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Qualidade do solo: uma visão etnopedológica em propriedades agrícolas familiares produtoras de fumo orgânico. Soil quality: an etnopedologic vision in organic tobacco family farms. AUDEH, Samira Jaber Suliman 1 ; LIMA, Ana Cláudia Rodrigues de 2 ; CARDOSO, Irene Maria 3 ; CASALINHO, Helvio Debli 4 ; JUCKSCH, Ivo Jucksch 5 1 Engª. Agrônoma doutoranda em Sistemas de Produção Agrícola Familar/Universidade Federal de Pelotas, Pelotas/RS - Brasil, [email protected]; 2 Universidade Federal de Pelotas, Pelotas/RS- Brasil, [email protected]; 3 Universidade Federal de Viçosa, Viçosa/MG - Brasil, [email protected]; 4 Universidade Federal de Pelotas, Pelotas/RS - Brasil; 5 Universidade Federal de Viçosa, Viçosa/MG - Brasil, [email protected]. RESUMO : Frente ao modelo de modernização da agricultura, centrado no uso intensivo do solo, agricultores enfrentam problemas de conservação de suas terras. Esses problemas associados à produção de fumo, em áreas de alta fragilidade ambiental, aumentam a suscetibilidade dos solos à degradação. A Qualidade do Solo (QS) é um fator importante para o desenvolvimento de uma agricultura sustentável e pode ser avaliada através de indicadores. Este trabalho objetiva promover a construção do conhecimento em relação à QS, com o intuito de definir um conjunto de indicadores a fim de entender e avaliar aspectos relacionados ao uso, manejo e conservação do solo. Para isso quatorze unidades agrícolas familiares localizadas no município de Canguçu-RS foram estudadas. O levantamento da percepção dos agricultores foi realizado através de entrevistas semi-estruturadas, permitindo a definição de um conjunto de indicadores, bem como o entendimento a respeito do manejo e conservação do solo. Concluiu-se que esses agricultores possuem uma visão holística da QS que é baseada em processos dinâmicos da integração das propriedades do solo com o meio. Interações entre os saberes científicos e populares são discutidas detalhadamente neste estudo. PALAVRAS-CHAVE: etnopedologia, indicadores da qualidade do solo, fumo, produção orgânica, manejo do solo. ABSTRACT: The model of modern agriculture has been centered in the soil intensive use. Face to this situation, problems of conservation land is an issue that concern farmers. Tobacco production in areas of high ambient fragility is one example that the high susceptibility of soil degradation has contributed to the soil quality decreases. The soil quality is one of the important factor for the development of a sustainable agriculture and can be evaluated through indicators. Therefore, the objective of this work was to promote the soil quality knowledge to get a set of indicators in order to understand and to evaluate the aspects related to the use, manage and soil conservation. The study was carried out in fourteen family farms, located in Canguçu-RS. Semi-structured interviews, was the research method used for defining a set of soil quality indicators as well as the management and soil conservation understanding. It was concluded that these farmers possess a holistic vision of the soil quality that is based on dynamic processes of the integration of the soil properties. Interactions between scientific and popular knowledge is carefully discussed in this study. KEY WORDS: etnopedology, soil quality indicators, tobacco, organic production, soil manage. Revista Brasileira de Agroecologia Rev. Bras. de Agroecologia. 6(3): 34-48 (2011) ISSN: 1980-9735 Correspondências para: [email protected] Aceito para publicação em 28/05/2011

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Qualidade do solo: uma visão etnopedológica em propriedades agrícolasfamiliares produtoras de fumo orgânico.

Soil quality: an etnopedologic vision in organic tobacco family farms.

AUDEH, Samira Jaber Suliman1 ; LIMA, Ana Cláudia Rodrigues de2; CARDOSO, Irene Maria3; CASALINHO, HelvioDebli4; JUCKSCH, Ivo Jucksch5

1 Engª. Agrônoma doutoranda em Sistemas de Produção Agrícola Familar/Universidade Federal de Pelotas,Pelotas/RS - Brasil, [email protected]; 2 Universidade Federal de Pelotas, Pelotas/RS- Brasil,[email protected]; 3 Universidade Federal de Viçosa, Viçosa/MG - Brasil, [email protected]; 4 UniversidadeFederal de Pelotas, Pelotas/RS - Brasil; 5 Universidade Federal de Viçosa, Viçosa/MG - Brasil, [email protected].

RESUMO : Frente ao modelo de modernização da agricultura, centrado no uso intensivo do solo,agricultores enfrentam problemas de conservação de suas terras. Esses problemas associados àprodução de fumo, em áreas de alta fragilidade ambiental, aumentam a suscetibilidade dos solos àdegradação. A Qualidade do Solo (QS) é um fator importante para o desenvolvimento de uma agriculturasustentável e pode ser avaliada através de indicadores. Este trabalho objetiva promover a construção doconhecimento em relação à QS, com o intuito de definir um conjunto de indicadores a fim de entender eavaliar aspectos relacionados ao uso, manejo e conservação do solo. Para isso quatorze unidadesagrícolas familiares localizadas no município de Canguçu-RS foram estudadas. O levantamento dapercepção dos agricultores foi realizado através de entrevistas semi-estruturadas, permitindo a definiçãode um conjunto de indicadores, bem como o entendimento a respeito do manejo e conservação do solo.Concluiu-se que esses agricultores possuem uma visão holística da QS que é baseada em processosdinâmicos da integração das propriedades do solo com o meio. Interações entre os saberes científicos epopulares são discutidas detalhadamente neste estudo.

