revista brasileira de ciências policias volume iii, nº 2, junho - dezembro

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VOL. 3, N. 2, JUL-DEZ/2012 Publicação da Coordenação Escola Superior de Polícia Academia Nacional de Polícia / Polícia Federal ISSN IMPRESSO 2178-0013 ISSN ELETRÔNICO 2318-6917

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Page 1: Revista Brasileira de Ciências Policias Volume III, nº 2, Junho - Dezembro

VOL. 3, N. 2, JUL-DEZ/2012Artigos Características de Classe em Grafoscopia

Carlos André Xavier Villela

Inteligência Policial: efeitos das distorções no entendimento e na aplicação

Meios de Obtenção de Prova na Fase Preliminar do Processo Criminal: considerações sobre o reconhecimento pessoal no Brasil e na legislação comparada Rafael Francisco França

Felipe Scarpelli de Andrade

A Insegurança Social e Jurídico-Penal Gerada a Partir do Não Cumprimento das Ordens de Prisão

Jerônimo José da Silva Junior e Rubem A. Fockink

O Profiling nos Aeroportos Como Ferramenta de Prevenção ao Terrorismo

Guilherme Damasceno Fonseca

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Revista Brasileira de Ciências PoliciaisPublicação da Coordenação Escola Superior de Polícia

Publicação da Coordenação Escola Superior de PolíciaAcademia Nacional de Polícia / Polícia Federal

ISSN IMPRESSO 2178-0013ISSN ELETRÔNICO 2318-6917

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REVISTA BRASILEIRA DECIÊNCIAS POLICIAIS

VOL. 3, N. 2, Jul-Dez/2012

R BC P

Publicação da Coordenação Escola Superior de Polícia Academia Nacional de Polícia / Polícia Federal

ISSN Impresso 2178-0013ISSN Eletrônico 2318-6917

Page 4: Revista Brasileira de Ciências Policias Volume III, nº 2, Junho - Dezembro

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Revista Brasileira de Ciências PoliciaisRevista da Academia Nacional de Polícia (ANP)

Brasília, v. 3, n. 2, p. 1 - 129 p., jul/dez 2012.ISSN Impresso 2178-0013

ISSN Eletrônico 2318-6917

Copyright © 2010 - ANP

Editor ResponsávelGuilherme Henrique Braga de Miranda

Comissão EditorialGuilherme Henrique Braga de Miranda (Presidente); Sandro Lúcio Dezan; Célio Jacinto dos Santos;

Ivon Jorge da Silva; Eliomar da Silva Pereira; Emerson Silva Barbosa; Gilson Matilde Diana.

Conselho EditorialAdriano Mendes Barbosa (DPF - Brasil); Alexandre Bernardino (UnB - Brasil); Aili Malm (California State University - EUA); Carlos Roberto Bacila (UFPR e DPF - Brasil); Denilson

Feitoza (MPMG - Brasil); Elenice de Souza (Rutgers University - EUA); Guilherme Cunha Werner (DPF - Brasil); Jairo Enrique Suárez Alvarez (CEPEP - Colômbia); José Pedro

Zaccariotto (PCSP - Brasil); Lúcia Pais (ISCPSI - Portugal); Luiz Henrique de A. Dutra (UFSC - Brasil); Manuel Monteiro Guedes Valente (ISCPSI e UAL - Portugal); Michael Towsley

(Griffith University - Austrália); Patrício Tudela Poblete (ASEPIC e Universidade do Chile - Chile); Paulo Rangel (TJRJ e UERJ - Brasil), Spencer Chainey (UCL - Inglaterra).

Ministério da JustiçaMinistro: José Eduardo Cardozo

Departamento de Polícia FederalDiretor-Geral: Leandro Daiello Coimbra

Diretoria de Gestão de PessoalDiretor: Marcos Aurélio Moura

Academia Nacional de PolíciaDiretor: Marco Antonio Ribeiro Coura

Coordenação Escola Superior de PolíciaCoordenador: Sandro Lúcio Dezan

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Revista Brasileira de Ciências Policiais, v. 3, n. 2, jul/dez 2012.

ISSN Impresso 2178-0013 ISSN Eletrônico 2318-6917

R BC P

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Revista Brasileira de Ciências PoliciaisPublicação semestral de doutrina em assuntos policiais, visando a difundir a produção acadêmica dos cursos de pós-graduação da Academia Nacional de Polícia (ANP), a cargo da Coordenação Escola Superior de Polícia (CESP), bem como do programa de pesquisa e outras produções congêneres de origem nacional e estrangeira.

Os conceitos e idéias emitidos em artigos assinados são de inteira responsabilidade dos autores, não representando, necessariamente, a opinião da revista ou da Academia Nacional de Polícia.

Todos os direitos reservadosNos termos da Lei que resguarda os direitos autorais (de acordo com a Lei nº 9.610 de 19 de fevereiro de 1998 - Lei dos Direitos Autorais), será permitida a reprodução parcial dos artigos da revista, sempre que for citada a fonte.

Correspondência EditorialRevista Brasileira de Ciências Policiais

Rodovia DF 001 - Estrada Parque do Contorno, Km 2 - Setor Habitacional Taquari, Lago Norte-DFCEP - 71559-900 - Brasília-DFE-mail: [email protected]

Publicação SemestralTiragem: 1000 exemplares

Projeto Gráfico e Capa: Eliomar da Silva Pereira, Gilson Matilde Diana e Gleydiston RochaEditoração: Gilson Maltilde Diana e Guilherme Henrique Braga de Miranda

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)Biblioteca da Academia Nacional de Polícia

Revista Brasileira de Ciências Policiais / Academia Nacional de Polícia. – v. 3, n. 2 (jan./jun. 2010 - ) – Brasília: Academia Nacional de Polícia, 2012. 127p. ISSN Impresso 2178-0013 / ISSN Eletrônico 2318-6917 Semestral1. Ciência policial – Periódico. 2. Investigação criminal. 3. Investigação policial. Polícia Federal. I. Brasil. Ministério da Justiça. Departamento de Polícia Federal. Academia Nacional de Polícia.

351.741

R 454

Artigos para análise e publicação: Normas ABNT (NBR 6022:2002)

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Copyright © 2010 - ANP

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SumárioArtigosCaracterísticas de Classe em Grafoscopia ������������������������������������������������������������������������������������11

Class Characteristics in Forensic Handwriting Examination

Características de Classe en Grafoscopia Carlos André Xavier Villela

Inteligência Policial: efeitos das distorções no entendimento e na aplicação ��������������������������������37

Police Intelligence: effects of distortions on the understanding and application

Inteligencia de la Policía: efectos de las distorsiones en la comprensión y aplicación

Felipe Scarpelli de Andrade

Meios de Obtenção de Prova na Fase Preliminar Criminal: considerações sobre reconhecimento pessoal no Brasil e na legislação comparada ��������������������������������������������������������������������������������55

Means of Obtaining Evidence in Criminal Preliminary Phase: considerations on personal recognition in Brazil and comparative law

Medios de Obtención de Pruebas en Fase Preliminar Penal: consideraciones sobre reconocimien-to personal en Brasil y derecho comparado

Rafael Francisco França

A insegurança social e jurídico-penal gerada a partir do não cumprimento das ordens judiciais de prisão��������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������91

Insecurity social and legal-criminal generated from non-compliance with court orders imprisonment

La inseguridad social y legal criminal generado por el incumplimiento de las órdenes de detención judicial

Jerônimo J. Silva Júnior e Rubem A. Fockink

O Profiling nos Aeroportos como Ferramenta de Prevenção ao Terrorismo ����������������������������� 107

Profiling in Airports as a Tool to Prevent Terrorism

El Profiling en los Aeropuertos como Herramienta de Prevención al TerrorismoGuilherme Damasceno Fonseca

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7Revista Brasileira de Ciências Policiais

Editorial

Dtd

Apresento, em nome da Escola Superior de Polícia (CESP) da Academia Nacional de Polícia do Departamento de Polícia Federal, o número dois do terceiro volume da Revista Brasileira de Ciências Poli-ciais, referente ao ano de 2012.

Foram selecionados cinco artigos abordando interessantes face-tas das Ciências Policiais como a grafoscopia (subárea da documentos-copia), a inteligência policial, a investigação policial, as ordens judiciais de prisão e a segurança nos aeroportos.

No primeiro artigo, Características de Classe em Grafoscopia, Car-los André Xavier Villela, realiza uma minuciosa revisão conceitual sobre a grafoscopia, buscando respostas para diversos questionamentos funda-mentais e confrontando a literatura especializada internacional recente com as obras clássicas de referência deste importante ramo da documen-toscopia forense. Villela, sem a pretensão de esgotar o assunto, relata a evolução histórica e conceitual do tema tratado, com destaque para a importância atual das características de classe, apontando as vantagens e desvantagens de sua utilização nos exames periciais grafoscópicos.

Felipe Scarpelli de Andrade, em seu Inteligência Policial: efei-tos das distorções no entendimento e na adaptação, analisa a utilização inadequada do termo "inteligência" e suas consequências e desdobra-mentos para a sociedade. O autor destaca que esse equívoco ocorre com frequência nas instituições públicas e privadas relacionadas à segurança pública. Ao longo do texto, fica clara a necessidade de uniformização teórica a ser alcançada por meio da capacitação adequada dos analistas de inteligência. Assim, essa importante atividade policial tornar-se-á conceitualmente mais robusta e eficiente, sendo, portanto, capaz de en-frentar os desafios contemporâneos que se apresentam.

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8 Revista Brasileira de Ciências Policiais

No terceiro artigo, intitulado Meios de Obtenção de Prova na Fase Preliminar Criminal: considerações sobre o reconhecimento pessoal no Brasil e na legislação comparada, Rafael Francisco França discorre so-bre a legislação processual penal brasileira, apontando os institutos uti-lizados na investigação criminal preliminar, comparando o modelo bra-sileiro com modelos de outros países (espanhol, italiano, português). O autor conclui que, apesar de ser de difícil produção, o reconhecimento pessoal é um dos meios disponíveis mais importantes como valor pro-batório, aumentando a ampla defesa e permitindo o contraditório.

No quarto artigo, intitulado A Insegurança Social e Jurídico--Penal Gerada a partir do Não Cumprimento das Ordens Judiciais de Prisão, Jerônimo José da Silva Júnior e Rubem A. Fockink apresentam a revisão de estudos recentes que apontam a existência de milhares de mandados de prisão em aberto no Brasil, contrapondo esse fato com o notório reconhecimento internacional da eficiência na captura de fo-ragidos da Interpol. Os autores discutem as principais causas de impu-nidade, o papel da mídia na captura de foragidos, as novas tendências que estão aparecendo e propõem soluções mitigadoras para o impacto sócio-jurídico negativo da questão levantada.

O quinto artigo deste número da revista é O Profiling nos Aeropor-tos como Ferramenta de Prevenção do Terrorismo, de autoria de Guilherme Damasceno Fonseca. O artigo considera a importância da aviação comer-cial e respectiva estrutura aeroportuária como alvo de ações terroristas. O autor apresenta as técnicas modernas de contraterrorismo israelense, mo-delo de excelência internacional, levantando seus méritos e questionamen-tos, principalmente em relação à garantia dos direitos individuais.

Por fim, gostaria de informar que todos os artigos publicados na Re-vista Brasileira de Ciência Policial e também aqueles publicados na Segu-rança Pública & Cidadania e as todas as monografias de TCC publicadas na série Cadernos ANP já estão disponíveis eletronicamente na internet no Portal de Periódicos Eletrônicos da ANP, no endereço: http://periodicos�dpf�gov�br. Continuaremos imprimindo as publicações, mas seu alcance e projeção ficam ampliados com a disponibilização virtual.

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9Revista Brasileira de Ciências Policiais

Despeço-me, como de costume, desejando uma leitura agradável e proveitosa, lembrando que esta publicação está sempre aberta a apoiar a di-vulgação de trabalhos científicos relacionados ao mundo das ciências poli-ciais. Aguardamos sua submissão!

Guilherme Henrique Braga de Miranda

Editor

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11ISSN 2178-0013

Revista Brasileira de Ciências Policiais

Brasília, v. 3, n. 2, p. 11-36, jul/dez 2012.Recebido em 25 de dezembro de 2012.Aceito em 5 de agosto de 2013. ISSN Eletrônico 2318-6917

Características de Classe em Grafoscopia

Carlos André Xavier VillelaDepartamento de Polícia Federal - Brasil

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RESUMO

Nas principais obras estrangeiras sobre Grafoscopia observa-se que é frequente a utilização da expressão class characteristics. Esta constatação salta aos olhos dos peritos latino-americanos e de todos aqueles que tiveram sua formação a partir de obras consideradas clássicas neste con-tinente, visto que este termo não é nelas utilizado. O presente trabalho pretende contribuir na busca por respostas aos seguintes questionamentos: Como um conceito aparentemente tão importante na Grafoscopia de países estrangeiros foi simplesmente suprimido ou ignorado em obras de extensa aceitação e divulgação no continente sul-americano? Que motivações históri-cas deram ensejo à atual existência de diferentes “escolas” de Grafoscopia? Como o termo “class characteristics” pode ser tratado no Brasil?

PALAVRAS-CHAVE: Documentoscopia, Grafoscopia, sistemas de escrita, características de sistema, características de classe.

1. INTRODUÇÃO

Nas principais obras estrangeiras1 sobre Grafoscopia observa-se que é frequente a utilização da expressão class characteristics. Esta constatação sal-ta aos olhos dos peritos latino-americanos e de todos aqueles que tiveram sua formação a partir de obras consideradas clássicas neste continente2, visto que este termo não é nelas utilizado.

Este contraste remete a inevitáveis questionamentos: como um con-ceito aparentemente tão importante na Grafoscopia de países estrangeiros foi simplesmente suprimido ou ignorado em obras de extensa aceitação e di-vulgação no continente sul-americano? Que motivações históricas deram en-sejo à atual existência de diferentes “escolas” de Grafoscopia? Como o termo class characteristics pode ser tratado no Brasil?

1 Entre estas: HILTON, 1982; HUBER; HEADRICK, 1999; ELLEN, 2006; KELLY; LINDBLOM, 2006.

2 Entre estas: DEL PICCHIA FILHO; DEL PICCHIA, 1976; MENDES, 2009.

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Brasília, v. 3, n. 2, p. 11-36, jul/dez 2012.

Ainda que este trabalho não tenha por objetivo esclarecer em defini-tivo questões históricas como as apresentadas acima, a presente pesquisa faz uma análise crítica do conceito características de classe, buscando sua releitu-ra, a fim de contextualizá-lo ou mesmo harmonizá-lo dentro das diferentes “escolas” grafoscópicas.

2. O CONCEITO “CARACTERÍSTICAS DE CLASSE”

Inicialmente, faz-se necessário esclarecer que o conceito caracterís-ticas de classe não é privativo da Grafoscopia. Há que se considerar que sua apropriação por esta especialidade forense possa ter ocorrido, até mesmo, como uma tentativa de alinhamento com outras áreas da Criminalística.

Além disso, é impossível discutir o conceito características de classe sem abordar seu conceito complementar, características individu-ais, uma vez que ambos são indissociáveis por definição, conforme será demonstrado adiante.

2.1. O conceito “características de classe” nas ciências forenses

Antes de entrar no caso específico da Grafoscopia, é interessante obser-var como outras áreas da Criminalística também se utilizam do conceito carac-terísticas de classe. O emprego deste termo pela Balística Forense3, por exemplo, pode auxiliar na compreensão do significado e da utilidade deste conceito.

Provisoriamente, considerar-se-á característica de classe como uma ca-racterística presente em um objeto capaz de vincular sua origem a determinado grupo de pessoas ou objetos. Esta definição será aprimorada ao longo deste artigo.

Como exemplo, pode-se utilizar o caso de um exame de identificação de arma pelo projétil4, em que foi constatado que determinado projétil foi expelido por um cano dotado de cinco raias. No exemplo escolhido, a referida característica não identifica exatamente de que arma partiu o projétil, porém, reduz imensamente o universo de armas suspeitas, ficando este limitado às ar-

3 Balística Forense é o ramo da Criminalística que compreende o estudo das armas de fogo, de suas munições e suas perícias. Optou-se aqui pela Balística Forense tendo em vista sua sedimentada penetração cultural no ideário popular, graças ao sucesso dos filmes de ação e séries policiais.

4 Para maiores informações, vide: http://en.wikipedia.org/wiki/Ballistic_fingerprinting.

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mas dotadas de cinco raias. O exame pode ir além, e constatar, por exemplo, que as cinco raias têm uma orientação destrógira. A nova característica limita ainda mais o universo de armas suspeitas, sem precisamente identificar de que arma partiu o disparo. As duas características seriam, portanto, exemplos de características de classe.

Também provisoriamente, pode-se definir característica individual como uma característica presente em determinado objeto capaz de vincular sua origem a pessoa ou objeto específicos.

Novamente, prosseguindo no exemplo do exame de identificação de arma pelo projétil, o chamado exame de confronto microbalístico é aquele em que se compara o estriamento (falhas e ranhuras) existente em um projétil questionado com o estriamento existente em projéteis padrões, colhidos de armas apreendidas. Este exame é, muitas vezes, capaz de identificar precisa-mente de que arma partiu o disparo. O estriamento seria, portanto, um exem-plo de característica individual.

Diante destas duas definições preliminares, surge então um primei-ro questionamento: uma característica individual é mais significativa do que uma característica de classe?

A resposta é óbvia: certamente que sim!

Se o perito conseguir, por meio do exame de confronto microbalís-tico, uma característica individual, terá comprovado que o projétil questiona-do partiu de uma específica e conhecida arma de fogo. Caso encerrado, ele poderá inclusive abster-se de citar em seu laudo a série de “características de classe encontradas, as quais passarão a ser absolutamente irrelevantes diante das características individuais relacionadas.

Mas para que servem, então, as tais características de classe?

As características de classe podem ser de grande utilidade nos casos em que, por qualquer motivo, não se consegue encontrar uma ca-racterística individual.

Valendo-se novamente do paralelo com a Balística Forense, tome--se como exemplo a situação em que o projétil questionado encontra-se de tal forma danificado que resta inviável o exame de confronto microbalístico.

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Entretanto, sabe-se por outros meios que o disparo foi realizado, por exemplo, dentro de um recinto onde se encontravam cinco atiradores e que cada um utili-zava uma arma de calibre diferente. Neste caso, se o exame conseguir determinar, pelo menos, qual o calibre do projétil questionado, este dado será suficiente para elucidar o episódio. Em outras palavras, ainda que o calibre da arma seja uma característica de classe, esta informação seria suficiente para o deslinde do caso.

A inexistência ou a não localização por parte da perícia de uma ca-racterística individual é, muitas vezes, frustrante para um promotor de justi-ça, que gostaria de conclusões mais contundentes. Mas deve-se ressaltar que, nestes casos, ainda que a prova material não possa ser vinculada a nenhuma pessoa ou objeto, ela poderá ser importante na construção do caso, ou seja, corroborando os outros tipos de prova carreados durante a investigação, como confissões, reconhecimentos e provas testemunhais.

2.2. A generalização do conceito

De um lado tem-se a palavra “característica”, do outro a palavra “clas-se”. Quanto a estes dois termos, individualmente, não pairam dúvidas sobre seus significados. Mas que relação se pretende estabelecer entre estas duas entidades quando associadas no termo característica de classe?

Uma análise matemática (Teoria dos Conjuntos) deste termo remete a três possíveis entendimentos e, portanto, três diferentes definições, quais sejam:

a) uma característica comum (a membros de um grupo);

b) uma característica exclusiva (de um grupo);

c) uma característica mutuamente exclusiva.

Para melhor compreensão e diferenciação destes conceitos matemá-ticos, tome-se o seguinte universo de casas:

Casa 1 = (cor branca, cor azul, ocupada)

Casa 2 = (cor branca, cor amarela, desocupada)

Casa 3 = (cor branca, três quartos, dois banheiros)

Casa 4 = (cor branca, cor azul, cor vermelha)

Note-se, agora, os seguintes exemplos:

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Exemplo a:

A característica “cor branca” é comum dentro do conjunto formado pelas casas 1 e 2. (Note-se que o conjunto formado pelas casas 1 e 2 não é o único conjunto que contém a característica “cor branca”.)

Exemplo b:

A característica “cor azul” é exclusiva do conjunto formado pelas ca-sas 1 e 4. (Note-se que nenhum outro conjunto, além dele próprio e de seus subconjuntos, contém a característica “cor azul”.)

Exemplo c:

As características “ocupada” e “desocupada” são mutuamente exclusi-vas no universo das casas.

Sob esta ótica, pode-se agora rever o exemplo do projetil com marcas de “cinco raias” apresentado na seção anterior, verificando se a referida carac-terística satisfaz alguma das definições acima propostas:

Pergunta 1: A característica “cinco raias” é uma característica co-mum a um determinado grupo de projetis?

Resposta: Sim, vários projetis disparados apresentam marcas de cinco raias.

Pergunta 2: A característica “cinco raias” é exclusiva de um determi-nado grupo de projetis?

Resposta: Sim, somente um grupo de projetis apresenta marcas de cinco raias (aqueles disparados pelas armas dotadas de cinco raias).

Pergunta 3: A característica “cinco raias” é mutuamente exclusiva?

Resposta: Sim, um projétil disparado pode possuir marcas de qua-tro, cinco, seis, oito ou dezesseis raias, mas apenas uma dentre estas opções.

Como demonstrado, o exemplo do projétil com marcas de cinco raias se encaixa em qualquer definição que se queira para uma característica de classe, revelando-se assim um exemplo clássico. Mas o que dizer de uma característica grafoscópica?

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2.3. A conceituação oficial

Segundo o item 3.3.7.1 da norma ASTM E2290-07a – Standard guide for the examination on handwriting items, tem-se que5 :

• Característicasdeclasse–marcasoupropriedadesqueassociamindivíduos como membros de um grupo (“marks or properties that associate individuals as members of a group”);

• Característicasindividuais–marcasoupropriedadesquediferen-ciam os membros individuais dentro de um grupo (“marks or pro-perties that differentiate the individual members in a group”).

Vê-se, portanto, que a referida norma optou por uma definição bem despretensiosa para o termo característica de classe, algo bem próximo do que foi apresentado na seção anterior como “a) uma característica co-mum (a membros de um grupo)”.

Além disso, observa-se que a referida norma teve a precaução de não definir característica de classe no singular, mas sim características de classe, no plural, como características capazes de associar um indivíduo a um grupo. E, da mesma forma, características individuais (também no plural), como características capazes de diferenciar determinado indiví-duo dentro de um grupo.

A referida precaução nos parece rigorosamente correta, uma vez que é pouco provável que exista em Grafoscopia uma característica que, sozinha, seja suficiente para determinar que certo indivíduo é pertencen-te a determinado grupo, ou tampouco diferenciar um indivíduo dentro de um grupo. Nesse sentido, não uma característica, mas várias caracterís-ticas seriam necessárias para se concluir alguma coisa.

A ausência da expressão característica individual da bibliografia nacional é substituída pelo emprego de termos, como: modismo, maneiris-mo, idiotismo, idiosincrasia, idiografismo ou idiografocinetismo� (DEL PIC-CHIA FILHO; DEL PICCHIA, 1976, p. 107; MENDES, 2010, p. 50). Porém, curiosa é a ausência da expressão característica de classe.

5 Segundo o mesmo item da norma, ambas as características constituem as chamadas características individualizadoras (“individualizing characteristics”).

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Ficam latentes as perguntas: Haveria diferentes “escolas” de Grafosco-pia? Como a nossa escola grafoscópica “associa indivíduos como membros de um grupo”? Ou será que ela não associa? E se não associa, por que não o faz?

3. OUTROS CONCEITOS RELACIONADOS

As características de classe em Grafoscopia seriam as marcas ou pro-priedades que associam indivíduos como membros de um grupo. Mas o que, ainda que em teoria, daria origem a tais marcas ou propriedades comuns a diferentes indivíduos?

O conceito característica de classe pode ser relacionado aos diferentes conceitos de letra. Portanto, será primeiramente necessário definir o que se entende por letra.

3.1. O conceito letra

Uma interessante abordagem para o conceito letra tem sido adotada pela jovem disciplina da Grafonomia6. Segundo o sistema proposto por Ellis, 1979, o conceito de letra pode ser dividido em três níveis:

• 1ºnível:ografema, nível mais abstrato, um conceito de letra sem forma específica;

• 2ºnível:oalógrafo, nível ainda teórico, porém, já relacionado com uma forma específica de letra;

• 3ºnível:ografe, nível prático, a letra efetivamente escrita.

Esta subdivisão pode ser bastante útil para se tentar desvendar o fun-cionamento dos processos de escrita e leitura.

No processo de escrita, os três níveis do conceito letra podem ser contextualizados dentro do funcionamento do corpo humano, compreen-dendo as etapas de concepção, preparação e execução da escrita.

Inicialmente, o processo de escrita começa com a concepção do con-teúdo e a escolha das palavras. É, por assim dizer, a decisão do que se vai

6 Para maiores informações, vide: http://en.wikipedia.org/wiki/Graphonomics.

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escrever. Já nesta etapa, puramente ideativa, são deixadas as primeiras carac-terísticas individualizadoras do sujeito original da comunicação, relacionadas ao que se entende como estilo redacional. Esta seara é estudada em profundi-dade pela disciplina da Linguística Forense7 .

A etapa seguinte é uma preparação para a escrita, quando começa o planejamento de como se irá escrever aquilo que foi definido na etapa an-terior. Nesta fase, a mente humana decompõe as palavras em grafemas, ou seja, em letras ainda desprovidas de formas. São oriundos desta etapa os erros ortográficos que serão mais adiante lançados no papel e poderão, igualmente, contribuir para a identificação do autor.

A etapa subsequente é também uma preparação para a escrita. Nesta fase a mente recorre à sua memória cognitiva para selecionar os alógrafos que serão empregados na redação. Mais uma vez, a forma e a gênese8 desses aló-grafos resultarão em novas oportunidades de identificação de autoria.

Finalmente, a última etapa seria a fase mecânica do processo, a exe-cução da escrita propriamente dita. É nesta fase que são produzidos os grafes, os quais, ao serem executados, agregam uma série de imperfeições às formas idealizadas dos alógrafos, causadas pelas limitações senso-motoras do escri-tor, associadas às mais variadas condicionantes externas. Ou como prefe-rem alguns autores: causas involuntárias normais e acidentais, estas últimas se subdividindo ainda em intrínsecas e extrínsecas, e as causas patológicas. (MENDES, 2010, p. 53-57).

Segundo este modelo, o processo gráfico nasce e tramita dentro dos sistemas nervoso e muscular em diferentes patamares hierarquizados, cada qual encarregado de funções complexas e, ao mesmo tempo, personalíssimas, tendo como produto final o grafe: um amálgama de informações, que pode ser decomposto em suas diferentes dimensões.

O modelo ora proposto deve ser mais representativo das escritas executadas sob elevado nível de atenção, incluindo aquelas produzidas nas etapas iniciais da evolução gráfica (escritas canhestras e escolares), e menos eficiente para descrever as escritas automatizadas e as assinaturas.

7 Para maiores informações, vide: http://en.wikipedia.org/wiki/Forensic_linguistics#Author_identification.

8 Gênese seria a ordem de execução dos traços.

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É hoje sabido que a automatização da escrita nada mais é, a nível neurofisiológico, do que o desenvolvimento de programas motores espe-cíficos, ou seja, conexões sinápticas especificamente estabelecidas para a realização de atividades repetitivas, as quais permitirão um menor esforço consciente por parte do escritor.

O que vem, de certa forma, a confirmar a denominada “Segunda Lei do Grafismo”, proposta por Solange Pelat (apud DEL PICCHIA FILHO; DEL PICCHIA, 1976, p. 56) ainda nos primórdios da Grafoscopia:

Quando se escreve o EU está em ação, mas o sentimento quase inconsciente de que o EU age passa por alternativas contínuas de intensidade e de enfraquecimento� Ele está em seu máximo de in-tensidade onde existe um esforço a fazer, isto é, nos inícios, e em seu mínimo onde o movimento escritural e secundado pelo impulso ad-quirido, isto é, nas extremidades�

Para o processo de leitura, pode-se também tentar uma modelagem.

Pode-se considerar que o conteúdo ideológico do texto manuscrito é o cerne da mensagem, ou ainda, o objeto da comunicação.

Considerando que toda escrita é produzida para ser lida, esta precisa respeitar, ainda que minimamente, as formas convencionadas pelo público a quem se destina. Nesse sentido, o primeiro invólucro que enclausura a mensagem seria, portanto, sua codificação em caracteres convencionais. É nesse nível onde estão predominantemente inseridas as características de classe. Há que se deixar claro que esta convenção de formas pode se apresentar em níveis muito variados: desde os mais simplórios, onde as letras podem ser compreendidas a partir de seus aspectos mais elementares, até os níveis mais complexos, onde as letras são acrescidas de múltiplos elementos estéticos e traços de ligação.

O segundo invólucro da mensagem seria as liberdades admissíveis na codificação, que invariavelmente diminuem a compreensão do texto, mas que, por outro lado, abrem espaço para a personalização, seja ela intencional ou não. Esta personalização constitui substrato importantíssimo para a Grafoscopia, pois é nela que majoritariamente se encontram as características individuais.

Ressalta-se que as características individuais transcendem aos princí-pios da escrita inteligível, ou seja, não é necessário decifrar a mensagem para

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se identificar a autoria. Isto fica evidente no caso das assinaturas, as quais não raramente prescindem do uso das letras.

As características de classe, apesar de extraídas dos grafes produzidos, estão fortemente relacionadas aos alógrafos idealizados, os quais se encon-tram armazenados nas faculdades de memória do escritor. Tais características estão intimamente relacionadas às formas das letras e às respectivas maneiras de execução, apropriadas pelo escritor durante a alfabetização ou, posterior-mente, por meio do convívio familiar, social ou profissional. Isto não signi-fica que estes alógrafos interiorizados também não possuam características individuais, oriundas de apreensões muito particulares ou de degenerações personalíssimas adquiridas ao longo do tempo.

Além da convenção de caracteres, outros recursos que auxiliam o processo de leitura são: a análise do contexto, seja na interpretação de letras, palavras ou mesmo trechos inteiros (o que geralmente ocorre simultanea-mente); a experiência anterior do leitor com os grafismos do escritor (habi-tuação com suas características individuais); e a pregnância9 das letras.

3.2. O conceito “característica de sistema”

Dá-se o nome de sistema a uma combinação de formas e movimen-tos, compondo uma coleção completa e harmoniosa de alógrafos, conforme preconizados por um autor ou publicação. No Brasil são também utilizados os termos alfabeto e abecedário. Um sistema caligráfico seria um sistema obe-diente a uma rigorosa ordenação estética, ao passo que um sistema de escrita seria qualquer sistema desenvolvido com um propósito meramente funcional de comunicação ou registro.

Uma característica de sistema seria, portanto, uma característica típi-ca de um sistema caligráfico ou de escrita. Observa-se, assim, que característi-ca de classe e característica de sistema não são exatamente sinônimos.

