revista brasileira de ciências policias vol. 2 n. 2

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Revista BRasileiRa DeCiÊNCias POliCiais

vOl. 2, N. 2, JUl-Dez/2011

issN 2178-0013

R BC P

Publicação da Coordenação escola superior de Polícia academia Nacional de Polícia / Polícia Federal

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Revista Brasileira de Ciências PoliciaisRevista da Academia Nacional de Polícia (ANP)

Brasília, v. 2, n. 2, p. 1 - 131 p., jul./dez. 2011.ISSN 2178-0013

Copyright © 2010 - ANP

Editor ResponsávelGuilherme Henrique Braga de Miranda

Comissão EditorialGuilherme Henrique Braga de Miranda (Presidente); Célio Jacinto dos Santos; Adriano Mendes

Barbosa; Eliomar da Silva Pereira; Emerson Silva Barbosa; Gilson Matilde Diana.

Conselho EditorialAlexandre Bernardino (UnB - Brasil); Aili Malm (California State University - EUA); Carlos Roberto

Bacila (UFPR e DPF - Brasil); Denilson Feitoza (MPMG - Brasil); Elenice de Souza (Rutgers University - EUA); Guilherme Cunha Werner (DPF - Brasil); Jairo Enrique Suárez Alvarez

(CEPEP - Colômbia); José Pedro Zaccariotto (PCSP - Brasil); Luiz Henrique de A. Dutra (UFSC - Brasil); Manuel Monteiro Guedes Valente (ISCPSI e UAL - Portugal); Michael Towsley (Griffith

University - Autrália); Patrício Tudela Poblete (ASEPIC e Universidade do Chile - Chile); Paulo Rangel (TJRJ e UERJ - Brasil), Spencer Chainey (UCL - Inglaterra).

Ministério da JustiçaMinistro: José Eduardo Cardozo

Departamento de Polícia FederalDiretor-Geral: Leandro Daiello Coimbra

Diretoria de Gestão de PessoalDiretor: Joaquim Cláudio Figueiredo Mesquita

Academia Nacional de PolíciaDiretor: Disney Rosseti

Coordenação Escola Superior de PolíciaCoordenador: Célio Jacinto dos Santos

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Revista Brasileira de Ciências Policiais, v. 2, n. 2, jul/dez 2011.

ISSN 2178-0013

R BC P

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Revista Brasileira de Ciências PoliciaisPublicação semestral de doutrina em assuntos policiais, visando a difundir a produção acadêmica dos cursos de pós-graduação da Academia Nacional de Polícia (ANP), a cargo da Coordenação Escola Superior de Polícia (CESP), bem como do programa de pesquisa e outras produções congêneres de origem nacional e estrangeira.

Os conceitos e idéias emitidos em artigos assinados são de inteira responsabilidade dos autores, não representando, necessariamente, a opinião da revista ou da Academia Nacional de Polícia.

Todos os direitos reservadosNos termos da Lei que resguarda os direitos autorais (de acordo com a Lei nº 9.610 de 19 de fevereiro de 1998 - Lei dos Direitos Autorais), será permitida a reprodução parcial dos artigos da revista, sempre que for citada a fonte.

Correspondência EditorialRevista Brasileira de Ciência Policial

Rodovia DF 001 - Estrada Parque do Contorno, Km 2 - Setor Habitacional Taquari, Lago Norte-DFCEP - 71559-900 - Brasília-DFE-mail: [email protected]

Publicação SemestralTiragem: 1000 exemplares

Projeto Gráfico e Capa: Eliomar da Silva Pereira, Gilson Matilde Diana e Gleydiston RochaEditoração: Gilson Maltilde Diana e Guilherme Henrique Braga de Miranda

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)Biblioteca da Academia Nacional de Polícia

Revista Brasileira de Ciências Policiais / Academia Nacional de Polícia. – v. 2, n. 2 (jul./dez. 2010 - ) – Brasília: Academia Nacional de Polícia, 2011. 131p. ISSN 2178-0013 Semestral1. Ciência policial – Periódico. 2. Investigação criminal. 3. Investigação policial. Polícia Federal. I. Brasil. Ministério da Justiça. Departamento de Polícia Federal. Academia Nacional de Polícia.

351.741

R 454

Artigos para análise e publicação: Normas ABNT (NBR 6022:2002)

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Copyright © 2010 - ANP

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SumárioArtigosA Súmula Vinculante nº 11 do STF: uma visão a luz da Teoria da Justiça de Rawls ...............11

The STF Binding Precedent #11: a vision in the light of the Rawls Justice Theory

La Súmula Vinculante n. 11 del STF: una visión a la luz de la Teoria de la Justicia de Rawls Disney rosseti

Ciências Sociais e Investigação Criminal ....................................................................................35

Social Sciences and Criminal Investigation

Ciências Sociales y Investigación Criminal

Eliomar da Silva Pereira

A Ciência Policial na Sociedade Tardo-Moderna como Fundamento do Estado de Direito Democrático ................................................................................................................................47

The Police Science in the Late-Modern Society like Basis of the Democratic Rule of Law

La Ciencia Policial en la Sociedad Tardo-Moderna como Fundamiento del Estado de Derecho Democrático

Manuel Monteiro Guedes Valente

Uma Sociologia das Organizações Policiais ................................................................................65

A Sociology of the Police Organization

Una Sociologia de las Organizaciones PolicialesAlmir de Oliveira Junior

Segurança Pública, Inteligência e Cooperação Internacional ......................................................89

Public Safety, Intelligence and International Cooperation

Seguridad Pública, Inteligencia y Cooperación InternacionalTony Gean Barbosa de Castro

A Gestão do Desempenho Policial: importância do feedback ................................................... 109

The Police Performance Management: importance of the feedback

La Gestión del Desempeño Policial: importancia del feedbackRodrigo de Souza Carvalho

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7Revista Brasileira de Ciências Policiais

Editorial

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Num momento de reestruturação interna, em que a Coordena-ção de Altos Estudos de Segurança Pública (CAESP) deu lugar à Escola Superior de Polícia (CESP), temos a honra de submeter à comunidade científica policial o segundo número do segundo volume da Revista Brasileira de Ciências Policiais. Nos seis artigos publicados, o enfoque nas ciências policiais continua presente, de forma cada vez mais clara e evidente, trazendo à discussão aspectos temáticos importantes para difusão e consolidação das ciências policiais.

Dessa maneira, os artigos foram selecionados e organizados para, uma vez mais, propiciar um instigante panorama conceitual das ciências policiais, da polêmica questão de normatização do uso de alge-mas à utilização de feedback na gestão do desempenho policial, passan-do pelo reconhecimento da afinidade metodológica entre as ciências policiais e sociais, pela contextualização e afirmação da ciência policial na sociedade moderna, pela análise sociológica da organização policial e da própria essência do ser policial e pela revisão do papel da inteligên-cia policial na segurança pública em escala internacional.

Assim, no primeiro artigo, A Súmula Vinculante nº 11 do STF: uma visão à Luz da Teoria da Justiça de Rawls, Disney Rosseti descreve os precedentes e analisa aspectos de destaque relacionados à discussão e definição do controle normativo do uso de algemas, apontando incoe-rências e carências no tratamento dado ao tema pelo Supremo Tribunal Federal, conforme exercício analítico em que utilizou a base conceitu-al de Rawls e outros teóricos jurídicos consagrados para confrontar o novo posicionamento vigente.

Na sequência, Eliomar da Silva Pereira, em seu Ciências Sociais e Investigação Criminal: metodologia da investigação criminal na lógica das ciências sociais, partindo de considerações ligadas ao método cien-

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tífico e ao estudo da lógica, reconhece e descreve afinidades metodo-lógicas entre as técnicas investigativas aplicadas nas ciências sociais e as técnicas investigativas policiais (com destaque para a observação, a entrevista e a análise de conteúdo). Adicionalmente, o autor compara características qualitativas e quantitativas da pesquisa e conclui enalte-cendo a existência de uma diversidade de soluções.

A terceira participação nesta Revista Brasileira de Ciências Po-liciais coube a Manuel Monteiro Guedes Valente, agregando ao univer-so policial brasileiro, uma vez mais, o valor e a visão da ciência policial portuguesa, desta feita numa transcrição de manifestação oral proferida no V Congresso Brasileiro de Delegados de Polícia Federal, ocorrido no Rio de Janeiro, onde discorreu sobre A Ciência Policial na Socieda-de Tardo-Moderna como Fundamento do Estado de Direito Democrático, trazendo para reflexão aspectos epistemológicos e axiológicos vincula-dos à necessidade de construção e afirmação contínua da ciência poli-cial em face de um discurso contrário à sua existência.

No quarto artigo, Uma Sociologia das Organizações Policiais, Almir de Oliveira Junior reve minuciosamente o embasamento concei-tual das organizações policiais e das atividades de policiamento, tecen-do considerações sobre as relações entre polícia e sociedade, bem como sobre a própria autoimagem do policial, baseando-se em impressões próprias e citações de autores internacionais e nacionais consagrados, como Bailey, Skolnick, Bittner, Monjardet, Mingardi, Goffman e Man-ning, entre outros.

Segurança Pública, Inteligência e Cooperação Internacional é o título do quinto artigo, de autoria de Tony Gean Barbosa de Castro, que desenvolve o tema considerando os três conceitos constantes no título como formas de instrumentalização e fortalecimento ao efetivo enfrentamento à criminalidade organizada, sobretudo numa dimensão transnacional. O autor resgata a origem do conceito de inteligência aplicado à esfera da segurança pública e projeta sua relação num contex-to de cooperação internacional, tratando de temas como a Convenção de Palermo, o Acordo Schengen e o Mercosul.

Fechando a presente edição, Rodrigo de Souza Carvalho apre-senta a público A Gestão do Desempenho Policial: importância do feed-

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back, onde identifica dificuldades e obstáculos enfrentados por doze gestores da Polícia Federal no fornecimento de feedbacks a seus subor-dinados após a avaliação de desempenho e durante atividades de rotina. O texto aborda aspectos correlacionados como a comunicação interpes-soal, liderança, cultura organizacional. A análise realizada é importan-te para melhorar a percepção da missão institucional e dos objetivos a serem perseguidos para alcançar a excelência.

Despeço-me, desejando a todos, uma boa leitura e até a próxima!

Guilherme Henrique Braga de Miranda

Editor

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11ISSN 2178-0013

Revista Brasileira de Ciências Policiais

Brasília, v. 2, n. 2, p. 11-34, jul/dez 2011.

A Súmula Vinculante nº 11 do STF: uma visão à luz da Teoria da Justiça de Rawls

Disney Rosseti

Academia Nacional de Polícia - Brasil

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RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo descrever os precedentes e debates que marcaram a edição da Súmula Vinculante n.º 11, analisando-os a luz de alguns dos principais termos da Teoria da Justiça de Rawls, conferindo ênfase na questão da concepção de justiça adotada pelos Mi-nistros do Supremo Tribunal Federal, sendo feito, ainda, um cotejo com a crítica comunitarista acerca da excessiva judicialização dos direitos fundamentais nos estados ditos liberais. A con-clusão aponta para a falta de uma efetiva concepção de justiça nas decisões que tratam de direitos fundamentais, as quais se baseiam muito mais no intuicionismo, não balizando devidamente as igualdades e liberdades, levando a uma excessiva prevalência dos direitos fundamentais indivi-duais em detrimento de valores da própria sociedade.

PALAVRAS-CHAVE: Súmula Vinculante n.º 11; Teoria da Justiça; concepção de Justiça; intui-cionismo; igualdades e liberdades

1. INTRODUÇÃO

As decisões do judiciário brasileiro muitas vezes geram no cidadão comum uma perplexidade, uma sensação de que a justiça é algo completamente afastado de sua realidade cotidiana, sendo de difícil compreensão o exato alcance de seus termos e principalmente entender, dentro de um senso comum, como se chegou a tal decisão. Isto ocorre por vezes ante o desconhecimento da maioria das pessoas acerca das leis e dos meandros legais, dos procedimentos e princípios que norteiam nosso direito. Noutras vezes é nítido o conteúdo político de determinadas deci-sões, uma vez que o judiciário, enquanto Poder, principalmente nas decisões das cortes superiores tem inevitavelmente parcela de responsabilidade política em suas decisões, especialmente quando se trata de decisões que afetam o coletivo, políticas e finanças públicas, com impactos que transcendem e muito a estreita visão de um embate entre duas partes no processo defendendo seus interesses ou direitos.

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Porém, chama realmente a atenção o fato de que muitas decisões conflitam com nossas intuições de justiça, com o senso de justiça de cada um e também da sociedade como um todo, demonstrando uma dissociação entre as razões do juiz e do jurisdicionado, muito embora eles façam parte da mesma sociedade, portanto deveriam compartilhar boa parte dos valores e do próprio senso de justiça. E não se trata absolutamente das hipóteses de simplesmente ver insatisfeita uma pretensão pessoal proposta ao judiciário, a exemplo de não ter acolhida pretensão proposta ante o judiciário, mas sim o conteúdo de decisões que afetam a todos, individualmente e coletivamente, no próprio senso de justiça.

Uma dessas recentes decisões que gerou grande polêmica e reações de parcelas da sociedade foi a edição da Súmula Vinculante n.º 11, que limi-tou sensivelmente a aplicação de algemas em presos por parte de policiais. E neste caso a discussão foi desde a necessidade de uma regulamentação por parte do judiciário quanto ao tema, o que gerou uma reação do próprio le-gislativo, que em sua visão teve usurpada as suas funções de regulação geral de temas através das leis, passando pela crítica geral de boa parte da socie-dade ao argumento de que algemas somente caberiam para pobres enquan-to criminosos de colarinho branco ou “amigos da corte” não poderiam ser algemados, chegando inevitavelmente a uma reação muito forte das insti-tuições policiais por entenderem que a aplicação dos termos desta súmula, na prática, seria inviável ante as circunstâncias que permeiam normalmente uma prisão1. Noutro extremo, aplaudindo a decisão tomada, advogados, considerável parcela dos juristas que se dedicam as ciências criminais, pes-soas investigadas em crimes de colarinho branco e parte dos magistrados, especialmente integrantes de cortes superiores de justiça, entenderam que tal medida vai ao encontro dos direitos e garantias fundamentais, contro-lando o que na visão deles estava se convertendo num estado policialesco, com excesso por parte da polícia na aplicação de algemas2.

O objetivo deste trabalho é analisar essa decisão do STF, especial-mente os termos dos debates que levaram a edição desta súmula, buscando identificar a concepção de justiça adotada pelos ministros do STF que fun-

1 Vide http://www.conjur.com.br/2008-ago-21/sumula_vinculante_11_supremo_inconstitucional, http://jus.uol.com.br/revista/texto/11615/sumula-vinculante-no-11 e http://www.polmil.sp.gov.br/unidades/apmbb/pdf/artigo_7.pdf

2 Vide http://www.conjur.com.br/2008-out-07/advogados_sp_criticam_abusos_operacoes_policiais e http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI104137,91041-Entrevista+de+Gilmar+Mendes+a+Folha+de+S.Paulo+gera+polemica+e+reacao

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damentaram esta decisão, comparando-os com a Teoria de Justiça de John Rawls, além de traçar um paralelo com alguns dos principais termos desta teoria, essencialmente a questão da igualdade.

Conforme se demonstrará desta análise, assim como boa parte das decisões judiciais brasileiras, neste caso a fundamentação conferida por cada ministro foi baseada essencialmente num intuicionismo, levando a uma con-clusão que não encontra respaldo na teoria da justiça como equidade, sendo difícil mesmo compreender as concepções lançadas no debate desta súmula.

Cumpre asseverar que esta análise não objetiva levar em conta de-terminados argumentos de cunho político e ideológico, muitas vezes levan-tados em casos desta natureza, que invariavelmente concluem pela proteção das classes dominantes ou elites políticas, mas sim realizar uma análise frente ao método e termos da teoria de Rawls.

Para tanto, será feita uma descrição dos debates que levaram a edição da Súmula Vinculante n.º 11, para em seguida serem descritos os principais termos da teoria de Rawls, especialmente os que interessam a esta análise. So-mente então será procedido o diálogo entre os argumentos do STF e as pro-posições rawlsianas, sendo realizadas breves considerações acerca de algumas críticas comunitaristas sobre o tema, julgadas pertinentes, apresentando-se, finalmente, as conclusões a respeito.

2. A SÚMULA VINCULANTE N.º 11: PRECEDENTES E DEBATES

Há algum tempo que o STF, lastreado em parcela da doutrina cri-minalista, vinha analisando causas em que o uso de algemas nos presos vi-nha sendo contestado. Como precedentes dos debates que levaram a edição da Súmula Vinculante n.º 11 foram invocados quatro casos: o Recurso em Habeas Corpus n.º 56465, e os Habeas Corpus n.º 71195, 89429 e 91952 (BRASIL, STF, 2008).

Desses precedentes, três versavam sobre uso de algemas em réu du-rante sessão planária de tribunal do júri e um sobre operação da Polícia Fede-ral3. Este último precedente continha pedido para que investigado preso em

3 Em 2006 um dos Conselheiros do Tribunal de Contas do Estado de Rondônia foi preso durante a denominada Operação “Dominó” da Polícia Federal e trazido para Brasília a fim de ser ouvido no Superior Tribunal de Justiça. O habeas corpus impetrado visava impedir que este preso fosse conduzido

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operação da Polícia Federal, que seria ouvido no Superior Tribunal de Justiça, não fosse conduzido algemado até aquela corte, o que, segundo os advogados do preso, somente implicaria humilhação pública, sendo tal medida acata-da pelo ministro do STJ responsável pelo caso. Já os outros três precedentes tratavam de casos em que os advogados alegaram que o fato de o réu estar al-gemado durante sessão do tribunal do júri implicava constrangimento ilegal, portanto desnecessário, além de influenciar na decisão dos jurados4, o que também foi acatado pelo STF.

Cabe aqui explicitar que o debate sobre o uso de algemas estava acirrado nesta época, primeiro semestre do ano 2008, fundamentalmen-te em razão das chamadas "mega-operações" levadas a cabo pela Polícia Federal5, e uma parcela do judiciário, cuja voz mais marcante nas críti-cas era a do Ministro Gilmar Mendes, do STF, engrossada por alguns políticos, criminalistas e pela Ordem dos Advogados do Brasil - OAB, acusavam a polícia de realizar operações midiáticas, ferindo direitos e garantias constitucionais.

Tendo sido o relator do HC 91952, o Ministro Marco Aurélio apre-sentou então proposta de súmula vinculante sobre o uso de algemas, partindo da premissa de que a utilização de algemas é sempre excepcional, cabendo somente no caso de possibilidade real de fuga e periculosidade do agente. Aduzindo que se tratava da posição dominante na corte, o Ministro Marco Aurélio afirmou que a regra era a condução do cidadão com a cautela pró-pria, respeitando-se sua integridade física e moral, conforme a Constituição Federal. Fundamentou tal assertiva na Constituição Federal, essencialmente na dignidade da pessoa humana (art. 1º) e no respeito a integridade física e moral, dos cidadãos em geral e dos presos especificamente (art. 5º, inciso

algemado da Superintendência da Polícia Federal no Distrito Federal até a sede do STJ, ao argumento de que o uso de algemas é excepcional e somente caberia nos casos de risco de fuga ou risco a integridade física do preso, dos policiais ou terceiros.

4 Sobre esta questão do uso de algemas em presos durante a sessão do Tribunal do Júri, já há muito tempo que se discutia essa necessidade das algemas, refutada pelo STF ante os mesmos direitos e garantias fundamentais invocados para a questão genérica da aplicação das algemas, e com base também no argumento de que o fato de o réu estar algemado passaria a impressão para o juiz leigo, no caso o jurado, de culpa do acusado, com prejuízo ao seu direito de defesa.

5 Entre os anos de 2002 e 2009 a Polícia Federal, adotando novas tecnologias, métodos, equipamentos e estratégia de atuação, realizou mais de 1.000 operações de grande porte, segundo a própria PF (fonte: http://www7.pf.gov.br/DCS/). A grande maioria dessas operações foi direcionada a combate a corrupção, fraudes em licitações, lavagem de dinheiro, crimes financeiros, e outros correlatos, atingindo agentes públicos e políticos, além de grandes empresários e personalidades conhecidas do grande público. A repercussão foi imensa, gerando apoio e críticas contundentes e acaloradas.

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XLIX). Afirmou também que esta era a interpretação teleológica do Código de Processo Penal e também o que se denota do Código de Processo Penal Militar e da Lei de Abuso de Autoridade.

O Ministro Cezar Peluso observou que não bastaria o mero receio de fuga, mas deveria haver um fundamento, ou seja, um receio fundamentado de fuga ou a integridade física do custodiado ou de ter-ceiros, o que englobaria a resistência a prisão. Chamou a atenção que este mesmo ministro alerta sobre o STF determinar as conseqüências da inobservância desta regra, evitando-se o arbítrio das autoridades em cumpri-la ou não.

Já o Ministro Menezes Direito fez alusão ao fato de um delegado federal ter desqualificado a decisão do STF e entendido que é normal o uso de algemas6, no que é complementado pelo Min. Marco Aurélio de que nos últimos anos o país estava vivendo uma perda de parâmetros e abandonos de princípios caros a uma sociedade democrática. Em se-guida os ministros trataram de toda sorte de responsabilidade ao agente que descumprisse tal regra.

O Ministro Carlos Brito fundamentou ainda tal excepcionalida-de com a proibição constitucional de tortura, tratamento desumano ou degradante (art. 5º, III). Fez ainda menção ao fato do preso ser exibido como um troféu ao público. Afirmou que o uso de algemas exacerbava o estado de privação de liberdade com conseqüências físicas e morais, entretanto fala do “prudente arbítrio” que os policiais deveriam ter para saber se a situação exigiria ou não algemas, sempre dentro de uma ex-cepcionalidade. O Ministro Carlos Brito falou em prudente discrição, e ainda complementou asseverando que o juiz, fora dos casos de prisão em flagrante, deveria sempre fundamentar o uso das algemas.

O Ministro Cezar Peluso afirmou que qualquer policial em início de carreira saberia em que situação deveria usar as algemas, tendo ele, na con-dição de juiz de direito, nunca se deparado com caso em que o policial não

6 Esta crítica do Ministro Menezes Direito foi feita diretamente em relação a denominada Operação Satiagraha, deflagrada em julho de 2008 na cidade de São Paulo/SP, tendo sido presos banqueiros, diretores de bancos e investidores. O então presidente do STF, Ministro Gilmar Mendes, expediu habeas corpus para os presos, o que gerou nova ordem de prisão pelo juiz de primeira instância a pedido do Delegado Protógenes Queiroz. Tal fato, aliado a aplicação de algemas e exposição na mídia dos presos desta operação, acelerou os debates no STF, que logo em seguida expediu a Súmula Vinculante n.º 11.

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soubesse, ante uma situação concreta, quando utilizar ou não um par de al-gemas. O Ministro Eros Grau, diante disso, observou que não se trata de ato discricionário, mas de ato vinculado, no sentido de que desejava ver excluída qualquer subjetividade do policial no caso concreto.

Diante da proposta de redação da súmula, o Ministro Cezar Peluso falou do perigo a integridade física própria ou alheia, explicando que esse pe-rigo pode resultar de circunstâncias objetivas ou subjetivas, exemplificando que no caso de crime violento haveria sempre a presunção de risco.

O Ministro Marco Aurélio sugeriu que se excluísse a possibi-lidade de se algemar o preso para preservar sua integridade física, pois isto representaria um pretexto para as autoridades policiais algemarem os presos de forma genérica. Rebatendo tal argumento o Ministro Ce-zar Peluso afirmou que qualquer que fosse a redação dada a súmula, se os policiais não quisessem cumpri-la não seria a redação que os iria impedir, ao que retrucou o Ministro Marco Aurélio que não se poderia raciocinar com a exceção.

Partiram então os Ministros para a discussão da periculosidade do local, entendendo que ela estava incluída implicitamente, além de tratarem do aspecto temporal da fundamentação, que no caso de ordens judiciais se daria sempre previamente, ao contrário de prisões sem ordem judicial, como no flagrante delito, hipótese em que o policial fundamen-taria posteriormente o uso das algemas.

O Procurador-Geral da República, Antônio Fernando de Souza, fez observações diferenciando casos de prática de atos processuais, como sessões do Tribunal do Júri, onde seria sempre possível tomar antecipada-mente todas as providências para garantir a segurança do local e de todos que participarão do ato, de situações de prisões efetivadas por policiais no dia-a-dia, o que geraria uma situação sempre potencialmente confli-tuosa e perigosa. Alertou o Procurador-Geral sobre a observação dessa regra em face desses casos concretos de prisão, sob pena de se colocar os policiais numa situação de presunção de violação da súmula. O Ministro Cezar Peluso, concordando com essas observações, admitiu que o ato de prender e conduzir um preso é sempre perigoso, e portanto a interpreta-ção dos casos concretos deveria ser sempre em prol dos agentes do Estado, salvo flagrante violação do dispositivo.

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Diante destas questões o Ministro Gilmar Mendes observou que a questão das algemas era somente um dos aspectos das violações de direitos e que na verdade o que se estava discutindo era a aposição das algemas para exposição pública, no sentido de que prender estava significando algemar e colocar alguém na televisão.

Assim, a versão final da Súmula Vinculante n.º 11 acabou ficando nos termos abaixo:

Só é lícito o uso de algemas em caso de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado.

É possível notar, de plano, que os debates foram extremamente esté-reis, pobres em argumentos e justificativas, limitando-se a enunciação genéri-ca de postulados constitucionais. Isso talvez revele que tal tema não necessi-taria ter sido tratado em um nível tão elevado como o de uma Corte Suprema de um país, quanto mais ter sido objeto de súmula vinculante, que significa submeter todo o judiciário e as autoridades do executivo a um regramento sobre o tema.

Por outro lado, os principais argumentos dos ministros por vezes são colidentes, havendo mesmo confusão sobre questões como a subjetivida-de, arbitrariedade e discricionariedade na aplicação de algemas, assim como sobre uma presunção de periculosidade de qualquer prisão e até mesmo do local influenciando na sua aplicação, o que tenderia, na verdade, a se aplicar sempre as algemas.

Tudo isso revela, conforme se demonstrará, uma concepção de justi-ça equivocada, baseada em intuicionismo, distante de se visualizar, inclusive, como se formou o conceito de justiça neste caso.

3. A TEORIA DA JUSTIÇA DE RAWLS

Em sua Teoria da Justiça John Rawls oferece uma visão alternativa ao utilitarismo e ao intuicionismo. Ele elabora uma teoria fundada na igualdade e na qual a noção de distribuição é essencial, tendo um forte viés contratua-

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lista, que não funda a sociedade, mas lhe fornece uma conjuntura através de escolha de princípios. Rawls não tem a pretensão de oferecer respostas a si-tuações concretas, mas sim de demonstrar um meio, um procedimento de se chegar a resultados equitativos ou justos. Nesse sentido sua teoria é argumen-tativa e não tem aplicação direta, mas permite a discussão de questões com base nela. Sua importância se revela pelo grande número de comentadores, críticos e seguidores que escrevem a seu respeito.

Parte Rawls de um primado da justiça, considerando que as institui-ções tem que ser justas, afirmando que a justiça é a primeira virtude das institui-ções sociais (RAWLS, 2008, p. 4). A justiça preconizada por Rawls é aquela em que os princípios de justiça regerão suas estruturas básicas. Assim, ele elabora uma teoria que é uma alternativa ao utilitarismo, concepção prevalente até a edição de sua obra, além de conter crítica às doutrinas intuicionistas.

No intuicionismo se admite a possibilidade de vários princípios em conflito uns com os outros, e neste caso se utiliza da intuição para aplicar o princípio que nos parece mais adequado, ante a inexistência de regras obje-tivas de prioridade entre os princípios, o que justamente consiste a crítica de Rawls (RAWLS, 2008, p. 41). Para ele o intuicionismo tem validade no equi-líbrio reflexivo, no exercício de adequação ou conformação entre princípios e intuições pessoais (RAWLS, 2008, p. 25 e 58-60), levando a uma coincidên-cia desses princípios com nossas intuições, adequando os princípios as nossas intuições ou estas aos princípios.

Já no utilitarismo se considera um ato como correto quando maxi-miza a felicidade geral, possuindo dessa forma um método para organizar diferentes princípios ou alternativas ante um caso concreto, que é a felicidade geral ou um saldo líquido de satisfação calculado na satisfação de todos os indivíduos (RAWLS, 2008, p. 27). A correção moral do ato está em seu resul-tado, no atingimento desse máximo de felicidade. São considerados os inte-resses de todos os indivíduos, não prejulgando seus interesses ou preferências, sejam elas quais forem, considerando, em princípio, todos em pé de igualdade em seus interesses e preferências, calculando o custo e benefício de cada ato. Assim, o utilitarismo aceita sacrifícios em prol dessa relação custo x benefício e da maximização da felicidade geral. Rawls critica tal postura, pois acredita que a correção moral do ato esta em seu conteúdo (postura deontológica) e não são admissíveis certos sacrifícios coletivos, como o sacrifício de certas parcelas da sociedade em prol de outra parcela, sendo que cada indivíduo

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deve ser respeitado como um ser autônomo e distinto dos demais (indepen-dência e indissociabilidade entre as pessoas), o que torna ilegítimo o sacrifí-cio de alguns nos termos utilitaristas (GARGARELLA, 2008, p. 6-8). Além disso, para Rawls o bem estar humano não deveria ter atenção normativa, defendendo uma medida objetiva (bens primários) contra a postura de satis-fação de cada um segundo seus desejos proposta pelo utilitarismo. Finalmen-te Rawls critica a possibilidade de se considerar determinados gostos, chama-dos por ele de ofensivos, os quais mesmo que numa perspectiva igualitária não poderiam ser aceitos, a exemplo de se defender o racismo. A aceitação de preferências externas pelo utilitarismo também é criticada, pois deveriam ser aceitas somente as preferências pessoais, relativas ao bem que reivindico. Finalmente Rawls critica a impossibilidade de se aceitar o utilitarismo dentro de uma postura contratual como a que ele propõe, pois como pessoas livres e iguais dificilmente aceitaríamos sacrifícios a direitos fundamentais como os permitidos pelo utilitarismo (GARGARELLA, 2008, p. 8-14).

A visão contratual de Rawls não diz respeito a um acordo real. Para ele o contrato original não tem a finalidade de estabelecer o governo ou fun-dar a sociedade, mas sim estabelecer princípios de justiça para a estrutura básica da sociedade (RAWLS, 2008, p. 13). Neste acordo hipotético a justifi-cativa é substituída pela escolha na qual as pessoas são livres, racionais e estão em situação de igualdade. Assim, há uma igualdade moral entre as pessoas, não uma igualdade física, ou seja, o destino de cada um tem a mesma impor-tância. A escolha, nessas circunstâncias, justifica a teoria da justiça.

No contrato hipotético são estabelecidos princípios de justiça que or-ganizam a sociedade, a sua estrutura básica, o modo como são organizadas suas instituições sociais mais importantes (constituição política e disposições eco-nômicas e sociais), distribuição de direitos e deveres e divisão de vantagens da cooperação social. Esses princípios são aplicados a sociedades bem organizadas (RAWLS, 2008, p. 10), onde vigoram as circunstâncias de justiça, em que as pessoas sabem e aceitam os mesmos princípios aceitos pelos demais membros desta sociedade, e onde as instituições aplicam os princípios de justiça sabendo que o fazem. Nesta sociedade há um equilíbrio, não ocorrendo extrema escas-sez ou abundancia de bens, havendo igualdade e vulnerabilidades também.

A escolha dos princípios de justiça, em condições imparciais, leva à justiça como equidade. Esses princípios de justiça imparciais resulta-riam de escolhas feitas por pessoas livres, em posição de igualdade, inte-

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ressadas em si mesmas e racionais. Essas condições surgem então, no que Rawls denomina de "posição original'".

Na “posição original” se determinará o tipo de princípios de justiça es-colhidos, assim, os indivíduos devem estar sob um "véu de ignorância", que lhes impede de conhecer sua classe, posição social e as capacidades naturais que lhes foram dotadas, assim como as concepções de bem e suas propensões psicológi-cas, o que faz com que a análise das alternativas dos princípios se dê apenas com ponderações gerais (RAWLS, 2008, p. 166). Este "véu da ignorância" não lhes retira o reconhecimento de certas proposições, tais como conhecimentos bási-cos da teoria econômica, base da organização social e leis da psicologia humana (RAWLS, 2008, p. 167). Deste modo, não há como orientar a decisão em favor próprio. Sobre as motivações próprias, as pessoas precisariam estar motivadas a obter certos tipos de bens, chamados de primários, assim considerados os bá-sicos e indispensáveis para satisfazer o plano de vida, os quais são oferecidos pelas instituições sociais, como direitos e oportunidades, e pela natureza, como talento e saúde (GARGARELLA, 2008, p. 23).

