revista argumenta nº9 fundinop

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ISSN – 1676-2800 ARGUMENTA REVISTA DO PROGRAMA DE MESTRADO EM CIÊNCIA JURÍDICA DA FUNDINOPI JACAREZINHO - PARANÁ

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Page 1: Revista Argumenta Nº9 FUNDINOP

ISSN – 1676-2800

ARGUMENTA

REVISTA DO

PROGRAMA DE

MESTRADO EM

CIÊNCIA JURÍDICA

DA FUNDINOPI

JACAREZINHO - PARANÁ

Page 2: Revista Argumenta Nº9 FUNDINOP

DIRETORNassif Miguel

VICE-DIRETORSérgio Vaz

EDITOR RESPONSÁVELEduardo Augusto Salomão Cambi - UENP

CONSELHO EDITORIALCelso Ludwig - UFPR

Fernando de Brito Alves - UENPGilberto Giacoia - UENP

Mario Frota – Universidade de Paris XIIOswaldo Giacóia Júnior – UNICAMP

Samia Saad Gallotti Bonavides - UENPVladimir Brega Filho - UENP

Zulmar Fachin – UEL

CONSELHO TÉCNICO-CIENTÍFICOCarla Bertoncini - FIO

Eliana Franco Neme - ITEGelson Amaro de Souza - UENP

Ricardo Pinha Alonso - FIOSergio Tibiriça Amaral – FIAET

LINHA EDITORIALEstado e Responsabilidade: questões críticas

Função Política do Direito

COORDENAÇÃO DO PROGRAMA DE MESTRADOEM CIÊNCIA JURÍDICA

Vladimir Brega Filho

ASSESSORIA TÉCNICAMaria Natalina Costa

CTP e ImpressãoFotolaser Gráfica e Editora Ltda

FICHA CATALOGRÁFICA

Argumenta: Revista do Programa de Mestrado em Ciência Jurídica, daFUNDINOPI / Centro de Pesquisa e Pós-Graduação (CPEPG), Conselhode Pesquisa e Pós-Graduação (CONPESQ), Faculdade Estadual de Direitodo Norte Pioneiro. n. 9 (julho-dezembro) – Jacarezinho, 2008.

Periodicidade: semestralISSN 1676-2800

1. Direito – Periódicos. 1. Faculdade Estadual de Direito do Norte Pioneiro(FUNDINOPI)

CDU 34(05)CDDir 340

As idéias emitidas nos artigos são de inteira responsabilidade de seus autores.É permitida a reprodução dos artigos desde que seja citada a fonte.

Pede-se permuta. Exchange is solicited. Piedese canje. Si prega l’ intercambio.

IMPRESSA EM FEVEREIRO DE 2009

Page 3: Revista Argumenta Nº9 FUNDINOP

ARGUMENTANúmero 9 Julho/Dezembro, 2009

REVISTA DO

PROGRAMA DE

MESTRADO EM

CIÊNCIA JURÍDICA

DA FUNDINOPI

JACAREZINHO – PARANÁ

Page 4: Revista Argumenta Nº9 FUNDINOP

Faculdade Estadual de Direito do Norte

Pioneiro

CENTRO DE PESQUISA, EXTESÃO E PÓS-GRADUAÇÃO - CPEPGAssessor: Maurício Gonçalves Saliba

CONSELHO DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO - CONPESQCoordenadora: Samia Saad Gallotti Bonavides

DEPARTAMENTO DE DIREITO PÚBLICOChefe: Carlos Alberto Pini

DEPARTAMENTO DE DIREITO PRIVADOChefe: Sérgio Vaz

DEPARTAMENTO DE ESTUDOS CORRELATOSChefe: Paulo Ribeiro

DEPARTAMENTO DE DIREITO PROCESSUALChefe: Gilberto Giacoia

DEPARTAMENTO DE ESTÁGIOChefe: Samia Saad Gallotti Bonavides

PROGRAMA DE MESTRADO EM CIÊNCIA JURÍDICA

Coordenador: Vladimir Brega Filho

Vice-coordenadora: Samia Saad Gallotti Bonavides

Faculdade Estadual de Direito do Norte PioneiroAvenida Manoel Ribas, 711 – Centro – Caixa postal103

Jacarezinho – PR – CEP 86400-000 – Tel.: (43) 3525-0862Site: http:www.fundinop.br – e-mail: [email protected] – e-mail: [email protected]

Page 5: Revista Argumenta Nº9 FUNDINOP

SUMÁRIO

FUNÇÃO POLÍTICA DO DIREITO

SEGREGAÇÃO, SISTEMA CARCERÁRIO E DEMOCRACIA ........... 9Daniele C. MARCON

SOLIDARIEDADE E DIREITOS FUNDAMENTAIS NACONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988 ............................................ 25Paulo Sérgio ROSSO

GLOBALIZACIÓN Y RELACIONES LABORALES ............................. 41Haydée Andrea AMARANTE

LEITURA MORAL DA CONSTITUIÇÃO E SEUS LIMITES ................ 83Daniel Marques de CAMARGO

CONSIDERAÇÕES ACERCA DA FUNÇÃO DA PENA A PARTIRDE UMA ABORDAGEM CRIMINOLÓGICA ........................................ 101João Carlos Carvalho da SILVA

POLÍTICA CRIMINAL E BEM JURÍDICO PENAL .............................. 119José Eduardo Lourenço dos SANTOS

ANÁLISE CONSTITUCIONAL ACERCA DA CRISE ENTRE ALIBERDADE DE CRENÇA E O ESTADO LAICO ............................... 131Luis Otávio Vincenzi de AGOSTINHO

A GLOBALIZAÇÃO ECONÔMICA: PERSPECTIVASCONSTITUCIONAIS CONTEMPORÂNEAS....................................... 145Paulo Mazzante de PAULA

ESTADO E RESPONSABILIDADE: QUESTÕES CRÍTICAS

A PROTEÇÃO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS E ODIREITO INTERNACIONAL DO MEIO AMBIENTE ........................... 157Valério de Oliveira MAZZUOLI

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CONCEPTO, FUNDAMENTO Y PROTECCIÓN DE LOSDERECHOS HUMANOS EN EL ESTADO DEMOCRATICOY SOCIAL DE DERECHO ................................................................... 185Rafael Enrique Aguilera PORTALES

LIBERDADE DE EXPRESSÃO NA INTERNET: GLOBALIZAÇÃOE O DIREITO INTERNACIONAL ........................................................ 195Gelson Amaro de SOUZA FILHO

O TERCEIRO SETOR E A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA EMPORTUGAL ......................................................................................... 213Juliana Guimarães NOGUEIRA

DIREITO À EDUCAÇÃO: A EDUCAÇÃO COMO DIREITOFUNDAMENTAL NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 ............... 241Adriano ARANÃO

O TRATAMENTO CONSTITUCIONAL DAS QUESTÕESINDÍGENAS E O DIREITO DE PROPRIEDADE: ASPECTOSCRÍTICOS ........................................................................................... 259Márcia Cristina Altvater VILAS BOASCláudia Maria Felix De Vico ARANTES

A AÇÃO PREVISTA NA LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA –COMPETÊNCIA, LEGITIMIDADE, INTERESSE DE AGIRE OUTROS ASPECTOS POLÊMICOS .............................................. 277Arthur Mendes LOBO

PRODUÇÃO CIENTÍFICA:

DISSERTAÇÕES 2008 (Julho/Dezembro) .......................................... 309

NORMAS PARA APRESENTAÇÃO DE ORIGINAIS .......................... 313

Revista do Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da Fundinopi

Page 7: Revista Argumenta Nº9 FUNDINOP

PREFÁCIO

É com muito prazer que faço o prefácio da Revista Argumenta número 9. Acada nova revista evidencia-se a consolidação do Programa de Mestrado daFundinopi através da qualidade dos artigos e da diversidade dos temas abordados.A revista é um veículo fundamental de divulgação das pesquisas dos discentes,docentes e convidados. Neste número, percebe-se a expressiva participação dacomunidade universitária, o que demonstra a compreensão de todos da suaimportância na divulgação dos trabalhos de pesquisa e a necessidade desocialização do conhecimento. É manifesto como o Programa de Mestrado daFundinopi significou uma importante ampliação da temática social e humanísticanas discussões das disciplinas. O curso de graduação acompanhou o mestrado ecaminhou para uma atualização do currículo, incrementando sua inserção crítica eatualizando sua grade curricular. Deixamos de enfocar exclusivamente o texto da leie passamos a percebê-la inserida num contexto social dialético e complexo. Nosdiversos artigos, temas como globalização, solidariedade, função da pena, liberdadede crença e expressão, educação, questões indígenas, desregulamentação domercado, desemprego e precariedade do trabalho, entre outros, são tratados comum novo olhar, menos legalista e mais humano, menos repressivo e conservador emais sensível e libertador. Esses temas vão ao encontro da necessidade de respostasàs grandes mudanças sociais e econômicas que estão em curso no planeta, queassolam o país e o mundo e das quais o direito não pode se esquivar. A difícilempreitada de estudar, pesquisar e divulgar é um compromisso de qualquerUniversidade séria e comprometida com a sociedade, o que, pelos artigos destarevista, podemos afirmar que a Fundinopi vem concretizando com muita competênciae distinção.

Assim sendo, essa nova revista é o reflexo de um trabalho árduo e frutíferode profissionais que acreditam na importância do estudo e da pesquisa como formade aprimorar o compromisso essencial do direito que é a busca continua da justiçasocial para a construção de um mundo mais fraterno e solidário. Além disso, osestudos aqui apresentados estarão, com certeza, promovendo uma maiorinterdisciplinaridade das diversas ciências, pois estão sintonizados com as grandesquestões de ordem social, econômica e política da atualidade.

Destarte, gostaríamos de convidar a todos para uma leitura atenta dosartigos, pois temos a certeza de que propiciará uma visão mais crítica e atualizadadas questões sociais atuais.

Dr. Maurício Gonçalves SalibaAssessor de Pesquisa, Extensão e Pós-Graduação

Revista do Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da Fundinopi

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FUNÇÃO POLÍTICA DO DIREITO

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SEGREGAÇÃO, SISTEMA CARCERÁRIO EDEMOCRACIA

Danieli Cristina MARCON *

SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Direito Penitenciário. 3. Finalidades da pena. 4. Odevido processo legal na execução penal. 5. Da democracia carcerária: direito aovoto pelos presos. 6. O problema da CLASSIFICAÇÃO CRIMINAL. 7. Da efetivaçãoda cidadania mediante processo educacional do preso. 8. Dos órgãos do sistemacarcerário e das Políticas Públicas. 9. A necessidade do trabalho para a efetivaçãodo objetivo de ressocializar o apenado. 10. Da ressocialização como efetivação dacidadania. 11. Violência gera violência e não democracia. 12. Soltura de presosmantidos em condições degradantes em Minas Gerais. 13. Aspectos conclusivos.14. Referências bibliográficas

RESUMO: Não há dúvidas sobre a estreita ligação existente entre a efetivação dademocracia e a realidade da execução penal brasileira. As altas taxas de criminalidade,a importância da segurança dos brasileiros, o respeito à vida, à liberdade e àpropriedade. As dissonâncias existentes entre a prática e a teoria na aplicação eexecução da pena, bem como, as condições insalubres dos presos, revelam umtotal desrespeito ao Estado Democrático de Direito. Tais fatos, expõem tanto apopulação carcerária, quanto a extramuros, a situações de extremo risco e falta derepresentatividade, criando-se um verdadeiro caos, constantemente revelado pelasrebeliões, pela matança e pela corrupção nas cadeias e fora delas. A única soluçãopara isso, é a luta pela ressocialização, com a qualificação correta dos presos(carceragem e trabalhos adequados à pessoa do preso e ao delito cometido), arespectiva individualização da pena, bem como, o direito do preso em ser tratadocomo ser humano, ou seja, direito ao menos, de possuir as condições mínimas desobrevivência como alimentação, saúde, educação e higiene.

ABSTRACT: Undeniable the narrow existing connection between efetivation ofthe democracy and, the reality of the Brazilian penal execution. The criminality rate,the Brazilians safety importance, the respect to life, to the freedom and to theproperty, the existing dissonances between practice and the theory, as well as, theprisoners’ unhealthy terms, reveal a total disrespect to the State Democratic ofRight and exposes so much the prison population, regarding outside walls, the

* Advogada militante no Estado do Paraná. Professora Universitária. Mestre em Ciências Jurídicas do Programa deMestrado da FUNDINOPI. Artigo Submetido em 13/06/2008. Artigo Aprovado em 25/08/2008.

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extreme risk situations and representativity lack, creating itself a true chaos,constantly revealed by the rebellions, by the slaughter and by the corruption in thejails and outside her. The only solution for that, as we see, is the fight byressocialization and prisoners’ correct qualification (prision and jobs adequate tothe prisoner person and to the committed delict), as well as, at least, the right to ofbeing treated as human being, in other words to the alimentation, health and hygiene,will like see during work.

PALAVRAS CHAVES: democracia, sistema penitenciário, sistema carcerário;execução penal; direitos humanos.

KEYWORDS: Democracy, penitentiary system, prison system; Penal execution;Human rights.

1. IntroduçãoInegável o caos em que se transformou o sistema carcerário brasileiro.

Desnecessário falar que possui falhas gravíssimas, atentando duplamente contra ademocracia e a cidadania do país: primeiro, com relação à falta de segurança doscivis como um todo; segundo, com relação a falta de dignidade que se aplica aosapenados, infrações diretas contra os direitos humanos.

Devido ao quadro instalado, a criminalidade aumenta de formaassustadora, e na mesma proporção, cai a credibilidade de todo o sistema punitivobrasileiro, desde à instalação do processo até a execução da pena.

Tem-se assim, apesar das duras penas aplicadas; uma visão de impunidadeque gera, dentro e fora das celas, um desejo de violência, remetendo o sistemapunitivo à fase de “vingança”, o que representa um retrocesso carcerário.

Os poderes públicos alegam como forma de justificação, problemasfinanceiros, no entanto, a corrupção e os constantes desvios de verbas, tornamainda mais incrédula a população brasileira, fazendo com que as alegações precedamde qualquer veracidade.

A população carcerária é tratada como uma sociedade à parte, totalmentesegregada. Vem reivindicando seus direitos através de rebeliões, e organizaçõesinternas de facções criminosas, as quais deixam à baila toda a fragilidade dasprisões e, toda a falta de segurança a que é exposta a população do país, antes edepois do iter punitivo.

Os direitos humanos são inerentes a qualquer ser da espécie, não sendo oapenado um ser “não humano”, apenas uma pessoa que está pagando por umilícito cometido, a qual não pode ser reduzida a espécie “sub-humana”, devendoser-lhe garantido, portanto, as condições mínimas de sobrevivência, um mínimo dedignidade.

Vê-se, que a falta de condições mínimas para a habitação nas celas, não

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aumenta a segurança do brasileiro que não se encontra atrás delas, ao contrário,diminui as chances de ressocialização do apenado e gera ainda mais exposição doscidadãos aos criminosos, eis que aumenta seu número.

Proporcionalmente, encontram-se infringidos os direitos conferidos peloEstado Democrático de Direito aos cidadãos, eis que o aumento da criminalidade ea não ressocialização dos apenados, também impedem que os direitos humanossejam aplicados aos não segregados, pois revelam uma situação de medo e terror,incompatíveis com o princípio da dignidade humana, onde, por qualquer motivo,independente de sua relevância, a vida pode ser retirada, o cidadão possa seratingido, gerando uma revolta ainda maior da população como um todo.

2. Direito PenitenciárioNo direito brasileiro, existe mais de uma denominação a este ramo jurídico,

o qual se encontra atualmente em voga, devido às manifestações realizadas pelospresos, às constantes rebeliões e mortes de pessoas ligadas diretamente ao sistemajudiciário, bem como à execução da pena.

Os doutrinadores citam algumas denominações: Ciência Penitenciária,Penologia, Direito da Execução Penal ou Direito Penal Executivo, e, o que achamosmais correto, tendo em vista o disposto no art. 24 da Constituição Federal vigente:Direito Penitenciário.

Em sendo assim, o Direito Penitenciário, se forma a partir da junção denormas relativas a diversos ramos do direito, tais como: Direito Penal, DireitoProcessual Penal, Direito Constitucional, Direito Administrativo, Direito do Trabalhoe, ainda, de princípios fundamentais, como a dignidade da pessoa humana e apresunção da inocência.

3. Finalidades da penaSabe-se que, a execução penal é realizada com duplo objetivo: de punir e

de recuperar o apenado trazendo-o de volta ao seio da sociedade, ou seja,ressocializando-o.

Sem dúvida a tarefa de ressocialização é de responsabilidade do Estado eda sociedade, reintegrando o apenado à esta, fazendo com que a coletividade fiquemais protegida e menos exposta aos atos delitivos.

Contrariamente, o que acontece é que o sistema carcerário é tão precário(presos doentes, sem assistência médica e hospitalar, péssima alimentação, semhigiene alguma, em locais insalubres, dormindo mal, sem assistência ou defesajudiciária, entre outros), que conduz a revolta dos apenados, bem como à assimilaçãode novas “técnicas” de crimes, pelos presos primários e de menor periculosidade.

Vê-se que, nas prisões, a ressocialização não acontece, ao contrário, opreso apenas torna-se um criminoso “ainda melhor, mais especializado”. Adiscriminação e o contato com apenados reicidentes faz com que a recuperação, naprática, seja indelevelmente prejudicada.

Na opinião de Mario Ottoboni (OTTOBONI, Mário. Ninguém é

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irrecuperável: APAC: a revolução do sistema penitenciário. São Paulo : CidadeNova. 1997. pg. 22.) : “a função da pena é dupla: punitiva e recuperativa. Punitivapela sua própria natureza e de emenda do infrator na sua essência. O delinqüenteé condenado e preso por imposição da sociedade, ao passo que recuperá-lo é umimperativo de ordem moral, do qual ninguém deve se escusar. A sociedade somentese sentirá protegida quando o preso for recuperado. A prisão existe por castigo enão para castigar, é a afirmação cujo conteúdo não se pode perder de vista. OEstado, enquanto persistir e ignorar que é indispensável cumprir a sua obrigaçãono que diz respeito à recuperação do condenado, deixará a sociedade desprotegida.Como é sabido, nossas prisões são verdadeiras escolas de violência ecriminalidade”.

A não ressocialização e a não garantia dos direitos humanos mínimos aopreso, desta feita, não realiza função preventiva junto à sociedade, ao contrário,aumenta o número de apenados, superlotando as prisões, aumentando acriminalidade, gerando ainda mais violência e insegurança, e este è exatamente, ocenário do sistema punitivo brasileiro.

Lamentavelmente, até mesmo quanto à redação das normas penaisaplicáveis pode-se ver a impropriedade da linguagem e a incoerência das linhasdoutrinárias, o que dificulta a correta e justa aplicação das penas, gerando aindamais conflitos e discriminações.

Assim sendo, a ressocialização em um sistema carcerário como o atual, èutópica, pois o acesso se torna cada vez mais complicado, ante à crescentecorrupção, desvio de verbas, aumento do crime organizado e a, dissonância entrea teoria e a prática do sistema penal vigente.

Não há como falar, em um quadro como este, de exercício da cidadania.Também não há dúvidas que sem cidadania não há democracia.

4. O devido processo legal na execução penalA garantia do devido processo legal, deveria ser um meio capaz não

somente de proporcionar processualmente a defesa do acusado, como também deproteger o trinômio: vida/liberdade/ propriedade (direitos humanosconstitucionalmente garantidos).

Em tese, para a aplicação da pena, deveria haver um “iter criminis”, paraque não houvesse a prisão infundada de determinada pessoa, cuja defesa nãotenha sido sólida, concreta, tecnicamente aprazível.

No entanto, como em todo o resto do sistema, tal realidade encontra-sesomente disposta em normas não aplicadas. Tal prerrogativa é garantida somenteabstratamente.

Cita-se aqui, o entendimento do advogado Ulisses Falci Junior, militantena prática criminal, no Estado do Paraná, em análise feita sobre a realidade daexecução penal no Brasil: “Na verdade a execução penal nada mais está servindodo que para “executar” os presos, em todos os sentidos, moral, profissional, epsicologicamente. Até mesmo a estética de um preso, a fisionomia, é modificada”

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(retirada de petição junto a processo crime, com a devida autorização do Autor).Desta feita, as normas penais, principalmente quanto à execução da pena,

não são aplicadas concretamente. Paradoxalmente, o que se vê é um processofalho, onde o acusado não possui defesa técnica qualificada, servindo na maioriadas vezes como cobaia para os iniciantes no direito penal (o que se torna aindamais grave no que se refere ao tribunal do Júri), e, ficando praticamente abandonadoquando da execução da pena.

O resultado de tal situação é o que se tem visto: a não aplicação correta daremição; os direitos dos presos hodiernamente infringidos; a progressão de regimeinadequadamente calculada; apenados que já cumpriram a pena e ainda continuampresos (onerando ainda mais os encargos do Estado); carceragens em situação decaos completo; mortes não esclarecidas e cada vez em maior escala dos apenados;chefões do crime com tratamento vip nas celas; classificação totalmente inadequadados detentos; não possibilidade/oferecimento de trabalho, e, enfim, a promessa deressocialização cada vez mais distante.

5. Da democracia carcerária: direito ao voto pelos presosO voto é a concretização da democracia. É a base da participação do cidadão

para a formação do Estado Democrático de Direito. É, também, infelizmente, o fimmaior dos investimentos financeiros politicamente “direcionados” pelas autoridadese representantes “populares”.

O sufrágio é um direito fundamental, cláusula pétrea (imodificável) e umdireito político garantido no art. 14 da Constituição Federal de 1988. Sendo que,para haver a cassação de tal direito deverá haver sentença criminal transitada emjulgado que expressamente o determine (deve conter na sentença a suspensão dodireito ao voto).

Mais que isso, o voto é obrigatório para os maiores de 18 anos, com rarasexceções expressamente determinadas em lei, não constam entre as exceções, ospresos.

No entanto, quando se fala em direito ao voto pelos presos, a indignaçãoé total, as pessoas são simplesmente intolerantes a tal possibilidade, esquecem-seque os presos também possuem capacidade para pensar e escolher, e que são sereshumanos tanto quanto os demais. Seres que cometeram ilícitos sim, mas que nempor isso deixam de ser humanos.

A segregação é tamanha, que a sociedade nem sequer discute apossibilidade de voto pelo preso, simplesmente repugnam tal situação. Osargumentos, no entanto, não convencem, mais do que isso, são estritamentediscriminatórios.

Não estamos, com isso, dizendo que os apenados são “santos” e que nãodevem pagar pelo que fizeram, inclusive com o veto de seus direitos políticos. Aintenção é demonstrar que o voto do apenado poderia trazer muitos benefíciospara a sociedade, apesar das dificuldades para a sua implantação, e que os presospor infrações menores poderiam não ter suspensos seus direitos de voto, de forma

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a continuar exercendo ainda que, em parte, a cidadania. Isto facilitaria a recolocaçãodos detentos no convívio junto à sociedade, após o cumprimento da pena (ouapós a concessão de algum benefício que os coloque em liberdade, ainda queprovisória).

Isto porque, como tudo no âmbito político gira em torno de interesses,com o voto o preso se tornaria novamente “interessante” politicamente falando,pois poderia novamente eleger representantes. Os políticos, assim, demonstrariammais interesse pela melhoria na qualidade da saúde, alimentação, higiene, entreoutras necessidades básicas do ser humano, junto às carceragens, o que poderiatornar as prisões ambientes mais propícios para que se chegasse um pouco maisperto de uma possível ressocialização do apenado, conforme já declinado.

Tal situação resultaria ainda na diminuição da quantidade de presosreincidentes, da criminalidade e, consequentemente, do superlotação das cadeiase do afogamento dos processos judiciais. Teria-se, como resultado, um efeito cascatabenéfico para a sociedade, no que diz respeito a toda a estrutura criminal existente.

O Professor Manoel Pedro Pimentel, na Câmara dos Deputados, quandoda denominada CPI do Sistema Penitenciário, publicada no documento do Ministérioda Justiça com o título Criminalidade e Violência, em 1990, volume dois, pelaImprensa Nacional, afirma: “... a solução rápida para o problema penitenciário édevolver ao preso seu direito de voto. Porque a hora em que o preso tiver direito avoto, ele e sua família despertarão interesses. Concluirão a favor dos interessespolíticos em resolver os problemas de ordem criminal e de ordem do sistemapenitenciário do País, escolhendo, por conseguinte, dirigentes que se preocupemcom as péssimas e desumanas condições dos estabelecimentos penais no Brasil.”

Destarte, o Código Penal Brasileiro determina, em seu art. 28, que o presodeverá conservar todos os direitos não restringidos pela perda da liberdade, sendoque a Lei de Execuções Penais determina que o Estado possui o dever de assistênciaao preso, em todos os sentidos, inclusive o de contatar com a Justiça Eleitoral pararequerer e exercer o direito ao voto.

É claro que tal situação traria também pontos negativos, como, por exemplo,o fato de que o voto exercido pelos presos poderia trazer à baila, a elegibilidade decandidatos com interesses ilícitos, tendo em vista que, a ressocialização em nossosistema carcerário (como já foi dito), é expediente de raríssimo acontecimento.

No entanto, como a liberdade é o bem maior do apenado, acreditamos quemovido por este interesse, o voto pudesse conscientizar o mesmo quanto àimportância de uma sociedade melhor, a qual tivesse um sistema de execução daspenas mais justo, igualitário e humano. Isso seria como votar em causa própria.

Outra dificuldade seria a de conseguir viabilizar o direito ao voto, seja dopreso provisório ou definitivo, o que poderia significar a modificação da lei eleitoralno sentido de possibilitar que os presos, já que restituído o seu direito ao voto,pudessem também funcionar como mesários, , exercitando a cidadania como partedo processo de ressocialização, com a possibilidade de escolha de seusrepresentantes, numa eleição absolutamente democrática.

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A experiência poderia ser realizada, pelo menos nas eleições presidenciaisonde a questão do domicílio eleitoral não teria tanta importância, para depois seevoluir para as eleições gerais, estabelecendo, por exemplo, para os presosprovisórios e definitivos, o voto em separado, como ocorre em outros paises.

Entretanto, para a efetivação de tal prerrogativa, a primeira providência aser tomada seria aquela referente a análise das características do preso, a qual (aomenos em tese), deveria ser realizada pelo processo de Classificação Criminal..

6. O problema da CLASSIFICAÇÃO CRIMINALAo nosso ver, a forma errônea ou a não realização da classificação do

apenado, com a devida individualização da pena é um dos problemas mais sérios aserem analisados dentro do sistema de execução penal brasileiro.

Tal situação além de extremamente séria e pertinente, afeta a todos, umavez que, em maior ou menor grau, todos somos criminosos em potencial (afinalquem não mataria para salvar a vida da mãe, do pai, do filho, da filha, dos irmãos?Quem se encontra totalmente livre de praticar um homicídio, ou de ser condenadopor um, durante um sinistro de trânsito? Seria justo que um homicida em série seencontrasse na mesma cela de um condenado por homicídio realizado por doloeventual (réu primário), por mais grave que também seja este último crime? Oumesmo juntamente com o autor de pequeno furto?).

O Brasil possui dentro do seu sistema de execução das penas, o ExameCriminológico de Classificação, no qual, conforme Titulo II, Capitulo I, dos artigos5º ao 9º, encontram-se os requisitos para que seja individualizada a pena doreeducando, devendo ser aplicado, ainda, o art. 34 do Código Penal.

Ao menos em tese, a personalidade do apenado deveria ser analisada,bem como a situação e o ilícito por ele cometido (primário, reincidente, homicídio,furto, se é crime hediondo ou não, etc), por conseqüência de requisito fundamentalpara demarcar o inicio da execução científica da pena privativa de liberdade e damedida de segurança.

O Exame Criminológico, deveria, segundo a legislação, ser realizado poruma Comissão de Classificação, composta por dois chefes de serviço, um psiquiatra,um psicólogo, um assistente social e, finalmente, o diretor do presídio. Desta forma,ao menos em tese, se teria a aplicação de uma pena mais justa, com chances de umareabilitação por parte do apenado. Infelizmente, tal situação não ocorre na prática.

Não há estrutura financeira, de pessoal, ou apoio político para que a corretaindividualização se efetive, havendo uma total inobservância de classificação,misturando-se presos de alta periculosidade com presos cujas penas sejamresultado de pequenos atos infratores; reincidentes com réus primários, incitandoassim, a criação de marginais confinados à carceragem.

Vê-se, aqui, mais uma inegável infração aos direitos humanos, retirando-se do apenado o direito a uma pena mais justa, correta e, proporcional ao delitocometido. Trata-se de mais uma visível afronta aos princípios democráticos danação, bem como, para com a cláusula geral da dignidade humana.

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7. Da efetivação da cidadania mediante processo educacional do presoOs apenados são, em sua esmagadora maioria, pessoas de classes sociais

mais baixas, carentes de qualquer tipo de instrução. Portanto, o processo educacionaltambém poderia ser uma maneira de ressocializar o apenado dentro das prisões.Isso estaria, inclusive, preparando o apenado para o trabalho fora das celas,diminuindo assim os índices de rebeliões e mortes, pelo motivo de que aliviaria astensões cotidianas.

A educação, no entanto, somente é possível se houver uma classificaçãocorreta quanto às características dos presos, conforme descrito, o que não acontece.

Importante salientar que, no que se refere aos direitos à educação,vulgarmente falando, “o buraco é mais embaixo”, eis que a educação não se dá nemmesmo as classes menos favorecidas e não segregadas pelo cárcere.

Deste modo, o processo educacional totalmente falho, deveria começarpela população não condenada, como forma de coibir os atos infracionais(preventivamente) e, posteriormente, ser adicionada aos cárceres como forma deressocializar o apenado, aumentando consideravelmente suas chances de retornarà sociedade.

8. Dos órgãos do sistema carcerário e das Políticas PúblicasExiste dentro da Secretaria Nacional de Justiça, o Departamento

Penitenciário Nacional (DEPEN), o qual executa a Política Penitenciária Nacional.Sua principal atribuição é o acompanhamento da aplicação da Lei de ExecuçãoPenal (LEP).

Os órgãos do sistema carcerário estão, ainda, intimamente ligados à justiçasocial, ao sistema policial, ao sistema judiciário e o sistema penitenciário.

Neste âmbito, uma das principais iniciativas foi a criação do FundoPenitenciário Nacional (FUNPEN), criado pela lei complementar n° 79, de 7 dejaneiro de 1994. Seus recursos são geridos pelo DEPEN. Sua criação diversificou asfontes de captação de recursos financeiros dotando, assim, a política para o setorde recursos constantes e mais substantivos.

Ainda, em 1996, o governo lançou o Programa Nacional de DireitosHumanos (PNDH), o qual apresentava em seu bojo, um conjunto de 15 (quinze)propostas de ações governamentais direcionadas exclusivamente para o sistemaprisional, nos seguintes sentidos: modernização do sistema penitenciário; aumentoda participação da comunidade, penas alternativas, melhoria da formação dosagentes penitenciários e melhoria geral no tratamento ao preso.

A importância da aplicação das penas alternativas começou então a servalorizada. Foram construídas novas unidades prisionais (na tentativa errônea deresolver a superlotação, tratou-se a conseqüência e não a causa), criados benefícioscomo, por exemplo, o livramento condicional e, implantadas as chamadas penassubstitutivas da pena de prisão.

Em 11 de julho de 1984, a lei n° 7.209 que alterou a “parte geral” do CódigoPenal de 1940, inseriu as penas restritivas de direitos, substitutivas da pena de

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prisão (por exemplo: a prestação de serviços à comunidade, interdição temporáriade direitos).

Em 2002, o governo federal lançou uma versão atualizada do PNDHincorporando propostas relativas aos direitos econômicos, sociais e culturais. Essaspenas foram novamente alteradas e ampliadas, com a lei n° 9 714, de 25 de novembrode 1998, tornando menos severas as suas condições de aplicação, nos casosespecificados pela lei e, preenchidos os requisitos exigidos para a concessão dosbenefícios citados.

Em junho de 2000, o governo federal realizava uma ação inédita no campoda segurança pública, ao lançar o Plano Nacional de Segurança Pública, na tentativade organizar um conjunto abrangente de iniciativas nessa área, concentrando açõesque antes eram isoladas e pontuais, implementadas, sobretudo, pelos órgãosintegrantes do Ministério da Justiça. O plano compreendia 124 ações distribuídasem 15 compromissos que estavam voltados para áreas diversas como o combate aonarcotráfico e ao crime organizado ; o desarmamento ; a capacitação profissional eo reaparelhamento das polícias, a atualização da legislação sobre segurança pública,a redução da violência urbana, e o aperfeiçoamento do sistema penitenciário.

Uma novidade é que no plano, além dessas iniciativas na área específicade segurança, eram propostas diversas ações na esfera das políticas sociais. Noentanto, como sempre, sem um itinerário de execução, o que o tornou mais uma vezinaplicável, falho.

Em abono ao alegado, salienta-se que, para piorar a situação, os própriosórgãos que integram o Ministério da Justiça não são devidamente integrados eharmoniosos, por isso, não obtendo êxito quanto aos problemas prisionaisexistentes.

Com as devidas exceções, a tortura, os maus tratamentos, a corrupção detodo tipo, a arbitrariedade e a violência são fatos comuns dentro das celas, cometidaspelos próprios presos e, pelos agentes do Estado.

Em decorrência disso, o sistema carcerário encontra-se marcado peloimpressionante aumento da atuação de organizações criminosas dentro das prisões.Fugas, entrada de aparelhos celulares, armas e drogas têm sido uma constante nospresídios brasileiros, situação que aumenta a cada dia a distância entre oconfinamento do apenado e a sua volta, ressocializado, à sociedade.

9. A necessidade do trabalho para a efetivação do objetivo de ressocializar o apenadoImportante citar a importância do trabalho realizado pelos apenados,

conforme o previsto na Lei de Execuções Penais, em seus arts. 28 e ss.O trabalho evita a ociosidade; evita o pensamento excessivo e nocivo; dá

oportunidade para que o reeducando possa realizar alguma tarefa e, cria umaexpectativa de ressocialização, de ter o apenado, uma vida normal, trabalhando esustentando seus familiares.

A Classificação Criminal (multimencionada) neste momento deveriafuncionar para que fosse definida a capacidade laboral e as aptidões do apenado,

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tendo em vista seu melhor aproveitamento, inclusive em apoio à sociedade.Com isso, acreditamos que dois benefícios muito grandes surgiriam:

primeiro, que o preso estaria aproveitando seu período de clausura trabalhando e,muitas vezes, aprendendo um ofício e, inclusive, diminuindo seus dias de segregação(através da remição); segundo, que estaria ajudando a família, que na maioria dasvezes, não possui condições dignas de sobrevivência.

No Estado do Paraná temos um exemplo de que realmente pode-se melhorarna tentativa de ressocialização dos presos através do trabalho.

Na cidade de Guarapuava instalou-se de maneira visivelmente acertada,um presídio industrial com capacidade para 240 presos, com intensa atividadelaboral. Todos os presos trabalham. O espaço físico do condenado é bem maiorque o habitual, sendo de 5m2. Os presos possuem melhores condições de higiene,de alimentação, e, enfim, de sobrevivência. O sistema de confinamento têmfuncionado, e os presos tem tido maior capacidade de regeneração.

Ainda dentro da questão relativa ao trabalho do preso observa-se oinstituto da remição, ou seja, para cada três dias trabalhados, o preso tem umdesconto obrigatório de um dia na sua pena.

O instituto da remição já criou raízes na comunidade carcerária e, aforaerros de cálculo, todos têm conhecimento do abatimento da pena que a atividadelaboral lhes trará, fato este que só faz aumentar a angústia e o sentimento deinjustiça dos condenados que, vendo outros trabalharem, ficam no famoso“aguardando vaga”.

Desta feita, o que deveria ser um benefício acabou se tornando mais umainfração à cidadania, com a não disponibilização do direito ao trabalho para oapenado, e consequentemente, com a negação do benefício oferecido.

10. Da ressocialização como efetivação da cidadaniaSegundo o célebre mestre Raul Zaffaroni: “trata-se a ressocialização de

um mito e que, o nosso sistema penal, referindo-se a América Latina, jamais podeser considerado democrático, pois, segundo ele, a pena privativa de liberdade semanifesta como uma ditadura ética de um Direito Penal transpersonalista, devidoao efeito dessocializante e prisionalizante amplamente comprovado (ZAFFARONI,Eugênio Raul. Tratado de Derecho Penal – parte general. Tomo V. Buenos Aires: Ediar. p.491)”.

Obviamente para fazer da prisão uma possibilidade de egresso da vidadelituosa, o cárcere teria obrigatoriamente que oferecer as condições mínimas,mormente no que tange ao sistema de Classificação Criminal, absolutamenteofensivo e nocivo enquanto meio necessário à individualização da pena, o quetambém não acontece.

11. Violência gera violência e não democracia

“Não existem direitos humanos à brasileira”.

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E ainda:(...) “direitos humanos só servem para defender bandidos!” ou “o pessoaldos direitos humanos adora passar a mão na cabeça dos marginais” (...).Na rede de relacionamentos Orkut, há mais de 100 comunidades contráriasao movimento, todas raivosas. “Direitos humanos ou dos manos?” e“Direitos humanos só para humanos direitos” (BARROS, Andréa. O EstadoDe São Paulo. Domingo, 4 Junho De 2006)”.

“Incomoda, quando não aborrece, saber que um acusado por aquele crimehorroroso, que os jornais e a TV pautaram à exaustão, aguarda o desenrolardos acontecimentos numa prisão especial. A impunidade neste País étamanha que a compreensão cede à intolerância e nesse clima deimpaciência, de hipertensão nacional, só uma palavra nos resolve – cadeia”.(Edson Carvalho Vidigal, Ministro Do Superior Tribunal De Justiça-TRIBUNAL DE JUSTIÇA: O POVO E O ANTI-POVO -A Marcha Da Arbitrariedade).”

Estes são exemplos de opiniões intolerantes da população para com osapenados e em relação a todo o sistema penal e carcerário.

Sob esta ótica, no entanto, o que está incorreto não é a exigência derespeito às leis, e sim a ineficiência e a corrupção contida na política carcerária.Corrupção esta que faz, por exemplo, com que os chefões do crime organizadotenham tratamento diferenciado (vip). É um problema mais de incompetência quede desrespeito aos direitos humanos.

O que se necessita é de um sistema eficaz de segurança pública e não depunição desumana aos condenados, impedindo o acesso a novas oportunidadesde condução à sociedade.

Atualmente, o sistema é totalmente ineficaz. Existe um inegável maufuncionamento das instituições. A proporção de juízes para a população é muitopequena. A população não tem acesso ao Judiciário. Até hoje não se estabeleceunos Estados uma Defensoria Pública atuante e o Ministério Público funcionaprecariamente na maioria dos Estados.

Assim, os chefões têm tratamento vip nas penitenciárias graças àcorrupção, à aquiescência de funcionários públicos e não graças à defesa de direitoshumanos.

O Brasil não pode ter uma versão autoritária dos direitos humanos paralidar com o crime, se é uma revisão do sistema o que se objetiva fazer. O desrespeitoaos direitos do preso não fazem a qualidade do sistema punitivo e carceráriomelhorar. A violência não torna o sistema adequado.

Isto pode ser facilmente demonstrado, se analisado que grupos da políciade São Paulo matam 1,3 civil por dia. Não existe outra cidade no mundo que registreesta estatística. Onde morrem os policiais de São Paulo? Eles são abatidos nasportas dos açougues, das padarias e dos bares, onde fazem “bico” para se sustentar.E a criminalidade tem aumentado a cada dia.

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Em toda a República as classes não-brancas, as não-elites, sempre foramalvo de execuções sumárias e de tortura. Sobram exemplos de demandas queexpressam o descompasso entre as garantias formais consagradas pela Carta Políticae as intrincadas condições materiais de sua realização, numa sociedade cujareprodução sempre se deu sob a marca da desigualdade.

Vê-se, portanto, que penas mais duras, “mortes de presos” e, um sistemaprisional ainda mais desumano, não irão resolver o problema, paradoxalmente, oagravarão.

12. Soltura de presos mantidos em condições degradantes em Minas GeraisEm abono ao alegado, citemos polêmica decisão do Juiz mineiro Livingston

José Machado, a qual, além de polêmica, nos repassa à reflexão sobre o que seriamais “justo”, “humano”, “certo”, “moral” e “legal”, para com os presos.

O Juiz determinou a soltura de presos condenados recolhidos em Delegaciasde Polícia no Estado de Minas Gerais, fundamentando sua determinação em que asdegradantes condições do ambiente atentavam francamente contra os seus direitosde cidadania. Tal decisão, vale dizer que, além de censuras e protestos nível dosenso comum, acabou por ensejar o seu afastamento pela Corregedoria do Tribunal,depois que procedeu à soltura de mais 07 (sete) indivíduos quando já havia sidoproferida decisão da instância superior, “proibindo-o” de continuar com a prática.

Declinamos aqui, algumas das situações em que se encontravam os presosquando da decisão proferida pelo magistrado: Cada preso possuía um espaço de32 cm2. As paredes estavam mofadas, o teto em vias de desabar, o ambientepraticamente sem iluminação, o esgoto passava na porta da cela e os detentosviviam seminus.

Esta decisão drástica - como caracteriza o Juiz - foi adotada frente à seguidasnegativas do Governo do estado quanto à necessidade da criação de novas vagasnas penitenciárias do município: “A situação carcerária não só em Minas Gerais,mas em todo o país, é, há muito tempo, drástica”. Esta foi a afirmação do JuizLivingsthon Machado, da Vara de Execuçôes Criminais de Contagem - MG. Assim,Livingsthon Machado, introduz as causas e consequências do problema: “É difícildescrever com palavras o que se passa no interior das carceragens em nossoestado. Durante mais de vinte anos de regime militar no país, muita gente foi presa,torturada, morta em nome da Ordem Política e Social. Assim, em nome dessaquestionável ordem, imperou a era do “prendo e arrebento” ditada pelo generalFigueiredo, quando primeiro se fazia isto, para depois arranjar uma justificativa. Aidéia de que o direito social pode atropelar a dignidade do indivíduo foi o quesustentou todos estes anos de regime militar. Estes direitos fundamentais nãopodem ser violados! “.

Não se pode olvidar, que “in casu”, a decisão do Douto Magistrado, nãoseja dotada de senso de realidade e respeito aos direitos humanos. Portanto, aocontrário do que possa parecer em primeira análise, tal decisão pode ser entendidacomo uma “atitude desesperada ante a uma realidade ainda mais desesperadora”,

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perante o caos vigente no sistema carcerário brasileiro.13. Aspectos conclusivos

Pela análise do exposto quanto ao sistema carcerário e punitivo vigentesno país, não há dúvida que vivemos em uma democracia “do faz de conta”. Vivemosem um país onde os órgãos e instituições concebidas para cuidar do funcionamentode um Estado que levianamente jura ser democrático, fazem exatamente o contrário.Todos juram cumprir a Constituição, mas as infrações são visíveis e inegáveis.

Será que as garantias da Constituição (esse conjunto de leis que rege avida de uma nação, reincidentemente violada, desde sua aprovação), promove aotrabalhador e a sua família, garantia de educação, saúde, lazer? (para se obter aresposta basta verificar o valor do salário mínimo e a faixa social/econômicapredominante dos apenados).

Como exigir que o cidadão que invade uma casa e rouba, cumpra aConstituição? Muito mais violam as leis os que criam as condições que levam ohomem a este grau de desespero, em total desrespeito ao Estado Democrático deDireito e às garantias do cidadão.

Isto porque, não se pode falar em democracia, em Estado Democrático deDireito, sem mencionar-se o princípio da dignidade do homem, e o sistema carceráriobrasileiro vai ao encontro de todas as regras estabelecidas para que o ser humanoviva com o mínimo de dignidade.

O sistema punitivo brasileiro revela uma realidade carcerária caótica,desrespeitosa e muito perigosa, visto que tem agravado ainda mais o já altíssimoíndice de criminalidade causado pela má-distribuição de renda, falta de educação ecorrupção do país.