Em regra geral, as características de sistemas não são criadas, mas sim adquiridas. Uma significativa parcela das características da escrita de um indiví-duo pode estar relacionada à convenção de formas que lhe foi repassada ainda na fase escolar, daí a importância de se estudar os sistemas caligráficos ou de

9 Pregnância é um princípio da Teoria da Gestalt, que busca quantificar a afinidade entre determinada forma e o cérebro humano.

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escrita utilizados para alfabetização. Há também que se considerar a existência de outras formas importantes de apropriação, tais como a tentativa de imitar as letras dos pais ou de um irmão, as letras tradicionalmente utilizadas por deter-minados segmentos profissionais, ou mesmo a simples tentativa de se copiar as letras exibidas em um outdoor, em uma vitrine ou mesmo da televisão.

No campo da tipografia, uma coleção completa e harmonio-sa de letras, criada por determinado designer, recebe o nome de fonte. Ainda que as fontes destinem-se prioritariamente a alguma modalidade mecanizada de impressão, nada impede que estas sejam incorporadas pelos indivíduos para utilização como quirografia, confundindo-se, portanto, com os tradicionais sistemas de escrita. Isto sem falar de mais recentes adventos como as fontes computacionais e a própria Internet, que têm permitido a criação em profusão e a difusão ilimitada de um número cada vez maior de fontes.

Sob este enfoque, o ambiente contemporâneo amplia enorme-mente o conceito de característica de sistema e, praticamente, derruba por terra qualquer tentativa de se relacionar inequivocamente formas de letras a grupos de pessoas.

3.3. O conceito “característica individual”

Como visto na seção 2.3, a norma ASTM E2290-07a define carac-terísticas individuais, no plural, como “características capazes de diferenciar determinado indivíduo dentro de um grupo”. Viu-se que a norma foi cautelosa em não adotar uma definição no singular, pois é pouco provável que exista em Grafoscopia uma característica que, sozinha, seja suficiente para diferen-ciar um indivíduo dentro de um grupo.

Acrescenta-se, agora, que a norma foi muito prudente ao adotar um conceito de identificação relativa (identificação dentro de um grupo de indi-víduos) e não de identificação absoluta (identificação dentro do universo de indivíduos). Ressalte-se que não se está aqui afirmando que não exista uma característica absolutamente exclusiva de determinado cidadão no mundo. Mas há que se admitir que este é um tipo de aferição impossível de se realizar na prática, já que, para tanto, seria necessário comparar-se os grafismos de todas as pessoas que habitaram a face da Terra.

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Como também visto, na seção 3.1, as características individuais esta-riam intimamente relacionadas ao segundo invólucro da mensagem escrita, ou seja, dentro da margem de liberdade admissível na codificação. Sob esta ótica, as características de classe estariam para o usual e o previsível, ao passo que as características individuais estariam para o particular e o inusitado.

Mas o que dizer, então, do caso das características raras, diferentes de qualquer sistema de escrita, encontráveis em punhos de diferentes pessoas, situadas em diferentes lugares do mundo? Como se poderia classificar estas características resultantes de pura coincidência?

Poder-se-ia, em princípio, classificá-las como características individu-ais, haja vista que se enquadrariam no conceito adotado pela norma. Por ou-tro lado, estas também poderiam ser vistas como características de classe, uma vez que, ainda que por coincidência, seriam peculiares a um grupo de pessoas (ainda que estas nunca tenham se conhecido nem nunca tenham tido contato direto ou indireto). Vê-se, portanto, como pode ser ambígua a classificação.

Entra-se, neste momento, na seara das opiniões. Este autor entende que estas características e todas aquelas que extrapolam as chamadas carac-terísticas de sistema deveriam ser consideradas características individuais. Em outras palavras, acredita-se que seria mais proveitoso, no que tange à forma das letras, convencionar-se características de classe e características de sistema como sinônimos.

Por último, ainda no que se refere às características individuais, res-ta consignar a extraordinária importância dos traços de ligação (connection strokes). Isto porque a maioria das cartilhas de alfabetização dedicam pouca ou nenhuma atenção aos traços de ligação que devem ser utilizados nas escritas cursivas, o que torna tais elementos características individuais por natureza.

Muitas cartilhas dedicam-se ao ensino das letras justapostas (desco-nectadas), típicas da escrita script ou das letras de fôrma. Somente algumas são voltadas especificamente ao ensino das escritas cursivas. Finalmente, den-tre estas, pouquíssimas são aquelas que trazem alguma orientação de como devam ocorrer os traços de ligação.

Acrescenta-se a esta escassez de padronização as diferentes possíveis combinações de letras dentro das palavras. Sabe-se que alguns alógrafos têm ponto de finalização elevado em diferentes níveis em relação à linha de pauta,

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o que permite múltiplas opções de ligação com a letra seguinte, envolvendo maior ou menor esforço por parte do punho escriturador e, consequente-mente, maior ou menor complexidade/raridade do gesto gráfico.

Observa-se, portanto, como são importantes os traços de ligação e como pode ficar prejudicado um exame grafoscópico quando da ausência desses elementos fortemente discriminadores da escrita.

3.4. Primeiras conclusões

Concluída essa discussão introdutória, pode-se tentar agora verifi-car a aplicabilidade dos requisitos desejáveis a uma “característica de classe”, desta vez em aplicação à Grafoscopia, nos mesmos moldes do que foi feito na seção 2.2 deste trabalho.

Considere-se, portanto, a seguinte característica de sistema10: a letra “O” maiúscula, em angulação vertical (sem inclinação), com fechamento do círculo em traço duplo ao longo de toda a lateral esquerda (vide Figura 1).

Figura 1 – Característica de sistema.

Como informado no próprio enunciado do problema, tal particula-ridade é uma característica de sistema. Observe-se, a seguir, como fica a mesma análise realizada na seção 2.2, desta vez, porém, visando à identificação de um

10 Letra “O” preconizada pela obra “Nova Cartilha Analítico-Sintética”, de Mariano de Oliveira, Editora Cia. Melhoramentos, São Paulo, edição de 1953.

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3.4. Primeiras conclusões

Concluída essa discussão introdutória, pode-se tentar agora verificar a aplicabilidade

dos requisitos desejáveis a uma “característica de classe”, desta vez em aplicação à

Grafoscopia, nos mesmos moldes do que foi feito na seção 2.2 deste trabalho.

Considere-se, portanto, a seguinte característica de sistema10: a letra “O” maiúscula,

em angulação vertical (sem inclinação), com fechamento do círculo em traço duplo ao longo

de toda a lateral esquerda (vide Figura 1).

Figura 1 – Característica de sistema.

Como informado no próprio enunciado do problema, tal particularidade é uma

característica de sistema. Observe-se, a seguir, como fica a mesma análise realizada na seção

2.2, desta vez, porém, visando à identificação de um grupo de escritores:

Pergunta 1: A característica da Figura 1 é uma característica comum a um

determinado grupo de escritores?

Resposta: Sim. Em sendo esta uma característica de sistema, é razoável

admitir-se que um grupo de escritores tenha se valido, em certo momento,

desta característica.

Pergunta 2: A característica da Figura 1 é exclusiva de um determinado grupo

de escritores?

10 Letra “O” preconizada pela obra “Nova Cartilha Analítico-Sintética”, de Mariano de Oliveira, Editora Cia. Melhoramentos, São Paulo, edição de 1953.

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grupo de escritores:

Pergunta 1: A característica da Figura 1 é uma característica comum a um determinado grupo de escritores?

Resposta: Sim. Em sendo esta uma característica de sistema, é razoá-vel admitir-se que um grupo de escritores tenha se valido, em certo momen-to, desta característica.

Pergunta 2: A característica da Figura 1 é exclusiva de um determi-nado grupo de escritores?

Resposta: Impossível afirmar. Como já informado no enunciado do problema, tal particularidade é uma característica de sistema. Entretanto, outros sistemas podem ter feito uso desta mesma característica. Para se res-ponder a esta pergunta seria necessário conhecer todos os sistemas de escrita já utilizados no planeta.

Pergunta 3: A característica da Figura 1 é mutuamente exclusiva?

Resposta: Certamente que não. Nenhuma característica grafoscópica é mutuamente exclusiva. O mesmo grupo de escritores que usou esta forma para a letra “O” seria capaz de produzir a mesma letra sob diferentes formas.

Deste exercício conclui-se, portanto, que as características de clas-se (ou de sistema) em Grafoscopia estão longe do poder de discriminação das características de classe de outras especialidades forenses. Alinha-se com este entendimento a definição de características de classe constante na norma ASTM E2290-07a.

No exemplo da Figura 1, foi de início informado que a característica em questão se tratava de uma característica de classe (ou de sistema). Mas o que teria ocorrido se esta premissa não tivesse sido fornecida? Seria possível que o examinador tivesse, por equivoco, considerado esta uma característica individual? Haveria neste caso algum prejuízo ao exame grafoscópico?

É difícil responder a estas perguntas. É certo que haveria um prejuízo ao exame, uma vez que seria atribuído um peso (significância) equivocado a esta singularidade. Entretanto, até que ponto esta falha pontual teria algum reflexo na conclusão final do exame?

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Por último, é importante frisar que, apesar de seguidamente rela-cionadas às características de sistema, as características de classe constituem conceito bem mais abrangente, podendo compreender aspectos muito mais amplos da escrita além do que a mera forma das letras. Nesse sentido, pode-riam ser também consideradas características de classe quaisquer característi-cas relacionadas ao posicionamento do texto sobre o papel ou à utilização de numerais, símbolos monetários, abreviações, embelezamentos etc.

Huber e Headrick (1999, p. 90) fazem referência a 21 características que, segundo eles, podem ser utilizadas como elementos discriminadores da escrita. Em princípio, qualquer uma dessas características estaria subordinada à classificação “característica de classe/característica individual”.

4. A ATUAL IMPORTÂNCIA DAS CARACTERÍSTICAS DE CLASSE

Acreditar que exista uma correlação entre características de classe e sistemas de escrita significa acreditar que características comuns podem ser observadas, mesmo após vários anos, na escrita de membros de deter-minado grupo de escritores, o qual teve acesso, em algum momento, a um mesmo sistema de escrita.

Esta é uma consideração bem plausível, que pode ser inclusive de-monstrada, bastando para isto observar-se as escritas caligráficas. Esta per-cepção é bem antiga, tendo sido expressa por Osborn (1929, p. 168) já em 1929: “Apesar de todas as mudanças por que passa a escrita de uma pessoa, o sistema original irá de alguma forma visivelmente sobressair�” (tradução livre).

Por outro lado, acreditar que sistemas de escritas possam apresentar determinadas características exclusivas é uma consideração de demonstração muito complexa, para não dizer impossível.

Dentre os diversos estudos já realizados até o momento (MIL-LER, 1972, p. 43; HUBER; HEADRICK, 1999, p. 176), é praticamente consensual que os diferentes sistemas de escrita em uso no mundo sejam atualmente tantos e compartilhem tantas formas idênticas para algumas letras (alguns sistemas apresentam, ainda, mais de uma forma para de-terminadas letras – as chamadas formas alternativas) que torna pratica-

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mente impossível sua inequívoca identificação, ainda que se possua um conjunto completo de alógrafos.

Observe-se o que Huber e Headrick (1999, p. 27) dizem a respeito:

Em nossa coleção de material, 76 diferentes sistemas ou editores de sistemas foram descritos ou referenciados� Não foram obtidas amos-tras de todos eles, mas, no grupo que observamos, as diferenças en-tre muitos sistemas não eram marcantes� O número de pessoas que pode ter sido exposto a este material ou ensinado por cada um dos sistemas é desconhecido e impossível de determinar� Pode-se resumir que a possibilidade de identificação, hoje, do sistema específico por trás da escrita de cada indivíduo norte-americano é extremamente remota, senão impossível� (tradução livre)�

Além do elevado número de sistemas de escrita atualmente existente, há que se ressaltar que a rigorosa preocupação caligráfica, inerente ao ensino da escrita na época de Osborn, 1929, foi nas décadas seguintes enormemente reduzida, senão completamente abolida.

No Brasil não foi diferente. O abandono do formalismo caligráfico no ambiente escolar é retratado em detalhes por Vidal, 1998. Foi a partir da década de 1930 que discussões escolanovistas sobre o ensino da escrita introduziram novas preocupações aos educadores brasileiros e a percepção da escrita como uma unidade de linguagem:

Pouco a pouco, percebeu-se que o ensino da caligrafia, propriamente dita, não tinha mais sentido, e que o ensino a fazer-se seria o da escrita, instrumento real de uma unidade mais complexa, que é a linguagem� Lançaram-se, então, a campo os investigadores da escola renovada� (���) De tão fecundo movimento, restou uma compreen-são inteiramente diversa do problema, o que viria a concorrer para o aperfeiçoamento da disciplina (���)� (grifos do autor)� (LOUREN-ÇO FILHO, 1936, pp� 4-5)�

Huber e Headrick (1999, p. 43) também vivenciaram na América do Norte o progressivo abandono dos modelos caligráfico e a crescente liberali-dade permitida na escrita escolar, a ponto daqueles autores se tornarem bas-tantes céticos com relação à presente utilidade das características de classe:

Práticas mais recentes têm levado a uma maior duplicidade nos sistemas de escrita pelo uso de formas opcionais, resultando em maior dificuldade em se diferenciar um sistema do outro� Além disso, as liberdades permitidas em cada sistema resultam em for-

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mas de letras que podem ser lidas, mas não identificáveis com relação à origem do sistema em particular� Consequentemente, o papel das características de classe no contexto da Grafoscopia, considerando as diferenças entre as formas prescritas e exibidas pelos diferentes sistemas, foi significativamente reduzido senão completamente anulado� (tradução livre)�

Vê-se que a partir do progressivo banimento da caligrafia do univer-so escolar, fenômeno este que ocorreu no Brasil a partir da década de 30 do século passado, passou a ser também progressivo o descrédito sobre o poten-cial de utilização das características de classe em Grafoscopia.

Pode-se dizer que este fenômeno obrigou a uma revisão da teoria grafoscópica. Huber e Headrick (1999, p. 43) referem-se ao antigo mode-lo como a “teoria ortodoxa” ou “teoria classe/individual”, segundo a qual se acreditava que era essencial ao perito grafoscópico saber diferenciar uma ca-racterística de classe de uma característica individual.

Mas por que se pensava assim?

O exame grafoscópico é uma análise de comparações. Quanto maior o número de elementos de confronto, maiores serão as possibili-dades de se comprovar que duas escritas partiram de um mesmo punho. Em sentido inverso, quanto menor o número de elementos de confronto, menores serão as possibilidades de se concluir alguma coisa. Nunca exis-tirá um consenso no que se refere ao número mínimo de convergências necessário para uma identificação positiva, até porque de pouco servi-rá esse número se não for considerada a raridade de cada convergência. Determinar-se a raridade de uma convergência é, a rigor, um problema estatístico. Em uma abordagem essencialmente matemática, para cada característica convergente deveria ser atribuído um valor inversamente proporcional à sua frequência de ocorrência dentro de um determinado universo populacional. (VILLELA, 2009, p. 7).

Não há dúvida que esta é uma descrição resumida do exame grafoscó-pico. Esta abordagem estatística só é válida quando se está comparando duas escritas espontâneas, como anotações em cadernos ou cartas anônimas, por exemplo. É óbvio que em uma escrita imitada o falsário se empenhará em re-produzir todos os elementos característicos da escrita original, independente de sua raridade, o que torna sem sentido a abordagem meramente estatística.

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Mas como se poderia determinar, ou pelo menos estimar, a raridade de uma característica?

A correta diferenciação de uma característica de classe (menor rari-dade) de uma característica individual (maior raridade) já seria um grande passo nesse caminho. É nesse sentido que renomados autores defenderam por muito tempo a teoria de que seria essencial ao perito grafoscópico possuir a capacidade de discernir características individuais e características de classe.

Muehlberger, 1989, é um dos autores que defenderam esta teoria:

A habilidade em reconhecer e diferenciar características comuns a um grupo de escritores daquelas específicas de um indivíduo é de suma importância ao examinador de documentos questionados� (tradução livre)�

Alguns autores vão além e afirmam que somente por meio do treinamento e da experiência pode-se alcançar a tão necessária capacidade de diferenciação.

Esta visão perdurou por muitos anos e, na verdade, não se pode afir-mar que tenha sido completamente abolida. Entretanto, um artigo de grande repercussão veio a abalar este entendimento. Este foi o “Contemporary Issues in Forensic Handwriting Examination: A Discussion of Key Issues in the Wake of the Starzecpyzel Decision” de Bryan Found e Doug Rogers. (FOUND; ROGERS, 1995).

Neste artigo seus autores questionam a “teoria ortodoxa”, segundo a qual a validade da opinião do perito baseia-se em sua capacidade de discer-nimento das características de classe e características individuais. Eles con-cordam com a essência da teoria, a qual se assenta sobre três conceitos: (1) uma forma prescrita em uma cartilha, (2) uma divergência desta forma, e (3) uma valoração da singularidade desta divergência derivada da experiência do perito. Porém, acreditam que ela seja pouco aplicável nos dias de hoje, ex-ceto em casos isolados. E vão mais longe, apresentando um surpreendente resultado experimental, onde restou determinado que não existe correlação perceptível entre experiência profissional e um maior número de acertos no exame grafoscópico.

A partir de então, a “teoria ortodoxa” teve sua importância relativiza-da, em favor de uma nova teoria: a “teoria da complexidade”. Nesse sentido, Huber e Headrick (1999, p. 35) recordam que o principal atributo de uma

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similaridade (ou de uma diferença) não é sua raridade, mas sim sua signifi-cância. Segundo eles, o conceito de significância seria mais amplo, uma vez que o abarcaria, além da própria raridade, também a fluência e complexida-de (fluency and intricacy) do gesto gráfico. A complexidade segundo estes autores poderia, assim, ser valorada a partir de cinco características a serem observadas no grafismo: o comprimento da linha, o número de pronunciadas mudanças de direção da linha, o número de superposições, a continuidade do movimento da caneta e a repetição de bem definidos e complexos movimen-tos da caneta.

Pela nova teoria, torna-se secundária a necessidade de diferenciação entre características individuais e características de classe. Mas não se deve daí concluir que não servem para nada as características de classe.

Os próprios Huber e Headrick (1999, p. 44) são cautelosos ao opi-nar sobre a atual importância das características de classe:

Nosso interesse nas características de classe é, todavia, cautelar� Nosso cuidado é de não superestimar nem subestimar o valor destes elementos� Apesar da falta de informação precisa e a conseqüente ne-cessidade de julgar conservativamente um elemento, é difícil perce-ber até que ponto um erro no reconhecimento de uma determinada característica de classe iria significativamente alterar o resultado� (tradução livre)�

Até que ponto se deve insistir com as características de classe é uma questão a ser estudada. Como visto, as características de classe da Grafosco-pia não são capazes de relacionar inequivocamente formas gráficas a grupos de pessoas, o que seria bastante útil numa investigação policial. Mas, por ou-tro lado, também não pode se concluir que sejam elas completamente des-providas de utilidade. Em resumo, sua atual utilidade, ainda que reduzida nas últimas décadas, não pode ser totalmente desconsiderada.

Provas disso não faltam. A norma ASTM E2388-05 – Standard Gui-de for Minimum Training Requirements for Forensic Document Examiners, re-visada em 2005, relaciona, dentre as competências consideradas essenciais aos examinadores forenses de documentos, o domínio sobre os seguintes assuntos:

• Item7.8.4–Sistemasdeescrita;

• Item7.8.6–Característicasindividualizadoras–individuaise de classe.

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Também admitindo utilidade para as características de classe, o European Network of Forensic Handwriting Examiners, grupo de peritos grafoscópicos integrante do European Network of Forensic Science Institu-tes, rede que integra os institutos forenses europeus, mantém uma base de dados internacional contendo diferentes exemplares de escrita e cartilhas escolares dos diversos países do mundo.

O perito holandês Wil Fagel, do Netherlands Forensic Institute justi-fica da seguinte forma a iniciativa (apud VILLELA, 2006, p. 6):

Nos últimos 30 anos tem havido um significativo aumento na mobi-lidade e na comunicação dentro da Europa� Os fatores que têm con-tribuído para esse aumento são o relaxamento das fronteiras entre os países que constituem a União Européia, a queda da Cortina de Ferro, os novos países que estão ingressando na comunidade euro-péia e o crescente fluxo de imigrantes e refugiados oriundos de fora de nosso continente� Devido ao uso de diferentes cartilhas e métodos de ensino, as escritas podem apresentar-se bastante diferentes entre as populações, mesmo entre países que utilizam o mesmo alfabeto� Ao longo dos anos, temos sido solicitados a, cada vez mais, confron-tar inusitados tipos de escrita� Para entender a importância de uma específica particularidade gráfica de uma pessoa faz-se necessário determinar quão rara ela é dentro dos padrões de escrita do país de onde provém essa pessoa� O que parece ser um elemento caracterís-tico muito raro em determinado país pode ser algo bastante comum em outro� Para ficar mais a par dessas “peculiaridades nacionais de escrita” começamos a colecionar cartilhas de alfabetização e amos-tras de escrita de todo o mundo� O banco de dados internacional de padrões e cartilhas pode ser também útil para se descobrir de que país é oriundo o autor de uma determinada carta anônima, nos ca-sos em que não houver suspeitos� Além disso, as cartilhas mudam ao longo dos anos devido aos novos tipos de instrumentos de escrita e aos dinâmicos conceitos de qual seria o melhor método de ensino� As-sim sendo, diferenças entre cartilhas produzidas ao longo do tempo podem também a ajudar na estimativa de idade de um autor desco-nhecido� O banco de cartilhas começou com imagens digitalizadas a partir das coleções originalmente em papel do NFI e do BKA� Novas cartilhas, fornecidas pelos membros do ENFHEx e outros colegas, foram acrescentadas a esse banco de dados ao longo dos anos�

Como visto, apesar da polêmica, vários autores têm-se dedicado à pesquisa de padrões genéricos de escrita, utilizados por diferentes populações e épocas. Busca-se, por meio desses levantamentos, identificar e catalogar os diversos alógrafos empregados, tanto hoje como no passado, pelos diferentes

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alfabetos do mundo. Especial atenção tem sido dada aos sistemas caligráficos e de escrita historicamente adotados pelas cartilhas escolares, oferecidos aos iniciantes como exemplos de escritas perfeitas.

Dentre os objetivo desses levantamentos pode-se relacionar:

• Utilizaressespadrõesgenéricosdeescrita,completamentedespro-vidos de individualidade, como um “branco de fundo”, para o que deles divergir possa ser considerada uma característica individual, de maior ou menor frequência de ocorrência (“teoria ortodoxa”, ainda aplicável às escritas espontâneas dotadas de grafes).

• Estabelecercorrelaçõesentreépocaseformasgráficas,quepossamfornecer indícios sobre a idade de um autor ou sobre a época de produção de um documento.

• Oferecermaioressubsídiosparaoexamedemateriaisgráficosen-volvendo estrangeiros.

• Contribuirparaumaformaçãoabrangenteehistoricamentecon-textualizada do perito em Grafoscopia.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Chegando-se à parte final deste trabalho, pode-se tentar retomar os questionamentos que motivaram esta pesquisa.

Como um conceito aparentemente tão importante na Grafoscopia de países estrangeiros (características de classe) foi suprimido ou ignorado em obras de extensa aceitação e divulgação no continente sul-americano?

O presente trabalho não tem a pretensão de emitir uma resposta definitiva a esta questão. Muitos outros trabalhos seriam necessários para se chegar a uma conclusão confiável. Pode-se, todavia, relacionar algumas hipó-teses para tentar explicar a ausência destes termos na bibliografia nacional:

Escolas de Grafoscopia – É razoável admitir-se que fatores históricos tenham determinado a formação de diferentes “escolas” de Grafoscopia no mundo. Del Picchia Filho (1976, p. 15) descreve com detalhes como se deu a iniciação dos primeiros peritos brasileiros nesta área, por ocasião da vinda do Prof. Reiss (Lausanne, Suíça) a São Paulo, em 1913, a fim de ministrar cur-

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so sobre polícia científica neste país. Ainda que hoje os diferentes países do mundo sigam um mesmo método de exame, ou pelo menos, métodos muito parecidos, percebe-se que se está ainda longe de um alinhamento perfeito de terminologias e conceitos.

Sistemas caligráficos – Deve-se considerar também que a arte da ca-ligrafia teve pouca florescência no Brasil, quando comparada ao desenvol-vimento que teve em outros países. É razoável concluir-se, portanto, que a caligrafia deve ter sido menos exigida no universo escolar brasileiro do que nesses outros países. Certo é que seu abandono no ambiente escolar se deu precocemente (já década de 1930), graças a ação de influentes educadores como Lourenço Filho, 1936. Considerando que o pioneiro “Laboratório de Polícia Técnica de São Paulo” foi somente inaugurado em 1925 (DEL PIC-CHIA FILHO; DEL PICCHIA, 1976, p. 17), observa-se que a Grafosco-pia brasileira nasceu em época muito próxima do abandono da disciplina de caligrafia nas escolas. Mesmo no exterior, as características de classe vêm sendo consideradas cada dia com maiores ressalvas; isto porque o declínio da caligrafia é um fenômeno que ocorre em todos os países.

Sistemas de escrita – Acrescente-se a isto o pequeno número de sis-temas de escrita introduzidos no Brasil. Tal como na maioria dos países latino americanos, foram pouco numerosos os sistemas de escrita utilizados para alfabetização, quando comparados a países da Europa ou aos Estados Unidos, por exemplo. Esta “pobreza” de sistemas de escritas pode ter sido um fator dificultante ao trabalho dos peritos em Grafoscopia, já que menos sistemas de escrita significam, em última instância, menos características discriminadoras entre as escritas.

Escritas de estrangeiros – Finalmente, fatores históricos determina-ram até hoje pequeno afluxo de estrangeiros ao nosso país após a década de 1930 (pelo menos estrangeiros envolvidos em ações cíveis ou criminais), principalmente de países de fora da América do Sul, também quando com-parado a movimentos populacionais ocorridos em outros países. Isto pode ter passado aos peritos brasileiros a ideia de que seria desnecessário, ou pouco proveitoso, conhecer-se os diferentes sistemas de escrita em uso no mundo.

Haveria diferentes “escolas” de Grafoscopia? Como a nossa “escola” associa indivíduos de um grupo? Ou será que não associa? E se não associa, por que não o faz?

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É razoável admitir-se que fatores históricos tenham determinado a formação de diferentes “escolas” de Grafoscopia no mundo. Prova disso seria a própria desconsideração das características de classe por parte da biblio-grafia nacional. Tal desconsideração pode ser, talvez, justificada por um ou mais dos motivos relacionados no item anterior. Maiores estudos históricos seriam necessários para este esclarecimento. Mas ainda assim restariam sem respostas as questões pragmáticas: Como a nossa “escola” associa indivíduos de um grupo? Ou será que não associa? E se não associa, por que não o faz?

Novamente, não se tem aqui a pretensão de resolver a questão. Mas pode-se, ainda assim, conjecturar e recordar que a “escola” ou doutrina im-plantada no Brasil é aquela que, diferentemente de outras, prescreve a utili-zação de conclusões categóricas nos exames. Pode-se imaginar, agora, como seria difícil associar indivíduos de um grupo neste ambiente, considerando o pequeno número de sistemas caligráficos ou de escrita em uso no país. Muito provavelmente, qualquer associação que se conseguisse nesse sen-tido seria pouco categórica, algo do tipo: “os elementos apontam para...” ou “provavelmente o autor é de origem...”. Sob este enfoque, não é de se surpreender que a mesma “escola” que abjura as conclusões probabilísticas rejeite qualquer associação especulativa que tente vincular uma caracterís-tica gráfica a um grupo de indivíduos.

A consideração das características de classe está fadada ao desuso? Qual a atual importância das características de classe?

A “teoria ortodoxa”, segundo a qual a validade da opinião do perito baseia--se em sua capacidade de discernimento entre características de classe e caracterís-ticas individuais, teve sua importância relativizada, em favor de uma nova teoria: a “teoria da complexidade”. Consequentemente, torna-se cada vez menos importan-te a diferenciação entre características individuais e características de classe. Mas não se deve daí concluir que não servem para nada as características de classe.

O exame grafoscópico será sempre um exame probabilístico. Ainda que atualmente não se consiga objetivamente precisar a raridade (ou signi-ficância) de cada característica, o perito trabalha, ainda que inconsciente-mente, com estimativas para estes valores. Nesse sentido, um maior conhe-cimento sobre características de classe só pode trazer benefícios ao exame. Além disso, pode-se cometer erros grosseiros quando do exame de materiais gráficos envolvendo estrangeiros.

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Viu-se também que, como apoio à investigação policial e ao processo judicial, análises, ainda que com alto grau de especulação, podem ser úteis para se estimar a origem ou a idade de um escritor.

Finalmente, acredita-se que o estudo das características de classe pos-sa contribuir para uma formação abrangente e historicamente contextualiza-da do perito em Grafoscopia.

Carlos André Xavier Villela

Engenheiro Civil, Mestre em Engenharia Civil. Especialista em Documentoscopia pela Escola Superior de Polícia (CESP/ANP/DPF). Perito Criminal Federal. Professor de Documen-

toscopia na Academia Nacional de Polícia do Departamento de Polícia Federal (ANP/DPF) .

E-mail: [email protected]

ABSTRACT

The expression “class characteristics” is frequently used in the most important foreign works on forensic handwriting examination. This fact is somehow surprising for Latin American examiners and for those whose formation was based upon some works which have been considered classics in this continent, since they don’t use this expression. The present work aims at contributing to the search for answers to the following questions: How an apparently so important concept in foreign countries’ forensic handwriting examination was simply suppressed or even ignored in some bibli-ographies which have been widely accepted and disseminated in South America? What historical motivation gave origin to present-day situation with the existence of different “schools” of forensic handwriting examination? How the term “class characteristics” can be treated in Brazil?

KEYWORDS: Forensic document examination, Forensic handwriting examination, writing systems, system characteristics, class characteristics.

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Brasília, v. 3, n. 2, p. 37-54, jul/dez 2012.Recebido em 15 de junho de 2013.Aceito em 28 de agosto de 2013. ISSN Eletrônico 2318-6917

Inteligência policial: efeitos das distorções no entendimento e na aplicação

Felipe Scarpelli de AndradeDepartamento de Polícia Federal - Brasil

Dud

RESUMO

O presente trabalho objetiva analisar o uso inadequado do termo “Inteligência” nas instituições públicas e privadas, sobretudo aquelas relacionadas à segurança pública, bem como demonstrar as consequências e desdobramentos que essa utilização indevida acarreta para a sociedade. Ao destacar o aspecto metodológico da atividade de inteligência e traçar aproximações e diferenças com a investigação e produção do conhecimento científico, procura-se desenvolver ideias que delimitam a atividade de inteligência em contraponto as demais atividades de assessoramento, fiscalização e a própria investigação. Nesse sentido, analisa-se, a partir de conceitos e legislação, a inviabilidade do uso de algumas técnicas de investigação, notadamente aquelas dependentes de autorização judicial, na atividade de Inteligência. Nesse sentido, expõe-se a necessidade dos organismos de inteligência de se apropriarem efetivamente de técnicas e processos de trabalho da Inteligência, concluindo ao identificar a oportunidade de aprendizado ao delimitarmos seu conceito para, então, evoluirmos sua teoria, com contribuição para a fundamentação e fortaleci-mento dos estudos sobre a atividade de Inteligência.

