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ESTUDOS URBANOS E REGIONAIS REVISTA BRASILEIRA DE publicação da associação nacional de pós-graduação e pesquisa em planejamento urbano e regional ISSN 1517-4115

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Page 1: REVISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS URBANOS · acadêmico, como participação, espaço público, cidadania e segurança. Duas resenhas completam o presente número. A primeira, elaborada

ESTUDOS URBANOSE REGIONAIS

REVISTA BRASILEIRA DE

publicação da associação nacional de pós-graduação

e pesquisa em planejamento urbano e regional

ISSN 1517-4115

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REVISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS URBANOS E REGIONAISPublicação semestral da ANPUR

Volume 10, número 1, maio de 2008

EDITOR RESPONSÁVELGeraldo Magela Costa (UFMG)EDITORA ASSISTENTE

Jupira Gomes de Mendonça (UFMG)COMISSÃO EDITORIAL

Ana Fernandes (UFBA), Carlos Antônio Brandão (Unicamp), Lilian Fessler Vaz (UFRJ), Luciana Corrêa do Lago (UFRJ)CONSELHO EDITORIAL

Ana Clara Torres Ribeiro (UFRJ), Ângela Lúcia de Araújo Ferreira (UFRN), Brasilmar Ferreira Nunes (UnB), Carlos Antonio Brandão (Unicamp), Ermínia Maricato (USP), Heloisa Soares de Moura Costa (UFMG),

Henri Acselrad (UFRJ), João Rovati (UFRS), Lia Osorio Machado (UFRJ), Linda Maria de Pontes Gondim (UFC), Marco Aurélio A. de F. Gomes (UFBA), Margareth Pereira (UFRJ), Maria Cristina da Silva Leme (USP), Nadia Somekh(Mackenzie), Norma Lacerda Gonçalves (UFPE), Paola Berenstein Jacques (UFBA), Ricardo Cesar Pereira Lira (UERJ),

Roberto Monte-Mór (UFMG), Rosa Acevedo (UFPA), Sandra Lencioni (USP), Sarah Feldman (USP), Wrana Maria Panizzi (UFRS)COLABORADORES

Alisson Barbieri (UFMG), Allaoua Saadi (UFMG), Ana Fernandes (UFBA), Ana Lúcia Brito (UFRJ), Ester Limonad (UFF), Eduardo Mário Mendiondo (USP São Carlos), Felipe Nunes Coelho Magalhães (UFMG),

Jan Bitoun (UFPE), Marília Steinberger (UnB), Mônica Arroyo (USP), Ricardo Farret (UnB), Orlando Júnior (UFRJ), Ricardo Machado Ruiz (UFMG), Rosa Moura (IPARDES), Virgínia Pontual (UFPE)

PROJETO GRÁFICOJoão Baptista da Costa Aguiar

CAPA, COORDENAÇÃO E EDITORAÇÃO Ana Basaglia REVISÃO

Ana Paula GomesIMPRESSÃO CTP

Assahi Gráfica e Editora

Indexada na Library of Congress (EUA)

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais – v.10, n.1,2008. – Associação Nacional de Pós-Graduação ePesquisa em Planejamento Urbano e Regional; editor responsável Geraldo Magela Costa : A Associação, 2008.

v.

Semestral.ISSN 1517-4115O nº 1 foi publicado em maio de 1999.

1. Estudos Urbanos e Regionais. I. ANPUR (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional). II. Costa, Geraldo Magela

711.4(05) CDU (2.Ed.) UFBA711.405 CDD (21.Ed.) BC-2001-098

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ARTIGOS

9 A GLOBALIZAÇÃO LIBERAL E A ESCALA URBANA

– PERSPECTIVAS LATINO-AMERICANAS – PeterCharles Brand

29 PLANEJAMENTO: DO ECONOMICISMO

MODERNO À DIALÉTICA SOCIOESPACIAL – LucasLinhares

49 TEMPOS, IDÉIAS E LUGARES – O ENSINO DO

PLANEJAMENTO URBANO E REGIONAL NO BRASIL

– Rosélia Périssé da Silva Piquet e Ana Clara TorresRibeiro

61 OS LIMITES POLÍTICOS DE UMA REFORMA IN-COMPLETA – A IMPLEMENTAÇÃO DA LEI DOS RE-CURSOS HÍDRICOS NA BACIA DO PARAÍBA DO SUL

– Antônio A. R. Ioris

87 OS PARADIGMAS DA MODERNIZAÇÃO DO ES-TADO DO CEARÁ E O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO

DA BARRAGEM DO CASTANHÃO – Francisca Silva-nia de Sousa Monte

105 CULTURAS DA JUVENTUDE E A MEDIAÇÃO

DA EXCLUSÃO/INCLUSÃO RACIAL E URBANA NO

BRASIL E NA ÁFRICA DO SUL – Edgar Pieterse

RESENHAS

127 Pelo espaço: uma nova política da espacialidade,de Doreen Massey – por Gislene Santos

129 São Paulo, cidade global: fundamentos finan-ceiros de uma miragem, de Mariana Fix – por DanielaAbritta Cota

ESTUDOS URBANOSE REGIONAIS

REVISTA BRASILEIRA DE

publicação da associação nacional de pós-graduação

e pesquisa em planejamento urbano e regional

S U M Á R I O

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ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA

EM PLANEJAMENTO URBANO E REGIONAL – ANPUR

GESTÃO 2007-2009PRESIDENTE

Edna Castro (NAEA/UFPA)SECRETÁRIO EXECUTIVO

Luiz Aragon (NAEA/UFPA)SECRETÁRIO ADJUNTO

José Júlio Lima (FAU/UFPA)DIRETORES

Adauto Lúcio Cardoso (IPPUR/UFRJ)Leila Dias (CFH/UFSC)

Roberto Monte-Mór (CEDEPLAR/UFMG)Virgínia Pontual (MDU/UFPE)

CONSELHO FISCAL

Brasilmar Nunes (SOC/UNB)João Rovati (PROPUR/UFRS)Renato Anelli (EESC/USP)

Apoio

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E D I T O R I A L

Dois temas relevantes para a área do planejamento urbano e regional são abor-dados neste número da Revista. O primeiro refere-se às tendências e aos desafios doplanejamento territorial, bem como ao seu ensino, considerando, por um lado, osprocessos recentes de globalização e reestruturação espacial e, por outro, os contextoseconômico e político de formações sociais específicas. O segundo tema é o da gestãodas águas, com a avaliação dos limites e das possibilidades da Política Nacional de Re-cursos Hídricos, de 1997, e uma análise sobre o discurso da elite política cearense noprocesso de uso e de controle das águas. Além desses temas, é apresentada uma insti-gante análise sobre “culturas da juventude e a mediação da exclusão/inclusão racial eurbana no Brasil e na África do Sul”.

Três artigos são dedicados à reflexão sobre a ampla problemática do planejamentoterritorial. No primeiro deles, Peter Brand discute o novo arranjo territorial urbano naAmérica Latina, tendo como referência o processo de globalização e o surgimento da ci-dade-região. O artigo examina a cidade latino-americana tendo em conta as rápidastransformações socioterritoriais recentes e à luz do que o autor denomina re-escalamen-to, um produto da globalização, com o objetivo de contribuir para a análise do Estadoe o estudo das políticas de desenvolvimento urbano latino-americanas, em diferentes es-calas. O caráter elitista das políticas de competitividade e as formas de legitimação dosgovernos locais na administração da crise urbana são identificados em estudos de casodas quatro maiores cidades da Colômbia: Bogotá, Medellín, Cali e Barranquilla.

De natureza essencialmente epistemológica, o artigo de Lucas Linhares apresentauma trajetória dos enfoques teóricos das concepções de planejamento. Começandocom as abordagens do planejamento na era moderna, de matriz positivista e economi-cista, o autor desenvolve um resgate crítico do tema, que passa pelo pensamento doschamados neomarxistas dos anos 1970 – para introduzir o que ele considera impres-cindível ao entendimento do objeto territorial do planejamento (o conceito de espaço)– e chegando à visão dialética, lefebvriana em sua essência, sobre a produção social doespaço. O autor sugere que este procedimento analítico é essencial para que o planeja-mento de fato leve em conta as contradições do modo de produção capitalista.

O terceiro artigo sobre o tema do planejamento tem como autoras Rosélia Pi-quet e Ana Clara Torres Ribeiro. Trata-se do resgate da história do planejamento e deseu ensino, com ênfase em sua relação com as políticas e ideologias de desenvolvimen-to econômico vigentes no Brasil. A análise resgata de forma sintética as experiênciasde políticas econômicas e de planejamento, começando nos anos 1950 e 60, quandose perseguia a mudança através de ações do Estado. Foi também neste período que osprimeiros cursos sobre planejamento (no domínio público) sugiram na América Lati-na. No período seguinte, segundo as autoras, assiste-se à institucionalização tanto doplanejamento quanto do seu ensino em universidades no Brasil. O período de rede-mocratização que se segue faz com que os paradigmas do planejamento e seu ensinodo momento anterior sejam rejeitados e modificados. A ênfase dos cursos desloca-sedo planejamento para os estudos urbanos e regionais. Os desafios postos ao resgate daidéia de planejamento e de seu ensino compõem as reflexões das autoras nas conclu-

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sões do artigo. Atender às demandas regionais e locais de formação profissional, reco-nhecer e tratar as diferenças sem gerar perdas teóricas e superar generalizações são al-guns desses desafios, que requerem o aprofundamento do debate entre especialistas eatores políticos.

O tema das águas é tratado em dois artigos. No primeiro deles, Antônio Ioris dis-cute os limites e possibilidades das reformas institucionais, especialmente aquelas ma-terializadas na Política Nacional de Recursos Hídricos de 1997. Para avaliar tais limi-tes e possibilidades na primeira década de existência da Política, o autor faz uso de umestudo de caso sobre a gestão da Bacia Hidrográfica do Rio Paraíba do Sul (BHRPS), lo-calizada na região sudeste do país. Apesar de analisar um único caso, a riqueza das in-formações qualitativas obtidas essencialmente por meio de entrevistas com agentes so-ciais das instâncias participativas no processo de gestão faz com que o estudo apresenteresultados importantes para se pensar a questão da gestão das águas no Brasil. Comoprincipal conclusão, o estudo de caso permitiu constatar que as reformas institucionaispara o setor de recursos hídricos, em implantação desde fins dos anos 1990, têm sidomarcadas pela afirmação de uma racionalidade tecnoburocrática, a qual vem apenasproduzindo respostas inadequadas aos problemas de gestão das bacias hidrográficas,com alto nível de conflitos e continuidade da degradação ambiental.

Em seguida, Francisca Silvania de Sousa Monte nos apresenta um estudo basea-do em sua tese de doutorado, em que a questão das águas é analisada em outra dimen-são: o uso do discurso da “modernidade” pela elite política do Ceará no processo deuso e de controle das águas. Além de uma exaustiva revisão da legislação sobre a ques-tão, a autora utiliza o estudo de caso da Barragem do Castanhão. Constata que a se-ca continua servindo ao discurso dos políticos locais, e agora não mais com a ênfasena chamada “indústria da seca”. Os interesses clientelistas dos “coronéis” deram lugaràs demandas de uma burguesia urbano-industrial “moderna” – que governou o Cea-rá nas duas últimas décadas – pela implantação de mega-projetos hídricos de suporteàs indústrias e agroindústrias. A autora defende a necessidade de uma adequada ges-tão dos recursos hídricos no estado, que sempre conviveu com as irregularidades cli-máticas, ao mesmo tempo em que enfatiza o caráter excludente da “modernização hí-drica” analisada.

O último artigo trata de um tema ao mesmo tempo atual e instigante: uma aná-lise sobre “culturas da juventude e a mediação da exclusão/inclusão racial e urbana noBrasil e na África do Sul”. Pela análise do hip hop e outras manifestações culturais con-gêneres, Edgar Pieterse mostra como isto tem contribuído para posicionamentos eações significativos de resistência entre os jovens negros e pobres na Cidade do Caboe no Rio de Janeiro. O artigo ainda contribui metodologicamente para a aproximaçãoentre a observação empírica de práticas culturais e políticas com temas caros ao meioacadêmico, como participação, espaço público, cidadania e segurança.

Duas resenhas completam o presente número. A primeira, elaborada por GisleneSantos, apresenta a publicação traduzida do mais recente livro de Doreen Massey – ForSpace – que tem por título Pelo espaço: uma nova política da espacialidade e foi publica-do em 2008. A segunda, de Daniela Abritta Cota, é sobre São Paulo, cidade global: fun-damentos financeiros de uma miragem, livro de Mariana Fix publicado em 2007.

GERALDO MAGELA COSTA

Editor responsável

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ARTIGOS

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A GLOBALIZAÇÃO LIBERAL E A ESCALA URBANA

PERSPECTIVAS LATINO-AMERICANAS

P E T E R C H A R L E S B R A N D

R E S U M O O processo de globalização implicou o ressurgimento da cidade-região comounidade geográfica chave no desenvolvimento econômico e o nascimento de um novo período detransformação urbana. A reorganização da economia mundial requereu, ao lado de novas for-mas de governo local, a reformulação das bases econômicas e também da infra-estrutura, de equi-pamentos e da própria imagem das cidades. Este processo, que se iniciou nos Estados Unidos e nospaíses da Europa Ocidental no começo dos anos 1980, levou uma década ou mais para se fazersentir na América Latina. Enquanto as políticas urbanas avançavam neste sentido, a investiga-ção acadêmica e a reflexão teórica, circunscrevendo-se essencialmente às pautas analíticas e inter-pretativas estabelecidas em contextos radicalmente distintos do sul-americano, permaneceram naretaguarda, limitadas aos aspectos operacionais da competitividade urbana e marcadas por velhaspreocupações com a consolidação da democracia local. Este trabalho examinaa cidade latino-americana à luz do debate sobre o “re-escalamento” como produto da globalização, ao mesmotempo em que explora a contribuição representada por dito debate para a compreensão das estra-tégias de desenvolvimento urbano. Neste sentido, analisa-se a experiência de algumas cidades co-lombianas, com ênfase especial para o tema da relação com o Estado nacional e as questões quedizem respeito às políticas de planejamento, às práticas de governo urbano e à reconstrução ur-banística. Pretende-se também, aqui, contribuir com algumas idéias que sirvam à elaboração deuma agenda de investigação para a América Latina.

P A L A V R A S - C H A V E Globalização; “re-escalamento” geográfico; neolibe-ralismo; desenvolvimento urbano; América Latina.

INTRODUÇÃO

O fenômeno da globalização ocupa uma boa parte do esforço despendido pelas ciên-cias sociais no seu intento de compreender as características e dinâmicas da vida contempo-rânea. Por sua própria natureza, a globalização tem um interesse especial para a ciência geo-gráfica, e no presente estudo se destaca sua influência para a discussão da questão da escala.Pode-se argumentar, em linhas gerais, que a globalização está mudando abruptamente a or-ganização escalar herdada da época moderna, construída sobre uma hierarquia de escalas quese articulava em torno da escala nacional. Este movimento se dá tanto para cima, com osblocos de livre comércio nos níveis continental e global, como para baixo, no âmbito das re-giões, cidades e localidades. A partir deste esquema, tem-se afirmado que o processo de glo-balização implicou a preeminência da escala supranacional (blocos econômicos, acordosglobais) e o ressurgimento da escala local (regional, urbana), ficando a escala propriamentenacional relegada a uma posição secundária como locus de poder e princípio de organizaçãoda vida econômica e social. Em outras palavras, a globalização ressalta as escalas tanto globalcomo local, em um processo de “glocalização” (Swyngedouw, 1997; Borja e Castells, 1998).

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Ora, o debate sobre o “re-escalamento”1 tem avançado principalmente entre geó-grafos e outros cientistas sociais europeus e norte-americanos, situados, tanto em umcaso como no outro, nos centros mais dinâmicos desse processo, e cada qual com suasreferências específicas. No caso europeu, a paulatina consolidação da União Européiaimplicou a cessão política de amplos poderes nacionais, de tal forma que hoje em diaa União Européia conta, entre outros, com Parlamento, instituições de governo, moe-da e passaporte próprios. Em conseqüência, a escala européia afeta uma enorme gamade atividades, desde a organização econômica até as práticas da vida cotidiana, a quese pode acrescentar o próprio contexto institucional e de trabalho dos pesquisadoresacadêmicos. Na América do Norte, não obstante a integração comercial em nível con-tinental, o fenômeno ainda de maior impacto é a hegemonia dos Estados Unidos e onovo imperialismo impulsionado por sucessivos governos com vistas a um novo “sécu-lo norte-americano” (Harvey, 2003; Hardt e Negri, 2001). O que neste caso se tornaevidente é, mais propriamente, a subversão da ordem internacional herdada e o surgi-mento de novas formas de imposição da vontade imperial aos Estados nacionais nascondições proporcionadas pela globalização. Em ambos os casos, contudo, tanto naEuropa como na América do Norte, as cidades e regiões também emergem com umaimportância renovada.

Tanto na realidade geopolítica como no debate acadêmico, poder-se-ia dizer que aAmérica Latina ficou um tanto marginalizada no que se refere à questão da escala. Ao lon-go das duas últimas décadas do século passado, enquanto o desenvolvimento econômicoe o surgimento de novos atores globais apontavam para o Oriente e a Ásia, os países sul-americanos estavam saindo de um período devastador caracterizado por guerras civis, go-vernos militares e estagnação econômica. Os novos regimes democráticos, dos mais varia-dos tipos e, em muitos casos, bastante frágeis politicamente, ficaram à mercê dos ditamesdas agências multilaterais do desenvolvimento neoliberal. Em tais condições, a integraçãoeconômica foi difícil e os acordos comerciais entre países evidenciaram-se frágeis e instá-veis. Quanto à escala urbana, atribuía-se à cidade, durante uma boa parte desse períodoe até certo ponto ainda hoje, um significado mais propriamente político, no sentido de seconstituir mais em espaço chave para a consolidação da democracia participativa do quecomo unidade econômica.

Não obstante, juntamente com esta preocupação política com a democracia surgi-ram inevitavelmente novas estratégias econômicas das cidades, uma vez que os diferentespaíses, por caminhos os mais variados, se integraram plenamente à globalização. Um tan-to tardiamente as cidades latino-americanas viram-se obrigadas a adotar transformaçõesque respondessem aos desafios da globalização, mas em condições endógenas muito dife-rentes das verificadas nas cidades dos países desenvolvidos. Ainda que as estratégias ado-tadas pelas cidades latino-americanas não tenham recebido a mesma atenção acadêmicaque no caso das cidades européias e norte-americanas, poder-se-ia dizer, grosso modo, queseguiram o padrão preestabelecido de “competitividade urbana” posto em prática em ou-tras latitudes. O objetivo do presente trabalho é traçar um esboço do debate sobre o “re-escalamento” e interrogar sobre a sua pertinência para a compreensão da heterogênea emutável situação que caracteriza a América Latina. À luz deste debate serão comentadasas estratégias adotadas pelas quatro cidades colombianas mais importantes, destacando-seos temas do papel do Estado nacional, as políticas de planejamento, a “governança” urba-na e a reconstrução urbanística.

A G L O B A L I Z A Ç Ã O L I B E R A L

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1 O termo “re-escalamento”– tema central do presenteartigo - refere-se à reconfi-guração da importânciarelativa e das relações fun-cionais entre direrentes es-calas geográficas, a partirdo processo de globaliza-ção. Desta forma, entende-se que o global não é sim-plesmente uma nova escalamundial “superior” que sesoma às relações espaciaisexistentes, mas uma escalaque afeta e recoloca o signi-ficado e as relações entretodas as escalas anteriores,tais como o local, o urbano,o nacional, os bloco e os im-périos.

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CONTORNOS DO DEBATE ACADÊMICO SOBRE A QUESTÃO DA ESCALA

A globalização é um termo que reúne múltiplos conteúdos e que tem sido amplamen-te utilizado, tanto nas ciências sociais como nos meios de comunicação, com o intuito decaptar e explicar o sentido e a direção de inúmeras dimensões da vida contemporânea. Co-mo observa Brenner (2004), a essência indubitável da globalização é geográfica, no senti-do da mundialização dos processos e dinâmicas de mudança econômica, política e social,tendo como conseqüência a introdução de noções geográficas em muitas áreas das ciênciassociais. O especial interesse deste trabalho consiste na globalização como reformulação daquestão de escala, na medida em que a escala global deixa de ser vista como um fenôme-no novo para ser encarada como algo mais amplo, profundo e determinante do que até en-tão o fora, e atentando-se para sua relação com as outras escalas de organização da vida,tais como as representadas pelo plano nacional e principalmente o urbano.

Ademais, depois de utilizada durante três décadas, tem-se argumentado haver recen-temente certo esgotamento ou insuficiência da noção de globalização, com a crescenteadoção, nos estudos urbano-regionais, do conceito de neoliberalismo e do termo “neoli-beralização” para se referir à sua concretização em espaços e lugares diferentes. Pretende-se entender por neoliberalização não somente as novas interações multiescalares da globa-lização, mas também as forças que a regem e impulsionam, bem como os efeitos políticos,organizacionais e individuais nela implicados.

Descrições do neoliberalismo são já suficientemente comuns, tornando desnecessáriasua explanação sistemática neste trabalho. O termo refere-se à ideologia de uma nova etapade acumulação capitalista (Moncayo, 2003), baseada na “crença de que os mercados aber-tos, competitivos e desregulados, livres de toda forma de interferência estatal, constituem omecanismo ótimo para o desenvolvimento econômico” (Brenner, 2004), descrito por Bour-dieu (1998) como “uma utopia de exploração sem limites”, e por Harvey (2005) como “acu-mulação por meio da ‘despossessão’”. A noção de neoliberalismo não se limita a processospuramente econômicos, mas sua concretização se dá através de políticas do Estado e de no-vas formas de regulação econômica e social. Como observa Sparke (2006: 357):

A lo largo de las ciencias sociales la ‘N’ en mayúsculas del Neoliberalismo se ha convertido enun paraguas cada vez más omnipresente para denominar las diversas ideologías, políticas y prácticasasociadas con la liberalización de los mercados y la expansión de las prácticas empresariales y relacio-nes de poder capitalista en esferas completamente nuevas de la vida social, política y biofísica. Desdeel libre comercio, la privatización y la desregulación financiera a la austeridad fiscal, la reforma delbienestar y prácticas punitivas de control social (“policing”); a la imposición de ajustes estructurales; ala expansión de modelos empresariales de identidad y las acciones de las instituciones de innovacióncientífico, educativa y de entretenimiento; numerosos autores están asignando al neoliberalismouna increíble diversidad y exigente conjunto de responsabilidades explicativas. Por cierto, se empleatan ampliamente hoy día que se lo encuentra aplicado a una gama de fenómenos sociales, políticos yeconómicos aún más amplia que en el caso de ‘globalización’ misma (tradução do inglês pelo autor).2

GLOBALIZAÇÃO, ESTADO NACIONAL E “RE-ESCALAMENTO”

Não obstante as múltiplas maneiras de enfocar e entender a globalização, um temaconstante tem sido o significado deste fenômeno para os Estados nacionais, os quais, à

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11R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8

2 “Ao longo do desenvolvi-mento das Ciências Sociais,o ‘N’ maiúsculo de Neolibe-ralismo converteu-se numaespécie de guarda-chuva ca-da vez mais onipresentepara denominar as diversasideologias, políticas e prá-ticas associadas à liberali-zação dos mercados e àexpansão das práticas em-presariais e relacionais depoder capitalista em esferascompletamente novas da vi-da social, política e biofísi-ca. Desde o livre comércio,a privatização e a desregu-lação financeira até a aus-teridade fiscal, incluindo areforma dos sistemas deproteção e práticas puniti-vas de controle social (polic-ing), imposição de ajustesestruturais, expansão dosmodelos empresariais e asações das instituições deinovação científica, educati-va e de entretenimento, nu-merosos autores têm atri-buído ao neoliberalismouma incrível diversidade eum exigente conjunto deresponsabilidades explicati-vas. Este conceito é hojeem dia empregado ampla-mente, sendo aplicado auma gama de fenômenossociais, políticos e econômi-cos ainda de forma maisgeneralizada do que aprópria ‘globalização’ ”.

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primeira vista, se veriam debilitados pela integração global. Com a desintegração dosgrandes blocos geopolíticos e o desmonte das barreiras protecionistas de países indivi-duais, produziu-se uma formidável ampliação e intensificação, através das fronteiras na-cionais, dos fluxos de bens, capitais, dinheiro, informação, serviços, produtos culturais epessoas. As corporações transnacionais, cujas receitas superam com vantagem até mesmoo orçamento nacional de países medianamente desenvolvidos, determinam a dinâmica daeconomia mundial e impõem seus interesses próprios sobre os governos nacionais. Favo-recida pelo desenvolvimento da informática e das comunicações, esta globalização econô-mica foi promovida por instituições multilaterais como o Banco Mundial, o Fundo Mo-netário Internacional e a Organização Mundial do Comércio, que constituem novasinstâncias supranacionais de poder econômico, em face das quais têm surgido inúmerasorganizações, redes e foros não-governamentais de caráter também autenticamente globalno que diz respeito aos seus interesses, agendas e atuações.

Sendo cada vez mais difícil o controle de tais fluxos por parte dos governos nacio-nais, quer se trate de divisas, capitais, informação, rendas, etc., argumenta-se que a dinâ-mica da globalização implica uma transferência de poder para cima. A estreita circunscri-ção dos territórios nacionais deixa de atuar como principal unidade político-geográfica eemergem novas formas transnacionais de governo, constituindo uma espécie de “gover-nança” global exercida por uma ampla variedade de organizações inter e não-governamen-tais, representativas de uma grande diversidade de interesses (Held e McGrew, 2002).

Quais as conseqüências deste processo para o papel e o significado dos Estados na-cionais? Mansfield (2005) observa que a globalização, se a aceitamos como um “fato” pas-sível de mensuração e observação, adquire um status ontológico que a coloca em oposiçãoao Estado nacional. Implícita aí está a idéia de que o Estado nacional entra em declíniona medida em que surgem novos poderes “acima, abaixo e ao lado do Estado”. Contra es-ta posição, Mansfield defende, frente à questão da escala, uma visão relacional para a qualos distintos níveis geográficos de poder se produzem mutuamente, sustentando, com res-peito à globalização, que o Estado nacional tem atuado menos como espectador passivodo que como um ator chave e promotor ativo. Juntamente com a reconsideração da esca-la nacional, esta concepção relacional tem sido um aspecto importante no amadurecimen-to do debate geográfico sobre a globalização (Boyer e Hollingsworth, 1997; Harvey,2000; Jessop, 2000), que vale a pena resumir por constituir o marco conceitual impres-cindível para uma indagação sobre o papel das cidades e a compreensão de suas estraté-gias de desenvolvimento. Nesta direção, Brenner propõe (2004: 8-12) as seguintes consi-derações gerais sobre a questão da escala geográfica:• As escalas geográficas não são fixas, estáticas nem permanentes, e sim produções da his-

tória e dimensões de processos sociais, tais como a produção de capital, a reproduçãosocial, a regulação estatal e as lutas sócio-políticas.

• A configuração institucional, a função, a história e a dinâmica de uma escala particu-lar (local, urbana, regional, nacional, global) tem sentido unicamente em função desuas relações verticais e horizontais com as outras escalas.

• A organização escalar é um mosaico de hierarquias sobrepostas e mutuamente imbri-cadas, uma vez que cada processo social tem sua própria geografia, que impossibilita aconfiguração de uma só pirâmide coerente capaz de englobar todas.

• Portanto, toda e qualquer configuração escalar não pode ser mais do que uma “fixaçãotemporal”, uma conveniência provisoriamente circunscrita pelas atividades políticas,econômicas e culturais.

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• As transformações escalares não ocorrem mediante a substituição de um esquema“ideal” por outro igualmente ajustado às novas circunstâncias históricas, mas estatransformação é sempre experimental e condicionada por ajustes escalares herdados, is-to é, pela “dependência do caminho” (path dependency).

O que está dito acima permite compreender a diversificação e complexidade cres-cente da questão de escala como resultado da globalização enquanto fenômeno contin-gente e gerador de conflitos. É fora de dúvida que a globalização trouxe consigo a deses-tabilização das sólidas escalas hierárquicas estabelecidas na época do pós-guerra, namedida em que favoreceu a emergência de um sistema mais policêntrico, multiescalar epolimórfico. Ademais, este processo acarretou não somente a redistribuição de funções es-tatais entre escalas, mas também a transformação qualitativa destas funções em diferentesescalas no que se refere, por exemplo, ao desenvolvimento econômico e ao bem-estar so-cial (Peck, 2002, citado por Brenner, 2004). Nesta perspectiva, a concepção relacional deescala serve não apenas para ressaltar a importância da reconfiguração da relação entre oEstado nacional e a cidade, reconfiguração esta que não necessariamente se circunscrevea um reordenamento territorial formal, mas também às múltiplas interseções e dependên-cias (incluídas as escalas supranacionais) que condicionam qualquer conjunto de iniciati-vas empreendidas pelas próprias cidades.

Na versão ortodoxa da globalização, por outro lado, argumenta-se com uma lógicaimplacável e peremptória que é indispensável continuar racionalmente mediante a ado-ção de políticas congruentes. A estratégia argumentativa segundo a qual “só pode haverum caminho” busca minimizar os conflitos de interesse resultantes da globalização. Noentanto, a lógica espacial abstrata da acumulação capitalista global entra em choque comas racionalidades concretas das regiões e lugares, e com a história, tradições e configura-ções de poder em cada cidade-região ou localidade particular. Em conseqüência, a globa-lização produz conflitos entre os níveis escalares e no interior de cada um deles, isto é, en-tre interesses nacionais, regionais, urbanos e locais, bem como entre facções econômicas,políticas e sociais em cada nível.

Pode-se dizer que uma boa parte da investigação sobre temas urbanos na América La-tina se volta implicitamente para estes conflitos e contradições, tão evidentes nas cidades eregiões de um extremo a outro do continente, freqüentemente em oposição aberta à glo-balização tal como se está desenvolvendo, posicionando-se também criticamente diante daslimitações das políticas de desenvolvimento territorial derivadas da globalização neoliberal.

O RESSURGIMENTO DA CIDADE-REGIÃO

O ressurgimento da escala urbano-regional constitui um dos aspectos mais visíveisdo processo de globalização. Nas duas últimas décadas, as grandes cidades, cuja impor-tância econômica e cultural em nada diminuiu ao longo desse período, foram palco deuma transformação arquitetônica e exerceram um papel tão preponderante na vida polí-tica e social, que pareciam “se independizar” de seus contextos nacionais. Também naAmérica Latina já nos acostumamos aos macro-projetos urbanos, o melhoramento de in-fra-estruturas, a renovação dos setores históricos, a criação de centros de negócios inter-nacionais, a promoção do turismo, além da especulação com o espaço urbano e do “pro-tagonismo” dos prefeitos. Embora as cidades latino-americanas apareçam com poucafreqüência nas listas de “cidades globais”, elas são amplamente mencionadas em listas se-cundárias representativamente importantes.

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O alto perfil da cidade-região, do ponto de vista tanto arquitetônico e mediático co-mo político, econômico e cultural, contribui para reforçar a visão da cidade como unida-de territorial desvinculada de seu contexto nacional e movida diretamente pelas dinâmi-cas próprias da globalização. No entanto, as prematuras interpretações acadêmicas destetipo foram objeto de questionamento e revisão. Em seus trabalhos mais recentes, a mes-ma Sassen (2001, 2003), pioneira, nos anos 1990, da noção de cidades globais como cen-tros de articulação no contexto da nova economia global, ressalta o papel exercido pelosEstados nacionais como facilitadores da articulação da cidade com os circuitos globais.Com seu interesse pela nova “arquitetura organizacional” dos articuladores empresariaisda globalização e a multiplicação dos circuitos globais especializados, como também pelacriação de novas interseções e oportunidades de articulação das cidades, a expansão hie-rárquica “lateral” e a diversificação das redes interurbanas, Saskia Sassen continua contri-buindo de forma valiosa para a compreensão do papel e funcionamento das cidades, ob-jeto de uma renovada preocupação de outros pesquisadores, mais diretamente voltadospara a dimensão política da escala, que nos interessa neste artigo.

O tema das implicações políticas da multiplicação e diversificação dos circuitos glo-bais foi descrito em termos de uma “nova economia política da escala” (Jessop, 1999,2004). Aqui se ressalta a produção e as relações entre escalas não só em termos de umanova geografia econômica, mas também no que diz respeito à regulação estatal, à repro-dução social e às lutas sócio-políticas. Como já visto, a globalização não ocorre de formahomogênea em um plano vazio, mas em interação com territórios historicamente consti-tuídos, o que põe em jogo diversas forças políticas e sociais. Jessop (2004) argumenta queas complexas dinâmicas do “re-escalamento” implicam não só a identificação de novasoportunidades econômicas e novos atores, mas também a defesa dos interesses existentesem face dos efeitos freqüentemente desagregadores da globalização. Neste processo essen-cialmente gerador de conflitos, Jessop (2004: 28) observa que “o jogo competitivo sempreproduz, comparativamente, perdedores e ganhadores”, tanto no nível inter-regional comono interior de cada região.

Na mesma ordem de idéias, Brenner (2003) opina que a cidade-região, mais do quesimplesmente uma dinamizada unidade territorial, converteu-se em um espaço institucio-nal chave no processo de reestruturação do poder do Estado nacional. Brenner recusa-sea encarar a cidade-região como uma unidade relativamente autônoma dentro do territó-rio nacional e descarta, portanto, uma explicação do ressurgimento das cidades que tenhaem conta unicamente a globalização da economia. Argumenta que o Estado nacional con-tinua exercendo um papel fundamental na formulação, implementação, coordenação edirecionamento da política urbana, dando-se assim uma espécie de descentramento do po-der nacional. Segundo Brenner (2003:7): “De acordo com este ponto de vista, não estáhavendo erosão do poder do Estado nacional, mas sim uma re-articulação deste podertanto com as escalas subnacionais como supranacionais”.

Os trabalhos tanto de Brenner como de Jessop se situam na escola do “desenvolvi-mento geográfico desigual”, que se inspira no materialismo histórico-geográfico de Har-vey (1985) e Smith (1984), e nas análises espaciais do processo de acumulação capitalis-ta pós-fordista. O postulado básico consiste na necessidade de entender a produçãodiferencial do espaço, bem como a transformação dos locais de sua regulação, que aomesmo tempo se constitui por é constitutiva de processos econômicos e políticos (Har-vey, 1996: 6). O “re-escalamento” contemporâneo, portanto, pode ser entendido simul-taneamente como resposta e resultado da reorganização do capital em escala global, com

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todos os conflitos e incoerências que este processo implica ao se superpor em territóriose lugares herdados.

No caso da América Latina, o baixo nível de industrialização e as características pró-prias do processo de urbanização inibiram a homogeneização territorial significativa deri-vada da política keynesiana de acumulação, fato que também dissimula a produção de no-vas diferenças geográficas sob a lógica neoliberal. Talvez por esta razão, os estudosgeográficos se preocuparam mais com os novos padrões de organização e distribuição doaparelho produtivo em si, tratando as diferenças geográficas como algo dado ou pano defundo. Em todo caso, depois do longo período marcado pela política de substituição deimportações, as conseqüências da globalização para o desempenho das economias urbano-regionais têm sido um tema importante nos estudos da nova geografia econômica da Amé-rica Latina. As preocupações dos estudiosos têm privilegiado a análise da composição e dis-tribuição nacional das atividades econômicas (por exemplo, Cuervo, 2003; Lotero, 2005;Cao e Vaca, 2006) e a indagação das possibilidades da agenda neoliberal com base no de-senvolvimento de uma plataforma competitiva local através da inovação, a aprendizagem,o desenvolvimento tecnológico, as instituições e a “governança” econômica (ver, por exem-plo, Helmsing, 2002; Méndez, 2002; Boisier, 2004; Sobrino, 2005; Dabat, 2006).

Em tais circunstâncias, as políticas nacionais de desenvolvimento territorial tendema dar prioridade àquelas cidades e regiões que apresentam maiores vantagens e melhorespossibilidades de êxito para o investimento público. Também podem promover ativamen-te a criação de condições de competitividade em zonas menos desenvolvidas com poten-cial em setores específicos como serviços e turismo, estimular diretamente a conectividadeentre regiões e com o exterior, e implementar reformas na organização político-adminis-trativa do Estado. No entanto, a estratégia mais generalizada é aquela que induz ou obri-ga as cidades-região a adotar suas próprias estratégias de competitividade, por limitadasque sejam, mediante o melhoramento de fatores básicos como a infra-estrutura, a educa-ção, a capacitação da força de trabalho, a promoção de atitudes e iniciativas empresariaisetc., juntamente com incentivos e oportunidades para a atuação do setor privado pormeio de subsídios, isenção de impostos e privatizações.

Esta re-atribuição de funções nacionais às cidades-região constitui um deslocamen-to geográfico das responsabilidades políticas. A globalização neoliberal conduziu à dester-ritorialização da propriedade e do controle do aparelho produtivo, infra-estrutura e servi-ços públicos, à concentração da renda e da riqueza, ao descumprimento crônico daspromessas de elevação geral da qualidade de vida e à crescente desigualdade espacial e au-mento das tensões sociais. Persistem, portanto, fortes contradições entre a reestruturaçãodo espaço urbano em função do capital e os seus efeitos distributivos negativos. Isto vema ser um desafio agudo para os governos locais, descrito por Brenner (2004) em termosda necessidade de empreender uma estratégia permanente de “administração de crises”,tipicamente voltada para problemas de pobreza extrema e exclusão, e implicando partners-hips, isto é, parcerias e novas acomodações entre o Estado, o setor privado e organizaçõesda sociedade civil, para compensar o desmonte das instituições e programas de assistên-cia do Estado do bem-estar.

A avaliação geral precedente refere-se especialmente à Europa e América do Norte,cabendo fazer, com relação à América Latina, duas observações importantes. Em primei-ro lugar, a reorganização territorial do Estado nacional, no caso latino-americano, ocor-reu tipicamente antes do pleno impacto da globalização. Reorganizações importantes sederam em resposta ao processo de rápido crescimento urbano dos anos 1960 e 70, e du-

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rante ou imediatamente após os regimes militares e conflitos armados dos anos 1980. Es-te fato, juntamente com o baixo nível de integração econômica e política dos países lati-no-americanos no período que se seguiu, inibiu a formulação e implementação de refor-mas na organização político-administrativa do Estado nacional que respondessem àdinâmica específica da globalização.

Em segundo lugar, a noção da “administração de crises” adquire um sentido parti-cular nas cidades latino-americanas. Enquanto as crises que tiveram lugar nas cidades eu-ropéias e norte-americanas surgiram logo após um período de crescimento estável, altosníveis de emprego, redução das desigualdades sociais e um aparelho público de bem-estarmais ou menos sólido para amortecer seus piores efeitos, na América Latina as crises ur-banas neoliberais produziram-se em circunstâncias de reduzido desenvolvimento indus-trial, altos níveis de desigualdade preexistentes, sistemas de seguridade social de baixa co-bertura e com vastos setores da população urbana sobrevivendo na informalidade. Emoutras palavras, somavam-se novas crises às já acumuladas, agravadas ocasionalmente pe-los preocupantes níveis de violência e a presença de economias ilegais e organizações po-líticas paraestatais.

O NEOLIBERALISMO: A GLOBALIZAÇÃO CAPITALISTA COMO PROJETO DE CLASSE DAS ELITES

É precisamente a dimensão sócio-política da globalização e suas práticas de regulaçãoem diferentes escalas geográficas que levaram à crescente utilização do conceito de neolibe-ralismo, ou melhor, neoliberalizações (Castree, 2006) para a compreensão das especificida-des espaciais e territoriais da globalização. A este respeito, um detalhe não menos signifi-cante é o fato de que a globalização constitui uma vitória do capitalismo. Durante a maiorparte do século passado e até meados dos anos 1980, era perfeitamente admissível postu-lar uma globalização socialista. Mas enquanto os aparelhos burocráticos do bloco soviéticoiam-se derruindo na própria crise, comparável à crise de acumulação do modelo fordistado regime capitalista, este último encontrou uma saída que, ao mesmo tempo, promoveua globalização e dela ficou dependente. Esta solução consistiu no crescimento baseado nasuperação das fronteiras políticas, barreiras econômicas e obstáculos culturais em escalamundial. Ou seja, nascia o projeto neoliberal, entendido como ideologia, estratégia polí-tica e tecnologia de governo para facilitar a expansão do mercado e da empresa privada.

Muitas análises do neoliberalismo têm enfatizado seu caráter de política econômica,contribuindo, com isto, para dissimular seu caráter histórico e classista. Embora se tenhareconhecido a importância de novas práticas de re-regulação estatal em múltiplos aspec-tos da vida econômica e social (Brenner e Theodore, 2002), bem como as amplas evidên-cias empíricas dos custos sociais e ambientais, o neoliberalismo se apresenta com certa fa-cilidade como uma evolução natural do capitalismo como modo de produção, na qual aprodução de desigualdades sociais e diferenças geográficas é considerada uma dificuldadeacidental e transitória.

Em contrapartida, Harvey (2005), por exemplo, argumenta que o longo processo deneoliberalização foi um projeto para restaurar o poder político e econômico das elites edas classes dominantes, ameaçado pela crise de acumulação dos anos 1970. O projetoneoliberal, sustenta Harvey, deve ser entendido não simplesmente como um “projeto utó-pico para a realização de uma perspectiva teórica de reorganização do capitalismo inter-nacional” que, hipoteticamente, beneficiaria a todo o mundo com o crescimento eco-nômico. Ele deve ser visto, ao contrário, como um projeto destinado a restabelecer e

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concentrar o poder econômico e político cedido pelas elites no período do Estado keyne-siano do bem-estar e que, em razão da crise de acumulação, se achava em situação de ex-tremo perigo. Os efeitos reais do neoliberalismo em termos de concentração de renda eagravamento das desigualdades sociais são amplamente reconhecidos, mas tendem a rece-ber menos atenção nas análises políticas sobre a cidade.

No plano urbano, numerosos estudos têm sido dedicados à descrição da espacializa-ção deste fenômeno. A concentração de renda nos setores econômicos e sociais articula-dos com a globalização resultou em agravamento das disparidades no mercado do solo,fragmentação urbana, segregação socioespacial, implantação de “ilhas” e “arquipélagos”urbanísticos para a expansão dos serviços financeiros, tecnológicos e dos negócios inter-nacionais, condomínios residenciais fechados, mega-projetos infra-estruturais para aten-der às empresas multinacionais e elites locais, abandono e degradação do habitat das clas-ses populares etc. Tudo isto constituiu, sem dúvida, um eixo principal da recente geografiaurbana da globalização na América Latina, tal como a “metropolização” (Prévot, Schapi-ra, 2002; Pírez, 2006), as transformações da estrutura urbana (Janoschka, 2002; Azócare Henríquez, 2003), os padrões de segregação (Rodríguez, 2004; Hidalgo, 2004), as de-sigualdades sócio-territoriais (Cariola e Lacabanca, 2001; Rodríguez e Sugranyes, 2004),os espaços exclusivos das elites (Cohen, 2005; Álvarez-Rivadulla, 2006) e as condições devida (Da Silva, 2003). Até que ponto tais fenômenos são produto direto da globalizaçãoou o resultado de tendências históricas endógenas é um tema de debate (De Mattos,2002), cuja clarificação é dificultada pelas semelhanças estruturais dos padrões socioespa-ciais anteriores à plena inserção das cidades na globalização.

No entanto, entendida como projeto político das elites, a neoliberalização naAmérica Latina tem outras conotações na escala urbana talvez menos estudadas. Pode-ríamos citar, entre outras, a teoria neoliberal como discurso legitimador, sua mobiliza-ção mediante a tomada dos centros estratégicos de planejamento urbano, o papel dosmeios de comunicação, as diversas formas de uso da violência e da repressão como me-canismo de imposição do projeto neoliberal em escala urbana, o autoritarismo, etc. En-quanto temas como o papel das agências internacionais, o conflito, a governança e aspráticas participativas passam superfialmente pela questão do poder, são mais escassosos estudos que a encaram abertamente (ver, por exemplo, Restrepo, 2002; Davis, 2006)ou que tenham resultado em estudos empíricos e reflexões teóricas equivalentes, porexemplo, a teoria dos regimes urbanos elaborada em relação à urbanização neoliberalnos Estados Unidos.

É possível que as preocupações específicas da América Latina tenham levado a subes-timar estes temas no nível urbano. Com as esperanças voltadas para a consolidação da de-mocracia participativa e seus mecanismos institucionais formais, é possível que os estudosurbanos tenham se descuidado da reconfiguração das classes e da promoção dos interessesdas elites (favorecidas pela desordem e o declínio dos partidos políticos tradicionais), dasalianças entre setores sócio-econômicos, do efeito da política de privatização, da apariçãode novos atores tanto públicos como privados no cenário da política urbana, do redirecio-namento do investimento público no interesse do grande capital nacional e estrangeiro, daspolíticas fiscais municipais, etc. Ademais, muitos dos fenômenos espaciais associados coma globalização nas cidades do mundo desenvolvido, tais como a informalidade, a pobreza,a marginalização e as migrações, já existiam nos anos 1980 em forma endógena, freqüen-temente mesclados com a existência de economias ilegais, a corrupção e a presença de apa-relhos paraestatais.

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Em todo caso, poder-se-ia dizer que ainda está por se elaborar uma análise políticasistemática deste tipo voltada para a cidade latino-americana. Existe uma tradição de estu-dos político-urbanos (sobre a configuração dos partidos, o caciquismo, o clientelismo co-mo mecanismo de poder, os movimentos sociais e a violência, por exemplo) suficientemen-te forte para que se possa efetuar esta atualização no contexto da globalização neoliberal.Neste sentido, um tema importante tem a ver com a reconfiguração das próprias elites. Écerto que, na América Latina, os caciques políticos regionais, as lideranças surgidas com aindústria tradicional e a propriedade da terra se mesclaram e cederam terreno a outros gru-pos elitistas menos visíveis e menos comprometidos territorialmente. A representação po-lítica de seus interesses é, hoje em dia, menos personalizada e mais tecnocrática, concreti-zando-se através de organizações corporativas capazes de articular e mobilizar os interessesdas empresas multinacionais, a indústria local moderna e o setor financeiro, etc., em pro-cessos mais complexos de transformação urbana. Esta tecnocratização do poder das elitescontribui não somente para a orientação técnica da política urbana em função dos seuspróprios interesses de competitividade, mas também implica e requer, na chefia da admi-nistração municipal, um novo tipo de líder político urbano, ao mesmo tempo “global” e“local”, “culto” e “popular”, “democrata” e “audaz”, enfim, uma espécie de “mago” capazde assumir a difícil gestão das contradições da cidade em tempos de neoliberalismo.

MATERIALIDADES E SUBJETIVIDADES

Por último, convém abordar não somente o tema dos processos e efeitos materiais eespaciais da globalização neoliberal em escala urbana, como também a interrogação sus-citada pelo fato de ter sido possível ir tão longe na execução de tal projeto, apesar dos con-flitos políticos e custos sociais que implica. Harvey (2005) coloca o problema em termosda “construção do consentimento”, com uma análise que se desenvolve sobretudo em es-cala nacional. Reconhece que em países como o Chile, o projeto neoliberal se realizou demaneira rápida e brutal mediante um golpe de Estado orquestrado pelos Estados Unidose levado a cabo pelo ditador Pinochet. Entretanto, argumenta Harvey, na grande maioriados casos a neoliberalização se realizou de maneira gradual e mediante mecanismos de-mocráticos. É indubitável que, na América Latina e outras regiões, o papel coercitivo dasinstituições financeiras, como o FMI, e a imposição de políticas de ajuste estrutural fre-qüentemente se impuseram à vontade democrática nacional.

Nas profundas análises em que estuda detalhadamente os casos dos Estados Unidose do Reino Unido, Harvey não negligencia a escala urbana. No caso norte-americano,destaca a maneira pela qual a crise fiscal da cidade de Nova York, em meados dos anos1970, deu a oportunidade para se entregar a administração da cidade aos bancos priva-dos, desregular o mercado imobiliário, desativar a força de trabalho organizada, desfalcaros serviços sociais, transformar o emprego em uma responsabilidade individual, crimina-lizar condutas anti-sociais, etc., numa espécie de iniciativa prototípica de concretizaçãodo projeto neoliberal em escala nacional. O caso de Londres foi diferente, pois ali o pro-jeto neoliberal dependia do desmonte de um aparelho estatal de bem-estar muito maisamplo, apresentando-se a escala urbana menos como portadora dos novos horizontes neo-liberais do que como um espaço onde se exerciam velhos hábitos. Mesmo assim, na esca-la urbana, o projeto neoliberal conduziu à dissolução da autoridade metropolitana (bas-tião do poder intervencionista estatal), à intensificação do controle da cidade por parte dogoverno nacional, à extensão da influência do centro financeiro internacional, à flexibili-

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zação e ocasionalmente ao desmonte total do sistema de planejamento urbano, à privati-zação da infra-estrutura e da habitação pública, etc. Estes casos evidenciam a tomada decontrole das cidades por parte do governo central e a simultânea entrega aos interesses eorganizações capitalistas.

As análises de Harvey voltam-se principalmente para os mecanismos políticos de re-distribuição do poder, mas também dão ênfase à interação existente entre o avanço desteprocesso e o apelo a valores culturais nacionais como liberdade, responsabilidade, opor-tunidade, justiça, sentimento religioso, etc, modificando o seu sentido prático em situa-ções de mudança social radical. Na América Latina, sem dúvida, tem sido mais difícilconcretizar esta articulação, o que se reflete na instabilidade política, na violência e naoposição aberta à globalização neoliberal.

O processo de neoliberalização, evidentemente, mais do que uma simples questão deideologia e de teoria econômica, também tem a ver com a transformação das relações so-ciais, a experiência cotidiana, a formação de subjetividades e a criação de identidades. Aconstrução do consentimento foi facilitada, sem dúvida, pela “desconfiguração” das insti-tuições do Estado e organizações sociais estáveis como os partidos tradicionais, os sindi-catos e as comunidades. Mas também influenciou o discurso neoliberal, enquanto esferaideológica na qual se constrói e se mobiliza o sentido comum juntamente com as manei-ras aparentemente “óbvias” de entender o mundo, os problemas atuais, as aspirações e oscaminhos legítimos para alcançá-las, os horizontes do futuro e o lugar do indivíduo nonovo esquema neoliberal. A partir desta perspectiva, foram analisadas a globalização (Ca-meron e Palan, 2004), a cidade empresarial (Jessop, 1999) e muitos outros fenômenos daneoliberalização como narrativas.

As opções analíticas abertas por tais perspectivas são amplas e não cabe aqui umaabordagem sistemática do tema, que se limitará simplesmente à indagação geral sobre osignificado da escala urbana como lugar de formação de subjetividades. Se a escala na-cional é percebida em seu papel de mero facilitador no processo de globalização e comoentidade abstrata na formação de identidades coletivas e individuais – em vários paísesabriram-se, de fato, amplos debates sobre o que significa ser “inglês” ou “francês”, porexemplo –, ao passo que as cidades-região assumem um papel cada vez mais predominan-te – porém não necessariamente mais determinante – na vida social, seria de se esperarque as cidades voltassem a ser lugares privilegiados para a formação de subjetividades emcondições de globalização. Tal situação ofereceria, além disto, novas possibilidades deaproveitamento político, no que se refere à readaptação dos cidadãos em função das opor-tunidades globais e das limitações locais. A cidade se converteria no lugar privilegiado pa-ra se construir a legitimidade governamental, a solidariedade territorial e o cidadão sub-misso, mediante estratégias locais baseadas na reconstrução de noções como cidadania,direitos e deveres do cidadão, formas legítimas de participação, responsabilidade indivi-dual, relação com a autoridade, expectativas frente às instituições e a esfera pública.

