entradas da cidade. Todavia, remanescem grandes áreas vazias próximas aocentro, inclusive dotadas de infra-estrutura urbana, o que contribui muito para a espe-

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culação imobiliária. Situação peculiar pode ser constatada em Petrolina (PE), em que osconjuntos habitacionais periféricos induziram à ocupação das áreas vizinhas, e já não hámais condições de expansão em alguns trechos onde os limites do perímetro urbano fo-ram definitivamente atingidos, o que contrapõe assentamentos urbanos e áreas de pro-dução agrícola.

Via de regra, estes conjuntos contam com redes de infra-estrutura, que revelam a si-tuação de acessibilidade desigual aos serviços urbanos como característica também das ci-dades do agronegócio. Além disso, outros assentamentos periféricos justapostos, os quaisjá não dispõem dos mesmos benefícios, passam a utilizar a infra-estrutura de forma clan-destina, o que leva à sua supersaturação e degradação.

Com a ausência de instrumentos de planejamento e gestão do solo urbano e, prin-cipalmente, com a carência de políticas habitacionais de interesse social delineadas segun-do as necessidades e possibilidades locais, constrói-se um cenário pouco otimista no am-biente urbano destas cidades. Para reverter esse quadro, é necessária a adoção de medidasque promovam o desenvolvimento institucional, visto que a realidade da questão habita-cional já demanda políticas, programas, projetos e, especialmente, técnicos nas institui-ções locais que sejam capazes de implementá-los.

Quanto ao déficit habitacional e às condições inadequadas de moradia, a expressãoquantitativa desses processos pode ser aferida através de estudos recentes feitos pela Fun-dação João Pinheiro no que se refere ao dimensionamento do déficit habitacional e às con-dições inadequadas de moradia. Deste estudo, podem ser apontadas como principais ca-racterísticas do déficit habitacional associadas às cidades do agronegócio, que também severificam na análise de áreas metropolitanas, onde o crescimento econômico se mostraigualmente concentrado e desigual. A representatividade do déficit habitacional em rela-ção ao total de domicílios; altos percentuais de domicílios vagos, apesar da demanda; pre-dominância da situação de co-habitação como principal causa do déficit habitacional;complementação quase integral do déficit quando somados; co-habitação e domicílios fei-tos com materiais rústicos; grande maioria do déficit na faixa de renda inferior a três salá-rios mínimos.

Nas cidades do agronegócio tomadas aqui como referência, observa-se que as taxasde urbanização se mostram em progressivo crescimento, atingindo valores similares às deregiões metropolitanas: Barreiras (89,4%), Balsas (84,7%) e Petrolina (77,8%). Outrosmunicípios, como Limoeiro do Norte (58,8%), ainda que com processos recentes de di-fusão do agronegócio globalizado, já têm mais da metade de sua população vivendo nazona urbana.

Vale também considerar que a diferença entre o déficit habitacional e o número dedomicílios vagos mostra-se bastante reduzida, especialmente nos municípios de porte mé-dio com funções de centros regionais. Nestes casos, tem-se, em um extremo, aqueles commaior aporte de capital investindo na construção de casas para locação, enquanto nooutro, percebe-se a expansão da pobreza diretamente associada à relação campo-cidade –famílias que no espaço urbano ocupam moradias construídas com materiais rústicos, outrabalham em domicílios onde residem.

No caso de Barreiras (BA) tem-se um déficit de 6.500 unidades (20,5% do total de3.000 domicílios), enquanto mais de 5.400 residências (17% do total de domicílios) en-contram-se desocupadas. A situação é similar para o caso de Limoeiro do Norte (CE), on-de menos de 1.000 novas casas resolveriam um déficit habitacional de quase 3.000 resi-dências, dado que mais de 2.000 domicílios encontram-se vagos. Vale ressaltar que esse

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contingente de domicílios vazios tem na incapacidade da população local de pagar peloaluguel um dos principais motivos para a sua desocupação.

A co-habitação como indicador do déficit habitacional em Petrolina (PE) chega aatingir mais de 90 % do total, ao contrário de Limoeiro do Norte (CE) e Balsas (MA),onde o percentual de domicílios rústicos chega a atingir em torno de 30%. Acredita-seque no caso de Petrolina, uma cidade média fortemente associada ao agronegócio, porconta da própria diversidade de funções, além dos investimentos governamentais nosprojetos de irrigação, verifica-se uma melhoria gradativa das condições de moradia, coma substituição de materiais precários por outros que garantem melhor condição de vida.

Ainda que não se possa afirmar de forma categórica, a hipótese de que a fruticul-tura, ao demandar um número maior de empregos (2 a 5 empregos/hectare) em compa-ração à cultura da soja (1 emprego/100 hectares), promova melhores condições de mo-radia em cidades como Petrolina do que em cidades que polarizam regiões de produçãoda soja, como Balsas, onde notam-se altíssimos índices de miséria. No caso de Limoeirodo Norte, onde o processo de difusão do agronegócio é mais recente, especialmente apartir do início da década de 1990, verifica-se a tendência de redução do índice de do-micílios feitos de materiais rústicos – tamanha é a transformação nas suas periferias –,assim como a progressiva diminuição do número de famílias que vive na zona rural e demoradias feitas em taipa.

No que se refere à condição inadequada de moradia, percebe-se uma clara relaçãoentre a localização da pobreza e a precariedade das condições de habitação. As condi-ções sanitárias inadequadas nas cidades do agronegócio do Nordeste demonstram queo desenvolvimento concentrado da forma como se realiza reproduz cada vez mais a ló-gica da desigualdade, homogeneizando paisagens periféricas, associando a moradia dapobreza à falta de recursos para a construção de instalações sanitárias e à inoperância ecapacidade dos municípios implantarem redes de infra-estrutura. Nisto, a situação deBalsas é exemplar: com taxa de urbanização superior a 84%, 50% dos domicílios nãopossuem banheiro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É importante frisar que a reestruturação da agropecuária não homogeneizou a pro-dução ou os espaços agrícolas nem os espaços urbanos que crescem com este processo.O que ocorre em contraposição ao processo de globalização da produção e do consumoagropecuário é um intenso processo de fragmentação da produção e do espaço agrícolas.Assim sendo, como recurso de método para compreensão da urbanização brasileira, doespaço agrário e das cidades do agronegócio, temos que considerar esta fragmentação,que torna cada vez mais diferenciados os espaços.

Diante dos processos identificados nas cidades do agronegócio, cabe afirmar a ne-cessidade de adoção de medidas voltadas para o enfrentamento da questão de moradia.Outrora associada à realidade urbana de grandes cidades, a favelização tanto já se faz pre-sente, como também já se torna mensurável, estando diretamente associada aos fluxos mi-gratórios dirigidos às cidades do agronegócio. Da mesma forma, estas cidades passam aser alvo de empreendimentos imobiliários em decorrência da riqueza gerada pela reestru-turação das atividades produtivas da agropecuária, tornando a construção civil um inves-timento potencial.

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O poder local, por sua vez, dependente de recursos provenientes dos governos fede-ral e estadual, permanece com ações pontuais, desconectadas de uma política habitacio-nal de interesse social. Observa-se que por conta da magnitude do problema, já emergemações da sociedade civil e de organizações não governamentais no sentido de apresentarprojetos demonstrativos como alternativas capazes de gerar impactos positivos nas políti-cas públicas.

Em estudo mais aprofundado sobre os dados referentes ao déficit e à inadequaçãohabitacional, foi possível constatar o contraste entre o déficit habitacional e a existênciade domicílios vagos semelhantes em termos quantitativos. Todavia, ao considerar os dadosda inadequação da moradia, percebe-se que, na falta de uma política habitacional de in-teresse social, seja em escala nacional – na formulação de programas, viabilização e desti-nação de recursos – seja em escala estadual ou local – na promoção de sua implementa-ção e execução de forma planejada –, os problemas aqui apontados tendem a crescer,comprometendo as condições de habitabilidade urbana.

Os problemas associados à irregularidade fundiária, à concentração de posse da ter-ra urbana e à forma desigual como as redes de infra-estrutura são implementadas, alémdo descompasso na produção da moradia no que se refere à oferta e à demanda, nos le-va a crer que a questão habitacional não será resolvida tão somente através de políticashabitacionais setoriais, mas sim integrando estas últimas às políticas territoriais de desen-volvimento urbano e rural. Assim, considerando que o problema da moradia se apresen-ta interligado aos conflitos de uso e ocupação do solo, articulado às necessidades detransporte e mobilidade, assim como às demandas por redes de infra-estrutura e equipa-mentos sociais, cabe retomar o planejamento urbano como estratégia para enfrentar asituação existente.

Tendo em vista os instrumentos legais do Estatuto da Cidade e a valorização dadapelo mesmo ao Plano Diretor como instrumento de política urbana, inclusive am-pliando a sua abrangência para todo o município, e não somente para a área urbana, acidade do agronegócio mostra-se como ambiente propício à formulação de proposiçõesque busquem na cidade soluções para questões do campo, e neste, as respostas para osproblemas urbanos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Denise Elias é coordenado-ra do Laboratório de Estu-dos Agrários (LEA/UECE) daUniversidade Estadual doCeará (UECE) e do Grupo dePesquisa (CNPq) “Globaliza-ção e espaços agrícolas”, epesquisadora do CNPq.E-mail: [email protected]

Renato Pequeno é coorde-nador do Laboratório de Es-tudos de Arquitetura, Habita-ção e Ambiente Construído(LEHAU), da Universidade Fe-deral do Ceará (UFC) – Dep-to. de Arquitetura e Urbanis-mo. E-mail: [email protected]

Artigo recebido em maio de2007 e aprovado para publi-cação em julho de 2007.

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A B S T R A C T In Brazil, deep socio-spatial impacts have been promoted by theterritorialization of capital and the oligopoles at the agrarian space, in the countryside and inthe cities. This explains partially the process of re-structuring of the territory as well as theorganization of a new urban system, which is much more complex, being the result of thespreading of the scientific agriculture and the global agribusiness, which are empowered toimpose productive specialization to the territory. In this article, it is defended the thesis of thepossibility of identifying in the modern agrarian Brazil, some municipalities whichurbanization is directly related to the attainment and the spread of the agribusiness,generating cities, which main function is clearly associated to the productive demands of thesectors partners of the modernization of agriculture, being also important to mention that atthese cities the materialization of the general conditions of reproducing the capital of theagribusiness has been realized. Therefore, some presuppositions are presented in order toexplain this kind of city, which we denominate by city of the agribusiness. Considering thatthe spreading of the agribusiness promotes social and spatial exclusion, as well as theincitement of the disparities, we intend to show some aspects of how the cities of agribusinesshave been reproduced mainly using the housing as the main variable for this analysis.

K E Y W O R D S Scientific agriculture; agribusiness; urban restructuturing; city ofagribusiness; social and spatial disparities.

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ENTRE O NÓ E A REDE,DIALÉTICAS ESPACIAIS

CONTEMPORÂNEASO CASO DA METRÓPOLE DE CAMPINAS DIANTE

DA MEGALÓPOLE DO SUDESTE DO BRASIL

E U G E N I O F E R N A N D E S Q U E I R O G AD E N I O M U N I A B E N F A T T I

R E S U M O Discute-se, diante do meio técnico-científico-informacional, o estabeleci-mento de novos processos de urbanização, particularmente relacionados à formação de umanova entidade urbana no país: a Megalópole do Sudeste do Brasil. Destaca-se neste quadro aMetrópole de Campinas, pólo intermediário na rede urbana complexa e expansiva que com-põe o território megalopolitano. A Região Metropolitana de Campinas apresenta-se como casoexemplar para o estudo da urbanização dispersa e para a compreensão de dialéticas espaciaisque caracterizam, em boa medida, alguns importantes processos de urbanização contemporâ-neos. Afirma-se a complexidade megalopolitana como elemento fundamental para o entendi-mento da estruturação da metrópole campineira, indo além de sua classificação como metró-pole regional ou incompleta.

P A L A V R A S - C H A V E Megalópole; metrópole contemporânea; dialéticas es-paciais.

INTRODUÇÃO

O MEIO TÉCNICO-CIENTÍFICO-INFORMACIONAL E O ESTABELECIMENTO DA MEGALÓPOLE

DO SUDESTE DO BRASIL

Nos anos 1980, Milton Santos afirmou que o meio ecológico era já meio técnico(Santos, 1985, p.12-6); a “natureza segunda”, na acepção marxista, envolvia toda a super-fície do planeta: o ecúmeno se expandira a todo o globo. De fato, por mais desabitadasque ainda possam ser certas partes do planeta, os impactos das sociedades industriais ouem processo de industrialização já se fazem sentir em qualquer ponto da superfície da Ter-ra – no “mínimo” em função das alterações climáticas decorrentes de ações de tais socie-dades e que ocasionam tantas outras alterações nos elementos do suporte biofísico, dadaa natureza sistêmica que envolve os elementos do suporte. Tais elementos não deixam deconstituir a base do meio ecológico, mas uma base profundamente alterada, em grandeparte pelo modo de produção contemporâneo.

O meio ecológico não apenas se transformou em meio técnico. Habermas (1975,p.303-33) aponta que a civilização ocidental vivencia um novo período denominado téc-nico-científico, em que a ciência, em grande medida, se subordina aos interesses do capi-tal, da razão instrumental. Avaliando as transformações mais recentes, Milton Santos afir-mou que o presente é simultaneamente um período e uma crise, e mais uma vez o meio

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ecológico se alterou, transformando-se em meio técnico-científico-informacional (Santos,1994, p.139-45). Evidentemente, técnica, ciência e informação se apresentam de formavariável no meio, constituindo regiões mais ou menos concentradas, construindo redesglobais de informações econômico-territoriais, com diferentes graus de acessibilidade. Ca-da vez mais, informação é poder.

Nas regiões mais densas deste meio há condições para a constituição de novos proces-sos de urbanização, dada a base técnica e informacional que permite novos arranjos produ-tivos e distributivos. Várias são as formas e denominações destes processos. Criam-se “exó-poles”, como Los Angeles, onde a expansão horizontal contínua de dezenas de quilômetrose a dispersão das atividades tornam desnecessária, no presente, a caracterização de um cen-tro mais significativo (Soja, 1996, p.154-68). O espraiamento das atividades urbanas, cons-tituindo novos tecidos urbanos dispersos (Reis, 2006, p.13-4), permite o aparecimento deestruturas urbanas difusas, que vão além da noção de expansões urbanas ou metropolitanasnucleadas ou polarizadas. Trata-se de “metápoles”. (Ascher, 2001, p.61-2). Mas a urbaniza-ção dispersa não se verifica arbitrariamente nas diferentes regiões. É significativa a formaçãode territórios que transcendem a lógica de expansão metropolitana, indo além da formaçãode áreas peri-metropolitanas (Randolph, 2005), da constituição de macro-metrópoles (Sou-za, 1978) ou de complexos metropolitanos expandidos (Emplasa, 2006).

Está em curso a formação de estruturas urbanas mais complexas, policêntricas, den-sas, mas fragmentadas, mais propriamente chamadas de megalópoles, como Jean Gott-mann (1961) propôs em seu célebre estudo sobre a formação urbana da costa nordestedos Estados Unidos, entre Boston e Washington. Ou, segundo as idéias de Gottmann, se-riam também denominadas de megalópoles as formações urbanas da costa californiana,entre São Francisco e São Diego, e do Japão, entre Tóquio e Kobe (Roncayollo, 1992).

Adotando-se o conceito de “megalópole” de Gottmann (1961), não se empresta àpalavra o sentido de grande metrópole, megacidade, ou macro-metrópole, expressões porvezes difundidas (e confundidas) pelos meios de comunicação de massa. É clara a diferen-ça entre megalópole e megacidade; a primeira se constitui em uma rede urbana muitodensa, conectando de forma bastante complexa diversas entidades urbanas (distritos, cida-des, aglomerações urbanas e metrópoles), constituindo uma ampla conurbação funcional,não necessariamente uma conurbação física – ainda que esta seja freqüente em vastas por-ções dos territórios megalopolitanos. Megacidades seriam simplesmente cidades ou me-trópoles de população muito grande, acima de dez ou quinze milhões de habitantes. Ma-cro-metrópoles (Souza, 1978) são expansões da dinâmica urbano-industrial para além dosterritórios metropolitanos oficiais, porém mantendo claramente um núcleo principal queestrutura seus territórios, ao passo que as megalópoles não se estruturam somente emfunção de uma metrópole, não sendo portanto, apenas expansões de uma metrópole.

No caso brasileiro, a mais expressiva destas formações pode ser denominada de “Me-galópole do Sudeste do Brasil” (Queiroga, 2002), fruto dos atuais processos globais, masapresentando suas especificidades decorrentes das pré-existências histórico-territoriaisonde ela se estabelece e da formação sócio-espacial brasileira. Neste trabalho, discute-se,diante do meio técnico-científico-informacional, o estabelecimento de novos processos deurbanização, particularmente relacionados à formação desta nova entidade urbana nopaís: a megalópole.

Este artigo objetiva apresentar a formação da Megalópole do Sudeste e as relaçõesdialéticas entre a estrutura megalopolitana e a metrópole de Campinas, pólo intermediá-rio da rede urbana que compõe o território megalopolitano, escolhida como objeto do

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estudo de caso deste trabalho por apresentar-se como situação exemplar para a com-preensão de dialéticas espaciais que caracterizam alguns importantes processos de urba-nização contemporâneos.

Procuraremos destacar aqui a complexidade megalopolitana como elemento fun-damental para o entendimento da estruturação da metrópole campineira, o que implicair além da sua classificação como metrópole regional ou incompleta, revendo criticamen-te noções enrijecidas de redes urbanas hierarquizadas que ainda pautam tantas análisessobre a urbanização contemporânea.

ENTRE A METRÓPOLE DE SÃO PAULO E A MEGALÓPOLE DO SUDESTE: CAMPINAS DIANTE

DE UMA REDE URBANA RENOVADA E DE UMA NOVA ESTRUTURA URBANO-TERRITORIAL

Em meados da década de 1970, inicia-se forte expansão da atividade industrial pa-ra além da Região Metropolitana de São Paulo. Na década seguinte, grandes empresas semultilocalizam, reduzindo custos através de redes de sub-contratação (toyotismo) e enfra-quecimento sindical. Esta desconcentração industrial inicial se dá, principalmente, emum raio de aproximadamente 150 km da Capital, atingindo as principais regiões já his-toricamente mais industrializadas do estado de São Paulo: Campinas, Sorocaba, BaixadaSantista e Vale do Paraíba.1

Entre os anos de 1960 e 1970, a ação estatal não se limitou ao papel de construçãodas infra-estruturas necessárias à expansão concentrada do capital industrial; investiu tam-bém em indústria de base (refinarias em São José dos Campos e em Paulínia),2 de ponta(aeronáutica, em São José dos Campos) e em pesquisa: Centro Tecnológico da Aeronáu-tica, em São José dos Campos, Universidade Estadual de Campinas (1966), Universida-de Federal de São Carlos (1968), Instituto de Tecnologia de Alimentos (Campinas,1969), Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações (Campinas, 1976),Faculdade de Tecnologia (Unesp-Sorocaba).

A Região Administrativa de São José dos Campos (Vale do Paraíba) foi a que rece-beu maiores investimentos de indústrias estatais, sobretudo na década de 1970. Situadano eixo Rio-São Paulo, a tecnificação de seu território permitiu que ali se implantasseminúmeras empresas transnacionais, tendo apresentado os maiores índices de crescimentoindustrial entre os anos 1970 e 1980. No Vale do Paraíba se formou a principal base daindústria aeronáutica brasileira e o segundo pólo mais importante da indústria automoti-va do país, atrás apenas da Grande São Paulo.

Dada a situação urbana e territorial previamente mais desenvolvida da Região Ad-ministrativa de Campinas, foi onde ocorreu o maior crescimento absoluto, transforman-do-se, em 1980, no segundo centro industrial do país em valor de produção (IBGE, 1984).Desde a economia cafeeira do século XIX, Campinas se tornara o maior pólo do interiorpaulista; a partir do último quartel do século XIX, Campinas possuía o maior entronca-mento ferroviário do Estado de São Paulo, excetuada a Capital, permitindo nuclear umaampla rede de cidades, inclusive atingindo cidades mineiras, como Poços de Caldas, porexemplo. Com o declínio do transporte ferroviário e a ascensão do transporte rodoviário,Campinas passa a contar com importante sistema de rodovias, e desde os anos 1980, como segundo mais importante entroncamento de rodovias expressas de São Paulo – ficandoatrás apenas para o da Capital. Criavam-se no território campineiro e em seus arredoresas condições infra-estruturais, econômicas e demográficas para o estabelecimento de umarede urbana que assumiria paulatino caráter metropolitano.

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1 A despeito da proximida-de entre a Região Metropoli-tana de São Paulo e a Re-gião do Vale do Ribeira, estaárea, das menos desenvolvi-das do Estado, não partici-pa do processo de expan-são industrial. A “inérciadinâmica” (Santos, 1996,p.113) do espaço paulistase expressa com clarezadiante do movimento de ex-pansão industrial: áreasmais distantes e mais ricas,como Ribeirão Preto, atraí-ram investimentos públicosnecessários à reproduçãodo capital, aumentando osdesníveis regionais diantedas áreas mais pobres (Valedo Ribeira e Sudoeste doEstado). A formação da re-de de cidades paulistas liga-das à economia cafeeira doséculo XIX, e mesmo antes,as vilas estabelecidas peloroteiro de tropeiros e a agri-cultura da cana-de-açúcar(século XVIII), foram consti-tuindo uma base urbanamuito mais desenvolvidaque nos demais estadosbrasileiros, o que propiciou,séculos mais tarde, a che-gada de inovações produti-vas urbano-industriais. Soro-caba, Taubaté, Jundiaí eCampinas eram já importan-tes cidades fabris no iníciodo século XX.

2 A indústria estatal de basede Cubatão (petroquímica esiderurgia) fez deste muni-cípio o terceiro do Estado(menor somente que a Capi-tal e São Bernardo do Cam-po) em valor de produção in-dustrial (IBGE, 1980).

A notável difusão industrial pelo interior paulista, conjugada a um avanço tecnológi-co na agricultura, permitiu, aos municípios que participaram desta “dispersão concentra-da” da industrialização (Lencioni, 1994), índices de desenvolvimento humano (IDHs) cres-centes se comparáveis aos das cidades interioranas não impactadas por estes processos emesmo em relação à metrópole paulistana. Na década de 1980 consolidava-se a “macro-metrópole” paulista (Souza, 1978); seu território ocupava a parcela mais contínua e con-centrada do processo de dispersão da indústria metropolitana, grosso modo envolvendo asregiões administrativas de Sorocaba, Campinas, São José dos Campos e Baixada Santista,além, evidentemente, da Grande São Paulo. Na Região Metropolitana de São Paulo, ain-da que se reforçasse uma posição de comando – principal praça financeira e locus das sedesde grandes empresas –, agravaram-se o desemprego e os problemas urbanos ligados ao dé-ficit habitacional, saneamento ambiental, poluição, transportes, violência urbana, entre ou-tros. Na macro-metrópole, ao contrário da situação anterior da metrópole industrial, a“nova periferia” – novas áreas de produção interioranas – detinha melhores condições ur-bano-ambientais que o “centro inicial” – a capital paulista e sua Região Metropolitana ofi-cial. Este indicador já apontava para a formação de uma nova realidade urbana muito alémde uma mera expansão da metrópole industrial paulistana.

A expansão de áreas industrializadas impulsionou o crescimento urbano. Migrantesde outros estados que se fixavam na metrópole paulistana foram atraídos, também, paraoutras cidades, sobretudo Campinas, assim como para São José dos Campos, Sorocaba,Santos e Ribeirão Preto. Muitos acabaram morando em municípios periféricos destes nú-cleos, configurando fortes processos de conurbação e de novas metropolizações.3

Com o crescimento industrial de setores mais modernos – cada vez mais deman-dando atividades terceirizadas, tanto ligadas à produção quanto à administração e à pes-quisa – e com o crescimento populacional, ampliaram-se as atividades do terciário su-perior também fora da capital, desencadeando um ciclo de intensificação destareestruturação urbano-industrial no território paulista que, por sua vez, iniciou a expan-são seletiva para além das fronteiras do Estado. Deu-se, a partir daí, uma significativa me-tamorfose: de macro-metrópole centrada na cidade de São Paulo, passa-se a uma megaló-pole onde outros centros urbanos compõem uma complexa rede relacionada ao terciáriosuperior, e se destacam, além da capital paulista, as cidades do Rio de Janeiro, Campinas,São José dos Campos, Ribeirão Preto e Sorocaba.

Estabelece-se, desta maneira, uma nova estrutura territorial, uma nova entidade ur-bana: a Megalópole do Sudeste do Brasil. Ainda que não reconhecida oficialmente peloEstado, é nela que se concentram, na atualidade, os maiores investimentos de capitais, se-jam públicos ou privados, nacionais ou estrangeiros. Afirma-se uma estrutura megalopo-litana em razão da intensidade e da complexidade de “conexões geográficas” (Souza,1992) que se estabelecem em seu dinâmico território, propiciando a produção de policen-tralidades e de fragmentos urbanos dispersos não meramente vinculados a esta ou aquelacidade, esta ou aquela metrópole, e sim próprios de uma intensa rede de fixos e fluxos ur-banos que constitui o território da megalópole. A megalópole não se constitui em um no-vo estágio metropolitano; as regiões metropolitanas nela inseridas fazem parte de uma es-trutura urbana maior que as contém e as potencializa, assim como a outras entidadesurbanas, tais como aglomerados urbanos não metropolitanos – áreas conurbadas, porém,não em escala, intensidade e complexidade metropolitanas –, áreas urbanas dispersas e pe-quenas cidades que exercem atividades complementares às formações urbano-industriaise aos centros mais importantes de serviços.

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3 No entorno de Campinas,Sumaré chegou a verificar,na década de 1980, taxasanuais de crescimento po-pulacional em torno de 10%;e dele se desmembrou em1992 o município de Horto-lândia, que apresentou osmaiores crescimentos de-mográficos da Região deGoverno de Campinas nadécada de 1990 (IBGE).

Nos anos 1990, no Estado de São Paulo houve forte declínio nos postos de trabalhodo setor secundário e ascensão do setor terciário. As duas maiores taxas de elevação no ní-vel de emprego no setor de serviços se deram em municípios com renda per capita relati-vamente mais elevada (Campinas e Ribeirão Preto), que se constituem, há mais de sécu-lo, em importantes núcleos de comércio e serviços, em pólos de regiões administrativasde atividade agrícola fortemente capitalizada.

A Região Metropolitana de Campinas, oficialmente instituída em 2000, tornou-seo principal centro do país nos setores industriais de informática e telecomunicações. Pa-ra isso contribuíram: sua ótima rede de estradas de rodagem; aeroporto internacional como maior movimento, em valor, de cargas do país; capacitação técnica e científica vincula-da a vários centros de pesquisa estabelecidos na cidade.4

A expansão da megalópole – função inicial da dispersão da produção industrial edo fortalecimento de núcleos de atividades do terciário superior – envolve, de formacomplementar, extensas áreas voltadas ao lazer das camadas de renda média e alta. Tra-ta-se, sobretudo, das regiões serranas e litorâneas lindeiras aos principais eixos de expan-são industrial megalopolitano. Urbanizam-se extensas faixas do litoral e dezenas de pon-tos serranos: o campo e a praia são, na megalópole, espaços urbanos; refletem os modosde vida das cidades e neles se observa a crescente divisão social do trabalho segundo mol-des urbanos, a ampliação da oferta de emprego na área de prestação de serviços, a redu-ção dos postos de trabalho nas atividades do setor primário, voltados à produção, altera-ções nas paisagens decorrentes de uma urbanização extensiva pouco atenta aosecossistemas pré-existentes.

Além dos lugares mais apropriados pelas elites, urbanizam-se extensas faixas do lito-ral paulista e parcelam-se inúmeras glebas em pequenas chácaras dispersas por dezenas demunicípios, principalmente próximos aos grandes centros urbanos. A segregação sócio-espacial se verifica de maneira evidente no litoral paulista – enquanto a elite usufrui be-las praias do litoral norte, a população de renda média é majoritária no litoral sul –, e ne-le se encontra o maior número de domicílios de ocupação ocasional do territóriomegalopolitano (IBGE, 2001). Aos pobres, em precários ônibus de excursão, são destina-das poucas praias mais populares.

Neste quadro ampliado dos espaços de produção e consumo, vai se verificando acontinuidade do processo de expansão territorial da megalópole ao longo dos principaiseixos rodoviários que irradiam, principalmente, da capital paulista, mas não só dela, es-truturando uma configuração territorial mais complexa. Tal como na fase inicial (macro-metropolitana), o processo não se dá igualmente em todas as direções, privilegiando osvetores que passam pelos principais núcleos urbanos das áreas em que já vinha se estabe-lecendo a macro-metropolização paulista – agora, no entanto, articulando também im-portantes municípios do sul de Minas Gerais e, muito fortemente, o Rio de Janeiro.

O centro de atividades econômicas mais forte da Megalópole do Sudeste continuasendo a Região Metropolitana de São Paulo, embora suas taxas de crescimentos (demo-gráfico, de empregos no setor secundário ou terciário, do valor de produção, etc) sejammenores que dos importantes centros urbanos da Megalópole situados em seu entorno.

Pelo vetor campineiro, as expansões do processo de megalopolização se fazem se-guindo os principais eixos rodoviários:• pela Rodovia Anhangüera, atingindo Araras de forma intensa e rumando, ainda de for-

ma descontínua, até Ribeirão Preto, cuja área de influência, para alguns serviços, che-ga ao triângulo mineiro e ao sul de Goiás;5

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4 Continua em Campinas oprocesso de instalação denovos centros de pesquisa:unidades da Empresa Brasi-leira de Pesquisa Agrope-cuária (Embrapa InformáticaAgropecuária e Embrapa Mo-nitoramento por Satélites),Instituto Nacional de Tecno-logia da Informação (1982)e Laboratório Nacional deLuz Síncronton (1984). Suasmais importantes universida-des, PUC-Campinas (1955)e Unicamp (1966), possuemmais de 40 mil alunos. So-mente a Unicamp concentra15% da pesquisa universitá-ria brasileira e apresenta asegunda maior produção deteses e dissertações entreas universidades brasileiras(Thèry, 2005, p.186).

5 Em 1999, Ribeirão Pretoera o quarto município sededa Região de Governo doEstado de São Paulo emempregos no setor de servi-ços, à frente de São Josédos Campos e Sorocaba.No setor financeiro, RibeirãoPreto detinha, em 2004,2,93 bilhões de reais emoperações de crédito, cons-tituindo-se, neste quesito,no 14º- município brasileiro,à frente de Belém (1,70 bi-lhões de reais) ou Manaus(1,18 bilhões de reais). NoEstado de São Paulo, so-mente a Capital, Osasco (on-de se situa a sede do maiorbanco privado brasileiro) eCampinas apresentavam ci-fras superiores a RibeirãoPreto. Cf. Fundação InstitutoBrasileiro de Geografia e Es-tatística-IBGE. Cidades@.(Banco de dados). Disponí-vel em: <http://www.ib-ge.gov.br/cidadesat>.

• pela Rodovia Santos Dumont, as interações urbanas até Sorocaba são muito fortes, eformam uma intensa conurbação funcional. Observa-se, pelas imagens de satélite doinício deste século, uma urbanização mais intensa entre Campinas e Sorocaba do queentre Sorocaba e São Paulo, denotando o vigor da dinâmica imobiliária deste eixo me-galopolitano (Campinas-Sorocaba);

• pela Rodovia Washington Luis, a megalopolização é intensa até Rio Claro, seguindopara São Carlos e Araraquara,6 e já impacta a estrutura urbano-industrial de São Josédo Rio Preto (358 mil habitantes em 2000);

• pela Rodovia Adhemar de Barros, as interações urbanas são mais fortes até Mogi-Gua-çu (124 mil habitantes em 2000), mas já chegam até Poços de Caldas (MG);7

• pela Rodovia D. Pedro I, articulam-se diretamente as regiões de Campinas e do Valedo Paraíba, e estas ao litoral norte de São Paulo, ou ao Rio de Janeiro, pela RodoviaPresidente Dutra.

Figura 1 – A Megalópole do Sudeste do Brasil: eixos de estruturação e vetores de expan-são. Fonte: Queiroga, 2002, p.128.

Sorocaba já se encontra conurbada fisicamente a Votorantim e a Araçoiaba da Ser-ra, configurando-se como uma metrópole de fato.8 Pelo vetor de Sorocaba, a expansãomegalopolitana se faz pelo eixo da Rodovia Castelo Branco, atingindo Tatuí (93 mil ha-bitantes em 2000). Da Rodovia Castelo Branco parte-se em estrada duplicada para Bo-tucatu (109 mil habitantes) e, a partir daí, também se duplica a Rodovia Marechal Ron-don, impactando, ainda que de forma menos sensível na paisagem, até Bauru (316 milhabitantes).

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6 Na Região AdministrativaCentral, São Carlos (193 milhabitantes em 2000) consti-tui-se em importante centroindustrial e núcleo universi-tário de excelência, contan-do com campi de duas uni-versidades públicas (USP eUniversidade Federal de SãoCarlos). A ótima malha rodo-viária e a presença destasuniversidades, sem dúvida,se constituem também emparâmetro para a instalaçãode grandes indústrias, co-mo uma unidade da Volks-wagem e a nova fábrica daEmbraer (maior indústria na-cional exportadora em2000), em Gavião Peixoto(4 mil habitantes em 2000),nas proximidades de Arara-quara (182 mil habitantes).

7 Poços de Caldas era oquarto município mineiro, fo-ra da Região Metropolitanade Belo Horizonte, em valorde produção industrial(2002), interligado por ferro-via somente à malha paulista.

8 Em 2005 já estava em tra-mitação na AssembléiaLegislativa proposta paracriação oficial da Região Me-tropolitana de Sorocaba, in-cluindo, entre outros, os mu-nicípios de Itu e Salto,ambos com mais de 100 milhabitantes naquela data.

Pelo Vale do Paraíba, no Estado do Rio de Janeiro, novas implantações industriais,como a Volkswagem em Resende (104 mil habitantes em 2000) ou a montadora da Peu-geot e Citröen em Porto Real (12 mil habitantes), vão interligando as expansões megalo-politanas de São Paulo até chegar ao Grande Rio. Pode-se enfim afirmar que o Rio de Ja-neiro, como segunda maior metrópole do país (mais de 10 milhões de habitantes) e coma dispersão industrial ao longo do eixo da Rodovia Presidente Dutra, transforma a “anti-ga” macrometrópole paulista em Megalópole do Sudeste Brasileiro.9

A ligação física entre São Paulo e Rio de Janeiro é mais forte pelo vetor urbano-in-dustrial do Vale do Paraíba; mas também pelo litoral, pela BR 101, se observa uma forteapropriação urbana do território ligada, principalmente, ao lazer.

Figura 2 – Fragmento da Megalópole. A mancha urbana maior corresponde à Grande SãoPaulo; ao norte observa-se a Região Metropolitana de Campinas, e entre ambas encontra-se o Aglomerado Urbano de Jundiaí. Mais a oeste, a aglomeração urbana de Sorocaba, jáfisicamente conurbada à metrópole campineira, o que ainda não se verifica entre Soro-caba e São Paulo. A leste, a intensa urbanização do Vale do Paraíba. Fonte: Reis, 2006.

A partir da metrópole carioca, a Megalópole se expande também pela Rodovia Jus-celino Kubitschek (BR 40), atingindo Juiz de Fora (MG), principal núcleo urbano da Zonada Mata, região que desde os tempos coloniais esteve voltada ao Rio de Janeiro.10 Embo-ra a maior parcela da megalópole se encontre no Estado de São Paulo, a ligação, histori-camente mais intensa, entre as capitais mineira e fluminense, faz com que o vetor mega-lopolitano de expansão mais forte, no Estado de Minas Gerais, se faça, por ora, pelo Riode Janeiro, seguindo o eixo da Rodovia JK.

O litoral fluminense participa, tal como o litoral paulista, do território megalo-politano. De Angra dos Reis a Armação de Búzios, suas atividades principais se voltam aoócio e lazer da população de renda média e alta que habita, principalmente, a capital ca-rioca. Além disso, destaca-se o turismo, nacional e internacional, no litoral fluminense,concentrado em áreas do território megalopolitano: Angra dos Reis, Parati, Rio de Janei-ro, Cabo Frio e Armação de Búzios. Mais ao norte, iniciando relações megalopolitanas, a

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9 O Rio de Janeiro é, há qua-tro décadas, a segunda cida-de do país, com 6.094.183de habitantes (estimativa doIBGE para 2005), equiva-lente a 56% da população dacapital paulista, mais que o dobro da de Salvador(2.673.560) ou Belo Hori-zonte (2.375.329), respecti-vamente a terceira e a quar-ta cidades brasileiras. SeuPIB, em 2002, correspondiaa 45% do PIB da capital pau-lista, mas a quase seis vezeso de Salvador e três vezes emeia o PIB da capital minei-ra. No setor de serviços, oPIB carioca é quase quatrovezes superior ao de BeloHorizonte e mais que cincovezes o de Salvador, equiva-lendo a praticamente metadedo PIB paulistano no terciário(IBGE). O Rio de Janeiro, gra-ças em boa parte a seu setorde turismo, empregava em2003 cerca de 120 mil pes-soas no setor de alojamentoe alimentação, 70% do queempregava a cidade de SãoPaulo, mais de quatro vezeso do mesmo setor em Salva-dor e 2,7 vezes em Belo Ho-rizonte (IBGE). A capital flu-minense, capital do país até1960, destaca-se por suadimensão cultural; apresentauma produção musical, literá-ria, teatral, cinematográfica,arquitetônica e em artesplásticas de expressão na-cional; possui mais museus,teatros e salas de cinemaque São Paulo (Thèry, 2005,p.187) e a sede da maior re-de de televisão do país.

10 Juiz de Fora possuía 456mil habitantes em 2000; erao segundo município fora daGrande Belo Horizonte emnúmero de habitantes e deempregados no setor indus-trial e no setor de serviços(IBGE, 2003). Em 2004, se-gundo o IBGE, o setor finan-ceiro do município possuía omaior volume de depósitosem poupança de Minas Ge-rais (807 milhões de reais),excetuando-se a capital(4,64 bilhões de reais). NaZona da Mata merece tam-bém destaque o município deViçosa, com apenas 72 milhabitantes em 2005 (IBGE)e que conta com uma univer-sidade federal (UFV) com 25programas de pós-gradua-ção, dentre eles, oito classi-ficados pela CAPES (2003)como de nível internacional.

cidade de Campos dos Goytacases possuía, graças à extração de petróleo, um PIB ligeira-mente superior ao do município de Campinas (SP) em 2002.11

DIALÉTICAS ESPACIAIS DA MEGALÓPOLE DOSUDESTE E DA METRÓPOLE DE CAMPINAS

A dinâmica interna da Megalópole do Sudeste, assim como a expansão de seu terri-tório estão longe de se estabilizarem; é impossível e desnecessário delimitá-la precisamen-te, o que reduziria sua natureza dinâmica, complexa, heterogênea e fragmentada. O siste-ma de fluxo (pessoas, mercadorias, capitais e informações) é o que mais a caracteriza comomegalópole.

A Região Metropolitana de Campinas, inserida neste contexto como um de seus nú-cleos estruturadores, apresenta-se como exemplar expressão do território megalopolitano;suas estradas cumprem diversos papéis, do escoamento de produtos de exportação, vin-dos de outros Estados ou ali produzidos, ao tráfego cotidiano de pessoas indo e vindo dotrabalho, escolas, compras ou lazer. São “avenidas metropolitanas” – embora cobrem pe-dágios em suas extensões –, e são também infovias, que capacitam o território para cum-prir novos papéis produtivos, informacionais e comunicacionais. Os fluxos na metrópolecampineira são intensos e ainda se dão com grande eficiência, diferentemente do obser-vado nas maiores metrópoles da Megalópole (São Paulo e Rio de Janeiro), onde os con-gestionamentos são cada vez maiores. A fluidez da Região Metropolitana de Campinas é,no entanto, bastante seletiva; os custos e as distâncias de deslocamento são bastante proi-bitivos aos mais pobres; o território fragmentado, segregado e não muito denso da Me-trópole de Campinas se coloca como mais um obstáculo à cidadania de significativa par-cela de seus habitantes.

A Megalópole do Sudeste Brasileiro se constitui na mais importante concentraçãourbano-industrial da América do Sul; sua população é da ordem de 44 milhões de habi-tantes (dados municipais do IBGE para população estimada em 2005). O PIB da Megaló-pole do Sudeste é maior que o de qualquer país da América do Sul, salvo, evidentemen-te, o do Brasil. Englobando, entre outras, as duas mais importantes metrópoles do país,torna-se desnecessário demonstrar a importância da Megalópole enquanto concentrado-ra e difusora de produção cultural e científica brasileira.12

O gigantismo da Megalópole do Sudeste atrai contingentes de migrantes em núme-ro muito maior que o demandado por sua economia formal. O resultado é a formação degrandes bolsões urbanos de pobreza, da qual participam não apenas os recém-chegadosmigrantes, mas parcelas crescentes da população pré-existente, sobretudo em suas metró-poles e maiores cidades. A precariedade dos assentamentos habitacionais subnormais e osimpactos sócio-ambientais deles decorrentes, assim como a segregação sócio-espacial e ainclusão marginal de parte expressiva de sua população são cada vez mais freqüentes noterritório megalopolitano.

Riqueza e pobreza constróem dialeticamente a Megalópole do Sudeste; nela estão asfamílias mais ricas, as sedes das maiores empresas, a maior diversidade cultural, mas tam-bém o maior número de pobres do país, da população favelada e encortiçada, evidencian-do que, na urbanização brasileira, a favela é sintoma do processo desigual e combinadodo desenvolvimento econômico. As disparidades sócio-econômicas constituem as frag-mentadas paisagens da Megalópole.13

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11 Campos de Goytacasespossuía uma população de426 mil habitantes (IBGE,2005) e um PIB de 11,09 bi-lhões de reais em 2002,constituindo-se no setor in-dustrial responsável pormais de 9,38 bilhões dereais, ao passo que Campi-nas, com pouco mais de ummilhão de habitantes, pos-suía um PIB de 10,82 bi-lhões de reais, contribuindopara o setor industrial com3,41 bilhões de reais.

12 A Megalópole do Sudes-te concentra mais de 75%da produção científica brasi-leira; Rio de Janeiro e SãoPaulo possuem as sedes detodas as redes nacionais detelevisão e dos jornais decirculação nacional, e seusmuseus possuem o mais ex-pressivo acervo de artesplásticas do país.

13 As dez metrópoles brasi-leiras com maior número dedomicílios em favelas são,em ordem decrescente: SãoPaulo, Rio de Janeiro, BeloHorizonte, Porto Alegre, Cu-ritiba, Campinas, BaixadaSantista, Recife, Vitória, Sal-vador e Brasília (Thèry,2005, p.192-3). Observe-seque as sete primeiras si-tuam-se nas regiões Sudes-te e Sul, as mais ricas dopaís, denominadas por Mil-ton Santos (2001, p.268-70) de “Região Concentra-da”, e entre estas seencontram as quatro metró-poles que fazem parte daMegalópole do Sudeste, emque a Região Metropolitanade Campinas aparece emsexto lugar, logo atrás da“saudável” metrópole de Cu-ritiba. A cidade de São Pau-lo, centro financeiro nacio-nal, possui o maior PIBindustrial, comercial e deserviços, mas também omaior número de cortiços,favelas e loteamentos irre-gulares do país (Thèry,2005, p.236-7) .

O território megalopolitano inclui, além dos tecidos intra-urbanos convencionaisque compõem as cidades e metrópoles industriais, enclaves de alta densidade produtivados setores primário e secundário da economia, loteamentos e condomínios fechados ha-bitacionais de baixa densidade – por vezes isolados das manchas urbanas tradicionais, cen-tros de distribuição e consumo – à beira de rodovias, denotando sua estratégia de atendi-mento para além das escalas municipais ou mesmo metropolitanas. Constituem vaziosespeculativos ou de baixa utilização, áreas de intenso aproveitamento de lazer e turismo eáreas de proteção ambiental bastante desconectadas.

Novamente a Região Metropolitana de Campinas é exemplar destes processos sócio-espaciais de construção do território megalopolitano. A fragmentação das manchas urba-nas é das mais gritantes entre as metrópoles brasileiras. Decorre de processos especulati-vos e de produção imobiliária bastante questionáveis, em que os interesses privados dosempreendedores suplantam em muito os interesses públicos. A conexão entre os novos te-cidos urbanos é, via de regra, indireta, já que se estabelece por estradas e avenidas e nãopor continuidade das malhas viárias. São, em grande parte, espaços fechados, de acessocontrolado, sejam destinados a moradia (condomínios ou loteamentos fechados), aotrabalho (centros empresariais, centros de pesquisa, condomínios industriais), ao consu-mo-lazer (hipermercados, shoppings centers e parques temáticos), ao estudo (escolas parti-culares e universidades com campi bastante afastados) ou mesmo à saúde (hospitais uni-versitários em campi distantes, hospitais de referência internacional, próximos aosprimeiros e longe da maioria da população). Boa parte destes “enclaves fortificados” (Cal-deira, 2000, p.258-9) possui escala megalopolitana ou maior: o Aeroporto Internacionalde Viracopos, as principais universidades, vários hospitais, o maior shopping center em áreabruta locável do país (situado em Campinas), entre outros. Para os habitantes de alta ren-da não é difícil aproveitar os “benefícios” da Metrópole de Campinas; o mesmo não sepode dizer da população que depende do transporte coletivo.

Figura 3 – A urbanização da Região Metropolitana de Campinas. Atente-se para a exces-siva fragmentação da mancha urbana. (Desenho: Queiroga, 2007; base: Bitencourt, 2004)

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A segregação sócio-espacial torna-se mais complexa com a sobreposição do processode megalopolização aos processos de metropolização. Na Região Metropolitana de Cam-pinas, os vetores de expansão dos novos lançamentos residenciais para renda alta são bas-tante distintos dos que se destinam aos pobres. Observa-se o atendimento de demandasextra-metropolitanas: freqüentemente são ex-moradores da Metrópole de São Paulo, quefortalecem os lançamentos imobiliários para alta renda em municípios como Valinhos, Vi-nhedo, Itatiba e Indaiatuba. Situação análoga ocorre para a baixa renda, sobretudo no ve-tor Campinas–Hortolândia–Monte Mor, onde se soma à precariedade da urbanização(Hortolândia, por exemplo, apresentava no ano 2000 menos de 2% dos domicílios servi-dos por redes de esgoto) a instalação de equipamentos urbanos, de escala metropolitanaou estadual, de alto impacto sócio-ambiental – seja o maior complexo penitenciário do es-tado, situado entre Campinas e Hortolândia, seja o “Complexo Delta”, conjunto de ater-ros sanitários e tratamento de resíduos sólidos do município de Campinas.

As redes técnico-científico-informacionais, os enclaves fortificados ou as redes docrime organizado que se estabelecem na metrópole campineira não se produzem à reveliado processo de megalopolização. Cabe, portanto, compreender a Região Metropolitanade Campinas a partir de uma perspectiva dialética entre os processos de metropolização ede megalopolização.