PALAVRAS-CHAVE: etnopedologia, indicadores da qualidade do solo, fumo, produção orgânica, manejodo solo.

ABSTRACT: The model of modern agriculture has been centered in the soil intensive use. Face to thissituation, problems of conservation land is an issue that concern farmers. Tobacco production in areas ofhigh ambient fragility is one example that the high susceptibility of soil degradation has contributed to thesoil quality decreases. The soil quality is one of the important factor for the development of a sustainableagriculture and can be evaluated through indicators. Therefore, the objective of this work was to promotethe soil quality knowledge to get a set of indicators in order to understand and to evaluate the aspectsrelated to the use, manage and soil conservation. The study was carried out in fourteen family farms,located in Canguçu-RS. Semi-structured interviews, was the research method used for defining a set ofsoil quality indicators as well as the management and soil conservation understanding. It was concludedthat these farmers possess a holistic vision of the soil quality that is based on dynamic processes of theintegration of the soil properties. Interactions between scientific and popular knowledge is carefullydiscussed in this study.

KEY WORDS: etnopedology, soil quality indicators, tobacco, organic production, soil manage.

Revista Brasileira de AgroecologiaRev. Bras. de Agroecologia. 6(3): 34-48 (2011)ISSN: 1980-9735

Correspondências para: [email protected] para publicação em 28/05/2011

Introdução

A agricultura familiar abrange 84,4% dosestabelecimentos agrícolas brasileiros, éresponsável por 60% dos produtos consumidospela população brasileira e é o setor que maisocupa a mão-de-obra no campo. Representa,portanto, papel fundamental na economia do país,sendo o setor da atividade agrícola de maiorimportância na geração de renda e inclusão social,ocupando apenas uma área correspondente a24,3% do território agrícola (IBGE, 2006).

No estado do Rio Grande do Sul (RS), aagricultura familiar apresenta 19% dosestabelecimentos agrícolas familiares do Brasil,ocupando uma área correspondente a 16% doterritório gaúcho. O município de Canguçu (RS) éconhecido como a capital nacional da agriculturafamiliar por apresentar o maior número depequenas propriedades agrícolas familiares dopaís. A população rural de Canguçu representa65,6% da população total do município,correspondendo cerca de 19 mil agricultores, e suaeconomia é baseada na produção de fumo, milho,leite, suínos e aves, possuindo um dos maioresvalores de produto interno bruto agrícola (IBGE,2006). No entanto, os agricultores desta regiãoenfrentam problemas na conservação de suasterras, devido ao modelo de modernização daagricultura, centrado no uso intensivo do solo, nãoassociado ao uso de práticas conservacionistas.Esse problema associado à produção de fumo, emáreas de alta fragilidade ambiental (ex.:declividade acentuada e solos rasos), aumenta asuscetibilidade dos solos à degradação,diminuindo a sua qualidade, a conservação dosrecursos naturais e, conseqüentemente, acapacidade produtiva.

A Qualidade do Solo é um dos fatoresimportantes para o desenvolvimento de umaagricultura sustentável. O conceito de Qualidadedo Solo começou a ser estudado no início dos

anos 90 e percepções diferenciadas surgiramdesde que o tema foi proposto. O conceito maissimplificado para o termo foi formulado por Larson& Pierce (1991), como sendo “apto para o uso”.Doran et al. (1996) propuseram uma definiçãomais complexa para Qualidade do Solo, queenvolve a “capacidade do solo exercer funçõesrelacionadas à sustentação da atividade, daprodutividade e da diversidade biológica, àmanutenção da qualidade do ambiente, àpromoção da saúde das plantas e dos animais e àsustentação de estruturas sócio-econômicas ehabitação humana”. As funções do solo nanatureza se caracterizam, portanto, pela habilidadedo solo servir como um meio para o crescimentodas plantas, regular o fluxo de água no ambiente,estocar e promover a ciclagem de elementos nabiosfera e atuar como um tampão ambiental(KARLEN et al., 1997).O saber local que os agricultores possuem emrelação ao uso e manejo dos solos é umaferramenta de grande importância para oaprimoramento das avaliações da Qualidade doSolo. O saber dos agricultores sobre o solo, comocomponente da natureza, está inserido dentro dosvalores da cultura e da tradição local, e é estudadopela etnopedologia (PEREIRA et al., 2006).Etnopedologia é o conjunto de estudosinterdisciplinares dedicados ao entendimento dasinterfaces existentes entre os solos, a espéciehumana e os outros componentes do ecossistema(ALVES & MARQUES, 2005). Inclui-se, assim, naetnopedologia, o saber dos agricultores a respeito,por exemplo, do manejo do solo. Nesse tipo deestudo, é possível perceber, por exemplo, que osagricultores observam mais as propriedadessuperficiais do solo e, quando solicitados,descrevem com mais detalhes a camada arável,pois estas são mais influenciadas pelo preparo dosolo e pelo crescimento das plantas. No entanto, osaber dos povos rurais não se restringe somente à

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superfície do solo (ROMIG et al., 1995), esteconstitui patrimônio cultural importante e é,geralmente, transmitido de geração a geração pelalinguagem oral e costumam estar associados àsdiferentes visões de mundo que permeiam osgrupos culturais (TOLEDO, 2000). Entretanto, avalorização, o uso e o entendimento do saber localtêm sido pouco explorados pelos pesquisadoresna maioria dos estudos de pesquisa edesenvolvimento relacionados aos solos.