AS ESTRATÉGIAS URBANAS NA COLÔMBIA:CONTRIBUIÇÃO A UMA REVISÃO CRÍTICA

Na parte anterior deste trabalho, foi esboçado o debate sobre o “re-escalamento” eassinalados alguns pontos de maior relevância para o entendimento das políticas e práti-cas do governo local. Nesta seção, pretende-se explorar a pertinência dos argumentos de-

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rivados das propostas gerais do “re-escalamento”, com referência à experiência das gran-des cidades colombianas. Na análise a seguir destacam-se os seguintes aspectos:• A relação entre as escalas urbana e nacional: a orientação nacional das políticas de com-

petitividade, as iniciativas urbanas perante a globalização, a incidência da distribuiçãoterritorial do poder político, as configurações e relações institucionais, as culturas lo-cais perante o empreendimento, etc.

• A concentração do poder e o papel das elites urbano-regionais: a reconfiguração do po-der urbano, a composição e o papel das elites, as estratégias adotadas para impor e le-gitimar os interesses de classe, a orientação do investimento público, suas implicaçõesem termos de eqüidade socioespacial, a noção de cidadania, etc.

• As políticas urbanas como “administração de crises”: formas simbólicas de criar novossentidos de unidade e coerência territorial, a renovação urbana, a arquitetura e a infra-estrutura, o espaço público, a cidade como espetáculo e cenário de atos culturais, a or-dem pública e o exercício da autoridade, etc.

Uma revisão crítica dentro desta ordem de idéias atua como contrapeso à fetichiza-ção da cidade no processo de globalização. Criou-se a impressão de que o futuro das ci-dades depende somente delas, de sua capacidade endógena de transformação, inovação eliderança. Ainda que esta fetichização da cidade seja uma característica geral da globaliza-ção, na Colômbia ela foi acentuada pelo forte sentido regionalista que existe no país, jun-tamente com o processo extraordinário de reconstrução de imagens e imaginários urba-nos, especialmente nas cidades de Bogotá e Medellín, ao lado de casos igualmentenotórios, mas opostos, de degradação de cidades grandes como Cali e Barranquilla atra-vés de crises profundas e prolongadas. A aparição de um tipo de líder político à frente daadministração das cidades (prefeitos independentes, inovadores e carismáticos na sua for-ma de governar) também reforçou a sensação de uma autonomia funcionalista das cida-des perante a globalização, na qual se descartam as trajetórias urbanas, os condicionamen-tos culturais e as articulações nacionais e internacionais como fatores significativos.

AS BASES PRINCIPAIS DA POLÍTICA URBANA NA COLÔMBIA

Em contraste com países como Chile, México, Brasil e Argentina, a plena inserçãoda Colômbia nos circuitos da globalização e a adoção de políticas neoliberais tiveram iní-cio tardiamente, no início da década de 1990. Embora seja certo que a indústria manu-fatureira tradicional teve problemas na década anterior, o país manteve algumas medidasprotecionistas e evitou as grandes crises econômicas e a hiperinflação que tanto afetou aoutros países da região. Por sua vez, certa estabilidade fiscal e monetária permitiu que aColômbia chegasse a acordos menos rígidos com o FMI e os bancos internacionais. So-mente a partir do governo de César Gaviria (1990-1994) foi empreendida com seriedadea política de “abertura econômica”. Ainda assim, o processo foi gradual, e não houve umaonda massiva de privatizações nem mudanças radicais na organização institucional do Es-tado, fenômeno que somente se verificaria no começo do novo século.

O que houve na Colômbia foi, mais propriamente, uma crise de ordem política, es-treitamente associada com o problema do narcotráfico: a penetração das máfias em todasas instâncias políticas, econômicas e civis, o estabelecimento de controles territoriais eaparelhos paraestatais nos bairros populares e o aprofundamento de uma situação crôni-ca de violência. Tamanha foi a gravidade, que em 1990 se convocou uma assembléia cons-tituinte numa tentativa de salvaguardar as estruturas políticas e institucionais. Entre ou-

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tras coisas, a nova Constituição Política de 1991 aprofundou o processo de descentraliza-ção que havia se iniciado nos anos 1980, outorgando aos municípios uma boa dose de au-tonomia e uma extensa participação no orçamento nacional, e ampliando consideravel-mente os mecanismos de participação cidadã nos assuntos locais.

Contra este pano de fundo se desenvolvia a política nacional de competitividade ur-bana, que não teve maior relevância até meados dos anos 1990. Desde finais dos anos1980, o governo nacional havia começado a impulsionar a criação de um quadro norma-tivo e institucional destinado a modernizar a economia mediante mecanismos concebidospara acelerar e ampliar a abertura econômica, o comércio exterior, o investimento estran-geiro direto, o mercado de capitais e o mercado de trabalho nacional. Também neste pe-ríodo, o setor privado deu início a uma série de estudos prospectivos relacionados com ainserção da Colômbia na economia global, sob a coordenação das Câmaras de Comérciodas grandes cidades. Entretanto, a dimensão territorial ficou relativamente esquecida. Es-ta situação foi remediada com a realização, entre 1995 e 1998, de uma série de estudossobre a competitividade nacional e das grandes cidades, contratados pela firma norte-americana Monitor, de Michael Porter. Adicionalmente, o governo nacional instituiu, em1995, a política nacional urbana denominada Cidades e Cidadania, que se apropriou dasidéias em circulação naquele momento sobre o papel da cidade como “a força motriz dodesenvolvimento”. A última iniciativa estratégica foi a formulação, em 1999, da PolíticaNacional para a Produtividade, a Competitividade e as Exportações, com um forte com-ponente regional representado pelos Planos Estratégicos Exportadores Regionais (PEER),elaborados pelas cidades sob as diretrizes do Ministério do Comércio Exterior, que porsua vez convocou os Comitês Assessores Regionais de Comércio Exterior (CARCE) parasua formulação. Controlados efetivamente pelas Câmaras de Comércio (ver Brand e Pra-da, 2003), tais comitês estavam, em princípio, abertos a todos os setores nas diferentes re-giões em que houvesse “pessoas abertas a paradigmas e idéias distintas” (leia-se figuras deinclinação neoliberal).

Os fatos acima foram objeto de estudo, mas são poucas as análises, entre os estudosurbano-regionais e de planejamento, que os submetem a um exame crítico rigoroso. Oassunto mais óbvio do ponto de vista técnico diz respeito à crescente influência do setorprivado na formulação da nova geração de planos de desenvolvimento territoriais inspi-rada na competitividade, especialmente aqueles de ordem estratégica que definem as li-nhas tanto discursivas como programáticas e de investimento público por meio de ma-cro-projetos. Claramente se pôs em evidência a manifestação do novo poder dasassociações do setor privado na direção das cidades. Isto significou o ocaso definitivo doscaciques políticos tradicionais e líderes civis patriarcais de outrora; a partir desse momen-to, o empresariado privado começa a operar corporativamente e mobiliza seu poder nointerior do sistema tecnocrático e participativo de planejamento, fazendo-o em nome dasobrevivência das cidades, mas agindo, de fato, em defesa de seus próprios interesses po-líticos e econômicos nas condições criadas pela globalização.

Outro tema de interesse está relacionado com as transformações ocorridas no pro-cesso de planejamento. Atos legislativos que datam também de meados dos anos 1990 in-troduziram, entre outras coisas, medidas para separar os programas de governo dos pre-feitos e os planos de desenvolvimento territorial, obrigando os primeiros (de 3 ou 4 anos)a acomodarem-se aos segundos (de prazo mais longo e formulação participativa), e cria-ram, ao lado de mecanismos de supervisão e prestação de contas, instrumentos de inter-venção no mercado do solo. Tudo isto despertou um inusitado interesse público pelo pla-

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nejamento urbano, cujas características e conseqüências merecem uma maior indagação.É certo que, pelo menos nas grandes e médias cidades, as expectativas em torno dos no-vos planos resultaram em uma ampliação da participação cidadã, permitindo atrair am-plos setores sociais para o discurso da competitividade e obtendo também a adesão de se-tores críticos como as ONGs e as universidades, por meio da atribuição de postosburocráticos, consultorias e assessorias. Enquanto se impulsionava a modernização da in-fra-estrutura (aeroportos, estradas, comunicações, centros de negócios, etc.), dentro deum processo heterogêneo de privatizações e concessões também dos serviços públicos,produziram-se situações críticas em questões como a moradia, o acesso a serviços de saú-de, a crescente precariedade do mercado de trabalho, o aumento da pobreza e a miséria.

Isto nos leva ao terceiro ponto, relacionado com a caracterização das políticas urbanascomo administração da crise. O Estado neoliberal operou um redirecionamento territorialdas responsabilidades pelo bem-estar econômico e social para os municípios, ao passo quelhes retirou os instrumentos tradicionais que o asseguravam. Evidentemente, a reconstru-ção da noção de bem-estar tinha que ser buscada dentro da lógica própria do neoliberalis-mo, que incluía o mercado, a inovação, o empreendimento, as responsabilidades indivi-duais etc., e em meio ao empobrecimento da vida material e econômica de amplos setoresda população e a uma acelerada fragmentação socioespacial. O êxito de tal empresa depen-dia, então, do reposicionamento da noção urbana de bem-estar no mundo simbólico; daío reiterado discurso sobre a cidade e os direitos e deveres da cidadania, os símbolos arqui-tetônicos e infra-estruturais, a conversão do espaço público em cenário de espetáculo. Istorequeria um novo tipo de prefeito, relativamente independente das estruturas partidáriastradicionais, culto e experimentado em matéria de globalização, e capaz de manejar con-vincentemente os instrumentos da cultura local. Estes temas serão comentados a seguir,muito brevemente, tendo como referência as quatro maiores cidades da Colômbia.3

O CASO DE BOGOTÁ

Capital e principal cidade da Colômbia, com uma população de aproximadamentesete milhões de habitantes, Bogotá apresentava condições urbanísticas lamentáveis paraenfrentar os desafios da globalização. No início dos anos 1990, Bogotá ainda contava comuma infra-estrutura e equipamentos deficientes, um sistema de transporte caótico e apre-sentava um quadro de degradação física e social especialmente acentuada no centro. Emum comentário do Informe Monitor lê-se que:

O problema fundamental [de Bogotá] não está na baixa qualidade de vida, nem em suaescassa conectividade com a economia global, nem na deficiente capacidade de seus recursos hu-manos. O problema que impede a cidade de ser competitiva é muito mais profundo: Bogotá ca-rece de uma visão sobre o que pretende ser e onde quer se posicionar no mundo. Bogotá pode so-lucionar seus problemas de insegurança, reorganizar seu sistema de transporte e suas finanças, masse a cidade não consegue visualizar o que deseja ser, seguramente não vencerá o desafio de se con-verter em uma cidade global capaz de oferecer prosperidade a seus cidadãos e cidadãs.4

Não obstante a típica fetichização da cidade e as falácias sociais da competitividade,este informe de alguma forma acertou em seu diagnóstico no que diz respeito à crise deidentidade e direção da cidade. A recuperação de Bogotá na última década foi bastantereconhecida internacionalmente, a partir de um esforço mais ou menos contínuo basea-

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3 A apresentação das atuaispolíticas e projetos de cadacidade pode ser encontradanas respectivas páginas weboficiais: www.bogota.gov.co;w w w . m e d e l l í n . g o v . c o ;www.cali.gov.co; e www.alcaldiabarranquilla.gov.co.Também se pode encontrar in-formação valiosa em: www.bogota.comovamos.org e www.medellin.comovamos.org.

4 “A Bogotá que Sonhamos”.Informe Monitor/Câmara deComércio de Bogotá, 1997,Resumo executivo.

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do no saneamento fiscal, no assentamento de uma “cultura cidadã”, nos macro-projetosinfra-estruturais e de equipamentos, e no manejo do espaço público. Esta transformaçãofoi impulsionada por uma nova estirpe de prefeitos – Antanas Mockus, intelectual e ex-reitor da Universidade Nacional da Colômbia, e Enrique Peñalosa, jovem e entusiasta ur-banista pertencente à elite de Bogotá, que tanto se sente em casa em Nova York como emBogotá (Dávila e Gilbert, 2001). No entanto, para entender integralmente o ressurgimen-to de Bogotá, haveria que se levar em conta, ainda, a sua posição privilegiada como capi-tal, sua facilidade de acesso às instâncias de governo nacional e internacional, o fato deconstituir um elo na internacionalização da economia e centro financeiro, e as políticasde segurança implementadas. Ainda assim, cresceram os problemas de pobreza, desigual-dade e segregação socioespacial, apenas reconhecidos nos últimos anos pela administraçãocentro-esquerdista de “Lucho” Garzón.

O CASO DE MEDELLÍN

Segundo o Informe Monitor para a segunda cidade da Colômbia, cuja população ul-trapassa dois milhões de habitantes:

Medellín é uma cidade de economia robusta, com um nível aceitável de tomada de riscos,acesso a capital mais barato, e indústrias de apoio em vários setores, mas ainda marcada pela au-sência de formação especializada em tecnologia, negócios e inovação que a leve a uma nova fasede desenvolvimento.5

Sem dúvida, Medellín contava com um setor empresarial organizado, capaz de rees-truturar-se e influenciar fortemente nas políticas e nos macro-projetos urbanos. ComoBogotá, também contava com instituições públicas de planejamento capazes de materia-lizar o projeto da competitividade. Entretanto, o desafio principal para Medellín nos anos1980 e 90 foi sair dos altos níveis de violência que a situaram como a cidade mais violen-ta do mundo, em boa parte devido aos cartéis de narcotráfico estabelecidos na cidade. Acombinação da audácia política com a liderança empresarial, a solidariedade regional e acapacidade de se inserir em redes internacionais com ou sem a intervenção do governocentral, permitiram que Medellín enfrentasse com êxitos os desafios da globalização (verFranco, 2005). Por outro lado, esta inserção nos circuitos globais foi alcançada logo apósa superação de uma crise social sem precedentes, de tal maneira que os conflitos posterio-res, diretamente relacionados com a competitividade neoliberal, pareciam de menor im-portância, sendo habilmente monitorados, em primeiro lugar, através de uma estratégiaambiental (Brand, 2005) e, em seguida, por meio de uma versão própria de “cultura ci-dadã”, renovação urbana e espetáculo. Ainda que nas primeiras etapas tenham sido im-portantes as lideranças políticas tradicionais, uma vez controlada a crise da ordem públi-ca, apareceram prefeitos jovens provenientes das universidades e das instituiçõesvinculadas à pesquisa, quer em aliança com as classes políticas tradicionais, quer com ba-se em um bem-sucedido movimento cívico independente.

OS CASOS DE CALI E BARRANQUILLA

A terceira e a quarta cidades do país, com população total estimada em três milhõesde habitantes (dois milhões em Cali e um milhão em Barranquilla), se caracterizam pelas

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5 “Construyendo la ventajacompetitiva en Medellín”. In-forme Monitor/Câmara deComércio de Medellín, 1996.

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dificuldades de inserção nos circuitos da globalização. São casos distintos, que têm em co-mum a decadência das elites locais, a corrupção e os conflitos políticos locais. Além dis-so, enquanto as cidades de Bogotá e Medellín rapidamente solucionaram o problema desuas finanças públicas, Cali e Barranquilla entraram, nos anos 1990, em um longo perío-do de crises fiscais que, continuando no novo século, limitaram ainda mais qualquertentativa de competitividade. No caso de Cali, a emergência dos novos cartéis do narco-tráfico em plena abertura econômica teve efeitos nefastos que minaram a economia, mar-ginalizaram as classes políticas tradicionais e arruinaram as anteriormente sólidas institui-ções públicas. Já em Barranquilla, como principal porto colombiano na costa caribenha,teria sido possível esperar uma dinamização da economia a partir da globalização, mas es-ta nunca se materializou. Seria uma simplificação abusiva atribuir o fato às administra-ções populares eleitas nos anos 1990 (ver Sáenz e Rodríguez, 1999), pois a empresa pri-vada já controlava o porto e os serviços públicos, e o governo central interveio cada vezmais nos assuntos internos da cidade. Tanto no caso de Barranquilla como no de Cali,cabe se perguntar, entre outras considerações, sobre o papel das culturas regionais nas es-feras política e empresarial dos setores tradicionais das economias urbanas (menos aber-tos que em Bogotá e Medellín), sobre as trajetórias urbanas, sobre o posicionamento decada cidade com relação aos governos centrais, sobre os efeitos de novos grupos ilegais as-sociados ao narcotráfico e, mais recentemente, sobre o para-militarismo.

Nesta breve discussão da experiência das quatro principais cidades da Colômbiachamamos a atenção, ainda que muito esquematicamente, para a presença das múltiplasinterseções da globalização em termos de dinâmica e regulação multiescalar da vida eco-nômica, política e social. Frente à tendência geral da fetichização da cidade, notam-se al-guns fatores supra-urbanos que matizam o significado desta escala espacial. O caso co-lombiano parece indicar o papel reduzido da escala nacional, embora análises maissistemáticas venham a considerar de forma mais detalhada sua função reguladora em re-lação às condições de operação da empresa privada e o mercado de trabalho. Alguns dosfatores que mais sobressaem em escala urbana são o papel das elites locais e a capacida-de gerencial dos novos líderes políticos locais. Afinal, se a globalização neoliberal é umprojeto das elites, a adequada configuração destas no plano urbano-regional e a presen-ça de prefeitos simultaneamente globais – e enraizados na cultura regional – em sua for-mação seriam apenas uma condição lógica do êxito da “glocalização” em um lugar con-creto e determinado. Há de se lembrar também que a inserção global e a busca dacompetitividade urbana se desenvolvem com o problema, especialmente agudo na Amé-rica Latina, da pobreza e da desigualdade socioespacial. Conseqüentemente, a “adminis-tração da crise” urbana implica o sempre delicado balanço entre as condições materiaise as formas simbólicas do bem-estar das populações urbanas, a aplicação de novas tecno-logias de governo e o uso da repressão.

COMENTÁRIOS FINAIS

O objetivo deste trabalho foi o de revisar a questão do “re-escalamento” e indagarsua pertinência e possíveis contribuições para a análise das estratégias de desenvolvi-mento urbano. De um modo geral, tanto na Colômbia como na América Latina em ge-ral este tema tem relativamente recebido pouca atenção. Tentou-se demonstrar aqui queé possível contribuir com elementos úteis para reestimular a análise do Estado e o estu-

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do das políticas urbanas, particularmente quanto a diferentes variações de escala relati-vas ao desenvolvimento urbano, ao desmascaramento do caráter elitista das políticas decompetitividade e às formas de legitimação dos governos locais na administração da cri-se urbana.

Esta aproximação limitou-se a algumas observações gerais, às quais se acrescentou al-guma exploração preliminar do caso da Colômbia e suas cidades principais. Nota-se quea experiência da América Latina foi extremamente diferente no que diz respeito ao modoe ritmo de inserção na globalização neoliberal. Desde o caso do Chile e as demais ditadu-ras do Cone Sul, passando pela integração do México, cuja particularidade está na sua si-tuação fronteiriça com os Estados Unidos, os radicalismos dos países do Pacto Andino eas saídas divergentes da América Central, existem diferenças, dependências e experiênciasmuito heterogêneas, tanto dentro de cada sub-região como entre elas. Por outro lado, nonovo milênio surgiram resistências nacionais à globalização neoliberal, assim como ino-vações significativas na administração progressista da crise urbana. Entretanto, não seconsolidou ainda um “projeto latino-americano” de integração econômica, e o futuro dascidades se debate entre correntes multiescalares complexas e indeterminadas.

A democracia formal continua sendo uma preocupação compreensível de muitos es-tudos urbano-regionais, em meio ao que aparenta ser uma organização territorial do Es-tado relativamente estável. Entretanto, a tese do “re-escalamento” consiste não somentena “re-calibração” das relações entre o Estado nacional e as instâncias locais, como esta“re-calibração” se relaciona com a reconfiguração das múltiplas escalas e formas de regu-lação nas condições da globalização neoliberal, fenômeno que se verifica independente deo arcabouço político-administrativo nacional ter que passar por reformas territoriais. Istosignifica a oportunidade de abordar em um novo contexto também os temas da descen-tralização e participação cidadã, assim como as crescentes preocupações com a desigual-dade socioespacial e a fragmentação urbana.

Finalmente, embora seja certo que a globalização impõe uma agenda de competiti-vidade única em seu caráter estrutural, também obriga que cada cidade elabore sua estra-tégia própria de articulação com os circuitos globais e administre sua crise interna parti-cular. No caso da América Latina, a ausência de uma escala continental intitucionalizada,comparável com a União Européia ou o NAFTA, por exemplo, acentua o papel que devemassumir as administrações urbanas. Entretanto, isto não quer dizer que estas atuem semrestrições nem condicionamentos. Os governos nacionais continuam cumprindo um pa-pel fundamental de intermediação entre a escala urbana e os mercados internacionais, osorganismos financeiros da globalização e as agências multilaterais de desenvolvimento.Por outro lado, as tradicionais políticas regionais e as trajetórias urbanas também condi-cionam a capacidade de atuação das cidades, e disso decorre a importância de um novotipo de líder político urbano, capaz de manejar a complexidade destas múltiplas intersec-ções da globalização que se produzem na escala urbana. A investigação comparativa seriaum caminho viável para explorar este fenômeno em profundidade.

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Peter Charles Brand éprofessor da Escola de Pla-nejamento Urbano-Regional,Faculdade de Arquitetura,Universidade Nacional daColômbia (Medellín). E-mail:[email protected]

Artigo recebido em outubrode 2008 e aprovado parapublicação em janeiro de2009.

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A B S T R A C T An integral part of the globalization process has been the resurgence ofthe city-region as a key geographical unit for economic development, with the consequent birthof a new period of urban transformation. The reorganization of the global economy and theglobal redistribution of industry required the restructuring of urban economies, infrastructuresand images, as well as new forms of urban governance. This process, which began in theUnited States and Western Europe in the early 80s, took a decade or so to have a significanteffect on Latin America cities. While urban policy has since consolidated considerably in thissense in Latin America, academic research and theoretical reflection has somewhat laggedbehind, frequently circumscribed by analytic and interpretative frameworks imported fromoutside the Latin American context, limited to operative aspects of ‘urban competitiveness’ ordominated by regional concerns over local democracy. This paper examines the Latin Americancity in the light of the theoretical debate on the reconfiguration of scalar hierarchies andinterrelations produced by globalization. It then goes on to review the recent experience of someColombian cities, with special reference to the themes of state reorganization, planning policy,urban governance and spatial restructuring. The paper concludes with some suggestionsconcerning a research agenda.

K E Y W O R D S Globalization; geographic re-scaling; neoliberalism; urban develop-ment; Latin America.

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PLANEJAMENTODO ECONOMICISMO MODERNO

À DIALÉTICA SOCIOESPACIAL

L U C A S L I N H A R E S

R E S U M O A teoria e a práxis do planejamento, nas sociedades capitalistas moder-nas, refletem a consolidação de um modelo de racionalidade fundado numa visão mecanicis-ta dos processos sociais. A matriz positivista da ciência – que busca enunciar (e predizer) os fe-nômenos sociais por meio de leis universais – alcançou posição hegemônica e assentou as basesdo planejamento moderno. No campo da Economia Política, dominada pela perspectiva me-canicista embutida na corrente neoclássica, a busca da construção de esquemas teóricos gene-ralistas confere ao espaço, enquanto categoria analítica, um papel secundário. O presente ar-tigo propõe inicialmente uma discussão epistemológica, buscando avaliar criticamente osignificado da incorporação de um paradigma economicista e mecanicista por parte da teoriado planejamento. Entrecortando a discussão epistemológica, procuramos, amparados na pers-pectiva teórica neomarxista, reafirmar o papel do espaço como categoria elementar à compre-ensão dialética da dinâmica capitalista, sem a qual uma teoria do planejamento incorreria emimportante lacuna. O reconhecimento de que as contradições do modo de produção devem serdesvendadas pela investigação do espaço socialmente engendrado é capaz de nos conduzir auma teoria social mais robusta no balizamento do planejamento.

P A L A V R A S - C H A V E Planejamento; dialética socioespacial; modernidade;espaço social.

INTRODUÇÃO

O planejamento da coisa pública (res publica), envolvendo as instâncias social, eco-nômica e espacial, é objeto de atenções e intenções desde a antigüidade. Pensadores doquilate de Platão e Aristóteles tinham na política o arcabouço teórico-prático que funda-menta a atuação do Estado enquanto organismo de governo. Nessa concepção, o princi-pal desígnio do Estado é encontrar a forma de vida ideal, que conduza os cidadãos à vir-tude e ao seu objetivo supremo: a felicidade. A política, na definição aristotélica, é aciência da felicidade humana.

Ademais, o corpus teórico-prático aristotélico considerava a cidade (polis) como o ob-jeto por excelência da política, donde decorre que o meio concebido para o alcance da fe-licidade passaria necessariamente pela organização da polis, o espaço dos cidadãos. Obser-vamos, pois, que Aristóteles revelava já naqueles tempos a percepção de que a felicidadeda coletividade humana é condicionada à edificação de formas socioespaciais adequadas;formas essas que deveriam ser fomentadas e asseguradas pelo Estado. Assim, identifica-mos na obra do filósofo estagirita incursões pioneiras no campo do planejamento, aindaque sem o caráter que a modernidade positivista conferiu à matéria séculos mais tarde.Uma vez que se apresentavam esquemas teóricos que requeriam para si o status científico,e que visavam ao balizamento de atuações no campo da praxis, começava a ser sedimenta-da a idéia do planejamento socioespacial, que, sob o epíteto genérico de política, versava

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sobre os destinos da polis e, por conseguinte, sobre os destinos da reprodução social e ma-terial da humanidade, envolvendo uma dimensão espacial inescapável.

Não obstante, a modernidade interpôs ao germe aristotélico forças contrárias de re-ação, tanto no plano epistemológico quanto no plano político. Tais forças significaram atomada das ciências sociais pelo positivismo, que trazia embutida a primazia do indiví-duo em detrimento da coletividade e a emergência do liberalismo como doutrina socialque garantiria aquela primazia.

No campo da economia política, embora a penetração do paradigma positivista te-nha se dado retardatariamente, verificamos a consolidação hegemônica de um modelo deracionalidade fundado numa visão mecanicista da sociedade, como se esta obedecesse aosmesmos ditames das ciências naturais. É justamente a essa “física social” que vai sucum-bir o planejamento nas sociedades capitalistas da modernidade.

Em última instância, no esquema teórico mecanicista clássico, a racionalidade do(s)mercado(s) era imposta como virtuosa na consecução dos objetivos sociais, o que tinhacomo contrapartida, no plano político, a legitimação da ordem liberal-individualista. Asuposta existência de indivíduos racionais maximizadores garantiria uma tendência ine-xorável ao “ótimo social”, donde deriva que as ingerências de instrumentos extra-merca-do significariam um obstáculo à “harmonia natural dos interesses”.

Diante desse quadro, em que a economia política – dominada pela perspectiva da fí-sica social embutida na matriz neoclássica – buscava a construção de esquemas teóricosgeneralistas, o espaço enquanto categoria analítica foi relegado a segundo plano, ao mes-mo tempo em que o planejamento reduzia seu escopo ao mínimo, uma vez que, nestemundo ideal, sua presença era praticamente dispensável.

É sabido que a extensão do capitalismo urbano-industrial como modo de produçãoe reprodução social às mais diversificadas partes do mundo pauta-se por heterogeneida-des. A dinâmica do capital no espaço é marcada por uma dualidade centro-periferia, queconcentra oportunidades de desenvolvimento em alguns pontos, mantendo outros à mar-gem das benesses do sistema.

Considerando as partes do mundo em que as contradições do capitalismo impri-mem uma realidade especialmente adversa, pautada por graves desequilíbrios sociais, eco-nômicos e espaciais, como é o caso do Brasil, cumpre investigar em que medida a matrizepistemológica que formou o alicerce do planejamento na modernidade, bem como seusdesdobramentos sobre os esquemas teóricos e práticos contemporâneos, oferecem subsí-dios para compreender e superar tais adversidades.

Buscamos, portanto, discutir a possibilidade teórica do planejamento e do desenvol-vimento. Para tanto, encetamos uma visão segundo a qual o planejamento contempla pe-lo menos três instâncias: economia, sociedade e espaço. As especificidades do modus ope-randi dessas três instâncias articuladas explicam a condição de (sub)desenvolvimento. Aanálise dialética das estruturas sociais, econômicas e espaciais historicamente engendradasfornece elementos para a compreensão da realidade social periférica, constituindo umponto de partida para pensar os mecanismos de sua superação. Uma análise dessa nature-za exige uma apreciação crítica das teorias e políticas do desenvolvimento hegemônicas,afeitas às teleologias generalistas.

É nesse substrato teórico-político, sucintamente descrito acima, que o presente tex-to se planta. Inicialmente, realizamos uma discussão de cunho epistemológico, ou seja,teorizamos sobre a própria ciência, buscando perscrutar as matrizes científicas que infor-maram o planejamento na modernidade. Nessa ambiência discursiva, discorremos acerca

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dos impactos da penetração do positivismo nas ciências sociais, e particularmente na eco-nomia, sobre a teoria do planejamento. A incorporação de um paradigma economicista emecanicista pelo planejamento significou, contraditoriamente, seu próprio fenecimento,uma vez que tal paradigma veio a legitimar o liberalismo.

Entrecortando a discussão epistemológica, procuramos reafirmar o papel do espaçocomo categoria elementar à compreensão da dinâmica capitalista, sem a qual uma teoriado planejamento incorreria em importante lacuna. Com esse propósito, absorvemos dosteóricos neomarxistas elementos para trazer o espaço ao primeiro plano da compreensãodialética da realidade social. A configuração econômico-social é, por princípio, um corposistêmico espacialmente referenciado. Mais do que a “cartografia cartesiana da ciência es-pacial”, que não permite ir além da superficialidade concreta do espaço, é preciso apro-fundar a substância teórica, reconhecendo a relação dialética entre a configuração espaciale os processos sociais e econômicos; nesse sentido ampliando a discussão sobre plane-jamento em torno da idéia mais ampla de uma “economia política da produção social doespaço”, adutora da dialética socioespacial. Sob essa perspectiva, herdada de Henri Lefebvre, o espaço torna-se a categoria privilegiada para entender a realidade social. Namedida em que o espaço é concebido como instância realizadora do capital, uma vez queeste conforma aquele à lógica de reprodução do sistema, começam a ser reveladas as rela-ções sociais dialeticamente embutidas na configuração espacial.

A EPISTEMOLOGIA DO PLANEJAMENTO NA MODERNIDADE

O embrião das atividades de planejamento sócio-político, econômico e espacial po-de ser identificado, a exemplo de boa parte do conhecimento em ciências sociais, na Gré-cia Antiga. Simultaneamente aos pródromos de tal exercício político, nasceu o embate deidéias acerca de qual seria a melhor sistemática para tratar das questões de interesse geral,do governo da res publica.

A Academia platônica era partidária da investigação científica de índole matemáticacomo o pavimento mais sólido para a ação política. A atividade humana, sob essa pers-pectiva, “requeria uma ciência (episteme) dos fundamentos da realidade na qual aquelaação está inserida”.1 Destarte, o ideário platônico requeria um arcabouço referencial comstatus científico, construído pela busca de verdades essenciais sobre o universo.

Aristóteles de Estagira, célebre filósofo que ainda hoje calça o alicerce do ethos edo logos ocidentais, formou-se na Academia platônica, incrementando-a com seu espíritoinvestigativo de observação e uma perspectiva um tanto naturalista. Em sua obra deno-minada Política, Aristóteles argumenta que o Estado deve se constituir como um organis-mo moral, procurador da virtude de seus concidadãos. Nesse sentido, a política é a dou-trina moral social, coletiva, sobreposta à ética individual e aos interesses particulares. Se acoletividade é superior ao indivíduo, por um artifício lógico que o próprio Aristóteles de-senvolveu, o Estado, mandatário da coletividade, tem ascendência sobre qualquer cidadãoindividualmente. Sob esse prisma, o desígnio primeiro da atividade política seria elucidara melhor forma de vida que conduza à felicidade, para ulteriormente engendrar a formade governo e as instituições sociais garantidoras daquela forma de vida à coletividade. Es-ta última tarefa diz respeito ao estudo da constituição da cidade, donde podemos identi-ficar no corpus aristotélico uma das primeiras incursões sistematizadas no campo do pla-

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1 Aristóteles – Vida e Obra.São Paulo: Nova Cultural,2000.

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nejamento que, uma vez político, versa sobre os domínios da polis, revelando-se, por con-seguinte, indissociável e eminentemente espacial.

A cidade, assim como a práxis política, não escapam ao naturalismo aristotélico; am-bas seriam decorrências naturais da condição humana enquanto “animal social”. Alémdisso, subjacente a todo esse organismo considerado natural, desvela-se o aspecto coleti-vista, a ser comungado pelos cidadãos. Nos dizeres do filósofo, “na ordem natural a cida-de tem precedência sobre a família e sobre cada um de nós individualmente, pois o tododeve necessariamente ter precedência sobre as partes” (Aristóteles, 1997, p.15).

Logo nos primeiros excertos de Política, Aristóteles se propõe a decompor essa reali-dade totalizante que é a cidade, com vistas a deslindar analiticamente seus elementosconstituintes fundamentais, o que permitiria compreender os meandros da comunidadepolítica. A cidade é, assim, pioneiramente vista e conceituada como organismo-síntese dosistema sócio-político. Lemos no capítulo 1 do livro primeiro:

Vemos que toda cidade é uma espécie de comunidade, e toda comunidade se forma com vistas aalgum bem, pois todas as ações de todos os homens são praticadas com vistas ao que lhes parece umbem; se todas as comunidades visam a algum bem, é evidente que a mais importante de todas elas,e que inclui todas as outras, tem mais que todas esse objetivo e visa ao mais importante de todosos bens; ela se chama cidade e é a comunidade política (...) Da mesma forma que em outras ma-térias é necessário decompor o conjunto até chegar a seus elementos mais simples, com a cidadetambém, examinando os elementos dos quais ela se compõe, discerniremos melhor, em relação aestas diferentes espécies de mando, qual é a distinção entre elas, e saberemos se é possível chegar auma conclusão em bases científicas a propósito de cada afirmação feita pouco antes. (Aristóteles,1997, p.13)

Infere-se assim que Aristóteles busca aplicar seu método lógico-analítico ao exame doselementos constituintes da cidade, de sua realidade social, econômica, espacial. Nesses ter-mos, o que o filósofo estagirita faz não é outra coisa senão planejamento. Mais do que is-so, faz planejamento de caráter espacial, urbano, ao aduzir sobre a disposição ideal de to-do o organismo social assentado na cidade, reconhecendo que os processos sociais estãoincrustados no plano espacial, e o espaço da cidade exerce influência sobre a conformaçãosocial. Assim, Aristóteles identifica a cidade com a comunidade política e ainda vai além,ao conferir às suas análises e propostas um caráter científico, reclamando para si a edifica-ção de um arcabouço teórico que versa sobre a complexa célula espacial mestra da organi-zação social, qual seja, a cidade. Suas proposições trazem, portanto, o reconhecimento deque o (proto)planejamento envolve ciência e ação política, teoria e prática, prenunciandoum porvir sobre o caráter que a matéria virá a assumir nos ulteriores tempos hodiernos.2

Essa viagem no tempo e no espaço rumo à Grécia antiga tem tão somente o propó-sito prosaico de revelar a presença importante que a verve do planejamento teve – aindaque sem essa alcunha e sem o sentido que a ciência moderna lhe conferiu séculos maistarde – na organização socioespacial das populações humanas desde a antigüidade. A po-lítica, segundo Aristóteles, pertence ao grupo da filosofia prática, que busca o conheci-mento como um meio para a ação, o que vai ao encontro da concepção moderna de pla-nejamento. A cidade-estado deveria, assim, constituir um aparato institucional cujaspráticas ajam na condução da comunidade de cidadãos ao objetivo máximo e sentido úl-timo da existência, isto é, à felicidade. O organismo político tem como incumbência pla-nejar a melhor conformação social que permita alcançar esse alvo em sua plenitude.

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2 Aristóteles atribui a Hipó-damo de Mileto a invençãoda arte de planejar cidadese tece muitas considera-ções também acerca dosescritos pioneiros de Platãosobre a matéria, contidosprincipalmente em Leis eRepública. No entanto, Aris-tóteles desfere muitas críti-cas contra as proposiçõesdos dois pensadores, apon-ta suas muitas lacunas, ereivindica para si a constitui-ção mais bem estruturadaacerca da cidade, em quecontempla com pormenoresos múltiplos aspectos da vi-da social, tais como asquestões atinentes aos âm-bitos jurídico, demográfico,econômico e político, alémde discorrer sobre a loca-lização e o traçado urba-nístico ideais para a cidade,segundo critérios geomorfo-lógicos e climáticos e tam-bém sob o ponto de vista daestratégia militar. No capítu-lo 4 do livro sétimo de Políti-ca, Aristóteles propugna afavor do equilíbrio na consti-tuição demográfico-territori-al da cidade. Esta deveriaser suficientemente extensae populosa para garantir aeficiência e a auto-suficiên-cia econômicas, sem rom-per o limite que permite ade-quada coesão social egestão política: “(...) deve-seentão considerar mais per-feita e mais bela a cidade naqual a magnitude é combina-da com boa ordem” (Aristó-teles, 1997, p.230).

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No entanto, os meios para atingir os fins da comunidade política são raramente con-sensuais, o que origina embates num campo de muitas controvérsias. Não obstante o re-ferido planejamento, identificado sinonimicamente com a teoria e a práxis políticas, te-nha sido alçado ao status científico, requerendo um caráter de neutralidade e unicidade,os valores morais enraizados e as ideologias sempre teimaram em se fazer presentes, pro-jetando distintas visões sobre o mundo, refletidas nas diversas correntes de pensamento,proponentes dos mais sortidos diagnósticos acerca da realidade, construídos com base emdiversificados métodos, advogando por distintos meios de se alcançar os fins, suscitandomuitas controvérsias entre as partes envolvidas no confronto de idéias. E assim foi desdeaqueles tempos até os atuais.

Realizando um largo salto temporal, trespassando séculos desde o berço helênico naIdade Antiga até a Idade Moderna, podemos respirar por alguns instantes a atmosfera dosséculos das luzes,3 época também marcante e definidora do caráter assumido pela ativida-de intelectual e pela prática política até hoje vigentes, “fermento de uma transformaçãotécnica e social sem precedentes na história da humanidade. Uma fase de transição, pois,que deixava perplexos os espíritos mais atentos e os fazia refletir sobre os fundamentos dasociedade em que viviam e sobre os impactos das vibrações a que eles iam ser sujeitos porvia da ordem científica emergente” (Sousa Santos, 2005, p.17). No campo do intelecto edo fazer científico, afirmava-se a primazia da razão sobre ditames míticos ou religiosos.No campo da política, as práticas influentes sobre a constituição social deveriam obede-cer aos diagnósticos realizados pela intelligentsia, em geral serviente ao aparato estatal.

O modelo de racionalidade inerente à ciência moderna consolidada no século XVI-

II, com destacado desenvolvimento das ciências naturais, somente no século XIX4 atingiucabalmente as ciências sociais – que então sedimentaram alguns princípios epistemológi-cos e regras metodológicas que caracterizariam as formas de conhecimento social ditas ra-cionais, distinguindo-as do saber medieval –, embora guardasse similaridades com a con-cepção de ciência fundada no corpus aristotélico, ao qual nos referimos.

A matemática configura-se como o instrumento de análise essencial da ciência mo-derna, sendo também o próprio modelo ou linguagem de representação dos fenômenosestudados. Uma vez que o conhecer assume como pressuposto o quantificar, o rigor cien-tífico passa a ser depreendido da precisão das medições. “As qualidades intrínsecas do ob-jeto são, por assim dizer, desqualificadas, e em seu lugar passam a imperar as quantidadesem que eventualmente podem se traduzir. O que não é quantificável é cientificamente ir-relevante” (Sousa Santos, 2005, p.28).

O objetivo da ciência moderna pauta-se pelo estabelecimento de relações causais en-tre fenômenos, com vistas à proposição de leis, pretensamente universais, capazes de des-crever regularidades nos fatos naturais e sociais. Nesse contexto, os fatos sociais são tidoscomo naturais; a ergodicidade própria dos fenômenos físicos é transposta aos fenômenossociais, fundando uma concepção mecanicista da sociedade. Consubstancia-se, assim, aincorporação da perspectiva positivista às ciências sociais, dando origem a uma “física so-cial” cujo pressuposto básico assevera que as ciências naturais representam a concretiza-ção de um modelo de conhecimento universalmente válido.

Todo esse pano de fundo compõe também o cenário em que atuam os teóricos doplanejamento. Ao alvorecer do século XIX, quando a ciência social se deixou definitiva-mente embeber pela lógica própria do cientificismo mecanicista moderno, emergia umavisão segundo a qual os meios para o alcance dos objetivos gerais da sociedade deveriamser atribuídos a especialistas, dotados da racionalidade científica. Os governantes, investi-

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3 A abrangência temporaldo Iluminismo aqui conside-rada é compartilhada comaquela definida por SousaSantos (2005), qual seja, operíodo compreendido entremeados do século XVII, nas-cedouro da revolução da fí-sica newtoniana, e meadosdo século XIX, quando a ra-cionalidade iluminista atingeas Ciências Sociais, sendo aeconomia uma das discipli-nas retardatárias nesse pro-cesso.

4 O atraso e a dificuldadedas Ciências Sociais em in-corporar tal racionalidade,segundo Kuhn (1962), deve-se ao seu caráter “pré-científico” e à conseqüenteausência de consenso para-digmático.

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dos de poderes políticos, representantes legítimos da população, “deveriam se ocupar dosfins gerais da política, deixando a escolha dos meios apropriados a cargo de especialistastreinados”5 (Friedmann, 1987, p.4). Sob esses termos, que pavimentam as bases do pla-nejamento moderno, os caminhos a serem seguidos com vistas ao suprimento de deman-das da coletividade constituem uma questão essencialmente técnica, que deve obedecer acritérios de eficiência. Assim, aqueles desprovidos da racionalidade científica modernanão estariam aptos a opinar sobre as questões de interesse geral que visem promover oprogresso social.

Mentes comuns, não versadas nas sutilezas do método científico, não estavam à altura da racio-nalidade daqueles que sabem como fazer julgamentos sobre eficiência na relação entre meios e fins.Parlamentos podiam conversar, mas o real negócio do Estado seria conduzido por pessoas dotadasde espírito público e visão de longo alcance, que receberam o treinamento adequado. Associada aotalento empresarial e às finanças, a miríade de aplicações da ciência garantiria a marcha firmerumo ao progresso social.6 (Friedmann, 1987, p.5)

Planejar, enfim, assumia peremptoriamente o caráter de uma empreitada científicae de viés economicista. No tocante aos aspectos econômicos do planejamento – campoprimaz da ação política em sociedades capitalistas modernas – , as regras hegemônicaspassavam a ser ditadas por uma vertente liberal que retomava os princípios subjacentes àsteorias clássicas de autores como Adam Smith e David Ricardo, recheando-os com a ra-cionalidade positivista em ascensão nas ciências sociais durante o século XIX. O conceitoeconômico de eficiência seria o balizador das decisões a serem tomadas pelas instâncias deplanejamento.

Essa toada liberal foi a tônica vigente na transição do século XIX ao século XX,7 queclaramente se refletia e se sustentava no ideário do planejamento, embotado pela raciona-lidade positivista que edificava “um conhecimento causal que aspira à formulação de leis”(Sousa Santos, 2005, p.29). A identificação da causa formal de um fenômeno social per-mitiria a realização de predições, uma vez que a ergodicidade, fundada na idéia de ordeme estabilidade do mundo, configurava o pressuposto metateórico que regia o fazer cientí-fico. Tais predições seriam, em última instância, o instrumento balizador do planejamen-to, que permitiria manipular e transformar a sociedade, de forma similar à que os cientis-tas naturais se valem para dominar a natureza. “Tal como foi possível descobrir as leis danatureza, seria igualmente possível descobrir as leis da sociedade” (Sousa Santos, 2005,p.32). No tocante aos aspectos da reprodução material da sociedade, a lei social basilarque então presidia os fenômenos econômicos era o mecanismo smithiano de interação en-tre oferta e demanda, acrescido da tendência ao equilíbrio geral aventado por Leon Wal-ras (1996). A racionalidade de mercado, que supostamente norteia o comportamento dosagentes econômicos, asseguraria uma tendência estrutural e inexorável do sistema econô-mico-social ao equilíbrio.

A divisão do trabalho social, que Smith (1996) teoriza como sendo a fonte primazdo aprimoramento das forças produtivas e motor do crescimento econômico e do pro-gresso social, se daria conforme o seguinte trâmite: “o Estado planejaria, a economiaproduziria e a população de trabalhadores se concentraria em suas agendas privadas: for-mar famílias, enriquecer-se e consumir o que sua riqueza puder comprar”8 (Friedmann,1987, p.8). Esta é a ordem de coisas que rege a sociedade liberal, amparada em um “guiasocial” que mescla o naturalismo e o individualismo como princípios filosóficos da ciên-

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5 “(…) should concernthemselves primarily withgeneral goals of policy, lea-ving the choice of the appro-priate means to speciallytrained experts”.

6 “Ordinary minds, untrain-ed in the subtleties of thescientific method, were nomatch for the rationality ofthose who knew how tomake judgements aboutefficiency in relating meansto ends. Parliaments couldtalk, but the real business ofthe state would be conduct-ed by men of public spiritand far reaching vision whohad received the propereducation. Tied to entre-preneurial talent and financecapital, the myriad appli-cations of science wouldensure the steady forwardmarch of social progress.”

7 Evidente que em uma par-te considerável do mundo,principalmente nos paísesalinhados ao dito socialismoreal, já no início do séculoXX adotavam-se outros cri-térios para o planejamentocentralizado de seu desen-volvimento econômico. Noentanto, uma análise das es-pecificidades do bloco depaíses socialistas foge aoescopo deste trabalho.

8 “(…) the state would plan,the economy would produ-ce, and working peoplewould concentrate on theirprivate agendas: raising fa-milies, enriching themsel-ves, and consuming whate-ver came tumbling out fromthe cornucopia”.

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cia que fundamenta o planejamento de caráter positivista vigente no início do século XX,e que retorna fortalecido em fins do mesmo século, após um interregno mais intervencio-nista e socialmente agitado em seus meados.

A idéia de que o mercado, formado por agentes econômicos auto-interessados,deixados à sua própria sorte, conduz a um estado de equilíbrio eficiente e a um resul-tado social agregado positivo, é dificilmente corroborada pela realidade. No entanto, aassunção dessa racionalidade de mercado impera sobre as teorias economicistas de pla-nejamento. Paradoxalmente, a exacerbação dessa perspectiva findou por fazer do plane-jamento, no ocaso do século XX, uma prática dispensável, uma vez que o comporta-mento auto-interessado dos indivíduos conduziria a um resultado social desejado,independentemente de esforços conscientes de planejamento ou coordenação entre osagentes econômicos.

Como já mencionado, é forçoso reconhecer que o planejamento guarda uma relaçãoorgânica com os requisitos da prática política, procura voltar o conhecimento para a ação,seja no sentido de transformar, seja no sentido de controlar a sociedade e as relações quelhe subjazem. Entremeadas nesse palco assaz conflituoso, atuam algumas perspectivas teó-rico-metodológicas e/ou práticas que se abrigaram em algumas importantes tradições depensamento sobre o planejamento, dentre as quais podem-se citar, seguindo a tipologiaaduzida por Friedmann (1987), a “reforma social” (social reform) e a “análise de políticas”(policy analysis), que se impuseram hegemonicamente no capitalismo urbano-industrialmoderno, quer sob a forma de um arcabouço teórico-conceitual de natureza científica,quer sob a forma de proposições políticas de controle social. A tradição dominante, queconcebia o planejamento como reforma social, referenciava-se numa matriz de pensamen-to positivista comteana (e saint-simoniana),9 segundo a qual a “ciência da sociedade” gui-aria o mundo por uma trajetória de progresso social. O planejamento serviria, pois, a umprocesso de guia ou direcionamento social (societal guidance)10 rumo ao progresso; esteconcebido sob um viés tecnicista.

REFORMA SOCIAL E ANÁLISE DE POLÍTICAS:11 DUAS TRADIÇÕES E UMA SÓ DOUTRINA

A lógica que permeia o modus operandi do capitalismo industrial, assim como a teo-ria econômica (neo)clássica que procura explicar tal sistema (e em certa medida o legi-timar), estão assentadas na assunção de busca da eficiência econômica stricto sensu, adu-tora de uma racionalidade que pressupõe o compromisso individual com umcomportamento auto-interessado, que se desdobraria em um resultado social agregadocompatível com os interesses da coletividade. Evidencia-se, assim, uma perspectiva argu-mentativa ajustada à doutrina smithiana da harmonia natural de interesses, cujo mote clás-sico traz a idéia de que “vícios privados resultam em benefícios públicos” (private vices yield public benefit). Nesses termos, identificamos na teoria econômica clássica de Smitha perspectiva naturalista cara ao antigo discurso aristotélico, porém desprovida do aspec-to coletivista próprio deste. O aspecto coletivista perde sua primazia para o individualis-mo associado à racionalidade de mercado (market rationality).

Ao contrário da visão aristotélica supra, a doutrina individualista propugna a ascen-dência lógica do indivíduo sobre a sociedade, donde decorre que a razão deva ser exerci-da em nome do indivíduo, sendo que a satisfação das necessidades materiais individuaispassa a ser a principal razão da vida das pessoas em grupos sociais. Nesses termos, a vidaem grupo é válida enquanto potencializadora da divisão social do trabalho, que propicia

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9 Claude Henri de Rouvroy,o Conde de Saint-Simon, éidentificado com o socialis-mo utópico francês. Autorde obras importantes e de-fensor da primazia de umaracionalidade tecnicista aser imposta sobre a socie-dade, prognosticou a emer-gência de uma sociedadeindustrial na Europa e contri-buiu para a constituição detodo um ideal da modernida-de, além de ser um precur-sor da filosofia positivista.

10 Cumpre considerar quea carga semântica inerenteaos termos “guia” e “direcio-namento”, derivados do ter-mo em inglês “guidance”,assume aqui um sentido deaconselhamento, além demanipulação e/ou controle.

11 O leitor perceberá quetratamos as correntes refor-ma social e análise de políti-cas de forma quase indistin-ta. Isto porque concebemosa análise de políticas comoum desdobramento diretoda reforma social, em razãoda similitude das premissase objetivos de ambas as ver-tentes, assim como a afini-dade de sua filiação filosófi-ca e da linguagem utilizadaem seus discursos científi-cos. Devemos, no entanto,reconhecer que há desse-melhanças, sendo que osautores identificados comcada uma das tradições nãoformam um bloco monolíti-co. Consideramos, todavia,que esse tratamento genéri-co não compromete os ar-gumentos.

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o desenvolvimento das forças produtivas e permite maior oferta de bens e serviços queatenderão às necessidades do bem-estar de cada indivíduo.

No entanto, as forças cegas embutidas na racionalidade de mercado historicamentegeraram muitos resultados sociais nefastos, tais como desemprego, pobreza urbana e altosgraus de desigualdade de riqueza. Revelava-se necessário, pois, contrapor aos mecanismosde mercado uma racionalidade social, consoante à qual a razão seria exercida com vistasa dirimir os resultados indesejáveis oriundos do comportamento auto-interessado deindivíduos e corporações, ou seja, da racionalidade de mercado. Isto porque o modo deprodução capitalista é um sistema contraditório, em que “a produção e a sobrevivênciadependem em grande medida da racionalidade de mercado, mas a busca irrestrita do lu-cro destrói os laços da reciprocidade humana que estão na base de toda a vida social” 12

(Friedmann, 1987, p.29).Nesse sentido, o Estado assume um papel de mediador de conflitos entre os interes-

ses individuais e sociais. Enquanto expressão da totalidade da comunidade política, o Es-tado desempenha um papel ambivalente, que deve a um só tempo encorajar e potenciali-zar os interesses de expansão do capital, e evitar que uma eventual exacerbação dessesinteresses provoque efeitos nocivos sobre o tecido social. A administração desses conflitospassa a ser a atribuição fundamental que cabe ao planejamento em sociedades de mercado.