CAMPINAS: UMA METRÓPOLE INCOMPLETA,MAS UM PÓLO MEGALOPOLITANO

Campinas é bastante próxima da maior e mais importante economia metropolitanado país (dista menos de 100 km da cidade de São Paulo). Tal proximidade acarreta van-tagens e dificuldades para sua economia e para seus moradores. A Metrópole Campinei-ra ganha com a expansão verificada na região metropolitana de São Paulo – que há mui-to, conforme discorrido neste artigo – já ultrapassou seus limites oficiais. Por outro lado,Campinas também não consegue se constituir como um pólo metropolitano completo,de escala estadual, dada a proximidade com a Grande São Paulo. O setor cultural e edi-torial campineiro, por exemplo, possui escala diminuta se comparável à escala de sua eco-nomia e ao setor de pesquisas científicas desenvolvido em suas instituições. A região deCampinas apresenta um moderno e diversificado parque industrial, mas a sede da maio-ria das grandes empresas encontra-se em São Paulo ou no exterior.

É necessário, no entanto, não supervalorizar a hierarquização regional das redes decidades, principalmente a partir da formação do meio técnico-científico-informacional,notadamente, aqui, diante do espaço megalopolitano. Na metrópole industrial do séculoXX, os centros dos municípios periféricos ao núcleo central dinamizaram-se muito pou-co. Na Megalópole do Sudeste do Brasil, a relativa proximidade dos maiores núcleos me-tropolitanos (São Paulo e Rio de Janeiro) pode propiciar grandes oportunidades de desen-volvimento de pólos secundários – Campinas, São José dos Campos e Volta Redonda, porexemplo –, dadas as novas tecnologias de comunicação e informação e a densidade técni-ca do território. Desta forma, na megalópole há uma maior sinergia entre os nós prin-cipais e secundários de sua rede urbana, conforme atestam as expressivas taxas de cresci-mento econômico e demográfico das metrópoles incompletas, oficiais ou não,(Campinas, Baixada Santista, Sorocaba, São José dos Campos e Ribeirão Preto) dos aglo-merados urbanos e cidades médias.

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Ser um pólo da Megalópole do Sudeste do Brasil, ainda que de escala intermediária,atenua em muito o caráter “incompleto” da Metrópole de Campinas. Para as pessoas, em-presas e instituições presentes na Região Metropolitana de Campinas, as vantagens de suainserção no território megalopolitano são muitas, sobretudo para os atores que possuemalta mobilidade e que concentram informação. Também para os “homens lentos” (San-tos, 1996, p.258-62), os pobres e migrantes, estar em uma metrópole de porte interme-diário, inserida em uma megalópole, propicia uma diversidade de relações e uma inten-sidade de “ações comunicativas” (Habermas, 1990, p.296-300) que lhes permite umarazoável inserção nos mercados de trabalho, formal ou não, e de consumo; fosse de outramaneira, não seriam tantos os que migram para a metrópole campineira.

A escala regional da metrópole de Campinas não dá conta do entendimento de suaestrutura e dinâmica, que apenas podem ser compreendidas à luz de sua inserção mega-lopolitana. A Megalópole do Sudeste, por sua vez, constitui-se simultaneamente comouma complexa e expansiva rede urbana e como um nó diante da rede urbana da econo-mia global. É nesta dialética espacial inter-escalar que se podem apreender as novas for-mas de urbanização e as estruturas territoriais do processo megalopolitano, do qual aRegião Metropolitana de Campinas é um caso exemplar.

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Eugenio Fernandes Quei-roga é professor doutor daFaculdade de Arquitetura eUrbanismo da USP e profes-sor titular da Faculdade deArquitetura e Urbanismo/Ceatec da PUC-Campinas.E-mail: [email protected]

Denio Munia Benfatti éprofessor titular da Faculda-de de Arquitetura e Ubanis-mo/ Ceatec da PUC-Campi-nas e professor permanentedo POSURB/ Ceatec daPUC-Campinas.E-mail: [email protected]

Artigo recebido em maio de2007 e aprovado para publi-cação em julho de 2007.

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A B S T R A C T This work discusses, before the technical-scientific-informationalenvironment, the establishment of new urbanization processes, particularly the scattered kindof urbanization that is related to the rising of a new urban entity in Brazil: the Megalopolisof South-Eastern Brazil. The Campinas metropolis stands out in this scene, as it plays the roleof an intermediary in the complex and expanding urban net that composes the territory of themegalopolis. The Campinas metropolitan area presents itself as an exemplary case for the studyof this scattered urbanization as well as for understanding the spatial dialectic thatcharacterizes, to a great extent, important contemporary processes of urbanization. It is statedthat the complexity of the megalopolis is an essential element in order to understand thestructure of the Campinas metropolis, which goes beyond its classification as either a regionalmetropolis or an incomplete one.

K E Y W O R D S Megalopolis; contemporary metropolis; spatial dialectics.

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APONTAMENTOS SOBRE A MARÉ

UMA COMPREENSÃO

M A R I A J U L I E T A N U N E S D E S O U Z A

R E S U M O Em quadro marcado pelo fim da política de erradicação de favelas e perma-nência de moradores em assentamentos de baixa renda localizados em áreas próximas e disputa-das dos centros urbanos das grandes cidades do país, aprimoram-se estratégias espaciais para lidarcom estas desconfortantes proximidades. Este texto pretende explorar formas espaciais e dispositi-vos arquitetônicos e territoriais consolidados em nossa realidade, que tratam da incômoda presen-ça de bolsões de pobreza inseridos em importantes áreas das cidades. Traduzem-se em mecanismosde afastamento, invisibilização, distanciamento, confinamento e isolamento dessas áreas em re-lação aos bairros vizinhos. A sistematização destes padrões apontados pela literatura envolvendorealidades de outras cidades se deu a partir da observação das relações do bairro da Maré (Rio deJaneiro) com suas áreas de entorno, a partir de aportes microfísicos durante os anos de expansão,reformulando seu papel e importância no contexto da cidade.

P A L A V R A S - C H A V E Favelas; áreas periféricas; segregação espacial; proje-tos urbanos.

APRESENTAÇÃO

Entre as principais conquistas da população favelada em nosso país destaca-se a ga-rantia de permanência em seus bairros de origem. A ampliação da democracia tornou ca-da vez mais difícil nas grandes cidades brasileiras a implementação de políticas públicasde erradicação das áreas habitadas espontaneamente pela população de menor renda.Mantê-la em seus locais de origem tem gerado exigências de reorganização espacial dasáreas de entorno dos bairros onde se insere.

Às configurações físicas originais dessas áreas acrescentam-se intervenções quase im-perceptíveis promovidas ao longo do tempo por organismos de diversos setores e esferasdo Estado, escapando por vezes à nossa percepção global. Tais intervenções se afirmampelo rearranjo de formatos espaciais ou colocação de arquiteturas e dispositivos formais,que resultam na adaptação destes lugares às novas dinâmicas imprimidas às áreas de en-torno e à própria “cidade”, que deve crescer atendendo à renovação de demandas de cir-culação e usos apesar da existência dessas. O interesse maior deste trabalho, resultado par-cial de pesquisa sobre esta quesstão,1 é o de explicitar padrões aplicados ao longo dos anosnas cercanias de áreas faveladas, no que diz respeito a estratégias para lidar com os impac-tos nas áreas vizinhas, na região e na própria “cidade”.

Vigilância e controle estiveram desde sempre associados ao urbanismo. As bases desustentação da industrialização capitalista do país, sob o pressuposto de grande acumula-ção da riqueza em reduzidíssimas mãos, determinaram essa necessidade. Garantir boaqualidade aos espaços das elites, de um lado, e afastar, conter e vigiar os pobres, de outro,tem sido a equação adotada para solucionar esta contradição.

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1 Trata-se da pesquisa “Es-paço e Violência” desenvol-vida no âmbito do Projeto deExtensão Escritório Públicode Arquitetura e Urbanismo/FAU, que coordeno junta-mente com o Professor Pa-blo Benetti, vinculado aoNúcleo Interdisciplinar deAções para a Cidadania –NIAC/UFRJ.

Afastamento, invisibilização, confinamento e encerramento são recursos fartamenteaplicados a estes fins que, dentre outros objetivos, pretendem conter, controlar e isolar es-tas áreas e sua população do restante da cidade, tornando sua experiência sensorial a deuma realidade remota e separada da dinâmica urbana. São muros, grades, grandes exten-sões vazias, descolamento de nível, arranjos espaciais internos e outros dispositivos que,mesmo negados como tal, servem, entre outros objetivos, a esses fins.

Foucault nomeou pela primeira vez a “biopolítica”, a ação microfísica combinada àpolítica de dominação de nível mais abrangente e global. Autores como Lefebvre, Guat-tari, Deleuze e outros centraram suas obras na idéia de que o espaço vivido é atravessadopor subjetividades que acrescentam a sentimentos defensivos primitivos, de proteção eabrigo, elementos vinculados a uma alteridade no nosso caso, construída sobre a base deelevado grau de injustiça social e preconceito. Espaço e poder ou espaço e dominação sãoassuntos centrais nas obras destes autores.

O presente trabalho pretende se alinhar a essas vertentes, contribuindo naquilo quese refere à análise urbana formal, na compreensão dos aspectos subjetivos da organizaçãoespacial, da implantação de vias e prédios, de sinalizações formais ou territoriais que pro-movem ou reforçam preconceito, constrangimento, hostilidade, afastamento e indiferen-ça, ainda que nos limites e ambigüidades que regem nossa realidade social.

Embora o enfoque maior se situe no poder público, tal formulação não tem comosujeito um ator social específico, mas padrões amadurecidos na aplicação ao longo dotempo por setores do Estado na gestão da cidade, pela Academia que os legitima comosaber científico (urbanismo), e ainda por se tornam “senso comum” tanto no âmbitodos meios de comunicação como na esfera da política formal, entre outros. Trata-se,mais precisamente, de uma subjetividade construída, que atravessa várias esferas da vi-da social e assume formatos discursivos (geografia, arquitetura, urbanismo, comunica-ção etc.) e formais (dispositivos e tecnologias) variados, tornando obrigatório o traba-lho de desalienação.

O objeto de nossa observação é o bairro da Maré, localizado na cidade do Rio deJaneiro, em que se desenvolve uma pesquisa segundo o enfoque esboçado. O texto a se-guir consiste em conclusões parciais colhidas a partir das primeiras observações destarealidade.

QUADRO CONCEITUAL

As sutilezas do controle e vigilância foram expostas pela primeira vez por Foucault(1986), a partir da explicitação do panóptico proposto como arquitetura por Bentham,abrindo a perspectiva da compreensão de sofisticados mecanismos de poder e controle doscorpos, ocultos nas formas arquitetônicas, urbanísticas e da gestão dos espaços. A partirdo quadro teórico conceitual por ele exposto e de clássicos como Henri Lefebvre, diver-sos autores têm tentado desenvolver ferramentas que auxiliem sua aplicação aos estudosanalíticos em arquitetura e urbanismo.

Destaca-se, em primeiro lugar, a marcante obra de Jane Jacobs (2000), em que a au-tora explicita a relação entre dispositivos arquitetônicos e urbanísticos vis-a-vis a aspectoscomo vigilância, segurança e sociabilidade. Sua crítica mostra como espaços públicos con-cebidos pelo pensamento modernista, que prometiam libertação, sociabilidade e confor-to, resultaram, inúmeras vezes, no inverso: em locais de constrangimento, medo e afugen-

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tamento das pessoas da vida pública. Seu livro elenca dispositivos arquitetônicos e de or-ganização espacial presentes na nossa cidade, com influência sobre sociabilidade versus se-gurança pública. Carlos Nelson dos Santos (1985) fornece um exemplo ilustrativo deaplicação das idéias de Jacobs à realidade de bairros pobres no Rio de Janeiro.

Nesse mesmo sentido destaca-se o trabalho de Mike Davis (1999) sobre a realidadede Los Angeles, acompanhando Bill Hillier (1989), pioneiro na inclusão do enfoque so-cial no repertório das ferramentas analíticas do desenho urbano nos EUA. Nesse enfoquesão privilegiadas as relações corpo-espaço, qualificando espaços que condicionam com-portamentos e acarretam conseqüências sociais, como inibição e medo. Nessa vertente, apesquisa se volta para as demarcações e formatações que amparam e/ou constrangem osindivíduos na sua relação com o espaço.

Acrescente-se à obra de Davis as contribuições de Nan Ellin (1997), Sorkin (1992),Flusty (1997) que, dentre outros, se dedicam a refletir sobre os significados de certas es-truturas físico–urbanísticas presentes em cidades americanas – que também se verificamnas brasileiras.

Nan Ellin observa três tendências contemporâneas que implicam determinadoscomportamentos e formas de organização espacial, como reação ao medo característico denossa atualidade: a retribalização, o escapismo e a nostalgia. Geram formatos espaciais deproteção e prevenção à ação de agentes externos e afastamento do estranho não tolerado2

que se traduzem espacialmente em dispositivos de “encerramento” ou “enclausuramento”,como batiza Caldeira (2000).

Outra vertente provém de ferramentas consolidadas em estudos que visam o opos-to, ou seja, a segurança residencial no âmbito da formulação do chamado urbanismo de-fensivo, a partir da avaliação do desempenho de dispositivos espaciais no sentido do con-trole de áreas residenciais contra a delinqüência e violência. A literatura latino-americanavem se destacando nesse tipo de abordagem, com a atuação de pesquisadores da Univer-sidade do Chile (ver bibliografia). Evidentemente despertam grande interesse para insti-tuições vinculadas à segurança pública, que apóiam e promovem a condução de pesqui-sas visando formas de redução do controle policial através da adoção de dispositivosespaciais panópticos.

Grande contribuição para estas idéias é o trabalho de Steven Flusty (1997). A partirda observação da cidade de Los Angeles, o autor identificou cinco modalidades de for-mas, formatos e preceitos que servem como dispositivos da biopolítica, agindo como an-teparos na contenção de pessoas, constrangimentos ao livre acesso, afastamento e invisi-bilização de indesejados.3 Tais dispositivos agem, resumidamente, como obstáculos aolivre acesso: muros, paredes, diferenças de nível, estacionamentos, recuos excessivos, gua-ritas, cancelas, grades e outros anteparos que dificultam a livre circulação de pessoas, obri-gando à paralisação, ao deslocamento e outros desestímulos ao acesso.

Peter Marcuse (1997) enfoca os muros como fronteiras, artefatos ou sinais queatuam como divisor de dois campos: o de dentro e o de fora. A sinalização de limitesentre estes dois campos se constitui como dimensão necessária à experiência humana,variando em grau de afastamento e forma conforme as relações entre os dois lados. Mar-cuse questiona aquilo que “separa”, as razões que levam pessoas, comunidades e seg-mentos sociais a desenvolverem formas de demarcações fisicamente tangíveis e visíveisna cidade. Entender o cercamento – muro e demarcações variadas – como divisa entre“campos” em relação é um caminho promissor para compreender a forma de que serevestem.

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2 Grosso modo, correspon-dem à velha tentativa deproteção pela recriação deambientes “conhecidos econtroláveis”, anunciada porSimmel no que se refere aoséculo XIX, num retorno àsrelações do tipo Gemeins-haft. Segundo o autor, estasformas correspondem a im-pulsos nostálgicos de buscapor uma liberdade muitopouco definida, de recompo-sição do Paraíso Perdido,onde predominam as rela-ções simples e diretas, in-cluindo a reconciliação coma natureza.

3 São eles: espaços furti-vos (stealthy space); espa-ços escorregadios (slipperyspace)’; espaços espinho-sos (prickly space); espaçosnervosos (jittery space).

SEIS MODOS DE LIDAR COM OS ESPAÇOS DAPOBREZA

Lá não tem verdes-azuis, / não tem frescura, nem atrevimento / Lá, não figura no mapa / No avesso da montanha é labirinto / É contra-senha é cara a tapa...4

A história dos modos de lidar com as áreas e populações faveladas da cidade do Rio deJaneiro ao longo do tempo pelas políticas públicas pode ser esquematicamente resumida emseis momentos. O primeiro seria definido pela espontaneidade da ocupação de certas áreasda cidade, que não interessem às elites, por população sem condições de acesso à moradiapelas vias formais previstas. Assim, surgem na cidade formações denominadas “favelas”.

Em um segundo momento, esta presença é percebida como “incômodo”, e assim éincorporada ao discurso higienista que se construía naquela época, que embasavam o ur-banismo nascente. Os primeiros projetos urbanos, como há muito revelado, tinham, en-tre outros sentidos, a finalidade de varrer do mapa de localizações centrais os “estorvos”que nos remetiam “àquilo que não queríamos ver”. Como insistentemente repetido, a in-tervenção de Pereira Passos, o desmonte dos morros do Castelo e do Senado, entre ou-tros, representam claras ilustrações desta “estratégia”, que deu início ao desenho centro-limpo versus periferia-pobre, uma das linhas de força que agem sobre a matriz deorganização territorial da cidade.

O terceiro momento inaugurou o início de um novo modo de lidar com a habita-ção da pobreza, que perdura no futuro: prover a habitação, sempre em número aquém dasnecessidades, construindo Casas Populares, Pavilhões, Conjuntos Habitacionais, atravésda Igreja, de Sindicatos e Associações de Funcionários ou do Estado, direcionando atransferência de moradores de áreas valorizadas para localizações periféricas da cidade.

Sucede a este um quarto momento em que a erradicação de áreas pobres de bairroscentrais foi claramente defendida e assumida como bandeira de uma ação “moderna” so-bre o problema, cercada de justificativas e racionalidades, conquistando a simpatia das eli-tes e setores de camadas médias da população. Com Lacerda, inaugurou-se este “modo delidar” com o assentamento da população empobrecida da cidade, em um claro discursoque “vendia” a preferência da qualidade da vida privada – a casa e a propriedade – asso-ciada à sua localização na cidade. Os Conjuntos da Vila Kennedy e Vila Esperança con-sistiram em paradigmas de arquitetura para um discurso que permanece ao longo dosanos. A ditadura militar segue este procedimento de limpeza das áreas de elite da popu-lação mais pobre, por meio da aquisição de moradias em Conjuntos Habitacionais cons-truídos com recursos do BNH/SFH, transferindo a população.

O quinto “modo de lidar” surgiu com a democratização e a conseqüente impossibi-lidade de continuar tratando corpos como objetos que são facilmente transferíveis. Seuparadigma foi o Projeto Rio situado na Maré, nossa área de observação, que pretendeu sera tentativa de reviravolta nas políticas até então praticadas pela ditadura, um “tiro de mi-sericórdia” na intenção de retomar a simpatia das camadas menos favorecidas pelo desgas-tado governo militar. Consistiu na produção de moradias sobre aterramento de área deantigo manguezal, ocupado por palafitas, e seus antigos moradores foram reassentados nopróprio local, em bairro batizado por Vila do João, realização de João de Figueiredo. E as-sim teve início a política de “urbanização de favelas”, logo depois reafirmada com a con-solidação da democracia no país, e foi somente após a promulgação da Constituição de

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4 Todas as citações poéti-cas foram retiradas destamesma canção “Subúrbio”,de autoria de Chico Buar-que.

1988 que assumiu uma versão programática mais consistente, com a implantação do mo-delo Programa Favela-Bairro e os Programas Habitacionais conduzidos pelo governo deLuiza Erundina em São Paulo.

No caso focado na cidade do Rio de Janeiro, mesmo com todas as críticas que pos-sam ser levantadas, os Programas Favela-Bairro, no mínimo, forçaram o reconhecimentodestas áreas como partes integrantes da cidade, colocando-as em evidência nos estudos epesquisas que embasaram projetos de intervenção. Enfatizaram ainda o enfoque sobre oespaço público, que assume agora importância principal para prover a “melhoria da qua-lidade de vida”, palavra de ordem que se evidencia durante os anos 1980 e situa os espa-ços da vida cotidiana em igualdade de importância com aqueles antes vinculados exclu-sivamente à esfera do trabalho. Como demonstram vários autores (Benetti, 2004), de ummodo geral, a ação do Favela-Bairro trouxe benefícios para as populações destas áreas,melhorando consideravelmente as condições sanitárias e ambientais e a qualidade do es-paço público.

A Constituição Federal de 88 (com os acréscimos do Estatuto da Cidade), mesmoque timidamente, no contexto de uma correlação de forças bastante desfavorável na As-sembléia Constituinte, instaura como preocupação a regularização fundiária, prevendoem um de seus dois únicos artigos voltados à questão urbana o instituto do usucapião ur-bano. Durante as décadas seguintes, surgem novos dispositivos a partir de necessidadesque emergem de programas de regularização fundiária.

Como amplamente reconhecido, esses novos acontecimentos resultaram de fato emmelhoria das condições físico-urbanísticas das áreas carentes das grandes cidades do país,e enquanto eram implementadas, outras tantas, em grande velocidade, continuavam abrotar “espontaneamente”, já que as razões de seu surgimento – a carência de recursos pa-ra consumir moradia “urbanizada” oferecida pelo mercado e a ausência de políticas públi-cas específicas para prover a moradia do setor “informal” – permaneceram inalteradas oumesmo agravadas em período posterior. Contribuíram ainda para reafirmar o direito desuas populações permanecerem em seus assentamentos de origem.

Vivemos, então, uma dupla tendência, que pode ser assim expressa: de um lado, me-lhoria nos tradicionais “bolsões de pobreza” localizados em regiões mais próximas às áreascentrais da cidade, e de outro, novos “bolsões de pobreza” que surgem cotidianamente emáreas distantes da visibilidade da “população de opinião”. Em outras palavras: política re-cuperadora de áreas faveladas mais próximas e esquecimento daquelas mais distantes, in-sistindo na antiga equação de preparar o centro-elite e lançar o problema da pobreza pa-ra “longe dos olhos” da população de opinião. Os projetos urbanos e intervenções diversasem áreas carentes encerram o dilema da “seleção natural”, muito cômoda para esta fór-mula: o lugar melhora e, quem pode, fica, quem não pode, se distancia – procurandoabrigo em periferias cada vez mais distantes.

E já se delineia o que sucede esse movimento: a favela resvala para o asfalto, e é in-corporada como bairro da cidade. Isso pressupõe um trabalho de reconhecimento das di-ferenças locais, da instituição de normas reguladoras e da provisão de infra-estruturas eequipamentos que reduzem as diferenças com o “lado de fora”. Os sinais deste novo mo-mento podem ser reconhecidos nas perturbações que as ações normatizadoras das fave-las têm provocado entre técnicos da Prefeitura e membros da Academia. Que leis serãoestas, que ameaçam colocar em questão a pertinência dos dispositivos das leis oficiais,provando que é possível subsistir – e em alguns casos até mesmo de forma vantajosa –fora dos parâmetros tradicionais recomendados? O debate em torno aos novos parâme-

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tros seria capaz de provocar desestabilizações, a ponto de roubar a legitimidade e o po-der das normas vigentes?

Sinalizações manifestam-se também no campo da cultura, com o tom da radicalida-de do momento: intelectuais nascidos e criados em “bolsões de pobreza” reivindicam pa-ra si a exclusividade da palavra sobre sua realidade, negando publicamente qualquer en-tendimento de outra natureza que não seja o que remete à noção de “genuínosfavelados”.5 Outro exemplo se origina na Maré, nossa área de observação, onde foi reali-zado um Censo Demográfico alternativo, inteiramente conduzido pelo CEASM–Centrode Estudos e Ações Solidárias da Maré, como resposta à desconfiança em relação à apu-ração de dados levantados pelo IBGE, por ocasião do Censo Demográfico de 2000. OCEASM se apresenta como uma ONG fundada por “um grupo de moradores que cresce-ram e/ou moraram em alguma das comunidades da Maré”, e tem “como característicaparticular de seus fundadores (...) o fato de, em sua totalidade, terem atingido a univer-sidade e possuírem uma longa história de envolvimento com movimentos coletivos lo-cais.” (CEASM, 2003, p.8)

Em que pese a necessária associação da favela com o crime, caberá em um horizon-te próximo operar a abertura dessas áreas ao bairro, o que implicará em desfazer precon-ceitos, dasatar nós e redefinir seus papéis, considerando-as como partes integrantes da ci-dade. Abrir a “favela” é o desafio – de que forma, em que horizonte temporal e frente aquais demandas espaciais, o futuro dirá.

Parece dispensável mencionar que, ao mesmo tempo em que os movimentos de mes-cla da favela com a cidade se ampliam, as duas realidades de parte a parte reagem, ambascom ambigüidades. A “população do asfalto”, acuada e forçada a conviver com proximi-dades consideradas incômodas, constrói subjetividades baseadas em medo e preconceito,possantes o suficiente para justificar intervenções coercitivas violentas, ainda que de mo-do abstrato manifeste alguma solidariedade com a saga de seus moradores. A populaçãoda favela, se por um lado adere ao senso comum das camadas médias reagindo com bai-xa auto-estima em forma de desapego à moradia e ao lugar, de outro, magoada com a in-diferença e responsabilização por tudo que há de desfavorável na cidade – desde o dile-mático problema de periculosidade e segurança até a degradação ambiental que causa –,devolve estes sentimentos de desafeto com desprezo e violência. Há também os mais cons-cientes, que não só reconhecem no seu modo de vida algo de criativo, como celebram-noem forma de cultura e arte. E outros mais que acabam desnudando o preconceito e des-construindo o discurso que ampara todo tipo de intervenção violenta, que termina porpunir os já sacrificados moradores.

UM POUCO SOBRE A MARÉ

Casas sem cor / ruas de pó, cidade / Que não se pinta / que é sem vaidade...

Sobre a história do assentamento denominado Maré há já algum conhecimento acu-mulado.6 Reunindo uma população de 132.176 pessoas no ano 2000, a Maré é considera-da a maior área favelada do Rio de Janeiro, superando o Complexo do Alemão (65.637) ea Rocinha (56.313), e é composta por 16 localidades, tão diversas entre si como quaisqueroutras que conformam tradicionais bairros da cidade, como Copacabana ou Tijuca – demodo que representá-las como um tecido homogêneo e uniforme pode significar um gran-

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5 O escritor Paulo Lins é umbom exemplo.

6 Sobre o tema, três traba-lhos são de obrigatória men-ção: Silva (1984); LílianFessler Vaz; Silva (2003). Osite do CEASM contém im-portantes indicações sobre oassunto (www.ceasm.org.br).

de reducionismo. Basta mencionar que destas 16 localidades, nove resultam de programashabitacionais implantados nos diversos momentos referidos no item anterior,7 abrigando ti-pologias arquitetônicas variadas conforme o gosto cultivado no momento da implantação.

A figura 1 permite visualizar algumas das comunidades que formam a Maré. O nú-cleo original era formado por seis comunidades (Morro do Timbau, Parque União, Baixado Sapateiro, Rubens Vaz, Nova Holanda e Parque Maré), sendo a mais antiga localidadeo Timbau (1940), uma pequena elevação no meio de uma grande planície, que à épocaconformava um manguezal. Pouco a pouco a ocupação foi descendo o morro, formandoas localidades de Baixa do Sapateiro (1947) e Parque Maré (1953). O Timbau, o ParqueUnião e o Rubens Vaz são as mais consolidadas localidades da Maré.

A ocupação do Parque União e Major Rubens Vaz obedeceu à outra lógica: resultoudo impacto de implantação da Avenida Brasil, inaugurada em 1946. A figura 1 permiteobservar que este é o único ponto de contato da área da favela com a rede viária princi-pal da região, em que ela toca (e é tocada) pelo fluxo da “cidade”, tangenciada pela Ave-nida Brasil, um de seus limites. Os demais limites são o viaduto Marechal Trompowski,bifurcação da Avenida Brasil em direção às ilhas do Fundão e do Governador, a LinhaVermelha e o Canal do Cunha. O bairro é atravessado pela Linha Amarela, que o divideem duas parcelas claramente distintas – diferenciação acentuada pelo fato de uma destasfatias ter resultado do já mencionado Projeto Rio. (p.6)

A partir do ponto inicial do Timbau, a ocupação expandiu-se ao longo do miolo, se-guindo a lógica de ocupação de espaços vazios dos fundos de lotes das edificações fabris einstitucionais ao longo da Avenida Brasil – importante via que, na época da ocupação, es-truturava um poderoso parque industrial, concentrando razoável oferta de trabalho. Oadensamento ocorreu nestes fundos de lotes, e as edificações existentes que faceavam aAvenida Brasil “protegiam” ao mesmo tempo que evitavam a ela o acesso direto da fave-la. Assim, como se vê na figura 1, a alternativa possível foi o assentamento “virar-se” emdireção ao litoral, no sentido Ilha do Fundão, para onde espraiou-se, ocupando a faixa li-torânea imediata com inúmeras palafitas retiradas nos anos 1970 e 80.

Figura 1 – Cidade do Rio de Janeiro XXXa. Região Administrativa – Maré

Vale lembrar que a Ilha do Fundão surgiu na década de 1930 para abrigar a futuraCidade Universitária, originada do aterramento de nove ilhotas ocupadas por populaçãode pescadores e onde funcionavam pequenos estaleiros desalojados para ceder lugar ao

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7 A Nova Holanda é a maisantiga, data de 1962 e foiimplantada para receber po-pulação originada de pro-gramas de erradicação defavelas; em fins dos anos70, o Projeto Rio aterrou to-da a área da Maré na fatia àdireita da Linha vermelha.Datam desta época, maisprecisamente do ano de1982, a Vila do João e a Vi-la esperança, conformemencionado à pág TAL; OConjunto Pinheiro (Vila Pi-nheiro, Novo Pinheiro e Con-junto Pinheiro) completou aocupação da área aterrada,na altura do ano de 1989;mais recentes são os con-juntos Bento Ribeiro Dantas(1992) e Nova Maré (1996),contemporâneos do Progra-ma Favela-Bairro. Ver mapaanexo com as configura-ções destes conjuntos.

aterro. O aterramento provocou uma grande alteração ambiental pouco percebida naque-le momento, em que obras do gênero eram muito freqüentes e bem recebidas na cidade.O impacto do desaparecimento dos caminhos entre-ilhas repercutiu, entre outros aspec-tos, no regime de circulação das águas, criando um paredão em lugar da permeabilidadeque antes existia, provocando sérias conseqüências para a poluição do Canal do Cunha.A ocupação das margens deste canal por palafitas decerto agravou a situação ambiental,mas não foi o único evento responsável pela atual situação de degradação, atribuída uni-camente à ocupação “predatória” da Maré e adjacências.

Na altura dos anos 1990, no âmbito da Conferência Rio-92, outra decisão governa-mental foi de grande importância para o local: a implantação da Linha Vermelha, conce-bida como via expressa e de apoio à dinâmica de circulação de mais alto grau da cidade.É o corredor viário cuja função é conduzir fluxos do Aeroporto do Galeão ao Centro, for-mados dentre outros segmentos, pelo turismo e pelos negócios. Procurando manter o flu-xo ininterrupto – foi implantada de modo a garantir a menor interferência possível da ci-dade real –, esta via, em toda sua extensão, teve a implantação descolada do tecidoexistente por diferença de nível, principalmente nas cercanias de favelas.

Para permitir esta implantação, foi efetuado novo aterro, desta vez na margem lito-rânea frontal à Ilha do Fundão, proporcionando um confortável afastamento das edifi-cações lindeiras. Embora a Linha Vermelha atravesse grande trecho da Maré (ver Figura1), a partir desta via não é possível acessar diretamente nenhuma das localidades queconformam o bairro. A relação entre ambas resume-se, reciprocamente, à aparência deuma paisagem remota.

O último fato urbano ocorrido de importância para o bairro foi a implantação daLinha Amarela, aproveitando a antiga ponte que fazia a ligação do Fundão ao continen-te. Enquanto a Linha Vermelha conduz ao centro da cidade, desenhando um trajeto queatravessa no máximo bairros de periferia imediata ao centro (como São Cristóvão), a Li-nha Amarela tem como fim a Barra da Tijuca, e se derrama por vários bairros suburbanosda cidade. Nada mais coerente que, dentre os três corredores viários que “servem” à co-munidade, justamente este ofereça maior permeabilidade aos moradores da Maré. Assim,de leito pré-existente à implantação desta via, a Linha Amarela não se destaca das áreaslindeiras por diferença de nível, e nem a colocação de grades para conter a população, fezcom que ela deixasse de circular ao longo da via e de atravessá-la intensamente. Há entreas grades alguns pontos de contato que permitem o acesso, como também duas passare-las que conectam as localidades situadas nas margens opostas. Assim, mesmo à contragos-to das autoridades do setor viário, a Linha Amarela é muito movimentada no segmentoem que atravessa a Maré – movimento bem diferente do que se vê na Linha Vermelha.

Um último aspecto é de necessária menção: a proximidade com o Aeroporto Anto-nio Carlos Jobim e com a Cidade Universitária. A Academia não apenas significa “berçodo saber” e conhecimento para seus moradores, dos quais 20% foram considerados anal-fabetos no último Censo, como também um modelo de ocupação urbana “racional” e de-sejado, baseado em uma ordem superior regida pelo mais alto grau de conhecimento. Asarquiteturas do Fundão encontram-se registradas no ideário da população da Maré, acen-tuando sua condição de contrário, ou de “caos”. A consideração de seus moradores sobreos usuários da Cidade Universitária oscilam entre um respeito incontestável, que os do-ta de poder para afirmações e intervenções categóricas, e a condição de provedor, seja nadisponibilização de seus amplos e vazios espaços como “área de lazer” da população, sejacomo potencial de pagamento a serviços que possam ser prestados. Seja como for, os mo-

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radores da Maré são demasiadamente afetados por esta proximidade, manifestando reve-rência e retribuição afetuosa quando são beneficiários de professores, alunos e funcioná-rios da UFRJ.

Essas proximidades contrastantes contribuíram para olhar a Maré como massa infor-me e homogênea, vista pelos meios de comunicação e variados segmentos sociais cariocascomo um espaço globalmente miserável, violento e destituído de condições mínimas devida”. (Silva, 2004, p.22)

MARÉ: DIFERENCIAÇÃO E COMPLEXIDADE

Lá não tem claro-escuro / A luz é dura / A chapa é quente / Que futuro tem / Aquela gente toda...

Antes de 1980, a Maré não figurava nos mapas da cidade. A partir de então, quan-do a democracia se impôs mais plenamente e o número de moradores tornou-se expres-sivo, transformou-se no “Complexo da Maré”,8 denominação pejorativa e detestada pe-los moradores. Em fins dos anos 1980, a Maré tornou-se a XXX Região Administrativa doMunicípio, fato significativo para o reconhecimento deste território como componenteda estrutura administrativa da cidade e para admiti-lo como parte integrante da cidade.Esta nova XXX RA acrescentou as localidades de Marcílio Dias, Roquete Pinto e Praia deRamos, criadas na mesma época do núcleo original da Maré, situadas do lado oposto daMarechal Trompowski ao território original (ver Figura 1), conferindo, assim, outros per-tencimentos ao novo território.

Percorrendo as ruas da Maré é possível perceber claramente diferenças de diversas or-dens. Como reconhece Silva (2004, p.21), mesmo entre as seis localidades que formam onúcleo inicial, embora fronteiriças, há “características sociais, econômicas, geográficas ehistóricas heterogêneas”. É curioso observar que as localidades são claramente delimita-das, e suas populações conhecem com clareza os limites. Especialmente o Parque União eo Major Rubens Vaz que, embora vizinhos, são nitidamente separados e destacam-se dorestante da Maré pela boa qualidade ambiental, assim como o Timbau no outro extremo,o mais antigo e consolidado.

As diferenças mais marcantes ficam por conta da presença de nove conjuntos sur-gidos de programas habitacionais em épocas diferentes, reunindo população de origensdiversas. A Vila do João e o Conjunto Pinheiros, por exemplo, criados nos anos 1970-80, acolheram moradores do próprio lugar, transferidos das palafitas. Os conjuntosBento Ribeiro Dantas, Nova Maré e Salsa e Merengue, datados já da década de 1990,receberam pessoas transferidas de habitações em áreas de risco da cidade. Estes não sedistinguem apenas pelas arquiteturas marcantes, mas também pela história da ocupação,as origens e mediações de acesso, de um lado definidas por decisões vinculadas a órgãosgovernamentais responsáveis, e por outro, o ingresso através de contato com parentes eantigos amigos moradores da região, como se deu em quase 100% dos casos relatadospor moradores.

A esmagadora maioria da população que ocupou espontaneamente a Maré veio doNordeste brasileiro,9 e assistiu a chegada de contingentes de população removida de vá-rias partes da cidade pelos Programas Habitacionais de erradicação de Favelas. Foi inevi-tável o estranhamento, que gerou rivalidades entre bairros que perduram até hoje.10

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8 Denominar uma localidadede Complexo acarreta umacarga de significações. Ado-ta-se na cidade essa nomen-clatura ainda para designaros complexos carcerários:o Complexo Nelson Hungria,o Complexo Frei Caneca, en-tre outros, sendo quase im-possível evitar a vinculaçãode um ao outro. Além disso,o termo reforça a idéia deque não se trata de uma uni-dade territorial, mas de umlugar único, onde todos queali se encontram guardam anefasta afinidade de seremfavelados (complexados), re-forçando preconceitos laten-tes no nosso senso comum.

9 Nos fins de semana, apraça do Parque União abri-ga o segundo maior Forróda cidade, perdendo apenaspara o tradicional, que acon-tece no Campo de São Cris-tóvão.

10 Como a que há entre oMajor Rubens Vaz e a NovaHolanda – sendo a primeiraformada por nordestinosbrancos, e a última por po-pulação predominantementeafrodescendente – que seestranham, supostamente,pelas diferenças étnicas.

Em trabalho da Prefeitura realizado sobre dados do Censo de 2000, a Maré ocupoua 11ª- posição no IQV dentre os bairros da cidade. Segundo relato de Silva (2004, p.19),“no plano das instituições formais, a Maré não conta com centros culturais, cinemas, tea-tros ou qualquer tipo de espaço permanente para manifestação e produções culturais.”

Outra diferenciação ocorre com relação à titularidade da terra. Os moradores de re-sidências originadas de programas habitacionais possuem título de propriedade, assimcomo moradores de áreas mais consolidadas do Timbau, Parque União e Parque MajorRubens Vaz, que conquistaram seus títulos. Enquanto moradores mais recentes destasmesmas localidades ainda não possuem qualquer documento de posse – embora isto pa-reça não significar para eles o principal problema.

A própria existência de 16 áreas com nomes diferenciados e as relações de per-tencimento que seus moradores demonstram já denotam que o grau de complexidade eautonomia é grande. Elas se estruturam em torno a Associações de Moradores com lide-ranças próprias e guardando razoável autonomia entre si. Estas Associações de Morado-res convergem para o Centro de Estudos de Ações Solidárias da Maré–CEASM que, nãosem dificuldades, tenta unificar as lutas, apontando caminhos comuns para as diversasrealidades.

O Parque União é separado do Parque Major Rubens Vaz por um canal. Além daAvenida Brasil, há apenas um ponto de contato entre ambas, a “Ponte da Amizade”, econforme o nome insinua, pode ter sido motivo de desavença em momento anterior. Pa-ra quem freqüenta o bairro, fica claro o pertencimento dos moradores a uma ou outra lo-calidade. “Administradas” por lideranças bastante combativas e comprometidas com o lu-gar, é impossível pertencer a ambas simultaneamente, ou derrubar a fronteira amigávelentre elas.

As “bandeiras de luta” de cada comunidade são muito específicas e não servem paraas demais. Uma das principais reivindicações do Parque União, por exemplo, é a implan-tação de um Posto de Saúde – embora haja um Posto em funcionamento no vizinho Par-que Major Rubens Vaz, mas que serve prioritariamente a seus moradores, deixando a po-pulação do Parque União sem a preferência. O critério de territorialização de unidades doSUS baseia-se apenas na distância territorial, e o Posto do Parque União é sempre negado,a ponto de representar, hoje, uma das maiores reivindicações do local.

Estes são apenas alguns exemplos das fortes diferenciações internas existentes na Ma-ré. À medida em que nos aprofundamos nas especificidades deste lugar, revelam-se maise mais contrastes.

PROXIMIDADE E AFASTAMENTO

Perdida em ti eu ando em volta / É pau, é pedra, é fim de linha, é lama, é fogo, é foda...

Passantes da Linha Vermelha estranham a relação de distanciamento entre lugaresna Maré e espaços “formais” dos bairros vizinhos externos. O exemplo da Praça do Va-lão, na Nova Holanda, ilustra esse distanciamento. Desta praça, avista-se com nitidez aLinha Vermelha ou as edificações situadas na Ilha do Fundão, com a nítida impressão(verdadeira) que esta Linha Vermelha encontra-se a mais ou menos a duas quadras dedistância e pode ser vencida facilmente a pé. É possível avistar os automóveis passandoem alta velocidade, e reconhecer com facilidade marcas e cores. Entretanto, a experiên-

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cia de estar na Praça do Valão e desejar ir para o Fundão mostra o condicionamento danoção de distância a fatores subjetivos: os obstáculos e impedimentos dispostos nos es-paços entre estes dois lugares impedem o acesso à Linha Vermelha / Ilha do Fundão e es-tendem a distância real de cerca de duas quadras a vinte minutos de percurso por auto-móvel! Além disso, neste segundo percurso, as voltas e contra-voltas do trajeto afetam detal maneira a sensação sensorial da relação corpo-espaço, que se perde de vista os pontosde referência do deslocamento. A discrepância entre o percurso potencial a pé e o per-curso real obrigatório por veículo mostra o quanto o mundo físico encontra-se banhadoem razões subjetivas, subordinando o regime de proximidades a fatores situados na di-mensão simbólica.

Outros afastamentos podem ser evidenciados na Maré. Às margens da Linha Verme-lha, por exemplo, no longo segmento em que o nível dela aproxima-se daquele das áreaslindeiras à Maré, a incômoda proximidade é afastada pela ocupação por equipamentos deuso coletivo, de acesso limitado (como o CIEP, o Posto Policial e a Igreja) ou a “Vila Olím-pica da Maré”, que nitidamente “dá as costas” para a Linha Vermelha. Em outros trechosda Vila Olímpica, em que a permeabilidade é acentuada pela coincidência de nível, umagrande área desocupada situada entre as quadras e a Linha Vermelha instaura um longoafastamento, desestimulando a caminhada, ao mesmo tempo em que hiper-expõe o“aventureiro” que pretende a travessia.

Onde não há outro recurso, a impossibilidade de transposição é garantida por gra-des situadas ao longo do ponto de encontro da via com a ocupação. No trecho em que oParque União divisa esta Linha Vermelha, a situação é mais gritante: as casas coladas àsgrades no grande segmento onde o toque é mais intenso podem ser claramente avistadaspor quem passa por essa via, porém, existe do “lado de dentro”, por detrás da grade, umarruamento de acesso restrito aos moradores do Parque União, que divide a circulação emcircuitos separados dentro e fora. Isso ocorre com freqüência na Maré: ao longo de qua-se todas as vias correm ruas paralelas alternativas do lado interno, para impedir tecnica-mente o tráfego local nas vias arteriais (Vermelha e Amarela), e que também funcionamcomo importantes barreiras, acentuando o confinamento e desligamento dos bairros à ar-ticulação urbana mais geral.

A ação desse conjunto de dispositivos, que no discurso visa proteger a região, resul-ta no seu encarceramento, distanciamento, contenção, impedimento para a liberdade deir e vir, confinamento. A uma só palavra, pretende promover a invisibilidade da área pa-ra quem a avista do exterior.

CERCAMENTO

Desbanca a outra que abusa / de ser tão maravilhosa...

O cercamento faz parte do imaginário local neste bairro que experimenta um eleva-do grau de violência e em que o policiamento e o sistema carcerário comparecem nas con-versas cotidianas. O próprio bairro, como vimos, desde sempre esteve “encerrado”, paraque não chegue a resvalar sobre a cidade. Este encerramento é forçado por limites “natu-rais” (Canal do Cunha, canal entre localidades como o Parque União e o Major RubensVaz, entre outros) ou artificiais, como as obras de engenharia: Avenida Marechal Trom-powski, Linhas Amarela e Vermelha e Avenida Brasil.

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Na Linha Amarela, os acessos restringem-se a alguns pontos definidos por “estran-gulamentos”; pequenas entradas permitem acesso para as já citadas vias secundárias deuso local, que seguem em paralelo a esta e servem estritamente à população moradoradas localidades da Maré. Os acessos pela Avenida Brasil guardam a mesma marca de es-trangulamento: consistem em poucas ruas perpendiculares à esta Via, onde, ao fundo,no fim da rua, abre-se a possibilidade de atravessar para a Maré. Aqui, em especial, tem-se a impressão de labirinto, metáfora muito usual para descrever o espaço da favela.

Estranhamente, o cercamento aparece no sentido inverso, como proposta de mora-dores do Parque União. No trecho que toca diretamente a Avenida Brasil há uma árearemanescente de antiga fábrica desativada, ocupada recentemente pela população. Aárea, conhecida no local como “dos sem-terra”, consiste na última ocupação desta loca-lidade, estendendo-se pelas ruas perpendiculares à Avenida Brigadeiro Trompowski, quebifurca a Avenida Brasil em direção à Ilha do Governador e à Ilha do Fundão. Morado-res das imediações desta avenida reivindicaram à Associação de Moradores obras para co-locação de “portais de entrada”, com a instalação de “portões” para controle do acesso,incluindo melhorias na aparência do local: gradeamento, pintura, arrumação, consertodo piso etc. Fato curioso, já que este é o trecho de maior contato entre a Maré e a “ci-dade”, onde a interação das edificações com a rua encontram-se dentro dos padrões dacidade formal, o que nos leva a questionar as razões dessa preocupação, enquanto tantasoutras dificuldades estão em jogo. O presidente da Associação de Moradores supõe queseus moradores pretendem com isso dar uma melhor aparência a quem passa na rua eavista o bairro.

Os moradores da Maré, como os moradores das favelas da cidade, sofrem o cons-trangimento de serem responsabilizados pelas condições que se verificam nesses locais, eculpabilizados pela própria situação de insalubridade e desconforto. O quadro “pintado”pelo senso comum é modelado conforme o forjado em padrões muito inferiores ao quea realidade mostra.

Incompreensivelmente, também a Praça do Valão na Nova Holanda é cercada porgrade. Sua configuração nasceu de um projeto desenhado por um órgão do Estado com-petente no assunto. Pelo projeto original, o acesso a esta, que é uma das raras áreas dota-das de mobiliário de lazer e recreação, e que possui vários prédios significativos em suascercanias – como a creche, a casa das rendeiras, a Associação de Moradores e o CEASM –,se daria por meio de três portões, devidamente destruídos pelos usuários, que circulam li-vremente pelos estreitos caminhos.

Há ainda um último cercamento de obrigatória menção: o Parque Municipal Eco-lógico da Maré, situado na Vila Pinheiro. Como já referido, a Vila do Pinheiro nasceu deum programa governamental incluído no Projeto Rio, que previu a preservação da vege-tação da antiga Ilha do Pinheiro pela criação de uma área de lazer nos moldes dos ma-nuais de urbanismo. Não se entendem as razões do gradeamento dela, que consiste emum dos únicos espaços livres e “verdes” disponíveis à população do bairro. Talvez tenhasido incluído para impor disciplina ou controle do uso, evitar uso predatório e violência.Porém, como também percebeu Jacques (2002), “o local parece não ser ocupado por nin-guém”, já que o excesso de zelo resvalou para inibição do uso do lugar. Em uma popula-ção que tem presente a imagem da grade como aprisionamento, talvez o efeito desta so-bre o imaginário seja o constrangimento em vez de disciplina.

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CONCLUSÕES

Faz ouvir os acordes do choro-canção / Traz as cabrochas e a roda de samba / Dança o teu funk, rock, forró, pagode, reggae / Teu hip-hop, fala na língua do rap / Fala no pé, dá uma idéia / Naquela que te sombreia...

Nosso enfoque sobre a realidade da Maré procurou enfatizar os dispositivos encon-trados nesse assentamento, supostamente introduzidos no contexto dos diversos projetosgovernamentais implantados na região, para lidar com a fixação de uma área de baixa ren-da, considerando a permanência de sua população no local e a grande transformação darealidade espacial nos entornos. Foram privilegiadas as estratégias espaciais e arquitetôni-cas coletivamente produzidas, tanto no âmbito do Estado, da Academia ou no campo dis-ciplinar do “urbanismo”, e que se desenvolvem ao longo dos anos, sem descurar das açõesreativas da população, em adaptação a novos papéis adquiridos por determinadas áreasque se tornam estratégicas para a cidade.