Quanto ao critério de racionalidade dos sujeitos na “posição original”, Rawls traça a regra maximin, onde diante de várias alternativas possíveis na escolha deverá ser escolhida a alternativa cujo pior resultado seja melhor que o pior resultado das outras. Isto porque na posição original e sob o “véu da igno-rância” ninguém pretende almejar benefícios maiores que o mínimo além de não saberem as probabilidades a seu alcance (GARGARELLA, p. 23-24).

Comentando este tema, Jonathan Wolff apresenta exemplo em que em jogo de pôquer um dos jogadores, ao distribuir as cartas, antes de ver suas cartas observa um ás caído e propõe anular a jogada. O outro jogador discorda, uma vez que estava com uma mão privilegiada. Não chegam a acordo a respeito. Poderiam, então, fazer um acordo hipotético, analisando o fato mentalmente como se eles tivessem feito um acordo que previsse tal fato antes de iniciar o jogo. Neste caso os jogadores estariam abstraídos das circunstâncias concretas que ocorreram, ou seja, pressuporiam certa ignorância, não sabendo o que o jogo lhes proporcionará, o que afastaria a influência de interesses particulares pelo prévio conhecimento das cartas que receberiam (WOLFF, 2004, p. 220-224). É possível desdobrar o raciocínio deste exemplo sobre outros pontos im-portantes da teoria de Rawls, como a aplicação da regra maximin na escolha prévia dos princípios, ou ainda alguns conhecimentos básicos exigidos para a escolha. Conclui ainda este autor que a proposta de Rawls esta calcada funda-

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mentalmente em três pontos: as circunstâncias em que o acordo hipotético irá se realizar, os princípios que seriam escolhidos nessas circunstâncias, e a com-provação de que esses são os princípios corretos em estados democráticos.

Dentro desses critérios apontados na “posição original”, sob o “véu da ignorância”, Rawls afirma que os sujeitos escolheriam dois princípios bá-sicos de justiça. O primeiro declararia que cada pessoa deve ter um direito igual de liberdades básicas compatível com as mesmas liberdades básicas para as demais pessoas. Trata-se do princípio da liberdade igual, que trata das li-berdades civis e políticas próprias das democracias modernas. Já o segundo princípio estabeleceria que as desigualdades sociais e econômicas somente são válidas se estiverem vinculadas a cargos e posições acessíveis a todos e também que se possa razoavelmente esperar que sejam estabelecidas em be-nefícios de todos, o que pode ser desdobrado no princípio da igualdade de oportunidades e no princípio da diferença. E por este princípio da diferença se admite a existência de diferenças na sociedade, mas somente nessas condi-ções (RAWLS, 2008, p. 73). Esquematicamente:

Primeiro: cada pessoa deve ter um direito igual ao sistema mais extenso de iguais liberdades fundamentais que seja compatível com um sistema similar de liberdade para as outras pessoas.

Segundo: as desigualdades sociais e econômicas devem estar dispos-tas de tal modo que tanto (a) se possa razoavelmente esperar que se estabeleçam em benefício de todos como(b) estejam vinculadas a cargos e posições acessíveis a todos.

Rawls justifica a escolha desses princípios no terceiro capítulo de sua obra. Segundo ele, em síntese, o princípio da liberdade confere prote-ção àqueles que estão estabelecendo os princípios de justiça, pois sejam quais forem as concepções de bens que for adotada há o natural interesse de que as instituições básicas não os prejudiquem ou discriminem (RAWLS, 2008, p. 182 e ss). O mesmo pode ser dito quanto a igualdade que ele preconiza. Quanto ao princípio da diferença, para Rawls a escolha racional seria utilizar o princípio maximin, isto porque num contrato hipotético a pessoa esta su-jeita a sua publicidade a todas as partes interessadas, além de ser peremptório no sentido de ter de ser cumprido mesmo que prejudique a parte, logo, o princípio maximin, em que se analisa os piores resultados possíveis dentre as escolhas e se escolhe aquele melhor entre os piores, é a escolha mais racional, com o menor risco (WOLFF, 2004, p. 231-242).

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Cabe destacar que o princípio da diferença, estabelecida a con-cepção de bem, regula a distribuição de recursos na sociedade. Este princípio não se considera satisfeito com a igualdade de oportunidades, pois os talentos e capacidades, o mérito, não é, para Rawls, um critério justo de distribuição de recursos. Em Rawls somente há justiça se as pessoas foram beneficiadas ou prejudicas por suas escolha, e não por circunstâncias alheias a estas. Assim, uma sociedade justa deve tender a igualar as pessoas em suas circunstâncias. A loteria natural não deve influir no destino das pessoas, cabendo a uma sociedade justa reduzir ao máximo tal situação (RAWLS, 2008, p. 120-130). Essas maiores vanta-gens naturais somente se justificam se melhorarem as expectativas dos menos favorecidos.

Rawls estabelece que o princípio das liberdades tem primazia sobre o da igualdade, que tem primazia, por sua vez, sobre o princípio da diferen-ça (RAWLS, 2008, p. 74). A liberdade não pode ser limitada em favor de se alcançar maiores vantagens sociais e econômicas em sociedades que al-cançaram um nível mínimo de desenvolvimento econômico, mas somente em caso de conflito com outras liberdades. Assim Rawls reconhece que não existem liberdades absolutas, mas todas estão dentro de um mesmo sistema, que é único (RAWLS, 2008, p. 75).

Finalmente Rawls propõe o que ele chama de sequência de qua-tro estágios, como sistema que simplifique a aplicação dos princípios de justiça. Nesse sistema, após a escolha dos princípios de justiça as partes formam uma convenção constituinte, já com um conhecimento genérico acerca de fatos da sociedade, ou seja, um pouco maior do que aquele da “posição original”, uma vez que o “véu da ignorância” vai sendo levantado. Essa constituição, que deve atender aos princípios de justiça, orientará a produção legislativa eficaz e justa, que deve atender não somente os prin-cípios de justiça, mas também a constituição, levantando-se mais ainda o “véu da ignorância”. O último estágio seria o da aplicação das normas em casos concretos por juízes e administradores, além dos cidadãos em geral, estágio em que não há mais limites ao conhecimento, não havendo mais o “véu da ignorância”. Rawls ainda coloca que em cada estágio se trabalha com tipos diferentes de questões sociais, sendo a liberdade o padrão da convenção constituinte, essencialmente as liberdades fundamentais indi-viduais e o processo político como um procedimento justo, enquanto que

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no estágio da legislatura entraria o segundo princípio, maximizando as expectativas dos menos favorecidos e garantindo a igualdade de oportuni-dades (RAWLS, 2008, p. 239-244). Distinguem-se, segundo Rawls, entre os princípios fundamentais da teoria social, os fatos genéricos acerca da sociedade e os fatos específicos acerca dos indivíduos, nesta ordem.

Esta apertada síntese da estrutura básica da Teoria da Justiça de Rawls não visa esgotar todos os seus termos e conceitos, por demais com-plexos, muito menos interpretá-la, tarefa que filósofos e pensadores ainda realizarão por muito tempo. Para o objeto deste trabalho, dentro de uma necessária sequência lógica de exposição das ideias e argumentos, bastam os conceitos expostos para balizar a análise pretendida.

É interessante destacar que a toda a proposta de Rawls de uma justiça como equidade está calcada na ideia de igualdade. A igualdade inspira seu método hipotético de escolha dos princípios de justiça, pois é a base da “posição original”, conferindo o caráter justo dos princípios escolhidos. Os princípios escolhidos dentro desta concepção estão, da mesma forma, nela baseados, pois as liberdades enunciadas pelo primeiro princípio são incondicionalmente distribuídas de forma igualitária, não se podendo limitá-las nem mesmo por maiores vantagens sociais e eco-nômicas, mas tão somente por conflitos entre liberdades. A desigualdade, no segundo princípio e seus desdobramentos, somente se admite se gerar uma vantagem para todos, o que levaria, segundo Rawls, a uma diminui-ção da desigualdade ou tendência a igualdade. Mesmo os atributos da loteria natural são alvo do princípio da diferença, representando, em cer-tos aspectos, como um bem comum, no sentido de partilha de benefícios econômicos e sociais maiores (RAWLS, 2008, p.121).

Ao longo do desenvolvimento de sua tese Rawls toca constante-mente no tema da igualdade, mesmo admitindo a desigualdade, conferindo resposta e critérios para se aceitar as desigualdades, sempre com o intuito de se alcançar a igualdade.

A ideia de igualdade, portanto, é um dos conceitos fundamentais que inevitavelmente conduzirá a qualquer diálogo dos termos da teoria de Rawls e aplicações práticas da mesma.

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4. A SÚMULA VINCULANTE N.º11, A TEORIA DE JUSTIÇA DE RA-WLS E A CRÍTICA COMUNITARISTA DA EXCESSIVA JUDICIALIZA-ÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Vistos os principais argumentos que fundamentaram o debate sobre a aprovação da Súmula Vinculante n.º 11, bem como revisitados os principais termos de Uma Teoria da Justiça de Rawls, cabe agora proceder a uma análise dos principais argumentos daquela decisão comparando-a com alguns ter-mos da teoria proposta por Rawls.

A proposta do Ministro Marco Aurélio, conforme visto, foi in-teiramente calcada na Constituição Federal, ao entendimento de que a utilização de algemas em presos violaria, em regra, a dignidade da pessoa humana, assim como o respeito a integridade física e moral dos cidadãos e dos presos, fazendo menção ainda a uma interpretação teleológica do Có-digo de Processo Penal. Somente se legitimaria o uso de algemas em caso de tentativa de fuga ou risco a integridade física de terceiros ou do preso. O Ministro Carlos Brito acrescentou também a proibição constitucional de tortura e tratamento desumano ou degradante, além do fato de que a utilização de algemas seria uma exacerbação do estado de privação de liberdade, com conseqüências físicas e morais.

Esses fundamentos colocados pelos ministros se limitaram a repetir enunciados constantes na Constituição Federal. Falar em dignidade da pes-soa humana implica em tratar de um conceito que embora pareça básico e até mesmo intuitivo, é de tal amplitude que acaba equiparando-o a classe dos conceitos jurídicos indeterminados. Basta questionar: o que é a dignidade da pessoa humana? Existe certamente uma quantidade infinita de respostas possíveis e viáveis, porém nenhuma delas foi explorada pelos ministros. Além de se balizar os termos deste conceito, havia a necessidade de contextualizá-lo na questão da aplicação das algemas, o que também não foi feito.

Da mesma forma a questão do respeito a integridade física e moral e da vedação da tortura e tratamento desumano degradante, que embora constituam conceitos mais claros e com maior grau de especificidade, foram lançados de forma genérica e sem uma contextualização acerca dos fatos que estavam sendo debatidos, transparecendo que o simples fato de se aplicar as algemas, salvo em casos de tentativa de fuga ou risco a integridade física de terceiros ou do preso, por si só implicaria a violação desses conceitos. Em

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momento algum os ministros fundamentaram o motivo dessas supostas vio-lações genéricas de tais conceitos, o que constituiria a regra em praticamente todos os casos de aplicação de algemas.

É importante esclarecer que a conceituação mais exata e a contextualiza-ção requerida são genéricas, para regulação abstrata de situações de aplicação de algemas, ou seja, regras balizadoras que poderiam informar decisões posteriores.

Se adotássemos a concepção de justiça proposta por Rawls, de uma justiça baseada na equidade, com o primado das liberdades e da igualdade, admitidas as desigualdades nos termos por ele propugnados, evidentemen-te que conceitos como a dignidade da pessoa humana, direito a integrida-de física e moral, vedação a tortura e tratamento desumano ou degradante, constariam na constituição. Isto porque tais direitos fundamentais estão acordes com os princípios de justiça que Rawls propõe, e certamente seriam escolhidos como estruturantes da sociedade por pessoas que, após a escolha daqueles princípios na posição original, sob um véu de ignorância, os decla-rariam numa convenção constituinte. Especificamente no que diz respeito ao princípio da liberdade de Rawls, tais direitos fundamentais estariam constan-te na constituição de qualquer Estado que tenha atingido um grau mínimo requerido de democracia, conforme requisitado por Rawls.

Ocorre, por outro lado, que nessas mesmas circunstâncias e na consti-tuição desse mesmo Estado as pessoas que o compusessem certamente declara-riam a segurança pública no mesmo patamar de outras liberdades. Tratar-se-ia do direito fundamental de todos de conviver com segurança e paz social, de ir e vir livremente e sem medo a qualquer local e em qualquer hora, além de declarar valores como a probidade, moralidade, impessoalidade e eficiência do Estado e seus agentes públicos e políticos no trato com a coisa pública. E muito embora tais valores possam não ser enunciados explicitamente como liberdades civis básicas, se considerados sistematicamente afetam essas mesmas liberdades civis, além de atingir frontalmente o aspecto da distribuição de direitos e oportuni-dades. A título de exemplo, os vultosos desvios de dinheiro público em crimes de colarinho branco e lavagem de dinheiro inviabilizam investimentos sociais, causando prejuízos incalculáveis às políticas sociais, interferindo na concreti-zação distributiva da riqueza, e assim afetando a dignidade da pessoa humana. Tais situações geram prejuízos incomensuráveis a sociedade, haja vista as frau-des que envolvem a saúde pública e previdência social, as quais geram direta e indiretamente graves conseqüências para todos os membros da sociedade.

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Rawls oferece em sua teoria a possibilidade de se limitar uma liber-dade civil somente nos casos em que esta conflita com outras liberdades. Nos próprios debates os ministros colocam, por mais de uma vez, situações con-traditórias a conclusão obtida. Exemplificam que no caso de crimes violentos há presunção de risco, o que é questionável, por exemplo, nos casos de crimes passionais, que existe a periculosidade presumida do local, certamente uma favela ou bairro de periferia, enquanto que criminosos que moram nos bair-ros nobres dificilmente teriam a periculosidade presumida. Chega o Ministro Cézar Peluso a afirmar que prender e conduzir um preso é sempre perigoso e que a interpretação, portanto, de casos concretos, seria em regra em prol dos agentes do Estado. Para muito além da incoerência lógica com a decisão tomada, por esse contexto colocado pelos ministros, de uma presunção de perigo em praticamente todas as situações, se justificaria limitar direitos fun-damentais do preso em prol dos direitos fundamentais de terceiros, ou seja, ante a presunção de risco, a regra deveria ser algemar, e não o contrário.

Convém ressaltar que Rawls não admite que se transija com as liberda-des, não permitindo sua limitação para nenhum grupo ou situação, mesmo no caso de um benefício ou vantagens sociais ou econômicas. Então cabe o ques-tionamento: não teriam os policiais, os agentes públicos que efetuam as prisões, direito a dignidade humana, a não ter um tratamento humano degradante, a não terem um risco permanente maximizado por não algemarem todo e qual-quer preso? Em momento algum tal questão foi levantada nos debates, salvo as observações do Procurador-Geral da República demonstrando preocupação com as situações concretas, diante das quais o Ministro César Peluso concorda com a presunção de risco em toda e qualquer prisão. Seria razoável, numa visão rawlsiana, exigir dos policiais tal risco? Isto não estaria ferindo suas liberdades básicas, seus direitos fundamentais e sua dignidade humana?

Examinando sobre outro aspecto, no confronto entre liberdades bá-sicas, tal como admitido por Rawls, há a possibilidade de um indivíduo ser privado de seus bens e de sua própria liberdade. Não existe um estado de-mocrático que não admita o sistema de repressão criminal, justamente para salvaguardar as liberdades de todos que compõem a sociedade. As algemas são aplicadas numa pessoa presa, que se vê privada daquele que é o direito fundamental mais importante depois da vida: o direito de ir e vir livremen-te. E isto porque feriu, transgrediu o ordenamento jurídico, violando outras liberdades básicas e o direito a paz social e segurança pública que todos têm. Esta privação é legítima, admitida mesmo na sistemática proposta por Rawls

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quando do confronto entre duas liberdades. E nesta situação, em que alguém se vê privado de sua liberdade de ir e vir legitimamente pelo Estado, através de seus agentes, a aplicação das algemas visa tão somente a prisão e o transporte deste preso a uma unidade policial ou prisional. A evidência que não se trata de uma exacerbação de seu estado de privação de liberdade, mesmo porque após estes breves momentos de prisão e transporte a pessoa estará literalmen-te “atrás das grades”, e não parece razoável que alguém nesta situação vá ser afetado com conseqüências físicas e morais pelas algemas, mas sim pelo seu status de preso, que é legítimo nessas circunstâncias.

Na mesma linha de raciocínio, não há como se entender pura e simples-mente como uma situação degradante, de tortura, de tratamento desumano, de des-respeito a integridade física e moral, a aplicação das algemas por si só. O que se falar então do status de preso e das prisões? Fato é que no cotejo de liberdades básicas um indivíduo, pela sua transgressão ao ordenamento jurídico, ele estará legitimamente privado de sua liberdade básica de ir e vir a fim de que sejam garantidas outras liber-dades civis individuais e da sociedade e a manter a segurança pública. E como visto, o próprio Rawls admite esta hipótese de limitação de uma liberdade básica.

Ainda no aspecto do respeito a liberdades básicas, no caso de não serem aplicadas algemas, uma vez que a decisão tomada foi pela sua não apli-cação como regra, se o risco existente se torna real e terceiros ou os próprios policiais são feridos, tendo violadas suas liberdades básicas, com ficaria a questão? Se resumiria a uma responsabilização dos policiais? E se em defesa eles provam que não agiram com culpa ou que a situação era dúbia e portanto não algemaram, conforme orientação do STF? Tal sistemática não oferece se-gurança a direitos fundamentais dos policiais e terceiros, estando, portanto, centrada somente no preso, que, nunca é demais reprisar, tem legitimamente seu direito fundamental de ir e vir cerceado.

Trazendo a questão para o campo da igualdade, a luz do princípio da diferença, Rawls admite o tratamento desigual somente se houver um be-nefício de todos. Embora Rawls trate deste assunto muito mais centrado no viés de distribuição de recursos na sociedade, a ideia central é a da igualdade, permitindo-se uma desigualdade somente em benefício geral. Ao estabele-cer regra que permite aqueles que vão efetuar uma prisão algemar ou não o preso o STF abriu precedente grave em prol da desigualdade, pois, ainda que o julgamento daqueles que executam uma prisão não esteja contaminado por outros interesses, se abre espaço para a discricionariedade, algemando-se

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alguns e outros não. Cabe questionar: qual o benefício geral que seria alcan-çado nesta sistemática? Absolutamente nenhum, pelo contrário, abrir-se-ia espaço para questões externas, a exemplo da influência do nível econômico e social do preso sobre os executores da medida, além de erros de julgamento.

Quando trataram da questão da periculosidade exigida para se al-gemar alguém os ministros do STF incorreram em incongruências graves. Ao se presumir a periculosidade de um local, independentemente do tipo de crime ou criminoso, que pode ser desde um homicida em série ou narcotrafi-cante, ou até mesmo alguém que cometeu crime de trânsito ou crime movido por “violenta paixão ou emoção”, temos o fato de se rotular toda a popula-ção de favelas e bairros menos favorecidos e toda sorte de crime, grave ou não, cometido por essas pessoas. Já aqueles que vivem em locais mais nobres, independentemente do tipo ou gravidade de crime cometido partiriam, de plano, de uma ausência de periculosidade de local. Estaria estabelecida uma desigualdade injustificada sob a ótica de Rawls.

Na mesma linha de raciocínio a ausência de se tratar da proteção do policial, que segundo consta reconhecido nos debates esta sempre e sempre em situação de risco ao efetuar uma prisão. E quanto a proteção de terceiros, ao se permitir que um preso não utilize algemas, em se considerando que há sempre uma periculosidade, se gerará um risco para esses terceiros, que pas-sam a não ter um direito igual de proteção.

Sem a pretensão de esgotar o tema, certamente ao se fazer um breve exercício mental e tratar tal questão a luz da Teoria da Justiça de Rawls, na “posição original” e sob o “véu da ignorância” seriam escolhi-dos os dois princípios de justiça por ele propostos. Vale dizer: liberdade e igualdade norteariam a nossa sociedade, admitido o princípio da diferen-ça nos termos vistos, com base no interesse de não ser prejudicado ou dis-criminado pelas instituições básicas, para a liberdade, e com base no prin-cípio maximin, para a igualdade e diferença. Os princípios fundamentais utilizados na fundamentação do STF seriam certamente colocados numa constituição, porém em sua aplicação, no levantamento do “véu da igno-rância”, a fundamentação da decisão seriam um pouco diferente, levando a uma conclusão diversa.

Nesta ótica, a dignidade da pessoa humana seria melhor balizada e contextualizada, considerando-se primeiramente que houve, por parte da

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pessoa que será presa, uma violação de outros direitos ou liberdades, sendo ferida a segurança pública e outros valores, o que autorizaria neste caso, ante o conflito entre liberdades e direitos fundamentais, restrições ou viola-ções justas e legítimas a determinados direitos fundamentais da pessoa que será presa. Segundo, se consideraria que nas situações de prisão há sempre uma presunção de risco, logo a dignidade da pessoa humana de todos os envolvidos estaria sempre em risco. A única maneira de se assegurar todas as liberdades, e consequentemente a dignidade de todas as pessoas envol-vidas seria a aplicação de algemas. Desta forma, a questão de o preso ter ferida a sua dignidade seria examinada no cotejo com as demais liberdades feridas ao se praticar um crime, sendo, portanto, legítima esta violação de seu direito de ir e vir para assegurar tantas outras liberdades e a dignidade de outros tantos. E ao se considerar legítima esta violação do direito de ir e vir dos presos temos que as algemas são um minus em relação a este status, e não um plus, servindo para assegurar a todos que não terão riscos a sua integridade física e assegurar ao Estado que a prisão e o transporte do preso será realmente efetivada sem percalços.

Nesses termos, os demais direitos fundamentais dos presos não se-riam violados, ou seja, o preso não seria vítima de tortura, de tratamento de-sumano ou cruel, muito menos de uma injusta violação de sua integridade fí-sica e moral e nem teria exacerbada sua condição de preso com conseqüências físicas e mentais. A sua dignidade passaria a ser dentro de uma condição de preso, de não ser indevidamente exposto à mídia, de não ser agredido física ou verbalmente, de ter instalações prisionais adequadas e assim por diante.

Quanto ao aspecto da igualdade, numa ótica essencialmente equi-tativa as algemas deveriam ser para todos, indistintamente. Dentro da pers-pectiva do princípio da diferença, uma desigualdade somente será legítima se levar a um benefício de todos. E não há como se vislumbrar um benefício de todos ao se permitir uma utilização seletiva das algemas, seja com que critério for. A distribuição aqui passa a ser injusta e leva ao que se presencia diaria-mente nos jornais escritos ou televisivos, que é o fato de se algemar presos das camadas sociais mais pobres enquanto presos de colarinho branco são “conduzidos” sem algemas.

Mantendo-se a linha adotada neste trabalho de não se discutir aspectos políticos desta decisão, mas sim sua fundamentação e conclusão ante a teoria de Rawls, parece certo que os ministros do STF se utilizaram

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do intuicionismo para justificar seus votos. Ou seja, ante a inexistência de regras objetivas para aplicação e priorização de princípios foi utilizada a intuição para fundamentar e decidir essa questão. Não há nem que se falar em utilitarismo, pois não se enxerga uma maximização de felicidade geral na decisão tomada. Certamente se o caminho levado a cabo para decidir tal tema fosse dentro da concepção ralwsiana o resultado seria outro, mais coerente e devidamente fundamentado.

Outro aspecto interessante revelado por esta decisão reside justa-mente na crítica comunitarista sobre a defesa liberal dos direitos individuais, que tem forte prevalência sobre outros interesses fundamentais universais e incondicionais, levando a uma excessiva judicialização e prevalência dos di-reitos individuais fundamentais.

A proposta liberal, fundada principalmente na autonomia da vonta-de do indivíduo, um indivíduo com capacidade de escolha, onde o eu antece-de os fins, recebeu diversas críticas de autores comunitaristas. Charles Taylor, em texto datado de 1975 e posteriormente em livro editado em 1979, contra-pôs as ideias de Kant, base de boa parte da teoria liberal, inspirado em Hegel, para quem o indivíduo só existe em sociedade, diferenciando o conceito de sittlichkeit, que seria o lugar onde fato e valor estão juntos, na comunidade, sendo possível avaliar o valor do fato, de moralität, que é algo que esta no vir a ser, baseado na vontade do indivíduo, universalizável (TAYLOR, 1975, p. 177-178). E se se admite que o ser humano é um ser social, a sociedade não é uma criação dele, mas antes ele é criação da sociedade.

Michael Sandel também elabora forte crítica contra o pressupos-to liberal de Rawls de que as pessoas escolhem seus fins. Esta crítica não é formulada diretamente contra os pressupostos da teoria de Rawls, mas sim contra o sujeito que Rawls propõe, com capacidade de eleger seus fins embora sem uma concepção de bem. Na visão de Sandel a justiça não é independente do bem, mas decorre dele (SANDEL, 2005, p. 9-15). Des-sa forma os fins, considerados teleológicos, pois os sujeitos estão necessa-riamente no mundo, são essenciais aos sujeitos, e não acessórios. A visão liberal, dentro desta crítica de Sandel, está minada, pois pressupõe uma sociedade com a qual ela não consegue lidar, o que de certa forma explica a multiplicação de direitos individuais e o controle sobre o Estado, que resta enfraquecido frente ao indivíduo e sua proteção.

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Voltando a Taylor, a concepção liberal levaria ao que foi caracteriza-do como atomismo, descrito como algumas doutrinas contratuais do século XVIII, segundo as quais a sociedade seria um agregado de indivíduos cada qual se guiando por sua concepção e objetivos pessoais. Há nesta doutrina uma prioridade dos indivíduos e seus direitos sobre questões sociais e a pró-pria comunidade (TAYLOR, 1979, p. 29-50), havendo forte prevalência dos direitos fundamentais sobre os princípios de obrigações e pertencimento a uma sociedade e sobre a obediência a autoridade.

Interessante o registro da avaliação das principais críticas comu-nitaristas aos liberais feita pelo autor liberal Allen E. Buchanan, que cita a negligência da comunidade na vida humana, a não valorização de uma efetiva vida política na comunidade, a incapacidade de narrar certos com-promissos ou obrigações que não escolhidas, mas sim derivadas da comu-nidade, uma defeituosa concepção do ser ao negar que parte de sua con-cepção derivam de compromissos e valores da comunidade, e finalmente a exaltação da justiça como a primeira virtude, uma vez que ela é na verdade um remédio necessário quando as mais altas virtudes da comunidade são rompidas (BUCHANAN, 1989, p. 853). Segundo a descrição deste autor acerca das críticas comunitaristas, o liberalismo não consegue escapar da necessidade de justificação, tendo como principal tese política a imposição de direitos fundamentais individuais, permitindo aos indivíduos buscar sua própria concepção de bem e virtude (BUCHANAN, p. 854). Embora tais críticas sejam rebatidas dentro de sua ótica liberal, após minuciosa análise do tema sua conclusão acaba sendo no sentido de que o liberalismo pode encampar parte das críticas comunitaristas, especialmente da importância da comunidade e o seu bem-estar e fins comuns.

Esta faceta da concepção liberal, dentro dessas críticas comunitaris-tas, leva inevitavelmente ao extremo a defesa dos direitos fundamentais, com sacrifício de outros direitos e valores da própria sociedade. As próprias cons-tituições dos Estados liberais, estejam elas contidas em documentos formais ou não, contendo extenso rol de direitos fundamentais enunciados ou sim-ples previsão genérica dos mesmos, tem sido, especialmente no Brasil, levadas a interpretações amplas, limitando e tolhendo de diversas maneiras o Estado e a sua autoridade. Evidentemente que não se podem negar os avanços e con-quistas da própria concepção liberal em limitar um Estado absolutista e acima da lei, especialmente estabelecendo as liberdades civis e a afirmação dos direi-tos fundamentais individuais tão caros a qualquer democracia, quanto mais

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àquelas que estão em processo de afirmação e solidificação. Trata-se na verda-de de fazer uma análise e interpretação que considere os valores advindos da sociedade e determinados direitos da coletividade num mesmo patamar que os direitos individuais. Esta sociedade clama, no nosso caso, por uma justiça eficiente, célere e fundamentalmente igualitária no aspecto distributivo de todos seus institutos.

No caso da decisão examinada fica patente uma visão muito próxi-ma do atomismo, exacerbando a concepção liberal de proteção aos direitos fundamentais individuais, desprezando valores e liberdades que afetam a co-munidade/sociedade como um todo. E o mais interessante é que se utilizada uma concepção rawlsiana de justiça o resultado seria outro, muito mais pró-ximo de se observar esta crítica comunitarista.

5. CONCLUSÃO

O processo natural de acomodação de uma democracia jovem como a nossa implica certamente amplos debates e questionamentos sobre insti-tuições, política e as relações Estado x instituições x direitos fundamentais, e desses com a sociedade. As decisões judiciais, especialmente aquelas que transcendem das relações intra-partes, são essenciais nesse processo, assim como levar em consideração a própria sociedade.

Se na concepção liberal que pretensamente é adotada no Brasil há uma prevalência dos direitos fundamentais, é necessário balizá-los dentro de uma concepção de justiça que considere, com critérios, as liberdades e a igual-dade. Rawls oferece tais critérios, que podem não ser os melhores e não são os únicos, mas certamente são melhores que critérios puramente intuicionistas, largamente utilizados nas fundamentações de decisões importantes.

Essencialmente é preciso considerar que a sociedade tem valores que coincidem com as liberdades expressas na Constituição, a exemplo da segu-rança pública e paz social. E tais valores não podem ser desprezados em nome dos direitos fundamentais individuais pura e simplesmente, mas devem sim ser objeto de criterioso cotejo e diálogo, uma vez que fazem parte de um sis-tema, de um todo composto por Estado, sociedade e indivíduos.

A decisão examinada careceu de critérios claros e de fundamenta-ção coerente com alguma concepção de justiça, tendo de fato decorrido de

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um intuicionismo com prevalência absoluta de direitos fundamentais indi-viduais, com prejuízo de outras liberdades e valores que não mereciam, nesta hipótese, terem sido desprezados sem sequer serem analisados. Talvez se tais valores fossem efetivamente considerados uma situação desta natureza não teria sido levada ao judiciário, ou pelo menos seria tratada em algum caso específico, dentro de outras circunstâncias.

Ao se exacerbar e conceder uma interpretação extremamente elás-tica e sem a devida fundamentação a direitos individuais fundamentais o STF abre precedente perigoso para o próprio Estado, que se enfraquece a cada dia, confundindo-se as liberdades originais contra o Estado tirano, formidável conquista iluminista e liberal, com o império do indivíduo lastreado em direitos fundamentais individuais. Tal fato pode levar a uma judicialização sem precedentes de questões, colocando em risco a estrutu-ra estatal e valores coletivos.

Permanece mais atual que nunca o alerta feito por MacIntyre em sua obra After Virtue:

Quando louvou a justiça com primeira virtude da vida política, Aristóteles o fez de maneira a sugerir que a comunidade que carece de acordo prático em relação a uma concepção de justiça também deve carecer da base necessária para a comunidade política. Porém, a falta de tal base deve, portanto, ameaçar nossa própria sociedade (MACINTYRE, 2001, p. 409).

Disney Rosseti

Diretor da Academia Nacional de Polícia; Delegado de Polícia Federal.

E-mail: [email protected]

Referências

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Ciências Sociais e Investigação Criminal: metodologia da investigação criminal na lógica das ciências sociais

Eliomar da Silva Pereira Coordenação Escola Superior de Polícia

Academia Nacional de Polícia - Brasil

Dud

Resumo

A investigação criminal se desenvolve lógica e pragmaticamente à forma de uma investi-gação científica. Além da possibilidade de aplicação de conhecimento científico, oriundo das ciências empíricas na investigação dos crimes, ela mesma se pode desenvolver segundo o método científico, seja em cada investigação criminal particular, mediante a aplicação de técnicas de pesquisa que são próprias à ciência (sobretudo técnicas qualitativas), seja pela generalização de certas conclusões encontradas no conjunto de investigações de casos co-muns, para aplicação posterior em outras investigações particulares (tendente a uma aborda-gem quantitativa). É certo que, ao investigar-se o crime como fato do passado, a investigação se aproxima mais da pesquisa historiográfica , mas, ao passo que a sociedade se tem tornado mais complexa e dinâmica, a investigação se tem tornado igualmente mais uma pesquisa de fatos presentes, ainda em curso (como são os casos de criminalidade organizada, p. ex.), de-vendo desenvolver-se para além de cada investigação presente, com vistas a desenvolver con-hecimento operativo para investigações futuras. Nesse contexto é que o modelo das ciências sociais em geral, e a sociologia em específico, parece ser o caminho mais propício a uma metodologia da investigação criminal. É nesse sentido que se vai expor o problema metodo-lógico das ciências sociais, suas limitações teóricas e suas técnicas de pesquisa, como forma de demonstrar a proximidade existente com as práticas de investigação criminal e a possibi-lidade de uma metodologia científica para ela, como uma forma particular de ciência social. Em síntese, trata-se de parcela de estudo mais amplo que pretende demonstrar as relações e proximidades entre investigação criminal e pesquisa científica.