A integração entre os saberes dospesquisadores com instrução formal em ciência dosolo e os saberes locais das populações ruraispode ser facilitada através do arcabouço teórico emetodológico da pesquisa participativa.

O processo de construção do conhecimentodeve ser simplificado (MANCIO et al., 2007). Paraisso, deve-se contar com os conhecimentos e asexperiências das comunidades, assim como osconhecimentos e as experiências científicasdesenvolvidas nas universidades e instituiçõescom este fim. Assim, a pesquisa participativa temcomo premissa básica a participação das famíliasagricultoras na construção do conhecimento,através da validação das suas percepções acercadas características regionais, constituindo umprocesso de investigação-ação e uma proposta deum caminho que vise fortalecer mudanças parauma vida melhor no meio rural (CASALINHO et al.,2007).

Esse tipo de pesquisa tem como princípio ageração de conhecimentos, baseados nascondições locais onde os agricultores estãoinseridos, que devem ser explorados e partilhadosentre as comunidades atuantes no processo paraque os seus resultados de pesquisa sejameficientes. Apesar da pesquisa científica serfundamentada em idéias bem estruturadas, muitasvezes, está fora da realidade de quem a usa nocotidiano, já que dificilmente consideram fatoresimportantes como os valores culturais,educacionais, sociais, ambientais e/oueconômicos.

Avaliar a Qualidade do Solo como um indicadorde sustentabilidade de agroecossistemas pode serfundamentado na pesquisa participativa. SegundoHaguette (1999), os três princípios básicos dapesquisa participativa são descritos como: apossibilidade lógica de indivíduos e gruposorganizados serem sujeitos na construção de umnovo conhecimento, a possibilidade de determinaro uso e o destino desse conhecimento produzidopela pesquisa, tenha ela tido ou não a participaçãodo agricultor em todas as suas etapas e,finalmente, a certeza de que é esse o contatodireto entre pesquisador e pesquisado, oinstrumento gerador da necessidade da pesquisaa qual gera a necessidade de participação doagricultor.

Dentre os diversos métodos de construção doconhecimento usados pela pesquisa participativa,atualmente utilizados na agricultura, destaca-se oDiagnóstico Rural Participativo (DRP). Trata-se deuma proposta metodológica de abordagemsistêmica, a qual prima pela participação doagricultor como autor do processo, e conta com oapoio de um facilitador que pode ser opesquisador (CASALINHO et al., 2003). Essaferramenta permite a sistematização dasinformações sobre a realidade do local estudado eserve como base da pesquisa. As técnicas doDRP permitem a sistematização e análises darealidade local, que são úteis na pesquisaparticipativa, permitindo articular trabalhos depesquisa e extensão. Entre as técnicas de DRP,encontram-se entrevistas semi-estruturadas,diagrama de Venn e transectos (BROSE, 2001).

Na avaliação da Qualidade do Solo,pesquisadores utilizam técnicas e indicadoresdiferenciados, de acordo com as formas de manejoempregadas e do tipo de solo estudado. Porexemplo, Amado et al. (2007) estudaramdiferentes indicadores físicos, químicos ebiológicos da Qualidade do Solo, tradicionalmenteutilizados pela ciência do solo, para avaliardiferentes sistemas de manejo (plantio

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convencional, preparo mínimo e plantio direto), emáreas experimentais no município de Eldorado doSul e Santa Maria, no Rio Grande do Sul.Casalinho et al. (2007) estudaram a Qualidade doSolo como indicador de sustentabilidade deagroecossistemas de base ecológica, utilizandopara isto o Método Integrativo de Avaliação daQualidade do Solo (MIAQS), fundamentado naanálise integrada de um conjunto mínimo deatributos físicos, químicos, biológicos e visuais dosolo, e concluiu que este método permitiu umaavaliação adequada dos indicadores usados. Limaet al. (2008) propuseram um conjunto mínimo deoito indicadores para avaliar a Qualidade do Solode forma quantitativa, em área de produção dearroz irrigado, sendo quatro indicadores químicos(Cu, Mn, Zn e matéria orgânica), três físicos(densidade do solo, diâmetro médio ponderado deagregados, água disponível) e um biológico(densidade de minhocas). Os autores acimacitados, além de definirem os indicadores, combase no conhecimento acadêmico, tambémincorporam a este, o saber local (percepção dosagricultores) sobre Qualidade do Solo, através demetodologias usadas pela pesquisa participativa.Entretanto, as relações destes conhecimentos sãoraramente estudadas com o propósito de avaliar emelhor entender aspectos referentes àconservação do solo.