Conclui-se que o atual sistema carcerário é uma afronta direta à democracia,ao direito de segurança do cidadão e ao direito do apenado de ser punido de formacorreta e proporcional ao delito cometido, o que somente pode ser modificado comatitudes firmes e coorporativas, conforme o demonstrado ao longo do trabalho, oque, infelizmente, até o presente momento não vem ocorrendo.

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SOLIDARIEDADE E DIREITOS FUNDAMENTAISNA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988

Paulo Sergio ROSSO*

“Tem sentido falar de solidariedade para reafirmá-la ou paradefinitivamente sepultá-la.” (Cláudio Sacchetto).

SUMÁRIO: Introdução; 1. Origem do princípio da solidariedade; 2. Solidariedadee as dimensões de direitos; 3. Solidariedade e direitos fundamentais; Consideraçõesfinais; Referências.

RESUMO: Discorre sobre o princípio constitucional da solidariedade, inter-relacionando-o aos direitos fundamentais. Tece breve histórico sobre as origensdo direito de solidariedade, fixando-as no cristianismo e nos ideais socialistas.Elenca as bases de direito positivado que fazem menção ao princípio da solidariedade,como a atual Constituição Brasileira e a Declaração Universal dos Direitos Humanos.Procura situar o princípio da solidariedade na classificação dos direitos emdimensões (ou gerações). Prova a relação existente entre o princípio da solidariedadee os direitos fundamentais. Remata defendendo a importância do princípio comocontribuinte para efetivação dos direitos fundamentais e justificador da própriaexistência desses direitos.

ABSTRACT: It talks about the constitutional principle of the solidarity, inter-related it to the fundamental rights. It weaves historical abbreviation on the originsof the principle of the solidarity, fixing them in the Christianity and in the socialistideals. It fixes the bases of written right that make mention to the principle of thesolidarity, as the current Brazilian Constitution and the Universal Declaration ofthe Human Rights. It tries to place the principle of the solidarity in the classificationof the rights in dimensions (or generations). It proves the existent relationshipbetween the principle of the solidarity and the fundamental rights. It finishes offdefending the importance of the principle as a contribution for making effective thefundamental rights and as a justification of the own existence of those rights

PALAVRAS-CHAVE: Solidariedade; Direitos Fundamentais; Dimensões deDireitos; Princípios Constitucionais.

KEYWORDS: Solidarity; Fundamental Rights; Dimensions of Rights; ConstitutionalPrinciples.

* Procurador do Estado do Paraná, professor de direito tributário e Mestre em Ciência Jurídica pela UENP/FUNDINOPI. Artigo Submetido em 15/08/2008. Artigo Aprovado em 12/10/2008.

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Muito comumente encontram-se operadores jurídicos frustrados com aefetividade do direito. Embora a Constituição Brasileira de 1988 tenha trazidoevidentes inovações à ordem jurídica, incorporando conceitos de democracia,liberdade, solidariedade, participação popular e outros temas hoje consideradosde primeira grandeza, a realidade esbarra nas limitações materiais do Estado ou naprópria natureza humana daqueles que deveriam zelar pelo cumprimento de tãonobres objetivos.

Sem razão, entretanto, afiguram-se as queixas. O direito é, propriamente,um objetivo a ser alcançado. A lei, apenas, não muda a sociedade, embora sirvacomo contribuinte para mudanças. E o direito é, e sempre será, uma aspiração, umideal.

Disso recende a beleza do trabalho desempenhado pelo doutrinadorjurídico, pelo professor de direito, pelo advogado, pelo juiz, pelo acadêmico: suamissão é aproximar a realidade dos ideais do direito. Angustiar-se pela demora naimplantação ou mesmo pelos fracassos é atitude compreensível, mas inútil eequivocada.

Daí decorre a constatação da importância de se possuir uma Constituiçãoousada em termos democráticos e humanitários: mais do que uma simples normajurídica, ela é uma um ideal cultivado por toda a sociedade.

É o caso da milenar aspiração por uma sociedade solidária: o homem sonhacom um mundo unificado, com sociedades pacíficas onde reinem a concórdia e afelicidade. Entretanto, sua natureza parece se opor a isso, seu individualismo cegopõe em risco não apenas a convivência humana, mas a própria vida no planetaterra. Cabe ao estudioso do direito aprofundar-se nos caminhos teóricos do direito,construindo um eficiente arcabouço jurídico e, especialmente, estudando formasde implantação dessas teorias. Pobre do jurista que se esqueceu de sonhar.

O momento é bastante propício ao estudo da solidariedade porque nossasociedade hoje corre o risco de perder o conceito de responsabilidade pública(SACCHETTO, 2005, p. 11), ante a descrença no Estado e o quadro decompetitividade e individualismo exacerbado.

Este trabalho pretende, primeiramente, demonstrar a existência do idealsolidarista em nossa Constituição, conceituando-o e demonstrando sua recepção,pelo ordenamento, na forma de princípio constitucional. Em seguida, procura-serealizar a interligação entre o princípio da solidariedade e os direitos fundamentaisprevistos pela Constituição brasileira.

1 ORIGEM DO PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADESolidariedade, segundo os dicionários, define-se como “sentimento que

leva os homens a ajudarem-se mutuamente”; outro vocábulo, bastante próximo epor vezes utilizado como sinônimo é “fraternidade”, definível como “parentesco deirmãos, convivência como de irmãos, amor ao próximo”. (RIOS, 2004, p. 667)

O termo solidariedade tem sua origem associada ao étimo latino solidarium,que vem de solidum, soldum (inteiro, compacto). (NABAIS, 2005, p. 111). Sacchetto

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(2005, p. 15) define magistralmente o termo como uma forma de pensar contrária aoegoísmo.

O sentimento de solidariedade é próprio do ser humano, sendo mais forteà medida que os laços familiares são mais intensos. Douglas Yamashita (2005, p. 59)distingue a solidariedade de grupos sociais homogêneos e solidariedade genérica.A primeira seria a solidariedade existente entre pessoas pertencentes a um grupoespecífico (familiar, por exemplo) enquanto a segunda espécie diria respeito àsociedade como um todo.

Pode-se constatar que a preocupação com a situação do próximo estápresente em todos os tipos de sociedade. Até mesmo entre os astecas, povohodiernamente visto pelo vulgo como violento e insensível, em razão dos sacrifícioshumanos praticados em rituais religiosos, o sentimento de solidariedade estavapresente. Os soberanos, ao serem investidos no cargo, eram lembrados pelossacerdotes acerca de seu dever para com as viúvas, órfãos e pobres. (FAEDDA,2006, on line)

Inegável é a inter-relação entre os princípios religiosos e a solidariedade.É pedra angular do cristianismo o princípio “amarás ao teu próximo como a timesmo”. (BÍBLIA, Mt 22:36-40, 2007, on line). O mesmo cristianismo popularizou opensamento de que “todos são filhos do mesmo Deus” o que não ocorria quandoas religiões eram, majoritariamente, politeístas. O atual papa, Bento XVI, dedicousua primeira carta encíclica ao amor (Carta Encíclica Deus Caritas Est) deixandomuito claro o compromisso da Igreja Católica com a caridade.

No islamismo, onde não se pretende uma clara divisão entre Estado ereligião, o conceito de redistribuição de bens é bastante perceptível. Existe um tipode tributo, a zekaa, que funciona como uma verdadeira esmola legal, que a próprialei destina aos necessitados, aos soldados da guerra santa, à libertação de escravose aos endividados. (FAEDDA, 2006, on line)

No Estado clássico, de orientação liberal, a solidariedade não é postacomo um princípio básico de atuação estatal. Embora não chegue a ser desestimulada,a liberdade é tomada como valor mais importante parecendo que a solidariedade évista como preocupação da sociedade civil e não do Estado. No moderno Estadosocial, não se tem a mera pretensão de se garantir a liberdade, mas também deestimular a atuação de toda a sociedade em prol da igualdade. Daí a intenção deque a solidariedade deixe de ser apenas algo “desejável” para se tornar atuaçãoobrigatória de toda a sociedade. O estado social não quer ser neutro e propõe-se acorrigir as desigualdades, posicionando-se como protetor do mais fraco. Asolidariedade surge como justificadora dessa intenção.

Godói (2005, p. 143) observa que o conceito de direito de solidariedadetorna-se mais delineado pela atuação do trabalhismo, no final do século XIX e noinício do século XX, também em razão da crise do estado liberal.

Inegavelmente, o princípio tem bases socialistas, podendo ser consideradoum de seus fundamentos. Como afirma Farias (1998, p. 275), “o discurso dosolidarismo jurídico não é somente uma maneira de falar do direito; ele é também um

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olhar sobre a sociedade como um todo [...]”. O mesmo autor demonstra claramentea interligação entre socialismo e solidariedade, já que “a verdadeira essência dosocialismo repousa sobre uma ‘filosofia pluralista do direito e da sociedade’”.(1998, p. 276)

De fato, constituem-se projetos muito próximos, quase interligados,“solidariedade, democracia e socialismo” não se podendo entender uma sociedadecomo solidária que não se constitua sob o regime democrático ou onde pairemgrandes desigualdades. A solidariedade não prescinde do desejo de liberdade(preocupação individualista, também acatada pela Constituição), mas,indubitavelmente, a busca da igualdade é seu maior escopo.

Não pode ser visto como solidário o cidadão que somente age em buscade seus próprios interesses sendo certo que a opção pela solidariedade implicatambém na renúncia de parcela de certas vantagens pessoais. É, portanto, umconceito socialista, que vê o Estado não apenas como defensor da liberdade, mastambém como responsável maior pelo bem comum.

Não era de se surpreender que esse sentimento já presente desde a origemhumana nas regras de convivência viesse a ser, de alguma forma, positivado:

Podemos dizer que, descontadas algumas manifestações constantes,primeiro, da declaração de direitos da (rejeitada) constituição girondina edepois, da declaração de direitos da constituição jacobina, em que asexigências da solidariedade se apresentavam já claramente afirmadas, aidéia da solidariedade apenas vai ser (re) descoberta no dobrar do séculoXIX para o século XX, através duma espécie de frente comum formadasobretudo por teóricos franceses, em que encontramos economistas comoCharles Gide, sociólogos como Émile Durkeim e juristas como Léon Duguit,Maurice Hauriou e Georges Gurvitch. (NABAIS, 2005, p. 110-111)

A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 apresenta evidentestraços solidarísticos, embora não contenha literalmente a expressão “solidariedade”(ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2007, on line). Porém, como lembraGodói (2005, p. 143), o preâmbulo menciona que todas as pessoas são “membrosda família humana”, e no art. 1º dispõe que todos “devem agir uns para com osoutros em espírito de fraternidade”.

Dessas energias existentes em maior ou menor grau em nossa sociedade,e dos princípios e forças já mencionados, a sociedade brasileira fez insculpir oprincípio em sua Constituição. De forma expressa, ele aparece na Constituiçãocomo um objetivo fundamental da República Federativa do Brasil: “Art. 3º.Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construiruma sociedade livre, justa e solidária; [...].” (BRASIL, 2007g, on line)

Trata-se, concomitantemente, de um objetivo e de um princípioconstitucional:

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Assim, é possível afirmar que quando a Constituição estabelece como umdos objetivos fundamentais da República brasileira “construir umasociedade justa, livre e solidária”, ela não está apenas enunciando umadiretriz política desvestida de qualquer eficácia normativa. Pelo contrário,ela expressa um princípio jurídico, que, apesar de sua abertura eindeterminação semântica, é dotado de algum grau de eficácia imediata eque pode atuar, no mínimo, como vetor interpretativo da ordem jurídicacomo um todo. (SARMENTO, 2006, p. 295)

Em verdade, o princípio encontra-se tacitamente presente em toda aConstituição, servindo não apenas como mecanismo de interpretação ou reafirmaçãode outros princípios, mas também como fundamento da própria ordemconstitucional.

Vários dispositivos constitucionais estão intimamente relacionados como princípio da solidariedade, cabendo exemplificar com os artigos 40, 194, 195, 196,203, 205, 227 e 230.1

Nas Constituições anteriores, o princípio não poderia ser tomado comofundamental, embora estivesse presente em algumas matérias, como orientador detemas específicos.

A Constituição de 1967 (BRASIL, 2007f, on line) mencionava ser princípioda ordem econômica a “harmonia e solidariedade entre as categorias sociais deprodução” (art. 160, inc. IV). Citava-se a solidariedade como um princípio da áreaeducacional (art. 176) o mesmo ocorrendo com as Constituições de 1946 (art. 176)(BRASIL, 2007e, on line) e de 1934 (art. 149) (BRASIL, 2007c, on line) que tambémlembravam o princípio da solidariedade humana, mas limitado ao capítuloeducacional. A Constituição de 1937 (BRASIL, 2007d, on line) apresentava, tambémna área educacional, “o dever de solidariedade dos menos para com os maisnecessitados”, expressão que constou do art. 130.

Recuando-se no tempo, ver-se-á que as Constituições de 1824 (BRASIL,2007a, on line) e 1891 (BRASIL, 2007b, on line) sequer continham a palavra“solidariedade”.

Obviamente, não é pelo fato de inexistir a palavra “solidariedade” no textoconstitucional que se poderia disso deduzir que o Estado não tivesse nenhuma

1 Art. 40. Aos servidores titulares de cargos efetivos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios,incluídas suas autarquias e fundações, é assegurado regime de previdência de caráter contributivo e solidário, [...]. Art. 194. A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos eda sociedade, [...].Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, [...].Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, [...].Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridadesocial, [...].Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboraçãoda sociedade, [...].Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, [...].Art. 230. A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, [...].

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intenção solidarística. Desde a Constituição de 1934 as preocupações sociaisestavam claramente presentes, em especial pelo advento do Estado social.

Entretanto, considerando-se o tema como princípio e objetivo central doordenamento, constata-se que o assunto é relativamente recente, dizendo respeitoà Constituição de 1988 que, ao alçar o princípio à categoria de fundamental, inovaem relação às constituições antecessoras. 2

Comparando-se as Constituições mais recentes (1967 e 1988) Greco (2005,p. 170) observa interessante mudança de visão na relação entre Estado e cidadão.Ao se analisar a Constituição de 1967 percebe-se que os primeiros capítulosdedicam-se à formação do Estado, deixando para um segundo momento a regulaçãoda sociedade. Ao contrário, a Constituição de 1988 primeiro dispõe sobre os direitosfundamentais para depois adentrar na regulamentação do Estado. Demonstra-seque a atual Constituição vê a sociedade como formadora e conformadora o Estadoe não o contrário.

Numa sociedade tão desigual como a brasileira, estudar o assunto passa aser de suma importância. Como afirma Sacchetto (2005, p. 11):

[...] hoje existe o risco de perder o conceito de responsabilidade pública,que os cidadãos deixem de ter consciência que uma parte de suas vidasdeve ser gerida em comum com os outros: este é o significado real dasolidariedade, como ensina a etimologia do termo (do latim “in solido”).

2 SOLIDARIEDADE E AS DIMENSÕES DE DIREITOSBonavides (2006, p. 571) menciona que os direitos de quarta dimensão3

seriam aqueles que atinem à democracia, à informação e ao pluralismo. Nessa clássicaconcepção das “dimensões de direitos”, podem-se localizar os direitos desolidariedade como posicionados na mais recente “onda” de direitos, ou seja, aquarta dimensão, havendo óbvia interligação, por exemplo, entre solidariedade emeio ambiente (pode-se afirmar que há uma solidariedade entre gerações) ousolidariedade e democracia. Muito embora a indicação de quais seriam, exatamente,os afirmados direitos de “quarta geração” seja ainda discutível, pairando discussõesatinentes à própria existência desses direitos (BREGA FILHO, 2002, p. 24-25), averdade é que a idéia de solidariedade está em plena consonância com as modernaspreocupações do direito, em razão da chamada quarta geração de direitosfundamentais, constituída justamente pelos designados “direitos ecológicos” ou“direitos de solidariedade”. (NABAIS, 2005, p. 111)

Canotilho (2002. p. 386) observa:

2 Segundo Godói (2005, p. 142) a atual Constituição brasileira, assim como a italiana, inspirou-se claramente naConstituição Portuguesa de 1976 que declara, em seu art. 1º, o dever da República construir uma “sociedade livre,justa e solidária”.3 Bonavides (2006, p. 571) defende a substituição do usual termo “geração” por “dimensão”, sugestão acatadaneste artigo. Pontifique-se, porém, que a classificação tem importância mais didática do que eficacial. (MORAIS,2002, p.70)

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A partir da década de 60, começou a desenhar-se uma nova categoria dedireitos humanos vulgarmente chamados direitos da terceira geração. Nestaperspectiva, os direitos do homem reconduzir-se-iam a três categoriasfundamentais: os direitos de liberdade, os direitos de prestação (igualdade)e os direitos de solidariedade. Estes últimos direitos, nos quais se incluemo direito ao desenvolvimento, o direito ao patrimônio comum dahumanidade pressupõem o dever de colaboração de todos os estados enão apenas o actuar activo de cada um e transportam uma dimensãocolectiva justificadora de um outro nome dos direitos em causa: direitosdos povos. Por vezes, estes direitos são chamados direitos de quartageração.

Entretanto, não seria equivocado situar a solidariedade entre os direitosde terceira geração, inclusive pela proximidade entre os termos “solidariedade” e“fraternidade”, terceiro item do lema preconizado pela Revolução Francesa.4 Aceitaa proximidade dos termos, o princípio da solidariedade poderia ser situado comodireito de terceira dimensão:

A teoria, com Vasak e outros, já identificou cinco direitos da fraternidade,ou seja, da terceira geração: o direito ao desenvolvimento, o direito à paz,o direito ao meio ambiente, o direito de propriedade sobre o patrimôniocomum da humanidade e o direito de comunicação. (BONAVIDES, 2006, p.569)

De fato, muitos autores titulam os chamados direitos de terceira geraçãocomo “direitos de solidariedade”. Segundo informa Robert Pelloux (apud FERREIRAFILHO, 2006, p. 57), na abertura dos cursos do Instituto Internacional dos Direitosdo Homem, em 1979, foi Karel Vasak quem primeiro apontou a existência dessaterceira dimensão de direitos, chamando-os exatamente de “direitos desolidariedade”.

Intuitivamente, percebe-se que independentemente da discussão acercada existência dos direitos de quarta dimensão, a solidariedade tem íntima relaçãocom os chamados direitos de terceira dimensão recém-mencionados.

É importante não se confundir, porém, a nomenclatura eventualmenteaplicada aos direitos de terceira (ou mesmo quarta) dimensão – direitos desolidariedade – com o princípio da solidariedade, objeto do presente estudo. Noprimeiro caso, tem-se uma designação genérica de direitos; no segundo, um princípioconstitucional específico.

4 Consigne-se, porém, que o termo “fraternitè” da Revolução Francesa tinha inclinação para a idéia de filantropiaou caridade, enquanto que solidariedade social, agora um conceito jurídico, tem características mais objetivas.(GODÓI, 2005, p. 143)

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Conclui-se, pois, que o princípio da solidariedade tem íntima relação comos chamados direitos de terceira dimensão o que não significa dizer que nãorepresente, também, direitos de quarta dimensão, já que uma nova onda de direitosnão suplanta a anterior.

3 SOLIDARIEDADE E DIREITOS FUNDAMENTAISA solidariedade é, a um só tempo, valor e princípio. (TORRES, 2005, p.

198). Porém, ao ingressar na esfera jurídica, o valor moral sofre, obviamente, algumasadequações: não é mais um mero sentimento íntimo ou uma regra moral. Por isso,nesse estágio, torna-se irrelevante se o indivíduo, a quem é também destinada anorma constitucional, está de acordo ou não com ela:

É óbvio que o Direito não tem como penetrar no psiquismo das pessoaspara impor-lhes as virtudes da generosidade e do altruísmo. Seria terrível,aliás, se o Direito pudesse ditar sentimentos. Entretanto, se ele não podeobrigar ninguém a pensar ou a sentir de determinada forma, ele pode, sim,condicionar o comportamento externo dos agentes, vinculando-os aobrigações jurídicas. (SARMENTO, 2006, p. 297)

Lendo-se os primeiros artigos da Constituição, vemos que ela “impôs,com certa prevalência axiológica abstrata, o dever de perseguir os ideais dedignidade e de solidariedade.” (ÁVILA, 2005, p. 68)

Por isso, toda a Constituição está ungida pela idéia da solidariedade. Já nopreâmbulo, evidencia-se o desejo dos Constituintes de construir uma sociedadeonde reine “a igualdade e justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna.”(BRASIL, 2007g, on line)

Sob a ótica da solidariedade, o Estado Democrático de Direito, implantadopelo art. 1º da Constituição, consiste na persecução de:

i) justiça social (arts. 3º, I, 170, caput, e 193 da CF/88) que buscaredistribuição de renda e igualdade de chance a todos, ou seja, a capacidadeexistencial, econômica e cultural para viver e trabalhar, num nível razoável;e ii) segurança social, ou seja, a) bem-estar social (arts. 186, VI, e 193 daCF/88), consubstanciado especialmente na proteção existencial, garantidapela prestação de serviços públicos básicos (água, luz, transporte,educação, saúde etc.) e nos seguros sociais (seguro-desemprego, seguropor invalidez etc.) e b) assistência social (auxílio mínimo existencial e auxíliosem catástrofes naturais, a fim de garantir um mínimo de dignidade humanaao cidadão). (YAMASHITA, 2005, p. 59)

Vê-se que cidadania e solidariedade são conceitos irmãos. Nabais (2005,p. 124-125) fala em cidadania solidária. Comenta que, num primeiro estágio, acidadania era entendida como uma situação de passividade, traduzida na “liberdade

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comum” a ser usufruída por todos os cidadãos, destinada à preservação da vida,liberdade e propriedade. Num segundo instante, a idéia de cidadania passa a ter umconteúdo ativo, passando a designar mais propriamente a atuação no indivíduo nacondução do Estado. Cidadania é tema diretamente ligado à idéia do voto e daampla participação política. Por fim, chega-se a um terceiro estágio, onde se incorporaa idéia de cidadania solidária em que o cidadão assume a condição de protagonistana vida pública.

O cidadão não mais depende do Estado para atuar; é, também, seu direitoe dever laborar pela implementação das reformas sociais desejadas pela Constituição.

Utilizando-se do mesmo raciocínio, especificamente quanto ao princípioda solidariedade, Nabais (2005, p. 114-115) classifica-a quanto aos seus efeitos emvertical e horizontal. A primeira visão – solidariedade vertical – seria aquela maiscomumente identificada com os deveres do Estado. Constituindo-se um Estadosocial, os órgãos públicos estão obrigados a buscar a minimização dasdesigualdades, corrigindo os desníveis sociais, implantando e efetivando os direitosem benefício de todos os membros da sociedade:

Podemos dizer que foi este tipo de solidariedade a que foi convocada paraa resolução da chamada questão social, quando a pobreza deixou de serum problema individual e se converteu num problema social a exigirintervenção política. (NABAIS, 2005, p. 115)

Por outro lado, a solidariedade pode também ser vista em seu sentidohorizontal, agora não tomada apenas como um dever do Estado, mas também comoobrigação de toda a sociedade civil. Determina a solidariedade que a efetivaçãodos direitos fundamentais seja vista como obrigação não apenas do Estado, masda própria sociedade. (NABAIS, 2005, p. 114-115). Cada cidadão é, também,vinculado à idéia de solidariedade.

Essa segunda noção – solidariedade horizontal – como vinculadora daprópria sociedade vem adquirindo especial importância pela verificação daslimitações do Estado em garantir os direitos constitucionais. Segundo Nabais (2005,p. 116) essa manifestação da sociedade civil pode ser visualizada em duasconstatações:

1) uma, concretizada na atuação espontânea dos indivíduos e grupossociais, que nunca deixaram de atuar socialmente mesmo quando o Estadosocial, apoiado no seu crescimento constante, chegou a julgar-se capazde realizar todos os anseios dos seus cidadãos e substituir por inteiro asociedade civil; 2) outra, expressa na solicitação e empenhamento dopróprio Estado que, reconhecendo a sua incapacidade, mesmo quandoatingiu a forma superlativa do Estado social, isto é, o Estado de bem-estar,se voltou para a sociedade civil.

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A noção de “dever de solidariedade” é, portanto, o estágio mais avançadoda cidadania.

O princípio da solidariedade “explica” a existência de diversos direitosfundamentais abrangidos pela Constituição. Pode ser encarado como acontraprestação devida pela existência dos direitos fundamentais: se tenho direitos,tenho, em contrapartida, o dever de prestar solidariedade àqueles que se encontramem posição mais frágil que a minha.

À parte dos direitos fundamentais, é notável a importância do princípio dasolidariedade no campo do direito tributário. Indiscutivelmente, o sistema tributáriobrasileiro tem bases calcadas no princípio da solidariedade, visto que aquele quepaga tributos não tem uma compensação direta e imediata por aquilo que pagou(salvo no caso das taxas e contribuições de melhoria). Não há, por assim dizer, umarelação sinalagmática. Talvez por essa razão a maioria dos estudos levados a cabosobre o princípio da solidariedade, no Brasil, foram realizados por tributaristas oque denota a preocupação em se buscar uma justificativa ética para o dever depagar tributos.5

Sobre os direitos fundamentais – objeto do presente estudo – rápida leiturasobre alguns dispositivos constitucionais comprova a direta interferência doprincípio da solidariedade sobre o pensamento constitucional.

O princípio da igualdade (caput do art. 5º da Constituição Federal), porexemplo, encontra-se interligado à idéia de solidariedade, pois se constituímos umtodo, somos, ao menos em direitos, iguais, não se podendo vislumbrar sociedadeefetivamente solidária sem que haja igualdade.

A liberdade para criação de associações e cooperativas (art. 5º, inc. XVIII)também encontra justificativa na solidariedade existente entre os membros dasociedade, ainda mais forte quando os indivíduos encontram laços de interesseque justificam uma mais forte unificação, sendo plenamente justificável, dessaforma, a possibilidade de representação judicial desses grupamentos de indivíduospelas entidades criadas por eles (art. 5º, inc. XXI).

Ao lado do princípio de cunho individualista, que garante o direito depropriedade (art. 5º, inc. XXII) a Constituição dispõe, também, que a propriedadedeve atender sua função social (art. 5º, inc. XXIII). Trata-se de óbvio norte socialistae solidarista, pois o indivíduo, que tem direito à propriedade, pode destiná-la parao seu benefício pessoal, mas deve também direcioná-la ao interesse dos demaismembros da sociedade. Disso decorrem outros mecanismos legais e constitucionaiscomo a possibilidade de desapropriação ou direito de uso da propriedade peloPoder Público em determinadas circunstâncias (art. 5º, incs. XXIV e XXV).

Como não poderia deixar de ser, sendo objetivo constitucional a construçãode uma sociedade solidária, a própria Constituição repudia de maneira especial

5 Entretanto, nem sempre foi assim, constatando-se que, em regra, a história da tributação demonstra que a tributaçãoserviu muito mais como forma de acumulação de riquezas em favor dos ricos, em detrimento dos pobres. (NOGUEIRA,1997, p. 111).

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atitudes anti-solidárias como a prática do racismo, tangendo-o como crimeinafiançável (art. 5º, inc. XLII). No mesmo tom, o Poder Constituinte origináriorepudiou outras práticas tidas como graves atentados à solidariedade social comoo tráfico ilícito de entorpecentes, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos(art. 5º, inc. XLIII).

A solidariedade não deixa de socorrer até mesmo aqueles que foramcondenados criminalmente, sendo que a Constituição prevê uma série de limites àspenas legais, assegurando ao preso direitos intocáveis pelo Estado e, ao cidadãocomum, instrumentos (garantias) que lhe permitam assegurar-se contra osdesmandos dos órgãos estatais (art. 5º, incs. XLV a LXXII).

Principal executor dos atos de solidariedade, o Estado “prestará assistênciajurídica integral e gratuita aos que comprovem insuficiência de recursos” (art. 5º,inc. LXXIV). Trata-se de preocupação de acesso à justiça, de forma que todos,indistintamente, possam recorrer ao Judiciário visando assegurar seus direitos.

Também o princípio da solidariedade determina que certos documentosessenciais sejam gratuitos para os reconhecidamente pobres (art. 5º, inc. LXXVI).

Cabe destacar, ainda, que o princípio em questão é inspirador até mesmodas relações internacionais, constando do art. 4º da Constituição que a RepúblicaFederativa do Brasil que tem, como princípio de suas relações internacionais, o de“cooperação entre os povos para o progresso da humanidade” (BRASIL, 2007g,on line). Trata-se de clara aplicação do princípio da solidariedade ao âmbitointernacional.

De forma superficial (já que não se pretende estudar os direitos fundamentaisem espécie, mas apenas a relação destes com os ideais solidaristas), foram lembradosalguns dispositivos constitucionais onde a inspiração do princípio da solidariedadefoi bastante clara, mas há que se reafirmar que o mencionado princípio, em realidade,é notável em muitos outros pontos da Constituição.

Além de orientador interpretativo, aplicativo e legislativo, o princípio dasolidariedade também pode justificar a aplicação do princípio da proibição doretrocesso (SARMENTO, 2006, p. 298) assim definido por Sarlet (2004, p. 147):

Em linhas gerais, o que se percebe é que a noção de proibição de retrocessotem sido por muitos reconduzida à noção que José Afonso da Silvaapresenta como sendo de um direito subjetivo negativo, no sentido deque é possível impugnar judicialmente toda e qualquer medida que seencontre em conflito com o teor da Constituição (inclusive com os objetivosestabelecidos nas normas de cunho programático), bem como rechaçarmedidas legislativas que venham, pura e simplesmente, subtrairsupervenientemente a uma norma constitucional o grau de concretizaçãoanterior que lhe foi outorgado pelo legislador.

Na hipótese, portanto, de tentativa de supressão ou redução dos direitosfundamentais, caberia a invocação do princípio da vedação do retrocesso que, por

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sua vez, encontra-se justificado ou ao menos fortalecido pelo princípio dasolidariedade.

Este último exemplo demonstra quão útil é a utilização do princípio quandose tem em mente a efetivação dos direitos fundamentais. Farias (1998, p. 280) afirmaque “o direito de solidariedade é situado num espaço complexo que repudia oformalismo jurídico e toda visão monista do direito e do poder”. O princípio é, aomesmo tempo, unificador da sociedade, afastando-se da concepção de “luta declasses” e vinculando-se a idéia de cooperação e convívio:

A solidariedade, como um dos fundamentos da democracia, supõe combinarsempre três dimensões: o consenso, que é a referência às orientaçõesculturais comuns; o conflito, que opõe os adversários; o compromisso,que combina esse conflito com o respeito de um quadro social – emparticular jurídico – que o limita. (FARIAS, 1998, p. 284)

Constata-se que o princípio da solidariedade tem importância grandiosaquando a preocupação e a intenção do jurista forem a efetivação dos direitosfundamentais.

CONSIDERAÇÕES FINAISDiante da noção intuitiva (duvidosa) de que a todo direito corresponde

um dever, poder-se-ia dizer que o correspondente aos direitos fundamentais é odever de solidariedade. De fato, este último há de ser visto mais como dever do quepropriamente direito, sobressaindo-se como força antagônica ao individualismode nossos dias.

De início mero valor moral, o princípio da solidariedade tornou-se, por viada Constituição de 1988, direito positivo, passando a não representar apenassentimento pessoal ou aspiração de grupos. Hoje é dever de toda a sociedadeprestar auxílio aos fracos e desamparados, ainda que esse desejo possa inexistir noíntimo de alguns ou muitos cidadãos.

De certa forma, o princípio da solidariedade serve para explicar “por querazão” devem ser materializados os direitos fundamentais, constituindo, além deprincípio, um sentimento fundador de todo o arcabouço legal. Diz, portanto, nãoapenas “o que deve ser implementado”, mas também responde “por que deve serimplementado”. Afirmar que desejamos a efetivação dos direitos fundamentaisapenas porque a Constituição assim determina equivale a dizer que não matamosporque a lei não o permite. Uma sociedade estruturada apenas na lei não pode serbem sucedida; há que haver um sentimento prévio à própria ordem jurídica que arespalde. Quando o art. 3º da Constituição afirma que um dos objetivos da Repúblicaé a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, assim fala em respeito aodesejo da ampla maioria dos cidadãos que nutre esse sonho.

No campo tributário, a atuação do princípio da solidariedade torna-se muitoclara. Obviamente, ninguém tem prazer em pagar tributos; paga-se, dentre outras

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razões, por dever de solidariedade (em sentido jurídico). O sentimento íntimo daqueleque paga (por desejo de colaborar com o Estado, por temor da lei etc.) é totalmenteirrelevante. Entretanto, compreende-se que o tributo é o preço que se paga pelaDemocracia.

Tal como ocorre em outras paragens do direito, o princípio da solidariedadedeve ser aproveitado com parcimônia e sabedoria: até mesmo ele pode ser malutilizado e, se o for, pode representar riscos ao próprio Estado de direito. Em nenhumahipótese deve servir para justificar atentados contra direitos humanos, por exemplo,o que poderia ocorrer numa interpretação excessivamente social do direito. Defato, teme-se que o princípio da solidariedade seja tomado em proporções excessivas,servindo para justificar quaisquer atos em nome do “bem comum”, o que permitiriaque direitos individuais fundamentais fossem postados abaixo dos interesses dasociedade.

Esta concepção excessiva do princípio da solidariedade, vazada na idéiade que o indivíduo deve servir ilimitadamente à sociedade, pode conduzir aoautoritarismo, como já ocorreu com os regimes nazista e fascista que apresentavamexatamente esse pensamento. Por essa razão, o princípio da solidariedade deve seradotado e efetivado, mas em plena harmonia com os demais princípiosconstitucionais. Direitos humanos não podem ser postos de lado sob o argumentoda solidariedade.

À parte dos mencionados riscos (que, diga-se, não se restringem apenas aeste princípio), procurou-se demonstrar que o princípio da solidariedade temjuridicidade, devendo ser visto como basilar da ordem constitucional (no sentidocriativo e interpretativo) além de servir como justificador de direitos fundamentais.

Sua grande virtude é harmonizar-se com as diversas correntes ideológicas:não prescinde da liberdade, tem íntima ligação com a noção de cidadania, almeja adiminuição das desigualdades e baseia-se na idéia de cooperação.

Tem, ainda, o mérito de ser instrumento de enriquecimento e humanizaçãodo direito, trazendo para o seio do estudo jurídico valores indiscutivelmente nobrese essenciais para a vida em sociedade.

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YAMASHITA, Douglas. Princípio da solidariedade em direito tributário. In:Solidariedade social e tributação. Coord. GRECO, Marco Aurélio; GODOI,Marciano Seabra de. São Paulo: Dialética, 2005, p. 53-67.

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GLOBALIZACIÓN Y RELACIONES LABORALES

Haydée Andrea AMARANTE·

SUMÁRIO: 1.Reflexiones previas; 2. Consideraciones Introductorias: 2.1. Un intentode comprensión terminológica: 2.1.1. Globalización; 2.1.2 Relaciones de trabajo;2.2. Delimitación temática; 3. Globalización y Derechos Humanos; 4. Globalizar: elimperativo en las relaciones del trabajo en Latinoamérica; 5. Incidencia de laglobalización en las relaciones de trabajo en Argentina; 5.1. Datos reveladores; 5.2.Breve evolución histórica; 5.3 Reflejo en el Derecho Laboral Argentino; 5.4. Elpaquete normativo flexibilizador; 6. Conclusiones; 6.1. Consecuencias; 6.2.Alternativas; 7. Citas; Bibliografía.

RESUMO: O artigo procura discutir as conseqüências da globalização para asrelações de trabalho na Argentina, principalmente no tocante ao direito trabalhista,apresenta ainda reflexões sobre a reforma flexibilizadora das normas trabalhistas, eapresenta conclusões pontuando conseqüências e alternativas.

ABSTRACT: The article aims to discuss the consequences of globalization for theemployment relations in Argentina, especially with regard to labor law, is still thinkingabout the reform of relaxed labor standards, and presents findings scoringconsequences and alternatives.

PALAVRAS-CHAVE: globalização; relacções de trabalho; direito trabalhista;flexibilização.

KEY-WORDS: globalization, labor relations, labor law; relaxation.

1. REFLEXIONES PREVIAS:

“…La división internacional del trabajo consiste en que unos países seespecializan en ganar y otros en perder.Nuestra comarca del mundo, que hoy llamamos América Latina fueprecoz, se especializó en perder desde los remotos tiempos en que loseuropeos del Renacimiento se abalanzaron a través del mar y le

* Advogada. Especialista em Direito do Trabalho. Defensora Pública do Povo da Cidade de Buenos Aires. Profesorade Direito do Trabalho na Universidade de Buenos Aires – Argentina. Doutranda em Globalização,Constitucionalismo e Direitos Sociais pela Universidade Castilla – La Mancha, Toledo, Espanha. Artigo Submetidoem 13/03/2008. Artigo Aprovado em 25/05/2008.

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hundieron los dientes en la garganta. Pasaron los siglos y AméricaLatina perfeccionó sus funciones. (Eduardo Galeano)

Si bien el rol de países globalizados no corresponde solamente a los paíseslatinoamericanos, es imposible para mí poder soslayar el impacto que tal procesorepresenta para nuestra región y mi país en particular; no porque la incidencia seaespecíficamente más trascendente en Argentina sino porque es la vivencia la quelo proyecta.

La globalización no es un proceso novedoso, ni en sí mismo ni en relacióna sus objetivos, y aunque algunos sectores lo proclamen como novedad, lo ciertoes que solo se trata de la continuación de un mismo proceso.

En 1492, antes de la llegada de España a América, los Reyes Isabel deCastilla y Fernando de Aragón le conceden a Cristóbal Colón privilegios de“descubrimiento y conquista”.

En 1493, el Papa Alejandro VI promulga las “bulas de donación” InterCaetera I y II otorgándole a los Reyes Católicos todas las islas y territoriosdescubiertos o por descubrir a cien leguas al oeste y hacia el sur de las Azores endirección hacia la India que no estuviesen en posesión del algún príncipe cristianoen la Navidad de 1492.

En nombre de la “...doctrina de la supeditación de los derechos del mundoinfiel a la autoridad cristiana...” y ejerciendo la representación de Dios, lamáxima autoridad católica ejecuta la usurpación territorial de los pueblos originariosde América – los cuales ascendían a 42 millones de kilómetros cuadradosaproximadamente.

En 1494, Castilla-Aragón y Portugal suscriben el Tratado de Tordesillasque traza una línea divisoria de 370 leguas al oeste de las Islas de Cabo Verde, y conesta distribución territorial, España se aseguró los fabulosos tesoros que ledeparaban las Indias.

Comienzan así las luchas por el dominio interno de Europa, las que yaadoptan un carácter mundial, puesto que los Estados Europeos tratarán de controlarlos océanos y de expulsar a sus competidores de sus posesiones.

Los pueblos que los conquistadores casi aniquilan le resultan útiles comomano de obra, por tratarse de comunidades que durante siglos han desarrolladouna extraordinaria disciplina en el trabajo y un marcado sentido de la asociaciónhabiendo alcanzado - en su momento – el más alto grado de civilización en estastierras.

Por su parte los recién llegados a América – España y Portugal - están enproceso de resquebrajamiento del orden feudal y viviendo los procesos inicialesde expansión del capital comercial y usurario.

Parafraseando al escritor uruguayo Eduardo Galeano, en su obra “Lasvenas abiertas de América Latina”, España ordeñaba la vaca y Holanda eInglaterra se tomaban la leche…, por cuanto dichos procesos no eran controladospor los ibéricos sino que obraban en beneficio de las nacientes burguesías de

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Holanda e Inglaterra.Con la conquista, se inicia el proceso de extracción, apropiación y

transferencias de riquezas en el que nuestra América tiene el rol de transferentedentro del esquema económico del mundo capitalista, desde el siglo XVI hasta laactualidad.

Esta sistemática transferencia hacia los capitales metropolitanos – hoycorporaciones multinacionales – y a los estados centrales que se apoyan ygestionan sus políticas a través de las instituciones internacionales (BancoMundial, FMI y GATT o como se la conoce actualmente como OMC -OrganizaciónMundial de Comercio) constituyen maniobras de apropiación y expropiación de lariqueza social.

Lamentablemente, esta apropiación cuenta con la complicidad y facilitaciónpor parte de nuestras burguesías locales que se constituyen muchas veces enasociadas menores o subordinadas en una suerte de permanente renovación del“pacto colonial”.

La conquista de América no es un fenómeno que ocurrió en el siglo XV óXVI o que pertenezca al pasado, sino que es un proceso que llega hasta nuestrosdías aunque con distintos nombres y circunstancias, con una continua acumulaciónde capital por parte de los dispositivos imperiales que siguen sirviéndose de losestados dependientes.

Antes, a través de la explotación del indio y hoy, a través de la explotaciónde las poblaciones de habla hispana que siguen siendo tratadas como poblacionescolonizadas por los países globalizadores.

La dicotomía entre países desarrollados - subdesarrollados, paísesindustrializados - en vías de desarrollo, países centrales - periféricos y hoy bajo elrótulo generalizado de globalización dentro del que coexisten países globalizadores- globalizados no hace sino establecer desde esa perspectiva el proceso dedistribución de la riqueza a nivel mundial o global.

La globalización no es una creación o el producto de la evolución de lasrelaciones internacionales.

Simplemente, es la continuación profundizada y extendida de la asimetríadesproporcionada de las relaciones entre los estados ascendentes dentro de laeconomía mundial - fundamentalmente de las grandes empresas dominantes ybeneficiarias - y los países-estados donde priman los salarios bajos, exportadoresde intereses y ganancias y cautivos de las instituciones financieras internacionales.

…La globalización es inevitable. Vano sería oponerse a una ley de lahistoria. Pero la que hoy se desarrolla, desde un punto de partidaigualmente histórico, es en cambio posible y también inevitabletransformarla, sin lo cual nuestra especie no podría sobrevivir.Está creciendo, moviéndose de una manera incontenible, no tiene marchaatrás. Nadie la puede detener. No hay quien la haga retroceder, ni hacefalta. Lo que hay que crear es una globalización humana, en dos palabras,

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no la que hay hoy… No es posible resignarse a un orden mundial queencarna en su grado más alto los principios y objetivos de un sistemaque durante siglos nos colonizó, esclavizó y saqueó a todos...Ya el dinerono es ni de Estados Unidos, es de las transnacionales. Esa es la realidad.Son ellas las que deciden lo más esencial del mundo, hoy, que es elmovimiento de capital… (1)

E históricamente hablando, el capital y el sistema capitalista no mantienenrelaciones permanentes con ningún sistema de gobierno - democracias o dictaduras.

Sólo tienen relaciones económicas estables, basadas en programasfavorables a la “libertad de mercado” y la “libertad de comercio”.

No es cierto que capitalismo y democracia se relacionen en término deconflicto, ya que en muchas regiones del mundo y durante largos períodos elprimero ha introducido y/o restaurado la democracia incluso como condición paramantener relaciones diplomáticas, comerciales y condicionando a su vigencia elotorgamiento de préstamos.

Mientras una democracia mantenga las leyes del libre mercado, serásostenida por las fuerzas del capital, se tolerarán los partidos “de oposición”, a laprensa crítica y a la competencia electoral con alternancia partidaria, siempre queesos partidos compartan la ideología económica reinante y necesaria para eldesarrollo de los países globalizadores.

Contrariamente, si un gobierno democrático intenta una redistribuciónmás justa de la riqueza, y ello afectara, aunque tangencialmente a empresasmultinacionales y transnacionales, éstas iniciarían un proceso de socavamientode las instituciones democráticas.

Ejemplos históricos de esta aseveración los encontramos con empresasmultinacionales tales como la UFC (United Fruit Company) y la ITT (InternacionalTelephone and Telegraph).

Cuando el gobierno de Salvador Allende tomó el control de la compañíachilena de telefónos (CHITELCO) que desde cuatro décadas atrás estaba en poderde la ITT, ésta telefónica y otros monopolios aunaron sus fuerzas con el secretariode Estado norteamericano - William Rogers - y el consejero de seguridad Kissingerpara bloquear económica y financieramente al país hermano, hoy observador delMERCOSUR.