O caso examinado ilustra, a nosso ver, tendências dos atuais modos de lidar com osbolsões de pobreza inseridos na malha urbana, considerando a perspectiva de sua efetivapermanência nos locais de origem. No caso da Maré, trata-se de uma localização na cida-de com o destino marcado pela determinação governamental: sobre a singular ordem na-tural, decisões de peso foram sendo gradativamente tomadas, como a localização da Ci-dade Universitária ou a instalação do Aeroporto Internacional em local previamentedestinado à concentração industrial da cidade. Suas racionalidades tiveram que convivercom movimentos da cidade espontânea: o assentamento da Maré, do Alemão, Mangui-nhos e outros existentes nas imediações, que nasceram nos interstícios, no “negativo” doretrato da ordem, gerando, assim, fortes contradições, com as quais a gestão urbana teveque lidar durante esse tempo.

Em face da condição inevitável de permanência da favela, surge como solução tirarproveito da vocação expositiva adquirida pela área após as localizações referidas. Assim,passa a sediar o mais importante projeto habitacional da época, mantendo o caráter “car-tão-postal” do local, no que se refere à ação governamental exemplar, de provimento damoradia popular. Essa intervenção engrossa numericamente a população da Maré, nomesmo grau em que agrava a situação social, reforçando o papel de “depositário” de po-pulações originadas dos mais variados pontos da cidade.

Por redefinições da própria cidade, essa localização singular e estratégica não cessa depassar por reformulações, agravando as contradições. A ênfase na articulação e aceleraçãoda circulação na cidade, em local próximo ao terminal aeroviário, apropria a região defi-nitivamente a partir dos anos 1990 à lógica fortemente rodoviarista, com a implementa-ção de mega-planos que concretizem ideais há muito adormecidos por carência de recur-sos e prioridade. Estes projetos que se viabilizam nas brechas abertas por negociaçõespolíticas de caráter momentâneo, tão grandiosos quanto urgentes na sua execução, dei-xam pouca possibilidade de questionar as transformações ocorridas entre o tempo de suaformulação (as Linhas Coloridas foram concebidas no Plano Doxiades) e o momento daexecução. As Linhas Vermelha e Amarela, com toda carga simbólica que carregavam, eramcertamente incompatíveis com a proximidade a zonas de moradia de baixa renda, impli-cando medidas de readequação.

A idéia central defendida neste texto é a de que o conjunto de intervenções gover-namentais modificadoras – decisões de alocação de usos e atividades especiais, programas

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de melhoria habitacional e urbana, decisões viárias, entre outras –, quase sempre veicula-das pela racionalidade de planos e projetos urbanos, incluem desde sempre, de modo nãodeclarado, uma série de mecanismos destinados a manter as populações empobrecidas sobvigilância, impedindo-as, de algum modo, de “estragar a brincadeira”.

Julgamos que o texto tenha tornado claros os objetivos imediatos destas interven-ções. Destinam-se a manter a “favela” sob controle, na convivência de vizinhanças estra-tégicas, e os formatos adotados, percebidos até o momento na Maré, são fartamente en-contrados em outras área da cidade: o emuralhamento como tentativa de confinamento;limitação do movimento de seus moradores; restrição ao crescimento da área; o isolamen-to de acessos viários por meio de afastamento (como no caso da Linha Vermelha) ouquando este se torna impossível, gradeamento (Linha Vermelha e Linha Amarela); veda-ção do acesso pela situação de quadras com edificações que servem a fins industriais ougovernamentais. Foram depositados aos poucos no domínio microfísico, em “doses ho-meopáticas”, de modo que cada nova intervenção mais abrangente carregava consigo dis-positivos que iam “ajeitando” o espaço a essa lógica.

Com isso, os objetivos eram múltiplos. Primeiramente, conter os corpos no interiordo assentamento, cercando, restringindo sua permeabilidade com o lado de fora. Depois,banir sua imprevisibilidade, que tanto assusta o universo da razão, monitorando atos in-desejáveis dos moradores, atrasando e dificultando seus movimentos, e desestimulando,assim, a intensificação do trânsito dentro-fora da favela. No limite, visam imobilizar oscorpos e, nessa impossibilidade, monitorar seus movimentos, vigiando cada passo a par-tir do momento em que a fronteira é ultrapassada.

Tentam invisibilizar a realidade da favela, escondendo a feiúra e o atraso, demons-trativos, entre outras coisas, daquilo que não se quer ver, a difícil situação do país e a in-competência em administrar soluções. E, como alternativa, inserir esses assentamentos napaisagem como imagem remota e estática, uma espécie de pintura, separada da cena ur-bana vivida.

Modos semelhantes de lidar com bolsões de pobreza aparecem a olhos vistos no Riode Janeiro: o estabelecimento de ecolimites, o estrangulamento de acessos, a farta utili-zação de dispositivos inibidores – como desníveis acentuados, grades, longas áreas des-conectadas de vias e outros empecilhos – encontram-se fortemente presentes em áreas vi-zinhas a assentamentos de baixa renda, constrangendo moradores ao confinamento.Aparecem com recorrência no discurso governamental, mas também naquele que vemda Academia, embasando modos de intervenção e projetos, em sinal do quanto já se en-contram naturalizados.

Confinamento, cercamento, estrangulamento de acessos e vigilância nos fazem re-cordar outro modelo urbanístico muito praticado na nossa cidade e país atualmente: oscondomínios de camadas altas e médias que se reproduzem rapidamente na cidade. Tam-bém estes são cercados; sua população está, em certo sentido, confinada e mantida sobpermanente vigilância, sendo que a ameaça principal não recai sobre seus moradores, masna invasão pelos “de fora”. Também aqui a invisibilidade é perseguida, mas no sentido in-verso: é a paisagem externa que não se deseja ver.

Cabe então questionar: essas aproximações serão simples coincidências ou será quepossuem, de fato, substâncias próximas? Arriscamos reconhecer que no centro da ques-tão está o medo, o medo propriamente urbano, a desconfiança do outro, aquele que seorigina do choque no espaço público, entre populações com acentuada iniqüidade so-cial, que parece encontrar-se no limite: a impossível República dando lugar ao apartheid.

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O condomínio é um modelo urbanístico que se origina em fins do século XIX, e quefoi aperfeiçoado no decorrer do século XX para variadas situações e adaptado a diferentesrealidades, com grande oportunidade de teste. Seu repertório de componentes (muros, gra-des, guaritas, etc.) foi intensamente aprimorado, adquirindo alto grau de eficiência e auto-nomia, passando a incorporar outros modelos e modos de intervenção. Como vimos, es-tão presentes tanto nos condomínios que se espraiam por toda a cidade como nasintervenções propostas para favelas em áreas centrais e Projetos Urbanos nas cercanias deáreas faveladas.

Por último, cabe reafirmar que esta ordem atua no reforço de preconceitos e estig-matização da população, substituindo a real melhoria do local e da situação em que se en-contram seus moradores, o que não exigiria o aperfeiçomento de tantos dispositivos es-tratégicos. Especialmente neste momento de grande agitação são freqüentes as ações docrime organizado que tentam “inverter” esta ordem e vão para as pistas da Linha Verme-lha, tornando visível sua presença para aqueles que não desejam vê-los. Vêm cobrar, damaneira mais contundente, a equivocada presença do poder público e o seu reconheci-mento como cidadãos com iguais direitos e oportunidades.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Maria Julieta Nunes deSouza é professora da Fa-culdade de Arquitetura e Ur-banismo da UFRJ e coorde-nadora do Escritório Públicode Arquitetura e Urbanismo– FAU/ NIAC/UFRJ.E-mail: [email protected]

Artigo recebido em maio de2007 e aprovado para publi-cação em julho de 2007.

SORKIN, M. (Ed.) Variations on a theme park. The New American City and the End ofPublic Space. New York: Hill and Wang, 1992.VALLADARES, L. P. Passa-se uma casa: análise do programa de remoção de favelas do Riode Janeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

A B S T R A C T In picture marked for the end of politics of eradication of slums andthe permanence of inhabitants in low rate areas placed very close to desired urban areas of bigcities in the country, space strategies are improved to deal with these uncomfortable proximities.This text intends to explore the space forms and territorial devices consolidated in our reality,which deal with the inconvenient presence of large amount of poverty inserted in importantsections of the city. It is translated in mechanisms of separation, invisibility, distance,confinement and isolation of these patterns, mentioned by the literature concerning the realitiesof other cities, started from the observation of the relationship of the Maré District (Rio deJaneiro) with the areas around, in the explicitness of the microphysical contributies added allalong the years in which the region has grown and reformulated its role and importance in thecontext of the city.

K E Y W O R D S Slums; peripheral areas; spatial segregation; urban projects.

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CARMEN PORTINHO E OHABITAR MODERNO

TEORIA E TRAJETÓRIA DE UMA URBANISTA

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R E S U M O O presente artigo traça a trajetória profissional da engenheira e urbanis-ta Carmen Portinho e de sua luta pela implementação de um programa de habitação popu-lar na cidade do Rio de Janeiro. Diretora do Departamento de Habitação Popular (DHP) daPrefeitura do antigo Distrito Federal entre 1946 e 1960, a urbanista liderou uma equipe dearquitetos, engenheiros e assistentes sociais na idealização e construção de quatro conjuntos re-sidenciais (dentre os quais se destaca o Conjunto Residencial do Pedregulho), seminais para ahistória da arquitetura e do urbanismo moderno brasileiro. Seu perfil profissional é emble-mático das aproximações da disciplina de engenharia do campo do urbanismo e da sua estru-turação em propostas para a crise habitacional do Rio de Janeiro. O artigo discute suas refe-rências teóricas, a elaboração do plano de habitação do DHP e conceitos que nortearam aconstrução e o posterior acompanhamento dos trabalhadores das “unidades residenciais au-tônomas”.

P A L A V R A S - C H A V E Carmen Portinho; habitação popular; modernismo.

Em fevereiro de 1948, Carmen Portinho foi nomeada Diretora do Departamento deHabitação Popular (DHP) da Prefeitura do então Distrito Federal (PDF), atual Rio de Ja-neiro, com a tarefa de promover moradia digna às camadas populares. Se à sua época, ofato foi largamente comemorado pelos movimentos feministas, dos quais Carmen foimembro desde os anos 1920, a repercussão de sua atuação por mais de 10 anos à frentedo DHP merece hoje olhares mais acurados.

A trajetória profissional da engenheira e urbanista Carmen Portinho será emblemá-tica da definição do campo do urbanismo a partir dos anos 1930, sobretudo da defesa dosideais modernistas. Terceira mulher a formar-se em engenharia no Brasil, em 1926, in-gressou, logo em seguida, no funcionalismo público. Desde então, esteve envolvida comos temas da cidade, aproximando-se dos problemas da habitação popular. Como direto-ra do DHP, construiu quatro conjuntos residenciais (C.R. de Paquetá, C.R. de Vila Isabel,C.R. da Gávea e C.R. do Pedregulho) (ver figuras 1, 2, 3 e 4), defendendo aguerridamen-te a implantação de modos de morar consubstanciados nas unidades de vizinhança, o quedeterminaria transformações diretas na dinâmica do trabalhador brasileiro.

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Figura 1 – Conjunto Residencial de Paquetá, 1952. Vista do bloco residencial. (ArquivoGeral da Cidade do Rio de Janeiro)

Figura 2 – Conjunto Residencial Vila Isabel, 1955. Foto da maquete do bloco residen-cial. (Revista Clube de Engenharia, maio de 1958)

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Figura 3 – Conjunto Residencial Marquês de São Vicente, 1952. Vista do Bloco Residen-cial. (Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro)

Figura 4 – Conjunto Residencial Mendes de Morais, 1950. Em primeiro plano, escola e,ao fundo, Bloco A. (Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro)

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O seu envolvimento com o urbanismo moderno inicia-se quando, ao trabalhar naDivisão de Engenharia da PDF supervisionando obras, assume o papel de secretária daRevista da Diretoria de Engenharia da Prefeitura do Distrito Federal, também conheci-da como Revista Municipal de Engenharia. Logo na primeira edição, em julho de 1932,são publicados projetos de viés moderno, como o conjunto residencial da Gamboa, deGregori Warchavchik e Lucio Costa, e o anteprojeto de Affonso E. Reidy, de um edifí-cio para a Prefeitura, somados a textos de caráter de divulgação assinados pela própriaCarmen: “A arquitetura moderna na Holanda” e “Influência do nosso clima na arquite-tura das prisões”.

Os diversos postos que assume na direção da revista (secretária, depois editora e reda-tora) terão papel central na sua carreira, pois neles são expostas suas idéias francamente fa-voráveis à arquitetura e urbanismo modernos. É por meio da Revista Municipal de Enge-nharia que os princípios urbanísticos e arquitetônicos modernos alcançam uma divulgaçãosem precedentes. A revista surge durante a “progressista” administração de Pedro Ernesto,e ter a Prefeitura um veículo de divulgação do ideário moderno tem significado muito cla-ro. Não era sem motivo que a gestão que selecionou através de concurso e construiu oprimeiro edifício público de feições modernas na cidade (o Albergue da Boa Vontade, deAffonso Reidy e Gerson Pinheiro) tenha sido a mesma que publicava uma revista divulga-dora da arquitetura moderna. Nos dizeres da editoria de outra revista da época:

Acaba de aparecer uma revista da Prefeitura esplendidamente bem cuidada. (...) Publica dois

projectos: um edifício para dependencias da Prefeitura e uma avenida proletaria, ambos emestylo moderno. Iniciando a Prefeitura por publicar projectos inteiramente modernos em suarevista, equivale a officializar o estylo. (A Casa, ago. 1932)

Figura 5 – Capa do 1º- número da Revista Municipal de Engenharia ou Revista PDF, co-mo ficou conhecida, julho de 1932.

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Figura 6 – Carmen Portinho entre os engenheiros da Prefeitura do Distrito Federal, anos1930. (Arquivo Particular Carmen Portinho)

A “causa moderna”, para Carmen Portinho, ganha dimensões que sobrepassam a de-fesa de urbanismo e arquitetura adequados. Ser mulher nos anos 1920, lutar por um es-paço profissional de destaque, não era tarefa das mais simples. Carmen será protagonistados movimentos feministas no Brasil, cujas bandeiras serão o sufrágio universal e a possi-bilidade de trabalhar fora de casa sem os constrangimentos da sociedade machista; em ou-tras palavras, a luta pela emancipação política e econômica. Como feminista, participaráativamente da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, e, em 1929, fundará a UniãoUniversitária Feminina – para apoiar as mulheres em suas carreiras e defender seus inte-resses nas profissões liberais – e, em 1937, a Associação Brasileira de Engenheiras e Arqui-tetas. (Nobre, 1999, p.15-22)

Trabalhando como engenheira civil na PDF, Carmen vai, aos poucos, se interessan-do pelos temas da cidade, aproximando-se do urbanismo. Associa-se, por exemplo, aoCentro Carioca, do qual foi sócia fundadora do Departamento de Urbanismo. Nele tema possibilidade de discutir as questões de urbanismo e de trabalhar por uma cidade me-lhor. Em 1941 é a vice-presidente do 1º- Congresso Brasileiro de Urbanismo, no qual, emdiversas sessões, foram discutidos os problemas das cidades brasileiras, inclusive o da ha-bitação. (Arquitetura e Urbanismo, jan./dez. 1941, p.26)

O maior orgulho de Carmen Portinho, porém, no que se refere à sua formação, é ofato de ter sido a primeira mulher a graduar-se em urbanismo no Brasil, em 1939, pelaUniversidade do Distrito Federal, na qual apresentou para a obtenção do diploma umprojeto para uma nova capital do Brasil. (Portinho, 1939) Nesse projeto foram contem-pladas as mais importantes questões do urbanismo da primeira metade do século XX: zo-neamento, sistema viário que conectasse de modo eficiente os vários pontos da cidade, e,principalmente, áreas residenciais dispostas em unidades de vizinhança – temas debatidosnas décadas de 1920 e 30 nos Estados Unidos e na Europa, e que ecoaram no Brasil. Car-men era uma ávida consumidora de textos teóricos e grande estudiosa de planos urbanís-

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ticos: lia as publicações da revista City Planning, do Instituto Americano de Planejamen-to Urbano, e da francesa Librarie de la Construction Moderne.

Em 1930 teve interesse em estudar na Universidade de Harvard, nos Estados Uni-dos, no então recém-lançado curso de City Planning, defendendo que as cidades brasilei-ras, como Rio e São Paulo, estavam expandindo-se rapidamente e que, para isso, o Paísprecisava de conhecimentos especializados nas áreas de planejamento urbano e zonea-mento, antes que se tornasse uma questão de saúde pública.1 Embora Carmen cite tex-tualmente Le Corbusier como uma influência sobre sua tese de conclusão do curso de ur-banismo – o que é inegável –, esta não será, assim como para Reidy, sua única matriz deconhecimento. Em correspondência trocada com Anhaia Mello, em 1929, pede uma su-gestão de tema de estudo. Ele lhe sugere “O Zonning como fator primordial para o de-senvolvimento ordenado da cidade moderna”, por ela aceito com grande interesse, embo-ra com a ressalva de que a aplicação do zoneamento no Rio de Janeiro encontrava grandedificuldade, uma vez que a cidade era “uma terrível miscelânea”. Ainda nessas correspon-dências, Carmen e Anhaia Mello debatem o Plano de Agache e sua inclusão do zonea-mento, além das teorias de Le Corbusier, que para o urbanista paulista eram “theorias, ecomo urbanismo é realização, de nada nos servem”.2

Esses debates são parte das discussões sobre zoneamento no Brasil dos anos 1920e demonstram o grande interesse do tema entre os técnicos, consubstanciando as primei-ras ações de zoneamento de cidades, no Recife (1936) e no Rio de Janeiro (1937), segun-do o Decreto nº- 6.000. Carmen era das estudiosas e entusiastas da disciplina. Antes mes-mo de se pós-graduar em urbanismo, discutia o tema com os especialistas e publicavaartigos3 que buscavam a legitimação dessa “útil e importante ciência”, como afirmava. Es-sa legitimação era dela própria, como uma das representantes da geração que abraçaria ourbanismo como profissão e, naturalmente, como modo de intervir nas questões-proble-ma da cidade que se transformava em metrópole. São estas suas palavras para definir aprópria profissão:

O urbanista deve ser o coordenador de esforços, o artista que, em ramo harmonioso, enfei-xe numa policromia atraente e exquisita todos os fatores e beleza urbana. (Portinho, jan.1934, p.16)

Em 1944, Carmen Portinho havia atingido um status profissional respeitado entreseus companheiros de engenharia, situando-se entre aqueles que se dedicavam ao urbanis-mo.4 Foi quando se candidatou a uma bolsa de estudos do Conselho Britânico para estu-dar a reconstrução das cidades bombardeadas pela guerra. A visita de Carmen à Inglater-ra deve ser entendida como parte da política de ajuda mútua entre os países aliados nopós-guerra, e sua presença naquele país representava, também, uma troca de informaçõesentre nações. Nesse momento, o Brasil já havia consagrado sua arquitetura moderna: o Pa-vilhão de Nova York na Exposição Internacional alcançara sucesso; o edifício do MES

(Ministério da Educação e Saúde)5 estava inaugurado e divulgado; e Brazil Builds, famosapublicação e exposição do MoMa de Nova York, havia se encarregado de divulgar nos Es-tados Unidos a “arquitetura dos trópicos”. Carmen levou para a Inglaterra material parapalestras sobre a arquitetura brasileira,6 tema que despertava grande interesse no velho con-tinente, que passara mais anos destruindo do que construindo. De importância foi a pa-lestra “Brazilian Architecture” (com “exibição de slides da arquitetura moderna brasileira”),organizada pelo grupo MARS (Modern Architectural Research), a seção inglesa do CIAM.

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1 Cf. cartas de Carmen Por-tinho à Fundação Rockefel-ler e à Columbia Universitypedindo bolsas de estudo.Não foi possível precisar aresposta a esses pedidosde bolsa, mas fato é que elanão foi aos Estados Unidosestudar.

2 Cf. cartas trocadas entreAnhaia Mello e Carmen Por-tinho entre maio de 1929 ejaneiro de 1930. ArquivoParticular Carmen Portinho.

3 Ver, por exemplo: “O crité-rio científico do urbanismo”;“O ensino do urbanismo”;“Concurso para a urbaniza-ção das avenidas compreen-didas entre ‘La Place deL’Étoile’, em Paris, e a praçacircular de la Defense, emCourbevoie”.

4 O campo do urbanismo écompartilhado pelos sabe-res da engenharia e da ar-quitetura. Muitos foram osengenheiros que se dedica-ram ao tema, dentre osquais, Francisco Baptista deOliveira, Oliveira Reis e Sa-bóia Ribeiro.

5 Na bagagem, Carmen le-vava um precioso tesouro:material sobre o edifício doMES, que mostrou em pri-meira mão a Le Corbusier.(Portinho, 1999, p.97)

6 Em agosto de 1945 faz aconferência Brazilian Archi-tecture no IAAS, em Lon-dres, e em outubro proferepalestra com o mesmo títu-lo no Royal Institute of Bri-tish Architects. Arquivo Par-ticular Carmen Portinho.

Carmen partiu, afinal, em meados de 1945, retornando no final do mesmo ano.(The Architects Journal, 22. nov. 1945; O Globo, jan. 1945) Percorreu a Grã-Bretanha co-nhecendo os projetos de reconstrução: visitou os complexos industriais de Manchester eBirmingham, as cidades portuárias de Liverpool e Southampton, os núcleos universitáriosde Oxford e Cambridge, além de cidades históricas como Bath. O mais grave problemaverificado foi a carência de habitações, o que, para quem vinha de um país onde o temadominava as pranchetas dos técnicos, era observado com grande interesse. Quanto às rea-lizações habitacionais, observou a construção de casas provisórias, destinadas a abrigar aspopulações cujos lares haviam sido completamente destruídos pelos bombardeios. Assis-tiu, por exemplo, à montagem, em 30 horas, de uma casa experimental de alumínio, ti-po de construção que se espalhava por todo o país. (O Globo, 14. out. 1945; Correio daNoite, 19. dez. 1945)

Na Inglaterra da década de 1940 já estaria em processo uma revisão teórica do TownPlanning de Ebenezer Howard. Essa mudança partirá, nas décadas de 1920 e 30, de trêsvertentes básicas, representadas por: Raymond Unwin, Patrick Abercrombie e ThomasAdams. Em 1942, Abercrombie coordena o plano da Grande Londres (London CountyPlan), em conjunto com J. H. Forshaw, iniciando uma série de reflexões teóricas sobre adescongestão, a alta densidade e a distribuição equilibrada da população pelo territóriomediante a construção de cidades-satélite de crescimento controlado. Em 1944, Aber-crombie publica o Greater London Regional Plan, no qual essas idéias eram aplicadas a to-da a região, como o próprio nome revela. Londres seria envolvida por um grande cintu-rão verde e as cidades conectadas por parkways com transporte público eficiente. Asdiscussões sobre a reconstrução incorporaram muito dos conceitos do RPAA (RegionalPlanning Association of America) e elaboraram e/ou desenvolveram os conceitos de unida-de de vizinhança, parkway e greenbelt town. A concretização das cidades-satélite do Planode Abercrombie aconteceu em 1946, quando foi aprovado o New Town Act, definindo asformas de financiamento e construção das cidades novas. Em novembro de 1946, iniciou-se a a construção da primeira cidade nova, Stevenage, composta por seis unidades de vi-zinhança, cada uma com 10 a 12 mil habitantes.

Carmen voltou da Inglaterra mobilizada pela causa da habitação, que, embora jáestivesse em seu rol de preocupações como urbanista, crescia em importância. Era esteum tema internacional que movia técnicos na Europa e Estados Unidos. No Brasil, eraalvo de discussões e de realizações. A urbanista retornou determinada a implementar suasidéias no âmbito da municipalidade carioca. Logo após sua chegada da Europa, publi-cou no Correio da Manhã uma série de artigos, intitulada “Habitação Popular”, advo-gando em prol da organização e execução de um plano de construção de habitações des-tinadas aos grupos sociais de pequenos salários. Para justificar seu discurso, não fugiu aotema da falta de moradias adequadas e do crescimento assustador das favelas. E Carmenescreve:

A existência de “favelas” e de outras habitações anti-higiênicas como os cortiços, sempre trou-xe, para todos os países do mundo, despesas e prejuízos incalculáveis.

São verdadeiros focos de doenças contagiosas, como a tuberculose e outras. As despesas que

as autoridades são obrigadas a fazer com a saúde pública, com os menores abandonados, de-linqüentes e toda espécie de vadios, loucos e criminosos que saem desses núcleos insalubres,poderiam ser aplicadas, com mais proveito para a coletividade, em prevenir êsses males emvez de remediá-los. As habitações populares construídas então pelas municipalidades consti-

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tuiriam uma medida de profilaxia, passando desta forma a fazer parte do programa dos ser-

viços de utilidade pública. (Portinho, 17. mar. 1946)

Seu primeiro artigo, ilustrado com a imagem de um redan de Corbusier, para Paris,denuncia o fracasso das cidades-jardim visitadas na Inglaterra, mostrando como se trata-va de subúrbios distantes dos centros de trabalho, vazios a maior parte do dia, que causa-vam a impressão de tristeza e abandono. Essas cidades haviam se transformado em cida-des-dormitórios, e os moradores não dispunham de tempo para cultivar o jardim oudesfrutar da casa. Tão distantes eram as casas, ainda que “bonitinhas e aparentementeagradáveis”, que todas as tarefas cotidianas, como ir ao mercado, freqüentar a escola oumesmo recorrer a serviços médicos, tornavam-se terrivelmente difíceis. Além disso, o cus-to dessas construções era extremamente alto: gastava-se muito para levar infra-estrutura(gás, luz, telefone, água e esgoto) a um local de densidade baixa. Carmen propunha queo problema da habitação deveria levar em conta todos os seus aspectos do modo mais am-plo possível: moradia, transporte, trabalho e recreio eram funções interdependentes e in-dissociáveis. (Portinho, 27. mar. 1946)

Mas, qual seria o tipo dessas casas? No terceiro artigo da série (ilustrado com umaperspectiva do mestre alemão Walter Gropius, que exemplifica as zonas livres entre osblocos de dez andares),7 a expressão-chave é “unidade de habitação”. Localizadas nas pro-ximidades do trabalho, as habitações seriam ligadas diretamente a serviços sociais, médi-cos e educativos. Abstraindo o clássico lote, os espaços verdes para descanso e recreio, oscaminhos para pedestres, completamente separados das ruas de tráfego, amalgamariamo conjunto construído. A casa isolada como ideal de moradia estava descartada: ela con-duzia ao individualismo, além de ser mais onerosa. A habitação coletiva estimularia a vi-da em sociedade e permitiria a reserva de grandes espaços livres, que possibilitariam aprática de esportes em locais apropriados – até esse momento restrita aos clubes priva-dos das elites.

Para exemplificar o modelo de habitação a que se refere, Carmen resume os itens dolivro Modern housing, de Catherine Bauer, publicado em 1934, que, embora um poucoextenso, é demasiadamente importante para que não seja citado. Os padrões mínimos pa-ra habitações em conjunto seriam:

1- Necessidade de fornecer abrigo conveniente ao homem. Cada família precisa de uma ha-bitação separada. 2- Tantos quartos forem necessários a fim de que, pais, filhos e filhas pos-

sam dormir separados. 3- A independência das habitações deverá ficar garantida. Nenhumvão de janela ou porta de uma habitação deverá devassar os de outra. 4- Água corrente e ins-talações sanitárias em cada habitação. 5- Iluminação, insolação e ventilação adequadas. 6-Nenhuma via de tráfego de grande movimento nas proximidades da habitação. 7- Facilida-de para recreio ao ar livre. Espaços reservados para jogos de crianças e adultos. Jardins e par-ques em volta das habitações e fora das vias de tráfego de penetração. 8- Emprego de mate-

riais de construção de boa qualidade. Projetos simples e fáceis de serem compreendidos.Conjuntos harmoniosos. 9- Tranqüilidade dos habitantes. Isolamento das paredes. Nenhu-

ma área interna que amplie os ruídos. 10- Compartimentos projetados de modo a facilita-

rem a colocação do mobiliário, a circulação e a limpeza. Equipamento adequado da cozinha,a fim de simplificar ao máximo o trabalho doméstico. Facilidades para lavar e secar roupas,seja na própria habitação, seja em local centralizado. 11- Acesso fácil às escolas, lojas comer-ciais, restaurantes, cafés e centros sociais. O homem não deverá gastar mais do que 30 mi-

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7 Imagem que acompanhaseu artigo “Construções bai-xas, médias ou altas?”, apre-sentado no 3º CIAM, em quedefende a construção deedifícios de sete a onze an-dares, separados suficiente-mente para garantir ar, luz emobilidade aos moradores.(Aymonino, 1973, p.211-32)

nutos para se transportar ao local de trabalho. 12- Solidez e incombustibilidade da constru-

ção. (Portinho, 27. mar. 1946)

Catherine Bauer tornara-se, nos Estados Unidos, uma referência obrigatória no cam-po da habitação social, uma expert no assunto, tendo lutado, desde o lançamento desseseu primeiro e clássico livro (Bauer, 1934), em 1934, até sua morte, nos anos 1960, pelaconstrução de moradias baratas e acessíveis aos trabalhadores americanos. Casada com umdos grandes personagens da arquitetura moderna americana, William Wurster, Catherineseria para sua geração nos Estados Unidos o que, mal comparando, seria Carmen para suageração no Brasil: formando-se, em 1926, em Artes e Literatura, no Vassar College, foitambém uma ativista dos direitos femininos, interessando-se pelas questões da arquitetu-ra e do urbanismo modernos. (Treib, 1995)

Depois de passar um ano na França, mudou-se para Nova York, onde, por intermé-dio de Lewis Mumford, passa a freqüentar o grupo do RPAA. Seus participantes vinhamse encontrando desde 1923, o próprio Mumford, Charles Whitaker, Clarence Stein,Henry Wright, Frederick Ackerman e Benton McKaye, entre outros. Esse grupo foi res-ponsável por estudar e reelaborar as idéias das cidades-jardim inglesas nos EUA, propon-do e desenvolvendo ambientes mais humanos na própria metrópole. Dentre as suas maio-res preocupações estava a de criar bairros com qualidades diferenciadas das queusualmente se encontravam nos subúrbios do país, onde não havia facilidades urbanas(mercado, escola, posto de saúde, áreas de lazer), além das grandes distâncias físicas doscentros. O grupo afirmava que o custo das construções era demasiadamente alto: paraproduzir habitações baratas, era preciso construir em grande escala, valendo-se dos pro-cessos industriais. Para tanto, era necessária uma estrutura institucional que desse supor-te à produção das casas. Em 1924, formam uma sociedade sem fins lucrativos, a CityHousing Corporation, e constroem Sunnyside, no Queens-NY, cujo projeto era de Steine Wright. Três anos depois se lançam ao projeto, mais ambicioso, de construção de Rad-burn, em New Jersey-NJ. (Radford, 1996, p.66-9)

Ambos os projetos são aplicações de suas teorias e foram fundamentais na divulga-ção do ideário das unidades de vizinhança, as neighborhood units, importantes para a com-preensão dos projetos do Departamento de Habitação Popular. A idéia primeira de uni-dade de vizinhança (neighborhood unit cell) parte de Clarence Perry, da equipe do RegionalPlan of New York de 1929, e é desenvolvida pelos membros do RPAA (Perry, 1932). Oponto central das propostas era a preservação da vida comunitária, com áreas residenciaisque garantissem o silêncio e o bem-estar. Mas os projetos não eram em nenhum aspectoantiurbanos: as soluções partem da metrópole, cujo crescimento seria celular, mediante acriação de novas unidades de vizinhança. Radburn seria uma cidade para 25.000 habitan-tes, constituída de três unidades de vizinhança, com separação total entre a circulação deveículos e a de pedestres.

Quando Catherine Bauer entrou em contato com este grupo, muitas das idéias já ti-nham sido postas em prática, mas a viabilização havia sido muito difícil. Mumford, porexemplo, morava com a família em Sunnyside há onze anos e, embora elogiasse muito olugar, afirmava que não era acessível àqueles de baixo poder aquisitivo. Motivada pelasdiscussões e realizações do RPAA, Catherine parte para a Europa, onde visita por diversosmeses a Alemanha, a Suíça, a Holanda e a França, dedicando-se a conhecer os programasde habitação. De volta ao país, escreve um artigo para o concurso da revista Fortune demelhor ensaio sobre o tema “Arte na Indústria”. Com seu artigo, ganha o concurso, te-

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cendo elogios ao programa de habitação de Frankfurt, coordenado por Ernest May. A par-tir daí, sua ligação com a habitação social foi definitiva. Em 1932 é convidada para orga-nizar no MoMa de Nova York a seção relativa à habitação na famosa exposição “Arquite-tura Moderna”, de 1933, e seguindo os conselhos de Mumford, dá início ao livro Modernhousing, com o intuito de apresentar e interpretar as experiências habitacionais européiaspara o público americano. Catherine desafiava seus compatriotas a não imitar o que esta-va sendo feito no além-mar, mas a criar formas habitacionais que pudessem atender àssuas necessidades. (Wright, 1995, p.184-203) Analisando diversos projetos habitacionais,dados estatísticos e informações colhidas nas várias cidades que visitou, fez uma defesaclara da arquitetura moderna e propôs soluções para seu país.

Algumas dessas soluções foram resumidas por Carmen Portinho no seu artigo emprol da organização de um programa de habitação popular para o Rio de Janeiro. O quenão estava listado, mas que seguramente Carmen conhecia, eram as argumentações deCatherine Bauer em favor de habitações financiadas pelo governo, questão mais políticado que técnica, requerendo por isso grande pressão da sociedade. Das realizações ameri-canas, Catherine exalta como importantes justamente Sunnyside e Radburn, do RPAA;afinal, já vinham falando e praticando as questões que ela estudara e sintetizara em seu li-vro. Nos anos seguintes, ela lutaria com grande força pela transformação dessas idéias emlei e pela sua realização. Uma delas era a construção, em 1935, do Conjunto Carl Mac-kley, na Filadélfia (ver figura 7), dos arquitetos europeus, radicados nos Estados Unidos,Oscar Storonov e Alfred Kastner, para operários da Federação Americana dos Trabalha-dores de Malharias. O conjunto é uma unidade de vizinhança, com edifícios de três an-dares, apartamentos de um, dois e três quartos, dotados de áreas comuns, como lavande-rias coletivas no terraço, centro comunal com piscina, grandes áreas livres ajardinadas,piscina e jardim de infância.

Figura 7 – Vista da piscina do Conjunto Residencial Carl Mackley, Filadélfia, EUA. (Da-vis, 1997, p.12)

Esses projetos tiveram significativa influência no que seria feito na Inglaterra depoisda 2ª Guerra Mundial, assunto muito discutido no momento em que Carmen participava

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das comissões da reconstrução. Se, nos anos 1920, o pensamento inglês invadiu o territó-rio americano, manifestando-se na criação de núcleos residenciais de baixa densidade, va-lorizando a vida comunitária, nos anos 1930 e 40, a reelaboração das mesmas idéias nosEstados Unidos influenciará os ingleses. As unidades de vizinhança, como solução habi-tacional e como resposta ao evidente crescimento das cidades, serão quase máximas nasAméricas e na Europa. Na São Paulo dos anos 1930, segundo Sarah Feldman, os técnicosconheciam e buscavam aplicar tais referências: Radburn e as unidades de vizinhança eramunanimidade até mesmo entre Anhaia Mello e Prestes Maia (Feldman, 1996, p.232). Car-men voltará da Inglaterra entusiasmada com a idéia, com os estudos que fez in loco e osdebates para sua aplicação. Seus conhecimentos e argumentos em favor da idéia serão de-talhados e convincentes.

Explicadas as regras mínimas gerenciadoras dos programas de habitação, CarmenPortinho segue, na sua série de artigos, expondo o ideal de habitação: as casas, desenhadaspara o mínimo de vida (entre 35 e 70m2) e de acordo com o tamanho da família, seriamcélulas de moradia. A existência mínima foi tema do 2º- CIAM, realizado em Frankfurt,em 1929, quando se estudaram exaustivamente soluções, em planta, que otimizassem osinteriores das casas. A racionalização dos espaços internos significava seu maior aprovei-tamento, e possibilitava aos moradores uma vida melhor, porque mais organizada. Espa-ços desnecessários eram eliminados e as peças indispensáveis ao uso cotidiano, como co-zinha, eram aproveitadas conforme as tecnologias da “era industrial”. Os equipamentosque poderiam ser de uso comum saíam do interior e passavam para o exterior da habita-ção. Eram tornados extensões da casa, partes vitais na ajuda e melhoria da vida exaustivade operários e operárias, e ajudariam a criar um senso de comunidade.

Uma vez que os trabalhadores não poderiam dispor de ajuda para as tarefas domés-ticas, no próprio espaço construído dos conjuntos residenciais estariam abrigados equipa-mentos adjacentes facilitadores do cotidiano. Exemplo primeiro é a lavanderia coletiva,que carrega a um só tempo dois conceitos: economia do espaço interno da habitação eajuda à “mão cansada” da operária nas tarefas domésticas. (Portinho, 27. mar. 1946)

No artigo de 14. abr. 1946 da mesma série, “Habitação Popular”, Carmen detém-senos serviços comuns. Escolas, museus, bibliotecas, exposições, centros de saúde, clubes,cinemas e centros comunais, para funcionarem, deveriam contar com a ajuda direta dasautoridades públicas e ser incorporados aos conjuntos. Os centros comunais (communitycenters) eram as peças-chave do funcionamento do conjunto residencial. Neles, conformeCarmen dizia ter visto na Inglaterra, ocorreriam atividades das mais diversas, de refeiçõesa palestras, de brincadeiras a peças teatrais e esportes. Sua função explícita seria garantir avida em sociedade, ou melhor, desenvolver nos moradores o hábito de compartilhar a vi-da, somado à possibilidade de empregarem com mais proveito as horas de lazer. Mas oobjetivo último era a “elevação no nível intelectual e moral dos habitantes.” (Portinho,14. abr. 1946) Elevação moral por meio da educação, que seria fornecida pelo poder pú-blico, municipal ou federal, ou seja, estatal. Ponto nevrálgico da questão era o fato de queas habitações coletivas construídas e alugadas aos trabalhadores garantiriam, ao menos emteoria, a implementação de um plano moral cujos instrumentos eram as várias instânciaseducadoras, não apenas a escola. O desafio era garantir a formação de um trabalhador, cu-ja casa seria sua parte vital.

No programa habitacional que Carmen idealizou para o Rio de Janeiro, o pontoafirmativo era que “casa” não era necessariamente “habitação”. Habitar englobava signifi-cados mais amplos e referia-se às condições gerais de vida dos moradores, somente reali-

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zadas plenamente com a disponibilidade dos serviços adjacentes ao teto propriamente di-to. Habitação era um problema social e urbano e como tal deveria ser tratado.

Figura 8 – Carmen Portinho examinando projetos no DHP, s/data. (Arquivo ParticularCarmen Portinho)

Esta foi a tônica de todo o trabalho de Carmen Portinho à frente do DHP, na lutapela implementação das unidades de vizinhança, o que, na prática, nem sempre foi pos-sível, tendo em vista o aspecto político do qual dependia para sua implementação. No quese refere às concretizações, o DHP deu continuidade à atividade do Departamento deConstruções Proletárias, concedendo projetos e licença às casas unifamiliares isoladas nolote de iniciativa privada que se enquadravam na categoria “populares”.

Carmen esteve à frente da construção dos quatro conjuntos habitacionais do DHP,nenhum deles totalmente concluído conforme projeto. O primeiro a ser projetado foi oConjunto Residencial Prefeito Mendes de Morais, o Pedregulho, de autoria de AffonsoEduardo Reidy, que ganhou fama internacional e, paradoxalmente, acabou por ofuscar asdemais realizações do grupo. A primeira versão do projeto data de 1946 e a inauguraçãoparcial aconteceu em 1950. O curvilíneo bloco A só viria a ser completado em 1960, emum momento em que o Departamento perde força na discussão das políticas habitacio-nais para a cidade. A seguir, em 1950, já em uma escala diversa, o arquiteto Francisco Bo-lonha projetou o Conjunto Residencial de Paquetá, com o intuito de erradicar as favelasda ilha que lhe dá nome. Em paralelo, e inserido em um local de grande embate de inte-resses, Reidy desenvolve o projeto do Conjunto Residencial Marquês de São Vicente, oGávea. A elaboração deste projeto, conforme veremos, era a finalização de um processoiniciado nos anos 1930 que remetia a erradicação de favelas em redor da Lagoa Rodrigode Freitas, cujos moradores, após um estágio de adaptação nos Parques Proletários, iriammorar nas casas definitivas, ou seja, no Conjunto. O edifício residencial foi concluídoapenas em 1964, e os edifícios destinados a abrigar os serviços auxiliares nunca foramconstruídos. Finalmente, o Conjunto Residencial de Vila Isabel tem seu projeto, datado

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de 1954, de autoria de Francisco Bolonha, e situa-se no terreno do antigo jardim zooló-gico da cidade. Foi, dentre todos os conjuntos do DHP, o que mais distante ficou da con-clusão: sequer o bloco residencial chegou a ser terminado.

Os conjuntos residenciais do Pedregulho e de Paquetá foram aqueles que mais seaproximaram do ideal completo de habitação idealizado por Carmen e pelos técnicos doDHP. Sobretudo se comparados aos demais, são os exemplos mais acabados dos conjun-tos, em que verificamos a realização do ideal de habitar e a tentativa de aplicação das téc-nicas de utilização das casas e dos espaços adjacentes.

No entanto, o alcance do Departamento e sua conseqüente importância no cená-rio urbano carioca daqueles anos não se restringem aos quatro incompletos conjuntosque construiu, mas a uma efetiva ingerência no que se refere à habitação, à construçãoe divulgação de uma política de habitação popular na cidade.

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Flávia Brito do Nascimen-to é arquiteta e historiadora,doutoranda na FAU-USP,pós-graduada pela Funda-ção Bauhaus e arquiteta doIPHAN-SP.E-mail: [email protected]

Artigo recebido em maio de2007 e aprovado para publi-cação em julho de 2007.

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A B S T R A C T This article aims to discuss the professional experience of the engineerand urban planner Carmen Portinho, as well as her struggle for implementing a social housingprogram in Rio de Janeiro. Portinho was between 1946 and 1960 Director of the Departmentof Popular Housing of Rio de Janeiro Town Hall, where she headed a team of architects,engineers and social workers in the idealization and construction of four housing developments(amongst which is the Pedregulho Housing Block), truly important to Brazilian architectureand urban planning. Her professional profile is emblematic of the engineers that have chosenurban planning and also of the attempts to establish social housing developments in Rio deJaneiro. The article discusses her theoretical references, the elaboration of a housing plan forRio de Janeiro and the concepts that guided it, as well as how the inhabitants interacted inthe neighborhood units.

K E Y W O R D S Carmen Portinho; social housing; modernism.

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A CIDADE CONTRA A FAVELAA NOVA AMEAÇA AMBIENTAL

R O S E C O M P A N S

R E S U M O Este artigo trata da apropriação do discurso da preservação ambiental pa-ra a retomada da discussão sobre remoções de favelas no Rio de Janeiro que haviam sido recha-çadas no processo de redemocratização do país. Depois da favela como foco de epidemias e antrode marginais, a mais nova representação social que vem sendo construída apresenta-a como fa-tor de degradação ambiental. Auxiliada pelo saber técnico-científico que demonstra empirica-mente os danos ao meio ambiente causados pelas ocupações irregulares, observa-se a constituiçãode um movimento conservador que busca pressionar os poderes públicos a reprimi-las, sobretudonas áreas mais valorizadas da cidade. O presente trabalho se propõe a evidenciar a estratégia dis-cursiva dos principais protagonistas deste movimento, a partir da análise de uma campanha pro-movida, no ano de 2005, por um importante jornal local, intitulada “Ilegal. E daí?”, e que te-ve como conseqüência uma ação movida pelo Ministério Público Estadual solicitando àPrefeitura a remoção de 13 áreas favelizadas.

P A L A V R A S - C H A V E Remoção de favela; ocupação irregular; degradaçãoambiental.

INTRODUÇÃO

Há mais de um século a ocupação das encostas dos morros do Rio de Janeiro temsido objeto de disputa entre classes. Inicialmente, eram os imigrantes estrangeiros e as ca-madas mais favorecidas que procuravam construir ali suas residências, em função do cli-ma mais ameno e da incidência de diversas epidemias que dizimavam parcelas da popu-lação da cidade. A crença de que as doenças eram transmitidas pela atmosfera carregadade “miasmas” – partículas que se desprendiam de matérias orgânicas em estado de putre-fação e exerciam ação deletéria –, impulsionou a busca pela localização residencial emáreas elevadas, onde os miasmas, por seu peso específico, não conseguiam alcançar.

Ao final do século XIX, entretanto, ocorreu uma tendência inversa. As encostas dosmorros tornaram-se alternativa habitacional para os grupos sociais marginalizados – den-tre os quais, ex-escravos recém-libertos, imigrantes pobres despejados dos cortiços doCentro e ex-combatentes da Guerra de Canudos –, com a construção dos primeiros case-bres no Morro da Providência, naquela época conhecido como Morro da Favela. Embo-ra desde o começo do século XX se observe um intenso debate na imprensa local sobre aproliferação das favelas na área central, somente na década de 1930, a partir do PlanoAgache,1 estas seriam objeto de uma política pública visando a sua erradicação.

Desde então, diversas políticas de remoção se sucederam, tendo em comum, alémda arbitrariedade e do emprego da violência, o alto valor imobiliário da área ocupada co-mo critério para a escolha daquelas “marcadas para desaparecer”. A despeito disso, as fa-velas não pararam de se multiplicar, chegando, em 2000, à impressionante marca de 600comunidades, totalizando 1.092.476 moradores que, segundo o IBGE,2 é o equivalente a18,6% da população do Município. Considerando que o processo de redemocratização

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1 Plano de Remodelação, Ex-tensão e Embelezamento daCidade do Rio de Janeiro,elaborado pelo arquitetofrancês Alfred Agache, entre1926 e 1930, durante a ges-tão do Prefeito Prado Junior.

2 Instituto Brasileiro de Geo-grafia e Estatística, órgãofederal responsável pela rea-lização de censo demográfi-co e contagem populacional,entre outras atribuições.

da sociedade brasileira rechaçou a continuidade da política de remoções e que, em seu lu-gar, o tema do direito à cidade e da regularização e urbanização de favelas tornou-se he-gemônico na agenda política dos governos e das agências multilaterais, a disputa em tor-no do controle e da ocupação das encostas deslocou-se do campo da política habitacionalpara o da política ambiental.

Tal deslocamento ocorreu porque, apesar do princípio da não remoção de favelas tersido consagrado nas legislações urbanísticas elaboradas após a Constituição de 1988, mes-mo naquelas mais progressistas – como é o caso do Plano Diretor do Rio de Janeiro –, ad-mite-se a exceção no caso de se encontrarem em “unidades de conservação ambiental” ou“áreas de risco”. A definição e a delimitação dos perímetros destas áreas tornam-se, assim,um elemento crucial para o destino das comunidades de favelas localizadas em encostas oumargens de corpos hídricos, o que pode determinar sua permanência ou remoção.