Para se concretizar enquanto agente de reforma social, o planejamento precisou seamparar em uma noção de racionalidade social que pudesse nortear o processo de “so-cietal guidance”. Com vistas a catalisar uma reforma social, o planejador deveria munir-se de uma capacidade de predizer o futuro com razoável grau de precisão, capacidade es-sa que é supostamente provida pelos modelos mecanicistas da “física social”. Para serefetivo, o planejamento deveria proceder a uma dinâmica de “societal guidance” que fi-zesse convergir as ações individuais conforme as leis sociais “naturais” (de mercado), si-multaneamente à adoção de medidas corretivas sobre as “falhas” de mercado. Este últi-mo procedimento é, no mais das vezes, a única ação afirmativa no processo de reversãodos efeitos nocivos da economia de livre mercado.

Nesse sentido, em uma sociedade de mercado, muitos dos “usos” a que se presta oplanejamento, embora levados a efeito em nome de uma racionalidade social, acabam porse identificar paradoxalmente com os princípios de mercado, na medida em que se enfei-xa a garantir a realização de lucros por parte de negócios privados individuais, fonte dasobrevivência da maior parte das pessoas inseridas emuma sociedade capitalista.

Dessa forma, encontram-se entre as atribuições do Estado-planejador as diretrizesgerais da economia, que incluem desde a provisão de serviços públicos – que muitas ve-zes significa parte dos custos de reprodução da força de trabalho – até investimentos eminfra-estrutura, passando por políticas macroeconômicas de incentivo ao crescimento econformação de um aparato jurídico-regulatório garantidor dos direitos de propriedade.Sob esse prisma, a ingerência do órgão planejador sobre algumas atividades, tais comoprovisão de serviços públicos de educação, saúde ou infra-estrutura urbana, embora apa-reça geralmente sob a alcunha de investimentos sociais – e portanto revestidos de uma ra-cionalidade social –, constitui, com efeito, o atendimento às necessidades de aceleraçãodo processo de rotação do capital. Embora não constituam setores diretamente produto-res de lucros, configuram meios de consumo coletivo e meios de circulação material queimpulsionam as engrenagens capitalistas, favorecendo indiretamente a reprodução do ca-pital. Assim, a organização social capitalista permite uma (con)fusão entre interesses in-dividuais e sociais.

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12 “(…) production and live-lihood depend largely onmarket rationality, but unres-trained profit making des-troys the bonds of human re-ciprocity that lie at thefoundation of all social life”.

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Evidente que a concepção de planejamento consubstanciada na reforma social, quetraz à tona a idéia de racionalidade social, guarda em si alguns propósitos de constrangera operação das forças de mercado. No entanto, seu regime fundamental de societal gui-dance visa essencialmente à manutenção da ordem social capitalista, donde a garantia dedireitos individuais ganha preeminência, ainda que esse discurso seja muitas vezes profe-rido em nome da coletividade.

Adutora de uma visão de planejamento fundada em uma razão técnica, a correnteda reforma social em larga medida incorporou aspectos defendidos pela corrente identi-ficada por Friedmann (1987) como “análise de políticas”. Esta última vertente, que podeser considerada o ressurgimento fortalecido da reforma social em meados do século XX,sob uma nova roupagem, propugna que as soluções para os objetos sociais do planejamen-to derivam de uma análise “científica” de dados. O tratamento dos dados coletados porinvestigadores sociais seriam porta-vozes da realidade empírica e forneceriam subsídiospara a elaboração de planos de intervenção no domínio público. A relação de complemen-taridade estabelecida entre reforma social e análise de políticas representa, pois, a síntesedo planejamento moderno em sociedades de mercado.

Segundo os argumentos incutidos nessa síntese, o mundo é passível de apreensão ob-jetiva a partir dos instrumentos da ciência positivista; e o objetivo do planejamento mo-derno consiste em tornar o conhecimento técnico e científico útil às ações de direciona-mento social. Assentado nas idéias comteanas e saint-simonianas segundo as quais ocorpo social é regido por leis mecânicas e orgânicas, o planejamento economicista moder-no argumenta que a sociedade está apta a administrar seu destino quando apresenta ha-bilidade para predizer resultados futuros de fenômenos ou ações presentes. August Com-te escreve em seu Plan of Scientific Works Necessary for the Reorganization of Society (Planode Trabalho Científico Necessário para a Reorganização da Sociedade):

Não pode pairar nenhuma dúvida de que o estudo da natureza realizado pelo homem deve for-necer a única base de sua ação sobre a natureza; e, portanto, somente conhecendo as leis que re-gem os fenômenos e, por conseguinte, estando apto a predizê-los, é que nós podemos, na vida efe-tiva, ajustá-los e modificá-los em nosso benefício (...) A relação entre ciência e prática pode serresumida em uma curta expressão: da ciência deriva a previsão; da previsão deriva a ação.13

(Comte, 1822 apud Lenzer, 1975, p.88)

Esta é a linha mestra pela qual se guiam a ciência e o planejamento na modernida-de; aquela estabelecendo relações causais imutáveis e unidirecionais entre fenômenos so-ciais, este levando a efeito ações de societal guidance. “É objeto da ciência estabelecer fa-tos e leis imutáveis. Ao planejador é deixada a tarefa de guiar o curso do progresso socialconforme tais leis”14 (Friedmann, 1987, p.71). O planejamento assentado no binômio“reforma social–análise de políticas” ambicionava moldar a sociedade a partir da obedi-ência às leis naturais. Assim como os corpos em queda livre se submetem à lei da gravi-dade, a sociedade sucumbe às leis sociais naturais e cientificamente enunciadas. O pla-nejador teria à sua disposição um sistema analítico que descreve a mecânica social,“baseado na conceitualização científica e na pesquisa empírica, através das quais poderiapredizer que tipo de instituições e processos a sociedade industrial emergente iria reque-rer”15 (Ionescu, 1976, p.7).

No processo de societal guidance, o papel do Estado é manter sob sua tutela o poderde orientação da sociedade, conduzindo-a conforme os ditames das leis sociais sacramen-

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13 “There can be no doubtthat man´s study of naturemust furnish the only basisof his actions upon nature;for it is only by knowing thelaws of phenomena and thusbeing able to foresee them,that we can, in active life,set them to modify one ano-ther to our advantage (...)The relation of science to artmay be summed up in a bri-ef expression: from sciencecomes prevision; from previ-sion comes action”.

14 “It is the business of sci-ence to establish facts andimmutable laws. For planneris left the task of guiding thecourse of social progress inaccordance with theselaws”.

15 “(…) based on scientificconceptualization and empi-rical research, and throughwhich he could predict whatkind of institutions and pro-cesses the emerging indus-trial society would require”.

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tadas pelo paradigma científico hegemônico. O planejamento é uma empreitada científi-ca, seguidor fiel do cânone positivista comteano:

A formulação de qualquer plano de organização social necessariamente envolve duas frentes detrabalho distintas, tanto no tocante aos seus objetos quanto no que tange aos esforços intelectuaisdemandados. Uma delas, de natureza teórica ou espiritual, visa desenvolver a concepção inicialdo plano – isto é, o novo princípio destinado a coordenar as relações sociais – e formar o sistemade idéias gerais adequadas para guiar a sociedade. A outra, de ordem prática ou temporal, deci-de sobre a delegação de autoridade e sobre o conjunto de instituições melhor adaptado ao espíri-to do sistema previamente determinado pelos trabalhos intelectuais.16 (Comte, 1822 apud Len-

zer, 1975, p.19)

A tradição da análise de políticas, aqui tratada como desdobramento direto da refor-ma social, em virtude de sua filiação aos mesmos paradigmas científicos e políticos, veioa acrescentar elementos ao corpo do planejamento, elementos esses que, fundidos aosprincípios social-reformistas, sintetizam a essência do planejamento na modernidade.Originalmente, os estudos da policy analysis se voltavam para as tomadas de decisões mi-croeconômicas de firmas e corporações, sendo suas construções teóricas posteriormentegeneralizadas. Esta abordagem tinha por objetivo identificar os melhores cursos de açãodentre algumas possibilidades e condições iniciais dadas. Para tanto, dever-se-ia empregara habilidade em realizar escolhas “racionais”, que lancem mão do maior número possívelde informações disponíveis e calcule de maneira eficiente os custos e benefícios de cadatrajetória possível. Os autores identificados com essa tradição se auto-proclamam tecno-cratas, típicos “engenheiros sociais” à la Saint-Simon ou à la Comte. Crêem-se capazes,através de modelos matemáticos e técnicas estatísticas, de identificar e calcular precisa-mente as melhores soluções para os dilemas sócio-econômicos.

A reforma social e a análise de políticas representam o triunfo da razão economicis-ta e caracterizam-se, ao fim e ao cabo, por um conservantismo em relação ao estado decoisas. A idéia que habita o seio dessa visão de mundo passa pela pretensão de extirpar doplanejamento todo o conteúdo ideológico ou passional, preservando tão somente a pure-za do teor científico, capaz de descrever as leis que regem a sociedade e assegurar seu fun-cionamento de maneira a mais desimpedida. Ao planejamento moderno, sob a batutadessa corrente de pensamento e ação, cabia promover a extensão das relações sociais deprodução capitalistas urbano-industriais, legitimando a racionalidade de mercado.

A confiança dos analistas de políticas no ferramental da economia neoclássica implica que os va-lores e as premissas dessa corrente estão embutidas em seus trabalhos; dentre tais valores destacam-se o individualismo, a supremacia do mercado na alocação de recursos, e o conservadorismo ine-rente ao paradigma do equilíbrio. Dado que os resultados de mercado são considerados “racionais”pelos atores envolvidos, discrepâncias em relação a tais resultados requerem justificativas e só sãoadmitidas com relutância.17 (Friedmann, 1987, p.79)

Não é preciso mais do que uma olhadela ao redor e um bocado de senso comum pa-ra constatar que a empreitada do planejamento na modernidade, se tinha o propósito decolocar a ciência a serviço do bem público, não obteve êxito. Essa perspectiva do plane-jamento moderno em sociedades de mercado acabou por se identificar com uma lógicaconservadora de manutenção do status quo, revelando-se no máximo comprometida com

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16 “The formation of anyplan for social organizationnecessarily embraces twoseries of works as distinct intheir objects as in the intel-lectual efforts they demand.One, theoretical or spiritual,aims at developing the lea-ding conception of the plan– that is to say, the new prin-ciple destined to coordinatesocial relations – and at for-ming the system of generalideas, fitted to guide soci-ety. The other, practical ortemporal, decides upon thedistribution of authority andthe combination of adminis-tative institutions best adap-ted to the spirit of the sys-tem already determined bythe intellectual labors”.

17 “The reliance of policyanalysts on the tools of neo-classical economics impliesthat the value premises ofthat discipline are built intotheir work; chief among the-se values are individualism,the supremacy of the mar-ket in the allocation of re-sources, and the inherentconservantism of the equili-brium paradigm. Becausemarket outcomes are regar-ded as ‘rational’ for the ac-tors involved, deviationsfrom them are normallythought to require specialjustification and are admit-ted only reluctantly”.

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mudanças evolucionárias modestas próprias do capitalismo, negando a possibilidade detransformações estruturais que revertam o processo de exclusão social típicas do modo deprodução hegemônico. A reforma social e a análise de políticas devotam seus esforços aoaprimoramento do capitalismo, um sistema de produção e reprodução sociais que, na vi-são dessas correntes de pensamento, incorre em falhas mas é passível de aperfeiçoamen-tos; sendo considerado o modo de organização social mais avançado do qual a humani-dade pode dispor. Buscavam, destarte, instalar e manter a ordem social burguesa.Valendo-se do economicismo, que busca a descrição do organismo social por meio daconstrução de modelos expressos em termos universais – cujas hipóteses simplificadorasnegam eventuais particularidades históricas, institucionais ou estruturais, tratadas tão so-mente como “falhas” de mercado a serem corrigidas – , o planejamento moderno padecede uma incompletude no tocante a sua descrição de realidades específicas, seja pelo afã dese autoproclamar “científico” e explicar a sociedade por um discurso objetivo, seja comoarauto de uma ingerência mínima do Estado na mecânica social, contraditoriamente ex-tirpando do planejamento sua compleição enquanto meio concreto de ação transforma-dora no domínio público.

Do que vimos, temos em mãos um breve relato da forma assumida pelo planeja-mento na modernidade, umbilicalmente ligado às concepções da ciência positiva e da ra-zão tecnicista e economicista que povoa o imaginário do homem moderno. Reconhecen-do que o planejamento define-se pela relação complementar e dialética entre teoria eprática, conhecimento e ação, ciência e política; e considerando ainda o caráter natura-lista, mecanicista e positivista assumido pelo planejamento moderno como reflexo dosmatizes científicos, duas tarefas se interpõem aos propósitos do nosso trabalho: primei-ro, enfatizar uma visão espacial, partindo da concepção segundo a qual as sociedades sãoorganismos espacialmente referenciados, a um só tempo indagando e buscando respon-der qual o papel reservado ao espaço nas teorias do planejamento e do desenvolvimento.Segundo, sabendo que o planejamento é depositário de uma visão sobre o mundo, cum-pre retomar a crítica às perspectivas epistemológicas tipicamente modernas (e ainda acei-tas contemporaneamente), sugerindo passos na direção de uma agenda alternativa, queolhe o mundo não somente enquanto instrumento analítico para entender racionalmen-te a realidade social, mas também enquanto projeto teórico-político, capaz de engendraruma construção crítica e propositiva emancipatória. É sobre estas questões que nos de-bruçamos nas seções seguintes.

O PAPEL DO ESPAÇO NA TEORIA DO PLANEJAMENTO

Embora presente desde os primeiros excertos, o espaço não mereceu ainda neste tex-to o devido cuidado. Mencionamos en passant o fato de que o planejamento, já nos seusprolegômenos durante a Idade Antiga, conferia ao contexto espacial um tratamento pri-vilegiado no corpo das teorias e filosofias sociais. Isto porque os pensadores da antigüida-de tinham a cidade e sua complexidade como expressão máxima e genuína da comunida-de política, objeto da filosofia política e social. As teorias, os métodos e os instrumentosdo pensar e do agir sobre a sociedade estão intrínseca e dialeticamente correlacionados aoconhecimento e à atuação política sobre a configuração espacial. Assim, as cidades, as re-giões e as outras múltiplas escalas espaciais das quais a sociedade participa como tecido vi-

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tal, e nas quais os grupos humanos organizam sua reprodução social, são, por princípio,objeto do planejamento.

Dessa forma, o planejamento deve incutir como ponto de partida a noção de queseu objeto é um sistema de relações sociais espacialmente referenciado. A geografia da or-ganização social assume papel ativo na dinâmica dos processos sociais, porquanto devemfigurar como aspecto de suma relevância na construção do conhecimento que informa oplanejamento no domínio público (Friedmann & Weaver, 1979; Friedmann, 1987). Ul-trapassando a perspectiva vigente na modernidade, Soja (1993) preconiza por “espaciali-zar” criticamente a realidade social, deslindando-a de forma mais reveladora, erigindo umarcabouço mais abrangente e incisivo não apenas para a apreensão racional dos fenôme-nos socioespaciais, mas também para a fundação de práticas emancipatórias.

Não obstante, a tomada das ciências sociais pela perspectiva epistemológica do po-sitivismo teve como desdobramentos, na teoria econômica, as construções teóricas ne-oclássicas fundadas no individualismo metodológico e nas premissas de otimização eequilíbrio geral. No campo político, o mecanicismo desses modelos teóricos legitimouo liberalismo e mais recentemente sua “neo-roupagem”, que apostam nos mercados co-mo mecanismo coordenador da reprodução material das sociedades humanas; mecanis-mo esse que idealmente garantiria uma convergência inexorável dos padrões de vida eníveis de desenvolvimento interregionais, muitas vezes ignorando as “rugosidades” es-paciais que impõem atritos à disseminação da modernização tecnológica e do cresci-mento econômico pelos territórios em sua totalidade. O ideário hegemônico da moder-nidade, no desiderato de transitar de uma economia política para uma economia pura,reduzia ao mínimo qualquer intervencionismo deliberado de instituições extra-merca-do, ferindo de morte o planejamento e condenando as políticas de desenvolvimento re-gional ao fenecimento. ”Por consequência, qualquer idéia de desenvolvimento fora docapitalismo neoliberal é proibida, assim como também o é qualquer independência dateoria do desenvolvimento enquanto disciplina destoante do corpus neoclássico domi-nante”18 (Herrera, 2006, p.5). Adita-se a isso o fato de que tais construções teóricas ten-dem, via hipóteses simplificadoras que calçam sua argumentação, a homogeneizar con-textos, o que traz como corolário a secundarização ou mesmo exclusão do espaçoenquanto variável de análise. Ao adotar premissas de homogeneidade, a teoria econô-mica convencional acabou por conferir ao espaço um papel adiáforo, uma vez que su-postamente “há um modelo padrão de comportamento aplicável em todos os tempos elugares. (…) Profundamente matematizada, fortemente normativa e dependente deuma série de suposições irrealistas, a teoria do equilíbrio geral é a base de toda a micro-economia convencional”19 (Herrera, 2006, p.8). Em grande medida, essa perspectivaesvaziada do elemento espacial pode ser também explicada pelo fato de que seus formu-ladores, em geral cidadãos de países centrais, pensam uma realidade com grau relativa-mente baixo de heterogeneidade, mais próxima de uma configuração “clean space”. Es-sa concepção, segundo Soja (1993), mostra-se pouco atenta “à espacialidade formadorada vida social como padrão de discernimento crítico”; e a variável espaço comparece(quando comparece) travestida em custos de transporte de mercadorias a serem mini-mizados pelos agentes econômicos com vistas à localização ótima da firma ou à aloca-ção eficiente de recursos.

A reflexão geralmente situa os atores num espaço sem relevo nem densidade, onde os obstáculos sãoidentificáveis por um sistema de custos (...) Esta visão das coisas aparece em perfeita consonância

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18 “As a consequence, anyidea of development outsideof neoliberal capitalism isprohibited, as well as any in-dependency of developmenttheory as a discipline dis-tinct from the dominant neo-classical corpus”.

19 “(…) there is a standartmodel of behavior applica-ble in all times and places.(...) Heavily mathematical,strongly normative, and reli-ant upon a host of absurdlyunrealistic assumptions, ge-neral equilibrium theory isthe keystone of all standardmicroeconomics”.

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com a interpretação walrasiana da coordenação econômica do mercado, fundado sobre a média ea homogeneidade, na medida em que a introdução do espaço não faz mais do que completar aformação dos custos e, por conseguinte, por meio dos comportamentos de localização, o programaotimizador dos agentes. (Pecqueur e Zimmermann, 2005, p.77-8)

Na economia política, o exercício de imaginação geográfica, mesmo quando não eralimitado analiticamente, permanecia marginal no corpus teórico geral. A percepção teóri-ca implícita nos argumentos espaciais seminais, levados a efeitos por pensadores identifi-cados com a economia política, ou circunscreveu-se ao status categórico de um insight po-deroso porém pouco “desenvolvido” (formalizado), como à idéia de vantagens locacionais(pecuniárias e tecnológicas) aduzida por Alfred Marshall; ou estavam alçados ao status deconceito teórico sintetizador porém marginal no arcabouço dos economistas, donde oselementos espaciais sempre tiveram sua importância sistematicamente negligenciada.Neste último caso incluímos com destaque duas formulações: a idéia de renda fundiáriade J. H. Von Thünen, argumento-síntese da lógica locacional e indispensável ao entendi-mento da dinâmica urbano-regional; e a “Lei Espacial da Demanda” enfeixada por Au-gust Lösch, teoria espacial de caráter economicista, adutora da idéia de área de mercado.O que importa reter é que, no campo de uma economia que renegava gradativamente oadjetivo “política”, o espaço não era incorporado senão através da “força física ‘neutra’ dafricção de distância”, expressa de forma metafórica (ou, se quisermos, fetichizada e reifi-cada) em custos de localização e custos de transporte.

Alternativamente, algumas vertentes de teorias econômicas e sociais que têm o espa-ço como categoria privilegiada de análise reconhecem a complexidade da configuração es-pacial e sua relação dialética com os processos sociais, e recusam assim uma teleologia sim-plificada em suas formulações. Destarte, os autores identificados com essa perspectivarevelam-se ciosos por uma olhar crítico que engendre uma “economia política da produ-ção social do espaço”, e não somente uma descrição de processos econômico-espaciais pormeio de estruturas lógicas e unidirecionais de causa e efeito.

RUMO AO PLANEJAMENTO SOCIOESPACIAL CRÍTICO

Segundo Lefebvre (1991, 1999) e Soja (1993), as teorias sociais fundadas na racio-nalidade mecanicista típica da modernidade padecem de uma “ilusão de opacidade” notocante ao tratamento do espaço e acabam por obnubilar a imbricação dialética entre aespacialidade concreta e as relações sociais imersas nessa espacialidade. O espaço opaco éum lugar “sombrio e fechado”, que não se permite ser enxergado em todas as suas nuan-ces. É uma materialidade espacial reificada, vista pelo prisma dos universalismos abstra-tos característicos da ciência moderna – lente pela qual as teorias econômico-espaciais decunho neoclássico enxergam o mundo. Edward Soja adverte que essa lente, em vez decorrigir, clarificar e ampliar o campo de visão, induz “a uma miopia que enxerga apenasuma materialidade superficial, formas concretizadas que são passíveis de pouco mais doque a mensuração e a descrição fenomênica: fixas, mortas e não-dialéticas – a cartografiacartesiana da ciência espacial” (Soja, 1993, p.14). Edward Soja herda de Henri Lefebvrea sensibilidade de que, no capitalismo contemporâneo, o espaço é a categoria analítica pri-vilegiada para entender a realidade social. Pela dialética lefebvreana, sintetizada no con-ceito de “espaço social”, o espaço transfunde-se na própria realidade social. Simultanea-mente o espaço é um produto social e também tem vida própria, adquirindo, em uma

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visão global do sistema, o mesmo caráter de elementos como a mercadoria e o próprio ca-pital, vistos enquanto categorias que ocultam em si as relações sociais de exploração eapropriação do mais-valor que é a razão de ser do sistema:

O espaço (social) é um produto (social). Esta proposição pode parecer redundante, tautológica,e portanto óbvia. No entanto, há boas razões para examiná-la cuidadosamente e considerar su-as implicações e conseqüências (...) Muitas pessoas acharão difícil defender a idéia de que o es-paço assumiu, no presente modo de produção, em uma sociedade como a atual, uma espécie decondição própria, uma realidade claramente distinta, ainda que muito similar, àquela assu-mida, no mesmo processo global, pelas mercadorias, pelo dinheiro e pelo capital.20 (Lefebvre,

1991, p.26)

Fomos levados à conclusão de que todo espaço implica, contém e oculta relações sociais.21 (idem,

p.83)

“Localizar” o espaço no primeiro plano da investigação social torna-se então a tare-fa a que se propõe Henri Lefebvre, de forma a sistematizar um planejamento (ou proje-to)22 teórico e prático aplicável à configuração socioespacial do capitalismo contemporâ-neo, e que contenha um teor crítico e politicamente emancipatório.

Teóricos convencionais concebem o espaço tão somente como um receptáculo; se-guem uma linha que “afirma serem os processos sociais desenvolvidos no espaço, de for-ma que o espaço apenas os mantém ou suporta” (Gottdiener, 1993, p.125). Remandocontra essa corrente, Lefebvre (1991, p.11) chama para si a tarefa de desfazer a reificaçãoespacial em que incorrem esses teóricos: “Devo demonstrar o papel ativo do espaço, comoconhecimento e ação, no presente modo de produção”.23 Logo, o espaço traz a economia(modo de produção) e suas relações sociais subjacentes como elementos de fundamentalimportância para sua compreensão. A reprodução das relações sociais que sustêm o siste-ma capitalista é condicionada por efeitos da aglomeração urbana, donde constatamos quea evolução e perpetuação do sistema, mormente em seu estágio contemporâneo maisavançado, realiza-se através de formas espaciais, ou mais propriamente de um contexto so-cioespacial:

(...) o capitalismo como totalidade é um projeto histórico inacabado. Como modo de produção,mudou e alterou-se a fim de sobreviver. Lefebvre concebe a sobrevivência do capitalismo comouma conseqüência de sua capacidade de recriar todas as relações sociais necessárias para o modode produção numa base contínua. Isso foi conseguido, no decurso dos anos, pelo uso do espaço pe-lo capitalismo. (Gottdiener, 1993, p.147)

Foi em seu livro The Survival of Capitalism que Lefebvre (1976) enunciou essa quetalvez seja sua afirmação teórica mais vigorosa no que concerne à colocação do espaço co-mo elemento central na teoria social: foi por meio de um processo de espacialização, deprodução de um espaço conformado à sua lógica de reprodução, que o capitalismo des-cobriu-se capaz de atenuar suas contradições internas e sobreviver. O complexo socioes-pacial fundido conceitualmente na idéia do urbano (substantivo24) traz embutida a no-ção de que a dimensão espacial, ao favorecer a reprodução das relações sociais deprodução, permitiu a sobrevivência e o crescimento do capitalismo. O urbano “se apre-senta, desse modo, como realidade global (ou, se se quer assim falar: total), implicando o

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20 “(Social) space is a (so-cial) product. This proposi-tion might appear to borderon the tautologous, andhence on the obvious. Thereis good reason, however, toexamine it carefully, to con-sider its implications andconsequences (...) Manypeople will find it hard to en-dorse the notion that spacehas taken on, within thepresent mode of production,within a society as it actuallyis, a sort of reality of itsown, a reality clearly distinctfrom, yet much like, thoseassumed in the same globalprocess by commodities,money and capital”.

21 “We have already beenled to the conclusion thatany space implies, containsand dissimulates social rela-tionships”.

22 Henri Lefebvre rejeita otermo “planejamento”, pre-ferindo utilizar a noção de“projeto” como substituto,este definido como uma “in-tervenção estratégica quesupera o relativismo da filo-sofia através do cálculo polí-tico”, sempre deixando ex-plícita a concepção dialéticasegundo a qual o possível (ovirtual) integra e molda opresente (o real). Conside-rando que a negação do usodo termo “planejamento”mais significa uma negaçãoà feição assumida por essaatividade na modernidade,levamos adiante o uso dotermo em nosso trabalhocom mesma carga semânti-ca do “projeto” lefebvreano.Assim, usamos os termos“projeto” e “planejamento”indistintamente, como sinô-nimos.

23 “I shall demonstrate theactive role of space, asknowledge and action, inthe existing mode of pro-duction”.

24 Em A Revolução Urbana,Henri Lefebvre delineia umprocesso heurístico para adefinição (ou descoberta)do urbano substantivo, visto

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conjunto da prática social” (Lefebvre, 1999, p.53). Trata-se de uma “revolução urbana”adutora de uma espacialidade que se estendeu “fagocitando” a realidade social e incutin-do-lhe sua lógica; lógica da qual o capitalismo se apropriou e colocou sob sua égide a fimde se reproduzir.

Esboçando pensamento similar, Edward Soja deriva do urbano lefebvreano o concei-to de urbanismo, que diz respeito à espacialidade específica que o capitalismo cria e põe aserviço da valorização do capital, de sua reprodução ampliada e da aceleração do ciclo docapital-dinheiro. Nessa perspectiva, o espaço ganha status funcional similar ao dos ele-mentos protagonistas do capitalismo, como a mercadoria ou o próprio capital. Da mes-ma forma que a mercadoria e o capital constituem “entidades” que ocultam em si as re-lações sociais de produção, o urbanismo seria a conceituação sumária da relação dialéticaentre o modo capitalista de produção e sua espacialidade socialmente criada.

De forma complementar à formulação sojiana, David Harvey (1973, 1975, 1977,1992) argumenta que o espaço urbano é alvo de sucessivas construções, desconstruções ereconstruções, com vistas a moldar-se pelas conveniências da reprodução do capital. Paraele, a forma urbana cristalizada no ambiente construído (the spatial “fix”) é a expressãomaterial do capital, constituindo uma paisagem física funcional à acumulação. Harvey sa-lienta ainda a necessidade de ver o ambiente urbano como lugar privilegiado não só daprodução industrial, mas também do consumo; como sítio da produção de mercadoriase também da circulação e “realização” destas. Como afirmava Karl Marx, a criação do va-lor é caracterizada quando do processo de valorização ocorrido paralelamente ao proces-so de trabalho na fábrica, no momento em que a mais-valia é extraída da força de traba-lho e incorporada na mercadoria produzida. Entretanto, até esse momento, não foi criadomais do que um valor em potencial, que somente será efetivamente “realizado” pela “so-cialização” da mercadoria, consubstanciada pela sua venda (consumo). Assim, Harvey traza percepção de que o centro urbano é o lugar concentrador da demanda e, portanto, es-paço da realização da mais-valia e da reprodução sistêmica do capitalismo. Além disso, es-tá contido nessa percepção um diagnóstico da dinâmica urbano-regional, vinculada à du-pla dependência do capitalismo em relação à concentração e à desconcentração espacialda apropriação de mais-valia. Os núcleos de produção e os contextos regionais que os cir-cundam são ambos importantes na medida em que o capitalismo depende, primeiramen-te, da concentração e depois da circulação do sobreproduto gerado na cidade. Erige-se,pois, no centro urbano e sua articulação regional, um sistema socioespacial auto-contidopara acumulação de capital, na medida em que abrange todo o espectro do processo ca-pitalista (produção, circulação e consumo), contemplando assim todo o ciclo do capital-dinheiro (D-M-M’-D’), desde a produção de mercadorias até a realização do mais-valor viaconsumo nos mercados. A contribuição de David Harvey, portanto, passa pela concepçãodo espaço urbano como uma “máquina” produtora e apropriadora de mais-valia, dondeo urbano constitui a espacialidade ideal, o habitat do sistema capitalista.

Formado pelo estruturalismo althusseriano, Manuel Castells (1977, 1999), por seuturno, também concebe o espaço urbano como núcleo serviente à dinâmica capitalista,porém enfatizando seu papel como locus da reprodução da força de trabalho. Por esse pris-ma, o núcleo urbano significa a aglomeração de um aparelho infra-estrutural que envol-ve a concentração espacial da tecnologia que ampara a indústria e principalmente da mer-cadoria essencial que gera valor no processo de trabalho industrial, qual seja, a força detrabalho. Para tanto, o ambiente urbano oferece, por intermédio do Estado e outras ins-tituições, os denominados meios de consumo coletivo, atinentes a habitação, transporte

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como um fenômeno socio-espacial que é mais do queas formas urbanas. É umaespécie de síntese dialéticaentre uma espacialidade di-fundida à totalidade do es-paço social sob as formasde tecido urbano e de umapráxis típica da sociedadeurbana, “hoje virtual, ama-nhã real”. Trata-se de umarealidade totalizante que sedesdobra na urbanizaçãocompleta: do território e dasociedade. Cumpre aqui de-marcar que o conceito ultra-passa a noção incutida nourbano adjetivo, que diz res-peito à caracterização deaspectos relacionados à ci-dade propriamente dita.

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(acesso à fábrica), educação (treinamento), saúde (força de trabalho), entre outros elemen-tos afins à diluição social dos custos de reprodução da força de trabalho.

Outro estudioso de inspiração marxista, Jean Lojkine (1981) amplia o escopo do ar-gumento castellsiano ao trabalhar a idéia de condições gerais de produção, que em últimainstância definiria o núcleo urbano (e suas articulações sobre a rede regional) como a es-pacialidade propícia ao desenvolvimento capitalista, em termos similares ao urbanismoaventado por Soja. As condições gerais de produção são assim denominadas por abrangertoda a estrutura socioespacial que põe o capital em movimento, circunscrita a um contex-to urbano-regional. Corresponde à configuração espacial que abriga a concentração dosmeios de produção, dos meios de circulação material e dos meios de consumo coletivo.

Em suma, o capitalismo é um modo de produção essencialmente urbano, que usaessa espacialidade em favor de sua reprodução ampliada. Fazendo a mesma afirmação demaneira invertida, a urbanização é a manifestação espacial do processo capitalista de acu-mulação, no sentido em que o tecido urbano (e regional) conforma um aparato socioes-pacial que sedia a acumulação de capital e favorece sua reprodução ampliada por concen-trar as condições gerais de produção, sendo estas a consubstanciação das várias facetas dociclo capitalista, quais sejam: produção, circulação, consumo.

Os espaços regionais, formados pela articulação entre centros urbanos, são hierarqui-zados conforme a maior ou menor presença dessas condições gerais que imprimem ritmoà dinâmica do capital: “a armação urbana aparece então antes de tudo através de sua re-de de cidades (...) como uma distribuição social e espacial das diferentes condições geraisda produção” (Lojkine, 1981, p.149). Dessa forma, é mister ter em mente que a funcio-nalidade sistêmica do capitalismo reside não somente na materialidade de cada centro ur-bano isolado, mas primordialmente em um plano socioeconômico-espacial de escala maisampla, constituído pelos fluxos de relações estabelecidos entre uma miríade de núcleos deprodução, donde constatamos que o capitalismo, além de se referenciar no ambiente ur-bano, caracteriza-se também pela sua projeção no plano regional.

Como acabamos de mencionar, a presença das chamadas condições gerais da produ-ção não é ubíqua. Pelo contrário, os espaços capitalistas apresentam como característicageral a distribuição não uniforme dos frutos de suas modernizações e dá origem a “urba-nismos” marcados pelo desenvolvimento desigual em termos sociais e espaciais.

A simultaneidade de relações sociais e espaciais pode ser aferida com clareza na divi-são regional do espaço entre centros dominantes e periferias dependentes, em relações es-paciais de produção socialmente criadas e polarizadas; ou seja, no desenvolvimento geo-graficamente desigual. Essa teorização dos vínculos entre diferenciações sociais e espaciaistraz implícita a dialética socioespacial: as relações (sociais e espaciais) de produção e as es-truturas centro-periferia são dimensões não dissociáveis. “Ao contrário, os dois conjuntosde relações estruturadas (o social e o espacial) são não apenas homólogos, no sentido deprovirem das mesmas origens no modo de produção, como também dialeticamente inse-paráveis” (Soja, 1993, p.99).

Dessa forma, a assimetria fundamental no plano das relações sociais de produção ca-pitalistas, resumida na dicotomia capital vs trabalho, tem como contrapartida, no planoespacial, o descompasso entre centro e periferia. O avanço do capitalismo é intrinseca-mente marcado pelo desenvolvimento desigual, pelo acesso social e espacialmente seleti-vo às benesses dos progressos técnicos e demais frutos do processo econômico. Assim, ageografia específica do capitalismo é caracterizada pela contigüidade ou mesmo justapo-sição de realidades sociais heterogêneas, muitas vezes antagônicas.

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A dinâmica espacial do capital exibe uma tendência centralizadora e vários são oselementos que se diferenciam geograficamente: a composição orgânica do capital, o va-lor de reprodução da força de trabalho (salários), níveis tecnológicos e o grau de acessoao aparato de mais elevada tecnologia. Esses diferenciais regionais perpetuam-se em ra-zão da concentração dos investimentos de capital, da infra-estrutura social e da presen-ça hegemônica das condições gerais de produção em alguns pontos do espaço em detri-mento de outros; o que finda por ratificar a concentração espacial dos meios deprodução, circulação e consumo, e das atividades econômicas como um todo, significan-do, portanto, uma concentração espacial das oportunidades de desenvolvimento.

Soja (1993, p.140), endossando argumentos de Ernst Mandel (1976, 1987), iden-tifica na dinâmica capitalista uma tendência à “transferência geográfica de valor”, pro-cesso pelo qual o valor produzido em uma dada localidade periférica de menor densida-de econômica é realizado em um centro mais desenvolvido, somando-se à base deacumulação deste através do intercâmbio comercial. O centro caracteriza-se como baseexportadora de bens e serviços mais avançados, auferindo uma espécie de “mais-valia es-pacial”, ainda que esse conceito não tenha sido sistematizado. Esse processo regional-mente desigual é o gatilho de uma configuração centro-periferia que marca caracteristi-camente a espacialidade do capitalismo.

De toda essa senda teórica, cumpre aos nossos propósitos enfatizar o papel cen-tral da dialética socioespacial para a compreensão do capitalismo contemporâneo. Oreconhecimento de que as contradições do modo de produção devem ser desvendadaspela investigação do espaço socialmente engendrado é capaz de nos conduzir a uma te-oria social mais robusta no balizamento do planejamento. A base para uma teoria es-pacializada do planejamento no mundo contemporâneo requer necessariamente umateoria da acumulação de capital em ambientes urbanos, que na nossa concepção de ba-se lefebvreana adquire significante sinonímico à “economia política da produção socialdo espaço”. Além disso, o planejamento do desenvolvimento regional só faz sentido apartir da percepção do caráter estruturalmente desigual da organização espacial espe-cífica do capitalismo.

Rastreamos o papel do espaço no planejamento ao identificar, com o auxílio deHenri Lefebvre e outros estudiosos neomarxistas do espaço, que a produção social do es-paço é o mecanismo pelo qual o sistema capitalista encontra meios de se reproduzir am-plamente. A espacialidade do urbano, refletida em formas e fenômenos socioespaciais, éo plano (material e imaterial) privilegiado da produção e da reprodução das relações so-ciais capitalistas. Sutilmente, a teorização lefebvreana subverte a lógica dos teóricos con-vencionais do espaço, que tratam o elemento geográfico como um fator contingente (umcusto) que limita a dinâmica do capital. Lefebvre, sem negar os obstáculos que a mate-rialidade espacial (o espaço banal, diria François Perroux25) impõe ao movimento do ca-pital, enfatiza que, contraditoriamente, a dialética socioespacial – cuja síntese é o urba-no pleno de relações sociais – é a instância que oxigena o capitalismo em sua corrida parachegar cada vez mais longe.

A ponte requerida entre o papel teórico-analítico do espaço e a perspectiva políti-ca, no âmbito de um arcabouço econômico planejador, é bem construída por DoreenMassey:

o entendimento da organização geográfica é fundamental para se compreender a economia e a so-ciedade. A geografia da sociedade faz diferença no modo como esta funciona. Se isso é verdade em

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25 François Perroux (1964,1967), pensador da econo-mia política do espaço, po-de ser considerado pioneironuma sistematização con-ceitual que concebe o espa-ço como elemento multidi-mensional. O autor propõeuma distinção entre o espa-ço banal, concreto, “geonô-mico” e o espaço abstratoou “econômico”. O espaçobanal diz respeito ao planoconcreto, o continente cujoconteúdo é a vida social emsua totalidade. O espaçoeconômico, por sua vez, dizrespeito a um plano paraleloabstrato envidado pelasmúltiplas relações sociais efluxos econômicos “delocali-zados”, que conferem ao es-paço um caráter multiface-tado, composto por pelomenos três dimensões analí-ticas: é um espaço definidopor um “plano relacional”(onde são estabelecidas re-lações entre elementos so-ciais e econômicos, comofirmas e seus fornecedoresde insumos e compradoresde produtos); é um espaçocaracterizado como um“campo de forças” (centrosdos quais emanam forçascentrípetas e centrífugas); eé um espaço visto como um“agregado homogêneo” (ho-mogeneous aggregate), ha-bitado por unidades econô-micas que se avizinham eapresentam estruturas maisou menos homogêneas.

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termos analíticos, também o é em termos políticos. Para que haja alguma esperança de alterar ageografia fundamentalmente desigual da economia e da sociedade [capitalista], faz-se necessáriauma política que ligue as questões da distribuição geográfica às da organização social e econômi-ca. (Massey,1984 apud Soja, 1993, p.84)

Nesses termos, o regime de acumulação seria moldado pela produção social do es-paço, donde a compreensão do capitalismo urbano-industrial contemporâneo e das re-lações sociais que lhe são características não prescinde de uma perspectiva espacializada.Reafirmamos assim o papel do espaço na teoria social crítica. “As regiões e o espaço con-formam uma negligenciada, porém necessária, dimensão da teoria e da prática do desen-volvimento econômico. Sem o ponto de vista espacial, a análise é incompleta”26 (Fried-mann & Alonso, 1964, p.1).

Diante disso, chegamos ao entendimento de que uma teoria do planejamento deveser necessariamente espacializada. Endossamos a perspectiva grega além-milenar de que asocioeconomia das cidades e regiões constituem o objeto de reflexão da teoria do plane-jamento. O espaço, hoje mais do que nunca, é revelador da realidade econômica e social,porquanto deve ser concebido criticamente de forma a sustentar um projeto de desenvol-vimento. Sendo o âmbito econômico a esfera hegemônica no capitalismo urbano-indus-trial, o planejamento do desenvolvimento prima por orientar a configuração econômico-espacial real por uma via emancipatória que signifique melhores condições de reproduçãoao conjunto da sociedade, de sorte que esta adquira maior autonomia na apropriação eprodução social de seu próprio espaço.

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26 “Regions and space area neglected but necessarydimension of the theory andthe practice of economicdevelopment. Without thespatial point of view, theanalysis is incomplete”.

Lucas Linhares é econo-mista do BNDES, mestre emEconomia pelo Cede-plar/UFMG. E-mail: [email protected]

Artigo recebido em setem-bro de 2008 e aprovado pa-ra publicação em janeiro de2009.

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A B S T R A C T In modern capitalist societies, the Planning Theory and Praxis reflectsa consolidation of a “mechanical” rationality model which treats social phenomena as theycould be described by universal and immutable laws. Specifically in the field on PoliticalEconomy which is dominated by neoclassical corpus, searching for general theoretical schemestends to neglect the “space” as analytical category. Initially, this paper aims to make anepistemological discussion and to make a critical assessment of the embodiment of the“mechanical paradigm” by the Planning Theory. Moreover, this paper intends to put the spaceon foreground of the Social Theory, i.e., the space is taken as a fundamental category tocomprehend the capitalist dynamics. Looking into socially built space allows us to reach asocio-spatial dialectics and hence a more comprehensive Social Theory and a stronger PlanningTheory.

K E Y W O R D S Planning; socio-spatial dialectics; modernity; social space.

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TEMPOS, IDÉIAS E LUGARESO ENSINO DO PLANEJAMENTO

URBANO E REGIONAL NO BRASIL

R O S É L I A P É R I S S É D A S I L V A P I Q U E TA N A C L A R A T O R R E S R I B E I R O

R E S U M O O artigo resgata, de forma sintética, mudanças observadas no perfil doscursos de pós-graduação em planejamento urbano e regional no Brasil frente a transformaçõesna economia e no sistema nacional de planejamento. O tema é tratado segundo uma periodi-zação que destaca idéias-mestras de quatro fases do debate nacional sobre planejamento, in-cluindo seus vínculos com leituras do território: década de 1950 e início da década de 1960(planejamento para a mudança e relevância da questão do desenvolvimento); década de 1970e início da década de 1980 (planejamento tecnocrático e controle da escala nacional); déca-das de 1980 e 1990 (predomínio da gestão e centralidade atribuída às forças do mercado);tendências atuais (retorno à questão do desenvolvimento e crescente preocupação com o plane-jamento de longo prazo).

P A L A V R A S - C H A V E Pós-graduação; planejamento; desenvolvimento; sis-tema urbano; região.

INTRODUÇÃO

Desenvolvimento, tema banido da agenda econômica nacional nos últimos 25 anos,retorna ao centro das atenções e, com ele, o papel do planejamento e da formação de pes-soal qualificado. Voltam à cena as análises sobre os motivos que induziram o nosso desen-volvimento a apresentar um caráter espacial e socialmente tão desigual. Retomam-se, en-fim, as questões de longo prazo, buscando as razões que, nas palavras de Celso Furtado,levaram à construção interrompida do país.

A constatação desse fato motivou a elaboração do presente texto, que tem como es-copo mais amplo o resgate, ainda que sintético, de mudanças observadas no perfil doscursos de planejamento urbano e regional no Brasil frente às transformações ocorridasno plano econômico e no sistema de planejamento nacional. O tema é tratado segundouma periodização que seleciona quatro fases históricas distintas, sendo que, em cadauma, são destacadas as idéias-mestras imperantes no período, segundo suas vinculaçõesteórico-ideológicas.

A primeira fase é construída pelas principais concepções de desenvolvimento e sub-desenvolvimento dos anos 1950 e 1960 que, no cenário latino-americano, corresponde àfase do “planejamento para a mudança”, quando são lançados os primeiros cursos sobreplanejamento na América Latina.

A seguir, analisa-se a fase marcada pela conquista do poder por grupos antagônicosaos princípios democráticos, e se aprofunda o caráter centralizador, autoritário e tecno-crático das estruturas de planejamento então existentes. Nesse período, o ensino de pla-nejamento urbano e regional institucionaliza-se em nossas universidades, com a implan-tação de cursos de pós-graduação stricto sensu.

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Na terceira fase, indica-se como a crença exacerbada no jogo das forças de mercadoleva à rejeição do planejamento, e os cursos da área perdem sua marca de cursos de pla-nejamento e deslocam seus currículos para o campo dos estudos urbanos e regionais. Nes-sa fase, enquanto a questão regional perde centralidade, os temas urbanos/locais ganhamproeminência.

Finalizando o texto, são indicadas as condições da atual retomada das políticas eco-nômicas de longo prazo e o perfil dos cursos da área, que adquirem novas dimensões emnúmero, localização e conteúdo. Nos mais recentes cursos propostos à Capes, não só no-vos temas são incorporados aos currículos, como também a questão regional é revisitada.

PLANEJANDO O DESENVOLVIMENTO

No longo período de crescimento econômico e de modernização das estruturas so-ciais que as sociedades capitalistas ocidentais atravessaram após a Segunda Guerra Mun-dial, ganham relevo teorias sobre desenvolvimento, em que as políticas públicas compen-satórias de base keynesiana são vistas como capazes de fazer frente às fases recessivas dosciclos econômicos e, de forma complementar, de reduzir desequilíbrios sociais e setoriaisderivados da estrita lógica do mercado. O Estado é percebido como o agente político e eco-nômico apto a conduzir projetos de desenvolvimento que resultariam não apenas na ex-pansão do produto e do emprego, mas também, na superação das desigualdades espaciais.

É nesse contexto que o planejamento, até então considerado inerente e exclusivo dosistema socialista, passa a ser aceito e adotado pelos países capitalistas, porquanto é vistocomo uma técnica de aplicação de políticas. Boa parte dos economistas mais importantesda época, como Jan Timberger, Gunnar Myrdal, François Perroux e Vittório Marrama,acreditava no planejamento, sendo as suas concepções amplamente aceitas nos meios es-pecializados latino-americanos.

Na América Latina, não só havia um paradigma aceito por atores políticos e sociaisde grande relevância, como também o desenvolvimento econômico era um objetivo com-partilhado. Acreditava-se, firmemente, ser o Estado o principal responsável pelo desenvol-vimento. Um Estado investidor, regulador e, ainda, protetor do mercado interno e da in-dústria nacional.

O pensamento da Comissão Econômica para a América Latina (Cepal) dominava asanálises sobre os processos de crescimento das economias latino-americanas e orientavamuitas das propostas de política econômica nesse período. Albert Hirschman, RaulPrebisch e Celso Furtado eram seus principais representantes. O debate da época voltava-se para as idéias de crescimento, desenvolvimento, subdesenvolvimento e centrava-se em ques-tões relativas à possibilidade de universalização dos padrões de produção e consumo pra-ticados nos países que lideraram a revolução industrial. Furtado, o maior expoente dopensamento econômico sobre o tema no Brasil, assinalava então que “o subdesenvolvi-mento é um processo histórico autônomo, e não uma etapa pela qual tenham, necessaria-mente, passado as economias que já alcançaram grau superior de desenvolvimento” (Fur-tado, 1961:180). Portanto, sendo o subdesenvolvimento um fenômeno específico,requereria um esforço de teorização autônomo.1

Prebisch, em linhas gerais, argumentava que, até o período da grande depressão dosanos 1930, os países da América Latina tiveram sua dinâmica interna determinada pelocrescimento persistente das exportações, mas que essa alternativa não mais se apresenta-

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1 Segundo Celso Furtado(1961), a falta desse esfor-ço teórico teria levado mui-tos economistas a explicar,por analogia com a expe-riência das economias de-senvolvidas, problemas quesó poderiam ser bem equa-cionados a partir de umaadequada compreensão dofenômeno do subdesenvolvi-mento.

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va. Isso levaria a concluir que a industrialização seria uma imposição dos fatos e, longe deser uma escolha, seria a única via de desenvolvimento deixada aos países exportadores deprodutos primários. Propunha uma estratégia de crescimento “para dentro”, dinamizadapor uma “industrialização substitutiva”, com forte intervenção do Estado.2

Essas idéias passam a influenciar importantes partidos políticos e governos da região,que, sob essas concepções, apresentam propostas de planos nacionais de desenvolvimen-to econômico e social, com base no avanço do processo de industrialização. No cenário la-tino-americano, esta é a fase do “planejamento para a mudança”. À medida que o plane-jamento ganha impulso, os diagnósticos passam a destacar a natureza espacialmentedesigual da distribuição de recursos. A proposta centrada na industrialização trazia implí-cita a contradição entre a aceleração das taxas de crescimento econômico e a equidade in-terregional. Um crescimento a taxas mais elevadas poderia ser atingido concentrando-seinvestimentos nas zonas mais desenvolvidas – as de maior produtividade e com um mer-cado consumidor com grande potencial de ampliação –, embora sob o risco de amplia-ção das desigualdades regionais. Caberia ao Estado, frente a este risco, compensar as “ten-dências do mercado”, e os quadros técnicos, com freqüência, julgavam ter o poder deatribuir funções e de definir o destino das regiões. A crença no planejamento é então in-conteste, o que leva Mattos a considerá-lo

uma das idéias medulares que marcam as peculiaridades do século XX, na medida em que foi aprimeira ocasião ao longo da história da humanidade na qual se generalizou a crença de que oser humano teria a plena capacidade para empreender e construir um futuro desenhado anteci-padamente por ele. (Mattos, 2001:23)

No Brasil, a partir da década de 1940, várias foram as tentativas de coordenar, con-trolar e planejar a economia; mas, até 1956, essas tentativas limitaram-se à formulação dediagnósticos, propostas, medidas setoriais ou de racionalização do processo orçamentário.Até então, o planejamento regional havia se restringido a esforços voltados ao desenvol-vimento de bacias hidrográficas e, no plano urbano, a experiências de cidades planejadassegundo princípios do urbanismo funcional-racionalista. É com o Plano de Metas do Go-verno Juscelino Kubitschek (1956 -1961) que tem início, de modo mais consistente, oplanejamento governamental.

A decisão de planejar é essencialmente uma decisão política, pois, segundo Lafer, “éuma tentativa de alocar explicitamente recursos e, implicitamente, valores, através do pro-cesso de planejamento e não através dos demais e tradicionais mecanismos do sistema po-lítico” (Lafer,1970:30). Na decisão de planejar incide, também, um conjunto de proble-mas concretos relacionados principalmente à disponibilidade de pessoal técnicoqualificado, à existência de informações acessíveis, à capacidade de geração de projetos eprogramas no setor público e no setor privado e, ainda, à possibilidade de coordenaçãoentre setores e regiões.