Este trabalho objetivou promover a construçãodo conhecimento em relação à Qualidade do Solo,em propriedades agrícolas familiares produtoras defumo orgânico, com o intuito de definir um conjuntode indicadores para entender e avaliar os aspectosrelacionados ao uso, manejo e conservação dosolo e suas interações com o meio, articulando,assim, os saberes científicos e populares.

Material e MétodosO presente trabalho foi desenvolvido no

município de Canguçu, região da Serra do Sudestedo Rio Grande do Sul, envolvendo quatorze

propriedades agrícolas familiares, distribuídas emquatro localidades: Herval (5 propriedades),Pantanoso (3 propriedades), Baixada do Rodeio (3propriedades) e Florida (3 propriedades).

O município de Canguçu foi escolhido pela suatradição na atividade agrícola familiar. A seleçãodas 14 propriedades foi realizada de forma querepresentassem uma das atividades agrícolaspredominantes do município de Canguçu (fumo) eque as áreas das propriedades possuíssemrepresentatividade regional de solos.

De acordo com a classificação de Köppen, olocal de estudo encontra-se sob a influência dotipo climático Cfa, mesotérmico, caracterizado portemperaturas moderadas, com média detemperatura anual de 17ºC a 19ºC, verões quentese ocorrência de geadas no inverno. A precipitaçãoé bem distribuída ao longo do ano e a média anualé de 1300 a 1400 mm (IBGE, 1986). O relevoregional varia de ondulado a forte ondulado, compredomínio de vegetação de mata ou arbustivarala, e os solos são rasos esparsos entreafloramentos rochosos (EMBRAPA, 1997). Asáreas estudadas compreendem basicamente duasclasses de solos, os Argissolos e os Neossolos,identificados através da localização das áreasestudadas no mapa de solos, figura 1, elaborado apartir de levantamentos realizados pela EMBRAPA(1997).

Na tabela 1, são apresentados os valoresmédios das análises de alguns atributos físicos equímicos do solo referentes às 14 unidadesagrícolas estudadas. As amostras de solo foramcoletadas na camada de 0-0,10m, no período demarço a junho de 2009, durante a realização dolevantamento qualitativo dos dados. Em cadaunidade agrícola três amostras com estruturapreservada foram coletadas, em duas áreasdistintas, para determinação da densidade do solo(DS) e porosidade total (Pt), segundo Embrapa(1997). Três amostras com estrutura nãopreservada, foram coletadas, em duas áreas

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distintas, em cada propriedade, formando umaamostra composta para determinação das análisesquímicas, segundo Tedesco et al. (1995). Ocarbono orgânico do solo foi determinado pelométodo de combustão de Walkley-Blackmodificado, descrito por Tedesco et al. (1995), sem

o uso de calor externo. O fósforo e os demaiselementos necessários para avaliação dasaturação de bases (K, Na, Al, Mg, Ca, H+Al)foram realizados segundo procedimentos daComissão de Química e Fertilidade do Solo doNúcleo Regional Sul da Sociedade Brasileira de

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Figura 1: Mapa de solos do município de Canguçu, com a localização das propriedades agrícolas.Herval (1, 2, 7, 8, 9), Pantanoso (3, 13, 14), Florida (4, 5, 6), Baixada do Rodeio (10, 11, 12) e suasunidades de mapeamento.

Ciência do Solo (COMISSÃO..., 2004).O levantamento dos dados sobre a percepção

dos agricultores foi realizado através de pesquisaparticipativa, segundo Brose (2001). Paraidentificar a percepção dos agricultoresentrevistados acerca da Qualidade do Solo,realizaram-se entrevistas semi-estruturadas,durante as quais os agricultores foram estimuladosa expressar seus conhecimentos de forma livre,através de um diálogo aberto. Como guia para odesenvolvimento das entrevistas elaborou-se trêsperguntas abertas: (a) O que é um solo de boaqualidade? (b) O que você faz para cuidar de seusolo? (c) Você acha que o tipo de solo teminfluência na maneira de conservá-lo? Se sim,como? Tais questões foram formuladas de forma aevidenciar um conjunto mínimo de indicadorescapazes de avaliar a Qualidade do Solo de acordocom a percepção dos agricultores entrevistados

neste estudo e possibilitar o entendimento decomo esses agricultores realizam e avaliam suaspráticas de manejo do solo e como fazem paraconservá-lo.

As entrevistas foram realizadas durante visitasnas propriedades. Inicialmente, a entrevista foirealizada com o agricultor, procurando abordar astrês questões. Em seguida foram realizadascaminhadas transversais na propriedade onde oagricultor localizava áreas representativas dasdiferentes características mencionadas durante asentrevistas, classificando a sua unidade agrícolaem dois ambientes distintos, caracterizados comosolos de alta qualidade (SQA) e solos de baixaqualidade (SQB) para a produção agrícola. Asinformações fornecidas durante as 14 entrevistas ecaminhadas realizadas nas unidades agrícolasfamiliares foram gravadas, com o consentimentodos entrevistados, para posterior análise.

