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Po e s i a

Poemas

Marcos S i scar

marcos siscar nasceu em 1964. É poeta, tradutor e profes-sor de literatura na Universidade estadual de campinas.

Publicou os livros de poemas Metade da Arte (2003), O Roubo do Silêncio (2006), Interior via Satélite (2010) e Cadê uma coisa (2012), entre ou-tros. tem poemas traduzidos na Argentina, França, espanha, eUA, Bélgica e Alemanha. É tradutor de tristan corbière, michel deguy e Jacques roubaud. Publicou, também, os ensaios Jacques Derrida: Rhétorique et Philosophie (1998), Poesia e Crise (2010), Ana Cristina Cesar (2011) e Da Soberba da Poesia (2012).

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Marcos S i scar

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tombeauo túmulo está em toda parte na terraonde abrimos trincheiras à unha na águaem que nos afogamos de cerveja no fogodo tacho queimando calhamaços no aronde sepultamos balões coloridosburacos que fazemos em cada curvado cioso apego à história já escritasempre esteve ali e em outra partesempre nos serviu e nos deixou a ver navioso túmulo nos seduziu com o esquecimentocom o rock style da última estaçãomas nos deu memória e nos civilizoucomo a pedra e o nome só não estáno esquecimento da página não escritaou nela sobretudo como um buracoinvertido uma vasta superfície geladauma indiferença branca onde repousaa mordida aplacada de sua boca

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Poemas

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simplicidadea cidade é o que está diantenão tenho mais uma cidadenão me peça cores de simplicidadesei apenas disso e é muito simplespreciso daquilo que é simplesa cidade é o que está diante e jánão tenho uma simples cidadenão não tenho essa cidade(nem aquela assombreadaluzes amarelas sobre os seioscomo na boca o leite do dianem as outras reluzentesao calor da madrugada)não não as tenho em meu espelhoa cidade está mais à frente

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A distância consentidaqual é a distância certa da cidade? a alturacerta para ver a cidade? de onde a cidadenão seja apenas vista de onde não seja apenasmemória de outra ou miragem pressentidameu desejo desta tarde é o da distância certaum indício de reciprocidade uma ideia de alegrianão a ilusão panorâmica do visívelmas a distância consentida ali onde se aceitaa invenção da vida as insinuações da mortea camada de mortos e de vivos sob a vastaconstrução em curso metamorfose de cidademe pergunto onde estou e qual a distância certanada além ou aquém destanenhuma silhueta nada que passe caro kavafissombra ligeira sobre o topo das colinas

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Poemas

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contraluzquando saímos de casa dizemos que são outros temposas madeiras são envernizadas as memórias de demoliçãoo sol queima no rosto e tudo é demasiadamente realraios ultravioleta fios elétricos sobre os murosas manchas brancas de protetor solarquando voltamos o sol já não nos ilumina apenas as colinas no altoestão acesas de uma luz fosca mas nítidanenhum calor nos faz carícias sobre o corpo nenhumasombra nenhum ideal apenas o protetorsolar escorreos olhos ardeme enfim platão desce

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Nenhuma época é mais difícil que seu poemaao lado das meninas de abrigo e tênis nikesobre o tapete de grama o vendaval da tardepôs um véu de sementes de leucaenacomo sobre um tapete de grama tão sintéticagerminar a cabeça leucocephala de um poema?procuro soluções mudando perspectivascom um movimento para cima da cabeçavejo apenas entranhas de árvores e nada mudacurvado com a cabeça entre as pernas o mundose inverte mas tudo continua igualmente inerteadeus melenas adeus meninas de tênis nikeesmago mudas leucenas mas a vida é invasoragemina 100 por cento onde quer que caia