É forçoso constatar que, se em um primeiro momento, ao definir as encostas co-mo áreas a serem protegidas, a legislação ambiental acabou por facilitar sua ocupaçãopelos pobres, face ao desinteresse do mercado imobiliário, em um segundo vem propor-cionando uma nova justificativa para a contenção ou mesmo a remoção destes assenta-mentos informais. À delimitação administrativa das unidades de conservação ambien-tal soma-se a difusão da percepção – legitimada pelo discurso técnico-científico – deque a favela constitui um risco para a coletividade, seja pela possibilidade de ocorrên-cia de desastres naturais, seja pelas características próprias da ocupação – como a faltade saneamento e a elevada densidade populacional –, enquanto fatores de degradaçãodo meio ambiente urbano.

A imprensa sempre jogou um papel decisivo na disseminação de uma representaçãosocial historicamente construída concernente às categorias “favela” e “favelado” que as as-sociavam à falta de higiene e à marginalidade (Valladares, 2005; Abreu, 1987; Valla,1986; Leeds & Leeds, 1978). Talvez em nenhum outro episódio a utilidade de tal desem-penho tenha sido tão explícita quanto na segunda metade da década de 1940, quando osjornais O Globo e Correio da Manhã promoveram uma campanha dirigida por Carlos La-cerda, intitulada a “Batalha do Rio”, no intuito de apoiar e incentivar as remoções em-preendidas pelo então prefeito Marechal Ângelo Mendes de Morais.

Recentemente, assistiu-se a uma nova tentativa de mobilização da opinião públicano sentido de estimular o poder público a intervir repressivamente contra as favelas, con-trolando sua expansão, ou até mesmo, como se verificou em alguns casos, propondo a suaremoção. Uma série de reportagens denominada “Ilegal. E daí?”, novamente promovidapelo O Globo, dedicou-se a denunciar a expansão de algumas favelas – a maioria delas si-tuada na zona sul –, focalizando a inoperância da Prefeitura em conter as ocupações irre-gulares. Uma suposta supressão de cobertura vegetal, que nem sempre ocorreu – em mui-tas o crescimento é apenas vertical –, serve de pretexto para que representantes de diversossegmentos passem a defender abertamente a remoção, amparados pelos dispositivos da le-gislação ambiental acima citados.

O objetivo do presente trabalho é evidenciar de que forma o discurso ambiental temsido instrumentalizado por determinados agentes sociais para pressionar o poder públi-co a retomar a política de remoções de favelas. Para tanto, abordamos primeiramente ascondições objetivas conferidas pelo ordenamento jurídico que resultaram no desloca-mento do conflito com assentamentos informais para a arena da política ambiental. Emseguida, analisamos o conteúdo das matérias veiculadas na série “Ilegal. E daí?”, buscan-do identificar os principais agentes portadores da estratégia discursiva de vinculação da

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favela como fator de degradação ambiental, e suas propostas de resolução do problema.Finalmente, apresentamos o desdobramento concreto deste movimento: a ação civil pú-blica promovida pelo Ministério Público Estadual, intimando a Prefeitura a remover 13áreas favelizadas que estariam expandindo suas fronteiras sobre os limites do Parque Na-cional da Tijuca.

O NOVO FRONT DA POLÍTICA AMBIENTAL

O tema do direito à cidade emergiu no bojo do processo constituinte através do Mo-vimento Nacional pela Reforma Urbana, sendo consagrado tanto na Constituição Fede-ral de 1988 quanto nas constituições estaduais, nas leis orgânicas e planos diretores mu-nicipais. No Rio de Janeiro, o direito à cidade traduziu-se no reconhecimento dos espaçosocupados irregularmente pela população pobre e na extensão a estes de todos os benefí-cios advindos da urbanização. Com efeito, constam entre os princípios do Plano Diretorda Cidade, aprovado em 1992, a não remoção das favelas e sua transformação em bair-ros,3 mediante a regularização fundiária e urbanística e dotação de infra-estrutura e equi-pamentos urbanos. Entretanto, excetuam-se do princípio da não remoção aquelas favelasque ocupem: a) unidades de conservação ou áreas de especial interesse ambiental; b) áreasde risco; c) faixas marginais de proteção das águas superficiais, adutoras e redes elétricasde alta tensão; d) faixas de domínio das estradas federais, estaduais e municipais; e) vãose pilares de viadutos, pontes e passarelas, bem como áreas adjacentes, quando oferecemriscos à segurança individual e coletiva ou inviabilizem a implantação de serviços urbanosbásicos; f ) ou ainda, áreas que não possam ser dotadas de condições mínimas de urbani-zação e saneamento básico.4

Consideradas as características de relevo e hidrografia da cidade do Rio de Janeiro,somadas ao processo histórico de ocupação pelos pobres das áreas impróprias à urbaniza-ção, que por esta razão foram deixadas de lado pelo mercado imobiliário – além de teremsido protegidas desde 1965, pelo Código Florestal5 –, tem-se que tal dispositivo resulta naanulação do princípio da não remoção para grande parte das favelas cariocas que se situamem encostas ou nas margens de rios, canais, córregos e lagoas. Ermínia Maricato (2001)constata não ser esta uma especificidade local, mas um traço marcante da urbanização bra-sileira, que levou a um quadro de “exclusão ambiental”, no qual os mais pobres suportamos riscos advindos de condições físicas adversas ou da falta de saneamento básico.

É nas áreas rejeitadas pelo mercado imobiliário privado e nas públicas, situadas em regiõesdesvalorizadas, que a população trabalhadora pobre vai se instalar: beira de córregos, encos-tas de morros, terrenos sujeitos a enchentes ou outro tipo de risco, regiões poluídas ou... áreasde proteção ambiental (onde a vigência de legislação de proteção e a ausência de fiscalizaçãodefinem a desvalorização)”. (p.219)

A autora atribui a progressão da ilegalidade e da “exclusão ambiental” nas nossas ci-dades a uma combinação perversa entre negligência do Estado no que tange à provisãode moradia adequada para os pobres e tolerância com a saída encontrada por estes, co-mo forma de evitar ter que responder à demanda habitacional latente e inverter priori-dades, além dos dividendos políticos extraídos da manutenção de um estado de neces-sidade permanente.

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3 Lei Complementar 16/92– art. 44, III e IV.

4 Idem, art. 44, § 1º.

5 O Código Florestal, insti-tuído pela Lei Federal nº4.771, de 15/09/65, emseu art. 2º, considerou co-mo áreas de “preservaçãopermanente” as florestas edemais formas de vegeta-ção situadas, entre outras,no topo dos morros e nasencostas com declividadesuperior a 45%.

A maior tolerância e condescendência em relação à produção ilegal do espaço urbano vêm

dos governos municipais, aos quais cabe a maior parte da competência constitucional de con-trolar a ocupação do solo. A lógica concentradora da gestão pública urbana não admite a in-corporação ao orçamento público da imensa massa, moradora da cidade ilegal, que reivindi-ca serviços públicos... Esta situação constitui, portanto, uma inesgotável fonte para oclientelismo político. (p.224)

À medida em que aumenta a escassez de terrenos nos bairros mais valorizados, con-tudo, o interesse do setor imobiliário tende a se voltar para as áreas de proteção ambiental,com vistas a ampliar as fronteiras do mercado formal. De fato, sucessivas tentativas de li-berar as encostas dos morros cariocas para a construção de condomínios residenciais ocor-reram nos últimos doze anos.6 Curiosamente, o argumento utilizado pela Prefeitura paraalterar o zoneamento foi justo o de melhor preservar o meio ambiente e combater a fave-lização, uma vez que a implantação dos condomínios se daria a partir de parâmetros quelhes garantiriam baixa densidade, permeabilidade do solo e manutenção de áreas verdes.

Enquanto os empresários do setor imobiliário comemoravam a expectativa de100% de valorização dos terrenos em encostas, caso a lei dos condomínios fosse aprova-da,7 em entrevista à imprensa, o então prefeito Luis Paulo Conde não deixava dúvidasquanto ao que estaria em jogo: a disputa entre classes sociais pela ocupação daquelas áreasdesprezadas pelo mercado no passado. A estratégia adotada era ocupá-las antes que os fa-velados o fizessem.

O projeto de lei é uma maneira de combater a favelização das encostas. A maioria das inva-sões ocorre em terrenos particulares, mas isso não será uma regra geral. Não significa que a

construção dos condomínios será permitida em toda parte... Prefiro a Joatinga a uma favela.

(O Globo, 19 jun.1998)

Ao mesmo tempo em que se procurava liberar os investimentos imobiliários dos “en-traves” da legislação urbanística, intensifica-se a atuação do Ministério Público Estadual(MPE), em particular o da Procuradoria do Meio Ambiente, na fiscalização do cumpri-mento dos dispositivos legais de proteção. No que diz respeito especificamente às ocupa-ções irregulares, nota-se um forte empenho do órgão na cobrança aos governos munici-pais no sentido de reprimi-las, quando localizadas em áreas de preservação ambiental.

O desempenho do Ministério Público no tocante às favelas pode ser verificado noinquérito civil que resultou na remoção da favela Parque Rebouças, no bairro Rio Com-prido, em agosto de 1995. A abertura do inquérito, em dezembro de 1992, fora motiva-da por uma matéria veiculada no Jornal do Brasil, que erroneamente noticiava o surgi-mento de uma nova favela sobre o Túnel Rebouças – principal via de ligação entre aszonas norte e sul da cidade e a comercialização ilegal de lotes. Durante quase três anos, oMPE pressionaria a Prefeitura a proceder à remoção da favela, mesmo depois de alertadopara o fato de que a ocupação tivera início em 1963, que seus primeiros moradores eramantigos operários que haviam trabalhado na construção do Túnel, que o terreno prova-velmente fora cedido pelo DERJ,8 e que apenas uma parte se encontrava em zona de pro-teção ambiental.

O Decreto nº 14.095, de 04/08/95, assinado pelo Prefeito César Maia, determinoua remoção, o embargo e a demolição das construções da favela localizadas em áreas con-sideradas de “alto risco”. É interessante observar como, concomitante à tentativa de dis-

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6 O dispositivo esteve pre-sente nos projetos de lei nº790/94 e 1112/95 que tra-tam de condomínios urba-nísticos, no projeto de leicomplementar nº 11/97que institui a lei de uso eocupação do solo, e nosprojetos de lei complemen-tar nº 137/97, 33/99,45/99 e 62/00 que insti-tuem, respectivamente, osProjetos de Estruturação Ur-bana da Tijuca, Méier, Ta-quara e Campo Grande.

7 Jornal O Globo, 12 set.1998.

8 Departamento de Estra-das do Rio de Janeiro. Estasinformações, entre outras,constam de relatório técni-co encaminhado ao Ministé-rio Público em abril de 1993pela Superintendência deMeio Ambiente da Secreta-ria Municipal de Urbanismo.

ponibilizar as encostas para o mercado imobiliário por intermédio da lei dos condomí-nios, a justificativa que acompanha o decreto refere-se ao dever do Município de prote-gê-las. As mesmas normas urbanísticas e ambientais que deveriam ser flexibilizadas paraestimular novos empreendimentos residenciais oferecem agora sustentação jurídica ao atode remoção, lembrando que o Maciço da Tijuca é definido como área de preservação per-manente, que sua encosta é instituída como patrimônio paisagístico da cidade e que asáreas acima da curva de nível de + 100 m são estabelecidas como reserva florestal.

Todavia, as normas que são argüidas para fundamentar o ato do Executivo munici-pal – a Lei Orgânica e o Plano Diretor – não foram observadas quanto ao processo de re-moção. Isso porque o art. 429 da Lei Orgânica determina que somente quando detecta-da a existência de risco de vida insanável, que não possa ser solucionado por intermédiode obras de urbanização ou estabilizantes, será realizado o remanejamento ou o reassen-tamento das famílias para localidades próximas, assegurando a participação da comunida-de ou de seus representantes em todo o processo. No §2º do art. 44 do Plano Diretortambém se configura a obrigatoriedade da relocalização dos moradores que ocupem áreasimpróprias à urbanização. De acordo com depoimento de técnicos da Secretaria Munici-pal de Habitação (SMH), apenas algumas poucas famílias foram reassentadas, sendo quea maioria recebeu indenização e não há mais registros sobre detalhes da operação.

O episódio da remoção da favela Parque Rebouças revela o conflito que se apresentaentre o direito à moradia daquelas populações – que, não tendo outra alternativa habita-cional, ocuparam irregularmente áreas frágeis de encostas ou de baixadas – e a legitimida-de de regras jurídicas no campo da política ambiental, que permitem a extinção deste di-reito no caso de estas serem declaradas como áreas de proteção ou áreas de risco. O princípioconstitucional de que a lei não pode retroagir para prejudicar o cidadão não se aplica nes-ta situação, haja visto o grande número de favelas que no Rio de Janeiro são muito ante-riores à vigência das restrições ambientais que passaram a incidir sobre sua localização.

Tal conflito foi ainda agravado pelo dispositivo constitucional que estendeu aos Mu-nicípios a competência concorrente com Estados e União de proteger o meio ambiente –incluída aí a definição de unidades de conservação da natureza –, porém, deixando a car-go dos entes federativos os critérios para sua ocorrência. A única exigência foi a de que aalteração ou supressão dos espaços protegidos se fizesse exclusivamente mediante lei, sen-do “vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifi-quem sua proteção” (art. 225, III).

Desta forma, não só a definição dos critérios que justificam a demarcação de áreas aserem protegidas, mas também a definição dos usos que possam comprometer os atributosnaturais relevantes, consubstancia um poder discricionário que passou a ser conferido aosórgãos gestores da política ambiental. Um poder talvez demasiado para secretarias munici-pais recém-criadas e pouco estruturadas que se multiplicaram em todo o país após a reali-zação da Conferência Rio-92 e da implantação da Agenda 21 local. Muitas vezes, como es-tratégia de construção de um campo próprio de atuação institucional, estes órgãos lançarammão do uso indiscriminado da delimitação administrativa de áreas protegidas.

No Rio de Janeiro, por exemplo, onde a Lei Orgânica Municipal admite, no seu ar-tigo 462, a criação de unidades de conservação ambiental e o tombamento de bens me-diante ato do Poder Executivo, o resultado foi que, em apenas nove anos de existência, aSecretaria Municipal de Meio Ambiente (SMAC), surgida em 1994, instituiu trinta e umaáreas protegidas,9 das quais nada menos do que vinte e quatro por decreto! Ou seja, semqualquer discussão com vereadores eleitos ou representantes da sociedade civil, obedecen-

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9 Foram tombadas a Ilha deBrocoió (Decreto 17.555/99)e o Morro do Ipiranga, Praiado Recôncavo e do Cardo(Decreto 18.998/99), e oentorno da Pedra da Babilô-nia foi declarado proteção abem tombado (Decreto12.864/94). Declaradas co-mo Área de Especial Interes-se Ambiental: a Orla da Baíade Guanabara (Decreto12.328/93), a Baixada deJacarepaguá (Decreto 12.329/93), o Maciço da PedraBranca (Decreto 12.330/93), o Corredor EcológicoPedra Branca-Tijuca (Decre-to 19.799/01), e o JardimBotânico e Lagoa (Decreto20.424/01). Declaradas co-mo Área de Proteção Am-biental: as pontas de Copa-cabana, Arpoador e entorno(Lei 2.087/94), os morrosda Babilônia e de São João(Decreto 14.874/96) e o daViúva (Lei 2.611/97), asserras da Capoeira Grande(Lei 2.835/99) e das Tabe-buias (Decreto 18.199/99),os morros do Silvério (Lei2.836/99), da Serra dosPretos Forros (Decreto19.145/00) e da FazendaBaronesa (Decreto 21.209/01). Declaradas Área deProteção Ambiental e Recu-peração Urbana: o Jequiá(Decreto 12.250/93) e aSerra da Misericórdia (De-creto 19.144/00). Foi de-clarada como Área de Pre-servação Permanente aPedra de Itaúna (Lei 2.331/95). Foram criados os par-ques: do Mendanha (Lei1.958/93), das Ruínas (De-creto 12.471/93), Bosquede Jerusalém (Lei 2.331/95), Tom Jobim (Decreto14.272/95), Yitzhak Rabin(Decreto 14.457/95), Fa-zenda do Viegas (Decreto14.800/96), da Prainha (De-creto 17.445/99), da Fonted a S a u d a d e ( D e c re t o19.143/00), José GuilhermeMerquior (Decreto 19.143/00), de Grumari (Decreto20.149/01), da Serra da Ca-poeira Grande (Decreto21.208/01) e do Jardim doCarmo (Decreto 20.723/01).

do exclusivamente a critérios supostamente técnicos e científicos, a burocracia ambientaltoma para si o poder de regular o uso do solo destas áreas – diversas delas já favelizadas –,determinando arbitrariamente o destino de seus moradores.

O saber ecológico cada vez mais internalizado pelo corpo técnico-burocrático dos ór-gãos ambientais, como analisa Acselrad (1999, 2004), estaria induzindo à produção de umnovo modo de organização e gestão erudita do território, com vistas a um processo que oautor chama de “reestruturação ecourbana”. Uma conseqüência da emergência desta novaracionalidade seria a despolitização das lutas sociais envolvendo questões ambientais.

A Ecologia científica é também um outro componente no campo das forças políticas dos

conflitos ambientais, apresentando-se no espaço público como capaz de racionalizar o terri-tório independentemente de paixões e interesses... A gestão racional dos recursos naturais é,assim, o modo pelo qual certas burocracias tentam legitimar cientificamente suas práticas,

apoiando a difusão de uma idéia de “natureza natural”. (2004, p.22)

A representação de uma “natureza natural”, pura, diferentemente de determinadaoutra, ordinária ou modificada pela ação do homem, ao mesmo tempo em que permitea delimitação administrativa de parcelas do território consideradas como de relevante in-teresse ambiental, define as demais que serão, por sua irrelevância, deixadas ao sabor domercado. Nesta nova ordem urbana regida pelo ecologismo, a avaliação dos riscos decor-rentes de usos inadequados que possam comprometer o equilíbrio dos ecossistemas ou al-terar características físicas torna-se elemento preponderante nas disputas sócio-espaciais.

Com efeito, o laudo técnico contendo a análise das condições físicas do terreno so-bre o qual se assenta uma ocupação irregular é decisivo para sua permanência ou expul-são. No Rio de Janeiro, tanto a Lei Orgânica do Município quanto o Plano Diretor ve-dam a hipótese de urbanização e regularização fundiária de favelas e loteamentosirregulares ou clandestinos quando detectada a existência de risco de vida para os mora-dores. O problema é que a avaliação dos riscos geológicos, bem como a análise da possi-bilidade de realização de obras estabilizantes compete a um único órgão, integrante da ad-ministração local, a GEO-Rio. A detenção de um conhecimento altamente especializadodificulta a contestação de seus pareceres pelas comunidades afetadas, convertendo-se emalgo irrefutável e inquestionável.

A SÉRIE JORNALÍSTICA “ILEGAL. E DAÍ?”

Em setembro de 2005, o jornal O Globo deu início a uma série de reportagens en-focando a omissão da Prefeitura diante do crescimento desordenado das favelas cariocas.Na verdade, este tema já havia sido abordado pela imprensa em abril de 2004, quando ex-plodiu uma guerra pelo controle do tráfico de drogas na Rocinha, aterrorizando os mo-radores da zona sul da cidade. Naquela ocasião, um intenso debate se desenrolou na mí-dia a respeito das possíveis soluções para conter a expansão das favelas, dentre as quais aproposta do Governo do Estado, apresentada pelo Vice-Governador e Secretário Estadualde Meio Ambiente e Desenvolvimento Urbano, Luiz Paulo Conde, que consistia em cer-car quatro delas – Rocinha, Vidigal, Parque da Cidade e Chácara do Céu – com um mu-ro de três metros de altura, e desenvolver nelas uma “ocupação social”, associando poli-ciamento ostensivo e atendimento médico e odontológico.

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A primeira reportagem da série “Ilegal. E daí?” chamou a atenção para o crescimen-to vertical e horizontal da Rocinha, comprovado pelo expressivo número de prédios deapartamentos em construção e por cerca de 70 imóveis erguidos fora dos Eco-limites,10

cercas de aço que isolam a favela das áreas verdes. Sob o título “Vale tudo na Rocinha”, amatéria enfatizava o desrespeito às regras urbanísticas e o não pagamento de impostos,ambos exigidos pelo poder público dos demais cidadãos. Embora se tenha dado muita ên-fase inicialmente às favelas da zona sul, no decorrer do tempo foram relatados processossemelhantes que estariam ocorrendo em outras regiões e em outros municípios.

A continuidade das reportagens diárias, durante um período de quase dois meses,desencadeou um amplo processo de discussão, no qual distintos atores sociais foram ins-tados a opinar ou apresentar proposições para a solução do problema identificado, dei-xando transparecer as mais diferentes visões a respeito da favela. Houve uma mudança nofoco das matérias ao longo do tempo, que passaram de meras denúncias sobre a expansãode favelas na cidade a críticas contundentes sobre a ineficácia de diversos programas exe-cutados pela Prefeitura, entre os quais o Programa Favela-Bairro, o Eco-Limites e o POU-

SO – Postos de Orientação Urbanística e Social, instalados em diversas comunidades ca-rentes –, entre outros.

A opinião pública pôde também se manifestar através de dezenas de cartas de lei-tores suscitadas pelas consecutivas e grandes reportagens; assim como os diversos edito-riais e pequenas janelas inseridas no interior das matérias davam conta do posicionamen-to do jornal em relação ao problema, que não se furtou a apresentar. No bojo desteembate de idéias se recoloca o tema das remoções, embora em nenhum momento se uti-lize a expressão “erradicação” ou se defenda a retomada de uma política de extinção dasfavelas cariocas.

Logo na segunda reportagem da série, o Ministério Público Estadual, por intermé-dio do Promotor de Meio Ambiente e Patrimônio Cultural, se pronuncia pela aberturade inquérito civil para investigar a responsabilidade da Prefeitura pela expansão de cincofavelas, todas na zona sul, a área mais valorizada da cidade – Rocinha, Vila Alice, Babilô-nia, Chácara do Céu e Julio Otoni. O promotor sugere a demolição imediata dos imó-veis vazios – já que os ocupados necessitam de autorização judicial –, baseado na infor-malidade dos mesmos, porém, ignorando completamente o princípio da não remoçãoinstituído pela Lei Orgânica e pelo Plano Diretor.

Todas as construções em favelas são ilegais e, portanto, sujeitas à demolição. (O Globo, 23set. 2005)

Uma polêmica em torno do dispositivo da Lei Orgânica, que estabelece a situaçãode risco como única possibilidade de remoção, foi aberta por ter sido esta argumentaçãoutilizada pelo Prefeito César Maia para se eximir da responsabilidade de fiscalizar cons-truções em áreas favelizadas. O MPE se pronunciou contrariamente à interpretação de Cé-sar, alegando que a fiscalização de construções irregulares é um dever legal da Prefeitura,e que o seu não cumprimento caracteriza omissão e improbidade administrativa. Sugerealterar a legislação municipal, mas lembra que o Código Florestal é uma lei federal hie-rarquicamente superior, que prevê como obrigação do poder público a preservação deáreas de proteção permanente.

O Ministério Público também intimou a Prefeitura a apresentar em 20 dias um pla-no de remoção de 14 favelas, a ser executado no prazo de um ano, e o reassentamento

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10 O Programa Eco-Limitesfoi criado em 2001, com oobjetivo de conter a ocupa-ção irregular em áreas deencosta, através da implan-tação de marcos físicos ecabos de aço no entornodas favelas.

das famílias residentes nos cerca de 4.000 imóveis abrangidos. De acordo com os promo-tores de meio ambiente que encaminharam a recomendação, não haveria impedimentolegal na ação proposta, por estas favelas estarem em áreas de preservação permanente ouem áreas de risco.

Para remover estas favelas, o prefeito não precisa mudar a Lei Orgânica. As atuais legislaçõesmunicipal, estadual e federal permitem que ele faça a desocupação das favelas, o reassenta-

mento dos moradores e a recomposição da vegetação. Se o prefeito não atua, caracteriza-seomissão. (O Globo, 06 out. 2005)

Das 14 comunidades afetadas pela determinação do MPE, oito estavam localizadasna região do Alto da Boa Vista, nos limites ou no entorno do Parque Nacional da Tiju-ca, quatro no bairro de Jacarepaguá, e duas na zona sul da cidade. Tendo a Prefeitura serecusado a acatar a recomendação do Ministério Público, a Promotoria do Meio Ambien-te entraria, um ano mais tarde, com uma ação civil pública para obrigá-la a conter o cres-cimento de 13 favelas situadas no Alto, solicitando a remoção integral de sete delas, e ademolição de imóveis que estariam em áreas de risco nas seis restantes. Pede ainda a con-denação do Prefeito por improbidade administrativa e a suspensão de seus direitos polí-ticos por um período de até seis anos. Voltaremos a analisar esta ação com mais detalhena sessão seguinte.

As entidades ambientalistas instadas a se pronunciar consideraram uma falsa ques-tão a polêmica que se criou em torno da alteração da legislação sobre remoção de favelas,uma vez que a Prefeitura já disporia de todos os instrumentos para coibir ocupações irre-gulares em áreas de preservação. A ONG Ação Ecológica lembrou, por exemplo, que o ar-tigo 475 da Lei Orgânica veda a redução, a qualquer título, de áreas de coberturas vege-tais nativas ou recuperadas, enquanto a Associação Permanente das Entidades de Defesado Meio Ambiente (APEDEMA) afirmou que se as leis ambientais já existentes estivessemsendo cumpridas, a cidade teria preservado de 60% a 70% da mata nativa. Na visão des-tas entidades, o problema é ausência de vontade política para fiscalizar as dezenas de bar-racos que surgem diariamente e a especulação imobiliária que estaria ocorrendo nas fave-las. (O Globo, 06 out. 2005)

Não obstante, vereadores e deputados estaduais se apressaram a apresentar emendas,respectivamente, ao artigo 429 da Lei Orgânica e ao artigo 234 da Constituição Estadual,ambos prevendo a remoção de favelas exclusivamente quando constatada situação de ris-co. Na Câmara Municipal, três projetos de lei chegaram a ser anunciados, mas nenhumacabou conseguindo as assinaturas necessárias para a tramitação. Um deles, de autoria dapresidente da Comissão de Meio Ambiente, vereadora Aspásia Camargo, do Partido Ver-de (PV), juntamente com a vereadora Leila Maywald – hoje no Partido da Frente Liberal(PFL), mas que iniciou sua carreira política também no PV –, propunha uma mudança naLei Orgânica de modo a permitir a remoção total ou parcial das favelas, nos casos em queo Executivo achasse necessário, abolindo a obrigatoriedade de indenização ou reassenta-mento de famílias que estivessem em áreas de interesse ambiental ou paisagístico há me-nos de cinco anos.11 De acordo com Aspásia, a falta de controle sobre as áreas ocupadasirregularmente, admitida pelo Prefeito, exigiria uma intervenção federal imediata.

Estamos assistindo a destruição da cidade formal; isso é o estágio anterior do colapso. (OGlobo, 30 set. 2005)

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11 Leila Maywald (PFL) jáhavia proposto, igualmentesem sucesso, dois projetosrelacionados ao tema dasremoções. Um visandotransformar o Morro DonaMarta, em Botafogo – já to-talmente favelizado –, emAPA, e o outro “acabando”com a favela existente noMorro da Viúva, no bairro doFlamengo.

O segundo projeto, de autoria do vereador Wanderley Mariz (PFL), simplesmentesuprimia o inciso VI do artigo 429 da Lei Orgânica, que trata da remoção, evitando, as-sim, que fossem obtidas liminares sustando ações da Prefeitura neste sentido. Finalmen-te, o terceiro projeto, de autoria do vereador Carlos Bolsonaro, do Partido Popular (PP),previa mudanças no referido inciso, permitindo a remoção quando as condições físicas semostrassem adversas à ocupação, independentemente da existência de área de risco. Con-tudo, na percepção deste vereador, a remoção é uma medida apenas paliativa se não hou-ver controle de natalidade.

Na Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ), o processo encon-trava-se mais adiantado. Dois projetos de lei alterando a Constituição Estadual haviam si-do protocolados na Mesa Diretora da casa. De autoria dos deputados Luiz Paulo Corrêada Rocha, do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), e Paulo Mello, do Partidodo Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), um dos projetos previa remoções quan-do averiguado risco de danos ambientais ou necessidade de realização de obras de urba-nização na área ocupada. Já o segundo, de autoria do deputado Jair Bolsonaro (PP), pre-via a remoção a qualquer tempo, em qualquer situação, sendo as famílias reassentadasonde o Executivo assim o preferisse.

O que não pode é decidir que eles (os moradores de favelas) sejam removidos para áreas pró-ximas. É um absurdo, se você levar em conta o IPTU de São Conrado, onde fica a Rocinha.(O Globo, 05 out. 2005)

O presidente da Comissão de Meio Ambiente da ALERJ, deputado Carlos Minc, doPartido dos Trabalhadores (PT), a despeito de possíveis divergências ideológicas e partidá-rias, corroborou com a preocupação de seus colegas parlamentares em relação ao supostocrescimento desenfreado das favelas. Ele iria preparar um relatório que seria encaminha-do ao Ministério Público, identificando algumas áreas ameaçadas próximas a parques pú-blicos, para que a Prefeitura, o Estado e a União fossem notificados.

Corremos o risco de esses parques serem transformados no que chamo de reservas-favelas,por falta de controle das expansões. (O Globo, 16 out. 2005)

Este clima de quase histeria que tomou conta do debate – em parte proporcionado pe-las manchetes sensacionalistas do jornal12 – não se restringiu às casas legislativas, abrindo es-paço para que propostas mirabolantes e irrealistas, elaboradas por “especialistas” em buscade publicidade, fossem apresentadas como panacéia. Ganhou incrível destaque, por exem-plo, um projeto que a arquiteta Lélia Fraga havia sugerido em 1992, quando então Secretá-ria Municipal de Urbanismo, prevendo a remoção integral das favelas da Rocinha, do Vidi-gal, da Vila Parque da Cidade, da Vila Pedra Bonita e da Vila Canoa – todas na zona sul –,e o reassentamento de seus moradores em bairro residencial a ser erguido na zona portuáriapor empresas do setor imobiliário que comercializariam os imóveis. (O Globo, 30 set. 2005)

Enquanto o Vice-Governador e o Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB) lançavamum concurso de projetos para um plano de urbanização da Rocinha, e o Secretário Mu-nicipal de Urbanismo anunciava o Programa Rocinha Legal – com o estabelecimento degabaritos e a remoção de 360 casas em áreas de risco –, o Sindicato da Indústria da Cons-trução Civil (Sinduscon) propunha a transferência de moradores de favelas para galpõesabandonados convertidos em habitações na Avenida Brasil.

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12 Entre elas: “O Espigãoda Rocinha” (28/09/05) –com referência a um prédiode 11 andares, tambémchamado de “Empire Stateda Rocinha” –, “Expansãodas favelas não tem eco-li-mites” (16/10/05), “Despe-dida forçada” (18/10/05), arespeito de estabelecimen-tos de ensino próximos a fa-velas que haviam sido fecha-dos na zona sul, além de“Jacarepaguá pode se tor-nar um bairro-favela” (21/10/05) e “Casas que amea-çam o verde” (13/11/05).

O Tribunal de Contas do Município acabou entrando indiretamente na discussão,através da divulgação de um relatório em que apontou falhas no Programa Favela-Bairro.Isso porque além de analisar contratos e gastos realizados, o relatório do TCM discorreusobre o avanço das favelas beneficiadas pelo Programa, alertando para a ausência de me-canismos de controle do crescimento, e considerando em muitos casos, dadas as condi-ções físicas adversas, a urbanização um equívoco. O texto do TCM, de acordo com a ma-téria “Até o Favela-Bairro é contestado”, criticaria ainda a inexistência de uma política deremoções de comunidades carentes.

A política de não-remoção acrescida ao descontrole da expansão e/ou surgimento de ocupa-

ções irregulares... vem inviabilizando a vocação turística do Rio de Janeiro. (O Globo, 17 out.2005)

Nem todos os atores sociais chamados a opinar sobre o problema, no entanto, de-fenderam a remoção. Entidades profissionais, acadêmicos e mesmo associações de mora-dores da zona sul criticaram a ausência de política habitacional, em todos os níveis de go-verno, e a falta de fiscalização e contenção do processo de desmatamento por parte daPrefeitura. As associações de moradores, em particular, demonstraram preocupação coma formação de complexos de favelas – com a junção da Rocinha e Vidigal, Rocinha e Par-que da Cidade, ou Vila Alice e Júlio Otoni, em Laranjeiras –, com a falta de infra-estru-tura e com o tráfico de drogas.

Em defesa do direito à permanência dos moradores das favelas em questão, poucosse pronunciaram. Alguns representantes de associações de moradores protestaram contrao caráter discriminatório das denúncias veiculadas pelo jornal, na medida em que residên-cias de classe média e alta nas encostas de bairros nobres também provocariam danos am-bientais. Parlamentares progressistas e da bancada do PFL na Câmara de Vereadores quetêm base social em favelas13 também se manifestaram abertamente contrários à retomadada política de remoções, assim como o próprio Prefeito que, em entrevista, declarou:

A minha posição é contra a remoção... não é um instrumento para fazer desaparecer as co-munidades. Elas estão aí para ficar. Elas ficarão. Não se pode criar na classe média essa ex-

pectativa de remoção de favelas, porque ela não existe. Agora, irregularidades, exageros, abu-sos têm que ser corrigidos. (O Globo, 05 out. 2005)

Questionado pelo fato de ter realizado diversas remoções no seu primeiro mandatocomo Prefeito, no período de 1993 a 1996, César Maia argumentou que não significauma contradição nem uma mudança de postura, pois todas foram na perspectiva da me-lhoria de vida da população, e com o seu consentimento.

Sou radicalmente contra. Isso não me impede de ter feito remoções na cidade. Não fiz pou-

cas. Fiz várias, mas sempre com o entendimento da população. O Favela-Bairro faz isso, masfaz por consenso. O reassentamento do Favela-Bairro é sempre feito na área da própria comu-

nidade, através da verticalização... Temos que integrar a cidade. Como o Rio vai reproduzir

agora a discussão dos anos 60, dos anos 40? Isso é uma barbaridade. (O Globo, 05 out. 2005)

Um grupo composto por 27 vereadores de diversos partidos divulgou um manifes-to em que se declaravam contrários a mudanças na Lei Orgânica, e acusavam a Prefeitu-

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13 Entre eles, o vereadorNadinho de Rio das Pedrase Jorginho da SOS.

ra de omissão por não ter uma política habitacional para a população de baixa renda. Overeador Édson Santos (PT), um dos que participaram da aprovação da Lei Orgânica, noano de 1990, defendeu a manutenção do dispositivo contido no artigo 429, afirmandoque ele impede que se repita a experiência da década de 1960, quando as “pessoas foramescorraçadas de suas moradias” (O Globo 03 out. 2005). Como são necessários dois ter-ços dos votos dos vereadores para aprovar emendas à Lei Orgânica, por se tratar de umalei complementar, a divulgação de tal manifesto indicou a inviabilidade política de qual-quer iniciativa no sentido de flexibilizar a possibilidade de remoção de favelas.

Em que pese ter sido afastado, ao menos temporariamente, o fantasma da retomadada política de remoções, a Federação das Associações de Favelas do Estado do Rio de Ja-neiro (FAFERJ), juntamente com entidades comunitárias, gabinetes de vereadores e ONGscomprometidas com a questão da moradia e da reforma urbana criaram um movimentoem defesa das comunidades ameaçadas, situadas próximas de áreas de preservação am-biental, como Vila Alice, em Laranjeiras, na APA São José; as do Horto, nos fundos doJardim Botânico, primeira área natural protegida no país; e aquelas do Alto da Boa Vis-ta, junto ao Parque Nacional da Tijuca, citadas na ação do Ministério Público que vere-mos a seguir.

A série “Ilegal. E daí?” continuou ao longo do ano de 2006, de maneira descontí-nua, a noticiar a expansão de favelas e as situações de risco advindas das ocupações irre-gulares em encostas, nas margens de corpos hídricos, de estradas e ferrovias, tanto nomunicípio como em outros do Estado do Rio de Janeiro. Todavia, sem o mesmo impac-to e repercussão.

A AÇÃO CIVIL PÚBLICA PELA REMOÇÃO DEFAVELAS NO ALTO DA BOA VISTA

Em outubro de 2006, o Ministério Público Estadual deu entrada em ação judicial,elaborada pela Promotoria do Meio Ambiente, denunciando o Prefeito César Maia pelaprática de crime ambiental, face à sua omissão em relação ao surgimento e/ou crescimen-to de favelas no bairro do Alto da Boa Vista que estariam situadas em Área de ProteçãoAmbiental e Recuperação Urbana (APARU), criada pelo Decreto Municipal nº 11.301/92.Nesta ação, o MPE solicitou a remoção de 13 comunidades, das quais sete integralmente,e seis parcialmente.

Tal iniciativa já havia sido anunciada um ano antes, em meio à polêmica suscitadapela série de reportagens do jornal O Globo intitulada “Ilegal. E daí?”. Na matéria veicu-lada no dia 6 de outubro de 2005 – “MP quer remoção em áreas de risco” –, promotoresque subscrevem a ação já antecipavam que solicitariam ao Prefeito a remoção de 14 fave-las que supostamente se encontrariam em áreas de risco, entre as quais as comunidadesdo Açude, Agrícola, Biquinha, Fazenda, Furnas, Mata Machado, Morro do Banco e Ti-juaçu, que integrariam posteriormente a lista da ação civil pública movida pelo MP.

Na ocasião, o MPE dispunha de um parecer de um engenheiro florestal, em que es-te alegava que os recursos hídricos e a Mata Atlântica da região vinham sendo destruídos,e que “o grande risco” era que as comunidades se unissem destruindo todo o vale que seencontra adjacente ao Parque Nacional da Tijuca. Este mesmo temor aparece no texto daprópria ação, bem como na fala da promotora Rosani da Cunha Gomes, em entrevistaconcedida em outubro de 2006, quando do anúncio da medida judicial.

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Além dos danos ambientais, existe o risco de essas comunidades se unirem no futuro. Pode-

riam formar uma nova grande favela, como a Rocinha. (O Globo, 27 out. 2006)

Apesar da justificativa utilizada pelo Ministério Público para solicitar a remoção dasfavelas localizadas no Alto fosse a existência de risco, nenhuma delas constava na relaçãodivulgada pela Fundação GEO-Rio em fevereiro de 2006, em que listava 32 pontos críti-cos sujeitos a deslizamento, envolvendo 28 comunidades. Já a Superintendência Estadualde Rios e Lagoas (SERLA) informava que outros 84 locais seriam suscetíveis a inundação.De acordo com parecer deste órgão anexado à ação do MPE, das 13 comunidades visto-riadas, apenas quatro casos pode ser caracterizado risco iminente para os moradores, nascomunidades do Açude, Soberbo, Furnas e Fazenda, totalizando 79 imóveis. A ação civilpública, entretanto, solicita a remoção integral das favelas Açude, Biquinha, Fazenda,Furnas nº- 866, João Lagoa, Ricardinho e Vale Encantado que, somadas, alcançariam onúmero de 350 domicílios.

A falta de caracterização, na maioria dos casos, de risco de vida iminente e irreme-diável aos moradores, única possibilidade prevista pela Lei Orgânica para remoção, comovimos nas sessões anteriores, não impediu a aceitação da ação por parte da Juíza da 4ª- Varade Fazenda Pública, Cristiane Cantisano Martins, fundamentada na suposta agressão auma área protegida por decreto municipal. A decisão da Juíza pelo acolhimento da soli-citação encaminhada deixa claro seu posicionamento político com respeito à primazia daquestão ambiental sobre o aspecto social.

Em que pese a lamentável situação acerca da moradia na cidade do Rio de Janeiro, há que seimpor providências eficazes em defesa do meio ambiente, cuja preservação, além de inúme-

ros benéficos efeitos, implica na qualidade de vida de todos os cidadãos, independentemen-

te da sua condição econômica... A dignidade da pessoa humana, princípio maior que devenortear a Administração Pública na execução de seus projetos e no cumprimento de suas

obrigações, também exige a incolumidade do meio ambiente.14

A argumentação utilizada pelos promotores para justificar a proposição da ação ci-vil pública explicita que esta não se destina a preservar a vida dos moradores face à exis-tência de risco iminente, mas sim que o MPE “age em defesa do meio ambiente, cuja or-dem foi atingida pelo seguinte fato danoso: ocupação desordenada das Áreas de ProteçãoAmbiental e Recuperação Urbana do Alto da Boa Vista” (fl. 4). Ou seja, ainda que citenominalmente o Prefeito no pedido de reparação de dano e por improbidade ambiental,os favelados não são as vítimas neste processo, mas os agressores do meio ambiente.

Os critérios para identificar apenas 13 favelas dentre as mais de 600 existentes nomunicípio, segundo o IBGE, teriam sido: a velocidade do crescimento, a agressão ao meioambiente e a presença de “áreas de risco propriamente ditas, sujeitas a deslizamentos,inundações etc.” Entretanto, a predisposição do MPE em intervir no Alto da Boa Vista seevidencia pelo fato de que as vistorias realizadas pelo Grupo de Apoio Técnico Especiali-zado do Ministério Público (GATE), em conjunto com técnicos de órgãos da Prefeitura edo Estado15 nas comunidades citadas, ocorreram nos dias 8, 21, 23 e 25 de novembro de2005, posteriores, portanto, ao anúncio da solicitação de remoção de nove favelas na re-gião, como noticiado pela imprensa no dia 6 de outubro do mesmo ano.

Ainda na justificativa que antecede o relatório de vistoria, os promotores alegam queo crescimento urbano desordenado no perímetro da APARU do Alto da Boa Vista tem pro-

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14 Conclusão do Juiz, queconsta do processo nº-2006.001.139217-4.

15 Participaram das visto-rias os seguintes órgãos:Secretarias Municipais deMeio Ambiente, Urbanismo,Assistência Social e Habita-ção, GEO-Rio, Defesa Civildo Município, Instituto Perei-ra Passos, CEDAE, SERLA,Instituto Estadual de Flores-tas (IEF) e Secretaria do Es-tado de Defesa Civil.

vocado impactos ambientais nas encostas, nascentes e rios, “devido à carência de infra-es-trutura instalada nas áreas ocupadas, provocando prejuízos à qualidade de vida e ao am-biente local” (fl.5). Contraditoriamente, não solicitam a urbanização destas áreas, mas asolução radical e traumática da remoção das famílias. Por quê? Seria essa uma tentativa demanter a natureza natural e incólume?

Vale lembrar que esta argumentação acima citada é tirada do decreto que criou aAPARU, e que tinha exatamente entre seus objetivos promover a “compatibilização entreo aproveitamento do solo e a defesa do meio ambiente”, a “regularização das favelas exis-tentes, nos seus aspectos fundiário, urbanístico e ambiental”, e o “controle do crescimen-to das favelas existentes” (Art. 2º, III, IV e V). Com efeito, o decreto da APARU foi propos-to pela mesma gestão que elaborou a Lei Orgânica e o Plano Diretor, do então PrefeitoMarcelo Alencar (PDT), obedecendo ao mesmo princípio da não-remoção de favelas.

O relatório sobre as vistorias realizadas pelo GATE nas comunidades, igualmente ane-xado ao processo, é bastante elucidativo quanto às verdadeiras razões que levam o MPE asolicitar a remoção das sete favelas do Alto:a) o potencial de degradação ambiental vislumbrado em caso de expansão, resultando da

constituição de um complexo de favelas, cuja reversão e reparação de danos provoca-dos se tornariam extremamente difícil ou mesmo impossível;

b) o pequeno número de domicílios na maior parte delas, o que facilitaria a operação;c) o desrespeito à demarcação dos eco-limites.

A análise da situação de cada favela, apresentada separadamente no relatório, nãodeixa dúvidas quanto ao caráter antecipatório das medidas sugeridas. No caso das favelasdo Vale Encantado, João Lagoa e Açude, os técnicos ressaltam que o crescimento poderáacarretar degradação ambiental, e que, para evitá-lo, convém removê-las e reassentar as fa-mílias em comunidades próximas já consolidadas, algo facilitado pelo pequeno númerode residências existentes: 30 casas, no caso da primeira, e somente 15, nas demais.

Menciona-se haver “certo grau de risco potencial” nestas favelas, face à presença decursos d’água junto a construções, capim colonião ou vegetação de grande porte que po-deriam ocasionar, respectivamente, inundações em períodos de chuvas intensas, incêndioem épocas de seca, ou queda de árvores, eventualmente. Nenhuma das sete comunidadesencontra-se nos limites do Parque Nacional da Tijuca. Mas os técnicos observam que sãoabertas clareiras no interior da floresta, o que é errado, posto que esta “deve ser preserva-da”. E concluem:

Fatos como estes são presenciados em várias vistorias em comunidades irregulares, que naverdade acabam proporcionando a remoção, morte por anelamento, onde a casca da árvoreé retirada em forma de anel em volta do tronco, acarretando a morte do exemplar arbóreo.É o desmatamento que vem destruindo o que resta da Mata Atlântica junto a comunidadesirregulares. Neste caso, a floresta está num local onde existe um maior número de argumen-tos para a sua preservação, pois se encontra na divisa de um Parque Nacional. (fl.19)

Já nas favelas de Fazenda e Estrada de Furnas nº- 866, o GATE constatou crescimentoda ocupação, em desrespeito à demarcação dos eco-limites colocados pela Prefeitura. Alémde sua expansão acarretar “possíveis danos ao meio ambiente”, uma única construção re-cente na Estrada de Furnas nº- 866 estaria na faixa marginal de proteção de um curso d’águaexistente. Já com relação à Fazenda, os técnicos sublinham que “seu crescimento está des-controlado”, causando “enorme degradação ambiental”. Grande parte das residências situa-

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se na faixa marginal de proteção do Rio Cachoeira, cujo leito encontra-se assoreado, comvolume de água reduzido, e que vem sendo poluído por despejo de esgoto doméstico.

Surpreendentemente, com relação às duas comunidades restantes na lista do MPEnada foi observado que justificasse sua remoção. Quanto à favela Biquinha, o relatório serestringe a informar que “possui em torno de 50 casas, devendo ser removidas e os seusmoradores reassentados...”. No que tange à favela Ricardinho, da mesma forma senten-ciada sem maiores delongas, acrescenta-se que uma casa, entre as 40 existentes na comu-nidade, encontra-se em situação de risco por situar-se junto a um barranco, e que uma ár-vore foi anelada, razão pela qual provavelmente morreria. O suficiente para o GATE

pontificar que:

Esta prática é freqüente em comunidades irregulares da região. Estes atos criminosos vêmdestruindo a Mata Atlântica, devendo as autoridades competentes tomar medidas urgentes

no sentido de fiscalizar e reprimir práticas como estas. (fl.29)

Com base no relatório das vistorias realizadas pelo GATE, os promotores solicitamà Justiça a antecipação da tutela que obrigaria a Prefeitura a executar, no prazo de umano, um plano de remoção e reassentamento destas sete comunidades, além daquelasconstruções que, por ventura, se encontrarem em áreas de risco e/ou em áreas de preser-vação permanente das comunidades restantes no Alto da Boa Vista. A despeito da fragi-lidade da caracterização do risco e do parecer da SERLA de que somente 79 domicíliosestariam localizados em faixas marginais de proteção de cursos d’água, no universo das13 comunidades citadas na ação civil pública, o MPE considera que a “rapidez com queocorrem as intervenções humanas na natureza requer reflexões e ações preventivas, quan-do possíveis, ou reparadoras dos danos causados por atividades não sustentáveis dos re-cursos naturais”. (fl. 36)

A ausência de qualquer menção no processo judicial a reuniões ou encontros comrepresentantes das comunidades afetadas sugere que estas jamais existiram, e que, portan-to, as comunidades sequer foram ouvidas pelo Ministério Público. Não obstante, é forço-so reconhecer que o órgão tem uma visão bastante consolidada a respeito das favelas co-mo agressoras do meio ambiente, visão esta que se deixa transparecer não apenas noparecer técnico do GATE, mas na fala dos próprios promotores que subscrevem a ação,quando, por exemplo, afirmam (com grifo nosso):

Como uma das conseqüências da crescente concentração da população nas grandes metró-poles à procura de melhores condições econômicas e sociais, está a aglomeração das ocupa-ções periféricas desprovidas de infra-estrutura básica necessária, composta por uma sociedadeque ocupa áreas inadequadas de forma desordenada, causando sérios problemas aos cidadãos e aomeio ambiente como um todo. Este desenvolvimento urbano pode causar a disseminação deepidemias, devido principalmente à falta de saneamento básico, ao mau gerenciamento dos

resíduos sólidos, à falta de drenagem, entre outros problemas encontrados nas regiões menosfavorecidas no meio urbano. (fls. 35/36)

Na concepção dos promotores do meio ambiente, a ação desordenada de áreas ina-dequadas e a falta de urbanização são qualidades intrínsecas à população favelada, e nãoproduto da ausência de investimentos públicos em habitação para segmentos de baixarenda. Contra estas qualidades intrínsecas, de nada adianta, portanto, regularização urba-

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nística e fundiária, educação ambiental, reflorestamento comunitário, geração de empre-go e renda. Somente a remoção poderá evitar a degradação ambiental, provocada pelocontato desta população com a natureza que se quer imaculada.