PALAVRAS-CHAVE: método científico; sociologia de ação; investigação-ação; técnicas de pesquisa.

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Introdução: a lógica das ciências sociais

As ciências sociais, especialmente a sociologia, nascem com a pro-posta de descobrirem “leis sociais”1, a partir da observação de fatos sociais para estabelecer-lhes as ligações causais2 e chegar a generalizações teóricas, tal como as ciências naturais. Ainda hoje há quem sustente ser essa a tarefa das ciências sociais, embora reconheça uma limitação em virtude do estágio científico, ou do objeto de pesquisa3.

Noutro rumo, tem-se sustentado, a partir das ideias de W. Dilthey4, que se devem distinguir as ciências naturais (de explicação causal) das ci-ências culturais (de interpretação ou compreensão). Mais detalhadamente, partindo dessa distinção, fala-se que o conhecimento humano procede ou por generalização das várias coisas pelos seus aspectos comuns, ou por indi-vidualização, pela consideração de várias coisas por seus aspectos particulares (BARATA, 1998, p. 23 e ss).

Essa dissensão (não entre haver duas espécies de ciências, mas sobre a ciência social ter ou não a mesma estrutura da ciência natural) instaura nas ciências sociais dois caminhos, o naturalismo e o historicismo5, tão bem ex-plicado por Karl Popper (1957) que demonstra em que sentido cada um está correto e incorreto, segundo sua perspectiva falsificacionista da ciência. Na raiz dessa querela, segundo se tem observado (POPPER, 1976, p. 17), há uma equivocada visão das ciências naturais, fruto de um ingênuo indutivis-mo, contra o qual Karl Popper apresentou o falsificacionismo e o método hipotético-dedutivo como a lógica das pesquisas científicas.

Segundo Popper (1976, p. 16), em A lógica das ciências sociais, com base nessa premissa, “o método das ciências sociais, como aquele das ciências naturais, consiste em experimentar possíveis soluções para certos problemas; os problemas com os quais iniciam-se nossas investigações e aqueles que sur-gem durante a investigação”. Quando Popper se refere a método, refere-se ao contexto lógico de justificação do conhecimento científico, em separado do

1 Nesse sentido, encontram-se as leis da evolução social de Comte (cf. Bottomore, 1971, p. 32).

2 Nesse sentido, é a opinião de Durkehin sobre a tarefa do sociológico (cf. Bottomore, 1971, p. 33, nota 8)

3 Cf. nesse sentido, Bottomore, 1971, p. 33.

4 Cf. Barata, 1998, p. 15.

5 Ressalte-se que o que se relata aqui é a síntese rudimentar de um problema epistemológico muito mais complexo.

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contexto de descoberta das técnicas de pesquisa. Popper (1976, p. 32; 1957, p. 137) refere-se assim a uma “lógica situacional”, como a lógica apropriada à pesquisa social, em que os dados da realidade são considerados como ele-mentos da situação, permitindo compreender ações dos sujeitos em sentido objetivo, como objetos situacionais. A essa lógica acresce a ideia de verdade aproximada que se deve perseguir pela ciência. Em complemento, Popper (1957, p. 108) se refere à necessária distinção que se deve fazer entre “leis” e “tendências”, pois “as leis e as tendências são coisas radicalmente diferentes”. A questão é que, segundo uma lógica situacional, a tendência de uma situação histórica particular não nos leva a uma lei universal inexorável6. Apesar dis-so, segundo Popper (1976, p. 32), “podem possuir um conteúdo verdadeiro considerável e podem, no sentido estritamente lógico, ser boas aproximações da verdade melhores do que outras explicações testáveis”.

Apesar desse problema metodológico, isso não tem impedido a sociolo-gia de recorrer a métodos variados, alternativos, e avançar em sua afirmação cien-tífica. Dessa forma, segundo T. Bottomore (1971, p. 53 e ss), tem-se visto prolife-rar pesquisas com recurso a variadas abordagens, como a histórica, comparativa, descritiva, estruturalista e funcionalista. Ainda no âmbito do problema meto-dológico e sua diversidade, Bottomore (ibidem, p. 66) se refere a uma sociologia formal, em que se considera a própria sociologia como um novo método, “uma nova forma de olhar os fatos” que já teriam sido tratados por outras ciências.

Em conclusão ao problema do método, T. Bottomore (ibidem, p. 70 e ss) considera que uma disciplina é científica por seus métodos e intenções. Quanto ao método, são características importante ocupar-se de fatos (não de juízos) e trazer provas empíricas a respeito desses fatos afirmados, de uma for-ma objetiva (no sentido de que qualquer um pode avaliar a afirmação segun-do a prova). Quanto à intenção, a sociologia (como qualquer ciência social), deve visar a uma descrição exata, por análise de propriedades e relações entre fenômenos sociais, e pretender uma explicação por formulação de declara-ções gerais. É nesse ponto que a sociologia se apresenta com certas particula-ridades, pois ela não apresenta uma teoria geral aceita de forma generalizada, mas apenas de forma limitada, ou de tipos diversos dos que se observam e perseguem nas ciências naturais.

6 O que está por trás de uma explicação nesses termos não é uma questão de causalidade, mas de condicionalidade, segundo a qual, em determinadas condições X, há uma tendência para Y, o que, embora se torne algo limitado, tem a vantagem de reconhecer os limites do conhecimento sociológico e avançar a partir dele.

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Entre os diversos tipos de generalizações, na sociologia, encontram-se certas “correlações empíricas entre fenômenos sociais concretos”; “genera-lizações formulando as condições sob as quais as instituições ou outras for-mações sociais surgem”, ou “afirmando que as modificações em determinadas instituições estão regularmente associadas às modificações em outras insti-tuições”, entre outras várias (cf. BOTTOMORE, 1987, p. 37 e ss). Além de generalização, encontram-se conceptualizações (como é o caso de conceitos como estrutura social, ideologia, burocracia etc.) e esquemas de classificações (como de grupos, ações etc.) muito produtivas.

A tudo isso – problema metodológico e limitações teóricas – acres-ce-se a questão das técnicas de pesquisa e a discussão em torno dos conflitos entre abordagem quantitativa e qualitativa, que fazem da sociologia um âm-bito de saber ainda incerto, conquanto persista na sua afirmação como ciên-cia, e assim como exemplo apto a fornecer modelos diversos de pesquisa que interessam a uma metodologia de investigação criminal.

1. Sociologia de ação e investigação-ação

Tendo em consideração o problema metodológico da sociologia, po-de-se entender porque “existem diferentes maneiras de abordar a realidade, que são outros tantos modelos de investigação, de tradições de pensamento ou ainda de problemáticas gerais...” – é essa a advertência que nos fazem Mi-chel de Coster e Bernadette Bawin-Legros (1996), ao considerar que de uma forma sucinta podemos observar duas tradições, ou paradigmas, de investiga-ção científica em sociologia: um determinista, outro da ação ou interação.

O paradigma determinista (em que se encaixariam as tradições fun-cionalista e estruturalista) pode ser entendido a partir de duas ideias fun-damentais – de que todo fato social se explica por fenômenos que lhe são anteriores, e que por ser exterior é o que orienta a ação dos indivíduos. O paradigma da ação e da interação (em que se encaixariam tradições de abor-dagem estratégica e individualismo metodológico), por sua vez, nasce como reação à concepção positiva das ciências sociais como ciências de fatos ob-jetivos, tendendo a considerar ação dos indivíduos como constitutivos dos fatos sociais (COSTER; BAWIN-LEGROS, 1996, p. 82 e 95)7. É precisa-

7 O autor considera a possiblidade de conciliação entre os paradigmas, pois “nenhum paradigma tem o monopólio da explicação”. Em síntese, segundo ele, “se, com efeito, por um lado, parece que a sociedade modela o homem, por outro, é o homem que modela a sociedade, de modo que cada forma

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mente deste último contexto que parte uma sociologia de ação, que vamos expor sucintamente como um modelo propício a fazer despertar as relações que existem entre investigação científica sociológica e investigação criminal científica, sobretudo a partir do conceito de investigação-ação.

A sociologia de ação, ou de intervenção, tem sido oposta a uma sociolo-gia acadêmica, apesar de coexistirem as duas perspectivas em pesquisas de terreno de variados campos profissionais. É nessa sociologia de campo que, segundo Isa-bel Guerra (2002, p. 10), deram-se os primeiros passos de uma investigação-ação, em trabalhos etnológicos especialmente, mas a sociedade industrial e urbaniza-da também sentiu a necessidade de tal perspectiva de investigação sociológica, a exemplo dos trabalhos da Escola de Chicago8 . Com isso, passa-se a considerar a cidade como um laboratório natural das ciências sociais que tem por objetivo a solução de problemas muito pontuais (GUERRA, 2002, p. 12).

Por trás da ideia de investigação-ação há toda uma discussão epistemo-lógica que se desenvolve a respeito das relações entre o sistema social e os auto-res, dando ensejo a paradigmas de pesquisa discordantes e variadas perspecti-vas metodológicas, como se referiu acima sucintamente 9. Dessas perspectivas postas em confronto, surge uma interrogação acerca da relação entre conheci-mento e ação. É nesse contexto que se colocam certas questões às metodologias tradicionais, tais como a necessidade de “compreensão do sujeito como ator capaz de racionalidade e de escolha” e de “entendimento das relações sociais como relações de poder” (GUERRA, 2002, p. 39). A tais questões se apresenta a investigação-ação, epistemologicamente, no sentido de uma redefinição do conhecimento científico através de uma concepção pragmática.

Nesse sentido, entende-se que “as metodologias de investigação-ação apresentem como elemento fulcral da estratégia de conhecimento a relação

de abordagem insiste numa das duas faces de uma mesma realidade” (1996, p. 109).

8 Pontue-se que alguns trabalhos da Escola de Chicago são especialmente conhecidos no campo da criminologia sociológica, ou sociologia do crime. Outro marco, e por muitos considerado o fundador da pesquisa-ação, são os trabalhos de Kurt Lewin, baseados em dinâmicas de grupo, destinados não a produzir conhecimento para depois ser aplicado por decisões políticas, mas a atuarem diretamente no problema – daí chamar-se muito constantemente de investigação operacional. Isabel Guerra (2002, p. 55), contudo, considera que é nos trabalhos de Dewey, no campo da educação, que se deve situar a origem da investigação-ação.

9 Entre essas perspectivas, que não vamos desenvolver aqui, mas são relevantes para a compreensão do tema, encontram-se o individualismo metodológico de Boudon, a análise estratégica de Grozier e a teoria da ação de Touraine. Para uma visão geral dessas perspectivas, cf. Guerra, 2002, 21 e ss; Coster, 1996, p. 81 e ss.

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entre o cientista e o seu objeto de estudo (...), tendo em vista a mudança de uma situação dada para outra colectivamente desejada” (GUERRA, 2002, p. 43)10. Trata-se, assim, de uma postura sociológica que pretende reequacionar a relação entre ação e conhecimento, aprofundando as relações entre teoria e prática, em recusa a uma concepção contemplativa da ciência11. Nessa pers-pectiva de investigação, aceita-se que a realidade é anterior à teoria, a teoria é um meio, não um fim, logo “a teoria não é a ciência, é apenas um quadro hipotético de representação da realidade que se verá verificado no confronto com a empiria” (GUERRA, 2002, p. 45).

Nesse ponto, é comum oporem-se questões acerca da ética do conhe-cimento, pois fica evidente que a epistemologia da ciência é atravessada por opções ideológicas. Mas a relação inversa também é igualmente controversa, pois acreditar que a partir da ciência podemos identificar valores (no mundo de ideias a priori), seria incorrer no problema que Hume já advertia – não podemos deriva do ser o dever-ser. A essa questão, Henri Atlan (apud GUER-RA, 2002, p. 48) parece nos dar uma boa proposta: “Não é a partir da ciên-cia que se pode reformar uma ideia de homem e de sociedade, mas será sem dúvida a partir de uma ideia de homem e de sociedade que se pode utilizar a ciência ao seu serviço”12.

Assim, com a investigação-ação instaura-se uma metodologia diver-sa da ciência. É uma metodologia que, em comparação com o positivismo clássico, oriundo de uma visão das ciências naturais, possui características muito próprias. Em relação ao tipo de generalização, não é universal e inde-pendente do contexto, mas limitada e dependente. Quanto aos fins episte-mológicos, não pretende predizer acontecimentos, mas construir planos de intervenção que permitam atingir objetivos visados. Quanto ao tratamento de informações colhidas, os casos individuais podem ser fontes suficientes de conhecimento. Quanto à tomada de posição sobre valores, os métodos

10 Veja-se que nessa concepção se pode identificar a definição de investigação proposta por Dewey, em sua “Lógica: Teoria da Investigação”.

11 Ou seja, “mais do que correntes teóricas, trata-se, sobretudo, de posturas de investigação – apelidadas de investigação-acção – que procuram abranger um conjunto de experiências práticas desenvolvidas por vários autores, e relativamente distintas entre si, mas enquadradas no mesmo propósito de conhecer a realidade para a transformar, assumindo assim uma concepção pragmática da realidade social” (GUERRA, 2002, p. 43). Perceba-se que, sob essa perspectiva, as práticas de investigação criminal se encaixam facilmente nessa concepção de pesquisa científica.

12 Essa é, aliás, a via mais adequada quando nos colocamos em uma investigação criminal, em que se devem dirigir as ações segundo valores fundamentais (os direitos e garantias do homem), devendo qualquer ideia de ciência ser dirigida a partir deles como premissas do conhecimento e da ação.

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não são neutros, pois se desenvolvem em redes sociais e atualizam o poten-cial humano (GUERRA, 2002, p. 54). Com esses pressupostos, entre outros tantos que caracterizam a investigação-ação, essa metodologia encontra uma pluralidade de campos de aplicação13, entre os quais entendemos por situar a investigação criminal.

Quanto às técnicas dessa metodologia, utilizam-se todas as dispo-níveis nas ciências sociais, privilegiadas as qualitativas, sob uma perspectiva indutiva, que tentam teorizar a partir de informações empíricas, colhidas no campo, no terreno de ação, a partir de problemas que se colocam, na ten-tativa de resolvê-los, e para os quais a teoria se pretende voltar. Sobretudo, considera-se que há uma relação inevitável entre epistemologia e axiologia. Daí porque se admite que “a investigação-acção é uma metodologia ambicio-sa que pretende conter todos os ingredientes da investigação e, mais ainda, os ingredientes da acção” (GUERRA, 2002, p. 75). Pois se trata de conhecimen-to produzido em confronto direto com o real, tentando transformá-lo, com desconstrução da ideia do papel do “especialista social”. Assim, “a sociologia da intervenção produz-se muitas vezes à margem do sistema, junto de grupos e organizações em crise, sendo uma sociologia periférica (...) e não gozando de um grande reconhecimento pelas academias, pelo que também sofre de algumas debilidades metodológicas e técnicas” (GUERRA, 2002, p. 75)14.

2. A pesquisa qualitativa na investigação: observação e entrevista

No campo das ciências sociais, manuais de investigação, ao trata-rem dos métodos de recolhas de informações, referem-se à observação e à entrevista como duas das principais técnicas qualitativas (QUIVY e CAM-PENHOUDT, 1995, p. 186 e ss)15. Essas técnicas se encontram, igualmente, entre as mais comuns na investigação criminal. Certo é, contudo, que há par-

13 Para uma visão desse diversos campos, cf. Guerra, 2002, p. 60.

14 No Brasil, essa é exatamente a situação das organizações policiais responsáveis pela investigação criminal, na relação com a sociologia acadêmica que, a partir de uma visão sempre externa de desconstrução da segurança publica, é incapaz de adentrar nos grandes problemas reais das instituições e construir novos modelos de ação. E ao serem confrontadas tais sociologias com a busca das instituições policiais pelo desenvolvimento de uma ciência própria, consideram ser impossível falar de uma ciência policial.

15 Ao lado dessas, encontra-se ainda o inquérito por questionário (QUIVY e CAPENHOUDT, 1995) que somente em situações muito particulares poderia ser utilizado na área da investigação criminal, mas tendo em vista outra espécie de questão não diretamente relacionada a um caso concreto investigado. Por isso, deixamo-lo de lado inicialmente, mas não descartamos em absoluto sua utilização.

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ticularidades nesse campo que fazem da observação e da entrevista uma técnica muito diferente do que se compreende nas ciências sociais em geral. Mas alguns pontos são tão comuns, e certos problemas são partilhados por ambos os campos, que é inevitável, e até é desejável, que a investigação criminal se aproveite de estu-dos já desenvolvidos no campo das ciências sociais a respeito dessas técnicas16.

Entre as principais particularidades que se devem observar no campo da investigação criminal, os limites jurídicos condicionantes dos direitos fundamentais talvez seja o mais importante. Com efeito, toda técnica de recolha de dados em sentido científico, que se possa transpor-tar ao âmbito da investigação criminal, encontra nessa um condiciona-mento ético muito particular, que limita mesmo a persecução de uma verdade fática, em favor da valorização do direito dos investigados. Essa é uma barreira intransponível da investigação como pesquisa, mas é dentro desses limites que a potencialização das técnicas deve ser desenvolvida. Não obstante, as modalidades de observação e entrevista encontram na investigação uma variedade de que talvez nenhuma outra investigação científica se possa beneficiar, como são as técnicas de interceptação tele-fônica, para ficarmos com um exemplo corriqueiro.

A observação, como técnica de recolha de informação nas ciências sociais, possui vários sentidos, mas “no sentido mais restrito e melhor deli-mitado, a observação consiste em estar presente e envolvido numa situação social para registrar e interpretar, procurando não modificá-la” (PERETZ, 1998, p. 13). Trata-se de definição que aproveita à investigação criminal. É uma técnica que tem como objetivo encontrar, na sociologia, um significado para os dados recolhidos, a fim de classificá-los. Na investigação criminal, o sentido tem um parâmetro muito delimitado na teoria dos tipos penais. Dentre as espécies de observação, pode-se ainda encontrar um paralelo entre as formas direta, indireta e participante da sociologia com as diversas formas de observação que se encontram na investigação criminal, a exemplo da vi-gilância, da gravação de imagens e do agente infiltrado17. Esse em específico

16 Um estudo relevante, exclusivamente dedicado à observação, encontra-se em Henri Peretz, Método em Sociologia: a observação, em que o autor estrutura a técnica a partir de três atividades indissociáveis – a forma de interação social, a atividade de observação e o registro dos dados observados. Essa etapa, em específico, teria grande utilidade às práticas de investigação criminal, na qual os agentes não adquiriram ainda o costume científico de relato do observado. Isso, em parte, decorre de uma visão muito difundida que limita o científico ao experimento.

17 Algumas técnicas, contudo, parecem não se enquadrar muito facilmente na observação nem na entrevista. É o caso da interceptação telefônica que, embora se refira a dados verbais (não visuais, como em geral são as formas de observação), tem a característica própria da observação, por não interferir na situação.

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encontra uma aproximação muito forte com a observação participante, com vantagens metodológicas igualmente relevantes, pois exclui em absoluto o conhecimento da pesquisa pelo pesquisado.

Quanto à entrevista, na investigação criminal essa técnica encontra, para além de todos os problemas comuns às ciências sociais, todo um conjun-to de problemas que decorrem da especial situação pesquisada – a existência de um crime, a respeito do qual se procura seu autor. Nesse sentido, é aceitá-vel que a técnica exija uma atenção redobrada na investigação criminal, mas as questões suscitadas em sociologia podem ser um bom ponto de partida para estudos mais específicos18. Apesar da relevância dessa técnica na inves-tigação criminal, assim como nas ciências sociais, os pesquisadores tendem a dedicar pouca atenção a ela (FODDY, 1993). Mas sua sistematização em torno de um modelo de entrevista, como técnica de pesquisa fundada em certos pressupostos básicos da psicologia, com uso de tecnologia de colheita (gravadores de voz) e redação de relatório, pode contribuir para a qualidade científica das investigações criminais.

3. Análise de conteúdo: em direção ao quantitativo

Além da observação e entrevista, como técnicas de recolha de dados, na investigação criminal, assim como nas pesquisas sociais, é comum se reco-lherem documentos vários em complemento às informações. E ao final (tal-vez não tanto na sociologia, mas na investigação criminal em sua totalidade), sejam os dados verbais (entrevistas), sejam os visuais (observações), tudo aca-ba por ser reduzido a um conjunto de documentos, que se juntam aos demais documentos existentes anteriormente à investigação19. No conjunto, todas as informações exigem uma outra etapa, comum tanto às pesquisas científicas, quanto às investigações criminais, que é a de análise da informação (QUIVY e CAMPENHOUDT, 1995, 211 e ss). É nesse contexto que a análise de conteúdo se pode apresentar como uma técnica relevante à investigação.

18 Um bom estudo acerca da entrevista se encontra na obra Como Perguntar: Teoria e Prática da Construção de Perguntas em Entrevistas e Questionários, de William Foddy (1993), em que o autor declaradamente assume o interacionismo simbólico como quadro teórico de fundo para o desenvolvimento de seu estudo (p. 26). Segundo ele, “a mais básica implicação da teoria do para as situações de investigação traduz-se na hipótese de que o significado atribuído pelos sujeitos aos actos sociais é produzido no interior da própria relação em que esses actos ocorrem” (p. 23).

19 No direito processual brasileiro, aliás, o conceito jurídico de documento abrange tudo quanto seja registrado em um meio físico em condições de ser consultado, conferido, confrontado ou contraditado.

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A análise de conteúdo parece assumir, contudo, uma natureza dú-plice. Tanto pode ser realizada em um sentido quantitativo, como em um sentido qualitativo (QUIVY e CAMPENHOUDT, 1995, p. 227). Nesse ponto, para cada investigação criminal em particular, interessa-nos a análise qualitativa20. A análise de conteúdo incide sobre mensagens variadas, é um procedimento de análise de material escrito, independente de sua origem, que pode ser desde dados de entrevistas, até os produzidos por terceiros (FLICK, 2002, p. 193). As questões, contudo, que se colocam no campo das ciências sociais não são as que exatamente interessam à investigação criminal de casos concretos, mas pode interessar a identificação de certos padrões relevantes a orientação de investigações futuras. O importante é ter o domínio técnico das várias formas de análise sugerida pelos teóricos (sintetizadora, explicati-va, estruturante)21 e identificar os problemas da investigação criminal para os quais essas técnicas dispõe de uma possível resposta22.

Conclusão: padrões e medidas possíveis

As abordagens quantitativas não estão em absoluto descartadas de uma metodologia da investigação criminal. A questão é que o méto-do quantitativo serve a problemas outros que o qualitativo tende a res-ponder. Mas se partirmos dos dados estatísticos que são produzidos pelas diversas investigações – e mais que isso, se passarmos a produzir dados estatísticos dirigidos a certas questões não levadas em consideração em geral – podemos chegar a certas generalizações baseadas em medidas, como qualquer outra ciência. E se tais dados forem trabalhados a partir de programas e tecnologias de informação, são variadas as possibilidades de extrair padrões com medidas muito bem delimitadas. O problema, sob essa perspectiva, é estabelecer o que se pretende com um tal procedi-mento, em que sentido seus resultados podem interessar e aproveitar às investigações criminais em particular e de que forma tudo isso pode ser institucionalizado pelas organizações investidas na competência de in-vestigar e instrumentalizado de forma que essa instância seja compatível

20 A análise quantitativa não pode ser de todo excluída do nosso interesse científico, conjuntamente com certas análises estatísticas, igualmente relevantes para a investigação criminal, mas no âmbito de outra ordem de questões.

21 A classificação é de Uwe Flick, Métodos Qualitativos na Investigação Científica, onde o autor apresenta outros variados métodos de codificação e categorização.

22 Uma possibilidade que se pode vislumbrar é a análise do conteúdo de diversos inquéritos investigativos, visando a extrair padrões de modus operandi de certos crimes em conexão com modos de prová-los.

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com os problemas mais corriqueiros e imediatos das práticas de investi-gação. Mas não temos dúvida de que é possível trabalhar com medidas e generalizações fundamentadas em estatísticas.

Enquanto um problema qualitativo pode pretender identificar pa-drões de investigação, a partir de padrões de modus operandi relativos a certos e determinados crimes, visando a orientar a colheita de provas por quem in-vestiga na prática, outra ordem de problemas se pode colocar a quem compete não investigar, mas organizar os diversos setores (delegacias, p. ex.), em função do tipo e quantidade de crimes que se observam em dado território e em certo período. Ora, em tais casos, torna-se adequado falar em uma análise estatística de dados especificamente referidos a medidas, não a padrões de crime.

Podemos falar, assim, de inquérito de inquéritos – inquérito no sentido de pesquisa social, a partir de um conjunto de dados e resultados obtidos em inquéritos investigativos particulares, reunidos segundo certas classificações es-tipuladas. Seja para estabelecer padrões, seja para estabelecer medidas23.

Em síntese, assim como a sociologia surge segundo uma visão de ci-ência que se foi modificando e multiplicando em diversidades metodológicas, sem ainda hoje chegar a conclusões únicas a respeito de seus problemas, não se deve esperar que uma possível ciência de investigação criminal se ponha de uma vez, com todas suas questões já definidas. Tal pretensão seria exatamente o inverso do pressuposto de que partimos, no sentido de que existem con-cepções demais de ciência para que queiramos construir alguma fundada em uma ideia unitária. Como nos adverte os metodólogos, “o desenvolvimento da ciência deve caminhar a par com o do método sendo que as fragilidades da autonomia de cada área científica podem entroncar a montante nas das suas técnicas” (ESPÍRITO SANTO, 2010, p. 8).

Eliomar da Silva Pereira

Mestrando em Ciências Policiais (Criminologia e Investiga-ção Criminal), no Instituto Superior de Ciências Policiais e

Segurança Interna (ISCPSI, Lisboa, Portugal); Especialista em Ciências Criminais; Professor e Pesquisador na Academia Na-cional de Polícia; Delegado de Polícia Federal (Brasília-DF).

E-mail: [email protected]

23 Quanto aos inquéritos quantitativos, Boudon (1971, p. 41) os define como “aqueles que permitem recolher, num conjunto de elementos, informações comparáveis entre esses elementos. Esta comparação de informações possibilita, em seguida, a inumeração e, mais geralmente, a análise quantitativa dos dados. A condição necessária para a aplicação dos métodos quantitativos é que a observação incida sobre um conjunto de elementos, de certa maneira comparáveis.”

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A Ciência Policial na Sociedade Tardo-Moderna como fundamento do Estado de direito democrático1

MANUEL MONTEIRO GUEDES VALENTEInstituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna &

Universidade Autónoma de Lisboa - Portugal

Dud

1. Enquadramento do Tema

O tema que vos trazemos para reflexão engloba axiomas epistemoló-gicos e axiológicos que são essenciais na aceção da ciência policial como uma ciência da tardo-modernidade (FARIA COSTA, 2010) que absorve os tem-pos líquidos ou a sociedade líquida (BAUMAN, 2007) e a sociedade do risco global (BECK, 2006). A assunção deste pensamento traz-nos para o debate de uma ciência que se encontra em construção e afirmação contínua face às vozes incessantes da inexistência de uma ciência policial por inexistência de objeto próprio.

As novas posições doutrinárias, assentes em uma filosofia, ideologia e identidade policiais, têm demonstrado que existe um objeto material de estudo científico – a atividade de polícia como essencial à vida harmoniosa humana – que se afasta das posições formalistas dos objetos de estudo cien-tíficos. A atividade de polícia como essência material que incorpora vários saberes – sociais, jurídicos, económicos, filosóficos, políticos – ganha dimen-são de objeto científico de uma sociedade em que o hoje já é passado. Esta di-nâmica societária – que se quer social, jurídica, política e económica – impõe aos novos olhares científicos que se evite a cristalização das ideias por meio de conceções filosóficas e ideológicas (LEVI-STRAUSS, 2012, p. 69) contrárias à diversidade e à tolerância. Esta constatação impõe-nos uma divisão dos axio-mas do tema de modo a podermos efetuar um estudo autónomo de cada um e uma conexão transversal e intercomunicativa de todos esses elementos que

1 Texto de palestra proferida no V Congresso Nacional de Delegados de Polícia Federal, Rio de Janeiro, em 25 de abril de 2012.

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compõem a ideia de uma ciência policial inerente à afirmação do Estado de direito material democrático. A nossa exposição integra quatro axiomas epis-temológicos e axiológicos de raiz jus constitucional portuguesa e brasileira: a afirmação da ciência policial; a emergência da sociedade tardo-moderna; o fundamento jus internacional e jus constitucional; e a efetivação do Estado de direito democrático como espaço de integração do ser humano.

2. Abordagem (breve) epistemológica e axiológica dos axiomas

O axioma da ciência policial implica a criação e a doutrinação segundo os valores regentes de um tempo e de um espaço, de um objeto de estudo, intrínseco à existência humana, que tem sido olvidado pela ciência estática e presa a dogmas – incomprovados ou comprovados sob a batuta do verificacionismo europeísta rompido pela necessidade de adap-tação às necessidades humanas que deixa de ser um objeto do poder po-lítico e do poder judiciário para se converter em razão. Este rompimento aparece como sinal de incrementação de uma objetividade totalizante na afirmação das diferenças e na aceitação da diversidade cultural dos povos que encontram, na ciência, a έθος da congregação de esforços na materia-lização da quarta geração do humanismo: o humanismo assente na ordem jurídica mundial.

A afirmação da liberdade, direito e princípio, como o mais ele-vado valor da justiça (KANT), e da segurança [polígono hexagonal, po-liédrico, plurifuncional e plurinormativo, e bem jurídico supranacional garantia dos demais direitos e liberdades fundamentais do ser humano (VALENTE, 2011 e 2012)], apresenta-se como o mote de defesa de um ciência que tem como objeto uma atividade de proteção e de garantia dos direitos dos cidadãos contra os perigos, riscos e danos individuais e coletivos detratores da ordem jurídico-constitucional legítima, válida, vigente e efetiva (FERRAJOLI, 2005, p. 357-362).

Este pensar impende sobre os cultores da ciência falibilista (PO-PPER, 2003, p. 310-322), que buscam uma verdade que se constrói e é ina-cabada, que se desenvolva uma teoria geral que entronca as ideias universais e comuns de um pensar de ação e que respeite as diferenças culturais, sociais, económicas, jurídicas e políticas. Esta ideia geral de ação implica que se cons-

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trua um agir de polícia que se afirme como uma lei universal sem dene-gar a tolerância como princípio reintegrador de uma práxis entrosada e refração de uma filosofia e ideologia dinâmicas sob o rosto e identidade própria: a liberdade e a segurança.

Defendemos, desta forma, a afirmação da ciência policial como uma ciência de natureza transdisciplinar e intercomunicativa, sob uma teoria ge-ral jurídica. Optamos por uma teoria geral de conteúdo jurídico material por dever encerrar em si mesma as dimensões filosófica, económica, política congregadoras de uma tática e técnica policial cientificada e metodológica. Este caminho epistemológico assenta na ideia de que, como ciência, se exige a subordinação a valores de humanismo democrático que só é possível com a assunção de uma teoria geral jurídica da atividade policial regida por princí-pios gerais de legitimidade jus sociológica e jus constitucional.

Esta construtividade (ou reconstrutividade) da atividade mate-rial e funcional da polícia2 como ciência implica uma base ou um código comunicativo que se chama linguagem. Chamamos à colação o Tratado da Linguagem de LUDWIG WITTGENSTEIN como forma de poder e de afirmação de qualquer discurso e de uma ciência que se deseja im-plementar como referência do pensamento metodológico falibilista na senda de uma teoria geral – que respeite a diferença – dotada de abstra-ção suficiente que possa ser aplicada em qualquer espaço e em um dado momento ou tempo.

A emergência da sociedade tardo-moderna desenvolve novos para-digmas de concetualização de prevenção e de repressão dos fenómenos cri-minógenos germinadores da insegurança real e, muito especial, da segurança cognitiva. Este axioma exige de todos os cidadãos, e em especial dos respon-sáveis policiais, um aprofundamento endógeno e exógeno do conhecimen-to dos fenómenos imprimidos pela queda das fronteiras físicas estaduais e o aparecimento de um Estado cada vez mais exógeno de dimensões físicas em permanente mutação: indetermináveis ou imaginárias3.