Neste sentido, eram especialmente precárias as condições existentes do Brasil na épo-ca. O ingresso no serviço público pelo sistema de mérito (concurso público), embora exi-gência legal desde a Constituição de 1934, era ainda muito limitado: cerca de 10 a 17%.Diante dessa situação, foram apresentadas duas alternativas para a preparação do Plano deMetas: prosseguir na tentativa de uma reforma total da administração pública federal oucriar órgãos paralelos à administração normal, os “grupos executivos”, que seriam encar-regados da implementação do plano, sendo essa a opção adotada.3 Além dessas limitações,

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3 É preciso lembrar que em1958, segundo dados docenso do servidor públicofederal, havia 229.422 fun-cionários públicos federais,porém apenas 28.406 eramconcursados. Diante destalimitação, foram acionadosos órgãos onde predomina-va o sistema do mérito, co-mo era o caso do BNDE,Banco do Brasil, Superinten-dência da Moeda e do Crédi-to–SUMOC, e foram convo-cadas outras competênciasdisponíveis na administra-ção pública.

2 As idéias básicas de RaulPrebisch foram publicadasem seu artigo “El desarrolloeconómico de la AméricaLatina y algunos de sus prin-cipales problemas”. BoletinEconómico para AméricaLatina, CEPAL, fevereiro de1961.

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era restrita a disponibilidade de dados e de informações confiáveis sobre a economia bra-sileira, o que dificultava o detalhamento e a compatibilização de metas entre setores e en-tre regiões.

Embora o Plano de Metas seja considerado exitoso, pois a maior parte de seus obje-tivos teve elevado grau de concretização, as medidas de política econômica adotadas fo-ram baseadas em mecanismos concentradores de renda – não só por estratos sociais comotambém por regiões – e tenderam a beneficiar o eixo Rio–São Paulo.4 Os desníveis inter-regionais se ampliaram; mas, estes efeitos da implementação do Plano foram considera-dos inerentes ao estágio de desenvolvimento do país. Esperava-se que a indústria, no fu-turo, irradiaria dinamismo aos demais segmentos da economia nacional e conduziria auma gradual redução das desigualdades inter e intra-regionais.

Entretanto, no decorrer dessa fase da economia brasileira, os desequilíbrios regionaisse agravam e as tensões sociais no Nordeste tornam-se explosivas, passando a ser vistas co-mo uma questão de segurança nacional. É exatamente neste momento que é elaborada aprimeira Política de Desenvolvimento Regional sob a condução de Celso Furtado, sendoque a criação da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), em 1959,traduz a tentativa de redefinição das relações entre o centro hegemônico e essa região.5

A esmagadora maioria da produção intelectual brasileira sobre a dimensão territorialdo desenvolvimento é então voltada para as questões relativas à concentração industrial eaos chamados “desequilíbrios regionais”. O desenvolvimento urbano ainda não é consi-derado uma questão relevante e não há no Plano de Metas proposições específicas para oseu tratamento. Neste contexto, a construção de Brasília pode ser interpretada muito maiscomo uma resposta à necessidade de incorporação de novas áreas ao circuito da acumu-lação capitalista. O próprio Plano de Metas considera Brasília um “ponto de germinação”,capaz de constituir-se em uma nova frente de expansão econômica.

À medida que se ampliavam os sistemas de planejamento latino-americanos, consi-derou-se relevante a formação de especialistas, dado tratar-se de atividade nova, para aqual as diferentes administrações públicas nacionais careciam de pessoal qualificado. AOrganização dos Estados Americanos (OEA), a Comissão Econômica para a América La-tina (Cepal) e o Instituto Latino-Americano e do Caribe de Planificação Econômica e So-cial (Ilpes) realizaram os primeiros esforços na formação de recursos humanos para apoiare guiar os trabalhos de elaboração dos planos econômicos dos países da região. Nesse iní-cio, as dimensões regional e urbana foram tratadas de forma marginal, uma vez que o pla-nejamento era dominado por economistas, mais preocupados com a “planificação dodesenvolvimento nacional” do que com o impacto social e espacial que poderiam ter osplanos que preparavam. (Hardoy, 1990:11).

A acumulação de capital nesta fase – aqui e no mundo – era muito mais localizadaem seu circuito de reinversão do que é hoje. As empresas cresciam em cada planta produ-tiva e esperava-se que a sua inscrição territorial durasse décadas. Assim, os diagnósticoselaborados como primeira etapa do processo de planejamento passam a destacar a impor-tância das desigualdades regionais e a recomendar a incorporação de medidas capazes deenfrentá-las. Os governos dos países latino-americanos procuram então pôr em prática di-versas formas de intervenção, com o objetivo de reduzir os chamados desequilíbrios in-terregionais e aumentar a capacidade de consumo da população de regiões mais atrasadas.Em quase todos os países da região, são propostas políticas de desconcentração da indús-tria e de modernização do setor agrícola, de modo a integrar as estratégias de desenvolvi-mento regional às do planejamento nacional.

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4 Wilson Cano se destacaao analisar em profundidadeas condições da concentra-ção industrial em nosso pa-ís. Seu livro Raízes da Con-centração Industrial em SãoPaulo tornou-se um clássicoda literatura sobre o tema.

5 Quando se procurou dotaro país de um parque indus-trial moderno, não se cogi-tou a imposição de normasquanto à localização, sejaem termos regionais ou in-tra-urbanos. As decisõesquanto à localização, ao se-rem tomadas livremente,pautadas unicamente porcritérios de rentabilidade pri-vada, provocam uma eleva-da concentração territorial,e os diferenciais de renda in-ter-regionais se ampliam.

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Assim, ao desenvolvimento encontrava-se associada uma metodologia de como pla-nejar, e nos primeiros cursos oferecidos não havia dúvida sobre o que deveria ser ensina-do. Os princípios teóricos provinham do pensamento da Cepal e do Ilpes, e os manuaisde metodologia para a programação econômica eram as peças-chave da bibliografia bási-ca desses cursos. O pessoal qualificado para atuar nos principais órgãos de planejamentotinha sua formação aprimorada em universidades européias e no Chile, sede da Cepal edo Ilpes.

O longo período de prosperidade do mundo ocidental entre o fim da SegundaGuerra Mundial até meados dos anos 1970, conhecido como os “trinta anos de ouro” docapitalismo, é bruscamente interrompido por uma profunda crise econômica que afetapaíses como os Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha, França. Na América Latina, mul-tiplicam-se os golpes de Estado, gerando um quadro político dominado por regimes alta-mente repressores dos direitos civis e sociais fundamentais. O Brasil foi “precursor” nessecampo, pois uma década antes da instalação de ditaduras nos outros países latino-ameri-canos, o término do mandato de Juscelino Kubitschek é marcado por grande instabilida-de política e econômica, que culmina com o Golpe de Estado de 1964.

O FUTURO DESENHADO AUTORITARIAMENTE

Ao assumirem a direção do país em março de 1964, os militares adotam um dis-curso modernizador, comprometido com a retomada do crescimento econômico. Pro-curam legitimar o exercício do poder argüindo princípios de racionalidade econômica,justificando, assim, a adoção de políticas econômicas concentradoras e excludentes. Éno período militar que o planejamento atinge seu auge no país, com a proposição decinco planos: Plano de Ação Econômica do Governo (PAEG, 1964-67), Plano Estraté-gico de Desenvolvimento (PED, 1967-69), Primeiro Plano Nacional de Desenvolvi-mento (I PND, 1969-74), Segundo Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND,1974-79) e Terceiro Plano Nacional de Desenvolvimento (III PND, 1979-84).

O PAEG e o PED geraram poucas mudanças na organização territorial do país. O pri-meiro era voltado a implementação de políticas de curto prazo que visavam o controle dastaxas inflacionárias, a retomada de relações com os organismos internacionais de financia-mento e a redução da insatisfação decorrente do déficit habitacional e da precariedade dotransporte urbano. Com o PED, o segundo plano do período militar, a recuperação eco-nômica se processa basicamente por meio da utilização da capacidade ociosa da indústriainstalada desde o período do Plano de Metas.

É só a partir do I PND que a dimensão espacial do processo de desenvolvimento évista sob novo formato, diverso dos recortes regionais até então dominantes. A incorpo-ração de novas áreas ao circuito produtivo - tais como o sul do estado do Pará com sua ri-ca reserva mineral de Carajás e as vastas áreas agriculturáveis do Centro-Oeste - impôs umolhar de conjunto mais complexo sobre o território. Desprezando as regiões tradicionais,a estratégia adotada pelo I PND será baseada nos chamados programas especiais, tais como:Programa Especial do Centro-Oeste; Programa Especial da Região Geoeconômica de Bra-sília; Programa Especial do Oeste do Paraná; Programa Especial do Grande Dourado;Programa de Desenvolvimento Integrado da Bacia do Araguaia-Tocantins; Programa dePólos Agropecuários e Agro-minerais da Amazônia; Programa de Áreas Irrigadas do Nor-deste; Programa de Desenvolvimento do Cerrado, entre tantos outros. Trata-se de uma

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outra lógica de ocupação territorial, em que o planejamento baseado nas agências regio-nais de desenvolvimento perde importância.

O II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND) corresponde ao projeto “Brasil:Grande Potência no Final do Século”, que é o programa do governo que se inicia em mar-ço de 1974. O II PND tem como base um elenco de projetos formulados e implantadosdiretamente pelo setor público. Se, na etapa anterior, os programas especiais romperam asfronteiras de antigas regiões e impuseram uma leitura da totalidade do território nacio-nal, no II PND os grandes projetos de desenvolvimento irão definir novas regiões.

É ainda no âmbito deste plano que a dimensão urbana do desenvolvimento do paísadquire maior visibilidade. Ganham vulto as questões relativas ao “congestionamento”das grandes metrópoles e surgem as primeiras propostas de desconcentração industrial.Para implementar a política de desenvolvimento urbano, foi criada, em 1974, a Comis-são Nacional de Regiões Metropolitanas e Política Urbana (CNPU). O Banco Nacional deHabitação (BNH), que já vinha sendo preparado para assumir encargos relativos ao desen-volvimento urbano, institui programas que abrangem a infra-estrutura (Plano Nacionalde Saneamento–Planasa e Projeto Comunidade Urbana para Recuperação Acelerada–Cu-ra), a implantação de novas comunidades urbanas (Projeto de Apoio ao Desenvolvimen-to dos Pólos Econômicos–Prodepo), o transporte de massa (Programa de Integração deTransportes Urbanos–Piturb) e o planejamento urbano (Programa de Financiamento pa-ra o Saneamento–Finansa).

São igualmente ligadas à questão da desconcentração urbana as propostas referentesao fortalecimento dos centros de porte médio. Estas propostas deram origem ao “Progra-ma de Apoio às Capitais e Cidades de Porte Médio”, do Conselho Nacional de Desen-volvimento Urbano (CNDU). As cidades médias teriam – segundo os documentos queembasam esse programa – o papel de propiciar a criação de novos pontos de desenvolvi-mento no território nacional, de estimular a desconcentração de atividades econômicas ede população, de criar novas oportunidades de emprego e de contribuir para a reduçãodas disparidades interregionais e da concentração da renda. Assim, a preocupação com aintensidade do crescimento demográfico das metrópoles nacionais – que absorviamgrande parte do contingente populacional com origem nas zonas rurais das diversas re-giões do país – levou à proposição de uma nova função para as cidades de porte médio: ade “dique” dos fluxos migratórios.

É nesse período que o sistema de planejamento assume um elevado grau de institu-cionalidade, fazendo com que seja impulsionada a capacitação de pessoal através da cria-ção dos primeiros cursos de pós-graduação no país. Como o projeto dos governos milita-res era dotar o Brasil de instituições mais fortes no campo da pesquisa tecnológica, forampropostos os primeiros cursos de pós-graduação stricto sensu nas áreas técnicas e em econo-mia. São implantados os programas de mestrado em planejamento urbano e regional naUniversidade Federal do Rio Grande do Sul (1970), na Universidade Federal do Rio de Ja-neiro (1972) e na Universidade Federal de Pernambuco (1975). Em 1967, a UniversidadeFederal de Minas Gerais já havia criado o Centro de Desenvolvimento e Planejamento Re-gional–Cedeplar, com a finalidade de abrigar um programa de pesquisa e ensino de pós-graduação na área da Economia Regional. Também em 1967, o Instituto de Pesquisa Eco-nômica Aplicada–Ipea, órgão criado em 1964, realiza diagnósticos inéditos da economianacional, que propiciaram maior conhecimento da dinâmica de numerosos setores.

A Secretaria de Planejamento da Presidência da República abrigava, além do Ipea, oInstituto de Planejamento (Iplan) e o Centro de Treinamento para o Desenvolvimento

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Econômico (Cendec). Era de tal ordem a importância atribuída à formação de quadrospara atuação no sistema de planejamento, que a primeira turma do curso da UFRJ, entãosob a responsabilidade da Coordenação dos Programas de Pós-graduação em Engenha-ria–COPPE, é destinada a técnicos do Banco Nacional de Habitação–BNH, do Serviço Fe-deral de Habitação e Urbanismo–SERFHAU e órgãos do governo federal envolvidos como planejamento urbano ou regional.

Nesses cursos predominava a formação voltada para as questões nacionais, uma vezque o projeto dos governos militares era transformar o país em uma grande potência nofinal do século. Acreditava-se que a senda para o desenvolvimento poderia ser trilhada pormeio da elaboração de modelos econométricos e demográficos, baseados na geopolítica ena doutrina da Segurança Nacional. A ênfase nas disciplinas quantitativas – em que a Ma-triz de Insumo-Produto e os princípios da Programação Linear predominavam – e acrença nos princípios do planejamento racionalista dão o “toque de classe” nos cursos daépoca. Novas influências se fazem presentes no planejamento territorial, como exemplifi-cam a política francesa de aménagement du territoire e as propostas relativas aos pólos decrescimento. Ambas tiveram ampla aceitação nos meios técnicos e serviram de base a pro-postas de regionalização do território nacional e a estratégias de desenvolvimento.6

Em março de 1979 inicia-se o último governo militar, quando evidenciam-se os si-nais da desaceleração do crescimento da economia. No início dos anos 1980, o país en-frenta uma grave recessão: queda nos investimentos e no crescimento do produto in-terno, aumento das dívidas interna e externa, aceleração do processo inflacionário erenda per capita praticamente estagnada. Nestas circunstâncias, o regime militar se vêdeslegitimado, uma vez que a tão propalada “eficiência econômica” não se sustentou naprática. Em 1985, assume o governo um presidente civil, eleito indiretamente pelo Con-gresso Nacional.

O PLANEJAMENTO DOS NÍVEIS SUBNACIONAIS

Novas tendências da dinâmica socioeconômica mundial manifestam-se a partir demeados dos anos 1970, configurando um cenário significativamente diferente daquele doperíodo do segundo pós-guerra, e pondo em cheque o planejamento econômico. Mudan-ças em curso trazem uma problemática nova quanto ao processo de acumulação de capi-tal: o grande capital passa a ter uma enorme ubiqüidade, podendo localizar-se em qual-quer região e produzir em qualquer outra, e esta, por sua vez, não passará de uma opçãoentre muitas alternativas. Este não é mais um capital enraizado em seu circuito de rein-versão. Ao contrário, cada parte desse capital articula-se diretamente com outras em es-cala global, integrando-se cada vez menos nas estruturas de produção regional ou nacio-nal. Questiona-se, assim, se estariam ocorrendo a “dissolução das regiões” e a “aniquilaçãodo espaço pelo tempo” (Harvey, 1992), pois, segundo Coraggio, “o capital pode mover-se a uma velocidade que guarda pouca relação com os tempos sociais ou os tempos polí-ticos” (Coraggio, 1999:60).

No caso da América Latina, a crise fiscal do Estado e o esgotamento do modelo decrescimento sustentado pela industrialização, fortemente dependente de investimentos dosetor público, conduzem à perda de legitimidade, e conseqüente enfraquecimento dos sis-temas nacionais de planejamento. Em nosso país, o planejamento passa a ser criticado erejeitado, posto que identificado com o autoritarismo do período militar, no qual foram

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6 A Teoria dos Pólos deCrescimento, desenvolvidapor François Perroux e seuscolaboradores, surgiu comouma tentativa de respostaaos problemas criados pe-los desequilíbrios setoriais eespaciais. Teve larga aceita-ção nos meios acadêmicosdo país, mas sua aplicaçãoencontrou obstáculos porapresentar certa imprecisãoem conceitos centrais.

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atualizados conteúdos da dependência econômica, das desigualdades sociais e das dispa-ridades regionais.

Neste cenário, caracterizado por dinâmicas econômicas heterogêneas e distribuiçãodo poder entre diferentes forças sociais, perdem sentido as tentativas de ressuscitar anti-gas concepções de planejamento. Com a redemocratização do país e as profundas mudan-ças no capitalismo, a gestão e as políticas públicas tornam-se radicalmente diferentes dasque imperavam na época do planejamento centralizado. Por sua vez, surgem novos desa-fios para os programas de formação de recursos humanos na área do planejamento.

Enquanto na década de 1970 intelectuais de esquerda viam o planejamento comosinônimo de intervenção estatal a serviço dos interesses do capital, nos anos 1980, a re-jeição ao planejamento advém dos setores de orientação liberal e se dá por outros moti-vos: o planejamento estaria servindo mal a esses interesses, uma vez que o Estado deveriaapoiar, da forma mais direta possível, a acumulação de capital, eliminando normas, redu-zindo exigências legais, oferecendo incentivos fiscais, garantindo segurança aos investi-mentos e aumentando a fluidez do território.

O discurso de base keynesiana é então substituído por outro, de fundamento neo-clássico, segundo o qual é o jogo das forças de mercado que permite assegurar um maiorcrescimento da economia. A idéia básica que emerge desse corpo teórico é que a políticaeconômica deve ter como função principal contribuir para gerar um ambiente atrativo pa-ra o investimento privado, descartando a utilização de políticas que impliquem em inter-venção direta do Estado na vida econômica, como defendiam os modelos de desenvolvi-mento das décadas anteriores.

Como os investidores dirigem-se para as atividades e espaços onde é mais lucrativoinvestir, resta aos lugares – regiões e cidades – competir entre si por investimentos, o queestimula o discurso que destaca o papel dos governos locais, vistos como agentes capazesde induzir, mobilizar e promover o crescimento econômico. Postula-se que a taxa de cres-cimento de um determinado país, região ou, até mesmo, de uma cidade é função do ca-pital físico, do capital humano e de conhecimentos detidos pela coletividade. Postula-se,ainda, que caberia aos governos locais assegurar o fornecimento de equipamentos e servi-ços, baixar custos tributários e conceder subsídios, oferecendo um “ambiente adequado”à conquista da preferência para a localização de empresas.7

A nova agenda dos organismos multilaterais – fortemente influenciada pelas idéiasde desenvolvimento sustentável, competitividade urbana e descentralização administrativa –reforça a tendência à valorização do aumento da competitividade das cidades. Desde oinício dos anos 1990, estes organismos apóiam projetos e programas nesta direção, quasesempre negociados diretamente com prefeituras, sem interferência do Estado-nação.Abandona-se a perspectiva do desenvolvimento nacional e espera-se que a descentraliza-ção da responsabilidade para os governos locais produza o milagre de resolver os proble-mas de emprego e renda, miséria, questões ambientais e tantos outros, além de garantir agovernabilidade do sistema.

O nacional dá lugar ao local, e a gestão substitui o planejamento. Antes, o debate deconcepções e projetos estava centrado em torno de questões relativas às desigualdades in-terregionais, às carências de equipamentos urbanos de uso coletivo e à racionalização douso do solo, e agora a problemática do desenvolvimento remete ao campo da competiti-vidade. Entra em moda o planejamento estratégico – inspirado e baseado no planejamen-to estratégico empresarial – no qual se advoga que as cidades devem ser administradascomo se fossem empresas, competindo entre si para atrair investimentos ou turistas. E a

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7 Embora o planejamentoregulatório clássico das dé-cadas anteriores não tenhadeixado boas lembranças,pois no caso brasileiro é es-treitamente relacionado aoautoritarismo do regime mili-tar, a mudança de ênfasepara “menos planejamento emais gestão” encobre umafalácia, uma vez que nenhu-ma ação (e quanto mais a di-reção de uma cidade ou pa-ís!) prescinde de um mínimode “planejamento” e tam-bém porque o planejamentoe a gestão pressupõemações complementares,não-conflitantes. Essas ques-tões podem ser mais bementendidas em Carlos Vainer(2002). Marcelo Lopes deSouza (2006) também de-senvolve uma longa discus-são sobre as mesmas ques-tões.

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expressão empreendedorismo urbano ganha popularidade: o perfil ideal dos novos prefei-tos seria o de gestores urbanos, aparentemente mais afeitos aos negócios e ao marketing doque à política.8

Assim, com o enfraquecimento do Estado-nação, o planejamento na escala nacionalcai em descrédito e os programas de pós-graduação, concebidos para a formação de pes-soal na área, são mantidos mas têm seus currículos direcionados para estudos urbanos e re-gionais, em que o regional perde posição e as questões intra-urbanas ganham proeminên-cia, inclusive pela relevância dos processos de organização social e política que permitiramo reconhecimento de direitos urbanos na Constituição Federal de 1988. É sintomático dacrise do planejamento territorial, porém, que no período de quase 20 anos (entre 1975 e1993), nenhum novo curso tenha sido implementado na área.

Contudo, evidências empíricas da escala internacional, relacionadas ao desempenhoda economia, passaram a indicar que a aceitação incondicional do neoliberalismo não pro-movia maiores taxas de crescimento e, muito menos, a redução da concentração de renda,seja no plano individual e familiar seja no plano das nações ou regiões. Ao contrário, estaaceitação provocava o acirramento das desigualdades sociais e espaciais. Com isso, novasvozes aparecem – não apenas aqui como também nos países pioneiros na aplicação dosprincípios teóricos e ideológicos do neoliberalismo –, promovendo o debate sobre as polí-ticas de longo prazo. Um debate que, cada vez mais, explicita a centralidade do espaço e,assim, dos conflitos e tensões relacionados à apropriação de recursos estratégicos.

PARA PENSAR O LONGO PRAZO: CONCLUINDO

O Brasil passou por profundas mudanças em todo o período analisado no presentetexto, dando um salto gigantesco em sua base produtiva. Um salto apoiado pela difusãodas redes de comunicação e informação, por mudanças institucionais e pelas novas for-mas de financiamento da economia. A expansão das condições técnicas de produção portodo o território nacional embora alterasse a direção dos fluxos de mercadorias e a natu-reza dos movimentos migratórios ou, ainda, provocasse a emergência de novas regiõeseconômicas, não foi capaz de fazer face à profunda desigualdade dos padrões de vida e àsprecárias relações de trabalho vigentes no campo e na cidade. Não foi capaz de superar aheterogeneidade estrutural com todas as suas conseqüências sociais.

Desde 2005, o país dá claros sinais de recuperação econômica, e se volta a falar naimportância de pensar o longo prazo. Neste contexto, as concepções de desenvolvimen-to passam a ser mais uma vez tema relevante nos debates sobre os destinos do país. Oenfrentamento teórico e político dessa questão requer avançar nas análises territoriaiscom pesquisas que busquem identificar a lógica de funcionamento dos vários circuitosde valorização do capital, em seus vínculos com as condições de vida da população. Pa-ra que seja reconhecida a dimensão deste desafio, convém destacar que, no país, comoafirma Brandão, seguindo as concepções de Tânia Bacelar e Celso Furtado, “nunca as di-versidades produtivas, sociais, culturais, espaciais (regionais, urbanas e rurais) foram usa-das no sentido positivo. Foram tratadas sempre como desequilíbrios, assimetrias e pro-blemas”. (Brandão, 2007: 205) O autor alerta-nos, assim, para a necessidade de quesejam reconhecidas as potencialidades existentes na diversidade, o que implica na articu-lação entre processos econômicos transescalares e a história, relativamente autônoma, deregiões e lugares.

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8 Na análise de Vainer (opcit), os novos prefeitos te-riam a “legitimidade” que ospolíticos “corrompidos” per-deram e poderiam falar emnome de uma vontade úni-ca, que visaria antes de tu-do defender e promover a“cidade” (vista como homo-gênea), em um processodespolitizador e autoritário,em que desapareceria a ci-dade do encontro e do con-fronto entre cidadãos.

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Estamos diante, portanto, da necessidade de uma urgente resposta às seguintes per-guntas: qual o novo perfil do profissional de nossa área? Quais são os conteúdos disci-plinares e técnicos do planejamento socialmente necessário? (Ribeiro, 2002) Podemosreconhecer nossos cursos como ainda voltados à formação de planejadores? Acreditamosser possível responder afirmativamente a esta última pergunta quando levamos em con-ta os acúmulos de conhecimento e o fato de o Brasil ser um país continental, periféricoe ainda subdesenvolvido, e que requer ser mais bem entendido, sobretudo para propici-ar uma apropriação mais justa de seu território. Questionar os interesses constituídos nosmais de cinco mil municípios, distribuídos numa grande variedade de contextos regio-nais, e estudar o papel exercido pelo capital imobiliário e industrial, pelo agronegócio,pelo capital financeiro, pelas organizações políticas e sociais nas mudanças territoriaissão, sem dúvida, tarefas do presente. Além disso, o rescaldo da implantação abrupta edescoordenada das políticas liberais da década de 1990 ainda está por ser feito – uma im-plantação que trouxe perdas institucionais, destruição de investimentos pretéritos e oagravamento da crise social.

A descentralização administrativa, determinada pela Constituição Federal, traz no-vas questões relacionadas à procura de pessoal qualificado. A consolidação deste proces-so vem exigindo um melhor aparelhamento das administrações públicas locais, com oconseqüente aumento da demanda por profissionais para atuar em prefeituras e órgãospúblicos em geral. Embora o planejamento, neste âmbito, geralmente se limite a ser umesforço de coordenação administrativa, que não chega ao estágio de produzir efetivasmudanças estruturais, a ampliação de conhecimento de processos econômicos, sócio-espaciais e culturais poderá expandir a capacidade de ação do corpo técnico envolvidonas tarefas administrativas.

As mudanças em curso na economia, na administração de recursos e nas formas deorganização dos interesses sociais evidenciam a necessidade de que o ensino do planeja-mento urbano e regional assuma diferentes programas e projetos entre as instituições de en-sino, com vistas a atender às demandas regionais e locais de formação profissional (Piquetel al, 2005). O desafio é reconhecer e tratar as diferenças sem gerar perdas teóricas; aderira modelos desconectados dos contextos investigados; aceitar modismos e cair em casuís-mos. Mas, este desafio inclui, também, a superação de generalizações que, por estimularemfalsas homogeneidades, pouco avançam no conhecimento da diversidade que caracteriza opaís. Sem dúvida, cada vez mais, a sociedade brasileira requer ser mais bem conhecida, oque dependerá da promoção de debates, entre especialistas e atores políticos, centrados naconstrução de um futuro socialmente mais justo e territorialmente menos desigual.

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Rosélia Périssé da SilvaPiquet é doutora em Econo-mia, professora titular daUniversidade Federal do Riode Janeiro e pesquisadorado CNPq. Coordenadora doMestrado em PlanejamentoRegional e Gestão de Cida-des, da Universidade Candi-do Mendes–Campos. E-mail:[email protected]

Ana Clara Torres Ribeiroé socióloga, doutora pelaUSP, professora do IPPUR/UFRJ e pesquisadora do CNPq e da FAPERJ. Coorde-nadora do Grupo de Traba-lho Desenvolvimento Urbanodo CLACSO. E-mail: ana_ [email protected]

Artigo recebido em novem-bro de 2008 e aprovado pa-ra publicação em fevereirode 2009.

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A B S T R A C T This article brings, synthetically, the changes observed in the profile ofpostgraduate courses on Urban and Regional Planning in Brazil in face to the transformationsin the economy and in the national planning system. The subject is organized under periodswhich highlights the master ideas of four phases of the national debate on planning, includingits bonds to territorial interpretation: the 50´s decade and beginning of the 60’s decade(planning to the changing and relevance of the development question); 70’s decade andbeginning of the 80’s decade (technocratic planning and control of the national scale); 80’sdecade and 90’s (predominance of the management and centrality attributed to the forces ofthe market); current tendencies (return to the development question and growing concern withthe long-term planning).

K E Y W O R D S Graduate courses; planning; development; urban system; region.

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OS LIMITES POLÍTICOS DEUMA REFORMA INCOMPLETA

A IMPLEMENTAÇÃO DA LEI DOS RECURSOS

HÍDRICOS NA BACIA DO PARAÍBA DO SUL*

A N T Ô N I O A . R . I O R I S

R E S U M O Na última década, o uso e a conservação dos recursos hídricos no Brasil têmsido objeto de um amplo processo de reformas e reorganização institucional. A experiência da Ba-cia Hidrográfica do Rio Paraíba do Sul foi selecionada como um exemplo paradigmático das re-formas institucionais em andamento no país. Fazendo uso de métodos qualitativos de pesquisa,foram analisados os objetivos e as deficiências da nova decisória. O estudo identificou, como li-mitante fundamental, a afirmação de uma racionalidade tecnoburocrática, empregada tanto naavaliação de problemas, quanto na formulação de respostas. A expressão mais evidente é a im-portância estratégica atribuída à cobrança pelo uso da água, uma ferramenta de gestão altamen-te controvertida e que tem levado a uma polarização de posições políticas. Em larga medida, asreformas institucionais no Paraíba do Sul têm sido limitadas em si mesmas, uma vez que a no-va estrutura ainda impede a incorporação das demandas da maioria da população local e a re-solução efetiva de questões ambientais historicamente estabelecidas.

P A L A V R A S - C H A V E Hidropolítica, Ecologia Política, Gestão Integradade Recursos Hídricos, Cobrança pelo Uso da Água, Instrumentos Econômicos, Paraíba do Sul.

INTRODUÇÃO: O CONTEXTO DAS REFORMASDE GESTÃO AMBIENTAL

A modernidade brasileira tem como características fundamentais não somente a al-teração da estrutura produtiva e das relações intersociais, como também a acentuada apro-priação dos recursos naturais e o comprometimento da estabilidade ecológica em todosos cantos do país. O processo de modernização, desencadeado especialmente a partir de1930, produziu uma profunda complexificação socioeconômica, expansão agroindustriale reorganização política, mas sem que tenha havido cuidado para se evitar o aprofunda-mento da degradação ambiental, legado da exploração agrária colonial, e o surgimento denovos conflitos relacionados ao uso do meio ambiente. A origem e o significado da pro-blemática ambiental devem ser, portanto, entendidos como parte integrante de um pro-cesso de desenvolvimento socioeconômico essencialmente limitado e contraditório. Se-guindo a terminologia sugerida por Habermas, a modernidade brasileira foi e continuasendo um “projeto incompleto”, caracterizado por resultados econômicos efêmeros, desi-gualmente distribuídos e às custas de uma devastação ambiental generalizada.

Entre as diversas contradições ambientais da história recente do desenvolvimentonacional, no que se incluem a poluição atmosférica, a degradação do solo e a dependên-cia do automóvel privado, as questões de acesso, uso e conservação de recursos hídricoscertamente ocupam uma posição de destaque. Cabe relembrar que a manipulação dos es-toques hidrológicos nunca deixou de ter um papel estratégico na industrialização e urba-

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* Este artigo é parte dos re-sultados de pesquisa reali-zada em 2007, durante pe-ríodo de pós-doutoramentojunto ao Instituto de Pesqui-sa e Planejamento Urbano eRegional (IPPUR/UFRJ), sobcoordenação do Prof. Dr.Henri Acselrad. Faz-se umsincero agradecimento aoapoio financeiro proporcio-nado pelo CNPq (protocoloPDJ-155167/2006-5). Omesmo agradecimento seestende a todos que contri-buíram com informações eaos que gentilmente aceita-ram ser entrevistados.

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nização ocorridas ao longo do século 20 no Brasil. Por meio de investimentos vultosos,alguns dos maiores projetos mundiais de engenharia hidráulica foram construídos nopaís, normalmente financiados por agências multilaterais, com o objetivo de gerar eletri-cidade e abastecer cidades, indústrias e perímetros de irrigação (Ioris, 2007). A fase cru-cial de expansão hidráulica coincidiu com as duas décadas de autoritarismo militar, quan-do foram executados projetos como Itaipu, Balbina, Itaparica e Tucuruí, entre muitasoutras obras de infra-estrutura com orçamento bilionário e justificativa discutível. Se, porum lado, tais obras de infra-estrutura representaram uma fonte de prestígio e poder paragerações de políticos e engenheiros, por outro, a dramática transformação das bacias hi-drográficas esteve notoriamente associada a escândalos de corrupção e à desestruturaçãode comunidades tradicionais.1

O período terminal da ditadura militar deu vazão a uma percepção mais apurada arespeito das conseqüências negativas de investimentos em infra-estrutura hidráulica e dafalta de uma gestão mais conseqüente. O país que experimentava um lento retorno à de-mocracia tinha também que buscar soluções para uma realidade de rios degradados, po-luição fluvial e subterrânea e redução da biodiversidade aquática, ao mesmo tempo quegrande parte da população continuava sofrendo com a falta de abastecimento de água eesgotamento sanitário, além de haver cerca de um milhão de pessoas desalojadas em fun-ção da construção das grandes barragens.2 No início da década de 1990, o tempo estavapropício para novos arranjos institucionais que pudessem trazer resposta a antigos e re-centes problemas de uso e conservação da água.3 Após anos de debate, descrito em Barth(1999), o processo de reformas culminou com a sanção, em janeiro de 1997, da Lei daPolítica Nacional de Recursos Hídricos (Lei 9.433/1997). Como uma contribuição à re-flexão sobre a primeira década da nova legislação brasileira de recursos hídricos, o presen-te estudo pretende discutir a dimensão das reformas institucionais em andamento no Bra-sil à luz do contexto regulatório internacional e com um foco na gestão da BaciaHidrográfica do Rio Paraíba do Sul (BHRPS), localizada na região sudeste do país.4

Em função da evidente continuidade de problemas em quase todas as bacias brasi-leiras, os quais são devidamente reconhecidos pelo próprio Ministério do Meio Ambien-te – conforme mostra, por exemplo, o Plano Nacional de Recursos Hídricos publicadoem 2006 –, nosso objetivo fundamental é questionar até que ponto a busca de uma me-lhor gestão de recursos hídricos no país tem se mostrado contida em si mesma. Ou seja,indagar se os escassos resultados obtidos com a implementação das novas bases institu-cionais não são, primeiramente, decorrência dos próprios limites da reforma em curso.À guisa de introdução, pode ser mencionado que, tendo em conta os dados coletados nabacia e a análise de fontes secundárias de informação, dois processos fundamentais pa-recem caracterizar toda a experiência do Paraíba do Sul. Em primeiro lugar, as agênciaspúblicas e as organizações privadas envolvidas na gestão de recursos hídricos fazem usocada vez maior de conceitos amealhados à literatura acadêmica contemporânea, mas semnecessariamente considerar as especificidades históricas e geográficas locais. Em segun-do lugar, as reformas têm claramente seguido pressões dos setores com maior força po-lítica, em especial os grandes grupos industriais e a burocracia do governo central. Ape-sar de um discurso de inclusão social, o processo de gestão reflete de forma marcante obalanço desigual de poder entre, de um lado, os setores hegemônicos e, de outro, umuniverso social disperso, composto por pequenos usuários de água, os quais enfrentammúltiplas dificuldades para defender suas demandas frente a uma estrutura administra-tiva seletiva e (operacionalmente) fechada. Na prática, os pleitos e as opiniões dos pe-

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1 Por exemplo, um escân-dalo que surgiu durante acondução da nossa pesqui-sa envolveu a aprovação daBarragem de Pratagy, orça-da em US$ 60 milhões, atra-vés da influência exercidapelo Presidente do SenadoRenan Calheiros (O Globo,28 Maio 2007).

2 De acordo com o Movi-mento dos Atingidos por Bar-ragens, mais de 200.000 fa-mílias foram desalojadasnas últimas décadas (cf.www.mabnacional. org.br).

3 Instituição é aqui entendi-da, no sentido sociológico,como “sistemas de regrasestabelecidas e preponde-rantes que estruturam inte-rações sociais” (Hodgson,2006, p.2).

4 Gestão de recursos hídri-cos envolve um conjunto demedidas tomadas por órgã-os governamentais e nãogovernamentais no sentidode avaliar, dispor, usar econservar reservas de água,processos hidrológicos e opróprio espaço da bacia hi-drográfica. Regulação deuso da água inclui instru-mentos legais, recomenda-ções e incentivos utilizadospor agências públicas parainfluenciar o comportamen-to individual e as instituiçõessociais. Na doutrina jurídicae administrativa contempo-rânea, os processos de ges-tão e regulação de uso daágua passaram a ser direta-mente relacionados aoemergente discurso de “go-vernança ambiental” e “ges-tão integrada”.

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quenos usuários de água e da população em geral têm sido significativamente ignorados,conquanto se tenta mistificar o impacto do envolvimento popular nas decisões que afe-tam a bacia hidrográfica.

Para se perceber o alcance e os limites das novas bases institucionais de gestão de re-cursos hídricos, é preciso considerar a correspondência existente entre problemas ambien-tais, modernização socioeconômica e disputas políticas dentro e fora do aparato estatal.Como será demonstrado abaixo, as oportunidades de participação pública na BHRPS têmsucumbido a um longo legado de conflitos e barreiras políticas que dificultam o atendi-mento de demandas sociais e ambientais mais amplas. Em grande medida, as falhas dasreformas institucionais em andamento podem ser atribuídas a uma racionalidade tecno-burocrática que vem sendo internacionalmente aplicada à avaliação de problemas e for-mulação de respostas. Estratégias tecnoburocráticas incluem a sistematização de conheci-mentos científicos e gerenciais aplicados à gestão de recursos hídricos com o objetivo deproduzir resultados circunstanciais, ao mesmo tempo que mantêm inalteradas as configu-rações políticas e sociais preexistentes (cf. Ioris, 2008). O caráter conservador da tecno-burocracia, na bacia em estudo e no país como um todo, pode ser diretamente relaciona-do às contradições das políticas públicas atuais. Como em outras partes do mundo, desdea década de 1990, a intervenção estatal na gestão de recursos hídricos no Brasil tem favo-recido e atraído investimentos privados (como empresas de hidroeletricidade e de abaste-cimento de água), a expensas da diminuição da função anterior do Estado (também pro-blemática, diga-se de passagem) de principal investidor e maior usuário de água.

A pressão (neo)liberalizante sobre o Estado tem como característica básica a buscade novas formas de acumulação de capital, ao mesmo tempo que atenta, de modo centra-lizado e cientificista, à mitigação dos impactos ambientais mais prementes (ver McCarthye Prudham, 2004). A influência do neoliberalismo fica demonstrada pelo argumento que,se no passado a expansão da infra-estrutura hídrica promovida pelo Estado era um reque-rimento básico do crescimento econômico, a gestão ambiental contemporânea não deveagora representar obstáculos às novas oportunidades abertas pela globalização dos merca-dos. Surgem assim estratégias inovadoras de acumulação de capital através do uso e dagestão do meio ambiente, tais como nos processos de privatização, mercantilização, des-regulação e re-regulação, assim como na utilização da sociedade civil e ONGs para com-pensar as falhas da ação governamental (Castree, 2008). A consolidação de novas oportu-nidades de acumulação de capital é assim apresentada como algo desejável à sociedadecomo um todo, mesmo a custas de graves conflitos e da produção de novas formas de de-gradação ambiental (Heynen e Robbins, 2005). A máxima do “crescimento econômico aqualquer preço” – que serviu como pedra angular da industrialização e modernidade bra-sileira (cf. Guimarães, 1991) – continua a influenciar o uso e a gestão de recursos hídri-cos nos quatro cantos do país, mesmo que dissimulada em sustentabilidade e participa-ção popular, como se verá no caso do Paraíba do Sul.

AS BASES DAS REFORMAS INSTITUCIONAIS:IDÉIAS DE INTEGRAÇÃO E GOVERNANÇA

Para se estudar as reformas institucionais no setor de recursos hídricos, antes de tu-do, é importante compreender que a bacia hidrográfica é um espaço socionatural (ou so-cioambiental) complexo e em permanente transformação (Swyngedouw, 2004; ver tam-

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bém Massey, 2005). Aquilo que mapas, hidrogramas e modelos de computador conse-guem capturar são apenas momentos, ou fragmentos, de um sistema estruturado, abertoe dinâmico: mesmo os fatores que aparentemente demonstram ser estáticos, como os di-visores de água, a rede fluvial e o regime hidrológico, são regularmente transgredidos emrazão, por exemplo, de sucessões ecológicas, alterações geomorfológicas, migrações demo-gráficas ou transferência e represamento de água. Desse modo, a bacia hidrográfica nadamais é do que a soma das várias dimensões do espaço geográfico, que é simultaneamentefixo, relativo e relacional (cf. Harvey, 1973), e tem como elemento integrador a contínuacirculação de água. A água existe como um elemento vital da profunda e perene inter-re-lação entre sociedade e natureza, descrita por Marx (1976, p.637) como uma “interaçãometabólica entre homem e terra” – importante perceber que metabolismo (Stoffwechsel)tem aqui um sentido ao mesmo tempo especificamente ecológico e amplamente social.Longe de apresentar qualquer neutralidade política, essa interação metabólica entre soci-edade e natureza incorpora diferenças e conflitos entre grupos sociais, uma vez que o aces-so à natureza e os impactos da sua transformação são sentidos de forma diferenciada pe-los vários segmentos da sociedade. Contestações em torno do uso e da conservação dosrecursos e do espaço da bacia hidrográfica não emergem de forma abstrata, mas depen-dem de circunstâncias históricas e geográficas específicas. Pode-se afirmar que, em gran-de medida, a inaptidão das respostas oficiais aos problemas de gestão de recursos hídricosse deve à dificuldade de compreender essa dinâmica, complexa e politizada ontologia daágua e da bacia hidrográfica.

Nas últimas décadas, um grande número de reuniões internacionais e declaraçõesmultilaterais tem contribuído para fazer da problemática da água um assunto de grandeinteresse público, ainda que mantendo uma visão excessivamente setorial e fragmentada.Desde a Conferência de Mar del Plata em 1977, passando pelos encontros de Dublin em1992 e Quioto em 2003, governos e programas de cooperação têm discutido como re-duzir o nível de impactos ambientais e melhorar os serviços públicos de água e sanea-mento (cf. UNDP, 2006). Tendo por base a crescente pressão de agências de desenvolvi-mento – e.g. o Banco Mundial tem sido um dos principais núcleos de formulação depolíticas públicas de recursos hídricos –, a maioria dos países, incluindo o Brasil, foi le-vada a iniciar uma reforma institucional baseada na gestão de água por bacia hidrográ-fica – coordenada por um comitê de representantes setoriais – e no emprego de instru-mentos flexíveis de regulação ambiental – notadamente, taxas e incentivos econômicos.5

A contribuição acadêmica para esse debate internacional vem se desdobrando por diver-sas disciplinas, da economia à hidrologia, e pode ser claramente identificada pela formu-lação de novas metodologias, tais como gestão sustentável (Kay, 2000), gestão da deman-da (Brooks, 2006), subsidiariedade (Moss, 2004) e gestão adaptativa (Pahl-Wostl,2007). De todo modo, é provavelmente o termo “gestão integrada dos recursos hídricos”(IWRM para a sigla em inglês, acrônimo de integrated water resources management) o quemelhor simboliza o novo “paradigma” de uso e conservação em expansão (Mitchell,2005). Estudos recentes sobre a experiência brasileira demonstram que “a instituciona-lização de novas normas tem refletido diretamente a influência [no país] do conceito degestão integrada de recursos hídricos” (Conca, 2006, p.309). IWRM tem sido definidacomo um processo que promove um desenvolvimento coordenado e uma gestão de água,solo e outros recursos relacionados de forma a maximizar os resultados econômicos e obem-estar social de forma justa e sem comprometer a sustentabilidade de ecossistemasvitais (GWP, 2000).

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5 Mais detalhes em: www.ana.gov.br. Existem atual-mente mais de 140 comitêsde bacia e 10.000 pro-fissionais envolvidos noSistema Nacional de Gestãode Recursos Hídricos(SINGREH).

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Apesar da proliferação de publicações sobre a necessidade da integração da gestão, amaioria das políticas públicas de recursos hídricos, no Brasil e no mundo, continua res-trita a ajustes administrativos dissociados das dinâmicas sociais e ambientais concretas. Aose invocar o objetivo de integração de forma tecnocrática, há uma tendência de reduzir acomplexidade e as demandas socionaturais a simples equações matemáticas (e.g. Gatira-na et al., 2008). Foi já observado que a postura arraigada de gestores e hidrólogos nor-malmente continua a considerar as questões políticas e sociais como “desvios” dos objeti-vos genuínos de gestão de recursos hídricos (McCulloch e Ioris, 2007). De acordo comMollinga (2001), as reformas institucionais em curso despertam grande interesse entregestores públicos devido ao fato de que facilmente se prestam a soluções estandardizadase que se aplicam igualmente a diferentes situações. Em especial, a influência do conceitode gestão integrada, em que pese uma mudança de discurso, leva à compreensão dos pro-blemas de recursos hídricos como mera decorrência da má utilização de técnicas adminis-trativas e, principalmente, da subvalorização econômica da água. Devido a esse pensa-mento reducionista, a maioria das políticas públicas insiste em considerar a água apenascomo reserva de valor, mas não como um elemento básico de numerosos processos socio-ambientais e que operam em diferentes dimensões. Conseqüência direta desse raciocínioé o pagamento pelos serviços ambientais, o mais recente ‘ovo de Colombo’ dos economis-tas ligados aos recursos hídricos (ver Silvano et al., 2005, para um exemplo recente noBrasil). Ignora-se, assim, que intervenções nos sistemas hidrológicos tendem tradicional-mente a gerar custos, benefícios e riscos que são distribuídos de modo desigual nas esca-las espaciais e temporais e percebidos de forma diferenciada pelos diversos grupos sociais(Molle, 2007).

Assim como se busca uma gestão de recursos hídricos mais integrada, muitas daspolíticas ambientais contemporâneas advogam uma melhoria de “governança”, tida co-mo a remoção de barreiras que existem entre sociedade, Estado e mercado (Lemos eAgrawal, 2006). A construção de uma nova governança deve passar por uma mudançaparadigmática da gestão ambiental, baseada em um envolvimento mais amplo da socie-dade na formulação e implementação de políticas públicas (Judge et al., 1995). Gover-nança ambiental é também entendida como a criação, reafirmação ou mudança de ins-tituições com o objetivo de se resolver conflitos relacionados aos recursos naturais comsuficiente sensibilidade social (cf. Paavola, 2007). No setor de recursos hídricos, o con-ceito de governança é muitas vezes tomado como auto-evidente, sem a necessidade deuma definição precisa (e.g. Abers, 2007), mas geralmente relacionado a um tratamentodos problemas de gestão de água que prescinde da força coercitiva do Estado (Laban,2007). A “crise” da água é tida como principalmente uma ‘crise’ de governança (GWP,2000), a qual pode ser definida como a “capacidade de um sistema social de mobilizarenergias, de forma coerente, para o desenvolvimento sustentável dos recursos hídricos”(Rogers, 2002, p.1). O último autor acrescenta que o conceito inclui uma habilidade dedesenhar políticas públicas “que sejam socialmente aceitáveis, que tenham como propó-sito o desenvolvimento e uso sustentável de recursos hídricos, e que tornem sua imple-mentação efetiva pelos diferentes atores/interessados envolvidos no processo”. Como po-de ser facilmente percebido, existe uma clara associação entre governança e gestãointegrada de recursos hídricos, demonstrada pela crescente procura por novas capacida-des de geração e implementação de políticas e projetos (Rahaman e Varis, 2005). O su-cesso da gestão integrada de recursos hídricos passa, assim, pela promoção de uma efeti-va governança, a qual decorre do estabelecimento de consensos entre atores sociais e da

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concepção de sistemas de gestão com maior capacidade de perceber a complexidade dosproblemas de recursos hídricos (CEPAL, 2006).

Apesar de representar um avanço em relação às posturas antigas e mais tradicionais(e.g. baseadas em infraestrutura e na imposição de regras rígidas), governança hídrica nãodeixa de ser um conceito tão vago e contraditório quanto gestão integrada. Conformedescrito por Castro (2007), para alguns, governança é apenas um instrumento, um meiopara se atingir certos fins, uma ferramenta administrativa e técnica que pode ser utilizadaem diferentes contextos. Para outros, trata-se de um debate entre alternativas que estãoem conflito, no qual a definição de fins e meios deve ser buscada no campo político e de-mocrático. É importante ressaltar que a noção de governança surge no contexto históricoda expansão neoliberal, quando o Estado passa a ser sistematicamente atacado por inte-resses privados fortalecidos por uma economia cada vez mais globalizada e que favorece osurgimento de formas ‘plurais’ de ação, como, por exemplo, a formação de parcerias pú-blico-privadas e a substituição da sociedade civil por ONGs (Castro, 2007). O desloca-mento de uma atuação centrada em “governo” para outra baseada em “governança” ine-vitavelmente envolve uma gama de interesses geográficos e econômicos diversos (Page eKaika, 2003), mas muitos dos que advogam essa transição subestimam o conjunto de for-ças governamentais e de mercado que produzem a destituição de recursos, a degradaçãoambiental e a redução das oportunidades de sobrevivência das comunidades locais (Leff,2003; Heynen e Robbins, 2005).

Apesar das evidentes limitações dos conceitos que atualmente dominam o debate nosetor de recursos hídricos, notadamente ‘gestão integrada’ e ‘governança ambiental’, sãoainda muito restritas as análises políticas das reformas contemporâneas de recursos hídri-cos. Por exemplo, são poucos os autores que reconhecem a situação de falta de água co-mo um processo socialmente fabricado e que reflete a interação entre grupos sociais e en-tre sociedade e Estado (Mehta, 2007). Da mesma forma, grande parte do debate sobre anova agenda de recursos hídricos continua silenciada em relação à racionalização ideoló-gica das políticas públicas, assim como ignora os mecanismos de controle relacionados ao“bio-poder” do Estado moderno (cf. Foucault, 1984). Permanece, assim, uma barreiraconceitual que impede a percepção dos processos de exclusão urbana e rural, assim comouma extensa ignorância quanto às relações entre fluxos de água e circulação de capital(Swyngedouw, 2004). Mesmo aqueles que tentam relacionar as reformas institucionaisem curso com pressões econômicas e a ideologia neoliberal muitas vezes são incapazes decompreender que a transformação da água em bem econômico (e mesmo em mercado-ria) envolve arranjos sociais, econômicos, materiais e discursivos complexos (Köhler,2005). Continua tímida a reflexão sobre as complexidades geográficas e políticas das re-formas contemporâneas de recursos hídricos, ou, na linguagem de Sneddon e Fox(2006), falta ainda uma “hidropolítica crítica” que conecte elementos de geografia polí-tica e socionatureza.

A análise hidropolítica é crucial para se compreender a evolução e as tendências dosproblemas de gestão de água em países como o Brasil, onde as desigualdades sociais e eco-nômicas deixam marcas indeléveis no meio ambiente.6 Existe e se mantém uma clara po-litização do uso e conservação da água, como no caso recente de construção de grandesbarragens na Amazônia (e.g. na Bacia do Rio Madeira) e do início do projeto de transpo-sição do Rio São Francisco para bacias mais ao norte. Os conflitos sobre recursos naturaisestão também ligados a sistemas políticos e econômicos estabelecidos ainda na época co-lonial brasileira (Bryant, 1998), enquanto que mudanças ambientais não são apenas o re-

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6 Por outro lado, caberessaltar que as pressõeseconômicas sobre os recur-sos hídricos no Brasil nãose restringem ao períodoneoliberal recente, mas es-tiveram profundamente as-sociadas ao processo demodernização socioeconô-mica mencionadoa acima. Anova fase de regulação deuso da água, que é o objetoprincipal da presente dis-cussão, apenas aprofunda eredireciona mecanismos an-teriormente estabelecidosde apropriação privada derecursos comuns e geraçãode impactos negativos so-bre largas parcelas da popu-lação. Um exemplo nessesentido é a degradação daBacia do Rio São Francisco,a qual passou por umprocesso de desenvolvimen-to hídrico (em um momentoprévio à fase neoliberal) as-sentado no latifúndio, naconstrução de grandes bar-ragens e na irrigação defrutíferas voltada ao merca-do exterior.