Alguns dos líderes comunitários que não foram ouvidos pelo MPE se mostraram per-plexos com o anúncio da remoção, em entrevista à imprensa. Embora reconheçam a exis-tência de acréscimos ou novas construções, alegam respeitar os eco-limites impostos pelaPrefeitura e até mesmo denunciar às autoridades quando há tentativas de invasão. En-quanto moradores do Vale Encantado dizem ter documentos para comprovar que pos-suem títulos de posse, uma moradora do Açude, residente na favela há 30 anos, argumen-ta que a ocupação é muito antiga, rejeitando a idéia de que provoca danos ambientais.

A comunidade tem mais de 80 anos e todo mundo respeita o meio ambiente. Não deixamosque haja invasões. Só falam das favelas, mas há mansões próximas, e derrubaram árvores pa-

ra construí-las. (O Globo, 27 out. 2006)

O Prefeito, mais uma vez, se eximiu de qualquer responsabilidade pelo controle dasocupações, desta vez repassando ao Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Re-nováveis (Ibama), uma vez que o órgão federal detém a gestão do Parque Nacional da Ti-juca, reivindicada pelo Município. Informalmente, teria avisado às comunidades atingi-das que não pretenderá atender à solicitação do Ministério Público, tranqüilizando-as.Entidades representativas de favelas, ONGs ligadas à questão da moradia e parlamentaresde diversos partidos, contudo, mais uma vez se mobilizam para recorrer da decisão judi-cial e resistir à tentativa de remoção, caso esta venha a ocorrer.

CONCLUSÃO

A conscientização cada vez maior da sociedade brasileira sobre a importância da pre-servação do patrimônio dito “natural” tem explicitado a tensão antes apenas latente entreos direitos sociais e os difusos, entre os quais, o direito ao meio ambiente equilibrado, co-mo reza a Constituição Federal. Talvez em nenhuma outra situação tal tensão seja mais fla-grante do que no caso de ocupação, por favela, de área legalmente protegida. A busca dasuperação do antagonismo que contrapõe posições “ecocentristas” e “antropocentristas”impulsiona um intenso debate político e acadêmico, no sentido da constituição de umaagenda comum entre os campos disciplinares do urbano e do ambiental (Martins, 2006).

No Rio de Janeiro, a expansão das favelas observada nas áreas nobres da cidade deulugar à reabertura da discussão sobre a pertinência da remoção que, por seu histórico deviolência e arbítrio, haviam sido sobejamente rechaçadas em passado recente. Os seg-mentos interessados na retomada desta política têm se utilizado de um discurso que as-socia ocupação irregular do solo à degradação ambiental, como se fossem os pobres osúnicos responsáveis pelo desmatamento e a poluição dos corpos hídricos ocorridos aolongo de décadas.

Essa concepção do pobre como elemento perturbador da ordem urbana possui umalonga tradição não apenas no Brasil, graças à influência do higienismo, e tem profundasraízes históricas na América Latina, como ressalta Janice Perlman (1977). Segundo a au-tora, as elites latino-americanas sempre consideraram a cidade como fortaleza da culturaelevada, razão pela qual, desde a primeira invasão de migrantes e o surgimento das pri-

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meiras favelas, passaram a tratá-las como uma praga, como aglomerações patológicas quecorrompiam a moral, a saúde e a higiene coletivas, além de prejudicar a paisagem.

Ainda de acordo com Perlman, entre as várias escolas de pensamento que atribuíama marginalidade aos pobres – mesmo havendo fraca comprovação empírica – situa-se a es-cola arquitetônica-ecológica, composta em sua maioria por arquitetos e estudiosos da ur-banização da América Latina. Esta corrente utilizou o termo “marginal” para designar as-sentamentos informais em função de suas características físicas – localização periférica,alta densidade, ocupação desordenada, ausência de infra-estrutura, habitações precáriasetc –, às quais combinou com o que supunha fossem os correspondentes de estilo de vi-da e atributos sociais, “alargando a definição de marginalidade a partir do habitat exter-no do pobre para incluir qualidades interiores pessoais”. (p.126)

Enquanto o Plano Agache expressava a compreensão de que a favela era composta“por uma população meio nômade, avessa a toda e qualquer regra de hygiene”,16 o dis-curso ambiental incorporado pelo Ministério Público advoga que, como citado anterior-mente, a mesma é “composta por uma sociedade que ocupa áreas de forma desordenada,causando sérios problemas aos cidadãos e ao meio ambiente como um todo”. Note-seque, além de se tomar aqui a característica desordenada da ocupação como qualidade dapopulação favelada, esta não parece incluída na categoria dos cidadãos a quem prejudica.

Esta visão não é exclusiva do Ministério Público, mas compartilhada por alguns gru-pos ambientalistas, acadêmicos, políticos e urbanistas, entre outros segmentos sociais, co-mo ficou patente nas reportagens da série “Ilegal. E daí?”. Subjacente a esta representaçãosocial da favela como elemento de degradação ambiental está o pressuposto classista deque pobre desmata e rico preserva, presente no cerne do debate sobre a lei dos condomí-nios que discutimos na primeira sessão do trabalho.

Ou seja, o favelado, que já foi acusado de ser “avesso à higiene” e sugerido como umdelinqüente em potencial, agora é anunciado subliminarmente como um predador. Tra-ta-se, portanto, da renovação do estigma da inadequação para o convívio social urbano, ecomo analisou Perlman sobre o mito da marginalidade, a tese do pobre como um agres-sor nato do meio ambiente é desprovida de comprovação empírica.

Como se verifica no caso específico das comunidades do Alto da Boa Vista que abor-damos na última sessão, algumas delas são compostas por pequenos núcleos residenciaisoriginários de antigas fazendas, sítios e chácaras. De fato, a maioria sequer é consideradafavela pela Prefeitura ou o IBGE. Seus moradores alegam conviver harmonicamente coma Floresta da Tijuca há décadas, razão pela qual argumentam legitimamente ter o direitoà propriedade mediante o instituto da usucapião.

A despeito de espasmos conservadores que anseiam pela retomada da política de re-moções de favelas, a conciliação entre interesses aparentemente contraditórios envolvidosem conflitos ambientais urbanos deste tipo passa irremediavelmente pela revisão de al-guns conceitos e de normas jurídicas, como a definição de área de preservação permanen-te contida no Código Florestal, de 1965. A adaptação de seus parâmetros para o contex-to urbano – tendo em vista a magnitude do problema habitacional nos grandes centros –é imprescindível para a regularização de assentamentos informais em áreas protegidas e,consequentemente, para práticas democráticas de negociação que resultem no efetivocontrole de sua expansão.

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16 Citado por Abreu, 1987,p.88.

Rose Compans é professo-ra doutora da Faculdade deArquitetura e Urbanismo doCentro Universitário Meto-dista Bennett. E-mail: [email protected]

Artigo recebido em maio de2007 e aprovado para publi-cação em julho de 2007.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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A B S T R A C T This article deals with the appropriation of the environmentalpreservation arguments in order to justify slums removal in Rio de Janeiro, proposal that wasrepelled during re-democratization process of country. After presenting slums as epidemicaland marginal focuses, the new social representation is established to present it as a factor ofenvironmental degradation. With the support of technical and scientific knowledge that showsempirically environmental damaging generated for squatter settlements, a conservativemovement seeks to pressure government authorities, particularly in more valuable areas of thecity. The text identifies the discursive strategy of the main protagonists through the analysis ofa campaign diffused by an important local newspaper in 2005, which resulted on a judicialaction to force Municipality to remove thirteen squatter settlements.

K E Y W O R D S Slums removal; squatter settlements; environmental degradation.

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O SEQÜESTRO DAS RENDAS PETROLÍFERAS

PELO PODER LOCALA GÊNESE DAS QUASE SORTUDAS REGIÕES PRODUTORAS

R O D R I G O V A L E N T E S E R R A

R E S U M O Por que recebem royalties os estados e municípios litorâneos, confrontantescom as áreas de produção na Plataforma Continental Brasileira? A indagação é relevante, sobre-tudo quando está sacramentado pela Constituição a titularidade da União sobre as jazidas mi-nerais. De fato, foi a tensão de nosso pacto federativo fiscal que construiu esta possibilidade. Se-riam, sim, sortudos os Estados e Municípios litorâneos das regiões petrolíferas nacionais que,diferentemente de outros regimes internacionais de repartição das rendas petrolíferas, são benefi-ciários de quantias expressivas destas rendas, as quais imprimem, principalmente aos Municípios,uma enorme capacidade de investimento. Tal sorte, contudo, foi parcialmente retirada dos mu-nícipes desta região, pois as normas de aplicação daquelas rendas petrolíferas não vinculam deforma efetiva estes recursos com ações pró-desenvolvimento regional. Se são sortudos os gestores,são quase sortudos os munícipes. O interesse deste estudo é discutir a hipótese sobre a capturapor interesses locais dos valiosos recursos dos royalties, utilizando como fonte básica de informa-ção os debates realizados na Câmara e no Senado Federal, durante o processo de aprovação doregime de cobrança, rateio e aplicação dos royalties do petróleo.

P A L A V R A S - C H A V E Royalties do Petróleo: distribuição; indústria petro-lífera: tributação; política mineral: Brasil.

(...) uma vez mais o poder estratégico de nossas elites, ao impedir o avanço da cidadania, impe-diu simultaneamente o desenvolvimento, mesmo que tardio, de um povo-nação e, com isso, im-pediu também a separação indispensável à democracia entre o privado, o público e o estatal. (Fio-ri, 1994, p.122)

INTRODUÇÃO

Este artigo tem o propósito de realizar uma dupla denúncia acerca da distribuiçãodas rendas públicas (royalties e participações especiais)1 associadas à exploração e produ-ção de petróleo e gás no país.

A primeira – assentada na constatação de que 61% das rendas petrolíferas são apro-priados por Estado e Municípios – quer chamar atenção para o elevado grau de descen-tralização vertical destes recursos, fato este que inibe a execução de políticas, operadas emâmbito federal, que contribuam para compensar a exaustão dos recursos minerais, tal co-mo o fomento de pesquisas em desenvolvimento de fontes alternativas de energia.

Em termos absolutos, a referida descentralização significou que dos R$ 13,2 bilhõesem rendas petrolíferas distribuídos em 2005, R$ 4,3 bilhões destinaram-se aos Municípios

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1 Doravante, rendas petrolí-feras.

e R$ 3,7 bilhões às Unidades da Federação.2 A fim de sublinhar a ordem de grandeza des-tes recursos, caberia compará-los com duas importantes transferências constitucionais: oFundo de Participação dos Estados e o Fundo de Participação dos Municípios. Em 2005,portanto, somadas as rendas petrolíferas destinadas às esferas subnacionais de governo (R$ 8,0 bilhões), verifica-se que estas representaram cerca de 15,3% das transferências doscitados fundos constitucionais, os quais, reunidos, atingiram a ordem de R$ 52,1 bilhões.São valores que, sem sombra de dúvida, ampliariam consideravelmente a capacidade doGoverno Federal de operar, em várias frentes, políticas de conservação e produção deenergia a partir de fontes renováveis.

É a própria gênese da renda mineral, fundada na finitude do recurso, que aponta apolítica de desenvolvimento de fontes alternativas de energia como política moralmenteadequada para uso das rendas do petróleo.

A promoção da justiça intergeracional é assumida, aqui, como política ideal, in-fluenciada: i) pela perspectiva da economia clássica sobre a gênese da renda fundiária, quenão se diferenciava da mineral, que justifica o benefício a toda sociedade, e não apenaspara um segmento desta; ii) pela abordagem marginalista neoclássica, de Hotelling(1931), sobre a renda mineral, que apontaria para a crucial questão temporal.

Seguindo a tradição clássica, a renda é efeito do preço elevado de um bem monopo-lizável, e a sua apropriação pelo proprietário deste bem seria realizada à custa de toda asociedade. Para esta escola, portanto, a renda diferencial fundiária, ou mesmo a renda dasminas,3 quando apropriada pelos proprietários, revela-se um ganho para o qual estes nãorealizaram qualquer esforço.4

É, no entanto, a perspectiva de Hotelling sobre a gênese da renda mineral que in-corpora explicitamente a dimensão temporal à análise:

(...) a renda de Hotelling seria uma compensação ao proprietário pela redução do valor de sua ja-zida, em decorrência da extração, que torna o recurso indisponível no futuro. (...) A idéia de quea extração presente impossibilita que gerações futuras usufruam dos benefícios do recurso traz à to-na questões de justiça intergeracional e eqüidade, no sentido de se perguntar o que deve ser feitocom a renda de Hotelling obtida pelo proprietário do recurso, para não prejudicar os futuros con-sumidores. (Postali, 2002, p.20)

Se estamos convencidos da importância da promoção da justiça intergeracional, émister, pois, antes mesmo de enfrentar o debate acerca da aplicação dos royalties, discutircomo estes recursos são distribuídos entre os beneficiários.

Embora a União seja proprietária exclusiva das jazidas minerais, a barganha de nos-so pacto federativo, entretanto, garantiu a descentralização dos royalties5 incidentes sobrea produção petrolífera offshore. Esta descentralização, datada de 1985, pegou carona navaga descentralizadora deste período de abertura política do país, em que a palavra de or-dem no Congresso, no campo do pacto federativo, era a descentralização fiscal, quase co-mo um sinônimo para o próprio processo de redemocratização.

Esta descentralização dos royalties não permite, contudo, ser tratada como vitóriados entes subnacionais, mas sim como vitória de alguns destes.6 Focando a análise sobreos Municípios, observa-se que os critérios de rateio dos royalties entre estes encerram umnotável determinismo físico: os grandes beneficiários destas rendas minerais são aquelesMunicípios que estão, fisicamente, mais próximos dos campos de produção offshore ou defrente para estes (ainda que mais distantes do campo do que algum outro Município). Ou

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3 “Esse capitalista-arrenda-tário paga ao proprietário daterra, ao proprietário do soloexplorado por ele, uma so-ma em dinheiro fixada con-tratualmente (...) pela per-missão de aplicar seu capitalnesse campo específico deprodução. A essa soma dedinheiro se denomina rendafundiária, não importando seé paga por terras cultivá-veis, terreno de construção,minas, pesqueiro, matas,etc.” (Marx: 1983, p.126).

4 Este entendimento fezcom que Mill (1986), maisdo que advogar uma taxa-ção especial sobre a renda,defendesse uma outra leitu-ra para o imposto fundiário:“O imposto territorial hoje vi-gente (o qual, na Inglaterra,infelizmente é muito baixo)não deveria ser consideradocomo um imposto, mas co-mo um encargo sobre a ren-da, cobrado em benefíciodo público – uma parcela darenda reservada desde o iní-cio pelo Estado, parcela es-ta que nunca pertenceu aossenhores de terra nem nun-ca fez parte de sua renda, eportanto não deveria sercontada para estes comoparte de sua tributação, demolde a isentá-los de suajusta cota de participaçãoem todos os outros impos-tos.” (Mill,1986, p.301).

5 Antes da Lei do Petróleo(9.478/97), não existia aparticipação especial, por-tanto, é necessária até estadata a referência exclusivaaos royalties, não cabendo otermo “rendas petrolíferas”.

6 O Deputado Mauro Pas-sos (PT-SC), autor de umprojeto de lei que pretendealterar o rateio vigente paraos royalties, argumenta emsuas justificativas que asnormas atuais definem “bra-sileiros de primeira e segun-da categoria”; merecedorese não merecedores de umariqueza, a seu ver, da União.(PL 1.618/2003)

2 Para além dos Estados eMunicípios, são também be-neficiários: o Comando daMarinha, Ministério da Ciên-cia e Tecnologia, Ministériodas Minas e Energia, Minis-tério do Meio Ambiente.

seja, uma opção de distribuição que negligencia a efetiva presença dos capitais petrolífe-ros no continente e seus desdobramentos territoriais. Por isso, encontramos a licença dis-cursiva de entendê-los como sortudos.

A segunda denúncia procura demonstrar que os interesses que acabaram por definiras regras de rateio e aplicação dos royalties no âmbito municipal são de cunho localista,em nada comprometidos com a justiça intergeracional. Se é verdade que, no Brasil, a ins-tância federal seria aquela com competência para operar políticas de justiça intergeracio-nal de longo alcance, não é menos verdade que também os municípios poderiam agir nes-ta direção, preparando as localidades e, em consórcio, as regiões petrolíferas para o futurosem petróleo.

Sob a influência de dois importantes textos da literatura da ciência política brasilei-ra – Coronelismo, Enxada e Voto, de Vitor Nunes Leal (1978), e Nó Cego do Desenvolvi-mento Brasileiro, de José Luis Fiori (1994) –, desejamos demonstrar que a apropriação dosroyalties pelas esferas municipais se constituiu em um episódio de captura de um fundopúblico por interesses privados, captura esta, na visão dos citados autores, que reflete e de-termina forte entrave para a democratização da sociedade brasileira.

A epígrafe destacada na abertura do artigo relata bem o desejo de mostrar como abarganha política dos potenciais beneficiários das rendas petrolíferas, muitas vezes decunho localista, acabou por determinar o modelo atual de repartição e aplicação destasrendas, o qual, absolutamente, não é sensível à própria gênese da renda mineral, da qualse originam os royalties. Se, quanto a este fato, for convencido o leitor, verá que a apro-priação efetiva dos royalties, manifesta na definição do rateio e aplicação deste fundo, des-perdiça a montagem de um desenho institucional orientado para a necessidade de políti-cas de justiça intergeracional no âmbito municipal. Daí serem quase, e não plenamentesortudos os municípios petrolíferos7 brasileiros. Melhor: se são sortudos os seus gestores pú-blicos, com seus portentosos orçamentos, não tem, necessariamente, a mesma sorte a po-pulação que habita as regiões petrolíferas brasileiras.

Para dar conta destes objetivos, o presente artigo, para além desta introdução, pro-cura na seção I oferecer evidências acerca de algumas iniqüidades no processo de distri-buição dos royalties, reservando para a seção II a tarefa de descortinar os interesses quepautaram o Legislativo no processo de aprovação das normas legais que regulam a descen-tralização dos royalties.

Como observação de caráter metodológico, e esclarecedora de falsas expectativas, ca-be mencionar que a pesquisa nos anais das casas legislativas não pretende realizar umaanálise do discurso das intervenções parlamentares, nem mesmo realizar um estudo exaus-tivo acerca das representações sociais emanadas pelos referidos discursos. Antes de um es-tudo de ciência política, pretendemos apresentar um estudo para a ciência política; umestudo que sirva como sistematizador de diferentes posicionamentos dos parlamentares,mas que não tratará estes personagens com a riqueza exigida pela ciência política. O des-taque dado por Oliveira (1981, p.14) à questão dos vínculos dos indivíduos com suasclasses contribui para aclarar esta assumida lacuna:

(...) é preciso, porém, entender tais personagens como personas no sentido de Marx: representamforças sociais; seus nomes privados são nomes próprios das classes e grupos sociais que representa-vam, e dos processos contraditórios a que o embate e o confronto dessas classes davam lugar.

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7 O itálico em municípiospetrolíferos é, com algumaironia, para lembrar que,por vezes, municípios quenão apresentam qualquerpista sobre a presença decapitais do segmento petro-lífero em seus limites sãotambém recebedores de ro-yalties, incidentes sobre aprodução offshore que serealiza, muitas vezes, amais de 100 km da costa.

SOBRE INIQÜIDADES DA DISTRIBUIÇÃO ESPACIAL DAS RENDAS PETROLÍFERAS

Uma das marchas de prefeitos a Brasília foi noticiada pelo O Globo (06/12/04), coma informação de que cerca de mil prefeitos se encaminhariam a Brasília para pressionar ospoderes Executivo e Legislativo a aprovarem um dispositivo constitucional que permiti-ria elevar o FPM (Fundo de Participação dos Municípios) de 22,5% para 23,5% sobre ostributos federais que o constituem: IPI e IR. Tratava-se, pois, de uma elevação pleiteada decerca de 4,5% do FPM, fatia menor, como visto na introdução, do que aquela reservadaaos municípios petrolíferos.8

Não deve causar surpresa encontrarmos nesta comitiva os prefeitos dos municípiospetrolíferos brasileiros. Naturalmente, pois estes prefeitos não misturam alhos com bugalhos.Consideram-se, devido a um conjunto de ilusões, fortalecidos pela mídia e pela próprialegislação, merecedores de compensações: pelo adensamento urbano causado pela dinâ-mica acelerada de crescimento econômico; pelos danos ambientais, efetivos e eventuais;pela extração de um recurso mineral (da União) que se acomoda sob suas projeções naplataforma continental.9

Seus pares, os demais prefeitos não-beneficiários10 das rendas petrolíferas, tampoucodevem ter consciência de que pequenos ajustes nas regras de rateio destes recursos pode-riam cobrir esta presente demanda (da marcha). E, talvez, desconheçam também o graude concentração destes recursos. Uma concentração que, especula-se, poderia servir comoum argumento a mais para alteração nas regras vigentes de rateio das referidas rendas. Ve-jamos algumas evidências desta concentração.

A Tabela 1 destaca, entre os 815 Municípios brasileiros que receberam, de forma di-reta, rendas petrolíferas em 2005, os trinta maiores recebedores. Estes últimos concen-tram nada menos do que 77,7% de todas as transferências realizadas em benefício dosMunicípios, sendo os quatro primeiros Municípios detentores de mais da metade das ren-das petrolíferas municipais.

Esta brutal desigualdade na distribuição dos royalties municipais é fruto do efeitocombinado: i) de uma concentração espacial de nossas áreas de exploração petrolífera naplataforma continental brasileira, onde, somente a Bacia de Campos responde por poucomais de 83% da produção nacional de petróleo; ii) de uma regra de distribuição que pri-vilegia a proximidade física entre os Municípios e os campos petrolíferos situados na pla-taforma continental.

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8 Depois da conclusão des-te artigo, soubemos de no-va marcha de prefeitos à ca-pital, em abril de 2007,desta vez, vitoriosa, com aconquista da elevação doFPM para 23,5% (sobre a ar-recadação do IR e do IPI), edesta vez, de forma novida-deira, sugerindo um debatenacional sobre as regras derateio dos royalties. (“Mar-cha pela Divisão dos Royal-ties”; Tribuna da ImprensaOn Line, edição de 02/04/2007. Disponível em: <http://www.tribuna.inf.br/an-teriores/2007/abril/02/ noticia.asp?noticia=econo-mia01>. Acesso em: 27 dejulho de 2007.)

9 Sobre mitos que susten-tam a defesa do pagamentode royalties aos Municípios,ver Leal e Serra (2003).

10 Rigorosamente, todosos Municípios brasileiros re-cebem royalties, em funçãode uma parcela desta rendaser alocada em um FundoEspecial, o qual é repartido,segundo as mesmas regrasdo FPM, entre o conjuntodestes entes. Contudo, es-tas receitas são marginais:entre jan. e nov. de 2004, oFundo arrecadou cerca deR$ 326,7 milhões, o que,como mostra a Tabela 1, re-presenta quantia inferior aotransferido para os doismaiores beneficiários: Cam-pos dos Goytacazes (RJ) eMacaé (RJ).

Tabela 1 – Rendas petrolíferas distribuídas por Município, 2005 (R$)

Ranking Beneficiário UF Valor Partipação Participação Relativa Acumulada

1 Campos dos Goytacazes RJ 670.162.464,67 24,19% 24,19%2 Macaé RJ 347.870.813,54 12,56% 36,74%3 Rio das Ostras RJ 262.034.005,95 9,46% 46,20%4 Cabo Frio RJ 146.162.212,36 5,28% 51,48%5 Quissama RJ 75.241.810,74 2,72% 54,19%6 Coari AM 55.035.131,72 1,99% 56,18%7 Casimiro de Abreu RJ 52.703.044,37 1,90% 58,08%8 Armação dos Búzios RJ 45.470.937,91 1,64% 59,72%9 São João da Barra RJ 45.240.576,09 1,63% 61,36%10 Rio de Janeiro RJ 45.036.276,37 1,63% 62,98%11 Niterói RJ 39.483.021,75 1,43% 64,41%12 Mossoró RS 32.126.477,46 1,16% 65,57%13 Carapebus RJ 28.212.213,58 1,02% 66,58%14 Macau RS 22.362.010,42 0,81% 67,39%15 Guamaré RS 22.334.332,28 0,81% 68,20%16 Madre de Deus BA 21.988.782,69 0,79% 68,99%17 Angra dos Reis RJ 20.927.234,64 0,76% 69,75%18 São Francisco do Sul SC 19.264.370,83 0,70% 70,44%19 Linhares ES 19.249.745,32 0,69% 71,14%20 Duque de Caxias RJ 19.115.894,72 0,69% 71,83%21 Aracajú SE 19.048.615,09 0,69% 72,51%22 São Mateus ES 17.711.772,64 0,64% 73,15%23 Bertioga SP 17.249.115,86 0,62% 73,78%24 Magé RJ 17.214.635,33 0,62% 74,40%25 São Francisco do Conde BA 16.674.315,67 0,60% 75,00%26 Caraguatatuba SP 15.994.806,18 0,58% 75,58%27 Ilhabela SP 15.994.806,18 0,58% 76,15%28 Pojuca BA 14.988.307,81 0,54% 76,70%29 Coruripe AL 14.407.015,61 0,52% 77,22%30 Guapimirim RJ 14.362.746,28 0,52% 77,73%Sub-Total (30 maiores recebedores) 2.153.667.494,06 77,73% 77,73%Demais 785 Municípios 616.910.987,05 22,27% 100,00%Total 2.770.578.481,11 100,00% 200,00%

Fonte: elaboração própria a partir de ANP (2005).

De forma alguma, estas objeções quanto aos critérios de rateio das rendas petrolífe-ras entre os Municípios devem ser interpretados como recusa, a priori, em aceitar comolegítima a transferência destes recursos a estas esferas de governo. Existe questionamento,sim, da forma em que as rendas petrolíferas são distribuídas e, como veremos mais adian-te, das regras, frouxas, para a sua aplicação.

Ora, como defendido na introdução, a transferência das rendas petrolíferas aos Mu-nicípios não anula a possibilidade de utilizá-la como fundo de financiamento de políticasde promoção da justiça intergeracional. É claro que, uma vez transferidas aos Municípios,esta possibilidade muda de caráter: em âmbito nacional, pode-se imaginar a política de

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justiça intergeracional sendo operada, por exemplo, através do Ministério da Ciência eTecnologia, com o aporte de fundos setoriais voltados para o desenvolvimento de fontesenergéticas alternativas; já em âmbito municipal, esta justiça intergeracional poderia seralcançada, dentre outras formas, através de uma política deliberada de diversificação pro-dutiva. Por isso é plausível aceitar o pagamento de rendas petrolíferas aos Municípios.Mas sua forma de rateio não deveria ser informada pela “proximidade” em relação ao po-ço, mas sim pela presença de capitais petrolíferos. Afinal, ceteris paribus, quanto maior apresença de capitais petrolíferos em um determinado Município, maior o impacto depres-sivo sobre sua economia quando ocorrer o fim da exploração do recurso.

Estas evidências sobre a forma de rateio das rendas petrolíferas entre os municípiosparecem exigir dois importantes debates. O primeiro para definir qual o grau de descen-tralização vertical que se deseja, o que, em outros termos, corresponde ao debate sobrequal política valorizar: compensar com as rendas petrolíferas a nação ou as regiões ondeestão presentes os capitais petrolíferos.

O segundo requer, antes, a concordância quanto aos fatos: i) das regiões petrolíferascontinuarem a ser beneficiadas; ii) de que estes benefícios devam ser revertidos, de algu-ma forma, para a diversificação produtiva. Uma vez que haja concordância com as ques-tões anteriores, deve-se indagar pela melhor forma de operar esta diversificação produti-va: se diretamente através da União ou repartindo as receitas com os entes subnacionais.Esta é, sem dúvida, uma questão a ser examinada à luz dos conceitos e práticas que infor-mam e conformam o federalismo fiscal de nosso país.

Encerra-se esta seção recordando, da história recente brasileira, e com suporte emLeal e Serra (2003), o episódio da tímida reforma tributária operada em 2003, a qual aca-bou por repartir a Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (CIDE) com Es-tados e Municípios – até então receita exclusiva da esfera federal. Tratava-se da repartiçãode uma contribuição criada, originalmente, como instrumento de regulação dos preçosdos combustíveis e não, fundamentalmente, para gerar receita fiscal.

Consumada a dita repartição, quando pesquisadores, mais tarde, procurarem desco-brir qual a lógica para a divisão da CIDE entre as esferas subnacionais, somente obterãouma resposta razoável se recuperarem a barganha política da referida reforma tributária,nunca se ficarem limitados aos documentos que davam ensejo à criação daquela contri-buição. Trata-se de um episódio emblemático de substituição de um instrumento extra-fiscal, regulatório, da União, por um instrumento fiscal e de repactuação da divisão dasreceitas entre os entes federados.

Da mesma forma, somente é possível compreender o pagamento das rendas petrolí-feras aos Municípios se forem recuperados alguns episódios da barganha política entre asesferas governamentais pela divisão destes recursos. Eis a motivação da próxima seção.

OS PROCESSOS DE DESCENTRALIZAÇÃO E AMPLIAÇÃO DAS RENDAS PETROLÍFERAS: UMARECUPERAÇÃO DOS DEBATES E PROPOSIÇÕESNAS CASAS LEGISLATIVAS NACIONAIS

Na presente seção serão recuperados os debates ocorridos e as emendas propostas nasduas casas legislativas nacionais11 para a consolidação da estrutura vigente da legislaçãopertinente à distribuição das rendas petrolíferas, em um momento histórico decisivo: o

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11 Fase do estudo que to-ma como fonte principal osanais e diários da CâmaraFederal, do Senado e doCongresso Nacional.

momento da descentralização dos royalties.12 Trata-se do processo de aprovação da lei(7.453/85) que estendeu a cobrança de royalties sobre a produção de petróleo e gás reali-zada na plataforma continental.

Conforme mencionado na parte introdutória, antes de se configurar como um estu-do de ciência política – exaustivo na percepção das representações sociais concretizadasnas falas e proposições dos legisladores –, o intento desta etapa é sistematizar o caminhopara tais estudos. A hipótese norteadora desta etapa é a de que a construção do regime vi-gente de cobrança, repartição e aplicação dos royalties foi atravessada por interesses regio-nais bem definidos, bem como marcada pela tensão estruturadora do pacto federativo na-cional, no tocante à redistribuição das receitas públicas.

Esperava-se encontrar e denunciar usos e abusos propostos para cobrança, rateio eaplicação dos royalties, alimentados por interesses completamente alheios ao conceito derenda mineral, o qual, fosse respeitado, tenderia a absorver uma perspectiva política de fa-zer do royalty um instrumento de promoção da justiça intergeracional.

A denúncia, confirmando-se a suspeita, faz sentido: os royalties foram fartamenteapresentados como redenção para sanar problemas de desequilíbrios regionais, bem comoferramenta oportuna para imprimir justeza ao pacto federativo, entre outras propostasdesviantes da sua utilização para uma política compensatória às gerações futuras.

Antes, porém, de tratar diretamente do período em que se aprova a descentralizaçãodos royalties, vale abrir espaço para explicitar, mesmo que de forma resumida, a força dosargumentos em prol da descentralização, defendida desde o início da década de 1970:

O que não é possível, nem justificável, é que Estados (petrolíferos) que servem de suporte, de apoio,que têm suas estruturas modificadas pela presença de uma nova tecnologia que lá aporta e, por is-so mesmo, modifica os níveis de vida, obrigando que as infra-estruturas estaduais sejam reforça-das, com ônus, altos para os seus parcos cofres, nada recebam a não ser o orgulho de dizer: “temospetróleo”. Não é lícito, portanto, que esses Estados, sem nada, ainda arquem com os ônus de su-portar essas despesas, sem nenhuma retribuição àquilo que a natureza colocou no confronto de seusterritórios. (Discurso do Senador José Sarney, Anais do Congresso Nacional, 1971, vol. 5,p.79)

Eis a visão triunfante que determinou a escolha de critérios para repartição espacialdas rendas públicas do petróleo no país: uma visão que naturaliza os recebimentos destasreceitas pelos territórios impactados pelo segmento de exploração e produção de petróleoe gás natural (E-P).

De fato, os royalties petrolíferos nem sempre foram transferidos às esferas de gover-no subnacionais (GSNs). Embora ocorra extração de petróleo em nossa plataforma con-tinental desde finais da década de 1960, o repasse dos royalties incidentes sobre a produ-ção marítima aos GSNs somente é conquistado em meados da década de 1980 (Lei7.453/85).13 A posição do senador Sarney, no trecho anteriormente destacado, é revela-dora dos argumentos que, durante os anos 1970 e início dos 80, embasaram os grupospolíticos que defendiam a extensão dos royalties offshore aos GSNs.

Esta visão, embora de forte apelo e vitoriosa, equivale a uma subversão da regraconstitucional, a qual assevera serem os recursos públicos patrimônio da União: “as ja-zidas são propriedade distinta da do solo e pertencem à União”. Destarte os GSNs nãopodem receber compensações pelo uso de um recurso que não lhes pertence.14 (Leal eSerra, 2003)

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12 É preciso retornar aotermo “royalties”, dado queas participações especiaissomente são criadas em1997, não sendo correto,antes desta data, tratar das“rendas petrolíferas”.

13 Para uma visão históricadas principais modificaçõesnas normas legais de distri-buição dos royalties entreos Municípios, ver BoletimPetróleo, Royalties & Re-gião, n.1, set/2003. (www.royaltiesdopetroleo.ucam-campos.br ou www.royal-tiesdopetroleo.com.br)

14 É também verdade que aConstituição considera Esta-dos e Municípios como be-neficiários dos royalties,contudo, não afirma a Cartaquais destes entes deveriamreceber tais rendas, em quemagnitude ou proporção.

Negar este caráter compensatório não significa defender o não pagamento das ren-das petrolíferas aos GSNs. Na verdade, há sólidas justificativas para o pagamento de royal-ties aos GSNs, contudo, estas deveriam assentar-se sobre outro princípio, diferente da po-sição compensatória: o princípio da promoção da justiça intergeracional nos territóriosimpactados pelo segmento de E&P, como já defendido anteriormente.

A visão compensatória explicitada por Sarney em 1971 conquista a legalidade so-mente em meados da década de 1980, coincidindo justamente com o fim do regime mi-litar. Aprovada na última seção legislativa de 1985 (em 27 de Dezembro), a Lei 7.453 quedescentralizava os royalties offshore não pôde ser aplicada antes de sua regulamentação,também por lei (7.525/86), concretizada somente em julho do ano seguinte. Cabe obser-var, portanto, que esta conquista pelos Estados e Municípios (dos royalties offshore) reali-zou-se em uma conjuntura política bem marcada, pré-Constituição de 1988, quando re-democratização política e descentralização fiscal constituíam, talvez, as principais palavrasde ordem do cenário político nacional. A hipótese aqui sugerida é, como adiantado, a deque a regulamentação da distribuição dos royalties “pegou carona” na vaga descentraliza-dora do momento político de então.

A Lei 7.453/85 tem como origem o Projeto de Lei do Senado nº- 4/85, dos Sena-dores Nelson Carneiro (PMDB-RJ) e Passos Pôrto (PDS-SE), cuja proposta era aditar a Lei2004/53 (de criação da Petrobrás), prevendo o mesmo rateio dos royalties, de 4% aosEstados e 1% aos Municípios, já incidente sobre a produção em terra, para os royaltiesoffshore.

Verifica-se pelo processo de discussão e emendas ao projeto original que aparecemcomo novos beneficiários a Marinha e o conjunto dos entes subnacionais, estes últimos,recebendo como instrumento final para repartição das rendas petrolíferas a constituiçãode um Fundo Especial. Não serão trazidos aqui todos os lances da disputa pelo quantuma ser apropriado por estes promitentes beneficiários (o leitor interessado tem a referênciada fonte para fazê-lo); no entanto, vale recuperar a justificativa para a proposição destesnovos recebedores dos royalties.

A defesa da Marinha como ente beneficiário é construída também sobre o argumen-to compensatório: se sobre esta Arma recaem custos de fiscalização e proteção das ativi-dades econômicas realizadas na plataforma continental, nada mais justo, na visão do pro-ponente, que esta seja também agraciada pelas rendas petrolíferas. O senador SeveroGomes (PMDB-SP), reconhecendo a justeza da emenda do senador Jorge Kalume (PDS-

AC), que propõe a Marinha como nova beneficiária, comenta:

É sabido que as instalações destinadas à exploração do petróleo, por estarem em áreas distantes dolitoral, são por isso mesmo vulneráveis em termos de segurança. Assim como a exploração do pe-tróleo acarreta ônus e prejuízos aos Estados, Territórios e Municípios confrontantes, também àMarinha de Guerra recai parte desse ônus no seu trabalho de patrulhamento, proteção e pesqui-sa para delimitação da plataforma continental, sendo, portanto, justificado o aporte de maioresrecursos para o desempenho de sua tarefa. (Diário do Congresso Nacional – Seção II, 18/09/85,p.3.451)

Iguala-se, nesta fala, a Marinha aos governos subnacionais, ambos merecedores deaporte adicional de recursos para fazer frente às despesas ocasionadas pela atividade petro-lífera, argumento este que contribui para consagrar o uso, pelos legisladores, da com-preensão do royalty como um recurso compensatório – como se a Marinha não tivesse ins-

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trumentos de coleta de recursos (taxas e licenças) proporcionais ao tráfego marítimo – adanos e despesas presentes, em detrimento da sua função compensatória no tempo.

Frente aos interesses regionais dos representantes dos Estados confrontantes, a inclu-são da Marinha como beneficiária frustrava expectativas de receita. Reconhecia-se, ade-mais, o caráter politicamente estratégico de incluir a Marinha como forma de garantir àUnião alguma parcela no novo rateio dos royalties que estava sendo pactuado. Esta é a su-gestão do Deputado J.G. de Araújo Jorge (PMDB-RJ):

É claro que poderíamos fazer algumas objeções ao projeto. Não entendemos por que desse 1% paraa Marinha – talvez para conseguir que o projeto tenha uma tramitação mais fácil. Na realida-de, a percentagem que deveria ser paga pela União a título de indenização, aos Estados em cujaplataforma oceânica se encontra petróleo, deveria ser realmente de 4%, e de 1% aos Municípios.(Diário do Congresso Nacional, Seção I, 05/12/85, p.15.484)

Mais contundente, entretanto, é perceber, nesta contenda sobre a inclusão da Mari-nha como beneficiária, como os royalties foram tomados como instrumento de repactua-ção da distribuição das receitas públicas. Quando a matéria ainda estava na discussão emsegundo turno no Senado, opositores à entrada da Marinha na lista de beneficiários sus-tentavam que tal proposta era somente protelatória, pois desvirtuava completamente oprojeto original, que era o de equacionar uma justa indenização aos Estados e Municí-pios. A introdução da Marinha como beneficiária, nestes termos, poderia ser lida comoexpressão de um centralismo fiscal que se queria minimizar. Contra a proposta de bene-fício à Marinha, e em defesa do projeto original, pronunciou-se o senador Lomanto Jú-nior (PDS-BA):

(...) tenhamos a coragem de dizer que a Federação brasileira é uma mentira, que a Federação bra-sileira é uma ficção, é letra morta na Constituição. Se prosseguirmos neste erro centralista, con-duziremos a Nação, como vimos até agora, ao caos. Devemos reabilitar os Municípios e fortalecera Federação. E esse projeto do nobre Senador Nelson Carneiro é uma pequena, é bem verdade,mais expressiva contribuição à melhoria das condições dos Estados membros e dos Municípios bra-sileiros. (Diário do Congresso Nacional, Seção II, 09/08/85, p.2.568)

O senador Jutahy Magalhães (PDS-BA), relator do parecer da Comissão de Finançasdo PL do Senado nº- 4/85, sem entrar no mérito sobre a inclusão da Marinha, iluminao fato de as indenizações aos Estados e Municípios cumprirem uma lacuna deixada pe-lo Imposto Único sobre Lubrificantes, o qual, segundo seu parecer, havia sub-remune-rado as entidades subnacionais. Afirmava o senador que a indenização deveria ser daUnião, “pois é a riqueza do petróleo da nação”, porém, em virtude da centralização doImposto Único Sobre Combustíveis, aparece a oportunidade de corrigir esta falha decentralismo fiscal. O rateio do royalty aparece aqui, nitidamente, como forma de corri-gir iniqüidades de nosso pacto federativo. (Diário do Congresso Nacional, Seção II,18/09/85, p.3.452)

Opor-se ao centralismo fiscal através da destinação das indenizações petrolíferas pa-ra as regiões que dão suporte a esta atividade econômica parece uma descentralização àscegas. Identificar as mazelas de um regime fiscal centralizado, como aquele operado peladitadura militar, não pode justificar uma descentralização a qualquer preço, sem critériosbem definidos, e desvinculada de uma estratégia articulada em nível nacional (Fiori,

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1995). Desta forma, a descentralização pode ser vista apenas como retórica, encobrindoos reais interesses clientelísticos15 de reservar receitas públicas adicionais para determina-das regiões, preparando-se, assim, o terreno para mais um episódio de privatização de umimportante fundo público.

Quanto à discussão sobre a concentração ou pulverização dos royalties é arriscado de-sassociar os interesses das bancadas regionais de seus argumentos. A fala do senador Mil-ton Cabral (PFL-PB) traz uma explícita tomada de posição regional:

O Brasil, hoje, está com reservas em torno de 2 bilhões e 600 milhões de barris de petróleo; pra-ticamente 70% estão situadas no Estado do Rio, em Campos. E cada dia vão surgindo mais re-servas naquela área. (...) Então, nós vamos amarrar toda a participação, que é um direito de to-dos os Estados, a uma meia dúzia de Estados?(...) Por outro lado, os problemas regionais não estão concentrados no Rio de Janeiro nem no Es-pírito Santo. Aliás, há um argumento aqui, na justificativa, que não procede. É o de que os Es-tados confrontantes arcam com mais compromissos, mais despesas. Ao contrário, eles são benefi-ciados pelos investimentos que a Petrobrás faz em seus territórios. (...) Se é essa a distribuição dasriquezas nacionais que o Senado pretende promover, então esse projeto é realmente curioso, por-que, ao contrário disso, vai exatamente concentrar nas mãos de alguns poucos e penalizar o res-tante do País. (Diário do Congresso Nacional, Seção II, 19/09/85, p.3.506)

A fala acima termina apontando para mais uma diferente função dos royalties, reque-rida pelos legisladores: a de promover políticas regionais compensatórias. Trata-se de maisuma leitura distante da promoção da justiça intergeracional. Se o royalty é tomado destaforma, se esvaziam por completo quaisquer das suas funções que estariam associadas aoconceito de renda mineral. E, no limite, ainda que fosse legítimo tal argumento, não sepercebe qualquer preocupação dos legisladores em determinar um mecanismo dinâmicopara sua redistribuição, na medida em que áreas enriquecidas pelos investimentos e ren-das petrolíferas iriam, paulatinamente, deixando de ser merecedoras destes últimos bene-fícios. Nesta direção, destacam-se alguns trechos emblemáticos:

O que se discute aqui, hoje, é: se a área de Campos dá 80% do petróleo do Brasil, por isso vamospuni-la? Quem, até hoje, se insurgiu contra o fato de o Estado do Espírito Santo ter um benefí-cio próprio (Sudene), que vai determinando o esvaziamento do Norte Fluminense? (Senador Nel-son Carneiro/PMDB-RJ, Diário do Congresso Nacional, Seção II, 18/09/85, p.3.452)16

Quero dizer à Câmara Federal que para o Norte Fluminense, uma das regiões mais pobres doPaís, o projeto dos royalties representa a redenção. (Deputado Celso Peçanha/PFL-RJ, Diário doCongresso Nacional, Seção I, 05/12/85, p.15.483)

São Paulo se solidariza com as várias bancadas e está lutando para que essa redistribuição de ren-das aos Municípios e aos Estados seja feita através da arrecadação da renda de recursos mineraisdeste imenso e rico país, o Brasil. (Deputado Horácio Ortiz/PMDB-SP, Diário do Congresso

Nacional, Seção I, 05/12/85, p.15.483)

Esta defesa, naturalizada, do direito à compensação para os territórios próximos àsáreas petrolíferas logrou a conformação de algumas “ilhas” de prefeituras endinheiradaspelo país (Norte Fluminense, Semiárido Potiguar, o norte e o sul do Espírito Santo, en-

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15 Se entendermos cliente-lismo como troca de favorescom o uso de bens públicos(Carvalho, 2001), a conquis-ta dos royalties para umadeterminada região podetransformá-la, ou consolidá-la, como reduto eleitoral pa-ra aqueles legisladores quese envolveram na disputa,ou, posteriormente, na defe-sa das referidas vantagens.Reduto eleitoral, aqui, deve,diferentemente de uma alu-são ao voto de cabresto, in-corporar a figura dos finan-ciadores de campanha que,a exemplo de empreiteirosde obras públicas, são be-neficiados pelas regras derateio dos royalties.

16 O senador Nelson Car-neiro lembrava que as inde-nizações para o Estado doRio de Janeiro atendem aoconcerto de uma injustiça,que é o tratamento dado aoEstado vizinho do EspíritoSanto, integrante da zonade incentivos fiscais garanti-dos pela Sudene. A distribui-ção dos royalties mais umavez cumpriria o papel decorreção de iniqüidades denosso desenvolvimento es-pacial desigual.

tre as mais importantes), onde é possível especular sobre a atualização de práticas corone-listas, novas e velhas.