2 Este pensar encontra-se ligado à nossa posição de reconstrução da topologia segurança (VALENTE, 2012) e, por isso, assumimos a posição de KARL ZBINDEN quando defende que a funcionalidade de polícia judiciária ou polícia criminal afere-se da dinâmica real – exercício da função – e não da dinâmica orgânica e formal (ZBINDEN, 1957, p. 111), sendo que esta garante a legitimidade jurídica daquela.

3 Seguimos a nossa posição conceptual desenvolvida em MANUEL MONTEIRO GUEDES VALENTE. 2012. Segurança (Interna). Um conceito em (re) construção face à consciencialização de bem

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O axioma da sociedade tardo-moderna implica que estudemos o sen-tido de tardo-modernidade, assim como os fluxos geográficos comutados e os fluxos informacionais juridificados enraizados a uma burocracia invasora, pa-rasita e paralisadora do corpo social (LÉVI-STRAUSS, 2012, p. 19). Acresce que tentamos trazer para o laboratório científico a necessidade da crescente materialização de uma ordem jurídica mundializada como método adequado a regular as relações humanas intersubjetivas comunicacionais e de se construir uma mínima limitação às tendências securitárias e belicistas de prevenção e re-pressão dos fenómenos criminais transnacionais: globalizados e glocalizados.

Faria Costa traz-nos a ideia de vivermos um tempo da tardo-moder-nidade e a dificuldade do Direito penal material e processual em acompanhar esta nova dimensão evolutiva societária (FARIA COSTA, 2010, p. 7-9). A sociedade primitiva que deu lugar à sociedade industrializada – sociedade da máquina e sociedade termodinâmica (LÉVI-STRAUSS, 2012, p. 116-126) – e a designada de sociedade pós-industrial dá lugar a uma dimensão do presente já passado. Mas, consideramos que vivemos hoje o passado do futuro regressado aos domínios feudais das novas gerações4, ou seja, a ciência policial deve assumir-se como barreira intransponível à tendência de regresso ao passado sob o desígnio da sociedade pós-industrializada que mais não é do que a sociedade do futuro passado para a qual o Direito se encontra numa encruzilhada e com dificuldade em responder aos fatos dinâmicos.

A ciência policial, se pretende ser uma ciência capaz de dotar os elemen-tos policiais de conhecimentos, competências e capacidades adequadas a preve-nir os perigos, os riscos e os danos reais, tem de incutir no seu âmago a certeza da incerteza dos fenómenos e de uma sociedade em constante mutabilidade: fre-quência registada e aproveitada pelo crime estruturada e organizado transnacio-nal. A tardo-modernidade faz-nos sentir seres do passado no espaço e no tempo e obriga-nos a laborar de forma a evitar que todas as ciências e, em especial a ciência policial, sejam ultrapassadas. Esta aceção onera os decisores políticos e executivos a elucidar o legislador da importância assumida pela incrementação efetiva de uma ciência que procura novas formas de prevenção e de repressão dos fenómenos antijurídicos sem abandonar o seu ADN: os direitos humanos.

vital supranacional. Lisboa: VI Congresso da Associação Portuguesa de Ciência Política - ISCSP/UTL.

4 Hoje vivemos o fenómeno da medievalização ou do neofeudalismo em que os cidadãos são obrigados a prestar novos tributos – rendas mensais – a entes ou novos senhores desconhecidos que dominam os Estados e colocam em causa a soberania e a defendendi populi potestas.

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O sentido da tardo-modernidade atraca na ideia de que os fenóme-nos societários, lícitos e muito em concreto os ilícitos, se desenrolam a uma velocidade temporal e espacial que impõem ao decisor político, judiciário e policial uma capacidade de resposta preventiva e repressiva adequada e capaz de fazer cessar o perigo, o risco ou o dano em curso. A sociedade do risco glo-bal, que assenta na edificação de uma rede humana e organizacional suprana-cional, alerta-nos para as incapacidades da ciência estática e estatizante face a uma cultura-mundo (LIPOVETSKY) que deve assumir o ónus de “fabricar o progresso” de modo a libertar a sociedade da “maldição milenar que obriga a sujeitar os homens para que o progresso suceda” (LÉVI-STRAUSS, 2012, p. 122-123)5. Socorrendo-nos da tese antropológica de LÉVI-STRAUSS, consideramos que essa capacidade de resposta só é possível em uma lógica científica que resolva problemas colocados pela condição humana – o crime, em especial o crime organizado transnacional – e pelos fenómenos naturais – catástrofes, como as cheias, os terramotos.

Esta constatação imprime-nos o pensamento para uma lógica sis-tematizada das relações humanas como manifestação de cultura-poder, que se desenrolam em fluxos geográficos e fluxos informacionais que precisamos de conhecer, estudar e entender de modo a podermos evitar o caos da ordem jurídica pública nacional e internacional. Este desafio onera a sociedade, fonte das suas leis e da democracia, a existência de uma ciência e não de um mito para dar liberdade ao cidadão por meio da promoção da segurança como polígono real e como polígono cognitivo, ou, nas palavras de um dos maiores filósofos do séc. XX quando escrevia e falava do imaginário político, polígono “fictício, ilusório e especulativo” (CASTORIADIS, 2012, p. 177).

Os fluxos geográficos, que acompanham a desterritorialização da ordem jurídica – até então entregue à soberania de um Estado e do seu povo e transferida ou reforçada com o poder heterogéneo (ou do héteros) –, são o reflexo de uma mutabilidade ou de um evolucionismo, que devia constituir “uma tentativa para reduzir a diversidade das culturas” (LÉVI-STRAUSS, 2012, p. 163) na afirmação de uma cultura-mundo de aproxi-mação ou harmonização do pensar filosófico, político e jurídico, mas con-

5 Assentamos esta posição na ideia de que a cultura – como “conjunto das relações que os homens de uma civilização dada mantêm com o mundo” – produz a ordem, enquanto a sociedade – como a estrutura que “consiste mais particularmente nas relações que esses mesmos homens mantêm uns com os outros” – produz a entropia (LÉVI-STRAUSS, 2012, p. 122).

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trariamente contribui para estabelecer as vias rápidas do crime organizado transnacional que domina a macro e a microeconomia e assume cada vez mais o poder dos Estados fracassados: ou, crime Estados6.

A queda metamorfoseada das fronteiras físicas em vários espaços su-pranacionais – espaço da União Europeia, espaço da Commonwealth, espaço do Mercosul, espaço da Lusofonia – em espaços criminógenos desprovidos de uma ordem jurídica legitima, válida, vigente e efetiva supranacional gerou a incerteza do detentor do poder regulador e reintegrador do bem jurídico lesado por condutas humanas ilícitas. A crise mundial é um perfeito e puro exemplo da globalização desregulada que implementa os novos senhores feudais imaginários: “posicionamento determinante (e não determinado) de novas formas” (CASTORIADIS, 2012, p. 177). À queda (substituição) do Estado fronteira e à afirmação do Estado fronteiras não correspondeu a consequente e exigível ordem jurídica pública que regesse a mutação com a equidade inerente aos Estados de direito material democrático.

A dinâmica dos fluxos geográficos e dos fluxos informacionais – es-tes dispõem e põem o poder que lhe é mais favorável, como redes agenciais de poderes que se preocupam com “a defesa dos interesses (privados, de grupo, de classe)” (CASTORIADIS, 2012, p. 189) contra o Estado – dilacera a di-nâmica inerente à liberdade e à segurança do todo societário. Esta dinâmica de poder é a única dinâmica que conhece e interage em perfeição com a tar-do-modernidade. A Polícia vê-se a braços com estes fenómenos que procura estudar para os conhecer e os prevenir e tem, hoje, um caminho a percorrer: assumir como seu escopo a ciência policial como uma verdadeira ciência.

As ciências estabelecidas demonstram uma incapacidade contínua de prevenir esses fluxos criminógenos geográficos que absorvem e domi-nam os fluxos informacionais da humanidade. Afirmam-se demasiado estáticas e dogmatizadas para se questionarem e indagarem novos rumos solucionais para novos problemas sociais. É neste espaço científico que a ciência policial encontra o lastro do seu labor epistemológico e axiológico por ser a instituição que tem como objeto da defesa e garantia efetiva dos direitos dos cidadãos e ser a primeira a assumir a defesa e garantia da legali-dade democrática e a segurança interna.

6 Neste sentido e com apontamentos à máfia, como organização criminosa politicamente estruturada e dominadora do poder político e com ele convivente, leia-se JEAN MAILLARD. 1995. Crimes e Leis. (Tradução do francês Crimes et Lois por OLÍMPIO FERREIRA). Lisboa: Piaget.

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Esta dimensão nacional expande-se para uma dimensão suprana-cional face à pulverização das fronteiras físicas. Como sabemos, a Polícia aparecia como o parente pobre da cooperação judiciária em matéria penal internacional. Se olharmos as Convenções e Protocolos das Nações Unidas e as Convenções e Diretivas Europeias, verificamos que a cooperação judici-ária se resumia a duas intervenções: a judiciária e a política. A intervenção policial entrava em cena no âmbito da coadjuvação adstrita ao poder judicial. A evolução é de tal modo grande que hoje aqueles instrumentos jurídicos contêm vários artigos destinados a operacionalizar a cooperação por meio da instituição policial. Graças ao esforço de estudos desenvolvidos em várias áreas, como a jurídica, começou a considerar-se que existe um objeto científi-co crucial para a afirmação dos bens jurídicos lesados ou colocados em perigo de lesão em qualquer espaço do globo: a atividade de polícia. A dimensão da ciência policial e a certeza de que é a ciência mais apta a prevenir os fenóme-nos criminógenos da sociedade tardo-moderna aparece por força de a ordem jurídica publica internacional e europeia obrigar os Estados a admitir, como membro do catálogo universitário das várias ciências, as ciências policiais7.

Outro axioma, que trazemos para esta nossa manhã de trabalhos de estudo e debate, é o fundamento ou a έθος da ciência policial como ciência da conservação e da materialização do Estado de direito material social e demo-crático. A έθος está ligada à natureza do poder instituinte ou legitimante e, nessa medida, onera-nos a aportar a ciência policial num porto de legitimi-dade jus constitucional metafísico.

O axioma fundamento é de natureza filosófica e de dimensão política quando se enquadra no patamar da decisão e do poder material por se ansiar uma ciência que assente em conhecimentos – epistemologia – e em valores – axiologia – que lhe garantam uma autonomia8 metafísica ou uma meta auto-nomia meta-positiva que identifique as suas próprias leis e lhe abram o espíri-to à crítica científica e a preparem, ôntico e ontologicamente, para a mudança sob o questionamento contínuo de uma ciência universitária.

7 A comissão científica, presidida pelo Professor Doutor ADRIANO PIMPÃO, Reitor da Universidade do Algarve, e destinada a estudar e a identificar e elencar um catálogo de ciências universitárias com objeto de estudo científico universitário, em 2002 assumiu, contra todas as forças obtusas e blindadamente organizadas, que deviam integrar esse catálogo as ciências policiais como área científica universitária autónoma.

8 Razão tem CASTORIADIS quando escrever que a sociedade só é autónoma quando consegue criar e aprovar as suas leis e questioná-las sem qualquer constrangimento (CASTORIADIS, 2012, p. 181). Foi esta ideia de CASTORIADIS que trouxemos para o pensamento da ciência policial.

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O argumento axiomático fundamento trazido para o debate, olvida-do sempre que se fala de uma ciência concrecionante da δημοκρατία, edifica-se sempre numa ordem de projeção e de dignificação do indivíduo como ser humano dotado de capacidade de gozo e de exercício efetivo de direitos e li-berdades fundamentais. Apontamos, desta feita, dois fatores intrínsecos a esta questão: um direcionado para a concreção efetiva do indivíduo como um ser humano e não um objeto ou uma coisa ou como uma «não-pessoa» e inimigo do estado legal9,10; o outro prende-se com o axioma de que esta ciência tem como escopo a construção do quarto humanismo11 – o aprofundamento dos direitos e liberdades fundamentais pessoais como estreitamento reconciliativo entre o ser humano e a natureza. Este fator consome o fator anterior, porque ao se assumir o segundo fator eliminamos a possibilidade de edificação de um pensamento despersonalizante do ser humano próprio de uma ciência acientí-fica e de uma técnica não científica assentes na eficácia do ato que promove a “autocoisificação dos homens” (HABERMAS, 2006, p. 72-76).

A έθος apresenta-se como um limite intransponível para as teses de intervenção política e jurídica – base da ação policial – sob o primado da periculosidade e da segurança12 que, na era em que discutem os Direitos

9 Afastamo-nos das teses do Direito penal (material, processual e penitenciário) do inimigo ou belicista enraizado na lógica funcionalista do Direito positivo, como assentam GÜNTHER JAKOBS. 2003. Derecho Penal del Enemigo, (Tradução de MANUEL CANCIO MELIÁ). 2.ª Edição. Madrid: Thomson-Civitas; 2003. Sobre la Normativización de la Dogmática Jurídico-penal. (Tradução de MANUEL CANCIO MELIÁ E BERNARDO FEIJÓO SÁNCHEZ). 2.ª Edição. Madrid: Thomson-Civitas; e ainda 2006. La Pena Estatal: Significado y Finalidad. (Tradução de MANUEL CANCIO MELIÁ E BERNARDO FEIJÓO SÁNCHEZ). 2.ª Edição. Madrid: Thomson-Civitas. Para um desenvolvimento histórico e enquadramento do tema do Direito penal do inimigo nos nossos dias e na defesa de uma nova conceção de política criminal humanista sob os primados da legalidade de um Estado de direito material democrático, da culpabilidade como razão de ser da responsabilidade e autorresponsabilidade do agente do crime, da humanidade como fundamento e limite da intervenção criminal estatal e do tratamento do agente do crime, MANUEL MONTEIRO GUEDES VALENTE. 2009. Política Criminal. A Ação da Polícia na Prossecução dos seus Vetores e Princípios. Trabalho Final de Curso de Pós-graduação de Gestão de Políticas de Segurança Pública. Brasília: ANP – Polícia Federal, e 2010. Direito Penal do Inimigo e o Terrorismo: O «Progresso ao Retrocesso». São Paulo: Almedina Brasil Lda.

10 Veja-se o pensamento de BOBBIO, quando citou ALDO CAPITINI, sobre o assassinato de CARLO CASALEGNO: “Se os homens forem considerados como coisas, matá-los é um ruído, um objeto caído”. NORBERTO BOBBIO. 1999. As Ideologias e o Poder em Crise. Tradução do italiano Ideologie e il potere in crisi de GILSON CESAR CARDOSO. 4 ª. Edição. Brasília: UnB, p. 113.

11 LEVI-STRAUSS fala-nos de três humanismos – o humanismo mediterrânico, o humanismo da exploração geográfica por movido pelas viagens de Marco Polo e dos descobrimentos portugueses, e o humanismo do aprofundamento do conhecimento do ser humano sobre o ser humano (LEVI-STRAUSS 2012, p. 56-61) – ao qual acrescentamos um novo humanismo capaz de limitar a entropia societária.

12 Quanto a esta tese dominadora no Direito penal europeu transpostas, em parte e cada vez mais, para as

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e Deveres na República13, ganham espaço em vários territórios do globo e ocupam o espaço da atividade de polícia que passa a ser uma ativida-de política de controlo impositivo demonstrando que existe um fracasso ou uma incapacidade da Polícia prevenir os fenómenos criminógenos e coadjuvar adequadamente os tribunais na repressão do crime. Defende-mos uma ciência policial cuja έθος assenta nos direitos humanos como se depreende a legitimidade jurídico-constitucional – art. 144.º conjugado com os artigos 1.º a 5.º da CRFB e art. 272.º conjugado com os artigos 1.º, 2.º, 9.º e 18.º da CRP – e jurídico-internacional.

Chegamos ao axioma plurifuncional e plurinormativo Estado de direito democrático, acrescentamos os inatos construtivos material e social por conside-rarmos que só englobando estes dois axiomas se pode falar de uma democracia efetiva: por ser com eles que se afirmam os direitos e as liberdades fundamentais como essência da democracia. Afastamos as teses positivistas ou formalistas do Es-tado por reafirmação internacional do jus naturalismo e por esse conceito formal, cingido ao espaço físico-geográfico identificado, ter dado lugar a uma topologia de Estado exógeno e sem fronteiras físicas identificáveis (VALENTE, 2012).

O desafio colocado aos nossos dias é edificar uma ordem jurídica na-cional e internacional pública subordinada à Constituição e à lei: melhor, ao Direito enquanto macrossistema de princípios gerais, de axiomas, de normas positivadas, de jurisprudência e de doutrina dinâmica. Impõe-se que se cons-trua uma ordem jurídica pública na qual a ciência policial intervenha como ciência destinada a solucionar os problemas dentro de uma cultura que gera ordem e destrona a entropia societária.

A ciência policial da sociedade tardo-moderna é uma ciência que as-senta numa lógica popperiana e ferrajoliana: primeiro, porque aceita o erro como uma realidade endógena, exógena, ôntica e ontológica e que a solução apresentada acarreta a falibilidade inerente ao ser humano e afirma-se como

ordens jurídicas internas dos Estados-membros, ANABELA MIRANDA RODRIGUES. 2003. “Política Criminal – Novos Desafios, Velhos Rumos”, in Liber Discipulorum JORGE DE FIGUEIREDO DIAS. Org. MANUEL DA COSTA ANDRADE, JOSÉ DE FARIA COSTA, ANABELA MIRANDA RODRIGUES e MARIA JOÃO ANTUNES. Coimbra: Coimbra Editora.

13 Falamos da obra conjunta, que assenta em um diálogo, de NORBERTO BOBBIO e MAURIZIO VIROLI. 2007. Direitos e Deveres na República. Os grandes temas da política e da cidadania. (Tradução do italiano Diálogo intorno alla republica de DANIELA BACCACCIA VERSIANI). Rio de Janeiro: Elsevier. Veja-se, também, NORBERTO BOBBIO. 2002. A Era dos Direitos. Tradução do italiano L’età del Diritti de CARLOS NELSON COUTINHO. 14.ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Campus.

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uma verdade em construção e aperfeiçoamento na busca do belo e da arte da sabedoria hegeliana; segundo, porque foi a ciência policial a primeira ciência, mesmo antes das ciências jurídicas, a integrar nos seus curricula de formação base e de formação superior universitária a unidade curricular científica de direitos fundamentais e direitos do homem (1984) com o intuito de incutir na nova geração de Polícia a ideia de que está ao serviço da Constituição e da lei que assenta na legitimidade da vontade do povo e, por isso, se lhe exige que atue sem denegação das garantias constitucionais efetivas de todos os cidadãos (vítima, indiciado, arguido e de todos os cidadãos da comunidade)14. Esta cons-trução tem como escopo a liberdade como o único direito natural dos homens que consome todos os demais direitos, e, continuando na linha de BOBBIO, a ciência policial tem como escopo uma polícia que seja a face e o guardião do Estado de direito material social e democrático (BOBBIO, 2002, p. 70).

Encontramos abrigo na ideia de uma ciência que se submete, que acolhe, que defende e garante uma ordem jurídico-material válida, i. e., uma ordem jurídica pública nacional e supranacional legítima, válida, vigente e efectiva, fundamento e pressuposto da actividade de polícia (CANOTILHO e MOREIRA, 2010, p. 799). Este axioma entronca na ideia de KELSEN de que o dever ser deve consumir e refletir o ser, i. e., a forma consome a matéria, o direito positivado deve refletir o direito material, pois é este que legitima e valida o direito formal15, cuja vigência e efetividade depende da atividade dos órgãos constitucionalmente instituídos.

A atividade de polícia, como rosto do Estado, materializa-o e con-cretiza a sua essência em cada momento concreto de atuação. É o reflexo de uma Constituição e de uma lei que a assume como instrumento de defesa e garantia dos cidadãos. A democracia ganha rosto em uma polícia que en-contra na ciência a legitimidade de agir em nome do Estado abstrato do qual todos nós fazemos parte integrante.

A materialidade e a dinâmica social de um Estado de direito e de-mocrático implicam uma Polícia que seja o rosto de uma atividade assente em primados científicos assentes num pensamento epistemológico e numa axiologia capaz de responder aos fenómenos da sociedade tardo-moderna.

14 Cumpre-nos referir que garantismo não significa impunidade, inimputabilidade nem impunibilidade, mas tão só responsabilização no respeito pelos direitos, liberdades e garantias penais materiais e processuais constitucionalizados.

15 Nesta linha de pensamento e reforçando o papel da hermenêutica, CABRAL MONCADA. 1965.Filosofia do Direito – Vol. 2.º – Doutrina e Crítica. Coimbra: Coimbra Editora, pp.111-128.

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O axioma direito não se esgota na forma por não representar o munus de um Estado democrático e o indivíduo poder ser objetivado e diminuído perante a força do coletivo impressa na forma jurídica.

A democraticidade da atividade de Polícia encontra eco na ordem jurídico-material válida que deve ser o resultado do pensar de um povo e da conceção de ser humano inata ao pensar concetual de Estado. O axioma de-mocrático aporta na ideia de ser humano dotado de vontade com liberdade de pensar, de decidir e de agir. Esta assunção inculca a existência de uma ci-ência policial que dote os seus utilizadores de conhecimentos, competências e capacidades adequados a responder ou a encontrar soluções para as questões colocadas pela hipercultura mundo.

O axioma Estado de direito democrático encontra na ciência policial a maleabilidade e a flexibilidade para dar espaço aos axiomas material e social de modo a reforçar a legitimidade ou a natureza de um poder de soberania instituído pela vontade do povo16. Os axiomas, material e social, apresentam-se à ação policial como fundamento do Estado democrático, cuja concretiza-ção passa pelo afirmar de um saber científico policial.

3. Conexão dos axiomas epistemológicos e axiológicos: a função de Polícia como essência da ciência policial

A interconexão dos axiomas expostos impõe-se pela necessidade de os entroncar num macrossistema social de valor superior que se afirma como medula do Estado. A resposta aos fenómenos da sociedade “tardo-moderna” tem demonstrado que as ciências estáticas e dogmatizadas chegam tarde com a solução e apresentam-na, em regra, como a única verdade possível para o fenómeno em curso.

A dinâmica da sociedade, assente em uma lógica de liquidificação e de tardo-modernidade da prevenção e da repressão do crime, impende sobre o decisor político-legislativo a aceitação e a audição de uma ciência, cujo ob-jeto é a atividade de polícia direcionada para a melhoria da qualidade de vida e

16 A ciência policial, que se desenvolve e aporta nas ciências jurídicas, as ciências sociais e políticas, assim como nas ciências técnicas-tecnológicas cientificadas, tem de se submeter à legitimidade sociológica emergente da vontade do povo como fonte legítima de todas as ciências. Toda e qualquer ciência que se encontra ao serviço do ser humano deve ancorar nas águas da legitimidade sociológica e jus constitucional.

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de bem-estar dos cidadãos17, legitima o nascimento de uma ciência “nova”, que não está presa aos primados dogmáticos, que arrisca, que não teme o erro e encontra no erro a certeza da falibilidade da verdade humana.

Esta “nova” ciência, cujo resultado final se reflete no bem-estar do cidadão, encontra na Constituição – “fundada no princípio da vontade po-pular, com declarações de direitos humanos” (DIPPEL 2007, p. 61) – a sua έθος. A interconexão dos elementos epistemológicos e axiológicos da ciência policial como fundamento de afirmação do Estado de direito material social democrático tem rosto constitucional: art. 144.º da CRFB e art. 272.º da CRP. A democratização da Polícia advém da democratização do Estado e a consequente democratização das ciências como meio e fim de realização do ser humano como membro ativo da comunidade e detentor natural de direi-tos e liberdades fundamentais pessoais.

A constitucionalização da função de Polícia – i. e., a necessária cons-titucionalização da atividade de polícia – é uma consequência da constitucio-nalização democrática do Estado de direito material, que a legitima e subor-dina aos primados constitucionais. A par deste desafio político-legislativo, assente na vontade popular e no respeito da dignidade da pessoa humana, a atividade de polícia, como objeto de estudo científico universitário – ve-jam-se as teses de mestrado e de doutoramento que, nos últimos dez anos, têm tido como objeto de investigação científica a atividade de polícia –, assume-se como lastro da materialização da Constituição democrática face à globalidade e glocalidade dos fenómenos criminógenos. Mas, esta opção do legislador constitucional imprime a obrigação de a polícia se apresentar como sujeito de uma ciência e não apenas como seu objeto.

A ciência policial na sociedade tardo-moderna como fundamento do Estado de direito democrático realiza-se, desde logo, na própria Constituição. A essência legitimadora e limitadora da atividade de polícia é de natureza constitucio-nal com a consagração de um duplo dever ser – defender e garantir (que implica res-peitar) – e de uma dinâmica material tríplica – legalidade democrática, segurança interna e direitos de todos os cidadãos (vítima, indiciado, cidadão em geral).

Os axiomas, duplo dever ser e dinâmica material tríplica, inte-gram o objeto da ciência policial como ciência humana entregue a uma

17 Tarefa fundamental do Estado de direito democrático: cfr. al. d) do art. 9.º da CRP e incisos II, III e IV do art. 3.º da CRFB

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instituição – Polícia – que assume uma função de soberania e, como tal, uma das tarefas fundamentais do Estado: garantir ao cidadão um espa-ço de liberdade com qualidade de vida e bem-estar18. Impõe-se à polícia que edifique um espaço de segurança e assuma a natureza tridimensional constitucional: dimensão de ordem e tranquilidade públicas, dimensão administrativa e dimensão judiciária ou criminal.

Esta tridimensionalidade constitucional garante à Polícia a capacida-de de responder aos fenómenos inatos à sociedade tardo-moderna ou liquidi-ficada. Essa capacidade só é possível alcançar com a assunção efetiva de uma ciência policial congregadora de saberes e pensares científicos adequados a identificar e determinar uma verdade falível e ajustável consoante a muta-bilidade desses fenómenos. A tridimensionalidade da atividade de polícia é uma caraterística da sociedade liquidificada e exigente de uma ciência que se prepara para a certeza da incerteza dos fenómenos.

Mas, essa assunção efetiva depende de fatores endógenos – internos e institucionais, resistentes à mudança e ao desafio em desbravar caminhos espinhosos – e exógenos – externos e fortemente instalados, desde logo das titulares das ciências afirmadas no mundo científico universitário, passando pelo poder político-legislativo que, por um lado, quer uma polícia que pense, defenda e garanta os direitos dos cidadãos e, por outro, quer uma polícia que não pense e tão só cumpra ou execute as ordens que lhe são transmitidas, as-sim como pelas ordens secularmente estabelecidas que encontram nesta nova ciência um espaço de crítica científica da atividade milenarmente intocável.

A assunção da ciência policial como um dos fundamentos de um Estado de direito material social e democrático é um desafio árduo que se nos coloca a todos nós polícias, que em Portugal já consta da história das ciências e se encontra semivencido – veja-se a acreditação pela A3ES e futura avaliação do curso de mestrado em ciências policiais, com cinco especiali-zações [segurança interna, gestão da segurança, criminologia e investigação criminal, gestão municipal da segurança e gestão civil de crises] e a procura incessante, europeia e lusófona, de um curso de doutoramento em ciências policiais, cujo projeto já está em curso para que possa iniciar em outubro de 2013 – e que no Brasil deve ser cimentado –, cujo primeiro passo já se deu com a fundação da Revista Brasileira de Ciências Policiais, com a criação de

18 Cf. art. 144.º conjugado com artigos 1.º a 5.º da CRFB e 272.º conjugado com os artigos 1.º, 2,º. 9.º, 18.º da CRP. 20

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um curso de pós-graduação em ciências policial e investigação criminal e com a implementação cuidadosa da Escola Superior de Polícia. São pequenos pas-sos para o homem, mas podem ser grandes passos para os cidadãos.

O espaço científico da ciência policial é um oceano imenso. Desde logo, é uma ciência «nova» em que o erro se apresenta como uma conse-quência de quem está a apreender a andar, em que o arrojo e a coragem de estudar os fenómenos criminógenos segundo novos princípios e regras se apresentam como elemento valorativo e nunca depreciativo, em que a busca da verdade entronca na teoria da falibilidade.

A ciência policial é uma ciência que tem um enorme espaço científi-co de autonomia e independência por lhe pertencer, ainda, a criação dos seus princípios, dos seus axiomas, das suas regras e normas e que, como ciência em afirmação, se admite o questionamento crítico evolutivo19.

Consideramos que é esta independência e autonomia, inerente ou que deve ser inerente a toda a ciência, que a ciência policial, como procura do belo da arte e da sabedoria – saber – e como espólio de competência e capacidade de transmissão desse saber, garante à Polícia a independência e autonomia desejada e lhe confere a desejada dignidade social.

MANUEL MONTEIRO GUEDES VALENTE

Diretor do ICPOL – Centro de Investigação e Professor do Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança

Interna; Professor Convidado da Universidade Autónoma de Lisboa; Investigador do Ratio Legis - UAL

E-mail: [email protected]

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19 Construímos esta ideia com base no pensamento de CASTORIADIS quanto às sociedades autónomas e independentes (CASTORIADIS, 2012, p. 181).

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Revista Brasileira de Ciências Policiais

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Uma Sociologia das Organizações Policiais

Almir de Oliveira JuniorDiretoria de Estudos e Políticas do Estado, das Instituições e da Democracia

Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - Brasil

Dud

O conceito de polícia e a especificidade das organiza-ções policiais modernas

Atividades de policiamento referem-se idealmente a esforços no sentido de manter a ordem, prevenir e combater crimes. Enquanto tais, essas atividades são desempenhadas por um grande número de agências e indivíduos dentro de uma sociedade dada, não tendo a polícia nenhuma exclusividade sobre as mesmas. Vítimas exercem uma função dentro do processo de policiamento quando comunicam os crimes que sofreram às autoridades. O mesmo pode-se dizer de entidades como cada Neighbou-rhood Watch nos Estados Unidos ou de assistentes sociais atuando na pro-teção e garantia de direitos de crianças, entre outros exemplos (NAWBY, 2003, p. 15). A função policial, enquanto atividade de vigilância e controle exercida por um conjunto de pessoas a favor das normas da coletividade da qual fazem parte, existiu e existe nos mais variados contextos: um clã patriarcal, uma tribo indígena ou uma cidade-estado antiga1. Contudo, há uma diferença bem demarcada entre o policiamento como processo, por um lado, e a polícia como uma organização burocrática específica, por outro. David Bayley (2001) estabelece três elementos que ajudam a reconhecer a existência da polícia como organização: força física, uso in-terno e autorização coletiva.

O primeiro elemento, uso da força física, apesar de não ser suficiente para definição em questão, é condição fundamental da existência da polícia. Um grupo de pessoas ou uma organização não seriam, em qualquer parte do mundo, reconhecidos como polícia caso o uso da força não estivesse presente.

1 “Levando em consideração que o homem é um animal social involuntário, o policiamento é praticamente universal” (BAYLEY, 2001, p. 23).

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Uma Sociologia das Organizações Policiais

Brasília, v. 2, n. 2, p. 65-87, jul/dez 2011.Revista Brasileira de Ciências Policiais

A previsão de uso da força dentro dos limites de uma sociedade dada faz se-paração entre polícias e exércitos. Já o terceiro elemento da definição é o mais problemático: no que consistiria, exatamente, tal “autorização coletiva”?

Bayley (2001, p. 20) relaciona essa autorização a um propósito coleti-vo: a polícia estaria “presa a unidades sociais das quais deriva sua autoridade”. Na sua definição essa derivação não parte necessariamente do Estado. Outros grupos, inclusive de interesse privado, podem autorizar certo tipo de utili-zação interna da força que passa a ser considerado legítimo. Por esse ponto de vista, o conceito de polícia não indicaria exclusivamente uma instituição das sociedades modernas e contemporâneas, tendo existido na antiguidade e podendo ser encontrada em sociedades muito distantes dos padrões ociden-tais de cultura, além de incluir agências privadas. Bayley não fixa a unidade social da qual se origina a legitimidade de polícia. Dessa forma construiu um conceito com alto grau de generalização, passível de aplicação em contextos históricos muito distintos.

Mas o que existe de novidade em matéria de polícias no mundo mo-derno? Para Bayley a resposta para esta questão está na combinação que promo-ve dos seguintes três elementos: natureza pública, especialização e profissionali-zação. Essa combinação única, que se firmou nos últimos cem anos, distingue a unidade histórica da polícia na forma que se conhece atualmente.