PALAVRAS-CHAVE: Segurança pública. Investigação. Inteligência. Metodologia da Pro-dução do Conhecimento. Conceitos fundamentais.

1.INTRODUÇÃO

Este trabalho tem como objetivo discutir, através de análises, o uso do termo “Inteligência”, que tem se tornado, cada vez mais, objeto de grande atenção por parte das instituições públicas e privadas. Ocorre que sua utiliza-ção desvirtuada acarreta uma série de consequências, pois tem se caracteriza-do pela falta de abordagem de questões fundamentais quanto a sua finalidade e conceitos basilares.

Nesse sentido, na medida em que se procura delimitar o conceito e a atividade de Inteligência, faz-se necessário compreender suas origens para então demonstrar sua natureza específica e seus principais aspectos.

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A partir do século XVI, com as relações diplomáticas surgindo na Europa, juntamente com as grandes navegações e com o surgimen-to de novos métodos de obtenção e transmissão de informações, como a fotografia, código Morse, telégrafo, oficinas de impressão, comunicação criptográfica, além do grande fluxo de informações que transitavam, os organismos de inteligência, então incipientes, viram-se obrigados a se es-pecializar e a trabalhar de forma mais racional e metódica.

Segundo Cepik (2003), estes métodos de obtenção de informa-ções tornaram-se valiosos instrumentos para a expansão do conhecimen-to visando à proteção do Estado soberano frente às ameaças originárias do exterior, momento em que surgiu, conceitualmente, a Inteligência Es-tratégica, ou os serviços de inteligência, desenvolvidos para o exercício de funções coercitivas que diziam respeito a questões de guerra, diplomacia e ao policiamento e manutenção da ordem pública interna.

Entretanto, quando tratamos da metodologia da produção do conhe-cimento de Inteligência, foi somente a partir de meados da década de 40 que surgiram os primeiros conceitos, ou pelo menos as primeiras bases teóricas.

Importante destacar o momento singular da história da humanidade em que isso ocorreu. Foi exatamente no contexto da Segunda Guerra Mun-dial e da Guerra Fria que doutrinadores clássicos, como Sherman Kent, Wa-shington Platt e Harry Hanson, estudaram e descreveram a necessidade de se produzir conhecimentos de Inteligência voltados, sobretudo, para apoiar as relações externas, na guerra e também na paz.

Neste ponto, destaca-se que a Inteligência como atividade es-pecializada teve seu foco voltado para o Estado, constituindo-se num elemento importante para o Poder Nacional e criada para subsidiar ges-tores de alto escalão com conhecimentos ou informações estratégicas sobre o mundo exterior.

O primeiro estudioso que desenvolveu, descreveu e utilizou a me-todologia para a produção do conhecimento foi Sherman Kent, pautado nos instrumentos das ciências sociais. Washington Platt veio em seguida, preocupando-se principalmente com as bases teóricas.

Não obstante o momento de instabilidade que o mundo enfrenta-va e, consequentemente a preocupação sobre informações de outros países,

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Platt (1974, p. 21) já considerava que os conhecimentos, produto da Inteli-gência, também eram úteis para os administradores de empresas. Vejamos:

A direção de empresas pode achar, também, interesse em algumas conquistas pioneiras dos artífices de Informações Estratégicas� Exe-cutivos de empresas e produtores de informações enfrentam, todos, os problemas de estimar o que outros seres humanos podem fazer e farão� Necessitam tirar importantes conclusões de dados insuficien-tes, em outras palavras, enfrentar o problema fundamental da pro-dução de informações� O empresário americano, que já demonstrou suma capacidade em aproveitar ideias de psicologia, engenharia, economia e outras disciplinas, quando serviam aos seus fins, encon-trará aqui muitos problemas similares aos seus próprios, bem como novos métodos de solução�

Platt havia identificado à época, a importância da ferramenta de análise não apenas para os governos, mas para outros tipos de organizações, vislumbrando, assim, a possibilidade de atuação da atividade também no campo interno, inclusive voltada para empresários. Pensamento bem atual se considerarmos o ambiente caracterizado por uma disputa competitiva que essas organizações enfrentam hoje. Nesse sentido, o conceito de Inteli-gência pode e deve ser, também, aplicado a elas.

Entretanto, é notável que órgãos governamentais e privados têm se valido do nome Inteligência para executarem atividades que sempre fi-zeram e continuam fazendo, só que agora com o nome Inteligência, sem, contudo, utilizarem suas técnicas e metodologias. Como consequência exercem, sem dúvida alguma, atividade que não Inteligência.

É o caso de setores que lidam com fiscalização, resenhas, investi-gação social, coleta de informações, finanças, investigação, etc., os quais tendem a desvirtuar a atividade ou até mesmo ignorar a ciência da produ-ção do conhecimento, esquecendo o principal objetivo da Inteligência - o assessoramento.

Não resta dúvida que a Inteligência é vista como área de interesse para qualquer organização no mundo dos negócios, assuntos públicos ou privados. Essa atividade é tida como elemento chave em um mundo con-temporâneo onde as informações e a necessidade de processá-las aumen-tam em progressão geométrica, enquanto a capacidade de processamento não segue na mesma proporção.

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Não obstante, diversos setores do governo têm criado suas Inteligên-cias com conceitos e definições próprias. A título de exemplo, podemos citar o caso brasileiro, onde as mesmas têm sido criadas sem o devido estudo, ou sem a preocupação com seus princípios básicos, como a Inteligência Prisio-nal, Inteligência Criminal, Inteligência Policial, Inteligência ambiental, In-teligência cibernética, etc. Cada uma com seu próprio entendimento, com pouco ou sem qualquer embasamento teórico, contribuindo para a dificul-dade de se compreender o que de fato é Inteligência.

Em se tratando dos setores governamentais é ainda mais notória a in-clinação para se aplicar a (ilusão da) análise de Inteligência. De maneira geral, repartições públicas que lidam com atividades de processamento da informa-ção, ou atividades fiscalizatórias os fazem sobre o falso manto da atividade de Inteligência. E este é apenas um pequeno problema se considerarmos, por exemplo, os órgãos responsáveis pela segurança pública.

Dentre as categorias em que se subdivide a atividade de inteligência, esta é ainda mais difícil de diferenciar, pois além de existirem diversos concei-tos difusos definidos por legislação ou por especialistas, conforme veremos a seguir, não há consenso sobre este tema, tampouco sobre suas áreas de atua-ção, ou seu escopo.

Em meio a outras questões, isso ocorre porque entre a Inteligência e a investigação existem diversos pontos congruentes e por vezes indissociá-veis, como, por exemplo, os dados e conhecimentos que subsidiarão ambas as atividades, mas há também importantes diferenças conceituais que devem ser compreendidas.

A seguir, a fim de demonstrar o que se propõe, serão demonstrados alguns conceitos que tratam de Inteligência Policial.

De acordo com o Manual de Inteligência Policial do Departamento de Polícia Federal - Volume I, inteligência policial é:

[���] a atividade de produção e proteção de conhecimentos, exercida por órgão policial, por meio do uso de metodologia própria e de téc-nicas acessórias, com a finalidade de apoiar o processo decisório deste órgão, quando atuando no nível de assessoramento, ou ainda, de subsidiar a produção de provas penais, quando for necessário o emprego de suas técnicas e metodologias próprias, atuando, neste caso, no nível operacional. (grifo nosso).

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A segunda parte desse conceito trata da Inteligência Policial como uma natureza diversa daquela em que a atividade de Inteligência foi concebida. Na verdade, quando tratamos da natureza executiva, no grifo acima exposto, estamos falando de investigação policial, ou investigação criminal, e não de Inteligência.

Reunir em um mesmo conceito a atividade de Inteligência e a inves-tigação é um equívoco. Vejamos o entendimento da investigação criminal, na síntese de Denilson Feitoza Pacheco:

é um procedimento preliminar, de caráter administrativo e normal-mente feito pela polícia investigativa (‘polícia judiciária’), por meio do qual se procura reunir um mínimo de provas que permita ao acu-sador pedir o início do processo penal�

Esse conceito difere-se, pois, da atividade de Inteligência. Para a perse-cução penal, prova é tudo aquilo que podemos demonstrar por meios admiti-dos no direito, ao passo que para a Inteligência o que importa, nessa questão, são os fatos/premissas que basearam a convicção do analista, não havendo ne-cessidade de se provar com base no Código processual penal brasileiro.

JáaResoluçãonº1,de15dejulhode2009,queregulamentaoSubsistema de Inteligência de Segurança Pública – SISP define que inte-ligência policial:

É o conjunto de ações que empregam técnicas especiais de investiga-ção, visando a confirmar evidências, indícios e a obter conhecimen-tos sobre a atuação criminosa dissimulada e complexa, bem como a identificação de redes e organizações que atuem no crime, de forma a proporcionar um perfeito entendimento sobre a maneira de agir e operar, ramificações, tendências e alcance de condutas criminosas�

Essa definição se mostra, de certo modo, não muito precisa, pois é possível inferir que trata também da investigação no momento em que se re-fere a “ações que empregam técnicas especiais de investigação, visando a con-firmar evidências”. A Inteligência deve ser tratada, primordialmente, como uma atividade de produção de conhecimentos, pelo que, apenas subsidiaria-mente, se valeria daquelas ações.

Não há dúvida que na medida em que se procura obter dados ou informações negadas, a Inteligência pode, de acordo com a metodolo-gia da produção do conhecimento, utilizar operações de inteligência por meio de técnicas especiais de investigação. Mas é imprescindível que se

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observe o arcabouço jurídico, pois existem diversos limites legais para essas operações da atividade de Inteligência.

Nesse sentido, torna-se fundamental que se distinga corretamente a inteligência policial da investigação, para não haver futuros vícios na produ-ção de provas ou na confecção de relatórios de inteligência. Vejamos o que nos traz Celso Ferro sobre a inteligência policial:

[���] a atividade que objetiva a obtenção, análise e produção de co-nhecimentos de interesse da segurança pública no território nacio-nal, sobre fatos e situações de imediata ou potencial influência da criminalidade, atuação de organizações criminosas, controle de de-litos sociais, assessorando as ações de polícia judiciária e ostensiva por intermédio da análise, compartilhamento e difusão de informações�

Aqui temos um conceito interessante, pois não se perde a caracterís-tica de assessoramento da atividade de Inteligência. Desse modo, a finalidade é consultiva na medida em que se procura produzir conhecimentos voltados para a segurança pública e que influenciem o processo decisório para a toma-da de decisões no combate à criminalidade.

Portanto, a atividade de Inteligência é o processo científico espe-cializado, levado a efeito através de metodologia própria da produção do conhecimento, com o objetivo de subsidiar, seja no nível tático, operacio-nal ou em nível estratégico, decisões por parte de governantes, dirigentes de órgãos públicos ou privados. A contrainteligência, por sua vez, procura proteger esse conhecimento produzido.

Assim, este entendimento é amplo o bastante para ser aplicado a qualquer setor governamental ou privado e restritivo o suficiente para se preservar a natureza consultiva da atividade.

A recém-lançada (2013) Doutrina Nacional de Inteligência Peni-tenciária (DNIP) prevê, por exemplo, técnicas de disfarce, interceptação postal de correspondências, interceptação de sinais e dados, infiltração de agentes e desinformação.

Além de abordar questões relacionadas às técnicas especializadas de inte-ligência em detrimento de se ater à metodologia da produção do conhecimento, a nova DNIP deveria atentar para o fato de existir alguns impedimentos na legislação brasileira para a adoção de algumas dessas técnicas na atividade de Inteligência.

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O instituto da infiltração é um exemplo disso. Segundo ensinamen-tos de Rafael Pacheco (2007, p. 109), “o agente infiltrado é um funcionário da polícia que, falseando sua identidade, penetra no âmago da organização criminosa para obter informações e, dessa forma, desmantelá-la”. Nesse sen-tido, a infiltração de agentes policiais é ponderada como um artifício de meio de prova na investigação e não na Inteligência.

A infiltração é abordada em nosso ordenamento jurídico por meio daLeinº10.217/01,quealteraosartigos1ºe2ºdaLeinº9.034/95(LeideCombateaoCrimeOrganizado).Deacordocomanovaredaçãodoart.2º,incisoV,daLeinº9.034/95,épermitida"emqualquerfasedapersecuçãocriminal a infiltração de agentes de polícia ou de inteligência, em tarefas de investigação, constituída pelos órgãos especializados pertinentes, mediante circunstanciada autorização judicial".

Embora o próprio texto legal faça menção ao agente de inteligên-cia, é certo que não se pode requerer o instituto da infiltração ao judiciário com a finalidade de assessoramento, somente podendo fazê-lo na fase da persecução penal, para fins de produção de prova.

No esteio desse entendimento, é similar o caso da interceptação de sinais e dados. São dois os requisitos para tornar lícita a interceptação: ordem judicial e existência de investigação ou processo penal. Conforme se observa noartigo5º,incisoXIIdaConstituiçãoFederal:

Art� 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualda-de, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(���)

XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal;

Conclui-se, assim, estar também afastada a possibilidade de in-terceptação para fins de assessoramento, pois é indispensável a prévia existência de investigação policial ou o processo penal, que só ocorre após o fato criminoso.

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Certamente, caso não houvesse restrição legal, as operações de inteli-gência que utilizam técnicas especializadas como a infiltração ou intercepta-ção seriam importantes ferramentas para a Inteligência na elaboração de rela-tórios informacionais, pois se buscaria o aprendizado sobre a forma de agir de um grupo e a identificação das fontes de recursos utilizados pela organização criminosa. Contudo, em nosso ordenamento jurídico isso não é possível e, portanto, não seria adequado tratá-los em uma doutrina de Inteligência.

Outra questão no caso das interceptações e que deve ser levado a efeito é o uso dessas informações pela Inteligência. Os dados obtidos por in-terceptação, em princípio, não podem sequer ser utilizados em relatórios de Inteligência.ALeinº9.296/96,emseuArt.8°,definequedeveserpreserva-do o sigilo das diligências:

A interceptação de comunicação telefônica, de qualquer natureza, ocorrerá em autos apartados, apensados aos autos do inquérito poli-cial ou do processo criminal, preservando-se o sigilo das diligências, gravações e transcrições respectivas�

Portanto, o conhecimento obtido pela interceptação somente pode ser utilizado para atender a finalidade daquela autorização judiciária específi-ca e durante a fase da investigação criminal ou na instrução processual penal.

Assim como no caso da infiltração, aqui também não há que se falar em interceptação com o objetivo de obter dados e informações para a Inteligência. O que vem ao encontro, mais uma vez, do entendimento de que técnicas especiais para obtenção do dado negado, notadamente aque-las que necessitam de autorização judicial, voltadas exclusivamente para a persecução penal, deveriam ser abordadas em um manual diferente, e não em Doutrina de Inteligência.

Essa tentativa de mesclar a atividade de Inteligência com a atividade investigativa policial é temerosa. O caráter duplo da atividade de inteligência policial, entendida como a atribuição de um órgão de inteligência policial, ao mesmo tempo em que produz conhecimentos para assessorar o processo decisório, atuar em investigações criminais, certamente implicarão em pro-blemas tanto na área de Inteligência como na persecução penal.

É o caso da Operação Faktor, onde a Polícia Federal (PF) investi-gava Fernando Sarney, suspeito de fazer caixa dois na campanha de Roseana Sarney na disputa pelo governo do Maranhão no ano de 2006. Fernando Sar-

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ney foi indiciado por formação de quadrilha, gestão de instituição financeira irregular, lavagem de dinheiro e falsidade ideológica.

Em consequência dessa operação, a Polícia Federal gravou ligações que mostravam indícios de nepotismo praticados por Sarney, juntamente com Agaciel Maia.

Em 2011, o Superior Tribunal de Justiça anulou as provas que a PF havia encontrado por tê-las considerado ilegais. A investigação teve início com base em informações do relatório do Conselho de Controle de Ativida-des Financeiras (Coaf ) que alertou a Polícia Federal e o Ministério Público sobre grandes saques em dinheiro vivo das contas de Fernando Sarney às vés-peras do segundo turno da eleição de 2006.

Os ministros do STJ decidiram que dados obtidos pelo relatório do Coaf não eram suficientes para determinar quebra de sigilo. O entendimento invalidou as provas colhidas na operação, pois se concluiu que não houve indicação dos elementos mínimos que pudessem justificar a quebra de sigilo, sem que nenhuma outra investigação preliminar tivesse sido feita ou sem ter demonstrado a impossibilidade de fazê-la. Por isso, tratava-se de prova ilícita.

Esse é um exemplo cristalino onde se confunde a atividade de Inteli-gência com a investigação. O nome do relatório do Coaf é Relatório de Inte-ligência Financeira (RIF), e, por ser um relatório de inteligência, sua natureza é consultiva e não executiva.

Em outras palavras, a movimentação fora “atípica” e não podia ser considera “ilícita”. Essa atipicidade, por si só, não poderia ser considerada como prova, mas poderia ensejar investigações outras que não medidas extre-mas como quebra do sigilo telefônico ou bancário. Nesse sentido, a quebra de sigilo baseada apenas em relatório do Coaf foi considerada inconstitucional.

Na medida em que o conceito da atividade de inteligência é um tema controverso, seu campo de atuação e, consequentemente, seu controle tam-bém não está esclarecido para diversos setores governamentais no País. E não exclusivamente entre os profissionais da área.

Relatórios de inteligência, justamente por serem destinados ao assessora-mento do processo decisório e não ao processo penal, por sua característica de con-fecção,sãoinvariavelmentedenaturezasigilosa,regidapelaLeinº12.527/2011.

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O órgão de controle externo da atividade de Inteligência é denomi-nado de Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência (CCAI), composto por 06 (seis) integrantes, sendo 03 (três) deputados federais e 03 (três) senadores, além do Presidente da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara dos Deputados e do Senado Federal.

Entretanto, o Ministério Público (MP) entende que cabe a ele o controle externo da atividade de Inteligência no âmbito policial. Essa ques-tão motivou uma disputa entre a Procuradoria da República (PR-RJ) e a Su-perintendência Regional do Departamento de Polícia Federal do Rio (SR--DPF/RJ) no final do ano de 2010, no estado do Rio de Janeiro.

As duas instituições travaram na Justiça uma disputa em torno do acesso a todos os relatórios de inteligência produzidos pela unidade de inte-ligência policial federal local de 2008 a 2010, com base no Inquérito Civil Públiconº137/20091. O motivo era o não encaminhamento “ao MPF cópia dos relatórios de inteligência policial gerados no âmbito do SIP/CICOR, em total desobediência aos preceitos constitucionais e legais em vigor que tratam do exercício do controle externo da atividade policial.”.

Eis, portanto, um cenário obscuro em relação à atividade de polícia judiciária e à atividade de Inteligência. Vejamos o que diz a legislação quanto ao controle externo de ambas as atividades.

No que tange ao controle externo da atividade investigativa, a Cons-tituição da República Federativa do Brasil de 1988, em seu artigo 129, inciso VII, instituiu como função institucional do Ministério Público o controle externo da atividade policial, o qual seria regulado na forma da legislação complementar da União e dos Estados. Esse dispositivo enumera taxativa-mente as atribuições do Ministério Publico, e de acordo com seu inciso VII, o MP teria o dever/poder de realizar o controle externo no inquérito policial:

Art� 129� São funções institucionais do Ministério Público:

I […]

(���)

1 Inquérito Civil Público instaurado pelo Ministério Público Federal através dos Procuradores da República FÁBIO DE LUCCA SEGHESE e MARCELO DE FIGUEIREDO FREIRE, integrantes do Grupo de Controle Externo da Atividade Policial da Procuradoria da República no Estado do Rio deJaneiro,nosautosdoprocedimentoadministrativonº1.30.011.004280/2009-58.

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VII - exercer o controle externo da atividade policial, na forma da lei complementar mencionada no artigo anterior; (grifo nosso).

Não há dúvida de que o controle externo exercido pelo Ministério Pú-blico é uma atividade de fiscalização, na prevenção, apuração e investigação dos fatos criminosos. Infere-se, pois, que o controle é relativo à investigação.

Portanto, como não se trata de questões afetas à atividade de perse-cução criminal, porque a atividade de Inteligência vai além das atividades de polícia judiciária, o controle não cabe ao MP.

No entanto, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) editoualteraçãodaResoluçãonº20de28demaiode2007,ondeconstaquecabe ao MP o controle externo de qualquer atividade policial, seja ela investi-gativa ou de Inteligência. Vejamos:

deve-se tornar claro que não há atividade policial que não se sub-meta ao controle externo, sob a nomenclatura de “Assuntos de Cor-regedoria”, ou “Relatórios de Inteligência”, ou quaisquer outras, que se criem com o objetivo de se furtar ao mandamento constitucional a ser desempenhado pelo Ministério Público�

Em contraponto ao entendimento do MP e considerando que os documentos de inteligência são confeccionados com a finalidade de as-sessoramento ao processo decisório e não ao processo penal, a realização do controle da atividade de inteligência é, de fato, feita de acordo com o art.6ºdaLeinº9.883/99:

Art. 6o O controle e fiscalização externos da atividade de inte-ligência serão exercidos pelo Poder Legislativo na forma a ser estabelecida em ato do Congresso Nacional. (grifo nosso)

§ 1o Integrarão o órgão de controle externo da atividade de inteligên-cia os líderes da maioria e da minoria na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, assim como os Presidentes das Comissões de Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara dos Deputados e do Senado Federal�

§ 2o O ato a que se refere o caput deste artigo definirá o funcio-namento do órgão de controle e a forma de desenvolvimento dos seus trabalhos com vistas ao controle e fiscalização dos atos decorrentes da execução da Política Nacional de Inteligência.” (grifo nosso).

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Neste mesmo sentido cita-se o entendimento do Professor Joanisval Brito Gonçalves, consultor legislativo e da CCAI, “o controle realizado pela CCAI é funcional, ou seja, ela tem competência para fiscalizar todo o SIS-BIN. De fato, qualquer organização do Sistema que conduza atividade de inteligência está sujeita ao controle da CCAI.”2.

ALeinº9.883de1999, instituiuoSistemaBrasileirode Inte-ligência (SISBIN) e criou a Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) com o objetivo de integrar as ações de planejamento e execução das ati-vidades de Inteligência do país, com vistas a subsidiar o Presidente da República nos assuntos de interesse nacional.

Essa Lei determina, também, que todos os órgãos e entidades da Ad-ministração Pública Federal, com capacidade de produção de conhecimento de interesse das atividades de inteligência, deverão constituir o SISBIN, principal-mente os responsáveis pela defesa externa, segurança interna e relações exteriores.

Portanto, sendo a PF um dos representantes do Ministério da Justiça no SISBIN, não cabe ao MP o controle de suas atividades de Inteligência, devendo fazê-lo o CCAI.

Equívocos relacionados a tais temas são comuns, tanto entre os inte-grantes do aparato de inteligência policial, quanto aos de outros setores go-vernamentais, uma vez que há conceitos difusos da atividade de Inteligência. Ademais, a formação doutrinária no meio acadêmico-policial e nos bancos universitários não esclarece, satisfatoriamente, essa questão.

Essas situações corroboram a dificuldade com que os profissionais da área enfrentam, haja vista que a atividade de produção de conhecimentos, no sentido de apoiar as atividades de prevenção e repressão dos fenômenos criminais e para o assessoramento, não é tratada de maneira sistemática.

Isto não significa que não devam fazer Inteligência, pelo contrário, a utilização dessa atividade é fundamental em um cenário nacional e inter-nacional complexo e instável. O aumento populacional, os avanços tecnoló-gicos e as mudanças substanciais ocasionadas pelo processo de globalização, contribuíram e contribuem para o fortalecimento do crime organizado, cres-cimento do terrorismo, questões ambientais, corrupção, entre outros.

2 Cf. entrevista de Joanisval Brito Gonçalves, realizada no Curso Superior de Inteligência Estratégica (CSIE), da Escola Superior de Guerra (ESG), em 03/06/2013.

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Mais uma vez, a questão é a falta de esclarecimento e o uso equivo-cado e continuado desses conceitos de Inteligência, que vão se cristalizando nas mentes das pessoas. Até mesmo os especialistas mais bem intencionados acabam aceitando-os como verdade.

O diagnóstico desse problema é a falta de investimentos do poder público em capacitação dos profissionais. Os “analistas de Inteligência” no Brasil, em sua grande maioria, não têm um arcabouço acadêmico e nem treinamento adequado nos seus campos específicos e, portanto, não há um emprego sistemático do conhecimento, onde os métodos são visíveis e verifi-cáveis, permitindo aplicabilidade à metodologia própria.

Essa falta de estudos acadêmicos e múltiplos conceitos têm acarre-tado em uma série de operações policiais anuladas no âmbito do judiciário, órgãos governamentais se desentendendo e analistas de inteligência desen-volvendo trabalhos relacionados à persecução penal.

O processo de produção do conhecimento de Inteligência asse-melha-se a um trabalho acadêmico, pois se procura construir um relatório baseado em premissas que o sustentem. Por conseguinte, esse processo está ligado diretamente à metodologia científica, uma vez que o analista procura imbuir-se de espírito cientifico aperfeiçoando-se nos métodos de investiga-ção e aprimorando suas técnicas de trabalho através da busca da verdade.

Nessa esteira, a ciência como forma de produção do Conhecimento é especialmente interessante para o profissional de inteligência, já que busca identificar importantes atributos como o uso da hipótese, método objetivo, transparência, replicabilidade, revisão por pares, resultados provisórios e ve-rificação das vulnerabilidades epistemológicas, trazendo maior confiabilida-de ao produto final. Essa metodologia é traduzida pelo Ciclo da Produção do Conhecimento (CPC), com suas fases determinadas e delimitadas.

Certamente devemos levar em conta que o mundo hoje é diferente daquele vivido pelos autores clássicos da Inteligência tradicional, logo, é plau-sível dizer que a Inteligência também deve evoluir. A conexão entre ciência e prática, entre o mundo das teorias e o mundo da ação é fundamental.

Entretanto, existem conceitos basilares que são indissociáveis da ati-vidade de Inteligência e que não devem ser modificados, haja vista os diversos

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problemas gerados pela falta de entendimento do tema. Desta forma, a seguir são apresentadas três importantes bases conceituais, que são abordadas tanto por autores clássicos como contemporâneos:

1) Foco na produção do conhecimento, através de metodologia própria.

2) Natureza consultiva, ou função de assessoria ao processo decisório.

3) Relação adequada entre o analista de Inteligência e o decisor, em função do risco de Inteligência politizada.

O uso de metodologia própria é significativamente importante, pois se a atividade de inteligência visa assessorar um gestor qualquer através da produção do conhecimento, faz-se necessário que se estabeleça meios para a consecução desse propósito. Esses meios baseiam a metodologia para a pro-dução do conhecimento em inteligência.

Nesse sentido, Kent (1967, p. 55) afirma que é necessário método “peculiar ao trabalho de informações” referindo-se ao problema metodo-lógico característico das pesquisas sociais. Por sua vez, Platt (1974, p. 131) deu bastante ênfase a esse processo, realçando o método cientifico aplicado à produção de informações, muito utilizado nas ciências e, em efeito na pes-quisa para a produção de conhecimentos. Lowenthal e Shulsky convalidam as ideias de Kent e Platt quando identificam diversas bases teóricas para a confecção de relatórios de Inteligência.

Outro ponto importante para se entender Inteligência é a questão da natureza consultiva. Daqui pode-se extrair a finalidade da atividade. O que importa para a Inteligência é a construção do conhecimento no sentido de procurar maior aproximação com a verdade, lastreado em premissas que levem o analista à convicção quanto ao seu relatório, ou seja, decorre de tra-balho intelectual obedecendo à metodologia da produção do conhecimento e que podem ser plenamente aproveitados para amparar decisões.

Difere-se, pois, daquela verdade judicial que significa somente o que é possível provar por meios admitidos no direito. Aqui, a norma constitucional produz relevantes reflexos na busca da verdade, já que es-tabelece parâmetros rígidos de licitude aos procedimentos investigató-rios que visam desvendá-la. Lá, embora haja limites de atuação, o que importa é conhecer e não provar.

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Outro ponto crucial da atividade de Inteligência é a relação do analista produtor de um conhecimento com o seu tomador de decisão. Kent julgava que os produtores e utilizadores de informações devem estar suficientemente próximos das políticas para obter o máximo de orientação, mas não tão próxi-mos a ponto de perderem sua objetividade e integridade de julgamento.

Lowenthal chama isso de “Inteligência Politizada” e faz alusão a essa relação com uma membrana semipermeável, onde os gestores têm li-berdade para oferecerem avaliações que contrariam as análises de inteligên-cia, mas os analistas não podem fazer recomendações sobre políticas com base na inteligência que produzem.

Nada mais sensato, uma vez que o papel do tomador de decisão é, obviamente, decidir. O analista, justamente por ser técnico e metodológico, não pode fazer o papel dos dois: analisar e decidir.

Ademais, quem produz um conhecimento sobre determinado tema tem aí sua delimitação. O gestor possui, em tese, conhecimentos outros que podem subsidiá-lo com informações de um cenário mais real, mais abrangen-te, podendo tomar a melhor decisão em um contexto mais amplo.

Estes são pontos chave da atividade, são concepções fundamentais para entender a Inteligência. Identificado esses pressupostos, não há necessi-dade de se criar ou procurar entender os inúmeros conceitos existentes, uns mais específicos, outros mais abrangentes, uns mais sucintos outros mais di-latados, tampouco existirá necessidade de buscar diferenciá-los das demais categorias em que se divide a atividade.

A falta de investimento em estudos e a propagação dos conhecimentos vêm causando a proliferação de falsos conceitos e usos inadequados de expres-sões, cuja explanação e discussão devem ser levadas aos centros acadêmicos.

O que se percebe, é que o significado de Inteligência está per-dendo sua essência, seu núcleo. Existem definições que vão de encontro a sua natureza, a toda a evolução histórica que essa atividade sofreu pelo simples fato da vontade em se trocar a placa do setor de um determinado órgão pelo termo “Inteligência”.

O desafio que se apresenta sobre a atividade de Inteligência não resi-de apenas na questão de procurar conceituá-la com precisão, mas de analisar

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a possibilidade do aprimoramento do emprego dos dados e informações ob-tidos, notadamente no âmbito da investigação, como suporte à produção do conhecimento, sobretudo em nível estratégico.

Dessa forma, a atividade poderia contribuir com mais eficiência ao assessoramento a gestores e autoridades governamentais, na formula-ção de políticas voltadas para as diferentes áreas que se opõem ao bom desenvolvimento do país.