Un libro reciente de Peter Kornbluh, director del Proyecto deDocumentación sobre Chile del National Security Archive, arrojó más luz sobreesas maniobras desestabilizadoras, luego de que la CIA aceptara en 2000desclasificar una serie de documentos secretos.

El propio gobierno de Estados Unidos desclasificó más de 16.000documentos secretos sobre Chile de las distintas agencias de gobierno, incluyendounos 700 documentos que la CIA se había negado a divulgar.

El material publicado en Washington - la mayoría del Departamento deEstado - pertenecen al periodo 1978-1991, aunque también se incluyó información

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referente a fechas anteriores.Más de 1.500 documentos desclasificados de la CIA incluyen material

sobre sus operaciones encubiertas para derrocar al Presidente Salvador Allende(1970-1973), su apoyo al régimen del general Augusto Pinochet y el financiamientodel diario El Mercurio por parte de la ITT durante el gobierno de Allende paraencabezar una campaña difamatoria.

El otro ejemplo a que hacía referencia, la United Fruit Company - UFC -(1899-1970), era una multinacional estadounidense que se destacó en la produccióny el comercio de frutas tropicales (especialmente plátanos y piñas) en plantacionesen Latinoamérica.

Sus intereses comerciales abarcaban grandes extensiones deCentroamérica y el Caribe donde la empresa era conocida como Mamá Yunay(“Yunay” es una deformación del término “United”).

Tenía muchísimo poder en los países centroamericanos ya que, con lacolaboración del gobierno estadounidense, ayudaba al derrocamiento de sistemasdemocráticos y a la implantación de dictaduras represoras en aquellos países quepresentaban hostilidades a su actuación empresarial. Es lo que se ha dado enllamar “república bananera”, ya que apoyaban a un líder local para poder llevar acabo sus intereses económicos.

Diversas actuaciones ilegales han salpicado su historia, como en Colombia,en 1928, que ante las protestas de los trabajadores agrícolas demandando mejoraslaborales, la compañía logró que las autoridades locales reprimiesen la manifestacióna tiros, asesinando a cientos de manifestantes. Es lo que se conoce como la Masacrede las Bananeras.

En 1954, en Guatemala, cuando Jacobo Arbenz Guzmán intentó aplicar unaley moderada a favor de la expropiación de las grandes propiedades, a las queindemnizaría con bonos a largo plazo, fue depuesto por Carlos Castillo Armas,gracias a la colaboración del gobierno de Washington.

Se dio un brutal conflicto de intereses ya que Allen Dulles, director de laCIA, era además abogado de la United Fruit Company y muchos de los empleadosgubernamentales tenían intereses privados en la empresa.

En Cuba era una de las compañías que controlaban la producción de azúcary fueron expulsados en 1959, tras la revolución que, un año más tarde, el 1 de enerode 1960, nacionalizaría todas sus posesiones.

En 1969 fue comprada por Zapata Corporation empresa relacionada conGeorge H. W. Bush y desde 1970 la compañía es parte de United Brands.

Creo que, tras estos ejemplos, ha quedado fielmente exteriorizada laconducta de las empresas multinacionales frente a las instituciones democráticasde los países globalizados.

Los dos sujetos de la globalización, por una parte grandes comerciantes,inversores y proveedores de servicios - tienen por los objetivos de sus políticas -intereses antagónicos con la otra parte, los trabajadores y productores localesincluyendo los agrarios y rurales de los países globalizados involucrados.

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La globalización es un proceso unidireccional desde los países centraleshacia los periféricos, como ejemplo de ello podemos decir que sólo los paísesglobalizadores son los que reclaman legalmente la extraterritorialidad, exigiendo lasupremacía de sus leyes sobre las leyes de otras naciones soberanas que ellosconciben como globalizadas.

Solamente ellos exigen de nuestros países la incorporación a tratadoscomerciales que nos resultan desventajosos y solamente ellos son beneficiadoscon las disposiciones económicamente proteccionistas que establecen.

Desde el punto de vista económico, el ejemplo de lo dicho es el ALCA(Alianza de Libre Comercio de las Américas) o también conocido como “EstatutoLegal del Coloniaje” que está pensado desde el norte imperial para todo el continenteamericano.

Esta nueva imposición se da a pesar que el Acuerdo de Libre Comercio deAmérica del Norte (NAFTA – sigla en inglés) ya ha probado sus terriblesconsecuencias.

Desde su vigencia, las trabajadoras de las maquilas en México tienensalarios por debajo de los mínimos, jornadas laborales de más de 12 horas, ausenciade amparo legal e impedimento para la acción gremial, condiciones de insalubridaden el trabajo.

La incorporación de los países americanos al ALCA significaría laprofundización del proceso de ajuste, privatizaciones y apertura al capitaltransnacional de más y más sectores de nuestras economías y mercados nacionalesy una renuncia expresa de las naciones globalizadas a poder decidir en materiasestratégicas y decisivas para su desarrollo y subsistencia.

Sería la expansión del NAFTA al resto del continente americano, siendo elobjetivo de este Tratado garantizar entre los países que lo integren, la librecirculación de mercaderías – conservando frente a terceros países la plenitud desus derechos arancelarios – y la libre circulación de capitales.

Las negociaciones del ALCA se iniciaron en 1994 y han sido conducidasen el mayor de los secretos.

Ni los pueblos de la región ni las organizaciones sociales y sindicales nisiquiera los Parlamentos o Congresos han podido participar de los debates o seguirla marcha de los acuerdos.

Los negociadores – con gran cinismo - afirman que “...se ha tomado notade las recomendaciones del Foro Empresarial de las Américas…” y que lasmismas han sido …”aportes valiosos al proceso del ALCA…”

Así algunos de nuestros “gobiernos democráticos” han firmado esteTratado a espaldas de los pueblos sellando con ello el destino de los derechoslaborales básicos.

El proyecto se extiende además a los servicios comprometiendo a los Estadosa garantizar el derecho a prestarlos, abriendo la posibilidad de la privatización dondeella no ha tenido lugar aún, por ejemplo los sectores de la educación y la salud, asícomo también excluye la reversión de las privatizaciones ya realizadas.

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El principio general es transformar los servicios sociales en mercancías,cuyo acceso quede regulado por la capacidad individual de pago.

Por otra parte le permitiría a las empresas multinacionales – como haocurrido en Canadá y México – exigir contar con las mismas exenciones y privilegiosque los organismos públicos que los prestan.

La eliminación de las barreras arancelarias, la prohibición de cualquierpolítica estatal destinada a favorecer el uso de bienes nacionales o privilegiar decualquier forma el desarrollo local o sectorial, la obligación de abrir las compras ocontrataciones del estado en todos sus niveles (nacional, provincial, municipal)que superen un monto mínimo a todas las empresas del continente, amenazan concondenar a la desaparición a las ya golpeadas pequeñas y medianas empresas yprofundizar el proceso de desindustrialización de nuestra región.

Además, al establecerse entre países con distinto grado de desarrollotiende a acentuar las desigualdades e imponer una división del trabajo en la que losmás atrasados operan simplemente como proveedores de recursos naturales ymano de obra barata.

Con el agravante que la potencia hegemónica se reserva el derecho deconservar los subsidios a los productores agrícolas, las cuotas y normasantidumping que le permiten deprimir los precios de nuestros productos y cerrarnuestros mercados.

Destruirá la producción y el empleo, impulsará la reducción de los salariosy estimulará la precarización laboral como medio de incrementar la capacidadcompetitiva de las diversas economías.

Sin embargo, la necesidad hegemónica no dudará en convalidar elincremento de la pobreza, la desigualdad social y el desempleo desde Alaska aTierra del Fuego si ello significa mayores beneficios para las corporacionestransnacionales y por supuesto para sus socios locales.

2. CONSIDERACIONES INTRODUCTORIAS:2.1. Un intento de comprensión terminológíca:2.1.1. Globalización:

“…Estos asuntos de la economía y finanzas son tan simples que están alalcance de cualquier niño. Sólo requieren saber sumar y restar. Cuandousted no entienda una cosa, pregunte hasta que la entienda. Si no laentiende es que están tratando de robarle. Cuando usted entienda eso,ya habrá aprendido a defender su Patria…”(Raúl Scalabrini Ortiz)

Para iniciar este intento de comprensión conceptual quiero hacerlo conuna referencia al concepto globalización que ha hecho un prestigioso intelectualde nuestro tiempo, cuando afirmó:

… Los académicos, más que nada los académicos oficiales, los que

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podemos llamar convencionales u ortodoxos, comenzaron a elaborarlo,a darle un barniz intelectual al concepto, una forma teórica, ubicándolocomo producto de las nuevas tecnologías, a partir de las necesidades deencontrar espacios para la expansión.Hasta ahí, era entendible, pero no quedó así la cosa.Entró en el vocabulario de gente supuestamente de izquierda y ahoracircula por todas partes con un uso sobrentendido por todos, como sifuera una nueva realidad.Así que se trata del viaje de un concepto desde una posición dondeejercía una influencia de circulación restringida, hasta el presente, enque se transformó en un cliché.Todos hablan o quieren hablar de la “globalización”.Pero creo que habría que decir “globaloney” porque se trata de unconcepto cuyas bases de elaboración son bastante criticables y yo diríaque, en el fondo, falsas, hecho de premisas falsas.(2) “Nota del Autor: Eltérmino “baloney” significa en idioma inglés TONTERÍA.

Continuando con el intento enunciado en este punto, se puede afirmarque el término “globalización” ha sido usado con muy diversos sentidos, se lo haintentado conceptualizar y con ese intento se lo quiso circunscribir, pero ello hasido en vano.

Se lo definió como interdependencia global entre las naciones, comocrecimiento del sistema mundial, como aldea global y hasta como fase superior delsistema capitalista.

En general, todas las nociones intentadas apuntan a incorporarlo como unproceso dentro del cual se produce la acumulación de capital, el comercio y lasinversiones más allá y extra fronteras de los Estados Nacionales.

El proceso designado como globalización o más correctamente llamado decapitalismo neoliberal con la aplicación de la ley de universalización de las reglaseconómicas ha llevado a la integración selectiva de algunas regiones del mundo ya la exclusión de otras limitándoles toda posibilidad de desarrollarse, proceso similarque se dio dentro de algunas regiones como una suerte de exclusión interna dentrode algunas sociedades.

Desde distintos marcos interpretativos algunos autores defensores delproceso globalizador han sugerido que los problemas económicos y sociales quetiene América Latina se debe al insuficiente desarrollo capitalista y que sudespliegue está obstaculizado por el freno que representan algunas de sus lentasy atrasadas regiones internas.

Al desarrollar esta postura, olvidan mencionar en el enunciado de supostmoderna teoría de las “sociedades atrasadas” que existe otro actor, elimperialismo globalizador.

Esta presencia es decisiva en este proceso de desarrollo-subdesarrollo,pues a través de mecanismos no sólo económicos sino también políticos,

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diplomáticos, militares y culturales cierra el círculo denominado sistema capitalista.La evolución hacia la llamada “modernización” partió de la falacia

discursiva de que nuestros países eran subdesarrollados por contraposición a lospaíses industrializados.

…No se puede establecer si el concepto de “globalización” puedaexplicar suficientemente el hecho que el capital se haya extendido aprácticamente todas las regiones geográficas del mundo, subsumiendotodas las economías bajo su dominio y explotando el trabajo en todoslados para la acumulación privada…(3)

Conjuntamente con el término “globalización” se desarrolla un nuevolenguaje y un nuevo discurso teórico de corte post-modernista que acompaña alproceso en su accionar.

Por ejemplo, cuando las multinacionales se apropian de las empresasproductivas nacionales y sus activos y extraen su ganancia empleando mano deobra barata, las mismas son “facilitadores de la globalización” que contribuyena la creciente integración de la economía mundial.

Las transferencias de ingresos del trabajo hacia el capital y sureconcentración son “mecanismos internos de ajuste” a los requerimientos de laeconomía mundial.

La prescripción de recetas macroeconómicas es considerada como“estabilización” y la remoción de obstáculos a la desregulación del capital privadoes vista como una forma de “ajuste estructural”.

La compra por bajos precios de los activos públicos estatales esdenominada “privatización”. .

Cuando las organizaciones populares se “adecuan” a los intereses de lospaíses globalizadores se lo describe como “fortalecimiento de la sociedad civil”o bien como “factor clave en el proceso de desarrollo económico”

Las definiciones terminológicas abre un abanico de posibilidades quesiguen abriéndose a medida que se hace el análisis del proceso y sus constantesavances desde el centro del poder hacia la periferia.

Me parece que entender o intentar entender de qué estamos hablandocuando hablamos de globalización nos permite acompañar estos avances desdeuna visión crítica y con un proyecto propio tal como está ocurriendo desde distintosforos internacionales en los que ya se plantea la posibilidad de otra alternativa.

Desde Seattle y Porto Alegre, entre otros foros mundiales, se intenta revertirlos efectos desvastadores de la globalización y se plantea la humanización deltrabajo desde la creación de nuevas condiciones en el sistema de relacionesinternacionales, desarrollando la opción por la sociedad de trabajo en oposición a lasociedad de mercado.

Debemos entender el término pero sobre todo debemos entender que es loque conlleva el proceso, de esa forma podremos - desde nuestra región - oponernos

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a ser los “Conejillos de Indias” con los cuales se experimentan los fracasadosmodelos de desregulación, privatización y flexibilización de las relaciones laborales.

Entender es comenzar a cambiar…

2.1.2. Relaciones de trabajo:

“Bajo cualquiera de los términos comúnmente empleados, globalizacióno mundialización, según la matriz sea anglosajona o francesa, se estáhaciendo referencia a la internacionalización a escala planetaria delsistema económico capitalista… Empleando el sentido de la noción de globalización en su versión máscomún, la económica, y en lo que a un jurista del Derecho Laboral leinteresa, tal fenómeno finisecular implica una relación entre losmecanismos de circulación del capital, los sistemas financieros y lamundialización de los mercados con la regulación de los sistemasproductivos y las formas de organización del trabajo que desemboca enuna crisis de las tradicionales formas de regulación de las relacioneslaborales.”(4)

La crisis del mercado laboral – producto de este flujo y reflujo de capitalesmundiales – trajo como consecuencia un grave deterioro en las relaciones detrabajo, desocupación y subocupación, pobreza, marginalidad, concentración dela riqueza, desigualdad en su distribución, bajos salarios con una tendencia a lacaída, negociaciones colectivas a la baja, agravamiento de las condiciones detrabajo, y podríamos seguir con esta trágica lista apenas enunciativa.

Para entender cómo se fue expandiendo este concepto se hace necesariocontinuar con el análisis respecto a la imprescindible complementación discursivaque requiere el proceso de la globalización, pues para ello, se comienza a gestar endistintos organismos multinacionales la idea de la “lucha contra la pobreza”.

En esta categoría conceptual y, sobre la retórica de los intelectualesglobalizados, comienza a gestarse otra idea relacionada con la anterior, es la queaquellos que no lograron triunfar en el mercado económico-laboral son fracasados,y como pobres que son sólo tienen derecho a acceder a las necesidades básicas.

Una vez precisada la terminología, esto es, haber encontrado el real sentidoa las palabras que se intenta conceptualizar en el presente trabajo, se hace necesarioencontrar - sobre la base de esos conceptos - el campo temático dentro del cualdesenvolverlo.

Relación de trabajo según la Ley de Contrato de Trabajo – Ley Nº 20744(LCT) de mi país, artículo 22: “Habrá relación de trabajo cuando una personarealice actos, ejecute obras o preste servicio a favor de otra, bajo la dependenciade ésta en forma voluntaria y mediante el pago de una remuneración”.

En la 8va. Edición de la LCT comentada por los Drs. Fernández Madrid yAmanda Caubet, se afirma que hay relación de trabajo cuando una persona física

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compromete un trabajo personal a favor de otra, física o jurídica, por cuenta yriesgo de ésta última, que organiza y dirige la prestación y aprovecha sus beneficiosmediante el pago de una retribución.

Tenemos aquí los rasgos tipificantes de una relación de trabajo en la cualla dependencia económica está implícita en la misma, incluyendo todo tipo demodalidad prestacional y modalidad temporal.

La relación se configura cuando el trabajador pone a disposición delempleador su fuerza de trabajo, vinculándose al mismo a través de su incorporaciónen una empresa ajena.

El empresario aprovecha el beneficio económico de esta relación y asumelos riesgos y a cambio de ello solamente le paga un salario al trabajador. Esimportante destacar la nota de ajenidad evidenciada en la fórmula “por cuentaajena”, ya que no le puede ser imputable al trabajador la situación económicainterna de la empresa como tampoco los factores externos que se relacionen conlas decisiones de la macroeconomía.

El trabajador no es partícipe del negocio, no obtiene réditos ni beneficiossobre las ganancias de la empresa más allá del cobro de su salario.

Con más razón no puede imponérsele al trabajador las fórmulas - productode los ajustes estructurales - y las consecuencias de políticas financierasespeculativas internacionales.

El salario de los trabajadores no puede ser la variable del ajuste en nuestraregión tal la imposición de organismos mundiales que realizan auditorías en nuestrasya desvastadas economías locales.

El hombre que trabaja no puede ser la ficha comodín en el tablero delmercado económico y la pobreza que su precarización o su ausencia determinan nopuede ser una variable de medición para establecer el balance del desarrollo socio-económico de nuestros países en función de los vaivenes históricos de la economía,su evolución y las variantes en los modos productivos.

2.2. Delimitación temática:Indiqué que el término globalización ha sido acompañado - para encontrar

sentido autónomo - de un discurso de apoyatura donde el lenguaje contribuye adegradar ideas tradicionales sobre las relaciones de trabajo y es cuando estasideas “…comienzan a convertirse en frases deliberadamente idealizantes, enuna ilusión consciente, en una deliberada hipocresía. Y cuanto más la desmientela realidad y más se desvalorizan ante la conciencia misma, con mayor energíase las hace valer, más hipócrita, más moral y más sagrado se torna el lenguaje deesta sociedad. Y cuanto más hipócrita se torna esta sociedad, más fácil le es a unhombre crédulo como Sancho descubrir por todas partes la representación de losagrado, de lo ideal. De la hipocresía general de la sociedad puede él, el hombrecrédulo, abstraer la creencia general en lo sagrado, el imperio de lo sagrado yver en lo sagrado, incluso, el pedestal de esa sociedad. Es víctima de la mismahipocresía a partir de la cual precisamente habría debido llegar a la conclusión

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contraria...” (5)Este lenguaje distorsionador ha acompañado la evolución del llamado

proceso de apertura de la economía, en el que se establecieron nuevos patronespara lograr el disciplinamiento de los trabajadores frente a la reestructuración delas condiciones laborales y la imposición de una nueva organización del trabajosocial, garantizándose la apropiación de todo excedente de ese trabajo para permitirmayores ganancias.

Para ello el proceso de reestructuración se sostuvo en dos pilares: laexpansión de la sobrepoblación relativa (desempleo, subempleo, abierto yencubierto) y la flexibilización de las condiciones de trabajo.

La precarización de las condiciones reinantes en el mercado de trabajoactuó como el instrumento disciplinador bi-direccional, hacia el interior del procesoproductivo - las empresas - y en un sentido más amplio hacia el exterior del procesosocial de producción.

La desocupación y la precarización del trabajo implicaron una presióndirecta sobre el conjunto de los trabajadores activos para lograr su adaptación – osometimiento - a las nuevas exigencias en las relaciones del trabajo con un altocosto social, la pauperización de los trabajadores, incrementando el desempleo ycreando la categoría del hombre “ más pobre entre los pobres” - el trabajadordesocupado.

Se precarizó el trabajo, se fomentó el trabajo a tiempo parcial y el subempleo,se intensificó la jornada laboral, se disminuyó el salario real, se deterioraron lasjubilaciones y pensiones, se redujeron las prestaciones sociales, todo ello aún acosta de la salud y de la vida de los trabajadores.

Hay que destacar que la aplicación de este modelo ha conducido a uninestable y concentrado crecimiento económico que ha privilegiado al sectorfinanciero sin lograr superar la crisis socioeconómica.

Por el contrario, ha habido un incremento acelerado del desempleo quealcanza niveles insostenibles en los países globalizados y que afecta en formaalarmante a los propios países globalizadores.

Con las salvajes políticas de libre mercado aplicadas por los paísesglobalizadores, la globalización ha sido la generadora de pobreza masiva, y exclusiónsocial de los pueblos globalizados, acentuando la desproporcionada desigualdadreinante entre las partes que conforman las relaciones laborales.

Sin embargo, no puedo dejar de resaltar que todavía hoy, desde losorganismos multilaterales que han instrumentado este modelo de libre mercado,con sus saldos de desigualdad social, inequidad y pobreza, atribuyen el fracaso denuestros países y de sus habitantes a su “propia incapacidad” de aprovechamientode supuestas oportunidades que se abren para todos como resultado de lainternacionalización del capital.

Frente a este discurso distorsivo de la realidad económica y laboral es miobjetivo demostrar que la globalización es la continuación de un proceso dedominio y subordinación , que acarrea

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-como ha sucedido históricamente- un retroceso en las economías de lospaíses globalizados.

Como alguna de las características que persisten en este remanido procesose pueden mencionar, el proteccionismo de los países globalizados de su comercioexterior frente a la exigencia de apertura unilateral de nuestros países; la privatizaciónde la empresas públicas, hoy bajo control de las corporaciones transnacionales,que concentran los excedentes y beneficios de la renta por la explotación de recursosnaturales (por ejemplo, los hidrocarburos) y de los beneficios generados en elsector financiero, telecomunicaciones y servicios básicos (por ejemplo, el agua).

Estas han sido algunas de las causas del endeudamiento externo e internoy han llevado a una mayor dependencia del financiamiento externo que se haconstituido en el principal factor de limitación de desarrollo con equidad en nuestrospaíses.

La necesidad de las reformas neoliberales se impuso a repetición de lafórmula que indicaba que solamente estas reformas sacarían a Latinoamérica delatraso en que la había sumido el estatismo.

Después de una más de una década se puede ver que los resultadosfavorecieron solamente a una pequeña franja poblacional, esa minoría que vivedetrás de muros de los barrios cerrados o “countries” exclusivos custodiados porguardias armados.

De acuerdo a índices y datos aportados por la OIT se señala que en 26países en los que se aplicó la reforma neoliberal, y a consecuencia de los “cambiosestructurales” creció el desempleo.

Las estadísticas señalan que 8 de cada 10 puestos de trabajo creados enlos años 90 corresponden a ocupaciones de baja calidad en el sector informal.

El modelo neoliberal globalizador ha fallado en cuanto a la aplicación de suproyecto económico pero ahora hay que lograr que no triunfe en el plano ideológico.

Por tanto no podemos razonar en el sentido que a pesar del fracaso era loque “había que hacer”, sino que hay que derribar el mito y entender que no dio elresultado esperado porque “no era lo que se debía hacer”.

En síntesis, y para realizar la delimitación temática del presente trabajopuedo afirmar que la globalización es un proceso que - gracias al mito de suinevitabilidad - influye de modo directo sobre las relaciones de trabajo,condicionando a las mismas en su calidad, duración y rotación, entre otrascaracterísticas prestacionales, y eso es lo que intentaré abordar enlos puntossiguientes.

3. GLOBALIZACIÓN Y DERECHOS HUMANOS:Tal como se viene definiendo y delimitando conceptualmente el proceso

de globalización, el mismo implicaría la pérdida de las conquistas sociales de casidos siglos de lucha.

Por ello tenemos que preguntarnos si es posible la co-existencia del procesoglobalizador con el ejercicio efectivo de los derechos fundamentales.

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En un interesante trabajo – “Globalización vs. Derechos Humanos” la Dra.Silvina Ribotta indica “…globalización de todo menos de la calidad de vida”… “unificando formalmente a la humanidad y diferenciándonos en aquello quedebería igualarnos: nuestro derecho a ser humanos y a vivir como tales…” nosesboza una respuesta.

Es claro que cuando aborda su trabajo entiende desde el título mismo quees un enfrentamiento entre el proceso globalizador y la supervivencia de losderechos fundamentales que intentan desarrollarse en su interior.

Por mi parte iré respondiendo a esa pregunta a lo largo de este trabajo y sinlugar a dudas se encontrará su respuesta final en las conclusiones, las que analizansus consecuencias y dejan vislumbrar algunas alternativas que denomino “formasde contrapoder”, también llamadas en el trabajo referido “estrategias deenfrentamiento”.

Tres generaciones de derechos humanos se ven arrasadas por este procesodeshumanizado y deshumanizante que se alza y desarrolla por encima de lasnaciones, los pueblos y las instituciones. Aunque debo destacar que hay intentospor parte de nuestros países de crear un sistema de derechos humanos, garantíasindividuales y libertades públicas.

América Latina ha tenido en distintos momentos del siglo XX largosperíodos de oscurantismo autoritario con debilitamiento o directamente supresiónde los mecanismos básicos de representación, participación, control yresponsabilidad.

En estos períodos históricos, los derechos humanos casi han perecido.Nuestros países han emergido de las autocracias y consecuentemente se

han restablecidos los mecanismos democráticos.Sin embargo en América Latina parecen democracias pero no lo son, siguen

siendo dictaduras aunque se vote, ya que no hay garantías para el ejercicio de laslibertades individuales.

Al decir de Horacio Verbitsky, periodista del diario Página/12 de Argentina,en su columna del día 21 de septiembre de 1997:…” En varios países de AméricaLatina y no sólo en Argentina, se tornan cada día más evidentes las limitacionesde los regímenes civiles que sucedieron a las dictaduras militares de décadasanteriores. Las democracias emergentes de mercado son sistemaspresidencialistas sobre los que operan los poderes económicos. Esos ejecutivosfuertes negocian con congresos clientelistas e imperan sobre aparatos judicialesdébiles y corruptos.

La prensa ocupa un rol de relieve inversamente proporcional a la calidadde las instituciones y si cumple con su misión de informar en forma independienteen algún momento se gana la inquina del único poder realmente existente.”.

Perviven en cada sistema jurídico interno de nuestros países gran cantidadde rasgos derivados de los períodos autoritarios.

El funcionamiento “normal” de la democracia no ha garantizadoautomáticamente la democratización de la administración ni un respeto generalizado

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a las libertades públicas o a los derechos individuales.Subsiste una administración y una sociedad autoritaria bajo una superficie

democrática, en la que a grandes líneas existe un sistema bi o pluri partidario(aunque haya cooptación de dirigentes), existen los tres poderes del Estado (aunqueno funcionen en equilibrio), existe prensa libre (aunque deba auto censurarse).

En este contexto político es que debe desarrollarse el sistema de derechoshumanos en que existen normas pero que no es vigente porque no puede sereficaz.

Existe un exceso de lo administrativo y de lo privado sobre las libertadesindividuales y tampoco funcionan los controles y limitaciones que sean al menosoperantes.

Dentro del modelo de nuestras democracias defender los derechos humanoses sinónimo de atacar el orden constituído, sus instituciones, la seguridad jurídicay la paz social.

Por el contrario nadie denigra a quienes atacan y transgreden desde elpoder estatal, los derechos individuales, creando con ello una gran inseguridadjurídica y lesionando las instituciones.

En el caso paradigmático de Argentina, durante la dictadura sangrientaque nace con el golpe de Estado en 1976, con miles de “desaparecidos”, el slogandel régimen era: “LOS ARGENTINOS SOMOS DERECHOS Y HUMANOS”.

No quiero hacer de este trabajo un ejercicio interpretativo pero esinsoslayable en este punto decir que - mientras se implementaba el genocidio demis compatriotas para imponer un proyecto económico estructurado desde el Norte– los derechos humanos agonizaban en las salas de tortura y morían arrojadosdesde los vuelos.

Desde entonces han devenido varios “gobiernos democráticos” y hamediado una reforma constitucional – en 1994 - que ha incorporado a su redacción“Nuevos Derechos y Garantías”.

En materia de Derechos Humanos Argentina es signataria de la ConvenciónAmericana de Derechos Humanos también conocida como Pacto de San José deCosta Rica reconociendo la jurisdicción obligatoria de la Corte de San José comoárbitro final de su vigencia y violaciones.

El artículo 75 inciso 22 de nuestra Constitución Nacional – en su actualredacción - implica claramente el reconocimiento del Pacto como normasupranacional y supraconstitucional de control de derechos humanos.

Por el principio de la “irreversibilidad de los compromisos comunitarios”no existe la posibilidad jurídica de una vuelta atrás en la Comunidad y por ende noes posible nacionalizar nuevamente los sectores que han pasado ya bajo talautoridad.

Dicha Corte ha resuelto en su Opinión Consultiva Nº 13 del 16 de julio de1993 que es competente para calificar cualquier norma de derecho interno de unEstado Parte como violatoria de las obligaciones que éste haya asumido al ratificaro adherirse a la Convención.

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De lo cual resulta que nuestra Corte Suprema debe aplicar el tratado puesde lo contrario existiría responsabilidad de la Nación frente a la ComunidadInternacional.

Desde ese momento todas las normas de derecho interno debeninterpretarse en el contexto y a la luz de la finalidad que tuvo en mira el texto de laConvención.

Así, desde la adhesión al Pacto, no puede haber más interpretación de lasnormas internas que aquella que se realiza en el sentido compatible con su texto.

El hecho de la ratificación de esta Norma Supranacional eliminadefinitivamente el mito interno de cada país o su gobierno de poder ejercer unpoder incondicionado o ilimitado, pero aunque América Latina toda esté sujeta aeste tipo de control - dentro del proceso de globalización - ello no implica unagarantía para el efectivo ejercicio de los derechos humanos.

4. GLOBALIZAR: EL IMPERATIVO EN LAS RELACIONES DEL TRABAJO ENLATINOAMÉRICA:

“El hemisferio todo nos pertenecerá, como de hecho, ya nos pertenecemoralmente, por la virtud de la superioridad de nuestra raza.” (Discurso delPresidente Norteamericano William Taft, 1912).

¿Será esta una sentencia premonitoria, una expresión de deseos o unadesafortunada exteriorización de una política económica y militar?

Lo cierto es que casi cien años después de este discurso, la vigencia delproyecto que encarna el país del norte y sus aliados es incuestionable, así comocuestionable es su objetivo, para cuyo cumplimiento se usó sistemáticamente lamilitarización de nuestra región.

Aunque atrás han quedado las invasiones directas a numerosos países deLatinoamérica, aún hoy quedan las bases en nuestros territorios.

El 1º de enero de 2004, el entonces Secretario de Estado norteamericano,Colin Powell, en su discurso estratégico dijo:”… El proyecto no es regional sinoglobal. Esta lucha no será confinada al Medio Oriente, sino que incluye la”liberación” de Cuba, el sostén de un gobierno resoluto en Colombia y el apoyoa las jóvenes democracias que han nacido en América Latina…”.

El proyecto global está organizado sobre la base de proyectos regionales,los que a su vez están compuestos por los proyectos nacionales, garantizando asíla cohesión en la persecución de los objetivos propuestos en todos los niveles delproyecto del país del norte.

América Latina es considerada un área estratégica por Washington, yaque contiene reservas naturales consideradas vitales para los bloques imperialistas.

Buscan apropiarse de las reservas de petróleo de Venezuela (es una de lascuatro más grandes del planeta), los recursos de agua potable renovable de lascuencas del Amazonas, del Orinoco y del Paraná, las grandes reservas de biogenéticay la mayor producción de oxígeno de la tierra en la Amazonia – cuya

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“internacionalización” se propone. La anexión de nuestra región se opera desde distintos ámbitos: en lo

económico a través del ALCA, los Convenios bilaterales de Libre Comercio; en lomonetario: con la dolarización de nuestras economías; en lo cultural: con losproyectos de reformas educativas del Banco Mundial y con la destrucción de laidentidad latinoamericana a través de la televisión y otros medios masivos decomunicación y en el plano de lo jurídico: por la extensión de facto de la justiciaestadounidense a los Estados Latinoamericanos.

En lo militar: se opera por el Plan Colombia y la penetración a través de suextensa red de bases militares en distintas zonas, teniendo en la mira en la actualidad- para asentar una de esas bases - a la denominada “triple frontera” en laMesopotamia Argentina.

El término mesopotamia indica una zona geográfica ubicada entre dosríos, en este caso los ríos Paraná y Uruguay, que como expresé precedentementerepresenta una cuenca de agua potable muy importante por ser estratégica por suubicación, entre tres de los cuatro países integrantes del MERCOSUR (MercadoComún del Sur), Paraguay, Brasil y Argentina.

Además, existe una ofensiva militar con constantes proyectoscontrainsurgentes respecto a los movimientos sociales e indígenas de la región,como sucede con Bolivia y Ecuador, los que se complementan con planesespecíficos para destruir la Revolución Cubana y la Revolución Bolivariana enVenezuela.

Este proyecto global, que en su carrera por convertir hasta los últimosrincones del mundo en fuentes de ganancia, exige reducir a su mínima expresión lascondiciones adecuadas de vida para las personas, debería tener sus propios límites.

El ejemplo más claro es el de la Administración Kirchner, en la que estoslímites empiezan a ser altamente visibles y se traducen en índices alarmantes: durantesu gobierno se generó un déficit fiscal del 5% del Producto Bruto Interno (PBI), undéficit comercial de la misma dimensión, una devaluación de más del 30 % y ladestrucción de tres millones de empleos.

Lo destacable es que en todos los procesos modernizadores quehistóricamente padeció Latinoamérica inclusive en esta ola globalizadora, el papelque se le adjudicó fue siempre el de dependiente de los procesos hegemónicos delos centros de poder del Primer Mundo.

A mayores exigencias de las tecnologías productivas mayores exigenciasde readecuación del mundo material e inmaterial latinoamericano, convirtiéndoseasí en imperativos para nuestra región, obligándola a un proceso de constantereciclaje económico y social.

Así, y para ello, en América Latina ha habido antecedentes de esta necesidadde insertarla en el proceso de globalización: en 1960 el Tratado de Montevideoconstituyó la Asociación Latinoamericana de Libre Comercio (ALALC), siguiendolas propuestas de la Comisión Económica para América Latina (CEPAL), con elobjetivo expresado de expandir el comercio en la región sobre la base de la creación

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de zonas de libre comercialización, limitada a los países de la Asociación, conaplicación del tratamiento de la nación más favorecida, entre otros.

Por distintos y diversos factores ésta sufrió un gran deterioro ydebilitamiento y en 1980 a través del nuevo Tratado de Montevideo se reconstruyecomo Asociación Latinoamericana de Integración (ALADI), reafirmando el propósitode los mercados comunes regionales pero con características más flexibles.

Luego vino el turno del Tratado de Libre Comercio de América del Norte(TLC o NAFTA), y después, el ALCA, con el único objetivo de derribar las barrerasarancelarias para las mercaderías manufacturadas y permitir la libre circulación debienes y servicios.

En 1990 la Administración Bush (padre) lanzó la Iniciativa para las Américas(IPA), con el objeto de lograr un mercado ampliado, la misma fue ratificada por elpresidente norteamericano Clinton en 1994 en la Cumbre de las Américas, en la quese resolvió posponer su iniciación para la década siguiente.

La integración que define EEUU está pensada para favorecer la estrategiade acumulación de capitales objetivo por lo cual se buscan mercados con capacidadde consumo más allá de las fronteras nacionales.

La flexibilización de las relaciones laborales y los bajos salarios son lacomplementación necesaria para la implementación de las políticas de apertura quedefinen este tipo de “integración”, se trata de abaratar los costos de la producciónhaciéndolos recaer sobre las espaldas de los trabajadores.

Asistimos a la era de la “diplomacia del dólar” acompañada de la avidezespeculativa de grupos extranjeros con su correlato en sus agentes locales que seapropiaron de activos nacionales devaluados, con dolarización de las economíasnacionales y estatización de deudas privadas.

También está la deuda externa latinoamericana – que fuera contraída porgobiernos de facto, dictaduras militares y algunos gobiernos corruptos – “…ytiene una agravada naturaleza sisífica, en alusión al mito griego de Sísifo. Porquecuanto más se paga más crece. La roca que se debe volver a encaramar en lacumbre es, claro está cada vez más pesada.”(6)

Frente a este proyecto y como consecuencia del mismo, comienza a ponerseen marcha el imperativo globalizador, y hoy tenemos que de las 500 compañías másgrandes del mundo, 244 de ellas, casi el 48 % son de Estados Unidos, 30 % son dela Unión Europea, el 10 % pertenecen a Japón y los llamados “tigres asiáticos”cuentan con 3 empresas en esa lista.

África y América Latina brillan por su ausencia y en lo que respecta aAmérica latina, 10 de sus 20 principales empresas son de propiedadestadounidense.

El 90 % de las corporaciones más grandes que dominan la industria, elcomercio y los bancos son estadounidenses, europeas y japonesas.

…Las implicancias de esta concentración de poder son claras: ningúnpaís del denominado Tercer Mundo puede darse el lujo de liberalizar

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sus mercados ya que Europa y Estados Unidos se lo impiden debido alcontrol que logran ejercer con superioridad y concentración de susrecursos... (7)

Por otra parte, se observa a través de estadísticas que en varios países dela región - Argentina, Colombia y Uruguay, la ausencia de un modelo productivoinclusivo, con una tasa de desempleo urbano que superó el 15% en los primerosaños del siglo XXI y que en once países de la región la falta de empleo empeoró encomparación con la década del ´90.

La precariedad del empleo reemplazó a la estabilidad como condiciónimperante en las relaciones laborales en América Latina.

Una gran mayoría de los trabajadores se enfrenta a altos niveles dedesempleo, ampliación de las jornadas de trabajo, reducción de los salarios realese incumplimiento de estándares laborales aceptables internacionalmente, entre otrasamenazas concretas al empleo de calidad como mecanismo tradicional de superaciónde la pobreza.

…Sin embargo, desde los organismos multilaterales que instrumentan elmodelo de libre mercado, los saldos de desigualdad social, inequidad ypobreza que acompañan a esta fase del capitalismo, denominada“globalización” se atribuyen exclusivamente al fracaso de los países yde los individuos para aprovechar supuestas oportunidades que se abrenpara todos en este proceso de internacionalización del capital. Frente aeste discurso, es imperioso dar cuenta de las múltiples evidencias quepermiten demostrar que las tendencias económicas, sociales y políticasque se observan en nuestros países son el resultado de nuevas formas dedominio, subordinación y explotación del capital internacional que, endefinitiva, son las que acarrean los dramáticos retrocesos para laseconomías y los derechos sociales en nuestra región. (8)

La competencia global es despiadada, no está frenada por las asociacionessindicales ni por los Estados nacionales, ni por las instituciones del Estado global,asegurando esta falta de límites un fuerte aumento en las tasas de ganancia de lascorporaciones multinacionales.

Las dos caras de esta moneda: por un lado se llevó a cabo lareestructuración neoliberal, con procesos privatizadores, ajuste fiscal, flexibilizaciónen la relación capital-trabajo, apertura de los mercados y enajenación de los serviciospúblicos y de los recursos naturales y energéticos y por el otro se haceimprescindible revalorizar los derechos sociales, entre ellos el derecho al trabajo.

HOY, en nuestra región, asistimos al surgimiento de nuevas formas deexpresión y de lucha de la sociedad por una mayor integración social y el ejerciciode derechos - específicamente el derecho al trabajo y los derechos del trabajo -como el camino más genuino para mejorar las condiciones de vida de los

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trabajadores.Es en el centro de estos movimientos sociales, en la expresión de sus

intereses y demandas, en la recuperación de la centralidad del trabajo y sudignificación, donde parecerieran asentarse las bases para la construcción de unnuevo modelo de Estado y de sociedad de nuestra región.

5. INCIDENCIA DE LA GLOBALIZACIÓN EN LAS RELACIONES DE TRABAJOEN ARGENTINA:5.1. Datos reveladores:

Inicialmente y para mostrar la situación de la Argentina a raíz de la aplicacióndel plan de ajuste que se llevó a cabo durante algo más de una década comoproducto de la necesidad de inclusión de mi país en el proceso globalizador voy atomar la visión internacional como punto de partida.

En el mes de abril del año 2002, el entonces influyente agregado político dela embajada norteamericana en mi país – Michael Matera - declaró ante un auditorioVIP, en un encuentro que se desarrolló en Fortaleza, Brasil, conformado porimportantes representantes de la banca internacional, de New York y Londres, conintereses en la Argentina:

…los bancos están técnicamente quebrados, sin embargo los argentinoscreen que una parte importante de sus problemas son responsabilidaddel Fondo Monetario Internacional (FMI) y de Estados Unidos, por lotanto opinan que ellos tienen la obligación de ayudar a Argentina. Perola embajada de Estados Unidos está convencida de que no debe venirplata a la Argentina hasta que el gobierno no desarrolle un programasustentable. En verdad, la última cosa que debería hacer la comunidadinternacional es darle más plata a este gobierno de la Argentina”.“La Argentina es bien conocida por sus crisis pero esta es, lejos, lapeor”. “Rusia jamás cayó como la Argentina.” “La crisis es contagiosapolítica pero no económicamente.” “El hambre es un tema central en laArgentina, hay saqueos en supermercados”.“La política no cambiará, los políticos deben limitarse a implementarun programa sustentable en su país. Están convencidos de que el mundodebe venir a ayudarlos. Esa es una de las razones por las que Argentinajamás ajustó realmente.

CONCLUYÓ: “El pensamiento de los economistas internacionales esincompatible con la mentalidad nacional de los argentinos.”

Por su parte, el entonces Secretario del Tesoro de EEUU – Paul O´Neill –también exteriorizó su postura respecto a la crisis de la Argentina y declaró al diarioClarín del día 21 de abril de 2002, que, en el seno del Grupo de los Siete (G7), elgrupo de los países más industrializados, existe consenso en torno a que el problemaprincipal argentino en este momento es más político que económico.

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Y lo que ha hecho, lo ha hecho a medias como para hacernos creer queestá haciendo algo, hubo progresos y estamos dispuestos a ayudar, espor eso que estamos pidiendo garantías. Argentina le prometió al Fondoen marzo que haría tres cosas: la reforma fiscal (Pacto con lasprovincias), la aprobación de las leyes de Quiebras y de SubversiónEconómica y transparencia en el mercado monetario. Y no cumplió

O’’Neill explicó que no importa si estas tres cosas son precondiciones, olas llamadas acciones previas necesarias para llegar a un acuerdo: “…Lo importantees si el Gobierno argentino está determinado a hacer lo que es necesario para supropio pueblo.”.

Más aún, el en aquel entonces ministro de Economía español, David Rato,sintetizó el clima reinante en el G-7 cuando dijo que lo que todos esperan essimplemente que el Gobierno argentino “cumpla y que es imprescindible queArgentina realice “cuanto antes y con un calendario muy estricto la reformafiscal y monetaria que prometió”.

Los ministros de Economía del G-7 se mostraron preocupados por eldeterioro de la situación social en la Argentina aunque la mayoría opinó que creíaque la Argentina todavía no había tocado fondo.

No creo que sea necesario realizar ningún comentario o agregar algunaotra opinión a esta objetiva visión de la comunidad internacional sobre la crisis quevivió mi país.

A continuación, desarrollaré algunos datos reveladores consecuenciadirecta de la implementación de las políticas globalizadoras que se impusieron y seimponen desde los organismos mundiales.

HOY, el empleo no registrado o “en negro”, es una problemática cuyasconsecuencias afectan directamente la calidad de vida de los trabajadores.

Los altos índices actuales de trabajo “en negro”, obligan al Estado a teneruna política más activa para combatirlo, y subsidiariamente reformular losmecanismos que resulten insuficientes para su objetivo.

Para el trabajador la falta de registración de la relación laboral significa laexclusión de beneficios laborales y provisionales, no se le garantizan vacacionesni SAC; implica la inestabilidad laboral; desprotección frente al despido; falta decobertura de salud por no tener obra social, desprotección en accidentes laborales,entre otras consecuencias.