Na República Velha, comandavam os coronéis um “vasto séquito que incluía a famí-lia, a parentela, os escravos, os agregados, os capangas. Todos dependiam dele, de seu po-der, de seu dinheiro, de sua proteção. Controlava a terra, o trabalho, a política, a políciae a justiça” (Carvalho, 2001). Hoje, para a mais importante cidade recebedora de royal-ties petrolíferos do país, Campos dos Goytacazes, Moraes (2007) é categórico em afirmarque “universidades, hospitais, ONGs e associações, clubes de futebol, etc., não vivem maisautonomamente”. Seria uma nova classe de coronéis, do tipo novo:

O coronel de hoje não vive num sistema coronelista que envolvia os três níveis de governo, nãoderruba governadores, não tem seu poder baseado na posse da terra e no controle da populaçãorural. Mas mantém do antigo coronel a arrogância e a prepotência no trato com os adversários, ainadaptação às regras da convivência democrática, a convicção de estar acima da lei, a incapaci-dade de distinguir o público do privado (grifo nosso), o uso do poder para conseguir empregos,contratos, financiamentos, subsídios e outros favores para enriquecimento próprio e da parentela.Tempera tudo isso com o molho do paternalismo e do clientelismo, distribuindo as sobras das be-nesses públicas de que se apropria. Habilidoso, ele pode usar máscaras, como a do líder populista,ou do campeão da moralidade. (Carvalho, 2001)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Foi sugerido, com a apresentação do processo de aprovação da Lei 7.453/85, que osdebates e proposições que se encontraram nas casas legislativas valorizaram outras funçõespara o rateio dos royalties, diferentes da promoção da justiça intergeracional e, muitas ve-zes, completamente insensíveis a esta, quais sejam: promover políticas regionais compen-satórias, compensar os beneficiários pelos ônus causados pela atividade de E-P e avançar oprocesso de descentralização fiscal.

Embora sejam louváveis os propósitos destas políticas, menos louvável foi, contu-do, a escolha, pelos congressistas, do instrumento (o rateio dos royalties) para ajudar aoperá-los.17 Adicionalmente, se os congressistas desejavam aquelas referidas funções pa-ra os royalties, fato é que não cuidaram de garantir que estas informassem o rateio dasrendas petrolíferas, uma vez que a proximidade física em relação aos poços firma-se co-mo critério fundante do citado rateio entre as esferas de governo subnacionais.

Pode-se argumentar, por exemplo, que, se foram os impactos sobre as infra-estrutu-ras dos Municípios confrontantes (como poços na plataforma) que, retoricamente, justi-ficaram a distribuição dos royalties, faltou qualquer proposição sobre mecanismos demensuração dos referidos impactos. Ou ainda, como já se fez referência, se o royalty é to-mado como instrumento de políticas regionais compensatórias, carece de aperfeiçoamen-to esta escolha, uma vez que nenhum mecanismo de medição de desigualdades, seja di-nâmico ou estático, fora proposto pelos congressistas.

Estas considerações iluminam a hipótese de que o critério de definição dos Municí-pios beneficiários acabou cedendo às pressões clientelísticas. O comprometimento dos le-gisladores com a aprovação do projeto traduzia, em muitos casos, seus interesses no bene-fício de seus efetivos e potenciais redutos eleitorais. Este comprometimento fora mesmoexplicitado, como na transcrição abaixo, em que o argumento para inclusão de Cabo Frio

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17 Não se trata aqui deagarrar-se a uma visão ingê-nua sobre o “bom uso” dosroyalties, mas, antes, de va-lorizar a associação entre orateio dos royalties e o con-ceito de renda mineral.

como município produtor (o que lhe garantiria benefícios especiais) foi, sem cerimônia,o reconhecimento que naquele Município estavam os redutos eleitorais de deputados quemuito lutaram para a descentralização dos royalties:

(...) ainda há dúvida se Cabo Frio, no Estado do Rio de Janeiro, vai participar como Municípioprodutor ou limítrofe. Este Município é de especial interesse para muitos colegas do Estado do Rio,entre os quais cito os deputados Leônidas Sampaio, Gustavo de Faria e Márcio Braga, todos doPMDB, que ali têm suas bases. O deputado Leônidas Sampaio foi o mais votado em Cabo Frioe em todo o Estado. Há 30 anos tenho casa naquela comuna, Município que adoro. O fato desurgir essa dúvida, aparentemente foge às regras do jogo, sobretudo em conseqüência da pressa comque os projetos são votados nesta Casa. (Deputado Bocayuva Cunha/PDT-RJ, Diário do Con-gresso Nacional, Seção I, 20/06/86, p.6.346)

Converge esta fala com o espírito da epígrafe do presente artigo. Seja em Fiori (1994)ou em Leal (1978), encontra-se no processo de privatização do poder público pelas elitesum forte entrave para a democratização da sociedade brasileira. Não seria a vinculação dorateio dos royalties aos interesses privados, presente no Legislativo, também um episódio des-te seqüestro do público pelo privado? No limite, esta barganha pelos royalties conseguetransformar um recurso para a promoção de políticas de justiça intergeracional, de escala na-cional, em um reforço de caixa para Municípios “bem representados” nas casas legislativas.

Lessa (1998), citado por Brandão (2003), demonstra que a sociedade brasileira fo-ra, outrora, portadora de uma “vontade nacional poderosa”, capaz de mobilizar toda a na-ção. Um dos exemplos mais evidentes desta capacidade foi a luta do “Petróleo é Nosso”,durante a década de 1950. Ironicamente, a discussão sobre a distribuição e aplicação dasrendas públicas do petróleo talvez seja um contra-exemplo daquela capacidade, mostran-do até onde pode chegar o particularismo, o imediatismo e o privatismo dos interesses noBrasil de hoje, ameaçado pela “desconstrução nacional”.

Espera-se que este artigo tenha permitido mostrar a importância dos debates ocor-ridos na casas legislativas brasileiras, para a compreensão, principalmente, das normasatuais de rateio das rendas petrolíferas entre as esferas de governo subnacionais. Contu-do, deve-se anotar que, entre 1986 e 1997, a descentralização destes recursos manteve-secomo episódio politicamente pálido, cujo debate raramente ultrapassava os limites das re-giões petrolíferas, muito desta timidez devendo-se à própria diminuta ordem de grande-za das cifras envolvidas nestes repasses.

Com a Lei do Petróleo (Lei 9.478/97), este panorama é radicalmente alterado. Amultiplicação das rendas petrolíferas, patrocinada por este dispositivo legal, imprimiu umavisibilidade nacional à questão da distribuição dos royalties. Esta importância, entretanto,não recebeu uma proporcional atenção no processo de aprovação da Lei do Petróleo.

A discussão sobre a distribuição e aplicação dos royalties e das novas participações go-vernamentais (participações especiais, bônus de assinatura e pagamento pela ocupação deárea) entre as três esferas governamentais não foi objeto de vasto debate nas casas legisla-tivas nacionais, durante a fase de discussão plenária da Lei do Petróleo. Certamente, nãodevido à sua pouca relevância. O fato é que a repartição das participações governamen-tais era um adereço da questão maior que estava em debate: a quebra do monopólio es-tatal de exploração do petróleo e do gás natural. Isso porque a lei 9.478/97, que define odesenho institucional vigente para repartição das participações governamentais, é tambémaquela que trouxe a possibilidade de se outorgar à iniciativa privada, mediante concessão

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ou autorização, as atividades de pesquisa, exploração, beneficiamento, transporte e co-mercialização do petróleo e gás natural.

Portanto, devido à especificidade do contexto de aprovação dos critérios de reparti-ção das rendas petrolíferas, parece haver uma desproporção entre a relevância da matériae o alcance do debate, indicando a existência de uma lacuna de idéias na concernente con-tenda. Existe, assim, um enorme desafio em se fazer avançar este debate.

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Rodrigo Valente Serra éprofessor do curso de Mes-trado em Planejamento Re-gional e Gestão de Cidadesda Universidade CandidoMendes/Campos e do Mes-trado em Engenharia Am-biental do CEFET-Campos.Email: [email protected].

Artigo recebido em maio de2007 e aprovado para publi-cação em julho de 2007.

PIQUET, R. (Org.). Petróleo, Royalties e Região. Rio de Janeiro: Garamond, 2003.PIQUET, R.; SERRA, R. (Orgs.). Petróleo e Região no Brasil: o desafio da abundância. Riode Janeiro: Garamond, 2007.POSTALI, F. S. Renda Mineral, divisão dos riscos e benefícios governamentais na exploraçãode petróleo no Brasil. Rio de Janeiro: BNDES, 2002. 120 p.

A B S T R A C T Why do the coastal states and municipalities, bordering on theproduction areas of the Brazilian Continental Platform, get royalties? The question isespecially relevant remembering that the Constitution validates the federal government’sownership of the mineral reserves. It was, in fact, the tension brought on by our federal treatyon fiscal policies that made this possible. The national oil regions’ coastal states andmunicipalities are indeed lucky. In contrast to other international regimes on distribution ofrevenue from oil production, they are the beneficiaries of large sums obtained from mentionedrevenues, which would allow for these same municipalities to make great investments.Nevertheless, this luck was partially withdrawn from the inhabitants of the municipalities ofthese regions, because the rules of applying the oil production revenues did not garanteeregional developmental projects. If the governors of the municipalities are the lucky ones, thatleaves the inhabitants almost lucky. The aim of this study is to discuss the hypothesis on thecapture of local interests by these royalties’ valuable resources, using as basic informativebackground the debates that were being held in the Chamber and Federal Senate during theprocess of approval of the regime concerning collection, distribution and use of oil royalties.

K E Y W O R D S Oil revenue: distribution; Oil industry: taxing; Mineral.

O S E Q Ü E S T R O D A S R E N D A S P E T R O L Í F E R A S

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ARQUITETURA SOCIOLÓGICA

F R E D E R I C O D E H O L A N D A

R E S U M O A arquitetura é mais comumente considerada como ofício, arte ou técnica.O texto a considera também como ciência que aborda os lugares sob um olhar específico, não afei-to a outras disciplinas. Examinam-se modalidades de conhecimento e sugere-se que houve umamudança paradigmática no campo, nas últimas décadas. A mudança resgata o pensamento teó-rico-reflexivo. O fortalecimento da arquitetura como disciplina científica não anula; pelo con-trário, fortalece a interdisciplinaridade no trato das questões relativas aos lugares produzidos ouusufruídos pelas pessoas: enfatizam-se contribuições de autores oriundos de outros campos disci-plinares, que olham os lugares do ponto de vista morfológico. Explora-se a arquitetura como va-riável independente: uma vez pronta, afeta as pessoas em vários aspectos, entre eles os sociológi-cos, resumíveis nas seguintes perguntas: a configuração da forma-espaço (vazios, cheios e suasrelações) implica maneiras desejáveis de indivíduos e grupos (classes sociais, gênero, gerações etc.)localizarem-se nos lugares e de moverem-se por eles, e conseqüentemente condições desejadas pa-ra encontros e esquivanças interpessoais e para visibilidade do outro? O tipo, quantidade e loca-lização relativa das atividades implicam desejáveis padrões de utilização dos lugares, no espaço eno tempo?

P A L A V R A S - C H A V E Relações arquitetura/sociedade, arquitetura comociência humana, arquitetura sociológica.

INTRODUÇÃO

A origem do texto remonta a discussões ocorridas no Encontro Nacional da AN-PUR em Salvador, em maio de 2005. Por ocasião da Sessão Coordenada “Territorialida-des e espaços urbanos e regionais: ‘novas’ abordagens teóricas”, ressurgiu o tema arquite-tura como disciplina.1 O debate prolongou-se apaixonada e gostosamente em cafés damanhã e nos corredores do congresso. Na essência estavam as questões: a arquitetura temo direito de reivindicar um lugar no panteão das disciplinas científicas? Como caracteri-zar as relações com (ou a inserção entre) as ciências humanas, as ciências da natureza, astécnicas, as artes? A obviamente necessária interdisciplinaridade no trato do espaço urba-no dispensa o desenvolvimento de um campo de reflexão específico – o da arquitetura dacidade – com teorias, métodos e técnicas que lhe são próprios? Esse campo não será am-plo, a refletir as múltiplas dimensões da realidade arquitetônica? É possível enxergar na li-teratura publicada no Brasil e alhures indícios de que a construção de uma nova ciênciaencontra-se em marcha?

Ninguém na referida sessão defendeu o status de ciência para a arquitetura. Monte-Mór prefere investir na construção de um “campo multi-inter-trans-disciplinar”2 para co-nhecer “a cidade” onde importa pouco a especificidade de quaisquer enfoques. Villaça ne-ga o status de ciência à arquitetura, que caberia à Geografia no trato do espaço urbano.Contradigo ambas as posições ao identificar nelas visões epistemológicas que implicambloqueio do avanço do conhecimento sobre importantes aspectos da realidade. Conhecermelhor os lugares de nossa vida cotidiana envolve o desenvolvimento de teorias, métodos

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1 A Sessão foi coordenada porGeraldo Magela Costa e partici-param Brasilmar Ferreira Nu-nes, Flávio Villaça, Roberto Luisde Melo Monte-Mór e Bertha K.Becker. O autor participou daplatéia.

2 A expressão é minha, não deMonte-Mór, mas parece-merefletir o cerne de sua argumen-tação. Desculpo-me por quais-quer equívocos de interpre-tação sobre as idéias doscolegas, por quem nutro admi-ração e afeto.

e técnicas que não estão contemplados pela Geografia, por quaisquer outras ciências hu-manas ou da natureza, menos ainda pela “interdisciplinaridade”.

Abordo a seguir os temas: delimitação do conteúdo do texto; problemas de realida-de e representação em arquitetura; aspectos que caracterizam o olhar arquitetônico sobreos lugares; constituição de uma disciplina da arquitetura e as subdivisões; arquitetura co-mo ciência humana e arquitetura sociológica; exemplos de análises empíricas que ilustramo argumento.

DUAS BIFURCAÇÕES, DUAS ESCOLHAS

Na teorização da arquitetura, identifico duas bifurcações iniciais, sobre as quais façoduas escolhas para delimitar o ensaio.

A arquitetura é variável dependente e variável independente, concomitantemente. Co-mo variável dependente, a arquitetura é determinada pelo ambiente socionatural em quese realiza, por exemplo: clima, relevo, geologia, hidrografia, disponibilidade de materiais(ambiente natural); conhecimento científico-tecnológico, interesses econômico-político-ideológicos (ambiente social). Ela resulta disto.3 Por outro lado, como variável indepen-dente, a arquitetura tem efeitos. Enquanto artefato, ela impacta nossas vidas e o meio am-biente natural: ela determina se: 1) atividades têm suporte adequado para seufuncionamento; 2) condições hidro-térmicas são confortáveis; 3) custos energéticos paramanutenção são elevados; 4) há sensação de beleza etc. Ela resulta nisto.4 (Veremos que aarquitetura não é apenas artefatual.)

A primeira bifurcação é entre: 1) arquitetura como variável dependente e 2) arqui-tetura como variável independente. A escolha: examinarei a arquitetura como variável in-dependente. E a segunda bifurcação: como variável independente, a arquitetura pode im-pactar: 1) o meio ambiente natural e 2) as pessoas. A escolha: examinarei o impacto sobreas pessoas.5

ARQUITETURA: REALIDADE E CONCEITO

Como em quaisquer âmbitos da realidade, empiricamente “arquitetura” não é um“dado”, não existe em si, independentemente de nossas representações. Não se trata dosubjetivismo obscurantista pós-moderno: não nego a realidade em si, mas aceito que qual-quer análise de tão ampla generalidade – a “realidade” – pressupõe conceitos, reflexões,representações. Assim, não há um “fato” arquitetura: ela consiste naquilo que é circuns-crito por uma definição, por um ponto de vista que seleciona, inclui, exclui, qualifica; elaé “teoria-dependente”.

Adotamos6 um conceito de arquitetura que evita reduções encontradas na literatu-ra.7 Por exemplo, as formulações de Lucio Costa,8 Bill Hillier9 ou Evaldo Coutinho10 im-plicam inclusão de certas manifestações na “família arquitetônica” e exclusão de outras.Nossa definição alarga o âmbito em quatro direções: 1) todos os edifícios são arquitetu-ra, não apenas os que revelam certa “intenção” (contradizendo Lucio Costa); 2) o espaçoproduzido por meio de um saber implícito, inconsciente, popular, é tão legitimamente ar-quitetura quanto o produzido pelo saber explícito e reflexivo (contradizendo Bill Hillier);3) o espaço externo de ruas e praças é arquitetura, não apenas o espaço interno das edifi-

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3 Assim o faz a maior parte daliteratura, explicar a arquiteturapor suas “determinações”. Fre-qüentemente explica-se errada-mente a arquitetura por suasdeterminações econômicas,particularmente na tradição soidizant marxista (para contesta-ção de interpretações sobreBrasília, por exemplo, ver Ho-landa, 2002). Outra versão bus-ca entender o projeto por suas“intenções” reveladas ou ocul-tas, palavra onipresente no dis-curso arquitetônico. Quando asintenções são explicitadas peloarquiteto, não esqueçamos deque se trata apenas de um dis-curso que pode refletir a reali-dade, mas pode encobrir, nomínimo por desconhecimento,no máximo por má fé, as reaisimplicações da arquitetura pro-posta. Pode ser simples “ideo-logia”, no mau sentido – apa-rência a encobrir a essênciadas coisas. Os erros não invali-dam a vertente.

4 Aqui encaixam-se os pesqui-sas de “avaliação pós-ocupa-ção”, e.g., Ornstein, 1997.

5 Gratidão a Sandra Soares deMello por argutas considera-ções sobre versão preliminardas idéias.

6 Não se trata do “nós majestá-tico”. Refiro-me a idéias conce-bidas coletivamente no âmbitodo grupo de pesquisa que coor-deno, Dimensões morfológicasdo processo de urbanização, re-gistrado no Diretório de Gruposde Pesquisa no Brasil, CNPq.

7 As idéias foram publicadaspor primeira vez em Holanda &Kohlsdorf, 1995. Posterior-mente venho “calibrando” oconceito. A versão aqui apre-sentada é inédita e de minha in-dividual responsabilidade.

8 “A mais tolhida das artes, aarquitetura é, antes de mais na-da, construção, mas constru-ção concebida com o propósitode organizar e ordenar plastica-mente o espaço e os volumesdecorrentes, em função deuma determinada época, de umdeterminado meio, de uma de-terminada técnica, de um de-terminado programa e de umadeterminada intenção“ (Costa,1980). É evidente que LucioCosta refere-se a intenções es-téticas, implicando “boa quali-dade estética”. Abraçamoscontudo a idéia de que todosedifícios têm um desempenho

cações (contradizendo Evaldo Coutinho); 4) finalmente, a paisagem virgem, natural, in-tocada pelo homem, tem uma configuração formal-espacial (adiante conceituada) passívelde análise e avaliação enquanto arquitetura, tanto quanto o espaço artefatual de edifíciose cidades (contradizendo a vasta literatura onde “arquitetura” é considerada apenas comolugar construído pelo homem).

O conceito “configuração formal-espacial” inspira-se em Evaldo Coutinho: a arqui-tetura tem “componentes-meio” (os elementos “escultóricos”, os “cheios”, os “sólidos” a“forma”) e “componentes-fim” (os “vãos”, os “vazios”, os “ocos”, os “espaços”) (Coutinho,1970). Curiosamente, a teoria e a história da arquitetura têm se detido mais nos “compo-nentes-meio”: a volumetria, a composição das fachadas, texturas, cores, materiais etc. To-davia, estes pertencem especificamente à linguagem da escultura. Os elementos por exce-lência da linguagem arquitetônica são os “componentes-fim”, os espaços – cômodos noedifício; ruas, avenidas, praças, parques, na cidade; lugares abertos na paisagem natural(Zevi, 1951, Hillier & Hanson, 1984). Afinal, é neles que estamos imersos! Caracteri-zam-se por localização relativa ante outros espaços a implicar certas topologias, permea-bilidade ou fechamento, transparência ou opacidade, valores de luz e sombra, ruídos,temperatura, movimentos do ar, aromas. “Meios” ou “fins”, não podemos ignorar que so-mos afetados por uns e outros ao nos apropriarmos dos lugares. Há que teorizar, portan-to, sobre “configuração formal-espacial” – ordenação conjunta dos dois tipos de compo-nentes, todavia separáveis analiticamente.

Por nosso conceito, paisagem natural ou qualquer espaço construído são “arquitetu-ra”. Mas ambos são apenas isto? Não. Uma montanha ou um edifício são fatos. Mas paraalém desta constatação banal, podem “ser” muitas coisas, a depender de como lançamos so-bre eles nosso olhar reflexivo: por exemplo, para economistas, o edifício é “capital fixo”; pa-ra geólogos, a montanha é uma cristalização de movimentos da crosta terrestre; enquantotais, edifício e montanha, como aqui caracterizados por economistas ou geólogos, não sãoarquitetura. Cabe à teoria mostrar como eles serão compreendidos enquanto arquitetura.

O desafio é identificar os aspectos que caracterizam a arquitetura. É isso que faz nos-sa proposição. Os “aspectos” são o artifício teórico para fundamentar a definição de ar-quitetura; resumem as implicações dos lugares enquanto arquitetura, como ela nos afetade várias maneiras, o seu desempenho multifacetado. Os lugares têm outras implicaçõespara as pessoas (como nos exemplos do “edifício” e da “montanha”). Mas as da taxono-mia proposta são aquelas cuja investigação alimenta um corpo de conhecimento especí-fico – o da disciplina arquitetura. A taxonomia a seguir explica-se sob forma de perguntasrelativas a cada aspecto.

Aspectos funcionais. O lugar satisfaz as exigências práticas da vida cotidiana em ter-mos de tipo e quantidade de espaços para as atividades, e seu inter-relacionamento?

Aspectos bio-climáticos. O lugar implica condições adequadas de iluminação, acústi-ca, temperatura, umidade, velocidade do vento e qualidade do ar?

Aspectos econômicos. Os custos de implementação, manutenção e uso dos lugares sãocompatíveis com o poder aquisitivo das pessoas implicadas?

Aspectos sociológicos. A configuração da forma-espaço (vazios, cheios e suas relações)implica maneiras desejáveis de indivíduos e grupos (classes sociais, gênero, gerações etc.)localizarem-se nos lugares e de se moverem por eles e, conseqüentemente, condições de-sejadas para encontros e esquivanças interpessoais, assim como para visibilidade do outro?O tipo, quantidade e localização relativa das atividades implicam desejáveis padrões deutilização dos lugares, no espaço e no tempo?

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estético – se bom ou mau sãooutros quinhentos; o mau de-sempenho não deve eliminar oedifício da “família”. Com issoas razões do mau desempenhoficam de fora da reflexão disci-plinar necessária.

9 “A arquitetura começa quan-do os aspectos configuracio-nais da forma e do espaço, pe-los quais os edifícios setransformam em objetos cultu-rais e sociais, são tratados nãocomo regras inconscientes aserem seguidas, mas são ele-vados ao nível do pensamentoconsciente, comparativo, tor-nando-se desta maneira objetode atenção criativa” (Hillier,1996). A citação é tomada doCapítulo 1 do livro, o qual tempor título, precisamente na li-nha de Lucio Costa, “O que aarquitetura acrescenta à cons-trução”. Hillier desloca o focoda realidade empírica da arqui-tetura para o seu processo defeitura. Sua redução convenceainda menos porque a ênfasenão é estética, mas sociológi-ca, foco dominante da teoriada sintaxe espacial. As pesqui-sas têm demonstrado que, em“aspectos sociológicos” funda-mentais (ver abaixo), pouco di-fere a arquitetura anônima da“erudita”.

10 Evaldo Coutinho está preo-cupado com a arquitetura en-quanto veiculadora de uma vi-são de mundo. Para ele apenaso espaço interno constitui a ar-quitetura porque aqui todos osatributos espaciais são contro-lados para comunicar uma filo-sofia – o que ocorre bem me-nos no espaço aberto que, portal, não tem controlados, damesma maneira, luz, som, tem-peratura, aromas. (Coutinho,1970)

Aspectos topoceptivos (neologismo criado por Kohlsdorf, 1996). O lugar é legível vi-sualmente, isto é, ele tem uma identidade? O lugar oferece boas condições para a orienta-bilidade?

Aspectos afetivos. O lugar tem uma personalidade afetiva? Como ele afeta o estadoemocional das pessoas – e.g. relacionado a solenidade, grandeza, frieza, formalidade, inti-midade, informalidade, simplicidade etc.?

Aspectos simbólicos. O lugar é rico em elementos arquitetônicos que remetam a ou-tros elementos, maiores que o lugar, ou a elementos de natureza diversa – valores, idéias,história?

Aspectos estéticos. O lugar é belo, isto é, há características de um todo estruturado equalidades de simplicidade/complexidade, igualdade/dominância, similaridade/diferença,que remetem a qualidades de clareza e originalidade, e por sua vez a pregnância, implican-do uma estimulação autônoma dos sentidos para além de questões práticas? O lugar é umaobra de arte, por veicular uma visão de mundo? Sua forma-espaço implica uma filosofia?

Cada aspecto implica uma estrutura de relações – um código – entre dois tipos de ele-mentos: 1) atributos da forma-espaço; 2) expectativas humanas (Hillier & Leaman, 1974).Códigos bio-climáticos relacionam tamanho, forma e disposição de aberturas para o ven-to (um lado) e sensações térmicas (outro lado); códigos topoceptivos relacionam forma edisposição de marcos visuais na cidade (um lado) e condições para a orientabilidade (ou-tro lado); etc. A tarefa da teoria é estabelecer as categorias analíticas relativas às duas famí-lias de elementos. Mais: a cada aspecto corresponderá certo número de categorias analíti-cas, no âmbito da arquitetura e no âmbito das expectativas sociais. Por exemplo, descreverbio-climaticamente a arquitetura não é descrevê-la esteticamente. A taxonomia apresenta-da acima encontra-se continuamente em teste nos nossos trabalhos de pesquisa. O desafioé aperfeiçoar as categorias analíticas: minimizar redundâncias entre as que pertencem a as-pectos diferentes (se elas são as mesmas, não se justifica a autonomia taxonômica dos as-pectos), descobrir novas categorias, descartar as que se mostram pouco explicativas.

Códigos arquitetônicos são de amplitude diversa, a depender do aspecto: 1) há osuniversais – e.g. exigências quanto às características visuais dos lugares, de modo que osgravemos facilmente em nossa mente, e são idênticas para todos os seres humanos, dadonosso aparelho perceptivo comum; 2) há os grupais – e.g. a configuração dos lugares im-pacta expectativas sociológicas que são historicamente determinadas, no tempo e no es-paço; cada classe social têm seu código; 3) há os individuais: lugares impactam estetica-mente a gente em função de valores que podem ser pessoais e intransferíveis – a empatiaque sinto por um exemplo arquitetônico é função da similitude entre minha visão demundo e a subjacente ao lugar, contida na configuração formal-espacial.

Dado o exposto, segue-se uma definição de arquitetura enquanto realidade captadapor um olhar:arquitetura é lugar usufruído como meio de satisfação de expectativas funcio-nais, bio-climáticas, econômicas, sociológicas, topoceptivas, afetivas, simbólicas e estéticas, emfunção de valores que podem ser universais, grupais ou individuais.

A DISCIPLINA DA ARQUITETURA, AS SUBDISCIPLINAS, A INTERDISCIPLINARIDADE

O Conselheiro Acácio11 poderia ter dito: “tudo é complexo”. E acrescentado: “a ar-quitetura não escapa”. Com os aspectos, tentamos ultrapassar a obviedade e revelar o

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11 Personagem de Eça deQueirós em O primo Basílio,apegado a frases feitas, ao dis-curso do óbvio.

oculto: discriminar, separar, classificar, analisar, fazer jus à natureza multifacetada da ar-quitetura, explicitada na decomposição apresentada. Decorre que são muitos os “saberes”relacionados à prática e à teoria arquitetônicas. Eles variam quanto às maneiras de suaprodução e aplicação (modos de pensar e agir) e quanto aos tipos de agentes envolvidos:alguns saberes são de domínio específico dos arquitetos, outros pressupõem interfacescom outros profissionais ou pesquisadores. Na evolução recente do pensar e fazer arqui-tetura, e nas relações com outras áreas, podemos identificar quatro “modos”, que se de-senvolvem de maneira aproximadamente cronológica. O Quadro 1 será utilizado comoguia da discussão.

MODO 1: SAVOIR FAIRE ARQUITETÔNICO: PRÁTICO E IMPLÍCITO

A cada aspecto da arquitetura corresponde um campo de saber que se encontra: 1)em parte implícito, inconsciente, utilizado intuitivamente, prático porque colado à expe-riência; 2) em parte explícito, sistemático, reflexivo, teórico porque abstrai da experiênciacaracterísticas estruturais, generalizáveis e aplicáveis a outras situações. No primeiro caso(Quadro 1, campo “1”), estamos no âmbito do savoir faire do “mestre de ofícios”, que ab-sorve na prática os saberes arquitetônicos, por imitação dos mestres ou por observaçãoempírica do mundo, e os utiliza nos projetos. Honrosas exceções à parte, o campo “1” re-presenta a pouca importância tradicionalmente dada aos aspectos teórico-analíticos naformação dos arquitetos: a arquitetura é mais entendida como “arte” ou “técnica” onde seaplicam conhecimentos produzidos alhures, não como, ela mesma, campo de produçãode conhecimento. Contudo, seria errado “demonizar” a formação “irreflexiva” dos mes-tres de ofício intuitivos, os “arquitetos de prancheta”, como pejorativa e injustamente àsvezes são referidos na academia. Não são necessariamente maus arquitetos. Se assim o fos-se, a arquitetura não teria avançado antes do advento histórico do modo científico de pen-sar. Arquitetos intuitivos podem ser providos de poderosas “antenas” que os facultamapreender (mesmo inconscientemente) a realidade, identificar problemas e propor inven-tivas soluções. Entretanto, outros modos de pensar e agir sobre os lugares abrem outraspossibilidades.

Quadro 1 – Modos de fazer e pensar a arquitetura – décadas recentes1 2 3

savoir faire pensamento Ciências arquitetônico: morfológico: sociais e naturais:

prático e reflexivo e Conhecimento implícito analítico a-espacial

MODO 2: REFÚGIO NO MUNDO A-ESPACIAL

A identificação dos problemas do urbanismo moderno a partir dos anos 1950 levoua uma mudança comportamental dos arquitetos ante o conhecimento: a “febre inter-dis-ciplinar” dos anos 1960-70. Identificamos que havia algo de insatisfatório com o saber ar-quitetônico da época, mas em vez de aprofundarmos reflexivamente o conhecimento daconfiguração dos lugares, investindo no campo “2”, passamos direto para o campo “3”,buscando, particularmente nas ciências sociais, a luz que revelaria nossas limitações. Elas

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não puderam ajudar, não por culpa sua, mas por erro nosso. Levou tempo para descobrir-mos (alguns pesquisadores infelizmente ainda não o fizeram) que as disciplinas consolida-das (campo “3”) têm métodos próprios, categorias analíticas específicas, um vasto corpusde conhecimento que não dominamos, e que, principalmente, partem de descrições siste-máticas e rigorosas de outras realidades, circunscritas pelos respectivos campos conceituais– não da realidade dos lugares olhados como arquitetura. Lançam outros olhares sobre omundo, mesmo quando o fazem sobre os mesmos objetos empíricos (novamente servemos exemplos do “edifício” e da “montanha”). Não têm um olhar morfológico: não dissecama forma-espaço dos lugares para compreender seu impacto em nossas vidas. Por isso, o pu-lo do campo “1” para o “3” não teve impacto em projeto: continuamos a cometer os mes-mos erros. Pior: o comportamento implicou o abandono do campo arquitetônico, fazen-do com que trabalhos de “projeto” dentro das escolas de arquitetura se resumissem adocumentos “sociológicos” ou “econômicos” – que não eram uma coisa nem outra – ououtros produtos de variada natureza.12 A relação com as disciplinas do campo “3” é fun-damental para o avanço do conhecimento em arquitetura, mas de outros modos.

MODO 3: ARQUITETOS INTUITIVOS... E REFLEXIVO-ANALÍTICOS

Não se tratava, portanto, de abandonar a arquitetura, passando do campo “1” parao “3”, mas de aprofundar o conhecimento morfológico: adicionar à intuição, ao saberprático e implícito, um outro, construído a partir da observação sistemática da realidade,à qual aplica-se uma reflexão teórica que extrai dos lugares atributos estruturais; somar aocampo “1” os conteúdos do campo “2”, o campo do saber objetivo (Popper, 1963) – re-flexivo, verificável, refutável, contínua e racionalmente enriquecido. Não é uma novida-de, mas a retomada de uma rica tradição – que o diga a antologia de Kruft (1994). Seriaincorreto e arrogante dizer que estaríamos somente agora inventando o saber objetivo emarquitetura.13

A retomada do conhecimento reflexivo em arquitetura tem contribuído para a con-solidação de subdisciplinas, ou disciplinas “regionais”, relacionadas aos aspectos comen-tados, à vez. É característica do conhecimento científico decompor para aprofundar o sa-ber. Ele o tem feito, também quanto à arquitetura. Em alguns aspectos, o conhecimentotem maior tradição: vejam, por exemplo, a quantidade de títulos sobre os aspectos sim-bólicos ou estéticos nas bibliotecas de arquitetura, e os manuais que tratam de aspectosfuncionais. Noutros aspectos, a tradição é menor, ainda que significativa, como nos to-poceptivos, a constituírem linha de pesquisa aberta por Lynch (1999), mas com origemdetectável, pelo menos, em Sitte (1992), embora este seja mais comumente classificadocomo esteta. Noutros, ainda, a tradição é quase nula, como nos aspectos afetivos,14 quemerecem status independente mas são freqüentemente confundidos com outros, e.g. ossimbólicos.

O paradigma epistemológico ainda hegemônico, ilustrado na discussão referida noinício do texto, vem sendo superado (embora devagar). Nele, a arquitetura é estranha aopanteão das disciplinas científicas. Decorre que ela ressente-se de um complexo de infe-rioridade que a faz aceitar o status de adjetivo adicionado ao substantivo das disciplinasde maior tradição de pesquisa. Por isso nos incorporamos, alegres, a campos como “psi-cologia ambiental” ou “economia urbana” ou “estética arquitetônica”, achando que assimsubimos de patamar. Não. Esse foi o grande equívoco da “febre interdisciplinar” que atra-sou perversamente o conhecimento da arquitetura.

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12 Professores ou alunos dearquitetura nos anos 1970 sa-bemos dos danos que isto cau-sou à formação. Valia de tudonos trabalhos de conclusão decurso, até despachos de ma-cumba, como pude testemu-nhar (nada contra os despa-chos, mas estavam fora decontexto). Ver também comen-tários em Zein, 2001.

13 Mais adequado seria dizerque a ruptura dos anos 1960-70 marca o começo do fim deum “paradigma” e o início deoutro. O progresso do conheci-mento dá-se de maneira des-contínua – são as “revoluçõesparadigmáticas” de Kuhn (2003).Na teoria da arquitetura, as últi-mas décadas testemunhamuma destas revoluções.

14 Há estudo sobre os aspec-tos realizado com estudantesde arquitetura, na FAU-UnB (Ho-landa, s.n.).

À mudança de postura metodológica devem corresponder mudanças taxonômicas.Quando o “espaço vem para a boca de cena”, na bela expressão de Carlos Nelson Ferrei-ra dos Santos (Turkienicz & Malta, 1986), antigos rótulos não fazem jus à nova realida-de. “Substantivar” as subdisciplinas da arquitetura significa propugnar por disciplinas cu-ja denominação, por exemplo, poderia ser a do Quadro 2.

Algumas expressões na coluna da direita do Quadro 2 são de uso mais corrente, ou-tras menos. Mesmo quando corrente, o uso não diz respeito a uma disciplina regional, co-mo propugnado aqui, mas a um tipo de manifestação empírica, a revelar a hegemonia dovelho paradigma. Questionemos: por que a primeira idéia que nos vem à cabeça quandofalamos em “sociologia urbana” é a de um corpo de conhecimento consolidado (uma disci-plina, portanto), e não a idéia de manifestações empíricas de costumes urbanos? Por que,ao contrário, se encontramos a expressão “arquitetura bio-climática”, a primeira idéia nãoé a de um corpo disciplinar, mas a de uma arquitetura, digamos, “ecologicamente corre-ta”? Por que a expressão “arquitetura funcional” nos remete a manifestações da arquitetu-ra moderna, embora injusta ou mesmo equivocadamente?15 Trata-se do entendimentoque o paradigma hegemônico impõe e que urge superar.

Quadro 2 – Aspectos e disciplinas “regionais” da arquiteturaASPECTO DISCIPLINAaspectos funcionais arquitetura funcional aspectos bio-climáticos arquitetura bio-climática aspectos econômicos arquitetura econômica aspectos sociológicos arquitetura sociológica aspectos topoceptivos, arquitetura expressiva (para o conjunto, afetivos, simbólicos, estéticos ou então, especificamente, arquitetura

topoceptiva, arquitetura afetiva, arquitetura simbólica, arquitetura estética)

No novo marco teórico, a questão da interdisciplinaridade se coloca de maneira di-versa. Não se trata de um obscurantismo corporativo que menospreze o conhecimentode determinados campos disciplinares (e.g. sociologia urbana) em benefício de outros(e.g. arquitetura sociológica). Não há objeto empírico cuja compreensão prescinda doconcurso de vários olhares. As relações das pessoas com o espaço urbano não são objetoprivativo da arquitetura sociológica nem da sociologia urbana – são um campo comuma ambas. Contudo, os olhares de uma e outra disciplina diferem no ponto de partida,nos métodos, na ênfase e no rigor que conferem à descrição da realidade que procuramabordar. “Arquitetos sociológicos” têm por dever de ofício oferecer quadro preciso,exaustivo, profundo, do espaço produzido ou apropriado pelas pessoas; buscarão na so-ciologia urbana o aporte necessário à completude do quadro analítico, quanto aos atri-butos das pessoas envolvidas. Mas as categorias “importadas” não são quaisquer catego-rias, nem todas ajudam a entender melhor a arquitetura; não saber discriminá-las foioutro erro do “modo 2”. Elas devem estar relacionadas às expectativas sociais em relaçãoà forma-espaço dos lugares; têm de nos ajudar a entender a satisfação (ou não) das pes-soas em relação ao desempenho arquitetônico.16 A sociologia urbana, por sua vez, nãoprecisa, nem deve abordar com rigor a configuração da cidade, mas dirigir a ênfase às re-lações entre as pessoas no âmbito urbano (classes sociais, gênero, gerações, etnias etc.).É para isto que ela está melhor preparada. Mutatis mutandis, buscarão na arquitetura so-

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15 Como bem apontou Ander-son, ao comentar que “função”é uma ficção em duplo sentido:uma mentira, pois a arquiteturafuncional é uma impossibilida-de, e uma narrativa, pois a “fun-ção” em arquitetura é semprehistoricamente articulada a va-lores, idéias, costumes (Ander-son, 1995).

16 A natureza multifacetada denossas expectativas exige a im-portação de categorias de mui-tas disciplinas, a depender dosaspectos. Por exemplo, no âm-bito dos aspectos sociológicos,importei de Giddens (1973) oconceito de classes sociais nassociedades avançadas, paraanalisar o variado comporta-mento delas em relação ao es-paço de Brasília (Holanda,2002); para os aspectos funcio-nais, há que importar categoriasda ergonomia; para os bio-climá-ticos, da biologia, da climatolo-gia e da física; para os topocep-tivos, da psicologia; etc.

ciológica o aporte necessário à completude do seu trabalho, segundo a mesma idéia: umaporte complementar, subsidiário.17

MODO 4: A “SEDUÇÃO” DE CIENTISTAS A-ESPACIAIS PARA O CAMPO MORFOLÓGICO

As observações anteriores referem-se ao necessário diálogo entre arquitetos e outrasformações, mantidas as respectivas identidades. Mas o desenvolvimento da arquitetura co-mo disciplina vem ganhando muito também mediante mudanças nas tradicionais identi-dades acadêmico-profissionais. Vimos acima os ganhos decorrentes quando os arquitetosmigram do campo “1” para o “2” (Quadro 1). Agora, levo a condenação do obscurantis-mo corporativista mais longe. Se a interação entre arquitetos (agora no campo “2”) e cien-tistas sociais (no campo “3”) já é profícua (comentada no modo anterior), mais ainda oserá se houver uma migração inversa, agora dos cientistas do campo “3” para o campo“2”. Isso também pressupõe mudança de identidade. Ao migrarem para o centro do dia-grama, cientistas sociais transmutam-se em “morfólogos” – passam utilizar sua “caixa deferramentas” teórico-metodológica para iluminar a configuração dos lugares, enriquecen-do sobremaneira o conhecimento da realidade.

Portanto, sejam bem-vindos cientistas sociais ou da natureza ou das exatas, de todasas categorias para o campo disciplinar da arquitetura, sem que tenham de obter o respec-tivo diploma! Mas isso implica que se debrucem sobre os códigos arquitetônicos, passema pensar morfologicamente, não a-espacialmente, como é mais de sua tradição.18 A dupla“migração” dos campos extremos para o campo central do Quadro 1 dá excelentes fru-tos.19 Faz de todos “pensadores reflexivos morfológicos”, dá enorme impulso ao aprofun-damento do campo disciplinar da arquitetura. Ao contrário, a negação do aprofundamen-to disciplinar e a defesa de “um novo tipo de generalista urbano”, um “novo tipo deHomem Renascentista moderno”,20 requenta posições falidas de quase 40 anos atrás.

Não importa o diploma do pesquisador ou a agremiação a que formalmente perten-ce, mas seu olhar sobre os lugares. A “senha” para entrar no campo “2” não é o rótulo con-tido no diploma, mas “morfologia”. Dos três professores mais importantes na minha for-mação – Delfim Fernandes Amorim, Evaldo Coutinho e Bill Hillier – ,apenas o primeiroé arquiteto. Amorim (1917-1972), português naturalizado brasileiro, teve forte influên-cia na formação dos arquitetos da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal dePernambuco ao longo de quase duas décadas, e foi um dos principais mentores e partíci-pes da Escola do Recife.21 O pernambucano Evaldo Coutinho (n. 1911) é exemplo emble-mático: advogado por diploma, filósofo e arquiteto-esteta por opção, é autor do clássicoO espaço da arquitetura (Coutinho, 1970), obra essencial no campo da filosofia da arteaplicada à arquitetura (ou no campo da arquitetura estética, nos nossos termos). O inglêsBill Hillier (n. 1937), bacharel em literatura, é fundador da Teoria da Sintaxe Espacial,influente linha de investigação que se difundiu por inúmeros países, inclusive no Brasil.22

As “disciplinas regionais” (ou subdisciplinas) da arquitetura vêm, sim, consolidan-do-se avan la lettre. Breves exemplos o ilustram: 1) manuais de variados tipos (Neufert &Neufert, 2004, Prinz, 1980, entre outros) dizem respeito aos aspectos funcionais; 2) Ro-mero (1988) investiga aspectos bio-climáticos ao examinar relações forma urbana x con-forto ambiental; 3) Mascaró (1985) pesquisa aspectos econômicos ao estudar relaçõesconfiguração de cidades e edifícios x seus custos de produção e manutenção; 4) trabalhosde Anderson (1978-EEUU), Mitchell (2000-EEUU), Castex et al. (1977-França), Santos &Vogel (1985-Brasil), Hillier (1996-Inglaterra) e a maioria da pesquisa em “sintaxe espa-

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17 Hillier e Leaman abordaramo tema em artigos pioneirosnos anos 1970: Hillier & Lea-man, 1972, 1974, 1976.

18 Contudo, há muitos cientis-tas sociais que são “espaçólo-gos”. É o caso de Durkheim(1964) com os conceitos desolidariedade mecânica e soli-dariedade orgânica, claramen-te espaciais, fundamentais pa-ra entendermos modos de vidanão-urbanos e urbanos; de Lévi-Strauss (1977), em sua clássi-ca análise da aldeia Bororo; devários trabalhos de Michel Fou-cault, Erving Goffman, PierreBourdieu, Marc Augé, Michel deCerteau etc. Sua contribuição àarquitetura é inestimável.

19 Vejo com otimismo os ex-celentes trabalhos de IniciaçãoCientífica produzidos por estu-dantes de graduação em arqui-tetura, a revelar grandes pes-quisadores em potencial(migração do campo “1” para o“2”). Na pós-graduação em ar-quitetura a participação de es-tudantes oriundos de áreasaparentemente distantes (mi-gração do campo “3” para o“2”) vem iluminar questõesmorfológicas. Por familiarida-de, cito duas teses de doutora-do em preparação: FrancineyCarreiro de França (As caracte-rísticas socio-morfológicas noDistrito Federal: morar emapartamentos) e Rômulo Joséda Costa Ribeiro (Análise daConfiguração Urbana, por Meiode Índices de Qualidade de Vidae Qualidade Ambiental, emApoio à Gestão de Cidades),são oriundos respectivamenteda matemática e da geologia, etrazem para o campo da arqui-tetura avançados procedimen-tos quantitativos e de geo-pro-cessamento.

20 Como proposto por RobertWeaver (1968), apud ELLIN(1999, p. 65). A idéia chegou adesembocar na criação de cur-sos interdisciplinares de gra-duação para formar “generalis-tas”. Isso é completamentediferente das experiênciasbem-sucedidas de trabalho emequipes interdisciplinares, co-mo as realizadas pela SUDENEdos “tempos heróicos” (iníciodos anos 1960), ou da forma-ção em nível de pós-graduaçãocomo instrumento para aperfei-çoar formas de diálogo inter-áreas no trato de problemasconcretos, como nos CE-MUAMs – Cursos de metodolo-

cial” estão no âmbito dos aspectos sociológicos – cada autor a enfocar, à sua maneira, re-lações modos de vida x configuração urbana; 5) retomando e desenvolvendo a tradição deLynch (1999), Kohlsdorf (1996) estuda os aspectos topoceptivos ao relacionar configura-ção urbana x formação de imagens mentais; 6) a dimensão simbólica do lugar é tema deSilva (1985), no Brasil, e dos fenomenólogos em geral, como Norberg-Schulz (1979) eScully (1989); 7) embora a literatura raramente separe os aspectos afetivos dos simbóli-cos, os primeiros também são o foco de fenomenólogos, como Seamon (2000); 8) nos as-pectos estéticos sobressai, no Brasil, o trabalho de Gorovitz (1985, 1993). Nada disto“combinei com os adversários”, na espirituosa frase do Garrincha: o enquadramento dosautores na taxonomia é de minha responsabilidade, um exemplo de como o estado da ar-te pode ser caracterizado. Muitos possivelmente contestariam os respectivos rótulos e osconceitos propostos.

Os trabalhos são sintoma eloqüente de que a pesquisa sobre os aspectos da arquite-tura é necessária e está sendo feita. Entretanto, a vertente “aspectual”, em “profundidade”,co-existe com outra, mais comum, em “extensão”, igualmente legítima. Nesta, a pesqui-sa e a crítica preferem considerar a arquitetura globalmente, não em enfoques particula-res. Preferem identificar como a confluência de vários aspectos proporciona identidade aum panorama da arquitetura delimitado no tempo ou no espaço. É a abordagem típicadas disciplinas de história nas faculdades de arquitetura, e.g. “arquitetura barroca” (deli-mitação no tempo) ou “arquitetura brasileira” (delimitação no espaço). Na tradição, os as-pectos comparecem (como não fazê-lo?!), contudo, de maneira global: quanto maisabrangente a abordagem, melhor.23 O problema existe quando se vende uma parte pelotodo, quando uma opção por determinado aspecto é feita na análise, mas não explicitada– por exemplo, pelos aspectos estéticos, como é predominante na historiografia em arqui-tetura. É como se uma dimensão fosse a única a interessar, ou pelo menos a mais impor-tante, em quaisquer casos. Não é assim. O desempenho da arquitetura pode ser contra-ditório entre aspectos – bom em uns, ruim em outros – e ela torna-se referência históricaquando suas qualidades fazem por merecê-lo, malgrado seus defeitos. Brasília, uma dasmais importantes realizações arquitetônicas24 de todos os tempos, já entrou para a histó-ria. Embora não se explicite assim, ela é legitimamente considerada Patrimônio Culturalda Humanidade pelos aspectos, e.g., bio-climáticos, topoceptivos, simbólicos e estéticos,apesar dos problemas sociológicos, funcionais e econômicos que tem (e.g. Holanda,2002, 2003), alguns com origem no projeto, outros no desenvolvimento posterior da ci-dade. É no mínimo curioso como a crítica preconceituosa ou desinformada ou superficialde autores como Holston (1993), Rykwert (2000), Frampton, Tafuri, Zevi (Zein, 2001),passa ao largo de tais contradições e, principalmente, falha em reconhecer a importânciahistórica da cidade.