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Tabela 2 : Classificação dos indicadores da Qualidade do Solo mencionados pelos agricultores defumo orgânico do município de Canguçu-RS em morfológicos, físicos, químicos e biológicos.

Os resultados obtidos nas entrevistas e nascaminhadas foram organizados, analisados ediscutidos, comparando-os com o conhecimentoacadêmico. O método de análise dos dados foibasicamente qualitativo.

Resultados e DiscussãoIndicadores da Qualidade do SoloA partir da análise das informações emitidas

pelos agricultores, foram identificados quatorzeindicadores de Qualidade do Solo de acordo com apercepção dos agricultores entrevistados. Osindicadores foram classificados em quatro grupos:morfológicos, físicos, químicos e biológicos (Tabela2).

Os indicadores mais facilmente percebidospelos agricultores estudados foram àquelesrelacionados com as características físicas dossolos, já que esses são mais visíveis e alteradospela forma de manejo empregado. Entre osindicadores físicos identificados, estão: densidade,porosidade, estrutura e textura do solo (Tabela 2).A densidade foi mencionada por 93% dosagricultores entrevistados e os seus sinaispuderam ser observados de forma visual, atravésdo desenvolvimento e aparência das plantas e pelafacilidade de preparar o solo. Segundo osagricultores, a densidade dificulta odesenvolvimento das raízes e o armazenamentode água, sendo um dos principais indicativos desolos de baixa qualidade (SQB). Tal afirmação écomprovada pelos valores de densidade eporosidade evidenciados pela tabela 1, onde seobserva que os solos de alta qualidade (SAQ)apresentam uma menor DS e maior Pt, sugerindo,portanto, melhor penetração das raízes edisponibilidade de água/ar para umdesenvolvimento potencial das plantas.

Esta propriedade é quantificada pelosagricultores pela maior ou menor facilidade depreparar a terra, seja de forma manual oumecanizada.

Estudos revelam que a alta densidade do soloestá associada à compactação e ocorre devido àdegradação da sua estrutura. Segundo Letey(1985), a estrutura do solo não é um fator decrescimento das plantas ou indicativo direto daqualidade ambiental. Porém, tem papelfundamental sobre a Qualidade do Solo,influenciando indiretamente os fatoresrelacionados ao suprimento de água, à aeração, àdisponibilidade de nutrientes, à atividademicrobiana, à penetração de raízes e àcompactação. Este fato é ilustrado pela afirmaçãode um dos agricultores: “Terra mais dura produzmenos... terra mais solta é melhor” (Agricultor 2).

A qualidade estrutural de um solo é, portanto,um dos fatores importantes que define outraspropriedades físicas do solo. Segundo Lima et al.(2009), as mobilizações intensivas do solo, sobcondições inadequadas de umidade e decobertura vegetal, são os principais responsáveispela degradação da estrutura do solo, afetandobasicamente as relações entre as propriedadefísicas, químicas e biológicas do solo.

A porosidade do solo também representa umdos principais indicadores da Qualidade do Solo.De acordo com os agricultores entrevistados, aporosidade é percebida pela aeração do solo epela sua capacidade de infiltrar e armazenar água.Segundo Lima et al. (2007), a porosidade éimportante para o adequado crescimento dasplantas, que necessitam de uma estrutura quepossibilite uma área de contato entre as raízes e osolo, que assegure a obtenção de água enutrientes e um suficiente espaço poroso para ofornecimento adequado de oxigênio. Esta relaçãoentre a porosidade e outras propriedades físicas e,conseqüentemente, com a produção pode serevidenciado pelo relato: “A terra é como umapessoa: sem oxigênio não produz nada” (Agricultor1).

Outro fator que influencia a quantidade de ar ede água que as plantas em crescimento podem

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obter é a textura do solo. A textura é umacaracterística física do solo que menos sofrealteração ao longo do tempo. É percebida pelosagricultores através da presença do “saibro”. Deacordo com as características mencionadas pelosagricultores participantes do estudo, a respeito dosaibro, foi possível defini-lo como uma camadasub-superficial argilosa (horizonte B, no caso dosArgissolos), que fica exposta, devido ao manejoinadequado do solo e/ou erosão. De acordo com apercepção dos agricultores, o saibro é o principalindicador de solos de baixa qualidade e, segundoeles, apresenta características desfavoráveis àprodução agrícola, como alta densidade, queimplica em maior resistência ao desenvolvimentodas plantas, além de armazenar menos água epossuir menor reserva de nutrientes disponíveis.Estas propriedades influenciam diretamente nataxa de infiltração e capacidade de retenção deágua, na aeração, na disponibilidade de nutrientes,e na estabilidade de agregados. Esta situação éilustrada pela seguinte afirmação do Agricultor 1:“Em alguns lugares, não tem mais nada de terraem cima, só saibro... onde tem saibro o solo ficatão duro e tão compactado que não entra o arado”.

Entre os indicadores químicos e biológicos, amatéria orgânica e as plantas espontâneas forammencionadas por 87% dos agricultoresentrevistados, enquanto a disponibilidade denutrientes químicos e os organismos presentes nosolo por 60% dos agricultores (Tabela 2).

