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Antônio Osório

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Page 1: REVISTA BRASILEIRA 60-PANTONE - academia.org.br BRASILEIRA 60-POESIA... · Joel, cap. I, v. 4 A Lêdo Ivo Os teus profetas ainda profetizam? A lepra, a boca estuporada, as mãos apodrecidas

Antônio Osório

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O Enigma dos Homens� Poemas do Lusitano e Universal

Antônio Osório

Apresentação e SeleçãoCarlos Nejar

O Poeta Antônio Osório nasceu em Setúbal, Portugal, em1933, filho de pai lusitano e de mãe italiana, com origem

sarda. Pertence à Academia de Ciências de Lisboa. É editor fundadorda coleção “Ponte Velha”, com este que ora subscreve, editandoautores portugueses, pela editora Escrituras. Hoje traduzido em vá-rios idiomas, estreou com Raiz Afetuosa (1972), publicou livros que jáintegram a melhor criação de língua portuguesa: entre eles, A Ignorânciada Morte (1982), editado no Brasil (2003); O Lugar do Amor (1985);Décima Aurora (1982); Adão, Eva e os Mais (1983); Planetário e Zoo dos Ho-mens (1990); Bestiário (1997). Atualmente está sendo preparada umaAntologia mais ampla de sua obra, intitulada Enigma dos Homens. Afir-ma a seu respeito, Ivan Junqueira:

“Ao contrário do que ocorre com quase toda a poesia portuguesacontemporânea, a de Antônio Osório não paga tributo algum ao

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Poes ia Estrange ira

Ocupante daCadeira 4na AcademiaBrasileira deLetras.

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Surrealismo, o que mais uma vez comprova que ela evoluiu inteiramente à mar-gem de certos modismos literários vigentes em Portugal durante a metade doséculo XX. E isso talvez explique porque sua estreia foi tardia. Tardia e inde-pendente. E digo-o, enfim e ao cabo, porque nela jamais se percebe a mesqui-nhez e o efêmero que contaminam consideráveis vertentes desse traiçoeiro co-loquialismo subjetivista em que se perdeu boa parte da lírica de nossos dias”.

Assegura Eduardo Lourenço: “A poesia de Antônio Osório toca mais fundo, gra-ças a esse quase indecifrável sorriso transcendental que a envolve, onde a ternurase disputa com a lucidez amarga”, Poeta da morte e do amor, dos seres esqueci-dos e humilhados e das fraternas coisas, todas na raiz mais afetuosa, é a um tem-po moderno e antiquíssimo, ligado mais à tradição da poesia italiana – de Dantea Montale e Saba – que à lírica portuguesa – contido, límpido, denso, inventivo,humano, suscitador de silêncios – é para nós o maior poeta vivo de Portugal.

Elegia para Mário Quintana, vivo

Antes que escapee não adivinhe o exacto momento,antecipo-me a Sua Ex.a

e auguro-lhe, tarde, a vida eterna.

Já agora, continue os seusApontamentos de História Sobrenatural:por porta travessa faça chegaro Manual do Perfeito Abismo.

E fale dessa história obsessivado cricrilar dos grilos(parecido com o cantarolardos seus vermes?)Diga ao menos se conseguiu

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encontrar Botticelli,de quem o senhor descende:entreajudem-se.

E, se a coisa o não embaraçar,ilumine-nos com a enormidadeda sapiência divina.Peça-lhe (é preciso audáciacom Deus) que assinea sua ordem de expulsão– e volte, gestante,pelo túnel de outra vida.

Aldeia de irmãos

Ao pé dos eucaliptos,do lavadouro, as casas.Capela fechada, oficiantes ratos,e cães, patos, galosna rua e a dormir dentro,individuais, sub-reptícios.

E doentes, cavadores, criançassonhando com ninhos destruídos.Longe, na paróquia o cemitério.