La falta de registración también impide que se realicen los controlesadecuados que garanticen al trabajador su seguridad en el puesto de trabajo, yaque se dificulta la detección y corrección de las infracciones a la normativa laboral.

Asimismo, esta irregularidad repercute gravemente en la remuneración yaque las estadísticas indican que los trabajadores que se encuentran “en negro”tienen salarios inferiores en comparación con los trabajadores registrados, lo quedeben al menos alcanzar los mínimos de convenio.

Hay tres condiciones que definen la tendencia a pertenecer al sector más

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afectado: el sexo, la edad, y el nivel educativo.Es decir que las mujeres, los jóvenes, los adultos ancianos, y los

trabajadores que no tengan estudios, son más vulnerables a sufrir lasconsecuencias de la irregularidad registral para ocupar un puesto de trabajo.

Para el Estado la problemática radica principalmente en la evasión impositivapor parte de los empleadores y esta situación proyecta problemas hacia el futuro,ya que ni el trabajador ni el empleador hacen aportes a la seguridad social, lo cualreduce los montos jubilatorios. Los estudios indican que como resultado del trabajoen negro, no ingresan al Estado aproximadamente 11.000 millones de pesos.

Esta irregular modalidad parece ser el recurso de pequeñas empresas queno pueden hacer frente a los gastos que le producen tener al personal registrado.

Sin embargo las inspecciones del Ministerio de Trabajo la encuentranfrecuentemente en empresas grandes que gozan de una buena posición económica.

Los empleadores que no hacen aportes a la seguridad social, ni loscorrespondientes a los beneficios laborales, afectan a los demás empleadores, yaque realizan una competencia desleal en el mercado de tráfico de bienes y serviciosal contratar mano de obra más barata. Los números permiten concluir que laspolíticas estatales han sido insuficientes y resulta necesario replantear y proponernuevas técnicas para combatir las irregularidades analizadas.

Para evitar la falta de registración, el Estado ha elegido como solución eldictado de numerosas leyes para incentivar al empleador a un cambio de conducta,y que a la vez compensen al trabajador por los daños sufridos por la deficienteregistración.

Como parte de este objetivo, desde el año 2003 funciona el Plan Nacionalde Registración del Trabajo, cuyo deficiente funcionamiento se encuentra a cargode unos pocos inspectores del trabajo, y extiende su competencia al todo el territoriode la Nación.

Deben destacarse algunos datos estadísticos que han sido aportados porconsultoras que responden a determinados partidos políticos, otras independientesy otros datos se corresponden con los índices oficiales.

El INDEC (Instituto Nacional de Estadística y Censos) era un OrganismoOficial confiable, pero como consecuencia de la publicación de índices reales dedesocupación y pobreza y de índices inflacionarios relacionados directamente conel alza de los productos de la denominada canasta familiar, el Poder Ejecutivo halogrado bajo presión, la renuncia de funcionarios técnicos de alta capacitación yexperiencia, incluyendo el propio Director del Instituto.

Ello por cuanto se intentó publicar índices que respondieran a la datosobjetivos tomando en cuenta la realidad de los trabajadores desocupados y coningresos que los situaban por debajo de la “línea de pobreza”, o sea aquelloscuyos ingresos no le alcanzan para cubrir las necesidades básicas incluyendo lacanasta familiar.

Para esa tarea - y como correspondía - no se tomaron en cuenta losbeneficiarios del llamado “Plan Jefes y Jefas de Familia” que cobran un subsidio

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por parte del Gobierno de $ 150.- (menos 50 dólares estadounidenses) cuando lapretensión del Poder Ejecutivo Nacional (PEN) era que sí se tomaran comotrabajadores ocupados.

Más allá de la discusión mediática de si “con planes o sin planes”, es unhecho que un desempleo que bordea los dos dígitos sigue siendo elevado paracualquier economía.

La Consultora Ecolatina ubica el trabajo informal en un 43 % lo que permiteseñalar las siguientes conclusiones:

1ro.: la persistencia y la magnitud del problema de la informalidad lo vuelvenestructural

2do.: la tenue reducción no fue la esperable en el contexto de alto crecimientoy constante reducción de la tasa de desocupación, situación que en principiodemandaría la reformulación de políticas activas.

3ro.: no sólo se representa en las empresas de menor tamaño - donde esnorma - sino en las más grandes donde convive con otras formas ocultas de noregistración, como la tercerización de los “contratos de servicios”.

4to.: los salarios de bolsillo de los trabajadores “en negro” sonsistemáticamente menores

Respecto a la relación entre informalidad y pobreza, el 67 % de los jefes dehogares pobres trabaja “en negro”, siendo las ramas de actividad con informalidadmás fuerte: el servicio doméstico, la construcción, el comercio y la industria (enparticular las confecciones textiles).

Según la Consultora E&R, y retomando lo expresado respecto al INDEC,la manipulación desde el ámbito gubernamental tiene como objetivo lograr que nosuba la deuda pública que, de no estar indexada por el IPC “administrado”equivaldría para el Gobierno un ahorro anual de hasta 3.800 millones de dólaresestadounidenses.

Existe la sospecha – entre los analistas y economistas- de que los cambiosmetodológicos que el Gobierno introdujo en el INDEC apunta a morigerar elcrecimiento por ajuste de capital de la deuda emitida en pesos indexados.

La razón fundamental de que una economía que produce más que hacediez años sea más inequitativa es, según el equipo que dirige Patricio Millán, “...laforma en que funciona desde hace mucho tiempo el mercado laboral, donde lostrabajadores registrados son beneficiarios directos de las políticas laboralestradicionales, y por otro lado hay una realidad de personas que no consiguenempleo o que ocupan puestos de trabajo con muy bajos niveles de remuneración,que en su mayoría son informales”.

Un trabajo de la Universidad Católica Argentina muestra que entre el 10por ciento ubicado en el segmento más bajo de la pirámide social, más de 9 de cada10 trabajan en negro y en el extremo superior es inversa: 9 de cada 10 que gozan dela mejor situación social tienen un empleo formal.

Un reciente informe de la Central de Trabajadores Argentinos (CTA),elaborado por el equipo que precede el economista Claudio Lozano, destaca que la

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medición de la pobreza – que se mide según los criterios de hace 21 años - lleva aque las estadísticas informen que hay menos pobres de los que realmente existen.

A pesar de esos resultados el INDEC continúa utilizando una metodologíavieja siendo este atraso metodológico muy grave porque permite inferir que lapobreza no bajó al 26.9 % sino que sigue en el 36 % aproximadamente de la poblacióntotal de mi país.

Según un trabajo – que describe las situaciones que sistemáticamente sereproducen en todas las provincias argentinas - del Centro de Estudios NelsonMandela, de la Provincia del Chaco, firmado por el economista Rolando Nuñez….”el gobierno provincial da casas en comodato, bolsas de comida, bonos parapagar menos electricidad y agua. Todos están cautivos del clientelismo político….”

Los datos aportados son actuales y con ellos se puede establecer elparámetro de medición de la incidencia del proceso globalizador en las relacionesde trabajo en la Argentina.

5.2. Breve evolución histórica:Después de los períodos presidenciales del Dr. Menem y, luego de una

seguidilla presidencial con mandatos con duraciones de apenas días, asume el Dr.Duhalde al frente del Poder Ejecutivo Nacional.

Durante su gestión derogó la ley 23928 y rompió la denominadaconvertibilidad (peso-dólar); se sancionan una serie de normas tendientes a unapresunta recomposición de nuestra economía, por ejemplo la suspensión de lasEjecuciones Hipotecarias (Ley 25563), la Ley Antigoteo (Ley 25587).

Entre ellas se sanciona también la disposición referida (Ley 25561) que ensu artículo 16 establece una “doble indemnización” a favor de aquellos trabajadoresdespedidos sin causa justificada, y aunque originalmente se estableció un plazo de180 días, el mismo se fue prorrogando hasta la fecha de redacción de este trabajo.

Las sucesivas prórrogas fueron realizando otras modificaciones, pasandodel 100%, al 80 % y finalmente al 50% de lo que les correspondiese a los trabajadoresdespedidos de conformidad con la legislación laboral vigente, esto es el artículo245 Ley de contrato de Trabajo (LCT).

Según el último decreto que prorrogaba la vigencia de esta indemnización, éste50 % quedaría sin efecto cuando el índice de desocupación descendiera a un dígito.

El INDEC, siguiendo instrucciones del Poder Ejecutivo Nacional, y luegode la crisis ya descripta, ha publicado que el porcentaje de desocupación ha llegadoa un dígito.

Actualmente por un Decreto se ha establecido la desaparición de estaindemnización aunque ya se temen posibles planteos de inconstitucionalidadreferidos al manejo del índice de desocupación y su método de medición.

Toda esta situación, exterioriza la complicidad de los ámbitos de poderpara mantener ocultos o directamente distorsionar los reales índices que reflejan laterrible situación que le toca vivir y padecer a millones de mis compatriotas, víctimasdirectas del vigente proceso globalizador.

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5.3 Reflejo en el Derecho Laboral Argentino:El proceso de incorporación de mi país a ese otro proceso de integración

liberal mundial - la globalización - exigió la desactivación de los principiosfundamentales y rectores del derecho del trabajo y un retroceso en la legislaciónprotectoria.

La inclusión de Argentina – sin lugar a dudas como parte del segundotérmino de la proposición globalizadores-globalizados- en el proyecto globalizadorexigió dejar de lado el principio básico de todo el Derecho del Trabajo: EL PRINCIPIOPROTECTORIO, el gran equilibrador e igualador de las desigualdades objetivasexistentes entre las dos partes del derecho laboral.

El estado de necesidad inherente a la parte más débil del contrato, que esel trabajador, fue – en la práctica - sustituido por un principio propio de la legislacióncivil, tal el de igualdad negocial de las partes.

El principio protectorio de raigambre constitucional, según surge delartículo 14bis de nuestra Norma Suprema, se basa en la idea de la desproporciónexistente entre los derechos y obligaciones de una y otra parte.

Mientras el empresario tiene en su cabeza enormes facultades que setraducen en el poder de dirección, de organización, el “ius variandi” y elsancionatorio, el trabajador solamente tiene su fuerza de trabajo.

Esta situación de desequilibrio manifiesto se veía atenuada con unalegislación protectoria que fue producto de una lucha histórica obrera que culminacon su incorporación a la 1ra. Constitución Social de mi país: en el año 1949,durante el período presidencial del Gral. Perón.

Era un texto realmente superador y marcó el ingreso de la Argentina aldenominado Constitucionalismo Social, movimiento en el que fuera pionero Méxicocon su Constitución de 1917. En el mismo se reconocía derechos fundamentalesdel trabajador, del “hombre que trabaja”, como el derecho a una retribución justa, ala capacitación, al bienestar, a la preservación de su salud, entre otros), de laancianidad, a la educación, a la cultura, conceptuando en su art. 37 al trabajo comoun deber moral y a la propiedad como una función social, afirmando la primacía dela persona humana y admitiendo una función subsidiaria del estado a niveleconómico.

Mediante la implementación del principio protectorio a través de distintasreglas de aplicación práctica del mismo, el Derecho del Trabajo ha buscadocompensar o atenuar esa situación de desequilibro manifiesto.

El artículo 14bis referido tiene tres párrafos, el primero dedicado al derechoindividual del trabajo, el segundo al derecho colectivo y el tercero a la seguridadsocial.

El párrafo primero del mismo dice textualmente: “El trabajo en sus diversasformas gozará de la protección de las leyes, las que asegurarán al trabajador:condiciones dignas y equitativas de labor, jornada limitada, descanso yvacaciones pagados, retribución justa, salario mínimo vital y móvil, igualremuneración por igual tarea, participación en las ganancias de las empresas,

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con control de la producción y colaboración en la dirección, protección contrael despido arbitrario, estabilidad del empleado público, organización sindicallibre y democrática, reconocida por la simple inscripción en un registro especial.

Según la doctrina algunas de estas cláusulas son programáticas, es decir,son normas que solamente contienen enunciaciones preceptivas cuya aplicaciónno es directa sino que requieren normas reglamentarias para que puedan invocarsederechos a su respecto.

Otras de estas cláusulas son operativas y por tanto generadoras dederechos, permitiendo accionar directamente con su sola invocación sin necesidadde otra norma jerárquicamente inferior para crear derechos de efecto inmediato.

Para el Dr. Fernández Madrid se trata de:

… cláusulas de operatividad fuerte y otras de operatividad débil ya queno es posible que en el texto constitucional existan normas carentes desentido o enteramente inaplicables…”, “…la efectivización de lascláusulas llamadas programáticas ha de depender de las circunstanciaspolíticas y de la orientación que tenga el gobierno y la jurisprudenciaconstitucional en un momento determinado…

Según Vanossi

…la determinación en concreto acerca de si una norma constitucionales autoaplicativa o no depende de la decisión que al respecto tomen lasautoridades de aplicación y en muchos casos ello dependerá de la firmezade las actitudes de los Jueces…

En 1994, en plena fiebre neoliberal, y durante la Presidencia del Dr. Menem,se convoca a una Convención Constituyente para llevar adelante una reforma denuestra Constitución Nacional que estuvo teñida de una casi exclusiva decisiónpolítica: asegurar su re-elección presidencial.

Sin embargo algunos convencionales, entre ellos el Diputado ConvencionalViaggio, intentaron aprovechar esta posibilidad para lograr la definitiva superaciónde esta arbitraria diferenciación entre las disposiciones constitucionales referidasa los derechos sociales.

Según el diario de Sesiones del 11/09/94, dijo:

…en la actualidad todos y cada uno de esos derechos son aviesamentevulnerados, esto es una lamentable y dolorosa realidad. Resulta evidente,entonces, que la sola consagración de esos derechos no es suficientepara lograr su cumplimiento efectivo, y ello explica el por qué deldescreimiento e indiferencia que el pueblo en general siente sobre estamateria tan importante.Para superar en el plano jurídico, tales falencias hay que tratar de hacer

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viables y efectivos esos derechos: Primero dándoles carácter operativopor sí mismos, es decir declararlos obligatorios por su sola consagración,estableciendo además las garantías para que judicialmente laciudadanía pueda exigir su aplicación y segundo instaurar una Justiciaindependiente que la haga cumplir, superando el bochornosoespectáculo de lo que ocurre con algunos magistrados conocidos portodos, que son meros apéndices del poder político de turno…”y“…tercero, los derechos que tenemos el propósito de consagrar tendránvirtualidad efectiva si se revierten las concepciones neoliberales enboga, llevando a cabo un proceso político, económico, socialabsolutamente opuesto al actual, hasta alcanzar la liberación económicade nuestro país y social de nuestro pueblo.

Otros convencionales de distintas extracciones se negaron a laconsagración de la operatividad de estos derechos sociales ya que apoyaron desdeel Congreso de la Nación la denominada “Reforma Laboral” globalizadora ydesprotectoria que creó - tal como quedó demostrado en la práctica - extremapobreza, desocupación y marginación de vastos sectores de la población quearrastraron en su pauperización a las capas medias de nuestra sociedad.

Con esa reforma de las normas laborales y previsionales, que se dio enparalelo a la reforma constitucional que garantizó otro mandato presidencial y a suvez garantizó la implementación de la enajenación del patrimonio nacional a travésdel llamado “proceso privatizador”, se impuso la sujeción de mi país a las “leyes delmercado”.

Como parte de esta inclusión, se ha impuesto al conjunto de nuestrostrabajadores una política flexibilizadora, entendida como la capacidad para acomodary/o adecuar la norma a las cambiantes situaciones del orden social dentro de unmismo sistema.

El problema es que en Argentina no se ha dado una flexibilización protectivao protectoria sino que se la utilizó para desregular y desproteger al trabajador ypermitir la imposición de las condiciones económicas que rigen el mercado.

La flexibilización ha invertido el principio protectorio, cumpliendo con supremisa básica al haber logrado igualar a los desiguales y perjudicar a los másdébiles, gestando un nuevo principio que podemos enunciar como “desigualarpara igualar los desiguales”.

Existen diversas clasificaciones referidas a las reglas de aplicación delPrincipio Protectorio, pero me limitaré a una enumeración integradora de lasrealizadas por Pla Rodríguez (Uruguay) y Fernández Madrid y Justo López(Argentina).

Todas han sido violentadas a lo largo del proceso flexibilizador, necesariodesde el punto de vista de las relaciones del trabajo, para implementar el procesoglobalizador, ellas son:

“in dubio pro operario”el Juez debe recurrir a todos los medios de

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interpretación en forma exhaustiva para lograr conocer la voluntad legislativa si,una vez agotados esos medios se mantiene la duda, entonces debe optar por lainterpretación más favorable al trabajador.

“interpretación más favorable al trabajador” en este caso deben existiral menos dos normas de igual o distinto rango, aplicables a la situación, debiendoel Juzgador determinar cual de ellas es la aplicable en beneficio del trabajador yrespondiendo a la finalidad del Derecho del Trabajo, considerándose la norma o elconjunto de normas que rigen cada una de las instituciones mismo – sistemacomparativo designado conglobamiento por instituciones.

“subsistencia de la condición más beneficiosa” esta regla se refiere a lasucesión de dos normas en el tiempo, es decir, que se sustituye una regulación porotra.

En los contratos individuales de trabajo donde las partes han pactado porencima de los beneficios reconocidos por la ley, es de aplicación y subsiste lanorma que consagra mayores beneficios para el trabajador.

“irrenunciabilidad de los derechos” se contrapone al Principio deautonomía de la voluntad de las partes, de aplicación en el Derecho Civil.

Esta regla presupone una falta de capacidad negocial del trabajador, por loque la LCT declara nula y sin valor toda convención de partes que suprima oreduzca derechos que ella preveé al tiempo de la celebración del contrato, suejecución o del ejercicio de derechos prevenientes de su extinción.

“continuidad en la relación laboral” esta regla se expresa por la tendenciaa atribuir al contrato de trabajo la más larga duración, privilegiando los contratosde duración indefinida o indeterminada, facilitando la mantención del contratopese a algún incumplimiento, interpretando las interrupciones contractuales comosimples suspensiones, admitiendo la prolongación del contrato en caso desustitución del empleador (transferencia d establecimiento por cualquier título)

“indemnidad y ajenidad al riesgo empresario” se entiende porindemnidad en el orden procesal a la protección del patrimonio del trabajador(gratuidad del proceso laboral, inembargabilidad de su vivienda y de su salario porlas costas del juicio).

Por motivos del trabajo puede el trabajador sufrir daños en su persona obienes, por ello las circunstancias relacionadas con la rentabilidad del capitalinvertido por el empresario le son ajenas, quedando a cargo del empleador el riesgodel negocio comercial.

“no discriminación y trato igualitario” esta regla se refiere a la expresaprohibición en nuestra legislación de efectuar cualquier tipo de discriminaciónentre los trabajadores por motivos de raza, género, nacionalidad, religiosos, políticoso gremiales, como también a los controles personales sobre los trabajadores.

“primacía de la realidad” la realidad de los hechos debe prevalecer sobrelas formas, las formalidades o las apariencias.

El RCT dice en su artículo 14:”...Será nulo todo contrato por el cual laspartes hayan procedido con simulación o fraude a la ley laboral, sea aparentando

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normas contractuales no laborales, interposición de personas o de cualquierotro medio. En tal caso la relación quedará regida por esta ley”.

Quiero hacer una precisión, relacionada con este principio, que actúa comoun dispositivo antifraude cuando se trata de los llamados “casos dudosos”, endonde el trabajador es un PROFESIONAL, supuestamente autónomo, al que se letransfieren todos los riesgos (el pago de su jubilación, el pago de su seguro, etc.),pero que en realidad encubre una relación laboral dependiente con todas las notascaracterísticas y tipificantes de la misma.

“buena fe” esta regla se refiere a la lealtad que lleva implícita la concienciade no perjudicar o dañar al otro y la convicción interna de que el contrato laboral sedebe cumplir normalmente, sin abusos ni desvirtuaciones, abarcando la misma aambas partes del contrato.

En materia laboral las exigencias de la buena fe deben apreciarse enconsideración a la desigualdad existente entre las dos partes de la relación individualdel trabajo.

No puede, en su nombre, imputarse una infracción a la buena fe al trabajadorque toleró el desconocimiento de sus derechos, e incluso maniobras evasivas denormas laborales imperativas.

En cambio la prohibición del objeto de contrato y las evasiones legalesestará siempre dirigida al empleador.

“presunciones laborales” (facilitación de la prueba en juicio): constituyengarantías tendientes a excluir hipótesis de fraudes laborales y han sido establecidaspara asegurar la igualdad jurídica de las partes.

En nuestra legislación encontramos las presunciones absolutas y laspresunciones relativas, en el caso de las primeras tenemos como ejemplo la prescriptaen el art. 195 de la Ley de Contrato de Trabajo (LCT):…” a los efectos de lasresponsabilidades de indemnizaciones y en su caso de accidentes de trabajo oenfermedad de un menor, si se comprueba ser su causa alguna de las tareasprohibidas a su respecto o efectuadas en condiciones que signifiquen infracción asus requisitos, se considerará por ese solo hecho, como resultante de culpa delempleador, sin admitirse prueba en contrario.”

En el caso de las segundas, tenemos por ejemplo la falta de exhibición arequerimiento judicial o administrativo de libros previstos como obligatorios en lalegislación laboral, previsional, impositiva, es considerada como presunción afavor del trabajador sobre las circunstancias que debían constar en tales asientos,o bien la presunción del art. 115 que establece que el trabajo no se presume gratuitoy debe reputarse que todos los pagos que realiza el empleador tienen su causa enel contrato de trabajo.

5.4. El paquete normativo flexibilizador:Desarrollaré brevemente algunas de las leyes – todavía vigentes - que

componen el “paquete normativo” o conjunto de normas que se sancionarondurante la década del ´90, como parte del proceso de flexibilización producto de la

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necesidad de imponer el proceso de “globalización” de los capitales y que handado por tierra con derechos que se han conquistado con una lucha intensa ycontinua por parte de los trabajadores y sus organizaciones sindicales.

Todas ellas han merecido cuestionamientos judiciales por ser violatoriasde principios, garantías y derechos expresamente reconocidos por nuestra NormaSuprema y que habían sido recepcionados por toda la legislación laboral vigentehasta ese momento, y llevados a la práctica procesal del Fuero del Trabajo con laaplicación de las reglas descriptas.

- Ley de Riesgos de Trabajo (LRT) – Ley 24557/96:Esta ley viene a derogar la Ley 9688 de Accidentes de Trabajo, que rigió

desde el año 1915 sin sobresaltos con solo algunas reformas de adecuación.Aunque tiene como objetivo declamado el de cumplir una función

preventiva de los infortunios laborales, su sanción en el año 1995 no es más queuna imposición de los capitales multinacionales, cuyas grandes compañíasaseguradoras concibieron sus negocios con la vida y la salud de los trabajadores.

Ni las Aseguradoras de Riesgos del Trabajo (ART), ni su superior jerárquicola Superintendencia de Riesgos de Trabajo (SRT) cumplieron con la prevención delos accidentes y enfermedades laborales, pero si obtuvieron importantísimasganancias.

Los empresarios pagan una prima de seguro que equivale a un ínfimoporcentaje respecto a los costos laborales y esto les permite des-responsabilizarsede las consecuencias económicas de los daños que ocasionan a sus trabajadores.

Por su parte las víctimas, los trabajadores, son marginados de la posibilidadde obtener reparación de los infortunios causados por sus empleadores.

Esta norma vulnera los principios consagrados en nuestra ConstituciónNacional violenta los principios del juez natural, del debido proceso, de divisiónde poderes, el principio de igualdad, el principio de no dañar.

Viola los derechos constitucionales de reparación plena y de propiedad,así también violenta Tratados y Pactos incorporados a n/Constitución Nacionalcon la reforma de 1994, por el art. 75 inc 22), entre otros: Declaración Americanade los Derechos y Deberes del Hombre - Declaración Universal de DerechosHumanos - Convención Americana sobre Derechos Humanos - Pacto Internacionalde Derechos Civiles y Políticos.

Las Comisiones Médicas encargadas de establecer la incapacidad deltrabajador siniestrado o de evaluar la enfermedad laboral están integradas porprofesionales médicos dependientes del Poder Ejecutivo Nacional (PEN) las queresuelven aspectos controvertidos ajenos a sus incumbencias profesionales.

Se trata de órganos administrativos con facultades jurisdiccionalesconformadas por médicos que intervienen en cuestiones totalmente ajenas a susincumbencias profesionales pero que además viola el derecho de defensa, ya queel trabajador no puede hacerse asistir por un médico.

Ello sin perjuicio de la “violación del art. 16 de la Constitución Nacional”atento a la situación de absoluta desigualdad en la que aquél se encuentra frente a

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la aseguradora.Habría que agregar el absurdo de que se debaten cuestiones jurídicas sin

que se haya previsto asistencia letrada obligatoria para el damnificado. (conformeConclusiones XXVI Jornadas Asociación de Abogados Laboralistas, Guaymallén- Mendoza- Argentina, noviembre de 2000).

Al establecer formas de aplicación que soslayan los procedimientosjudiciales se vulnera el principio de las “facultades reservadas a las provincias”(arts.121/3/123 C.N.), se desconoce el principio de exclusividad del Poder Judicial(art. 116 C.N.), y se otorgan facultades jurisdiccionales a órganos administrativosen violación a lo dispuesto por el art. 109 de la C.N. y al principio republicano de ladivisión de poderes.

La Ley de Riesgos del Trabajo otorga a uno de los tres poderes del EstadoNacional (PEN) la totalidad del poder público, al sumarse las tres funciones delpoder estatal: a) dicta la norma, confeccionando el listado de enfermedadesprofesionales, las tablas de evaluación de incapacidades laborales y procediendoa la determinación en especie; b) ejecuta la norma dictada pues hace a la esencia delpoder administrador; c) interpreta y aplica la norma (arts. 21-22-40 y concordantesde la Ley 24557), dejando de lado al Poder Judicial, olvidando las expresasdisposiciones constitucionales que al respecto regulan las funciones y atribucionesespecíficas de cada uno de los poderes del Estado. (Conclusiones Jornadas A.A.L.- Mar del Plata - noviembre 1999).

Esta disposición le prohibe al trabajador, víctima de un infortunio, el accesoal “resarcimiento integral” fundado en el derecho común, es decir que, le cercena laposibilidad de reclamar un resarcimiento pleno con base en el derecho civil, salvoque el empleador hubiera incurrido en una actitud como la descripta en el art. 1072del Código Civil (DOLO).

Dicho principio unido al...”in integrum restituto” son la base de los arts. 5y 68 de la Convención Americana de Derechos Humanos, hoy incorporada a n/Constitución Nacional que dispone que toda persona tiene derecho a que se lerespete su integridad física, psíquica y moral y a que se le repare el daño a travésde una indemnización adecuada y ejecutable en sede interna (ver asimismo arts.1.1,4, 5, 11 y concordantes del Pacto de San José de Costa Rica).

Toda esta situación creada en torno a la salud y la vida de los trabajadoresy toda esa inequidad debió ser reparada - vía Recurso Extraordinario - por la CorteSuprema de Justicia de la Nación (CSJN) en su actual composición – juicios políticosy renuncias de sus anteriores miembros de por medio.

Dijo el Supremo Tribunal de mi país en su reciente fallo: AQUINO, Isacio c/Cargo Servicios Industriales s/Accidente de Trabajo, en el que declara lainconstitucionalidad de la LRT y resalta la plena vigencia de la ConstituciónNacional:

… Desde antiguo esta Corte ha establecido que las leyes son susceptiblesde cuestionamiento constitucional cuando resultan irrazonables, o sea

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cuando los medios que arbitran no se adecuan a los fines cuya realizaciónprocuran o cuando consagran una manifiesta inequidad…El legisladortuvo como propósito perseguido consagrar un marco reparatorio dealcances menores que el del código Civil, pues se aparta de la concepciónreparadora integral y no se adecua a los lineamientos constitucionalesque el artículo 14 bis tuvo como finalidad – hacer que todo hombre ymujer trabajadores fueran sujetos de preferente tutela constitucionalque, para el constituyente que elaboró y sancionó la citada norma, elconvencional Lavalle, entrañaba una aspiración: “derrotar al hombretuerca y soliviantar al hombre criatura que agrupado en su pueblo, enel estilo de la libertad y en nombre de su humana condición, realiza,soñador y doliente, agredido y esperanzado, con perspectiva deeternidad, su quehacer perecedero…

Reforma Previsional - Ley 24241:

Desde la perspectiva de la sanción de esta ley se puede definir el procesoiniciado en los 90 como de la privatización de la seguridad social y su reemplazo porel sistema de seguros individuales.

Es lo mismo que enunciar su desaparición como tal y su reemplazo porsistemas privados sujetos a las reglas del mercado.

Durante la década de los noventa nos encontramos con un proceso dedegradación de los derechos sociales, en particular, de los derechos de la seguridadsocial como derechos fundamentales y un abandono por parte del Estado de susresponsabilidades.

A partir de la reforma estructural del sistema previsional encarado por laley 24241 - estableció en forma paralela al régimen de reparto uno de capitalizaciónindividual obligatorio - que ninguno de los regímenes existentes, ni el de reparto, niel de capitalización, solucionó el objetivo general de no-marginación y deincorporación de todos ciudadanos a la seguridad social entendida como un derechofundamental.

El de capitalización no tuvo en cuenta dichos objetivos, aumentando ladestrucción del empleo y la pérdida de cobertura durante el período 1994/2002,pudiendo sintetizarse el sistema como una forma de aporte definido y de prestaciónindefinida; mientras el de reparto es de aporte indefinido y prestación definida.

A pesar de la vigencia de numerosas normas constitucionales einternacionales que comprometen el accionar y la responsabilidad del Estado enmateria de seguridad social los signos han sido la regresión y el incumplimiento deprestaciones positivas por parte de los organismos públicos.

El Estado abandonó su rol de asegurar la vigencia efectiva de los principiosconstitucionales en seguridad social, tal como lo dispone el ya referido artículo14bis de nuestra Constitución Nacional, en su tercer párrafo:

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…El Estado otorgará los beneficios de la seguridad social, que tendrácarácter de integral e irrenunciable. En especial, la ley establecerá: elseguro social obligatorio, que estará a cargo de entidades nacionales oprovinciales con autonomía financiera y económica, administradas porlos interesados con participación del Estado, sin que pueda existirsuperposición de aportes; jubilaciones y pensiones móviles; la protecciónintegral de la familia; la defensa del bien de familia; la compensacióneconómica familiar y el acceso a la vivienda digna.

El signo del cambio estuvo dado por la legislación denominada deEmergencia Económica y de Reforma del Estado sancionada en el 2do. semestre de1989, al inicio de la Presidencia Menem.

El argumento fue el del “colapso de los sistemas vigentes”, su inviabilidady la imposibilidad del estado de seguir garantizando los diferentes sistemas

Paralelamente al dictado de los nuevos principios constitucionales y laincorporación de los tratados internacionales de derechos humanos se desarrollóuna legislación, en su mayoría de emergencia, que significó una fuertetransformación de la seguridad social en contradicción con la tendencia normativa.

El modelo impulsado por el Banco Mundial propiciaba el alejamiento delestado de los sistemas de pensiones y el reemplazo de los denominados sistemasde reparto, basados en principios de universalidad e integralidad, por sistemas decapitalización individual obligatoria, privilegiándose las necesidades de ahorro einversión por sobre los objetivos de mayor equidad y redistribución de ingresos.

En el ámbito nacional se desarrolló la propuesta de FIEL - grupo deinvestigación ligado a la Unión Industrial Argentina (UIA) representante del sectorempresarial - que tradujo en el ámbito interno esas expectativas de reformaestructural, abarcando las pensiones, el régimen de salud, riesgos de trabajo yasignaciones familiares, traspasándose todos los subsistemas de seguridad sociala la técnica de seguros comerciales de carácter individual, obligatorio.

En Argentina el proceso de “ privatización “ de la seguridad social se iniciaen 1991 y se fue haciendo por etapas.

En 1991 se dicta el Decreto de Necesidad y Urgencia DNU 2284 que estatizalos recursos de la Seguridad social.

En 1993, luego de un debate intenso, que involucró la opinión de todos losinteresados, con una fuerte oposición de los jubilados y trabajadores activoos, serealiza una reforma estructural abrupta paramétrica ( aumento de la edad,modificación del cálculo de las prestaciones aumentando los años, reducción delas contribuciones patronales) que dejan a muchos trabajadores despedidos delsector público, que tenían los años de servicios requeridos para acceder al beneficio,sin poder jubilarse por no cumplir el requisito de la edad.

Se deroga la legislación previsional vigente y se crea el Sistema Integradode Jubilaciones y Pensiones, mediante la ley 24241, en el cual conviven un régimenprevisional público y un régimen de capitalización individual obligatorio.

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Se establece que para permanecer en el sistema público los trabajadoresdeben optar expresamente por el régimen previsional público de lo contrario sonincorporados al de capitalización.

A partir de julio de 1996 venció el plazo para poder regresar el sistemapúblico para los trabajadores que estaban en el privado y todo trabajador queingresa al mercado laboral debía optar expresamente por el público dentro de los 30días, actualmente se extendió a 90 días, de lo contrario es adjudicado a una AFJP.

A los efectos de favorecer el traspaso y permanencia en el régimen decapitalización se sancionó en marzo de 1995 la ley 24463, denominada de “solidaridadprevisional”, que estableció una serie de restricciones sustanciales a los derechosde los jubilados y afiliados, en cuanto al acceso a la justicia, movilidad jubilatoria,postergación indefinida del cumplimiento de sentencias judiciales firmes por partedel organismo previsional.

Varios de estos artículos de la ley 24463 fueron declaradosinconstitucionales por la propia Corte Suprema de Justicia de la Nación, luego de laapertura de una causa por violación de los Derechos Humanos ante la ComisiónInteramericana de Derechos Humanos.

El artículo 1 de la ley 24.241 (SIJP) instituye con alcance nacional el sistemaintegrado que cubrirá las contingencias de vejez, invalidez y muerte.

Conforman el sistema un Régimen Previsional Público, medianteprestaciones a cargo del Estado que se financian a través de un sistema de repartoy un régimen previsional basado en la capitalización individual..

El Congreso Argentino sancionó en el 2007 la Ley 26222 que mantienevigente ambos regímenes, con pleno funcionamiento de las Administradoras deFondos de Jubilaciones y Pensiones (AFJP), con una variable.

Es que, desde el 12 de abril y hasta el 31 de diciembre de 2007, lostrabajadores (mujeres mayores de 50 años y hombres mayores de 55 años) puedenoptar por volver al sistema de reparto pues sus aportes serán “rescatados” por elEstado.

Si no lo hicieron dentro de este período tendrán que esperar otros cincoaños para tener la oportunidad de volver a ejercer esa opción.

Los trabajadores que recién inicien sus actividades deberán realizar laopción “expresa” de aportar en el sistema de capitalización, al momento de suingreso, y si no lo hacen se entenderá que han optado por el sistema de reparto.

No creo que este paleativo legal represente algo más que un nuevo parche,es solamente una respuesta tibia a una problemática y a una demanda socialpermanentes, ya que para que exista “rescate” siempre deberán existir “cautivos”de empresas lucrativas que cobran altísimas comisiones a costa del deterioro delas jubilaciones y pensiones de nuestros trabajadores activos y pasivos.

- Ley Nacional de Empleo – Ley 24013/91:Crea cuatro contratos de trabajo bajo “nuevas modalidades” (Fomento de

empleo, lanzamiento de nueva actividad, práctica laboral para jóvenes y contrato

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de formación).Todos estos tipos de contratos de trabajo fueron utilizados con total

arbitrariedad por los empleadores ya que no era necesaria su inscripción y/oregistración en el Ministerio de Trabajo.

Se exceptuaba a los empresarios que adoptaran estas modalidades deimportantes contribuciones patronales a las cajas de jubilaciones y a las cajas deasignaciones familiares.

Esta norma crea un curioso “Procedimiento de Crisis” por el cual sehabilitaba a las empresas, luego de su sustanciación – notificación casiexclusivamente - ante la Autoridad de Aplicación (Ministerio de Trabajo) a realizarel despido masivo o suspensiones de sus trabajadores con indemnizacionesreducidas al 50 % de la que legalmente les hubiera correspondido, invocandocausas de fuerza mayor, económicas o tecnológicas.

Durante la tramitación de este Procedimiento los trabajadores no podránejercer la huelga u otras medidas de acción sindical.

- Ley 24465/95:Con su sanción se reforma la Ley de Contrato de Trabajo (LCT-Ley 20744/

74), incorporando a esta normativa el artículo 92 bis.Con esta incorporación se reforma el mencionado régimen pues se altera el

principio laboral de “indeterminación del plazo” como modalidad contractualfundamental, ya que se establece el “período de prueba” por tres meses prorrogablea seis meses por Convenio Colectivo de Trabajo.

Sin perjuicio de la sanción de la Ley 25877 (Ley de Reordenamiento Laboral- LRL), durante la Presidencia Kirchner, este instituto no fue derogado,permaneciendo incorporado en la normativa laboral desde el año 1995.

Durante este período cualquiera de las partes – preminentemente elempleador – puede extinguir la relación laboral sin expresión de causa y sinobligación de preavisar ni pagar indemnización alguna.

Si bien el trabajador tiene los mismos derechos que los restantes, lasprestaciones por enfermedad y/o accidente inculpables se pagan solamente hastael final del período de prueba y lo mismo sucederá con cualquier prestación salarialque solamente habrá de extenderse hasta su finalización.

Esta ley incorporó a nuestra normativa laboral los denominados “contratosbasura”, destinados a trabajadores varones mayores de cuarenta años, mujeres, excombatientes de Malvinas y discapacitados.

Estos contratos eran renovables hasta un máximo de veinticuatro meses(dos años), se extinguían sin obligación indemnizatoria alguna a favor del trabajador,con la posibilidad de un elevado porcentaje de contratación entre el plantel establede trabajadores de una empresa y agregándose reducciones de hasta un 50 % enlas contribuciones patronales a la seguridad social.

- Ley PyMEs (Pequeñas y Medianas Empresas) - Ley 24467/95:

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Bajo el rimbombante objetivo de “…promover el crecimiento y desarrollode las pequeñas y medianas empresas, impulsando para ello, políticas de alcancegeneral a través de nuevos instrumentos de apoyo y la consolidación de los yaexistentes…” se sanciona esta ley que otorga al empresario la facultad de redefinirlos puestos de trabajo de sus asalariados, conocida como “movilidad interna”, uninstituto altamente peligroso que facilita la “transferencia de los trabajadoresconsiderados molestos” para algún arbitrario desenvolvimiento de la actividadempresarial, especialmente aquellos trabajadores que canalizan los reclamos delconjunto.

Puedo agregar la Ley 23928/91 que derogó la indexación de los créditos delos acreedores, incluyendo los créditos alimentarios de los trabajadores, que sevieron afectados por la depreciación monetaria.

-Ley 24522/95 Ley de Concursos y Quiebras:Entre otras tenía las siguientes motivaciones, según indicaba en su

Exposición de Motivos:”…tratamiento particular de las relaciones laborales,simplificando trámites en materia de verificación, incorporando normas enmateria de atracción y brindando una mayor elasticidad en la negociación de larelación laboral, en los casos de las empresas que atraviesan por la crisisconcursal...”

Traducido a la práctica jurídica esta ley implicó el reenvío de todos losexpedientes que tramitaban en el Fuero del Trabajo al concurso o la quiebra quetramitaban en el Fuero Comercial, obligando al letrado laboralista a litigar por antemagistrados que manejaban otros principios procesales y otro tipo de procesos yno aplicaban el principio protectorio a favor de los trabajadores, los que a pesar deresultar vencedores en los juicios laborales debían tramitar engorrosos incidentesde verificación, de pronto pago (que nunca se efectivizaba) y muchas veces derevisión por las diferencias en los créditos.

Respecto a la actividad sindical y su relación con las dos flexibilizaciones- la jurídica y la de facto - con la desocupación y con la precarización laboral lamisma tuvo como consecuencia una rotación de trabajadores en distintas empresas,sin posibilidad de inserción gremial permanente.

Debido a las “nuevas modalidades” de contratación que se crearon comoproducto de este proceso, incluyendo las contrataciones por intermedio deAgencias de trabajo eventual se produjo una inusitada inestabilidad laboral ysindical, generando un debilitamiento de los gremios y su capacidad de negociación.

Sin perjuicio que, a ello se debe agregar el hecho que con cada cambio deactividad y de agremiación el trabajador cambia de Obra Social, lo que le produceuna inestabilidad en la atención de su salud y en la de su grupo familiar.

La enumeración de normas flexibilizadoras que sufrió el derecho laboralde mi país es sólo enunciativa, no es taxativa y tampoco es abarcativa de la totalidaddel paquete des-protectorio que afectó al conjunto de los trabajadores.

En este punto quise dar un panorama de la incidencia de la globalización

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en el derecho del trabajo positivo en la Argentina, ya que la forma en que incidió enlas relaciones entre capital y trabajo – relaciones de trabajo – se traduce en losescalofriantes índices que reflejan la realidad que quiere ocultarse desde los ámbitosdel poder, mostrando una Argentina que, lamentablemente parece hoydesenvolverse en un mundo ficticio.

6. CONCLUSIONES:¿Cómo concluir un proceso abierto?, ¿Se puede concluir cuando se están

construyendo alternativas? Son éstas preguntas que trataré de responder comouna forma de conclusión.

Me es difícil concluir este trabajo, finalizarlo es más sencillo ya que estándadas las pautas para su desarrollo; me es difícil sintetizar las ideas que he tratadode exponer a lo largo del mismo.

Además, es imposible concluir sobre un proceso que se gesta día a día yno deja de sorprendernos en su creatividad para imponerse.

Soy argentina, soy latinoamericana, mi identidad me define y define miposición frente al actual proceso de globalización, mi destino me determina ydetermina mi pensamiento crítico frente al proyecto globalizador que nos imponen.Como abogada laboralista, mi profesión y mi actividad me delimitan y a su vezdelimitan el ámbito desde el cual puedo analizar la normativa des-protectoria.

Es éste un trabajo de investigación y por ello no pude ni puedo dejar deser objetiva frente al proceso globalizador y sus consecuencias sobre nuestraregión y sobre mi país específicamente.

Las mismas son tantas y tan perniciosas que podrían escribirse otrosinnumerables trabajos para apenas describirlas, sin embargo el objeto de este puntoes poder concluir el presente.

6.1. Consecuencias:Más de quinientos años de vivir y resistir un proceso globalizador aplicado

sistemáticamente bajo distintas facetas y con distintos nombres por todos lospaíses globalizadores sobre Latinoamérica han dejado su huella sobre esta regióndel mundo.

Las transformaciones sufridas por nuestros países tienen su origen en laspropias características de la globalización: por un lado se encuentra la necesidadde los países globalizadores por competir constantemente para conquistar nuevosmercados en condiciones ventajosas y por otro, está la imposibilidad y/oincapacidad de protección de las economías de nuestros países frente a estapenetración.

Los países que han abierto su economía al proceso globalizador – entreellos Argentina – padecen grandes desigualdades sociales, con una gran brechaentre los extremos, una pequeña franja poblacional muy rica y otra extensa franjamuy pobre y como consecuencia de ello, se da la existencia de una concentraciónde la riqueza y el poder en unas pocas manos.

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La aparición de nuevas formas culturales donde la solidaridad social delEstado de Bienestar ha sido reemplazada por paradigmas individualistas de progresopersonal, y supervivencia del más apto para adaptarse a las nuevas reglas, quepuede sintetizarse en la expresión “sálvese quien pueda” tan en boga en nuestrolenguaje cotidiano.

Se registró un incremento de la criminalidad – y con ella la inseguridad - laindigencia, las enfermedades endémicas – Tuberculosis, Dengue y otros brotes –e indicadores disvaliosos – analfabetismo y adicciones entre otros.

Hay un aumento de la exclusión, del desempleo y la precarización, talcomo lo describí específicamente para Argentina en el punto de este trabajodenominado datos reveladores.

Paralelamente se dio una disminución en la calidad de vida de los gruposmás vulnerables de nuestra comunidad, los ancianos jubilados, pobres, indigentes,mujeres y jóvenes.