A falta de uma cultura favorável à inteligência, associada ao desco-nhecimento da atividade e a sua visão distorcida, no âmbito da sociedade, dificulta e refletem no seu entendimento e na sua aplicação.

A Inteligência pode ser adaptada para muitos segmentos da sociedade, seja na área privada ou pública, mas é imperioso que entendamos seus alicerces, seus princípios, a fim de desenvolvermos de fato essa importante ferramenta de enfrentamento aos desafios contemporâneos que se apresentam. Do contrário, sem uma definição de Inteligência, sem uma clara ideia do que ela seja, se torna impossível desenvolver uma teoria que explique como ela trabalha.

Felipe Scarpelli de Andrade

Analista de Inteligência Estratégica formado pela Escola Superior de Guerra. Especialista em Inteligência de Segu-

rança Pública pela Univesidade Sul de Santa Catarina. Agente de Polícia Federal. Professor da Academia Nacional

de Polícia do Departamento de Polícia Federal (ANP/DPF) nos Cursos de Formação, Especialização e Aperfeiçoamento.

Professor da Doutrina de Inteligência (DINT) da Polícia Federal nos cursos afetos à área de Inteligência Policial. Atualmente atuando na área de Inteligência Estratégica,

Inteligência Policial e Segurança Pública.

E-mail: [email protected]

ABSTRACT

This essay aims to analyze the inappropriate use of the term "intelligence" in public and private in-stitutions, as well as demonstrating the consequences and ramifications that this entails for misuse activity. By highlighting the methodological aspect of intelligence activity and trace similarities and differences with the investigation and production of scientific knowledge, we seek to develop ideas that limit intelligence activity in contrast to other advisory activities, supervision and own investigation. Accordingly, we analyze, from concepts and laws, the impossibility of the use of certain investigative techniques, especially those dependent on judicial authorization, to the Intel-ligence activity. In this sense, exposes the need of intelligence agencies effectively to appropriate

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techniques and work processes of intelligence, concluding by identifying the learning opportu-nity to circumscribe their concept to then evolve his theory, with contribution to the foundation and strengthening of the studies on the activity of intelligence.

KEYWORDS: Public safety. Research. Intelligence. Methodology of Knowledge Production. Fundamental concepts.

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55ISSN 2178-0013

Revista Brasileira de Ciências Policiais

Brasília, v. 3, n. 2, p. 55-90, jul/dez 2012.Recebido em 15 de junho de 2013.Aceito em 7 de agosto de 2013. ISSN Eletrônico 2318-6917

Meios de Obtenção de Prova na Fase Preliminar Criminal: considerações sobre reconhecimento pessoal no Brasil e na legislação comparada

Rafael Francisco França Departamento de Polícia Federal - Brasil

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RESUMO

O presente artigo tem por objetivo definir pontos de discussão sobre o reconhecimento pessoal dentro do contexto de obtenção de meios de prova no processo penal. Para tanto, serão concei-tuados os institutos tendo como ponto de partida a legislação brasileira, com especial atenção a questões práticas para, assim, destacar a situação de tais dispositivos na investigação criminal preliminar. Dentro do objetivo mencionado, serão expostas informações sobre os procedimen-tos adotados para o reconhecimento pessoal pelo sistema espanhol, pelo português, na Itália e outros países, com o que se espera, por comparação, concluir sobre a necessidade de mudanças na legislação pátria sobre tais assuntos.

PALAVRAS-CHAVES: argumentos de prova; reconhecimento pessoal; Legislação compara-da (Espanha, Portugal e Itália).

1. INTRODUÇÃO

Em matéria de produção de argumentos de prova em sede de in-vestigação preliminar, mais especificamente em sede de estudo das moda-lidades disponíveis, são diversos os problemas enfrentados. Muitos são os fatores determinantes desencadeados ainda na fase de inquérito, acarre-tando a necessidade de maior atenção aos procedimentos adotados.

Tendo como pano de fundo a necessidade de demonstração ló-gica do desenvolvimento da investigação criminal, torna-se imperioso definir que, como garantia, as formas e os meios pelos quais as provas são obtidos devem ser rigidamente obedecidos, sob pena de invalidade e de não utilização em Juízo.

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Meios de Obtenção de Prova na Fase Preliminar Criminal

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Assim, este trabalho trata sobre aspectos polêmicos de um dos mais importantes meios de obtenção de provas no processo penal, de polêmica estrutura e de conturbada aceitação pela doutrina e pela jurisprudência: o reconhecimento pessoal.

Percebe-se a necessidade de definição dos procedimentos adotados não só no Brasil, mas também em outros países para que, pela comparação, possam ser desmitificados alguns pontos tidos como conflitantes em decisões judiciais exaradas pelos tribunais superiores durante os últimos anos.

Importante citar que não há a pretensão de abordagem profunda aos temas, isso tendo em vista a necessária comparação dos institutos após breves definições. Deve ser também citado que, embora sejam analisados diferentes sistemas processuais, dar-se-á preferência ao estudo de elemen-tos atinentes às fases investigatórias dos processos penais, estabelecidas as dificuldades em se delimitar se há ou não investigação durante a instrução da ação penal em tais sistemas.

Dessa forma, e para que sejam mais bem entendidos os pressupos-tos de definição e comparação estabelecidos, foram feitas divisões em tópi-cos e subtópicos de acordo com a proposta de estudo sobre os mencionados meios de obtenção de prova.

Torna-se necessário determinar, desde já, que a medida cautelar de reconhecimento pessoal durante a fase de investigação policial também se difere em diversos aspectos do reconhecimento feito já na fase processual, devendo ser observado que reconhecimento pessoal é prova irrepetível.

Nessa matéria podem ser encontrados diversos problemas a inves-tigados e réus. Dentre eles, a exposição e o direito de não produzir provas contra si mesmos e a possibilidade de serem reconhecidos por fotografia, o que delimita o trabalho policial, torna a execução das medidas ainda mais carente de formalidades e determina a necessidade de preparo dos agentes responsáveis pela organização e execução das mesmas.

Por isso, optou-se por iniciar pela análise dos atos de reconhecimen-to pessoal na legislação brasileira, isso com o intuito de delimitar o campo de comparação com outras realidades em sistemas processuais, pelo que serão apontados os pontos em que pode avançar a coleta de tal prova.

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A sistemática usada pelo Código de Processo Penal para o desenvol-vimento das sessões de reconhecimento demonstra não só a falta de detalha-mento necessário à execução da medida, mas, também, atesta a possibilidade de realização sem a presença de advogado defensor, fato que pode macular os resultados e prejudicar a investigação.

Ao final, apresentar-se-ão comentários e conclusões sobre o tema, tido como central em matéria de busca por fontes de prova no processo penal brasileiro, mormente em sede de investigações policiais e em decorrências das análises comparativas efetuadas com base nas le-gislações de outros países.

2. MEIOS DE OBTENÇÃO DE PROVA NA INVESTIGAÇÃO CRIMINAL PRELIMINAR

No contexto apresentado pela investigação criminal preliminar, e levando-se em consideração a necessidade de estudo sobre as ferramentas de investigação aqui proposta, é necessário citar alguns pontos sobre meios de obtenção de provas durante a instrução de procedimentos policiais e preliminares em sede de apuração de delitos, devendo ser levado em consi-deração o valor probatório que pode ser alcançado por alguns deles.

Embora se tenha em mente que, segundo LOPES (2011), meio de prova pode ser definido como “a atividade pelo meio da qual se in-troduz no procedimento um elemento de prova.”, é importante definir que, na fase de investigação policial ou preliminar penal não se tem, ainda, produção de prova, a qual somente ocorrerá no desenvolvimento de eventual ação penal. Por isso mesmo, segundo tal autora, a ativida-de em tela exige sempre a participação do juiz e das partes, isso com o dever de submissão ao contraditório, o que denota a possibilidade de produção antecipada quando possível.

Portanto, embora seja possível definir e até mesmo apontar in-dícios que levem ao reconhecimento e à autoria em sede de investigação preliminar, é necessário que, posteriormente, tais informações sejam filtradas pelo processo penal para que possam ser utilizadas em funda-mentos de decisão e sentença.

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Meios de Obtenção de Prova na Fase Preliminar Criminal

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De acordo com GRINOVER (1997)1, a sequência de atos que são pra-ticados, por exemplo, na medida de interceptação telefônica determinam melhor o que seria um meio de prova. Importante citar que as expressões “meio de prova” e “indício” podem ser consideradas como diversas para este trabalho. A primei-ra diz respeito ao procedimento de coleta ou separação de algum dado, objeto, documento, gravação etc., que, submetido ao contraditório, possa servir de fun-damento à tomada de decisão pelo Juízo. Quanto à segunda, esta é relacionada ao procedimento de investigação, a algum dos itens acima citados que, embora ainda não submetidos ao contraditório, possam servir de base à investigação (in-diciamentos, pedidos de interceptação telefônica, buscas e apreensões etc.).

Dessa maneira, o reconhecimento fotográfico precário em sede policial (indício-base a meio de obtenção de prova) pode dar azo ao reconhecimento pes-soal como antecipação de prova ou, ao menos, como fator de embasamento da denúncia. A importância da atividade investigatória, portanto, supera o precon-ceituoso caráter de “mera peça de informações”2 para solidificar-se como período de coleta de meios para a delimitação do alcance da própria ação penal vindoura.

Para tanto, todavia, considera-se a necessidade de obediência à for-ma prevista na lei para que as atividades de investigação sejam desenvolvi-das, para que, conforme será exposto em relação ao sistema processual de outros países, os resultados possam ser considerados como meio de prova.

3. RECONHECIMENTO PESSOAL

Após a ocorrência do delito, e como dever de coleta de todas as infor-mações possíveis sobre os fatos em reconstrução, cabe ao investigador ouvir testemunhas, declarantes e informantes na tentativa de estabelecer a autoria.

1 p. 117. “Mas o termo “prova” não é unívoco. Em uma primeira acepção, indica o conjunto de atos processuais praticados para averiguar a verdade e formar o convencimento do juiz sobre os fatos. Num segundo sentido, designa o resultado dessa atividade. No terceiro, aponta para os “meios de prova”. Pode-se, assim, distinguir entre fonte de prova (os fatos percebidos pelo juiz), meio de prova (instrumentos pelos quais os mesmos se fixam em juízo) e objeto de prova (o fato a ser provado, que se deduz da fonte e se introduz no processo pelo meio de prova).”. Interessante notar que a autora em tela também menciona que: ”(...). O resultado da interceptação – que e uma operação técnica – é fonte de prova. Meio de prova será o documento (a gravação e sua transcrição) a ser introduzido no processo.”. p. 174.

2 “Verifica-se, assim, que a expressão “mera peça” deveria ser excluída dos livros doutrinários, já que, como é cediço, todas as provas produzidas dentro desse importante procedimento investigativo, são, na maioria das vezes, apenas repetidas em Juízo.” – CARVALHO, Paulo Henrique da Silva. A importância do inquérito policial no sistema processual penal. Disponível em http://www.advogado.adv.br/artigos/2006/paulohenriquedasilvacarvalho/aimportanciainquerito.htm, acesso em 07/10/2012.

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Insta citar, nesse ponto, que o reconhecimento pessoal ou de coisas é meio de obtenção de provas em diversos sistemas processuais, sendo que as diferenças no modo como são desenvolvidos os atos determina a qualidade da prova produzida. Trabalha-se com duas variantes: tempo e memória.

Conforme CUTLER (1996)3, sessões de reconhecimento são con-sideradas importantes para a solução de investigações, sendo a forma mais comum de testemunho em julgamentos criminais. Todavia, é importante observar que há considerável possibilidade de erro se as sessões não forem desenvolvidas de maneiras a evitar dubiedade e imprecisões.

Sendo assim, nos termos do que aponta FERNANDES (2007), ain-da é possível apontar ser comum nas legislações penais que uma espécie de re-conhecimento seja regulada e este regulamento sirva para determinar como se dará outra modalidade. Ainda, aponta o mesmo autor para a necessidade em se seguir um rito para tal meio de obtenção de prova, o que fica prejudi-cado se for aplicado um modo para a sua realização a outro não previsto; é o que chama de irritualidade.

Dessa maneira, discutiu-se nas XX Jornadas Ibero Americanas de Direito Processual Penal, realizada em Málaga, Espanha, no ano de 2006, que, no caso brasileiro, em sendo realizado reconhecimento por meio de fo-tografia não haveria problema de atipicidade (tipo de reconhecimento) ou de irritualidade. Chega-se, portanto, à conclusão de que o problema, sim, reside no descumprimento do rito previsto, pois haveria coleta de prova típica por meio de rito diverso. Dessa forma, ficou evidente que o reconhecimento fo-tográfico é precário.

O ato de reconhecer, diga-se de passagem, é importante e necessário para a aproximação da vítima dos atos investigatórios. No entanto, e até pela carga de emoção envolvida no ato, torna-se ainda mais necessária a obser-vância de cuidados elementares no desenvolvimento do ato de investigação em tela, eis que podem ser cometidos erros de considerável gravidade, sendo o principal deles o apontamento errôneo de autor de crime. Muitas vezes,

3 The criminal justice system recognizes that eyewitness testimony in general and eyewitness identification in particular play profoundly important roles in the apprehension, prosecution, and adjudication of criminal offenders� Police investigators rely heavily on eyewitness testimony in their initial investigation of a crime (Fisher & Geiselman, 1992)� Eyewitness identifications from photospreads and lineups are frequent occurrences (Brigham & Bothwell, 1983; Goldstein, Chance, & Schneller, 1991)� And the eyewitness is probably the single most common form of witness in many criminal trials� The criminal justice system also acknowledges the influence that eyewitnesses have on trial outcomes. p. 6.

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pelo calor dos acontecimentos e pela necessidade de “vingança”, equívocos cometidos na fase de investigação podem ser refletidos por anulações no pro-cesso penal. A investigação, portanto, seguirá para caminho diverso e haverá chance de fracasso na indicação de autoria.

Ademais, ressaltando-se a importância de tal procedimento, é pos-sível definir que o reconhecimento é prova irrepetível (FERNANDES; AL-MEIDA; MORAES, 2011, p. 20). Sendo dessa forma, não se pode simples-mente anular um ato de reconhecimento, haja vista que não se pode renovar tal sessão nos mesmos moldes já definidos. Ou seja, “não se reconhece o já reconhecido”. Se não forem seguidos os ritos previstos, perde-se o valor pro-bante do procedimento.

Dessa maneira, importa definir que se não forem seguidas re-gras para a execução das sessões de reconhecimento pessoal, grande se torna a possibilidade de se tornar inócua. Em determinados crimes, como naqueles em que a palavra da vítima e suas percepções sobre o crime são imprescindíveis para a elucidação e apontamento de autoria, o reconhecimento pessoal surge como meio de prova de inigualável va-lor. Por isso mesmo, deve ser revestido de estrita observação da forma prevista pela lei. (LOPES, 2011, p. 6-7)4.

De tal modo, quer seja realizado de modo preliminar, por fotogra-fias ou como antecipação de produção de meio de prova, o reconhecimento pessoal deve obrigatoriamente ser envolto em formalidades5.

4 “Um dos meios de prova previstos expressamente no Código de Processo Penal brasileiro é o reconhecimento de pessoas e coisas. O reconhecimento é meio de prova utilizado com a finalidade de obter a identificação de pessoa ou coisa por meio de um processo psicológico de comparação com elementos do passado. O reconhecimento tem a natureza jurídica de meio de prova. Realizado na presença do juiz e com a participação das partes, formará elemento de prova e poderá ser levado em consideração pelo julgador na sentença.”.

5 Todavia, conforme GUIMARÃES, “As provas produzidas administrativamente que não podem ser repetidas em juízo, podem ser classificadas assim1: a) Prova integrante da instrução probatória por força de lei: perícia; b) Prova integrante da instrução probatória por força própria: documento em todas as espécies; c) Provas extraprocessuais passíveis de integrar o procedimento probatório por contraste de regularidade: reconhecimento de pessoas ou coisas e, busca e apreensão”. GUIMARÃES, Maurício Henrique et all. Provas policiais insuscetíveis de repetição. Revista da Associação dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo. Marcos Antônio Gama (Coord.), São Paulo: ADPESP. Ano 19, n. 26, dez/99. p. 16. Bom notar que o item “c” será irrepetível a prova se for produzida com estrita observância aos preceitos legais aplicáveis à espécie, cuja regularidade será atestada na instrução probatória processual pela testemunha que acompanha sua produção, havendo, então, um contraste de regularidade, onde os relatos das testemunhas substituem o reconhecimento ou a busca e a apreensão. Trata-se, na verdade, de prova testemunhal o “reconhecimento” feito em Juízo sem as devidas formalidades.

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Todavia, cabe também considerar que, tratando-se de ato atinente à memória das vítimas e testemunhas, ainda assim é possível ter como resul-tado um equívoco6. Ainda, para piorar a situação, é possível determinar que não há preocupação em preservar o meio de obtenção de provas que repre-senta o reconhecimento pessoal no sistema brasileiro, baseado na memória de vítimas, declarantes e testemunhas. (GIACOMOLLI; DI GESU, 2008)7.

Tal assunto já era tratado no sistema estadunidense há tempos, haja vista que se trata de tema atinente também à Psicologia. A principal preocu-pação incide sobre a transmissão dos dados da testemunha/vítima à Polícia e a apresentação de tais dados perante a Corte. ( JOHNSON, 1973, p. 2)8 .

Nesse ponto, é também ponto de discussão o fator “tempo” na constru-ção do reconhecimento pessoal e nos resultados que se esperam com a atividade. A separação entre o fato (intervalo de retenção do dado a ser memorizado), con-jecturado com as informações obtidas após o ocorrido, modifica a capacidade de resposta da testemunha ou da vítima sobre o que deve ser reconhecido.

6 Os erros em reconhecimentos pessoais têm causado condenações errôneas nos Estados Unidos. Conforme reportagem a seguir citada, os exames de ADN demonstraram que os condenados foram reconhecidos equivocadamente, o que já provocou mais de duzentas libertações de inocentes. A seguir, trecho da mencionada reportagem: In 1981, 22-year-old Jerry Miller was arrested and charged with robbing, kidnapping, and raping a woman� Two witnesses identified Miller, in a police lineup, as the perpetrator� The victim provided a more tentative identification at trial� Miller was convicted, served 24 years in prison, and was released on parole as a registered sex offender, requiring him to wear an electronic monitoring device at all times� Recent DNA tests, however, tell a different story: Semen taken from the victim’s clothing—which could have come only from the perpetrator—did not come from Miller� In fact, when a DNA profile was created from the semen and entered into the Federal Bureau of Investigation’s convicted offender database, another man was implicated in the crime� On April 23, 2007, Miller became the 200th person in the United States to be exonerated through DNA evidence. DNA should clear man who served 25 years� USATODAY JOURNAL, 4/23/2007 10:46 AM. Disponível em http://usatoday30.usatoday.com/news/nation/2007-04-22-dna-exoneration-inside_N.htm, acesso em 23/10/2012.

7 Vários são os fatores responsáveis pela deterioração da lembrança, sendo que os dois principais são: 1) o intervalo até a retenção (a diminuição da precisão da lembrança se deve ao esquecimento normal, o qual é mais rápido após a aquisição e antes da retenção, tornando-se mais lento em seguida) e 2) as informações obtidas após o ocorrido (durante o intervalo entre a aquisição e a retenção, ou mesmo após a retenção, a testemunha está exposta a novas informações sobre o acontecimento presenciado, por exemplo, por comentários posteriores de outras testemunhas, os quais criarão problemas para distinguir entre a informação original e a incorporada posteriormente).”.

8 Eyewitness identifications involve both psychologica1 and procedural factors� The psychological aspects of eyewitness identification challenges human perception and question the human ability to distinguish one person from another� The procedural aspect is the questioning of: police procedures in obtaining eyewitness identification and the court procedures in presenting and interpreting eyewitness testimony� The main questions concerning the psychological aspect of eyewitness identification are: 1) the ability of a person to record characteristics of another; 2) the ability to retain these perceptions and; 3) the ability to communicate accurately and specifically these perceptions�

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Segundo estudo realizado por MARSHALL (1969), há três fatores que devem ser levados em consideração para a efetividade de reconhecimen-tos pessoais: 1 - percepção (modo pelos quais os eventos são interpretados pela testemunha/vítima levando-se em consideração seu estado de humor e emoções); 2 - lembranças: período de tempo decorrido entre o evento e a descrição feita pela testemunha/vítima sobre ele às autoridades, sendo que in-cidem sobre a memória desta outros fatores que podem influenciar na iden-tificação; 3 – articulação: as mesmas palavras são usadas com significados diversosporpessoasdiferentes.Por issomesmoo artigo6ºdoCódigodeProcesso Penal, em seu inciso VI, determina à autoridade policial que proce-da ao reconhecimento de pessoas e coisas assim que tiver notícia e constatar a ocorrência de fato definido como crime, evitando-se, com isso, a influência do tempo sobre a memória de testemunhas e vítimas9.

Dessa forma, aduz-se que, conforme determinado por LOPES (2011), em recente tese de doutorado defendida na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, “quando há procedimento estabelecido para a prática de algum meio de prova, este dever respeitado, sob pena de se atentar contra o devido processo legal e acarretar a nulidade do ato”.

Tanto a interceptação telefônica, quanto o reconhecimento pessoal são atividades de investigação que devem ser enquadrados em tal concepção, sendo imperiosa a obediência às formas estabelecidas10. A obediência às for-malidades é garantia de produção de melhores resultados, já que todo objeto de prova pode ser refutado na fase judicial da atividade.

Ainda, conforme o mesmo autor (ROBERTS, 2009), é possível apon-tar que nos Estados Unidos foi feita recomendação às forças policiais para que adotassem formas mais acuradas para o tratamento do reconhecimento pessoal.

Desta maneira, foi sugerida a substituição do reconhecimento simul-tâneo pelo sequencial, ou seja, os componentes da linha de reconhecimento não são postos às vistas da vítima/testemunha simultaneamente, mas de for-ma sequencial, entrando um após o outro no ambiente de reconhecimento.

9 Conforme pensam LOPES JR e DI GESU (2007): “As contaminações a que estão sujeitas a prova penal podem se minimizadas através da colheita da prova em um prazo razoável, objetivando-se suavizar a influência do tempo (esquecimento) na memória. (...).”..

10 Conforme Andrew Roberts, professor da Universidade de Warwick (Reino Unido), e estudioso do assunto, reconhecimentos feitos a partir de procedimentos bem elaborados, obedecendo-se a sequência de atos e realizados o quanto antes são menos suscetíveis a erros. (ROBERTS, 2009).

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Se por acaso a vítima/testemunha apontar um dos reconhecendos como autor de delito, não terá acesso aos demais da linha, o que difere tal pro-cedimento do “tradicional” (linha de reconhecimento simultâneo), haja vista que terá que tomar uma decisão a cada reconhecendo que entrar no ambiente de reconhecimento.

É direito do investigado, caso concorde em participar da sessão de reconhecimento, de ter todo aparato possível para que haja fidelida-de nos resultados. Assim, conforme ROBERTS (2009)11, o acusado tem o direito de que a prova seja produzida pelo meio mais acurado, com maior precisão possível, não podendo o Estado alegar carência de meios ou tempo para não proceder dessa forma.

Na verdade, os modelos para realização das sessões de reconheci-mento (simultâneo ou sequencial), oferecem vantagens e desvantagens. Em relação ao reconhecimento simultâneo, a vítima/testemunha pode comparar as características físicas de todos os componentes da linha, eleger aqueles que mantêm maior semelhança com o autor12. A partir daí, pode apontar qual deles, componentes da linha, assemelha-se ao culpado. Já no reconhecimento sequencial13 , tal possibilidade inexiste, já que terá que tomar uma decisão em

11 Where identification is, or might become, a central issue in a case, must the police always use procedures which are thought to produce the most reliable identification evidence? In other words, does a suspect have a right to the most accurate identification procedures? One way of addressing the problem of finite resources is to claim that the suspect’s right to the use of the most accurate identification procedures is a qualified right. Dworkin, for example, argues that an absolute right to the most accurate procedures for determining innocence and guilt would require the criminal justice system to have first call on the resources available to a government. Diversion of resources into the criminal justice system to give effect to this right would lead to a state of affairs in which there were insufficient resources to fund other aspects of governments’ welfare obligations.

12 Simultaneous presentation of subjects allows the witness to compare the persons appearing in the procedure to one another. It is suggested that this might lead to the witness selecting the subject who bears the closest resemblance to the culprit, though that resemblance may not, in fact, be particularly close. The suspect may be identified on the basis that he is the ‘best candidate’”

13 Because in the sequential lineup the witness is shown only one image at a time and is required to make a decision in relation to each image before the next is shown, the opportunity to compare subjects does not arise. Because intra-subject comparison is not possible, any identification is more likely to based on there being a close similarity in the suspect’s appearance and the witness’s recollection of the culprit. It has been suggested that, as identification of a suspect through a shallow relative judgment may amount to no more than speculation on the part of the witness, a higher rate of false identification might be expected. This kind of speculation on the part of the witness might be expected to lead to identification of suspects from time-to-time. If the opportunity to speculate is removed then the rate of accurate identification may fall. However, suppose further research were to reveal that the use of sequential lineups brought about a roughly equal reduction in the rate of false and accurate positive identifications; that its use would produce no net gain in procedural accuracy. Some might still advocate adoption of the sequential lineup on the grounds that its use would lead

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relação cada um dos que forem aparecendo à sua frente, podendo, inclusive, isentar o real autor por não reconhecê-lo, evitando, também, “falsos positi-vos”. No entanto, os resultados obtidos pelo sequencial são mais confiáveis, embora seja observado que há menor incidência de autores de crimes reco-nhecidos por tal método. Bom ser também notado que esta consequência é mais aceitável do que a indicação falsa de autoria pelas falhas do modelo simultâneo, o qual permite a escolha do “mais parecido”.

Outro ponto interessante é relativo ao policial (ou policiais) respon-sável pela condução da sessão. De acordo com definição posta por Schuster (2007)14, se o policial que conduz a sessão tem conhecimento de quem é o autor do delito dentre os que compõem a linha ou a sequência de reconhe-cimento, voluntária ou involuntariamente acabará por sugerir à vítima ou à testemunha que aponte este como o reconhecido15.

De tal modo, é interessante que a condução do reconhecimento seja feita por policiais que não conheçam o suspeito, o que fará com que os re-sultados sejam valorados de forma a embasar tomada de decisões em sede policial ou até mesmo em Juízo.

3.1. Reconhecimento pessoal no sistema brasileiro

De acordo com o que está disposto no artigo 226 e seguintes do Có-digo de Processo Penal16, procede-se ao reconhecimento pessoal obedecen-

to an appropriate allocation of the risk of error between suspect and state. A reduction in the rate of accurate positive identifications might be viewed as a acceptable price for greater protection against the risk of false positive identification.

14 Typically, the law enforcement official or lineup administrator knows who the suspect is. Experts suggest that lineup administrators might—whether purposefully or inadvertently—give the witness verbal or nonverbal cues as to the identity of the suspect. For instance, if an eyewitness utters the number of a filler, the lineup administrator may say to the witness, “Take your time . . . . Make sure you look at all the photos.” Such a statement may effectively lead the witness away from the filler. In a “double-blind” lineup, however, neither the administrator nor the witness knows the identity of the suspect, and so the administrator cannot influence the witness in any way.

15 Neste ponto, são conhecidas as “sugestões” feitas no decorrer das sessões: “olhe mais uma vez”, “tens certeza?”, “quer que eu mande que se aproximem?”, “deseja olhar este mais de perto?”

16 Art. 226. Quando houver necessidade de fazer-se o reconhecimento de pessoa, proceder-se-á pela seguinte forma: I - a pessoa que tiver de fazer o reconhecimento será convidada a descrever a pessoa que deva ser reconhecida; II - a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la; III - se houver razão para recear que a pessoa chamada para o reconhecimento, por efeito de intimidação ou outra influência, não diga a verdade em face da pessoa que deve ser reconhecida, a autoridade providenciará para que esta não veja aquela; IV - do ato de

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do-se a uma sequência concatenada de atos, sem o que pode ser maculado o resultado da sessão de reconhecimento.

De tal modo, antes de ser regulada pelo mencionado dispositivo, a necessidadedereconhecimentoétratada,naverdade,peloartigo6ºdoCó-digo de Processo Penal. Em tal dispositivo, observa-se que, dentre as diligên-cias que devem ser realizadas pela autoridade policial quando for até o local do crime, figura o ato de tratar sobre tal procedimento de modo preliminar. Assim, é nesse momento, se possível, que serão apontadas pelas testemunhas e pelas vítimas as características do autor do delito, fato extremamente rele-vante para a realização de outras diligências durante o inquérito.

Esta a principal razão para LOPES JR (2012)17 deduzir sobre a ne-cessidade de estrito atendimento à forma prevista para a realização do ato.

De tal maneira, em sendo possível a indução da vítima em seu re-conhecimento, considera-se necessária a reestruturação do procedimento18 .

reconhecimento lavrar-se-á auto pormenorizado, subscrito pela autoridade, pela pessoa chamada para proceder ao reconhecimento e por duas testemunhas presenciais. Parágrafo único. O disposto no no III deste artigo não terá aplicação na fase da instrução criminal ou em plenário de julgamento. Art. 227. No reconhecimento de objeto, proceder-se-á com as cautelas estabelecidas no artigo anterior, no que for aplicável. Art. 228. Se várias forem as pessoas chamadas a efetuar o reconhecimento de pessoa ou de objeto, cada uma fará a prova em separado, evitando-se qualquer comunicação entre elas.

17 Trata-se de uma prova cuja forma de produção está estritamente definida e, partindo da premissa de que – em matéria processual penal – forma é garantia, não há espaço para informalidades judiciais. Infelizmente, prática bastante comum na praxe forense consiste em fazer reconhecimentos informais, admitidos em nome do livre convencimento motivado.

18 Observa-se que a possibilidade de erro existe e, quando estes ocorrem, tumultuam-se investigação e processo. Mesmo que sejam seguidos os ritos estabelecidos, ainda assim os resultados podem ser facilmente questionados. Como exemplo, observe-se o caso a seguir, amplamente divulgado pela mídia: GAZETA DO POVO. ON LINE. “Tragédia na Praia dos Amores em Caiobá. Disponível em http://www.gazetadopovo.com.br/vidaecidadania/conteudo.phtml?tl=1&id=853179&tit=Tragedia-na-Praia-dos-Amores-em-Caioba, acesso em 02/10/2012. Em determinado trecho da matéria é possível compreender que as diligências policiais realizadas na sessão de reconhecimento, em tese, determinaram que a vítima reconhecesse pessoa diversa (O perito Rodrigo Soares Santos, contratado pela defesa do acusado de ter cometido o crime no Morro do Boi, em Matinhos, afirmou que a estudante Monik Pegorari de Lima foi induzida ao erro pela polícia no reconhecimento de Juarez Ferreira Pinto. Ementrevistacoletivanatardedestaquarta-feira(1º),Santosdissequeautilizaçãodepessoascombiotipos físicos muito diferentes, fez com que a estudante associasse a imagem do criminoso com Juarez.). Exemplo de complicações geradas pelo mau uso de tal meio de obtenção de provas está disposto no conjunto de investigação gerado pelo crime cometido contra Monik Pegoraro de Lima e seu namorado Osíris Del Corso em 31 de janeiro de 2009, conforme fatos amplamente divulgados pela mídia. Mesmo que não se tenha a pretensão de avaliar a execução de atos de investigação no decorrer de tal procedimento, realizado pela Polícia Civil paranaense, é possível perceber pela leitura de matérias veiculadas que penderam dúvidas sobre a regularidade do resultado de reconhecimentos pessoais efetuados pela vítima Monik. Segundo peritos contratados pela defesa de Juarez Ferreira Pinto, apontado como autor do delito, Monik teria sido induzida ao erro pela Polícia Civil.