Em torno vinhas, olivais,irmãos uns dos outroscomo tijolos dentro da parede.E no Inverno o cantoda lenha exorbitando na lareira,a queimar, a queimar a cinza por debaixo.

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O Eni gma do s Homen s

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Fala o tractor

Não gosto deste perfil de gafanhoto.Constante sou, trepido, usam-me,servo da gleba. Rasgo e acamo,tenho um veio de dolorosa, serenatransmissão. Custa levar de rojouma vaca à cova. Esmaguei jáuma perna. Detesto o peso do reboque.Cinco anos e ainda não percebo estassujas peças que rodam em mim.A escavadora, ao menos, uiva(amo-a). Não me agrada a sucata.

Larva

Larva processionáriados pinheiros, que dizerde sua sagacidade?Que réquiem celebrasobre a areia e caruma estival?A quem serve, qual o dragãosassânida que rege a sua paciência?De que pacto indignofoi vítima? Quem amafora das suas destruições?Onde escolhe o túmulo? Na resinaficará embebida? Quem decidedo último segundo de uma larva?

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António

I bambini sono tenerie feroci. Non sannola differenza che c’ètra un corpo e la sua cenere.

Eugenio Montale

1Na terra gostas de te deitar.Um dia saberás quanto isso custa.

2Como é que se faz o céu?Como é que se faz por dentro a árvore?

3Como é que se faz que cresces,como é que se faz por dentro a tua alma?

4Quase com os mesmos olhos(porque os teus aindase não comparam aos meus)vimos aquele bicho saído de casa.Rato grande, não menos curioso,que divertido olhava.

5Quantos dias depois de ter morridose volta a viver?

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6Resíduo inicial,mostraso primeiro dente caído.

Aprende: a sofrerse envelhece.

7Pai, o mundo nunca não acaba?

8De tantonão te supunha capaz– beijaresaquela sujae tranquila mãee depois,um por um,os filhos dela,seis bácoros.

9Como é que se vai ao céu?Fecha-se os olhose depois voamos?

10O que é isto?Uma perdiz embalsamada.E ela finge que está viva?

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11Sou um pai, dizespondo nos pés sapatos grandes.

Sonhas isso de ser homeme cansas-te. Sem mágoa voltasrealmente à infância.

12Felicidadede no teu quartojogares sozinho.

Assim fizesse os versos.

Gaivotas

Ao Azevedo

No Inverno pertence-lhes a praia. Outros ocupantes, de passo miúdo,apensionado, aterram, planando, no seu aeroporto, as gaivotas. Indiferentesaos cães, deles superiormente se esquivam.

Escolhem, para ver gente, o ponto iluminante dos candeeiros. São curiosas,úmidas, algo de pombo, milhafre, cinza.

No cais ao peixe-espada (ficarão sobre a areia, lota, saque da guerra) pesca-dores armam ratoeiras de nylon. Carapaus do anzol dissimulantes. Com bordo,garra de âncora.

As gaivotas aguardam o que não temem, as devoluções do mar. Belos, des-terrados abutres.

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Cavalo

Um dia chegaráque alguém se mostreagradecido e diga:– Entree coma à nossa mesa.

Uccello

A Raul de Carvalho

Os cavalos verdes e rosa, térreos ou brunos,apenas eles comportam serenidade.Os galgos são ferozes (reparai nos olhos)como os dragões que São Jorge sangra e anula.

Os coelhos fogem das batalhas e os homensextirpam-se. Que pensou da guerra este Paoloque o sobrenome em vida mereceu de Uccello?

Que ser abominável sulcou a históriado génesis e atingiu Adão, Eva e a criaçãodos animais? Eram batalhas, cenas de caçaou a violência indecifrável do inferno?Ou o inferno foi para ele o dilúvio, a precede Noé? Que arca, grande como o mundo,reservou para suas tintas e ossos?Continua voando sobre a própria inocência?

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Os loucos

Há vários tipos de louco.