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Poemas

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dia útilum veículo longo de cana passa (slowmotion) puxando uma cortina de poeiraaqui dentro ao som do blues lá fora (corta)amplo silêncio chapado de azul motoresfuncionários (em off) preenchem buracosfumegantes lava negra de fuligem (close up)venho (corta) e diminuo há homens na pista(panorâmica plano próximo) homens ao marnenhum me olha ou se vê olhado apenas tapamburacos muitos homens muitos buracosabro o vidro o som do carro as britadeirasquentes enfurecidas (som direto uma peçade john cage) me evado (vista de trás) rumoà vida útil mais além outro grupo de homensem roupa melão caipira de pé em campoaberto (zoom out) inexplicavelmente passao tempo longe da pista a socar a terracom uma máquina de socar

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A vida nuaa bola de futebol cai no quintal do vizinhovai rolando até o quintal do vizinhoa bola cai e enquanto ainda rola o vizinhopega a esfera com as duas mãosnós gritamos a bola! o vizinho iradotalvez recompensado pega e cortasegura a bola com as duas mãoscomo com as presas um cãocorta com a faca retalha com as mãospeludas de estrangeiro nós gritamossem saber mais quem somose o que podemos (a bolapassa agora entre meu filho e eumeu filho é você é nossa bola que passamas quem ouviria meu gritoe se precipitaria meu filho!talvez a bola não seja a suanem de ninguém e de quem mais)poderia ser?

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Po e s i a

Poemas

Cesar Leal

cesar leal, poeta e crítico de poesia. Prof. emérito da UFPe. Pelos estudos sobre dante, foi condecorado com a Ordem

ao mérito da república italiana, no grau de Cavaliere. recebeu vários prêmios, entre eles, o machado de Assis, da ABl, e o Ars latina, da Associação dos escritores romenos. membro da APl.

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Cesar Leal

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O poder que tudo pode (Canto às armas e às letras russas)

tudo passa tão rápido: o domínioda lança macedônica de Alexandre o Grande,a espada e o escudo de caio Júlio,algoz de Vercingetorix,Pepino o Breve, carolíngios,carlos V, o poder do grandePedro, fundador de s. Petersburgo,mas não a força de Katharina a Grande,generalíssima na Geórgia,entre as armas e as letras:Pushkin, Blok, dostoiévski,tolstoi, Pasternak, tchekov, Gogole novamente a safira do Orienteonde nasceram e viveramem séculos passados os cossacos,homens sem medo que fizeram os czars,deixando para trás seus antigos príncipesindolentes, incapazesde enfrentara crueldade dos reis poloneses

que submetiam a humilhaçõesos cossacos como se fossem colonos,ou medrosos animais domésticos– mas isso foi há muito tempo –até que em certo verãosurgiram em Kievvindos das altas regiões dos Urais,do cáucaso,

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Poemas

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das vastas planícies da Ucrânia,e atéda turquia, grupos nômades,que buscaram enterrarnas estepesa tirania polaca,e eram duros e se diziam kosaksmontados em cavalos de puro-sangueà procura de combates e assim fundarama fronteira europeiae como bons guerreirosdefenderam a europa contraos hunos deátila, tarmelão, Gêngis-Khane outros olhos oblíquoscujo epicantoos faziam diferentes do olhar-safira do Ocidente,e se voltaram, margeando as fronteirasdas províncias asiáticas ao sul,e foram plantar armasnos confins da sibéria... nas grandes planíciesonde se uniam ao uivo tristedos lobos, triste como a servidãode suas vidas, ainda assim menos tristesque as canções de rilke e de seus anjos

menos terríveis que as pontas do sabre de ivan!

“Não é a rússia” – diziam eles –,“um símbolo carentede heroísmo eslavo...”.É a rússia, amante dos belos uniformes,

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de seus museus, de suas artes,de suas belas mulheres, belascomo o riso de Bolskonkaia,rússia de Khlébnikov, Blok e maiakovski,orgulhosa de seu braço militar,fundadora do império euro-asiático,mãe do poder e da glória de uma aristocracia

(armada e amada por seus guerreiros nômades)que viveram há muitos séculos,e também no século xxquando já não se falava de nostalgia e servidão,na realidade gente alegre,um povo de fala mais forteque a voz dos tsunamis,rápidos nos sabres como os tufões da china,voltando suas armas contra a tirania polonesa,lutavam durante o dia, e à noite adormeciama ouvir o grito da marmotaque os acalentava no sonoenquanto enchia de geloo coração e a mente do inimigo.