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Tal “indução a erro” pode ser causada até mesmo se o procedimento for exe-cutado de acordo com as regras do Código de Processo Penal. Por tais regras, e conforme está disposto pelo artigo 226 do Código de Processo Penal, a tes-temunha ou a vítima que tiver de fazer o reconhecimento será “convidada”19 a descrever a pessoa que deva ser reconhecida. Daí deduz-se que, antes da sessão de reconhecimento pessoal, a testemunha ou a vítima deve fornecer características físicas e do traje do suspeito, com o que vai ser preparada a sessão de maneiras a deixar que os componentes sejam trajados todos de ma-neira mais parecida possível20.

Em seguida, pela regra do inciso II, a pessoa a ser reconhecida deve ser colocada, se possível, ao lado de outras que possuírem semelhança com ela. A partir daí, o reconhecedor deve ter acesso ao grupo e, caso seja possível, apontar quem deva ser reconhecido dentre os presentes.

Bom ser citado que, nos termos dos artigos 227 e 228 do Código de Processo Penal, o mesmo rito aplicado ao reconhecimento pessoal deverá ser seguido para objetos a serem reconhecidos. Além disso, se houver mais de um reconhecedor, deverão ser separados para que não se comuniquem, não sendo esclarecido se antes ou depois das sessões.

O inciso III do artigo 226 determina que se o reconhecedor demons-trar estar intimidado pela presença do suspeito será providenciado que este último não o veja durante a sessão. Tal dispositivo indica que a testemunha ou a vítima demonstraram ou alegaram temor ou receio de participarem da atividade se puderem ser vistas pelas pessoas a serem reconhecidas. Deve ser levado em conta que, na fase judicial, provavelmente não será possível deter-minar que o denunciado, o réu, fique alheio à identidade do reconhecedor, o que causa problemas de toda ordem na sequência dos atos.

19 Pode a vítima se recusar a participar de sessão de reconhecimento na fase de investigação? Sim. Do mesmo modo que o investigado não é obrigado a comparecer a tal sessão, também à vítima assiste o direito de não participar de reconhecimentos pessoais ou fotográficos. Todavia, em relação às testemunhas há o dever de comparecer e participar, embora seja bastante temerário o comparecimento forçado de reconhecedores pela possibilidade de ocorrência de resultados diversos dos esperados. Desse modo, fica dito que reconhecimento pessoal é ato de caráter voluntário.

20 Dessa maneira, não se podem colocar quatro homens com barba e cabelos compridos ao lado de um com cabelos curtos e sem barba, ainda mais se, por exemplo, a vítima disser que o autor do crime tinha estas características. Tal situação pode induzi-la em erro e acarretar a desconsideração dos resultados. Ou seja, ela será induzida a reconhecer o componente que estiver trajado ou de características físicas mais próximas daquele que traz em mente.

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Assim, a experiência demonstra que, mesmo que haja o reconheci-mento pessoal na fase policial, respeitando-se as formalidades previstas no referido artigo, a situação tende a mudar quando, colocada frente a frente do réu, a vítima ou a testemunha são “convidadas” a novamente reconhecê-lo no Juízo. Dois são os fatores que influenciam o reconhecimento nesta segunda fase: o tempo decorrido entre o primeiro reconhecimento e a audiência ju-dicial, algumas vezes de meses ou anos, e o temor em proceder ao reconhe-cimento ao olhar no rosto do denunciado, muitas vezes algemado perante o Juízo21 ou, ainda pior, já solto, podendo ter encontrado com o reconhecedor na entrada do Fórum ou no corredor de espera.

Tal entendimento também é compartilhado por LOPES (2011)22, quando assevera a necessidade de produção antecipada de prova no reconhe-cimento pessoal na fase de investigação preliminar.

Ou seja, há problemas a serem resolvidos no procedimento adotado pelas polícias e pelo Poder Judiciário no Brasil23 quanto ao sistema de reco-

21 Deve ser ainda levado em conta que, muitas vezes e quando o réu está solto, testemunha, vítima e familiares aguardam pelo “pregão” no saguão do fórum, o que já determina a temeridade em participar de reconhecimentos, haja vista que não são separados dos demais presentes.

22 A partir do momento que o reconhecedor teve contato com a pessoa a ser reconhecida, a imagem guardada na memória influirá no segundo reconhecimento. Assim, estará o ato viciado. É, portanto, meio irrepetível de prova. Assim, deve sempre ser produzido com todas as cautelas e observando o procedimento existente em lei para sua realização (arts. 226 e ss. do Código de Processo Penal). Em resumo, por somente ser produzido uma única vez, para que forme elementos de prova, deve ser realizado de forma perfeita, respeitando rigorosamente o procedimento legal e sempre na presença das partes e do juiz, em respeito ao princípio do contraditório. É também um meio de prova urgente e, por isso, deve ser realizado antecipadamente. Levando em conta a influência que a memória produz no reconhecimento, deve-se refletir o caráter de urgência existente na sua produção. O reconhecimento deve ser um dos primeiros atos de investigação de um fato criminoso, pois, para a sua adequada realização, exige-se que o sujeito ativo recorde muito bem a imagem da pessoa ou da coisa envolvida.”. Ainda assevera tal autora: “Em resumo, tendo em vista que o reconhecimento se trata de um meio de prova irrepetível, pois somente pode ser produzido uma vez, deve sempre ser realizado de acordo com o procedimento previsto em lei e com a participação das partes e do juiz, em respeito ao princípio constitucional do contraditório. Por ser meio de prova urgente, tendo em vista a influência negativa que o tempo acarreta na memória, deve ser realizado o mais rápido possível, preferencialmente na fase de investigação, antecipando-se a sua produção, com respeito ao rito e com a participação das partes e do juiz.

23 Conforme entendimentos jurisprudenciais do Superior Tribunal de Justiça-STJ, é possível determinar que ainda se está bastante distante de atendimento ao que determina a Constituição Federal em sede de direitos e garantias fundamentais. Somente como exemplo, a ementa de uma das decisões: “PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS PREVENTIVO SUBSTITUTIVO DE RECURSO ORDINÁRIO. HOMICÍDIO. RECONHECIMENTO PESSOAL. DIREITO AO SILÊNCIO. AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO. PROVIDÊNCIA PROBATÓRIA FACULTADA AO JUIZ. LIVRE CONVENCIMENTO. 1. A jurisprudência desta Corte é firme no sentido de que o reconhecimento pessoal não é obrigatório, ficando ao prudente arbítrio do Juiz da causa a necessidade

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nhecimento pessoal, devendo ser levado em conta que, em sede de crimes patrimoniais e contra a liberdade sexual, a prova por tal meio é muitas vezes essencial para a formação de culpa.

As modificações deduzidas pela doutrina são, portanto, necessárias e urgentes, o que pode ser feito ainda no Projeto do Novo Código de Processo Penal, em trâmite no Congresso Nacional. No entanto, conforme aduz LO-PES JR (2009), as previsões não são favoráveis24.

Em virtude da carência de doutrina especializada sobre o tema, e pela simples repetição do que determina superficialmente a lei, é possível apon-tar que, como indicado acima por LOPES JR., se já não se tem disciplina

de realização dessa diligência. Precedentes do STJ e STF. 2. Habeas corpus conhecido e ordem denegada. (HC 164.870/SP, Rel. Ministro ADILSON VIEIRA MACABU (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/RJ), QUINTA TURMA, julgado em 21/06/2012, DJe 03/08/2012).”. E outra: “PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. ROUBO CIRCUNSTANCIADO. RECONHECIMENTO PESSOAL. VÍCIO. SUPERVENIENTE RECONHECIMENTO JUDICIAL. EIVA SUPERADA. REGIME INICIAL FECHADO. MOTIVAÇÃO: ELEMENTOS CONCRETOS. ILEGALIDADE: AUSÊNCIA. 1. Resta superada a alegação de vício em reconhecimento pessoal, levado a cabo em sede policial, diante de congênere providência regularmente realizada em juízo. 2. Encontra-se motivada a sujeição ao regime inicial fechado quando alicerçado em elementos concretos, a despeito destes não terem sido empregados na fixação da pena-base, fixada no mínimo legal. 3. Ordem denegada. (HC 152.988/SP, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 02/02/2012, DJe 15/02/2012).

24 O reconhecimento de pessoas e coisas está previsto atualmente no art. 226 e ss. do CPP, e pode ocorrer tanto na fase pré-processual como também processual. No anteprojeto de reforma do CPP, o reconhecimento está regrado nos arts. 191 a 193, sendo o ponto nevrálgico estabelecido no art. 191. Basta uma rápida comparação para ver que não há nenhuma evolução ou reforma digna de nota. Os velhos problemas persistem: quantas pessoas devem participar do ato de reconhecimento? E a problemática lacuna em torno do “reconhecimento” por fotografias, será resolvida? E o reconhecimento que dependa de outros sentidos, como o acústico, olfativo ou táctil, quando será disciplinado? No anteprojeto do CPP, nada consta.”. LOPES JR, Aury. Reforma processual penal e o reconhecimento de pessoas: entre a estagnação e o grave retrocesso. Boletim IBCCRIM : São Paulo, ano 17, n. 200, p. 16-17, julho 2009. Ainda, interessante observar o que vem sendo aprovado no Anteprojeto de Reforma do Código de Processo Penal quanto a tal matéria: Seção IV. Do Reconhecimento de Pessoas e Coisas e da Acareação. Art. 191. Quando houver necessidade de fazer-se o reconhecimento de pessoa, proceder-se-á da seguinte forma: I – a pessoa que tiver de fazer o reconhecimento será convidada a descrevera pessoa que deva ser reconhecida; II – a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la; III – a autoridade providenciará para que a pessoa a ser reconhecida não veja aquela chamada para fazer o reconhecimento; IV – do ato de reconhecimento lavrar-se-á auto pormenorizado, subscrito pela autoridade, pela pessoa chamada para proceder ao reconhecimento e por 2 (duas)testemunhas presenciais. V – no reconhecimento do acusado será observado o disposto no art. 265, §4o. Parágrafo único. O disposto no inciso III deste artigo não terá aplicação na fase da instrução criminal ou em plenário de julgamento. Art. 192. No reconhecimento de objeto, proceder-se-á com as cautelas estabelecidas no artigo anterior, no que for aplicável. Art. 193. Se várias forem as pessoas chamadas a efetuar o reconhecimento de pessoa ou de objeto, cada uma fará a prova em separado, evitando-se qualquer comunicação entre elas.

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para a realização de reconhecimentos pessoais (e fotográficos), quiçá quanto aos que necessitam ou dependem de outros sentidos para serem realizados (acústicos, olfativos ou tácteis). O Código de Processo Penal fala apenas em “pessoas e coisas”, não tendo ainda definição sobre demais meios de gravação de imagem, como é possível observar no sistema processual português.

Outra questão interessante é a falta de regramento a ser seguido na sessão de reconhecimento em si, ou seja, antes, durante e após o ato de ob-tenção do meio de prova. Não se exige número mínimo de pessoas (somente deduz-se que sejam exigidas duas outras além do suspeito), sequências de en-trada dos “reconhecendos” no local a ser utilizado para a sessão de reconheci-mento25, condições de repetição do ambiente, das vestimentas e, no mínimo, das características físicas do suspeito26, presença do advogado do reconheci-do, prévia comunicação ao Juízo, à defesa e ao representante do Ministério Público para a realização das sessões, isso dentro outros pontos considerados

25 No que tange ao local em que são realizadas as sessões de reconhecimento, tal ponto de discussão mereceria estudo mais aprofundado para que fosse possível repetir com a maior fidelidade possível o ambiente em que o reconhecedor captou a imagem, a voz ou algum ponto característico do autor do delito. No entanto, o que se vê nas Delegacias de Polícia e nas unidades da Polícia Militar pelo Brasil é crucial para entender os motivos pelos quais o reconhecimento pessoal vem sendo atacados como meio de obtenção de prova pelos estudiosos do Direito Penal. São muito comuns reconhecimentos pessoais feitos com um só “reconhecendo” (por óbvio, o suspeito), com ele algemado, trajando roupas e com semblante de quem está recolhido ao cárcere (sapatos sem cadarços, sem cinto nas calças, cabelos despenteados, barba por fazer, camisa abotoada até o colarinho etc.) ou completamente diferente em sua aparência dos demais. Além disso, são comuns reconhecimentos feitos através de frestas de portas, por buracos em placas de compensado, por “olhos mágicos” de portas de gabinetes, por persianas ou pelas cortinas da sala do cafezinho, sem iluminação e sem as mínimas condições de reprodução de ambientes que se exigem em tal assunto.

26 Quanto às características físicas e de identificação do suspeito, já se decidiu que a vítima deve relatar algo que possibilite minimamente o reconhecimento do suspeito como autor do crime. Assim: “Número: 70050185339. Tribunal: Tribunal de Justiça do RS. Seção: CRIME. Tipo de Processo: Apelação Crime. Órgão Julgador: Sexta Câmara Criminal. Decisão: Acórdão. Relator: Aymoré Roque Pottes deMello.ComarcadeOrigem:ComarcadeTramandaí.Ementa:ACNº. 70.050.185.339AC/M 4.074 - S 30.08.2012 - P 67 APELAÇÃO CRIMINAL. ROUBO MAJORADO. TESE RECURSAL ABSOLUTÓRIA CENTRADA NA AUSÊNCIA DE PROVA SUFICIENTE PARA A CONDENAÇÃO. ACOLHIMENTO. INCIDÊNCIA DO PRINCÍPIO HUMANITÁRIO DO IN DUBIO PRO REO (ART. 386, INC. VII, DO C.P.P.). ABSOLVIÇÃO. A única prova existente contra o réu no processo reside no reconhecimento pessoal feito pela vítima direta do fato, única que teve contato com o assaltante. Ocorre que a vítima afirma não ter visto o rosto do autor do fato, jamais tendo apontado qualquer característica física dele que possibilitasse o reconhecimento. Forma do ato de reconhecimento que pode ter gerado indução do reconhecedor, pois o réu foi colocado sozinho na sala logo após ter sido preso em razão de outro processo. Prova frágil para embasar a condenação, quando desacompanhado de qualquer outro elemento de prova aconfirmaroaponte.Absolviçãodoréuquese impõe.APELOPROVIDO.(ApelaçãoCrimeNº70050185339, Sexta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Aymoré Roque Pottes de Mello, Julgado em 30/08/2012). Data de Julgamento: 30/08/2012”. Disponível em http://www1.tjrs.jus.br/busca/?q=%22reconhecimento+pessoal%22&tb=jurisnova, acesso em 07/10/2012.

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importantes para melhor aceitação dos resultados como meio de obtenção de prova na investigação.

Por fim, interessante citar que o investigado, indiciado ou réu não é obrigado a participar de sessões de reconhecimento pessoal, haja vista o exercício do direito a não produzir prova contra si mesmo 27.

Esta também uma das razões pelas quais o reconhecimento foto-gráfico é tido como de precário valor, devendo necessariamente ser cotejado com outras provas para que possa obter maior respaldo. Também vale tal as-sertiva para os reconhecimentos feitos por imagens de câmeras de segurança, circuitos internos de televisão, celulares etc., não se podendo admitir regras menos rígidas para procedimentos tão importantes.

De acordo com LOPES JR (2012), o reconhecimento fotográfico somente pode servir como ato preparatório para o reconhecimento pessoal, sendo vedado seu uso como um substitutivo àquele ou, ainda, como prova inominada (admissão do auto de reconhecimento fotográfico sem o poste-rior auto de reconhecimento pessoal).

O referido autor deixa claro que o reconhecimento fotográfico so-mente pode ser utilizado em duas oportunidades, quais sejam, de forma direta, com o suspeito ou imputado presente (caso concorde em participar do ato), e de forma indireta, haja vista o suspeito ou imputado não estar presente. No primeiro caso, inclusive, seria possível substituir a descrição referida no inciso I do artigo 226 do Código de Processo Penal pela fotografia reconhecida.

Ademais, também se faz necessário observar que não se pode subs-tituir um modo de produção de prova (reconhecimento pessoal), por outro (reconhecimento fotográfico) quando os procedimentos para a formação dos resultados são tão diferentes. Na verdade, segundo Fernandes, Almei-da Moraes (2011), busca-se burlar a disciplina legal do meio de prova que poderia ter sido adotado, o que acarreta vício de origem e, se for usado na instrução, vício processual28.

27 SAAD (2004) diz que “Portanto, além de calar-se, negando-se a declarar, ou até mentir, pode também o acusado não contribuir para a atividade probatória levada a cabo pelos órgãos de investigação. O acusado não pode ser compelido a declarar nem a participar de qualquer atividade que possa porventura incriminá-lo ou prejudicar sua defesa.”.

28 Tratando sobre a citada substituição de prova, os autores dizem que “Também há referências à ocorrência de substituição em casos de reconhecimento. Assim, substitui-se o reconhecimento pessoal pelo fotográfico, quando o primeiro não pode ser realizado. Em juízo, substitui-se o reconhecimento

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Questões interessantes surgem quando a discussão avança para elaboração de retratos falados e manipulação de fotografias de suspeitos para submissão a reconhecimentos fotográficos. Ainda, é necessário tecer comentários sobre álbuns de fotografias (agora, digitalizados) e oportuni-dade para fotografar suspeitos na fase de investigação.

Desse modo, é possível confeccionar retratos falados atualmente com o uso de softwares avançados, em nível bastante diferente dos antigos desenhos à mão. Tal diligência não pode ser comparada a uma sessão de reconhecimento fotográfico, mas ao estabelecimento de perfil de suspeitos a serem procurados e investigados pela Polícia.

Assim, não há interferência no contexto apresentado se o perito incluir boné, chapéu, bigode, óculos escuros etc., para que a descrição da vítima/teste-munha aproxime-se ao máximo do que mantém em sua memória acerca do autor do delito. O estabelecimento de padrões de autoria é elementar para refinamen-to dos atos de investigação, restringindo o campo de trabalho e economizando meios para a solução do caso. Se houver semelhanças entre o retrato falado e o suspeito indiciado, tal resultado interessa, entretanto, somente à investigação.

A situação é modificada quando se aborda a segunda questão. Tendo em vista a possibilidade de reconhecimento fotográfico como meio preparatório para o reconhecimento pessoal, e levando-se em consideração as peculiaridades do ato criminoso (por exemplo, se o autor do assalto utilizava óculos, se o estupra-dor estava de gorro, se o sequestrador usava barba etc.), seria possível manipular fotografias do suspeito para que sejam mostradas no reconhecimento?

No que diz respeito ao reconhecimento pessoal, Lopes Jr. (2012, p. 685) traz exemplo do ordenamento alemão em que há possibilidade de mo-dificação do aspecto físico do imputado (cortar-lhe os cabelos, raspar barba etc.) para que participe da sessão de modo aproximado à descrição da vítima/testemunha29, o que não é permitido pela legislação brasileira.

pelo apontamento do acusado na audiência pela testemunha. Mencionam Rosa Maria Rocha e Teresa Alves Martins crítica à admissão, pelo Supremo Tribunal de Portugal, de reconhecimento atípico efetuado em audiência de julgamento sem observância dos formalismos legais para o reconhecimento de pessoas, com invocação do princípio da livre apreciação da prova, embora o Tribunal Constitucional tenha afirmado a impossibilidade de se admitir como prova reconhecimento feito sem a observância dos requisitos legais. Lembra-se de que o reconhecimento na audiência tem sido considerado em algumas decisões como meio de identificação e não de reconhecimento, não submetido, por isso, ao regime deste. (p. 38).

29 Interessante notar que, no Brasil e em alguns casos, o indiciado/réu modifica suas características físicas

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Mas o que se deseja é abrir discussão sobre a possibilidade de mo-dificação de fotografias do suspeito para que sejam mostradas no ato (incluir um boné, retirar o bigode, envelhecê-lo etc.). Dessa forma, e de acordo com o que foi dito pela vítima/testemunha, seria possível definir que todas as fotografias que forem mostradas tenham o adereço, ou estejam de bigode, ou com cabelos loiros, o que definirá aproximação com a descrição original.

Não há restrição às modificações em tela, haja vista que podem até mesmo servir para substituir o apontamento de características pela vítima/testemunha antes da sessão de reconhecimento pessoal, conforme apontado por LOPES JR (2012, p. 683-684). Todavia, não poderá manter valor se não for realizada sessão de reconhecimento pessoal30 em seguida.

No que diz respeito aos álbuns de fotografias, estes atualmente e em sua quase totalidade estão contidos em programas computacionais, com o que são agrupadas as fotos de suspeitos, de presos e indiciados pelo delito cometido, pela região em que atuam, pelo grupo criminoso do qual fazem parte etc., tudo com o objetivo de facilitar a identificação de ações criminosas perpetradas.

Bom ser comentado que a grande maioria das forças policiais toma tais providências, não sendo incomum a identificação de suspeitos por vítimas/testemunhas por tais padrões.

Ainda, tais fotografias podem ser obtidas por atos de identificação criminal, conformedispõeaLeinº12.037/2009,oupelosbancosdedadosdisponibilizados aos órgãos policiais, os quais contêm dados de registros de identidade, de carteiras de habilitação, do sistema prisional. Interessante notar que a Internet também disponibiliza importantes ferramentas de identifica-ção de suspeitos, haja vista a disseminação de redes sociais (Facebook, Orkut, LINKEDIN, etc.), consideradas como “fontes abertas” de investigação, sítios que armazenam fotos e dados interessantes para qualquer investigação.

aparentes durante o lapso de tempo decorrido entre o reconhecimento em sede policial e a audiência, situação em que novamente será visto pela vítima/testemunha. Assim, corta cabelos, pinta-os, raspa a barba ou deixa-a crescer, o que pode acarretar que não se confirme o reconhecimento. Assim, mais uma razão para que se realize produção antecipada de provas quando do reconhecimento pessoal, nos moldesdoartigo6ºdoCPP.

30 Mas, e se o suspeito não concordar em utilizar um boné, por exemplo, no ato da sessão de reconhecimento pessoal? Mais uma vez tem que ser apontado que o reconhecimento pessoal é ato voluntário pelo sistema processual brasileiro, não se podendo obrigá-lo a modificar sua apresentação durante a sessão de reconhecimento.

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Portanto, não há ilegalidade na formação de bancos de dados de sus-peitos para uso em sede policial, sendo questão de natureza técnica. O que não pode ocorrer é a indução a reconhecimentos ou, ainda, a desconfigura-ção do ato com a ausência de posterior reconhecimento pessoal.

3.2. O reconhecimento pessoal na legislação comparada

Pela proposta desse estudo, passa-se a citar as principais caracterís-ticas dos sistemas de alguns países no que diz respeito ao reconhecimento pessoal, seja visual presencial ou por fotografias, isso em atendimento à ideia inicial de comparar os meios de obtenção de provas alienígenas com o que vige no direito processual brasileiro.

De antemão revela-se interessante mencionar que as legislações ana-lisadas não dedicam muitos dispositivos ao reconhecimento de pessoas e coi-sas, modificando-se em maior grau no que tange ao momento em que são realizados os procedimentos e ao valor probatório dos resultados obtidos.

No entanto, já se nota a necessidade de adequação dos procedi-mentos aos meios tornados disponíveis pela tecnologia para gravação de imagens e sons, o que certamente será objeto de discussão nos tribunais superiores daqui para frente. Quer dizer, em virtude da grande quanti-dade de câmeras e de equipamentos de gravação de dados espalhados por todos os cantos das cidades, rodovias, shoppings, bancos, lojas etc., é possível concluir que, se forem utilizados como meio de apontamento preliminar de suspeitos, deve haver um procedimento para tanto, por mi-nimamente regrado que possa ser.

Passa-se, então, ao estudo sobre os dispositivos sobre reconhe-cimento pessoal em sistemas processuais alienígenas, com o que se pre-tende deduzir como está a situação do instituto na legislação nacional através de quadro comparativo.

3.2.1. Reconhecimento pessoal no sistema processual italiano

Pelo que consta do Codice di Procedure Penale da Itália, há a pre-visão do que foi chamado de “verdadeiro procedimento preliminar ao re-conhecimento” por LOPES JR (2012, p. 682).

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De tal modo, o reconhecimento no procedimento italiano segue as determinações de forma previstas no artigo 213 e seguintes do mencionado código, pelo que deverá o juiz convidar a vítima ou a pessoa a ser reconhe-cedora a descrever a pessoa a ser reconhecida. Neste ato, deverá descrevê-la, indicando todas características possíveis.

Importante mencionar que, por este sistema, a testemunha ou a vítima são questionadas acerca da possibilidade de já terem participado de algum outro “reconhecimento”, ou seja, se já viram o suposto autor do delito por fotografia ou por imagens. A partir daí, será elaborada uma ata em que estarão presentes todos estes dados. Somente daí se seguirá a sessão propriamente dita. (BONILINI; CONFORTINI, 2012)31.

Portanto, no sistema processual penal italiano é possível a realização de sessão de reconhecimento para objetos, o que não é previsto como rito es-pecífico pelo artigo 226 do Código de Processo Penal brasileiro. Trata-se de importante meio de comprovação da verossimilhança de afirmações em sede de investigação preliminar, haja vista a possibilidade de reforço de hipóteses na formação dos resultados a serem apresentados ao Juízo.

Além disso, fica caracterizado que há meios de identificação por re-conhecimento de pessoas (artigo 213 do CPP italiano), coisa (artigo 215 do mesmo código) ou de voz, som ou qualquer outra coisa que possa ser ob-jeto de percepção sensorial (artigo 216 do CPP italiano) (TONINI, 2002, p. 182). Segundo TONINI (op� cit�), qualquer irregularidade cometida no desenvolvimento das sessões de reconhecimento acarretará dúvidas na ido-neidade do que chamou de “resultado probatório”.

Outro ponto a ser considerado é o número de pessoas que devem ser chamadas para compor a fila de “reconhecendos”32. Pelo que se depreende dos dispositivos do Código de Processo Penal italiano, são exigidas pelo menos duas pessoas para acompanhar o suspeito na exibição ao reconhecedor, devendo ser observado que devem ser fisicamente semelhantes a ele para os efeitos desejados. Ainda, devem manter tal semelhança também nas vestimentas.

31 “La ricognizzoni è quel complesso mezzo di prova finalizzato a La conferma de un ato conoscitivo: attraversso esso, a una persona che abbia visto un determinato individuo o abbia precepito con i propri una cosa si chiede di riconoscerla individuandola tra altre simili.”.

32 Trata-se das pessoas que serão postas ao lado do suspeito para cumprimento do que determina a legislação. Todavia, não se encontra menção a este termo no sistema italiano, tampouco no nacional, sendo apenas utilizado no meio policial para facilitar o desenvolvimento do procedimento.

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Além disso, o suspeito pode escolher o local em que queira se posicio-nar dentre as demais pessoas para que participe da sessão, o que não é sequer citado no caso brasileiro. Ao ser obrigado a se posicionar em determinado local, é possível definir que o investigado passe a ser mais um objeto do que sujeito em tal fase, o que impede que exerça com plenitude seu direito à defesa33.

Em seguida à descrição detalhada da pessoa do autor do delito, ou de quem se queira como reconhecido, o reconhecedor será convidado a se reti-rar do local. Depois de tomadas as providências anteriores, o reconhecedor retorna à sala e, perguntado, aponta se reconhece algum dos presentes, sendo que, em caso positivo, deverá “precisar sua convicção”.

Por fim, outra diferença a ser indicado diz respeito à possibilidade do acusado também ser chamado a efetuar um reconhecimento no sistema italia-no. Todavia, como garantia fundamental, poderá exercer seu direito ao silêncio.

3.2.2. Reconhecimento pessoal no sistema processual português

O sistema processual penal português acolheu o reconhecimento pessoal no artigo 147 do CPP34, pelo que é possível definir as principais ca-racterísticas de tal procedimento na legislação daquele país.

33 Interessantemencionar que, de acordo com a Ley de Procedimiento Policial (Ley nº18.315 de 5de julio de 2008 – Código de conducta para funcionarios encargados de hacer cumplir la ley), da República Oriental do Uruguai, naquele país também é possível a escolha pelo suspeito do local em que quer ficar na linha de reconhecimento (artigo 66, número 2).

34 Artigo 147.º Reconhecimento de pessoas 1 - Quando houver necessidade de proceder aoreconhecimento de qualquer pessoa, solicita-se à pessoa que deva fazer a identificação que a descreva, com indicação de todos os pormenores de que se recorda. Em seguida, é-lhe perguntado se já a tinha visto antes e em que condições. Por último, é interrogada sobre outras circunstâncias que possam influir na credibilidade da identificação. 2 - Se a identificação não for cabal, afasta-se quem dever proceder a ela e chamam-se pelo menos duas pessoas que apresentem as maiores semelhanças possíveis, inclusive de vestuário, com a pessoa a identificar. Esta última é colocada ao lado delas, devendo, se possível, apresentar-se nas mesmas condições em que poderia ter sido vista pela pessoa que procede ao reconhecimento. Esta é então chamada e perguntada sobre se reconhece algum dos presentes e, em caso afirmativo, qual. 3 - Se houver razão para crer que a pessoa chamada a fazer a identificação pode ser intimidada ou perturbada pela efectivação do reconhecimento e este não tiver lugar em audiência, deve o mesmo efectuar-se, se possível, sem que aquela pessoa seja vista pelo identificando. 4 - As pessoas que intervierem no processo de reconhecimento previsto no n.º 2 são, se nissoconsentirem, fotografadas, sendo as fotografias juntas ao auto. 5 - O reconhecimento por fotografia, filme ou gravação realizado no âmbito da investigação criminal só pode valer como meio de prova quandoforseguidodereconhecimentoefectuadonostermosdon.º2.6-Asfotografias,filmesougravações que se refiram apenas a pessoas que não tiverem sido reconhecidas podem ser juntas ao auto, mediante o respectivo consentimento. 7 - O reconhecimento que não obedecer ao disposto neste artigo não tem valor como meio de prova, seja qual for a fase do processo em que ocorrer. Código de Processo Penal português, disponível em http://www.pgdlisboa.pt/pgdl/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=199&tabela=leis, acesso em 07/10/2012.