O hitleriano, que barafusta.O solícito, que dirige o trânsito.O maníaco fala – só.

O idiota que se baba,explicado pelo psiquiatra gago.O legatário de outros,o que nos governa.

O depressivo que salvao mundo. Aqueles que o destroem.

E há sempre um(o mais intratável) que não desistee escreve versos.

Não gosto destes loucos.(Torturados pela escuridão, pela morte?)Gosto desta velha senhoraque ri, manso, pela rua, de felicidade.

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Bosch, o início

1TRÍPTICO DAS DELÍCIAS

Enquanto Adão, Eva e o maiseram criados, um gato abocavao primeiro rato.Iniludível a prepotênciado felino. Adão soerguidoEva desejava, nudez sua. E Deusabençoava os seus viventesconsagrando o bem e o mal que lhes fizera.

2AS TENTAÇÕES DE SANTO ANTÃO

A tentação maior,a tua, irremediável para o Santo,era o demónio cavalgante da morte.Inferno é ter um corpo,o nosso e dos seres que connoscose confundem em monstros vorazese voam como peixes, escadas, insectosque fossem anjos – não esse fogoiluminante da escuridão,essa lividezque a semente do girassol em si reveste,essa proliferaçãodo lobo temporal, dragões, serpentesque circundam um cego de nascença.

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3O CARRO DE FENO

Esta raivapara que serve, contra quemdesapiedado se dirige?

A quem pode pedir contasa alma de um boboou vesgo ou anão ostentandoa disforme cabeça?

Que mal impenetrávelfez o homem ao homem, quem corrompeuDeus em Deus, quem responderápor tudo e por todos no juízo final?

O Aleijadinho

Anuncio à Judeia o flagelo que serãopara a terra a lagarta, o gafanhoto,o besouro, a ferrugem do trigo.

Joel, cap. I, v. 4A Lêdo Ivo

Os teus profetas ainda profetizam?A lepra, a boca estuporada,as mãos apodrecidasna pedra serpentinosa e azulada?Que mudança proclamam,a ferocidade repetem:

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olhando o céu e montanhaspor escravos lacerados?

Os teus Cristos de cedro ainda sangram?Porque têm a doçura do beija-flore não foram cambados,bexiguentos, rastejantese sofriam, como tu, sem culpacerceando dedos torturados?Do mau ladrão qual a estirpe?A perfídia foi só de Judas?

Os teus leões funerários quem acusam?Fantasmas de rapina, estrangulantes?Ou teu lugar, aqui, na cinzenta laje,sob o altar da Senhora da Boa Morte?E foi ela realmente boa,liteira, candeia, cadeirinha de arruar,apesar de por ti, cego, pedida?Demónio acima do teu

a que cume ou floresta ou abismo enfim levou?

Como um pombo

...tutto non si può mai dire, né di séné degli altri, né dei vivi né dei morti.

Umberto Saba

Como um pombo do Piazzale Michelangelovoo, rua a rua, no céu de Florença.Procuro chegar ao telhado,

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à destruída casa de teus pais.Ficou no ar um pouco, que sorvo,de amor e angústia. Bebo no Arnoa tua última lágrima, igualà matéria do rio. Chego ao pontomais alto do Campanile de Giotto e ouçoos sinos que percorrem Fiesole, as colinase casas colónicas. Leonardocomprava no Mercato di San Lorenzoaves para lhes dar, de novo, asas.Agora sou eu quem voa amando por tie por mim a sua triste e orgulhosaalma, pouso no Battisteroporque sei que Dante foi ali baptizadoe conspurco em Orsanmichele a cabeça de San Giorgiotocando no bronze que teve a mão de Donatello.Ó coisas ocres, de açafrão, enegrecidas,sobre as quais voo buscando pedaços de pãoque transeuntes dadivosos oferecem.E à espera que uma persiana se abrae encontre, Mãe, um rosto que lembre o teue onde nessa mão eu chegue e coma.

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