A matéria orgânica é um importante indicadorda Qualidade do Solo, pois exerce grandeinfluência sobre suas propriedades químicas,físicas e biológicas (CONCEIÇÃO et al., 2005).Dentre as propriedades físicas, a matéria orgânicamelhora, principalmente, a estrutura dos solos e aestabilidade dos agregados o que resulta em umamelhor resistência do solo à erosão (CARTER,2002). Em relação às propriedades químicas ebiológicas do solo, a matéria orgânica aumenta adisponibilidade de nutrientes para as plantas e

atua como fonte de energia para a biomassamicrobiana e a população de organismos (DORANet al., 2000).

Os benefícios proporcionados pela interaçãoentre a matéria orgânica e as propriedades físicas,químicas e biológicas do solo não são percebidosfacilmente de forma visual ou durante o preparo dosolo, mas foram percebidos pelos agricultoresdeste estudo como essenciais para o crescimentoe desenvolvimento das plantas, pois elesconfirmaram as relações expostas acima, em seusrelatos. A matéria orgânica é conhecida pelosagricultores como a “gordura do solo” ou “nata” e,segundo eles, é o componente do solo queapresenta todos os nutrientes que as plantasprecisam para se desenvolver sendo resultante dadecomposição do material orgânico. A importânciada matéria orgânica do solo para a Qualidade doSolo foi claramente mostrada pelas seguintescitações dos agricultores: “Terra boa tem que tergordura” (Agricultor 4); A nata tem todos osnutrientes que a planta precisa: P, K, N” (Agricultor1). Aqui, mais uma vez, evidencia-se a relaçãopositiva do saber dos agricultores com os valoresquantitativos das análises de solo (Tabela 1) jáque, na maioria das vezes, os SAQ apresentamteores mais elevados de carbono orgânico, cálcio,magnésio, fósforo, potássio e capacidade de trocade cátions, portanto solos com maior potencial defertilidade quando comparados aos SBQ.

Segundo os agricultores, os organismospresentes no solo proporcionam inúmerosbenefícios, entre eles a decomposição da matériaorgânica, a ciclagem de nutrientes, a melhoria naestruturação do solo, corroborando com osestudos de Morselli (2009). Os organismospresentes no solo estão presentes em maiorquantidade na superfície e sua população éafetada, principalmente, pelas propriedades físicas(como umidade e temperatura), químicas (comonutrientes e pH, ) entre outras modificaçõesdecorrentes de impactos antropogênicos

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(MORSELLI, 2009).Os indicadores morfológicos de Qualidade do

Solo apresentaram o maior número de variáveis ea erosão foi citada por 100% dos agricultores,seguida do indicador desenvolvimento e aparênciadas plantas, profundidade da camada arável,cobertura do solo, cor do solo e o relevo, comoindicadores da Qualidade do Solo (Tabela 2).Segundo os agricultores, estes são fáceis deidentificar visivelmente no campo e estãorelacionados às formas de manejo dos solos,enquanto que os indicadores físicos, além deserem visíveis, são sentidos quando trabalhados.

A erosão foi o indicador morfológico de maisfácil visualização pelos agricultores, uma vez quefoi evidenciada por todos os agricultoresentrevistados. A erosão expõe a camada sub-superficial do solo, definida pelos agricultoresestudados como saibro, caracterizada pelo altoteor de argila e, no caso desse estudo, pelacoloração amarelada. Segundo tais agricultores, osaibro dificulta as atividades agrícolas como podeser observado no relato do Agricultor 12: “Onde aterra não é bem cuidada a água lava... leva a terraboa... ai fica só o saibro”.

Segundo Machado et al. (2007), a erosão estáentre as principais formas de degradação dossolos, acarretando prejuízos de ordem econômica,ambiental e social. Os agricultores relataram queas áreas afetadas pela erosão apresentam menorcapacidade produtiva. De acordo com a percepçãodos agricultores estudados tal diminuição dacapacidade produtiva, devido à erosão, éevidenciada pela redução do número de plantasespontâneas e pela aparência e desenvolvimentotanto das plantas espontâneas quanto dascultivadas. Isto pode estar relacionada à perda dascondições desejáveis do solo para o crescimento edesenvolvimento das plantas, como por exemplo,perda da estrutura do solo, causando compactaçãoe, conseqüentemente, menor capacidade de

armazenamento de água.As plantas espontâneas são importantes

indicadoras de Qualidade do Solo (ALTIERI,2002). A presença destas está associada àsplantas cultivadas, com o propósito da adubaçãoverde, promovem a cobertura do solo e atendem ainúmeros propósitos que trazem benefícios como:manter o solo coberto, minimizando os efeitos daerosão; ciclagem de nutrientes; incorporação dematerial orgânico ao solo, promovendo a melhoriada sua estrutura; rompimento das camadascompactadas, favorecendo o desenvolvimento dasraízes e a infiltração da água das chuvas(FAVERO et al., 2000).