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sultado do processo de desenvolvimento, mas o resultado de dinâmicas políticas e de con-flitos de valores (Marsden, 1997). Importante ressaltar que essa dimensão política é con-tinuamente negada pelo discurso oficial, especialmente no que diz respeito às desigualda-des no acesso a serviços públicos ou pela exclusão de grupos marginalizados do processode tomada de decisão (cf. Zhouri e Oliveira, 2005; a respeito da continuidade autoritáriarelacionada à construção de barragens, ver Ribeiro et al., 2005).

As próximas seções deste texto deverão examinar alguns aspectos de hidropolítica naexperiência na Bacia do Rio Paraíba do Sul, verdadeiro “microcosmos” das reformas ins-titucionais em andamento no país. A análise seguirá uma abordagem de “economia polí-tica institucional”, conforme proposta por Bridge e Jonas (2002), para avaliar a consoli-dação de um sistema de regulação de recursos naturais por meio de “geografias específicasde confrontação” [specific geographies of struggle]. A discussão atentará também à articula-ção entre diferentes dinâmicas e políticas espaciais (cf. Swyngedouw, 2000), notadamen-te entre os estados que compartilham a bacia e a atuação do governo federal. No caso doParaíba do Sul, a descrição de conflitos e dinâmicas geográficas é fundamental para se en-tender como a mediação de problemas por meio (principalmente) da expressão do valormonetário da água tem limitado o alcance das reformas institucionais.

A EXPERIÊNCIA DA BACIA HIDROGRÁFICA DORIO PARAÍBA DO SUL

AS CARACTERÍSTICAS SOCIONATURAIS DA BACIA HIDROGRÁFICA

Ainda que o Brasil seja um país com rios imensos, alguns com mais água que naçõesou subcontinentes inteiros, em termos hidrológicos, o Paraíba do Sul figura como um riode porte mediano: a vazão média de longo período na altura da foz foi estimada em1.118,40 m3/s – tomando-se em conta as séries históricas de 199 estações fluviométricase obtida através de estudos de regionalização (cf. Coppetec, 2006, p. VII-1) –, o que é sig-nificativamente menor do que os valores equivalentes para as grandes bacias hidrográficasbrasileiras.7 Mesmo assim, a BHRPS tem sido palco de alguns dos mais relevantes desdo-bramentos e contradições da história do uso e da gestão de recursos hídricos no país. De-vido à sua localização estratégica, a BHRPS vem ocupando, há mais de 300 anos, uma im-portância econômica e política fundamental. A exploração da bacia teve início já noséculo XVII com as primeiras incursões ao interior do território para explorar minerais eaprisionar indígenas. No século XVIII, o Paraíba do Sul constituía o principal meio de co-municação entre a costa e os sítios de ouro em Minas Gerais.8 Com a introdução de caféem 1770, vastas áreas de terra foram desmatadas para abrir espaço para fazendas cafeicul-toras. São desse período as construções imponentes dos famosos “barões do café” que do-minavam a economia do Império; a aristocracia local era constituída por 32 senhores comtítulos nobiliárquicos, incluindo barões, viscondes e mesmo dois condes (para a lista com-pleta, ver Müller, 1969). Em poucas décadas, porém, as altas taxas de erosão do solo co-meçaram a comprometer a produtividade agrícola, e o centro da cafeicultura se deslocoupara outros estados. Um novo ciclo econômico se iniciou no final do século 19, com aemergência da indústria têxtil e alimentícia, facilitada pela proximidade dos centros con-sumidores de São Paulo e Rio de Janeiro. O Vale do Paraíba foi uma das primeiras zonasa se industrializar no país, tendo como um importante marco histórico a fundação da

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7 A área da Bacia Hidrográ-fica do Rio Paraíba do Sul éde 55.500 km2 distribuídosentre os estados de SãoPaulo, Minas Gerais e Rio deJaneiro. Mais de 5,4 mi-lhões de pessoas vivem nos180 municípios com territó-rio parcial ou totalmentecontido na bacia; a calha dorio principal tem uma exten-são de 1.100 km (Coppe-tec, 2006).

8 Cabe mencionar que,além do papel econômico egeopolítico, a bacia contémo maior centro da religiosi-dade nacional, a Basílica deNossa Senhora Aparecida,cuja imagem foi encontradapor pescadores nas águasdo Paraíba do Sul em 1717.Tal fato enfatiza ainda maiso valor simbólico do Paraí-ba do Sul em relação a ou-tras bacias hidrográficasbrasileiras.

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Companhia Siderúrgica Nacional, a primeira grande instalação de siderurgia do Brasil, nadécada de 1940.

Atualmente existe na bacia um parque industrial complexo, que contém mais de6.000 unidades fabris e responde por aproximadamente 11% do PIB nacional. Neste con-texto, a água é utilizada intensivamente por cidades, indústrias e agricultura, exercendogrande pressão sobre estoques relativamente restritos de recursos hídricos. Importantedestacar que 2/3 da vazão no trecho médio do rio são desviados para o Rio Guandu como propósito principal de abastecer de água 80% da população na Região Metropolitanado Rio de Janeiro.9 Existem ainda mais de 120 estações hidroelétricas em operação na ba-cia, entre pequenas, médias e grandes geradoras. A variedade de interesses e atividades emtorno da água na BHRPS, que justificaria um cuidado muito maior com a proteção e con-servação da bacia, produziu um grave quadro de degradação e desequilíbrios ambientaisseveros. Na verdade, a história da bacia pode ser resumida a ciclos econômicos descontí-nuos, crescimento desigual e persistente degradação ambiental (Aquino e Farias, 1998).A grave condição ecológica é particularmente evidente na seção média do rio, justamen-te onde a maioria das hidroelétricas e das indústrias está localizada (Araújo et al., 2003).Além da poluição industrial, a descarga de efluentes urbanos representa uma fonte signi-ficativa de impactos ambientais, especialmente tendo-se em conta que apenas 17,6% doesgoto recebem alguma forma de tratamento. Como em tantas outras partes do país, aomesmo tempo em que a água serve primeiramente às prioridades do crescimento econô-mico, os impactos ambientais e a falta de serviços públicos afetam especialmente popula-ções de baixa renda e áreas semi-urbanizadas.10

REFORMAS INSTITUCIONAIS DE GESTÃO E A CENTRALIDADE DO INSTRUMENTO

DA COBRANÇA

O reconhecimento da extensa degradação do Rio Paraíba do Sul e de muitos de seusafluentes não é recente, mas tem sido objeto de repetidas, mas inócuas, respostas gover-namentais. A primeira tentativa de sistematizar o uso da água na bacia aconteceu em1939, na seção de montante, no Estado de São Paulo, pelo denominado Serviço de Me-lhoramentos do Vale do Paraíba. Somente em 1968 o governo federal tomou a iniciativade estabelecer um órgão com o propósito de conter a degradação da bacia, chamado Co-missão do Vale do Paraíba do Sul (COVAP). A comissão foi substituída em 1979 pelo Co-mitê Executivo de Estudos Integrados da Bacia Hidrográfica do Rio Paraíba do Sul (CE-

EIVAP), o qual congregava apenas representantes de órgãos governamentais e tinha omandato de formulação de planos de recuperação ambiental. Como pode ser visto pelasdatas, COVAP e CEEIVAP foram estabelecidos durante o período de ditadura militar, e suacomposição excluía a participação da população local e dos usuários de água. Enquantoo governo federal e as administrações estaduais mostravam-se incapazes de responder aosproblemas, na década de 1980, a bacia passou a ser conhecida internacionalmente por suacondição ambiental. Foi somente quando os níveis de poluição passaram a comprometera própria atividade econômica, somado ao criticismo internacional, que reformas institu-cionais mais efetivas passaram a ser consideradas. Um novo comitê de bacia, chamadoComitê para Integração do Rio Paraíba do Sul (CEIVAP) foi instalado no final da décadade 1990, segundo os preceitos da nova legislação nacional (Lei 9433/1997). A composi-ção do CEIVAP inclui 24 representantes dos usuários de água, 21 representantes dos trêsníveis de administração pública e 15 membros da sociedade civil organizada.11 Desde seu

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9 Essa transferência entrebacias hidrográficas, queserve também à geração deenergia hidroelétrica, tem umresultado profundamente am-bivalente. Por um lado, au-menta a disponibilidade deágua para o Rio de Janeiro,uma região superpovoada,com alta demanda hídrica,mas com mananciais bastan-te degradados. Por outro la-do, os volumes transferidosdesde o Paraíba do Sul ime-diatamente são subordina-dos às desigualdades sociaise espaciais da região metro-politana. Ou seja, apesar daaparente eficiência técnicana operação de transposiçãode bacias, o resultado final éa produção de situações deescassez tanto na área doa-dora, quanto na ponta re-ceptora, uma vez que suadistribuição segue padrõestradicionais e elitistas deabastecimento público.10 Para maiores detalhesda condição ambiental dabacia, ver Coppetec (2002,2006).11 Apesar de nominalmentededicada à sociedade civil,sua participação no CEIVAPtem sido sistematicamentenegada pela nomeação derepresentantes de federa-ções de negócios, conselhosprofissionais e consórcios demunicípios como se fossemgenuínos representantes dapopulação em geral (ProjetoMarca d’Água, 2003).12 “Mais especificamente, apesquisa foi desenhada se-guindo os objetivos e concei-tos do “realismo crítico” (cf.Sayer, 1992), segundo oqual, o método inclui não so-mente o componente empíri-co, mas também teorizaçãoa respeito das relações soci-ais e da produção do conhe-cimento. A estratégia meto-dológica básica foi a buscade uma “síntese” da realidadeconcreta, que compreendeestruturas, mecanismos eeventos. Foram examinadastanto as bases qualitativasdas relações sociais, como adimensão material e a intera-ção com o meio natural. Ostrabalhos de campo (entremarço e maio de 2007) en-volveram 20 entrevistas con-fidenciais (semi-estruturadas)com usuários de água, servi-dores públicos e membrosdo comitê da bacia, seguidasde discussões complementa-res por e-mail nos mesessubseqüentes; foram produzi-das detalhadas análises de

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estabelecimento, o novo comitê recebeu apoio financeiro e político do governo federal epassou a se caracterizar como uma “vitrine” do novo modelo de gestão de recursos hídri-cos no Brasil (ver Braga et al., 2005).

Tendo em conta a relevância simbólica e material da experiência local, especialmen-te o fato de ter sido a primeira bacia sob responsabilidade federal a adotar os novos ins-trumentos regulatórios, o Paraíba do Sul serve como excelente estudo de caso sobre a pri-meira década de vigência da nova lei brasileira de recursos hídricos. Nosso trabalho deinvestigação seguiu as orientações de Watts e Pett (2004) de que o exame das relações en-tre eventos, estruturas e mecanismos, através de um senso estratificado da realidade, per-mite a explicação de processos por meio da reconstrução de teorias e conceitos preesta-belecidos.12 Ainda nos primeiros estágios dos levantamentos de campo, foi possívelperceber que as atividades do CEIVAP têm se caracterizado por uma agenda repleta de re-uniões e cerimônias, muitas vezes com a participação de ministros e altas autoridades, eque a bacia tem atraído uma crescente atenção de círculos acadêmicos e ocupado as man-chetes da grande mídia. Uma investigação mais minuciosa permitiu identificar que, portrás dessa constante publicidade a respeito dos desdobramentos das atividades do comi-tê, grande parte do esforço tem se restringido a uma única questão: a implementação dacobrança pelo uso da água (conforme previsto no Artigo 19 da Lei 9.433/1997).13 Mes-mo o conteúdo dos planos e documentos produzidos pelo comitê (CEIVAP) tem se con-centrado em torno do cálculo e da aplicação da cobrança. Por causa dessa “hipertrofia”do papel dedicado à cobrança, ainda no início nossos trabalhos de campo foram redire-cionados e passaram a considerar de modo mais específico as controvérsias a respeito dacobrança pelo uso da água na BHRPS. A decisão de redirecionar o foco da pesquisa foimais tarde justificada quando nas diversas entrevistas quase todos os informantes deseja-ram espontaneamente dedicar a maior parte do tempo discorrendo sobre como a cobran-ça vem afetando a gestão de recursos hídricos. Dessa forma, a implantação da cobrançapassou a ser a principal referência a respeito do nível de participação pública e da efeti-vidade do novo modelo institucional de gestão de recursos hídricos. Como vai ser discu-tido abaixo, a centralidade da cobrança pelo uso da água – um dos pilares do modelo degovernança hídrica em implementação – gera uma evidente situação de ambigüidade ins-titucional, uma vez que reduz o foco nas soluções dos problemas para dedicar especialatenção a processos administrativos altamente conflituosos. A adoção da cobrança pelouso da água contribui para aumentar a percepção das questões socioambientais, mas semnecessariamente criar uma “totalidade” que inclua a multiplicidade de atores e interes-ses.14 Para ser consistente com os critérios metodológicos sugeridos por Watts e Pett(2004), foi necessário examinar não apenas os resultados finais das diversas esferas de de-cisão voltadas à aplicação da cobrança, mas também compreender o processo de negoci-ação e o jogo de interesses envolvido, particularmente porque a aprovação da cobrançapelo uso da água na BHRPS seguiu uma longa e tortuosa jornada de disputas setoriais earticulações políticas. Embates similares têm ocorrido em instâncias do sistema nacionalde gestão, como no Conselho Nacional de Recursos Hídricos, mas a experiência doParaíba do Sul contém particularidades geográficas e históricas da maior relevância. Aprioridade dedicada à cobrança passou a ser mais evidente a partir do ano 2000, quandoficou claro para a maioria dos membros do CEIVAP que era necessário reduzir a depen-dência em relação ao apoio financeiro proporcionado pelo governo federal (conformedetalhado por Gruben et al., 2002, e Tedeschi, 2003). Entre 2000 e 2002, as opiniõescontra e a favor da cobrança dividiram o comitê em dois pólos de opiniões antagônicas.

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políticas públicas. Houve tam-bém a participação em diver-sas reuniões abertas e en-contros de mobilização. Ametodologia de seleção dasentrevistas teve por base asrecomendações de Cloke etal. (2004) no sentido de en-volver informantes com co-nhecimento, experiência edisposição de participar. Fo-ram escolhidos representan-tes de diferentes setores deusuários de água distribuídosentre os três estados da fe-deração que compartilham abacia (RJ, SP e MG). Os con-tatos preliminares foram fei-tos em função da análise dedocumentos oficiais e suges-tões de outros participantesenvolvidos no início da pes-quisa. O conteúdo das entre-vistas foi analisado de formaa salientar pontos de conver-gência e divergência entre asposições de diferentes gru-pos, mas também em rela-ção às metas de políticas pú-blicas e planos aprovadospelo comitê da bacia. A inter-pretação dos resultados si-tua-se no campo da “ecologiapolítica”, ou seja, o entendi-mento que política é inevita-velmente ecológica, ao mes-mo tempo que a ecologia éintrinsecamente política (Rob-bins, 2004).13 Trata-se aqui da cobrançapela captação de água demanaciais e pela descargade efluentes. As taxas de ser-viço água e esgoto tradicio-namente cobradas desde oséculo 19 no Brasil dizemrespeito aos custos de trata-mento e distribuição de águae coleta e tratamento de eflu-entes, mas não incluem ochamado “custo ambiental”,que é justamente o propósitoda nova legislação. Ou seja,a Lei 9433 estabelece opressuposto legal (que haviasido vagamente menciona-do, mas nunca implementa-do, no Código de Águas de1934) de que os mananciaisde água têm um valor econô-mico per se e, por essa ra-zão, deve haver uma taxacorrespondente a ser pagaao Estado, após aprovaçãopelo respectivo comitê de ba-cia hidrográfica. O Artigo 19da lei determina ainda que acobrança pelo uso de recur-sos hídricos deve incentivaro uso racional e financiar pro-gramas e intervenções.14 Cabe agradecer a um re-visor(a) (anônimo) a gentile-za de nos alertar para essaquestão.

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A favor da imediata adoção da cobrança estavam os representantes do governo federal –cujo interesse principal não era diminuir seus gastos com o comitê, mas fazer avançar aimplementação da nova lei de recursos hídricos –, executivos do próprio comitê, acadê-micos e a maioria das ONGs ambientalistas. Contra a cobrança posicionaram-se os repre-sentantes dos setores industrial, agrícola e de hidroeletricidade. Um pequeno número departicipantes mantinha-se indeciso sobre a melhor alternativa. Durante essa fase de deba-tes, as reuniões do CEIVAP passaram a se constituir em um “campo de batalha”, onde osrepresentantes dos setores econômicos, indústria em particular, exprimiam sua inconfor-midade e questionavam a oportunidade de se adotar a cobrança naquele momento. Deacordo com alguns dos nossos entrevistados, esse acalorado debate, em vez de aprofun-dar a democracia interna no comitê, resultou em mútuo cepticismo e gradualmente re-duziu o papel de liderança que o comitê deveria estar ocupando na resolução dos proble-mas de gestão de recursos hídricos. A controvérsia apenas aumentava as incertezas sobrecomo a futura arrecadação dos valores advindos da cobrança seria revertida em benefícioda bacia; ao mesmo tempo, não havia nenhuma definição a respeito de como taxar osusos não consuntivos de água (e.g. geração hidroelétrica) e como lidar com a transferên-cia de água da bacia do Paraíba do Sul para o Rio Guandu.

Durante essa fase inicial, importantes representantes do setor industrial mantiveramuma postura reticente em relação à formação da Agência Nacional de Águas (ANA) em2001, uma vez que a mesma não estava prevista na legislação original de 1997. A dispu-ta entre regulador (e.g. ANA) e aqueles a serem regulados (e.g. indústria) somente cresceuquando a Agência, já no início das operações, percebeu que a implementação da cobran-ça na BHRPS representaria um passo altamente estratégico para sua justificativa política eadministrativa (cf. comunicação pessoal de superintendente da ANA ao autor). Conside-rando o jogo de disputas durante esse período inicial do CEIVAP, uma das nossas entre-vistas com representantes dos usuários de água colheu a seguinte observação:

Pergunta: ... levando-se em conta que a ANA foi criada anos depois de o CEIVAP ter sido insti-tuído, como o senhor avalia a contribuição da agência para o processo de reorganização da gestãona bacia?

Resposta: Não havia necessidade de se criar a ANA quando o sistema nacional de recursos foi es-tabelecido (…); o problema é que as pessoas vêem a ANA como um braço do governo e [por essarazão] apenas um coletor de taxas (...); no geral, a ANA tem alargado os conflitos na Bacia doParaíba e muito além – membro do CEIVAP. (entrevista, Maio 2007)

A controvérsia em torno da implantação da cobrança teve uma curiosa mudança derumo quando em 2002 o setor industrial inverteu sua oposição contrária à cobrança epassou abertamente a concordar que se pagasse uma taxa proporcional ao uso da água.15

À primeira vista, parecia que os industrialistas passaram a concordar com o argumentodos demais membros do comitê e aceitaram a idéia que a cobrança representaria um“avanço” no tratamento dos problemas ambientais ao responsabilizar diretamente aquelesusuários que causam impactos ambientais. Contudo, com o tempo ficou claro que a realrazão para a mudança de postura foi muito mais uma decisão estratégica do que uma to-mada repentina de consciência ambiental: na verdade, uma vez que a introdução da co-brança estava prevista em lei e era inevitável, dada a pressão da ANA e de outros gruposcom representação no comitê, a indústria preferiu adotar uma posição pró-ativa e garan-

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15 Contudo, a CSN, o maiorusuário de água, contestoua cobrança na Justiça.

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tir tarifas reduzidas, além de capitalizar politicamente. Para o público externo criou-se aimpressão de que as indústrias na BHRPS estariam contribuindo efetivamente para a reso-lução dos (graves) problemas que ela mesma ajudou a causar, mas de fato houve apenasum movimento de aceitação de valores de cobrança relativamente baixos, com o benefí-cio de ter sua imagem politicamente consolidada. Como historiado por Formiga-Johnsson et al. (2007), ao concordar voluntariamente com a cobrança, o setor industrialesvaziou qualquer tentativa de se ter um marco regulatório mais efetivo. A grande ironianesse processo, indicada por diversos de nossos entrevistados, foi que as ONGs ambientaispassaram ingenuamente a apoiar essa chicana política do setor industrial, inclusive desis-tindo de tentar aumentar o valor da cobrança para encerrar de pronto a polêmica. Dessemodo, o processo de aprovação da cobrança nada mais fez do que submergir o CEIVAP novelho jogo político que havia deformado as agências que o precederam: em vez de meca-nismos realmente participativos e que levassem em conta o interesse da maioria da popu-lação, a tomada de decisões continuava a ser controlada pelos grupos com maior poderpolítico-econômico, ainda que dissimulada em um processo de consulta democrática. Oresultado não poderia ser mais previsível e, apenas alguns anos mais tarde, nossas entre-vistas detectaram um clima predominantemente apático entre muitos membros do co-mitê e moradores da bacia em relação à contribuição efetiva da cobrança. Como observa-do por um entrevistado:

Pergunta: Em que condição o senhor participa das reuniões do CEIVAP?

Resposta: Nunca fui membro oficial mesmo, mas ia lá como curioso, como interessado em sabermais sobre o processo todo de melhoria do rio. Mas agora não vou mais, não.

Pergunta: E por que não? Por que o senhor deixou de participar?

Resposta: As reuniões no comitê [CEIVAP] são na maioria das vezes uma perda de tempo; aque-les que deveriam ser mais críticos dos problemas da bacia, como as ONGs, ficam quietas, porquequerem mesmo é obter dinheiro [através do comitê] e não devem contradizer as vozes que man-dam, com o a ANA e a CSN (…). Outro problema grave é que a ANA tem uma visão puramen-te “hidrológica” em relação aos problemas de recursos hídricos – ativista ambiental e observadordas reuniões do CEIVAP. (entrevista, Maio 2007)

Na prática, em vez de reforçar um processo de mobilização popular que emergia nabacia desde a década de 1980, a organização do novo comitê rapidamente tomou um ca-minho formalista e burocrático em relação aos problemas sociais e ambientais. Hoje oCEIVAP parece, antes de tudo, uma agência pára-governamental e não um fórum de re-presentação da diversidade de vozes que compõem o tecido popular da bacia. A contro-vérsia em torno da cobrança teve ainda o efeito de praticamente monopolizar as ativida-des do comitê e marginalizar a consideração dos problemas sociais e ambientais concretos.Tal situação pode ser facilmente detectada com a análise das atas das reuniões do CEIVAP

entre 2000 e 2007, pela qual fica claro que, à medida que algum membro do comitê pro-punha, por exemplo, que questões relacionadas à poluição do rio, educação ambiental ouconflitos entre usuários de montante e jusante fossem incluídas na agenda, essa voz “in-conveniente” era prontamente abafada pelo próprio desenrolar da reunião. Por exemplo,em 12/02/2004, um participante propôs que se discutisse qual seria a justa distribuição

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de água entre os estados de São Paulo e Rio de Janeiro, mas a questão simplesmente nãoavançou. Igualmente, em 19/10/2006, outro participante queixou-se a respeito da gravedegradação nos trechos inferiores do rio, mas não despertou o interesse do comitê. Pro-vavelmente, o melhor exemplo da incapacidade do CEIVAP de administrar os problemase conflitos na bacia esteja relacionado à aprovação da usina hidroelétrica de Itaocara, umaunidade com potencial de geração de 195 MW e que está associada a um reservatório com76 km2 de área superficial. Em 23/08/2005, membros do comitê defenderam a aprova-ção sumária da nova barragem, mas foram então questionados por uma representante deONG. Uma nova discussão sobre o mesmo assunto aconteceu em 16/09/2005 em uma re-união a que surpreendentemente compareceram apenas os representantes dos empreen-dedores, mas não a população local que seria desalojada com a construção da nova barra-gem (cf. Vainer et al., 2004).16 Esse simples exemplo demonstra como o comitê, quedeveria ser uma arena de franco debate e de decisões democráticas, passou a funcionar co-mo um órgão com as portas fechadas aos grupos mais vulneráveis da população. A con-trovérsia relacionada à barragem de Itaocara talvez seja o caso mais ilustrativo, mas segu-ramente não foi o único momento em que o papel do comitê como fórum legítimo eparitário de representação tenha sido aviltado (há menção a situações análogas nas pró-prias atas do comitê). Exemplos dessa natureza levam à conclusão que, apesar da retóricade participação e descentralização adotada pelo CEIVAP em suas publicações, o comitê debacia tem de fato apenas um tênue compromisso com a maioria da população local e como universo maior de pequenos usuários de água.

Apesar de ter sido objeto de menções honrosas, como quando obteve em 2004 oprêmio “Melhores Práticas” do Programa Habitat das Nações Unidas, a incapacidade delidar com a degradação ambiental e a falta de democracia interna vêm marcando a expe-riência do CEIVAP desde seu estabelecimento. Como referido por vários de nossos entre-vistados, existe mesmo uma perplexidade com os resultados tão modestos atingidos até omomento. Algumas frases mencionadas durante as entrevista ilustram essa percepção en-tre aqueles envolvidos no processo:

A complexidade do novo modelo de gestão [de recursos hídricos] foi subestimada quandoa lei [9.433] foi aprovada; [por causa dessa complexidade] na prática, as decisões continuamsendo tomadas a portas fechadas e com mínimo envolvimento do público – engenheira e mem-bro do CEIVAP. (entrevista, Abril 2007)

A distorção do novo sistema [de gestão de recursos hídricos] é evidente; existe mobiliza-ção apenas onde tem cobrança. Essa tem sido a prática oficial, mas o problema é que isso dei-xa tudo na dependência da cobrança – professor e observador do CEIVAP. (entrevista, Abril2007)

Os conflitos pela água são evidentes, mas são silenciosos, pouco notados [no Paraíba doSul]; (…) o que falta no processo todo é participação pública real, envolvimento do povo pravaler – morador da bacia e (auto-intitulado) “curioso” em relação ao CEIVAP. (entrevista,Maio 2007)

Existe hoje uma grande falta de transparência na aprovação de documentos e dos planospor parte do CEIVAP; total falta de transparência – advogada e membro do CEIVAP. (entre-vista, Abril 2007)

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16 O aproveitamento hidro-elétrico de Itaocara estásendo construído pela em-presa Light, uma companhiaque foi originalmente priva-da, posteriormente naciona-lizada, privatizada, e quepassa agora por um cres-cente controle do Estado (OGlobo, 18 Maio 2007). Issodemonstra a não linearidadedos processos de comodifi-cação e de-comodificaçãoda água.

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Cabe ressaltar que, apesar desse criticismo aberto, a maioria dos nossos entrevistadosentende que os problemas do comitê são temporários e que, no longo prazo, as ativida-des tendem a melhorar. Para muitos, não houve uma avaliação adequada da complexida-de do trabalho de gestão da bacia quando o CEIVAP foi organizado em 1996, em particu-lar a dificuldade de se conciliar a responsabilidade pelo rio principal e alguns afluentes porparte do governo federal e a competência dos três governos estaduais pela maioria dosafluentes.17 Essa posição cautelosa é também ecoada pelos autores que entendem que osistema regulatório é ainda muito jovem e deve possivelmente melhorar (Machado,2006). Contudo, uma análise mais cuidadosa dos objetivos, procedimentos e resultadosobtidos pelo comitê sugere que a manutenção da degradação ambiental e a falta de inclu-são social significativa são demonstrações da inadequação estrutural do comitê e do mo-delo regulatório em implantação, que sistematicamente cede a soluções de caráter tecno-burocrático. Essa conclusão em relação aos problemas que persistem na bacia pode serdemonstrada pela “agenda única” dedicada à implantação da cobrança. Tomando-se emconta o contexto de reformas institucionais e a discrepância entre construção retórica emudanças efetivas, fica claro que a principal deformação causada pela concentração deesforços em torno da cobrança se relaciona à neutralização da participação popular. A“burocratização” do envolvimento popular nada custa para aqueles que detêm poder eco-nômico, mas serve para reduzir tensões sociais e diminuir os custos de transação relacio-nados ao novo modelo de gestão ambiental (Low e Gleeson, 1999). No caso específico, oCEIVAP tem basicamente imposto um modelo de gestão (inspirado na literatura interna-cional, conforme mencionado acima) a uma população desorganizada e incapaz de se en-volver criativamente nas suas instâncias formais. Mas se o novo comitê tem sido instru-mental para a homologação do novo modelo global de gestão de recursos hídricos (emespecial, o conceito de IWRM), o mesmo tem sido incapaz de lidar com a complexidadedos problemas socioambientais na bacia e acomodar, de forma eqüitativa e sustentável, asmúltiplas subjetividades e desigualdades sociais. Como observado por Brannstrom(2004), o objetivo central, ainda que não oficial, das reformas institucionais no Brasil pa-rece se restringir tão somente à implementação da cobrança pelo uso da água.

A DEMOCRACIA INTERNA NO COMITÊ DA BACIA HIDROGRÁFICA

Para entender como funciona a democracia interna no comitê da bacia hidrográfi-ca, é importante perceber o desequilíbrio de poder entre os setores envolvidos. Esquema-ticamente, é possível separar os membros do CEIVAP em pelo menos três “esferas concên-tricas” de influência. A esfera central é ocupada pelos grupos com maior capacidade deinterferir na tomada de decisão, a começar pela Agência Nacional de Águas. Muitos dosseus servidores estiveram envolvidos na formulação da nova legislação e participam agorada sua implementação – cabe observar que a maioria dos diretores da Agência provêm doRio de Janeiro e de São Paulo, e muitas das vezes, têm razões pessoais para estar envolvi-dos na experiência do Paraíba do Sul. Como órgão central do novo modelo de gestão derecursos hídricos no Brasil, a ANA tem tido um papel dominante na reforma do setor, mastem sido também em si mesma um “locus” de disputas políticas. Em vez de um perfil téc-nico ou meramente regulador, desde sua criação, a indicação de diretores e superinten-dentes tem seguido um longo processo de negociação política entre os partidos e gruposque apoiam o governo – tanto no Governo FHC, quanto no Governo Lula. Existe, por-tanto, uma persistente e perversa “simbiose” entre interesses paroquiais e a definição das

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17 Segundo a Constituiçãode 1988, os corpos d’águatêm duas formas de do-minialidade: 1) pertencem àUnião os rios que cortammais de um estado ou sãocompartilhados com outrospaíses; 2) pertencem aosestados os rios contidosnos seus territórios e aságuas subterrâneas.

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prioridades nacionais de gestão de recursos hídricos. Ainda na esfera central de poder si-tuam-se também os representantes do setor industrial e do agronegócio. Mesmo com umaminoria de cadeiras, esses grupos têm conseguido manipular importantes decisões do co-mitê, como a recente organização da agência de bacia (chamada AGEVAP, o braço execu-tivo do comitê), conforme detalhado por Sousa Jr. (2004). A principal questão enfatiza-da pelo setor industrial é o risco de que a arrecadação dos recursos da cobrança sejadesviada pelo governo para outros propósitos – como, em verdade, veio a acontecer noinício do processo (ver abaixo). As indústrias, portanto, têm sistematicamente exigido ga-rantias de que a arrecadação seja permanentemente tratada como uma taxa ambiental enão como um imposto.

No segundo nível de hierarquia do comitê – aqui descrito como uma segunda “es-fera de poder” – encontra-se um grupo mais heterogêneo de participantes, o que incluia representação das prefeituras municipais e governos estaduais, ambientalistas, empresasde abastecimento de água e saneamento e representações profissionais – como a influen-te Associação Brasileira de Recursos Hídricos. Essa “esfera de poder” tem tido uma capa-cidade de influência mais discreta nas atividades do comitê do que os grupos que cons-tituem o grupo decisório central – embora essa classificação seja meramente esquemáticae haja freqüentemente situações em que o papel de certos grupos nessa categoria se des-taque acima da média. Até mesmo o atendimento de reuniões do comitê tem se revela-do mais difícil para esses setores intermediários, uma vez que as despesas de deslocamen-to devem ser pagas pelos próprios participantes, e não são reembolsadas pelo comitê. Poroutro lado, há evidências de que muitos grupos insistem em participar das atividades docomitê por terem interesse em obter alguma forma de compensação financeira. Diversaspessoas entrevistadas durante nossa pesquisa teceram duras críticas, por exemplo, a res-peito do envolvimento de certas ONGs e acadêmicos que parecem buscar o comitê ape-nas para assegurar contratos de consultoria ou de prestação de serviços. De fato, na últi-ma década muitos acadêmicos (e mesmo funcionários públicos) estiveram repetidas vezesenvolvidos em consultorias relacionadas à organização do CEIVAP e, em especial, à intro-dução da cobrança. Em certo sentido, o processo se caracteriza como a “profecia que seauto-realiza”, haja vista que os consultores desenvolvem as bases teóricas e operacionaisdos mecanismos de cobrança, que são utilizados para o pagamento de seus próprios ser-viços de consultoria.

A terceira “esfera de poder” entre os grupos sociais envolvidos ou interessados nasatividades do comitê tem uma posição marginalizada e é, na maioria das vezes, ignoradapelos membros nas outras duas esferas centrais. Esse conjunto de atores sociais margina-lizados inclui pequenos usuários de água independentes (urbanos e rurais), pequenos agri-cultores, pescadores, pequenas atividades produtivas e a população em geral. Pela falta demandato formal, muitos enfrentam grandes barreiras para participar e acompanhar a evo-lução das atividades do CEIVAP – podendo normalmente participar das reuniões apenascomo ouvintes. Ainda assim, os membros efetivos do comitê geralmente reagem contraas críticas e questionamentos feitos pela população como uma demonstração da “falta decompreensão a respeito da relevância do novo modelo de gestão de recursos hídricos”,mesmo quando a crítica é feita por moradores diretamente afetados pelas decisões do co-mitê (como no caso da barragem de Itaocara). A esse respeito, Valêncio e Martins (2004)descrevem a exclusão dos grupos menos organizados da população das bacias hidrográfi-cas no Brasil como “a naturalização da exclusão”, o que está diretamente relacionado coma “política do esquecimento” teorizada por Bakker (1999). A constante tentativa de par-

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ticipar e ser ouvido pelos outros grupos que comandam as atividades do comitê demons-tra claramente a dimensão política do processo de gestão de recursos hídricos no Paraíbado Sul. Como descrito por ÎiÏek (1998), em referência a Rancière (1995), a disputa polí-tica não se restringe ao debate racional entre múltiplos interesses, mas está também asso-ciado à conquista da oportunidade de ser reconhecido pelos demais como uma voz legí-tima. Algumas pessoas entrevistadas protestaram até mesmo em relação à linguagemtécnica e legalista utilizada nas reuniões do comitê, o que indica a formação de um cam-po cognitivo (no sentido proposto por Bourdieu) que sistematicamente exclui aquelescom alguma dificuldade de entender detalhes do marco regulatório, com sua enorme lis-ta de siglas, acrônimos, convenções e termos legais. Como foi expresso por uma pessoadessa terceira esfera de poder sobre a operação do CEIVAP:

A nova estrutura de recursos hídricos, a nova lei [9.433], ficam muito distantes das ne-cessidades dos moradores e dos movimentos sociais – ativista do movimento social. (entrevista,Abril 2007)

As três “esferas de poder” esquematicamente descritas acima obviamente existiamantes de o comitê ser instalado, mas o ponto crucial a ser notado é que as assimetrias so-ciais foram reforçadas pela implantação tecnocrática e turbulenta da cobrança pelo uso daágua na bacia. Em tese, o novo sistema de regulação deveria criar sinergias entre o Esta-do e a sociedade, bem como favorecer a cooperação entre grupos sociais, mas, na verda-de, o que passou a acontecer foi um distanciamento ainda maior entre as três “esferas depoder”.18 Na prática, persistem graves problemas ambientais, juntamente com a dificul-dade estrutural de aperfeiçoar a gestão da bacia. O problema crucial tem sido a afirmaçãode uma ideologia tecnoburocrática como base do novo modelo de gestão, a qual é direta-mente influenciada pelo ambiente de reformas do Estado brasileiro e pela hegemonia depolíticas conservadoras no país e no mundo. As contradições e limitações do novo “paco-te” de gestão de recursos hídricos não podem ser entendidas em si mesmas, mas como ex-pressão fidedigna de uma concepção de uma sociedade de consumo que é intrinsecamen-te problemática e insustentável. O restrito espaço de debates e interação proporcionadopelo CEIVAP está relacionado à visão convencional da bacia hidrográfica como uma arenapropícia para a aplicação de tecnologias e capitais empregados no uso de recursos natu-rais, em vez de ser um espaço formado por múltiplas trajetórias e interações sociais (cf.Massey, 2005). A compreensão da bacia hidrográfica como um espaço socionatural emconstante formação é o primeiro passo para se chegar a mudanças profundas, o queMassey (2005) magistralmente denomina o “espaço do [ato] político”.

QUAL O VALOR DA COBRANÇA PELO USO DAÁGUA?

Como discutido acima, a introdução da cobrança pelo uso da água no Paraíba doSul tem ocupado grande parte das atividades do CEIVAP, uma vez que representa a prin-cipal ferramenta de políticas ambientais na bacia. Tal situação não é de modo algum ex-cepcional, mas em todos os países que passam por reformas institucionais semelhantes,a cobrança inevitavelmente apresenta grande controvérsia – o exemplo da Escócia e daIrlanda do Norte são paradigmáticos – e passa a “contaminar” os esforços em outras áre-

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18 Sob crescentes críticas,em 2006 o CEIVAP contra-tou uma consultoria para de-senvolver um “plano estraté-gico” para a implementaçãodos instrumentos regulató-rios, em especial voltadoaos afluentes do Rio Paraíbado Sul.

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as. As disputas políticas em torno da adoção da cobrança revestem-se de uma comple-xidade adicional, entre os possíveis instrumentos regulatórios, em razão da necessidadede haver um regime institucional que defina claramente a propriedade sobre os recursoshídricos – ou de delegação da propriedade do Estado para os usuários, como no caso doBrasil, através da outorga de direito de uso. Devido a essa exigência fundamental para osucesso da cobrança, a discussão sobre os direitos de propriedade e a preparação de ba-ses operacionais para a introdução da cobrança normalmente tornam-se a prioridadecentral das reformas associadas aos recursos hídricos, mesmo que isso reduza o interes-se pela degradação socioambiental da bacia, pela democratização efetiva das decisões epela adoção de medidas compensatórias para as desigualdades sociais e espaciais. No ca-so do Paraíba do Sul, a preponderância da cobrança foi definida exogenamente pelo go-verno federal ao decidir que a bacia seria um laboratório do novo modelo regulatório e,desse modo, o trabalho principal do comitê seria remover quaisquer obstáculos à im-plantação da cobrança. Como brevemente mencionado acima, houve um debate acirra-do e marcado por oportunismo político no âmbito do comitê, que resultou em uma de-cisão favorável e, a partir de 2003, passou-se a cobrar pelo uso da água bruta.19 Nopapel, o instrumento da cobrança se justifica como a melhor opção para se mitigar opassivo ambiental, induzir o uso racional e realocar recursos hídricos de acordo com aeficiência econômica (Garrido, 2004). Na prática, porém, até o momento produziram-se somente pequenos investimentos na regeneração de margens dos rios e em sistemasisolados de saneamento.

Para se avaliar objetivamente os resultados da cobrança na BHRPS, far-se-á aqui usodos critérios propostos pela OCDE (1991) para instrumentos econômicos de gestão am-biental, quais sejam: eficiência ambiental, eqüidade, aceitabilidade, viabilidade adminis-trativa e eficiência econômica. Quanto ao primeiro critério (eficiência ambiental), é in-discutível que o mecanismo da cobrança tem sido grandemente incapaz de restaurar acondição ambiental da bacia. Em termos concretos, os impactos negativos da falta detratamento de esgotos urbanos e efluentes industriais, extração de areia e captação deágua continuam praticamente inalterados. Entre 2003 e 2006, foi arrecadado um totalde R$ 25,4 milhões (dados fornecidos pelo comitê), consideravelmente menos do que anecessidade estimada para recuperar a bacia: R$ 360 milhões por ano em investimentosou R$ 4,6 bilhões até 2025 (Coppetec, 2006). Em 2006, quatorze municípios foramcontemplados com recursos oriundos da cobrança, em um total de R$ 7,1 milhões, ba-sicamente aplicados em projetos localizados e com limitado potencial de recuperaçãoambiental. Mesmo esses modestos investimentos têm sido selecionados em função deinteresses político-partidários e pressão de empreiteiros sobre os prefeitos locais – prin-cipalmente pelo fato de serem recursos a fundo perdido. Uma seleção nem sempre trans-parente contribui para minar o diálogo entre os membros do comitê, além de aumen-tar o nível de desconfiança do público em relação aos reais propósitos do novo modelode gestão.

Considerando o segundo critério da OCDE (eqüidade), existem pelo menos dois fa-tores principais que comprometem o sucesso da cobrança. Em primeiro lugar, empresascomerciais e companhias de abastecimento de água transferem os valores pagos ao comi-tê diretamente a seus clientes, o que significa que os custos ambientais são meramente in-corporados nos preços dos serviços e produtos sem que haja a possibilidade de se chegarà justa redistribuição de responsabilidades, apenas reforçando a situação dos grupos pri-vilegiados (como observado por Enzensberger, 1996). Em segundo lugar, não existe qual-

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19 A metodologia de cálcu-lo prevê que todos os usosacima de certos limites (e.g.usos consuntivos acima de1 litro/segundo e hidroeletri-cidade com potencial acimade 1 MW) devem pagar umataxa mensal, calculada deacordo com a quantidadede água utilizada, a percen-tagem de uso e a qualidadedo efluente final. Há uma ta-xa padrão (R$ 0,02/m3) pa-ra indústrias, abastecimentopúblico e mineração, e des-contos significativos paraagricultura e aquicultura.Durante o período dessapesquisa, a metodologia dacobrança estava sendo re-vista (algo considerado in-conveniente e desnecessá-rio para alguns de nossosentrevistados).

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quer previsão de compensação pela degradação ambiental causada nas últimas décadas, eque tenha gerado ganhos econômicos apropriados de modo desigual pelos grupos domi-nantes. Mais especificamente, muitas indústrias vêm fazendo uso de recursos hídricos edegradando o rio por muitos anos, mas têm valores de cobrança pelo uso da água igual aempresas mais recentemente instaladas na bacia. Isso significa uma desigual alocação deresponsabilidades pela condição da bacia e constitui uma espécie de “subsídio” na formade ganhos obtidos no passado, mas gratuitamente mantidos no presente.

Passando para o terceiro critério (aceitabilidade), existe ainda muito ceticismo e fal-ta de informação em grande parte da bacia com relação à cobrança. Mesmo economistasdiretamente envolvidos na fundamentação teórica da cobrança reconhecem que a situa-ção fica muito aquém do desejado (cf. Azevedo e Baltar, 2005). Entre os setores de usuá-rios de água, os industrialistas têm mantido a posição mais oportunista e variável. Inici-almente, a representação do setor industrial no comitê, constituído pelas federações deSão Paulo (FIESP), Rio de Janeiro (FIRJAN) e Minas Gerais (FIEMG), mostrou-se irredutí-vel na sua desconfiança em relação à cobrança, mesmo que concordasse a respeito da gra-ve condição ambiental da bacia (FIRJAN, 2002). Como descrito acima, em 2002, o setordecidiu aceitar o inevitável e concordou que a cobrança fosse implementada, essencial-mente com o propósito de capitalizar politicamente e melhorar sua imagem de “respon-sabilidade corporativa”. Mesmo assim, existe ainda uma minoria de industrialistas quemantêm sua contrariedade com o fato de terem de passar a pagar pelo uso da água (Féreset al., 2005). Essa reação se repete em outros setores de usuários e, considerando-se o anode 2004, mais de 50% se recusou a pagar ou atrasou o pagamento (Soares, 2005). Deacordo com dados do CEIVAP, a receita obtida pela cobrança se mantém constante desde2003, o que sugere que a aceitabilidade não tem melhorado.

Em relação ao quarto critério (viabilidade administrativa), a experiência na BHRPS

tem sido problemática. Em grande medida, a bacia tem pagado um alto preço por ter si-do a primeira a adotar o instrumento da cobrança após a aprovação da nova lei em 1997.Em sua fase inicial, quando a bacia ainda não contava com uma agência executiva – ago-ra em operação e denominada AGEVAP –, a receita era administrada diretamente pelaANA. Pelo fato de ser um órgão público, nos últimos anos a Agência teve a execução deseu orçamento sistematicamente restringido pela área financeira do governo – basicamen-te, com o propósito de assegurar superávit financeiro. Nesse contexto, nos primeiros mes-es a arrecadação dos valores da cobrança na bacia foi indistintamente considerada comouma forma de imposto e, portanto, passível de ser contingenciada. Esse desvio do propó-sito e da configuração jurídica da cobrança suscitou forte reação no setor de recursos hí-dricos e, em 2004, uma nova legislação foi aprovada no sentido de se evitar que o proble-ma continuasse, uma vez que a nova agência de bacia (AGEVAP) ficou encarregada decoletar e administrar a cobrança. Até certo ponto, a nova lei provê alguma proteção con-tra a voracidade da área financeira. Contudo, persiste a questão da dualidade de compe-tências entre governo federal e estadual (ver nota número 17). Na prática, isso significaque a BHRPS tem não um, mas quatro mecanismos de cobrança, com metodologias decálculo distintas para o mesmo manancial hídrico, o que representa um desafio perma-nente para a gestão e administração da bacia.20 Embora não seja excludente do ponto devista legal e de sua esfera competente, a dificuldade de integração entre estados e a uniãosignifica um dos pontos críticos de todo o modelo de governança em implementação,uma particularidade brasileira que torna ainda mais difícil atingir o objetivo de uma ges-tão integrada.

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20 Além das disputas entreestados, existe na BHRPSuma associação de usuáriosde água, quatro comitês desub-bacias, sete consórciosde municípios, e um verda-deiro “consórcio rival” na se-ção paulista da bacia (e.g.CBH-PS).

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Provavelmente, a falha principal do instrumento da cobrança na BHRPS esteja rela-cionada ao quinto critério de avaliação, eficiência econômica. Em termos da economianeoclássica, fonte direta de inspiração do novo marco regulatório, ganhos de eficiência es-tão relacionados à alocação de recursos de acordo com a utilidade marginal e à busca debaixos custos de transação [transaction costs]. Mesmo com esse claro objetivo econômico,até o momento a cobrança na bacia tem influenciado pouco qualquer situação de realo-cação de água entre usuários, e tampouco tem evitado a expansão indiscriminada do usoda água. Mesmo que algumas indústrias locais tenham recentemente investido em trata-mento de efluentes, isso se deveu muito mais a decisões tomadas anteriormente e não aoincentivo da cobrança. Em uma pesquisa com 488 indústrias na bacia, Féres et al. (2005)concluíram que a cobrança, pelo menos na sua fase inicial, não se configurou como umincentivo eficaz para reduzir o nível dos efluentes. A pesquisa mostrou que as empresasque investiram na redução da poluição, o fizeram com o intuito de evitar má publicida-de durante o processo de organização do comitê de bacia. Um de nossos entrevistadostambém expressou sua concordância com essa conclusão:

O principal benefício da cobrança é melhorar a imagem das empresas multinacionais, por-que elas usam a informação de que estão pagando pela água, de que estão observando o princí-pio do poluidor-pagador, como forma de ganhar certificação internacional (…).

O mesmo entrevistado ainda acrescentou:

A melhoria inicial da condição do rio é relativamente fácil, sem muito problema, mas aquestão é como manter o ritmo de despoluição e garantir melhoria na qualidade da água – aca-dêmico e ex-membro do CEIVAP. (entrevista, Abril 2007)

Nossos resultados a respeito da cobrança na BHRPS, especialmente tendo em contaos cinco critérios analisados acima, coincidem com as observações de Molle e Berkoff(2007) a respeito da necessidade de compatibilizar esse instrumento de regulação com re-formas políticas mais profundas e que permitam um aprofundamento democrático e di-visão de responsabilidades. Segundo Liodakis (2000), o conceito de “externalidades am-bientais” contribui para o entendimento da degradação ambiental, mas a tentativa deinternalizar tais externalidades – como pela aplicação de taxas ambientais semelhantes àcobrança – apenas torna óbvias as falhas de mercado e demonstra a inadequação das po-líticas convencionais de gestão do meio ambiente. Como antes observada por Kapp(1970), a dificuldade maior para a adoção de instrumentos de gestão ambiental baseadosem regras de mercado é que um valor monetário passa a ser atribuído a um recurso queé totalmente dissociado do mercado (e.g. água). A conseqüência perversa desse processode mistificação de valores é o fato de que os usuários de água passam a ser tratados deacordo com sua capacidade de pagamento, erodindo as diferenças sociais historicamenteestabelecidas e, desse modo, acobertando as responsabilidades pela degradação e recupe-ração dos mananciais hídricos. Através da cobrança pelo uso da água, o novo marco re-gulatório passou a legitimar atividades que há décadas são responsáveis pela degradaçãoda bacia, uma vez que o pagamento ao comitê se transforma em uma desculpa oficial pa-ra que não se questione a localização, operação e escala de tais atividades. De fato, indus-trialistas e irrigantes têm feito uso político da sua contribuição financeira ao comitê co-mo argumento em favor de outras compensações fiscais e como garantia de uma aplicação

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branda da nova legislação ambiental. Por tais razões, não é possível concordar com For-miga-Johnsson et al. (2007) – antes de mais nada, autores que têm prestado consultoriapara o desenho do novo modelo de gestão (para mais detalhes da estreita relação entre aca-dêmicos e CEIVAP, ver Gruben et al., 2002) – quando afirmam que a introdução da co-brança na BHRPS tem sido um sucesso em termos de inclusão e eficiência técnica. Muitopelo contrário, a oportunidade de realmente se avançar na solução dos graves problemasda bacia tem sido perdida em função de uma insistência ideológica pela adoção de instru-mentos econômicos de gestão de recursos hídricos. Apesar de toda a controvérsia, a co-brança tem sido pouco mais do que um pequeno contratempo para os grandes usuáriosde água, ao mesmo tempo em que significa o esvaziamento de ações na direção da susten-tabilidade e da justiça ambiental.