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Conforme consta, o reconhecedor é também incitado a descrever com detalhes a pessoa a quem deva reconhecer, o que determina que seja ou-vida em declarações antes da sessão de reconhecimento, fato que é também mencionado em seguida, eis que é também perguntada se já havia visto o suspeito antes e em que condições. Ademais, é parte do procedimento a ela-boração de questões ao reconhecedor que reforcem ou não a credibilidade no resultado do reconhecimento.

A sequência da sessão de reconhecimento por esse sistema também é revestida de garantias inexistentes no sistema nacional. De acordo com o que está previsto pelo artigo 147 do Código de Processo Penal português, se o re-conhecedor não der certeza sobre a identificação do suspeito, serão colocadas outras pessoas com características físicas semelhantes (traços físicos e roupas, por exemplo) para nova rodada de reconhecimento.

Importante observar que, de acordo com o mesmo dispositivo, se não forem seguidos os passos determinados por este dispositivo, o reconhe-cimento ou os resultados obtidos não poderão servir como meio de prova. Ainda, fica também indicado que, se a identificação for cabal já no primeiro contato, não serão colocadas outras pessoas com semelhanças físicas ao lado do suspeito, conclusão retirada da leitura do dispositivo em tela.

Assim, embora se tenha alegado que a legislação portuguesa possua regramentos mais evoluídos do que a brasileira na proteção das garantias fundamentais do investigado/suspeito, de testemunhas ou de vítimas, é imperioso também considerar que, de acordo com entendimen-tos jurisprudenciais encontrados sobre o tema em tribunais daquele país revelaram pouco ou nenhum avanço sobre os procedimentos adotados no Brasil em tal matéria.

Bom ser notado que, conforme entendimento jurisprudencial sobre a matéria pelo Tribunal da Relação de Coimbra, é possível afirmar que não se dis-pensa o reconhecimento pessoal realizado na fase do inquérito policial, não ne-cessitando o ato ser reproduzido na esfera judicial (audiência em julgamento)35.

35 PORTUGAL.TribunaldaRelaçãodeCoimbra.NºConvencional:486/07.2.GAMLD.C1JTRCRelator: GOMES DE SOUSA Descritores: PROVA POR RECONHECIMENTO PROIBIÇÃO DE VALORAÇÃO DE PROVAS Data do Acordão: 05/05/2010. Votação: UNANIMIDADE. Tribunal Recurso: COMARCA DA MEALHADA Texto Integral: S Meio Processual: RECURSO PENAL. Decisão: CONFIRMADA. Legislação Nacional: 147º, 355º DO CPP. Disponível emhttp://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/55466d6aa2c66c848025772a0035046f ?OpenDocument, acesso em 07/10/2012.

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Conforme se depreende do julgado acima mencionado, tam-pouco se exige em Portugal que se proceda ao novo reconhecimento de forma obrigatória na fase judicial, dito que, se acaso o juiz entendê-lo como necessário, deverá seguir as determinações do artigo 147 do Có-digo de Processo Penal.

Ademais, percebe-se que o referido artigo determina que a seme-lhança física dos indivíduos que compõem a sequência para reconhecimen-to é fator de ordem para que a sessão tenha os efeitos de meio de prova (valor). Ou seja, conforme o julgado a seguir colacionado, embora não acarrete nulidade, o reconhecimento pessoal realizado sem atendimento aos preceitos do artigo 147 do CPP em Portugal pode definir “uma maior fragilidade na livre apreciação que o julgador deve fazer das provas obtidas”, podendo, inclusive, não ter valor algum.

Todavia, e de acordo com aLei nº 48/2007, de 29de agosto, foiregulado o reconhecimento por fotografia, por filmagens ou gravações no direito processual penal português, o que representa avanço em relação à le-gislação brasileira. Não é demais apontar que não raramente são apresentados indícios de participação de indivíduos através de fotografias ou de gravações de circuitos internos de segurança, o que traz problemas no ato da formaliza-ção de reconhecimentos por carência de disposições legais.

Dessa maneira, conclui-se que, também em Portugal, a efetividade do dispositivo em tela sofre sérias influências da estrita obediência à forma, o que pende para o descumprimento na fase pré-processual. Interessante ser observada a semelhança do menor valor (ou até mesmo desvalor) dado à ses-são de reconhecimento realizada sem cumprimento das formalidades legais com o instituto da inutilizzabilitá, previsto pelo sistema processual italiano, conforme será tratado neste trabalho.

3.2.3. Reconhecimento pessoal no sistema processual espanhol

Nos termos do que está determinado pela Ley de Enjuiciamento Cri-minal (LECrim), em seu artigo 368 e seguintes, a função de identificação do acusado é “função típica da investigação preliminar, sem a qual não se pode produzir a acusação”. (LOPES JR., 2012, p. 681). De tal modo, a execução de “la diligencia de reconocimiento en rueda” é considerada inidônea para ser realizada em plenário ou em algum ato de juízo oral.

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A argumentação utilizada para tanto é baseada principalmente no tempo que geralmente decorre entre a ocorrência do fato delituoso, a realização de sessão de reconhecimento na fase preliminar e a realização de audiência em contraditório perante a autoridade judicial. Com relativa demora, é possível que a testemunha ou a vítima percam informações e me-mórias que seriam importantes para assegurar maior fidelidade a eventual reconhecimento pessoal realizado, com o que se determina a produção an-tecipada de prova em relação a tal meio.

Importatambémressaltarque,deacordocomoLOnº04/1997,regulada a utilização de imagens captadas por câmeras de vigilância insta-ladas em lugares públicos por “Fuerzas y Cuerpos de Seguridad”, isso com a finalidade exposta por MARTÍNEZ et al� (1999, p. 481): “asegurar la con-vivencia ciudadana, la erradicación de la violencia y la utilización pacífica de las vías y espacios públicos, así como para prevenir la comisión de delitos, faltas e infracciones relacionados con la seguridad pública.”.

Determinam os autores em tela, ainda, que como resultado da observação de atos tidos preliminarmente como ligados a possível cri-me, tais forças policiais devem reter a gravação e encaminhá-la, em até setenta e duas horas ao Ministério Público ou ao Juízo para providências cabíveis. Não sendo possível a gravação, será elaborado um relatório com o resumo sobre o conteúdo das imagens e dos fatos averiguados pelos policiais para os mesmos fins acima citados.

No que diz respeito ao reconhecimento em si, a Ley de Enjuiciamien-to Criminal estabelece, no artigo 369, os requisitos que devem ser atendidos para tal ato, ou seja, para que produza os efeitos desejados. Ademais, também foram construídos entendimentos jurisprudenciais que fornecem limites e reforçam os requisitos a serem cumpridos para tanto.

Sendo assim, segundo o SSTS de 02 de fevereiro de 1996, e como garantia constitucional, tornou-se recomendada a presença do juiz e do advogado nas sessões de reconhecimento. Ademais, conforme consta, a pessoa a ser reconhecida deve ter colocada a frente da reco-nhecedora ao lado de outras com ela fisicamente parecidas. O reconhe-cedor ficará postado em local em que não possa ser visto pelas pessoas que participam da sessão como possíveis reconhecidos.

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Em seguida, o juiz perguntará ao reconhecedor se, dentre as pessoas presentes na “rueda o en el grupo de personas” está a que fora referida nas de-clarações anteriormente prestadas. Ou seja, antes da sessão de reconhecimen-to, a testemunha ou vítima é ouvida em declarações, situação em que relatará as características físicas e demais detalhes sobre o autor do crime. Dessa for-ma, na sessão de reconhecimento apontará se ali está o responsável de acordo com suas anteriores declarações.

Importante notar que, pelos artigos 371 e 372 da LECrim, deve ha-ver cuidado para que o autor do delito não modifique suas características físicas (por exemplo, raspe a barba ou pinte os cabelos de outra cor) ou use trajes diferentes no intuito de furtar-se ao reconhecimento. Fica encarregado o diretor do estabelecimento prisional para onde foi enviado possível detido pela guarda e conservação das roupas com que foi apresentado, isso para favo-recimento e garantias durante possíveis sessões de reconhecimento.

Pelo sistema em tela, se forem vários suspeitos a serem reconhecidos, serão efetuadas quantas sessões forem necessárias, isso de modo separado. Por outro lado, se foram várias vítimas ou testemunhas para reconhecer um só suspeito, pode ser realizado um só ato.

O que resta a ser confirmado quanto ao reconhecimento no modelo espanhol é a característica que assume como prova de produção antecipa-da, como já mencionado. (DOMÍNGUEZ; SENDRA; CATENA, 1999, p. 380)36. Dessa maneira, deve ser observado que, de acordo com sentença publicada recentemente pelo Tribunal Superior de Justiça da Catalunha, em relação ao chamado Caso Banda Bing (SENTENCIA Nº 412, en Barcelona a 29 de octubre de 2009� Francisco Javier Paulí Collado, Magistrado juez titu-lar del juzgado Penal nº 22 de Barcelona)37, ficou determinado que:

En este punto se ha discutido por las defensas los reconocimientos realizados, planteando en algún momento que o bien hubo previa exhibición de fotografías, o bien lo que se reconoce es un dorsal y no

36 En muchas ocasiones, dado el tiempo que transcurre desde que ocurrieron los hechos hasta que se celebra el juicio, se hace prácticamente imposible que en éste pueda reconocerse a la persona que realizó los hechos� Por estas circunstancias la diligencia de reconocimiento en rueda puede ser absolutamente necesaria para la condena del inculpado, convirtiendo en uno de los casos que están reconocidos en la ley y en la jurisprudencia como de pruebas anticipadas o diligencias sumariales que producen en el juicio oral los mismos efectos que las pruebas de cargo

37 Disponível em http://www.poderjudicial.es/cgpj/es/Poder_Judicial/Tribunales_Superiores_de_Justicia/TSJ_Cataluna/Sala_de_prensa/Archivo_de_notas_de_prensa/Sentencia_Bada_Bing, acesso em 04/10/2012

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una cara� Establece el Tribunal Supremo en diversas resoluciones de la que se destaca la de 29 de abril de 1997,nº 642-97, recurso 212-96 que la diligencia de reconocimiento en rueda constituye una específica prueba sumarial que no se puede practicar en las sesiones del juicio oral por resultar atípica e inidónea� Igualmente ha recono-cido la virtualidad de esa diligencia practicada en las dependencias policiales, a presencia de Letrado, cuando ha sido ratificada en el Juzgado de instrucción y posteriormente en el acto del juicio oral por la persona que ha intervenido en la misma, identificando, sin duda, como sucede en este caso, a los autores de los hechos enjuiciados� Así se han manifestado, entre otras, las sentencias de 7 de octubre y 10 de diciembre de 1991 que declaran la validez de la diligencia de reconocimiento en rueda de detenidos practicada en Comisaría y en presencia de Letrado, como actividad probatoria de cargo, siempre que se cumplan las previsiones de los artículos 368 y siguientes de la Ley de Enjuiciamiento Criminal, y sea posteriormente ratificada en el acto del juicio oral�

Portanto, pelo que está disposto no trecho acima destacado, o reco-nhecimento por meio de exposição de fotografias foi considerado válido, isso com sua realização em sede policial. Todavia, tal reconhecimento foi depois realizado de forma pessoal e com a presença de advogado, fato que foi confir-mado no contraditório do processo penal (no Juízo de Instrução e no Juízo Oral). Ou seja, no sistema espanhol, o reconhecimento pessoal ocorre em fase preliminar ao processo, ressaltando-se que deve ser confirmado visual e pessoalmente na fase judicial.

Todavia, considera-se importante definir que, conforme está dispos-to por RUIZ e QUIROGA (2012, p. 282)38, é necessário submeter este re-conhecimento feito na fase preliminar ao “interrogatório cruzado”, efetuado durante o processo sob o crivo do contraditório.

Por outro lado, é possível apontar a importância de tal meio de ob-tenção de prova para o processo penal espanhol, tendo em vista que é obri-gatoriamente realizado na presença de advogado, não podendo acontecer de maneira informal como soe ocorrer na investigação preliminar no Brasil.

38 “La verdadera diligencia de identificación procesal, como pone de relieve la citada Sentencia de 19 de diciembre de 1994, es la prevenida en los artículos 368 y siguientes de la Ley de Enjuiciamiento Criminal� Practicada con las debidas garantías y en forma contradictoria con la presencia del Letrado del acusado sometido a reconocimiento en rueda, tal identificación pode valorarse si, comparecido en el Juicio Oral en reconociente, puede ser sometido al interrogatorio cruzado de las partes a tal punto, para satisfacer el principio o se aportan en otra forma válida, como puede ser su lectura en el caso de imposibilidad cierta de comparecencia del testigo.”.

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No entanto, bom ser observado que, de acordo com entendimen-tos jurisprudenciais coletados junto ao sítio do TSE (Tribunal Superior de España)39 , não se despreza totalmente o reconhecimento feito em sede po-licial com a presença do advogado do suspeito reconhecido, mesmo que tal sessão tenha se dado por meio de mostra de álbum fotográfico, meio de reco-nhecimento utilizado por diversas forças policiais em vários países como for-ma de levantamentos iniciais de alvos de investigação ou seus cúmplices pela descrição inicialmente fornecida pela vítima ou pelas testemunhas. (RUIZ; QUIROGA, 2012, p. 282)40 .

De tal maneira, mesmo que se tenha por incidental o reconhecimen-to fotográfico realizado preliminarmente ao reconhecimento pessoal, este último terá valor muito maior se forem atendidos os requisitos para a reali-zação das sessões, sendo um deles a realização com presença de advogado do suspeito e dentro das regras estabelecidas pela legislação.

A exigência de cumprimento das formalidades previstas, portanto, é cotejada com a busca de suspeitos pela polícia, sem o que seria impossível dar conta de indivíduos a serem reconhecidos. No entanto, fica também indica-do que, já tendo tido acesso à fotografia do investigado antes da sessão, por meio de consulta às fotos cadastradas pela polícia, o reconhecedor pode ser direcionado, mesmo que involuntariamente, a somente confirmar o reconhe-cimento de forma pessoal, ou seja, ao identificar o mesmo rosto da fotogra-fia ou imagem que lhe fora mostrada com o que aparece pessoalmente a sua frente durante a sessão.

39 Roj: SAP M 12079/2012 Id Cendoj: 28079370072012100442 Órgano: Audiencia Provincial Sede:MadridSección:7 NºdeRecurso:327/2012NºdeResolución:702/2012Procedimiento:APELACIÓN Ponente: MARIA TERESA GARCIA QUESADA Tipo de Resolución: Sentencia. http://www.poderjudicial.es/search/doAction?action=contentpdf&databasematch=AN&reference=6479261&links=%22327/2012%22%20MARIA%20TERESA%20GARCIA%20QUESADA&optimize=20120830&publicinterface=true, acesso em 07/10/2012. Na decisão, em certo trecho, citou-se que “D) El valor de prueba de identificación no sufre merma alguna por el solo hecho de que el reconociente en ella hubiese también reconocido antes en álbum fotográfico exhibido por funcionarios policiales en el ámbito de su investigación, práctica que no contamina ni erosiona la confianza que pueden suscitar las posteriores manifestaciones del testigo, tanto en las ruedas de reconocimiento como en las sesiones del juicio oral".

40 Este também foi o entendimento exposto no julgado a seguir transcrito: “El valor de la prueba de identificación no sufre merma alguna por el solo hecho de que el reconociente en ella hubiese también reconocido antes en el álbum fotográfico exhibido por funcionarios policiales en el ámbito de su investigación, práctica que no contamina o erosiona la confianza que pueden suscitar las posteriores manifestaciones del testigo, tanto en las ruedas de reconocimiento como en las sesiones del Juicio Oral (STS 2ª – 822/2008 – 04/12/2008 – 818/2008 – EDJ2008253397-).”.

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Portanto, mesmo no sistema espanhol, o reconhecimento pessoal é tido como diligência problemática, que exige redobrada atenção às formali-dades e na sequência dos atos a serem praticados para que não se cometam equívocos que determinam a inconsistência dos resultados.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A busca por elementos de prova no processo penal começa pela indi-cação dos meios para sua obtenção na fase investigativa preliminar. Por isso, é necessário dar maior atenção ao que ocorre neste período, eis que os equívo-cos e irregularidades cometidos aqui são diretamente refletidos na qualidade da denúncia e, consequentemente, na instrução da ação penal.

Em matéria de reconhecimento pessoal, os dispositivos encontrados no sistema brasileiro deixam clara as carências de maiores formalidades para o desen-volvimento das sessões e até mesmo quanto ao momento em que devem estas serem desenvolvidas. O que deve balizar o desenvolvimento de tal diligência é o respeito ao direito ao silêncio e o de não produzir prova contra si mesmo. Por outro lado, de-ve-se ter em mente que, por vezes, o único elemento de convicção disponível é o que foi captado por câmeras, por fotos ou pelas memórias de vítimas e de testemunhas.

Deve-se também levar em conta que o ato de reconhecimento é procedimento irrepetível. Assim, se houver reconhecimento, ainda que foto-gráfico, na fase procedimental preparatória, não se pode repetí-lo durante a instrução processual com a mesma validade. O simples contato com a fisio-nomia ou com os dados do suspeito já maculariam os resultados.

Por outro lado, também deve ser observado que a efetividade de tal meio de obtenção de prova tem estrita relação com o tempo. Assim, pertinen-teconsideraroque jádeterminaoartigo6ºdoCódigodeProcessoPenaledeterminar que, sendo possível, seja realizada produção antecipada de provas. Nesse contexto, é atribuição da Autoridade Policial determinar que se proceda ao reconhecimento de pessoas e coisas o quanto antes, o que também leva a crer que deva provocar a antecipação de produção de prova, evitando-se, com isso, alegações de falhas cometidas e de pressões sofridas por reconhecedores.

Conforme consta do que foi citado em relação aos sistemas proces-suais penais de legislações comparadas, é possível também definir que alguns

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dos vícios aqui existentes também são observados em outros países. Um de-les, sem dúvida, é a possibilidade de admissão de reconhecimentos fotográ-ficos realizados na fase de investigação quando da instrução processual, com posterior convalidação dos resultados obtidos em Juízo.

Observa-se que, apesar de servir de base para possível reconhecimen-to pessoal, o procedimento que utiliza fotografias para apontar suspeitos não foi devidamente regrado no sistema processual brasileiro. Ainda são utiliza-dos álbuns de fotografias, muitas vezes em preto e branco, sem que o reco-nhecedor tenha opções a indicar dentro de fotos semelhantes.

Dessa forma, e a partir de reconhecimentos fotográficos realiza-dos desta maneira, possivelmente a vítima ou a testemunha irão apontar como autor do crime o mesmo indivíduo do qual viram fotografia em sede policial. Portanto, se o reconhecimento fotográfico foi feito de ma-neira equivocada, contaminará o argumento de prova e nem mesmo a prova testemunhal poderá ser produzida em Juízo em relação ao mesmo suspeito de forma convincente.

Embora se diga que o sistema legal brasileiro contará em breve com novo Código de Processo Penal, em matéria de reconhecimento de pessoas e coisas nada se modificou até agora no projeto de lei. Trata-se de reprodução dos mesmos dispositivos do atual, não tendo sido contempladas situações inerentes à evolução dos meios de investigação, tais como reconhecimentos de sons, por meio de filmagens, etc.

Outro ponto a ser mencionado diz respeito à necessidade da pre-sença de advogados de defesa e de representantes do Ministério Público durante as sessões de reconhecimento pessoal. Verifica-se que em outras legislações, a produção do reconhecimento alcança maior valor probatório quando realizada desta maneira, ou seja, ampliando-se a ampla defesa e, de certa forma, possibilitando-se o contraditório.

Portanto, o que deve ser levado em conta ao final deste estudo é que, embora de difícil produção, o reconhecimento ainda é um dos mais impor-tantes meios disponíveis para que se prove algo na investigação criminal. E essa importância deve servir de base para que sejam modificados os dispositi-vos legais acerca do procedimento a ser seguido, possibilitando maior aceita-ção e acuidade de seus resultados.

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Delegado de Polícia Federal; Especialista em Ciências Penais pela PUC/RS; Especialista em Ciências Policiais e Investiga-ção Criminal pela ANP/DPF; Mestrando em Ciências Crimi-

nais pela PUC/RS; Sócio do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais - IBCCRIM.

E-mail: [email protected]

ABSTRACT

This article aims to define points of discussion of eyewitness recognition within the context of obtaining evidence in criminal proceedings. So it must be cited and studied institutes having as starting point the Brazilian law, with particular attention to practical issues thus highlight the use of such devices in preliminary criminal investigation. Within the mentioned objective this article will expose information on the procedures used for the recognition by the Spanish, the Portu-guese, Italy and other countries legal systems, with the hopes that, by comparison, to conclude on the need for changes in legislation on such matters homeland .

KEYWORDS: Evidence; Eyewitness Recognition; compared Legislation (Spain, Portugal and Italy);

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LVl

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91ISSN 2178-0013

Revista Brasileira de Ciências Policiais

Brasília, v. 3, n. 2, p. 91-106, jul/dez 2012.Recebido em 6 de agosto de 2013.Aceito em 4 de dezembro de 2013. ISSN Eletrônico 2318-6917

A Insegurança Social e Jurídico-penal Gerada a partir do Não Cumprimento das Ordens Judiciais de Prisão

Jerônimo José da Silva JúniorDepartamento de Polícia Federal - Brasil

Rubem A. Fockink

Departamento de Polícia Federal - Brasil

Dud

RESUMO

Estudos recentes apontam que, no Brasil, há milhares de mandados de prisão sem seu efetivo cumprimento por parte dos agentes de segurança pública. Por outro lado há o reconhecimento mundial pela eficiência brasileira na captura de foragidos da Organização Internacional de Po-lícia Criminal (INTERPOL). É latente o sentimento de insegurança por que passa a sociedade brasileira, aliado ao caráter de impunidade diante dos milhares de foragidos da Justiça que va-gueiam pelas ruas. Desse modo é urgente que se busquem soluções para o problema, apontando, num primeiro momento deste estudo, suas causas principais, baseando-se nos relatos de espe-cialistas e posteriormente indicando as ações mitigadoras capazes de minimizar esse impacto sócio-jurídico.

PALAVRAS-CHAVE: Estado democrático de direito, paz social, mandado de prisão, não cumprimento.

1. INTRODUÇÃO

Há muito os jornais de grande circulação do Brasil publicam reportagens anunciando o aumento considerável de mandados judiciais de prisão sem as respectivas capturas pelos órgãos de segurança pública. (O GLOBO, 2012).

Outro fator relevante são os custos financeiros exigidos para movi-mentar a máquina estatal na busca e captura dos meliantes. Isso pode levar à conclusão de ineficiência e incapacidade da segurança pública nacional em promo-

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ver a paz social, além de causar provável instabilidade no seio dos cidadãos em saber que milhares de delinquentes estão soltos pelas ruas.

Na primeira década do novo milênio, os debates sobre segurança pú-blica passaram a abordar os cenários carcerários nacionais, anexando, obvia-mente, o tema sobre os foragidos da Justiça.

As discussões ganharam enorme visibilidade, ultrapassando os fó-runs e palestras dos especialistas para ganhar a ordem-do-dia nas salas de jan-tar das residências brasileiras e ambientes de "chat" da Internet.

A inquietude desse estado de coisas exige urgentes pesquisas e dispo-nibilização de seus resultados, a fim de auxiliar os tomadores de decisão na busca das melhores práticas de gestão socioeconômicas, com vistas a alcançar resultados que tragam a paz social para os brasileiros.

Há, outrossim, a questão dos jogos mundiais que serão realiza-dos no País, nos anos de 2014 e 2016, como mais um elemento a con-tribuir para o desassossego dos organizadores do evento, governantes locais, comércio e demais envolvidos.

A pesquisa será realizada adotando o método bibliográfico disponí-vel nos canais de consulta das bibliotecas e Internet, mais precisamente em periódicos científicos que tratam do tema em comento.

2. REFERENCIAL TEÓRICO

2.1 A formação da doutrina de segurança pública no Brasil

Todos os países dispõem de modelos desenvolvidos para a defesa in-terna de sua sociedade, pois se assim não fosse não haveria paz social, seguran-ça jurídica ou a garantia da permanência das instituições estatais.

Em decorrência a coroa portuguesa e o reino espanhol implantaram nas suas terras conquistadas arranjos luso-hispânico de segurança interna e manutenção da ordem, denominadas especificamente Ordenações Manueli-nas e Filipinas, como parte do plano estratégico de desbravamento e coloni-zação dessas vastas áreas, ocorrido no século XVI. (SILVA JÚNIOR, 2007).

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Todavia no decorrer dos anos os modelos de outrora, sofreram interferências em função de interesses econômico-políticos como as guerras mundiais, a adoção de novas tecnologias de prevenção ao crime, ou, ainda, devido às práticas de guerrilheiros urbanos, os quais adotam o sequestro de autoridades e atentados à bomba, como forma de desestabi-lizar a lei e a ordem dos países alvos.

O século XX deixou um legado importante sobre estratégia de se-gurança pública nos Estados modernos – a produção de conhecimento de informação e seu gerenciamento. Os propulsores desse novo modelo foram os Estados Unidos da América, contra-atacando a União Soviética na cha-mada Guerra Fria. Os norte-americanos ajustaram uma afinada sintonia de interesses, baseando-se de um lado o governo dos EUA preocupados com a expansão comunista na América Latina. De outro os militares brasileiros que comandavam o País, nos idos das décadas de 60 até 80, preocupados com possíveis golpes ou revoluções internas.

Atualmente as atividades de segurança pública tanto no âmbito da prevenção como na repressão nas Américas estão sob pesadas críticas. De um lado os críticos apontam que o modelo norte-americano de envolvimento de grande diversidade de agências na prevenção e repressão ao crime e a violência aliado à vanguarda no uso de tecnologias da informação não foram suficiente-mente capazes de impedir o ataque terrorista às torres gêmeas do World Trade Center, em Manhattan, New York, em setembro/2011, tampouco a ação dos irmãos Tsarnaev, na detonação de bombas em abril de 2013, em Boston.

De outro lado, continuam os críticos, a unificação da investigação criminal, numa só agência, também não está a resolver o problema, pois como ocorre no Brasil, esbarra, nas formalidades do inquérito policial e processo judicial. A propósito essas formalidades são necessárias e visam preservar o universalismo dos direitos humanos. (CABRAL, 2008).

Essa problemática requer um enfrantamento sob a ótica do desen-volvimento social, apoiado em avanços econômicos específicos para cada re-gião. As potências mundiais têm que entender que manter uma população submissa pela carência de educação ou perpetuação da miséria é sinônimo de violência e crime em razão das próprias desigualdades sócio-econômicas que reverberam, ao final, contra esses próprios países muitas vezes sob a forma de atentados contra civis. (PINHEIRO, 1997).

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A propósito, alguns pesquisadores costumam culpar os órgãos de segurança pública pela violência nas ruas. Mas quando se amplia o foco verifica-se que as pessoas que compõem esses órgãos são um ex-trato da própria sociedade. Ampliando mais ainda é possível ver que o problema reside na formação familiar e educacional desse cidadão que presta o concurso público e engaja nas fileiras dos órgãos oficiais de prevenção e repressão ao crime.

2.2 O modelo norte-americano de captura de foragidos

Os EUA possui um modelo próprio para desempenhar a função de captura de foragidos da Justiça, que pode ser dividido em três pontos principais.

O primeiro diz respeito à difusão de informações, inclusive com fotografia atualizada digitalmente, sobre fugitivos em um banco de dados confiável e disponível a todas as agências americanas de fisca-lização. Esse banco é alimentado por todas as agências, dentro das suas competências, de modo que se torna uma fonte dinâmica e atualizada de dados sobre os fugitivos.

O segundo de que essas mesmas agências possuem agentes res-ponsáveis por realizar investigação dentro de suas competências labo-rais, e remetê-las à Polícia para as providências criminais, inclusive in-formações quanto a foragidos.

O terceiro e último ponto que se observa do modelo é a recompensa pela captura. Trata-se de uma tradição americana outorgada pelo Estado a todos os cidadãos, que possuem o direito de deter e entregar às autoridades competentes o criminoso, com vistas a ajudar a sociedade quanto à mantença da paz social e segurança pública. (FDA, 2012).

É importante destacar que a disponibilização de informações "on line" de procurados da Justiça aliado a possibilidade de qualquer pessoa do povo realizar sua captura, induz a um aumento no leque de possibilidade de sucesso na prisão.

Todavia esse arranjo também pode proporcionar forte ameaça à inte-gridade física e psíquica de inocentes que se vejam envolvidos no duelo entre

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foragido e caçador de recompensas, nos logradouros públicos. A potencialida-de de vitimização causada por atores não policiais nesse cenário disposto pelo modelo norte-americano pode ser causa de aumento de morte e violência.

2.3 O modelo brasileiro de captura de foragidos

Atendendo à necessidade de unificação de dados de segurança publica e justiça, mormente daqueles considerados culpados pelos ór-gãos judiciais, foi criado banco de dados denominado REDE INFOSEG, para disseminar por todo o país o catálogo de procurados e impedidos de deixar o Brasil. O programa iniciou-se, oficialmente, no ano de 1995, trazendo o Programa de Integração das Informações Criminais, constitu-ído pelos Cadastros Nacionais e Estaduais de Informações Criminais, de Mandados de Prisão, de Armas de Fogo da Polícia Federal e de Veículos Furtados e Roubados. (INFOSEG, 2012).

Em 2007, o INFOSEG passou para a Secretaria Nacional de Se-gurança Pública – SENASP. A rede nacional segue o modelo de apenas integrar as informações, disponibilizando-as às secretarias de segurança dos Estados-membros e Justiça, não procedendo qualquer modificação nos dados ou imagens.

Embora tenha se mostrado como forte ferramenta de segurança pública, contando com mais de 120 mil usuários de 200 órgãos federais e estaduais que acessam via Internet, o INFOSEG não atende às atuais necessidades das metrópoles quanto a disponibilização imediata dos pro-curados e impedidos.

Com efeito, o Ministério da Justiça publicou o seu Plano Plurianu-al, apresentado 23 programas sociais voltados a minimizar os impactos de-correntes da violência publica. Todavia em nenhum deles há previsão efetiva sobre o desenvolvimento ou aprimoramento do modelo destinado a unificar os dados decorrentes de ordens judiciais privativas da liberdade, como ocorre com o INFOSEG. (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2003).

O sistema existe e está implementado, mas seus dados são pouco confi-áveis. Isso porque os Estados-membros não se mostram dispostos a alimentá-lo eficazmente. O Relatório de Avaliação Plurianual do Ministério da Justiça es-

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clarece que no caso do Programa de Assistência a Vítimas e Testemunhas Ame-açadas, por exemplo, uma das causas para a falta de dados confiáveis se dá pela ausência de alimentação do sistema pelas autoridades competentes.

A falta de interface entre os órgãos de segurança não só entre si como também ao Poder Judiciário tem inviabilizado a oferta de dados confiáveis. A legislação brasileira proíbe a detenção do cidadão para averiguação de seus antecedentes criminais, salvo no caso de fundada suspeita. Caso infundada, a autoridade é passível de responde pelo abuso. (BRASIL, 2012).