O desenvolvimento e a aparência das plantas(cultivadas e espontâneas) é um indicador quepermite avaliar as condições do solo em relação assuas características físicas, químicas e biológicas.De forma visual, essa avaliação é feita através daobservação do crescimento e da coloração dasplantas. Segundo os agricultores estudados, omelhor desenvolvimento das plantas écaracterizado pela altura, pela coloração verdeintensa e por apresentar maior resistência aosfatores climáticos, pois não encontram fatoreslimitantes ao seu crescimento. Característicasobservadas nos seguintes relatos: “Quando asplantas são verdes a terra é boa” (Agricultor3);“Terra boa tem tudo que é sujeira1” (Agricultor6); “Adubação verde ajuda a voltar à energia2 daterra” (Agricultor 2).

Os agricultores estudados não relacionaram ostipos de vegetação espontânea e a qualidade dosseus solos, ao contrário dos resultados do estudode Barrios & Trejo (2003). Estes autores sugeremuma lista de plantas espontâneas associadas aosindicadores da Qualidade do Solo de diferentesregiões da América Latina. No caso deste estudo,os agricultores estavam mais interessados emsaber se há ou não vegetação espontânea. Essesresultados também foram salientados no estudo de

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Lima (2007).A profundidade do solo e o relevo também são

indicadores morfológicos que, segundo apercepção dos agricultores, determinam aQualidade do Solo, pois influenciam odesenvolvimento das plantas e a capacidade dearmazenamento de água do solo. SegundoCorreia et al. (2007), o relevo é uma daspropriedades usadas para estabelecer diferençasentre ambientes dentro de uma propriedade. Soloslocalizados nas porções mais altas apresentam-semais rasos e mais suscetíveis ao processo erosivoe com menor capacidade de infiltração earmazenamento de água. Isto é confirmado pelaafirmação de um dos agricultores: “Onde o solo émais profundo produz melhor” (Agricultor 6).

Outro indicador percebido pelos agricultores foia cor do solo. Grande parte dos agricultores (60%)evidenciou que solos com cores mais escuras sãomais férteis e cores mais claras são mais pobres.A coloração mais escura, segundo eles, estarialigada a presença de material orgânico, sendomelhores para a produção agrícola. Enquanto ossolos mais amarelados, que neste caso se referemao saibro, são considerados menos produtivos, porapresentar restrições ao desenvolvimento dasplantas. O uso da cor do solo como indicador dequalidade tem sido reportado em outros estudoscomo Barrios & Trejo (2003).

Os indicadores de qualidade identificados apartir da percepção dos agricultores são de grandeimportância para avaliação da qualidade dos solosda região estudada. Pois, além de seremabrangentes e permitirem avaliar o sistema deprodução, possibilitam mensurar as mudançasocorridas ao longo do tempo sem deixar de seremobjetivos e claros.

Conservação e manejo do soloCom a identificação e quantificação dos

indicadores da Qualidade do Solo das unidades

agrícolas estudadas foi possível avaliar aconservação e o manejo dos solos e suasimplicações de acordo com a percepção dosagricultores.

Observou-se que o manejo inadequado dosolo, segundo os agricultores, provoca mudançasnas propriedades do solo. As técnicas de manejoempregadas durante e após as operações depreparo do solo para o plantio influenciamdiretamente as propriedades relacionadas a ele,propiciando sua degradação.

O relevo é, entre os fatores avaliados pelosagricultores, o que mais auxilia na identificação domanejo a ser empregado em cada solo. Osagricultores identificam os solos localizados nasáreas de relevo que possuem menor declividadecomo as de melhor capacidade produtiva, já quesão mais profundos e menos degradados peloprocesso erosivo. Segundo eles, a Qualidade doSolo para a atividade agrícola, em relação àposição que ocupa no relevo, varia de acordo comas formas de manejo empregadas ao longo demuitos anos. Tal manejo baseava-se no preparointensivo do solo, deixando o mesmo exposto àscondições climáticas, ocasionando processoserosivos, que, em muitos casos, podem serseveros.

A fim de minimizar os impactos causados pelopreparo convencional, os quatorze agricultoresparticipantes deste estudo, dizem utilizar técnicasbaseadas nos princípios do manejoconservacionista do solo, considerado por elescomo práticas indispensáveis para manter acapacidade produtiva. Dentre essas técnicas, cita-se: o uso de adubos orgânicos, a cobertura dosolo para fins de proteção de superfície eincorporação como adubo verde, o uso decalcário, o plantio em curvas de nível, a prática depousio e o preparo do solo realizado emcondições ideais de umidade para não ocasionara compactação. Agricultores ressaltaram, ainda,

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que a incorporação de material orgânico (cama deaviário e adubação verde) promove a melhoria daQualidade do Solo e do desenvolvimento dasplantas, pois melhora a estrutura do solo,promovendo a descompactação, aumentando aporosidade total e a conservação da umidade pormais tempo, o que favorece a atividade biológica.Este resultado esta de acordo com Lima et al.(2007), que ainda ressaltaram que o materialorgânico promove a melhoria da estabilidade deagregados, disponibilidade de nutrientes eretenção de água no solo. Ademais, segundo

Casalinho et al. (2007), o manejo baseado no usode plantas de cobertura e adubação verdeproporciona vantagens ao solo como recuperaçãode áreas degradadas, além de fornecer materialorgânico de rápida decomposição, incrementandoa atividade microbiana.