Apesar dos governos não serem as únicas comunidades humanas importantes onde pode ser feita uma distinção inteligível entre instru-mentos coletivos e não-coletivos, o caráter público das polícias tornou-se relativamente fácil de ser demarcado a partir das instituições dos Esta-dos. Mesmo que a legitimação do Estado e a ordem que o institui sejam em grande parte problemáticas, podendo ser questionadas2, realizar essa discussão foge em muito ao escopo e propósito deste trabalho. Não se pretende fazer uma profunda reflexão política sobre a polícia. O que im-porta aqui é a inclusão da legitimidade de origem estatal como uma das

2 A cobrança de impostos, por exemplo, sofreu muitas resistências. Foi considerada no início enquanto uma espécie de extorsão, e só com muita violência passou a ser vista como legítima. Como cita Bourdieu: “A instituição do imposto foi o resultado de uma verdadeira guerra interna, feita pelos agentes do Estado contra a resistência dos súditos, que se descobrem como tais, principalmente, se não exclusivamente, descobrindo-se como pagadores, como contribuintes (...). Portanto, a questão da legitimidade do imposto não pode deixar de ser colocada (Norbert Elias tem razão em observar que, no início, a cobrança de impostos apresenta-se como uma espécie de extorsão). Só progressivamente se passa a ver no imposto um tributo necessário às necessidades de um destinatário transcende a pessoa do rei, isto é, esse ‘corpo fictício’ que é o Estado”. (BOURDIEU, 1996, p. 102)

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características definidoras do comportamento do policial. Ele representa, em situações cotidianas, o poder e as mazelas do Estado.

O policial é treinado para reproduzir a ordem ritualmente. Assim, o Estado contribui para formação de um habitus de polícia3. Quando atua de forma ostensiva em locais públicos, o policial é a face mais visível do Estado, poderoso concentrador de capital simbólico. O policial, de uma forma ou de outra, está também imbuído desse capital, representando-o através de seu ha-bitus específico, que inclui o caráter de ser agente estatal, possuindo certa es-pecialização. Um dos atributos mais marcantes do Estado é a sua capacidade de concentrar capital simbólico, de forma a direcioná-lo ao campo do poder. O processo civilizador consistiu, em grande parte, na progressiva capacidade do Estado (e de seus detentores) de suprimir os seus concorrentes no que diz respeito à produção e reprodução simbólica4. A figura do Estado está por trás da “oficialidade” e relevância da missão de polícia, evocando rituais que enaltecem a disciplina, erigida como elemento imprescindível de controle in-terno. Tais rituais incluem desde gestos obrigatórios de reverência aos níveis mais altos da hierarquia5, passando por instruções, códigos de postura e apre-sentação corporal, até desfiles e outras solenidades que, de forma suntuosa, transmitam ao público e aos próprios policiais uma imagem de excelência, tradição e espírito de corporação6.

Com relação ao caráter de especialização das polícias contempo-râneas, cabe citar que se trata de um conceito muito relativo. Uma vez que especialização se refere ao grau de exclusividade com o qual se dedica a execu-tar uma determinada tarefa, raramente, ou nunca, se encontrará uma polícia totalmente especializada. Organizações policiais não dedicam todos seus es-forços ao aprimoramento de aplicação da força física, estando envolvidas em

3 A noção de habitus se refere ao processo social que ocorre de forma interna aos indivíduos. Eles não apenas ocupam papéis provenientes de um sistema cultural dado externamente, ao qual suas personalidades devem se adaptar. Antes, o que ocorre é uma dinâmica formativa. Dentro de contextos coletivamente demarcados, como uma escola, uma empresa ou um quartel de polícia, existe um movimento constante de caráter estruturante, que emerge das interações rotineiras, construídas em processos de socialização e partilha de experiências (BOURDIEU, 1989). Dentro desses processos os indivíduos adquirem uma espécie de capital de informação, ou seja, o instrumental cognitivo necessário para ter algum tipo de controle nas situações de interação, nas quais deve tentar se assegurar do sucesso dos resultados provenientes das impressões que emite aos outros (GOFFMAN, 1985).

4 Como concorrentes históricos do Estado se pode citar a família e a igreja, para dar apenas dois exemplos.

5 Como as continências no caso da polícia militar e o tratamento por “doutor” dado aos delegados de polícia pelos seus subordinados.

6 Solenidades de passagem de comando, eventos em datas cívicas, formaturas de cursos de formação de novos policiais, etc.

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atividades de negociação, atendimentos de assistência social e outros. Mas, para Bayley, as circunstâncias da modernidade tendem a favorecer a especia-lização, ainda que não completa, da polícia.

A especialização da polícia, em parte, parece ter crescido porque a filosofia administrativa nas Nações-Estado modernas assim exi-giu; acredita-se que a especialização seja útil, tanto em termos de garantir não só controle adequado quanto aumento de eficiência. (BAYLEY, 2001, p. 59)

Também parecendo estar associado a essa lógica da eficiência e con-trole, a profissionalização seria, de acordo com Bayley, o atributo da polícia mais claramente moderno, se comparado ao seu caráter público ou a espe-cialização. Os indicadores mínimos de uma polícia profissional são o recru-tamento de acordo com certas regras, remuneração que permite criar uma carreira, treinamento formal e supervisão por parte de oficiais superiores.

Em combinação com a definição dada por Bayley, adota-se também o enfoque dado por Rob Nawby (2003, p. 15): a polícia como uma organiza-ção que se distingue pela sua legitimidade, estrutura e função.

A legitimidade, ou autorização coletiva, é dada pelo Estado e é ele-mento matricial em relação aos outros dois. Diz respeito ao fato da polícia, com seu corpo de funcionários públicos, manter certo grau de monopoliza-ção sobre tarefas que envolvem potencialmente coerção física. Por estrutura, ou caráter profissional da polícia, designa-se sua característica de ser uma for-ça organizada, com algum nível de treinamento e um código, que especifica sob quais circunstâncias o uso da força é legítimo. Por último, a função de polícia, ou sua especialização, apesar de seus agentes atenderem aos mais va-riados tipos de ocorrências7, envolve manutenção da lei, da ordem, além de prevenção de crimes e detenção de suspeitos e delinqüentes.

Esses três fatores, até certo ponto ligados aos trabalhados por Da-vid Bayley e citados anteriormente, ficam definidos de forma a enfatizar as características formais específicas da polícia pública moderna, minimi-zando o escopo de análise das amplas variações que as polícias sofreram no decorrer da história ocidental e facilitando a inclusão da polícia na abordagem da sociologia das organizações. Ou seja, no continuum que vai desde a definição mais ampla e abstrata de polícia, até a definição mais

7 Assunto enfaticamente discutido por Bittner em Aspects of police work (BITTNER, 1990).

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específica, que remete estritamente à noção atual de organização policial, opta-se pela segunda alternativa: A polícia é uma organização de natureza pública, dotada de autorização estatal para utilizar a força física dentro de condições estabelecidas legalmente, com a função de manter a ordem, com certo grau de profissionalização para tal.

Essa definição acima é indispensável para se apontar a especifici-dade da organização policial, mas de forma alguma exaure o leque de ativi-dades às quais, na prática, os policiais se dedicam, nem contorna todas as nuanças envolvidas no desenho institucional da polícia. Trata-se, eviden-temente, de uma definição mínima, a partir da qual podem ser levantadas várias problematizações.

Esta discussão objetiva rebater a noção de que a organização policial seja tão específica a ponto de não permitir o escrutínio por parte da sociolo-gia das organizações. Defende-se que um dos desdobramentos do novo ins-titucionalismo sociológico, o modelo neo-weberiano, seja adequado para o estudo das organizações policiais.

Dando início ao paradigma clássico da análise de organizações for-mais dentro da sociologia, Max Weber define burocracias a partir da ideia de que são orientadas para atividades regulares, distribuídas de forma fixa como deveres oficiais. O treinamento profissional em torno de objetivos especia-lizados é complementado por uma hierarquia bem definida, que garante a supervisão dos postos inferiores pelos superiores, mensurando resultados e corrigindo possíveis desvios em relação aos fins organizacionais. Crité-rios técnicos de seleção e promoção levam ao comprometimento estrito com os objetivos estritos da organização, fazendo o insulamento do apa-relho burocrático em relação a demandas espúrias (políticas, ideológicas, etc.) geradas externamente.

Pode-se dizer que a criação e o aperfeiçoamento das polícias moder-nas se orientou pela crença na eficiência dos princípios inerentes a esse mode-lo clássico de burocracia. Para Marcos Luiz Bretas, a polícia pode ser tomada como um excelente exemplo de órgão público moderno:

As concepções de engenharia social, formuladas pelo pensamento científico que dominou o séc. XIX, obtiveram pleno êxito ao divi-dir o estado em duas partes: uma, política, sujeita à controvérsia partidária, representando ‘o Estado’; e outra, administrativa, in-

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dependente da política partidária, concebida tanto quanto possí-vel como ‘natural’ – vale dizer, administrada da única maneira racional possível – e invisível. Daí emergiu a percepção de que as relações entre a polícia e o público eram, ou deveriam ser, um não-assunto, uma parte imutável do mecanismo racional da adminis-tração. (BRETAS, 1997, p. 10).

Ou seja, a “profissionalização” da polícia se deu a partir da con-cepção do policiamento como um serviço público. De acordo com tal ideia, o trabalho de manutenção da ordem e combate ao crime envolve sistematização e disciplina. Karina Leite cita que, no decorrer do sécu-lo XX, ocorreu um movimento de reforma da polícia (LEITE, 2002). Além de incorporar as inovações tecnológicas disponíveis, adaptando-as aos seus objetivos8, passou também a enfatizar os elementos racionais da administração moderna. Esse movimento...

(...) introduz critérios de contratação por meio de concursos, de modo a eliminar, ao máximo possível, as influências políticas sobre as atividades dessa organização. O que se buscava era o estabeleci-mento de uma polícia que baseasse suas atividades estritamente no cumprimento das leis penais, segundo procedimentos padronizados. (LEITE, 2002, p. 24).

Em nome da eficiência torna-se necessário inibir as iniciativas que se dão pelo discernimento pessoal dos policiais. Instruções diárias, no caso das polícias militares, servem ao propósito de unificar atividades em torno de unidades de comando que sejam alcançáveis pelos ocupantes dos postos mais altos e mais próximos do comando central. Isso facilita, teoricamen-te, o funcionamento da organização como um instrumento racional para execução de um serviço. Uma rígida lógica operacional interna, somada a uma estrutura formal de controle hierárquico, permite “filtrar”, ou mesmo neutralizar, a pressão das demandas externas, que seriam impedidas de dis-torcer os objetivos organizacionais. Por exemplo, diminuindo as chances de intervenção dos policiais no sentido de favorecer interesses particulares, em detrimento do estrito cumprimento de diretrizes legais.

No entanto, no caso das organizações policiais não se pode ignorar o “paradoxo da discreção”. Antônio Luiz Paixão afirma que, uma vez que a análise organizacional parte do pressuposto de que se podem identificar es-

8 Trata-se, principalmente, da utilização do automóvel, que substitui o patrulhamento a pé, e da incorporação do telefone para estruturação de uma nova forma de atendimento das demandas, que passa a ser padronizada e centralizada.

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truturas formais de coordenação de indivíduos em atividades voltadas para fins previamente definidos, sua aplicação à realidade das polícias é imbuída, no mínimo, de certo grau de contradição9.

Por um lado identifica-se internamente nas organizações policiais uma hierarquia rígida, com ampla ritualização de comportamentos no nível das re-lações interpessoais entre seus agentes, além de um treinamento padronizado voltado para um grande número de regras formais, relacionadas de forma legal e doutrinária às suas atividades-fim. Por outro lado as atividades práticas dos agentes de linha, atuando com o público externo, revelam grande autonomia dos níveis hierárquicos mais baixos para determinar procedimentos em situa-ções conflitivas e ambíguas, raramente solucionáveis a partir de planejamento ou de consulta aos escalões mais altos da organização (PAIXÃO, 1982).

Como apontado por Egon Bittner (1970, p. 52), as organizações poli-ciais normalmente evocam um modelo “quase-militar”, utilizado pelos seus ges-tores para criação de regras e códigos de conduta. Porém, esse modelo se debate com o que a pesquisa empírica demonstra a respeito do cotidiano das práticas policiais. Ou seja, ao mesmo tempo em que não se pode excluir a função de manutenção da lei e da ordem como elemento básico da definição de polícia, o desdobramento dessa missão depende do significado dado a esses conceitos nos encontros rotineiros do policial com a população. A tarefa de “manter a ordem” entra em constante tensão com a “manutenção da lei”. Diante desse paradoxo, o modelo neo-weberiano10 parece ser adequado para análise das organizações policiais, se comparado com visões mais tradicionais da burocracia. Oferece uma resposta para se trabalhar sociologicamente o contraste entre o modelo ideal de burocracia moderna, pautada por premissas ou critérios universalistas (por exemplo, aplicação da lei), mas que empiricamente se traduzem objetivos organizacionais levados a cabo por indivíduos em situações particulares, mais ou menos complexas (como ocorrências policiais em que a lei não é clara sobre os procedimentos necessários, ou que os custos de aplicação literal da lei sejam até mesmo onerosos demais para manutenção da ordem, interna ou externa à organização). Herbet Simon e James March buscam uma perspectiva realista para compreensão das organizações, dando “músculos e carne ao esqueleto [or-ganizacional] weberiano” (PERROW, 1986, p. 119).

9 No conceito dado por Selznick, uma organização é “um instrumento técnico para mobilização de energias humanas, visando uma finalidade já estabelecida” (SELZNICK, 1972, p. 5).

10 Ou pelo menos como foram rotulados principalmente os trabalhos de March e Simon no livro Complex organizations - a critical essay (PERROW, 1986).

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Contextos organizacionais são ambientes onde atores reflexivos buscam seus objetivos, de modo que categorias sistêmicas são insuficientes para se compreender os processos que ocorrem em empresas e instituições reais. Assim, deve-se abandonar a dicotomia entre os aspectos formais e informais das organizações, uma vez que não indica duas dimensões an-tagônicas, mas aspectos cognitivos complementares, que dizem respeito aos mapas mentais utilizados pelos atores em suas estratégias de interação significativa com outros.

Objetivos organizacionais são estabelecidos, ou adaptados a partir de diretrizes dadas por um nível hierárquico externo mais alto, pelas lide-ranças dentro da organização. Então, tais objetivos são traduzidos em sub-objetivos pelos outros membros, passando a ser atividades-meio para o al-cance daqueles objetivos principais. Mas as pessoas não aderem aos mesmos por que, necessariamente, compartilham valores, prioridades, ou acreditam em tais objetivos. Sendo assim, como entender que estão constantemente en-gajadas em atividades que tendem à cooperação? Em outras palavras, qual a base da estabilidade das organizações? Regras formais também não fornecem resposta suficiente para questão.

O conceito de rotinização deve ser evocado para solucionar, em parte, esse problema analítico. Entende-se que as organizações, assim como quaisquer outros sistemas sociais, só existem por meio da rotinização das prá-ticas (GIDDENS, 1987 e 1989, MARCH E SIMON, s. d.). Conceito fun-damental na teoria da estruturação de Giddens, a rotinização está baseada no senso de realidade produzido pela consolidação das definições prévias dadas às situações de co-presença:

O caráter rotinizado dos caminhos que os indivíduos percorrem no tempo reversível da vida cotidiana simplesmente não ‘acon-tece’. É ‘feito acontecer’ pelos modos de monitoração reflexiva da ação que os indivíduos sustentam em circunstâncias de co-presença. (GIDDENS, 1989, p. 74)

Em outras palavras, a organização reflexiva da ação leva à seguran-ça ontológica, fundada na autonomia e controle propiciados por rotinas e encontros previsíveis. Como mecanismo básico de controle da ansiedade, a reciprocidade de ações em situações que se tornam estáveis gera a confiança necessária ao desempenho de papéis e a possibilidade do ator se situar no mundo (BERGER & LUCKMAN, 1973). Obviamente, com o decorrer do

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tempo as práticas habituais podem levar ao declínio do grau de reflexividade. Dessa maneira o conceito de rotinização é claramente relacionado ao concei-to de racionalidade limitada (MARCH E SIMON, s. d.).

Uma organização é uma construção humana complexa, voltada para to-mada racional de decisões. No entanto, esse processo decisório é necessariamente afetado por constrangimentos das mais diversas ordens, como, por exemplo, os li-mites cognitivos inerentes à tendência de padronização das demandas originadas externamente à organização, justamente através do filtro da rotinização.

Os indivíduos participantes de uma organização nunca possuem to-das as informações sobre as conseqüências de linhas alternativas de ação e, em grande medida, suas decisões são influenciadas por experiências anteriores de resultados satisfatórios:

A relação organização-ambiente é vista à luz do conceito de absor-ção de incertezas¸ de acordo com o qual, pessoas e organizações uti-lizam mapas cognitivos apreendidos e elaborados, para interpretar o ambiente no qual atuam. Esses mapas cognitivos permitem aos atores se familiarizarem (...) com o mundo externo, na medida em que o interpreta à luz das categorias e vocabulários que pertencem ao seu próprio mundo. (PRATES, 2000, p. 134).

Aplicando essa ideia ao trabalho do policial, observa-se que a socia-lização com colegas mais velhos e experientes talvez seja mais relevante que os treinamentos. Cursos sobre o código penal, o sistema de justiça e direitos humanos fornecem informações muito gerais, se comparadas com o grande número de situações inusitadas com as quais o policial se defronta. Assim, o conceito de rotinização não se refere às situações com as quais ele se depara, mas ao script que adota frente às mesmas.

O “paradoxo da discreção” torna-se, assim, analiticamente menos enigmático. Pois, de acordo com o modelo neo-weberiano, os atores que se localizam na linha de frente da organização, ou seja, nas áreas de fronteira com o ambiente externo, lidando diretamente com seus respectivos públicos-alvos, estão na posição estratégica de controlar informação.

Estatísticas policiais são um exemplo de dados que são construídos de acordo com o poder discricionário e o interesse dos agentes da base or-ganizacional. Excetuando-se ocorrências como assassinatos e roubos de auto-móveis, a vítima fica à mercê da abordagem do policial que atende no local do

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crime, que pode desanimá-la definindo que a situação é irremediável, já que o criminoso já se evadiu da cena do crime, ou que o suspeito já foi detido outras vezes, mas foi liberado sistematicamente pelo delegado de polícia civil. Para dar um exemplo mais radical, policiais rodoviários podem, através de uma “opera-ção padrão”, aumentar significativamente o número de apreensões de drogas ilícitas ou dobrar as estatísticas sobre circulação de veículos irregulares11.

Nesse ponto é importante ressaltar que a ideia de rotinização não deve ser confundida com o conceito de ritualismo, de uso comum na sociolo-gia das organizações. A rotinização é um processo inerente à vida dos grupos por ser ativada por mecanismos psicológicos dos indivíduos que os compõem, contribuindo para absorção de incertezas no caso dos grupos que são organi-zações formais, pautadas pela busca constante de eficiência. Já o ritualismo, citado, por exemplo, por Merton (1968), afirma que as atividades-meio das burocracias podem se tornar atividades-fim, configurando-se como fenôme-no desviante dentro de sua visão funcionalista. Selznick (1972) segue um raciocínio próximo a esse, dizendo que as regras e os sentimentos emergen-tes em uma organização podem ganhar vida própria, consolidando-a como uma instituição social. Nesses dois últimos casos se enfatiza, de uma forma durkheimiana, o poder da coletividade sobre as consciências individuais, que levaria as pessoas à conformidade com atitudes padronizadas meramente pela preponderância valorativa das normas. Assim, não se explicita mecanis-mos realistas de estabilidade do comportamento organizacional.

Sem reificar a estrutura organizacional, a noção de rotinização não leva em consideração a dicotomia entre os aspectos formais e informais das organizações. Ambos são cenários, fachadas, fornecedores de mapas cogni-tivos para ação, que envolvem uma pluralidade de aspectos que podem, a princípio, serem até mesmo contraditórios. A lei e a ordem constituem uma dicotomia que não torna a polícia um tipo de organização tão única, a ponto de dizermos ser refratária à análise sociológica das organizações. Mesmo uma pequena loja de roupas pode viver dilemas análogos. O proprietário pode orientar seus dois vendedores para competição, estabelecendo uma regra simples do tipo “quem vende mais, ganha mais comissões”. No entanto, se eles levam a competição literalmente a cabo, podem levar à obstrução mútua

11 “Operação padrão”: Trata-se da estratégia de prejudicar a função de manutenção da ordem sem desobedecer a lei. Parar todos os veículos que deixam a cidade no início de feriado não afeta nenhuma diretriz legal da atuação do policial rodoviário, uma vez que é sua atribuição formal realizar as blitzes. No entanto, causará engarrafamentos, afetando a ordem, levando os cidadãos a pressionarem as autoridades, que podem sentir-se impelidas a ceder em negociações para o aumento de salários dos policiais.

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dos seus próprios desempenhos. Nesse caso, ambos perdem comissões e a loja pode ver-se malograda por uma regra que criou para se tornar adequada à realidade universalizante do mercado12.

A estabilidade e cooperação organizacionais não podem ser adequada-mente entendidas, portanto, simplesmente focalizando-se os objetivos organi-zacionais strictu sensu (WEICK, s. d., p. 37). A ideia clássica de uma organização como algo estruturado para lidar com o mundo que a rodeia, fundamentada no objetivo de produzir algo, com a capacidade de lidar com materiais seleciona-dos no ambiente social de forma uniformizada (enfim, um desenho do tipo input-output), cai por terra. Isso não ocorre, já que simplesmente toda organi-zação possui, na verdade, suas próprias contradições ou tensões endógenas à sua forma de trabalho. A questão é que organizações são “coleções de escolhas ou soluções à procura de problemas” (MARCH, COHEN & OLSEN, 1972). Em vez de serem moldadas pelo ambiente, importa o mundo significativo pro-jetado ao exterior, construído pelos seus participantes.

Não são as situações que são rotineiras, mas a forma de interpretá-las. Isso se dá pelo conjunto de crenças e atitudes ocupacionais elaborados pelos membros da organização, trabalhando com algum tipo de tecnologia dispo-nível, que também colabora para construção de certa cooperação, afinidade e estabilidade organizacional. Muitas vezes até limitando a capacidade de rea-ção e adaptação da organização às transformações do ambiente externo, esses elementos contribuem para formação do capital de informação dos indiví-duos (GOFFMAN, 1985), passível de transformação em “atitudes naturais” (GIDDENS, 1996). Essa rotinização é fortalecida pelo senso de realidade produzido pela reafirmação de definições dadas às situações de co-presença, a partir das quais cada ator social pode buscar seus objetivos.

Todas as proposições descritas aqui são compatíveis com o pressu-posto weberiano de que o ser humano, antes de agir, interpreta e faz sentido das situações com as quais se depara. É por isso que Weber definiu que o sig-nificado utilizado pelo agente pode explicar causalmente sua ação (WEBER, 1994). Esse princípio é solidamente explorado por March e Olsen (1989), ao afirmarem que organizações cumprem papel fundamental no processo de dar sentido ao mundo dos que delas participam.

12 É claro que, no caso de uma pequena organização, a criação de regras pelo gerente, ou o acordo tácito entre os funcionários, pode resolver os problemas gerados pela discreção de uma forma bem mais facilmente administrável que no caso de organizações complexas.

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A posição defendida não é de mero voluntarismo, construtivismo ou subjetivismo. Não basta definir situações como reais para que se tornem reais em suas conseqüências. Quando se refere às “molduras de significado” (frames) que dão suporte à performance dos atores sociais em situações específicas, Goffman deixa claro que tais molduras de atuação não são compostas meramente de ele-mentos subjetivos (GOFFMAN, 1974). Organizações ajudam a dar sentido aos papéis que os indivíduos exercem em sociedade porque eles podem se articular em cumplicidade por buscarem certos objetivos mútuos. As organizações nas so-ciedades contemporâneas refletem, de forma dramatizada, os mitos produzidos externamente, projetando uma imagem que reforça sua legitimidade, mas que não representa exatamente sua verdadeira relação com seu ambiente (MEYER & ROWAN, 1977). A corporação policial, com seu mandato de combate ao crime, é um dos exemplos desse tipo de organização complexa13.

Além do mais, a imagem construída sobre a organização policial entre a população projeta um estigma sobre o policial. Pelo menos isso é evidente no caso brasileiro. Os anos de ditadura, os casos de corrupção divulgados na mídia, os altos índices de criminalidade e os baixos salá-rios da categoria contribuem nesse ponto. O estigma projetado sobre os policiais, ao qual os mesmos também reagem, funciona como um demarcador simbólico de fronteiras entre a organização da qual fazem parte, o cidadão e o “marginal”.

Essas fronteiras simbólicas acabam empregando certas característi-cas de instituição total às organizações policiais, afetando a identidade e o comportamento dos seus agentes. O conceito de instituição total (GOFF-MAN, 1987) é tomado aqui como um tipo ideal, e será explorado adiante, quando da discussão da cultura organizacional de polícia.

Breves notas sobre a tensão entre polícia e sociedade

Para Harlan Hahn (1970) o estudo da polícia faz emergir problemas fundamentais da teoria política, ou melhor, da relação entre cidadãos e o Esta-do. As ações rotineiras dos policiais representam um meio importante através do qual muitos valores são transmitidos para o público: conceitos como lei,

13 Obviamente existe toda uma preparação do policial, assim como investimentos no desenvolvimento de técnicas para lidar com o crime. Porém, atividades de combate ao crime não ocupam a maior parte do tempo dos policiais, assim como o efeito dessas atividades sobre as taxas de criminalidade é incerto (BAYLEY, 2001; BITTNER, 1990).

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ordem, autoridade e justiça tornam-se assuntos cotidianos, vistos pelo prisma da prática. Assim, os policiais tornam-se pontos de contato entre indivíduos e os princípios cruciais que sustentam uma sociedade organizada.

Como a legitimidade conferida socialmente é um dos alicerces da existência da polícia, a mesma pressupõe comunidades estáveis. As polícias comunais, presentes em vários feudos europeus até o século XIII, assim como o próprio sistema da qual faziam parte, baseava-se na solidariedade e nos va-lores compartilhados entre grupos de agricultores servis e a identidade que possuíam com determinado território. A partir do século XIII, com a deca-dência do feudalismo, tais comunidades começam a se desfazer devido aos problemas econômicos, pragas e fome. A luta pela centralização de poder, ou seja, a ação da coroa tentando aumentar seu domínio, leva a um declínio cada vez maior dessa polícia local (MONET, 2001). Juntamente com esse proces-so, é preparado o campo para o surgimento do oficial de polícia, agente que emerge entre os séculos XIV e XVII. De um lado esses oficiais estavam sob o escrutínio do governo central, através dos juízes, mas por outro lado também dependiam de um bom relacionamento com a comunidade. Há certa evi-dência de que o imposto cobrado para mantê-los era bem impopular, o que fez com que reformas no esquema de vigilância se tornassem comuns no sé-culo XVIII. Porém, apesar das reformas, a crítica aos vigilantes continuou até o início do século XIX, sendo difícil precisar se porquê eram ineficientes ou se as expectativas em relação a eles havia aumentado muito. Também se dizia que o oficial era um mal, já que reforçava o poder central, ainda não tão con-solidado como veio a ser no mundo contemporâneo (RAWLINGS, 2003).

Mesmo com o objetivo de entender o que a polícia simboliza para o policial, o que ela simboliza para sociedade é a moldura maior que se deve compreender primeiro, pois os estereótipos sociais construídos historicamente correspondem ao contraponto que situa cada detalhe da cultura do policial.

Hoje a polícia pode ser vista como provedora de serviços estatais fundamentais: proteção da vida e da propriedade. Mas os papéis que lhe vão sendo atribuídos acabam se tornando quase tão complexos quanto a diversi-ficação das esferas da sociedade. As classes mais baixas, principalmente, acio-nam a polícia para um grande número de serviços que excedem a manutenção da lei e da ordem. Dependem da polícia em momentos de crise, enquadrando a atividade policial em funções de assistência, nas quais simplesmente nin-guém mais saberia o que fazer.

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Por um lado as polícias são organizações fechadas, pautadas por regras rígidas de conduta e de hierarquia, que utilizam jargão próprio, sendo defensivas em relação à ingerência de órgãos externos (SKOLNICK & FYFE, 1993)14. Por outro lado sua atuação se dá nos constantes encontros com a população, volta-da, portanto, para o seu ambiente externo. Na medida em que cresce a demanda por serviços públicos por segurança, mais se legitima a intervenção do Estado na vida dos cidadãos, via atuação policial. Problemas anteriormente definidos como de natureza privada, acabam sendo reavaliados como públicos, sendo essa uma tendência histórica avassaladora (GUSFIELD, 1981). Tal tendência leva a uma complexidade crescente da atividade policial, dado o grande número de códigos e leis que incidem diretamente em comportamentos que se tornam passíveis de vigilância e controle, além das intervenções em termos de outros tipos de assistên-cia. Além do mais, como a missão da polícia, assim como vista pela população, é de combate ao crime, a polícia fica à mercê de julgamentos que não dependem de algo sobre o qual possam realmente ter controle, já que a atuação policial, por si, não é capaz de minimizar as incidências de delitos15.

Traços da cultura policial

Deve-se falar em cultura policial ou culturas policiais? Não há dú-vida que existe uma diversidade de polícias, com modelos organizacionais e regras informais distintas, dependendo do local e do período histórico espe-cíficos. No entanto, é claro que se podem encontrar muitos traços comuns, mesmo em contextos sociais extremamente variados.

Filmes, seriados e romances policiais criaram o retrato fantasioso ou fantástico da atividade policial fardada. Exploram a imagem popular do po-licial como um sujeito “durão”, que geralmente sacrifica sua vida pessoal em nome do árduo fardo do seu trabalho, tão incompreendido pelos leigos, mas tão nobre e essencial para que os cidadãos medianos possam levar suas vidas com paz e tranqüilidade. Essa imagem constitui um estereótipo do policial

14 Insulamento que se reflete inclusive na dificuldade em se realizar pesquisas junto às organizações policiais. Para realizar observação participante, Guaracy Mingardi chegou a prestar concurso público para investigador de polícia. O trabalho resultou em brilhante dissertação de mestrado, intitulada “A nova polícia”, publicada como Tiras, gansos e trutas (MINGARDI, 1992). O autor cita que o incomodava que, até então, poucos cientistas sociais produziam conhecimento empírico sobre a polícia. Por um lado, atribui isso ao desprestígio acadêmico do tema (o que teria mudado hoje). Mas, é claro, outro motivo relevante é a dificuldade de realizar estudos de campo, dado o fechamento e desconfiança próprios das polícias.

15 Pesquisa recente do IPEA mostra um baixo nível de confiança da população nas polícias (IPEA, 2010).

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como alguém radicalmente diferente dos demais cidadãos. Mesmo sem con-cordar com tal estereótipo, deve-se levar em conta que a profissão envolve, até certo ponto, a real possibilidade de envolvimento em situações tensas ou perigosas. Isso tem influência sobre a formação da cultura policial. Por um ponto de vista relacional, ser policial é uma experiência que pode marcar profundamente a história de vida dos indivíduos. Trata-se de um profissio-nal que tem que se expor às mais diversas situações de conflito. Somadas à desvalorização do policial por parte da sociedade, as tensões levam a um sig-nificativo “espírito de corpo”, ou de corporação, dificilmente compartilhado por membros de outros grupos ocupacionais. Esse espírito de corporação é reforçado pelo caráter militarizado do treinamento que, além de influenciar as expectativas do público em relação aos policiais, vistos como soldados con-tra o crime (SKOLNICK & FYFE, 1993, p. 113-114), também ajuda a cons-truir a noção de que “só um policial é capaz de entender o serviço de polícia” (BITTNER, 1970, p. 63).

Como expressado por Monjardet, a profissão de policial envolve algo que extrapola a ideia convencional de uma simples ocupação:

“O trabalho do engenheiro, do técnico ou do operário pode ser com-preendido (até prova em contrário) sem se referir a seu sistema de valores pessoal, ou ao sistema de valores coletivos do grupo ao qual ele pertence (...). Não se pode, à primeira vista, compreender assim o trabalho do policial. No cruzamento da autonomia prática, de sua denegação organizacional e da falta de objetivação da tarefa poli-cial se desdobra a ‘cultura’, ou sistema de valores dos policiais, como elemento necessário, como os interesses, de determinação das suas práticas.” (MONJARDET, 2003, p. 162-163).

Integrar a corporação pode significar, do ponto de vista do cotidiano do indivíduo, algo próximo do que é descrito por Goffman dentro de seu modelo de instituição total (GOFFMAN, 1987). Considerando-se tal conceito como tipo ideal, percebe-se que ser policial não é, exatamente, um cargo do qual se “despe” após o expediente, uma vez que se retire a farda e deixe o ambiente de trabalho.

O modelo de instituição total parte da constatação de que existem organizações que são mais fechadas do que outras, e que intensificam as relações entre seus integrantes na medida que buscam separá-los da socie-dade mais ampla. As instituições totais procuram desenvolver suas tarefas em grupos, o que facilita a vigilância e a padronização de comportamentos, favorecendo o controle social.