CONCLUSÃO: RECONHECER OS LIMITES DASREFORMAS INSTITUCIONAIS

A discussão acima buscou demonstrar como as reformas institucionais no setor derecursos hídricos têm sido marcadas pela afirmação de uma racionalidade tecnoburocrá-tica, a qual vem apenas produzido respostas inadequadas aos problemas de gestão das ba-cias hidrográficas com alto nível de conflitos e degradação ambiental. É preciso reconhe-cer os limites metodológicos da pesquisa aqui relatada, especialmente pelo fato de sebasear em um estudo de caso voltado a apenas uma única bacia, fazendo uso somente demétodos qualitativos de análise e cobrindo um momento histórico determinado. Não res-ta dúvida que se trata, portanto, de uma simplificação de uma realidade nacional muitomaior, cheia de particularidades locais, incoerências administrativas e conflitos multiface-tados. Mesmo assim, a experiência do Paraíba do Sul, dado o seu pioneirismo e comple-xidade, serve como amostra significativa dos limites e possibilidades do novo modelo ins-titucional em implantação no país. No caso específico, os desdobramentos da últimadécada representam apenas o capítulo mais recente de uma longa história de transforma-ções socioambientais e desenvolvimento desigual. Os resultados de mais de 300 anos deintensa atividade agrícola, urbana e industrial continuam sendo rios e solos em sério es-tado de degradação, ao passo que saneamento básico e salubridade adequada ainda são fa-tores inacessíveis a significativas parcelas da população. A faceta conservadora e excluden-te de gestão de recursos hídricos continua indiscutivelmente tão evidente no presentecomo no passado, uma vez que o novo arranjo institucional – incluindo aqui o comitê debacia e a cobrança pelo uso da água – mantém largamente inalteradas as bases desiguaisde tomada de decisão e alocação de recursos hídricos. Se no passado a conservação am-biental esteve praticamente ausente quando grandes obras de engenharia foram construí-das para atender a uma industrialização acelerada, o meio ambiente passou a recebermaior atenção, embora ainda não se discuta como os impactos ambientais afetam de mo-do diferenciado os diversos grupos sociais, nem tampouco como o balanço desigual depoder condiciona a tomada de decisões a respeito da recuperação das condições ecológi-cas. A advocacia de conceitos como “governança ambiental” e “gestão integrada” vem sen-do feita de modo centralizado e atendendo aos interesses dos atores sociais mais influen-tes, o que mostra como tais conceitos fazem com que se mantenham inalteradas as basesde uso e gestão da bacia, ainda que o discurso aponte exatamente na direção contrária.Ou seja, as reformas institucionais caminharam na direção dos objetivos de governança e

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integração previstos na doutrina internacional, mas houve pouca melhoria em termos deproblemática socioambiental. Em outras palavras, a introdução das novas instituições degestão (previstas na Lei 9.433/1997) pode ser avaliada como razoavelmente bem-sucedi-da, no que diz respeito a mudanças formais, mas constitui uma reforma limitada, haja vis-ta que sua faceta tecnoburocrática tem comprometido o próprio entendimento dos pro-blemas e a incorporação das demandas da maioria da população local.

Apesar do evidente descompasso entre os objetivos e os resultados efetivos, é sinto-mático que existam ainda poucas avaliações críticas da experiência do Paraíba do Sul oude outras bacias brasileiras. Tal fato contribui para manter a ilusão de que o processo ca-minha na direção correta, enquanto a água continua sendo objeto de interesses e acirra-das disputas. O aspecto central a ser ressaltado é o fato de o novo modelo institucionalde recursos hídricos refletir uma visão utilitarista da relação entre sociedade e natureza,basicamente em favor de políticas públicas que garantam, cada vez mais, a apropriaçãoprivada dos recursos naturais, mesmo que em detrimento da estabilidade ecológica delongo prazo. Para as políticas oficiais contemporâneas, a gestão de recursos hídricos de-ve se inserir na agenda de “modernização ecológica”, segundo os objetivos ambientais deuma “sociedade de mercado”. Exemplos nesse sentido são o envolvimento cada vez mai-or de empresas privadas na gestão de serviços públicos de água e energia hidroelétrica,assim como os programas da ANA ligados à compra de esgoto tratado (PRODES) e à “pro-dução de água”, nos quais ações conservacionistas são pagas em dinheiro. Como descri-to por Smith (2007), a modernização ecológica torna a própria conservação ambientalum mecanismo de acumulação de capital. Por meio da ocupação do cerne da gestão derecursos hídricos pela lógica de acumulação, os usuários de água são progressivamentereduzidos a uma condição de “sócios” do crescente “negócio da água” – negócio no sen-tido amplo de criação de um contexto favorável a transações, sem envolver necessaria-mente a compra e venda de água –, em vez de serem tratados como “cidadãos” com ca-pacidade de contribuir ativamente, sem que sejam cooptados (ou corrompidos) pormeio de incentivos monetários.

É justamente nessa tendência de crescente expressão do valor econômico dos recur-sos hídricos que a introdução da cobrança pelo uso da água tem tido um papel estratégi-co de consolidação de uma racionalidade economicista na relação entre sociedade e natu-reza. Ao explicitar um valor monetário de um recurso natural de uso comum – naterminologia de economia política, sobrepor o valor-de-troca ao valor-de-uso e ao valor-em-si da água –, a cobrança contamina todas as relações em torno da distribuição, uso econservação dos recursos hídricos. Ou seja, em razão da cobrança, tanto os impactos am-bientais quanto a importância socionatural da água são pensados somente em termos mo-netários, eliminado outras possíveis visões alternativas de mundo. Evidentemente que épreciso não tender para uma análise maniqueísta, mas perceber que, apesar das deficiên-cias encontradas na implementação da Lei 9.433/1997, o processo de instalação de comi-tês tem também levado a avanços, especialmente por ampliar o debate a respeito dos pro-blemas de gestão de recursos hídricos. Nesse sentido, como já indicado por Acselrad(1995), as contradições relacionadas aos instrumentos econômicos de gestão ambientaldevem ser criativamente apropriadas pelos movimentos organizados e forças de resistên-cia como uma oportunidade política para se questionar as experiências locais e os pressu-postos do pensamento ambiental contemporâneo. Mas, antes de mais nada, é precisocompreender, na academia e fora dela, que a materialidade dos problemas ambientais esociais associados aos recursos hídricos tem causas e repercussões políticas inexpugnáveis.

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Como observado por Latour (2004, p.58), a importância histórica da crise ambientalatual decorre da impossibilidade de se continuar a imaginar o ato político dissociado domundo natural que serve de base à política.

Por todas essas razões, o novo marco regulatório de gestão de recursos hídricos noBrasil, como em muitos outros países, significa em grande medida uma reforma circun-stancial e restrita – enfim, incompleta em si mesma – porque é interna e subordinada aomesmo modelo econômico e político que foi historicamente responsável pela degradaçãoambiental e pela consolidação de privilégios. Em vez de favorecer a recuperação do danocausado, políticas ambientais baseadas na lógica de mercado – simbolizadas, sobretudo,pelo princípio neoclássico do “poluidor-pagador”, o qual dissocia o ato poluidor de qual-quer responsabilidade política pela degradação e pelos ganhos acumulados ao longo deanos – são intrinsecamente limitadas pelo fato de ignorarem a importância das assimetri-as sociais e injustiças ambientais. É essencialmente impossível se esperar ganhos em ter-mos de sustentabilidade ambiental sem que ao mesmo tempo se aprofundem as condi-ções democráticas e se reduzam as desigualdades socioeconômicas. Como bem observadopor Middleton e O’Keefe (2001:16), “a não ser que a análise de desenvolvimento come-ce não com os sintomas, instabilidade ambiental e econômica, mas com a causa, injusti-ça social, nenhuma forma de desenvolvimento pode ser sustentável”.

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Antônio A. R. Ioris é pro-fessor da Escola de Geo-ciências (School of Geosci-ences) da Universidade deAberdeen, Escócia, ReinoUnido. Pesquisador do Cen-tro de Sustentabilidade Am-biental de Aberdeen (ACES).E-mail: [email protected]

Artigo recebido em maio de2008 e aprovado para publi-cação em janeiro de 2009.

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A B S T R A C T In the last decade, the use and conservation of water resources in Bra-zil have been the object of an ample process of reforms and institutional reorganisation. Theexperience of the Paraíba do Sul River Basin was selected as a paradigmatic example of theinstitutional reforms ongoing in the country. Through qualitative research methods, the aimsand the deficiencies of the new decision-making structure were analysed. The study identified,as the crucial shortcoming, the affirmation of a technobureaucratic rationality, which is ap-plied both to the assessment of problems and the formulation of responses. The most evidentexpression is the strategic relevance attributed to water use charges, a highly controversial ma-nagement instrument that is leading to a polarisation of political positions. The reforms in theParaíba do Sul have been largely limited in themselves, given that the new institutional struc-ture still prevents the incorporation of the demands of the majority of the local population andthe proper solution to environmental questions historically established.

K E Y W O R D S Hydropolitics, Political Ecology, Integrated Water Resources Mana-gement, Water Charges, Economic Instruments, Paraíba do Sul.

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OS PARADIGMAS DA MODERNIZAÇÃO DO

ESTADO DO CEARÁ E O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO

DA BARRAGEM DO CASTANHÃO

F R A N C I S C A S I L V A N I A D E S O U S A M O N T E

R E S U M O Este trabalho resulta de pesquisa para tese de doutorado cujo objetivo foiinvestigar em que medida o processo de uso e controle das águas no Ceará, tendo como base aBarragem do Castanhão, contribuiu para levar o estado a se transformar em paradigma da mo-dernização, principalmente a modernização hídrica. Foram realizadas entrevistas com políticos,agentes governamentais, organizações da sociedade civil e outros agentes relevantes no processo.Foram também consultados documentos e relatórios de várias instituições envolvidas na implan-tação da Barragem. Concluiu-se que a modernidade hídrica está desenhando uma nova confi-guração territorial no estado do Ceará, transformando o espaço geográfico no espaço da raciona-lidade técnica a serviço de interesses privados, e que o desenvolvimento pretendido com aimplantação da Barragem ocasionou um processo de modernização excludente, principalmentedos mais diretamente atingidos pelas obras.

P A L A V R A S - C H A V E Modernização; desenvolvimento; Ceará; barragem;água; exclusão.

A CONSTRUÇÃO DO CEARÁ MODERNO

Nas duas últimas décadas, o estado do Ceará tem sido apresentado no cenário nor-destino e nacional como expressão de transformação na estrutura tradicional de poder.Segundo Barreira (2002), foi sob o signo da ruptura, exemplificado no slogan “governodas mudanças”, que um grupo de empresários liderados por Tasso Jereissati ocupou a ce-na política cearense, projetando o Ceará para o restante do país como um exemplo deEstado moderno.

Diógenes (2002) destaca que tivemos no Ceará, no final dos anos 1980, a produ-ção de novas imagens políticas que se estabeleceram no cenário local, baseadas na opo-sição e legitimação diante das chamadas oligarquias coronelísticas. A construção de umCeará moderno teve por base uma retórica das mudanças, com o governo estadual assu-mindo compromissos:

[...] com a superação de valores deformados, que colocavam o interesse de pequenos gruposacima dos interesses maiores da sociedade. Compromisso com o combate a todas as formas de clien-telismo. Compromisso com a recuperação da moralidade do serviço público, onde o Estado deveser visto como instrumento para a realização do bem comum e não para o serviço das oligarquias.Compromisso com o combate à miséria e o respeito à cidadania como direito inalienável de todosos homens e mulheres do Ceará. (Ceará, 1987, p.8)

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O discurso de ataque aos “coronéis” e ao “coronelismo” já havia sido anunciado ante-riormente,1 mas, pela primeira vez, de acordo com Barreira (op.cit.), tornara-se elementofundamental da estratégia que deu suporte ao surgimento de novos atores políticos. De acor-do com a autora, a evocação às mudanças pôs em destaque um capital político e simbólicoque toma a forma de regras e legitimação de competências diferentes das até então existen-tes, de maneira que a herança partidária e laços de fidelidade foram substituídos por crité-rios que destacavam e priorizavam a formação intelectual e a experiência administrativa.

Para Abu-El-Haj (1997), a mudança política acontecida no Estado teve esta peculi-aridade devido à existência de uma herança política tradicional, com muita freqüência ta-chada de coronelista; foi este tom anticoronelista que assinalou o “marketing político” docandidato Tasso Jereissati ao governo do Estado nas eleições de 1986, facilitado pelas pa-tentes militares de “coronéis” de seus opositores políticos. Pode-se depreender isto da ob-servação feita a seguir:

O tema das mudanças polarizou-se basicamente na promessa de transplante da racionalida-de do moderno empresariado nordestino para o plano político administrativo, erradicando o clien-telismo político e substituindo-o pela utilização asséptica e eficiente dos recursos públicos. A imagemressuscitada nos meios de comunicação de massa foi a do velho e truculento “coronel” defendendo os“currais eleitorais” que as forças modernas se dispunham a romper. (Carvalho, 1987, p.204)

O Ceará passou de estado considerado miserável na imprensa nacional para se tor-nar exemplo de Estado que deu certo, um modelo a ser seguido ou, para usar uma expres-são muito em voga nas manchetes, para ser “uma ilha de prosperidade”. Entretanto, paraquem quer ir além do discurso e das aparências das estatísticas, Teixeira (1995, p.7) fazperguntas instigantes:

[...] pode-se alegar, como o fazem os dirigentes atuais da coisa pública, do Estado, que to-do este processo representa uma ruptura com o passado, com o tempo dos ”coronéis”? Até que pon-to esta propalada modernização corresponde a uma ruptura real? [...] podem estes dirigentes re-clamar a autoria exclusiva dessas transformações como produto de seu jeito de fazer política, degovernar? Há, de fato, uma ruptura com a economia passada, ao ponto de se julgar que o presen-te não guarda mais nenhuma relação com o passado?

Para Gondim (2002), as mudanças ocorridas na sociedade cearense, a partir da elei-ção de Tasso Jereissati, aconteceram em função das mudanças estruturais que ocorreramna economia e na sociedade cearense desde a década de 1950, e que criaram as condiçõespara a emergência destas novas elites.

Parente (2000), analisando as elites políticas no estado, defende que estas sempreapresentaram uma fragilidade estrutural causada pela situação de secas freqüentes numaeconomia fortemente baseada no consórcio gado-algodão. Para o autor, a seca é “um fa-tor importante na decomposição das elites políticas e econômicas cearenses, sobretudonuma situação em que as elites estão despreparadas para enfrentar as intempéries da na-tureza” (Id., Ibid.,p.58).

Um outro fator desta fragilidade seria a desarticulação destas elites nas regiões Nor-te, Sul e Centro do próprio estado, não existindo nem “homogeneidade nem integraçãoespacial” entre elas (Parente, 2002, p. 126). Dizer que estas elites são frágeis politicamen-te é, para o autor, dizer que “em situação de normalidade, não formam oligarquias fortes

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1 Este discurso foi utilizadona campanha de Maria LuízaFontenelle à prefeitura deFortaleza em 1985 (Barrei-ra, 1993, 2002) e tambémem campanhas para a As-sembléia Legislativa no finalda década de 1970 por can-didatos de esquerda (Leme-nhe, 1998).

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e permanentes como em Pernambuco, Paraíba e Bahia” (Id., Ibid., loc.cit.). A fraqueza es-trutural das elites cearenses revela, a seu ver, “que elas necessitam de maior criatividadepara sobreviverem” (Parente, 2000, p.73), e que “a modernização sempre se apresentoucomo uma estratégia de sobrevivência das elites cearenses” (Parente, 2002, p.126).

Ao mesmo tempo em que tornava frágeis as elites econômicas e políticas, a seca te-ria tido um papel importante no processo de modernização, uma vez que o seu apareci-mento contribuía para a emergência de um quadro técnico e moderno, formado para in-terferir de forma racional nos seus efeitos (Parente, 2002).

As elites cearenses tinham consciência de que a modernidade2 era uma estratégia desobrevivência política, sem a qual elas não se tornariam independentes dos efeitos climá-ticos. Essa convicção ter-se-ia evidenciado na década de 1950, com a criação do Banco doNordeste do Brasil (BNB) e da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Su-dene), dois órgãos sem os quais não seria possível conceber a eficácia de uma política demodernização conservadora: o BNB sediado em Fortaleza desde 1954, e a Sudene criadaem 1959 e sediada em Recife, Pernambuco. “O BNB e a Sudene foram instrumentos im-portantes na estruturação de um modelo de desenvolvimento regional que tornasse nãosó a região, mas sobretudo o Estado do Ceará, com mais condições de conviver com assecas” (Parente, Ibid., p.135).

Camilo Calazans de Magalhães, no documento “O desenvolvimento do Nordeste ea ação do BNB”, publicado pelo BNB, enfatiza o papel da criação do Banco do Nordeste eda Sudene como “fatos marcantes da fase moderna da história econômica nordestina”. Pa-ra ele, “é com a entrada do BNB em funcionamento, em 1954, que se inicia esta fase [demodernização], consolidada com a criação da Sudene quase no fim daquela década”. Ma-galhães destaca que esta fase é marcada por uma nova visão do problema regional, procu-rando-se a solução dos problemas das disparidades regionais através de uma política depromoção do desenvolvimento, tendo por influência as idéias de desenvolvimento, advin-das da Europa e dos Estados Unidos, especialmente as experiências da Tenesse Valley Au-thority e da Cassa per il Mezzogiorno (Magalhães, 1979, p.13).

Além do BNB e da Sudene, mais três instituições de interesse para o desenvolvimen-to da região tinham sua área de atuação no Nordeste: o Departamento Nacional de Obrascontra as Secas (DNOCS), a Comissão do Vale do São Francisco (CVSF), criada em 1947,e a Companhia Hidroelétrica do São Francisco (CHESF), criada em 1945. A preocupaçãoera fazer com que o BNB e a Sudene cumprissem um papel político e econômico já expli-citado pela ideologia desenvolvimentista. “Eram instrumentos ideológicos com objetivosde ‘modernizar’ também as tradicionais elites da região” (Parente, 2000, p. 135).

Parente (Ibid.) apresenta a tese de que o mergulho do Ceará na ideologia da moder-nidade se deve a este processo de treinamento e socialização de uma elite técnica e prepa-rada para uma administração racional do estado, sendo o BNB a força difusora da ideolo-gia de modernidade. Para ele, este ambiente propiciou o surgimento de uma elite modernaformada por uma nova geração de empresários. No entanto, argumenta que a passagem deuma mentalidade e de uma prática inscritas no conservadorismo para uma outra de maiorracionalidade técnica, identificadas com a modernidade, teve um outro ator destacado:Virgílio Távora, o último governante da “fase dos ‘coronéis’”3 da política cearense.

Virgílio Távora tinha a intenção clara de modificar o perfil econômico do estado. Deacordo com Aragão (1998), no final dos anos 1970, a produção algodoeira entrou emprofunda crise, da qual até hoje não se recuperou; ao mesmo tempo, Virgílio Távora con-seguiu a instalação no Estado do III Pólo Industrial do Nordeste, cedendo incentivos, van-

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2 Pode-se considerar que otermo modernidade utiliza-do pelo autor é perpassadode ambigüidade, uma vezque o sentido implícito aostextos é na maioria das ve-zes, o de modernização, en-tendida como o desenvolvi-mento da racionalidadeinstrumental, que tem porbase o cálculo custo/benefí-cio, presente na eficácia, naprodutividade e na competi-tividade. Esta modernizaçãofoi, em certa medida, alcan-çada pelas elites políticasdo estado; no entanto, estase apresenta muito distanteda modernidade fundamen-tada na soberania popular enos direitos humanos que le-va à autodeterminação polí-tica (LECHNER, 1990). Ou-tras vezes, porém, o termose refere à "ideologia de mo-dernidade" das elites cea-renses, utilizada nos discur-sos como indicativo deruptura em relação ao pas-sado.

3 Período compreendido pe-los governos de César Cals,Adauto Bezerra e Virgílio Tá-vora, de 1971 a 1982.

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tagens ou mesmo capital aos empresários, assegurado pelo Banco de Desenvolvimento doCeará (Bandece). Estava desta forma criado o II Distrito Industrial de Fortaleza.

Além do III Pólo Industrial, com a consolidação do II Distrito Industrial de Fortale-za, foram obras do governo de Virgílio Távora: a expansão do apoio à indústria pesquei-ra e à média indústria; desenvolvimento do pólo têxtil e de vestuário; pólo metal mecâni-co; expansão da indústria pesqueira; integração da indústria coureira; aproveitamento denovas oportunidades industriais; apoio infra-estrutural; apoio tecnológico e promoção in-dustrial. No setor mineral, foi criada a Companhia Cearense de Mineração (Ceminas) efoi instalado o Centro de Artesanato de Fortaleza (Linhares, 1996). Nesse segundo gover-no, Virgílio Távora consolidou a transição para a modernidade, que já havia iniciado noseu primeiro governo (Parente, 2002).

Para Parente (2000), a outra condição para desencadear o processo de modernidadenas elites políticas foi a existência de uma tradicional elite homogênea social organizada,reunida no Centro Industrial do Ceará (CIC). O CIC foi fundado em 1919 por um gru-po de empresários com o objetivo de tratar de assuntos de interesses comuns aos indus-triais e estudar possibilidades de novos empreendimentos. Os objetivos da entidade eramvoltados, prioritariamente, para os interesses corporativos do setor: suprimento de maté-ria-prima, comercialização, preços e salários (Matos et al., 1999).

Seu primeiro presidente, Tomás Pompeu de Sousa Brasil, foi também o responsávelpela implantação da primeira indústria têxtil do estado do Ceará, no ano de 1881. Estaprimeira fase do CIC teve início com um presidente ligado à indústria têxtil, mas 15 anosdepois, a presidência passou para os setores salineiro e madeireiro. Este fato esteve ligadoà criação de duas organizações: a Federação das Associações de Comércio e Indústria doCeará (FACIC) em 1928 e o Sindicato das Indústrias Têxteis do Ceará em 1935. Na dé-cada de 1940, o CIC foi desativado devido à criação da Federação das Indústrias do Esta-do do Ceará (FIEC) (Parente, 2000).

Segundo Teixeira (1995), alguns jovens empresários, em 1977, estimulados pelaconjuntura de abertura política, começaram a se unir, de forma paralela à FIEC. Haviauma homogeneidade ideológica pelo fato de pertencerem a uma segunda geração de em-presários no estado. O então presidente da FIEC, Flávio Costa Lima, percebendo a homo-geneidade desse grupo e suas diferenças com os tradicionais empresários, cedeu o espaçodo CIC, que estava praticamente desativado desde 1945, para que estes jovens pudessemdesenvolver o seu potencial. Era, de acordo com Teixeira (Ibid), o espaço de que eles pre-cisavam para por em prática suas idéias modernizadoras.

Os jovens empresários passaram a pregar uma gestão profissional da administraçãopública, sem clientelismo, fisiologismo, paternalismo ou corrupção; duras críticas ao maugerenciamento dos recursos e da política industrial do Governo para o Nordeste. Posicio-navam-se contra o controle e o intervencionismo estatais na economia, e eram favoráveisà redemocratização do país e à implantação de um projeto liberal (Farias, 1997).

...[Este] grupo de empresários cearenses se apresentava à sociedade como portador de um“projeto civilizatório” para o Estado, na tentativa de imitar os filósofos do iluminismo, que ti-nham a tarefa, como se sabe, de ajudar a sociedade de sua época a alcançar a liberdade atravésdo uso da razão. Arvorando-se da pretensão de serem herdeiros do espírito iluminista, estes jovensempresários julgavam que [...] cabia a eles a tarefa de libertar a sociedade [cearense] das trevas,da “desrazão”, do apadrinhamento e de fidelidade, estas últimas consideradas como sendo respon-sáveis por uma ”mercantilização feudalesca” dos aparelhos de Estado. [...] mercantilização que

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impedia, sempre de acordo com eles, o uso racional da máquina estatal para implementar umapolítica de desenvolvimento econômico-social. (Teixeira, 1995, p.3)

Na avaliação de Bonfim (1999), o CIC chamou a si a tarefa de resgatar os instrumen-tos estatais para a retomada do desenvolvimento econômico estadual, por meio da refor-ma das contas públicas e do modelo de gestão fiscal. Viabilizou a construção das salvaguar-das financeiras que dariam lastro aos ambiciosos projetos de reconfiguração do capitalismoestadual. Para Bonfim, não condiz com a realidade a afirmativa de que o grupo chegou aopoder com tal propósito e a ele se dedicou desde o primeiro instante. Pelo contrário,

[...] a consciência da profundidade da ruptura a empreender e das possibilidades por elaabertas veio com o tempo, que forneceu as lições necessárias para o aprendizado sobre a organiza-ção da tarefa, em especial a de continuar vencendo eleições à medida que trilhava a senda da mu-dança. (Bonfim, Ibid., p.57)

Entretanto, para Farias (op. cit.), os jovens empresários tinham a consciência de quepara realizar as mudanças preconizadas precisavam conquistar o poder institucional. Nodiscurso de posse de Tasso Jereissati na terceira diretoria do CIC, em 1981, há uma passa-gem na qual fica claro o projeto de conquistar o poder: “o CIC tem um compromisso es-tadual, regional e nacional com a formação, o mais rápido possível, de uma classe políti-ca competente e forte, capaz de influenciar e até assumir o poder” (Farias, 1997, p.259).

Na mesma linha de raciocínio de Farias (Ibid.), Abu-el-Haj (1997) analisa que a atu-ação política da nova geração de empresários cearenses, em particular a geração do CIC,foi condicionada pela posição ocupada na produção e por suas relações com o Estado. Eo método mais eficaz no seu processo de intervenção política foi através da conquista docargo de governador estadual por Tasso Jereissati. O perfil destes empresários era, segun-do este autor, baseado nos seguintes aspectos: engajamento em atividades industriais tra-dicionais de médio porte, e inserção em mercados complexos e de altos lucros.

O governo estadual adotou medidas para a interiorização do desenvolvimento, pormeio de políticas diferenciadas de incentivo à localização do investimento industrial, tra-zendo aos municípios mais importantes do estado a oportunidade de empregar parte deseu contingente populacional em plantas industriais modernas, que não apenas se bene-ficiassem dos incentivos ofertados, mas também dos níveis salariais mais baixos e da pe-quena força da organização sindical nativa (Bonfim, 1999).

Farias (op.cit., p.274) destaca os projetos estruturais prioritários que, no segundo go-verno de Tasso Jereissati, tinham por objetivo fortalecer a economia do Ceará em longoprazo: a construção do Porto do Pecém, a internacionalização do aeroporto Pinto Mar-tins, o Metrofor, os linhões Banabuiú-Fortaleza e da CHESF (para ampliar a oferta de ener-gia elétrica), a melhoria das rodovias estaduais, a interligação das bacias hidrográficas e aconstrução do açude Castanhão, além dos investimentos no setor turístico.

A MODERNIZAÇÃO HÍDRICA DO “GOVERNODAS MUDANÇAS”

A atuação governamental no estado do Ceará no decorrer dos anos, na questão daságuas, sempre foi predominantemente feita pelo governo federal, com o governo estadual

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participando de forma muito tímida. Em conseqüência, acontecia uma inevitável disso-ciação entre os objetivos institucionais a as ações propostas nos programas. O processo deplanejamento era marcado pela quase total desarticulação dos órgãos envolvidos nos pro-gramas, desprovido de qualquer estratégia de ação integrada.

A implantação de uma nova política de recursos hídricos passou a fazer parte do pen-samento estratégico do grupo que assumiu o poder no estado do Ceará em 1987, e foi in-cluída no conjunto das macro-reformas, ao lado da reforma do Estado e dos ajustes fiscal efinanceiro. A partir daí, o governo estadual passou a implantar um ambicioso plano de ofer-ta e disciplina do uso da água, tendo por base o argumento de que no passado não havianenhuma preocupação, nem no estado nem na região, em se estabelecer uma estrutura ca-paz de ajudar a população das áreas rurais a lidar racionalmente com a escassez de água.

Segundo Amaral Filho (2003, p.15), no primeiro Plano de Governo de Tasso Jereis-sati (1987-1991), ainda não havia uma “idéia clara” do modelo de gestão de água para oestado, embora existisse a consciência da necessidade de se formular um modelo, orien-tado para o disciplinamento e a racionalização do uso dos recursos hídricos.

Considerando que as intervenções do governo contra os efeitos da seca eram emer-genciais e de caráter assistencialista, com práticas de clientelismo, o Plano de Governodestacava que as soluções emergenciais deveriam ser abandonadas e deveriam ser estabe-lecidas soluções integradas, estruturais e permanentes (Ceará, 1987). Amaral Filho(op.cit.) destaca que o governo do estado depositou sua confiança na estratégia de desen-volvimento rural preconizada pelo Projeto Nordeste,4 que seria financiado pelos governosfederal e estadual e pelo Banco Mundial.

No início de 1987 foram dados os primeiros passos na implantação da política esta-dual de recursos hídricos. Foi dado início ao estabelecimento de um aparato estatal5 e àimplantação de políticas públicas para encaminhar a questão dos recursos hídricos, comdestaque para a criação da Secretaria de Recursos Hídricos (SRH) – lei 11.306 de 1º deabril de 1987 –, com a missão de promover o aproveitamento racional e integrado dos re-cursos hídricos do estado, coordenar, gerenciar e operacionalizar estudos, pesquisas, pro-gramas, projetos e serviços tocantes a recursos hídricos, e promover a articulação dos ór-gãos e entidades estaduais do setor com aqueles das instâncias federal e municipais.

Outras medidas institucionais foram: a criação da Superintendência de Obras Hidráu-licas do Estado (SOHIDRA) – lei 11.380 de 15 de dezembro de 1987 –, com o objetivo deser o braço técnico e executor das obras da Secretaria de Recursos Hídricos; a vinculação daFundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos (Funceme) ao sistema de recur-sos hídricos. Desta forma, a SRH, a Funceme, a SOHIDRA e o Conselho de Recursos Hídri-cos passaram a compor o Sistema de Recursos Hídricos do Estado (Amaral Filho, 2003).

Uma das providências adotadas pela SRH foi a elaboração do Plano Estadual de Re-cursos Hídricos (PERH), que lançou as bases da política adotada pelo setor. O Plano pro-pôs todo um aparato jurídico e institucional para o setor, além de promover a integraçãodos órgãos estaduais, federais e municipais, organizando-os no Sistema Integrado de Ges-tão de Recursos Hídricos (SIGERH).6

O Plano Estadual de Recursos Hídricos, que levou quatro anos para ficar pronto,constitui o mais importante estudo técnico consolidado já realizado no Ceará e pode serconsiderado como a principal fonte arquitetônica do atual modelo estadual de gestão dosrecursos hídricos (Amaral Filho, 2003).

Com a posse de Ciro Gomes em 1991, houve continuidade no processo de implan-tação do novo modelo de gestão de recursos hídricos, de forma a permitir a propagação dos

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4 O Projeto Nordeste conti-nha alguns projetos específi-cos, tais como o Programade Apoio ao Pequeno Pro-dutor Rural (PAPP/PDSFN),Programa de Irrigação Públi-ca e Privada, Programa deApoio às Micro e PequenasEmpresas no Interior, Pro-gramas de Educação Básicae Profissional do Meio Rural,Programas de Ações Bási-cas de Saúde no Meio Rurale Programa de SaneamentoBásico no Meio Rural (Ama-ral Filho, 2003).

5 As informações referentesao aparato estatal da Políti-ca de Recursos Hídricossão de Ceará (1995a).

6 O SIGERH foi instituído pe-la Lei 11.196 de 24 de ju-nho de 1992, complementa-do pela Lei 12.217 de 18de novembro de 1993, quecria a Companhia de Gestãode Recursos Hídricos (CO-GERH), e pela Lei 12.245 de30 de dezembro de 1993,que dispõe sobre o FundoEstadual dos Recursos Hí-dricos (FUNORH). A suacomposição reúne um con-junto de órgãos colegiadosde coordenação e participa-ção, deliberação e execu-ção da política estadual derecursos hídricos. Congregainstituições estaduais, fede-rais e municipais, que, de al-gum modo, se relacionamcom recursos hídricos ecom aqueles representati-vos dos usuários de água eda sociedade civil.

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desdobramentos do Plano Estadual de Recursos Hídricos, elaborado no governo de TassoJereissati (Id., Ibid.). O autor ressalta que, embora os princípios básicos da nova política játivessem sido implementados pelo PERH, estes ainda não tinham penetrado no discursopolítico do novo governo.

A Política das Águas no Ceará,7 prevista no artigo 326 da Constituição Estadual, foidisciplinada pela Lei Estadual de Recursos Hídricos n. 11.996 de 24 de julho de 1996, evisa proporcionar os meios para que a água, recurso essencial ao desenvolvimento sócio-econômico, seja usada de forma racional e justa pelo conjunto da sociedade, em todo ter-ritório do Ceará.

A Lei Estadual de Recursos Hídricos tem como objetivos: assegurar o desenvolvi-mento sustentado compatível com a oferta de água; assegurar a oferta de água em quan-tidade e qualidade para as gerações atuais e futuras; planejar e gerenciar, de forma inte-grada, descentralizada e participativa, o uso múltiplo, controle, conservação, proteção epreservação dos recursos hídricos.

A Política Estadual de Recursos Hídricos tem como elementos básicos: o Plano Es-tadual dos Recursos Hídricos, que contém um estudo detalhado da capacidade e das po-tencialidades dos recursos hídricos do estado do Ceará (este plano foi revisado em 2004);o Sistema Integrado dos Recursos Hídricos, em que os Comitês de Bacia, as Câmaras Téc-nicas e o Conselho de Recursos Hídricos do Estado do Ceará (CONERH), órgãos colegi-ados, definem e executam a Política Estadual de Recursos Hídricos; e o Fundo Estadualde Recursos Hídricos, criado em 1992 para dar suporte financeiro à Política Estadual deRecursos Hídricos, que conta com recursos de programas e projetos governamentais ecom aqueles oriundos da cobrança pelo uso da água bruta.

A adoção da bacia hidrográfica8 como unidade de planejamento é um dos princípiosfundamentais do gerenciamento dos recursos hídricos. O estado do Ceará foi dividido emonze bacias hidrográficas: Coreaú, Litoral, Curu, Metropolitana, Baixo Jaguaribe, Parnaí-ba, Acaraú, Banabuiú, Médio Jaguaribe, Alto Jaguaribe e Salgado (Amaral Filho, 2003).

As funções do Comitê de Bacia são permanentes e intermitentes, abrangendo desdeo planejamento e acompanhamento da operação dos açudes estratégicos e principais sis-temas hídricos até a negociação de tarifas pelo uso de água bruta. Também são atribuiçõesdo Comitê: acompanhar a implementação dos cadastros de usuários de água bruta, con-tribuir para a negociação de conflitos pelo uso da água em sua bacia, implementar cam-panhas educativas e participar do processo de elaboração dos Planos de Gerenciamentode Bacias.

Em 1993 foi criada a Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos do Ceará(COGERH)9 (Amaral Filho, Ibid.), com a finalidade de gerenciar a oferta dos recursos hí-dricos constantes dos corpos d’água superficiais e subterrâneos de domínio do estado, eequacionar as questões referentes ao seu aproveitamento e controle, operando, para tan-to, de forma direta, por meio de subsidiária ou de pessoa jurídica de direito privado, me-diante contrato, realizado sob forma remunerada.

Além da aprovação da Lei 11.996, de 24 de junho de 1992, que dispõe sobre a Po-lítica Estadual de Recursos Hídricos, Amaral Filho (2003) destaca mais três realizações doGoverno Ciro Gomes: o aumento da capacidade de armazenamento e da oferta de águano Estado através da construção de açudes, barragens e canais; a realização de novas ro-dadas de estudos técnico-científicos que aconteceram no âmbito do Projeto Áridas,10 quecontribuíram para ajudar a atualizar o Plano Estadual de Recursos Hídricos, ao mesmotempo em que definiam os contornos da Política de Recursos Hídricos do Ceará; e o fe-

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7 Os princípios, instrumen-tos, diretrizes e elementosda Política de Recursos Hí-dricos são de Ceará [s.d.].

8 Bacia hidrográfica é umaárea onde toda chuva quecai, drena, por riachos erios secundários, para ummesmo rio principal, locali-zado em um ponto mais bai-xo da paisagem, sendo se-parada das outras baciaspor uma linha divisória deno-minada divisor de água.

9 A COGERH foi criada pelaLei n° 12.217, de 18 de no-vembro de 1993, em con-formidade com o artigo 326da Constituição do Estadodo Ceará como entidade daAdministração Pública Indi-reta dotada de personalida-de jurídica própria, organiza-da sob a forma desociedade anônima, de capi-tal autorizado.

10 O Projeto Áridas foi umareflexão realizada por equi-pes estaduais integradasdos estados do Nordeste,com a finalidade de repen-sar o desenvolvimento daregião, tendo como referên-cia o conceito de desenvol-vimento sustentável. O Pro-jeto Áridas nasceu naFundação Esquel e teve oapoio da Secretaria de Pla-nejamento, Orçamento eCoordenação da Presidên-cia da República (SE-PLAN/PR), além de coopera-ção técnica e institucionaldo Instituto Interamericanode Cooperação para a Agri-cultura (IICA). A idéia originaldeste projeto aconteceu naConferência Internacionalsobre Impactos de Varia-ções Climáticas e Desenvol-vimento Sustentável em Re-giões Semi–Áridas (ICID),realizada em Fortaleza noinício de 1992, como basepreparatória para a Confe-rência Mundial de Desenvol-vimento e Meio Ambiente(Eco–92) para assuntos re-lacionados ao Semi-Árido,desertificação e meio-am-biente (Amaral Filho, 2003).

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chamento de negociações com o Banco Mundial para obtenção de empréstimos para o fi-nanciamento do PROURB – Hídrico.

A parceria entre o estado e o Banco Mundial na questão das águas foi iniciada em1994, com o financiamento do Projeto de Desenvolvimento Urbano e Gestão de Recur-sos Hídricos (PROURB), que teve como objetivos a consolidação do sistema estadual degerenciamento de recursos hídricos, inclusive com a criação da COGERH, e o início da co-brança pelo uso desses recursos. O PROURB também implementou um ambicioso progra-ma de construção de barragens e adutoras para o suprimento de água a diversas cidadesdo Estado.

Depois do início das obras do PROURB, o governo propôs ao Banco Mundial umprograma de integração das bacias hidrográficas do Ceará, por meio da implantação doPrograma de Gerenciamento e Integração dos Recursos Hídricos (PROGERIRH), que tema concepção básica de transferência de recursos hídricos de zonas úmidas para zonas deescassez hídrica. O PROGERIRH foi criado pelo Governo do Estado em parceria com oBanco Mundial11 com o objetivo de promover a gestão eficiente e integrada dos recursoshídricos do estado do Ceará, mediante a racionalização do uso de água, o aumento de suaoferta para usos múltiplos, o incentivo à adequada gestão do solo e da vegetação nas ba-cias hidrográficas tributárias, a minimização de sua erosão, a construção de açudes estra-tégicos, a transposição de bacias, a criação de agrovilas e a irrigação ao longo dos eixos detransferência, com a abertura de novas fronteiras agrícolas, compondo assim, a Política deRecursos Hídricos do estado.

Amaral Filho (Ibid., p.29) destaca que o envolvimento do estado com o Banco Mun-dial foi importante, não somente pelo aporte financeiro, mas também:

[...] pela introdução do disciplinamento dos instrumentos, pelo aperfeiçoamentoinstitucional, pela modernização dos procedimentos administrativos, pela mudança dementalidade e também devido à melhoria da capacidade técnica dos recursos humanosenvolvidos no sistema. Isto ocorrendo através da interação técnica, bem como através doscondicionantes econômico, financeiro, ambiental e social atrelados à concessão de em-préstimos.

O segundo e terceiro governos de Tasso Jereissati continuaram a Política de RecursosHídricos. O Plano de Governo do terceiro governo tomou como base as teses e propostasdos estudos do Projeto Áridas. Foram estes estudos, conforme afirma Amaral Filho (2003),que deram visibilidade à Política Estadual de Recursos Hídricos, dando contornos maisprecisos ao modelo, inclusive agregando o conceito de desenvolvimento sustentável.

A MODERNIZAÇÃO EXCLUDENTE DA BARRAGEMDO CASTANHÃO

Nas seções anteriores, buscou-se explicar de que forma foi construído o “Ceará mo-derno” e como aconteceu a implantação da “modernidade hídrica” no estado, processosque estão imbricados com a construção da Barragem do Castanhão, que será analisada apartir dos pressupostos deste mesmo processo de modernização.

Duas grandes obras de infra-estrutura se destacam no projeto de desenvolvimentoinstaurado no estado do Ceará: o Complexo Industrial e Portuário do Pecém e o açude

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11 O contrato 4531-BR para aimplantação do PROGERIRH foiassinado com o Banco Mundialem 10 de fevereiro de 2000,com um valor total do projetode US$ 247,270,000.00; des-tes, o valor do contrato de fi-nanciamento do BIRD foi deUS$ 136,000,000.00 e o valorda contra-partida, de US$111,270,000.00. Foi assinadotambém o contrato de nº01.2.329.3.1 com o BNDES,em 30 de abril de 2002, para o financiamento de R$ 126.000.000,00, divididosem dois subcréditos, o subcré-dito A, de R$ 43.400.000,00,e subcréd i to B , de R$82.600.000,00 (Ceará, 2005a).

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Castanhão. O Complexo Industrial e Portuário do Pecém foi concebido com o objetivode dotar o estado do Ceará de um núcleo de irradiação de desenvolvimento. A Barragemdo Castanhão, considerada um elemento central na política da gestão integrada das prin-cipais bacias e na política estadual de águas, visa superar a vulnerabilidade das atividadessociais e econômicas quanto à incerteza de disponibilidade de água, e induzir o uso efici-ente da água, como bem econômico escasso (Ceará, [199-]).

Localizados na bacia hidrográfica do Jaguaribe, principal rio cearense, a barragem doCastanhão e seu reservatório estão situados nos municípios de Alto Santo, Jaguaribara, Ja-guaretama e Jaguaribe. O vale do Rio Jaguaribe ocupa uma área de 72 mil quilômetrosquadrados, ou a metade do território do Ceará. O Vale está situado em uma região semi-árida e, em função do clima e da base geológica predominantemente cristalina, o regimedos rios é intermitente, fluindo apenas no período das chuvas. Até 1980, o Rio Jaguaribeera considerado o “maior rio seco do mundo”, tendo sido perenizado com a construçãodo Açude Orós em 1960 e com a instalação de equipamentos hidráulicos em 1980.

Três vezes e meio maior que o açude Orós, o Castanhão tem capacidade para arma-zenar 6,7 bilhões de m3 de água, com um volume útil de 4,211 bilhões na cota 100 e umvolume morto de 250 milhões de m3 na cota 71. O reservatório tem um comprimentomáximo de 48 km, área inundada de 32.500 hectares na cota 100 (cota de sangria), deoperação normal, e 60.000 hectares na cota de cheia máxima.

A Barragem do Castanhão é considerada pelo Governo do Estado do Ceará comoum projeto de uso múltiplo com forte componente de desenvolvimento regional, e repre-senta fato de grande repercussão sócio-econômica no estado. A construção da Barragemdo Castanhão foi apresentada como um importante meio de atender não apenas as neces-sidades de água da população do semi-árido, vítima de secas periódicas, mas também co-mo um investimento estratégico de longo prazo capaz de oferecer múltiplos benefícios. Aágua, como um recurso territorial estratégico, tem se revelado elemento de fundamentalimportância para garantir a atração de indústrias para o estado, bem como para garantiro funcionamento do Complexo Industrial e Portuário do Pecém.

Com a finalidade de levar água para Fortaleza e região e para o Porto do Pecém,está sendo construído o Eixo de Integração Castanhão-Região Metropolitana de Forta-leza (RMF) pela SOHIDRA,12 com recursos do PROGERIRH: um sistema de adução, com255 km de comprimento, composto por uma estação de bombeamento, 166,59 km decanais, 93,0 km de adutoras e 1,1 km de túneis. A obra permitirá a transposição do açu-de Castanhão para reforçar o abastecimento da Região Metropolitana de Fortaleza etambém do Complexo Industrial e Portuário do Pecém, fazendo a integração das baciashidrográficas do Jaguaribe e da Região Metropolitana.13 Este empreendimento é consi-derado fundamental para o suprimento, com garantia adequada, das demandas hídri-cas da Região Metropolitana de Fortaleza, incluindo o Complexo Industrial e Portuá-rio do Pecém.

Os primeiros estudos topográficos e geológicos sobre a Barragem do Castanhão da-tam de 1910. De acordo com Tavares (2004), o geólogo americano Roderic Crandall,consultor do Serviço de Geologia e Mineralogia do Brasil, descobriu o Boqueirão do Cu-nha, hoje situado no município de Alto Santo, na aproximação do chamado Baixo Valedo Rio Jaguaribe, ao estudar seções naquele rio que poderiam ser fechadas para o arma-zenamento d’água, como forma de regularizar a oferta deste recurso, em um território re-gido pelas irregularidades climáticas e constituído, em quase toda sua totalidade, de solosrasos de geologia cristalina.

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12 Informações disponíveisem: http://www.sohidra.ce.gov.br.

13 O primeiro trecho doEixo de Transposição foiinaugurado em dezembrode 2004.

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Conforme Tavares (Ibid.), a descoberta não foi tão festejada na época, pois o relató-rio de Crandall adiantou que o sítio barrável em questão seria mais adequado à constru-ção de uma barragem de pequeno porte, para derivação das águas para futuros canais deirrigação, pois se situava no limite extremo sul das manchas irrigáveis do baixo Jaguaribe.Apenas em meados de 1955, a construção do eixo barrável foi cogitada, quando se apre-sentou como alternativa à barragem do Orós, sendo preterido por esta última, que teve asobras iniciadas e concluídas ainda no Governo Juscelino Kubitscheck.

A partir do início dos anos 1980, a Barragem do Boqueirão do Cunha, atualmenteBarragem Castanhão, passou então a ser estudada, agora pelo Departamento Nacional deObras de Saneamento (DNOS), no âmbito dos estudos de transposição das águas do SãoFrancisco para o Nordeste Semi-Árido, com a finalidade de desempenhar o papel de re-servatório pulmão (Tavares, Ibid.). Em setembro de 1987 foi contratado o Consórcio Hi-droservice/Noronha pelo DNOS, para elaboração dos Estudos Básicos, Anteprojeto, Pro-jeto Básico e Projeto Executivo (Araújo, 1997).

Com a extinção do DNOS, seu patrimônio e competências foram transferidos para oDNOCS, inclusive o futuro empreendimento Barragem do Castanhão. Desta forma, oProjeto do Castanhão só chegou ao conhecimento do DNOCS em dezembro de 1986 (Ta-vares, Ibid.).

Em 1989, o DNOCS iniciou a contratação do Relatório de Impacto Ambiental (RIMA), o cadastramento das terras e benfeitorias, e o remanejamento da população atin-gida. O Projeto Básico, devidamente aprovado, serviu de suporte para efetivação da Con-corrência Pública nº 08/89-DGO/G, realizada em dezembro de 1989. A vencedora da li-citação foi a Construtora Andrade Gutierrez S.A., porém, o resultado esteve "sub-judice"por quase dois anos, em função de recursos interpostos por empresa concorrente. Em ou-tubro de 1991, o Supremo Tribunal de Justiça deu provimento a recurso interposto pelaConstrutora Andrade Gutierrez, encerrando assim o processo licitatório, dando ganho decausa à empresa que apresentou o menor preço (Araújo, op. cit.).

As obras de construção da Barragem do Castanhão14 foram contratadas pelo DNOCS

em 05 de dezembro de 1991, através do Contrato nº PGE 01/91, com a Construtora An-drade Gutierrez S.A., porém, a 1ª Ordem de Serviço só foi emitida em 16 de novembrode 1995.

Desde que o DNOS lançou a idéia e projetou a construção do Castanhão, com oconseqüente aparecimento das notícias de sua construção em 1985, o Castanhão seconstituiu em uma obra polêmica, cercada de imensos questionamentos. As divergênciastécnicas foram o principal elemento desencadeador da polêmica em torno da obra (Sil-veira, 2000). Um dos líderes dessa oposição técnica foi o engenheiro civil Manfredo Cás-sio de Aguiar Borges, que foi por mais de vinte anos chefe da Divisão de Hidrologia doDNOCS. Borges dirigiu suas críticas aos erros do dimensionamento hidráulico do reser-vatório; aos erros e conseqüências da concentração de água no terço inferior do Vale doJaguaribe; e aos erros e conseqüências da implantação de um lago com superfície extre-mamente grande para uma região seca e quente, o que ocasionaria uma grande perda deágua por evaporação.

Igualmente foi objeto de críticas a “dança” dos objetivos e benefícios advindos da Bar-ragem. Críticas estas que foram bastante consistentes, uma vez que os objetivos dessa obrasempre variaram ao sabor do contexto da época, dos projetos e das conveniências governa-mentais, bem de conformidade com o que uma barragem de “usos múltiplos” pode ofere-cer. Exemplo muito claro disso pode ser percebido quando se constata a importância da

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14 Em julho de 1995, oDNOCS celebrou um Convêniocom o Governo do Estado doCeará, a fim de viabilizar asações decorrentes da Constru-ção da Barragem do Casta-nhão, no que se refere ao en-volvimento com populações,como a construção da cidadede Nova Jaguaribara e o Reas-sentamento da População Ru-ral, bem como outras açõespertinentes à execução daobra. Em 22 de outubro de1996, o DNOCS assinou o Con-trato nº PGE 16/96 com o Con-sórcio Aguasolos/Hidroterra,vencedor da licitação para Exe-cução de Serviços de Consulto-ria para Acompanhamento, As-sessoria e Fiscalização dasObras da Barragem do Casta-nhão. (Araújo, op. cit).

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Barragem do Castanhão para o Complexo Industrial e Portuário do Pecém, e de como,uma Barragem que agora é considerada o coração da política de águas do estado, não rece-beu a mesma qualificação quando da elaboração do Plano Estadual de Recursos Hídricos.

Esta “dança” de objetivos também é citada por Bernadete Neves, freira que liderou aorganização da comunidade de Jaguaribara frente à construção da barragem do Castanhão:

Os objetivos da barragem sempre foram apresentados de acordo com o contexto da época.Sabemos que o projeto teve origem nos gabinetes do DNOS, no Rio de Janeiro, fora da realidadedo Semi–Árido. De início, eles apresentavam dois objetivos: um era a irrigação da Chapada doApodi, e o outro era a transposição do São Francisco. Em 1985 houve muitas enchentes, então elesaproveitaram para dizer que o projeto iria atenuar o nível de enchentes no Vale. Diziam mesmoque acabaria com as enchentes. Numa outra época, o projeto passou a ter como objetivo a gera-ção de energia. Eles vão mudando os objetivos de acordo com os interesses do momento. [...] Elesvão manipulando, vão fazendo os objetivos de acordo com o contexto da época, para conseguirema aprovação do povo. Durante um ano de seca, um outro objetivo foi levar água para Fortaleza.Agora é a transposição do São Francisco. O que sentimos é que isto faz parte de um plano maior,de favorecimento de empreiteiras. (IMOPEC, 1999, p.26)

A população de Jaguaribara, cidade que foi submersa pelas obras da Barragem,15 te-ve um papel fundamental na discussão que se estabeleceu em torno de sua construção,embora, segundo os próprios moradores, não se possa dizer que o povo de Jaguaribara te-nha se organizado em decorrência da construção da barragem. Quando a notícia da bar-ragem chegou, já há seis anos se desenvolvia a discussão, organização e formação de lide-ranças, com forte presença da Igreja Católica, em particular de Irmã Bernadete. Apopulação utilizou todas as estratégias disponíveis para impedir a realização da obra.Quando se constatou a inevitabilidade do projeto, surgiram as discussões de compensa-ções sociais, econômicas e financeiras à população urbana e rural.

Uma questão muito importante a ser resolvida dizia respeito ao desejo da populaçãode ficar nas margens do rio, em vez de ser deslocada para assentamentos de reforma agrá-ria em outras localidades. Para muitos, isso seria uma violência à tradição deles. Jaguari-bara era um lugar com uma tradição cultural que deveria ter sido preservada. Desde quea Confederação do Equador teve o desfecho na região e o corpo de Tristão Gonçalves te-ria sido sepultado na igreja local, Jaguaribara passou a fazer parte do mapa histórico doCeará.16 A praça principal da cidade tinha o nome de Tristão Gonçalves. Existia um mar-co que era muito visitado e, particularmente no dia 31 de outubro, o marco era alvo devisitas por alunos das escolas locais.

O desrespeito aos critérios estabelecidos para as indenizações (justa, prévia e em di-nheiro) criou problemas para as pessoas que compraram propriedades nos municípios vi-zinhos confiando nelas, pois tiveram que devolver as terras porque não puderam consoli-dar a compra devido a atrasos nos processos de indenização.