A percepção dos agricultores permite ressaltarque o manejo empregado ao longo dos anosresultou em mudanças como diminuição daquantidade de material orgânico presente nasuperfície do solo, decorrente da perda dohorizonte A pelo processo erosivo. Segundo os

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Tabela 3: Percepção dos agricultores acerca dos indicadores da Qualidade do Solo associada àclassificação dos ecossistemas em Solos de Alta Qualidade (SAQ) e Solos de Baixa Qualidade(SBQ).

agricultores percebem que o sistema usado para opreparo do solo promove a sua degradação física,química e biológica. Os problemas decorrentes domanejo não conservacionista nas propriedades dosolo são basicamente: erosão, compactação,queda da biodiversidade e perda de nutrientes,sendo que os dois últimos são influenciados pelaestrutura do solo e por fatores ambientais comoumidade e temperatura. Esses resultadoscorroboram com os resultados encontrados porMelfi et al. (1999).

A conservação do solo deve ser entendidacomo uma combinação de métodos de manejo ede uso do solo, com a finalidade de protegê-locontra as deteriorações induzidas por fatoresantropogênicos ou naturais. Na maioria dassituações práticas, procura-se evitar a erosão, masas técnicas conservacionistas vão além dessapreocupação. Busca-se também proteger o solodos danos causados pela atividade agropecuária,como a compactação ou desagregação excessiva(NAIME, 2005). Essa afirmação pode serevidenciada pelo relato do Agricultor 6: “Área maisalta é mais fraca, pois foi mal trabalhada, nunca foicolocada adubação verde, sempre teve muitoanimal em cima da terra... e o animal soca muito aterra... enterrar os restos da cultura e usaradubação verde deixa a terra mais solta, forte ecom mais umidade”.

Classificação da Qualidade do Solo e suarelação com o manejo e conservação

A partir das entrevistas e caminhadas, foipossível classificar as propriedades em doisecossistemas distintos: Solos de Alta Qualidade(SAQ) e Solos de Baixa Qualidade (SBQ). Essesecossistemas foram diferenciados pelosagricultores, conforme os indicadoresmencionados por eles, apresentados na tabela 3.

Quanto ao manejo e conservação dessesecossistemas, nota-se que os agricultores

empregam diferentes práticas, em diferentesintensidades, de acordo com as característicasnaturais de cada solo e, também, com ascaracterísticas alteradas pela ação antrópica. Nointuito de recuperar e/ou manter a capacidadeprodutiva, tanto nos SBQ quanto nos SAQ, todosos agricultores incorporam adubos orgânicos efazem a correção da acidez (uso do calcário).Alguns agricultores fazem o plantio em curvas denível para evitar processos erosivos. Porém, osresultados desse estudo revelam que o diferencialdessas práticas de manejo está relacionado,exclusivamente, com a intensidade de uso econservação do solo. Em outras palavras, anecessidade de aplicação de adubos orgânicosem SBQ é maior que em SAQ bem como o uso deterraços, por este estar localizado, na maioria doscasos, em zonas mais escarpadas. Entretanto,dificuldades tanto operacionais quanto financeiraslimitam o uso dessas práticas na região,condicionando as tomadas de decisões pelosagricultores. Essas formas de manejo já foram e,ainda estão, sendo estudadas para contribuir namelhoria da qualidade dos solos a nível regional(CONCEIÇÃO et al., 2005), nacional (DUARTE etal., 2008), bem como, em outros países, porexemplo, no Canadá (BOLINDER et al., 1999).

ConclusõesO presente trabalho permitiu demonstrar a

importância da etnopedologia na busca deindicadores para avaliação da Qualidade do Solo,bem como entender a percepção dos agricultoresa respeito do manejo e de sua influência naspropriedades físicas, químicas, biológicas emorfológicas e na conservação do solo.

Foi definido um conjunto de indicadores físicos(densidade, porosidade, estrutura e textura),químicos (matéria orgânica e nutrientes),biológicos (organismos e plantas espontâneas) emorfológicos (erosão, relevo, cobertura do solo,

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desenvolvimento das plantas, profundidade e cordo solo) propostos para a caracterização de solosde alta e baixa qualidade e que, se bemmanejados, permitem o desenvolvimentosustentável das áreas.

De acordo com a percepção dos agricultores,os indicadores mais úteis para avaliação daQualidade do Solo foram a erosão, a densidade, amatéria orgânica e a aparência e desenvolvimentodas plantas.

Percebeu-se que esses agricultores possuemuma visão holística da Qualidade do Solo, que ébaseada em processos dinâmicos da integraçãodas propriedades do solo com o meio.

Notas1 Plantas que nascem naturalmente.2 Nutrientes necessários para o desenvolvimentodas plantas.

AgradecimentosAos agricultores que possibilitaram a realização

deste trabalho, ao Conselho Nacional deDesenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoalde Nível Superior (CAPES) pelo auxílio financeiroa pesquisa.

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