ARQUITETURA COMO CIÊNCIA HUMANA

Ciências humanas são ciências sobre práticas humanas. Como sintética e elegante-mente formulou Nunes,25 a filosofia estuda relações entre seres humanos e idéias; a eco-nomia, relações entre seres humanos e coisas; a sociologia, relações dos seres humanos en-tre si. Parafraseando Nunes, sugiro: a criação ou usufruto de lugares são práticas humanase a disciplina da arquitetura como ciência humana estuda relações entre os lugares e as pessoas,do ponto de vista dos aspectos funcionais, bio-climáticos, econômicos, sociológicos, topoceptivos,

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gia do urbanismo e administra-ção municipal, realizados peloIBAM – Instituto Brasileiro deAdministração Municipal (o au-tor teve o privilégio de fazer ocurso na edição 1971-72, soba direção de Adina Mera e Mar-cos Mayerhofer).

21 “Pela qualidade e relativahomogeneidade da produçãoarquitetônica do período, mui-tos estudiosos sugerem a exis-tência de uma escola de arqui-tetura – a Escola do Recife.”(Amorim, 2003)

22 Bill Hillier escreveu com Ju-lienne Hanson o livro que reuniuinicialmente os principais as-pectos da teoria (Hillier & Han-son, 1984). Publicou depoisHillier (1996). Simpósios inter-nacionais bienais desde 1997têm reunido pesquisadores deinúmeros países que utilizam ateoria. No Brasil, os pesquisa-dores concentram-se nas uni-versidades: UFRN, UFPE, UnB,UFSC e URGS. Testemunhei osurgimento da teoria por oca-sião da minha pós-graduaçãoem Londres, nos anos 1970.Ela foi empregada na minha dis-sertação de mestrado e na mi-nha tese de doutorado (esta pu-blicada em Holanda, 2002),ambas realizadas sob a super-visão de Bill Hillier.

23 No Brasil, exemplo paradig-mático da tradição é o trabalhopioneiro de Nestor Goulart ReisFilho. Quando pesquisar arquite-tura era “coisa de intelectuaisdiletantes” e até motivo de es-cárnio nas faculdades de arqui-tetura, Reis Filho publicou o se-minal Contribuição ao Estudoda Evolução Urbana no Brasil(1500-1720) (1968). Desde en-tão tem contribuído ininterrup-tamente para a compreensãoda arquitetura brasileira. Es-creveu ou organizou 18 livros(http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/index.jsp,acesso em 03/04/2006). Háantecedentes quanto à reflexãosobre arquitetura no Brasil. Valecitar, pelo menos, os escritosde Lucio Costa a partir dosanos 1930 (vide Costa, 1995).

24 Lembro que uso “arquitetu-ra” lato sensu, a englobar to-das as escalas: edilícia, urba-nística, paisagística.

25 Brasilmar Nunes, comuni-cação verbal na Sessão Coor-denada referida no início dotexto.

afetivos, simbólicos e estéticos. As pessoas fazem-se humanas pelos modos de produção debens materiais, pela língua que falam, pelos sistemas simbólicos que inventam, pelas ma-neiras de criar ou usufruir lugares. Mas o conjunto dessas “maneiras” é um campo aindavasto. Prática humana é perceber estímulos visuais de uma seqüência de ruas e praças e apartir disso formar uma imagem mental estruturada (aspectos topoceptivos); é emocio-nar-se diante da leveza da arquitetura de Oscar Niemeyer (aspectos afetivos); é fazer aimagem do Cristo Redentor no Corcovado, Rio de Janeiro, representar a cidade inteira(aspectos simbólicos); etc. O conhecimento em todos esses campos é passível de se desen-volver no modo científico, e o tem feito, conforme exemplifiquei; todos são “humanida-des”. Entre os campos, tratarei de apenas um: a arquitetura sociológica.

A cada aspecto corresponde um campo de saber, uma subdisciplina da arquitetura.A cada subdisciplina correspondem categorias analíticas próprias, que conceituam a ar-quitetura e as expectativas sociais relativas aos aspectos. A arquitetura sociológica consi-dera: 1) a realidade empírica lugar e 2) a realidade empírica expectativas sociais.

Para a disciplina arquitetura sociológica, a realidade empírica lugar é um sistema debarreiras e permeabilidades ao movimento, de transparências e opacidades à visão, decheios e vazios, impregnados de práticas sociais. Cada lugar enquanto arquitetura impli-ca uma peculiar organização dos elementos componentes: 1) superfícies, volumes, vãos,na escala dos edifícios; 2) edifícios, ruas, praças, áreas verdes, na escala dos assentamentoshumanos de qualquer tipo – aldeias, vilas, cidades, metrópoles; 3) montanhas, vales, en-seadas, praias, na paisagem natural. Lugares são ordenados em sistemas de contigüidades,continuidades, proximidades, separações, hierarquias, circunscrições. Dito mui sintetica-mente, sistemas formal-espaciais variam, na história, no uso que fazem de barreiras/per-meabilidades ou opacidades/transparências, em combinações diversas. Interessam para adisciplina as relações entre tais sistemas e expectativas sociais específicas, como seguem.

Para a disciplina arquitetura sociológica, a realidade empírica expectativas sociais dizrespeito a um sistema de encontros e esquivanças, de concentração e dispersão de pes-soas. Cada sistema social implica uma peculiar maneira de organizar grupos de pessoasno espaço e no tempo, maneira que estabelece quem está próximo ou distante de quem,fazendo o quê, onde e quando. Sociedades variam, na história, em combinações diver-sas: as muito densas, que comprimem no espaço e no tempo toda classe de gente e prá-ticas sociais diversas (todos estão próximos praticamente o tempo todo); as muito rare-feitas, que localizam diferentes tipos de pessoas e suas práticas em lugares especializadospor categoria, lugares separados por grandes distâncias ou fortes barreiras físicas, pessoascuja interação através do espaço é descontínua no tempo; combinações das duas coisas– e.g. concentrar separadamente – como é típico das sociedades contemporâneas comseus enclaves fortificados, campi universitários, centros cívico-administrativos, shoppingcenters, edge cities.

Vasta evidência empírica aponta para uma congruência histórica entre configuraçõesformal-espaciais e sistemas sociais: as sociedades não são infinitamente maleáveis comopara caber em qualquer camisa de força construída em pedra e cal e não se pode realizarimpunemente qualquer absurdo arquitetônico. Todavia, muitas teorizações em arquitetu-ra estão longe de reconhecer a evidência. A dificuldade explica-se pelos equívocos come-tidos pela ideologia do Movimento Moderno, que pretendia fazer brotar do lápis uma no-va sociedade.26 Amadurecidos pelo fracasso das idéias, hoje o tema se nos coloca demaneira diferente: arquitetura e gente são coisas relacionadas, mas distintas. Falar em con-gruência não é falar em determinação bi-unívoca entre arquitetura e comportamento, mas

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26 Para uma retomada daclássica discussão sobre “de-terminismo arquitetônico” verHolanda, 2003, pp. 18-39.

é reconhecer que a arquitetura cria, sim, um campo de possibilidades e de restrições, possi-bilidades que podem (ou não) ser exploradas, restrições que podem (ou não) ser supera-das. Exemplo de possibilidades que podem ser desprezadas: espaços públicos historica-mente surgidos para comportar muita gente em forte interação cotidiana podem hojeestar desertos porque mudou o modo de vida das pessoas, embora habitem os antigos lu-gares (onde estão as cadeiras nas calçadas dos bairros tradicionais das cidades brasileiras?).Exemplo de restrições que podem ser superadas: no caso-limite da prisão, detentos po-dem cavar túneis e fugir. Os fatos não negam as possibilidades e restrições intrínsecas àsconfigurações arquitetônicas, mas revelam que as relações de determinação entre arquite-tura e comportamento são mais sutis do que um dia imaginamos. Nem ela determinanosso comportamento como se fôssemos desprovidos de vontade, iniciativa e capacidadede superar limites, nem ela é neutra, como foi a “solução” adotada por muitos teóricos.Tafuri e Rossi, por exemplo, passaram a ver a arquitetura como vazia de conteúdo, sobrea qual podemos colar os rótulos que quisermos: “a arquitetura por si própria não pode serdemocrática ou fascista; somente as pessoas podem fazê-la uma coisa ou outra” (apud El-lin, 1999). Foram secundados por Léon Krier: “não existe arquitetura autoritária nem de-mocrática. Existem somente meios autoritários e democráticos de produzir e usar a arqui-tetura. (...) A arquitetura não é política, apenas pode ser usada politicamente” (apud Ellin,1999). Isso não agride apenas o bom senso, agride vasta evidência empírica. Sobre o te-ma determinismo arquitetônico, Tafuri, Rossi e Krier jogaram fora “a água suja do banhojunto com o bebê”. Compreender as relações entre arquitetura e sociedade em um novopatamar de qualidade é o desafio da arquitetura sociológica.

Em suma, a arquitetura sociológica, como um campo de saber afeito às ciências huma-nas, preocupa-se em revelar as relações entre arquitetura e sociedade, mais especificamen-te entre as configurações de edifícios, cidades e da paisagem natural entendida como ar-quitetura (ver conceituação acima) e as maneiras pelas quais as pessoas fazem o quê,como, onde, quando e com quem – as maneiras como se estruturam encontros interpes-soais, de forma mais ou menos determinística, mais ou menos casual, concentrados ounão no espaço ou no tempo. Talvez a essencial contribuição paradigmática que a aborda-gem implica esteja expressa no axioma: há implicações intrínsecas às configurações arquite-tônicas, traduzíveis em termos de possibilidades e limitações contidas nas próprias configu-rações, que ainda têm sido precariamente entendidas pela literatura e pela pesquisa (e issosem prejuízo do nosso livre arbítrio, aparentemente desprezado pelas máximas determi-nísticas do Movimento Moderno). A importância da reflexão está em que estas dimen-sões socioespaciais têm profundas implicações em relação a estruturações sociais, simetriasou assimetrias sociais, enfim, estruturações de poder, como brevemente exemplificam osestudos relatados a seguir (ver também Holanda, 2002).

ARQUITETURA SOCIOLÓGICA – EXEMPLOS

A arquitetura sociológica – esse peculiar olhar sobre a forma-espaço da arquitetura –tem motivado pesquisas e embasado projetos de urbanismo na FAU – Universidade deBrasília. Todavia, dado o espaço disponível, a prioridade foi pela exposição dos funda-mentos teóricos da disciplina, não pelo exame pormenorizado de estudos de caso. A se-guir ofereço indicações sumárias sobre os estudos, cujo desenvolvimento está nas fontesindicadas. Os exemplos cobrem diversas escalas:

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1) Pesquisa sobre transformações do espaço doméstico ante o modo de vida contem-porâneo, a implicar “casas dentro de casas”, uma hiper-valorização da privacidade indivi-dual pela criação de pequenos mundos semi-autônomos nos quartos das residências(França, 2001). O estudo revela um “código de espaço doméstico de classe média”, co-mum à arquitetura erudita produzida por arquitetos, e à arquitetura banal, produzida,e.g., por desenhistas sob orientação direta dos moradores e assinada por profissionais for-malmente habilitados para tal.

2) Projeto de revitalização da Av. W-3, Brasília, em que foram consideradas as mu-danças morfológicas e de estilo de vida da metrópole brasiliense que provocaram a deca-dência da avenida, um dia o centro vital da cidade (Holanda, 2003). Discute-se a impor-tância de incluir novos espaços domésticos em áreas atualmente estritamente comerciaise de serviços, e o contrário: a inclusão de serviços em quadras residenciais, medida que sa-cramenta tendência inelutável. Argumenta-se sobre as vantagens sociológicas de ambas ese demonstra como elas não ferem o estatuto do tombamento, contradizendo a visão es-tatal errada sobre o tema.

3) Estudo sobre a forma-espaço do Distrito Federal, a revelar os custos sociais da “ex-centricidade” da Capital: 82% dos empregos formais estão onde moram menos de 10%da população, numa área de relativa segregação física ante a metrópole como um todo (oPlano Piloto) (Holanda, 2003). Mostra-se como a metrópole Brasiliense é desequilibra-da, quando examinadas as relações entre moradias, empregos e acessibilidade.

4) Projeto de uma superquadra em Brasília (SQN-109) realizado a partir da análisecrítica da experiência pregressa (Holanda, 2003). Embora bio-climaticamente confortá-veis e com paisagismo agradável, identificaram-se problemas funcionais, sociológicos eimagéticos nas superquadras existentes, problemas que se procurou evitar no projeto.

5) Projetos de expansão urbana realizados pelos estudantes de graduação para ocu-par áreas centrais da metrópole até hoje vazias. Há áreas para novos bairros na Capital,mas cuja destinação, a manterem-se as diretrizes atuais, irão reforçar a conhecida segre-gação socioespacial da metrópole. Os projetos dos estudantes propõem tipos edilíciosvariados, cuja conseqüência seria uma maior democratização da cidade em termos deapropriação do espaço por distintas classes sociais. Embasa-se em pesquisa referida noitem a seguir.

6) Pesquisa sobre as relações poder aquisitivo dos habitantes x configuração formal-espacial dos lugares onde moram (Holanda, 2006). Estudo em andamento mostra que asegregação socioespacial da Capital tem origem no projeto. A variedade limitada de tiposedilícios no Plano Piloto (inicialmente apenas edifícios de seis pavimentos sobre pilotisnas superquadras e “casas individuais” próximas à orla lacustre) resultou no surgimentoprecoce das cidades satélites para famílias de baixo poder aquisitivo. Sem guarida no Pla-no, os tipos “inadequados” implantaram-se a quilômetros de distância. A segregação so-cioespacial da Capital foi comandada por políticas públicas como resposta a princípiosideológicos, não como resultado de mercado, regra nas demais cidades brasileiras. Toda-via, há permanência de faixas de renda baixa no coração da metrópole, principalmente naVila Planalto, remanescente de antigo acampamento de empreiteiras, distante apenas de1.500 metros da Praça dos Três Poderes, e nos blocos “JK”, edifícios de três pavimentos,sem pilotis, menos palatáveis às classes médias e altas. A tese é: a arquitetura dos lugaresestá fortemente relacionada à permanência, mais de quarenta anos após a inauguração dacidade. Os achados, se explorados, teriam grande importância para políticas habitacionaismais democráticas.

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CONCLUSÃO

O texto apela ao conhecimento disciplinado, pois dissecar a realidade em suas múlti-plas dimensões faculta ir mais longe no domínio e no aperfeiçoamento de nossas práticas.

O texto é otimista: identifica as frentes em que o conhecimento científico em arqui-tetura está sendo produzido. Todavia, como acontece nas demais ciências humanas (di-zem que nas exatas também...), paradigmas conflitantes vão co-existir enquanto vivermosem sociedades com interesses contraditórios: elas produzem idéias à sua imagem e seme-lhança. Por um lado, Hillier, Mitchel e Anderson lançam novas luzes sobre velhos temas;por outro, produzem-se “manifestos” com cheiro de mofo: a Carta do Novo Urbanismo(Congress for the New Urbanism, 2001), a Nova Carta de Atenas (Conselho Europeu deUrbanistas, 2003), o livro A Vision of Britain, de Sua Alteza Real o Príncipe de Gales (ThePrince of Wales, 1989). O último embasou o projeto retrô e a construção de Poundbury,a “nova” cidade “medieval” inglesa, em que participaram entusiasticamente Léon Krier eAndrés Duany, papas do “novo urbanismo”.27

O apelo ao fortalecimento disciplinar o é também por uma abordagem interdiscipli-nar dos problemas, mas cujos participantes detenham posições sólidas para o confrontode idéias e o enfrentamento de questões práticas. Não sugiro que nos fechemos em copasna disciplina da arquitetura. Pelo contrário, o texto é uma provocação, particularmenteaos cientistas sociais: pensemos, juntos, as relações arquitetura x sociedade, cada um comseu olhar. E, eventualmente, transformemo-nos, todos, em “morfólogos”. Questionemosas respectivas categorias analíticas. O aprofundamento disciplinar implica a construção de“pontes” entre a disciplina da arquitetura e as ciências exatas, da natureza ou humanas; aarquitetura sociológica é um exemplo. As pontes permitem o diálogo e levam o conheci-mento a novos patamares de qualidade, condição necessária, mas não suficiente para me-lhorar a realidade – “ah, se conhecer resolvesse tudo!”...

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27 Poundbury foi construídaem terras do Príncipe Charles.Ver excelente análise crítica emWillians, 2004.

Frederico de Holanda éprofessor associado da Fa-culdade de Arquitetura e Ur-banismo, Universidade deBrasília, PhD em arquiteturapela Universidade de Lon-dres (1997).E-mail: [email protected].

Artigo recebido em maio de2007 e aprovado para publi-cação em julho de 2007.

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A R Q U I T E T U R A S O C I O L Ó G I C A

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A B S T R A C T Architecture is more common considered a craft, an art, a technique.The text considers as well a science which approaches places under a specific point of view,which is not akin to the one of other disciplines. I examine modalities of knowledge and Isuggest that there has been a paradigmatic change in the field in the last decades. The changerescues reflexive-theoretical knowledge. To assert architecture as a scientific discipline does notdeny, on the contrary, it strengthens interdisciplinarity in dealing with questions related toplaces produced or appropriated by people: I emphasise contributions of authors coming fromother disciplinary fields, who look at places from the morphological point of view. I explorearchitecture as an independent variable: once ready, it affects people in various ways, amongthem the sociological way. The latte way may be summarized by mean of the followingquestions: does formal-spatial configuration (voids, solids, their relationships) imply desirableways of individuals and groups (social classes, genders, generations etc.) localize themselves inplaces and move along them, and consequently desirable conditions for interpersonalencounters and avoidances and for the visibility of other? The type, quantity and relativelocalization of activities imply desirable patterns of utilization of places, in space and time?

K E Y W O R D S Relationships architecture/society; architecture as human science; so-ciological architecture.

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REFLEXÕES SOBRE AINTEGRAÇÃO PAN-AMAZÔNICAO PAPEL DA ORGANIZAÇÃO DO TRATADO DE COOPERAÇÃO

AMAZÔNICA (OTCA) NA REGULAÇÃO DA ÁGUA*

N Í R V I A R A V E N AV O Y N E R R . C A Ñ E T E I

R E S U M O Este artigo discute a história institucional dos marcos regulatórios para oacesso e uso da água no Brasil, assim como a influência dessa regulação na elaboração de umagestão integrada dos recursos hídricos na Pan-Amazônia. Os processos que envolvem a regu-lação da água no Brasil e a confecção do Tratado de Cooperação Amazônica (TCA) são pon-tos sobre os quais são construídas as reflexões sobre o papel desses formatos institucionais numagestão integrada e específica da água no contexto amazônico.

P A L A V R A S - C H A V E Regulação; meio ambiente; Amazônia; água.

Os pressupostos de regulação ambiental, quando tratam de recursos hídricos, pres-crevem ações que utilizem esse recurso de forma racional e integrada. Estes elementos sãocentrais nos mecanismos de gestão da água e têm sido um argumento recorrente na are-na ambiental. A gestão pressupõe que instrumentos e ferramentas de controle sejamdisponibilizados para possibilitar que as externalidades e a interdependência sejam con-templadas no momento de sua execução, pois os usos múltiplos dos recursos hídricos re-querem a inclusão dessas características da água nos modelos de gestão. Há, porém, doisproblemas estruturais para o início de um desenho de marcos regulatórios que contem-plem mais de um Estado nacional: a diversidade do acesso e do uso da água em cada paísque constitui a Pan-Amazônia1 e a história institucional de regulação da água em cadauma dessas nações. A esses problemas sobrepõem-se duas complexidades: uma relativa aopróprio recurso, suas características físicas, sua vulnerabilidade a ações antrópicas e diver-sos fatores ligados à sua materialidade; e, outra, relativa ao posicionamento político de ca-da país no interior de um pacto para a gestão integrada.

Neste artigo serão apresentadas as reflexões sobre a Pan-Amazônia como um GlobalCommon.2 A partir de uma interpretação que toma as instituições como elementos cen-trais na análise da dinâmica que envolve as políticas direcionadas para a região, são des-critos os formatos institucionais que interferem no desenho de uma gestão integrada daágua na Pan-Amazônia.

Primeiramente o artigo discorre sobre a abordagem utilizada para verificar os ele-mentos que permitem incorporar a interface entre as diversas escalas de um regime am-biental para a região. Numa segunda seção apresenta-se o processo histórico de cons-trução das instituições de regulação da água, destacando como a transformação dessasinstituições do ponto de vista político imprimiu à regulação da água seu formato atual;serão discutidos também os limites impostos pelas trajetórias dependentes das instituiçõesque atuam junto a setores sociais que acessam e usam os recursos hídricos no Brasil. Naterceira parte do trabalho é apresentada a mudança institucional ocorrida no âmbito do

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* Este artigo resulta do se-minário internacional “Águasda Pan-Amazônia: institu-cionalização de marcos re-gulatórios, visões de atorespolíticos e estratégias”, rea-lizado em Belém de 2 a 4 demarço de 2005, no contex-to do Programa Sul-ameri-cano de Apoio às Atividades(PROSUL)-DET- CNPq.

1 A Pan-Amazônia ou Ama-zônia Continental constitui-se de todos os espaçospertencentes à área de dre-nagem da bacia amazônica.Incluem-se nessa definição,do ponto de vista geopolíti-co, os seguintes paísesamazônicos: Bolívia, Brasil,Colômbia, Equador, Guiana,Peru, Suriname e Venezuela.

2 Recurso comum global.

TCA (Tratado de Cooperação Amazônica) e sua conversão na OTCA (Organização doTratado de Cooperação Amazônica). Essa descrição permite avaliar as trajetórias depen-dentes originadas no TCA como pontos em que a gestão integrada da água pode ocorrercom maiores ou menores custos de transação. Sobre essa análise são elaboradas as reflexõesacerca dos formatos institucionais possíveis para a integração da Pan-Amazônia, tendo aágua como elemento para o qual podem convergir as ações direcionadas à construção deum regime ambiental.

AS ESCALAS LOCAL, REGIONAL E GLOBAL NA CONSTRUÇÃO DE UM REGIME AMBIENTAL NA PAN-AMAZÔNIA

A interdependência que caracteriza os sistemas ecológicos torna os problemas rela-tivos aos recursos naturais pertinentes à ação coletiva em nível global. Os estudos sobre ainteração homem/meio ambiente têm sido instrumentais para promover entre os Estadosnacionais novos arranjos institucionais como saída para os dilemas presentes nesse tipo deinteração (Young, 2000).

De uma perspectiva ambiental, a escala da Pan-Amazônia é global, na medida emque as alterações em seu sistema ecológico têm efeito sobre todo o planeta (Hurrell,1992).No entanto, se os desdobramentos são planetários, o controle da ação antrópica, cau-sadora dessas alterações sobre o meio ambiente amazônico, deve ocorrer em nível local.Não é somente a díade global-local a responsável pela promoção e controle de ações im-pactantes sobre a Amazônia. A escala regional desempenha um papel importante nesseprocesso, pois representa, do ponto de vista institucional, os Estados nacionais que com-põem a unidade territorial denominada Pan-Amazônia. Do ponto de vista político, os Es-tados nacionais são as unidades responsáveis pela formalização de ações conjuntas para ocontrole dos impactos na escala global. Na escala local, são eles que têm poder de formu-lar e implementar políticas de controle da ação antrópica.

É importante salientar, então, o papel das instituições na reflexão acerca do estabe-lecimento de um regime ambiental para a Pan-Amazônia. As instituições diminuem oscustos de interação entre os indivíduos (North,1990). Guardadas as devidas proporções,essa diminuição de custos de interação é válida também para cenários compostos porunidades nacionais que compartilham problemas relativos ao meio ambiente. Os desdo-bramentos concretos do uso de recursos naturais são perceptíveis num gradiente que variado curto ao longo prazo e que transpõe limites territoriais definidos política e institu-cionalmente. Os problemas de escala, portanto, podem ser concebidos não somente notocante à sua dimensão territorial, mas também temporal e institucional (Hurrel & Kings-bury, 1992; Weiss, 1992; Keohane; Ostrom, 1995; Young, 1995; 2000).

É fundamental relembrar que a teoria neo-institucionalista tem apontado caminhospara compreender em que medida a interação entre escalas de diversas naturezas pode re-sultar em desenhos eficientes ou ineficientes na condução dos problemas ambientais (Ma-jone, 1989;Young, 1995; 2000).

Neste trabalho, a água aparece como um recurso natural dotado de característicasque permitem a integração de vários elementos relativos à construção de um regime am-biental. A interdependência é uma característica intrínseca aos recursos hídricos e se ma-nifesta tanto nos seus aspectos físicos quanto na dimensão política resultante de sua aces-

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sibilidade e uso. Entendemos, pois, ser necessário contemplar essa característica como ele-mento norteador das discussões acerca dos limites e possibilidades de uma gestão inte-grada desse recurso na Pan-Amazônia.

Primeiramente é necessário retomar a reflexão em torno das formas por meio dasquais as externalidades promovem movimentos de coletivização de problemas oriundosda ação humana. As dificuldades que se apresentam nos estudos acerca da interde-pendência que caracteriza os recursos naturais são exatamente o que Oran Young definecomo Cross Scalling Interplay (Young, 2000; 2002), ou seja, a coletivização de problemasoriundos da utilização de determinados recursos passa a ter dimensões globais, estando,portanto, a arena política para definir as políticas para esse recurso na interação de diver-sas escalas: tanto as que se originam e se definem no nível doméstico como aquelas quepassam a interagir com a arena internacional. Além dessa interação, deve ser consideradaa interface entre as características físicas dos recursos que interferem ou que fazem partedo recurso natural propriamente dito.

Em obra anterior à que estabelece a discussão dos problemas da interação de diver-sas escalas na gestão de Global Commons, Young (1999) procura adequar os princípios deanálise de Common Pool Resources3 às premissas que regem os estudos de Política Interna-cional. Para compreender em que medida os recursos naturais passaram a ser interpreta-dos como recursos comuns, é fundamental recorrer a uma teoria mais abrangente dasquestões relacionadas à produção e à incorporação de externalidades e suas relações coma dimensão da ação coletiva.

Evocar a contribuição de Abram de Swaan (1988) na interpretação das externalida-des e da interdependência e sua conexão com as questões ambientais parece ser um cami-nho para o entendimento dos arranjos institucionais atuais voltados à articulação entre oglobal e o local. Em sua análise, a interpretação da coletivização das externalidades é o pon-to central que permite a extensão dessa abordagem à formulação de um regime ambiental.

Para De Swaan, a existência de externalidades ou adversidades, difíceis de serem solu-cionadas por meio de uma estratégia de exclusão dos atores que as promovem, finda porpromover a coletivização do problema. A coletivização é um mecanismo ex post. Diferen-temente da clássica abordagem de Olson (1965), a ação coletiva surge dos efeitos de umfenômeno e não da busca de constituição de um bem público. Na abordagem que toma aação coletiva por um mecanismo ex post, a questão que se coloca está relacionada a proble-mas de escala. A incerteza quanto à dimensão e aos efeitos das externalidades que ocorremem larga escala pode ser controlada de forma mais efetiva nas grandes entidades coletivas.

De Swaan aponta a coerção mútua – ou a confiança mútua – como elemento centralna capacidade de solucionar dilemas próprios de grandes grupos. Aqui se coloca umaquestão-chave da teoria da ação coletiva: confiança mútua é um resultado da interação queocorre em pequenos grupos, principalmente por meio das evidências de comportamento(noticiable). Mas a interpretação proposta pelo autor é bastante clara: o processo de ur-banização e suas externalidades iniciaram um movimento de coletivização das adversidadescujo tratamento era operacionalizado de forma mais eficaz nos grandes corpos coletivos.

De certa forma, De Swaan acredita que a ampliação da rede social necessariamenteincorporou à interação social uma lógica individual na qual o medo funciona como ele-mento catalisador da coletivização das externalidades. Contudo, a questão relativa à ocor-rência de grandes corpos coletivos para o controle das adversidades persiste na sua argu-mentação. Para o autor, determinadas conjunturas que envolvem níveis mais amplos deorganização política necessitam do estabelecimento de regras que incluam todos os que

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3 O termo Common PoolResources refere-se a umrecurso natural (águas sub-terrâneas, por exemplo) ouconstruído (um sistema deirrigação, por exemplo) sufi-cientemente grande e cus-toso, quando é objeto deapropriação e/ou provimen-to, permitindo ao mesmotempo a exclusão de poten-ciais beneficiários de seuuso. Ver a obra de Ostrom(1990) que inaugura essaabordagem de forma sis-temática.

dependem do recurso. A contaminação de recursos hídricos ou do ar, por exemplo, numdeterminado local, externaliza-se espacialmente, transferindo custos de uma área paraoutra; os problemas de ação coletiva redimensionam-se, passando do nível doméstico deorganização política para o nível internacional.

A questão que se coloca é saber se a coletivização das adversidades foi capaz de im-primir no quadro institucional do Estado contemporâneo problemas oriundos do acessoe uso de recursos naturais de dimensão global capazes de alterar ou interferir nas institui-ções. Formulando a questão de outra maneira: onde se localizariam os dilemas de ação co-letiva que se originam no uso de recursos naturais cuja interdependência física promovea necessidade de arranjos institucionais específicos, na abordagem proposta por DeSwann?

O autor entende que é a interdependência que imprime nas externalidades a escalana qual serão resolvidos os problemas de ação coletiva. De sua perspectiva, a ampliaçãoda escala em que atores permanecem com uma relativa autonomia, mas conscientes dasexternalidades de suas ações, promove um problema que atinge níveis globais. Assim, odilema da ação coletiva permanece, pois não há nenhuma entidade supranacional quecoordene as ações desses atores.

Resumidamente, na abordagem de De Swaan, a interdependência pode operar nasquestões relativas a recursos naturais de dimensão global como um ponto sobre o qualconvergem interesses múltiplos. Desse modo, vai-se delineando a arena que busca imple-mentar regimes ambientais com formato institucional que potencializa a relação local eglobal na regulação do acesso e uso de recursos naturais.

A poluição, como externalidade, tem a capacidade de tornar substantiva a interde-pendência. O efeito da poluição sobre recursos naturais ainda constitui elemento dedestaque para onde convergem ações mais eficazes no tocante à formulação de regimesambientais.4 As ferramentas para subsidiar tomadores de decisão na elaboração de políti-cas regulatórias destinadas ao meio ambiente são desenvolvidas a partir da constatação dainterdependência como eixo sobre o qual a política deve ser desenhada. Portanto, há umaintersecção entre a complexidade da política e sua saliência, e esses elementos promovema busca por ferramentas que cada vez mais diminuam os custos de transação que, na regu-lação ambiental, tendem a apresentar graus elevados.

Políticas voltadas ao controle das externalidades que demonstram os graus de inter-dependência, tanto em territórios pertencentes a um mesmo arranjo político como emterritórios que compartilham fronteiras políticas, necessitam de instrumentos que sinali-zem as tomadas de decisão no setor (Majone, 1989; Porter; Brown, 1996; Weale, 1996;Keohane, 2001).

As políticas elaboradas em fóruns internacionais podem ser filtradas e reinterpre-tadas nos níveis domésticos e regionais. Isso é possível uma vez que nos tratados, o enun-ciado do princípio é redigido de forma ampla. Daí por que a eficiência das leis ambien-tais originadas na Comunidade Européia (CE), por exemplo, é proporcional à suaimplementação e eficácia nos contextos domésticos e regionais, conforme grande parte daanálise dos especialistas em leis internacionais (Birnie, 1992).

No contexto norte-americano, por exemplo, a importância da dimensão domésticasurgiu da criação de arranjos institucionais que deveriam amparar as políticas destinadasà regulação ambiental. Os atores da arena em que se situam os interesses ligados à di-mensão ambiental perceberam que uma política internacional voltada à regulação trariabenefícios locais diretos (Majone, 1989). Dessa forma, a confecção de um arranjo mais

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4 Cf. Keohane, Haas & Levi(2001); Paavola (1998).

amplo, envolvendo a dimensão de um regime, pode constituir uma política virtuosaquando localmente as instituições potencializam comportamentos cooperativos (Keohane& Ostrom, 1995).

Alguns dos tratados que surgiram como resposta à pressão do movimento ambien-talista norte-americano da década de 1970 apresentam esta característica. O NationalEnvironment Policy Act (NEPA), de 1969, resultou dessa pressão e implementou nos anosseguintes cerca de 17 estatutos regulando os efeitos da poluição sobre recursos como aágua, o ar e a terra (Eisner, 2000; Dietz & Stern, 2002). Inicialmente, a regulação ambien-tal proposta pelo NEPA previa que nenhuma ação governamental poderia causar danosambientais. Posteriormente, essa regulação foi irradiada para as outras entidades federati-vas e para a sociedade.

É importante notar que o surgimento da Agência Ambiental Norte-Americana (EPA,Environment Protecion Agency) era interpretado como mais um arranjo resultante dos“issue attention cycle”5 em razão da vertiginosa ascensão do grau de proeminência que aspolíticas ambientais nos EUA adquiriram.

No entanto, nos EUA, a questão da regulação das externalidades, do ponto de vistado arranjo institucional, situava-se num mesmo território; portanto, o grau de interde-pendência, característico dos sistemas ambientais mantinha uma relativa proporcionali-dade entre as bases institucionais da regulação que se estruturava e o arranjo políticoamericano fundamentado na federação. Assim, os mecanismos de produção de arca-bouços jurídicos para a regulação eram válidos para todas as unidades federativas.

De forma inversa, na Europa, a questão relativa a fronteiras nacionais transformavaas externalidades e a interdependência em fatores de difícil inserção em desenhos institu-cionais voltados à regulação ambiental dos países envolvidos. Em virtude da complexi-dade promovida pela interface entre limites territoriais definidos a partir das fronteiraspolíticas e a ausência de territorialidade na incorporação de externalidades, a regulaçãoenfrentava dilemas de ação coletiva (Haigh, 1992). As externalidades oriundas do impac-to da ação humana sobre recursos naturais como água e ar, dada a reduzida proporção ter-ritorial de cada país da Europa Ocidental, imputavam ao arranjo político um maior graude interdependência.

No nível doméstico, a ação coletiva se estruturava em uma lógica na qual os atoresse organizavam, fundamentalmente, em torno dos interesses da indústria, em que o con-trole das externalidades podia contar com um arcabouço jurídico interno. Entretanto, noâmbito das relações internacionais e do controle da produção e incorporação de externa-lidades, o arcabouço jurídico era outro, dependente dos arranjos da Convenção de Vienade 1969 (Birnie, 1992; Haigh, 1992; Bernhardt, 2001).

O encontro das Nações Unidas ocorrido em Estocolmo em 1972, com 114 paísesdiscutindo questões ambientais centradas no controle de externalidades, como poluiçãode solos, da água e do ar, marca o início de uma agenda que permanece até os dias atuais.A partir da realização dessa conferência, os países integrantes da Comunidade Européia(CE) sentiram-se desconfortáveis em vetar o estabelecimento de uma agenda global.Mesmo que no Tratado de Roma de 1956 não estivesse referida nenhuma obrigação dospaíses-membros para com a proteção ambiental, em 1969, com base no arcabouço ju-rídico desenhado na Convenção de Viena sobre a Lei de Tratados, foi possível inserir nessecorpo de leis medidas voltadas à regulação ambiental.

Dessa forma, em 1973, a Comunidade Européia produziu o Single European Act,marco da sua regulação ambiental. No decorrer de vinte anos, a CE adotou mais de 200

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5 A expressão issue atten-tion cycle foi cunhada porAnthony Downs em artigopublicado em 1972 (p.38-50). Nele, o autor discute deque forma a opinião públicanorte-americana estava secomportando em relação àsquestões ambientais que seapresentavam. Para Downs,a dinâmica que caracterizaum issue attention cycle sedá através da passagem deum problema doméstico porcinco estágios que definemde que maneira esse proble-ma será solucionado. No ar-tigo, o problema analisadosão as questões relativas àpoluição. Assim, depois depassar por cada um dos es-tágios, necessariamente oproblema não retorna com omesmo vigor para a opiniãopública, e uma das causaspara que ela fique inerte arespeito do problema assen-ta-se na criação de institui-ções de regulamentação, oque retira a proeminênciainicial que o problema mani-festava no início, quandomobilizou a opinião pública.É um estudo interessantepara compreender como de-senhos institucionais sãoelaborados a partir da asso-ciação entre saliência doproblema e mobilização daopinião pública.

itens de regulação distribuídos em legislações, diretrizes e decisões contemplando recursoscomo a água e o ar, produtos químicos e proteção ambiental (Haigh, 1992; Birnie, 1992).

Recentemente, o foco da CE centrou-se na formulação e implementação de políticasmais amplas de proteção e conservação. Contudo, o dilema maior da CE continua mar-cado pela relação intrínseca entre os níveis doméstico e internacional de implementaçãodessas políticas na sua dimensão legal.

Essa questão se manifesta na dificuldade de implementação de regimes ambientaispara o controle de externalidades e pode ser visualizada como uma expressão em escalamenor do que ocorre em dimensões planetárias. Assim, a interdependência permanececomo elemento balizador de uma política internacional voltada à regulação ambiental.

Organizações multilaterais, como as Nações Unidas, buscaram empreender pormeio de tratados6 a regulação do meio ambiente, criando regras que se inserem num cor-po legal estabelecido ainda pela Convenção de Viena (1969). Nessa convenção ficaramregistrados os elementos fundamentais da Lei dos Tratados. É importante notar que a ex-cessiva busca de tratados mais detalhados finda por diminuir a capacidade de sua im-plementação.

É mais interessante, para a regulação ambiental na dimensão global, que se adote umcorpo jurídico preestabelecido e que nos níveis locais se potencialize a efetividade dostratados (Birnie, 1992). Os estudiosos da política ambiental prescrevem uma nova orga-nização política mundial em que os países aceitem abrir mão de certos graus de autono-mia a redes de cooperação internacional para a gestão do meio ambiente (Hurrel, 1992).Contudo, a complexidade crescente dos formatos institucionais presentes nas esferasdoméstica e internacional dificulta a confecção de regimes ambientais (Young, 2002).

O aumento na interdependência dos diversos atores operando em arenas distintas noâmbito doméstico e no global tem influenciado a formulação de políticas para as questõesambientais. Os nexos causais que caracterizam as interdependências variam em todas asquestões ligadas ao meio ambiente; contudo, quando se trata de recursos naturais de di-mensão global, o grau de interdependência entre os sistemas e as escalas relativas a essesrecursos é significativamente maior. O grau de interdependência é elevado tanto no to-cante ao meio físico como no que diz respeito à diversidade de interesses e atores que aces-sam e agem sobre esses recursos (Tietenberg, 2002; Rose, 2002).

As externalidades associadas à interdependência foram delimitando as conformaçõesdos arcabouços institucionais que iriam formar as políticas ambientais domésticas querapidamente se encaminhavam para a dimensão global nas regiões em que os impactosambientais adquiriram relevância política.

No caso da integração da Amazônia, que tem a água como elemento central de umregime ambiental, é necessário perceber as matizes e contrastes que diferenciam a Pan-Amazônia das experiências de regulação ambiental ocorridas na Europa ou nos EUA. Tan-to do ponto de vista socioeconômico, como, e sobretudo, do desenvolvimento dasinstituições políticas latino-americanas, é necessário que se incorpore na reflexão sobreuma integração da Pan-Amazônia, em relação a um regime ambiental, os formatos insti-tucionais vigentes nos países-membros. Tais formatos advêm das trajetórias dependentesque trazem dilemas relativos a conflitos federativos e de soberania entre os países quecompõem a Amazônia Continental. Esses conflitos são pontos de estrangulamento paraa eficácia na implementação de um regime. É, pois, importante conhecer a construçãodessas instituições, cujas trajetórias dependentes podem promover impactos sobre os de-senhos de um regime ambiental para a Pan-Amazônia.7

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6 Ver nas publicações desti-nadas às análises de proto-colos, tratados e regimesambientais a diversidade detratados e de protocolosempreendidos em escala in-ternacional, como o recentelivro de A.E. Boyle, Interna-tional Law and SustainableDevelopment: Past Achieve-ments and Future Chal-lenges (1999), e, em parce-ria com Patricia Birnie,International EnvironmentalLaw (1992). Entre estaspublicações, autores clássi-cos como Andrell Hurrel lis-tam cerca de mais de 40tratados multilaterais ante-riores à Rio 92 (Hurrel,1992). Outra abordagemclássica é a obra de EdithBrown Weiss, In Fairness tothe Future Generations, cujapreocupação maior é darefetividade a arranjos legaisem âmbito internacional pa-ra a implementação de umaregulação ambiental global(Weiss, 1989).

7 Hurrell (1992) elaborauma reflexão acerca da pos-sibilidade do estabelecimen-to de um regime ambientaltendo como elemento cen-tral uma política de controledo desmatamento na Ama-zônia.

A POLÍTICA REGULATÓRIA DOS RECURSOSHÍDRICOS NO BRASIL: A HISTÓRIA DE UMACONSTRUÇÃO INSTITUCIONAL8

A política de águas, formulada no Código de Águas de 1934, que objetivava diri-mir conflitos relativos aos usos do recurso, privilegiou, porém, as necessidades do desen-volvimento industrial e do setor elétrico. As instituições que dariam suporte operacionala uma regulação de outros setores como o saneamento, por exemplo, permaneceram pormuito tempo num plano secundário.

A inserção da água na arena ambiental foi o elemento que possibilitou uma in-flexão nessa dinâmica e alterou a política para as águas no Brasil. Essa mudança na are-na onde se daria a regulação foi um movimento caracterizado pela retirada desse recur-so do âmbito exclusivo do setor elétrico. As ações que desencadearam essa inflexão nãocompuseram um quadro de transição regulatória pautada na ausência de conflitos; pe-lo contrário, a busca pela “re-regulação” caracterizou-se pela contenda entre váriosatores. A ação coletiva mais visível foi empreendida por três atores: os técnicos dotadosde expertise alocados no setor elétrico, particularmente no Departamento Nacional deÁguas e Energia Elétrica (DNAEE); os técnicos que atuavam em setores como sanea-mento, irrigação e outros; e os atores participantes da Associação Brasileira de Recur-sos Hídricos.

A contenda traduziu-se em seis anos de tramitação do projeto de Lei n. 2249/91 atéa sua conversão em norma jurídica, em 1997. A Lei das Águas marca institucionalmentea entrada da água na arena ambiental e representa o que os atores que compunham o capi-tal técnico relativo ao conhecimento dos recursos hídricos no Brasil elaboraram comogestão racional da água. A Lei, que ainda hoje contém alguns pontos de estrangulamen-tos, contempla instrumentos e organizações necessários à gestão racional.

Uma vez inserida na arena regulatória ambiental, as questões relativas à água adquiri-ram relevância a ponto de não mais se constituírem em objeto de captura de um únicosetor da burocracia, como na sua primeira versão, em 1991. Em 1993, época da apresen-tação do primeiro substitutivo, atores presentes na burocracia incipiente do meio am-biente já atuavam com o objetivo de imprimir, na regulação dos recursos hídricos, suaspreferências e a expansão de suas competências. A tensão era clara entre o Ministério deMinas e Energia e as instituições onde estavam alocados outros setores da burocracia,como a Secretaria Especial do Meio Ambiente (Sema) e o Conselho Nacional do MeioAmbiente (Conama).9

A Lei das Águas resultou dessa contenda entre a visão descentralizadora dos men-cionados atores e a estratégia insular da burocracia na tramitação de seu projeto de lei, eeliminou o caráter inovador do desenho proposto pelos detentores do conhecimento téc-nico. As dificuldades de sua implementação suprimiram a possibilidade de que os atoreslocalizados na bacia hidrográfica pudessem ter os custos de participação diminuídos emrazão do desenho da norma jurídica.

No processo de constituição da regulação da água no Brasil, é recorrente a situaçãode retorno ao status quo baseado na centralidade administrativa, quando a mudança ins-titucional se apresenta como solução para dilemas que se instituem com base na neces-sidade de descentralização de processos deliberativos. A permanência da centralização éprópria a desenhos institucionais que perfilam os contornos iniciais da administraçãopública no país em contexto de federalismo.

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8 Esta seção é parte de te-se de doutorado de NírviaRavena, Demiurgia institu-cional ou criação burocrá-tica: os caminhos da regu-lação da Água no Brasil,IUPERJ, 2004.

9 O substitutivo apresenta-do pelo deputado FábioFeldman inviabilizava as pre-tensões burocráticas dossetores mencionados e bus-cava estabelecer um arran-jo, resguardadas as limi-tações federativas, em queos partícipes do SistemaNacional de Gerenciamentode Recursos Hídricos esta-belecessem uma relaçãohierárquica baseada na hori-zontalidade dos processosde decisão e deliberação.Essa forma de impedir quea burocracia se posicio-nasse antecipadamente nodesenho a ser implementa-do pode ser demonstradacom base nos princípios depotencialização das deci-sões dos fóruns locais pre-conizadas no substitutivo.

10 Há uma discussão inten-sa acerca da influência domodelo francês de gestãosobre as proposições ini-ciadas no Projeto de Lei n.2249/91. Para uma visãosucinta do modelo francêsde gestão de recursos hídri-cos, ver Machado (2002).

11 O critério da subsidiari-dade na gestão de recursoshídricos é analisado por Bar-raqué (1999) no intuito dedemonstrar, por meio deuma perspectiva compara-da, que novos desenhos sãopossíveis com base na exis-tência, em âmbito local, deuma certa “tradição” nagestão desses recursos ede procedimentos que têmna subsidiaridade o fulcrode sua rationale. A subsi-diaridade é um conceito quepermite, então, a consta-tação histórica de que exis-tem formas de manejarrecursos naturais que ne-cessariamente não coinci-dem com os arranjos institu-cionais que originaram asdivisões territoriais própriasdos Estados liberais.

12 Tal subsidiaridade, noentanto, existe em outrasregiões brasileiras na escalalocal. Relatando a relaçãodos habitantes do Jequiti-nhonha com os recursosnaturais, incluindo a água,Ribeiro et al. (2005, p.91)descreve: “Essas normascostumeiras resultam demuitas negociações feitasem cada comunidade, e ocostume vai se tornandouma história viva, uma espé-cie de baliza que norteia aspráticas. Acordos negocia-dos, consensuados e inter-nalizados nas comunidadessão claros e compreensíveispara todas as famílias quevivem no lugar. Esses cos-tumes acompanham aque-las famílias do nascimento àmorte, são exercitados tododia, se repetem, mas tam-bém se renovam como assituações vividas, que rara-mente são as mesmas, e asrespostas às novas deman-das serão diferentes, embo-ra criadas a partir de ummesmo repertório básico”.