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Jerome Skolnick fala de uma personalidade ocupacional (working perso-nality) de polícia (SKOLNICK, 1966). É claro que isso não significa que todo policial compartilha de uma mesma personalidade padronizada, ou que entrar para carreira possa modificar totalmente sua estrutura psicológica. Quer dizer simplesmente que existem tendências cognitivas entre os policiais que lhes são próprias, dadas as circunstâncias em que as suas atividades são desenvolvidas. Ou seja, não se trata de um fenômeno psicológico individual, mas de uma resposta a uma combinação única de fatores que se dá no desenvolvimento do papel de policial: perigo, autoridade e constante pressão por demonstrar eficiência.

De um modo geral, o primeiro elemento que orienta essa persona-lidade ocupacional é certo grau de fechamento em relação ao mundo social para além da corporação. Esse fechamento se justificaria, pelo ponto de vista dos próprios policiais, pela falta de respeito do público em relação aos poli-ciais, pela falta de cooperação das pessoas no que diz respeito à manutenção da lei e da ordem e pela incompreensão quanto às qualidades necessárias para se ser um policial (SKOLNICK, 1966, p. 58).

Trata-se de uma questão que envolve uma escala de valores. Os que são “de dentro” da organização compartilham dos desafios e angús-tias cotidianos. É então criada a sensação de que existe uma certa bar-reira, às vezes mais intensa, às vezes mais tênue, dependendo do caso, entre aqueles que são e aqueles que não são policiais. Como realçado por Richard Bennett (1980), o excesso de sentimento de solidariedade interna à corporação chega a deteriorar ainda mais os laços com outros segmentos da sociedade, fazendo com que muitos policiais até mesmo cumpram seu papel de forma mais agressiva do que o necessário para uma sociedade democrática.

Trata-se de um movimento cíclico: episódios de violência policial aumentam a hostilidade da população em relação à polícia. Por sua vez, essa hostilidade externa leva a um maior fechamento interno, que acaba aumen-tando a probabilidade de adoção de procedimentos práticos, por parte dos policias, que excluam o diálogo e aproximação com relação às comunidades atendidas por seus serviços. É razoável pensar que o estigma projetado por outros grupos sociais alimenta uma atitude de certo distanciamento e suspei-ta em relação àqueles que não são policiais. O estigma, característica comum imprimida aos membros de instituições totais, provém de várias fontes. Há na verdade um sentimento ambíguo da população em relação aos policiais.

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Existe certo fascínio, comprovado pelo sucesso da literatura e filmes com te-mas policiais. Mas também, e talvez de forma mais intensa, um sentimento de suspeita projetado sobre o policial.

O policial tem plena consciência desse distanciamento social cons-truído pelas lentes do leigo, o “paisano”. Por um lado, já esteve do outro lado da fronteira, sem uniforme. Por outro lado, independentemente de ter bus-cado a carreira de policial por mera necessidade econômica ou por uma mo-tivação vocacional, ao ingressar na corporação, aprender os ritos e jargões, utilizar a farda, passa a perceber nos olhares e comportamentos dos outros os preconceitos e fantasias produzidos no calor da mídia e da cultura de quem está distante e desconfiado do agente que, legitimamente, detém a força.

Em pesquisa realizada com policiais militares em Belo Horizon-te16, 53% dos entrevistados disseram que, quando vão a algum lugar que as pessoas ficam sabendo que são policiais, freqüentemente são aborda-dos para falar sobre crimes ou trabalho policial. Apenas 14% responde-ram que isso acontece raramente ou nunca. Na mesma pesquisa, 64,3% declaram se encontrar pelo menos duas ou três vezes por mês com amigos policiais fora do horário de trabalho. Segundo 86,5% deles, o público não entende o que é ser um policial, contra apenas 3,4% que percebem a vi-são que as pessoas têm da polícia como simpática e compreensiva. Dados como esses ilustram como o fechamento do policial é quase inevitável: é alvo da curiosidade das pessoas, percebido como diferente, procuram a companhia de outros policiais, já que se sentem incompreendidos por aqueles que não compartilham dessa missão.

Se, por um lado, essa demarcação social se dá pela reação dos policiais quanto aos estereótipos criados pela população e projetados sobre eles, por ou-tro lado o distanciamento também é construído simbolicamente através dos estereótipos criados pelos próprios policiais e projetados sobre os outros. Não se deve deixar de levar em consideração o aspecto da construção intra-organi-zacional. Uma atitude de desconfiança ou suspeita não é mero reflexo da relação com o ambiente externo onde a atividade policial se desenvolve. Esse outro traço marcante da cultura policial é uma forma dos integrantes desse grupo ocupacional absorverem o impacto do perigo próprio de sua atividade, real ou simbólico (BITTNER, 1990; CRANK, 1998; SKOLNICK, 1966).

16 Realizada no ano de 2000, parceria da Fundação João Pinheiro com a Universidade Federal de Minas Gerais, parte do projeto “A Organização Policial e o Combate à Criminalidade Violenta”.

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Uma característica importante desse traço de sua personalidade ocu-pacional, a atitude de suspeita, é sua forma de realizar a classificação do “grau de perigo” a ser enfrentado em diferentes situações. Existe uma atribuição de suspeita distribuída de forma diferenciada entre a população. O papel desem-penhado pelo policial envolve constante perigo potencial, mas isso não quer dizer a atividade policial seja a mais perigosa. Não se trata de uma questão meramente estatística17. Outras ocupações, como mineradores, operários que trabalham com o forno de uma siderúrgica, pilotos de provas, dublês, eletri-citários, etc, podem até acarretar maiores riscos de lesões e mesmo morte. No entanto, o que Skolnick enfatiza é o aspecto simbólico, a aura de perigo que envolve o policiamento. Seu impacto emocional é grande, já que, se compara-do a outras profissões citadas, envolve um alto grau de imprevisibilidade. Ao tentar, subjetivamente, controlar essa imprevisibilidade, o policial busca, nas pessoas e situações, os sinais que antecipem a ameaça (SKOLNICK, 1966, p. 45). Contrariando os militantes dos direitos humanos essa estratégia refere-se, na verdade, a mais do que um simples preconceito. Indivíduos de todas as classes sociais, sem distinção, estão sujeitos a cometerem crimes. Associar criminalidade a pobreza é um mito (SMITH, 1978). No entanto, tudo in-dica que, de forma específica, a criminalidade do tipo violenta realmente se concentra principalmente nos aglomerados urbanos e ao redor dos mesmos.

Outro traço da cultura policial, muito associado ao espírito de cor-poração já citado, é o seu sentido de missão (MUNIZ, 1999; SKOLNICK, 1966; REINER, 1992; SOUZA, 2001). Pesquisa realizada com policiais militares em Belo Horizonte revela que 87% acreditam simplesmente que sua profissão é, mais do que outras, essencial para a sociedade18. Na mesma pesquisa, 61% dos entrevistados afirmaram que só aqueles que têm vocação podem ser policiais militares e 70% concordam que existem procedimentos e formas de fazer as coisas que só os policiais conhecem.

Como enfatizado por Reiner (1992, p. 111-113), o senso de missão, a princípio compartilhado entre policiais, implica o sentimento de que não se trata apenas de um trabalho, já que ser policial é um estilo de vida enriquecido de sentido e propósito. Existe um mandato constantemente reforçado entre

17 “É preciso afastar as pré-concepções do policial. Na realidade, são exceções as atividades policiais que resultam em troca de tiros, vítimas e mortes. As pesquisas nacionais e internacionais mostram que a maioria das atividades da polícia é de auxílio à comunidade e comportam atividades próprias de serviços sociais e relações públicas” (BARROS, 2005, p. 96).

18 Pesquisa “A Organização Policial e o Combate à Criminalidade Violenta” (BARROS, 2005, p. 96).

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os policiais, ritual que começa nos treinamentos na academia de polícia, pas-sando pelas instruções no início do turno de trabalho e pelos discursos pro-feridos nas solenidades às quais os policiais devem comparecer. A hierarquia reforça o sentido de missão incutido no desempenho do papel de policial. Ou seja, desde o início da socialização na organização lhe é passada a noção de que faz parte de um corpo maior e mais importante que si próprio, ao qual teria o dever de estar subjugado. Até mesmo certos sacrifícios pessoais seriam justificáveis, em função da missão constitucional de “preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio”19. A ideia de “guerra contra o crime” talvez seja a que traduz de forma mais clara o espírito de mis-são compartilhado pelos policiais. O mito do trabalho do policial como in-dispensável e insubstituível é central na sua visão de mundo (REINER, 1992, p. 113). Uma tarefa tão desafiadora e importante que só poderia, idealmente, ser desempenhada por indivíduos com verdadeira vocação.

Talvez Peter Manning tenha a obra mais significativa sobre a cultura policial dentro da perspectiva da dramaturgia social. No seu livro Police work - The social organization of policing (MANNING, 1977), fala sobre o simbolis-mo em torno do trabalho policial e da metáfora dramática que se aplica ao exer-cício do controle social. Em outro texto, Policing contingencies (MANNING, 2003), analisa, dentre outros fatores simbólicos, o papel que a mídia tem na construção de um ambiente de significados dentro do qual o policial se vê, ou pelo menos reage à forma que acredita ser visto pelas pessoas. A mídia faz parte, portanto, dessa grande dinâmica que acaba por influenciar a cultura policial.

O “drama” do trabalho policial incide sobre as tarefas que, dentro da interpretação dos próprios policiais, sejam compatíveis com as expecta-tivas da população em relação à sua performance. Mas, como são geralmente muito criticados, acabam construindo estratégias próprias a instituições totais, fechando-se em seu próprio mundo de significados, justificado pela suposta ignorância dos que são “de fora” em relação ao trabalho policial. As estraté-gias de representação de sua missão por parte dos policiais envolvem, portanto, aspectos contraditórios e tensos das situações com as quais se deparam. A ma-nutenção das aparências é fundamental nesse processo, pois, em grande parte, até mesmo o sucesso do policial como mediador de conflitos depende do nível de respeito e, por que não, medo, que consegue ostentar nos encontros sociais ordinários. Essa é, dentro da linguagem da dramaturgia social, a fachada dentro

19 Artigo 144 do capítulo III da Constituição Federal, que quase todos os policiais têm na memória.

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da qual encontra sustentação para sua performance (GOFFMAN, 1985). Para Manning a retórica do profissionalismo (“existem coisas que só um policial sabe fazer”) é a mais importante estratégia empregada pelos policiais para defender seu mandato e construir sua auto-estima e reconhecimento20. A solidariedade ou fechamento social dos policiais é construído de acordo com esse pilar, proje-tado para defesa de sua autonomia organizacional21. Trata-se, portanto, de uma característica central dentro da cultura policial.

Almir de Oliveira Junior

Doutor em Ciências Humanas (Sociologia e Política) pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG (2007). Foi pes-

quisador do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública da UFMG (2003-2006) e professor do Curso de Gestão Estratégica em Segurança Pública da Escola de Governo da Fundação João Pinheiro e Academia de Polícia Militar - MG

(2004-2006). Atualmente é Técnico de Planejamento e Pesquisa do IPEA, trabalhando com políticas públicas, segurança

pública e organizações policiais e operações de paz.

E-mail: [email protected]

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20 Isso não quer dizer que os policiais não estejam sendo sinceros ou que sejam desonestos no desempenho de seu papel: “(...) encontramos o ator que pode estar inteiramente compenetrado de seu próprio número. Pode estar sinceramente convencido de que a impressão de realidade que encena é a verdadeira realidade. Quando seu público está convencido deste modo a respeito do espetáculo que o ator encena (...) então, pelo menos no momento, somente o sociólogo ou uma pessoa socialmente descontente terão dúvidas sobre a ‘realidade’ do que é representado” (GOFFMAN, 1992, p. 25).

21 Está formada, desse modo, aquilo que Goffman denomina de “equipe de representação” (GOFFMAN, 1992).

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Brasília, v. 2, n. 2, p. 89-107, jul/dez 2011.

Segurança Pública, Inteligência e Coope-ração Internacional

Tony Gean Barbosa de Castro Departamento de Polícia Federal - Brasil

Dud

RESUMO

O presente trabalho discorrerá sobre a segurança pública, inteligência e cooperação internacio-nal como formas conjuntos de instrumentalização e fortalecimento ao efetivo enfrentamento à criminalidade organizada, sobretudo quando atuante para além das raias limítrofes dos Estados, ou seja, com caráter transnacional.

PALAVRAS-CHAVE: inteligência, segurança pública, cooperação internacional, crime orga-nizado transnacional.

1. INTRODUÇÃO

É corrente a afirmação de que a segurança pública se apresenta como questão primordial para garantia da convivência possível e minimamente pa-cífica dos atores da sociedade. Tendo em conta que em toda sociedade devem existir normas, direitos e deveres a regular a vida dos cidadãos, a expectativa é que suas condutas se situem dentro de padrões socialmente aceitáveis, mas, na prática, é um truísmo dizer, isso nem sempre acontece. Antes, deparamo-nos, em todo e qualquer grupo social, com trangressores das regras estabeleci-das, exigindo-se do Estado, por meio da segurança pública, a sua salvaguarda. E não haveria como ser diferente uma vez que o provimento de segurança pública foi avocado pelo Estado de forma monopolística.

A partir do momento, portanto, em que são criadas regras democrá-ticas a delinear comportamentos socialmente aceitáveis, apresenta-se indis-pensável a adoção e implementação de uma política estatal capaz de enfrentar a ameaça ao processo civilizatório representada pela criminalidade.

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Ampliando o problema para a esfera internacional, o avanço tec-nológico e a globalização trouxeram, a despeito de vários benefícios, con-tribuições para o aumento da criminalidade que passou a exprimir, dentre outros aspectos, o caráter de transnacionalidade, apresentando-se cada vez mais complexa máxime em razão de novas técnicas e de sofisticadas formas de ação, trazendo novos desafios ao trabalho desenvolvido pelos responsáveis pela segurança pública. Neste contexto, os Estados e seus respectivos órgãos de segurança devem desenvolver formas de ação capazes de tornar mais efi-ciente o combate a essa nova criminalidade.

Dentro deste cenário é que sobreleva o papel conjunto a ser desem-penhado pela inteligência (intelligence) e pela cooperação internacional.

2. INTELIGÊNCIA E SEGURANÇA PÚBLICA

2.1. Conceito de Segurança Pública

Para Mendes Pimentel, o conteúdo do termo segurança não é de fácil precisão (PIMENTEL, s. d.). Não há como negar, entretanto, que alguns elementos são característicos e indispensáveis quando se alude à segurança pública tais como prevenção, repressão e compromisso de manutenção da ordem pública e da paz social bem como a salvaguarda de direitos fundamen-tais dos integrantes de uma dada sociedade. Nesse sentido, pode-se obter um conceito de segurança pública da Lei de mesmo nome vigente na República Portuguesa ao esclarecer que se trata da atividade desenvolvida pelo Estado com o escopo de:

garantir a ordem, a segurança e a tranquilidade públicas, proteger pessoas e bens, prevenir e reprimir a criminalidade e contribuir para assegurar o normal funcionamento das instituições democráticas, o re-gular exercícios dos direitos, liberdades e garantias fundamentais dos cidadãos e o respeito pela legalidade democrática1.

Deve reger-se ainda, a segurança pública, pela observância dos prin-cípios do Estado democrático de direito, dos direitos, liberdades e garantias do cidadão. Para os efeitos da abordagem a ser desenvolvida neste trabalho, sobrelevam ainda os aspectos da integração, cooperação, coordenação e com-plementariedade a definir o sistema de segurança pública.

1 Artigo 1º da Lei n.º 53/2008, de 29 de Agosto que aprova a Lei de Segurança pública.

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Tony Gean Barbosa de Castro

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Importante ponderação, digna de registro, das palavras de Mendes Pimentel, conquanto ainda se referindo ao artigo definidor de segurança pú-blica da já revogada Lei Portuguesa n.º 20/87, de 12 de Junho, confira-se:

...o conceito de segurança plasmado no referido artigo o é pela sua dimensão negativa, ou seja, como forma de reacção do Estado no caso de se ter ofendido a liberdade dos cidadãos...o que pretendo aqui acentuar é outra faceta, ou seja, a segurança enquanto meio de evitar a agressão; de impedir o nascimento do ilícito. É nesta di-mensão positiva que a segurança ganha um novo alento e, quanto a nós, protege melhor o cidadão. Talvez não seja visível, ou melhor di-zendo, tão mediática, mas é com certeza mais eficaz e a longo tempo mostrar-se-à mais acertada. Aquilo que se pretende, o que o Estado deve proporcionar aos cidadãos, é não tanto o ressarcir uma ofen-sa cometida, o que também é importante, mas criar condições para que estas nem sequer se verifiquem. A segurança assim entendida traduz-se no direito de exigir ao Estado prestações positivas que tutelam e garantam a liberdade do cidadão... (PIMENTEL, s. d.) (grifo nosso).

Nesse contexto, é tarefa da segurança pública, numa sociedade de-mocrática, em síntese, a manutenção da paz e da ordem pública, a salvaguar-da e a proteção dos direitos fundamentais dos cidadãos e do pleno exercício da cidadania, empreendendo ações de prevenção e repressão à ameaças e ris-cos à convivência social pacífica.

2.2 CONCEITO DE INTELIGÊNCIA

Conquanto não se vá dedicar aqui sobre este conceito com a profun-didade técnica e acadêmica típicas dos estudiosos do tema, podemos afirmar que a definição de inteligência2 (intelligence) envolve os aspectos da ativida-de, do produto dessa atividade e da unidade organizacional que a executa. A inteligência se destina ao assessoramento do processo decisório de uma dada organização. Aqui, cuidaremos de focar esse processo decisório na esfera go-vernamental, nomeadamente na segurança pública.

2 No Brasil, utiliza-se o vocábulo “inteligência” para se referir ao vocábulo “informações” da literatura lusitana. Entretanto, conforme esclarece Fernando do Carmo Fernandes, in REVISTA BRASILEIRA DE INTELIGÊNCIA. Brasília: Abin, v. 2, n. 3, set. 2006, p. 8. “durante muito tempo, empregou-se o vocábulo ‘Informações’ no lugar de ‘Inteligência’, o que repercutiu, consequentemente, nas traduções da época. Só em 1990, após a extinção do Serviço Nacional de Informações (SNI) e a criação da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE), é que o País passou a adotar o termo ‘Inteligência’.”

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O objeto, assim, da inteligência, nesse processo, é a coleta, análise e difusão de conhecimentos sobre fatos, domésticos e internacionais, dota-dos de imediata ou potencial influência sobre o processo decisório e sobre a ação governamental a ser implementada com base no conhecimento obtido e na análise realizada. O campo natural, portanto, de atuação da inteligência situa-se no nível estratégico decisório, buscando e analisando dados que pos-sam revelar ameaças ou oportunidades ao Estado, subsidiando a tomada de decisões, daí a sua relevância. Nas palavras de Antônio de Jesus Bispo:

...As informações, neste sentido restrito de processo, consistem na análise da informação no sentido da obtenção de conhecimento, constituem-se como patamar acima da informação, com o trabalho efectuado sobre os dados para lhes dar sentido no quadro dos propó-sitos a quem ele serve, seja o Estado, uma unidade militar o uma empresa. É a compreensão da informação relacionada, organi-zada e contextualizada. Parece-nos importante vincar esta dife-rença, porque é frequentemente veiculada ao nível da opinião pu-blicada, a ideia de que os serviços de informações constituem apenas um grande banco de dados, sendo a sua actividade principal fazer a gestão sistematizada desse manancial de informação...Importa por-tanto conhecer o Outro e o ambiente onde a ação se irá desenvolver. É este conhecimento o produto do esforço de qualquer serviço de in-formações... (BISPO, s. d., p. 95) (grifo nosso).

A inteligência representa ainda forte potencial de instrumentalizar o Estado para o enfrentamento às ameaças atuais e também futuras, o que se faz exequível a partir de uma capacidade cognitivo-prospectiva. Nessa linha de raciocínio, aduz Antônio de Jesus Bispo que:

“...O resultado do trabalho das Informações constitui quase sem-pre uma previsão, como se nos afigura óbvio...Sendo uma previsão, deverá ser calculada com base num modelo, ou num conjunto de modelos, de natureza dedutiva, indutiva ou abdutiva. Estes mo-delos são inerentes à própria actividade de informar, e não consti-tuem necessariamente modelos de interacção estratégica de caráter mais ou menos abstracto, embora os devam ter em consideração ...” (BISPO, s. d., p. 79).

Trata-se, portanto, a inteligência, de uma atividade especializada e permanente com o escopo de produzir “informação acionável” de interesse de determinada organização e, na hipótese, do Estado no âmbito da segurança pú-blica a quem os serviços de inteligência estão a servir. Esta actionable intelligen-ce, além de estar dotada de disponibilidade imediata, ou seja, inteiramente “à

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mão” quando necessária, demanda ainda a salvaguarda contra ações contrárias ou hostis. Sob esse prisma, observa novamente Antônio de Jesus Bispo que:

...O ciclo clássico da produção das informações compreende, em termos muito gerais, a direcção, a obtenção ou captura de dados, a protecção, a análise, a produção de resultados, a certificação de re-sultados e a disseminação aos potenciais utentes...a divulgação dos resultados obriga a certas regras restritivas, tanto no que concer-ne à necessidade de protecção da informação, do ponto de vista operacional, para encobrir intenções, como à necessidade de preser-var as fontes...Os Serviços de Informações do Estado estão sujeitos a pressões particulares, resultantes da sua natureza. Para garantirem o cumprimento dos seus objectivos, e pelas razões que se afloraram, devem adoptar o secretismo desejável relativamente à pesquisa, análise e divulgação de resultados; numa sociedade democrática aberta esta maneira de proceder nem sempre é muito bem aceite, em especial quando possam estar em causa as garantias dos direitos fun-damentais dos cidadãos, ou quando se cria a percepção de que isso poderá vir a acontecer... ” (BISPO, s. d., p. 80-87) (grifo nosso).

Observam ainda Isabel Gil Balué e Marta Sianes Oliveira do Nascimento que:

...O atual cenário, caracterizado pela globalização de mercados e pela inovação tecnológica, possibilitou a consolidação do conheci-mento como diferencial competitivo, imprescindível a quaisquer em-preendimento e atividade. Em decorrência, empresas e Estados têm estabelecido estratégias voltadas para sua proteção, especial-mente quando sua salvaguarda está diretamente relacionada à preservação de interesses econômicos e a questões de soberania... (BALUÉ e NASCIMENTO, 2006, p. 84-90)(grifo nosso).

2.3. Relação entre Inteligência e Segurança pública

A inteligência representa definitivamente a ferramenta útil para a boa gestão da segurança pública, servindo como sólido alicerce para que os Estados não se fragilizem ou sucumbam diante do crime, especialmente o já mencionado crime organizado. A se situar definitivamente na agenda política dos Estados, a segurança pública se mostra como uma realidade da mais alta complexidade a exigir adoção de uma política firme, sólida e consistente, de planejamento e de medidas que proporcionem resultados concretos e profícuos, tudo voltado à correção das vulnerabilidades, sendo impensável, inaceitável e perigoso correr o risco da falta de sistematicidade ou do improviso.

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Nesse processo, indispensável a obtenção, produção e análise de insumos informacionais de qualidade - bem como seu uso inteligente - sob pena de comprometimento ab initio das políticas públicas que os Estados intencionem adotar no terreno da segurança pública, sendo recorrente, mas reconhecidamente acertada a afirmação de que estas políticas serão tão mais efetivas quanto mais se fizerem balizar pela informação.

Assim, para a tomada de decisões no âmbito da segurança públi-ca, apresentam-se indispensáveis a coleta e a análise de subsídios infor-macionais aos atores do sistema de segurança, o que implica um trata-mento adequado destes elementos. Tais subsídios, que ainda se apresentam como dados brutos, não trabalhados, demandam a devida análise para que posteriormente sejam tranformados em conhecimento e, em seguida, intelli-gence, o que conduzirá à obtenção do conhecimento estratégico, possibilitan-do, assim, que os formuladores da política (decision-makers) possam tomar decisões estratégicas acertadas.

Faz-se necessário, portanto, reconhecer o papel fundamental da in-teligência na elaboração e execução de políticas de segurança pública, uma vez que este instrumental de apoio ao combate à criminalidade de alta com-plexidade, apresenta-se imprescindível ao suporte/assessoramento das auto-ridades governamentais (decision-makers) na elaboração de planos e políti-cas de segurança pública, suprindo-os da intelligence adequada à tomada de decisões a partir da identificação das ameaças e riscos e as possibilidades de neutralização e enfretamento.

Nesse processo, lembra Casimiro Morgado, Docente da Universida-de Lusíada, a necessidade de respeito à Constituição e à Lei e que os Serviços de Inteligência prestam-se para evitar a prática de atos que “pela sua natureza, possam alterar ou destruir o Estado de Direito constitucionalmente estabeleci-do” (MORGADO, 1998, p. 86). Ao se referir sobre a suposta concorrência ou coincidência entre as competências atribuídas ao Serviço de Segurança pública e aos Órgãos Policiais em Portugal, esclarece:

...Em face do quadro normativo existente, não só não existe coin-cidência ou concorrência, como existe, uma complementari-dade. Essa complementaridade existe no âmbito da segurança pú-blica (no aspecto da manutenção da ordem pública) – actividade desenvolvida pelo Estado para garantir a ordem, a segurança e a tranquilidade públicas...Às informações o que interessa é o estudo

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dos factos, dos fenômenos e das actividades, não tanto as condutas concretas dos agentes concretos...Mais do que saber e determinar se A ou B praticaram, concretamente, um crime, susceptível de pôr em causa a segurança pública e quais os seus actos de execução, interes-sa conhecer o fenómeno como modus operandi ou modus faciendi que pode, eventualmente, ser utilizado por outros agentes. Ora, para a investigação criminal é de extrema utilidade e até necessidade – para correcta percepção da situação concreta – o conhecimento do fenômeno na sua globalidade, o modus operandi genericamente utilizado e que pode, também, ter sido utilizado no caso concreto ... (MORGADO, 1998, p. 87-88) (grifo nosso).

O trecho supratranscrito, embora referindo-se ao quadro norma-tivo lusitano, traz explicíta a coerente e acertada ideia, a nosso ver, de que o sistema (e aqui podemos nos referir ao brasileiro), não deve operar de forma fragmentária e isolada, mas sim integrada e em cooperação, o que viabilizará, de forma mais efetiva, o combate aos alicerces do crime orga-nizado, otimizando-se os recursos e maximizando-se as ações e resulta-dos dos órgãos de segurança pública. Reforça esse raciocínio a afirmação de Michael Herman (1996, p. 204) para quem a mais elementar razão, dentre as diversas e que são favoráveis à cooperação, reside na possibi-lidade de haver sempre mais informação potencialmente disponível do que qualquer agência possa isoladamente coletar, entendimento que se aplica, de igual modo, ao tema do tópico seguinte3 que tem como um dos objetos a cooperação internacional.

3. Relação entre Segurança Pública, Inteligência e Co-operação Internacional

Conforme tem sido mencionado no decorrer deste artigo, o ob-jeto das informações é a coleta, análise e difusão de conhecimentos so-bre fatos, domésticos, mas também internacionais, dotados de imediata ou potencial influência sobre o processo decisório estatal. Nesse senti-do, lembra Cepik (2003) que a atividade de inteligência executada pelas agências também se debruçam, por óbvio, sobre “problemas e alvos rele-vantes para a política externa” em razão da necessidade, no terreno das relações internacionais, de que uma decisão na esfera da política interna-cional também se mostre estratégica.

3 “one basic reason for cooperation is that there is always more information potentially available than any agency can collect by itself”. (HERMAN, 1996, p. 204)

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No que diz com o enfrentamento do crime no contexto destas relações internacionais, sabe-se que o crime organizado de caráter trans-nacional, conforme a expressão já está a indicar, ignora fronteiras ou na-cionalidades e é indiferente a política ou ideologias, penetrando em todos os setores domésticos do Estado, públicos ou privados, e arregimentando seguidores em qualquer parte do planeta4.

Com efeito, as recentes transformações na economia mundial - marcadas pelo desenvolvimento tecnológico e incremento das relações co-merciais internacionais, culminando no contexto econômico atual da glo-balização -, trouxeram avanços significativos para a sociedade internacional. Paralelamente, no entanto, lançou novos desafios, alguns representativos de sérias ameaças5 à segurança pública de que é exemplo o já mencionado en-frentamento à criminalidade transnacional. Citamos a prática da lavagem de dinheiro, dos crimes cibernéticos e do terrorismo como exemplos de delitos que transpõem os limites territoriais dos Estados e isso a partir do elevado poder de articulação, planejamento e sofisticação do crime organizado cujos atores, não raro, pertencem a nacionalidades diversas, configurando, assim, o caráter transnacional das redes criminosas modernas.

Nesse contexto, a criminalidade, ao ultrapassar as raias limítrofes de um Estado, deixa de ser um problema local de uma cidade ou de uma nação e faz com que o problema passe a assumir contornos globais. E o enfrentamento, por sua vez, passou a exigir esforços de igual magnitude, o que não simples-mente abre espaço, mas impõe uma cooperação entre os Estados. Neste cená-rio adverso, pondera Maria Victoria Leos, referindo-se tanto às novas ameaças quanto à capacidade cognitivo-prospectiva já mencionada neste trabalho, que:

...O novo paradigma de ameaça trabalha com um inimigo desco-nhecido, geralmente não-governamental e não-convencional, que não respeita as regras estabelecidas. A nova ameaça se apresenta assimétrica e é “quase impossível de ser prevista com antecedência, sendo apoiada por um número ilimitado de criminosos, terroris-tas, traficantes de drogas, viciados em drogas e corruptos”. Dado este novo ambiente de imprevisibilidade, haverá, provavelmente,

4 Nas palavras do Sociólogo Espanhol Manuel Castells, em seu livro "Fim de Milênio", o chamado "crime global" constrói redes em escala planetária que são capazes de impactar a economia, a política e a segurança dos Estados, enquanto estes mesmos Estados, limitados por fronteiras geográficas, ficam à míngua de instrumentos repressivos consentâneos com a envergadura da ameaça.

5 Ameaças transnacionais de que são exemplo o terrorismo, o crime organizado transnacional, o tráfico internacional de drogas, de armas e de pessoas, lavagem de dinheiro e os crimes cibernéticos.

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uma procura maior pela inteligência no futuro, apresentando-se imperativo que a inteligência e as suas capacidades potenciais sejam totalmente compreendidas para, primeiro, evitar que se definam expectativas irrealistas que não possam ser atendidas pelos serviços de informações e, em segundo lugar, para garantir que os serviços de informações apóiem as necessidades dos decision makers "- desde o nível estratégico/nacional até os níveis operacio-nal e tático... (LEOS, 2011).

O combate às mencionadas ameaças, nomeadamente à criminali-dade organizada transnacional, implica, portanto, a nosso sentir, uma indis-pensável articulação de ações entre os Estados e instituições afetados, dentro do enfrentamento ao desafio de aparelhar e otimizar as redes de cooperação internacional. Nesse processo, impõe-se a observância e a adoção de alguns princípios de cooperação entre as instituições policiais destes países, o que depende, dentre outros fatores6, não só de um bom trabalho dos analistas, mas também da vontade política dos dirigentes dos Órgãos de Segurança pública7. Para se avançar nesse processo de cooperação, é preciso, conforme expõe Leos (2011), dentre outros aspectos:

a) estabelecer sólidas redes de relacionamento, escopo atingível a partir de iniciativas interinstitucionais precedidas de conferências profissio-nais e intercâmbio de pessoal;

b) Construir confiança e respeito mútuos - na construção das men-cionadas redes de informações, os profissionais de inteligência devem apren-der a contar um com outro e partilhar os dados relevantes;

c) partilhar uma visão comum - um objetivo comum para todos os profissionais de inteligência deve ser o de fornecer o produto mais completo possível;

6 E de outros princípios como os da igualdade, reciprocidade e benefício mútuo.

7 Sobre vontade política, esclarece Valentin Kiorsak que “Por cooperação entre dois serviços de Inteligência, compreendemos a realização por eles, nos limites de suas competências, por incumbência ou com autorização da alta direção de seus países, de ações conjuntas em áreas operacionais de interesse recíproco. Em face disso, subentende-se por ações conjuntas tanto medidas operacionais concretas como o intercâmbio de informações de Inteligência de interesse mútuo...E por que o “por incumbência ou com autorização da alta direção de seus países”? Isso é devido ao fato de que a interação dos serviços de Inteligência é parte integrante das relações entre Estados e, por isso, apenas o poder dirigente resolve se deve estabelecer e desenvolver contatos com esse ou aquele Estado em uma área tão melindrosa e delicada como é a atividade dos serviços de Inteligência.” (KIORSAK, 2006, p. 71-82) (grifo nosso).