A estepe é um bosque sagrado, ó amadas planícies,campo florido, oceano expressopela rítmica linguagemde poetas, romancistas e dramaturgos,narradores de tantos feitos heroicos,de Taras Bulba,a quem Gogol deu vida imortal,abrigo de soldadose camponeses duros como o diamante,

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Poemas

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que bebiam gorielka em copos de ouro,ásperos na arma branca, belos como as ametistas,que cobrem a Grande mesa central da sibériacomo se fossem grãos de areia nas praiasde todos os mares do mundo,despertos, como os gigantesguardiães da muralha erguida por deusentre as chamas e o gelo do inferno:(o malebolge e o cocito)!em tempos recentes (os três últimos séculos)venceram suecos, franceses e alemães,também venceram... e protegeram muçulmanos,em tempos mais remotos criaram seus césares:homens em vigília,cristãos perfeitos, com músculos de aço,perfilados frente ao futuro a vigiaro tempo e as seis direções do espaço!

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Cesar Leal

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Paisagens do rio A Fernando Py

monótono canto dos pássaros na tarderumor das ondas, que não alegra a alma,as muradas de pedras muito antigase não sendo leves mas altas e montadasuma sobre as outras, nenhum gigante poderátê-las unidas ali. Vejam a pedra da Gáveaquantos olhares já convergiram para elaque ali se mantém rodeada pelas tristeshoras das favelas, quando começa a dançadas balas, com seu zumbir de abelhas,e a morte a olhar os pacotes de heroína,dólares que passam com efígies de Jefferson, Washingtone Franklinaté desceram ao fundo dos oceanosonde adormecerãosobre a sombra das pesadas águasao lado dos ossos das baleias,dos insones tubarões e outros animais marinhos.

da Praia do Flamengo, modificada pelo aterro de lota, eP vê em seus horizontes interioresas mesmas paisagens contempladas por Quincas o Belo,cuja cadeira ele ocupa na ABl.

A Quarta Cruz de Weydson Barros leal– leia o Timeu – mostra como cada asa deltaparte dos ombros do redentor para a altura, em busca de sua estrela!

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Viva Platão que tanta luz e tanta sombra criou...subindo ao infinito, à procura da Spherade ml,ou descendo

no avião, avista-se a igreja da Penha,onde os anjos convivem com a morte no espantoso complexo do Alemão...tal nome irá ser esquecido!

embaixo, mas muito mais distante, – já fora da Baía –, o rumor dos ventos,o maralto a balançar as ondas e cada ondaé uma nova onda, nunca duas iguais,a respingar ao longe gotas frias neste solde dezembrodo rio de Janeiro, quando os pombos,fracos e famintos, tropeçam em nossos pés,onde o Poder é lenda, o Poder do catete,de Getúlio a JK,pois as lendas vão surgindo e com elassuas vidas encurtando nas grandes cidades.sempre, sempre o rio de Janeiro...

(comparem a megalópole são Paulo – riquezae catástrofe arquitetônica – com a encantadaBrasília, flor da democracia, onde na Praçados três Poderes cresce, a cada dia, em cada mão– como nos states, no reino Unido. Na rússia, em israel ou no Japão –a dourada flor da corrupção! )

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Cesar Leal

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Os dois tamarindos A Aécia Leal

No sonho duas imagens: dois tamarindosno pátioonde frutos, folhas e ninhos nos galhosse misturavam.

Grandes cavalos castanhos às sombrasdaquelas árvoresbatiam os cascos no solo como se pedissembanhos.

As cilhas das fortes celas eram entãoafrouxadasnum lado, couro curtido, noutro douradasfivelas.

em frente ficava a casa erguida diantedo tempoBelmonte que já cantei nas invençõesde 50.

Hoje de Belmonte restam no tempo tristesescombrosmas os mortos tamarindos resistem vivosnos sonhos.