A concepção de que a natureza física da água poderia sugerir uma nova territoria-lidade não foi ventilada quando do estabelecimento das prioridades da engenharia cons-titucional iniciada em 1985. Cabe pontuar que, naquele momento, ainda não estavamconfiguradas, nas emendas apresentadas para a gestão de recursos hídricos, propostas denovos arranjos institucionais que considerassem uma territorialidade diferenciada para omanejo da água. Na Constituinte, o pacto federativo vigente amparava as demandasoriundas dos técnicos ligados ao setor que pensavam a descentralização na visão fede-rativa, utilizando a base territorial perfilada pelas relações de poder que transforma oterritório em base para a ação política (Elazar, 1987). A interdependência e as externali-dades poderiam ter-se constituído em argumentos passíveis de instituir outras moda-lidades de gestão; contudo, mesmo em outros países onde estes elementos contaram naformatação da gestão de recursos hídricos baseada em nova concepção territorial, a expe-riência de consideração de novas territorialidades era recente.10

Os limites institucionais encontrados para o marco regulatório configurado pelasLeis n. 9433/97 e 9984/00, que criaram a Lei das Águas e a Agência Nacional de Águas(ANA), estão na origem da reduzida eficiência da regulação para a diversidade da hidrogra-fia brasileira, principalmente a amazônica. Se a intenção dos agentes responsáveis pelo de-senho dessa regulação era que ela fosse um arranjo mais consistente e menos suscetível acomportamentos burocráticos orientados pela procrastinação que se instala em ambientesem que a mudança institucional encontra resistência, foi difícil para eles obter recursos depoder equiparados aos da burocracia. Estes últimos se originaram na retenção da regula-ção da água por mais de sessenta anos nas prioridades do setor elétrico e na fragmentaçãodas políticas destinadas a esse recurso.

A forte centralização na esfera da União de todos os procedimentos relativos ao aces-so e uso do recurso hídrico para a produção de energia elétrica associada à fragmentaçãode políticas relativas a outros usos da água tornaram as estratégias burocráticas demanutenção do status quo institucional mais eficazes. A alocação de todos os órgãos téc-nicos de produção de conhecimento e informação acerca dos recursos hídricos na esferada União findava por limitar qualquer ação destinada a promover um desenho em quecritérios de subsidiaridade fossem contemplados.11 A captura regulatória pelo setor elétri-co associada à padronização territorial e política impressa no novo marco regulatório daLei das Águas não permitiram o avanço e consolidação da subsidiaridade12 como ele-mento fundador dos procedimentos relativos ao acesso e uso dos recursos hídricos no ter-ritório amazônico.

Assim, é importante identificar no processo de construção institucional da regulaçãoda água no Brasil, quais foram os pontos de estrangulamento que não permitiram que naunidade federativa os princípios da subsiaridade fossem garantidos como pontos centraisda regulação da água na escala local. O aumento da escala dessa regulação traz à Pan-Amazônia desafios aos quais se adiciona as trajetórias dependentes do único instrumentoque pode vir a facilitar a construção de um regime ambiental na Amazônia.

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DO TCA (TRATADO DE COOPERAÇÃOAMAZÔNICO) À OTCA (ORGANIZAÇÃO DOTRATADO DE COOPERAÇÃO AMAZÔNICO): A CONSTRUÇÃO DE TRAJETÓRIASDEPENDENTES13

Do ponto de vista regulatório, a experiência brasileira pode ser interpretada comoum processo que indica de que modo os custos de transação podem ser evitados na for-mulação de um regime ambiental que tenha a água como elemento central. O Brasilpossui um arcabouço institucional bastante definido, porém, com a hegemonia de ummodelo de gestão baseado em pressupostos de escassez desse recurso. Nesse ponto residea primeira limitação da utilização do seu modelo: é necessário que a gestão integradapossua a característica de um regime ambiental com perspectivas de aplicação em lon-go prazo.

É importante que os países que compõem a Pan-Amazônia disponham de instru-mentos normativos. Contudo, uma norma que visa à gestão integrada da água deve su-por o consenso entre os atores que acessam e usam esse recurso. A existência de um mar-co regulatório, no Brasil, para a água não significa que as especificidades que caracterizama Pan-Amazônia, seus recursos naturais, bem como as formas de acesso e uso dessesrecursos, sejam contempladas. Mas é preciso algum instrumento que possibilite uma açãoconjugada entre os países que a compõem, a fim de que seja empreendida uma regulaçãocapaz de promover a sustentabilidade do uso da água. O Tratado de Cooperação Ama-zônico (TCA) poderia viabilizar esse processo.

A reflexão ora apresentada tem como objetivo retomar a discussão sobre os caminhosque a estratégia de cooperação, iniciada pelo TCA, pode adquirir para conferir relevânciapolítica à Pan-Amazônia. É preciso compreender em que medida a “hibernação” desseinstrumento promoveu um distanciamento entre os objetivos traçados em suas premissasiniciais e a realidade vivenciada atualmente, caso a Organização do Tratado de Coopera-ção Amazônico (OTCA) venha a se consolidar como meio da gestão integrada da água naPan-Amazônia. Uma vez que as dinâmicas sociais, políticas e ambientais mudaram a na-tureza dos desafios que se impuseram à região, é importante redimensionar a característi-ca do instrumento em questão.

A conversão do TCA em OTCA poderia sugerir que, na condição de Tratado, o referi-do instrumento de cooperação necessariamente tenha percorrido um caminho que pro-moveria o reconhecimento das interdependências na Pan-Amazônia, tanto do ponto devista físico como político, desenhando políticas multilaterais para a implementação deações voltadas a demandas que agora se apresentam. A conversão, porém, parece não tercontemplado o cuidado necessário para que os mecanismos de captura não se instalassemna estrutura desse instrumento.

Assim como as trajetórias dependentes marcaram a regulação da água no Brasil, tra-jetórias dependentes em tratados de cooperação, como o TCA, podem imprimir contornosineficientes a uma gestão integrada. Ou seja, da mesma forma que o setor elétrico cap-turou durante anos a arena regulatória dos recursos hídricos no Brasil, o TCA, agora trans-formado em OTCA,14 pode ser capturado por interesses diversos. Atores agindo de formaindividual ou coletiva, bem como representações nacionais e burocracias setoriais de ca-da país-membro podem inscrever no Tratado e no seu novo desenho dispositivos que via-bilizem o controle da Organização.

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13 Uma primeira versãodesta reflexão foi apresenta-da no III Encontro daANPPAS, 23 a 26 de maiode 2006, Brasília-DF, emparceria com Alberto LuisTeixeira da Silva.

14 Em 1995, houve a mu-dança de Tratado para Or-ganização. Esta inflexãotrouxe mudanças significati-vas para a relação entre ospaíses que pertencem àPan-Amazônia, pois a corre-lação de poder no interiorda organização agora estádisposta sob novas regrasde acesso a cargos.

É importante conhecer a história institucional do TCA para compreender em quemedida as trajetórias dependentes existentes em seu desenho original podem obliterar acomposição de uma gestão integrada das águas.15 Os primeiros propósitos do Tratado, asforças políticas que o empreenderam, os desdobramentos das ações efetuadas e aquelasque lograram num vazio institucional são elementos para a reflexão.

O início efetivo do TCA deu-se a partir do encontro entre os chefes de Estado doBrasil e do Peru que selaram o compromisso de elaborar o seu desenho inicial. O Trata-do começou a adquirir consistência em sua elaboração em 1978, ano em que a Venezuela,apesar de no início ter-se mostrado relutante, aceitou a possibilidade de reconhecê-lo.Cerca de 15 meses de negociação foram necessários para que a versão final fosse apresen-tada em 1980 e tendo por premissas a preservação (no sentido da territorialidade, não nosentido ambiental) e o desenvolvimento da Amazônia.

A fase de consolidação política e diplomática do TCA, ocorrida entre 1980 e 1989(Román, 1998), iniciou-se com a Declaração de Belém, quando as especificidades dos ele-mentos desse Tratado foram discriminadas e os objetivos a serem atingidos reforçados.Questões primordiais, do ponto de vista administrativo e organizacional, para iniciar aoperacionalização do TCA foram definidas. O Peru foi escolhido como o locus dessa es-trutura. Nesse mesmo período, foram enfatizados os setores prioritários para o estabeleci-mento da cooperação – ocupação territorial, desenvolvimento de tecnologia e conhe-cimento científico – voltados para região.

Os países signatários comprometiam-se a potencializar a decisão tomada. Em 1989,em reunião realizada em Manaus, houve uma revitalização do TCA em novas bases. Aquestão era abrigar sua infra-estrutura em um país menos hegemônico que o Brasil.Naquele encontro, o Brasil mantinha a pretensão de manter o TCA como um instrumen-to doméstico de segurança nacional e continuava com o objetivo de conduzir e coordenaras políticas.

A reação dos países partícipes foi a de alocar a logística operacional do Tratado emuma secretaria pro tempore, no Equador. Quando a secretaria foi definitivamente para oPeru, contava com cerca de vinte funcionários provenientes de todos os países signatários.É importante destacar a questão relativa ao tempo que a operacionalização do TCA levoupara ser efetivada, pois reflete a ausência de consenso acerca dos propósitos do Tratado ea percepção dos países signatários de que não seria interessante o Brasil surgir como paíshegemônico no contexto de sua formulação. A necessidade por parte dos países sig-natários de coesão em torno da integridade territorial da Amazônia em relação aos interes-ses externos à América Latina fundamentou uma “racionalidade geopolítica”. Isso permi-tiu que o instrumento finalmente fosse interpretado, em certo momento, como umajanela de oportunidade política para que os países latino-americanos passassem a definirantecipadamente estratégias de defesa de seus interesses domésticos.

Nos nove anos seguintes ao estabelecimento da secretaria do TCA no Peru, o Trata-do ficou inativo. Quando foi novamente evocado, mudando a racionalidade de sua opera-ção, parece ter se transformado em mais um aceno de cooperação, carente de efetividade.Os cenários de mudança que exigiram a adaptação deste instrumento para que ele voltassea operar foram apresentados em um plano de ação bastante amplo por incorporar a di-versidade de questões postas como relevantes na Pan-Amazônia. Contudo, seu planocarece de mecanismos de efetividade quando se interpreta a sua capacidade de tornar efe-tivas políticas resultantes de acordos estabelecidos em uma arena internacional. Como li-nha de ação da OTCA, o plano é tímido em proposições efetivas. Em ausência de dados

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15 O TCA apresenta quatrofases distintas que lhe con-ferem características de ino-perância. A meta mais subs-tancialmente atingida foi oestabelecimento, em 1991,de programas que iam na di-reção do estabelecimento,ainda, de mecanismos parasua implementação. Valeressaltar que a propostaoriginal foi elaborada noperíodo de 1977 a 1980(Román, 1998).

substantivos em relação a questões físicas da Pan-Amazônia, tais como diagnósticos pre-cisos das questões ambientais e indicadores socioeconômicos, o plano assemelha-se a umacarta de intenções.

Se, de um lado, o plano estratégico carece de instrumentos de efetividade, de ou-tro, o TCA, transformado em OTCA, é uma organização que segue a trajetória de buro-cratização quase inexorável nas instituições latino-americanas (Rose-Ackerman, 1999).Sediada em Brasília e distante da realidade local, a Secretaria Executiva da OTCA, que de-veria ser o instrumento de efetividade das políticas para a região, passa a ser mais umórgão incapaz de contribuir para reduzir as desigualdades regionais. Pois a AmazôniaBrasileira é uma região para a qual políticas setoriais são definidas com alto grau de con-centração quando se considera o pacto federativo: a integração entre as conjunturasdoméstica e local é desconsiderada. Para os outros países signatários da Organização, adistância é ainda maior.

A OTCA pode transformar-se, assim, em mais um instrumento de captura deburocracias nacionais que têm acesso privilegiado à informação, dado que, na sua novaconfiguração organizacional, possui graus de autonomia para representar a região emacordos com organizações multilaterais. A questão que desponta nesse cenário é maisuma vez a da representatividade e dos dilemas de delegação que se colocam em situaçõesem que a arena de negociação envolve custos de transação não-perceptíveis aos partícipesdas organizações.

Em termos de gestão integrada da água na Pan-Amazônia, o desenrolar de uma pro-posta de gestão parece ter os contornos da “crônica de uma captura anunciada”, uma vezque no contexto brasileiro a Amazônia é tida como um espaço desprovido tanto de sig-nificativo contingente populacional quanto de capital intelectual suficiente para delibe-rar sobre políticas setoriais para a região. É possível que a ANA desconsidere a necessidadede integração entre os contextos doméstico, regional e local e promova a captura dessapolítica setorial alegando argumentos de competência técnica. O recurso de poder paraefetivar essa captura consiste na justificação de que a ANA é dotada de expertise paraempreender a referida ação, ainda que localizada em Brasília, distante da realidade daAmazônia brasileira.

É necessário enfatizar a questão da coordenação de políticas domésticas setoriaisvoltadas à gestão de recursos naturais na Pan-Amazônia. Somente um organismo do-tado de legitimidade e mecanismos de controle apoiado no consenso acerca da im-portância estratégica das águas da Pan-Amazônia e da importância da integração entreas escalas local e regional pode desempenhar o papel de articulador do processo de inte-gração. A colocação de freios e contrapesos no desenho da OTCA pode evitar as investi-das de atores individuais e coletivos em busca da captura de políticas setoriais destinadasa essa região. Mais que isso, é necessário que a OTCA seja gerida com base em critériosoriundos do capital social presente na região e que os desvios promovidos pela burocra-tização sejam evitados.

Da experiência de construção do marco regulatório brasileiro, é importante apren-der a lição da contenda que marca o estabelecimento de uma política setorial. Mais queisso, é importante compreender o quanto foi difícil institucionalizar a participação dosstakeholders nos processos de elaboração das políticas. A OTCA, ao propor uma gestão inte-grada das águas na Pan-Amazônia, deve, em primeiro lugar, envolver os setores partícipesdessa arena, a fim de aproximar a sociedade nos níveis locais. Essa Organização deveriaevitar o atendimento a burocracias setoriais, preocupando-se prioritariamente em envol-

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ver populações locais em ações que considerem as experiências de subsidiaridade presentesna Amazônia e em promover arranjos institucionais que permitam contemplar as diver-sidades físicas, culturais e políticas da Pan-Amazônia em um regime ambiental que tenhaa água como elemento balizador.

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Nírvia Ravena é cientistapolítica, professora e pes-quisadora da Faculdade deCiências Sociais e do Nú-cleo de Altos Estudos Ama-zônicos/NAEA da Universi-dade Federal do Pará (UFPa)e do Núcleo de Qualidadede Vida e Meio Ambiente daUniversidade da Amazônia(Unama). E-mail: [email protected]

Voyner R. Cañete é antro-póloga, professora e pesqui-sadora do Núcleo de Quali-dade de Vida e MeioAmbiente da Universidade daAmazônia (Unama). E-mail:[email protected]

Artigo recebido em maio de2007 e aprovado para publi-cação em julho de 2007.

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A B S T R A C T This paper discusses the institutional history of the regulatoryframework for access and use of water in Brazil, as well as the influence of this regulation inthe preparation of integrated management of water resources in the Pan-Amazon region. Theprocess that involves water regulation in Brazil and the drafting of the Amazon CooperationTreaty (ACT) is the starting point for reflections on the role of those institutional formats inintegrated and specific water management in the Amazon context.

K E Y W O R D S Regulation; environment; Amazon region; water.

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RESENHAS

FINANCIERS, PHILANTROPES:VOCATIONS ÉTHIQUES ETRÉPRODUCTION DU CAPITALÀ WALL STREET DEPUIS 1970 Nicolas Guilhot Raisons d’Agir éditions, Paris, 2004

Cecília Campello do A. MelloDoutoranda PPGAS-MN-UFRJ

Nos últimos vinte anos, o discurso da responsabi-lidade social de empresas no tratamento da questão so-cial e urbana se disseminou na esfera pública a partir daidéia de que, para além da maximização do lucro, cabe-ria ao setor privado assumir um papel de agente na pro-moção do bem-estar social. Esta discussão é uma boaporta de entrada para o debate em torno da permeabi-lidade das fronteiras que balizariam os setores público eprivado no tratamento das questões urbanas. Estaría-mos observando mais uma reconfiguração desses (sem-pre tão fluidos) limites, a partir da introdução de umaespécie de “vontade de governar” privada na constitui-ção de políticas públicas e, em particular, do chamadodesenvolvimento sustentável das cidades?

Na contribuição de Nicolas Guilhot a este deba-te, a filantropia aparece como “resposta à crise”, isto é,resposta empresarial às mudanças sociais provocadaspela industrialização e a rápida urbanização, cujos im-pactos não teriam sido totalmente absorvidos pelasinstituições existentes. Isso teria gerado uma espécie de“brecha” ou “demanda” através da qual a filantropia seinfiltrou e se desenvolveu. Essa resposta à crise, em umprimeiro momento, seria também caracterizada porum esforço científico, no sentido de aplicar à gestãodos problemas sociais os métodos racionais que susten-tavam a organização industrial do trabalho.

Na longa introdução do livro que resulta de umprojeto de pesquisa encomendado pela ComunidadeEuropéia, Nicolas Guilhot situa a filantropia comouma atividade co-extensiva, porém, subordinada aomundo dos negócios: “a filantropia é um fenômeno desegunda ordem que não pode se conceber senão sobreo fundo de uma prática de acumulação de riqueza, queé necessariamente primeira”.

O autor estabelece uma descontinuidade entre asobras de caridade orientadas por motivos religiosos e a

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chamada filantropia moderna, que teria nascido nosEUA nos últimos decênios do século XIX. Guilhot recu-sa – por motivos não explicitados – a hipótese de quea filantropia seria o “preço a pagar” para continuar en-riquecendo de forma pouco escrupulosa sem muitotormento, segundo o modelo dos barons voleurs, naFrança em fins do XIX: “roubar muito e restituir pou-co, isto é a filantropia”. Tivesse seguido esta pista, o au-tor se defrontaria justamente com a possibilidade decerta continuidade de valores religiosos – uma ética doprotestantismo puritano norte-americano – a permeara lógica da filantropia no mundo industrial e pós-industrial, segundo modalidades específicas.

A primeira geração de filantropos é caracterizadapelo autor como “novos ricos” – Andrew Carnegie, JohnD. Rockefeller, Russell Sage, Andrew Mellon e HenryFord seriam os ícones deste período –, por terem acu-mulado fortunas extraordinárias a partir da exploraçãosem precedentes do proletariado urbano e da concorrên-cia econômica. Neste contexto, a filantropia teria sur-gido como “alternativa privada ao socialismo, fazendodo setor privado a garantia da justiça social”. Com a cri-se de 1929 e a pressão do governo por um maior enqua-dramento jurídico e estatal da filantropia, estabeleceu-se uma maior independência das fundações em relaçãoàs suas empresas criadoras, o que teria reforçado a cre-dibilidade das fundações. Assim, a filantropia teria setornado um campo de práticas relativamente autôno-mas que se ofereceria ao pesquisador como “fora de to-da relação com o substrato econômico”. O autor, aten-to a isso, pretende retraçar os laços da filantropia com ocapital que esta suposta autonomização teria apagado.

Guilhot pretende trazer à luz os mecanismos in-ternos ao universo das finanças que teriam possibilita-do a existência de investimentos que parecem contra-dizer a lei da acumulação capitalista. Após um brevedebate com o anti-utilitarismo, o autor define que aacumulação capitalista e o gasto filantrópico não sãocontraditórios lógicos, porém, modalidades “comple-mentares, contínuas e indistintas” da reprodução docapital. O autor apresenta, então, sua hipótese explica-tiva central, a de que a filantropia se confundiria como próprio movimento do capital. Através das doações,o capital financeiro passaria por um processo de con-versão e retornaria, não como capital-moeda, mas co-mo capital social, científico, político, necessários à re-produção social do capital e à sua legitimação.

O tratamento da filantropia como “fenômeno desegunda ordem” é, talvez, a principal tensão do texto.Há forte ênfase na descrição do processo de financei-rização da economia pós década de 1970, processoque, em si mesmo, nada ou pouco explica sobre a fi-lantropia moderna norte-americana. À espreita do au-tor, a tendência a explicações mecanicistas e circularesde que este fenômeno seria um mero efeito ou reflexode uma realidade mais fundamental, o mundo dasfinanças ou o “substrato econômico”. Dos laços da fi-lantropia com o capital, o autor desvela apenas umelemento: as origens “sujas” (isto é, especulativas) dosrecursos de grandes filantropos, exercício certamenteválido, porém insuficiente para dar inteligibilidade aofenômeno.

Guilhot se vale da análise maussiana sobre a insti-tuição do potlatch entre os Kwakiutl e transpõe sua lógi-ca para os financistas contemporâneos sem maiores me-diações. Propõe uma analogia entre as liderançascapitalistas atuais com o chefe Kwakiutl, cuja posição deliderança e o favorecimento por parte dos espíritos de-pendiam de grandiosos rituais agonísticos de distribui-ção perdulária da fortuna. Se considerarmos este insti-gante ritual Kwakiutl como contendo um invarianteestrutural universal e a-histórico próprio à natureza hu-mana, talvez a hipótese de Guilhot faça sentido. Mas tal-vez fosse mais próprio do ponto de vista histórico e an-tropológico traçar uma continuidade entre os filantroposatuais e as religiões protestantes, a ideologia da prosperi-dade e a escatologia moral pessoal da vida na terra comocondicionante à entrada no reino de Deus, constituintesmais prováveis dos valores que povoam certos modos desubjetivação presentes na sociedade estadunidense.

Mas qual seria a especificidade da filantropia ho-je, em um contexto de financeirização econômica? Se-gundo Guilhot, o capital financeiro, ao contrário doindustrial, seria hoje apresentado como o “bom” capi-tal, o capital progressista por excelência. Os agentes fi-nanceiros ou corporate raiders apresentam publicamen-te uma retórica da emancipação, contra discriminaçõese privilégios e da ética nos negócios. O que anima oautor é o desejo de demonstrar o paradoxo de que “sãoos representantes das finanças mais predadoras e dadesregulação dos mercados que vão mais investir namoralização do capitalismo”.

Com a passagem do fordismo para o pós-fordis-mo, teria havido uma “luta de nobres”, uma espécie de

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“configuração agonística” entre duas classes capitalis-tas. Assim, o autor discorre sobre as mudanças no ca-pitalismo pós 1979, mostrando como os proprietáriosacionários passaram a ter seu poder ilimitado e como areestruturação do aparelho produtivo se fez basicamen-te em cima das perdas salariais sustentadas pelas baixastaxas de sindicalização.

É neste contexto que entrariam em luta as classesdirigentes. Wall Street teria sido no passado um cluberelativamente fechado, composto de membros recruta-dos no seio da grande burguesia da costa leste, pessoasdotadas de “nascimento, dinheiro e inteligência”. Estemundo teria encontrado seu declínio irreversível nadécada de 1970, quando os bancos de investimentocomeçaram a diversificar sua atuação, criando um de-partamento de fusões e aquisições, que se alimentoudo desmembramento do setor industrial e abriu umacompetição aberta entre os bancos. Neste novo mun-do, jovens sem laços ou herança social, mas com im-portante capital escolar, atraídos pela liberalização dascomissões, altos salários e bônus, teriam adentradocom força no mercado e passado a “abocanhar” umafatia que teria pertencido às antigas elites.

Essa nova geração de operadores financeiros, se-gundo Guilhot, teria uma relação puramente instru-mental – e muitas vezes “incompatível com os códigosde conduta da profissão”– com as normas profissionaisque estruturariam tradicionalmente o universo bancá-rio e de mercados futuros. Esses “novos recrutas” te-riam escapado ao “longo processo de socialização inter-na sobre o qual repousava o habitus dos seus maisvelhos, o conjunto das disposições sociais e econômi-cas que definiam a fronteira entre o lícito e o ilícito”.Esses jovens especuladores seriam, para o autor, “total-mente desprovidos de capital social e econômico, ver-dadeiros sub-proletariados da finança”.

A pesquisa encontra um claro limite no que serefere à seleção e ao tratamento das fontes com asquais o autor trabalhou. Talvez pelo fato de não terfeito pesquisa empírica e ter como fontes centrais asrevistas Business Week e Fortune e o Wall Street Journal,isto é, narrativas não-distanciadas e representantes daspartes interessadas e mais ilustradas deste debate, oautor adere por demais à hipótese nativa da luta entreas classes dirigentes. De um lado, a burguesia indus-trial ilustrada e ética e, de outro, os novos financistasespeculadores sem escrúpulos oriundos das classes mé-

dias, sem capital social e sem ética, mas com grandecapital escolar. Embora certamente estas disputas in-ter-classe sejam relevantes, o autor atribui uma dife-rença de facto para grupos que, de outro ponto de vis-ta, poderiam ser descritos como nem tão distintosassim. Afinal, não foi o próprio autor quem definiu osfilantropos antigos como “novos ricos”? Teriam os pri-meiros filantropos um passado tão “glorioso”, “ético”e “escrupuloso” como assume o autor, a partir da lei-tura do Wall Street Journal ?

Por fim, Guilhot defende que os anos 1990 te-riam sido o marco da “moralização dos negócios”,“lavagem ética do capital” e da emergência da corpora-te ou venture philantropy, elemento central da políticaneoliberal de desengajamento do Estado. A “responsa-bilidade social” de empresa seria uma forma de dimi-nuir o controle do Estado e de prevenir qualquer ten-tativa de regulamentação. A forte profissionalização docampo da filantropia, segundo o autor, seria um indi-cador da autonomização do campo, e a produção denormas, padrões e critérios de avaliação evidenciariamuma “vontade de governar” por parte do chamado ter-ceiro setor, de governar cidades, no caso dos projetossociais urbanos de empresas.

CIDADE: IMPASSES E PERSPECTIVASMaria Lúcia Caira Gitahy e José Tavares de LiraCorreia (Orgs.)São Paulo: Annablume Editora/FAU-USP/Fupam,2007 (Coleção Arquiteses, n.2)

Nadia SomekhFAU-Universidade Presbiteriana Mackenzie

A Faculdade de Arquitetura da USP acaba de edi-tar, com dois volumes iniciais, a coleção Arquiteses, quereúne artigos das melhores teses e dissertações produzi-das no programa de Pós Graduação Estruturas Ambien-tais Urbanas. A área de concentração, embora genéricaoriginalmente, foi recentemente subdividida em oitoáreas mais específicas: história da arquitetura, da cidadee do urbanismo, planejamento urbano, paisagem e am-biente, projeto, tecnologia e design. Essa amplitude érecortada efetivamente pelas dissertações e teses que

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conseguem resgatar uma pauta preciosa dos principaisproblemas de pesquisa em arquitetura e urbanismo.

No volume 2, Cidade: impasses e perspectivas,longe de uma justaposição, o trabalho de editoria soba responsabilidade de Maria Lucia Gitahy e José Ta-vares Correia de Lira consegue compor os trabalhos emuma seqüência que potencializa o encadeamento dasargumentações, com uma complementaridade equili-brada entre o teórico e o empírico. O mosaico de tex-tos, em sua composição, é um retrato atual não só dosproblemas a serem enfrentados no mundo urbano con-temporâneo, mas também das lacunas não-resolvidas,possibilitando a abertura para inúmeros novos projetosde pesquisa, tornando-o leitura obrigatória para alunose professores de programas de pós-graduação e dos cur-sos de graduação que valorizam a pesquisa na formaçãode estudantes de Arquitetura e Urbanismo.

A abertura do volume cabe ao artigo de Andréade Oliveira, que através da revisão crítica apresenta aimportância da precisão na definição conceitual de“centro” e “centralidades”. Ao longo do século XX, aexpansão periférica e a necessidade de intervençõesrenovaram estes termos, destituindo seu caráter sim-bólico. A autora alerta que a indefinição do conceito,resultado de visões acríticas que se sucederam prove-nientes de saberes diversos, levam a interpretações du-vidosas e, portanto, servem como um discurso flexívelque se presta a justificar intervenções ao sabor de in-teresses diversos. Se o centro anteriormente diferen-ciava-se das centralidades por conter condições histó-ricas, hoje representam a concentração de fluxosproduzidos pelos agentes imobiliários.

O texto seguinte, de Beatriz Diógenes, dialogacom o anterior ao descrever o deslocamento de ativi-dades no bairro de Aldeota, em Fortaleza. A partir dehipóteses de Flávio Villaça – fonte referencial recor-rente na maioria das pesquisas –, a autora assinala quea percepção “do perto e do longe” é produzida pelaselites, que conferem caráter metafórico ao próprio con-ceito de “novo centro da cidade”, isto é, a capacidadede reunir condições históricas socialmente abrangentesna nova centralidade. A confusão em relação aos ter-mos remete à necessidade de resgatar seu sentido maispreciso e, ao mesmo tempo, reitera o conteúdo ide-ológico dessa confusão.

Karin Ianina Matzkin apresenta texto comparati-vo entre a produção dos espaços de São Paulo, Buenos

Aires e Cidade do México. Ao retomar o debate con-ceitual, refletindo sobre a relação entre a forma urbana,seus problemas e a própria constituição da sociedadeque a produz, a autora aponta, com muita propriedade,a importância dos processos históricos na constituiçãodas três cidades, em detrimento da lógica homoge-neizadora que a visão dos processos de globalização,reestruturação produtiva e reformas neoliberais vêmimprimindo às pesquisas sobre grandes cidades. A au-tora aponta que os efeitos espaciais da chamada “globa-lização” não explicam a diversidade que se manifestanas cidades contemporâneas. As referências teóricas daglobalização captam fragmentos das transformações ur-banas decorrentes das hierarquias estabelecidas pelas es-pecificidades do mercado imobiliário e da ação do Es-tado: nacional e local. O texto aponta ainda diferençasespaciais entre as três cidades, decorrentes da estrutu-ração dos sistemas de transporte, decisões de políticaurbana e dinâmicas diferentes que produziram e repro-duziram diferenciações espaciais advindas de processoshistóricos excluídos das análises globais. A importânciadas particularidades nacionais e regionais é considera-da, em contraposição a uma integração passiva e sub-ordinada à economia global.

A busca de fomento internacional pelas cidades éavaliada criticamente por Pedro Arantes na análise dosfinanciamentos do Banco Mundial e BID (Banco In-teramericano de Desenvolvimento) para as políticasurbanas. Quem ganha e quem perde com tais finan-ciamentos? Segundo o discurso dos gestores, as conclu-sões são contraditórias. De um lado, uma visão catas-trofista aponta a reprodução do neoliberalismo atravésdas chamadas “boas práticas” a serem replicadas Paísafora; de outro, uma percepção de falta de alternativaspara o próprio financiamento da cidade. A questão é:como medir os ganhos sociais e, mais do que isso,como garantir estrategicamente esses ganhos e qual ocontorno político necessário para tanto.

Algumas respostas aparecem no trabalho de Ân-gelo Filardo, a partir da crítica conceitual da gestãoambiental do Programa Guarapiranga. A análiseeconômica transcende as totalizações de custos e bene-fícios chegando à avaliação das perdas e ganhos entreos agentes e com o ambiente. Para o autor, a ação dosdiferentes agentes sociais na busca de benefícios temefeito estruturante na cidade e representa uma mani-festação material inscrita no espaço urbano.

Ainda oferecendo respostas à questão de quemganha e quem perde na produção do espaço urbano,temos o artigo de Claudia Maira Beré, jurista vincula-da à Promotoria de Habitação e Urbanismo do Minis-tério Público do Estado de São Paulo. Em parceria àdisciplina ministrada pela professora Maria Lucia Re-finetti R. Martins, que envolveu os alunos na pesquisa,o texto constata que o não-cumprimento da legislaçãotem suas causas na falta de alternativas habitacionaisoferecidas à população de baixa renda e, mais profun-damente, nos salários, que não incluem o valor da mo-radia no seu custo global, indicando uma correlaçãopolítica de forças abissalmente distanciada de um Esta-do do Bem-Estar. As propostas alternativas para a “so-lução desses problemas” passam pelo Estatuto da Cida-de e seus novos instrumentos, com destaque para a“regularização fundiária sustentável”, que poderá ga-rantir títulos aos moradores, desde que atingidas as me-lhorias urbanísticas ambientais, repartindo-se despesasde implementação entre o Estado e os moradores.

As questões do financiamento da cidade e daconstituição de uma nova centralidade reaparecem notexto de Mauro Kuznir na análise da Operação UrbanaÁgua Branca. Para o autor, os interesses imobiliáriospredominaram sobre a criação de uma cidade mais jus-ta e equilibrada. Apesar de não apresentar fundamen-tação empírica, o autor aponta a produção de novosempreendimentos de alto padrão fora dos limites daoperação e cujos recursos gerados não são suficientespara a criação do novo pólo terciário, mas cuja expec-tativa de implementação gera novos valores artificiaisapropriáveis. É louvável a defesa da necessidade depromoção de largas reformas sociais em detrimento deum urbanismo voltado apenas para atender aos interes-ses especulativos.

A história da habitação em São Paulo é apresen-tada de forma complementar através dos estudos de ca-so sobre as casas em série do Brás e da Mooca e dosconjuntos residenciais Ana Rosa e Copan, nos textos,respectivamente, de Luciana Alem Gennari e Fernan-da Bárbara. Os dois trabalhos apresentam tipologias dequalidade que não puderam mais ser construídas emSão Paulo pelas modificações da legislação urbanística.Abrangendo um período que vai do início até meadosdo século XX, as pesquisas têm em comum mostrarque, mesmo sendo um “negócio”, a produção habita-cional poderia ter padrões e qualidades superiores,

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trazendo alternativas de mercado para as populações demédia e, principalmente, de baixa renda. Daí a inda-gação: por que a qualidade dos projetos habitacionaise da legislação foi sendo historicamente reduzida?

Álvaro Puntoni traz um texto essencial paraquem se debruça sobre a pesquisa em projeto de ar-quitetura. Através da investigação projetual dos vaziosurbanos da avenida Nove de Julho, Puntoni chega auma proposta de reconfiguração urbana que torna ométodo de projetar o próprio caminho e a justificati-va da forma resultante. A tese, presente no texto, con-siste em afirmar que o projeto revela os objetivos e aprópria pesquisa da qual é resultante. O texto, essen-cial a professores de Arquitetura e Urbanismo, apon-ta ainda a necessidade de construir um acervo dereferências necessário ao ensino e ao processo de pro-jetação do arquiteto.

A participação popular é a questão analisada porCaio Boucinhas. O texto baseia-se em experiênciasconcretas envolvendo comunidades, prefeituras epesquisadores nas produções participativas de espaçospúblicos, movimento coletivo de reversão do lamen-tável quadro de degradação socioambiental da RegiãoMetropolitana de São Paulo. Apesar de um balançopositivo das experiências, fica de fora o efetivo alcancedos projetos, bem como sua escala de intervenção.

A questão habitacional é retomada em vários ân-gulos nos artigos de João Alberto Cantero, Caio San-to Amore de Carvalho e Nelson Baltrusis. O primeiroaponta a locação social como a forma mais adequadade produção habitacional, em contraposição à ideolo-gia da casa própria. Além de constituirzse em novoparadigma de qualidade projetual, a locação socialpermite superar a equação perversa de localização e deviabilidade econômica para a população de baixa ren-da, reunindo elementos para a revisão da políticahabitacional.

O mutirão é dissecado por Carvalho, retoman-do de forma crítica o debate a respeito do tema, emespecial questões como o sobretrabalho, os limitesdos projetos de assessoria técnica, os custos da obra,a necessidade de parâmetros mais flexíveis de legis-lação e, finalmente, o mito da participação. O autorrevela a disputa de bastidores por cargos e fundospúblicos que, mais do que atender aos movimentospopulares, encobre um real descolamento entre a di-reção e suas bases.

Baltrusis analisa o mercado imobiliário das fave-las, desmontando a tese do economista peruano Her-nando de Soto de que a simples regularizaçãofundiária produziria a recuperação urbana. Con-trapondo-se a De Soto, o artigo procura mostrar quea fórmula só funciona com a necessária ação do poderpúblico na provisão de infra-estrutura, estabelecimen-to de novos e claros marcos regulatórios e, sobretudo,regulação do desempenho democrático da indústriada construção. O autor defende a idéia de que nãoexistem milagres ou fórmulas mágicas no âmbito dapolítica urbana. É necessária uma política pública deprovisão habitacional, uma continuidade dos proces-sos de regularização e urbanização de áreas degradadase, em especial, a ampliação da ação de agentes priva-dos na produção de habitação de baixa renda dentrodo mercado.

Um tema inovador que enfoca a interface ru-ral–urbano à luz do caso dos assentamentos rurais deAraras é apresentado por Márcia Renata Itani. A possi-bilidade de ampliação da inserção produtiva dasfamílias assentadas seria, segundo a autora, o caminhopara a superação dos conflitos existentes com outrasformas de ocupação periurbana, o que implica anecessária presença dessas condições para o sucesso domodelo a ser replicado no País.

A modificação perversa da paisagem de BeloHorizonte metropolitana é apontada por Stael de Al-varenga Pereira Costa. A superação desse problema dedegradação ambiental deve ser enfrentada, segundo aautora, com um novo modelo de planejamento re-gional ambiental, co-responsabilizando atores públicose privados.

Os três trabalhos que encerram o volume apre-sentam textos que abordam a preservação e o planeja-mento físico territorial do patrimônio cultural e paisa-gístico, bem como a questão de destinação dosresíduos sólidos domiciliares em megacidades.

Silvia Passarelli enfoca a importância da identifi-cação de elementos urbanos ao longo da via férrea deSanto André como constituição da identidade de ummunicípio fundado no binômio indústria-ferrovia.Além disso, a formulação de uma política de preser-vação do patrimônio passa pela articulação de diversosníveis de governo interagindo nas diferentes escalas,bem como o envolvimento dos cidadãos na identifi-cação dos bens a serem preservados.

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Maria Luiza Marques Dias examina três expe-riências de escalas e conteúdos diferenciados de valo-rização do patrimônio em ação planejada: o tomba-mento da Serra do Mar, conjunto importante depatrimônio natural; a imaterialidade do Projeto VelhoCinema Novo; e o planejamento de Curitiba à luz doconceito de patrimônio. O resultado aponta, nos trêscasos, que planejamento e preservação não são políti-cas antagônicas e seus componentes simbólicos sãopassíveis de apropriação pela população e poder públi-co, gerando a ressignificação de uma nova cultura ur-banística.

Por fim, a análise da destinação de resíduos sóli-dos domiciliares em São Paulo serve de base paraClaudia Ruberg formular uma proposta que optapela redução do volume de resíduos através da inci-neração e de uma distribuição das estações de modoa reduzir racionalmente as viagens e a poluição porela gerada.

Para os organizadores, as publicações das súmu-las de trabalhos realizados entre 2004 e 2006 retratama reorganização do Programa de Pós-Graduação nasnovas áreas de concentração e do debate que as carac-terizaram. O livro vai deve despertar nos leitores avontade de conferir as teses e dissertações em sua ín-tegra e também proporcionar, pela sua qualidade eproblemas levantados, novos e amplos caminhos depesquisa que dêem conta do desenvolvimento dasnossas cidades.

A ERA DA INDETERMINAÇÃOFrancisco de Oliveira e Cibele Saliba Rizek (Orgs.)São Paulo: Boitempo, 2007 (Coleção Estado de Sítio)

Gabriel de Santis FeltranDoutorando Ciências Sociais Unicamp

Compreender o presente, depois das rupturas dosanos 90. Esse é o esforço dos ensaios que compõem Aera da indeterminação, o volume mais recente dacoleção Estado de Sítio, recém-lançado pela BoitempoEditorial. Organizado por Francisco de Oliveira eCibele Saliba Rizek, o livro torna pública a originali-dade da produção mais recente do Centro de Estudosdos Direitos da Cidadania (Cenedic), da Faculdade de

Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidadede São Paulo.1

Resultado de um projeto de pesquisa de cincoanos, a publicação escapa da fórmula usual das compi-lações temáticas que agrupam pesquisadores de ummesmo assunto. Muito ao contrário, o livro se aplicasobre um espectro de temas amplo, o que de cara já ofaz referência incontornável para pesquisadores dedomínios distintos das ciências sociais: da sociologiado trabalho à antropologia urbana; da economia ao es-tudo dos movimentos sociais; do debate sobre demo-cracia à história do Brasil contemporâneo.2 É na coe-rência – notável – dos pressupostos analíticos que ostemas se articulam, e é dela que brota a força interpre-tativa do livro.3

Os argumentos que marcaram o desenvolvimen-to do projeto de pesquisa em questão têm uma cro-nologia. Partem da constatação, no final dos anos 90,de que as transformações da sociedade brasileira –avanço da privatização neoliberal e crise das possibi-lidades de regulação pública do mundo social – des-tituíam “as possibilidades de democratização e repu-blicanização, anteriormente abertas pelo fim daditadura militar” (p.7). Uma ruptura a ser levada asério. Daí até 2001, o grupo se dedicou a abordar aforma e o fundo dessas transformações, a proceder suaexegese. A primeira parte do livro, escrita por Fran-cisco de Oliveira em 2002, sintetiza este momento dodebate. O autor vai recuperar, no intervalo entre ogolpe militar de 1964 e as primeiras eleições presi-denciais diretas, em 1989, as linhas-mestras do queteria sido a aposta brasileira na política, no sentido deRancière, e os modos como ela foi desmontada a par-tir daí.

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1 A última publicação coletiva do Cenedic data de 1998, e de certaforma pressagia o que se desenvolve no volume recém-lançado. VerOs sentidos da democracia: políticas do dissenso e hegemonia global,organizado por Francisco de Oliveira e Maria Célia Paoli, São Paulo:Editora Vozes (Coleção Zero à Esquerda), 1998. 2 A “Introdução” é escrita por Cibele Rizek e Maria Célia Paoli. O cor-po do livro é organizado em quatro partes: 1. Das invenções à indeter-minação (Francisco de Oliveira); 2. Trabalho e sindicalismo na era daindeterminação (Roberto Véras de Oliveira e Leonardo Mello e Silva); 3.Gestão, participação e violência: cenas e postos de observação (Car-los Bello, Cibele Saliba Rizek, Ana Amélia da Silva; Vera da Silva Telles);e 4. Política, indeterminação e exceção (Maria Célia Paoli; Francisco deOliveira; Laymert Garcia dos Santos e Luiz Roncari). 3 Vale lembrar que não se trata aqui, como também é comum, de umacompilação de artigos que orbitam tendo como centro a reflexão deum autor mais importante. Neste caso, a construção de parâmetroscomuns de análise se dá entre diversos autores já consagrados, o queindica a dimensão e a seriedade do esforço intelectual conjunto, in-vestido na preparação do livro.

Argumenta-se que a inventividade social dosmovimentos de resistência à ditadura, cerne de suaemergência pública no fim dos anos 70, e da cons-trução orgânica de um projeto de democracia à es-querda, nos 80, conseguiu demarcar no período umcampo dentro do qual as disputas de poder se desen-rolavam. A simples existência deste campo já era po-liticamente promissora, pois em política importamais a criação de parâmetros comuns para a disputa,um terreno estável onde os atores se movam, do queos “conteúdos” ou “resultados” da disputa em si. Ademarcação deste campo – que intensificou o debatesobre o “espaço público” – iluminava os nexos entreas dinâmicas sociais e sua aparição pública, o queconferiu plausibilidade à política e à democracia. Poisbem, essa foi a aposta que se desmanchou nos anos90, e daí as origens da indeterminação recente: perde-se a inteligibilidade dos processos e mediadores quevinculam as esferas social e política, cria-se umagrande zona de sombra sobre o mundo social, quetende então a se instrumentalizar.

O presente seria marcado, no Brasil, pela políticaem negativo. Não apenas pela derrota de um projetorepublicano, mas pelo desmanche dos parâmetros pe-los quais ele poderia (e pôde) ser pensado. Não se tra-taria de um problema dos atores, ou de sua performan-ce, mas da anulação do próprio jogo de referências querege sua interação. O pressuposto analítico de rupturaexige um pensamento político radical, que lhe seja coe-rente. Se as referências comuns que obrigavam o deba-te nacional a passar pela política foram anuladas pelabase, mesmo as iniciativas surgidas para politizar e pu-blicizar aparecem hoje, não raro, capturadas pela lógi-ca oposta. Daí o ciclo que alimenta – na política e nopensamento – a indeterminação, e permite que o con-ceito nomeie o mundo contemporâneo.

A segunda e a terceira partes do livro vão investi-gar onde foram parar os celeiros da política oitentistano Brasil – os sindicatos, os movimentos sociais popu-lares, os espaços promissores de participação social napolítica, a dinâmica social das periferias das grandescidades. E vai constatar que seus destinos são, via de re-gra, também marcados pela desativação dos parâme-tros comuns pelos quais se concebia a disputa depoder. O deslocamento no terreno social foi brutal,política agora confunde-se com técnica, gestão e ad-ministração, e o processo ainda está inconcluso. A in-

determinação campeia, mais ou menos explicitamente,das formas de ação do MST aos Fóruns Sociais Mun-diais, do debate sindical recente aos Orçamentos Par-ticipativos, da violência das periferias urbanas àmundialização da economia.

Mas sempre que o quadro explicativo do livro pa-rece claro, a surpresa aparece. Ao partir para a demons-tração empírica do “desmanche”, acompanhando asmodificações dos últimos anos, a própria questão cen-tral que movia o projeto se reformula, como explicamos autores. A partir de 2003, 2004, a exegese da priva-tização neoliberal vai cedendo espaço para um esforçoprogressivo de descrição do mundo que (res)surge entreas ruínas do que se perdeu.

Trata-se agora de desvelar, mesmo que num mun-do opaco, as linhas de força que retêm sua explicaçãoe os sentidos de sua continuidade. É a metáfora doEstado de Exceção que aparece com força, nesse mo-mento, e paradoxalmente, paralela a ela abrem-se asfronteiras – teóricas e políticas – que problematizam aexceção no caso brasileiro. Os ensaios da parte final dolivro perscrutam e questionam este paradoxo, das pri-vações que geram a negatividade da análise, necessáriapara que surjam as linhas de fuga de sua inescapabili-dade.4 A indeterminação ganha ainda mais destaque,vai parar no título, mas muda de estatuto. Não apenasa desestruturação de um mundo anterior gera indeter-minação, mas também é indeterminado o que se apre-senta como futuro em instituição.

É neste jogo de perspectivas cruzadas de in-terpretação do presente, heterogêneas ainda que arti-culadas, que talvez se demonstre o quanto a agenda dereflexão proposta pelo Cenedic merece ser desdobra-da. Teoricamente, analiticamente, empiricamente. Atéporque um pensamento radical lançado sobre o pre-sente exige um esforço descritivo nada banal, até aquiapenas iniciado. A cronologia do desenvolvimento doprojeto de pesquisa encaminha um investimento in-telectual maciço tanto na resolução teórica do jogo dereferências mobilizado5 como, e fundamentalmente,numa redefinição do estatuto da dimensão normativa

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4 O último artigo do livro recorre à poesia de Drummond, e da inter-pretação dela resgata o que creio ser uma boa descrição deste para-doxo analítico, ou seja, o momento “entre um passado de esperançaperdido e um futuro que depende da ação negativa do poeta para sercriado” (p.367).5 Ler A era da indeterminação é dialogar tanto com Celso Furtado,Sérgio Buarque e Florestan Fernandes, quanto com Adorno e Benjamin,

da teoria, e do estatuto do trabalho de campo na pro-dução analítica.

A intenção de compreender o presente demarcaentão uma posição política. Mesmo que não haja maisrepublicanização possível, a própria radicalidade comque isso se apresenta – expressa por todo o livro – fazbrotar um caráter crítico e experimental do pensamen-to que refunda a própria possibilidade do dissensopolitizador. Este parece ser o experimento central emquestão: fazer da teoria política um pressuposto ativo,embora não-reificado, tanto da análise quanto da dis-puta social e política. É esse experimento que fascinana Era da indeterminação, e que me parece ser sua con-tribuição mais original ao debate.

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5 (cont.) Hannah Arendt e Foucault, Jacques Rancière e Giorgio Agam-ben. O debate procura situar no pensamento brasileiro a tese da lon-ga duração da indeterminação que marcaria a história do país (apesardos lapsos conjunturais de politização, sempre vinculados à publiciza-ção do conflito pela entrada em cena dos setores populares), e nos ex-poentes do pensamento político ocidental a centralidade da indetermi-nação política na explicação do contemporâneo.

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