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d) Minimizar questões territoriais – representa uma utopia imaginar que tais questões não se farão presentes dentro dessa iniciativa. No entanto, isso deve ser minimizado, desenvolvendo-se um plano para que estas ques-tões sejam abordadas à medida que forem surgindo, o que requer a consciên-cia de que os interesses da nação, salvaguardados a partir de uma segurança públicacional, estão acima dos interesses internos da Agência;

e) Incentivar a comunicação contínua - fundamental para superar todas as barreiras em colaboração e

f ) eliminar os impedimentos – trata-se de uma responsabilidade de todos evitar situações que possam causar entraves à colaboração, ado-tando-se medidas imediatas contra qualquer obstáculo que venha surgir com esse potencial8.

No atual cenário globalizado em que as ameaças transnacionais afetam áreas para além do conceito tradicional de defesa nacional9, sobrelevam, com elevado grau de importância, insista-se, as ações coordenadas pelos atores do Estado na esfera internacional, e isso a despeito de haver empeços ou dificul-dades para a boa execucão da cooperação internacional10 , tudo a implicar a

8 Sobre outros princípios capazes de proporcionar resultados e eficácia na cooperação internacional dos serviços de Inteligência, ver Valenti Kiorsak segundo o qual essa eficácia depende, primordialmente, da observância dos seguintes princípios: voluntariedade; igualdade de direitos; não-ingerência nos assuntos internos;“desideologização”; vantagem mútua; possibilidades das partes; respeito a algum secretismo em casos, e.g,. de riscos para a fonte; cuidados na utilização das informações para não causar danos a terceiros etc. (KIORSAK, 2006, p. 71-82).

9 Conforme bem expõe Ana Paula Brandão “Tradicionalmente, o estudo sobre questões de segurança incidia sobre as dimensões político-militar e estadual. No pós-Guerra Fria, afirma-se, crescentemente, a investigação sobre as dimensões não militar e global da segurança, num contexto de profunda mudança da sociedade internacional que estimula a reflexão sobre a segurança como conceito, como disciplina e como política. Habituados a equacionar o termo ‘segurança’com ‘militar’, ‘defesa’ e ‘Estado’, somos hoje confrontados com realidades e com propostas teóricas que desafiam essa forma de pensar. As propostas são diversas, indo desde a extensão dos sectores da segurança à análise da construção dos conceitos, passando pelo alargamento dos actores da segurança. A nível da prática política tem-se afirmado a tendência para o alargamento do conceito e para nele incluir questões como a degradação ambiental, o crime internacional organizado, a propagação transnacional de doenças, o subdesenvolvimento e os movimentos migratórios internacionais em grande escala.” (BRANDÃO, 1998, p. 37) (grifo nosso).

10 Tais como diferenças nas percepções de ameaça, de segurança, de doutrinas e procedimentos de inteligência, de prioridades, de sistemas jurídicos e legislações internas, de capacidades de informações, linguagem e cultura etc. Sobre situações que dificultam a cooperação ou reduzem substancialmente sua eficácia, cf. KIORSAK, 2006, p. 71-82. Para esse autor: “Em geral, diversas condicionantes de caráter objetivo e subjetivo, que podem favorecer ou frear o mencionado processo, influenciam na cooperação dos serviços de Inteligência – assim como em qualquer forma de atividade humana. Alguns motivos objetivos que dificultam a interação são a ausência de interesses comuns, a distância e as possibilidades financeiras e

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necessidade de diversos ajustes de harmonização. Com efeito, o caráter trans-nacional das atuais ameaças conduz inevitavelmente a uma política voltada à cooperação de intelligence para fazer frente a essa nova realidade de transnacio-nalização dos desafios. Na linha de defesa dessa necessidade, sustenta Kiorsak:

...Por cooperação entre dois serviços de Inteligência, compreendemos a realização por eles, nos limites de suas competências, por incum-bência ou com autorização da alta direção de seus países, de ações conjuntas em áreas operacionais de interesse recíproco. Em face disso, subentende-se por ações conjuntas tanto medidas operacionais con-cretas como o intercâmbio de informações de Inteligência de interesse mútuo...Os líderes de todos os países têm a clara consciência de que apenas ações conjuntas e coordenadas dos serviços de Inteli-gência podem identificar, prevenir e impedir a ação de terroris-tas e de membros de estruturas criminosas que planejam e rea-lizam crimes contra a civilização, a vida e a saúde dos cidadãos no planeta. Compreendem também que o trabalho de combater as ameaças atuais é cometido, primordialmente, aos serviços de Inte-ligência, uma vez que apenas eles são capazes de solucioná-las com eficácia, por meio de recursos e métodos específicos da atividade. Da mesma forma, é razoável constatar que os próprios profissionais dos órgãos de Inteligência e de Contra-Inteligência sabem com perfeição que só é possível combater as ameaças atuais de caráter internacio-nal e transnacional através da cooperação com os colegas estrangei-ros. Nesse sentido, é imprudente subestimar a importância da inte-ração dos serviços de Inteligência no momento...A atual realidade mundial, mais precisamente os desafios transnacionais, que representam ameaça ao mundo todo, determina, aos serviços de Inteligência, a necessidade de manter relações de interação com o objetivo de contrapor-se ao terrorismo internacional, ao narcotráfico e ao crime organizado. O termo “crime organi-zado” refere-se, neste texto, a ações extremamente perigosas, como, comércio ilegal de armas, contrabando, tráfico humano, lavagem de dinheiro, falsificação de dinheiro e de documentos e fraudes finan-ceiras de grande monta, realizadas por organizações criminosas ... (KIORSAK, 2006, p. 71-82) (grifo nosso)

Lançando mão novamente das pertinentes manifestações de Leos:

...as agências de informações de cada Estado devem desempenhar um papel fundamental na recolha, processamento e análise de in-formações necessárias para a tomada de decisão de seus respectivos

operacionais limitadas. Aos subjetivos podemos relacionar a divergência de visões de cada uma das partes quanto à cooperação, a existência de atritos políticos entre os Estados, a falta de desejo de interagir e uma posição preconcebida quanto a determinado serviço de Inteligência...”

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líderes... É importante notar que as informações estratégicas não devem ser para o benefício exclusivo das organizações de informa-ções. Informações estratégicas são um instrumento de Estado, a ser-viço dos interesses do Estado e como tal deve ter laços estreitos com outras entidades políticas do Estado, tais como defesa, segurança, relações exteriores etc... Além disso, o desenvolvimento e execução de informações estratégicas devem ser parte do plano estratégico do Estado, de onde estas derivam a sua amplitude e profundidade de ação. Esse planejamento deve incluir também os níveis de integração e cooperação com outras organizações governamentais, bem como as agências de informações estrangeiras - a chave para o desen-volvimento das organizações interagênciais... (LEOS, 2011, p. 21) (grifo nosso).

4. CONVENÇÃO DE PALERMO, ACORDO SCHENGEN E MERCOSUL

Dado que o crime organizado transnacional tem imposto a necessi-dade de configuração de um nova arma no seu enfrentamento consistente na cooperação internacional a municiar os Estados afetados de mais um instru-mento para o efetivo enfretamento do terrorismo, do tráfico internacional de drogas, de armas e de seres humanos, lavagem de dinheiro dentre outros, cumpre fazer breve referência neste capítulo a alguns mecanismos (regionais e internacionais) de enfrentamento com respaldo nesta cooperação.

Cumpre, inicialmente, fazer consignar a existência, no âmbito do Espaço Europeu, do Acordo Schengen11 e da necessidade de cooperação entre os Estados signatários sob pena de comprometimento do escopo es-trutural do referido Acordo - inclinado à supressão gradual dos controles nas fronteiras no Espaço Schengen12 e da efetiva liberdade de circulação de pessoas nesse território -, quando a criminalidade transnacional passa a

11 Schengen é a designação dada a dois Acordos Internacionais (um Acordo inicial, Acordo de Schengen de 14 de Junho de 1985 e outro posterior denominado Convenção de Aplicação do Acordo de Schengen de 19 de Junho de 1990, tendo entrado em vigor em 26 de Março de 1995) assinados por um conjunto de Estados Membros da EU visando a livre circulação de pessoas sem a necessidade de apresentação de passaporte nas fronteiras. Disponível em http://europa.eu/legislation_summaries/justice_freedom_security/free_movement_of_persons_asylum_immigration/l33020_pt.htm. Acesso em 12.11.2011.

12 O espaço territorial criado em decorrência do acordo é conhecido como Espaço Schengen que foi integrado no quadro jurídico e institucional da União Européia. No entanto, nem todos os países que cooperam no âmbito do acordo Schengen são membros do Espaço Schengen. Disponível em http://europa.eu/legislation_summaries/justice_freedom_security/free_movement_of_persons_asylum_immigration/l33020_pt.htm. Acesso em 12.11.2011.

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proporcionar, em realidade, a livre circulação de criminosos e a propagação de ameaças à segurança pública dos países membros. Nesse sentido, prevê o Acordo Schengen, mais nomeadamente a sua Convenção de Aplicação, medidas de cooperação policial internacional, assumindo, a troca de infor-mações, papel de relevo e preponderante conforme se depreende dos itens 1 e 2 do artigo 46 do Acordo, in verbis:

1. Em casos especiais, cada Parte Contratante pode, em cumprimen-to da sua legislação nacional e sem que tal lhe seja solicitado, co-municar à Parte Contratante interessada informações que se possam revelar importantes para esta, com vista à assistência em matéria de repressão de crimes futuros, à prevenção de crimes ou à prevenção de ameaças para a ordem e segurança públicas.

2. As informações serão trocadas, sem prejuízo da cooperação nas regiões fronteiriças prevista no n.º 4 do artigo 39.º, por intermédio de um órgão central a designar. Em casos especialmente urgentes, a troca de informações, na acepção do presente artigo, pode efectuar-se directamente entre as autoridades de polícia em causa, salvo dispo-sição nacional em contrário. O órgão central será informado do facto o mais rapidamente possível.

No que toca à prevenção e repressão ao tráfico internacional de dro-gas, observa José Pestana (1998, p. 73) , que, de acordo com os artigos 70 e ss. do Acordo Schengen, as partes obrigam-se, dentre outras medidas:

...a proceder ao intercâmbio de informações e a uma assistência mútua relativamente à dimensão do fenômeno e à identificação das redes envolvidas e dos indivíduos que as integram. Incentiva-se a análise permanente e actualizada da criminalidade inter-nacional ligada à droga, ao seu tráfico, aos meios e rotas da sua penetração...Quanto à vigiliância que deve ser exercida sobre o comércio ilegal de estupefacientes e de susbstâncias psicotrópicas, as Partes Contratantes obrigam-se, nos termos do artigo 76.º, à prestação mútua de informações sobre as medidas que tomam para esse efeito...(grifo no original).

Já no âmbito do Mercosul, várias razões (significativo fluxo de pes-soas entre os países do bloco, facilidade de migração, ocorrência de delitos e suspeitas de atividades ligadas ao terrorismo na tríplice fronteira etc), im-põe a necessidade de cooperação e um trabalho conjunto entre as agências dos países membros, coletando, analisando e disseminando as informações, num intercâmbio que se apresenta mesmo indispensável quando se almeja estabelecer um ambiente propiciador de construção de cenários (capacidade

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cognitivo-prospectiva) e e de redução de riscos no processo de decisão estra-tégica dos Chefes de Estado, especialmente na área de segurança pública e, mais especificamente, de combate ao crime transnacionalizado.

Nesse sentido, destaca Ribeiro (2006) a importância de se “ressal-tar a estrutura de inteligência em função dos problemas, ameaças e necessidades conjuntas dos Estados que formam a Região.” O foro adequado para discussão destas ameaças, e demais políticas comuns de segurança pública ou de in-teligência entre os Estados-partes (Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai) e Associados (Bolívia, Chile, Peru, Colômbia, Equador e Venezuela) do MER-COSUL, é a Reunião de Ministros do Interior (RMI)13 da qual também emanam atos normativos atinentes à integração policial entre os países. Nesta RMI, discutem-se temas como o combate ao narcotráfico, terrorismo, lava-gem de dinheiro, contrabando, roubo/furto de veículos automotores, tráfico ilícito de material nuclear e/ou radiativo, migrações clandestinas etc.

Diversamente da maioria dos países do bloco, que possuem minis-térios distintos para tratar de assuntos vinculados à Justiça e à Segurança Pública (Interior), no Brasil cabe ao Ministério da Justiça cuidar de ambos os temas. Assim, tanto na Reunião de Ministros da Justiça do Mercosul, foro adequado para assuntos de cooperação jurídica entre os Estados-partes, quanto na Reunião de Ministros do Interior do bloco, fazem-se presentes o Ministério da Justiça brasileiro e do Interior de cada Estado, quer membro pleno quer associado.

A Reunião de Ministros do Interior do Mercosul (RMI) foi criada a partir da Decisão nº 07/96, tendo como antecedente imediato o acordado na VI Reunião de Ministros da Justiça do Mercosul (22 de novembro de 1996). Na primeira reunião oficial que teve lugar em 30 maio de 1997 na cidade de As-sunção, Paraguai, fixou-se como prioridade do grupo "...avançar na cooperação e coordenação das políticas e tarefas relativas à segurança e à harmonização das legislações em áreas pertinentes, a fim de aprofundar o processo de integração e dar segurança aos habitantes dos países que compõem o Mercado Comum do Sul." 14

Ainda no contexto da necessidade de desenvolvimento de meca-nismos de cooperação entre as Forças de Segurança e Policiais dos países integrantes do Mercosul a fim de potencializar o enfrentamento a todas as

13 Reunião de Ministros do Interior. Disponível em www.mj.gov.br. Acesso em 06.06.2012.

14 Reunião de Ministros do Interior. Disponível em www.mj.gov.br. Acesso em 06.06.2012.

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formas de delinquência organizada, cumpre fazer menção ao Sistema de In-tercâmbio de Informação de Segurança (SISME) do bloco - autorizado pelo MERCOSUL/RMI/ACORDO N° 01/07 - cujo regulamento de organi-zação e funcionamento (MERCOSUL/RMI/ACORDO Nº 03/07) prevê, no artigo 18, que os dados pessoais a serem intercambiados para os fins de seu tratamento devem ser certos, adequados, pertinentes e não excessivos em relação ao âmbito e finalidade, que será a cooperação internacional entre organismos de segurança para a luta contra o terrorismo, o narcotráfico, crime organizado e delitos contra as pessoas e seus bens.

O SISME reforça o reconhecimento de que o fenômeno da crimina-lidade transnacional exige para além de uma actionable intelligence, um espí-rito de cooperação em que o intercâmbio da informação disponível ocorra de forma efetiva a fim que os esforços comuns no campo da segurança pública e de defesa do cidadão produzam os resultados positivos almejados.

Citamos, por fim, já no âmbito mais específico da atuação jurídico-criminal de investigação das forças policiais, a existência da Convenção e Protocolos das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, conhecida como Convenção de Palermo15, sob a égide da qual os Estados devem adotar como instrumento na luta contra o crime organizado transna-cional o estabelecimento de acordos bilaterais ou multilaterais como instru-mentos de investigação no contexto da cooperação internacional.

A Convenção prevê ainda que as agências dos Estados possam criar acordos de investigação conjunta de casos que eles mesmo estipularem, tudo em plena conformidade com o princípio da igualdade soberana das nações e de acordo com os termos dos acordos ou convênios celebrados.

15 A Convenção de Palermo, adotada no ano de 200 pela Assembléia da Organização das Nações Unidas (ONU), na cidade de Nova Iorque/EUA, é o nome pelo qual é mais conhecida a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional. Esse instrumento internacional e multilateral teve três de quatro instrumentos assinados na cidade de Palermo, na ilha de Sicília, na Itália e foi subscrito por 147 países, que se comprometeram a definir e combater o crime organizado. Segundo Rodrigo Carneiro “Dizer que três de quatro instrumentos da Convenção de Palermo foram subscritos na cidade homônima, pode causar estranheza. Explica-se. A Convenção de Palermo é o ato normativo internacional mais abrangente no combate ao crime organizado transnacional, que prevê medidas e técnicas especiais de investigação na prevenção, controle e combate à criminalidade organizada. Outros três tratados internacionais foram adotados pela ONU para, em conjunto e integrados com a Convenção de Palermo, alavancar a iniciativa mundial contra a crescente investida da criminalidade organizada transnacional, uniformizar e balizar o procedimento das autoridades encarregadas da aplicação da lei. São instrumentos específicos e pontuais que complementam o teor da Convenção de Palermo e, por isso, são chamados de protocolos adicionais.”. CARNEIRO, 2011)

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Para combater os crimes definidos na mencionada Convenção de Palermo, o artigo 43 estipula a cooperação policial internacional ao defi-nir que os Estados Partes cooperarão estreitamente entre si em linha com os sistemas jurídicos e administrativos nacionais no escopo de aumentar a eficácia da ação das estruturas responsáveis por esse enfretamento, sendo que cada Estado poderá, em particular, adotar várias medidas, dentre as quais o estabelecimento de canais de comunicação entre as respectivas autoridades, instituições e autoridades competentes, a fim de tornar mais simples, seguro e rápido o intercâmbio de informações relacionadas com os aspectos dos de-litos abrangidos pela Convenção.

Os Estados deverão também, de acordo com a Convenção, cooperar com outros Estados Partes na realização de investigações relativas a crimes dela decorrentes; facilitar uma coordenação eficaz entre as autoridades e institui-ções e promover o intercâmbio de pessoal e de profissionais da perícia, incluin-do o destacamento de oficiais de ligação em relação aos acordos e os acordos bilaterais assinados entre os Estados Partes interessados; trocar informações com outros Estados Partes sobre os meios e métodos específicos utilizados pe-los grupos criminosos organizados, incluindo, se possível, rotas e veículos, uso de identidades falsas, documentos de identificação falsos ou alterados, ou outro meio utilizado para ocultar a natureza da atividade ilegal etc.

Reside ainda como obrigação aos Estados Partes da Convenção de Palermo, avaliar a oportunidade de celebrar acordos bilaterais ou mul-tilaterais para a colaboração direta entre as próprias instituições responsá-veis pela combate ao crime organizado e, na ausência de qualquer acordo, os Estados Partes podem (“devem”) considerar a Convenção como base jurídica para a cooperação entre suas instituições policiais, esforçando-se para cooperar com seus próprios meios no enfrentamento ao crime orga-nizado transnacional.

Registre-se que por ocasião da primeira reunião de ministros em matéria penal que teve lugar na Cidade do México/México em 2008, pro-pugnou-se pelos esforços e iniciativas de cooperação voltados à ampliação do conhecimento sobre os diversos aspectos e o impacto da criminalidade nos Estados membros, visando ao fortalecimento das estruturas de políti-cas de segurança pública. Invocou-se, assim, pelo fortalecimento dos canais de comunicação e do intercâmbio de informações, práticas e experiências entre os Estados membros no combate aos delitos atentatórios à segurança

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pública bem como pela adoção por estes mesmos Estados de medidas esti-muladoras de intercâmbio de informações entres as instituições policiais com vistas a prevenir e reprimir a criminalidade transnacional16.

5. CONCLUSÃO

O presente trabalho buscou analisar e expor a relação existente en-tre inteligência (intelligence), segurança pública e a cooperação internacio-nal como necessariamente conectadas para potencializar o enfrentamento à criminalidade organizada, sobretudo quando atuante para além das raias limítrofes dos Estados, ou seja, com caráter transnacional.

Verificou-se, no contexto desfavorável trazido pelas novas amea-ças decorrente do crime organizado de caráter transnacional, que urge aos Estados promover a cooperação internacional e assistência mútua entre as instituições policiais, a partir da troca de informações e experiências bem su-cedidas em segurança pública, de um modo geral, e, em especial, de combate à referida modalidade de crime transnacional.

Descurando-se das informações e negligenciando a necessária co-operação entre os Estados afetados pelas referidas ameaças, configura-se o quadro de fragilidade e vulnerabilidade a afetar a convivência pacífica e segura dos cidadãos bem como própria existência do Estado cujo papel, dentre outros, é a salvaguarda de direitos básicos de seus integrantes. Sem intelligence e sem cooperação internacional, os Estados, portanto, à mín-gua de uma segurança pública efetiva, colocam em risco e não asseguram a livre fruição de tais direitos pelos seus cidadãos, mas não é isso que consta do contrato social subscrito por todos eles.

Tony Gean Barbosa de Castro

Graduado em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília - UnB. Bacharel em Direito pelo Centro Universitá-

rio de Brasília - UniCeub. Mestrando em Ciências Policiais: Criminologia e Investigação Criminal. Delegado de Polícia

Federal e Professor de Direitos Humanos na Academia Nacional de Polícia

E-mail. [email protected]

16 “COMPROMISSO PELA SEGURANÇA PÚBLICA NAS AMÉRICAS” (Aprovado na sétima sessão plenária, realizada em 8 de outubro de 2008).

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ABSTRACT

This paper analyses the relationship between intelligence and public safety as well as the connec-tion between these two realities with international cooperation to implement and strengthen public safety, in general, and, in particular, to support the effective confronting organized crime specially when it exceeds the boundaries of the States.

KEY WORDS: intelligence, public safety, international cooperation, transnational orga-nized crime.

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A Gestão do Desempenho Policial: importância do feedback

RODRIGO DE SOUZA CARVALHODepartamento de Polícia Federal - Brasil

Dud

RESUMO

Este estudo teve por objetivo identificar dificuldades e obstáculos enfrentados por gestores de uma instituição policial federal no fornecimento de feedbacks a seus subordinados após a avaliação de desempenho e durante a execução de atividades rotineiras, procurando demonstrar a conexão entre a comunicação interpessoal voltada para o exercício da liderança de equipes com o nível de desempenho e motivação dos colaboradores. No referencial teórico extraído da doutrina, foram conceituados o que é feedback e o que vem a ser avaliação de desempenho, buscando desenhar uma possível conexão entre os dois institutos em uma cultura designada como cultura do diálo-go que se pretende ser factível em organizações policiais, mesmo que ainda impregnadas de forte hierarquia e disciplina oriundas de um passado balizado pelo autoritarismo. Para dar ao estudo um caráter prático e necessário ao entendimento do problema, foram entrevistados doze (12) gestores que exercem posições de chefia em uma instituição policial federal caracterizada por ser uma organização de cunho não militarizado e voltado para a atividade de polícia judiciária. Restou visível na análise das respostas obtidas a importância dada ao instrumento da avaliação de desempenho e ao uso quotidiano do feedback como ferramenta de coesão do grupo em torno do alcance dos objetivos institucionais da instituição. A maior deficiência apontada foi na falta de capacitação para o exercício da atribuição de interlocutor de equipes. A conclusão do autor é no sentido de que a adoção de uma cultura do diálogo voltada para a utilização de feedbacks contínuos durante a realização das tarefas rotineiras e após as avaliações de desempenho resul-tará em uma maior percepção da missão da instituição e dos objetivos a serem perseguidos para prestação de um serviço público de qualidade.

PALAVRAS-CHAVE: serviço público, organização policial, utilização de feedback, avaliação de desempenho, dificuldades.

INTRODUÇÃO

A globalização e a revolução tecnológica impuseram uma necessi-dade de adaptação constante das organizações públicas e privadas. Nesse

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mundo novo as ferramentas de comunicação são extremamente neces-sárias para garantia de um desempenho de excelência. As organizações públicas passaram a incorporar tendências do mundo corporativo como a adoção de um modelo eficiente de gestão do desempenho humano, de-senvolvimento de competências e necessidade do desenvolvimento e da retenção do capital intelectual. Nesse diapasão, as organizações policiais, enquanto espécie do gênero organizações públicas, necessitam adotar mecanismos de gestão que lhe possibilitem prestar serviços de qualidade ao cidadão-cliente. A cultura organizacional policial é dotada de um viés hierárquico muito forte que necessita ser harmonizado com a necessi-dade de aproximação e diálogo constante entre chefias e subordinados para angariar velocidade na implementação de decisões estratégicas e na aplicação das pessoas certas nos processos internos.

A palavra de ordem do momento é flexibilidade para contornar os entraves da burocracia herdada de um modelo administrativo clássico, fundamentado nas ideias de Taylor e Fayol. A tecnologia muda vigoro-samente a cada dia e as organizações devem acompanhar as mudanças capacitando seu capital humano em prol da coletividade a que pretende prestar um serviço de qualidade. O enfoque no serviço público passa a ser a Administração Gerencial que vê o usuário-cidadão como cliente que precisa ter suas necessidades atendidas.

Nesse contexto, o presente trabalho pretende identificar as dificul-dades encontradas pelos ocupantes de cargos de chefia de uma organização policial civil em dar feedback para os servidores do órgão e em que medida essa ausência de uma cultura participativa e centrada na retroação da comu-nicação implica em desmotivação e baixo rendimento. As conceituações de gestão do desempenho foram retiradas principalmente da obra Gestão de Desempenho, de SOUZA (2009).

1. OBJETIVOS

Procurou-se nesse trabalho apontar as dificuldades enfrenta-das pelos gestores de organizações policiais para fornecer feedback aos servidores após as avaliações de desempenho e no decorrer da rotina de trabalho em decorrência de uma cultura dotada de valores centrados na hierarquia e na disciplina.

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Na busca desse objetivo será necessário conceituar e definir o mo-delo de gestão por desempenho, as várias formas de avaliação de desem-penho existentes, a importância da formulação estratégica de objetivos e metas institucionais com base na missão, visão e valores da instituição, o processo de feedback como meio de motivação do servidor, bem como identificar algumas das possíveis dificuldades de implantação da gestão por competências no serviço público.

O tema é extremamente relevante na medida em que busca iden-tificar as causas da dificuldade da utilização do feedback na política de im-plantação de um modelo gerencial de administração da entidade policial investigada que busca estabelecer um mecanismo aprimorado de gestão do desempenho humano. O feedback é uma importante ferramenta de alinha-mento estratégico na medida em que reafirma as metas, objetivos, valores, missão e visão da instituição.

2. REFERENCIAL TEÓRICO

2.1. FEEDBACK

Segundo LEME (2007), a história da origem do termo feedback está relacionado com o lançamento do primeiro foguete enviado à lua. Durante o processo de lançamento do foguete sua trajetória é analisada por meio de troca de mensagens entre o foguete e a base de lançamento, ocorrendo uma constante verificação do curso e correção do mesmo em caso de desvio. Esse acompanhamento da trajetória do foguete com correção de curso dada por meio de mensagens ficou conhecido como feedback. Então, nessa história contada pelo autor, o feedback pode ser compreendido como fluxo constante de comunicação visando a correção da rota em torno de uma meta previa-mente estabelecida. É uma aferição constante dos resultados alcançados e alteração de ações visando aprimorar a eficiência e eficácia do processo em torno dos objetivos estipulados.

Aliando essa fábula para a vida organizacional, LEME (2007) asse-vera que em sua visão o foguete representa cada colaborador da empresa; a base de lançamento seria representada pelos gestores; a lua representaria os objetivos organizacionais; e, por fim, os engenheiros envolvidos no processo seriam representados pelo RH das empresas.

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Dessa forma, após fazer essa comparação, o autor conclui que feedba-ck significa INFORMAÇÃO. Necessário afirmar que o fluxo dessa informa-ção é necessário não apenas no caso do colaborador incidir na rota errada e precisar corrigi-la, mas também para afirmar que a rota escolhida está correta e deve ser continuada. Se o colaborador estiver agindo corretamente e não receber confirmação dessa informação, poderá por conta própria mudar as coordenadas gerando então o problema.

ROCHA (2001) assevera que a palavra feedback de origem da língua inglesa, tornou-se de uso comum no Brasil, especialmente no am-biente organizacional. Para ele, o termo vem sendo usado com grande freqüência, sempre no sentido de dar retorno a alguém sobre algo. Para ARAÚJO (apud ROCHA, 2001), “o conceito de feedback, herdado da teoria dos sistemas, significa na tradução literal retroalimentação, isto é, processar informações e transmiti-las ao sistema para a continuidade do seu funcionamento”. O feedback faz parte da vida do ser humano, já que a todo momento recebemos e damos feedback a nossos familiares, amigos, colegas de trabalho, no trânsito.

Para LEME (2007), no entanto, deve ficar bem claro que feedback deve sempre ser apreendido no sentido de informação, não é opinião, não é “bronca” e não é sugestão ou conselho. Deixa claro que a informação deve ser objetiva visando adequar o comportamento do colaborador aos obje-tivos organizacionais ou mantê-lo informado que está no caminho certo. Deve propiciar uma interpretação clara de que se está agindo de acordo com a missão da empresa. Para se dar um bom feedback deve ser enfatizado sempre o comportamento e suas conseqüências. Não se deve fazer julga-mento sobre a pessoa responsável pelo comportamento. O comportamento está ou não de acordo e por isso deve ser alterado visando o alcance de resultados. Isso deve ser frisado sempre.

Segundo ROCHA (2001, p. 36), o feedback pode ser classificado de duas formas: O positivo e o negativo. O feedback positivo é aquele reforça um comportamento, que vai de encontro a nossas virtudes, atos e atitudes. O feedback negativo seria responsável por demonstrar objetivamente onde estão nossas deficiências, o que precisamos corrigir.

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A tarefa de dar e receber feedback não é fácil já que não é confortável apontar e ter apontado seus erros e deficiências. O processo de feedback acaba por denotar uma característica de julgamento e avaliação na percepção dos envolvidos – o que gera desconforto e insegurança.

Para MACÊDO (2003, p. 30),

Feedback – ou crítica construtiva, na interpretação de Bee e Bee (2000) – nada mais é do que uma mensagem a uma pessoa ou gru-po, visando dar-lhe informações sobre como sua atuação está afetan-do os demais. Portanto, trata-se de um mecanismo que aproveita o relacionamento interpessoal como oportunidade de desenvolvi-mento. Porém, se mal utilizado, o feedback pode se tornar um “gol contra”, prejudicando a motivação e a auto-estima das pessoas, e au-mentando o risco de conflitos no ambiente de trabalho.

Continuando o raciocínio expositivo, relata que o mecanismo do feedback pode ser utilizado para manter e aprimorar desempenhos, orientar e aconselhar pessoas, adquirir novas aptidões, desenvolver talen-tos e comprometimento. Dessa forma, é o instrumento mais usado no processo de coaching.

A sistematização da avaliação de múltiplas fontes ou feedback 360º foi explorada na teoria conhecida como Janela de Johari. A teoria citada foi idealizada por Joseph Luft e Harry Ingham, de cujos nomes se originou a sigla Johari e relaciona as áreas de personalidade. Em um gráfico, são re-presentados dois eixos perpendiculares que informam o processo de dar e solicitar feedback, surgindo uma “janela” representada pelos quadrantes designados pelas ênfase relacionadas (MACÊDO, 2003, p. 27-28).

Consoante MACÊDO, solicitar feedback é representado pelo eixo horizontal, sendo conceituado pelo processo pelo qual a pessoa busca obter informações sobre si mesma, tendo interesse em saber o que pensam a seu respeito. Dessa forma, quanto maior for essa medida, mais ela se empenhará em obter essas percepções e, portanto, mais ficará se conhecendo. Por sua vez, dar feedback é representado pelo eixo vertical, sendo conceituado como o processo pelo qual a pessoa diz o que pensa dos outros, o seja, como ela os percebe.

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Figura 1 - Janela de Johari

Fonte: Moscovici, 1985, p. 32 (apud Macêdo, 2003)

Com base nessa teoria sobre preferências pessoais de dar ou re-ceber feedback podem ser traçadas quatro tendências principais repre-sentadas respectivamente pelos estilos: eu aberto, eu cego, eu oculto e eu desconhecido.

No estilo eu aberto, o comportamento da pessoa que usa intensa-mente os processos de dar e solicitar feedback é claro e aberto havendo menor probabilidade de se ocorrerem erros de interpretação. No entanto, confor-me frisado pelo autor, como as pessoas tendem a desconfiar dessa franqueza, principalmente no ambiente competitivo das organizações, poderão surgir posições defensivas. Não obstante, o convívio poderá fazer desaparecer essa insegurança inicial, sendo que a confiança passará a prevalecer nesse tipo de relacionamento. Esse é o estilo considerado ideal por permitir trocas cons-tantes de informação entre os participantes com autenticidade. Seria a nosso ver o estilo buscado por SOUZA (2002), quando se refere à necessidade de se adotar uma cultura do diálogo.

O estilo interpessoal eu cego relaciona a pessoa que gosta de dizer livremente o que pensa sobre os outros, dando feedbacks contínuos. No en-tanto, reage de forma negativa aos feedbacks recebidos e por essa razão pode ser tida como egoísta e agressiva, considerada excessivamente crítica.

No estilo interpessoal do eu oculto a pessoa gosta de solicitar e rece-ber feedbacks para saber o que os outros pensam dela. No entanto, não gosta

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motivação e a auto-estima das pessoas, e aumentando o risco de conflitos no ambiente de trabalho.