Se redujo el gasto estatal en un casi 20% del Producto Bruto Interno (PBI)contra la tendencia imperante en los países más industrializados que lo mantienenhasta en un 47% por ciento de sus respectivos Productos Brutos Internos (PBI).

El poder político se ha convertido en un apéndice del poder económico,los dirigentes se desempeñan como operadores de los negocios e intereses de losgrupos económicos, siendo mi país un claro ejemplo de ello, cuando de analizar lapolítica petrolera se trata, entre otros temas.

Ahora bien, los pueblos de nuestra región intentan recorrer un caminohacia el avance en revertir los efectos de la globalización, y aunque es pedregosoy se encuentran con innumerables dificultades han decidido que seguirán adelanteutilizando para ello las distintas alternativas que encuentren en su propiadeterminación.

6.2. Alternativas:Hay luchas, hay voluntades, hay resistencia a las políticas globalizadoras,

y lo más importante, hay alternativas.Algunas de ellas se encuentran en proceso de creación y otras ya en

pleno proceso de acción, implementadas por movimientos en distintas nacionesque buscan un enlace internacional para llevar adelante las transformacionespropuestas conformando una especie de “contrapoder”.

Se dan con diferentes grados de intensidad y en una amplia gama deestrategias según la variedad de fuerzas sociales de que se trate.

Algunos ejemplos de estas luchas los encontramos en:- el “Movimiento Sin Tierra” (MST) de Brasil, que cuenta con el apoyo de

la Iglesia local y de los pequeños campesinos.La proximidad con las grandes ciudades le da “visibilidad” al movimiento

al tiempo que disminuye el riesgo de represión invisible por parte de losterratenientes, policía militar y para -policial.

- el levantamiento indígena en el estado de Chiapas- México - encabezado

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por el Subcomandante Marcos, el 1ro.de enero de 1994, coincidiendo con el día deentrada en vigor del Tratado de Libre Comercio entre EEUU, Canadá y México,como primera protesta contra la globalización o mundialización.

Es el inicio de lo que el Subcomandante llama:”… la cuarta guerra mundial,esto es el enfrentamiento entre mundializadores y mundializados”…”en el que elideal de la mundialización sea que el mundo se transforme en una gran empresagestionada por un consejo de administración constituido por el FMI , el BancoMundial, la OMC y el presidente de los Estados Unidos, donde los gobernantesde cada Estado serían los representantes de este consejo, una especie deadministradores locales…”

Según estadísticas – en este Estado de México - un tercio de los niños noestá escolarizado y sólo uno de cada cien ingresa a la Universidad, la comunidadindígena supera el 50% de analfabetismo y su tasa de mortalidad es superior en un40% a las de los habitantes de la capital.

Frente a esta situación de injusticia extrema se alza el movimiento indígena,escondiendo sus rostros para que el mundo finalmente vea a los invisibles, losexcluidos de siempre, los pobres, los desheredados, las víctimas de la globalización,aquellos que no son una inversión rentable para el mercado.

- la resistencia civil en México frente a la construcción del “muro de laignominia”, los reclamos ciudadanos de libertad, justicia y democracia que se niegana aceptar la filosofía del “pensamiento único”.

- en Argentina , los Movimientos Piqueteros, de trabajadores desocupados,que luchan por hacerse oir en reclamo por su situación de marginación, a través delcorte de calles y de rutas y los Asambleístas de la Ciudad de Gualeguaychú –Provincia de Entre Riós – que tratan de impedir que las pasteras multinacionalescontaminen nuestro Río Uruguay.

- los nuevos movimientos indigenistas de Bolivia y Ecuador que pugnanpor el respeto a su identidad y sus costumbres.

Todas alternativas que se construyen día a día en un proceso de signoopuesto al que mi trabajo ha querido definir, reflejar, delimitar y cuestionar.

7. CITAS:(1) La cuarta vía al poder, globalización neoliberal y crisis económica,

(Comandante Fidel Castro, Discursos y Declaraciones mayo/98 – enero/99, Editorial21, Buenos Aires, 2002)

(2) Globaloney, El lenguaje imperial, los intelectuales y la izquierda (Petras,James, Editorial Antídoto, Buenos Aires, 2000)

(3) Imperialismo y globalización, (Petras, James, Ciclo de Conferencias enArgentina, tema: Globalización, un análisis crítico, Septiembre 1999, Revista dedebate y crítica marxista Herramienta)

(4) Globalización y Derecho del Trabajo, Realidad y proyecto, (Baylós,Antonio, Cuadernos de Relaciones Laborales, Nro. 15, Madrid, 1999)

(5) Ontología del Ser Social – El trabajo (Lukács, György, Textos inéditos

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en castellano – Ediciones Herramienta, Buenos Aires, 2004)(6) Genealogía e ilegalidad del “Modelo Argentino”, (Lozada, Salvador

María, Le Monde Diplomatique Nro. 12, Buenos Aires, 2000)(7) ¿Quién gobierna el mundo? (Petras, James, Diario Página 12 - Contratapa,

Buenos Aires, septiembre, 1999)(8) Trabajo y producción de la pobreza en Latinoamérica y el Caribe (Escobar

de Pabón, Silvia, Globalización, trabajo y pobreza, CLACSO, Buenos Aires, 2005)

Referências Bibliográficas:

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Trabajo y producción de la pobreza en Latinoamérica y el Caribe (Leguizamón,Sonia – Compiladora, CLACSO, Buenos Aires, 2005)

Las guerras del capital, de Sarajevo a Irak (Dieterich, Heinz, Editorial NuestraAmérica, Buenos Aires, 2004)

La crisis de los intelectuales (Dieterich, Heinz, Editorial 21, Colección Política,Buenos Aires, 2000)

Pueblos indios en la política, Albó, Xavier, Editorial Plural, Cuadernos deInvestigación, Nro. 55, La Paz-Bolivia, 2002)

Globaloney, El lenguaje imperial, los intelectuales y la izquierda (Petras, James,Editorial Antídoto, Buenos Aires, 2000)

La globalización económico-financiera, su impacto en América Latina (Gambina,Julio- Compilador, CLACSO, Buenos Aires, 2002)

Crítica y teoría en el pensamiento social latinoamericano (Colección Becas deInvestigación, CLACSO, Buenos Aires, 2006)

Ontología del Ser Social – El trabajo (Lukács, György, Textos inéditos en castellano– Ediciones Herramienta, Buenos Aires, 2004)

Diario Página 12 - Suplemento Cash y Sección Economía (Buenos Aires, marzo/07)

Diario La Nación – Sección Economía (Buenos Aires, marzo/07)

Informes OIT/2003 y CEPAL, 2004

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Ley de contrato de Trabajo comentada (Fernández Madrid, Juan Carlos y ot., 8vaedición, Fernández Madrid Editores, Buenos Aires, 2006)

Imperialismo y globalización, Ciclo de Conferencias en Argentina, (Petras, James,Septiembre 1999, Revista de debate y crítica marxista Herramienta)

Imperio (Hardt, Michael y Negri, Antonio, Editorial Paidós, Buenos Aires, 2002)

La trama perversa del neoliberalismo, en la Reforma Constitucional, la Flexibilizaciónlaboral y la globalización de la economía (Viaggio, Julio, Ediciones Dialéctica,Buenos Aires, 1995)

Marcos, la dignidad rebelde (Ramonet, Ignacio, Le Monde Diplomatique, Edicióncono Sur, 2001)

Contrapoder, una introducción (Negri, Tony y ots, Ediciones de Mano en Mano,2001)

Derechos Humanos (Gordillo, Agustín y ots, 4ta. Edición, Editorial Fundación deDerecho Administrativo, Buenos Aires, 1999)

Globalización, neoliberalismo y socialismo (Lapolla, Alberto J., Editorial ColecciónPolítica, Buenos Aires, 1999)

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LEITURA MORAL DA CONSTITUIÇÃO E SEUSLIMITES

Daniel Marques de CAMARGO·

SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. A hermenêutica jurídica; 3. Breve resumo das Escolase dos métodos clássicos de interpretação da lei; 4. As regras, os princípiosconstitucionais e os valores; 5. Os métodos de interpretação da Constituição; 6. Asegurança jurídica; 7. Considerações finais; Referências bibliográficas.

RESUMO: O artigo trata da hermenêutica jurídica e dos métodos de interpretaçãoda lei, especialmente naquilo que concerne a uma visão crítica, emancipatória erenovadora das normas e do fenômeno jurídico. Além disso, é feita a abordagemacerca das diferenças entre regras e princípios constitucionais, da importância daprincipiologia e do respeito às diretrizes axiológicas e de justiça existentes noordenamento jurídico, sem desprezar a segurança e a certeza jurídicas característicasde um sistema de base romano-germânica.

ABSTRACT: The article deals with the juridical hermeneutics and methods of lawinterpretation, specially on that wich concerns a critical, emancipated and renovatingview of the norms and the juridical phenomenon. Moreover, an approach is madeconcerning the differences between the rules and constitucional principles, theimportance of the principiology and the respect for the axiological and justice rulesthat exist in the juridical system, without disdaining the juridical security and certainlytypical of a Roman-Germanic based system.

PALAVRAS-CHAVE: Hermenêutica e métodos de interpretação da lei. Regras eprincípios constitucionais. Segurança jurídica.

KEY-WORDS: Hermeneutics and methods of law interpretation. Constitucionalrules and principles. Juridical security.

* Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Advogado, professor da Pós-Graduação emDireito Público das Faculdades Integradas de Itararé-SP, da Pós-Graduação em Direito Processual Civil do Institutode Direito Constitucional e Cidadania (IDCC), em Londrina-PR e da Graduação em Direito das Faculdades Integradasde Ourinhos-SP (FIO). Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade de Ribeirão Preto (UNAERP)e Mestre em Ciência Jurídica. Membro do Conselho Editorial da Revista Direito e Análise (RDA), das FaculdadesIntegradas de Ourinhos (FIO), é palestrante convidado em diversos cursos jurídicos e tem trabalhos publicadosem revistas e sites jurídicos. Artigo submetido em 16/06/2008. Artigo aprovado em 07/08/2008.·

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1. IntroduçãoHodiernamente não mais se aceita uma interpretação das normas jurídicas,

especialmente as constitucionais, de forma literal, mecânica, fria, destituída devisão sistêmica e ligada a um positivismo extremado, especialmente quando se estádiante de normas de elevada abstração e maior grau de indeterminabilidade, taiscomo os princípios.

Conforme Luís Fernando Barzotto:

Já se tornou um patrimônio do pensamento jurídico universal a idéia deque o direito é um fenômeno complexo, que envolve não somente normas,mas fatos e valores e, portanto, não somente a validade, mas também ajustiça e a eficácia concorrem à formação da noção de direito (apudVENOSA, 2004: p. 79).

Tal assertiva confirma o tridimensionalismo jurídico desenvolvido porMiguel Reale, destacando que no direito e no fenômeno jurídico sempre estarãopresentes, numa interação dinâmica e dialética, fato, valor e norma. Verdade é queo direito é uma ordenação coercível, heterônoma e bilateral-atributiva das relaçõesde convivência em sociedade, de conformidade com uma integração normativa defatos e de valores.

À vista de uma ordenação ética, quando da interpretação e aplicação dasnormas constitucionais, é não só possível mas necessário que se recorra aelementos morais e políticos subjacentes ao texto constitucional, em especial paraque os valores mais relevantes de uma dada coletividade sejam concretizados. Odireito, instrumento que é para a realização e efetivação da Justiça, deve serinterpretado de modo a fazer incidir aquelas pautas axiológicas consideradas comobens supremos e soberanos, especialmente a dignidade da pessoa humana, aigualdade, a liberdade, a cidadania, a democracia e a justiça.

A leitura da Constituição deve levar a uma conformação entre ainterpretação e os objetivos primaciais das leis fundamentais. Para se atingir talfim, os valores considerados superiores devem prevalecer.

De acordo com Ronald Dworkin:

A leitura moral propõe que nós todos – juízes, advogados, cidadãos –interpretemos e apliquemos essas normas abstratas segundo oentendimento de que elas invocam princípios morais acerca da decênciapolítica e da justiça (apud MORO, 2004: p. 54).

A leitura moral que se almeja não se baseia em uma absolutadiscricionariedade dirigida ao intérprete e aplicador das normas, mas sim tendo emconsideração que as pautas morais contidas no texto constitucional precisam serconformadas à vida real, e concretizadas para as pessoas de carne e osso.

Na precisa lição de Manoel Messias Peixinho:

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A interpretação deve ser consistente em sua metodologia, libertária emsua proposta de concretização e revolucionária em seus efeitos práticos,co3nsagrando os princípios fundamentais como expressão absoluta davontade do poder constituinte (2003: p. XX).

Há, portanto, uma dose de liberdade para a interpretação da Constituição,respeitados os princípios ou aspectos traçados por Luis Roberto Barroso (2004: p.151-275), quais sejam a sua supremacia, a presunção de constitucionalidade dasleis e dos atos do Poder Público, a interpretação em harmonia com o textoconstitucional e sem ofensa à sua unidade, o respeito à razoabilidade e àproporcionalidade e, finalmente, a efetividade que deve ser conferida à normaconstitucional.

Modernamente, a interpretação precisa levar em conta a principiologia e abusca de máxima efetividade, respeitado o compromisso de construção de umasociedade livre, justa, solidária, democrática, buscando eliminar a pobreza e amarginalização, e diminuindo as desigualdades sociais e regionais.

2. A hermenêutica jurídicaQuando se fala em leitura moral da Constituição, que engloba a

compreensão-interpretação do propósito mais nobre das normas, imprescindívelque se atente à significação do termo hermenêutica.

De Plácido e Silva, em seu Vocabulário Jurídico, dentre algumas acepçõestrazidas, assim delineia o sentido da palavra:

Do latim hermeneutica (que interpreta ou que explica), é empregado natécnica jurídica para assinalar o meio ou modo por que se devem interpretaras leis, a fim de que se tenha delas o exato sentido ou o fiel pensamento dolegislador.Na hermenêutica jurídica, assim, estão encerrados todos os princípios eregras que devam ser judiciosamente utilizados para a interpretação dotexto legal. Trata-se da disciplina que tem por finalidade estudar, classificar,sistematizar e analisar os princípios e métodos interpretativos. Ainterpretação, pois, passa a ser a aplicação da hermenêutica.E esta interpretação não se restringe ao esclarecimento de pontos obscuros,mas a toda elucidação a respeito da exata compreensão da regra jurídica aser aplicada aos fatos concretos.Interpretar é também expor, dar o sentido, dizer o fim, significar o objetivo(2003: p. 679).

Interpretar, pois, é atribuir um sentido, uma significação, uma finalidade oudireção a um determinado texto. A hermenêutica jurídica, especialmente do textoconstitucional, tem enorme importância a partir da conclusão inarredável de que anorma é uma abstração, que necessita de densificação normativa, maior ou menor.

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É certo que a norma não existe isoladamente, de forma mecânica ou apenas objetiva,mas sim dependente sempre, para sua validade social e ética, da busca de suasrazões morais e valorativas fundantes e motivadoras.

Por mais que o legislador possa prever os fatos ocorrentes na convivênciaem sociedade, e ao fim criar a norma agasalhadora da situação, não chega ele e nempoderia chegar aos fatos concretos, à coexistência social em toda a sua plenitude,aos casos individualizados que demandam solução jurisdicional de acordo com assuas características e especificidades. E por mais claras que sejam as normas,também inevitável o processo interpretativo.

Conforme Manoel Messias Peixinho:

A lei nada mais é senão uma abstração, somente transportada àcompreensão pela interpretação que transcende os limites filológicos. Daía falácia do apego à literalidade, porque a norma é a síntese de outrosfatores sociais, não subsistindo como mandamento isolado. Pois bem, alei não deve ser interpretada levando-se em consideração tão-somente oseu conteúdo lingüístico. Antes, é imperativo buscarem-se as razões moraismotivadoras do texto em seu contexto social (2003: p. 16).

Daí que para se dar a subsunção normativa ou para que se crie a normaeqüitativa à situação fática apresentada, imperiosa a viagem ao sentido fundanteda norma, bem assim à sua teleologia, a fim de que a interpretação e aplicaçãojurídicas estejam em harmonia com a realidade jurídica coletivamente desejada.

3. O positivismo jurídico. Breve resumo das Escolas e dos métodos ou elementosclássicos de interpretação da lei

Com o desenvolvimento da Teoria Pura do Direito, por Hans Kelsen, surgeo pensamento positivista que até hoje perdura, em maior ou menor grau.

A preocupação maior de tal Teoria é com a estrutura lógica das normas edos enunciados jurídicos. Procura-se fugir das valorações, dos interesses e dossubjetivismos, criando uma verdadeira ciência jurídica. Além disso, busca Kelsenestabelecer uma neutralidade, que deve reger a atuação do intérprete e do aplicadordas normas. Pesa, pois, a literalidade, a gramaticalidade, a lei como imperativo quemerece respeito absoluto.

A Escola da Exegese tem sua origem na Revolução Francesa e no célebreCódigo de Napoleão de 1804.

O eixo central está ligado à interpretação literal do texto normativo, atémesmo com a aceitação dos defeitos da lei. Não tardou para que tal Escola perdessesua força, ante a óbvia constatação de sua insuficiência e dos desajustes entre oscódigos e a realidade social, que é mais rica, dinâmica e efervescente do que ostextos legais.

Em meados do século XIX surge a Escola Histórica, fundada por FriedrichCarl Von Savigny, na Alemanha. Aceitava-se a inevitabilidade da constante mutação

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social, devendo a lei ser interpretada com base em aspectos históricos, ainda quetivesse perdurado, por certo tempo, um historicismo formalizado.

Com a Escola da livre investigação científica, de François Geny, concluiu-se que a solução dos casos concretos não pode depender só da letra da lei, mastambém deve ser o resultado de ponderações dos fatos sociais concretos.

De conformidade com Maria Helena Diniz:

Para Geny, é um dado da experiência que todas as relações sociais contêm,em si mesmas, as suas condições de equilíbrio, isto é, as normas por quese devem reger. Tais normas nascem com a sociedade, com ela sedesenvolvem, se renovam e se aperfeiçoam com base nas necessidades davida social. Portanto, a livre investigação científica não dá liberdade aojurista e ao juiz para investigar nos fatos da vida qual a melhor soluçãopara os conflitos e as lacunas da lei. Ela não é criação arbitrária do direito,não é produto das convicções pessoais do intérprete ou do aplicador.O jurista e o magistrado, ao desempenhar suas funções, não agemarbitrariamente, procuram ater-se aos dados, procedendo à sua valoraçãocom base na justiça, e não nas suas preferências ou pontos de vistapessoais (2005: p. 66).

A Escola do Direito Livre surgiu na Alemanha, em 1906, e pregava apossibilidade de interpretação da lei levando em conta seus aspectos sociais e asconvicções predominantes num dado momento e local. O intérprete da lei nãoprecisa se ater aos aspectos formais, sendo-lhe dada ampla margem dediscricionariedade para adaptação dos textos às peculiaridades histórico-sociais eaos sentimentos da coletividade.

No que se refere a alguns dos tradicionais métodos ou elementosinterpretativos, partindo-se da premissa básica de que a interpretação deve seruna, há que se ressaltar o literal, o lógico, o histórico, o teleológico e o sistemático.

O literal parte do pressuposto de respeito ao sentido gramatical das normas,considerando-se que as palavras têm um sentido próprio e trazem em si a verdadeque se pretende expor ou ver aplicada. É o ponto de partida e limite da hermenêutica.

Da lição de João Pedro Gebran Neto:

Destarte, o método gramatical figura como primeiro combatente da batalhainterpretativa, indicando tanto o primeiro sentido da interpretação, quantoo limite do arbítrio do intérprete. O sentido literal lingüisticamente possíveldeve ser necessariamente conjugado com outros métodos de interpretação(2002: p. 56).

A respeito do método lógico, a busca está relacionada ao conteúdo racionalque possibilita responder ao questionamento do sentido da norma e sua aplicaçãorazoável, lógica e bem delineada dentro do ordenamento jurídico.

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Referentemente ao elemento histórico, claro fica que os fatores históricos,os movimentos sociais e políticos devem ser levados em consideração quando dabusca interpretativa.

Há, por conseguinte, uma compreensão dinâmica e dialética do fenômenodo direito e das normas, com uma visão crítica da temporalidade e dastransformações inerentes ao fenômeno jurídico, historicamente. Tal interpretação évoltada para o passado, e analisa as circunstâncias que envolveram a criaçãolegislativa, ou seja, os impulsos e motivações (sociais, políticos, ideológicos,psicológicos, culturais) exteriores à emanação do texto.

Tal forma de interpretação não pode ser levada a extremos, exatamentepelo fato dos indivíduos, grupos sociais e entes em geral se transformarem, demaneira ininterrupta, e da possibilidade dos motivos determinantes da elaboraçãode uma regra ou o estabelecimento de um princípio, não mais estarem presentes, oque pode culminar em inadequações interpretativas.

Referentemente à interpretação histórica, a contribuição de Luis RobertoBarroso:

A interpretação histórica consiste na busca do sentido da lei através dosprecedentes legislativos, dos trabalhos preparatórios e da occasio legis.Esse esforço retrospectivo para revelar a vontade histórica do legisladorpode incluir não só a revelação de suas intenções quando da edição danorma como também a especulação sobre qual seria a sua vontade se eleestivesse ciente dos fatos e idéias contemporâneos (2004: p. 132).

Do elemento teleológico devemos lembrar que há um sentido global nodireito, finalidades que precisam ser perseguidas pelas normas e, conseqüentemente,pelos protagonistas da vida jurídica. Deve o hermeneuta analisar os aspectostécnicos, sociais, políticos, históricos e jurídicos das normas, a fim de que se atinjaa justiça. Tal interpretação se baseia e deve respeitar os fins objetivados pelosautores das normas jurídicas.

Novamente João Pedro Gebran Neto resume:

Assim, deve-se compreender por método teleológico aquele que visafundamentalmente revelar o fim da norma, o valor ou bem jurídico objetoda tutela. Essa finalidade não é perene, mas viva e mutável, consoante aseventuais modificações da situação fática ou jurídica na qual está inserida(2002: p. 60).

Finalmente, no que se refere ao sistemático, nada mais é do que aconjunção, harmonização e aplicação de todos os métodos supracitados, de talforma que se consiga buscar, na medida do possível, uma interpretação harmoniosa,coordenada e completa das normas e do ordenamento jurídico, que não é umconjunto disperso, fragmentado e aleatório de disposições. O mundo jurídico deve

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ser visto como um conglomerado coordenado de regras e princípiosinterdependentes, a respeitar mesmo a idéia de sistema.

A interpretação sistemática está vinculada à idéia de unidade da ordemlegal. Por tal caminho, o intérprete localiza o dispositivo objeto de análise dentrodo contexto normativo geral e particular, e a partir de então é possível estabeleceras interligações entre as instituições e as normas jurídicas. É preciso, pois, oentendimento das partes, dos fragmentos, bem assim ter uma visão estrutural eperspectiva de todo o sistema.

Seguindo, outrossim, pari passu João Pedro Gebran Neto, na análise detal forma interpretativa, tem-se que:

O intérprete deve analisar a norma juntamente com o todo em que estáinserida, verificando se se trata de regra geral ou de exceção. Deve cuidarse determinada interpretação não colide com o restante do ordenamentojurídico de que dimana, ou se os dispositivos devem receber interpretaçãoampla ou restritiva. Além de verificar em qual lei está contida, deve tambéma norma ser observada segundo as demais leis do ordenamento jurídico, e,de modo muito especial, aquelas que lhe são hierarquicamente superiores.A Constituição, neste aspecto, é luz que ilumina o caminho da interpretaçãodas demais normas jurídicas (2002: p. 59)

Dos métodos clássicos de interpretação, é preciso mencionar osubjetivismo e o objetivismo. Os subjetivistas buscam identificar a mens legislatoris,ou seja, a vontade do legislador histórico quando da criação da norma. Já osobjetivistas pretendem que haja o respeito à mens legis, isto é, a vontade objetiva,precisa e autônoma da norma é que deve ser respeitada.

Daquilo que tradicionalmente se tem, ainda o melhor caminho é umainterpretação tópico-sistemática, caracterizada pela dialeticidade. O trilhointerpretativo é percorrido de tal forma que se respeita o problema, suasespecificidades, a alocação da questão no panorama jurídico normativo, axiológicoe fático daquele momento, com os questionamentos, indagações e confrontaçõesque mereçam análise para se chegar à melhor solução.

Mencionada interpretação é pertinente também pelo fato de que atravésda discursividade dialética inerente à própria situação fática (problema), às própriaspartes, seus patronos e à autoridade judicial, é que se constrói e consolida asolução democrática e justa às ocorrências jurídicas.

Tal visão interpretativa leva vantagem clara em relação a posicionamentosherméticos ou à opção por um único elemento interpretativo. A interpretação étotalidade, pluralidade, a obstaculizar pensamentos e práticas pré-estabelecidas edirecionadas para um único sentido.

4. As regras, os princípios constitucionais e os valoresA Constituição traz os parâmetros básicos e essenciais sobre a organização

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e o funcionamento do organismo estatal, suas relações internas e externas, adistribuição das esferas de competência do poder político, e especialmente osdireitos e garantias fundamentais dos indivíduos. Trata-se, por conseguinte, doconjunto de normas estruturais do Estado e da sociedade.

Antes de adentrar na interpretação da Constituição propriamente dita,necessário se faz um breve delineamento acerca da subdivisão das normasconstitucionais em regras e princípios.

Os critérios para diferenciação de ambas são os seguintes: a) Grau de abstração: os princípios possuem um grau de abstração mais

elevado que as regras, que são mais concretas, diretas e objetivas;b) Grau de indeterminabilidade: na aplicação do caso concreto, os

princípios, mais vagos, indeterminados e subjetivos, necessitam daquilo que sedenomina densificação normativa, enquanto as regras são suscetíveis de aplicaçãodireta;

c) Caráter de fundamentalidade no sistema jurídico: os princípios sãonormas com papel fundamental no ordenamento jurídico, têm importância primordiale são diretrizes essenciais à realização e efetivação do texto constitucional;constituem-se em balizas orientadoras de toda a ordem legal, inclusive das regras;

d) Proximidade da idéia de direito: os princípios são standardsjuridicamente vinculantes radicados nas exigências axiológicas de justiça e naidéia mais ampla de direito. Já as regras podem ser normas vinculantes com umconteúdo apenas funcional, caracterizadas por uma maior objetividade;

e) Natureza normogenética: os princípios são fundamento das regras,constituindo-lhes a ratio. As regras têm seu ponto de apoio e seu nascimento apartir dos princípios, que são a razão de ser das regras.

Feita a distinção, resta claro que os princípios dão maior margem àinterpretação. São mais vagos, indeterminados, subjetivos, amplos, abrangentes,ilimitados, mas não menos importantes. Pelo contrário, irradiam eles as suas luzessobre todo o ordenamento jurídico, e devem ser sempre norteadores da atividadeinterpretativa e aplicativa do direito.

Acerca da principiologia, César Asfor Rocha assinala:

Dessa forma, um sistema normativo sem valoração dos seus princípiosbasilares é totalmente dissonante de um modelo aberto de sistema. O quese denomina objetividade jurídica não pode se ater, apenas, às normasjurídicas. É preciso incorporar a idéia de que, para entender e aplicar comjusteza o sistema normativo, deverá o intérprete socorrer-se de princípios,efetuar uma delimitação das normas e, sobretudo, ponderar os valoresestabelecidos no corpo maior (2007: p. 65).

Aí reside o ponto nodal da atuação jurisdicional interpretativa, que devefazer realizar os valores mais importantes presentes na ordem constitucional. Maisque uma diferenciação em termos de hierarquia entre regras e princípios, interessa-

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nos a proteção aos valores soberanos e supremos que devem orientar ainterpretação e a aplicação jurídicas.

Celso Ribeiro Bastos, ao tratar dos valores, assim se posiciona:

Entendem-se por valores os conteúdos materiais da Constituição, queconferem legitimidade a todo o ordenamento jurídico. Eles transcendem oquadro jurídico institucional e a ordem formal do direito, pois indicamaspirações que devem informar todo o sistema jurídico. Tornam, portanto,ilegítimas qualquer disposição normativa que contenha fins distintos oucontrários aos deles, ou até mesmo que dificultem a realização de seusfins. Estes devem ser alcançados pelo ordenamento jurídico e representamo consenso de todos ou expressam um sentimento comum a toda asociedade. Os valores são mutáveis, pois têm a necessidade de se acomodaràs novas realidades. São, em síntese, manifestações da vontade de todosos cidadãos, ou seja, aquelas metas que devem ser sempre alcançadas epreservadas por todo o ordenamento jurídico: a liberdade, a igualdade, odireito à vida, a dignidade da pessoa humana etc (2001: p. 56-7).

Os princípios constitucionais, agregados que têm em si os valores supremosde uma dada coletividade, são vetores para as soluções interpretativas das normasjurídicas, e não podem ser vítimas de nocivos abrandamentos, óbices, abreviaçõesnem limitações, diante do princípio da proibição do atalhamento constitucional, ouseja, impedimento à banalização, flexibilização restritiva ou destituição de cargaeficacial da Constituição.

A dignidade da pessoa humana deve ser a grande e mais importante diretriznorteadora da interpretação da Constituição, pois é um dos fundamentos do EstadoDemocrático e Social de Direito, além da soberania, da cidadania, dos valoressociais do trabalho e da livre iniciativa e do pluralismo político.

Ao abordar os princípios constitucionais e sua interpretação vinculada aum desejado pluralismo, Marcelo Campos Galupp traz importante contribuição:

Na verdade, o pluralismo constitutivo do Estado Democrático de Direitoindica que os princípios jurídicos, inclusive aqueles expressamente contidosna Constituição, não precisam ser concebidos rigorosamente comoharmônicos e coerentes no contexto de sua aplicação. Muitas vezes, elesindicam diferentes projetos de vida, presentes em uma mesma sociedade,e o intérprete que pretenda realizar o tipo de justiça inerente ao EstadoDemocrático de Direito deve levar a sério essa divergência principiológica.Esta idéia já estava presente na obra de Esser, para quem “não existe um‘princípio supremo’, já que todas as funções do direito podem expressar-se em princípios que, a cada vez, atuam antinomicamente (apud SAMPAIO;2001: p. 60).

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No que concerne à possibilidade de colisão entre princípios constitucionaise valores igualmente indispensáveis, há de se proceder de tal modo a respeitar umarelação de precedência condicionada, ou seja, verificar qual dos princípios ouvalores deverá sobrepujar o outro in casu, a lembrar que o confronto entre eles seresolve na dimensão do peso, enquanto que a contraposição entre regras sesoluciona na dimensão da validade

5. Os métodos de interpretação da ConstituiçãoPrega-se neste trabalho o ideal interpretativo que respeite a principiologia

e aquilo que se costuma denominar valores soberanos ou supremos de uma dadacoletividade.

No entanto, há mecanismos para a interpretação, que não deve estarimpregnada de motivações pessoais, subjetivismos nocivos e preconceituosos,conflitos religiosos, convicções políticas ou ideológicas, muito embora se saibaser impossível a total neutralidade.

Em qualquer domínio científico, a interpretação não pode ser consideradaum fenômeno de caráter absoluto ou atemporal. Contrariamente, ela mostra o nívelde conhecimento e os fluxos e refluxos de cada momento histórico, sofre asinfluências das crenças e valores da sociedade como um todo e do intérpreteparticularmente.

Destarte, alguns métodos de interpretação do texto constitucional merecemmenção.

O primeiro deles é o Método Jurídico ou Hermenêutico Clássico (Fortshoff):há limitação à atividade interpretativa, pois a fonte deve ser o texto legal somente,dando-se ênfase especial ao princípio da legalidade. Tal método tem comocaracterística, pois, certo conservadorismo e uma menor discricionariedade eliberdade do intérprete, que se encontra jungido ao jugo da segurança dos textosda lei (NOVELINO, 2008: p. 69).

Outro é o Método Tópico-Problemático (Theodor Viehweg): a interpretaçãoe a solução aos casos concretos são o resultado da análise do problema por focos,tanto em seus aspectos positivos quanto negativos. Pensar de maneira tópica épartir do pressuposto básico de que há várias possibilidades de análise da questãoe, como consectário lógico, que não há resposta única. Deve ser buscada, porconseguinte, a interpretação e a solução que melhor se adequam ao caso concreto.Pensar topicamente é assumir que toda questão implica a existência de mais de umaresposta (PEIXINHO, 2003: p. 92).

No que concerne ao Método Hermenêutico-Concretizador (Konrad Hesse),busca-se o propósito do texto legal, até mesmo historicamente, mas não partindoda norma para o caso concreto, e sim levando-se em conta o próprio resultadorelacionado à concretização da norma, respeitando-se alguns princípios, quaissejam o da unidade da Constituição, do efeito integrador, da máxima efetividade, daconformidade funcional, da concordância prática, da força normativa, dainterpretação harmoniosa do texto constitucional. Segundo tal método, a

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interpretação e a aplicação consistem em um processo unitário, motivo pelo qualsão necessários três elementos básicos: a norma que se vai concretizar, acompreensão prévia do intérprete e o problema concreto a resolver (NOVELINO,2008: p. 70).

Quando se trata do Método Científico-Espiritual (Rudolf Smend), atravésdele se pretende integrar os valores subjacentes às normas e os demais elementosrelacionados aos interesses, anseios e reivindicações sociais. Os conceitos e ospropósitos das normas devem ser extraídos para que se efetive o processo deintegração. Objetiva-se a integração da lei com o espírito real da comunidade,relacionando a interpretação constitucional com a concretude da vida, com arealidade social do momento, em um sentido de universalidade (PEIXINHO, 2003:p. 110)

Ainda, quanto ao Método Jurídico-Normativo-Estruturante (FriedrichMuller), devem se somar as interpretações literal, histórica, sistemática e teleológicadas normas, a fim de que a interpretação seja harmônica com o ordenamento jurídico,com os aspectos sociais e históricos, e bem assim para que haja respeito ao sistemacomo um todo e aos objetivos precípuos da ordem legal e das leis. A concretizaçãoé feita através de vários elementos: metodológicos; do âmbito da norma e doâmbito do caso; dogmáticos; teóricos; e político-jurídicos (NOVELINO, 2008: p.71).

João Pedro Gebran Neto, ao abordar a teoria, menciona:

Muller diferencia texto e norma, dizendo que esses dois elementos nãosão sinônimos, como quer crer a teoria tradicional. Texto, na expressão deMuller, é somente a ponta do iceberg, enquanto norma é todo o volumeescondido que dá suporte àquele texto. Descobrir esse volume e suasdiversas possibilidades de interpretação é a tarefa do intérprete, que teráno texto a moldura que limita as possibilidades de concretização materialda Constituição (2002: p. 88).

A interpretação constitucional deve ser levada a efeito com respeito aosaspectos já mencionados, quais sejam a sua supremacia, a presunção deconstitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público, a interpretação emharmonia com o texto constitucional e sem ofensa à sua unidade, o respeito àrazoabilidade e à proporcionalidade e, ainda, a efetividade que deve ser conferidaà norma constitucional.

Duas posturas fundamentais em torno da interpretação e aplicação jurídico-constitucional são muito bem resumidas pela doutrina e pela jurisprudência norte-americana.

De um lado, os interpretativistas (strict constructionists), com uma visãomais conservadora, caracterizada pelo aspecto textual, pela originalidade do textonormativo e pelo preservacionismo, sem espaço à consideração de fatoresextraconstitucionais. Apregoam o respeito à vontade do constituinte histórico e a

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inexistência de opções exegéticas discricionárias.De outro, os não-interpretativistas (board constructionists), segundo os

quais, de conformidade com Marcelo Novelino:

(...) os tribunais têm, não apenas a faculdade, mas o dever de desenvolvere evoluir o texto constitucional em função das exigências do presente.Cabe-lhes descobrir os valores consensuais existentes no meio social eprojetá-los na tarefa interpretativa. Sagués observa que esta compreensãose associa ao chamado “ativismo judicial”, doutrina que confere aoJudiciário um protagonismo decisivo nas mudanças sociais e naincorporação de novos direitos constitucionais aos já existentes, partindodo pressuposto de que esse Poder, em geral, seria o mais habilitado àfunção de plasmar em normas os atuais valores da sociedade (2008: p. 73)

Independentemente da opção por um ou mais métodos, a Constituiçãoprecisa ser vista como um todo unitário, com plenitude em termos eficaciais eharmonização através da ponderação de valores, a fim de que tal corpo normativoseja interpretado e analisado de modo sistêmico, respeitada a sua força normativae seu efeito integrador.

É imperioso que haja respeito aos preceitos constitucionais, de modoamplo, abrangente e prestigiando-se as diretrizes axiológicas orientadoras da CartaPolítica. É preciso que se dê plena eficácia aos dispositivos constitucionais, emespecial quando se está a falar dos direitos e garantias fundamentais, até porqueclaro está no texto que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentaistêm aplicação imediata (artigo 5º, § 1º, da Constituição Federal de 1988). Restringirtal entendimento não é mais aceitável.

Conforme assinalam Luiz Alberto David Araujo e Vidal Serrano NunesJunior:

A interpretação do direito constitucional não pode seguir os mesmoscaminhos adotados em relação aos demais ramos da ciência jurídica. Éque, no estudo da hierarquia das normas jurídicas, a norma constitucionalsitua-se no ponto mais alto da pirâmide, não sendo encimada por nenhumaoutra.Seguindo essa diretriz de raciocínio, é intuitiva a conclusão de que a normaconstitucional é autolegitimante, ou seja, colocando-se no vértice superiorda pirâmide, é o pólo irradiador de legitimação no interior do sistema jurídico.Se serve de anteparo para as normas infra-ordenadas, não tem assento emqualquer disposição normativa, pois sobre si nada encontra.Bem por isso, as normas constitucionais são dotadas de valor jurídicosuperlativo, quer para fixar as fronteiras da capacidade dispositiva dasnormas infraconstitucionais, quer para indicar, em certa medida, o conteúdoconcreto de parte delas (2003: p. 63).

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Resta claro, por conseguinte, que o texto constitucional, por estar noápice do sistema legal, merece especial atenção dos protagonistas do direito, nãosó para que se respeite a força irradiadora sobre todas as normasinfraconstitucionais, mas também para que lhe seja dada concretitude em face dasexigências individuais e coletivas esculpidas na Carta Magna.

6. A segurança jurídicaUm dos limites impostos à liberdade interpretativa é o da segurança jurídica,

relacionada ao princípio da legalidade. Num ordenamento jurídico de base romano-germânica, como o nosso, ainda predomina como fonte primacial do direito alegislação, em que pese a influência cada vez maior das peculiaridades do sistemada common law, bem como o crescimento em importância de outras fontes dodireito, tais como a doutrina, a jurisprudência, o costume jurídico e o poder negocial.De relevo, indubitavelmente, que haja respeito à legislação vigente.

O direito tem função de controle social e estabelecimento de segurança ecerteza jurídicas, mas vinculado sempre aos anseios e interesses coletivos e comatenção aos valores supremos do grupo social. A esse respeito, César Asfor Rochase manifesta:

Desse modo, através da aplicação de normas que reflitam as necessidadeslatentes do povo, o Direito se apresenta como a forma mais importante dochamado controle social, entendido como o conjunto de instrumentos deque a sociedade dispõe na sua tentativa de imposição de modelos culturais,dos ideais coletivos e dos valores que persegue, com a superação dasantinomias, das tensões e dos conflitos que lhe são próprios (2007: p. 25)

A segurança e a certeza jurídicas não podem ser um fim em si mesmas. Éimprescindível e de maior importância, isto sim, que a interpretação das normas sedê passando pela aplicação dos valores e princípios constitucionais soberanos jámencionados, tais como a dignidade da pessoa humana, a igualdade, a liberdade, acidadania, a democracia e a justiça.

Há elementos políticos e morais, enfim, valores que devem nortear ainterpretação das normas. É certo, também, que a inevitável leitura política deve sepautar e respeitar os parâmetros jurídicos.

Sergio Fernando Moro delineia a questão, suscitando os possíveisconflitos daí decorrentes:

O fato é que não é viável a interpretação da Constituição sem o recurso aelementos que se encontram fora do texto, o que autoriza atividade criativapor parte do juiz constitucional. Com efeito, normas de elevada abstração,como a que garante a liberdade de expressão ou o princípio da igualdade,presentes tanto na Constituição norte-americana como na brasileira, não

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podem ser interpretadas sem o recurso à doutrina política subjacente aotexto constitucional. Para a atribuição de sentido determinado a essesdispositivos é inevitável o recurso a alguma espécie de argumentaçãomoral, como é reconhecido por boa parte da doutrina e da jurisprudêncianorte-americanas. Dworkin, entre outros, defende, conforme adiante severá, a leitura moral (moral reading) de tais dispositivos. Obviamente, talentendimento tem implicações sérias no que se refere ao postuladopositivista de separação estrita entre moral e direito (2004: p. 54).

Outro ponto que merece reflexão está ligado à realidade dos fatos e orespeito que deve existir aos legítimos, reais e verdadeiros anseios dos indivíduose da sociedade como um todo, buscando harmonia entre o bem particular de cadaum e o bem da coletividade ou bem geral.

Imprescindível que haja leitura crítica e seja dada maior evidência àquiloque estabelecem os artigos 4º e 5º da Lei de Introdução ao Código Civil, ou seja, naaplicação da lei deverá o juiz respeitar os princípios gerais do direito, e bem assimatender aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum. Partindo-se da premissa básica de que a aplicação da lei pressupõe, antes ou no mesmomomento, a interpretação legal, clara está a exigência que deve ser respeitada ecolocada em prática de modo mais amplo.

O exercício interpretativo que se almeja, a fim de ultimar a leitura moral,humanística, socializada, crítica, emancipatória do texto constitucional,especialmente pelos órgãos judiciários, vem resumido por César Asfor Rocha, nostermos seguintes:

O alcance da justiça no caso concreto é pressuposto que rege o exercíciointerpretativo da Magistratura, a qual deverá sentir-se livre para formar oseu convencimento sem se afastar dos preceitos legais quando a situaçãose enquadrar perfeitamente na hipótese genérica da lei, mas também deverásentir-se livre para deles se afastar quando houver peculiaridades tais quesó um juízo de equidade se revele apropriado para a efetividade dajurisdição, entendida não só pela excelência da prestação dos serviçosadministrativos desempenhados pelos órgãos judiciários, como, igual eprecipuamente, pelo conteúdo decisório dos julgados, que tendem a inseriros tradicionais e os novos excluídos nos grupos sociais.A equidade judicial, desse modo, mostra-se essencialmente na flexibilizaçãoda norma jurídica no interesse da sua interpretação, resultando na atuaçãodo Juiz, que, entre plúrimas acepções possíveis da mesma regra jurídica,deve escolher aquela que se evidencie mais humana, mais benigna oumais racional (2007: p. 76).

A Constituição Federal de 1988 e a respectiva interpretação precisam estarcada vez mais vinculadas à principiologia, até porque a frieza dos textos legais,

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vinculada a uma práxis jurídica positivista-legalista, parece que efetivamente nãoestá cumprindo a melhor função política do direito.

De acordo o incisivo ensinamento de Manoel Messias Peixinho:

Porém, a pergunta que se deve fazer com honestidade é a seguinte:segurança jurídica para quem? Para as elites, certamente, porque osexcluídos já estão no abismo social e não recebem a proteção devida peloEstado. Ora, o autor desta obra entende que os mecanismos deinterpretação e integração do direito devem passar, inelutavelmente, pelaaplicação dos princípios e valores constitucionais. A Carta Magna de 1988é um instrumento de restauração da cidadania. Portanto, a aplicação dodireito não se deve limitar à clausura de processos interpretativos quequeiram preservar um direito positivo fragmentado, que prega a segurançajurídica, mas não tem como garantir a cidadania. Oxalá que não chegue odia em que o povo se canse de esperar pela justiça estatal e resolvaconquistá-la pelas armas. Neste dia não será mais possível preservar osdedos (2003: p. 70).