Outro problema grave dizia respeito ao descompasso muito grande entre o ritmo dasobras da barragem e o da construção da nova cidade e, principalmente da formação dosassentamentos rurais. Para muitos, o pagamento das indenizações e o citado descompas-so constituíram um dos problemas mais sérios.

Com a transferência para a nova cidade sendo anunciada pelo Governo do Estado,persistia a disputa e a negociação entre Governo e comunidade, conforme mostra Nasci-mento (2003, p.21), ao mencionar a produção de uma série especial de matérias veicula-

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15 Embora Jaguaribara te-nha sido o município maisatingido, as obras de cons-trução da Barragem atingi-ram também Jaguaretama,Alto Santo e Morada-Nova,os quais cederam parte deseus territórios para o novomunicípio de Jaguaribara.Jaguaretama ainda teve par-te de seu território atingidopelas obras.

16 Escavações feitas naIgreja Santa Rosa de Lima,quando da demolição da ci-dade de Jaguaribara, não lo-calizaram os restos mortaisde Tristão Gonçalves. (Diá-rio do Nordeste, 15 de outu-bro de 2001).

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das no Programa “No Ceará é assim” da TV Jangadeiro, emissora de propriedade de Tas-so Jereissati, sobre a transferência dos moradores e a estrutura da nova sede.

Segundo a autora, tais matérias difundiam os benefícios de uma cidade planejada,“nascida do processo democrático”, na qual “seu planejamento, desde a sua localização atéa estrutura física urbana, contou com a participação da população” – conforme Informa-tivo da Secretaria do Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente do Governo do Estadodo Ceará –, embora não se constituíssem em fonte isenta, dado que não havia espaço nes-tas mesmas matérias para a divulgação das idéias contrárias ao Governo. Enquanto isso, acomunidade, com apoio de algumas entidades, produzia e divulgava material declarandosua posição divergente no processo.

A transferência dos moradores para Nova Jaguaribara teve início em 2000. Em2002, a nova cidade, distante 55 km da antiga sede, foi inaugurada pelo Governo do Es-tado. Nova Jaguaribara possui área territorial de 595,60 km2 e passou a ter como limiteso município de Morada Nova, ao norte; os municípios de Alto Santo e Iracema, a leste;o município de Jaguaribe, ao sul e o município de Jaguaretama, a oeste (Ceará, 1995b).

Segundo Pontes (2004), as recomendações relativas ao reassentamento estavam liga-das essencialmente à população urbana, em função de exemplos negativos que já haviamocorrido em outras obras no Brasil e, também devido à organização da população urba-na de Jaguaribara. A área rural não se constituía em motivo de preocupação, dada a dis-persão da população e a ausência de resistência e organização. Eles não estavam incluídosnos planos de modernidade.

A construção da Barragem Castanhão deslocou compulsoriamente uma populaçãode 2.268 famílias no meio rural, em área circunscrita ao futuro lago, até a cota 110. Des-tas famílias, 1.515 foram consideradas reassentáveis, uma vez que não tinham condiçõesde se restabelecer por sua própria conta, por serem simples moradores ou porque, sendoproprietários, receberam uma indenização que não lhes permitia se restabelecer digna-mente (Ceará, 2004).17

O Governo do Estado, vislumbrando a magnitude das ações do reassentamento enão possuindo recursos para o cumprimento do convênio que tratava da execução deações referentes à barragem do Castanhão, solicitou uma alteração no mesmo, através deaditivo. No momento da rediscussão das competências e valores, coube ao DNOCS a res-ponsabilidade pelo reassentamento rural, inicialmente com o Governo do Estado, e este,como contrapartida, construiria a nova sede de Jaguaribara. O DNOCS repassaria os re-cursos necessários ao Instituto de Desenvolvimento Agrário do Ceará (IDACE), que seriao executor do reassentamento rural (Pontes, op. cit.)

Não havia uma idéia de movimento de atingidos na região até os anos 1990. A his-tória do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) no Castanhão, enquanto movi-mento organizado de luta contra barragens, se iniciou a partir de 1993, especialmentequando um dos atuais líderes do movimento começou a participar das reuniões que acon-teciam em Jaguaribara, Fortaleza e São Paulo, em 1997. A idéia do movimento começoua tomar forma a partir da insatisfação quanto ao modo como a questão da barragem es-tava sendo tratada pelas lideranças de Jaguaribara. Hoje, o MAB tem destacada atuação noenfrentamento dos problemas advindos da implantação da Barragem.

A liderança exercida pela freira Bernadete Neves provocou, por volta de 1999/2000vários confrontos internos, com discordâncias quanto à maneira como o trabalho estavasendo conduzido, principalmente no enfrentamento com o governo, estabelecendo-seuma clara disputa entre a Igreja, na pessoa da Irmã Bernadete, e o MAB.

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17 Informação constantenos Planos de Reassenta-mento do IDACE.

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A falta de planejamento do Estado para o equacionamento dos problemas dos atin-gidos no meio rural foi outro fato que contribuiu para a organização do MAB na região,que veio dar maior visibilidade a estas questões, organizando manifestações, encaminhan-do documentos, conseguindo meios para resolver emergencialmente a situação de penú-ria em que se encontrava a maioria dos atingidos, e buscando uma interlocução diretacom os órgãos envolvidos, principalmente com o DNOCS.

O reassentamento dos atingidos do meio rural, com a multiplicidade de órgãos es-tatais envolvidos, esteve cercado de problemas, desde o início; o desenvolvimento ou mo-dernização pretendido com a implantação da Barragem passou ao largo do processo des-crito por Cernea e McDowell (2000), que tem em vista elevar o padrão de vida, saúde,alfabetização, reduzir a pobreza e fortalecer o meio ambiente.

Se os componentes fundamentais que devem ser considerados nos processos de des-locamento, a fim de se alcançar o desenvolvimento, são a ausência de pessoas sem terra esem teto, desempregadas, marginalizadas, sofrendo de insegurança alimentar, com falta deacesso aos recursos comunitários e sem desarticulação dos laços comunitários, o modelode desenvolvimento e de modernização posto em prática no Castanhão realmente falhounesse sentido.

É se é possível também, como advogam Cernea e McDowell (Ibid.), que, sob polí-ticas claras, podem ser protegidas mais efetivamente as práticas que constituem os direi-tos civis, dignidade humana e os direitos econômicos dos que são sujeitos à realocação in-voluntária, constata-se que faltou no Castanhão uma política clara para o reassentamentorural. Se nessa perspectiva, reassentamento e restabelecimento das condições de vida sãodomínios nos quais se afirmam os direitos humanos, estendendo a justiça social e promo-vendo a inclusão em vez de exclusão proeminente nas agendas políticas, pode-se afirmarque aconteceu no Castanhão um processo de modernização excludente.

Se tomarmos como base as recomendações da Comissão Mundial de Barragens, fun-dadas nos valores de equidade, sustentabilidade, eficiência, processo decisório participativoe responsabilidade, a situação dos atingidos pode ser considerada ainda mais excludente.

Sem dúvida, foi um avanço a instalação do Grupo de Trabalho Multiparticipativopara Acompanhamento das obras da Barragem do Castanhão, instância criada pelo Go-verno do Estado com o objetivo de discutir as ações relacionadas à Barragem do Casta-nhão e para servir como um fórum de debates acerca dos problemas oriundos de sua cons-trução. Em que pese a inovação da medida, diferente das adotadas até então naconstrução de grandes obras de infra-estrutura, o Grupo Multiparticipativo funcionoumuito mais no sentido de legitimação das ações governamentais do que como fórum efe-tivo de participação da sociedade civil. Isto se verifica fundamentalmente em seu funcio-namento. Afinal, a participação democrática da sociedade efetivamente não ocorreu, sefor considerado que a participação não se restringe a expor os problemas, mas em ter apossibilidade de influir nos resultados.

Como pode ser considerado democrático um fórum para tratar das questões referen-tes à construção de uma grande obra, se é fechada a porta à participação formal de ummovimento de representação dos atingidos por ela? O convite formal para a participaçãodo MAB no referido Grupo só ocorreu quando não havia mais o que ser decidido e quan-do os movimentos sociais passaram a ter mais visibilidade. Como se pode dizer que a po-pulação participou efetivamente, se só podia decidir questões que não implicassem em re-alocação dos recursos, que foram prioritariamente dirigidos para a obra da barragem e daconstrução da nova cidade?

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No que tange à participação da comunidade tão propagada pelo Governo do Esta-do, cabe uma reflexão particular acerca da ação desenvolvida pelo Instituto de Desenvol-vimento Agrário do Ceará (IDACE), representante do governo estadual no processo de re-assentamento. O trabalho do IDACE teve por base uma metodologia participativa que jávinha sendo utilizada em assentamentos de reforma agrária no Ceará, mas que se mostrouproblemática no caso da Barragem do Castanhão, dado o pouco poder de decisão que ti-nham seus técnicos no processo de reassentamento e à forma como se processou o reas-sentamento rural, sempre a reboque dos outros processos.

A modernização pretendida pelo governo das “mudanças” apresentou, pelo menos nodiscurso, todos os aspectos relacionados por Gomes (2000) como indicativos do moderno:o caráter de ruptura, a imposição do novo e a pretensão de alcançar a totalidade. Como omecanismo de substituição do antigo pelo novo é a ruptura, a necessidade imperiosa deruptura com os “coronéis” fazia parte da afirmação de sua modernidade pretendida. Con-forme Heller e Feher (1994), a instituição existente é atacada do ponto de vista de um ima-ginário (futuro), sendo transformada em instituição velha. Assim, todos os que se posicio-naram contra o “novo” que estava sendo implantado no Ceará, também passaram a serconsiderados como “forças do atraso”, numa pretensão clara de alcançar a totalidade.

Outro aspecto a ser considerado na modernização do governo das “mudanças” diz res-peito ao que Touraine (2002) chama de concepção ocidental da modernidade, em que aracionalização era a própria razão e a necessidade histórica que preparava seu triunfo. Des-ta forma, a racionalização se torna um aspecto essencial da modernidade e um mecanismonecessário para realizar a modernização. Neste aspecto, as ações do governo das “mudan-ças” se revestiram de um caráter técnico-racional sem precedentes na história do Ceará.

Se a modernização pode ser entendida como o desenvolvimento da racionalidadeinstrumental e representa o marco econômico e cultural de nossa época, sendo um crité-rio necessário ao desenvolvimento econômico e estabelecendo o referencial obrigatóriopara qualquer política, conforme Lechner (1990), o processo de uso e controle das águasno Ceará certamente tem contribuído para levar o estado a se transformar num paradig-ma da “modernização hídrica”, pensada nos seus aspectos puramente técnicos, citada co-mo exemplo a ser seguido por outros estados do país.

Entretanto, a modernização das práticas de planejamento e gestão de recursos hídri-cos em escala estadual se concretiza através de práticas tradicionais. Na verdade, seria maisjusto dizer, no caso do Castanhão, que se assiste a uma combinação híbrida de formas mo-dernas, planejadas e abertas, mesmo que de maneira incompleta à participação, com for-tes traços de exclusão política, em que o social ainda é moeda de troca.

Isto pode ser percebido muito claramente na questão do valor teto das indenizações– que determinava quem teria direito ao reassentamento –, apenas apresentado e não dis-cutido com os atingidos, que não tiveram qualquer ingerência na definição deste valor,restando apenas a aceitação, ou a migração, como aconteceu com um número razoável defamílias. Isto também é verificado quando se compara o número de reassentáveis nos pla-nos iniciais de reassentamento e os dados mais recentes de famílias reassentadas.

A participação “adjetiva” que os atingidos tinham no Grupo Multiparticipativo,quando se tratava de resolver as questões mais importantes, e que diziam respeito às ver-bas, certamente não pode ser configurada como inclusão. E o tratamento dispensado aoMAB não poderia ser caracterizado como exclusão política? No Castanhão, as dimensõessociais do processo de modernização fracassam em um modelo que não consegue incor-porar importantes segmentos sociais.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise permite constatar que o processo de uso e controle das águas no Ceará, ten-do como base o processo de construção da Barragem do Castanhão, colocou o estado co-mo exemplo a ser seguido, e contribuiu para levá-lo a se transformar em um modelo demodernização, no que diz respeito a “modernização hídrica”. Se pensarmos em todo oaparato técnico e no desenvolvimento institucional, certamente houve modernização; en-tretanto, esta modernização ocorreu em detrimento de interesses e direitos de setores so-ciais que continuam estruturalmente à margem do mercado e à margem da proteção es-tatal, pois a modernidade hídrica implantada no Ceará buscou transformar o espaçogeográfico no espaço da racionalidade técnica a serviço de interesses privados.

O aparato institucional criado para dar corpo à modernização hídrica foi funcionalpara a concretização deste projeto de modernidade, inclusive com o envolvimento do Es-tado com o Banco Mundial, que propiciou a introdução do disciplinamento dos instru-mentos, conseguidos através do aperfeiçoamento institucional e da modernização dosprocedimentos administrativos. Isto ocorreu não apenas pela interação técnica, mas tam-bém por meio dos condicionantes atrelados à concessão de empréstimos.

O Ceará, como cliente do Banco Mundial, se empenhou em desenvolver leis, regu-lamentos e instituições requeridas para administrar os recursos hídricos de maneira maiseconomicamente produtiva, socialmente aceitável e ambientalmente sustentável e, aexemplo dos demais prestatários do Banco Mundial, também precisou desenvolver emanter uma ação apropriada de infra-estrutura de água.

Entretanto, a institucionalização posta em prática nas questões ligadas diretamenteao reassentamento da população rural afigurou-se como um elemento complicador doprocesso, tendo gerado interferências e conflitos entre os diversos níveis e instâncias, tan-to governamentais, como com a Igreja, o MAB e representantes da comunidade.

Não restam dúvidas quanto à necessidade de uma adequada gestão dos recursos hí-dricos em um estado que sempre sofreu em decorrência das irregularidades climáticas.Resta esperar que os benefícios desta pretensão de modernidade não fiquem concentra-dos nas mãos de poucos e se convertam em benefícios sociais que irão melhorar a vida dapopulação, ou ao menos, formular um novo conceito que reinvente o progresso.

Na época em que imperavam os interesses clientelistas, a implantação de indústriasera apresentada como solução para libertar a população nordestina dos efeitos da seca. Efoi no esteio deste discurso que o grupo urbano-industrial que governou o Ceará nas du-as últimas décadas se formou, ou pelo menos se fortaleceu, se beneficiando dos incenti-vos fiscais da Sudene, com o aval dos “coronéis” da política cearense.

A seca continua sendo usada, não mais pela “indústria da seca”, mas como justifica-tiva para a acumulação de água para beneficiar a indústria, de acordo com a visão empre-sarial dada à água; os interesses clientelistas da época dos “coronéis” no uso e controle daágua, expressos pela construção de açudes e poços em propriedades particulares e outrosexpedientes que ficaram marcados no imaginário popular como a “indústria da seca”, setransformaram em interesses dos “industriais da seca” para atender a uma burguesia ur-bano-industrial. A implantação de indústrias (ou agroindústrias) continua sendo a respos-ta para o desenvolvimento, mas desta vez ancorada pela implantação de mega projetos hí-dricos associados à modernidade.

Os cearenses deverão agora se acostumar a olhar para o solo, redesenhado pelo “ca-minho das águas”, na esperança de que a modernização promovida deixe de ser excluden-

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te e contemple todos aqueles que durante séculos se acostumaram a olhar para o céu, naesperança de chuva, especialmente a população do meio rural, a mais atingida pelas irre-gularidades climáticas.

Além dos processos de exclusão econômica que são a marca do capitalismo na peri-feria (e aqui estamos falando de periferia da periferia), o processo político e social foi en-gendrado e engendrou sua modernização de forma incompleta ou truncada no processode construção da Barragem do Castanhão. Será este o destino da modernização tropical?

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Francisca Silvania deSousa Monte é doutora emPlanejamento Urbano e Re-gional -IPPUR/UFRJ e profes-sora adjunta da Universida-de Federal do Ceará. E-mail:[email protected]

Artigo recebido em agostode 2008 e aprovado parapublicação em janeiro de2009.

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A B S T R A C T This study is part of a doctorate thesis that investigated how the pro-cess of use and control of water supply in Ceará State from the Castanhão Dam contributedto transform the state in paradigm of modernization, particularly water resources moderniza-tion. Politicians, government agents, social organizations, and other relevant agents involvedin the process, were interviewed. Many documents and reports from several institutions invol-ved in the dam construction were also analyzed. It was concluded that water resources moder-nization is drawing a new territorial configuration in the Ceará State, transforming the geo-graphic space in a space of technical rationality to serve private interest, and that thedevelopment intended with the dam construction resulted in a process of excluding moderni-zation mainly to those directly affected by the dam.

K E Y W O R D S Modernization, Development, Ceará, Dam, Water, Exclusion.

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CULTURAS DA JUVENTUDEE A MEDIAÇÃO DA EXCLUSÃO/INCLUSÃO RACIAL

E URBANA NO BRASIL E NA ÁFRICA DO SUL*

E D G A R P I E T E R S E

R E S U M O Neste artigo assume-se que a condição urbana contemporânea está forte-mente marcada por uma crescente pluralidade. Associada a esta mudança na natureza do con-texto urbano, pode-se também observar a proliferação de lugares (sites) de engajamento polí-tico e de ação, sendo alguns deles formalmente ligados a fóruns institucionais do Estado, masmuitos outros podem ser caracterizados pela sua insistência em permanecer fora do Estado,uma forma de afirmar autonomia e clamar por termos próprios de reconhecimento e formasde agir. O artigo chama a atenção para o significado de uma categoria de atores urbanos –hip-hoppers – que ocupa uma posição “marginal” na relação com o Estado, mas que é mui-to relevante para a existência marginalizada da maior parte da juventude negra nas cidadesdo sul global, particularmente no Rio de Janeiro e na Cidade do Cabo. O artigo demonstraque as culturas hip hop oferecem uma poderosa estrutura de interpretação e resposta para ajuventude pobre que sofre sistematicamente o impacto de forças urbanas extremamente violen-tas e exploradoras. A base do poder do hip hop (e congêneres) é sua complexa sensibilidade es-tética, que funde valores afetivos – como o desejo, a paixão e o prazer, mas também a ira e acrítica –, que por sua vez se traduzem em identidades políticas e às vezes em ação (ou seja, po-sicionamento) para seus participantes. Em última instância, o artigo procura associar o poten-cial da cultura política do hip hop a temas acadêmicos mais amplos, tais como participação,espaço público, cidadania e segurança.

P A L A V R A S - C H A V E Hip hop; política cultural; violência urbana; exclu-são/inclusão urbana; registros afetivos.

Um ponto de partida para este artigo é a idéia de que a natureza da condição urba-na é substancialmente diferente hoje se comparada ao que era apenas algumas décadasatrás. Consequentemente, a forma como pensamos sobre quem e o que é incluído e ex-cluído das cidades não pode ser concebida com as mesmas ferramentas conceituais queestavam à nossa disposição no passado recente. Hoje, a condição urbana é marcada poruma série de mudanças rápidas em termos de quem vive e se move pela cidade, pela for-ma como as infra-estruturas são projetadas e instaladas, pela proliferação de sinais que ca-racterizam as diferentes identidades – frequentemente em alternância – de determinadaspartes da cidade; tudo isto, pode ser dito, tem aumentado a intensidade plural das cida-des em quase todos os lugares.

A primeira seção deste artigo chama atenção para a natureza violenta e criminal decidades do sul global e sugere que, se os aspectos desumanizantes dessas tendências nãoforem confrontados, é impossível imaginar, e muito menos forjar, uma cidade inclusiva.A violência gera uma exclusão traumática que é irremediável.

A segunda seção explora a importância das práticas culturais do hip hop como recur-so para a juventude capturada pelas economias violentas, criminosas e sustentadas pelotráfico de drogas nos bairros pobres dessas cidades. Após discutir sobre a definição do mo-

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* Versões deste artigo fo-ram apresentadas em doisseminários, em Barcelona(6-8 Novembro, 2006) e Jo-hanesburgo (12-13 Março,2007), respectivamente,reunidos sob o patrocínio doCentro Internacional paraAcadêmicos Woodrow Wil-son, do Centro para CulturaContemporânea de Barcelo-na e do Banco de Desenvol-vimento da África do Sul.Gostaria de agradecer aosmembros destes semináriospelos seus comentários , eainda a Christa Kuljian, porsua contribuição construtiva.

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vimento hip hop, esta seção passará a uma descrição sumária de seu crescimento comosubcultura no Brasil e na África do Sul.

A terceira seção explora a natureza deste movimento como manifestação política ecomo ela pode promover perspectivas de inclusão urbana. Na seção final deste artigo pro-cura-se associar as principais conclusões sobre o potencial da política cultural do hip hopa temas mais abrangentes, como participação, espaço público, cidadania e segurança.

NATUREZA DA CONDIÇÃO URBANA

Para a maior parte da juventude negra e pobre em muitos países do sul global, a ci-dade se assemelha a um funil fortemente circunscrito que os leva a contextos em que têmmuito poucas opções a não ser uma vida de violência, excesso e terror, devido à profun-da privação que caracteriza suas condições de moradia e de vizinhança. Ailsa Winton(2004) nos lembra que o trabalho seminal de John Galtung (1991) sobre a violência es-trutural identificou como a privação é em si mesma uma forma de violência.

(...) as compreensões de violência incluem dano psicológico e, por sua vez, a alienação, a re-pressão e a privação [...] Em contextos urbanos, é a privação enquanto desigualdade que é a maisimportante forma de violência estrutural e também aquela que está relacionada de forma maissignificativa com a emergência da violência reacionária cotidiana. A privação neste sentido in-clui não só diferenças de renda, mas também a falta de acesso aos serviços sociais básicos, a faltade proteção universalizada pela previdência estatal, bem como a corrupção intensa, a ineficiên-cia e a brutalidade, que geralmente atingem os pobres de forma mais intensa, e a falta de coesãosocial [...] Em situações de desigualdade severa e generalizada, os pobres urbanos são desconside-rados e marginalizados, e a sua condição de vida cotidiana aumenta a probabilidade da emer-gência de conflitos, crime e violência. (Winton, 2004:166-7)

A partir desta perspectiva, não é surpreendente verificar que a violência é realmenteum fator dominante no cotidiano, particularmente nos enclaves urbanos onde a popu-lação pobre se concentra – as favelas no Brasil e as townships na África do Sul. Uma con-seqüência determinante é a banalização da violência como rotina na resolução de confli-tos ou nas relações com outras pessoas. A literatura sugere que isto é particularmentecomum em sociedades que presenciaram conflitos no passado recente, tais como Colôm-bia (Ferrandiz, 2004), Nicarágua (Rogers, 2006), África do Sul (Standing, 2004) e Jamai-ca (Clarke, 2006), entre muitas outras (Winton, 2004). O tráfico de drogas se estabelececom facilidade nestas sociedades porque exige e produz violência. Quase todas as dimen-sões do tráfico de drogas envolvem a violência; por exemplo, uma guerra entre ganguesque se deflagra para o controle dos mercados e do território, ataques contra viciados emondas de purificação social (especialmente no Brasil) e as incessantes brigas e violências do-mésticas ligadas ao gênero (ver Sousa, 2005; Winton, 2004; Zaluar, 2006).

A violência estrutural, associada em particular a economias baseadas no comércio dedrogas, dá origem a configurações espaciais particulares nas favelas, que restringem e di-recionam o movimento das pessoas comuns. O geógrafo Marcelo Lopes de Sousa (2005:6-7) oferece uma visão esclarecedora desta espacialidade:

O tráfico varejista de drogas implantado na favela combina uma forte hierarquia na esca-la da favela com uma organização em rede descentralizada na escala dos comandos. Em cada fa-

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vela esta hierarquia compreende (em ordem decrescente): o dono do morro, os gerentes (aqueles quecontrolam os pontos de venda), os soldados (equipe de segurança), os “vapores” (vendedores de rua)e os “aviões” (transportadores entre vendedores). Cada grupo traficante ou quadrilha tem seu pró-prio território composto de uma ou mais favelas e, enquanto os traficantes que pertencem ao mes-mo comando geralmente respeitam seus respectivos territórios, bandidos pertencentes a comandosrivais frequentemente tentam tomar posse dos territórios inimigos. Isto resulta em guerras territo-riais que duram vários dias ou mesmo semanas, normalmente envolvendo várias quadrilhas per-tencentes ao mesmo comando e imbuídos do espírito de ajuda mútua. A proteção dos negócios co-mo também de outros aspectos mais simbólicos, como a demonstração de poder e virilidade (verZaluar, 1994; 2002a), tem contribuído não somente para um aumento do uso da violência en-tre quadrilhas criminosas, como também para um aumento da atmosfera de tirania vivida peloshabitantes da favela.

As descrições de ex-traficantes em Culture is our Weapon (Neate e Platt, 2006) cap-turam o modo como a vontade e a capacidade de praticar a violência são fatores-chavepara se subir na hierarquia do tráfico, tanto em termos de status como de espaço. O ba-lanço final da violência é desconcertante: “entre 1948 e 1999, estima-se que 13.000 pes-soas foram mortas no conflito entre Israel e Palestina. Entre 1979 e 2000, mais de48.000 morreram vítimas de ferimentos relacionados a armas de fogo na cidade do Rio”(Neate e Platt, 2006: 102). Em outras palavras, para as crianças negras,1 crescer nas fa-velas do Rio de Janeiro significa crescer em uma zona de guerra, e os piores impactos psi-cosociais que isso acarreta ocorrem porque não se admite que de fato se vive um tempode guerra.

Há muito mais para se dizer sobre a real dinâmica das gangues envolvidas no tráfi-co de drogas e as implicações da banalização (e internalização) da violência como parteinevitável da vida cotidiana; mas aqui se pretende apenas registrar a violência estruturalcomo parte do contexto social consolidado nas regiões pobres, identificando possibilida-des existentes ou imagináveis para modificar essas condições, de forma a promover polí-ticas e sistemas urbanos mais inclusivos e socialmente justos.

Se aceitarmos que a privação constitui uma forma de violência, a pesquisa sobre aprivação urbana no Brasil e na África do Sul demonstra um claro padrão de diferenciaçãoracial. A juventude negra e pobre está cada vez mais incapacitada de participar da econo-mia formal, que continua sua transição dos setores primário e secundário para o setor ter-ciário, baseado em serviços que exigem habilidades específicas da força de trabalho. Estashabilidades são inacessíveis aos pobres devido ao fracasso dos sistemas educacionais e àsdiversas condições familiares, que contribuem para abalar a auto-estima, confiança, tem-po, apoio e oportunidade para o sucesso educacional. Deste modo, as seguintes conclu-sões acerca das tendências brasileiras não surpreendem:

Podemos também notar a presença da discriminação social no mercado de trabalho, onde apopulação não branca apresenta as maiores taxas de desemprego, a menor educação formal, os me-nores salários e é ocupada principalmente nas atividades informais. A taxa de emprego é direta-mente proporcional ao nível de educação e é inversamente proporcional à idade, afetando os jo-vens com maior força. A taxa de desemprego cresceu entre 1993 e 1998 e é mais severa entre asmulheres (14,4%) e os não brancos, enquanto a taxa de desemprego para os homens é de 9,2%.Também encontramos condições de segurança mais baixas entre os domicílios chefiados por mu-lheres não brancas. (Morais et al., 2003:11)

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1 Refere-se aqui a um enten-dimento abrangente de ne-gritude que inclui a popula-ção parda que reconhece eaceita a linhagem africana deseus ancestrais.

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Condições muito similares são encontradas em cidades da África do Sul, como aCidade do Cabo, onde os níveis de desemprego são substancialmente mais altos que noBrasil, no patamar de 28% (CCT, 2006:20). Esta taxa média esconde a taxa de desem-prego nas áreas de população predominantemente pobre e negra, onde os níveis de de-semprego superam os 50% (Parnell e Boulle, 2006). A dura realidade é que a vasta maio-ria da população pobre da Cidade do Cabo permanece presa na condição de pobrezadevido às condições sociais adversas que enfrenta em seus bairros e escolas, que tornama realização educacional extremamente difícil. Na província do Cabo Ocidental, entre48 e 55% dos estudantes que entram no sistema escolar acabam saindo antes de com-pletarem 12 anos de estudo, e é desnecessário dizer que quase todos esses estudantes sãonegros e pobres (Department of Education, 2005). Além disso, menos de 10% dos es-tudantes oriundos de comunidades pobres que chegam a completar a educação secundá-ria possuem as qualificações apropriadas para entrar no sistema educacional superior. Astaxas de evasão no ensino superior atingem 50% antes que os estudantes completem agraduação. Desta forma, os pobres permanecem estruturalmente excluídos das novasoportunidades de emprego, que demandam qualificações mais altas associadas à educa-ção e ao treinamento formais. Além disso, índices extraordinariamente altos de violên-cia social nas famílias e comunidades pobres são frequentemente o padrão, em parte sus-tentados por gangues criminosas ligadas à droga, que servem como importantes fontesde governabilidade alternativa nestas áreas (Chipkin, 2005; Standing, 2004). Nos últi-mos anos, a maioria das townships negras (mas não exclusivamente) tem sido severamen-te prejudicada por uma epidemia de drogas, com o uso de “Tik” (metanfetamina de cris-tal) se tornando endêmico, alimentando a violência e aprofundando ainda mais amarginalização social e econômica da juventude pobre da cidade. Nestas condições, paraa vasta maioria da juventude negra, a masculina em particular, o ingresso no mercadode trabalho formal é improvável, e sua participação nas atividades criminosas relacio-nadas à droga aumenta. Ademais, as estruturas das gangues que intermedeiam estas eco-nomias ilegais e ilícitas também provêem uma fonte de pertencimento e identidade, emum momento em que a perspectiva de falta de futuro pode tornar vulneráveis até asidentidades mais sólidas.

Pesquisas de diversos acadêmicos indicam que durante as duas últimas décadas, jun-tamente com a intensificação do processo de globalização, a escala, a complexidade e aabrangência das economias (e dos mercados) de drogas têm explodido, deixando em seurastro um legado devastador de violência (Castells, 1997; Naím, 2006). Durante estemesmo período, a retração e a reestruturação da economia – favorecendo os setores base-ados em serviços, que requerem níveis maiores de qualificação – tenderam a agravar as de-sigualdades de renda na maioria das cidades, deixando os mais marginalizados em situa-ções ainda mais precárias, e com pouca esperança de inserção no mercado de trabalhoformal (UNDP 1999).

Como conseqüência destes fatores, muitos jovens negros, especialmente homens, seenvolvem de uma forma ou de outra com as gangues que administram e dirigem particu-larmente o tráfico de drogas em áreas pobres. Os bairros pobres cumprem funções parti-culares em uma extensa e frequentemente globalizada cadeia de valor de produção, refi-namento, manufatura, armazenamento, distribuição e consumo, em mercados locais,nacionais e globais. Em torno dessas atividades, as gangues relacionadas às drogas exer-cem um controle quase total sobre os territórios onde estão localizadas, frequentementeem colisão com elementos das forças de segurança (Souza, 2005).

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Uma questão fundamental a ser considerada é que embora as atividades cotidianasrelacionadas à droga façam uso da violência nas favelas e townships e estejam inseridas deforma generalizada nestas áreas, a cadeia de valor das economias da droga engloba diver-sos circuitos que se estendem muito além da favela, em espaços onde ocorre o comércioe onde os que mais se beneficiam do tráfico vivem, fazem compras e se entretêm – espa-ços que são ostensivamente separados da favela/township. Esta geografia da segregação declasse é reforçada pela economia política de atuação da polícia, pelo sistema de justiçacriminal (tribunais e prisões) e pelas instituições reguladoras do Estado que reproduzema exclusão e a segregação urbana (Souza, 2005). Em outras palavras, a intensa e extremasituação de violência recorrente nas favelas cria um desvio, no sentido de que a vigilân-cia anti-drogas se preocupa apenas com os níveis mais baixos da cadeia de valor da eco-nomia da droga, sem tocar os níveis mais altos que detêm o controle e os lucros (Neatee Platt, 2006).

Isto certamente é entendido por certos “intelectuais orgânicos” da favela, que pro-curam “falar a verdade para o poder” a respeito deste uso desconcertante de dois pesos eduas medidas:

Mas o que você precisa entender sobre esta sociedade é que questões de violência e crime nãoenvolvem apenas armas e drogas. No Brasil, as únicas pessoas que vão para a prisão são aquelesque roubam pouco. Aqueles que roubam muito ficam na liberdade. Colocar as pessoas em condi-ções subumanas nas favelas? Quando eu mostro isso, sou criticado, mas isso é uma forma de vio-lência. No Rio ainda há uma forte influência colonial. Ouvi dizer que uma garota negra em umaescola pública foi vítima de racismo. Ela se trancou no banheiro e tentou cortar sua pele para setornar branca. Porém, quando se tenta falar sobre racismo, dizem que somos neuróticos. Isso éuma forma de violência. As crianças das favelas sempre vão para as escolas públicas, mas elas têmque trabalhar para suas famílias também. Por isso, as crianças das favelas nunca têm uma edu-cação boa o bastante para entrar nas universidades públicas. Eles nunca têm uma chance. Aque-les lugares são tomados por crianças de classe média vindas de escolas particulares. Isso também éuma forma de violência. Você sabe... eu estou falando sobre os negros, mas isso também se aplicaaos índios e brancos que não têm nada. As pessoas dizem que o hip hop só trata da violência, maselas não entendem. O rap neste país é muito contra a violência, e faz muito bem. Claro que nãoé a única forma de ajudar as pessoas, mas eu sei que me ajudou. Algumas pessoas querem mudaro hip hop para “eu amo esta mulher” e esse tipo de coisa. Mas nós ouvimos isso tantas vezes emoutros tipos de música, e eu te pergunto: as pessoas realmente têm todo esse amor?” (MV Bill2 ci-

tado em Neate, 2003:191-2)

A partir desta observação, é oportuno passar ao papel da música popular, particular-mente o hip hop, em desafiar a condição urbana predominante de crescente marginaliza-ção da juventude negra e pobre, oferecendo um sentido alternativo de lugar, de interpre-tação do mundo, e “uma capacidade de aspirar” (ver Appadurai, 2004).

GENEALOGIAS PARALELAS DO HIP HOP

Nesta seção do artigo eu defino os fundamentos do hip hop enquanto forma cultu-ral e prática estética. Então irei, brevemente, relatar dois instrutivos e inspiradores exem-plos de movimentos sociais movidos pela cultura no Rio de Janeiro e na Cidade do Ca-

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2 MV Bill (Alexandre Barreto)é um artista de hip hop oriun-do de uma das regiões maisviolentas da cidade do Rio deJaneiro, a favela Cidade deDeus.

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bo, que lidam diretamente com as causas e resultados da violência e exclusão urbanas re-lacionadas à economia da droga, através da música popular e suas práticas associadas. Is-to fundamentará a próxima seção do artigo, que irá explorar as potencialidades do hip hopcomo um registro de esperança.

Imani Perry (2004: 38) explica que “A música rap é uma forma mista. Como formade arte, combina poesia, prosa, canção, música e teatro. Pode se apresentar como umanarrativa, autobiografia, ficção científica ou debate”. Na prática, o hip hop pode ser cate-gorizado em cinco elementos centrais: a atividade do MC e do rapper, a discotecagem, ografite, o break e aquilo que se denomina “conhecimento de si”, mesmo que este últimoseja motivo de controvérsia. Conhecimento de si, nomeado por Afrika Bambata como o“quinto elemento” do hip hop, refere-se a uma consciência crítica a respeito da história ne-gra e das raízes da opressão e exclusão racial. É considerado por alguns como um pré-re-quisito essencial para se ter um desempenho acima da média nos outros quatro aspectosda cultura hip hop. Com o passar dos anos, desde que o hip hop surgiu nos anos 1970, amúsica hip hop tem evoluído e mudado com incrível rapidez, engolindo cada vez mais emsua passagem a cultura popular americana (Chang, 2005; Shapiro, 2005). Atualmente,representa o gênero musical mais vendido no maior mercado musical do mundo – o dosEstados Unidos. Com seu crescimento exponencial de vendas e influência, o hip hop in-corporou uma grande quantidade de outros símbolos culturais públicos, e se tornou glo-balizado em sua essência, constituindo uma profunda influência nas preferências de con-sumo (Neate, 2003). Dois países cujos cenários no hip hop são significativos são o Brasile a África do Sul.

Existem paralelos espantosos no que diz respeito ao surgimento e ao crescimento dohip hop nas cidades brasileiras e, especialmente, na Cidade do Cabo, na África do Sul. An-tes de mais nada, obviamente, o hip hop é um gênero musical afro-americano, que emer-giu como a mais recente invenção musical da América negra, seguindo o blues, o jazz, osoul e o funk. Como acontece com estas outras formas, ele também se inspira nestas tra-dições mais antigas, retrabalhando-as e ampliando repertórios-chave e sensibilidades esté-ticas (Huq, 2006). Na próxima seção retomaremos ao hip hop americano, considerandoalgumas implicações deste movimento cultural.

HIP HOP BRASILEIRO E HÍBRIDOS POPULARES

O hip hop no Brasil tem suas origens em meados dos anos 1980, quando B-Boys(dançarinos de break) e artistas de graffiti começaram a aparecer em São Paulo, imitandoe apropriando-se da forma musical que havia surgido nos Estados Unidos. Curiosamen-te, nos anos iniciais havia conflitos frequentes entre estes grupos, que competiam pelo ter-ritório em diferentes praças públicas da cidade (Essinger, 2007). As primeiras coletâneasde rap apareceram em 1987 e 1988. Desde o início, os líderes hip hop se inspiravam naveia crítica de consciência negra do gênero, o que se reflete na coletânea de 1988 intitu-lada Consciência Black, que incluiu aquele que se tornaria o grupo brasileiro mais impor-tante, Racionais MCs. Esta compilação “proporcionou às audiências uma visão da vida du-ríssima dos jovens pobres e negros na periferia de São Paulo, perdidos entre o crime e aprivação social” (Essinger, 2007:2). Este elemento de “consciência” permaneceu crucial nacultura brasileira do hip hop durante a sua proliferação nos anos 1990, incorporando di-ferentes inflexões regionais à medida que se enraizava em diferentes centros urbanos dopaís. Por exemplo, o membro do grupo carioca Planet Hemp, Marcelo D2, lançou em

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1998 seu primeiro álbum, uma fusão paradigmática de rap e samba. Assim, atualmentehá múltiplos sub-gêneros no rap brasileiro, desde fusões com a música nordestina, ao rock(como no México e no Chile) e ao reggae, conforme adotado nas impressionantes melo-dias do afroreggae centradas nos tambores (Neate, 2003).

De forma significativa, os artistas de hip hop mais vendidos, Racionais MCs (de SãoPaulo) e MV Bill (do Rio de Janeiro) conduzem sua arte no registro da consciência negra.O auge da carreira dos Racionais foi o lançamento em 1998 de seu álbum Sobrevivendono Inferno, que quebrou todos os recordes. Eles venderam acima de um milhão de cópi-as de um CD gravado de forma independente, e o vídeo que o acompanhava ganhou oprêmio de “escolha da audiência” na MTV Brasil, transformando-os num fenômeno na-cional. Curiosamente, o vídeo descreve a rotina de um preso na véspera do conhecidomassacre carcerário no dia 1 de outubro de 1992, com uma letra que, militantemente,responsabiliza o Estado pela chacina. Dada a popularidade e influência dos grupos de hiphop “conscientes”, cabe a seguinte afirmação de um analista:

O hip hop tornou-se uma das ferramentas centrais de crítica social para uma juventu-de marginalizada que tem poucas perspectivas de emprego e que possui acesso extremamentelimitado à educação. Através do rap, os jovens aprendem sobre Zumbi dos Palmares – heróida luta contra a escravidão – e outros importantes líderes afro-brasileiros; eles aprendem so-bre a história da luta da população brasileira para acabar com a ditadura militar; e paramuitos, é por onde lhes são introduzidos conceitos de revolução, socialismo e democracia.(Marshall, 2003:1)

A outra figura emblemática do hip hop brasileiro é MV Bill. Ele foi criado e continuaa viver no bairro periférico e de classe trabalhadora que se tornou famoso pelo filme Ci-dade de Deus. Ainda que esta área seja fisicamente diferente, comparada com a naturezamais transitória das favelas mais centrais, ela apresenta as mesmas condições sociais rela-cionadas à droga mencionadas na seção anterior. MV Bill se tornou uma figura de enor-me sucesso no movimento do hip hop brasileiro, mas é uma exceção, na medida em queele tem trabalhado consistentemente para aperfeiçoar sua prática artística ao lado de suavisionária agenda ativista, que utiliza os registros do hip hop para desestabilizar os discur-sos e estereótipos dominantes [do mainstream]. Além disso, MV Bill tem trabalhado con-tinuamente na institucionalização de infra-estruturas populares de base voltadas à criaçãode oportunidades alternativas para que a juventude da favela possa se inserir em diversasatividades culturais. Esta prática se manifesta em sua própria narrativa sobre tomada deconsciência através do hip hop:

No Brasil, o hip hop não é mais apenas um tipo de música, uma cultura; ele já se tor-nou um instrumento de transformação, de mudança da vida das pessoas. E este encontro foipara mim um momento de recomeço. Eu consegui superar meus traumas de infância. Os mes-mos traumas a que muitos jovens como eu estão sujeitos e que não podem superar através do hiphop; o próprio hip hop me ensinou que não é a saída para tudo e todos; que através do hiphop é possível procurar diversos outros trajetos. O hip hop é apenas um de vários trajetos e hámuitos jovens que precisam ter um encontro com este momento de lucidez, e eles não o têm. Is-to é o que tentamos promover com a CUFA (Central Única das Favelas), tentamos promovereste encontro com as pessoas, cada uma julgando por si mesma o que é bom ou ruim, tentamoslevar esta oportunidade às pessoas. Eu acredito na teoria de que, quando damos uma oportu-

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nidade a uma pessoa, nós temos a chance de trazê-la para este lado. Por outro lado, negar-lhesesta chance é provar que elas não são seres humanos porque não terão oportunidades na vida e,de algum modo, é contribuir para o seu assassinato e para o de suas vítimas. (MV Bill, entre-vistado em Lou, 2005)

Com esta combinação de excelência artística e engajamento ativista, ele ganhou re-conhecimento global, sendo honorificado pela Unicef em 2005. Foi uma posição que otornou mais conhecido no Brasil e que permitiu que ele tivesse seu trabalho filmado emdocumentário – que expõe o cotidiano da juventude do tráfico de drogas em muitas ci-dades brasileiras – exibido em rede nacional de televisão no Brasil e aclamado pelos críti-cos. O documentário, por sua vez, estava ligado a um projeto de livro que também cau-sou grande impacto na esfera pública nacional pelo país inteiro, especialmente devido aofato de que teve como co-autor Luis Eduardo Soares (isto será elaborado adiante).

A prática cultural e a intuição política sagaz de MV Bill são espelhadas por outrosatores no cenário brasileiro de hip hop/música popular. Já me referi à abordagem dosRacionais MCs, mas o outro exemplo proeminente é o movimento social organizadoem torno da liderança de José Junior, o fundador do grupo AfroReggae (Neate e Platt,2006). De alguma forma, eles foram mais além ao institucionalizar uma prática cultu-ral crucial no nível das bases populares, com a ambição específica de fornecer umagovernabilidade alternativa àquela das gangues da droga, porém, imitando delas os có-digos disciplinares. A energia e a determinação de Junior foram bem captadas no se-guinte comentário:

Junior descreve o AfroReggae como uma pirâmide, com a banda no seu ápice. Abaixo, hádiversos tijolos: a caridade, os negócios e a cooperativa. A ONG trabalha em diversas favelas.Seu principal propósito é afastar as crianças do tráfico, dando-lhes meios de se expressarem. OAfroReggae organiza workshops de música, dança, capoeira e circo; tudo sustentado por traba-lhadores sociais e assistência médica. Quanto aos negócios, é essencialmente uma empresa deprodução. “Nós somos uma ONG que ganha seu próprio dinheiro”, sorri Junior. “Temos exce-lentes conexões urbanas e então estamos capacitados a produzir shows para as maiores estrelasbrasileiras [...] Há a cooperativa, que lida com toda a parte de comercialização e cria oportu-nidades de emprego na favela. [...] O AfroReggae é uma ideologia – para ensinar cultura, res-ponsabilidade social e criatividade. Hoje em dia, se você realmente quiser mudar uma situa-ção, primeiro você precisa mudar a auto-imagem das pessoas naquela situação”. (Junior, citado

em Neate, 2003: 199-200)

O HIP HOP DE CAPE FLATS

O hip hop também criou raízes na zona de Cape Flats, na Cidade do Cabo. Os in-contestáveis “fundadores” do hip hop de Cape Flats foram os músicos do grupo chamadoProphets of da City (POC). O grupo foi fundado por Shaheen Ariefdien e Ready D. Des-de o início, eles também se inspiraram na corrente da consciência negra militante do hiphop americano, porque ela oferecia uma ferramenta para interpretar e resistir a então vi-rulenta máquina opressiva do regime do apartheid (Haupt, 2001; 2004). Como Ready Dexplica, quando Niggers With Attitude (NWA) lançou “Fuck Tha Policy” no final do anos1980, “nós nos identificamos imediatamente com isso porque nós estávamos passandopelas mesmas coisas que esses caras estavam falando” (citado em Neate, 2003: 131). Ou-

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tro grupo que surgiu junto com POC foi Black Noise, estabelecido por Emily XY?, que na-quela época era na verdade uma professora escolar. Black Noise (ver discografia nas refe-rências) sempre foi deferente, porque absorveu ativamente todas as dimensões do hip hope usou-o como um veículo para o trabalho de base com jovens e crianças de comunida-des pobres (Battersby, 2004).

Em meados dos anos 1990, alguns membros-chave do POC formaram um interes-sante grupo derivado chamado Brasse vannie Kaap (Caras do Cabo) (BVK) que optarampor cantar o rap no dialeto africâner de Cape Flats chamado gamtaal. Artisticamente, naminha leitura, a obra do BVK é na verdade mais bem elaborada e interessante que a mili-tância mais reducionista e dissimulada do POC e, até certo ponto, do Black Noise. Isso foiconfirmado recentemente pelo primeiro lançamento de outro MC, Jitsvinger (intraduzí-vel), que pratica sua arte em gamtaal com efeito artístico brilhante. O hip hop oriundo deJohanesburgo também transformou completamente o gênero na África do Sul ao longodos últimos anos, com o aparecimento de excelentes grupos e MCs, como Skwatta Kamp,Proverb e Zubz, entre muitos outros. Retornarei adiante ao tema da qualidade artística,quando examinar o significado artístico e político do hip hop.

A maioria dos grupos da Cidade do Cabo também participa de uma vibrante e maisabrangente comunidade hip hop que trabalha com shows educacionais itinerantes envol-vendo tópicos relacionados à educação, à conscientização e prevenção do HIV/AIDS e à ex-ploração criativa. Sem dúvida, os membros do Black Noise foram os pioneiros e líderesneste sentido (Haupt, 2001; Watkins, 2001). A maior estação de rádio comunitária daCidade do Cabo dedica um programa, intitulado Headwarmers, à comunidade de hip hopnas noites de sexta-feira. Este programa ofereceu (e continua a oferecer) uma plataformapara discursos abertos sobre a política e a prática de hip hop, e permitia que os fãs se en-gajassem com os grupos de hip hop e dividissem informações sobre eventos iminentes eoportunidades de mostrar novos talentos. A rádio fornece uma fascinante perspectiva dosrepertórios discursivos das comunidades hip hop e do aprofundamento de uma ideologiacompartilhada (Haupt, 2004).

Os cenários do hip hop no Brasil e na África do Sul são muito diferentes. Para come-çar, o tamanho do mercado brasileiro é enorme, e a cultura da música brasileira está bemestabelecida. Este definitivamente não é o caso na África do Sul, ainda que importantesmudanças estejam começando a aparecer no que tange à música kwaito. Os artistas de hiphop da África do Sul enfrentam dificuldades porque o público consumidor é mínimo;uma tendência não amenizada pela relutância das lojas de discos em ter disponível e mui-to menos em promover a música (Battersby, 2004).

HIP HOP COMO POLÍTICA DE RECONHECIMENTOE IRA...

No momento em que o hip hop americano está se tornando uma força desgastada,o resto do mundo está acordando para o poder transformador do rap. “No início, o hiphop americano era ótimo”, diz [MV] Bill, que começou a cantar rap em 1988, aos 12 anosde idade, depois de ter visto o drama sobre as gangues de Los Angeles, Colors. “Mas por-que as gravadoras estavam assustadas com o conteúdo político e o discurso de gueto debandas como NWA e Public Enemy, eles injetaram tanto dinheiro nos rappers que agoraeles não sabem falar de outra coisa senão dinheiro – ou degradação feminina. A indústria

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fonográfica emasculou o hip hop nos Estados Unidos. Mas, ao mesmo tempo, o hip hopse tornou uma forma de arte para os marginalizados do mundo” (Hodgkinson 2006).

Seria fácil construir uma narrativa sobre a “redenção terceiro-mundista” da tradiçãopolítica e militante do hip hop para salvá-la dos caprichos do comercialismo. É certamen-te plausível argumentar que a orientação do hip hop pelo mundo é quase exclusivamentecrítica, tentando “mantê-lo autêntico” e mais intimamente alinhado com a militância dohip hop em seu início (ver Haupt, 2004; Huq, 2006). Entretanto, isto seria muito sim-plista e ignoraria a complexa estética que impulsiona a dimensão artística e, por extensão,a dimensão política do hip hop. Para desenvolver este ponto com mais profundidade, gos-taria de me voltar para a análise pioneira de Imani Perry (2004:3) a respeito das “difíceisquestões políticas e culturais apresentadas pelo hip hop”, sem cair na apologia da comer-cialização escancarada do gênero no contexto dos Estados Unidos em particular.

Perry argumenta que é necessário valorizar ao menos quatro grandes dimensões daprática artística do hip hop, para que se possa apreciar completamente sua estética e suaspotencialidades. Em primeiro lugar, “há uma constante dinâmica de especificidade, ain-da que o hip hop crie uma cultura jovem na escala nacional no que diz respeito às rou-pas, ao discurso e ao posicionamento ideológico e possua reverberações internacionais.A especificidade de um lar, de uma comunidade de artistas, constitui um elemento fun-damental para a criação. Ela enraíza a música numa comunidade histórica, cultural e lin-güística e educa o ouvinte a respeito daquela comunidade específica” (Perry 2004:23).Assim, em todos os diferentes subgêneros da música hip hop, a contextualização da loca-lidade e especialmente da comunidade (os “home boys”) é uma referência constante, as-sim como são também a identificação de quem é o MC e o grupo que se junta a ele/elanuma faixa específica e o seu local de origem. Esta dinâmica relacionada ao lugar é cru-cial e, durante alguns anos “insanos”, em meados dos anos 1990, ela provocou violentasguerras entre os grupos ditos da costa leste e da costa oeste, que deixaram Tupac Shakure Biggie Smalls como tristes memórias. Este sentido de orgulho em relação ao lugar e àcomunidade – e a concomitante necessidade de “representar” – é utilizada de modo se-melhante nas tradições de hip hop tanto do Brasil como da África do Sul, que dá à mú-sica uma estética visual altamente urbanizada e sólida, frequentemente reproduzida emvídeos musicais.