Continuando o raciocínio expositivo, relata que o mecanismo do feedback pode ser utilizado para manter e aprimorar desempenhos, orientar e aconselhar pessoas, adquirir novas aptidões, desenvolver talentos e comprometimento. Dessa forma, é o instrumento mais usado no processo de coaching.

A sistematização da avaliação de múltiplas fontes ou feedback 360º foi explorada na teoria conhecida como janela de Johari. A teoria citada foi idealizada por Joseph Luft e Harry Ingham, de cujos nomes se originou a sigla Johari e relaciona as áreas de personalidade. Em um gráfico, são representados dois eixos perpendiculares que informam o processo de dar e solicitar feedback,surgindo uma “janela” representada pelos quadrantes designados pelas ênfase relacionadas (MACÊDO, 2003:27/28). Consoante MACÊDO, solicitar feedback é representado pelo eixo horizontal, sendo conceituado pelo processo pelo qual a pessoa busca obter informações sobre si mesma, tendo interesse em saber o que pensam a seu respeito. Dessa forma, quanto maior for essa medida, mais ela se empenhará em obter essas percepções e, portanto, mais ficará se conhecendo. Por sua vez, dar feedback érepresentado pelo eixo vertical, sendo conceituado como o processo pelo qual a pessoa diz o que pensa dos outros, o seja, como ela os percebe.

JANELA DE JOHARI

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de compartilhar suas informações sobre os outros e emitir opiniões, sendo mais reservada por insegurança ou medo de rejeição de suas ideias. Esse estilo reservado pode gerar desconfiança que prejudica seus relacionamentos.

Por fim, temos o estilo interpessoal do eu desconhecido, no qual é utilizado de forma reduzida tanto o processo de dar quanto o de solicitar feedbacks. O relacionamento interpessoal ficar caracterizado por contatos es-porádicos e superficiais. Normalmente o potencial dessa pessoa é desconhe-cido, já que ela não se expõe, tendendo a apresentar comportamentos rígidos, desinteresse pelo que acontece a seu redor e até aversão a assumir riscos.

De modo a possibilitar a utilização de feedbacks construtivos, MA-CÊDO (2003, p. 30) relaciona o cumprimento das etapas a seguir: analisar a si-tuação, antes de começar a reunião de feedback com a identificação do problema a ser resolvido; arrolar exemplos específicos e suas conseqüências; ser específico e oportuno, sabendo escolher o momento ideal; manter a mente aberta, sem pre-conceitos; avaliar a capacidade de recepção, dosando adequadamente.

Também relaciona a necessidade de se praticar uma comunicação assertiva, destacando aspectos passíveis de mudança, como habilidades e co-nhecimentos; concentrando-se nos aspectos mais importantes: o que deve ser feito e o que deve ser mudado.

Na hora de dar feedback é necessário criar um ambiente propício, mos-trando empatia e senso de oportunidade; mostrar as vantagens que o interes-sado possa ter com a mudança; ouvir reflexivamente, evitando interromper ou parafrasear; manter a receptividade através do contato visual e gestual.

É necessário sempre focar os comportamentos que devem ser altera-dos com a citação de exemplos específicos e precisos, evitando-se julgamentos sobre valores, crenças pessoais, nível de educação. Assim o feedback passa a ser entendido como crítica construtiva, tornando-se um processo de trocas inter-pessoais visando ao desenvolvimento do outro (MACÊDO, 2003, p. 32).

Para se ter um bom processo de feedback é necessário ter uma boa comunicação interpessoal. Formar os gestores e líderes para serem comuni-cadores é muito importante para se alcançar os resultados esperados pelas organizações. A comunicação interpessoal requer uma escuta técnica e não apenas ouvir passivamente as pessoas.

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Quando se fala com alguém, inevitavelmente se faz uso tanto do chamado canal verbal – ou seja, a voz – quanto do não-verbal. Pes-quisas revelam que somente 7% da comunicação interpessoal podem ser traduzidos por palavras, pois 38% provêm da inflexão da voz, enquanto os restantes 55% resultam da expressão facial e da linguagem corporal. (MACÊDO, 2003, p. 82).

Uma das questões mais ressalvadas no que se refere ao feedback e re-petida por ROBBINS (2003, p. 43) é que quando se fornece um feedback deve ser criticado um comportamento específico e não as pessoas responsá-veis pelo comportamento. Ao que parece, a maioria dos gerentes ignora essa situação. O feedback deve sempre ser impessoal:

O feedback deve ser descritivo e não crítico ou avaliativo. Por exem-plo, por mais que um gerente possa estar contrariado, ele deverá manter o feedback relacionado ao trabalho e nunca criticar alguém pessoalmente por causa de ações impróprias. Dizer às pessoas que elas são “ignorantes”, “incompetentes” ou adjetivos parecidos é qua-se sempre contraproducente. Isso provoca uma reação emocional tal que o desvio de desempenho em si tende a ser omitido. Quando um gerente critica um funcionário, ele está censurando um comporta-mento relacionado ao trabalho, não à pessoa.

O feedback deve ser contínuo e não apenas afeto aos momentos que sucedem uma avaliação de desempenho. O ideal é que o mesmo possa ocorrer tão logo seja verificado o comportamento específico que precisa ser mudado ou reforçado para se estabelecer na mente do colaborador a ligação necessária entre causa e resultado e veja a necessidade de mudança ou sinta motivado a continuar a demonstrar bons resultados. Segundo RO-BBINS (2003), a avaliação formal anual deve ser um resumo daquilo que o funcionário vem escutando durante o ano.

2.2. FEEDBACK E AVALIAÇÃO DE DESEMPENHO

Em um ambiente de mudanças imposto pela velocidade da inova-ção tecnológica e do aumento exponencial da concorrência em nível global, faz-se prioritário o investimento em melhoria do desempenho através de um sistema de gestão adequado. Segundo SOUZA (2009, p. 15), é um desafio que requer mecanismos organizacionais para a sustentação de um fluxo per-manente de informações aliado à competência da liderança para gerenciar a

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convergência de esforços para obtenção de desempenhos efetivos com a construção de uma força humana motivada e comprometida e a criação de uma cultura de alto desempenho.

Para SOUZA (2009, p. 23), desempenho pode ser definido como sendo “uma ação intencional, decorrente da aplicação de potenciais e compe-tências, que permite o alcance de resultados desejados.” De se observar que a gestão do desempenho guarda íntima conexão com a gestão por competên-cias já que segundo BRANDÃO et al. (2008):

a aplicação de conhecimentos, habilidades e atitudes no trabalho gera um desempenho, expresso pelos comportamentos que a pessoa manifesta no trabalho e pelas conseqüências dos mesmos, em ter-mos de realizações e resultados (Gilbert, 1978). O desempenho da pessoa representa uma expressão de suas competências (Brandão e Guimarães, 2001). Por isso, Santos (2001) descreve as competên-cias humanas sob a forma de referenciais de desempenho, de forma que a pessoa demonstraria deter uma dada competência por meio da adoção de certos comportamentos observáveis no trabalho.

Como elucidado por BRANDÃO et al. (2008), ao citar GILBERT (1978), o desempenho humano é expresso em função dos comportamentos (ou competências) que a pessoa manifesta e das realizações decorrentes des-ses comportamentos. Com relação aos resultados a aferição é feita de forma objetiva, já que se comparam os resultados alcançados com metas quantificá-veis de resultados esperados. No que se refere a avaliação dos comportamen-tos ou competências fica evidenciado um caráter mais subjetivo relacionado ao subjetivismo atrelado à observação do avaliador. Na avaliação de compor-tamentos e competências há uma interpretação realizada pelo avaliador com base em seus valores, crenças, paradigmas e predisposições.

Para SOUZA (2002, p. 36), a premissa básica do enfoque taylo-rista de gestão é a divisão estratificada do trabalho em tarefas menores, visando ganhos de eficiência. Segundo a autora, acreditava-se que o au-mento da especialização do trabalho seria diretamente proporcional ao aumento da eficiência. E continua:

Entretanto, ao se especializar em um uma única tarefa, o trabalha-dor mantém-se alienado, sem liberdade, aprisionado a padrões e normas de desempenho impostos por métodos. É julgado exclusiva-mente por critérios externos de avaliação, sendo excluído da partici-pação e da negociação dos resultados a serem alcançados.

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Essa abordagem vem perdendo espaço na medida em que movimen-tos contemporâneos em gestão de pessoas pregam o maior envolvimento dos colaboradores com a definição de tarefas, o planejamento de metas e obje-tivos da organização e a qualidade de vida no trabalho. Em contrapartida, requer uma avaliação mais consistente que possa diminuir o viés subjetivista presente em uma avaliação com fonte única, podendo contrastar seu resul-tado com a opinião de outros colaboradores envolvidos no processo, com a visão até mesmo do próprio avaliado.

Consoante ROCHA (2001, p. 37), “historicamente, as organizações têm utilizado o feedback de uma única fonte e tem sido feito de cima para baixo, ou seja, do superior para o subordinado. Geralmente, ele tem sido utilizado para fins de verificação de desempenho e de potencial”. A avaliação de desempenho tradicional está intimamente relacionada com o modelo mecanicista de adminis-tração e focada em parâmetros tidos com cientificamente estabelecidos de desem-penho ideal a ser comparado com o verificado na linha de produção.

Para ROBBINS (2003, p. 35) existe um considerável número de evidências que nos indicam que as pessoas desempenham melhor suas fun-ções quando recebem feedback de como estão progredindo na direção de suas metas. O autor deixa claro que o feedback contribui para a identificação de discrepâncias entre o que elas obtiveram e o que pretendem obter. Ou seja, o feedback atua para guiar o comportamento.

Uma questão interessante colocada por ROBBINS (2003) refere-se ao fato de que o feedback feito pelo próprio colaborador que detenha possibilidade de monitorar seu desempenho é muito mais poderoso e motivador que o gerado por seu chefe ou pares no trabalho. ROBBINS também informa que a tendência do feedback múltiplo nas avaliações veio para diminuir o subjetivismo de uma avaliação única, já que pautada por múltiplas opiniões que diminuem a tendência natural do avaliado de se super-avaliar e dos chefes que não estão isentos de senti-mentos de cunho pessoal tais como preconceitos e crenças pessoais.

Destarte, quando a avaliação é realizada por apenas uma pessoa a tendência de se ter distorções de julgamento sobre o comportamento veri-ficado aumenta, já que não há como compensar a influência psicológica do avaliador com posicionamentos diferenciados de outros envolvidos no pro-cesso. Essa tendência é minimizada nas avaliações realizadas por múltiplas fontes, como é o caso da avaliação 360º na qual o indivíduo é avaliado por

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seus chefes, pares e chefiados, com a possibilidade de feedbacks de todos que mantêm relações profissionais com o mesmo. De se ver que nessa modalidade de avaliação o próprio indivíduo se avalia (auto-avaliação), dando a possibili-dade de se verificar sua visão sobre seus comportamentos e competências.

Dessa forma, ROCHA (2001) assevera que o feedback de 360 graus proporciona saber como os outros nos percebem, com ênfase sobre as pessoas com as quais nos relacionamos diariamente nas nossas atividades profissionais.

Como elucidado por BRANDÃO et al. (2008), a avaliação por múltiplas fontes possui como principal vantagem o enriquecimento de in-formações obtidas, aliado a seu caráter mais democrático que gera maior en-volvimento dos partícipes do processo. E, entre as desvantagens destacadas, pode-se citar a maior complexidade do modelo pelo número de avaliadores envolvidos e a tendência natural do avaliado de supervalorizar suas compe-tências e seus comportamentos para se beneficiarem profissionalmente.

O ciclo do processo de gestão de desempenho engloba as fases de planejamento, sustentado pelo plano estratégico da instituição, o acompa-nhamento, onde se faz necessária a utilização de um feedback constante e dirigido, e, por fim, a avaliação como etapa voltada para constatação entre a diferença apontada entre o desempenho desejado e o apurado, com nova necessidade de fornecimento de feedback.

Dissertando sobre o acompanhamento necessário ao ciclo do pro-cesso de gestão do desempenho, SOUZA (2009, p. 75) revela que:

Os fatos atestam que o diálogo é a competência que garante o sucesso desta etapa. Saber ouvir é uma condição que favorece, por exemplo, o compartilhamento de feedbacks sobre pontos fortes e fracos, e de sugestões quanto à mudança de caminhos, quando os vigentes não contribuem para o alcance dos resultados previstos.

Dessa forma, revela que entre os obstáculos observados está a au-sência de uma cultura orientada para resultados, a ausência de competência gerencial para o exercício do papel de orientador e educador, a resistência à crítica, entre outros (SOUZA, 2009, p. 75).

As técnicas mais apropriadas atualmente para a gestão de desem-penho, segundo SOUZA (2009, p. 88) são a avaliação 360 graus, ava-liação de competências e avaliação de competências e resultados. A ava-

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liação 360 graus é também denominada feedback com múltiplas fontes, já que caracteriza-se pelo compartilhamento de feedbacks com as pessoas diretamente afetadas (SOUZA, 2009, p. 88).

CHIAVENATO (2010, p. 246) explica que as avaliações de desempenho podem ser feitas pelo gerente, pelo indivíduo e o gerente, pela equipe de trabalho, 360 graus, avaliação para cima e por uma comissão de avaliação de desempenho.

Interessante notar a relação existente entre o feedback recebido após uma avaliação e a satisfação das pessoas, conforme delineado por SOUZA (2009, p. 102), e quanto maior a satisfação maior será a possibilidade de se alcançar um melhor desempenho, fechando o ciclo.

Uma questão central que se coloca para eficácia da avaliação de desem-penho é a preparação dos gestores. Isso inclui o desenvolvimento das compe-tências necessárias para avaliar e a utilização das técnicas corretas de feedback com ênfase no diálogo aberto e freqüente entre liderança e liderados.

LAWLER (apud SOUZA, 2009, p. 114) afirma que:

Condições capazes de gerar contribuições que agreguem valor exi-gem a substituição do controle, postura típica da velha economia, pelo envolvimento, postura incentivada pela nova economia. Con-tudo, comprometimento não é fruto do desejo, nem da imposição. É conquista. É um desafio gerencial permanente. É a base de práticas inovadoras de gestão do desempenho que se caracterizam pela flexi-bilidade e pela negociação. Organizações em busca do alto desempe-nho investem no diálogo, adotando estratégias centradas na busca do envolvimento do empregado, como a descentralização do poder (participação) e o acesso às informações (transparência).

SOUZA (2002, p. 37) elucida que em pesquisas recentes, conduzi-das por LAWLER, sobre a efetividade organizacional, revelaram evidências de que as melhorias constatadas no desempenho resultaram de um maior envolvimento das pessoas e equipes. Dessa forma, assevera a necessidade de uma migração da cultura burocrática e mecanicista para uma cultura do di-álogo com o fortalecimento do enlace entre líderes e equipes. A liderança que busca privilegiar os controles formais e instrumentaliza em excesso o processo de avaliação de desempenho provoca sentimentos indesejáveis de desmotivação, mal-estar e angústia. Dessa forma, demonstra a necessidade de mudanças profundas nas culturas organizacionais.

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Consoante SOUZA (2002, p. 48), não obstante seja notória a in-fluência de recompensas extrínsecas associadas ao poder e ao dinheiro na motivação para o trabalho, uma gestão avançada de resultados privilegia os pressupostos da teoria Y, que afirma que a motivação para o trabalho provém tanto de recompensas intrínsecas quanto de extrínsecas.

Nesse caso, o feedback pode atuar como uma das recompensas intrín-secas que desempenha importante papel no aumento do nível motivacional. O feedback adequado revela preocupação dos gestores com o desempenho dos colaboradores, uma atenção cuidadosa que em certas circunstâncias im-pacta na elevação da auto-estima que aliado a outras recompensas extrínse-cas, como promoções e ganhos salariais, pode estimular sentimentos de valo-rização e de reconhecimento no trabalho.

A questão da avaliação de desempenho cada vez mais assume impor-tância no serviço público, já que está vinculada ao aumento da exigência do cidadão (SOUZA, 2002, p. 45). Essa exigência perpassa a necessidade de au-mentar a produtividade e atender a objetivos e metas públicas

Contudo, ressalva SOUZA (2002, p. 45),

a inserção de práticas contemporâneas de gestão no ambiente pú-blico tem sido um desafio gerador de questionamentos instigan-tes, que merecem reflexão. Qual a utilidade de monitoração de resultados no ambiente público? As culturas enraizadas no setor público são favoráveis à adoção de uma ideologia meritocrática, definida por Lívia Barbosa como a de reconhecimento público da qualidade das realizações individuais? Como mensurar o desempenho? A liderança está preparada para gerir a mudança de uma cultura burocrática e centrada em vínculos pessoais para outra que valoriza a competência?

Para a autora um dos maiores obstáculos que impedem a cultura do gerenciamento de desempenho no serviço público reside no burocratismo, na ausência de abertura para o desenvolvimento de competências interpesso-ais, a falta de respeito pela diferença, as mudanças impulsionadas apenas por pressões externas, a ausência de patrocínio governamental e da alta direção, e o não-exercício da cidadania (SOUZA, 2002, p. 45).

O sistema burocrático é visto como uma estrutura capaz de produzir alienação, lembrando que um dos conceitos centrais desse sistema é a impes-soalidade (MACÊDO, 2003, p. 48):

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Na dinâmica da gestão burocrática, o indivíduo tem um papel es-tabelecido por outros, a ser exercido de maneira padronizada, em hora e local determinados por outros, tendo de conviver com um grupo de trabalho formado por estranhos e obedecer a superiores distantes. Logo, não admira que a pessoa se sinta como um estra-nho dentro do próprio corpo, o mesmo ocorrendo em relação ao seu trabalho e à empresa.

Dessa forma, resta evidenciado que o modelo tradicional mecanicis-ta e burocrático interfere no gerenciamento eficiente do desempenho huma-no em busca de resultado. Do mesmo modo, afeta a troca de feedbacks entre os colaboradores ao impor barreiras ao fluxo de comunicação com base em normas hierárquicas rígidas e estrutura eminentemente verticalizada.

A implantação do feedback de 360 graus exige um estilo de admi-nistração aberto e participativo (ROCHA, 2001, p. 45). De que forma seria possível adotar aspectos positivos desse sistema de feedback de múltiplas fon-tes no serviço público e, notadamente, em uma organização policial?

Importante frisar que passamos por um momento de necessidade de eficiência no serviço público que impõe a utilização do gerenciamento de de-sempenho e de investimento no desenvolvimento de competências interpes-soais incentivado por políticas públicas que visam a utilização de uma gestão gerencial no serviço público com utilização de instrumentos empresariais.

Esse novo modelo de serviço público vem sendo alicerçado ao longo de um período de reformas necessárias que iniciaram no Brasil com a evolução de um Estado notadamente patrimonialista, passando por um Estado com viés burocrático para se chegar ao modelo de Estado gerencial que se pretende im-plantar em sua totalidade. Como revela BRESSER PEREIRA (1996):

Aos poucos foram-se delineando os contornos da nova administração pública: (1) descentralização do ponto de vista político, transferindo recursos e atribuições para os níveis políticos regionais e locais; (2) descentralização administrativa, através da delegação de autorida-de para os administradores públicos transformados em gerentes cres-centemente autônomos; (3) organizações com poucos níveis hierár-quicos ao invés de piramidal, (4) pressuposto da confiança limitada e não da desconfiança total; (5) controle por resultados, a posteriori, ao invés do controle rígido, passo a passo, dos processos administra-tivos; e (6) administração voltada para o atendimento do cidadão, ao invés de auto-referida.

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Desse modo, o presente trabalho propõe a existência de uma conexão necessária entre uma forma de administração gerencial voltada para resultados com base na gestão de desempenho alimentada por um processo contínuo de feedback voltado para o acompanhamento das atividades diárias dos colabora-dores, assim como no retorno dado para avaliações de desempenho, com a uti-lização da presença de múltiplas fontes de avaliação, se adequado e conveniente à cultura da organização, conforme o modelo de análise proposto.

3 – METODOLOGIA UTILIZADA NA PESQUISA

Visando identificar as dificuldades encontradas pelos ocupantes dos cargos de chefia de uma organização policial federal em fornecer feedback nas avaliações de desempenho dos servidores do órgão e no desempenho diário de suas atividades foi empregada a técnica de entrevista com a utilização de perguntas abertas, possibilitando aos entrevistados discorrerem com certa liberdade a respeito dos temas propostos, consoante roteiro de entrevista re-presentado pelo Anexo I do presente trabalho.

As entrevistas foram realizadas com doze (12) gestores do órgão poli-cial analisado, sendo representantes de áreas ligadas à gestão de pessoas, além de possuir experiência na área de administração policial e investigação criminal.

4 – RESULTADOS

Os entrevistados se sentiram extremamente à vontade para discorrer sobre o assunto que, de forma geral, consideraram de extrema relevância para o órgão pesquisado, principalmente devido à necessidade de adoção de me-canismos de gestão focados no desempenho.

No geral, os entrevistados entendem o feedback como parte de um processo, consistindo em um retorno dado sobre a forma como foi realizada determinada tarefa. Um termo utilizado foi retroalimentação. Com relação ao momento adequado, há duas correntes: os que entendem que o feedback deve encerrar avaliações de desempenho ou tarefas finalizadas, denotando um aspecto mais formal, e os que entendem que o feedback deve ser uma prá-tica rotineira e constante de comunicação informal para correção de rumo, tanto durante o curso do processo quanto em sua finalização.

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Para um dos entrevistados (Gestor 03), haveria uma diferença de acepção entre feedback – termo que deveria ser utilizado para avaliações feitas após a conclusão de um trabalho –, e follow up – interpretado como o acon-selhamento constante e rotineiro durante a realização de um trabalho com correções de rumo prévias visando garantir um resultado desejado.

Questionados sobre o que é importante para se fornecer bons feedba-cks para os servidores, os entrevistados apontaram fatores diversos, tais como a importância da definição clara de metas organizacionais, a necessidade de apri-moramento contínuo, adoção de um plano de melhorias a ser seguido, a preva-lência de um diálogo transparente, o respeito ao lado pessoal do servidor com a separação de seus erros no trabalho de seus possíveis problemas pessoais, e, por fim, a possibilidade de participação e manifestação de todos os interessados.

Com relação à questão do plano de melhorias a ser adotado, foi ressaltada a necessidade de identificação das competências necessárias para a organização com o estabelecimento de mecanismos informatizados que possibilitem, durante a avaliação de desempenho, o estabelecimento do gap (lacuna) de conhecimentos do servidor que foi avaliado. Essa premissa é im-portante para se asseverar sobre a necessidade de aprimoramento por meio de ações de capacitação que visem a eliminação do gap identificado.

Questionados se há acompanhamento dos comportamentos e atitu-des dos servidores com a troca freqüente de feedbacks, os entrevistados apon-taram não existir essa prática. Somente três entrevistados ressalvaram haver alguma forma de feedback no final das avaliações de desempenho, observando que essa avaliação é meramente formal, já que a grande maioria dos servido-res é nivelada por cima e não há critérios claros e objetivos para sua realização. Um dos entrevistados ressaltou que está em vias de ser implantado projeto de avaliação 180º, no qual o avaliado e avaliador vão trocar feedbacks constantes objetivando a melhoria de resultados da organização e a identificação de de-ficiências que deverão ser sanadas através de um plano de capacitação direcio-nado. Essa avaliação 180º seria composta pela avaliação da chefia seguida pela auto-avaliação do servidor.

Quando foram questionados se os avaliados normalmente se pro-nunciam formalmente sobre os resultados das avaliações de desempenho, os entrevistados em sua grande maioria responderam que os servidores somente se pronunciam formalmente quando avaliados em patamar inferior ao má-

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ximo. Isso se deve ao descrédito e descrença dos mecanismos de avaliação e, muitas vezes, por considerarem a avaliação uma mera etapa a ser temporal-mente vencida para a progressão funcional.

Em questão relacionada com a existência de diálogo aberto no seio da instituição, a maioria dos entrevistados ressaltou que a cultura organiza-cional que é muito hierarquizada dificulta o diálogo. No entanto, enquanto gestores, todos asseveraram estar abertos ao diálogo, embora não seja uma prática corrente no órgão.

No que tange à possibilidade de adoção do feedback de múltiplas fontes, também denominado por muitos autores de avaliação de 360º, os entrevistados apontaram uma imensa dificuldade em sua implantação de-vido ao caráter hierarquizado e burocrático da instituição. Foi ressaltada a possibilidade de instituição do feedback de 180º com a possibilidade de pro-nunciamento da chefia e do servidor avaliado – projeto que está em fase de desenvolvimento. Em momento posterior, será estudada a implantação da avaliação feita pelos pares. A maior dificuldade, no entanto, será a implan-tação da avaliação das chefias pelos subordinados. Mesmo reconhecendo as dificuldades com relação à implantação, a maioria dos entrevistados avaliou como positiva a implantação da avaliação 360º, como forma moderna de ges-tão de desempenho em uma administração gerencial. Um dos entrevistados ressaltou que, embora não haja normatização da matéria, nada impede a ado-ção informal do mecanismo no acompanhamento diário das equipes abrindo a palavra para todos os membros do grupo manifestarem suas opiniões sobre a forma de realização das tarefas.

A relação entre a utilização de feedback e o nível de motivação e de-sempenho dos servidores foi confirmada por todos os entrevistados. Foi res-saltada a necessidade de critérios objetivos para as avaliações de desempenho e a efetiva utilização dos dados obtidos para não haver descrédito. Apenas um dos entrevistados reputou não haver conexão entre a utilização de feedbacks e a motivação ou desempenho. Nesse caso, asseverou que em poucos casos se verifica tal relação.

Perguntados se houve preparação para dar ou receber feedbacks, os entrevistados foram unânimes em dizer que não passaram por nenhum trei-namento formal sobre o tema. Muitos relacionaram a capacidade e a boa disposição em fornecer feedbacks com base na experiência de vida, no desen-volvimento pessoal. O assunto, ao que parece, sempre foi tratado de forma

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superficial. Um dos entrevistados afirmou que não acredita que essa questão deva ser tratada de forma técnica, sendo mais uma questão de aprendizagem pessoal mesmo. Outro entrevistado tratou a questão mais como um traço de personalidade do que de preparação profissional.

5 – CONCLUSÃO

Em tempos de mudanças aceleradas provocadas pela velocidade imensa na disseminação da informação e na inovação tecnológica, vemos que o modelo de gestão burocrático não está adequado para atender aos anseios da sociedade. No setor privado vale a regra de que é necessário adotar nova estrutura organi-zacional, diminuição dos níveis hierárquicos, fluidez e adoção de mecanismos de gestão do desempenho por competências com alto investimento no capital intelectual, sob pena de não subsistir no mercado global.

A administração pública segue a mesma tendência, embora de forma mais tímida, evidenciada pelo modelo gerencial propagado por BRESSER PEREIRA (1996), que impõe a adoção de mecanismos consa-grados por empresas privadas no trato com o cidadão-cliente, que exige a prestação de serviços públicos de qualidade.

Nesse diapasão, há necessidade de adoção de instrumentos gerenciais que possibilitem a busca de uma cultura de alto desempenho nas organizações públicas, enquanto gênero, e nas organizações policiais, quanto espécies.

Como bem delineado por SOUZA (2002), precisamos adotar uma cultura do diálogo como garantidora de uma avaliação do desempenho de excelência. Na seara do diálogo aberto e transparente reside a importância do compartilhamento de feedbacks – instrumento essencial para fechar o ciclo da avaliação de desempenho com base em competências.

Nesse mister, analisou-se a possibilidade de adoção na organização policial pesquisada do feedback de múltiplas fontes, presente na avaliação de 360º, conside-rada o modelo de avaliação de desempenho mais atinente à cultura do diálogo exi-gida, assim como a adoção do feedback como hábito de gestão por parte dos gestores e a preparação dos mesmos para fornecer bons feedbacks aos seus pares.

Nas entrevistas que foram feitas, restou evidenciado que o feedback não é um instrumento muito utilizado, a não ser em avaliações formais de de-sempenho onde quase sempre são distribuídas as notas máximas e onde não

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há cultura de manifestação formal por parte dos avaliados. Segundo alegado, a cultura organizacional excessivamente hierarquizada é um dos maiores en-traves para a utilização do instrumento, embora seja de todos reconhecida a eficácia da ferramenta em aumentar a satisfação dos colaboradores na busca dos resultados pretendidos na missão institucional.

Também é importante ressaltar que a preparação dos gestores deve ser enfatizada. Nenhum dos entrevistados foi capacitado para exer-cer o papel de líder de equipes. Não há menção sobre a forma correta de fornecer feedbacks ou sobre o impacto dos mesmos na rotina de trabalho e na devolução de avaliações de desempenho.

Conforme ressaltado por SOUZA (2002, p. 37), a liderança que busca controles formais e instrumentaliza em excesso o processo provoca sentimentos de desmotivação e mal-estar em sua força de trabalho.

Dessa forma, conclui-se esse trabalho ressaltando que se faz extrema-mente necessário o desenvolvimento das competências adequadas para avalia-ção de desempenho e utilização de técnicas corretas de feedback com ênfase no diálogo aberto e freqüente entre liderança e liderados para assegurar o alcance dos objetivos organizacionais o atendimento dos anseios do cidadão-cliente.

Na impossibilidade momentânea de instituição de um modelo de feedback de múltiplas fontes, como o presente na avaliação de 360º, devido ao engessamento gerado pela cultura focada na disciplina estrita e na hie-rarquia rígida, devemos possibilitar que haja caminho para uma mudança de paradigma com a inserção de novos modelos, como é o caso da avaliação 180º que foi sugerida nas entrevistas.

Ressaltamos, por fim, que a melhor forma de romper com a resis-tência burocrática em aceitar o diálogo aberto como meio de propulsão dos colaboradores rumo aos objetivos propostos pela instituição é a capacitação dos gestores no desenvolvimento permanente das competências de liderança que premiam a comunicação interpessoal.

Rodrigo de Souza Carvalho

Bacharel em Direito. Especialista em Gestão de Pessoas pela Fundação Getúlio Vargas. Delegado de Polícia Federal

E-mail: [email protected]

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Referências

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BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos. Da Administração Pública Burocrática à Gerencial, Revista do Serviço Público 47 (1) Janeiro-Abril 1996.

CHIAVENATO, Idalberto. Gestão de Pessoas: o Novo Papel dos Recursos Humanos nas Organizações, 3ª edição, Editora Elsevier, Rio de Janeiro, 2010.

LEME, Rogério. Feedback para resultados na gestão por competências pela avaliação 360º: guia prático para gestores do “dar e receber”: feedback e a transformação em resultados. Rio de Janeiro: Qualitymark, 2007.

MACÊDO, Ivanildo Izaias; RODRIGUES, Denize Ferreira; JOHANN, Maria Elizabeth Pupe; CUNHA, Neisa Maria Martins da Cunha. Aspectos Comportamentais da Gestão de Pessoas. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003.

ROBBINS, Stephen. A Verdade Sobre Gerenciar Pessoas. São Paulo: Pearson Financial Times – Prentice Hall, 2003.

ROCHA, Eduardo Peixoto. Feedback 360 graus: uma ferramenta para o desenvolvimento pessoal e profissional. Campinas/SP: Editora Alínea, 2001.

SOUZA, Vera Lúcia; MATTOS, Irene Badaró; SARDINHA, Regina Lúcia Lemos Leite; ALVES, Rodolfo Carlos Souza. Gestão de Desempenho. Rio de Janeiro: Ed. da Fundação Getúlio Vargas, 2ª Edição, 2009.

SOUZA, Vera Lúcia. Gestão de desempenho: julgamento ou diálogo? Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002.

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ROTEIRO DE ENTREVISTA

1. O que o entrevistado considera como feedback e em quais momen-tos acredita que o mesmo seja necessário?

2. O que é importante para fornecer bons feedbacks após a avaliação de desempenho dos servidores?

3. Há um acompanhamento contínuo dos comportamentos e atitu-des dos colaboradores no exercício de suas funções com a troca freqüente de feedbacks?

4. Os avaliados se pronunciam formalmente sobre as avaliações de desempenho?

5. No órgão em que exerce suas atividades há diálogo aberto entre os diferentes níveis hierárquicos?

6. Há abertura para adoção do feedback de múltiplas fontes, também conhecido como avaliação 360 graus, com a adoção de instrumentos de auto-avaliação, avaliação feita por colegas de trabalho (pares), subordinados e das chefias?

7. Acredita que haja uma conexão entre a utilização do feedback e o nível de motivação ou o desempenho dos servidores?

8. O entrevistado foi preparado para fornecer ou receber feedbacks?

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Sobre a Revista

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Edição de TextoGuilherme Henrique Braga de Miranda

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