Não é difícil visualizar que os tradicionais métodos interpretativos,lastreados e forjados por uma ideologia liberal-burguesa, não mais se sustentam,salvo a privilegiar camadas já abastadas e os detentores de qualquer espécie depoder. O trabalhador jurídico que se pretenda protagonista e não mero operador háde ter coragem diante dos desafios da atualidade, até porque tanto no momento dacriação, quanto na interpretação e finalmente na aplicação das normas jurídicas éque se consegue ultrapassar as barreiras do individualismo, da marginalização, daexclusão, para que alfim se possa realizar um melhor, mais humano, justo e solidárioconvívio em sociedade.

Dessa forma, com base em elementos e hipóteses interpretativas nosmoldes antes descritos, os argumentos e a práxis jurídica tomam força, concretitude,e podem ser considerados completos, consistentes, suficientes e coerentes, tantoem sua fundamentação quanto em seus resultados práticos e influência na vidadas pessoas de carne e osso.

7. Considerações finaisSomente através de uma interpretação libertadora, moderna e dinâmica, e

em respeito às diretrizes axiológicas, morais e políticas que atendam às verdadeirasreivindicações, anseios, desejos e direitos da coletividade, especialmente daquelesque ainda se encontram, de uma forma ou de outra, excluídos, como se fossemcidadãos de segunda categoria, é que se tornará viável a eficácia jurídica e socialdas normas jurídicas, especialmente as constitucionais, não se olvidando ocomprometimento com os direitos e garantias fundamentais, em especial os valoresda dignidade, fraternidade, igualdade e liberdade, fundantes que são da ordemjurídica como um todo.

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Nada obstante o respeito que se deve dispensar à segurança jurídica e àrealidade dos fatos, imperioso que haja uma leitura moral da Constituição, que sejasuficiente para implementar os direitos fundamentais e os valores supremos de umdeterminado grupo social, a respeitar a mudança paradigmática anunciada porMárcia Brandão Zollinger, nas seguintes bases:

É nesse contexto que se insere a multicitada formulação de Kruger queestabelece a mudança paradigmática das relações entre leis e direitosfundamentais, segundo a qual se antes os direitos fundamentais só existiamna medida das leis, agora as leis valem apenas na medida dos direitosfundamentais (2006: p. 65).

A atividade jurídica e, por conseqüência, a interpretação devem serdesapegadas de dogmas, de nocivas imposições positivistas e da mera lógica dasubsunção. Só assim se chegará a um verdadeiro e pleno Estado Democrático eSocial de Direito, dando a cada um aquilo que lhe pertence.

A comparação traçada por Carlos Maximiliano, apud João Pedro GebranNeto, é indispensável, por resumir tudo aquilo que se deseja do magistrado e dotrabalhador jurídico em geral:

(...) existe entre o legislador e o juiz a mesma relação que entre o dramaturgoe o ator. Deve este atender às palavras da peça e inspirar-se no seuconteúdo; porém, se é verdadeiro artista, não se limita a uma reproduçãopálida e servil: dá vida ao papel, encarna de modo particular a personagem,imprime um traço pessoal à representação, empresta às cenas um certocolorido, variações de matiz quase imperceptível; e de tudo faz ressaltaremaos olhos dos espectadores maravilhados belezas inesperadas,imprevistas. Assim o magistrado: não procede como insensível e frioaplicador mecânico de dispositivos; porém como órgão de aperfeiçoamentodestes, intermediário entre a letra morta dos Códigos e a vida real, apto aplasmar, com a matéria-prima da lei, uma obra de elegância moral e útil àsociedade. Não o consideram autômato; e, sim, árbitro da adaptação dostextos às espécies ocorrentes, mediador esclarecido entre o direitoindividual e social (2002: p. 69)

Seguindo os parâmetros delineados no presente artigo, poder-se-á, namedida do possível, ainda que perdurem alguns desencantos e desencontros,chegar a uma democracia, a uma igualdade e a uma justiça no seu sentido não sóformal, mas especialmente na sua acepção material, substancial.

A leitura moral da Constituição, por conseguinte, é não só possível massim absolutamente necessária nos tempos pós-modernos, para que se investigue ebusque a justiça intrínseca das normas, e porque todos os protagonistas jurídicosestão vinculados a uma interpretação e aplicação jurídica que concretize parâmetros

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jusfundamentais, em virtude mesmo da força normativa da Constituição e da eficáciajurídica de seus princípios e valores.

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CONSIDERAÇÕES ACERCA DA FUNÇÃO DAPENA A PARTIR DE UMA ABORDAGEM

CRIMINOLÓGICA

João Carlos Carvalho da SILVA·

SUMÁRIO: 1. Introdução - 2. Da abstração à realidade – 3. As funções (latentes) dapena - 3.1. Aspecto político – 3.2. Aspecto econômico-social - 3.3. Aspectopsicossocial - 4. A vertente abolicionista – 5. Viés ideológico – 6. Consideraçõesfinais – 7. Referências bibliográficas.

RESUMO: O presente trabalho, rompendo com as tradicionais teorias da pena,aborda a questão punitiva a partir do confronto entre o discurso penal e seuimpacto na realidade social. Constata-se a divergência entre a dogmática penal quesustenta os modelos teóricos justificacionistas e a prática efetiva do controlerepressivo do Estado. Depreende-se daí que a pena contém em si funções latentesdirecionadas a objetivos mais políticos do que jurídicos. Neste passo, ressalta-seo referencial abolicionista como importante fonte crítica, bem como a relevância dainstância ideológica como locus de desenvolvimento de premissas antidemocráticasno âmbito do direito penal.

ABSTRACT: This work, overcoming the traditional theories of punishment, dealswith the punitive issue from the confrontation between the penal discourse and itsimpact on social reality. There is a divergence between the penal dogmatic thatsupports theoretical models of justification and the real practice of State’s repressivecontrol. It follows from this that the punishment contains within itself latentfunctions more political than legal. So, it is emphasized the abolicionist theory asan important critical source, as well as the relevance of ideology as a locus ofdevelopment of antidemocratic premises about criminal law.

PALAVRAS-CHAVE: Teorias da pena. Funções da pena. Controle social.Abolicionismo penal. Ideologia.

KEY-WORDS: Punishment theories. Punishment functions. Social control. Penalabolicionism. Ideology.

* Bacharel em Direito. Servidor do Ministério Público do Estado de São Paulo. Artigo submetido em 03/04/2008.Artigo aprovado em 06/06/2008

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1. IntroduçãoNuma disputa secular, juristas tentam definir qual é a função primordial

da pena, buscando assinalar o papel exercido por ela na sociedade, bem como suaimportância no combate ao crime. Existem, a esse respeito, as teoriasdoutrinariamente classificadas como “retributiva”, “preventiva”, e “mista”, as quaisse revezaram ao longo dos anos na tentativa de compreender, explicar ou justificaro fenômeno da punição no que tange à sua finalidade. Não há, no entanto, umateoria hegemônica e que se mostre isenta de falhas.

O presente trabalho, destoando de uma visão tradicional, procura apontaralgumas das funções latentes que a pena exerce no contexto social. Para tanto,parte de uma abordagem histórico-sociológica que culmina na crítica das teoriaspenais, descortinando a utilização ilegítima do instituto punitivo. Sugere-se, comofrente de atuação, a análise ideológica dessa instrumentalização.

Como corolário desse objetivo, mister que se apresente uma visão da penadeveras comprometida com a realidade que a envolve, fugindo à abstração excessivaque, por vezes, a tem condenado ao vazio do discurso legitimador.

Elegem-se, pois, três focos distintos para a abordagem do problema: enfoquepolítico, econômico-social e psicossocial.

Após, procura-se apontar algumas das críticas oriundas da correnteabolicionista do direito penal que, se de um lado peca em alguns pontos, de outroconstitui importante fonte de reflexão do problema.

2. Da abstração à realidadeA pena tem sido alvo de problematização mais intensa a partir do século

XVIII, época em que houve uma maior preocupação em racionalizar a atuaçãorepressiva do Estado. Três são as principais teorias que nasceram a partir dessaépoca.

Para o retributivismo (teorias absolutas), a pena alcança sua justificaçãona necessidade metafísica de realização da justiça, a qual se estabeleceria atravésda retribuição do mal causado pelo crime com o mal causado ao infrator pela pena.Pena e crime se anulariam mutuamente. Para tanto, a pena deve ter a mesma medidado dano.

Funda-se no livre-arbítrio total do indivíduo (ao afirmar que este, uma vezpodendo escolher caminho diverso, torna-se merecedor da pena por ter trilhado asenda criminosa), bem como na correlação lógica entre crime e pena, pressupostostidos como válidos mas que não apresentam comprovação efetiva em nível científico.

Para o utilitarismo (teorias relativas), a função primordial da pena é, deacordo com seus variados matizes, prevenir a prática de crimes, seja pela intimidaçãode potenciais infratores, seja pela ressocialização/inocuização do criminoso. Aintimidação se daria por meio da coação psicológica exercida através a ameaça dapena.

Pressupõem-se, para afirmá-lo, que as sanções atreladas aos crimes seriamde conhecimento inequívoco de toda a população, bem como que a contra-

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motivação exercida pela pena seja condição suficiente para ameaçar a todos ecoibir a prática delituosa. Ocorre que tais premissas são inverossímeis.

De outro lado, a ressocialização e a inocuização admitem a idéia de que háum padrão de condutas correto, que deve permear as relações humanas, vedandocondutas que dele divirjam, advogando a tese de que é possível preparar alguémpara o convívio social retirando-o da sociedade.

As teorias mistas, no geral, perfazem uma somatória das concepções acimaexpostas, justapondo erros e possíveis acertos.

O que se nota, porém, de comum entre essas diversas teorias é quedefendem seus postulados, muitas vezes, através de premissas inconsistentes,quando não incomprováveis.

Para avaliar esse fato, de acordo com os fins deste trabalho, denominar-se-á o conjunto de funções atribuídas à pena pela doutrina e legislação tradicionaispor discurso. Isso porque a dogmática jurídico-penal e as leis perfazem uma gamade idéias abstratas que dificilmente tocam o terreno concreto dos fatos reais.

Afirma Nilo Batista (2004, p. 113) que

se os fins da pena, expostos nas tradicionais teorias absolutas e relativas[...] e nas teorias mistas [...] aproximam os fins do direito penal de suarealidade penal, é ilusório imaginar que tais teorias escapem a um idealismoimpeditivo do conhecimento das funções que concretamente a penadesempenha numa sociedade determinada.

Por isso, afirma Alessandro Baratta que

[...] a sociologia e a história do sistema penitenciário chegaram a conclusõesa propósito da função real da instituição carcerária na nossa comunidade,que fazem com que o debate sobre a teoria dos objetivos da pena pareçaabsolutamente incapaz de conduzir a um conhecimento científico destainstituição (BARATTA, 2002, p. 191).

A abordagem pertinente aos propósitos críticos deve optar por encarar adiscussão através da análise histórica da pena e de sua aplicação concreta noscontextos sociais.

De fato, revela-se pouco produtivo discutir se a finalidade da pena éretribuir, dissuadir ou corrigir se, na realidade, a pena não realiza nenhuma destaspossibilidades.

As teorias da pena, quando repisam seu discurso teórico, parecem crerque, “transformando os objetivos da pena, fazendo, em particular, da pena privativade liberdade uma medida de reeducação em lugar de um castigo, produzir-se-ia umametamorfose do sistema penal e penitenciário” (HULSMAN; BERNAT DE CELIS,1984, p. 83, tradução livre).

Batista (2004, p. 113), buscando exemplificar, afirma que uma teoria geral e

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esquemática da pena que pretenda explicar as diversas práticas penais ao longo dahistória através dos mesmos meios (o escravismo colonial brasileiro ou o capitalismodo início do século, por exemplo) “estará pagando à abstração um preço altíssimo,cuja moeda é o conhecimento”.

Observando-se a pena em sua aplicação concreta e partindo de uma análisehistórica, é possível perceber, como os autores acima, que há contradições entre osfins declarados em seu discurso e a prática efetiva do sistema penal que a fazexistente.

Resta perguntar, na ocasião desta constatação (cujas premissas não serãoaqui apontadas) se tais incoerências são o resultado natural da atuação humana,por si só imperfeita, a qual, devido a esta imperfeição, subverteria os institutos dodireito penal quando postos em prática, embora teoricamente perfeitos.

Para Baratta (2002, p. 213), tais contradições possuem uma forte cargaideológica1, sendo elas que, de verdade, permitem o funcionamento do sistemapenal na consecução dos seus “fins reais”.

Zaffaroni (apud CARVALHO, 2003, p. 143), partindo de ponto de reflexãodiverso, indaga sobre a possibilidade mesma de se “racionalizar uma teoria dosexercícios irracionais do poder” e afirma:

insistir em que o poder do sistema penal não cumpre com nenhuma dasfunções que as chamadas ‘teorias da pena’ têm pretendido atribuir aomesmo seria redundante. Sabemos que a pena não cumpre nenhuma funçãopreventiva geral nem negativa nem positiva, que tampouco cumpre funçãopreventiva especial positiva e que a única função preventiva especialnegativa (semelhantemente à geral negativa) que poderia cumprir seriaatravés de um uso generalizado da morte (ZAFFARONI, 1991a, p. 223,tradução livre).

Segundo CARVALHO (2003, p. 144), negar as diversas teorias justificativasda pena possibilitaria eliminar do “discurso penal o viés declarado (e não cumprido)que mascara a real funcionalidade da sanção penal, retomando seu identificadoressencial, que radica na esfera política”.

Para estes dois últimos autores, a pena constitui, indubitavelmente, umfenômeno político desprovido de fundamento jurídico racional e, por isso, impassívelde ser racionalmente justificado.

Tobias Barreto já reconhecia esse caráter político, afirmando que as teoriasda pena pretendem apenas racionalizar uma manifestação primeva de violência,que é a pena, sem conseguir, contudo, alterar sua natureza. “O conceito de penanão é um conceito jurídico, mas um conceito político”. Logo, a pena não é uma

1 Ideologia entendida, aqui, no sentido que o marxismo lhe atribui, em termos de formulação teórica que encobre arealidade e contribui para a manutenção de uma situação (base).

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conseqüência do direito, assentada em bases racionais (BARRETO, 1996, p. 647-648).

Observa-se que a posição adotada por Baratta vai além da meradesconfiança da racionalização da pena. Segundo se depreende de seu pensamento,o conjunto teórico explicativo do exercício da pena constitui um aparato ideológicoque disfarça ou oculta as funções latentes da pena.

3. As funções (latentes) da penaDeixando de encarar idealisticamente a pena, busca-se traçar um perfil dos

seus fins.É pressuposto, para a presente discussão, que o sistema penal - que faz

atuar a pena no mundo concreto - não é objeto idôneo à construção de uma teoriada pena (conforme Zaffaroni), já que este sistema apresenta uma atuação seletiva(conforme Baratta). Assim, há de se questionar o porquê da continuidade de umsistema falho como tal, que não atende às expectativas da sociedade e nem cumprecom sua meta estabelecida.

Sandoval Huertas (apud BATISTA, 2004, p. 113) proporciona uma divisãotripartite das funções não declaradas da pena, as quais se dariam em nível político,econômico-social e psicossocial.

3.1. Aspecto políticoNo nível político, seguindo seu critério, pode-se depreender que a pena é

útil para legitimar o intervencionismo estatal repressivo.A pena, conforme tem demonstrado o aporte crítico oriundo do labelling

approach, é aplicada mais facilmente sobre certo grupo de pessoas. Geralmente,ela se volta àquelas de alguma forma marginalizadas, seja política, cultural ousocialmente.

Com a constante identificação de setores sociais com a criminalidade surge,estereotipada, a figura típica do delinqüente. Investir nessa “imagem do mal” éconferir poder ao Estado, que nela encontra pretexto seguro para fortalecer suaatuação policial.

Foucault já observara que a delinqüência

era por demais útil para que se pudesse sonhar com algo tão tolo e perigosocomo uma sociedade sem delinqüência. Sem delinqüência não há polícia.O que torna a presença policial, o controle policial tolerável pela populaçãosenão o medo do delinqüente? (FOUCAULT, 1979, p. 138).

Logo, investindo-se na delinqüência é possível ao Estado exercer,justificadamente, um maior controle sobre a sociedade.

Reconhece-se a crise da prisão desde 1820, quando falhou em transformarcriminosos em gente honesta. Houve, então, uma “utilização estratégica daquiloque era um inconveniente. A prisão fabrica delinqüentes, mas o delinqüentes são

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úteis tanto no domínio econômico como no político” (FOUCAULT, 1979, p. 132).Exemplifica o autor francês:

todos sabem que Napoleão III tomou o poder graças a um grupoconstituído, ao menos em seu nível mais baixo, por delinqüentes de direitocomum. E basta ver o medo e o ódio que os operários do século XIXsentiam em relação aos delinqüentes para compreender que estes eramutilizados contra aqueles nas lutas políticas e sociais, em missões devigilância, de infiltração, para impedir ou furar greves, etc (FOUCAULT,1979, p. 132).

Destarte, o medo e a insegurança constituem boas estratégias degovernança.

É viável salientar, ainda, a vinculação inexorável entre a lei que define ocrime, atrelando-lhe uma pena, e o legislador que a produz. Neste caso, é possívelafirmar que só é considerado crime aquilo que o legislador entende ser crime.Desse modo, a definição do ilícito condiciona-se à idéia do legislador sobre acriminalidade, uma representação que nasce no seio de um grupo homogêneo deelite, grupo do qual provêm os legisladores em sua maioria.

Por vincular-se à vontade desse grupo, a pena pode tornar-se uminstrumento político arbitrário para finalidades nem sempre democráticas.

Por esta razão, deve-se sempre questionar os valores que se pretendeimpor ao apenado, uma vez que as normas não refletem valores absolutos einquestionáveis, mas, ao contrário, tomam como referência, na prática, os valoreseleitos pela classe dominante (BITENCOURT, 2001, p. 137).

Fugindo à excessiva abstração, é interessante, para ilustrar esta idéia, otrabalho levado a cabo pela pesquisadora Laura Frade. Em sua pesquisa, procuroudescobrir, no imaginário dos legisladores da qüinquagésima segunda legislaturado Congresso Nacional, as suas idéias e representações sobre o crime.

Após análise de centenas de projetos de lei, bem como de entrevistas commembros das casas legislativas, colhendo informações sobre o que pensavamsobre temas ligados à criminalidade, constatou-se que, embora haja variastendências teóricas no que diz respeito ao crime, tais tendências não aparecemefetivamente na prática legislativa. Ficam adstritas tão-somente ao discurso político.

Para a autora

o Parlamento brasileiro se alinha, em termos de produção legal, com asidéias neoconservadoras, que tomam os governos e os Estados no mundo.Focadas no endurecimento da legislação e a criação de mecanismos decontrole social ainda mais rígidos (FRADE, 2007, p. 180).

Isso quer dizer que, na prática, o legislador, em atitude conservadora,acaba por contrariar seu próprio discurso.

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Há, pois, uma falha na identificação do criminoso por parte doscongressistas. Para eles, criminoso é aquele de baixa instrução, desviado dos padrõesmorais da sociedade. Por esta razão, o delinqüente é sempre identificado comosendo o “outro”. Corolário dessa falha de representações é a criação de leis maisseveras e direcionadas aos “outros”.

Por outro lado, se o criminoso é entendido como sendo aquelemarginalizado, é pertinente imaginar que a classe dominante não delinqüa. SegundoLaura Frade

[...] considerando-se que [...]: 1) os elaboradores da lei, objeto da amostra,possuem em sua maioria uma alta instrução; 2) que apenas dois projetosde lei sobre os “crimes do colarinho branco” foram apresentados durantea legislatura sob exame e que nesses crimes prevalece a atuação deprofissionais graduados e que 3) praticamente nenhuma referência foi feitanas entrevistas sobre os crimes praticados dentro do próprio CongressoNacional, é razoável supor que os parlamentares não vinculem a elespróprios a idéia de criminalidade. Parece haver uma correlação indireta docrime com as camadas menos favorecidas, mas não com a elite – com aqual os parlamentares parecem se identificar. Ou seja, o crime é coisa de“pobre” (FRADE, 2007, p. 101-102).

Percebe-se, pois, que dessa atitude punitivista resta isenta a elite, hajavista a figura do criminoso a ela não se vincular.

3.2. Aspecto econômico-socialEm segundo lugar, sob o aspecto econômico-social, a pena serve/serviu à

manutenção do status quo de desigualdades, ao controle do mercado de trabalhoe como proteção ao capital.

Quando se traça uma relação entre direito penal e desigualdade social,pode-se visualizar que, além do atuar seletivo do direito penal, este tem uma funçãoativa de reproduzir estas mesmas desigualdades.

Este fenômeno se deve ao caráter estigmatizante das sanções aplicadasseletivamente. Recaindo a punição sobre o indivíduo, esta acaba por significar umverdadeiro bem negativo, que contribui para dar um novo status inferior ao apenado,impedindo-o de ascender no meio social (BARATTA, 2002, p. 166).

Tais considerações são capazes de desmistificar a pretensa funçãopreventiva do direito penal, já que o agente que cai nas malhas da justiça acabarotulado e estigmatizado, fatores não desprezíveis que concorrem para uma futuracarreira criminosa.

Diferentemente, é forçoso concluir que os grupos poderosos impõem aosistema uma quase total impunidade das próprias condutas criminosas.

Tais grupos - justifica-se - não encontram punição devido a três ordens defatores: sociais, jurídico-formais e econômicos. Segundo Baratta (2002, p. 102), são

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elementos do primeiro fator o prestígio de que gozam os agentes deste tipo decrime, aliado ao fato de que a pena a eles imposta não é estigmatizante. Em relaçãoao segundo fator (jurídico-formal), observa-se sempre a existência de comissõesespeciais para julgamento de delitos desse tipo, compostas para esse fim. Quantoaos fatores econômicos, pode-se dizer que os criminosos de colarinho brancodispõem de recursos para contratar renomados advogados, além do fato de poderemexercer pressão sobre seus denunciantes.

No que tange mais diretamente ao “econômico”, é de se dizer que,originariamente, o sistema prisional objetivava manter sob controle a massatrabalhadora das fábricas.

Segundo Bittencourt (2001, p. 22-23), a manutenção da prisão-pena sedeveu mais a uma necessidade da sociedade capitalista do que a um idealhumanizador. E a criação das workhouses e outras instituições semelhantescorrespondiam a esta necessidade. As prisões eram um instrumento que permitia asubmissão do delinqüente ao regime capitalista.

Exerceu, pois, uma função atipicamente econômica:

uma vez reduzido o interno a sujeito abstrato, uma vez ‘anulada’ a suadiversidade (até o desaparecimento que acompanha a solidão do sujeitoque não se relaciona com o social), uma vez colocado de frente àsnecessidades materiais que não pode mais satisfazer autonomamente,tornado, assim, completamente dependente da/à soberania administrativa,a este produto, enfim, da máquina disciplinar, é imposta a única possívelalternativa à própria destruição, à própria loucura: a forma moral da sujeição,isto é, a forma moral do status de proletário. Em outras palavras, a formamoral de proletário é aqui imposta como ‘única condição existencial, nosentido de única condição para a sobrevivência do não-proletário(MELOSSI, PAVARINI, 2006, p. 232).

A penitenciária, contudo, não teve uma finalidade produtiva em si, já que,economicamente, “o cárcere mal chegou a ser ‘uma empresa marginal”, sendoinexato, pois, referir-se a ele como unidade manufatureira, já que serviu, muitomais, à produção de proletários a partir da massa criminosa (Melossi;Pavarini 2006,p. 211).

Todavia, os cárceres adquiriram na atualidade outras funções. LoïcWacquant (2001, p. 152), quando questionado sobre a funcionalidade da prisão aopoderio econômico, afirma que isso era uma verdade na origem do cárcere, porvolta do século XVI, mas que no fim do século XVIII isso já não existia, sendo queno século XX a situação se inverte, tornando-se as prisões úteis para segregar asporções “sobrenumerárias do proletariado” (WACQUANT, 2001, p. 152). Destarte,“reelaborando sua missão histórica, o encarceramento serve bem antes à regulaçãoda miséria, quiçá à sua perpetuação e ao armazenamento dos refugos do mercado”(WACQUANT, 2001, p. 33).

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Nesse contexto, a pena tem uma função depurativa. De fato, são elementoscaros à sociedade pós-industrial os conceitos de produtividade e eficiência. Misterque tais valores se mantenham. Para isso, a sociedade deve desvencilhar-se detudo quanto pareça improdutivo.

Uma maneira específica para isso é a internação. Velhos vão para as casasde repouso; loucos para hospital psiquiátrico; alcoólatras para clínicas; ladrões etraficantes ao cárcere. Há um abismo entre a sociedade produtiva e a improdutiva(SHECAIRA, 2004, p. 354-356).

Mas não basta separar os improdutivos. É preciso calar suas vozes. Nãose trata apenas de impedir que os condenados votem, mas também de isolá-los aomáximo e, ao fazê-lo, marginalizar, juntamente com sua existência, todos os seusreclamos.

3.3. Aspecto psicossocialJá no terceiro aspecto, de nível psicossocial, a pena detém a função de

cobertura ideológica.Enfatizando a criminalidade individual, o sistema penal desvia a atenção

das causas geradoras das condutas socialmente negativas, mantendo as estruturassociais inabaladas.

A reação penal contra alguns infratores gera sensação de segurança, umavez que a prisão identifica o inimigo e o incapacita à pratica delituosa. Entretanto,a solução penal não ataca as raízes do problema, embora proporcione a idéia de queeste tenha sido eliminado.

Sobre esse aspecto, há de se chamar a atenção para práticas de corrupçãoque tem lugar em nossa história recente. Segundo Karam (2004, p. 90) a ênfaseexcessiva dada à punição de um ou outro infrator acaba por tirar de foco importantesquestões como a utilização do aparelhamento estatal em benefício particular e arelação de privilégios que envolve Estado e detentores do poder econômico.

Nesse sentido, Yasmin Costa (2005, p. 108) aponta que não se quer conhecere corrigir as causas do desvio, mas apenas discutir sua repressão e erradicação docontexto social, sem investir em programas efetivos de neutralização destas causas,uma vez que isso “poderia custar um alto preço, em todos os sentidos, às classesdominantes”.

A ilustrar esse fato, pode-se aqui mencionar a muito criticada Lei dosCrimes Hediondos que, seguindo um pensamento semelhante e cedendo a reclamospopulares e midiáticos, foi finalmente implantada em nosso ordenamento. Esta Lei,segundo ensinamento de Alberto Silva Franco (2002, p. 649)

cumpriu exatamente o papel que lhe foi reservado pelos meios decomunicação social, controlados pelos segmentos econômicos e políticoshegemônicos, ou seja, o de dar à população a falsa idéia de que, por meiode uma lei extremamente repressiva, reencontraria a almejada segurança.

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O que poderia ser meramente um uso irregular da pena por parte de políticosacaba tendo o condão de impedir a discussão séria para o alcance da tão sonhadasegurança jurídica.

Tais são, portanto, algumas das funções da pena aferidas através de umolhar externo ao próprio direito penal.

4. A vertente abolicionistaNo âmbito da criminologia crítica é que se encontram os questionamentos

mais desafiadores ao sistema punitivo. Embora não se busque, aqui, abordardetalhadamente os novos aspectos trazidos pela criminologia crítica, pode-se delaextrair importante crítica ao sistema de penas vigente.

O abolicionismo é uma das vertentes mais radicais da nova criminologia efornece elementos substanciosos para a crítica do direito penal.

Desenvolvendo-se a partir das idéias da teoria do etiquetamento (labellingapproach), acredita que concepção de sociedade defendida pela criminologiatradicional - encarada como grupo maniqueísta e consensual, onde o delito figurariacomo exceção – apresenta-se irreal.

Diferentemente, vê na criminalização de condutas a exteriorização deconflitos que tem lugar na sociedade e que decorrem da disputa de interesses entreos grupos que a compõem.

Aponta diversas razões para que o sistema penal seja extinto.Inicialmente, argumenta-se que o direito penal aplica-se tão-somente a

uma pequena parcela de condutas, já que há uma grande quantidade de crimes quenão se tornam sequer conhecidos das autoridades que devem combatê-lo. Acusam-no de seletivo e elitista, capaz de legitimar e reproduzir desigualdades.

Preconizam os abolicionistas a verdadeira inutilidade do sistema penal,responsável unicamente pela produção da dor. A pena não transforma, vez queaniquila o condenado; é ilegítima, pois não reabilita; a reincidência é alta, já queprisão não intimida (SHECAIRA, 2004, p. 353).

Apoiando-se nas diversas funções anômalas atribuídas às penas, aduzemque o sistema é anômico, ou seja, as normas não cumprem a função esperada. Porexemplo, não evitam o cometimento de delitos.

Indo além da mera anomia, afirma-se que o sistema penal, por meio daaplicação da pena, provocaria no apenado uma rotulação capaz de impedi-lo deascender no meio social, ocasionando mais exclusão e marginalização.

Além de tudo, o sistema penal operaria burocraticamente, uma vez quecada agência de poder (Polícia, Ministério Público e Justiça) possui sua própriaideologia e atua de modo independente, quando não em confronto.

Por fim, alega-se que quando se está diante de uma sociedade onde a cifra-negra2 é altíssima, sendo a criminalização um fenômeno excepcional, já se estádiante de uma sociedade sem penas e sem direito penal.

2 Defasagem numérica entre a criminalidade real e a criminalidade estatística.

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Hulsman (apud ZAFFARONI, 2006, p. 307), ao defender o abolicionismo,preconiza que a resposta punitiva é somente uma das formas de resolver conflitossociais e que o sistema penal poderia ser vantajosamente substituído por outrasformas de composição de conflitos (reparação, conciliação).

É de se ver, porém, que o conjunto de estudos que desembocaram nacriminologia crítica e fomentaram o discurso abolicionista não provocaram umaefetiva mudança no âmbito concreto. Isto se percebe claramente pelo fato de que osistema continua operando diuturnamente, com edição de novas leis a cada dia,umas demonstrando maior rigor, outras enfatizando garantias.

Mas, se de um lado não houve alterações significativas no plano concreto,por outro, no plano epistemológico, houve mudanças irreversíveis (BARATTA,2002, p. 191). De fato, não se pode mais crer, após o advento da criminologia crítica,nas premissas teóricas apontadas no discurso penal, o qual restou questionadoface as suas incongruências, restando inapto a sustentar as teorias da pena.

Em que pese demonstrar enorme aptidão em desconstruir os postuladospenais, o abolicionismo é também alvo de críticas e ponderações.

Entre elas, as de Zaffaroni (2006, p. 307), alegando que o sistema penal éuma das formas de controle social e que sua abolição pressupõe uma mudançadrástica na estrutura social de poder, porquanto se o sistema penal deixar de exercero controle, outro meio será eleito em seu lugar, que não seja necessariamentemelhor do que o penal.

Cita, como exemplo, que a diminuição do controle pelo sistema penal podedar espaço a meios de controle psiquiátricos, administrativos, assistenciais, etc.

Nesse sentido, pondera Roxin que, uma vez implantada uma instânciasocial de controle, a discriminação por ela praticada poderia ser mais gravosa doque a própria discriminação estatal (ROXIN, 2006, p. 5).

É certo que tais reflexões, ao passo em que convidam a uma análise maisdetida do tema, bastam para pôr em dúvida a pretensa vantagem do abolicionismo.Todavia, isto não diminui a importância desta vertente radical da criminologia crítica,que tem provocado rupturas irreversíveis com o discurso penal.

5. O viés ideológicoAo se proceder a estas críticas, está-se verdadeiramente a analisar os fins

e fundamentos da pena sob uma ótica externa de legitimação. Assim, é possívelreconhecer que nenhuma das funções que lhe são atribuídas são verossímeis, poisnão correspondem às funções da pena verificáveis ao longo da história.

Quer parecer, pois, que a pena pode ser entendida politicamente, mas nãojustificada juridicamente.

Nota-se, nesse quadro, um inflado aparelhamento ideológico responsávelpor sustentar um sistema punitivo ilegítimo e incompatível com os postuladosdemocráticos e com seu próprio discurso.

Assim, enquanto na prática se desenvolve a repressão seletiva, o discursopenal preconiza a segurança jurídica, encobrindo uma realidade lancinante a

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determinados setores sociais. Esta idéia tem se enraizado no senso comum de talforma que perdura no imaginário popular, influenciando as concepções comunsacerca da criminalidade, punição, política penal, etc.

Tal cobertura ideológica acaba se tornando um dos principais fatores quepermite uma opressão velada, impedindo qualquer mudança mais efetiva.

A ideologia que perpassa o discurso punitivo apresenta funçãodeformadora, distorcendo a realidade através da consciência de sues membros. Ofenômeno ideológico inverte as circunstâncias reais, colocando na base de todasas coisas “aquilo que os homens dizem, se imaginam, se representam”, construindouma falsa realidade baseada em concepções da realidade (WOLKMER, 2000, p.108).

É possível retirar da história exemplos concretos da utilização da lei paraforjar concepções da realidade de modo a camuflar a própria realidade circundante,como estratégia política.

Assim, no final do século XIX, no Brasil,

A figura do anarquista “perigoso”, “agitador”, “nocivo”, era efeito de umainvenção jurídica, mas também estratégia de construção de uma verdade.Ou seja, transformar em realidade o que havia sido criado como imagem,como representação. O estereótipo do anarquista, inventado pela lei, nãose encerra no âmbito legislativo – se estende e se difunde através daimprensa [...] do Poder Legislativo e de outras instituições civis e militares(ALVES, 1997, p. 10).

Uma lei repressiva será tão mais eficaz quanto mais adentrar e se instalarno seio social. Isso porque ela fomenta a criação de mecanismos de controle socialinformais, levados a cabo pelos próprios setores da sociedade civil.

Destarte, a partir de uma lei criminalizadora, surge uma nova figura dedelinqüente, que passa a ser sistematicamente repudiada (vadio, traficante, ladrão,etc). Bem assim, a mídia começa a divulgar casos referentes à nova legislação e/oucobrar dos setores responsáveis medidas para sanar o problema. O próprio governo,através de seus agentes públicos, passa a se posicionar mais ativamente no combateaos criminosos.

Atacar o senso comum dominante é desmontar, pouco a pouco, oaparelhamento de poder estruturado para a manutenção do status repressivo.

Mencione-se, por exemplo, a noção de “discricionariedade judicial” que,idealisticamente, não poderia prevalecer num ordenamento erigido sobre o princípioda legalidade. Tal encontra subsídio na vagueza da lei, proporcionada tanto pelaanemia conceitual de certos elementos como “periculosidade”, “conduta social”etc (ANDRADE, 2003, p. 272).

Estereótipos e preconceitos influenciam o magistrado (e os demais agentesde controle) tanto no momento da apreciação do elemento subjetivo do tipo (doloe culpa), quanto no da aferição da personalidade do agente; desde a escolha dos

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fatos até sua valoração e qualificação jurídico-penal (BARATTA, 2002, p. 177).Assim, “o mandamento abstrato da norma se desvia substancialmente

quando passa pelo crivo de certos filtros altamente seletivos e discriminatóriosque atuam guiados pelo critério do status social do infrator” (MOLINA, 2002, p.133).

Segundo Wolkmer (2000, p. 185),

trata-se de uma postura equivocada daqueles que acreditam que osmagistrados, na missão que lhes compete, mesmo pretendendo agir cominteira isenção e projetando a imagem da excelsa eqüidistância, sãointeiramente orientados por diretrizes neutras e princípios inatacáveis quepairam acima das demandas abusivas, das desregrações múltiplas, dosinteresses e conflitos de classes.

É possível aduzir, pois, que o Judiciário (e igualmente as demais agênciasde poder) se vale de um second code no exercício de sua atividade. Neste “segundocódigo” ou código social estão as crenças e ideologias do juiz que, decidindo combase nelas, deixa-se se guiar por estereótipos e pelo senso comum da criminalidade,pautado que está na ideologia da defesa social.

Assim,

esses mesmos fiéis guardiões e protetores das ossificadas e empoeiradascodificações, quando da execução legal ou da revelação jurídica nostribunais, oferecerão quase sempre uma atitude preconceituosa,estereotipada, modelada ideologicamente por um comportamentomarcadamente conservador (WOLKMER, 2000, p. 185).

Infere-se da existência desse código extralegal uma possível explicaçãopara a atuação seletiva por parte das agências de controle, responsável pelaconstituição de uma “clientela” do sistema penal, formada eminentemente porpobres, precisamente porque têm maiores chances de serem criminalizados eetiquetados como delinqüentes.

Segundo a criminologia crítica, é no conceito de second code3 que seencontra uma zona de intersecção entre o controle social informal e o controlepenal, donde se vislumbra que os mecanismos seletivos presentes na sociedadesão transportados ao universo jurídico penal, influenciando/condicionando aatuação dos agentes do sistema penal (ANDRADE, 2003a, p. 53).

Assim, “todo o sistema penal tende a intervir como subsistema específicono universo dos processos de socialização e educação, que o Estado e os outros

3 Conjunto de meta-regras (ideologias, crenças, estereótipos) presentes nos agentes de poder, que influenciariamno momento da aplicação da lei.

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aparelhos ideológicos institucionalizam em uma rede cada vez mais capilar”(BARATTA, 2002, p. 169).

Diversamente do que afirmam os defensores do sistema penal, os quaisenfatizam a sua função de contenção da repressão informal, é de se dizer que

na realidade, o maior rigor da repressão formal caminha junto com oaprofundamento da repressão informal, desenvolvida à sua imagem esemelhança e alimentada pela própria ideologia que sustenta o sistemapenal e que faz daqueles identificados como criminosos os inimigos, osmaus, os perigosos (KARAM, 1997, p. 77).

Destarte, um meio eficaz de se alterar o status quo é atacar a ideologiareinante no interior das agências de poder, bem como o senso comum decriminalidade, no contexto do controle social informal.

Consoante Baratta, “os muros do cárcere representam uma violenta barreiraque separa a sociedade de uma parte de seus próprios problemas e conflitos”,sendo certo que “o lugar da solução do problema carcerário é toda a sociedade”(1991, p. 255, 265).

Neste contexto, a mídia exerce papel importante no modo de pensar dasmassas, e por vezes acaba colaborando com o sistema, distorcendo a realidadecriminal e acentuando a guerra contra a “delinqüência” (MATHIESEN, 1997, p.280).

De fato, o papel desempenhado pelos meios de comunicação em massa éfundamental. Assim,

nas sociedades contemporâneas, a apreensão do real se faz, cada vezmais, através destes meios, as experiências diretas da realidade cedendoespaço e se tornando experiências do espetáculo da realidade, a própriacomunicação entre as pessoas... (KARAM, 1997, p. 69).

Destarte, um combate ideológico contra o senso comum da criminalidadeé indispensável para a alteração do sistema penal vigente, de modo a evoluir nagarantia dos direitos fundamentais dos cidadãos.

Atuando em nível social, estar-se-á, assim, propiciando uma mudança deparadigmas fundamental para a realização mais efetiva da igualdade e justiça social.

6. Considerações finaisO discurso jurídico propalado pelas tradicionais teorias da pena já não

justifica satisfatoriamente o fenômeno da punição estatal. Tem ganhado espaço,pois as vertentes teóricas que optam por analisar a questão sob um ângulointimamente ligado à realidade social.

Revelou-se, desse modo, que a pena apresenta funções diversas daquelasafirmadas pela dogmática penal, as quais nem sempre se adequam aos postulados

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constitucionais.A atuação do sistema penal acaba, por vezes, contrariando os ditames

legais ao agir seletivamente em prejuízo de grupos determinados, ocultando práticascriminosas existentes em outras classes sociais.

Estas e outras críticas encontram subsídios na doutrina abolicionista dodireito penal que, embora seja acatada com reservas, constitui importante fonte dereflexão ao sistema de penas vigente.

Ressalte-se, ainda, o papel legitimador do senso comum de criminalidade,o qual serve de lastro à atuação de um direito penal seletivo nos moldes atuais.

Atacar essa ideologia comum presente na sociedade é imprescindível paraalterar também o senso de criminalidade presente no interior das agências de controleformal, de modo a barrar a prática penal como mera causadora de “dor e sofrimento”inúteis e provocando mudanças salutares no sistema penal, adequando-o àsexigências de respeito à Dignidade do Homem.

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POLÍTICA CRIMINAL E BEM JURÍDICO PENAL

José Eduardo Lourenço dos SANTOS·

SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Princípio da legalidade; 3 A questão da política criminal;4 Modernas teorias penais; 5 Conclusão; Referências

RESUMO: O Direito Penal tem a função de proteger bens jurídicos, sendo que issodeve ser feito com base na política criminal em consonância com esse Direito,baseando-se nos direitos fundamentais, hodiernamente denominados humanos,definindo as condutas que penalizará ou não, nos casos realmente necessários,mostrando-se essencial à valorização de tais direitos quando da edição das normaspenais, cujo fundamento maior encontra-se na Constituição Federal. Deve o DireitoPenal deixar de ser uma suposta solução para todos os conflitos de interesses quesurgem, intervindo apenas e tão-somente como última alternativa, por afetar benstão caros ao homem. Para tanto, as modernas teorias penais, dentre elas ofuncionalismo e o garantismo, apresentam sólidos fundamentos para que alteraçõesno direito pátrio se realizem, de forma a colocá-lo de volta ao seu verdadeiro caminhode tutela criminal.

ABSTRACT:The function of the Penal Law is to protect legal assets based on thecriminal policy consonant with this Law, based on fundamental rights, nowadayscalled human rights, and determining which conducts it will penalize or not in reallynecessary cases, making itself essential to the valorization of such rights when thepenal laws whose major fundament lies on the Federal Constitution are made. ThePenal Law must stop being a supposed solution for all conflicts of interests andmust intervene only as a last alternative as it affects assets so dear to mankind. Inorder to do so, the modern penal theories, among them the funcionalismo andgarantismo, present solid bases to change the National Law so as to place it backin its true track of Criminal tutelage.

PALAVRAS-CHAVE: Direito Penal; política criminal; intervenção mínima;garantismo; funcionalismo.

KEY WORDS: Penal Law; Criminal Policy; minimal intervention; garantismo;funcionalismo

* Professor de Direito Penal e Legislação Especial do Curso de Direito do UNIVEM – Centro UniversitárioEurípides de Marília. Mestre em Direito pela UNIVEM. Delegado de Polícia e membro do Núcleo de Estudos,Pesquisas, Integração e de Práticas Interativas – NEPI – do UNIVEM. Artigo submetido em 26/07/2008. Artigoaprovado em 29/10/2008

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1 IntroduçãoA figura do Estado, como ente interventor nas relações humanas, surge

como substituto da autotutela primitiva, na passagem do estado natural para oestado civil, e para tanto fez-se necessário o estabelecimento de normas quedelimitam conseqüências para os que as transgredirem, a fim de se manter a ordemlegal estabelecida, trazendo segurança jurídica, nem que seja necessário abrir mãode parcelas de direitos dito naturais, como a liberdade.

Ao mesmo tempo, tais normas funcionam como limites ao Estado, na suafunção garantidora e punitiva, bem como forma real de proteção aos direitosindividuais. Porém, necessária é a eleição dos bens merecedores de proteção penal,surgindo a política criminal, orientando todos os aspectos de punibilidade, desdea citada enumeração dos bens jurídicos a serem amparados e da definição dascondutas ilícitas, até os limites da conseqüente punição.

Como função primordial do Direito Penal, encontra-se a proteção de bensjurídicos fundamentais ao indivíduo e à comunidade, conforme observa René ArielDotti (2003).

Nesse sentido Prado (1997, p.42) alega que o bem jurídico

[...] é, pois, o orifício da agulha pelo qual tem que passar os valores daação: nenhuma reforma do Direito Penal pode ser aceitável se não se dirigeà proteção de algum bem jurídico, por mais que esteja orientada aos valoresda ação. O que faz o Direito Penal é estabilizar esses valores ético-sociais.