Outro fator que inibe a indiretamente a efetividade do INFO-SEG, recai no princípio constitucional do pacto federativo que atribui autonomia político-administrativa aos Estados-membros da federação. Assim não é possível que a União Federal obrigue dos demais entes pú-blicos a alimentação do sistema.

A desarmonia entre as policias sob a ótica institucional leva os poli-ciais civis e militares a se dissociarem, em efeito cascata, afastando, cada vez mais, troca de informações boca-a-boca, o acompanhamento do criminoso, e demais métodos de investigação tão necessários e usados pelas melhores polícias do mundo. (AKERMAN; BOUSQUAT, 1999).

Ainda segundo os estudos apresentados por Akerman; Bousquat (1999) o fomento para alimentação e troca de informações entre os po-liciais e suas instituições, possibilitaria uma maximização das ações de prevenção, repressão pontual e especificada do crime e seu autor, além da captura dos foragidos da Justiça.

O professor Hélio Bicudo em recente entrevista apontou que en-quanto houver duas polícias com comandos e visões diferentes não have-rá plenitude de ações de segurança pública. Lembra que a Polícia Militar advém de força auxiliar do Exército. Sua ação acaba na porta da delegacia, com a entrega do meliante.

Lembra que os governos fomentam os confrontos entre policiais ci-vis e militares quando orienta que sejam cercadas por policiais militares de-terminadas áreas visando limitar passeatas e demais formas de manifestações dos policiais civis ou guardas do sistema carcerário. Aduz que o ideal seria a unificação das polícias civil e militar. (MAIA, 2008).

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Com as mudanças introduzidas no Código Processual Penal, em razãodaLeinº12.403/2011,foicriadoumnovobancodedadosagorade-nominado Banco Nacional de Mandados de Prisão, administrado pelo Con-selho Nacional de Justiça. (CNJ, 2011).

Em novembro de 2002, o Departamento de Polícia Federal anun-ciou a adoção do roteiro da INTERPOL para captura de fugitivos, con-substanciadas no Manual Brasileiro de Investigações de Fugitivos. Os dados relatam que o Brasil atingiu o patamar dentre os dez países que mais prendem foragidos procurados pela INTERPOL. (DPF, 2011).

Os relatórios revelam que após a utilização do roteiro, os policiais federais vinculados a INTERPOL no Brasil, atingiram uma "performance" de 150%, conseguindo deter 58 pessoas com ordem judicial internacional de prisão em 2009; 51 em 2010 e 44 em 2011. (DPF, 2011).

2.4 A mídia como coadjuvante na captura de foragidos - o programa Linha Direta

Nos idos da década de 90, o Brasil viu surgir na tela dos televisores um programa que tinha um apelo em convocar os brasileiros para a plenitude de sua cidadania, no sentido de denunciar possíveis foragidos da Justiça.

O referido programa televisivo se chamava "Linha Direta", apresen-tado pela Rede Globo de Televisão. Não obstante haver programas seme-lhantes no ar, em outras emissoras, o "Linha Direta" tinha a estratégia de ser apresentado por um intermediador famoso e bem conhecido da mídia e do público brasileiro, e logo após o término da novela das 20 horas, de maior audiência no Brasil. (LOPES, 2008).

A participação da população se resumia a uma simples ligação para a redação do programa ou para um número especial conhecido como "disque-denúncia" gerenciado pelas respectivas Secretarias de Segurança Pública nas Unidades da Federação.

Os estudos realizados acerca do tema revelam que o periódico te-levisivo "Linha Direta" era uma cópia de outro periódico norte-americano, inclusive com a utilização de ferramentas inovadoras no Brasil, como a re-compensa pela captura (LOPES, 2008).

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Indicam também que houve um aumento de capturas no pri-meiro ano do programa. Todavia, com o decorrer dos episódios, se foi mostrando a verdadeira face do periódico, que não era senão mais um apelativo para manter índices de audiência do canal em face das emis-soras concorrentes.

Os estudos apontam que há relação entre meio de comunicação (programa Linha Direta) e violência, sobretudo se analisado os resultados es-petaculares de audiência e aumento dos indicadores de captura de foragidos com o advento do "Linha Direta".

Pela via reversa, é possível apontar que a mesma sociedade que ou-trora delatava para as autoridades os criminosos fugitivos, também assistia aos programas da mesma emissora que fomentavam a violência, com os chamados "enlatados americanos".

O programa não tratava da causa da violência que, convenientemen-te, se mantinha obscurecida, mas de seus resultados. Pinçavam-se fatos te-nebroso que pudessem alterar a passividade social, de forma a causar uma reação, a primeira vista positiva, mas que, ao final, não passava de sensaciona-lismo de casos espetacularizados.

No fim a causa da violência ficava sem resposta onde o tema se des-contextualizava, como que a televisão não tivesse contribuído para a maxi-mização de nódulos de violência e crime, principalmente nas camadas mais pobres da sociedade fluminense. (LOPES, 2008).

Desse modo o programa teve sua contribuição para a captura de foragidos, porém não foi capaz de manter-se no ar, justamente por não se aprofundar nas questões acerca das causas do cometimento de delitos, tal-vez por não querer responder pela sua contribuição na violência urbana. (LOPES, 2008).

2.5 Síntese dos custos com segurança e recaptura de fugitivos para a sociedade brasileira

Segundo dados da Secretaria Nacional de Segurança Pública do Mi-nistério da Justiça, as Unidades da Federação destinaram dos seus cofres para

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a pasta da segurança pública de R$ 24 bilhões no ano de 2005, para R$ 33,4 bilhões em 2008. Desse total o Estado do Rio de Janeiro vinculou, entre os mesmos anos de 2005 a 2008, recursos financeiros na ordem de R$ 17,1 bi-lhões perfazendo, em média R$ 4,29 bilhões por ano.

Como resultado apontam ainda os indicadores que ocorreu uma evolução média per capita em favor do povo fluminense em R$ 30,80. (MI-NISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2005-2008).

Em relação ao volume de recursos gastos, o Estado do Rio de Janeiro está em segundo lugar, atrás somente do Estado de São Paulo.

O governo federal por intermédio do Programa Nacional de Se-gurança Pública com Cidadania (PRONASCI) destinou para os Estados--membros da federação o valor de R$ 1,406 bilhões, no ano de 2008. (MI-NISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2005-2008).

Essa verba se destina à capacitação do pessoal da segurança pú-blica, aquisição de viaturas, construção de quartéis e delegacia, e, em ge-ral, demais necessidades para que se garanta a paz social e a manutenção do patrimônio comum.

O Forum Brasileiro de Segurança Pública publicou em seu Anuário de 2011, que taxas referentes a crimes dolosos contra a vida, como homicí-dios, não param de crescer, embora o Brasil destine cerca de 1,36% do seu Produto Interno Bruto (PIB) para a pasta da segurança pública. (SEGU-RANÇA PÚBLICA, 2011).

Os dados apontam que em 2009 ocorreram 21,9 assassinatos para cada população de 100.000 habitantes no Brasil. Nesse diapasão destaca o Anuário que em países desenvolvidos como Alemanha e Espanha os custos em segurança pública não ultrapassam a casa dos 1,2 e 1,3% dos seus PIBs, respectivamente, onde ocorrem cerca de 0,8 e 0,9 homicídio.

Com efeito, os estudos do Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário (IBPT) apontam que as despesas do brasileiro com segurança pública vêm aumentando. Indica, outrossim, que esses custos aumentam na medida em que se eleva a classe social da população pesquisada.

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Assim o brasileiro pertencente à classe produtiva vem gastando 113 dias de trabalho por ano para pagar despesas com saúde, educação, previdên-cia privada, segurança e pedágio. (IBDT, 2011).

Na década de 70 os gastos exigidos dos brasileiros para que se sentissem na sua plenitude de cidadão, orbitava em 7% da renda fami-liar. No decorrer dos anos o custo Brasil lhe exigiu maior esforço. No ano de 2006, por exemplo, o esforço do brasileiro para permanecer na classe média lhe demandou o comprometimento 31% do total do orça-mento doméstico.

Aponta ainda o IBPT (2011) que na média a população brasileira que produz commodities de bens e serviços gasta 10 dias de trabalho para pagar sua segurança por ano, ou 2,69% da renda bruta.

Especificando os dados fornecidos por classe social, se obtém que para a classe D e E, a média do custo com segurança é de 07 dias, ou 1,95%; na classe C o comprometimento familiar sobe para 16 dias de trabalho, ou 4,31% da renda bruta. Finalmente para as classes B e A, mais favorecidas economicamen-te, as exigências para sua segurança alcançam 27 dias ou 7,28%. Vale ressaltar que os gastos com segurança estão superando os da educação e saúde.

No ano de 2005 o Brasil gastou com segurança publica R$ 60 bilhões. No mesmo ano as classes sociais brasileiras gastaram R$ 70 bi-lhões. No total os custos com segurança no Brasil estão na ordem de R$ 130 bilhões. Esse valor supera o orçamento nacional com educação e saúde. (IBPT, 2011).

Essas maciças despesas com segurança tanto dos governos brasi-leiros como da iniciativa privada parecem não estar apresentado resul-tados satisfatórios.

O Observatório da Segurança disponibilizou relatório sobre a vulnerabilidade dos países no que se refere a ameaças internas e exter-nas. Segundo, ainda, dados fornecidos no Map of Surveillance Societies around the world o Brasil é considerado como país nível 3 numa escala que varia de 1 (para países menos vulneráveis a ataques, como a Grécia) e 5 (para aqueles mais cobiçados pelos delinquentes, aí incluídos terroris-

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tas, mercenários e afins, como EUA, UK e Afeganistão). Aduz o relatório que o Brasil tem relativas práticas de salvaguarda. (OSP, 2011).

Não se poderá aqui esgotar a análise dos dados acerca das causas em que o Brasil se apresenta no cenário mundial como país com elevados índices de violência. Também não é possível aqui enfrentar as discussões acerca dos fatores psicossociais e de tratamento do criminoso primário e o delinquente contumaz.

Isso porque a análise conclusiva exigiria agregação de dados referen-tes diversas variáveis como: (i) às taxas de variação de criminalidade; (ii) ín-dices de variação da sensação de insegurança da população impactada direta e indiretamente sobretudo nos grandes centros urbanos; (iii) degradação dos espaços públicos destinados ao esporte e lazer; (iv) preservação ambiental; (v) indicadores das instituições de administração da justiça criminal; (vi) vio-lência reversa da população e da polícia; (vii) a orientação dos órgãos sociais do Estado na prevenção da violência. (OSP, 2011).

Devem ser levados em consideração, ainda, segundo relata o Obser-vatório de Segurança Pública (2011), (viii) os dados sobre a superpopulação carcerária; (ix) rebeliões e fugas; (x) situação das famílias impactadas dos in-ternos e das vítimas; (xi) corrupção; (xii) custos operacionais dos sistemas de prevenção, repressão do delito e ressocialização; (xiii) eficácia das perícias criminais; (xiv) indicadores referente à investigação criminal e julgamento do processo judicial; (xv) capacitação profissional e educacional dos jovens; e tantas outras variáveis que possam surgir no decorrer.

Em síntese é possível dizer que hoje o Brasil não só gasta muito com segurança como gasta mal e atua como coadjuvante em elevar a des-confiança mundial nas vulnerabilidades referentes à segurança dos seus habitantes, nacionais e estrangeiros.

Vive-se num tipo estranho de círculo vicioso onde, pelo lado do par-ticular, o medo entusiasma para a aquisição de equipamentos protetivos. À medida que os lares são invadidos, pelos criminosos, novas tecnologias com valores mais elevados são procuradas e instaladas. Já pelo prisma dos órgãos de segurança publica se observa uma tendência a policiar mais intensamente as áreas de moradias de pessoas com maior poder aquisitivo.

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O problema da segurança não está mais adstrito ao repertório tradicional dos aplicadores do direito, mas sim a novos atores, tornan-do a discussão multifacetada com incorporação de agentes das áreas da saúde, humanas, jurídicas e exatas.

Associado a este novo mosaico é necessário a medição continua aplicando-se metas para qualificar o modelo a fim de que atinja sua exce-lência. Enfim, os estudos revelam que somente haverá melhoria na segu-rança quando os agentes dos três setores – Estado, empresas e stakehol-ders – se engajarem no firme propósito do fortalecimento de projetos que os unam em sinergia em prol do objetivo comum de diminuir os ín-dices de violência de suas cidades, especificando e enfrentando um a um os pontos fracos observados. (OSP, 2011).

2.6 A tendência da premiação pela captura

Historicamente, os EUA têm enfrentado a problemática da pre-venção à criminalidade utilizando ferramentas que se mostraram eficazes, como agente inibidor da reiteração criminal. Uma delas é a premiação pela recaptura de foragidos da Justiça. Além de incentivar ações de toda a sociedade americana no encalço do fugitivo, esse mecanismo também age na mente do criminoso levando-o a uma sensação de que qualquer um da sociedade pode ser o seu perseguidor, o que contribui para que ele se entregue às autoridades. (DPF, 2011).

A propósito, as Secretaria de Segurança do Distrito Federal acaba de criar uma bonificação visando premiar os policiais que atuam na ponta, realizando apreensão de armas de fogo, como parte integrante dos seus pro-gramas de políticas, envolvendo a segurança pública.

A Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro, também passou a adotar plano similar, onde foram pagos R$ 36 milhões a 7.000 servidores a título de premiação pelas metas alcançadas na redução da criminalidade. (BERNARDINO, 2013).

É possível perceber, assim, que nessas duas grandes metrópoles brasi-leiras, consideradas pólos formadores de opinião nacional, há uma forte ten-dência pela remuneração adicional àqueles que contribuem para o combate ao crime, na forma de capturar fugitivos.

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Importante destacar que não há vagas suficientes nas penitenciárias para responder às necessidades atuais, todavia isso não pode se transformar em argumen-to capaz de engessar as forças de segurança pública na busca e prisão de foragidos.

As medidas alternativas de cumprimento de pena que emergiram a partir da Lei 9099/95, além do incremento na aplicação de penas alternati-vas, oportunizaram aos magistrados brasileiros que usassem a sua criativida-de, visando alcançar o objetivo da jurisdição penal, na busca da efetividade da punição sem que haja a reiteração criminal (BRASIL, 1995).

3. CONCLUSÃO

O modelo do BNMP do CNJ não traz grandes novidades. Trata-se de sítio onde serão alimentados os dados dos mandados de prisão expedidos pelos tribunais do Brasil, visando a uniformização de informações, nos mes-mos moldes da REDE INFOSEG, sendo que este tem acesso plenamente restrito e aquele a possibilidade de acesso a pessoas não cadastradas.

A crítica seria a possibilidade do foragido saber da expedição da or-dem, via "web", bastando para tanto acessar o portal. Conforme se depreende da Resolução 137/2011-CNJ, o prazo para alimentação de dados no Banco é de 24 horas, caso o juiz da causa não determine, expressamente na ordem, a restrição da divulgação. Nesse caso os dados do mandado somente serão divulgados a partir do seu cumprimento.

Acerca do desempenho dos policiais brasileiros na captura de foragi-dos internacionais, pode parecer um paradoxo, porquanto um país com cerca de 500 mil mandados de prisão internos sem cumprimento, consegue se des-tacar entre os dez no mundo mais eficientes na captura de criminosos.

Isso, naturalmente, explica-se pelo comprometimento dos atores envolvidos, aliado às suas capacitações endógenas – trazidas de outras expe-riências profissionais, e exógenas – adquiridas em decorrência das experti-ses transmitidas entre policiais, bem como o apoio conjuntural e estrutural para desenvolvimento das tarefas.

A oferta estatal de valores e autorizações para particulares capaci-tados capturar fugitivos da Justiça, se mostra uma importante ferramenta

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para mitigar o crime e a violência em função do sentimento levado a esse delinquente de que há busca incessante do Estado ao cumprimento da pena imposta aos seus condenados.

A propósito as Secretarias de Segurança do Rio de Janeiro e Dis-trito Federal vem premiando em dinheiro os policiais que conseguem cumprir as metas estabelecidas nos programas de governo voltados para a redução da criminalidade. Desse modo seria contributiva a ajuda de pessoas previamente qualificadas, para a recaptura de fugitivos além do corpo de policiais.

Outro fator que se mostrou importante foi a divulgação da iden-tificação de foragidos pela mídia televisiva. Com a interrupção do "Linha Direta" os índices de recaptura diminuíram consideravelmente, de sorte que somente o programa governamental "disque-denúncia" não se mostra capaz de manter nos mesmos patamares os índices apresentados quando da publi-cação televisiva dos criminosos foragidos.

Jerônimo J. Silva Junior

Bacharel em direito. Delegado de Polícia Federal. Doutoran-do em Engenharia Civil e Sustentabilidade pelo PPGEC/UFF,

E-mail: [email protected].

Rubem A. Fockink

Bacharel em direito. Delegado de Polícia Federal. Membro da Comissão de Disciplina do Ministério da Justiça.

ABSTRACT

Recent studies show that, in Brazil, there are thousands of arrest warrants without its effective com-pliance by public security officers. On the other hand there is worldwide recognition by Brazilian efficiency in capturing fugitives from International Criminal Police Organization (INTERPOL). It's latent feelings of insecurity by passing Brazilian society, coupled with the character of impunity in front of thousands of fugitives from justice who roam the streets. Therefore it is urgent to seek solutions to the problem, pointing at first this study, its major causes, based on the reports of ex-perts and subsequently indicating the mitigating actions that can minimize this impact socio-legal.

KEYWORDS: Democratic rule of law, social peace, arrest warrant, failure to comply.

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Jerônimo José da Silva Junior e Rubem A. Fockink

Brasília, v. 3, n. 2, p. 91-106, jul/dez 2012.

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Brasília, v. 3, n. 2, p. 107-128, jul/dez 2013.Recebido em 6 de agosto de 2013.Aceito em 20de novembro de 2013. ISSN Eletrônico 2318-6917

O PROFILING NOS AEROPORTOS COMO FERRAMENTA DE PREVENÇÃO AO TERRORISMO

Guilherme Damasceno Fonseca Departamento de Polícia Federal - Brasil

Dud

RESUMO

Os atentados de 11 de setembro mostraram ao mundo novamente o que parecia estar esquecido: a importância da aviação comercial como alvo do Terrorismo. Desde então, várias potências ocidentais têm buscado um aprimoramento da segurança aeroportuá-ria, submetendo passageiros de todo o mundo a uma exaustiva rotina de procedimentos, muitas vezes constrangedores. O mundo ocidental progressivamente começa a adotar as técnicas de Contraterrorismo israelenses, cujos aeroportos são considerados exemplos em termos de segurança. Nesse contexto, destacam-se as diversas espécies de Profiling, técnica que busca prevenir ataques através da procura do perfil esperado do terrorista. Considerando que os tipos de Profiling baseados em critérios como raça ou etnia não são compatíveis com a maioria das Constituições democráticas, torna-se importante a análise do Profiling comportamental, o qual parte do pressuposto de que o passageiro com intenções criminosas quase sempre demonstra, ao passar pelos procedimentos de segurança, sinais reveladores de nervosismo ou ansiedade, que podem ser identificados por olhos adequadamente treinados. No entanto, o uso de tal técnica em um ambiente peculiar como o aeroporto traz questionamentos que desafiam seus defensores, princi-palmente, no que se refere à sua viabilidade em Estados Democráticos de Direito.

PALAVRAS-CHAVE: Profiling. Segurança. Aeroportos. Prevenção. Terrorismo. Direitos e Garantias Fundamentais.

1. INTRODUÇÃO

Este artigo pretende analisar a viabilidade das principais espécies de Profiling, técnica que, através da busca do perfil imaginável de um terroris-ta, se propõe a impedir a perpetração de atos terroristas, cuja viabilidade e compatibilidade com o Estado Democrático de Direito tornaram-se um dos temas mais debatidos na Europa e nos EUA nos últimos anos, principalmen-

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te, no que se refere à segurança aeroportuária1. Aproveitando a pertinência da discussão diante da proximidade de dois dos maiores eventos esportivos e culturais do mundo, a Copa do Mundo e as Olimpíadas, buscou-se analisar a viabilidade e os desafios da utilização de tal técnica de levantamento de perfis (raciais, étnicos, comportamentais etc) como ferramenta de auxílio à prevenção de ataques terroristas.

Previsivelmente, a defesa do uso, ainda que em situações excepcio-nais e transitórias, de quaisquer das formas de profiling explicadas a seguir, não é tarefa simples, não só pelos aspectos legais e políticos, como também pela descrença da população brasileira em geral quanto à possibilidade de ocorrência de Terrorismo em solo pátrio.

Paul Wilkinson (2007), analisando o histórico dos ataques coorde-nados ou, pelo menos, inspirados na doutrina da Al Qaeda, entende ser um erro fatal considerar qualquer país, ainda que de maioria muçulmana, imu-ne a um ataque terrorista. Ademais, resta lembrar que além do dever clássi-co e primordial do Estado de garantir a segurança interna de seus cidadãos (NOGUEIRA;MESSARI, 2005), o Brasil assinou diversas Convenções inter-nacionais por meio das quais comprometeu-se a combater o terrorismo, e cuja inobservância pode gerar perda de prestígio perante a sociedade internacional.

O termo inglês profiling pode referir-se à adoção de tratamentos desiguais em diferentes campos de atuação governamental, embora seja mais comumente associada à atuação das polícias. Exemplo claro se con-substancia na suposta tendência da Polícia Militar de abordar, com maior frequência, indivíduos de raça negra (“racial profiling”), mesmo não haven-do nenhuma orientação institucional para tal escolha. Outro exemplo de profiling, esse no campo político, ocorre quando um país expressamente limita a expedição de visto para indivíduo de determinada cidadania ou etnia, forma de que, estranhamente, parece não causar, ao contrário dos demais, protestos tão veementes. A noção de soberania nacional que parece impregnar as atividades do Oficial de Imigração, aparentemente, lhe confe-re uma legitimidade menos questionável quando, ainda que inconsciente-mente, estabelece algum tipo de profiling ao analisar mais rigorosamente a entrada de um estrangeiro em seu país.

1 Vários sites de debates disponibilizam interessantes discussões sobre a eficácia do uso do Profiling, como, por exemplo, os disponíveis em < http://www.samharris.org/blog/item/to-profile-or-not-to-profile>

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Salienta-se que o presente trabalho pretende discutir, alguns dos problemas que adviriam da aplicação dessa técnica como método de detecção de ameaças terroristas, mais especificamente em aeroportos, analisando a viabilidade de implantação de parte dos procedimentos e suas consequências em Estados Democráticos de Direito como o Bra-sil. Para isso, foram usados e comparados os contextos atuais e históri-cos dos protagonistas mundiais em termos de antiterrorismo, como os EUA, Israel e Europa.

Tendo como foco principal a segurança aeroportuária, buscou-se mostrar como o modelo israelense, ou parte dele, passou a ser “copiado” pelas potências ocidentais, gerando críticas de que estaria havendo uma despro-porcional “Israelização” do modo de se pensar a segurança no mundo, princi-palmente nos EUA2 . Dentre todas as características do “modelo israelense”, o uso behavioral profiling ou profiling comportamental é o que mais tem cha-mado a atenção dos especialistas.

O enfoque aeroportuário dado ao profiling nesse artigo não é por acaso, bem como a escolha do alvo pelo terrorista está longe se ser aleató-ria. O fim almejado pelo terrorista nunca é somente a destruição do alvo imediato em si, mas normalmente um objetivo político por detrás (GI-BBS, 1989). Nesse sentido, poderia parecer estranho a espécie de obses-são dos terroristas pelo avião e o aeroporto, considerados, principalmente depois do 11/09, “hard targets”, pelo alto grau de segurança e consequen-te maior dificuldade de sucesso por parte do perpetrador3, sendo óbvia a maior facilidade e até a maior quantidade de feridos que se obteria com um atentado em um teatro ou shopping.

Entretanto, em razão da importância da simbologia no momen-to da escolha dos alvos, o avião tornou-se nas últimas décadas um dos objetivos preferidos do terrorismo. Além disso, as companhias aéreas frequentemente estão entre as empresas mais poderosas de seu país. Assim, quando se ataca a empresa American Airlines, simbolicamen-te, ataca-se os Estados Unidos. Ressalta-se também que os atentados envolvendo aeronaves são os que apresentam uma maior média de ví-

2 Disponível em http://www.veteranstoday.com/2012/08/11/press-tv-us-police-forces-being-israelized/ acesso em 15/07/2013, às 22:00 hs.

3 Maiores informações sobre os conceitos de hard targets e soft targets disponíveis em http://www.historyofwar.org/articles/concepts_terrortargets.html

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timas fatais (ELIAS, 2010), o que garante ao terrorista a consecução de outros dois objetivos típicos: a atenção da mídia sensacionalista e a consequente propagação do medo. Segundo o autor, historicamente, os ataques envolvendo a aviação são proporcionalmente mais mortais que qualquer outra forma de atentado visando atingir cidadãos americanos.

O especialista em terrorismo Bruce Hoffman (2006), em seu livro Inside Terrorism, afirma que o marco inicial do que se convencionou mo-dernamente chamar de terrorismo internacional foi justamente um seques-tro de aeronave, quando três homens armados representando a OLP – Or-ganização para Libertação da Palestina sequestraram um avião da empresa israelense El Al em voo comercial de Roma a Tel Aviv.

É interessante observar a complexidade e variedade das questões que envolvem o uso de procedimentos de profiling nos aeroportos. Parte das críticas feitas ao uso da técnica em tal ambiente surge da constatação de que comportamentos resultantes de estresse e cansaço podem ser facil-mente confundidos com comportamento suspeito. Sentimentos (nervo-sismo, ansiedade, medo de voar etc) e circunstâncias associadas a viagens fazem com que qualquer alteração de procedimento, por mais básica que seja, se torne um bom motivo para reclamações e conflitos entre passagei-ros e a comunidade aeroportuária.

Vale ressaltar que, ao considerar a viabilidade de se utilizar a busca de um perfil comportamental de terroristas, ou simplesmente de criminosos, no modelo israelense do “behavioral profiling”, o artigo impregna-se de im-pressões pessoais e experiências profissionais de quem o escreve, adquirida ao longo de anos de trabalho nesse ambiente aeroportuário.

2. EVOLUÇÃO HISTÓRICA E ESPÉCIES DE PROFILING

O termo profiling não possui uma tradução imediata e foi, inicial-mente, utilizado na criminologia, tendo surgido dos estudos de Cesare Lombroso4, médico italiano, considerado por muitos um dos primeiros criminologistas de grande importância no Direito Penal. Após analisar 383 prisioneiros e comparar informações como raça, cor, educação, ca-

4 Mais detalhes a esse respeito disponível em <<http://profilesofmurder.wordpress.com/tag/cesare-lombroso/>>Acesso em 01/07 20:00hs.

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racterísticas físicas e naturalidade, Lombroso elaborou uma teoria que demonstrava que comportamentos criminosos podiam ser identificados e previstos. Considerava que o criminoso possuía um perfil físico e psicoló-gico determinável através da inferência de suas características, bem como pelo seu comportamento e modus operandi.

Assim, o criminal profiling surgiu como fruto de um processo de análi-se criminal que associa as competências do investigador criminal e do especia-lista em comportamento humano (CORREIA;LUCAS;LAMIA,2007) . Po-rém, em razão da subjetividade e da grande carga de pessoalidade que envolve o uso da técnica e a interpretação de determinados fatores, Brent Turvey (2012), em seu livro Criminal Profiling”, adverte que a falta de um consenso acerca da sua eficácia sempre gerou uma certa dose de ceticismo ao tema.

Mais adiante, a prática discriminatória contra negros, principalmen-te nos EUA, fez surgir o termo racial profiling, que se referia ao modo como a polícia tendia a dirigir suas atuações, de forma mais constante e agressiva, contra a população afro-americana. Este profiling racial e, em seguida, o ét-nico, passaram a ser combatidos e chegaram a ser relativamente bem contro-lados, segundo o mesmo Turvey. Tal preocupação foi revelada, por exemplo, pela Comissão criada em 1997 para tratar da segurança da Aviação, chefiada pelo então ex-Vice Presidente Al Gore, a qual sugeria a criação de um sistema de profiling nos aeroportos, desde que não fosse baseado em raça, etnia, reli-gião, nacionalidade ou sexo dos passageiros (ESTADOS UNIDOS, 1997).

Vieram, então, os atentados de 11 de setembro, e, em menos de dois meses, viria a ser assinado pelo Presidente George Bush o Aviation and Trans-portation Security Act, norma que representou o início de uma reviravolta nas tendências de repúdio à discriminação. Estabelecia a criação de um sistema de profiling que avaliaria a periculosidade dos passageiros, dando especial atenção àqueles que se encaixassem no perfil do terrorista ou sequestrador, muito embora grande parte dos especialistas em terrorismo pareçam não crer na existência de um perfil identificável e previsível

A partir daí, enquanto minorias árabes, apoiadas por grupos de direitos humanos, alegavam ser vítimas de políticas discriminatórias na Europa e EUA5 , seus governos continuavam a negar a prática de profi-

5 Disponível em http://www.aclu.org/national-security/five-problems-capps-ii Acesso em 15/07 23:00hs.

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ling Étnico (Estados Unidos, 2004). Encontra-se, no entanto, um bom número de publicações e artigos que tentam demonstrar a existência de profiling étnico nos EUA e Israel6

A ENAR (European Network Against Racism) define o profiling racial e étnico como a busca e uso, por parte do poder público, sejam polícia, aduana ou imigração, de generalizações baseadas em etnia ou raça, como fundamento de suspeita para dirigir atuações de maneira discricionária (ENAR, 2009).

O termo tem, desde então, sido usado com frequência em discussões relacionadas com a segurança aeroportuária, já que, após a queda das Torres Gêmeas, os EUA passaram a se empenhar na busca de uma estratégia que pudesse servir de resposta, principalmente ao público, às assustadoras vulne-rabilidades reveladas no episódio.

Rafi Sela, um dos maiores consultores de segurança da aviação israelense, critica que o termo foi, nesse contexto, aproveitado por po-líticos em busca de manchetes e que, por si só, não significa muito em assuntos de segurança7. Dessa maneira, o discurso escolhido pelo go-verno americano, envolvendo a chamada “Guerra ao Terror”, impactou diretamente a aviação comercial americana e, indiretamente, o modo pelo qual o mundo passou a olhar para a segurança nos aeroportos, haja vista que praticamente todos os países do mundo tiveram que seguir o procedimento considerado ideal pelos Estados Unidos. Isso ocorreu em razão da exigência de que, para que um avião fosse autorizado a tocar o solo americano, seus passageiros tivessem passado pelos “procedimen-tos necessários” no país de origem.

O 11 de setembro representou um marco na tentativa de se mu-dar o paradigma da segurança aeroportuária americana e européia, que, gradualmente, passou a caminhar em direção ao modo israelense de se pensar em segurança: E se, ao invés de procurarmos pelas bombas, passás-semos a procurar pelos terroristas?

6 Os isralelenses ORGAD e HASSISI desenvolveram trabalho empírico no aeroporto de Ben Gurion, em Tel Aviv, com intuito de demonstrar o tratamento diferenciado recebido por árabes com cidadania israelense e árabes estrangeiros.