Em segundo lugar, o discurso aberto é fundamental no hip hop. O discurso abertose refere à não-regra de que quase tudo é permitido no hip hop desde que possa ser de-fendido artisticamente. Deste modo, Perry argumenta que “encontramos em muitos des-tes textos [de hip hop] o sexo ao lado da espiritualidade, a depravação junto com a bele-za. Deveríamos estender o discurso aberto já existente no hip hop para nossa conversasobre hip hop [...] Por ser uma forma de arte falada que nutre o discurso aberto, encon-tramos no hip hop um espaço dialógico no qual as vozes de artistas articulam idéias so-bre a existência em várias formas de registros musicais” (Perry, 2004: 42-3). Quase to-dos os artistas de hip hop americanos prestam homenagem às suas linhagens soul, blues,jazz e, especialmente, gospel. Assim, considerando a obra do alto sacerdote do hip hopTupac Shakur, encontram-se no mesmo CD faixas que vão denegrir e celebrar as mulhe-res; que promovem o materialismo de forma grosseira e transmitem mensagens anti-capitalistas; que celebram a comunidade e a disposição de tomar armas para proteger eaumentar o território. O erro frequentemente cometido por muitos críticos sociais é ode tentar decifrar uma política progressista consistente, sendo, porém, óbvia e invaria-velmente frustrados. Em outro plano, este discurso aberto é crucial porque permite que

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a contraditória e complicada política de identidade, comunidade, pertencimento e aspi-rações venha à tona com toda sua crueza não resolvida – sem nenhuma intenção de im-pedir a confrontação e o engajamento –, frequentemente na forma de posturas agressi-vas. Para compreender completamente a produtividade dinâmica do hip hop, deve-seestar aberto para a importância do discurso aberto no hip hop, que está intimamente li-gado à dimensão do fazer artístico no hip hop.

Em terceiro lugar, os discursos do hip hop são densos e contêm múltiplas camadas.A destreza com as letras, através de jogos de palavras e o emprego do inesperado, é al-tamente apreciada tanto nas letras como nas batidas do hip hop (Berman, 1996; Huq,2006; Neate, 2003). Isto também se liga a um desenvolvimento da tradição do diálogopraticado nas letras da música negra americana, no sentido de que a interação com ou-tros MCs é um aspecto central do conteúdo e da rima do hip hop. Assim, fora as letrasauto-referenciais, os MCs procuram sempre estender e retrabalhar diálogos com outrosMCs, que podem ser tanto amigos/“manos” (“homeys”, ou seja “os de casa”) ou inimi-gos. Estas trocas normalmente exigem um conhecimento detalhado das políticas e das“beefs” (rixas) do hip hop, porque as referências são tipicamente sutis e escondidas nasrimas engenhosas.3

Outra dimensão da complexidade ou talento discursivo é o uso do “contraste dra-mático” (Perry, 2004). Um dos exemplos mais memoráveis seria o uso por Puff Daddy damúsica do The Police, “Every Breath She Takes”, para enfatizar seu tributo a Biggie Smalls– uma música que se tornou a mais tocada em muitos países do mundo. Não se poderiaimaginar maior contraste do que aquele entre a banda de rock inglesa dos anos 1970, ThePolice, e o estilo de vida e a economia de imagens de Biggie Smalls. No caso do grupo derap da África do Sul, BVK, ele também brinca com o tema musical da novela popular afri-câner chamada Sevende Laan (Sétima Avenida), que descreve um mundo africânder mul-tiracial e perfeito, que está tão afastado da vida cotidiana das townships como se poderiaimaginar. Mas, por meio desta produção espirituosa, eles também conseguiram explorarmercados diferentes e transmitir sua crítica social sobre a imaginação “ficcionalizada” dasnovelas televisivas, que apresentam negros bem comportados assimilados pela culturabranca africâner.

Um dos meus exemplos favoritos da natureza do discurso de múltiplas camadas dohip hop é uma faixa do Common, “A Film Called (Pimp)”, de seu brilhante CD, Like Wa-ter for Chocolate. Nesta faixa, ele se envolve em um diálogo entre um cafetão politica-mente consciente (bom exemplo do inesperado!) e uma de suas mulheres trabalhadoraspotenciais. O que se segue na faixa é um efervescente e engenhoso diálogo (ou “chama-da-e-resposta”) entre o cafetão, que diz que ele apenas “cafeteia com a verdade” e que queroferecer um serviço, expondo suas prostitutas “a determinado papel, à liberdade e à cul-tura, como um cafetão moralmente correto deve fazer”; e então promete levar a prostitu-ta para “a terra prometida de um cafetão, onde nenhum homem pode te quebrar”. Emresposta, a prostituta a quem ele fez a proposta diz: “Negão, você não me conhece, quemé o garanhão sou eu, eu vou te “cafetear”, vou te fazer escrever poesia pra mim, eu sou deuma terra chamada dinheiro, você é muito devagar pra mim... Você acha que vou arris-car o meu e depois te dar o dinheiro? Aquela merda já era. Eu tenho minha própria ca-valariça, vou furar teu umbigo e te colocar numa pista. Na verdade, ando procurandouma puta que seja abstrata”. Mais para o final da faixa, quando é óbvio que ela já o ven-ceu como principal protagonista da faixa, ele se conforma, dizendo: “Vá se ferrar, que euvou virar pregador...”. Este diálogo contém ironia, inversões surpreendentes de papéis,

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3 Um excelente exemplo dehip hop engenhoso e inventi-vo é o CD duplo do OutKast,vencedor do prêmio Grammyem 2004. Esta foi uma pro-dução seriamente funky eiconoclasta, que reuniu sub-gêneros e registros textuais(e visuais) em combinaçõesjamais vistas anteriormenteno hip hop, e que acabou porganhar não apenas aceita-ção do hip hop nas ruas,mas também por atrair públi-cos de fora do hip hop.

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identidades incongruentes, apelações nostálgicas a épocas passadas de estilo e classe, res-gate da figura do bandido na cultura negra popular, a autocrítica, a idéia de que há umalinha divisória muito tênue entre o cafetão e o pregador. E a riqueza textual exclui comen-tários sobre as batidas hipnóticas e funky que literalmente impelem a música para frente.Este é um artista que é conhecido por ser abertamente politizado e consciente, mas quetambém está procurando expandir seus registros e suas habilidades como escritor de umaforma que claramente revigora e amplia o gênero. Em outras palavras, a faixa, enquantoarte é brilhante, ainda que sua política seja obscura e, possivelmente, até questionável. Es-sa ambiguidade é precisamente o subtexto da peça, impossibilitando ao ouvinte chegar auma zona de conforto politicamente correta. Também enfatiza que, no hip hop, diversosníveis de discurso coexistem: “Conhecer a gíria pode ser um nível; conhecer profunda-mente a música hip hop, em geral, pode ser outro; conhecer a cidade natal do cantor ouseu bairro, mais um outro, e conhecer os artistas como membros de sua própria comuni-dade seria ainda outro… O nomear às vezes funciona como um elemento-chave na sina-lização do subtexto” (Perry, 2004:31).

Por último, e possivelmente a questão mais perturbadora, é que uma das principaisfunções políticas do hip hop no contexto americano seja o “Shine-ism”, que denota “exem-plos incontidos de masculinidade e excesso negros que assustam a sociedade e a culturaconvencionais, explorando seus temores e simultaneamente desafiando a privação econô-mica que oprime as comunidades americanas” (Perry, 2004:29). Segundo Perry, isto re-monta ao papel do malandro (“trickster”) que “subverte seu próprio poder relativo atravésda trapaça e da destreza verbal”. A autora também identifica os chamados “negões maus”,cujo papel, desde a escravidão, “caracteriza a pessoa negra que se recusa a se submeter àsregras da sociedade, que é destemido e rebelde e que ri das regras de adequação e regula-ção social” (Perry, 2004:29). Nesta leitura, a primeira imagem que surge é a de MV Bill eseu discurso eloquente (citado acima) sobre o medo da classe média brasileira em relaçãoà mensagem e à força potencial do hip hop de falar a verdade para o poder.

Entretanto, há outra dimensão nisso tudo. O gangsta rap e o rap R&B tendem a ir aoutro extremo: ambos os gêneros alimentam estereótipos sobre negros, especialmente ho-mens negros, e exageram e celebram os mesmos estereótipos. Deste modo, o gangsta rapcelebra o “bandido fora da lei” que vive a vida extravagante ao máximo – carros atraen-tes, armas, mulheres na espera, bebidas à vontade e festas na piscina, além de qualqueroutra coisa que a imaginação possa invocar. Isto envolve uma apropriação e resignificaçãodas marcas mais exclusivas, a fim de indicar para o sistema que os negros americanos en-trarão nos clubes de golfe, nos bares exclusivos e nos restaurantes de primeira classe, massem deixar a rua. Em outras palavras, os ideais do establishment branco ficam completa-mente deturpados e remoldados como significantes da cultura hip hop e não da socieda-de branca. Um repertório simbólico igualmente indulgente e excessivo estabelece-se parao sexo e as relações sexuais: a vida extravagante é tipicamente acompanhada por mulhe-res excessivamente sexualizadas que estão determinadas a ficar inteiramente à disposiçãodo MC em questão. Obviamente, em um determinado plano trata-se de simples fantasia,mas em outro significa que, apesar da exclusão econômica e social em larga escala por par-te dos Estados Unidos convencional, os Estados Unidos negro está corroendo os símbo-los culturais de superioridade e dominância através de sua apropriação deliberadamentecrassa. Esta leitura não pretende justificar ou minimizar o caráter politicamente pro-blemático do gangsta rap e do seu gêmeo contemporâneo, o R&B, mas chamar a atençãopara os inevitáveis efeitos culturais do hip hop mainstream nos Estados Unidos.4 Christa

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4 Imani Perry desenvolve es-te ponto de forma mais apro-fundada, que vai além domeu atual objeto: “A cons-trução histórica da negritu-de, em oposição à ‘brancu-ra’, na qual a negritude édemonizada, se tornou parteda consciência desta formade arte. Enquanto as gera-ções anteriores de negrosamericanos utilizaram váriosmeios para estabeleceremuma autodefinição que ne-gasse a construção da negri-tude como sendo demoníacaou depravada, muitos mem-bros da geração do hip hopescolheram, em vez disso,se apropriar e explorar estasconstruções como ferramen-tas metafóricas para a ex-pressão do poder. Devido aofato de que este gesto é ex-tremamente agressivo (poisele reivindica o poder atra-vés principalmente da vozdos homens negros, o que,dada a estrutura racial dico-tomizada dos Estados Uni-dos, retira o poder dos Esta-dos Unidos branco, mesmoque isso se opere apenasatravés do medo dos bran-cos), a comunidade negrageralmente não percebe es-tes atos como sendo de trai-dores com ódio de si pró-prios, da forma que poderiaperceber os atos de negrosque adotassem outras postu-ras estereotipadas. Pelo con-trário, estes jovens podemser vistos até como suportesde um tipo particular de em-poderamento negro. Obvia-mente, esse tipo de empode-ramento se relaciona a umnível mais abrangente de im-potência” (Perry, 2004:47-8).

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Kuljian, uma colega de trabalho, sugere: “É uma resposta a uma sociedade que valoriza oexcesso e o ganho material como a expressão mais elevada do sucesso”.

Estas quatro dimensões do hip hop – especificidade, discurso aberto, discurso em ca-madas múltiplas e “Shine-ismo” – o tornam uma forma complexa e dinâmica de culturapopular que oferece um rico reservatório de materiais para a construção de identidades.O hip hop oferece não somente compreensões e perspectivas sobre o funcionamento domundo, mas também como se posicionar – política, estilística, ideológica, social e psico-logicamente – nesse mundo. Os estudos de caso do Rio de Janeiro e da Cidade do Caboenfatizam como o hip hop politicamente consciente oferece uma ideologia coerente parase resistir às fragmentadas realidades de espaços e estilos de vida cotidianos dominados pe-las gangues da droga, em busca de alternativas mais sólidas.

Entretanto, a práxis do AfroReggae sugere que isso não é simples. Além de umanarrativa mais abrangente e politizada a respeito da exclusão e marginalização estrutura-is ligadas à cumplicidade oficial com os lucros do tráfico de drogas, especialmente noscircuitos mais altos da cadeia de valor, o líder do AfroReggae, José Junior, sabe que eledeve espelhar a disciplina e a hierarquia da cultura de gangues. A questão é que ele sabeque seu movimento deve oferecer um lar e um sentido de pertencimento alternativos,porque é isso que as gangues oferecem em primeira instância, além do acesso aos recur-sos financeiros, que não estão disponíveis por meio da participação no mercado de tra-balho formal. Em outras palavras, a solução não é simplesmente uma questão de restau-rar o sentido de identidade, orgulho e dignidade destes jovens para que então, de algumaforma, eles milagrosamente consigam permanecer na linha estreita do estilo de vida al-ternativo que o movimento oferece. Novamente, MV Bill captura claramente esta dinâ-mica quando argumenta:

Eles não tem a oportunidade de se tornarem outra coisa; cada um deles é seu próprio juiz epode dizer o que é certo ou errado, mas a criminalidade atualmente no Brasil se tornou apenasmais uma opção; parte meu coração dizer isto, mas a criminalidade de hoje se tornou, tragica-mente, uma bela opção para aqueles que nascem sem perspectivas. Não vou ser hipócrita e dizero contrário porque isto é o que eu vi, esta é a verdade e mesmo eu tenho dificuldades em dizer pa-ra alguém “Saia do tráfico de drogas”, porque eu não tenho nada melhor para oferecer. E não ésuficiente oferecer assistência, caridade, coisas pequenas, porque a televisão mostra as coisas boasda vida e isso é o que todos estão querendo.5

Simultaneamente, MV Bill fala também sobre sua organização de hip hop, a CUFA

(Central Única das Favelas), que busca oferecer alternativas para os jovens. O fato com oqual ele tem que se conformar, nesse contexto, é que, tendo em vista os fatores estrutura-is mais amplos que reproduzem as economias criminosas, ele não é tão ingênuo para acre-ditar que sua intervenção fragmentária seja por si só uma solução. Esta pode ser a razãopela qual ele recentemente colaborou com o proeminente antropólogo/criminologistabrasileiro, Luis Eduardo Soares, na produção de um livro – Cabeça de Porco – e um do-cumentário sobre a violência urbana em nove cidades brasileiras. Este livro traz à tona aescala e a convergência da violência urbana no Brasil e em particular o fato de que aque-les que perpetram a violência nas favelas são cada vez mais jovens e mais numerosos. Olivro tem a intenção de alertar o establishment brasileiro e também, sem dúvida, de seruma forma de mobilização de recursos externos para apoiar iniciativas como a CUFA e oAfroReggae. Mais importante, esta iniciativa sublinha o fato de que são necessárias inter-

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5 Entrevista publicada na re-vista Leros, de junho de2005. Disponível em: www.leros.co.uk (acessado emoutubro de 2006).

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venções estruturais para lidar com a violência urbana, intervenções que possam operar emconjunto com programas de base popular inspirados no hip hop, como aqueles de MV Bill,e iniciativas educacionais em prisões juvenis (ver Pardue, 2004). Soares fala muito clara-mente sobre os tipos de reformas/transformações que são necessárias, em sua resposta àpergunta: Você acha que ter acesso a informação, educação superior e projetos que aumentama auto-estima poderia ser uma saída para a violência?

Sem dúvida. Estou convencido disso. Em nosso livro, não esquecemos a importância dopoder econômico, mas enfatizamos a importância da inter-subjetividade, do simbolismo, daafeição, da psicologia e da cultura. Não que sejam aspectos mais importantes, mas porque asociedade não tem dado a eles a atenção adequada. Temos que oferecer à juventude no míni-mo o que o tráfico de drogas oferece: recursos materiais, é claro, mas também reconhecimento,um sentimento de pertencimento e de valor. Enfim, há uma fome mais profunda que a fomefísica: a fome de afeição e de reconhecimento, que aumentam a auto-estima [...] Acho que a re-pressão deveria ser o último recurso. Antes dela, há muito o que ser feito no sentido da preven-ção, como a reinserção, a educação e o estímulo à auto-estima. Se queremos que alguém mude,temos que fornecer as bases. Ninguém muda se pensa que não vale nada. Queremos extermi-nar a juventude pobre ou integrá-la? Perdoar e dar uma segunda chance também significa nosperdoar e nos dar uma segunda chance, como sociedade. Não seria ótimo termos uma chancede escapar da culpa terrível de ter abandonado milhares de crianças ao destino de pegar umaarma? 6

Soares levanta duas questões. A primeira, que é vital não perder de vista a humani-dade da juventude negra que cresce em meio ao terror e a um abandono social efetivo.Não existe a possibilidade de recuperar esta classe de (não) cidadãos para integrar uma po-lítica urbana inclusiva se não se reconhecer a necessidade fundamental de eles se afirma-rem como pessoas. Claramente, em meus dois exemplos, a posição de rejeição social en-trelaçada com a redundância econômica está fortemente correlacionada com a raça. Destemodo, grande parte da recuperação da ação para que uma política abrangente seja possí-vel requer um confronto com o racismo institucional. A segunda, que a escala das refor-mas preventivas identificadas por Soares envolve o Estado. Os jovens pobres continuarãoa enfrentar futuros truncados enquanto as instituições estatais de justiça penal não foremtransformadas para adotar a filosofia que trata a repressão como último recurso. Eviden-temente, os projetos de hip hop nas favelas e townships não são capazes de, sozinhos, da-rem conta dessa tarefa ambiciosa. O que eles oferecem de fato é um ponto de partida vi-tal para que os jovens possam agir em lutas culturais e políticas mais abrangentes e emdiversas instâncias para conseguir tanto o reconhecimento quanto as reformas voltadaspara prevenção.

Entretanto, para a juventude negra e pobre ter uma voz significativa, isto deve acon-tecer em seus próprios termos, e é justamente isso que os registros do hip hop potencial-mente oferecem. Em primeira instância, isto significa uma política e uma estética de irae de crítica militante perante a atitude mal disfarçada de dois pesos e duas medidas da so-ciedade convencional (mainstream society). Aqui eu tenho em mente letras e análises po-tentes de lideranças do hip hop como MV Bill, Racionais MC, Black Noise, BVK, Jitsvin-ger, Proverb, entre muitos outros. No caso brasileiro, o impacto dos grupos de hip hopcomo Racionais MC, que vendem acima de um milhão de unidades, é certamente profun-do. Em segundo lugar, nos complexos registros estéticos que a cultura hip hop instiga, os

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6 Entrevista com Luis Eduar-do Soares. Disponível em:www.dreamscanbe.org/controlPanel/materia/view/433(acessado em outubro de2006).

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jovens devem ser encorajados a buscar suas identidades, aspirações, contextos sem muitacensura. A expressão artística criativa pode potencialmente criar uma nova linguagem po-lítica e um novo registro simbólico que seja significativo para os jovens e impenetrável ealienante para as elites e classes médias. Esta é a questão de fato. Para o engajamento po-lítico ocorrer, deve-se forçar os poderosos e privilegiados a reconhecer suas diferentes cul-turas e suposições, que normalmente se tornam invisíveis por serem a norma social – seeles estão interessados em se engajar ou “fazer a diferença” como parte de uma políticacosmopolita mais abrangente. Isto é uma pré-condição para “uma ética de mutualidadeem um contexto urbano”, como invocado por Ash Amin. Por último, os registros do hiphop oferecem à juventude pobre uma plataforma para criarem diversos tipos de redes re-gionais, nacionais e internacionais de engajamento e apoio mútuo, a fim de promoveruma agenda de escalas múltiplas que permita unir múltiplas especificidades locais. Pes-quisas feitas sobre a práxis da Slum Dwellers International sugerem que as políticas locaisde reconhecimento tendem a funcionar de forma muito mais eficaz se reforçadas porredes globais de solidariedade e intercâmbio (Appadurai, 2004).

CODA: IMPLICAÇÕES CONCEITUAIS PARA AINCLUSÃO/EXCLUSÃO URBANA

James Holston argumenta que a multiplicação de reivindicações pela cidade que se-gue a intensificação da urbanização esgota as noções tradicionais de cidadania. Ele argu-menta a favor de uma avaliação da “cidadania insurgente” que, segundo ele, surge de “ba-talhas em torno do significado de ser membro do Estado moderno” (Holston, 1998:47).Além disso, a cidadania “muda, expandindo seu domínio à medida que novos membrossurgem para apresentar suas reivindicações, e erodindo-o à medida que novas formas desegregação e de violência criam obstáculos a esses avanços. Os locais de cidadania insur-gente são encontrados na interseção destes processos de expansão e erosão” (Ibid., p.48).Evidentemente, grande parte da prática cultural do hip hop consiste em dar voz e reco-nhecimento à posição marginalizada das comunidades pobres e de seus residentes e, aomesmo tempo, em propor uma concepção alternativa de vida cotidiana, justiça urbana einclusão, uma concepção dirigida aos fatores econômicos e institucionais sistêmicos quereproduzem essa situação, conforme refletido na análise de MV Bill e outros MCs citadosanteriormente. Neste sentido, pode-se argumentar que a essência das práticas de hip hop,em termos de seus registros simbólicos, suas intervenções localizadas no espaço e suas re-formulações (de praças públicas, estações de trens, estacionamentos, etc.), consiste emaprofundar a cidadania insurgente e oferecer um caminho diferente de participação na es-fera pública da cidade.

Entretanto, enquanto as práticas do hip hop continuarem desconectadas de outrosespaços e domínios da prática política urbana, seu potencial transformador continuaráenfraquecido. Mostrei em outros escritos que a forma mais eficaz de se conceituar e abor-dar a política urbana é por meio da interseção de cinco domínios institucionais e interde-pendentes da prática: (1) fóruns políticos representativos; (2) mecanismos políticos “neo-corporatistas” que se compõem de organizações representativas, principalmente ogoverno, o setor privado, os sindicatos e, às vezes, organizações de base comunitária; (3)ação direta ou mobilização contra políticas estatais ou em prol de demandas políticas es-pecíficas; (4) a política da prática do desenvolvimento, especialmente no nível das bases

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populares; e (5) contestação política simbólica, que se expressa através da contestação dis-cursiva na esfera pública (Pieterse, 2005; 2006).

As culturas hip hop tanto no Brasil como na África do Sul estão fortemente relacio-nadas às intervenções ativistas de base – no domínio da prática do desenvolvimento –para fornecer refúgios de segurança e aprendizado para crianças e jovens pobres, espaçosonde se fomentam uma socialização alternativa e um sentimento de lugar devido aoquinto elemento do hip hop: o conhecimento de si próprio. Entretanto, procurar liga-ções explícitas com as iniciativas adotadas pelo Estado é potencialmente perigoso para ohip hop enquanto discurso verdadeiramente aberto, como ilustra o estudo de caso reali-zado por Derek Pardue sobre o hip hop como ferramenta pedagógica em uma prisão ju-venil em São Paulo. Comparando o hip hop “livre” com o programa educacional patro-cinado pelo Estado, Pardue (2004: 429) encontrou “diferenças significativas no processode representação e performance, especialmente nos casos das letras de rap e do grafite”.Ele notou particularmente que os instrutores moderavam os discursos sobre raça, racis-mo e brutalidade policial, a favor de uma sensibilidade muito mais comunitária, em queas noções abstratas de construção da comunidade eram valorizadas. Tal estratégia podeobviamente tirar do hip hop sua força, tal qual descrita na seção anterior a respeito dosregistros do hip hop na tentativa de se tornar uma prática política de ira e confrontação,a fim de perturbar as estruturas normativas da sociedade e da cultura convencionais. Nãoobstante, Pardue (2004) também reconhece que, apesar do risco de domesticação do hiphop, existe grande mérito em se ter um Estado que se dispõe a patrocinar programas deserviço público que mantêm as lideranças do hip hop com emprego remunerado e comuma plataforma para estender suas sensibilidades artísticas e estéticas. E não há, obvia-mente, como prever o tipo de loucura e ira que poderia surgir dos impulsos criativos etransgressivos dos jovens apresentados às habilidades e idéias do hip hop “com uma men-sagem” ou agenda.

Em último lugar, as práticas culturais do hip hop sublinham a importância de seprestar mais atenção aos registros afetivos, ao projetar uma política urbana agonística e in-clusiva como aquela reivindicada por acadêmicos como Amin (2006), Connolly (2002),Massumi (2202) e Thrift (2004) (cf. Hemmings 2005). O afeto é muito mais importan-te no pensamento e no julgamento do que foi reconhecido anteriormente. O que isto im-plica é que “os modos de consciência afetivo e cognitivo” estão ambos sempre em açãoquando atuamos. Mais especificamente, “a tomada de decisões voltada para a ação é sem-pre marcada por orientações afetivas preliminares de percepção e julgamento, que servempara reduzir o peso do material considerado em análises custo-benefício, julgamentos deprincípios e experimentos reflexivos” (Krause, 2006). Em outras palavras, como nos sen-timos e as diferentes formas de predisposições internas são elementos vitais de nosso serenquanto agente (político) urbano, com grande influência sobre os tipos de possibilida-des coletivas que irão ou não ter repercussão. Dadas as alternativas, antes impensadas, deação e emoções inconcebíveis que o hip hop pode engendrar entre a juventude urbana, elecertamente se qualifica como uma fonte potencial de esperança, no sentido proposto porAsh Amin no seu comentário em fórum de discussão na Internet: “A esperança pode fun-cionar como um afeto urbano, uma ética de mutualidade em um contexto urbano cheiode diferenças e diversidade. A partir desta visão, muitos elementos podem ser reunidos,incluindo uma política de restituição, justiça redistributiva, aspiração e fé”. Entretanto,isso parece exigir que instituições como a CUFA, Black Noise e AfroReggae se tornem maisfortes e se multipliquem.

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Em resumo, ainda que eu tenha conseguido apenas tocar na superfície da política eda estética culturais do hip hop, está claro que ele oferece pistas vitais sobre o processo dedesenvolvimento de novas linguagens para a compreensão da inclusão e exclusão, espe-cialmente em cidades contemporâneas do sul global. Neste sentido, o hip hop certamen-te não é perfeito, sendo particularmente falho no que diz respeito ao empoderamento damulher e à política cultural feminista, mas também é suficientemente fértil para ao me-nos lidar com este vetor de exclusão particularmente difícil. Os registros e práticas cultu-rais cotidianos desse grupo cada vez mais numeroso de jovens nessas cidades são clara-mente atores cruciais na luta mais abrangente por cidades inclusivas; então, comourbanistas, vamos nos sintonizar aos ritmos.

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Edgar Pieterse é diretordo Centro Africano para Ci-dades da University of CapeTown e pesquisador asso-ciado no Instituto Isandla. E-mail: [email protected]

Artigo recebido em outubrode 2008 e aprovado parapublicação em janeiro de2009.

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A B S T R A C T It is assumed in the paper that the contemporary urban condition ismarked by an increased pluralistic intensity in cities. Coupled to this shift in the nature of theurban context, one can also observe a proliferation of sites of political engagement and agency,some of which are formally tied to the various institutional forums of the state, and many thatare defined by their insistence to stand apart from the state, asserting autonomy andclamouring for a self-defined terms of recognition and agency. This paper draws attention tothe significance of one category of urban actors – hip-hoppers – that can be said to occupy a“marginal” location in relation to the state but uniquely relevant to the marginalised existence

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of most poor black youth in cities of the global South, particularly Rio de Janeiro and CapeTown. The paper demonstrates that hip hop cultures offer a powerful framework ofinterpretation and response for poor youth who are systemically caught at the receiving end ofextremely violent and exploitative urban forces. The basis of hip hop’s power is its complexaesthetical sensibility that fuses affective registers such as rage, passion, lust, critique, pleasure,desire, which in turn translates into political identities, and sometimes agency (i.e.positionality), for its participants. In the final instance, the paper tries to link conclusionsabout the potential of hip hop cultural politics to larger academic themes such as participation,public space, citizenship and security.

K E Y W O R D S Hip hop; cultural politics; urban violence; urban exclusion/inclusion; affective registers.

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RESENHAS

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PELO ESPAÇO: UMA NOVAPOLÍTICA DE ESPACIALIDADEDoreen Massey Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008

Gislene Santos Professora Adjunta do Departamento

de Geografia da UFPR

O crescente interesse que diferentes áreas do co-nhecimento e da arte têm apresentado em relação aoconceito de espaço, poderia, à primeira vista, trazer aosgeógrafos um certo sentimento de conquista e confor-to epistemológico: enfim, depois de longos anos su-bordinados a uma representação de mundo comanda-do pela dimensão do tempo, o espaço passa a servalorado. A lista desta evocação atual ao espaço é ex-tensa: no cinema, a imagem focada na problemáticados conflitos ao longo das fronteiras internacionais; naliteratura contemporânea, migrantes-estrangeirosdesenraizados em alguma grande cidade e cenas deviolência urbana comumente apresentam-se como per-sonagens e cenários. Na Antropologia, Filosofia e So-ciologia, o uso das topologias espaciais também seapresenta recorrente. Noções como território, dester-ritorialização, fluxos, redes, nações, fronteiras, local,lugar, transnacional, para citar as mais frequentes, decerta maneira transmitem, em primeiro plano, umaclara perspectiva espacial. Entretanto, ao lermos Peloespaço, livro recentemente traduzido e publicado noBrasil, escrito pela geógrafa Doreen Massey, a aparentesensação de conforto epistêmico desequilibra-se; emvez da revigoração conceitual do espaço, nos diz a au-tora: “muitos dos discursos correntes acerca da globali-zação fogem do pleno desafio do espaço” (p.148).

A estrutura do livro compõe-se de cinco partes:ao longo das 312 páginas distribuídas em 15 capítulos,a autora propõe construir pressupostos e argumentosheurísticos com o objetivo de restituir ao espaço carac-terísticas e princípios que respondam às questões con-temporâneas, mas sem cair na apologia discursiva deque tudo hoje é espacial, e muito menos na inevitabi-lidade da globalização neoliberal, sedenta por novos lu-gares. Parte do pressuposto de que o espaço é produtode relações sociais – relações essas que se formam coe-taneamente e cujo emalhamento é tecido por uma mi-

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ríade de distintos tempos e lugares. O espaço aqui, jápara adiantar, é um encontro de múltiplas trajetórias,cujo arranjo não se conforma à representação de umasuperfície plana e pontual. Espaço não é mapa, adver-te a autora.

Página a página o leitor debruça-se sobre umdenso e laborioso raciocínio acerca das característicase princípios constitutivos do espaço. Em todo o tex-to, a autora conversa com diferentes pensadores:Bergson, Espinoza, Levi-Strauss, Althusser, Derrida,Deleuze, De Certeau, Chantal Mouffe, Laclau. Noentanto, o diálogo mais fino que atravessa e estimulao seu pensamento se mediatiza com o filósofo HenriBergson, por sua investidura (no início do século XX)sobre o tempo associado ao espaço. Mas se Bergson,seguindo as pistas de Massey, investe para um tempomúltiplo e conflui para a idéia de duração como ex-perimento de vida, composto por um presente perfi-lado de temporalidades distintas, sua concepção deespaço é refém do tempo; o espaço abriga o tempo.Massey aproxima-se de Bergson por sua abertura emrelação ao tempo, porém, traz um elemento novo: oespaço não é um desdobramento do tempo, ao con-trário, espaço e tempo existem em conjunção. Tempoe espaço são co-constitutivos. Assim, a autora, na pri-meira parte do livro, teoriza sobre as categorias tem-po e espaço e propõe um tensionamento epistêmicoentre espaço-tempo ou tempo-espaço. Não há aqui, éimportante que se registre, uma prioridade hierárqui-ca do tempo em relação ao espaço, ou vice-versa. Es-tas dimensões se constituem conjuntamente. O mun-do é temporal e espacial. O tempo-espaço que aautora laboriosamente edifica constitui-se de múlti-plas trajetórias que se encontram no aqui agora. Se otempo como processo está aberto ao imprevisto, as-sim também pode ser pensada a conjunção tempo-es-paço: “Se o tempo é a dimensão da mudança, então oespaço é a dimensão do social: da coexistência con-temporânea dos outros. E isso é ao mesmo tempo umprazer e um desafio” (p. 15).

Mas, nesta direção, qual a sua definição de espa-ço? Quando e como o espaço começa a tomar forma ea se delimitar? A primeira atenção, seguindo Massey, éevitar cairmos aqui na distinção dada pela GeografiaHumanística entre espaço e lugar. Esta polaridade en-tre o espaço (hostil, externo e abstrato) e o lugar (refú-gio/pertencimento, sentido, vivido e cotidiano) pouco

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nos ajuda a elaborar um raciocínio espacial. A autoranão está pré-ocupada em distinguir essas duas noções.Espaço e lugar/local se equivalem. Em rápidas pala-vras, esse legado em relação ao lugar (refúgio sedimen-tado de formas e heranças que diretamente nos perten-cem) deve ser renunciado, pois, podemos dizer, esselugar nunca existiu.

No capítulo 1, a autora apresenta duas propo-sições iniciais para se pensar o espaço: 1) O espaçocomo produto de inter-relações – do global ao intima-mente pequeno. Não se trata, nesta primeira proposi-ção, de uma poética do espaço ao estilo Bachelard. Aocontrário, o que ela propõe é uma ação reflexiva sobreuma “política relacional do lugar” – e o lugar aqui, im-portante reiterar, é formado pelo encontro de múlti-plas trajetórias. Este encontro, diga-se de passagem,não é portador de um sentido angélico e adâmico dolugar. A autora mergulha em águas mais profundas eturvas: o local não é a exposição de uma única heran-ça de histórias sedimentadas numa circunscrição fecha-da. Para Massey, o sentido do local guarda sua relaçãocom outras escalas. Isso não impede que se compreen-dam as singularidades locais, mas o lugar é a manifesta-ção do encontro de muitas outras heranças e de acon-tecimentos em curso, e não de uma única história.

Assim, evitamos cair no sentido de lugar comoescala cartográfica e administrativa, e tampouco dire-cionamos um apelo à particularidade fechada de umalocalidade. Antes de mais nada, locais são processos.2) O espaço como a esfera de possibilidade, de exis-tência da multiplicidade, da coexistência conflituosade muitas outras vozes e trajetórias. Um espaço ondea pluralidade humana e a heterogeneidade estejampresentes. Assim, ao propor a pluralidade como pres-suposto para a formação e entendimento do espaço,Massey refina sua imaginação e já nos adverte que osentido de sua reflexão se pauta por um exercício po-lítico, pois onde se concebe a pluralidade e a hetero-geneidade estão presentes os conflitos, as diferenças deuso e distribuição do poder, os consensos, as rupturase as forças que percorrem e usam desigualmente os re-cursos dos espaços. A força do argumento é dada pelapossibilidade de um devir do espaço, posto que aber-to, plural, múltiplo e em conflito. Ao pensarmos queespaço e multiplicidade de trajetórias são co-constitu-tivos, abrimos uma nova paisagem política, compostapor diferentes narrativas.

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Conceber assim o lugar como escala heurísticaprivilegiada demanda renunciar a uma perspectiva uní-voca de identidade, portadora de paroquialismos e lo-calismos exclusivistas. Massey enfatiza a tarefa críticada Geografia: desfazer-se de uma concepção de espaçocomo abstrato e do seu contraponto lugar como vivi-do para, em vez dessa dupla oposta, advir um sentidode uma política do espaço, dado pelo princípio da “po-lítica da interconectividade”, de um lugar em relação aoutro. Não encontramos, assim, em Massey, uma teo-ria fechada, pronta para ser aplicada em estudos de ca-sos empíricos. Não se trata de uma transposição didá-tica e muito menos de procedimentos metodológicospara futuros estudos sobre o lugar. O que o leitor en-contrará é uma profunda reflexão e inspiração para umexercício atento às multiplicidades que um lugar abri-ga. E, com rigor, a autora analisa várias problemáticasatuais, como: a política habitacional em Londres; a de-marcação de terras dos índios Deni, no oeste da Ama-zônia; as políticas localistas em relação ao migrante-es-trangeiro; a dominância das indústrias financeirasglobais em Londres; o local como produtor do global;a organização do espaço do trabalho e do espaço do-méstico pelos altos funcionários dos tecnopolos; aapropriação do espaço público urbano; a conexão localentre os humanos e não-humanos (natureza); e umacrítica à adesão das ciências humanas às teorias nocampo da física, especificamente em relação à teoria dacomplexidade.

O texto é acompanhado de imagens fotográficas,charges e mapas. O uso destas imagens não deve serprogramado como suporte didático para a compreen-são do texto escrito e tampouco como enfeite e/ouilustração. Mas merecem ser lidas como linguagemque, junto ao texto escrito, gera um segundo texto, noqual os objetos e os significados se atritam, abrindo avisão para a imaginação de um espaço múltiplo de nar-rações. Massey nos propõe, assim, outro exercício: jun-to a Espinoza, faz apelo ao experimento da imaginaçãodo outro, um outro que não se situa necessariamenteem alguma localidade distante (quanto mais distantemaior a diferença cultural, como nos clássicos estudosdas ciências humanas). Não é sobre distâncias métricasque trata sua reflexão espacial. O diferente e o estranhonão habitam somente o distante; a margem tambémestá no centro. Esse lugar, como experimento heurísti-co, ainda está para ser construído.

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Das páginas deste livro emerge um feixe de expe-rimento de idéias, dado pela elegância na escrita, o cui-dado com a textura e o significado das palavras. Qua-lidades estas transmitidas pela “boa tradução” do livro,que nos oferece a difícil tarefa de conciliar e manter asdiferenças entre línguas diferentes e criar sobre o intra-duzível. Ao terminar a leitura, temos um sentido resti-tuído: o de que o mundo ainda apresenta novidade.Massey traz um pouco de “ar puro” para a Geografia.“Lugares, em vez de serem localizações de coerência,tornam-se os focos do encontro e do não-encontro dopreviamente não-relacionado e, assim, essenciais para ageração do novo” (p. 111). A amplitude de seus ques-tionamentos nos permite multiplicar os olhos, gestoesse especialmente urgente para pensar as questõescontemporâneas. Há em suas reflexões uma serenidadeepistemológica para questões tão complicadas e densas,como o acesso e controle desigual do poder. Posição es-sa que somente a maturidade de uma rica trajetória in-telectual pode oferecer.

Em síntese, para que a teoria de Massey seja com-preendida, é fundamental termos em mente que suacrítica é direcionada a todas as abordagens positivistase essencialistas que cultivam uma idéia de lugar cir-cunscrito e fadado a uma única identidade. Pensar des-ta maneira o lugar é empobrecer o cotidiano, as ex-periências contemporâneas, o mundo e o devir. Comtodas as implicações políticas, como legado de uma re-presentação de mundo colonialista, não é mais possívelpensarmos o espaço como superfície plana. Ancorar-senesta interpretação é silenciar as muitas outras vozes emuitos outros atores que formam o espaço. Nesta dire-ção, as Ciências Humanas e os atores do planejamen-to, nas mais diversas escalas de ação, podem e devemassumir o compromisso de elaborar uma reflexão eação política para construção de um espaço heterogê-neo, múltiplo e plural, pois essa é a única condição hu-mana da qual somos herdeiros.

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SÃO PAULO, CIDADE GLOBAL: FUNDAMENTOS FINANCEIROS DE UMA MIRAGEMMariana Fix São Paulo: Boitempo, 2007

Daniela Abritta Cota Doutoranda do Programa de Pós-Graduação

em Geografia da UFMG

A transição do regime de acumulação fordista pa-ra o regime de acumulação flexível levou, em muitos ca-sos, à adoção pelos países centrais de formas mais flexí-veis de organização espacial, seja do ponto de vista dasnormas de ordenamento territorial, seja nas formas derelacionamento entre o poder público e o setor privado.Por outro lado, o processo de globalização e de flexibi-lização da produção, bem como a quebra das barreirasespaciais (Harvey, 1995) como conseqüência da contí-nua revolução nos meios de transporte e de comunica-ção, reforçaram a política do local e a importância doslugares, que passaram a competir pela atração de inves-timentos e fluxos de consumo. Nesse contexto, produ-tividade, competitividade e subordinação dos fins à ló-gica do mercado são elementos que dominam a “nova”forma de se pensar o urbano, constituindo o que Har-vey chamou de empresariamento da gestão urbana(Harvey, 1996). Tais elementos passam, assim, a ser in-cluídos na discussão de políticas urbanas locais maisrecentes, sendo adotados especialmente por aquelascidades com “vocação global”. Nesse contexto de trans-formação da “cidade-empresa”, instrumentos de pla-nejamento mais flexíveis – contrapondo-se aos tradicio-nais, tanto do ponto de vista da regulação do uso e daocupação do solo urbano quanto da governança urbana– são colocados em pauta tanto nos países centraisquanto nos periféricos, a exemplo da parceria público-privada, que se apresenta como possível mecanismo decaptação de recursos e de gestão pública eficaz, conside-rando o seu papel na promoção da inserção competi-tiva de cidades nos fluxos econômicos globais.

Mariana Fix, em sua última obra (Fix, 2007), dáabertura para diferentes reflexões, nos instigando, in-clusive, a refletir sobre este tema – a parceria público-privada – quando investiga as conexões existentes en-

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tre capital imobiliário e capital financeiro na cidade deSão Paulo, metrópole periférica, em um contexto demundialização da economia. Destaca-se na investiga-ção realizada pela autora especialmente a riqueza dotrabalho de campo e o expressivo número de entrevis-tas qualitativas realizadas ao longo da pesquisa – 56 en-trevistas envolvendo 61 pessoas de 46 entidades dife-rentes –, capazes de subsidiar o entendimento e asreflexões acerca do circuito de circulação do capital nomeio ambiente construído. Mérito também deve serconferido à clareza com que Fix apresenta os novosmecanismos financeiros que podem, em tese, aproxi-mar o mercado imobiliário do modo de funcionamen-to do mercado de capitais, a exemplo dos fundos de in-vestimentos utilizados no caso brasileiro.

A discussão realizada pela autora tem como obje-to de estudo uma parte da cidade de São Paulo que seprojeta como uma nova centralidade – Faria Lima-Berrini, também alvo de análise da autora em suasobras anteriores (Fix, 2001, 2003) – ao ser submetidaàs estratégias de planejamento e gestão capazes de pro-duzir a “face globalizada” da metrópole. Nesse livro, aautora procura identificar as formas assumidas na pro-dução imobiliária e no consumo do espaço urbano deSão Paulo, investigando como a financeirização e amundialização do capital produzem paisagens comoesta, objeto de seu estudo: torres de escritórios, shop-ping centers, prédios de uso misto, dentre outros exem-plares existentes nas paisagens dos centros de negóciosdos países centrais.

Por trás dessa aparente paisagem globalizada, Fixidentifica as estratégias colocadas em prática para via-bilizar a cidade global, mostrando como em São Pau-lo o elo entre mercado imobiliário e capital financeirose mostra truncado e imperfeito, evidenciando as ca-racterísticas específicas que essa aliança assume na rea-lidade brasileira.

Primeiramente, a análise busca mostrar que aprodução do ambiente construído, resultado desse eloem São Paulo, não conta com um crédito efetivo, co-mo é o caso das hipotecas nos Estados Unidos. Na fal-ta de crédito financeiro para os edifícios comerciais, osetor utiliza os fundos de pensão – a maioria deles liga-dos a empresas estatais, como a Caixa Econômica Fe-deral e a Petrobrás – que funcionaram nos anos de1980 e 1990 como uma espécie de substituto ao crédi-to, tentando reproduzir o mecanismo da promoção

imobiliária norte-americana. Dessa forma, a financei-rização da promoção imobiliária, que nos países cen-trais se deu ao mesmo tempo que a combinação explo-siva das instituições de crédito com o setor imobiliário,adquiriu no Brasil uma outra configuração. Na ausên-cia do crédito, são os fundos de pensão que, ao assumi-rem o papel de investidor, aproximam o mercado imo-biliário do modo de funcionamento do mercado decapitais. Isso representa uma nova forma de reunirrecursos para investimentos, ao considerar a terra umativo financeiro – porque permite a apropriação derendas que prometem ser cada vez mais elevadas –, ga-rantindo, assim, rentabilidade. A partir desse enfoque,a autora nos mostra como em São Paulo o capital fi-nanceiro transforma a produção imobiliária em títulosmobiliários atraentes para investidores do mercadofinanceiro. A produção imobiliária nessa parte da ci-dade passa a ser regida pela busca de liquidez: o imó-vel se torna um título mobiliário, e as cidades, sobre-tudo aquelas com “vocação global” como São Paulo,são financeirizadas.

Para viabilizar essa transformação da paisagem deSão Paulo, dotando-a de um status “global”, utiliza-seo instrumento da Operação Urbana, aquela mesmaforma de parceria público-privada abordada pela auto-ra em seus trabalhos anteriores e responsável por criaras condições necessárias à atração de investidores e àconseqüente submissão da cidade (ou parte dela) à ló-gica do capital financeiro. Segundo Mariana Fix, aconstrução da “face global” da cidade de São Paulo,além de ser sustentada por grandes investidores brasi-leiros, como os fundos de pensão, encontra na parceriaentre o poder público e a iniciativa privada o instru-mento capaz de viabilizar financeiramente os negóciosimobiliários, garantindo fluxo permanente de recursospúblicos para modernizar a infra-estrutura na regiãoFaria Lima-Berrini. A Operação Urbana – essa formade parceria público-privada aplicada no urbano – esti-mula a produção imobiliária do espaço em áreas ini-cialmente baratas (próximas às favelas), porém, comlocalização interessante para a atuação do mercado,que vê na região uma possibilidade de rentabilidade.Assim, o Estado é mobilizado a transformar a cidadeem uma “máquina de crescimento” capaz de inseri-lano ranking das cidades com funções globais, canalizan-do recursos públicos que são investidos em infra-estru-tura necessária para atrair investimentos imobiliários e

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alavancar negócios privados. Como visto, a OperaçãoUrbana aparece como instrumento que viabiliza o elofinanceiro dos empreendimentos imobiliários, mas deforma perversa: concentração de renda e segregação es-pacial são os resultados da utilização deste instrumen-to – resultados abordados também em trabalhos ante-riores da autora, mas, agora, com destaque para opapel da parceria na relação local-global. Isso contribuipara o enfraquecimento do mito criado ao considerarSão Paulo uma “cidade global”, o que, na verdade, pa-rece ser o caso de apenas uma parte da cidade, direcio-nada para poucos.

Em segundo lugar, a autora busca nos mostrar co-mo, no caso brasileiro, há uma “fratura” que caracteri-za o processo de financeirização e internacionalizaçãoda economia, a partir desse estudo sobre São Paulo. Nabusca de mobilidade e liquidez, as grandes empresasdeixam de se estabelecer em sedes próprias e passam aalugar andares em edifícios construídos naquelas paisa-gens globalizadas – no exemplo deste livro, a da Faria-Lima-Berrini –, o que lhes permite se deslocar no ter-ritório com maior facilidade. Sendo assim, a aparentepaisagem globalizada, edificada para servir ao capitaltransnacional, sofre conseqüências da constante migra-ção que caracteriza as grandes empresas: a alta taxa devacância dos imóveis e a consequente superoferta dosmesmos acabam provocando a queda dos preços e a fu-ga de novos investidores. Segundo a autora, o mito dascidades globais já nasce enfraquecido e, por isso, “ga-nha ares de farsa”, apresentando, essas novas centrali-dades produzidas em São Paulo, o caráter de uma mi-ragem, que busca mimetizar os centros de comando econtrole em um país periférico.

Assim, São Paulo, ao reivindicar seu status de “ci-dade global”, tentando ser mais competitiva, refletesua condição de subordinação e dependência do capi-talismo financeirizado. Essa tentativa de readequar acapital paulista às características de uma cidade globalrevela também as conseqüências da implantação dapaisagem globalizada – que representa nada mais que aimportação de modelos dos pólos de negócios dos paí-ses centrais – em uma formação social específica, peri-férica e “arcaica”, destacando, dentre essas conseqüên-cias, o reforço à segregação socioespacial. As estratégiase os instrumentos utilizados para dotar a cidade dessecaráter global nos fazem refletir – e, por que não, rever–, no contexto da relação centro-periferia, sobre as re-

centes formas de atuação no âmbito do planejamentoe da gestão urbana no Brasil. A discussão em torno doinstrumento da Operação Urbana e da ação do Estadonas políticas integram essa reflexão. Como abordadona obra de Fix, a construção dessa face empresarial emundial da cidade de São Paulo se ergueu às custas dasegregação socioespacial financiada pelo Estado e pelosfundos de pensão. Ao que parece, a utilização da par-ceria público-privada como instrumento de planeja-mento urbano, ao ser aplicado na realidade brasileira,vem servindo aos interesses da acumulação – seja pelasua atuação na produção das condições gerais de pro-dução, na forma de ambiente construído, gerandomais-valias fundiárias, seja viabilizando intervençõesassociadas a maior permissividade quanto à aplicaçãode parâmetros urbanísticos, ou financeirizando a pro-dução imobiliária –, em detrimento do caráter redistri-butivo que caracteriza o discurso da política urbanabrasileira mais recente, incluindo-se aí as OperaçõesUrbanas. Cabe refletirmos, a partir do excelente traba-lho de Mariana Fix, sobre até que ponto a roupagemde um planejamento democrático e participativo, naforma em que vem se estruturando no Brasil, não esta-ria, na prática, mascarando estratégias de produção de“cidades empresas”.

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ESTUDOS URBANOSE REGIONAIS

REVISTA BRASILEIRA DE

publicação da associação nacional de pós-graduação

e pesquisa em planejamento urbano e regional

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Os títulos do artigo, capítulos e subcapítulos deverão ser ordenados da seguinte maneira:Título 1: Arial, tamanho 14, normal, negrito.Título 2: Arial, tamanho 12, normal, negrito.Título 3: Arial, tamanho 11, itálico, negrito.

As referências bibliográficas deverão ser colocadas no final do artigo, de acordo com os exemplos abaixo: GODARD, O. “Environnement, modes de coordination et systèmes de légitimité: analyse de la catégorie de patri-

moine naturel”. Revue Economique, Paris, n.2, p.215-42, mars 1990.BENEVOLO, L. História da arquitetura moderna. São Paulo: Perspectiva, 1981.

Se houver até três autores, todos devem ser citados; se mais de três, devem ser citados os coordenadores, orga-nizadores ou editores da obra, por exemplo: SOUZA, J. C. (Ed.). A experiência. São Paulo: Vozes, 1979; ou ainda,a expressão “et al.” (SOUZA, P. S. et al.). Quando houver citações de mesmo autor com a mesma data, a primeiradata deve vir acompanhada da letra “a”, a segunda da letra “b”, e assim por diante. Ex.: 1999a, 1999b etc. Quandonão houver a informação, use as siglas “s.n.”, “s.l.” e “s.d.” para, respectivamente, sine nomine (sem editora), sine lo-co (sem o local de edição) e sine data (sem referência de data), por exemplo: SILVA, S. H. A casa. s.l.: s.n., s.d. Nomais, as referências bibliográficas devem seguir as normas estabelecidas pela Associação Brasileira de Normas Téc-nicas (ABNT). Para citações dentro do texto, será utilizado o sistema autor-data. Ex.: (Harvey, 1983, p.15). A in-dicação de capítulo e/ou volume é opcional. Linhas sublinhadas e palavras em negrito deverão ser evitadas. As cita-ções de terceiros deverão vir entre aspas. Notas e comentários deverão ser reduzidos tanto quanto possível. Quandoindispensáveis, deverão vir em pé de página, em fonte Arial, tamanho 9.

Os editores se reservam o direito de não publicar artigos que, mesmo selecionados, não estejam rigorosamen-te de acordo com estas instruções.

Os trabalhos deverão ser encaminhados para:Geraldo Magela CostaUniversidade Federal de Minas Gerais – Instituto de GeociênciasAv. Antônio Carlos, 6627 – Pampulha31270 901 – Belo Horizonte/MGE-mail: [email protected]

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ESTUDOS URBANOSE REGIONAIS

REVISTA BRASILEIRA DE

publicação da associação nacional de pós-graduação

e pesquisa em planejamento urbano e regional

ANPUR

• Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo / UFBA

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• Faculdade de Arquitetura e Urbanismo / USP

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• Congressos e eventos na área de arquitetura e urbanismoTel.: (11) 3399 [email protected]

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• Instituto de Geociências / UFMG

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UFPE

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