E segue o mesmo autor,

[...] o conceito de bem jurídico deve ser inferido na Constituição, operando-se uma espécie de normativização de diretivas político-criminais. No campopenal, significa que seu objetivo só pode ser o de garantir ao indivíduouma vida de paz em sociedade (PRADO, 1997, p. 51).

Ainda sobre bem jurídico, escreve Fragoso (2003, p. 330) ser ele

[...] o bem humano ou da vida social que se procura preservar, cuja naturezae qualidade depende, sem dúvida, do sentido que a norma tem ou que a elaé atribuído, constituindo, em qualquer caso, uma realidade contempladapelo direito. Bem jurídico é um bem protegido pelo direito: é, portanto, umvalor da vida humana que o direito reconhece, e a cuja preservação édisposta a norma jurídica.

O direito de punir, como causa última desse processo, está atrelado aalguns princípios e questões básicas, os quais merecem análise, antes de se discutirse determinada conduta constitui ou não crime, e assim pode ser definido como

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O direito de punir constitui limitação jurídica ao poder punitivo do Estado,pois no Estado moderno o exercício da soberania está subordinado aoDireito. Assim, o poder político penal de punir, originariamente absoluto eilimitado, sendo juridicamente disciplinado e limitado, converte-se em poderjurídico, ou seja, em faculdade ou possibilidade jurídica de punir conformeo Direito (FRAGOSO, 2003, p.112).

2 Princípio da legalidade

O primeiro princípio a ser estudado é o da legalidade ou da reserva legal,previsto constitucionalmente, além de estar inserido no Código Penal (artigo 1º).Especifica o artigo 5º, inciso XXXIX, da Constituição, que: não haverá crime semlei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal. Já o CódigoPenal, da mesma forma, em seu artigo 1º, estabelece: não há crime sem lei anteriorque o defina. Não há pena sem prévia cominação legal.

Toledo (1991, p.21) entende tal princípio como uma limitação ao poder doEstado de interferir nas liberdades individuais: “nenhum fato pode ser consideradocrime e nenhuma pena criminal pode ser aplicada, sem que antes desse mesmo fatotenham sido instituídos por lei o tipo delitivo e a pena respectiva”. E prossegue ocitado autor, afirmando que “a elaboração das normas incriminadoras e dasrespectivas sanções constitui matéria reservada ou função exclusiva da lei”. Sobtal enfoque, pode-se mesmo dizer que a previsão legal do artigo 5º, inciso XL, daConstituição Federal, de que a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar oréu, que também se encontra reproduzida no artigo 2º, do Código Penal, insere-seno contexto geral do princípio da legalidade.

A anterioridade tratada aqui é aquela com relação ao fato ocorrido.Deve a lei penal, desta forma, exclusivamente, editar limitações casuísticas,

fora das quais tudo é permitido, ou seja, é lícita qualquer conduta que não seenquadre nas normas penais incriminadoras.

A concepção atual do princípio da legalidade, ainda segundo Toledo (1991,p.22) “é obtida no quadro da denominada função de garantia da lei penal queprovoca o desdobramento do princípio em exame em quatro outros princípios”,assim por ele enumerados: lex praevia, que se refere à irretroatividade de leis queprevejam novos crimes ou agravem a pena dos já existentes; lex scripta, que nãopermite o uso do direito consuetudinário para incriminar determinada ação ou parapenalizar mais severamente os tipos já previstos; lex stricta, que proíbe o uso daanalogia para esta mesma última finalidade; e, por fim, lex certa, de acordo com oqual não podem existir leis penais indeterminadas. Trata-se, assim, de uma garantiacontra arbitrariedades do Estado.

Com a utilização conjunta de tais princípios, na forma de uma modalidademaior que a todos englobe, perfaz-se o princípio da legalidade, de modo que se dêa atuação da lei penal, individualmente, dentro de um sistema de garantias.

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Afirma Marques1 (1997, p.183) que

O princípio da legalidade tem significado político e jurídico: no primeirocaso, é garantia constitucional dos direitos do homem, e no segundo, fixao conteúdo das normas incriminadoras, não permitindo que o ilícito penalseja estabelecido genericamente sem definição prévia da conduta punívele determinações da sanctio juris aplicável.

A teoria da tipicidade veio, de acordo com o Jesus (1993), dar mais técnicaao princípio da legalidade, sendo esta outra questão a se tratar, quando se querdiscutir o enquadramento legal de determinada ação.

A respeito da tipicidade, “num conceito preliminar, é a correspondênciaentre o fato praticado pelo agente e a descrição de cada espécie da infração contidana lei penal incriminadora” (JESUS, 1993, p. 230). Constitui um dos elementos dofato típico, sendo os demais, a conduta, o resultado (com exceções) e o nexocausal. Seria ela a ação vedada legalmente, sem qualquer conteúdo valorativo. Eainda prossegue afirmando o penalista Jesus2 (1993, p. 235) que a concepção quemelhor se adapta a prática penal é a de Mayer, escrevendo que “a tipicidade não éa ratio essendi da antijuridicidade, mas seu indício”. Isto significa que, partir domomento em que se tem cometido um fato típico, presume-se também que ele sejaantijurídico.

Deve ser distinguido o crime como fato jurídico, que, em tal análise, levaem conta a infração de forma global, isto é, em sua totalidade, do fato típico, que éapenas um dos elementos do delito, no qual se insere a conduta segundo estritaprevisão legal.

Marques (1997b, p. 59) chama a atenção neste aspecto, ao afirmar que

[...] a verificação da existência de crime é feita com base, não na condutahumana, e sim no fato típico. Só depois que a ação ou omissão éenquadrada no preceito primário de norma penal incriminadora, caberáindagar-se da ilicitude do acontecimento assim tipificado. O juízo dedesvalor tem como objeto o próprio fato jurídico.

A tipicidade dá o caráter punível e ressalta a importância criminal da conduta,amoldando-se ao modelo legalmente previsto, a fim de configurar-se o ilícito penal.Ocorre ela quando a ação apresenta as características objetivas e subjetivas domodelo legalmente formulado pelo legislador, de forma abstrata.

Como bem observou o já citado Toledo (1991) trata-se da correspondênciaentre uma conduta da vida real e o tipo legalmente previsto na legislação penal.

Desta forma, percebe-se que o tipo

1 MARQUES, José Frederico. Tratado de direito penal. V. 1. Campinas: Bookseller, 1997. 426 p.2 JESUS, Damasio Evangelista. Direito penal. V. 1. Sãp Paulo: Saraiva, 19993. 657 p.

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[...] é o modelo legal do comportamento proibido, compreendendo oconjunto das características objetivas e subjetivas do fato punível. Tiponão é o fato delituoso em sua realidade fenomênica, mas, sim, a descriçãolegal de um fato que a lei proíbe ou ordena (FRAGOSO, 2003, p. 187).

Possui assim, uma característica seletiva, atuando como garantia doprincípio da reserva legal, e servindo de indício da antijuridicidade.

3 A questão da política criminalOs interesses jurídicos não recebem uma proteção geral do Direito Penal,

mas sim limita-se este à definição legal do delito, fixada na conduta punível, deacordo com a escolha do bem jurídico a merecer a proteção penal, com base em umapolítica criminal.

Nas palavras de Prado (1997, p. 19), sobre política criminal, o bem jurídicoserve à mesma, e

[...] constitui um dos critérios principais da individualização e de delimitaçãoda matéria destinada a ser objeto da tutela penal, sendo seu objetivo mantera convivência, unicamente aqueles valores necessários à sua mantençadeveria ser objeto de tutela e sanção penal.

Cabe aqui estabelecer o conceito de dois princípios que apresentamespecial importância à presente análise. Trata-se do princípio da adequação social,cujos contornos são sintetizados por Toledo (1991, p. 131) nas seguintes palavras:“se o tipo delitivo é um modelo de conduta proibida, não é possível interpretá-lo,em certas situações aparentes, como se estivesse também alcançando condutaslícitas, isto é, socialmente aceitas e adequadas”. Coloca-se a conduta, em tal caso,entre os comportamentos permitidos, afastando-a da incidência penal. Apenasesse princípio, no entanto, não consegue excluir do âmbito de aplicação da leicertas lesões insignificantes, surgindo daí outro, idealizado por Roxin3 (2002b, p.47) chamado da insignificância, que acaba, assim, por complementar o da adequaçãosocial, “que permite excluir logo de plano lesões de bagatela da maioria dos tipos”.Limita-se, com base em tal princípio, o Direito Penal ao necessário para a proteçãodo bem jurídico.

Importa ainda e por fim a consideração sobre o caráter subsidiário doDireito penal, vale dizer quando deve ele realmente agir, ou seja, ter-se em contaque se suas armas constituem, de fato, meios onerosos para direitos e liberdadesdas pessoas, “ele só pode intervir nos casos em que todos os outros meios depolítica social, em particular de política jurídica, se revelem insuficientes einadequados” (DIAS, 1999, p. 78). Do contrário, os meios civis, administrativos,dentre outros, devem-se mostrar suficientes para a tutela dos bens jurídicos.

3 ROXIN, Claus. Política criminal e sistema jurídico-penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2002b. 99 p.

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Bianchini (2002, p. 29) cita essa subsidiariedade, ao afirmar:

[...] o princípio da intervenção mínima pode significar tanto a abstençãodo direito penal de intervir em certas situações (seja em função do bemjurídico atingido, seja pela maneira com que veio a ser atacado) – o que lhedá o traço fragmentário – como também a sua utilização em termos deúltimo argumento.

A atuação do Direito Penal sobre todos os bens jurídicos, de forma atutelá-los, poderia significar grave risco aos interesses do Direito e à liberdade.

Como um dos princípios penais fundamentais, Prado (1997, p. 56, 57) indicao da intervenção mínima, dizendo que

[...] o princípio da intervenção mínima (ultima ratio) estabelece que oDireito Penal só deve atuar na defesa dos bens jurídicos imprescindíveis àcoexistência pacífica dos homens, e que não podem ser eficazmenteprotegidas de outra forma. Aparece ele como uma orientação de PolíticaCriminal restritiva do jus puniendi e deriva da própria natureza do DireitoPenal e da concepção material de Estado de Direito.

Dias (1999, p. 81) concebe o princípio da

[...] não intervenção moderada, afirmando que para um eficaz domínio dofenômeno da criminalidade dentro de cotas socialmente suportáveis, oEstado e o seu aparelho formalizado de controle do crime devem intervir omenos possível; e devem intervir só na precisa medida requerida peloasseguramento das condições essenciais de funcionamento da sociedade.Essa sua proposta ajusta-se, perfeitamente, ao tema deste trabalho,

constituindo-se o centro dos modernos modelos de programas de política criminal,na esteira da consideração ainda do mesmo jurista português, no sentido de que

[...] devem ser expurgados todos os comportamentos que não acarretemlesão para bens jurídicos claramente definidos; ou que, ainda quandoacarretem, possam razoavelmente ser contidos ou controlados por meiosnão penais de política jurídica ou mesmo de política social não jurídica.Novos processos de criminalização só devem ser aceitos como legítimosonde novos fenômenos sociais, anteriormente inexistentes, muito rarosou socialmente pouco significativos, revelem agora a emergência de novosbens jurídicos para cuja proteção torna-se indispensável fazer intervir atutela penal em detrimento de um paulatino desenvolvimento de estratégiasnão criminais de controle social (DIAS, 1999, p. 82).

Na visão de Roxin (2002, p. 62) “Todos os elementos do crime têm uma

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função político-criminal a cumprir; seu conteúdo há, portanto, de ser preenchidode maneira a melhor cumprirem a função que lhes assiste”. Logo, se percebe quecabe à política criminal do Estado Social e Democrático de Direito, por meio dosvalores e finalidades fundamentais, eleger os bens que devam receber tutela penale, desta forma, orientar a punibilidade, tendo por fim um ideal sistema social,almejando seu funcionamento justo e adequado, como um todo.

Justamente levando em conta estes princípios, é que novas teorias penaiscomeçaram a ser elaboradas e defendidas, dentre elas a do Garantismo e a doFuncionalismo.

4 Modernas teorias estrangeirasDe acordo com o funcionalismo, que tem sua origem no Direito alemão, as

categorias dogmático-penais, antes de corresponderem à realidade das coisas,devem ser pensadas como instrumentos eficazes para a funcionalidade depropósitos políticos criminais definidos.

Roxin (2002a) apresenta um modelo funcionalista, considerado do tipoaberto, de orientação teleológica e exige que os conceitos jurídico-criminaisrepresentem princípios comprometidos com o funcionamento ideal do sistemasocial, tendo a sanção criminal função preventiva especial e geral, exigindo que oconceito de culpabilidade seja ligado a tais propósitos, buscando um sistemafuncional, com resultados adequados. A culpa resulta de um juízo de valor, e aaplicação da sanção sempre corresponderá ao seu reconhecimento.

O raciocínio funcionalista ideal representaria uma síntese entre opensamento dedutivo, que traça a política criminal por meio de juízos de valor, e oindutivo, que procura compreender a realidade no sentido de melhor instruir aprática de tais juízos.

O jurista deve sempre agir politicamente e aperfeiçoar sua dogmática pormeio de valorações legislativas. Pela política criminal, os princípios garantísticosdeverão fazer parte das categorias penais no sentido de evitar excessos dafuncionalidade do sistema.

Já o jurista Jakobs (2003), que também defende o funcionalismo, entendeque a censura penal não está pautada na culpa moral, mas na conduta que danificoua funcionalidade do sistema ou a confiança na supremacia da ordem sobre afrustração, diferenciando-se assim do discurso de Roxin (2002a).

A aplicação do funcionalismo de Roxin (2002a) se dá por meio da teoria daimputação objetiva, segundo a qual o tipo penal é composto da soma dos tiposobjetivo e subjetivo, sendo que no objetivo, além da ação, da causalidade e doresultado, deve ocorrer a criação de um risco juridicamente desaprovado e aconseqüente realização de tal risco, no resultado, permanecendo no tipo subjetivoo dolo e elementos subjetivos especiais.

Em uma síntese dessa teoria, podem-se apresentar as palavras abrangentese ao mesmo tempo sucintas de Greco, ao traduzir Roxin (2002, p. 7) segundo asquais

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[...] o finalismo nada mais fez que acrescentar, aos conceitos do naturalismo,a concepção subjetiva. O tipo objetivo do finalismo (ação + causalidade +resultado) é idêntico ao tipo do naturalismo. È exatamente isto que vem aser modificado pela imputação objetiva. A imputação objetiva vem modificaro conteúdo do tipo objetivo, dizendo que não basta estarem presentes oselementos ação, causalidade e resultado para que se possa considerardeterminado fato objetivamente típico. É necessário, ademais, um conjuntode requisitos. Este conjunto de requisitos que fazem de uma determinadacausação uma causação típica, violadora da norma, se chama imputaçãoobjetiva.

Outra teoria igualmente interessante e atual é a do garantismo, o qual,segundo Ferrajoli (2000) conceituou em entrevista concedida a Fauzi Hassan Chokr,como sendo,

[...] modelo de Direito. Neste sentido, significa submissão à leiconstitucional, à qual deverão ser sujeitados, sendo incorreto vinculá-lo aqualquer soberania interna de poderes institucionalizados, pois esta noçãode soberania foi dissolvida pelo constitucionalismo. Como decorrência,todos os poderes estão submetidos à vontade da lei que transformará osdireitos fundamentais em direito constitucional interno.

Defende a teoria garantista, que decorre do iluminismo e da luta pela defesae respeito dos direitos fundamentais individuais, o máximo de proteção a essesdireitos fundamentais, sob o paradigma atual dos direitos humanos, por meio deuma intervenção penal mínima, referindo-se ao que se pode chamar de DireitoPenal Mínimo, nos moldes dos princípios já analisados linhas atrás.

Na visão de Almeida (2002, p.77-80)

O movimento do DIREITO PENAL MÍNIMO (GARANTISMO PENAL),visando alcançar seu objetivo, recomenda a adoção de diversas medidas,dentre as quais passamos a examinar as principais, que são:descriminalização, descarcerização, despenalização.1 – A descriminalização de condutas insignificantes e que já não sãoseveramente reprovadas pela moral e pelos costumes da sociedade,podendo-se citar, como exemplo, a sedução (art.217) e o adultério (art.240);2 – Descarcerização. Visa tal medida a evitar a imposição da prisão denatureza cautelar, reservando-a para aqueles casos em que haja absoluta ecomprovada necessidade.3 – Despenalização. No discurso dos movimentos de política criminal,despenalização não significa necessariamente a adoção de instrumentosque evitem a imposição de qualquer pena, mas sim, da pena privativa deliberdade. Nesse sentido são medidas de despenalização todas aquelas

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que visem a dificultar ou evitar a imposição ou a execução da pena privativade liberdade, ou, até mesmo, abreviá-la, no último caso.

Ferrajoli (2002, p.83-84) analisa o garantismo como “o direito penal mínimo,quer dizer, condicionado e limitado ao máximo, corresponde não apenas ao graumáximo de tutela das liberdades dos cidadãos frente ao arbítrio, mas também a umideal de racionalidade e de certeza”. E prossegue o autor italiano, “com isso resultaexcluída de fato a responsabilidade penal todas as vezes em que sejam incertos ouindeterminados seus pressupostos”.

Esse modelo garantista, descrito e idealizado por Ferrajoli (2002, p. 83)sugere dez condições:

Não se admite qualquer imposição de pena sem que se produzam a comissãode um delito, sua previsão legal como delito, a necessidade de sua proibiçãoe punição, seus efeitos lesivos para terceiros, o caráter externo ou materialda ação criminosa, a imputabilidade e a culpabilidade do seu autor e, alémdisso, sua prova empírica produzida por uma acusação perante um juizimparcial, em um processo público e contraditório em face da defesa emediante procedimentos legalmente preestabelecidos.

5 ConclusãoPercebe-se, assim, que o Direito Penal é preponderantemente repressivo,

atingindo os direitos mais importantes para o cidadão, devendo ser utilizado deforma contida, atuando sobre bens jurídicos essenciais ao ser humano, os quaisdevem ser escolhidos por meio de uma política criminal comprometida com essanecessidade, deixando os demais conflitos de interesses a cargo dos outros ramosjurídicos.

Uma Constituição Federal moderna e humana serve de base dessa política,garantindo direitos e exigindo obrigações, almejando uma sociedade ordeira emque a interferência penal seja mínima, porém ocorra de forma real e eficiente, levandoao respeito à justiça, impedindo seu descrédito, por meio de um aparelho de controlesocial para os casos realmente graves e sem soluções por outros meios.

Prado (1997, p. 71) já afirmou que

[...] os direitos fundamentais – individuais, sociais, coletivos ou difusos –plasmados no texto constitucional são a fonte e o meio propulsor deinovações e alternativas, visando a uma ordem jurídica materialmente justa.

Nota-se a necessidade de uma política criminal justa e pautada na proteçãodos chamados, hoje, direitos humanos, percebendo-se ainda que tal política e oDireito Penal não são contrários, mas, nas palavras de Roxin, (2002b, p. 82 “[...] odireito penal é muito mais a forma, através da qual as finalidades político-criminaispodem ser transferidas para o modo de ciência jurídica”. E segue o autor afirmando

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que assim “cairão por terra todas as críticas que se dirigem contra a dogmáticaabstrato-conceitual, herdada dos tempos positivistas”.

É justamente isso que as novas teorias penais, principalmente o garantismoe o funcionalismo, procuram trazer à realidade social, não se podendo radicalizarna sua aplicação das mesmas. Claro que é necessário, para a correta aplicação detais doutrinas, que ocorram modificações extremas na base social de um Estado,proporcionando o mínimo indispensável a uma digna vida em comunidade, além doefetivo funcionamento do sistema jurídico como um todo, colocando o DireitoPenal em seu verdadeiro patamar, em que apenas interfira e atue em casos extremos.

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ANÁLISE CONSTITUCIONAL ACERCA DACRISE ENTRE A LIBERDADE DE CRENÇA E O

ESTADO LAICO

Luis Otávio Vincenzi de AGOSTINHO*

SUMÁRIO: Introdução; 1. Da classificação e modalidades do direito fundamentalà liberdade religiosa; 2. República Federativa do Brasil, um estado laico teísta; 3. A(in) constitucionalidade dos decretos de feriados religiosos; 4. Do direito ao dia deguarda; 5. Da aplicação do princípio da proporcionalidade na colisão de direitosfundamentais envolvendo a liberdade religiosa; Considerações finais; ReferênciasBibliográficas

RESUMO: A liberdade religiosa evidenciada na Constituição Federal de 1988garante aos cidadãos o pleno exercício das atividades relativas às suas crenças,sem quaisquer ingerências por parte do Estado. A partir do “Decreto 119-A” de1890, que instituiu o princípio do Estado Laico, recepcionado pela Constituição de1891, existe previsão da separação total entre Estado e religião. A Constituiçãovigente garante como direito fundamental a inviolabilidade do direito de consciência,crença, culto e organização religiosa, não possuindo o Estado, competência parainterferir na escolha da religião pelo indivíduo. Dentre os pontos observados,verifica-se a questão da constitucionalidade na exteriorização de símbolos religiososem prédios públicos. Decorre desse assunto uma crise de paradigmas entre oprincípio do Estado Laico e a liberdade de crença. Nos casos concretos, a liberdadereligiosa muitas vezes entra em conflito com outros direitos fundamentais, onde ouso da ponderação de valores é inevitável para o deslinde dos litígios. Dentre asanálises feitas a respeito do tema, pretende-se demonstrar que os precedentesjurisprudenciais convergem para a efetivação do direito à liberdade religiosa, nosentido de proporcionar aos adeptos das “minorias religiosas” o pleno exercício desuas crenças, frente às implicações provenientes de atos estatais, como por exemplo,o decreto de feriados nacionais de caráter religioso, a designação de datas paraconcursos públicos, vestibulares, entre outros. Por derradeiro, analisa-se ainfluência dessa crise frente à defesa dos interesses da sociedade pluralista,garantidos na Carta Maior.

ABSTRACT : The religious freedom shown up in the Federal Constitutionguarantees to the individuals the full exercise of the activities related to their faith

* Acadêmico do curso de Direito da Universidade Estadual do Norte do Paraná, Faculdade Estadual de Direito doNorte Pioneiro (FUNDINOP/Jacarezinho-PR). Bolsista da Fundação Araucária no período de 2006 a 2007, cujainiciação científica foi realizada sob orientação do Prof. Dr. Vladimir Brega Filho. Artigo submetido em 15/06/2008. Artigo aprovado em 30/09/2008.

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without any interference by the State. Since the “Decree 119-A” of 1890, whichestablished the principle of the Secular State, received by the 1891 Constitution,there is a prediction of total separation between State and religion. The Constitutionin force guarantees, as a fundamental right, the inviolability of the right ofconscience, belief, worship and religious organization so that the State does nothave competence to interfere in the religious choice of a person. Among the observedpoints, it’s verified that the question of the constitutionality happens in theexternalization of religious symbols in public buildings. From this subject appearsa crisis of paradigms between the beginning of the Secular State and the freedom ofbelief. In the concrete cases, the religious freedom very often clashes with otherfundamental rights, when the use of consideration of values is inevitable to theclear up of lawsuits. In relation to the analyses done about the subject, the studyintends to demonstrate that the jurisprudential precedents converge for theeffectuation of the right of religious freedom, trying to provide to the followers ofthe “ religious minorities “ the full exercise of his beliefs, due to the implicationsoriginated from state-owned acts, as for example, the decree of national holidays ofreligious character, the designation of dates for public contests, vestibularcompetitions, among others. At last, the influence of this crisis is analysed accordingto the defense of the interests of the pluralist society, guaranteed in the FederalConstitucion.

PALAVRAS-CHAVE: liberdade religiosa; estado laico; casos difíceis.

KEYWORDS: religious freedom; secular state; hard cases.

INTRODUÇÃOO direito fundamental à liberdade religiosa encontra-se no cerne da

liberdade em sentido lato. Vem sendo consolidado no Brasil a partir dasConstituições Republicanas, de forma a garantir a proteção da liberdade de crença,de culto e de organização religiosa.

O caput do artigo 5º da Constituição Federal de 1988 garante ainviolabilidade do direito fundamental à liberdade. Tem-se que este direito, tratadoem seu sentido amplo, está elencado no decorrer dos incisos que constituem taldispositivo, apresentando-se de diversas formas, a saber: liberdade deautodeterminação (II), pensamento (IV), religião (VI, VII e VIII), expressão (IX),profissional (XIII), informação (XIV e XXXIII), locomoção (XV, LIV e LXI), reunião(XVI) e associação (XVII, XVIII e XX).

Em que pese o direito à liberdade de religião ser elucidada nos incisossupracitados, é também amparado por vários Tratados Internacionais, dos quais oBrasil é signatário. Através da Emenda Constitucional nº45, de 08 de dezembro de2004, por força da criação do §3º do artigo 5º, as convenções internacionais dedireitos humanos, passam a se situar no topo da pirâmide normativa nacional,

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desde que aprovados em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, portrês quintos dos votos dos respectivos membros.

Pode-se, deste modo, mensurar o quão significativa se demonstra aliberdade religiosa no cenário transnacional, ratificando sua posição como direitohumano transnacional, inalienável, imprescritível e irrenunciável.

Quanto à prática processual, o direito à liberdade religiosa se revela aindamais instigante, quando entra em colisão com outros direitos fundamentais. Cabe,em síntese, diante de tais hipóteses, a ponderação dos direitos conflitantes, valendo-se do princípio da proporcionalidade, de forma a decidir cada questão segundosuas particularidades.

Tem o presente artigo o intuito de evocar algumas questões jurídicaspertinentes a tal direito, inclusive quanto à garantia do Estado laico, haja vista asvárias situações em que pode ser suscitado.

1 DA CLASSIFICAÇÃO E MODALIDADES DO DIREITO FUNDAMENTAL ÀLIBERDADE RELIGIOSA

O direito fundamental à liberdade religiosa ratifica sua posição comoliberdade pública negativa, ou limitação à atuação do Estado. Integra os chamadosDireitos Fundamentais de Primeira Geração (ou Dimensão), para os seguidores daTeoria das gerações de direitos de Karel Vasak1.

A expressão da liberdade religiosa pode se dar de diversas formas, devidoà complexidade de sua matéria. Para o constitucionalista José Afonso da Silva, aliberdade religiosa compreende três formas de expressão, sendo a liberdade decrença, a liberdade de culto e a liberdade de organização religiosa.

Na liberdade de crença entra a liberdade de escolha da religião, a liberdadede aderir a qualquer seita religiosa, a liberdade (ou o direito) de mudar dereligião, mas também compreende a liberdade de não aderir a religião alguma,assim como a liberdade de descrença, a liberdade de ser ateu e de exprimiro agnosticismo. (...) a religião não é apenas sentimento sagrado puro. Nãose realiza na simples adoração a Deus. Ao contrário, ao lado de um corpode doutrina, sua característica básica se exterioriza na prática dos ritos, noculto, com suas cerimônias, manifestações, reuniões, fidelidades aoshábitos, às tradições, na forma indicada pela religião escolhida.2

1 BARROS, Sérgio Resende de. Noções sobre Gerações de Direitos. Disponível em <http://www.srbarros.com.br/aulas.php?TextID=63> Acessado em 12.07.2007. “Pioneiro dessas denominações foi Karel Vasak, na aulainaugural que proferiu em 1979 no Instituto Internacional dos Direitos Humanos, em Estrasburgo, sob o títuloPour les droits de l’homme de la troisième génération: les droits de solidarieté. (...) Daí, alastrou-se o modismode dividir os direitos humanos em gerações de direitos. Originalmente, pois, essa divisão em três gerações consooucom o tríplice brado de libertação – liberdade, igualdade, fraternidade – que ressoou na ordem política, lançadopelos revolucionários franceses, sob a nítida inspiração e influência do liberalismo clássico, não-intervencionistana ordem econômica e social.”2 SILVA, José Afonso da Silva. Curso de Direito constitucional positivo. 17ªed. São Paulo: Malheiros, 2000, p.251-256.

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Quanto à liberdade de culto, segunda modalidade de expressão, se denotapertinente análise feita pelo espanhol León Duguit, ao conferir primordial destaque:

(...) toda religión contiene um segundo elemento: el rito o culto. Para que lalibertad religiosa exista, es preciso que cada uno sea libre enteramente depracticar um culto religioso cualquiera, que nadie pueda ser molestado porello, ni impedido, directa o indirectamente, de praticticar el cultocorrespondiente a sus creencias religiosas, y, a la inversa (...) La libertadreligiosa es, pues, mirada así, esencialmente la libertad del culto.3

Ocorre que no Brasil a liberdade de culto já esteve cerceadaconstitucionalmente, através da Constituição de 1824, outorgada em 25 de marçode 1824 pelo Imperador Dom Pedro II, preceituando em seu artigo 5º:

A religião Catholica Apostólica Romana continuará a ser a religião doImpério. Todas as outras religiões são permitidas com seu culto domésticoou particular, em casas para isso destinadas, sem forma exterior de templo.4

Proibia-se, por conseguinte, o culto em locais públicos e de grandesproporções, referente a religiões diferentes da Católica Apostólica Romana. Dessaforma, toda e qualquer religião, que não a do Império, era objeto de discriminaçãopor parte do Estado, no tocante à liberdade de culto. Demonstrava-se, portanto,inconstitucional o culto de tais religiões, quando ultrapassassem os limites dodoméstico, ao se estender em maiores proporções e quando e em ambientespúblicos.

Ressalta-se aqui a importância da institucionalização da liberdade de culto,que se deu a partir do decreto do Estado Laico, adiante relatado. Ocorreu, dessaforma, a positivação de um princípio que tutelou a pluralidade de crenças existentesna nação, de forma a garantir, na Lei Maior, a paridade de tratamento pelo Estado atais religiões. Atualmente, relaciona-se o caráter não-confessional do Estado comos valores supremos de uma sociedade pluralista, que o Preâmbulo constitucionalvigente propõe assegurar.

Constituiu-se fato histórico o privilégio dado pelo Estado à religião CatólicaApostólica Romana. Seus seguidores, maioria absoluta da população ainda hoje,possuíam tratamento estatal exclusivo, ao passo que os adeptos de outras religiõesde baixa representatividade, como os judeus, islâmicos, umbandistas ecandomblistas, ficavam à margem no exercício de seus cultos. Mantinha-sesobrepujada, constitucionalmente, a garantia da igualdade material no contexto daliberdade religiosa.

3 DUGUIT, Leon. Manual de derecho constitucional. Granada: Comares, 2005. p. 232-233.4 SENADO FEDERAL, Secretaria de Edições Técnicas. Constituições do Brasil. Vol.I. Brasília: Senado, 1986,p.18.

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A garantia da liberdade religiosa protege as minorias formadas por aquelesque possuem sua crença e tem o direito de divulgá-la no âmbito de suasliberdades (não invadindo nem prejudicando crença alheia). 5

Como afirmado pelo célebre professor, a questão é garantir a todos aliberdade de divulgar sua crença e respeitar o exercício do mesmo direito pelasoutras crenças. A concretização de tal preceito poderia ser pacífica nos dias dehoje, não fosse o julgamento negativo, repletos de desconhecimento e verdades apriori, que muitos fazem às minorias religiosas, inclusive quanto às religiões dedescendência africana6. Enfatiza-se aqui, que o termo “minorias religiosas” dizrespeito àquelas religiões que se fazem presentes no Brasil em númeroproporcionalmente pequeno de adeptos em relação às religiões de grande adesão.Consoante estudo realizado pelo Instituto de Pesquisas Datafolha, a partir dedados consolidados de oito estudos nacionais realizados em 2006 e em 2007, oscatólicos continuam sendo maioria na população brasileira7.

A terceira modalidade de expressão, por derradeiro, é a liberdade deorganização religiosa. Diz respeito às relações das entidades religiosas com oEstado, suas possibilidades de estabelecimento e organização.

Três sistemas podem ser observados nessa relação, tais quais: a confusão,a união e a separação. Na confusão, há a união do Estado com a religião, como nocaso do Vaticano e Estados islâmicos. Na hipótese de união, verificam-se relaçõesjurídicas entre tais entes quanto à organização e funcionamento religioso, porexemplo, a participação do Estado na designação de ministros da Igreja e suaremuneração. Foi o sistema do Brasil Império8. A separação refere-se ao carátersecular do Estado, ou seja, o apartamento total das relações entre Estado e religião,sendo fundamento para o princípio do Estado laico.

2 REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL, UM ESTADO LAICO TEÍSTAAo enquadrar o tema sob o prisma do direito comparado, analisa-se a

questão laica de Portugal. De acordo com o constitucionalista supracitado, aodiscorrer sobre o programa de laicização implantado na organização da Repúblicade Portugal pela Constituição de 1911, o ideal do Estado laico polariza a políticareligiosa na idéia de deslocação da religião do “espaço público” para o “espaçoprivado” 9.

5 HERKENHOFF, João Baptista. Direitos humanos: a construção universal de uma utopia. Aparecida: Santuário,1997, p.78.6 ALMEIDA, Dayse Coelho de. Demonização das religiões afro-brasileiras. Disponível em < http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6155>. Acessado em 20.08.2007.7 “Esses dados revelam que os católicos são 64%, que os evangélicos pentecostais somam 17%, e os não pentecostais,5%. Espíritas kardecistas ou espiritualistas são 3% e, umbandistas, 1%. Adeptos do candomblé e de outras religiõesafrobrasileiras não chegam a 1% e outras religiões atingem 3%. Dizem não ter religião ou ser ateus 7%”. Cf. DatafolhaInstituto de Pesquisas in 64% dos brasileiros se declaram católicos. Disponível em: <http://datafolha.folha.uol.com.br/po/ver_po.php?session=447> Acessado em 02.09.2007.8 SILVA, José Afonso da Silva, op. cit., p. 253-254.20 CANOTILHO, J.J.. Direito Constitucional. 6ªEd. Coimbra:Almedina, 2002, p.1256.9 Ibidem, p.1247.

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Uma sociedade politicamente democrática, assente no relativismo político,postula também uma sociedade religiosamente liberal, tolerante para comtodos os credos, aceites e praticados pelos cidadãos.10

No Brasil, o inciso I do artigo 19 da Constituição Federal garante o princípiodo Estado laico (também definido como leigo ou não-confessional). Isso significadizer que não há religião oficial no Brasil, nem tampouco deve existir disparidadeno tratamento das religiões pelo órgão estatal.

É vedado ao Estado estabelecer qualquer relação que configure aliançacom algum tipo de culto religioso ou igreja. Dessa forma, a pluralidade das crençasé garantida, ratificando o exposto nos incisos VI e VIII do artigo 5º da Carta Maior.

Todavia, o Brasil nem sempre foi um Estado Laico, em virtude da afirmaçãode um Estado confessional na Constituição de 1824, como já relatado no títuloanterior. Após a proclamação da República e antes mesmo de promulgada aConstituição de 1891, o Ministro da Fazenda Rui Barbosa, elaborou o Decreto 119-A, em 19 de janeiro de 1890. Proclamava de forma uníssona o princípio do EstadoLaico, tal sorte que foi recepcionado pela primeira Constituição da República em1891, evidenciando, a partir de então, a laicidade do Estado nacional.

A análise da realidade nacional hodierna elucida o caráter teísta do Estadolaico, ou seja, o credo estatal na existência de Deus. Tal afirmativa encontra respaldona análise do Preâmbulo constitucional, que evoca a “proteção de Deus” napromulgação da Constituição vigente. Ademais, em todos os preâmbulosconstitucionais a menção a Deus se fez presente, exceto nas constituições de 1891e 1937. Em que pese exista discussão doutrinária acerca do valor normativo dopreâmbulo, possuindo ou não valor de norma constitucional, é fato que nele estãopresentes os ideais que nortearam a elaboração das normas constitucionais.

Em 15 de agosto de 2002, o Supremo Tribunal Federal proferiu acórdãoreferente à Ação Direta de Inconstitucionalidade proposta pelo PSL (Partido SocialLiberal) em face da Assembléia Legislativa do Estado do Acre. Protestava o partidorequerente pela inconstitucionalidade do preâmbulo da Constituição do Estado doAcre, haja vista que não fazia menção a Deus, contrariando a reprodução obrigatóriadas normas centrais da Constituição Federal de 1988, que em seu preâmbulo evoca“a proteção de Deus”. O relator Ministro Carlos Velloso entendeu que:

CONSTITUCIONAL. CONSTITUIÇÃO: PREÂMBULO. NORMASCENTRAIS. CONSTITUIÇÃO DO ACRE.I - Normas centrais da Constituição Federal: essas normas são de reproduçãoobrigatória na Constituição do Estado-membro, mesmo porque,reproduzidas, ou não, incidirão sobre a ordem local. Reclamações 370-MTe 383-SP (RTJ 147/404).

10 Publicada no DJ 08-08-2003 PP-00086, EMENT VOL-02118-01 PP-00218. Disponível em: <www.stf.gov.br/jurisprudencia/nova/doc.asp?s1=000289481&p=1&d=SJUR&f=s&na=> .Acessado em 07.08.2007.

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II. - Preâmbulo da Constituição: não constitui norma central. Invocação daproteção de Deus: não se trata de norma de reprodução obrigatória naConstituição estadual, não tendo força normativa.III. - Ação direta de inconstitucionalidade julgada improcedente. (ADI2076/AC) 11

Portanto, além da improcedência da ADI, por unanimidade de votos, oSTF entende não possuir o preâmbulo valor de norma central (constitucional).Entretanto, o tema gera controvérsias na doutrina constitucional, haja vista váriosautores entenderem ter o preâmbulo valor constitucional12.

Embora exista a discussão, é fato que tal divergência de entendimentosnão contraria o princípio do Estado laico. A Administração pública, em sua totalidade,ao que se parece, assume o caráter teísta diante de seus atos. Um exemplo claro detal atitude se encontra nas notas do papel-moeda Real, que traz a menção a letrasminúsculas: “Deus seja louvado”. Ainda, tratando-se do Poder Judiciário, se tornafreqüente nas aberturas de sessões solenes do Tribunal do Júri, a evocação àproteção de Deus por parte do magistrado.

Demonstrações tais, que não acabam por ferir o princípio constitucionaldo Estado Laico, haja vista não fazerem alusão a nenhuma religião em sua

11 Não se desconhece a discussão doutrinária instaurada em torno da natureza do preâmbulo constitucional, comoresulta evidente do magistério expendido por eminentes autores que analisaram esse particular aspecto do tema emquestão (ALEXANDRE DE MORAES, “Constituição do Brasil Interpretada”, p. 119, 2ª ed., 2003, Atlas; UADILAMMÊGO BULOS, “Constituição Federal Anotada”, p. 66, item n. 4, 5ª ed., 2003, Saraiva; MANOELGONÇALVES FERREIRA FILHO, “Comentários à Constituição Brasileira de 1988”, vol. 1/13, 1990, Saraiva;PINTO FERREIRA, “Comentários à Constituição Brasileira”, vol. 1/3-5, 1989, Saraiva, v.g.). Como se sabe, háaqueles que vislumbram, no preâmbulo das Constituições, valor normativo e força cogente, ao lado dos que apenasreconhecem, no texto preambular, o caráter de simples proclamação, que, embora revestida de significado doutrinárioe impregnada de índole político-ideológica, apresenta-se, no entanto, destituída de normatividade e cogência,configurando, em função dos elementos que compõem o seu conteúdo, mero vetor interpretativo do que se achainscrito no “corpus” da Lei Fundamental. Há que se ter presente, no entanto, considerada a controvérsia emreferência, que o Plenário do Supremo Tribunal Federal, em recente (e unânime) decisão (ADI 2.076/AC, Rel. Min.CARLOS VELLOSO), reconheceu que o preâmbulo da Constituição não tem valor normativo, apresentando-sedesvestido de força cogente. Esta Suprema Corte, no julgamento plenário em questão, acolheu o magistério deJORGE MIRANDA (“Teoria do Estado e da Constituição”, p. 437-438, item n. 216, 2002, Forense), cuja lição, notema, assim versou a matéria concernente ao valor e ao significado dos preâmbulos constitucionais: “(...) o preâmbuloé parte integrante da Constituição, com todas as suas conseqüências. Dela não se distingue nem pela origem, nempelo sentido, nem pelo instrumento em que se contém. Distingue-se (ou pode distinguir-se) apenas pela sua eficáciaou pelo papel que desempenha. Os preâmbulos não podem assimilar-se às declarações de direitos.(...). O preâmbulonão é um conjunto de preceitos. (...). O preâmbulo não pode ser invocado enquanto tal, isoladamente; nem criadireitos ou deveres (...); não há inconstitucionalidade por violação do preâmbulo como texto ‘a se’; só háinconstitucionalidade por violação dos princípios consignados na Constituição.” (grifei) Sob tal aspecto, verifica-se que a alegada ofensa ao preâmbulo da Constituição não tem o condão de conferir substância à pretensãomandamental ora deduzida pelos impetrantes, eis que, como já assinalado, o conteúdo do preâmbulo não impõequalquer limitação de ordem material ao poder reformador outorgado ao Congresso Nacional. in MS 24645 MC /DF - DISTRITO FEDERAL, Rel.: Min. Celso de Mello. Disponível em <http://www.tc.df.gov.br/MpjTcdf/informativos.php?TIPO=STF&PAGINA=/www/html/mptcdf/jurislegis/stf/info320STF.TXT> Acessado em15.08.2007.12 NASCIMENTO, Keila Terezinha Englhardt do. Deus, o Estado e os cultos religiosos. Revista Autor. Ano V n°46/Abril de 2005 (ISSN 1677-3500). Disponível em <http://www.revistaautor.com.br/artigos/2005/46ktn.htm>Acesso em 28 de janeiro de 2007.

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particularidade e não contrariam o disposto na Constituição. Não há nenhumacontradição entre estes dois paradigmas. De um lado, quando a Constituição afirmaDeus, aceita a premissa de sua existência, não postulando por nenhuma referênciaa qualquer religião, princípio ou dogma particular. 13 O termo Deus se apresentadeveras genérico e vago, deixando de causar impacto significativo no universoreligioso, como o fariam os usos de Maomé, Buda, Jesus Cristo, Exu, dentre outros.

E como ficaria a proteção ao ateísmo e agnosticismo? Primeiramente setem que o ateísmo, é em geral a negação da causalidade de Deus. Já o agnosticismoindica a atitude de quem se recusa a admitir soluções para os problemas que nãopodem ser tratados com os métodos da ciência positiva, sobretudo os problemasmetafísicos e religiosos. 14 Ambos, porém, possuem sua convicção no âmbito desuas particularidades e não são atingidos pela exteriorização teísta do Estado,devido ao mesmo argumento do parágrafo anterior, ou seja, mínima alusão à práticareligiosa específica.

Contudo, a maior causa de divergências quanto da afronta ao princípio dalaicidade do Estado continua sendo o uso de crucifixos em prédios públicos, comotribunais, fóruns, prefeituras e faculdades. O movimento para adoção de umradicalismo laico foi inflamado em 03/10/2005, com a publicação do artigo “O PoderJudiciário é laico”, na Folha de São Paulo15. Baseia sua tese no inciso I do artigo 19da Constituição Federal, a ser:

É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relaçõesde dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração deinteresse público.