7 A opinião de vários consultores em segurança aeroportuária esta disponível em <http://roomfordebate.blogs.nytimes.com/2010/01/04/will-Profiling-make-a-difference/>.

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Israel possui um famoso sistema de segurança aeroportuária esca-lonado em vários níveis subsequentes de segurança (FLORENCE; FRIE-DMAN, 2010). No aeroporto de Ben Gurion, o maior do país, situado em Tel Aviv, o passageiro que chega de carro já recebe uma vistoria, antes mesmo de chegar no estacionamento.

Embora os israelenses estejam na vanguarda de equipamentos de alta tecnologia -como o quiosque de check-in onde o viajante tem suas pulsações e sudorese medidas ao responder no monitor perguntas como: “Você é um terrorista?”8 não é a parte tecnológica do sistema que mais atrai a atenção das potências ocidentais. A grande “vedete” da segurança do Ben Gurion é o chamado behavioral profiling, ou, traduzindo, profiling comportamental.

Paul Ekman, psicólogo americano, pioneiro e maior especialista mundial em análise de expressões faciais muito contribuiu ao desenvolvi-mento do profiling comportamental9, o qual parte do pressuposto de que as pessoas, ainda que lutem para não demonstrar, costumam revelar suas emo-ções através de gestos inconscientes e expressões faciais. No que se refere às expressões, estas podem durar apenas 0,20 segundos, razão pela qual Paul Ekman as chama de micro-expressões faciais.

Em seu livro Emotions Revealed (2003), ele mostra como uma pessoa bem treinada pode detectar mentiras ou pequenas omissões em uma entrevista, por exemplo, através de micro-expressões, as quais o en-trevistado revela sem se dar conta. Ensina também que determinados sentimentos são, frequentemente, revelados através de certos padrões de linguagem corporal, como inquietude com as mãos, alteração do tom de voz, movimentos com ombros, aumento de transpiração ou do ritmo de piscar os olhos etc.(EKMAN, 2003).

Baseado nesses conceitos, agentes israelenses abordam e entrevistam toda e qualquer pessoa que embarque em um voo saindo de Ben Gurion. A en-trevista pode durar apenas um minuto. Mas, percebida alguma incongruência en-tre as palavras e as expressões demonstradas, o passageiro é submetido aos níveis

8 Uma lista com as 10 maiores inovações israelenses servem para se ter uma ideia do nível de sofisticação tecnológica alcançada pelos aeroportos de Israel, disponível em <http://basstrategicsolutions.com/articles/israels-top-10-airport-security-technologies.htm>.

9 Mais sobre Paul Ekman e a maneira como desenvolveu seus estudos sobre a análise de expressões faciais. Disponível em http://revistagalileu.globo.com/EditoraGlobo/componentes/article/edg_article_print/1,3916,578948-1719-1,00.html.

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subsequentes do sistema, que podem representar desde rigorosas buscas pessoais e submissão ao detector de mentiras. (FLORENCE; FRIEDMAN, 2010).

Vale destacar, haja vista haver certa confusão, principalmente na mí-dia, que o profiling comportamental não se confunde com o chamado “mo-delo israelense” de segurança, sendo apenas um das partes ou técnicas que compõe o modelo formado de vários níveis (“layers”) de segurança, confor-me explicam Florence e Friedman (2010).

O modelo israelense, como um todo, conforme será explicado a se-guir, apresenta sérias incompatibilidades culturais e legais com a maioria das democracias ocidentais. No entanto, a implantação do profiling comporta-mental foi, ao longo dos anos, principalmente nos EUA, tornando-se a meta a ser alcançada, tanto na visão de consultores e especialistas, como pela TSA – Transportation Security Agency, órgão federal criado para fiscalizar a segu-rança aeroportuária após os ataques de 11 de setembro10.

O governo americano desenvolveu projetos-piloto para testar o uso do profiling comportamental desde 2003, mas, foi após a tentativa frustrada do nigeriano Farouk Abdulmutallab, ao tentar acionar explosi-vos escondidos sob as roupas em um voo para Detroit em pleno natal, que os parlamentares americanos, pressionados, passaram a defender publi-camente o uso da técnica11 , o que culminou com a implantação do pro-grama a nível nacional, o qual ficou conhecido como SPOT – Screening Passengers by Observation Techniques12.

Desde então, agentes chamados de BDOs – Behavior Detection Officers são vistos pelos aeroportos americanos com a missão de detectar comporta-mentos suspeitos. Uma vez detectado, o passageiro que apresenta algum sinal considerado estranho, é submetido ao próximo nível de segurança, provavel-mente uma entrevista com agentes federais que, dependendo do resultado, po-deria levar à buscas pessoais e longos constrangimentos.

Contudo, em contraste com todas as vantagens alegadas pelos seus defensores, pesquisadores como Justin Florence e Robert Friedman (2010),

10 Sites especializados em debates mostram essa tendência. Disponível em http://roomfordebate.blogs.nytimes.com/2010/01/04/will-Profiling-make-a-difference/.

11 Disponível em http://www.nytimes.com/2010/11/22/us/22tsa.html?_r=0.

12 Disponível em http://www.jaunted.com/story/2011/8/3/141148/1818/travel/TSA+Launches+Israel-Style+Behavior+Profiling+Program+Called+'SPOT'.

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mostram que tal prática carrega um potencial perigo oculto: que o profiling comportamental acabe se tornando um profiling étnico disfarçado, haja vista que os critérios de abordagem são subjetivos e os resultados, por razões de segurança nacional, não são divulgados.

Além disso, o próprio Paul Ekman, maior referência mundial em lin-guagem corporal, em artigo para o The Washington Post (EKMAN, 2006), admite que, especialmente em se tratando de aeroportos, fácil seria confun-dir um comportamento suspeito com um simples pânico de voar. Mas logo conclui, porém, ao exemplificar com casos ocorridos, que esse tipo de engano pode ser desvendado por policiais em rápidas entrevistas, não podendo tais más interpretações desqualificar a técnica.

Apresentados os conceitos gerais, pode-se inferir que o profiling pode, então, ser dividido em dois grupos: de um lado estão aqueles basea-dos em aparência ou sinais reveladores de raça, etnia, religião ou naciona-lidade; de outro, o comportamental que, teoricamente sem preconceitos, seleciona determinado indivíduo por seu comportamento pouco usual ou que revele algum tipo de ansiedade e nervosismo.

Ao se tentar analisar a viabilidade do profiling em um estado De-mocrático de Direito, vários aspectos devem ser necessariamente abordados: a sua controversa eficácia, a relação custo-benefício de sua implantação e a compatibilidade legal com o ordenamento jurídico e valores do país, cada um deles, em razão de sua complexidade, merecedores de artigos específicos para que fosse possível analisá-los com a profundidade necessária. Além disso, se considerarmos o fato da técnica ter se originado em Israel, questões culturais e históricas devem ser trazidas à discussão.

3. A VIABILIDADE DO PROFILING NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

Pode-se afirmar, já de início, e sem qualquer receio de precipitação, que quaisquer das espécies de profiling que se propõe a buscar o perfil de um terrorista com base em sinais étnicos dificilmente passaria numa avaliação que tivesse como base qualquer dos aspectos citados acima.

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Nenhum país oficialmente assume usar critérios étnicos, nem mesmo Israel, embora tal fato seja demonstrado empiricamente em raros trabalhos acadêmicos (ORGAD; HASISI, 2012). Além disso, são poucos os analistas da área de segurança que defendem o profiling étnico publicamente, como o escritor e filósofo Sam Harris13, que, em seu blog e em debates disponíveis na internet (HARRIS, 2012), defende tal uso baseado no seguinte raciocínio: considerando que a grande maioria dos atentados são, atualmente, praticados por muçulmanos14, qual seria a chance de que a próxima tentativa de seques-tro de aeronave partisse de um muçulmano?

Em um dos melhores debates disponíveis sobre o tema na internet15, Bruce Schneider, (HARRIS, 2012), consultor de segurança e fervoroso crítico do profiling étnico, responde assim ao questionamento acima: “Alta. Mas e daí?”

Embora concorde com a hipótese proposta de que grande parte dos atentados de hoje partam de determinadas correntes radicais do Islamismo, Schneider demonstra convincentemente, em artigos de seu blog como The trouble with Airport Profiling (SCHNEIER, 2012), que essa forma de pro-filing é extremamente ineficaz e só aumenta a insegurança. Seu principal ar-gumento é simples. Ainda que a conclusão de que todo terrorista é muçul-mano, ou pior, que todo muçulmano é terrorista não fosse absurda, como se detecta fisicamente um muçulmano? Terroristas não se enquadram em um perfil pré-estabelecido e não podem ser detectados por programas de computadores. Normalmente, sequer possuem qualquer registro criminal prévio. Eles podem ser, conforme mostra a história, europeus, hispânicos, árabes, africanos, loiros de olhos claros, jovens e velhos. Podem ser tanto muçulmanos brancos da Chechênia como católicos do IRA ou ETA. Con-forme sugere o livro Women and Terrorism (GONZALEZ-PEREZ, 2008), que mostra a mudança do papel da mulher em várias culturas, o “próximo” pode ser, inclusive, uma mulher. E até mesmo alguém que nem sabe da pre-sença de uma bomba em sua mala16.

13 Sam Harris é dono de um blog no qual defende, entre outras coisas, o uso do profiling étnico. Disponível em <http://www.samharris.org/blog/item/in-defense-of-Profiling >

14 O site TheReligionofPeace.com se propõe a fazer um acompanhamento de todos os atentados que ocorrem em todo o mundo, em especial, quando parece haver motivação religiosa com base no Islamismo. Disponível em <http://www.thereligionofpeace.com/>. Acesso em 29 jul. 2013.

15 “To profile or not to profile?” é o título de um dos mais interessantes debates sobre o Profiling existentes na internet. Disponível em: <http://www.samharris.org/blog/item/to-profile-or-not-to-profile>. Acesso em 29 jul. 2013.

16 Orgad e Hasisi (2012) ilustram as dificuldades na busca do perfil com a história de Ann-Marie

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O profiling étnico, do ponto de vista do direito, também não resiste a mais superficial análise. Fere, não somente diversas normas de direito internacional que proíbem a discriminação (ENAR, 2009), como, também, provavelmente, todas as Constituições existentes no mundo ocidental.

Entretanto, no que se refere ao profiling comportamental, a grande maioria dos analistas de segurança entendem que, no caso ame-ricano, sua aplicação, se bem supervisionada, passaria pelas análises de custo-benefício e de legalidade, raciocínio que poderia ser aplicado ao caso brasileiro, com as ressalvas pertinentes relacionadas às diferenças culturais, constitucionais e, principalmente, de nível de ameaça de ata-que terrorista.

Para citar um exemplo, os pesquisadores Justin Florence and Robert Friedman (2009), em minucioso trabalho sobre esse tipo de pro-filing, argumentam que o importante não é saber qual procedimento é mais efetivo para prevenir ataques em um aeroporto, mas que a segurança deve ser vista como um sistema formado por vários níveis e procedimen-tos e, nesse sentido, pode sim o behavioral profiling tornar-se excelente ferramenta adicional de detecção de ameaças. O que importa, então, é saber que tal prática, em conjunto com outros procedimentos, aumenta a segurança com uma eficiência proporcional aos seus custos.

Para justificar seus argumentos, os citados estudiosos alegam que uma das principais lições do 11 de setembro é que “pessoas, e não es-pecíficas ferramentas, armas ou objetos, são a grande ameaça. Estiletes, como os usados pelos sequestradores de 11/09 não mais são permitidos, mas, certamente, terroristas astutos podem encontrar alternativas viá-veis” (FLORENCE; FRIEDMAN, 2010, p.436). Ademais, relembram também o enorme índice de “falsos negativos” – situações onde objetos proibidos não foram detectados pelo raio-x de bagagem – admitidos pelo órgão responsável pela segurança aeroportuária nos EUA.

Murphy, uma Irlandesa, branca e católica, que envolveu-se e engravidou de um homem sírio chamado Hindawi. Após pedido de casamento, aceitou viajar sozinha para encontrá-lo em Israel, de onde iniciariam viagem de lua-de-mel. Ao ajudá-la a fazer as malas, seu noivo escondeu o explosivo Semtex em sua bagagem de mão, o que só foi descoberto em razão das suspeitas levantadas durante sua entrevista, depois de nada haver sido detectado nos scanners, ainda que não soubesse da bomba. Maiores informações sobre o caso, inclusive com os detalhes da entrevista disponíveis em: <http://www.danielpipes.org/1064/terrorism-the-syrian-connection>.

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Em contraste com o étnico, seu benefício principal seria o fato de não estar baseado em critérios racistas, dificultando também que um terroris-ta não passe por nenhum procedimento, simplesmente por não se enquadrar no perfil de raça, etnia ou aparência que, direta ou inconscientemente, faça parte do imaginário dos agentes de segurança.

Ressalta-se que a experiência policial adquirida nos aeroportos mos-tra que, em cem por cento dos casos, criminosos como, por exemplo, tra-ficantes com droga engolida em cápsulas, não conseguem explicar e forne-cer dados que comprovem o motivo de sua viagem. Nunca se lembram de alguém que tenham conversado sobre o suposto negócio, o ponto turístico que visitaram, o telefone de algum contato no Brasil, o hotel onde se hospe-daram, o motivo pelo qual não possuem bagagem etc. Fatos que podem ser comprovados pelo policial em minutos pela internet ou telefone. É claro que, ocasionalmente, pode resultar em uma inconveniência a um passageiro que, após verificações necessárias, não se mostre pertinente, mas um mínimo de constrangimento para alguns parece ser razoável para que toda a coletividade entre em um avião correndo menos riscos.

O mesmo raciocínio e expertise poderia ser usado em relação a uma tentativa de atentado terrorista. Embora seja provável que, no caso de um ter-rorista, um futuro perpetrador esteja “dormente”, vivendo e imerso na nossa cultura – o que dificultaria a detecção de algo suspeito com perguntas tão simples - ainda sim seria plausível imaginar que tal passageiro estaria de algu-ma forma alterado, ao passar pela segurança, se estivesse inteiramente atado a explosivos ou com uma arma escondida.

Embora se possa supor que um terrorista disposto a cometer um aten-tado envolvendo uma aeronave esteja disposto inclusive a morrer pela causa, também não seria difícil imaginar que o mesmo não esteja tão disposto a ser preso e até extraditado. É o que indica a leitura do diário pessoal de Richard Reid, o “shoe bomber”, encontrado em um campo de treinamento no Afeganis-tão. Após vários voos de reconhecimento pela empresa israelense El Al, cujas aeronaves seriam seus alvos mais desejados, Reid escreveu em seu diário ao fazer uma nota sobre a companhia aérea: “difícil demais, tentar alguma outra”17. Isso porque, em seus voos com intuito de avaliar a segurança, teve seu comporta-mento considerado suspeito (em conjunto com sua aparência) pelos agentes

17 Mais detalhes sobre a tentativa de Richard Reid disponíveis em:< http://www.crmi.com.au/pdf/Security_Solutions-TERRORISM_AND_PREDICTIVE_PROFILING.pdf>.

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israelenses, tendo sido questionado e revistado. Confirmando a teoria aqui apresentada, Reid afirmou estar indo a uma entrevista de emprego em uma empresa, mas não tinha o endereço e tampouco o nome ou telefone de quem deveria contactar. Após voar, nessa ocasião, em companhia de agentes de Israel, tempos depois, foi contido pelos passageiros de voo da American Airlines de Paris a Miami, ao tentar detonar explosivos escondidos na sola de seu sapato18.

O uso do profiling comportamental não teria um custo de implantação alto, segundo os mesmos, visto que não se ampara em grandes investimentos tec-nológicos, mas, ao contrário, no treinamento de uma quantidade relativamente pequena de pessoas, as quais teriam a capacidade de observar um grande número de passageiros. Isso seria, também, muito menos invasivo, e menos caro do que a forma usada pelos israelenses, que entrevistam a totalidade dos passageiros.

Em relação ao “modelo israelense”, importa analisar o aspecto cultu-ral de tal implantação. Ainda que a ideia seja usar o profiling comportamental justamente para evitar entrevistar todas as pessoas, como fazem os israelen-ses, parte da mídia americana já critica se realmente faz sentido implantar nos EUA técnicas que funcionam em realidades consideravelmente distintas.

Israel tem apenas dois aeroportos internacionais, mas somente o Ben Gurion, localizado em Tel Aviv, tem um fluxo de passageiros comparável ao dos americanos, ou até mesmo a Guarulhos e Galeão, os dois mais movimenta-dos do Brasil. Somente em uma semana, os aeroportos americanos recebem o número de viajantes que o Ben Gurion recebe em um ano. (SCHALIT, 2010).

Outra diferença relevante é a formação dos profissionais que ope-ram os procedimentos de segurança, em termos de treinamento. Florence e Friedman (2010) revelam que, enquanto a TSA americana exige apenas formação secundária e escolhe os “observadores” do seu quadro regular de funcionários, sem um processo de seleção específico, os israelenses os sele-cionam cuidadosamente através de testes de inteligência e personalidade. Na sua maioria, os profissionais escolhidos em Israel possuem curso superior e, mais importante, possuem relevante experiência militar, uma vez que quase todo jovem israelense, homem ou mulher, passa pelo serviço militar obriga-tório, o que, naquela região, lhes dá uma percepção de perigo superior à de muitos policiais americanos ou brasileiros.

18 A título de curiosidade, essa é a razão pela qual milhões de passageiros em todo o mundo são obrigados a tirar seus sapatos ao passar pelo raio-x.

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O sistema de segurança do Ben Gurion, como um todo, gera atrasos e obriga os passageiros a chegar, em média, quatro horas antes dos voos, além de responderem perguntas excessivamente pessoais para os padrões de mui-tos países ocidentais. Diante disso, analistas americanos usam tal fato para defender o profiling comportamental como a forma mais viável de se aproxi-mar do “modelo israelense”. (COOPER, 2010).

Considerando todos os problemas do Brasil em termos de infra-es-trutura, é sensato imaginar que seria ainda mais difícil importar tal modelo ao país, razão pela qual se tenta avaliar a viabilidade da aplicação excepcional do profiling comportamental, em tempos de grandes eventos, como forma de se adicionar, ainda que temporariamente e em virtude de um possível ataque a alvo estrangeiro em solo brasileiro, um nível adicional de segurança.

Operacionalmente, em teoria, sabendo que boa parte dos órgãos pú-blicos deslocam grande parte de seu efetivo para cobrir esse tipo de eventos, o profiling comportamental seria viável, haja vista não implicar o treinamento de um número muito grande de pessoas e nenhuma aquisição de equipamentos.

Restaria analisar, portanto, a compatibilidade do profiling comportamen-tal com o sistema constitucional brasileiro, visto que o profiling étnico não passaria, como já mencionado, pela mais superficial análise de constitucionalidade.

Inicialmente, cabe destacar a visão do consultor de segurança ame-ricano Bruce Schneier. No livro Beyond Fear, ele mostra que, quando se pensa em medidas de segurança, em especial aquelas voltadas a combater o terrorismo, necessariamente tem que se pensar em uma troca. Para tal au-tor, “Essencial para qualquer decisão relacionada com segurança é a noção de troca (“trade-offs”), que significa os custos – em termos de dinheiro, con-veniência, liberdades etc – que inevitavelmente acompanham um sistema de segurança”(SCHNEIER, 2003, p. 3, tradução nossa)19. Historicamente, quase sempre que uma medida ou novo procedimento de segurança é im-plantado, uma negociação, consciente ou não, acontece. Ao ganhar em segu-rança, normalmente, perde-se ou concede-se parte de algo que alguns autores consideram ser inegociável: os direitos e liberdades individuais. Assim, quan-do se decide instalar câmeras em toda uma cidade, a coletividade, visando um ganho em termos de segurança, abre mão de parte de sua privacidade.

19 Critical to any security decision is the notion of trade-offs , meaning the costs – in terms of money, convenience, comfort, freedoms, and so on – that inevitably attach themselves to any security system.

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Em obra mais recente, o mesmo Schneier (2008) adverte para o perigo de se implantar novas medidas de segurança pensadas no calor de acontecimentos perturbadores como atentados terroristas. Na sequência de eventos como estes, os governos, ao implementar determinadas políti-cas, tendem a fazer exatamente o que querem os próprios terroristas, cujos objetivos vão além da destruição do alvo em si mesmo. O intuito ou, às vezes, o meio de se pressionar por determinado objetivo político, sempre passa por aterrorizar a população. Para o autor, quando nos deixamos ater-rorizar, fazemos o jogo do terrorista.

Outros críticos de medidas extremas de antiterrorismo que, des-proporcionalmente, atinjam direitos fundamentais, como Laura Donohue (2008), alerta que o custo político, social e econômico de tais medidas costu-ma ser demasiado caro, a ponto de fazerem o seguinte questionamento: Teria a cura se tornado pior do que a própria doença?

Embora os alvos das críticas sejam medidas bem mais extremas do que o uso do profiling nos aeroportos, parte das considerações en-volvendo a dicotomia entre segurança e liberdades individuais, e suas consequências, podem ser novamente trazidas à tona quando se tenta analisar a viabilidade do profiling étnico. Ainda que fosse eficaz e cons-titucional em países como o Brasil, seu custo social e político certamen-te não compensaria.

A constitucionalidade do uso do profiling comportamental no Brasil envolve a mesma dicotomia liberdade-segurança, na forma de um conflito entre direitos fundamentais constitucionalmente protegidos com igual sta-tus de cláusulas pétreas. De um lado temos um direito coletivo ou difuso, o direito à segurança, e de outro estão os direitos individuais como o direito à privacidade, o direito de ir e vir sem ser molestado etc.

Embora a corrente majoritária de juristas brasileiros ainda se apóie no clássico princípio da supremacia do interesse público, advinda do direito admi-nistrativo, para sustentar uma prevalência dos direitos coletivos sobre os indivi-duais, não são poucas as vozes que se levantam contra uma definição apriorísti-ca sobre qual direito merece prevalecer. (FARIA; ALBUQUERQUE, 2013).

Embora sejam convincentes os argumentos da primeira corrente, que sugere que mencionado princípio origina da própria noção de Estado, e

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que toda a governabilidade de um país se apoie na mesma, a análise do caso concreto, ao invés de uma aplicação absoluta e irrestrita da supremacia públi-co, parece não somente mais sofisticada, como menos perigosa.

Essa segunda opção implicaria a aplicação do Princípio da Propor-cionalidade ou Razoabilidade. Embora os termos sejam utilizados como sinônimos no Brasil, há pequenas diferenças, como, por exemplo, no que se refere à suas origens20. Ainda que exista uma influência do direito cons-titucional americano permeando o conceito de razoabilidade, foi o direito constitucional alemão o que mais contribuiu para a aplicação do princípio da proporcionalidade, da forma pela qual é hoje utilizada pelo Supremo Tribu-nal Federal para resolução dos conflitos entre direitos constitucionais.

A constitucionalidade da utilização do profiling comportamental, com base na proporcionalidade, perpassaria pela análise da técnica sob a ótica dos três sub-princípios que compõem o princípio. Ou seja, para ser conside-rada constitucional, a aplicação desse tipo de profiling necessitaria passar pe-los questionamentos que traduzem cada um dos sub-princípios: necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito. (MOYSES, 2012).

Em relação ao primeiro, a necessidade, existiriam outras medidas menos restritivas dos direitos individuais capazes de garantir um ganho se-melhante em termos de segurança? A resposta parece ser negativa, haja vista que, como discutido ao longo do artigo, o uso do profiling comportamental como meio de se acrescentar um nível segurança é bem menos constrangedor e ofensivo aos direitos individuais da população, de modo geral. Isso porque, desde que bem controlado e supervisionado, evita-se o uso de critérios étni-cos na abordagem de prováveis suspeitos, além de submeter a constrangimen-tos somente passageiros que de alguma forma revelem um comportamento pouco usual, que seriam entrevistados por policiais federais com experiência para discernir entre nervosismo causado por um simples medo de voar ou problema pessoal e um estresse causado pelo medo de ser descoberto.

A análise do segundo sub-princípio implica avaliar a adequação do procedimento. Será adequado o meio apto a atingir o objetivo pre-tendido, o qual, no caso, significa obter um ganho em termos de segu-

20 Mais detalhes sobre as origens dos termos razoabilidade e proporcionalidade, consultar artigo disponível em http://lfg.jusbrasil.com.br/noticias/95239/ha-diferencas-entre-o-principio-da-proporcionalidade-e-da-razoabilidade-fernanda-braga.

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rança através da utilização dos conceitos do profiling comportamental. Como os resultados práticos das experiências americanas e israelenses são difíceis de serem mensurados, até mesmo em razão da sua não di-vulgação por parte dos governos, a eficácia da técnica ainda carece de comprovação empírica. No entanto, alguns fatos apontam para a eficá-cia do profiling, ainda que apenas como fator adicional de intimidação de tentativas terroristas. Nunca é demais, nesse aspecto, lembrar que Israel nunca foi vítima de um atentado em voos que partissem de seu principal aeroporto, cujo sistema de segurança faz do profiling com-portamental um de seus pilares, ainda que utilizado em conjunto com outras técnicas21. Tudo leva a crer que agentes de segurança, policiais ou não, treinados para estarem atentos para determinados comportamen-tos suspeitos pode sim gerar um acréscimo de segurança.

O último aspecto é possivelmente o de análise mais complexa: a pro-porcionalidade, em seu sentido estrito. Aqui, faz-se um sopesamento entre os direitos fundamentais em conflito (SILVA, 2002), considerando o caso concreto, e não uma suposta hierarquia do direito coletivo em relação ao in-dividual. O direito coletivo à segurança se confunde, no caso em questão, com o próprio dever do Estado de proteger seus cidadãos, ou quem quer que esteja em seu território, de uma agressão injusta.

O uso do profiling comportamental, desde que seja bem supervi-sionado e desvencilhado de qualquer preconceito étnico ou racial, resulta em aceitáveis restrições a direitos individuais (direito à privacidade ou à livre locomoção, por exemplo). Ainda assim, tal sopesamento não pode ficar alheio à proporcionalidade entre as medidas e o contexto atual, quando se estuda o caso concreto.

Considerando a inexistência de um terrorismo “doméstico” no Brasil e o fato do País, até hoje, nunca ter sido alvo de ataque do cha-mado terrorismo transnacional, por intermédio de grupos como a Al Qaeda, talvez se concluísse existir uma desproporcionalidade entre o risco terrorista atual e a criação de procedimentos que resultem em in-convenientes (os quais se traduzem em restrições a direitos individuais) ainda maiores dos que os já existentes nos aeroportos.

21 Disponível em < http://roomfordebate.blogs.nytimes.com/2009/12/30/aviation-security-and-the-israeli-model/?_r=0>.

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Entretanto, levando em consideração a vinda de grandes eventos ao país e a presença de delegações e autoridades de alguns dos possíveis alvos do terrorismo internacional, como os EUA, Reino Unido e Israel, entende-se, diante dessas circunstâncias especiais e temporárias, que a de-fesa do direito à segurança da coletividade merece prevalecer perante de-terminados direitos individuais, acarretando inevitáveis inconvenientes e averiguações extraordinárias a alguns passageiros.

4. CONCLUSÃO

A utilização do profiling fundamentado em critérios étnicos ou ra-ciais não é compatível com Estados Democráticos de Direito, como é o caso do Brasil. Não apenas é inconstitucional e inconciliável com os valores multi--étnicos do país, como é tecnicamente indefensável, haja vista basear-se em pressupostos equivocados do suposto perfil terrorista.

O profiling comportamental, ainda que tenha bases científicas con-trovertidas e resultados de difícil verificação, apresenta um custo de im-plantação relativamente baixo, uma vez que se resumiria a treinamento dos servidores posicionados próximos aos aparelhos de raio-x, podendo resul-tar em um acréscimo de segurança, desde que utilizado em conjunto com a simultânea verificação de bagagens. Por outro lado, as recentes críticas recebidas pelo mencionado programa SPOT da TSA americana demonstra a necessidade de um maior tempo para avaliar os resultados que podem ser obtidos com o uso da técnica.

Este artigo não tem a intenção de apresentar o profiling como fór-mula “mágica” na prevenção ao terrorismo. No entanto, incutir nos agentes de segurança aeroportuários, policiais ou funcionários dos canais de inspe-ção de segurança, as noções de linguagem corporal e técnicas de entrevista nas quais se baseia este tipo de profiling pode deixar um legado que ajude na detecção de outros crimes que, seguramente, ocorrem diariamente nos aeroportos brasileiros, como o tráfico de drogas, de pedras preciosas e re-messa ilegal de dinheiro ao exterior .

Embora exista uma deficiência em termos de número de policiais federais lotados nos aeroportos do País, o natural deslocamento de efe-tivo dos órgãos de segurança, especialmente da Polícia Federal, para as

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cidades onde se realizam os grandes eventos, tornaria viável a utilização extraordinária do profiling comportamental, ou de outros procedimentos que se monstrem mais eficazes, uma vez que a eficácia da técnica não se encontra, até o presente momento, cientificamente comprovada. Eventu-al aumento do risco de atentado terrorista justificaria temporárias e pe-quenas restrições a direitos individuais, que se revelariam constitucionais sob o prisma do princípio da proporcionalidade.

Medidas de antiterrorismo costumam carregar consigo um alto cus-to social, principalmente se tomadas apressadamente em resposta a atenta-dos. O Brasil tem a obrigação e a chance de colocar em discussão o uso de ferramentas que diminuam o risco de que suas vulnerabilidades se tornem oportunidade irresistível a grupos terroristas.

Guilherme Damasceno Fonseca

Agente de Polícia Federal, Mestrando do Programa de Mes-trado em Relações Internacionais da PUCMINAS.

ABSTRACT

The September 11 terrorist attacks once again showed the world what it appeared to have forgot-ten: that commercial flights remain a primary target for terrorism. Since then, a number of western powers have sought to improve airport security, submitting passengers from all over the world to an exhaustive set of procedures, many of which cause discomfort to the individual. The western world has gradually adopted the counter terrorism strategies of Israel, a country whose airports are consid-ered models of security. A variety of profiling techniques, which aim to prevent terrorist attacks by identifying the expected profile of the terrorist, are key to this approach. As profiling based on racial or ethnic criteria is not compatible with the majority of democratic constitutions, behavioral profil-ing has assumed greater importance, based on the theory that the passenger with criminal intentions, when passing through airport security procedures, will almost always reveal signs of nerves or anxiety, which can be identified by properly trained security professionals. Yet the use of such an approach in a specific environment such as an airport raises a number of questions, most notably with respect to its appropriateness in democratic states governed by the rule of law.

KEYWORDS: Profiling. Airports. Terrorism. Ethnic. Behavioral. Appropriateness In Demo-cratic States Governed By The Rule Of Law.

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LVl

Page 131: Revista Brasileira de Ciências Policias Volume III, nº 2, Junho - Dezembro

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Vol. 3 n. 2, jul/dez de 2012.

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Guilherme Henrique Braga de Miranda

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