Em contrapartida, o artigo 215 da CF, prevê que o Estado apoiará eincentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais. Ora, é fato de queo cristianismo, especificamente o catolicismo apostólico romano, faz parte de nossa

13 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia; 1ºed. trad. São Paulo: Martins Fontes, 2000, pp.22 e 87/88.Outras especificações: “AGNOSTICISMO: (...) termo criado pelo naturalista inglês Thomas Huxley em 1869.(Collected Essays, V, pp.237 ss.) ATEÍSMO: (...) O reconhecimento da existência de Deus pode ser acompanhadopelo ateísmo se não incluir também o reconhecimento da causalidade específica de Deus”.14 LOREA, Roberto Arriada. O poder judiciário é laico.in Tendências/Debates. Folha de São Paulo em 03.10.2005.Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz2409200509.htm> Acessado em 05.07.2007.15 “MANDADO DE SEGURANÇA - Autoridade coatora - Presidente da Assembléia Legislativa do Estado -Retirada de crucifixo da sala da Presidência da Assembléia, sem aquiescência dos deputados - Alegação de violaçãoao disposto no artigo 5º, inciso VI da Constituição da República -Inadmissibilidade - Hipótese em que a atitudedo Presidente da Assembléia é inócua para violentara garantia constitucional, eis que a aludida sala não é localde culto religioso - Carência decretada. Na hipótese, não ficou demonstrado que a presença ou não de crucifixo naparede seja condição para o exercício de mandato dos deputados ou restrição de qualquer prerrogativa. Ademais,a colocação de enfeite, quadro e outros objetos nas paredes é atribuição da Mesa da Assembléia (Artigo 14, incisoII, Regulamento Interno), ou seja, de âmbito estritamente administrativo, não ensejando violência a garantiaconstitucional do artigo 5º, inciso VI da Constituição da República.” (Relator: Rebouças de Carvalho – MS. nº.13.405-0 - São Paulo - 02.10.91) Disponível em http://www.tj.sp.gov.br> Acessado em 18 de dezembro de 2006.

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cultura, por motivos de colonização, povoamento e difusão de costumes. Não sequer aqui justificar, tampouco legitimar o uso dos crucifixos nos diversos prédiospúblicos, no entanto, por uma questão de probabilidade quanto ao grande númerode praticantes e de costumes enraizados e herdados de um passado confessionalna esfera pública, tal prática se demonstra deveras utilizada.

Entretanto, deve haver uma proporcionalidade no uso de crucifixos emprédios públicos de maneira a não haver exageros. O problema encontra-se a partirdo momento em que o uso de tais símbolos deixa de configurar incentivo à difusãoda manifestação cultural e passa a se tornar aliança entre Estado e religião. A partirdesse momento, deve sim, haver a defesa de um Estado Laico, que não possuaqualquer tipo de vínculo religioso, que configure aliança, subvenção ou embaraçoestatal, nos termos do artigo supramencionado.

Caso pertinente à matéria é o acórdão relacionado ao Mandado deSegurança impetrado por deputados da Assembléia Legislativa do Estado de SãoPaulo contra o presidente da Casa, pela retirada de crucifixo do plenário. Alegavamviolação à liberdade de culto. O Tribunal de Justiça de São Paulo decretou a carênciado remédio constitucional16.

3 A (IN) CONSTITUCIONALIDADE DOS DECRETOS DE FERIADOSRELIGIOSOS

Uma grande discussão de inconstitucionalidade se refere aos decretos deferiados federais, estaduais e municipais em virtude de comemoração religiosa.

Tal matéria encontra respaldo negativo no próprio princípio do EstadoLaico, anteriormente elucidado, uma vez que o decreto de feriados religiosos podeconfigurar a hipótese de aliança entre o Estado e a religião da qual provém.

Atualmente, vigoram leis que decretam feriados federais, estaduais emunicipais de caráter religioso. Exemplos como a Sexta-feira da Paixão de JesusCristo e o dia de “Nossa Senhora Aparecida”, configuram feriados federais.

Dispõe a Lei 6802/80:

Art. 1º - É declarado Feriado Nacional o dia 12 de outubro, para cultopúblico e oficial a Nossa Senhora Aparecida, Padroeira do Brasil. (...)

Ainda, a Lei 9093/95:

Art.2º - São feriados religiosos os dias de guarda, declarados em leimunicipal, de acordo com a tradição local e em número não superior aquatro, neste incluída a Sexta-Feira da Paixão.

16 SORIANO, Aldir Guedes. Libertada religiosa no Direito Constitucional e Internacional. São Paulo: Juarezde Oliveira, 2002, p.132.

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Os feriados de caráter religiosos, na maioria das vezes, fazem menção àIgreja Católica Apostólica Romana, em detrimento de inúmeras comemoraçõesexistentes das outras diversas religiões presentes no território nacional.

A explicação para tal problemática reside na existência de resquíciosdeixados pela Constituição de 1824, que previa a união entre Estado e Igreja Católica,perdurando durante todo o Império, como demonstrado anteriormente.

Por força do §2º do artigo 215, lei disporá sobre a fixação de datascomemorativas de alta significação para os diferentes segmentos étnicos nacionais.Ao analisar a maioria dos feriados de caráter religioso existentes, nota-se que sãocompostos por comemorações católicas. Deve se levar em conta, como já dito, queo costume dos feriados católicos vem sendo afirmado desde a colonização, pormotivos de difusão das manifestações culturais. Ainda, tal matéria acaba não sendodeveras combatida em prol de um laicismo radical, pois acabar com os feriadosreligiosos acaba não sendo interessante para a maioria da população, quanto maisaos seus representantes políticos.

Tal divergência ainda não é tratada na doutrina constitucional e se impõecomo nova discussão acerca desta aparente problemática. É certo que seriaimpossível decretar feriados a todas as datas comemorativas das inúmeras religiõesexistentes no Brasil, e essa não seria a garantia da liberdade religiosa quanto aosferiados religiosos, uma vez que celebrar tais datas como feriados nacionais nãoviolam a liberdade religiosa dos adeptos das demais religiões.

Em suma, a existência de tais feriados denota um resquício deconfessionismo por parte do Estado, que ainda sobrevive em meio ao princípiolaico, institucionalizado há mais de um século. Em que pese promova elementos dacultura nacional, eles são relativos somente a um segmento étnico. Entretanto,apura-se que tal resquício não representa óbice considerável na luta pela efetividadedo direito à liberdade religiosa e na garantia, ainda que relativa, do Estado Laiconacional. A questão aqui é garantir, aos demais segmentos étnicos-religiosos,condições em usufruir das prerrogativas constitucionais relativas ao pleno exercíciode suas liberdades, tendo em vista a efetivação dos valores de uma sociedadeplural.

4 DO DIREITO AO DIA DE GUARDACada religião possui, segundo seus princípios, o dia de guarda ou repouso.

Embora não expresso constitucionalmente, tal matéria está implícita na inviolabilidadedo direito de crença (art.5º, inciso VI).

O direito à liberdade religiosa deve garantir o direito de escolha de um diade repouso sem qualquer interferência estatal, o que caracteriza umaprerrogativa de foro íntimo. Convém lembrar que o Estado não podeinterferir em questões religiosas. Ora, o dia de guarda ou o repouso semanaldiz respeito a uma questão fundamentalmente religiosa e de foro íntimo.Assim sendo, a lei civil, em um Estado laico, como o Brasil, não pode

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favorecer a uma religião, em detrimento de outras, em que pese o dia deguarda, determinando a observância compulsória de um dia específico. 17

Vários mandados de segurança foram impetrados para assegurar que osfiéis da Igreja Adventista do Sétimo Dia pudessem garantir o direito a não realizaratividade nas sextas-feiras (após o pôr-do-sol) e aos sábados (até o pôr-do-sol).Dentre estas, as mais comuns são as aulas ministradas em faculdades, osvestibulares e os concursos públicos. Tendo em vista assegurar a igualdade materiale o direito à liberdade religiosa, os adeptos de tal religião impetram o presente writconstitucional.

A jurisprudência hodierna é assente em afirmar o direito a guardar o sábadoem tais casos. Nesse sentido, trecho de Ementa que nega provimento ao recursointerposto contra sentença que concedeu dia diverso para realização de prova deconcurso, evocando-se a liberdade religiosa:

(...) Não há prejuízo ao interesse público, nem ao procedimento do concursose por força de liminar a impetrante realizou a prova do concurso emmomento não conflitante com sua crença religiosa, por pertencer à IgrejaAdventista do Sétimo Dia, que tem o sábado como dia de guarda. 17

Atenta-se para a aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais, previstano §1º do artigo 5º da Constituição federal. Fato este que vem contribuir para agarantia o pleno exercício do direito à liberdade de crença, acima exemplificado.

A hipótese evidenciada configura colisão de direitos fundamentais, entreo princípio do livre acesso e o direito fundamental à inviolabilidade da liberdade decrença. O item subseqüente tratará a respeito dessas colisões.

5 DA APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE NA COLISÃODE DIREITOS FUNDAMENTAIS ENVOLVENDO A LIBERDADE RELIGIOSA

Questão instigante no Direito Constitucional se revela quanto às situaçõesque envolvam colisões de direitos fundamentais. Hipóteses de dois direitosfundamentais em conflito, onde um deverá prevalecer em detrimento do outro, totalou parcialmente. São os chamados casos difíceis, termo originário de RonaldDworkin, utilizado em seu livro “Os direitos levados a sério”.18.

Pertinente ao tema, o direito à liberdade religiosa pode ser encontrado emconflito com os direitos à igualdade, vida, privacidade, livre acesso, entre outros.

Conforme exposto alhures, a questão que envolve os candidatos aconcurso público que guardam o dia de sábado, é o típico exemplo de conflito entreliberdade religiosa e livre acesso.

17 TRF-4º. Região, REO 95.04.09256-0, Quarta Turma, Relator Silvia Maria Gonçalves Goraieb, DJ 24/01/1996.Disponível em <http://www.trf4.gov.br/trf4/jurisjud/resultado_pesquisa.php>. Acesso em: 12.07.2007.18 DWORKIN, Ronald. Os direitos levados a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p.127-130.

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Em relação ao conflito com o direito à vida, suscita-se o caso da transfusãode sangue nos adeptos da religião “Testemunhas de Jeová”, que devido a preceitosreligiosos que seguem, não admitem a transfusão sangüínea. Sem dúvida alguma,é a colisão que mais gera polêmica no universo jurídico, devido a inúmerascontrovérsias geradas entre doutrinadores do Direito.

Quanto à privacidade, temos o célebre exemplo dado por Luís RobertoBarroso, que consiste em um cidadão que resolve pregar sua religião aos domingosa partir das sete horas da manhã em uma praça na orla da praia. Munido de alto-falante, a pregação se estende por toda a manhã. Exercia, portanto, seu direito àliberdade religiosa. Ocorre que, devido ao horário, muitos moradores dos prédiospróximos à orla encontravam-se em repouso e eram incomodados pelo barulho quevinha dos alto-falantes. Estavam estes, sendo invadidos em sua privacidade,gerando uma colisão de direitos fundamentais. Desse modo, havia o conflito entreo direito à liberdade de culto do pregador e o direito à privacidade dos condôminosdo local. Por se tratar de assunto que não poderá ser solucionado através da normapositivada, haja vista a especificidade do conflito, apela-se a uma modalidade deinterpretação constitucional, através do uso dos princípios da proporcionalidade erazoabilidade.

Faz-se mister salientar que tais princípios não devem ser aplicados inabstrato, mas sempre in concreto, devido à relativização das particularidades decada questão. Destarte, duas questões idênticas envolvendo os mesmos direitosfundamentais em conflito, poderão ser decididas diferentemente, pela relatividadedas características de ambos os casos. 19

CONSIDERAÇÕES FINAISNa seara do direito fundamental, a liberdade religiosa se transfigura em

casos concretos que muitas vezes promovem a efetividade deste direito. Ajurisprudência atual aponta para a efetivação da garantia desse direito, fato quebeneficia a coletividade, principalmente os adeptos das minorias religiosas, quepossuirão precedentes para pleitear seu direito assim que cerceado. Fator quecontribui demasiadamente nesse sentido é a aplicabilidade imediata dos direitosfundamentais, que configura a garantia da celeridade nas decisões que os envolvem,de forma a efetivar o princípio da dignidade da pessoa humana.

Por sua vez, o princípio do Estado laico, com seu caráter teísta, deve serinterpretado conjuntamente com o apoio e incentivo à valorização e difusão dasmanifestações culturais, previstos constitucionalmente. Admitidas taisprerrogativas, adota-se uma postura consciente da formação histórica e cultural danação. Urge, dessa forma, a concretização da isonomia perante o pluralismo cultural,étnico e religioso, fato que, em longo prazo, poderá se concretizar plenamente, sealiado com o trabalho de conscientização dos próprios cidadãos, os grandes

19 Luís Roberto Barroso. Interpretação e ampliação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucionaltransformadora. São Paulo, Saraiva: 1996, p.197

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transformadores da realidade.Prosseguindo, no que tange aos casos de conflito de direitos fundamentais,

tem-se que o direito à liberdade religiosa, tamanha sua amplitude axiológica, éencontrado em diversas hipóteses de colisão com outros direitos. O uso daponderação, por parte do julgador, como critério de resolução de tais conflitos émedida eficaz que garante a tutela ao caso concreto. Na resistida hipótese detratamento desigual por parte do Estado às diferentes crenças e religiões, o uso detal ponderação poderá vir em benefício para solucionar tal questão.

Nessa linha de raciocínio, por conseguinte, a crise entre a liberdade decrença torna efetiva a liberdade religiosa ao implementarem-se mudançasconstrutivas, perante o pluralismo cultural, étnico e religioso, em prol da coletividade.Ao invés de unirem esforços para mudanças tão somente tangenciais, que em nadainfluirão para efetivar a inviolabilidade do direito à liberdade religiosa, melhor seráque se unam para garantir a materialização do princípio da igualdade diante docontexto pluralista e deste modo concretizar o real sentido do que é ser EstadoDemocrático de Direito.

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A GLOBALIZAÇÃO ECONÔMICA: PERSPECTIVASCONSTITUCIONAIS CONTEMPORÂNEAS

Paulo Mazzante de PAULA*

SUMÁRIO: Introdução – 1. A globalização da economia– 2. O princípio da proteçãotutelar no Direito do Trabalho – 3. Os direitos humanos e econômicos – Conclusão– Referências.

RESUMO: A Constituição Federal completa vinte anos no mês de outubro docorrente ano. O presente estudo tem por finalidade analisar os direitos fundamentaisà luz da globalização econômica contemporânea e analisar a concorrência deslealque existe entre os países, com intuito de obtenção do lucro de forma exacerbada,bem como o confronto entre os princípios econômicos e humanos. Dentre osmaiores exemplos do tema estão a Comunidade Econômica Européia e o Mercosul.A própria sociedade pós-industrial é definida pela maior produção com pouca mão-de-obra, através da informatização e da automação. O Estado Democrático de Direitotem como fundamento preservar a dignidade da pessoa humana, direitosfundamentais e os valores sociais. Portanto, há necessidade de proteção à saúdedo trabalhador, do combate ao trabalho degradante, a liberdade e do respeito aosdireitos conquistados, independente da livre concorrência e da abertura da economia.

ABSTRACT: Federal Constitution will complete twenty years in October of thecurrent year. The present study has for purpose to analyze the basic rights at thelight of the economic globalization and to analyze the unfair competition that thereis between the countries, with intention of attainment of high profits as well as theconfrontation between economic and human principles. Amongst the biggestexamples of the subject are European Economic Community and Mercosul. Theproper postindustrial society is defined by the biggest production with little manpower, through computerization and automation. The Democratic State of Righthas as basis to preserve dignity of the human being, basic rights and social values.Therefore, there is necessity of protection to workers’s health, the combat todegrading work, freedom and respect to the conquered rights, independent of thefree competition and openess of economy.

PALAVRAS-CHAVE: Globalização; Direitos Humanos; Direitos Econômicos;Direitos Fundamentais; Direitos Sociais.

* Advogado. Mestrando pela Faculdade Estadual de Direito do Norte Pioneiro (UENP – Jacarezinho/PR).Especialista em Direito Processual Civil. Professor de Direito do Trabalho das Faculdades Integradas de Ourinhos.E-mail: [email protected]. Artigo submetido em 05/06/2008. Artigo aprovado em 10/07/2008.

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KEY-WORDS: Globalization; Human rights; Economic laws; Basic rights; Socialrights.

INTRODUÇÃOA globalização da economia é irreversível no período contemporâneo,

proporcionando concorrência entre os países, diante da circulação de bens,mercadorias e mão-de-obra, sempre na busca do lucro de forma exacerbada. Dentreos maiores exemplos encontramos a Comunidade Econômica Européia, criada atravésdo Tratado de Maastrich (1992) e o Mercosul, instituído através do Tratado deAssunção (1991).

Aliás, a sociedade pós-industrial é definida pela maior produção com poucamão-de-obra, trazendo modificações nas relações de trabalho do mundo, sendo ainformatização e a automação os maiores exemplos.

A idéia de globalização está associada ao capitalismo e interfere diretamentenas relações mundiais de trabalho. A abertura de mercado, possibilitando aeliminação de fronteiras e, portanto, exportação e importação, não é causadeterminante para justificar o desrespeito ao direito do trabalhador, porém contribuipara o seu acontecimento enquanto geradora de maior lucro, aumento de produçãoe concorrência de mercado.

O artigo XXIII da Declaração Universal dos Direitos Humanos, do ano de1948, já determinava que “todo homem tem direito ao trabalho, à livre escolha deemprego, a condições justas e favoráveis de trabalho”, com intuito de proteger adignidade do trabalhador e a sua família.

O Estado Democrático de Direito tem como fundamento preservar adignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho. No âmbitointernacional, o país também tem por princípio a prevalência dos direitos humanos,inclusive os tratados e convenções internacionais atualmente têm força de emendaconstitucional, nos termos do artigo 5º, §3º, da Constituição Federal, conformeparágrafo acrescentado pela Emenda Constitucional n.º 45/04.

O presente estudo tem por finalidade, portanto, analisar o fenômeno daglobalização e o dever de respeito e obediência aos direitos humanos do trabalhador.A eterna guerra entre o capital e o trabalho, agora é vista sob o enfoque daprevalência do princípio da dignidade humana do cidadão.

A produção e obtenção de lucro é mais importante do que a dignidade dapessoa humana do trabalhador? A globalização da economia deverá respeitar osdireitos humanos do trabalhador?

É evidente que deverá prevalecer o direito subjetivo à vida, à liberdade e àsaúde do trabalhador, além do que é dever do Estado.

Ademais, o trabalho e a educação são direitos sociais do cidadão,chamados direitos de segunda geração, imprescindíveis para a concretização dosdireitos individuais e coletivos.

O trabalhador tem direito ao emprego formal e qualificado, evitando-se

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desta forma o subemprego e a informalidade, sendo que, a educação é fundamentalpara o cidadão, visto que proporciona qualificação da mão-de-obra, exigênciafundamental para o período contemporâneo.

O mercado não poderá impor a redução salarial, na busca pela mão-de-obra competitiva e barata; os serviços exaustivos realizados em atividadesinsalubres e de periculosidades ou, então, os trabalhos por produção, causandolesões pelo esforço repetitivo ou até mesmo a morte do empregado. Portanto, hánecessidade de proteção à saúde do trabalhador (com combate ao trabalhodegradante), à liberdade e necessidade, também, de respeito aos direitos trabalhistastardiamente conquistados.

A questão pode ser exemplificada pela lavoura, onde a plantação necessitade veneno, que fica na responsabilidade do bóia-fria, geralmente despreparado,desqualificado, sem equipamento de segurança, enfim cobaia da situação,ocasionando no futuro doença profissional e até mesmo câncer, além do prejuízoambiental.

Não basta a previsão constitucional, visto que é necessária a efetivaçãodos direitos individuais e coletivos, que é dever do Estado, independe da livreconcorrência e da abertura da economia.

1. A GLOBALIZAÇÃO DA ECONOMIAA globalização não é um fenômeno novo, visto que “mesmo antes da

Primeira Guerra Mundial havia comércio internacional e investimentos privados emoutros países”1.

A definição do vocábulo globalização2 é a seguinte:

Significa muitas coisas distintas para pessoas diferentes, desde o ato deinteragirmos, diariamente, com todo o planeta por intermédio dos noticiáriosde televisão, até a proteção do meio ambiente e a preservação dos nichosecológicos, assuntos que não são passíveis de tratamento isolado, exigindouma visão sistêmica dos governantes e da sociedade civil. Isto sem falarda extração e a manipulação dos recursos naturais não-renováveis e douso da energia nuclear.

Na seqüência, explica o mencionado autor Jorge Luiz Souto Maior que àbase da globalização econômica está o capitalismo. Segundo Oswaldo GiacoiaJúnior3 o neoliberalismo tem por característica principal a “substituição da teoriado valor-trabalho” de Adam Smith, “pela teoria do valor-utilidade, segundo a qualo mercado deve ser o mecanismo organizador de toda vida econômica e social”.Esclarece, ainda, que a doutrina recrudesce “a partir da década de 1980, radicalizando

1 NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Direito do Trabalho. 22.ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 46.2 MAIOR, Jorge Luiz Souto; HELOANI, José Roberto Montes e SILVA, Walküre Lopes Ribeiro da. O Direito doTrabalho como Instrumento de justiça social. São Paulo: LTr, 2000. p.127.3 GIACOIA JUNIOR, Oswaldo. Pequeno Dicionário de Filosofia Contemporânea. São Paulo: Publifolha, 2006. p. 113.

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os mesmos princípios de cem anos atrás, não mais o contexto histórico docapitalismo industrial de então, mas sim no do capitalismo financeiro de hoje”.

A globalização influenciou o emprego, o salário e a contratação da mão-de-obra através dos seguintes aspectos principais: a) redução do emprego; b)tecnologia industrial moderna; c) terceirização; d) informalidade; e) trabalhoautônomo; d) necessidade de requalificação profissional; e) redução dos gastos;f) prazo determinado; g) banco de horas.

O trabalhador necessita de educação visando ao pleno desenvolvimentoe qualificação para o trabalho, nos termos do artigo 205 da Constituição Federal.

A desqualificação profissional é tratada por José Eustáquio Romão,responsável pelo prefácio à edição brasileira do livro “os lugares da exclusãosocial”4, esclarecendo o seguinte:

Curiosamente, à medida que o processo de acumulação capitalista seglobalizou, transformaram-se profundamente os processos de denúncia ede reivindicação, na medida em que, se antes lutavam contra a exploraçãodo trabalho pelo capital, agora, os movimentos dos trabalhadores sãoobrigados a lutar pela oportunidade de serem explorados pelo capital.

O princípio da razoabilidade deverá prevalecer, independente daglobalização da economia, motivo pelo qual em primeiro lugar estão os direitoshumanos. A preocupação com a pessoa do trabalhador é fundamental para aconcretização da democracia.

2. O PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO TUTELAR NO DIREITO DO TRABALHONo direito do trabalho prevalece o princípio da proteção tutelar, com intuito

de proteger o trabalhador hipossuficiente. Portanto, diante da desigualdade daspartes contratantes, na dúvida, a decisão deve favorecer o operário. A norma maisfavorável e a condição mais benéfica também são aplicadas em favor do empregado.

A questão retrata bem a figura de Lázaro, “símbolo de todas as pessoasinjustiçadas e excluídas da participação dos bens. Deus toma partido dessas pessoase condena aqueles que não partilham com elas”5.

A preocupação da igreja com a questão social, que tratava do embateentre o capital e o trabalho, na busca pelo reconhecimento da dignidade dotrabalhador, fez com que o Papa Leão XIII escrevesse a Encíclica Rerum Novarum(1981), “que constitui num marco da Doutrina Social Cristã, verdadeira Carta Magnado trabalhador”6.

4 STOER, Stephen R.; MAGALHÃES, António M. e RODRIGUES, David. Os lugares da exclusão social. SãoPaulo: Cortez, 2004. p. 9.5 Evangelho segundo Lucas 16, 9-31. Semanário Litúrgico, n. 45, 30 set. 2007.6 MARTINS FILHO, Ives Gandra da Silva. Manual esquemático de Direito e Processo do Trabalho. São Paulo:Saraiva, 2004. p. 7.

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A transformação do trabalho manual e artesanal cedeu lugar à fábrica e,mais tarde, à linha de produção, motivo pelo qual o trabalho assalariado nasce coma revolução industrial, no século XVIII, sendo que a primeira constituição quetratou do direito do trabalho foi a do México, no ano de 1917.

A constituição da Alemanha, de Weimar (1919), no ano de 1919, éconsiderada a base das democracias sociais.

No mesmo ano foi criada a Organização Internacional do Trabalho, atravésdo Tratado de Versailles, no qual podem filiar-se todos os países-membro daOrganização das Nações Unidas.

A OIT busca a justiça social entre os povos, condição primordial para amanutenção da paz mundial.

As principais convenções e recomendações da Organização Internacionaldo Trabalho, no âmbito da proteção e a preservação da saúde do trabalhador sãoas seguintes: a) Recomendação nº 20, de 1923: princípios gerais de organizaçãodos serviços de inspeção para garantir a aplicação das leis e regulamentos deproteção aos trabalhadores; b) Recomendação nº 31, de 1929: prevenção dosacidentes do trabalho; c) Convenção nº 115, de 1960, e Recomendação nº 114:proteção contra radiações; d) Convenção nº 120 e Recomendação nº 120, ambas1964: conservação, limpeza, ventilação, iluminação, temperatura, produtos insalubresou tóxicos, poluição sonora, vibrações, etc. em estabelecimentos públicos eprivados; e) Convenção nº 139 e Recomendação nº 147, de 1974: prevenção econtrole dos riscos profissionais causados por substâncias ou agentescancerígenos; f) Convenção nº 167, de 1988: segurança e saúde na construção; g)Convenção nº 176, de 1995: segurança e saúde nas minas.

No Brasil a primeira constituição que adotou normas de direito do trabalhofoi a de 1934, época em que a justiça do trabalho de natureza administrativa. Odireito do trabalho passou a integrar o âmbito do poder judiciário através daconstituição de 1946.

Os direitos e deveres individuais e coletivos estão elencados no artigo 5º,enquanto que os direitos sociais nos artigos 6º e seguintes da Constituição Federal.

Segundo o autor Lenio Luiz Streck7 é difícil adotar a tese processual-procedimental em países como o Brasil, onde os direitos fundamentais-sociaisainda são descumpridos, apesar da Constituição Federal ter sido promulgada há 18anos.

Exemplifica o referido autor: o texto constitucional afirma que constituemobjetivos fundamentais do país a erradicação da pobreza e a diminuição dadesigualdade social, embora existam trinta milhões de pessoas vivendo na misériano Brasil.

Destaca-se que a teoria procedimentalista defende que é inadmissível umajurisdição constitucional interventiva, enquanto que a teoria substancialista quer

7 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p.15.

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uma atuação mais efetiva da justiça constitucional, principalmente diante da faltade efetividade dos direitos fundamentais-sociais e da omissão dos podereslegislativo e executivo na realização de políticas públicas.

3. OS DIREITOS HUMANOS E ECONÔMICOSA proteção jurídica da liberdade e da segurança do trabalhador é

fundamental para a concretização do Estado Democrático de Direito, principalmentediante dos excessos do capital privado.

A saúde e à vida são merecedoras de proteção especial do Estado, direitosde primeira geração e bens sociais de interesse público.

O Estado para a efetivação do direito humano deverá fiscalizar ocumprimento e coibir os abusos, principalmente através do Ministério Público doTrabalho, Delegacia Regional do Trabalho, Sindicatos, Polícia Federal etc.

Segundo pesquisa da Unesp, desenvolvida por Maria Aparecida deMoraes Silva8, informa “que a busca por maior produtividade obriga os cortadoresde cana colher até 15 toneladas por dia. Esse esforço físico encurta o ciclo detrabalho na atividade”. Pela reportagem, ainda, “ao menos 19 mortes já ocorreramnos canaviais de São Paulo desde meados de 2004, supostamente por excesso detrabalho”.

No Estado do Paraná,de acordo com a reportagem da Folha de Londrina9,existem cerca de “70 mil cortadores de cana-de-açúcar; destes, pelo menos 12 milatuam de forma informal, sem nenhuma garantia trabalhista”. A matéria retrata umamorte de trabalhador, ocorrida em Jacarezinho, quando trabalhava na queima de umcanavial.

O articulista Marcus Orine Gonçalves Correia10 esclarece o seguinte:

Trabalhador e trabalho passaram a ser considerados de forma destacada,como se fossem universos distintos. E mais: o homem é o ser e o trabalhoa mercadoria que aquele coloca à venda. Este fenômeno, que culmina coma mercantilização do trabalho é extremamente nefasto à concretização do‘homo humano.

E conclui:

Dentro deste contexto, há um divórcio entre a proteção do homem e a dotrabalho, inclusive na esfera jurídica. A proteção do trabalho, neste

8 ZAFALON, Mauro. Cortadores de cana têm vida útil de escravo em SP. Folha de São Paulo, São Paulo, 29 abr.2007, p. B1.9 BORGES, Fernanda. Cortadores de cana denunciam exploração Folha de Londrina, edição de 26.09.2007, CadernoCidades. p. 12.10 CORREIA, Marcus Orione Gonçalves. Fundamentos humanísticos do Direito do Trabalho: A liberdade dotrabalhador como cerne dos direitos fundamentais trabalhistas. Revista do Advogado AASP. São Paulo, n. 86,junho de 2006, p. 55/56.

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contexto, não significará, necessariamente, a proteção ‘espiritual-anímico-corporal´ do homem. Assim, como mercadoria, v.g., remunera-se a hora detrabalho realizada e condições insalubres, mesmo que a perpetuação dainsalubridade seja conspiratória contra a dignidade humana. Esta visãodo trabalho, com realidade totalmente externa ao homem, atenta contra osideais humanistas, devendo ser reparada. Reduz a dimensão humana, jáque há diminuição da proteção, pelo Direito do Trabalho, do homem, namesma proporção em que este ramo do Direito passa a ser tido comoinstrumento de proteção da Economia.

O artigo 170 da Constituição Federal, que trata dos princípios gerais daatividade econômica, adverte que “a ordem econômica, fundada na valorização dotrabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existênciadigna, conforme os ditames da justiça social...”.

O texto constitucional valorizou a ordem econômica e o sistema docapitalismo, entretanto ressaltou a prioridade do trabalho e a dignidade humana.Aliás, renovou o princípio fundamental contido no artigo 1º, inciso III, da lei maior,inclusive na economia de mercado.

Segundo Uadi Lammêgo Bulos11 “o capitalismo gera individualismo,competição e má distribuição de renda”. O autor define, ainda, a justiça social como“cada um poder dispor dos meios materiais para viver com certo conforto, gozandode segurança física, espiritual, econômica e política”.

A Constituição Federal adotou o sistema híbrido, onde o princípio daordem econômica, oriundo do capitalismo, sobrevive com o princípio da valorizaçãodo trabalho, resultante da democracia social.

A realidade, entretanto, é outra completamente divergente do textoconstitucional. A lei não saiu da retórica e do papel, pois enquanto a atividadefinanceira cresce e obtém lucros gratificantes, grande parte da população passafome, vive na informalidade e subemprego. Os bancos exemplificam o primeirocaso, enquanto o catador de papel pode ilustrar o segundo tópico.

Seria utopia pensar em uma sociedade mais justa, equilibrada e cumpridoradas normas constitucionais. A paz de espírito, proclamada pelo conceito da justiçasocial, certamente não existe para o chefe de família desempregado, informal ouaquele que exerce a atividade degradante. Aliás, incomoda a consciência de todos,principalmente daqueles que tem discernimento e lutam pela mínima igualdadesocial.

Repete-se, tomando-se por base a globalização e ocorrendo confrontoentre os dois princípios, ou seja, interesses econômicos e humanos, qual delesdeverá prevalecer? Ora, parece óbvio que nesta hipótese deve-se recorrer aoscritérios da proporcionalidade e razoabilidade, motivo pelo qual a prioridade é adignidade da pessoa humana.

11 BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal anotada. 7.ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p.1258.

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O autor Marcus Orine Gonçalves Correia12, anteriormente citado, respondecom exatidão a questão formulada nos seguintes termos:

Diríamos que estamos, sob a ótica das relações de emprego, vivendomomento crucial para o Humanismo. Das duas uma: ou nos comprometemosdefinitivamente com os ideais humanistas (dando um novo passo nodestino dos homens) ou nos afastamos destes ideais, criando condiçõesextramamente nefastas e nebulosas para a existência humana. Preferimosacreditar – a despeito de alguns fatos infirmarem- que o homem optarápela humanidade.

A melhoria dos serviços de educação, previdência, saúde, trabalho,segurança, lazer etc. somente proporcionam bem-estar ao cidadão, vantagem aotrabalhador e contribuição para a dignidade de vida.

Sobre o assunto encontramos o artigo “reserva do possível, mínimoexistencial e direitos humanos”, onde o articulista Fernando Facury Scaff13 esclarececom exatidão a questão da desigualdade, no sentido que “quanto mais desigualeconomicamente for a sociedade, maior a necessidade de assegurar os direitosfundamentais sociais àqueles que não conseguem exercer suas capacidades (ouliberdades reais)”, com intuito de garantir inclusive a liberdade jurídica.

O direito constitucional e, principalmente, o direito do trabalho deverãobuscar e efetivação os direitos fundamentais sociais dos trabalhadores,resguardando assim a própria liberdade do cidadão.

Explica Regina A. Duarte14 que a globalização da economia reflete naglobalização dos processos de produção, fatores produtivos e financeiros, “alémda estreita relação do fenômeno com as novas estruturas ou com a modificação deestruturas de espaços econômicos nacionais” Na questão ética, esclarece, que “éinarredável a idéia e que a economia deve garantir melhoria de condições para o serhumano preservando a sua dignidade”.

Esclarece, ainda, que a educação e a profissionalização da mão-de-obrasão exigências do mundo do trabalho contemporâneo, motivo pelo qual o Estadodeverá intervir na ordem econômica para a efetivação dos direitos previstosconstitucionalmente, a fim de qualificar a mão-de-obra, proteger à saúde dotrabalhador e melhor à educação, com a ajuda do empresariado e dos sindicatos.

No tocante à legislação menciona que “não é possível a mesma lei protegero operário e o alto funcionário”. Aliás, convém complementar, não é possível que amesma lei sirva para o Mc Donald´s e também para o lanchão de cachorro quenteda esquina.

12 Ibid., p. 56.13 SCAFF, Fernando Facury. Reserva do possível, mínimo existencial e direitos humanos. Revista Interesse Público.Belo Horizonte, v. 7, n. 32, jul./ago. 2005. p. 218.14 DUARTE, Regina A.; LEMES, Cristiano Tripiquia. Os impactos da globalização nas relações de trabalho.Revista do Advogado AASP, São Paulo, n. 66, junho de 2002, p. 19.·

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E conclui:

No mundo do trabalho, conservar nos empregos e regular o mercado detrabalho com vistas a um tratamento isonômico das relações de trabalho,em meio a tantas diferenças, constitui uma tarefa a ser cumprida de formagradual, reformando-se a legislação do trabalho para ampliar a proteção àssituações precárias (outras formas de trabalho).

CONCLUSÃOA globalização da economia, diante da abertura do mercado e a eliminação

de fronteiras, trouxe a mudança das relações de trabalho e emprego, diante daconcorrência, maior produção e pouca mão de obra, predominando o lucro obtidoa qualquer custo.

Há necessidade de efetivação dos direitos fundamentais sociais,principalmente para a tentativa de eliminar, ainda que parcialmente, a pobreza dapopulação brasileira.

A educação é fundamental nesse processo, visto que o trabalhador necessitaqualificar a sua mão-de-obra, para concorrer no exigente mercado de trabalhoglobalizado.

A legislação trabalhista deverá ser adaptada ao novo sistema globalizado,necessitando de atualização, evidentemente sem suprir os direitos constitucionaisalcançados pelo trabalhador.

Pelo prazer de argumentar, caso ocorra confronto entre os princípioseconômicos e os humanos, seguindo os critérios da proporcionalidade erazoabilidade, deverá prevalecer os direitos humanos, sob pena da não-efetivaçãodo Estado Democrático de Direito.

O trabalhador necessita de proteção, principalmente no tocante à saúde eà liberdade. Inadmissível persistir o desemprego, informalidade ou o subemprego.O Estado, o empresário, o sindicato e a própria sociedade deverão resgatar asegurança e a dignidade do cidadão.

A causa é justa e séria, levando-se em conta que a fome do sofrido cidadãobrasileiro poderá diminuir. Sem falar, ainda, da dignidade do trabalhador, que temesposa, filhos, sonhos e que de forma honesta busca melhores dias para a suasobrevivência e dos seus familiares. O sonho deve persistir. Chega de humilhação!

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ESTADO E RESPONSABILIDADE: QUESTÕESCRÍTICAS

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A PROTEÇÃO INTERNACIONAL DOSDIREITOS HUMANOS E O DIREITO

INTERNACIONAL DO MEIO AMBIENTE

Valério de Oliveira MAZZUOLI·

SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. A proteção internacional dos direitos humanos – 3.O direito internacional do meio ambiente e os instrumentos internacionais deproteção – 4. O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como umdireito humano fundamental – 5. O direito ao meio ambiente sadio no sistemainteramericano de direitos humanos – 6. A inter-relação dos direitos humanos como meio ambiente em outros instrumentos internacionais – 7. A Constituição brasileirade 1988 e os tratados internacionais de direitos humanos – 8. Conclusões.

RESUMO: O artigo objetiva tratar da proteção internacional ao meio ambiente apartir de reflexões sobre o moderno direito internacional público. Analisa como talproteção ocorre no sistema interamericano de direitos humanos, na ConstituiçãoFederal brasileira de 1988 e nos tratados de direitos humanos.

ABSTRACT: The article aims to address the international protection to theenvironment from reflections on the modern public international law. Examineshow such protection occurs in the inter-American human rights system, the BrazilianFederal Constitution of 1988 and the treaties of human rights.

PALAVRAS CHAVE: direitos humanos, direito do meio ambiente; proteçãointernacional.

KEY-WORDS: human rights, environmental law, international protection

*Doutor summa cum laude em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do RioGrande do Sul (UFRGS). Mestre em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da Universidade EstadualPaulista (UNESP) – Campus de Franca. Professor de Direito Internacional Público e Direitos Humanos na Faculdadede Direito da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Professor Honorário da Faculdade de Direito eCiências Políticas da Universidade de Huánuco (Peru). Professor convidado nos cursos de especialização daUniversidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) e da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Membro da Sociedade Brasileira de Direito Internacional(SBDI) e da Associação Brasileira de Constitucionalistas Democratas (ABCD). Coordenador jurídico da Revistade Derecho Internacional y del Mercosur (Buenos Aires) e Diretor da Revista Amazônia Legal de Estudos Sócio-Jurídico-Ambientais (FD/UFMT). Autor convidado.

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1. IntroduçãoA proteção internacional dos direitos humanos e o direito internacional do

meio ambiente são, dentro do contexto do moderno direito internacional público,os dois primeiros grandes temas da globalidade. Mas em que pese a maturidadebiológica de ambos esses temas, as questões relativas à inter-relação de um e outroainda não estão totalmente maduras e devidamente esclarecidas dentro do âmbitodas relações internacionais contemporâneas.

O moderno direito internacional público, que também pode ser chamadode novo direito internacional, é uma conquista do período pós-Segunda GuerraMundial. A doutrina segundo a qual o direito internacional regula diretamente asrelações dos Estados em seu conjunto e indiretamente essas mesmas relações pormeio da atuação das organizações internacionais, vai perdendo espaço para ocrescente aparecimento de textos internacionais que, além de erigir os indivíduos àcondição de sujeitos de direito internacional, flexibilizando (senão abolindo) oconceito tradicional de soberania estatal absoluta, também lhes garante o acessodireto às instâncias internacionais, por meio do fornecimento de instrumentosjurídicos com os quais tais indivíduos podem vindicar e fielmente ali defender osseus direitos fundamentais violados.1

Dentro desse contexto, duas disciplinarizações impulsionadas por essenovo direito internacional são particularmente relevantes, e merecem ser estudadasconjuntamente. São elas: a proteção internacional dos direitos humanos e o direitointernacional do meio ambiente. Esses temas, ao lado da democracia, passaram amarcar, de maneira ampla e inovadora, a nova agenda internacional do século XXI,2

notadamente após as grandes mudanças ocorridas no planeta em virtude doprocesso de globalização,3 cujos reflexos são marcantes e decisivos para oentendimento dos novos fenômenos globais surgidos no planeta desde então.

A aproximação da temática dos direitos humanos com a do meio ambienteé feita, entre outros, por Antônio Augusto Cançado Trindade, para quem “emboratenham os domínios da proteção do ser humano e da proteção ambiental sidotratados até o presente separadamente, é necessário buscar maior aproximaçãoentre eles, porquanto correspondem aos principais desafios de nosso tempo, aafetarem em última análise os rumos e destinos do gênero humano”.4 Em sentidoidêntico, como assinala Celso D. de Albuquerque Mello, a proteção internacionaldo meio ambiente deve estar ligada aos direitos do homem, sob pena de se chegarao assassinato do humanismo.5 Daí a proteção internacional dos direitos humanos1.V., sobre o assunto, MAZZUOLI, Valerio de Oliveira, Curso de direito internacional público, 2ª ed. rev., atual eampl., São Paulo: RT, 2007, pp. 677-679; e MAZZUOLI, Valerio de Oliveira, Direitos humanos, constituição e ostratados internacionais: estudo analítico da situação e aplicação do tratado na ordem jurídica brasileira, SãoPaulo: Juarez de Oliveira, 2002, pp. 212-219.2.Cf. Doc. ONU E/CN.4/Sub. 2/1994/9, Human rights and the environment: final report, § 1º, 6 July 1994, p. 03.3.Sobre o assunto, cabe uma análise em ARAÚJO, Luis Ivani de Amorim, Da globalização do direito internacionalpúblico: os choques regionais, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000, pp. 47-64.4.CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Direitos humanos e meio-ambiente: paralelo dos sistemas deproteção internacional. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1993, p. 23.5.Cf. MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de direito internacional público, 2º vol., 13ª ed. rev. e ampl. Riode Janeiro: Renovar, 2001, p. 1278.

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e o direito internacional do meio ambiente terem sido considerados, por GuidoFernando Silva Soares, como os dois primeiros grandes temas da globalidade.6

Neste novo cenário internacional, que aparece finda a Segunda GuerraMundial, merece especial destaque a Conferência das Nações Unidas sobre MeioAmbiente e Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro, de 3 a 14 de junho de1992, que ficou conhecida como Rio-92, tendo a ela comparecido delegaçõesnacionais de 175 países. A Conferência Rio-92 foi a primeira reunião internacionalde magnitude a se realizar após o fim da Guerra Fria. A reunião não foi apenasconseqüência de um intenso processo de negociações internacionais acerca dequestões ligadas à proteção do meio ambiente e ao desenvolvimento. Seusresultados significaram, também, a reafirmação de princípios internacionais dedireitos humanos, como os da indivisibilidade e interdependência, agora conectadoscom as regras internacionais de proteção ao meio ambiente e aos seus princípiosinstituidores. Os compromissos específicos adotados pela Conferência Rio-92incluem duas convenções, uma sobre Mudança do Clima e outra sobreBiodiversidade, e também uma Declaração sobre Florestas, além de um plano deação que se chamou de Agenda 21, criado para viabilizar a adoção dodesenvolvimento sustentável (e ambientalmente racional) em todos os países.

O Brasil já havia participado 20 anos antes, da Conferência das NaçõesUnidas sobre o Meio Ambiente Humano, realizada em Estocolmo, na Suécia, em1972, especialmente nos dois anos de seu período preparatório, onde a participaçãobrasileira foi efetiva no que tange à inserção da temática do desenvolvimento nofoco das questões envolvendo o meio ambiente.

Na Conferência do Rio de Janeiro, ao contrário do que ocorrera emEstocolmo, os conflitos de entendimentos foram deixados de lado para dar lugar àcooperação, na medida em que foi aberto o diálogo para um universo mais amplodaquilo que originalmente fora pretendido, deixando entrever-se que a proteçãointernacional do meio ambiente é uma conquista da humanidade, que deve venceros antagonismos ideológicos, em prol do bem-estar de todos e da efetiva proteçãodo planeta.

A conseqüência de todo esse processo normativo internacional no campoambiental tem reflexos, portanto, na seara da proteção internacional dos direitoshumanos, ainda mais quando se leva em consideração que o direito ao meio ambienteecologicamente equilibrado, apesar de não ter sido expressamente colocado notexto da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948 (onde somenteconstam direitos civis e políticos e direitos econômicos, sociais e culturais), pertenceao “bloco de constitucionalidade” dos textos constitucionais contemporâneos,dentre eles, o texto constitucional brasileiro de 1988. Acredita-se, contudo, que aDeclaração Universal de 1948 certamente mencionaria o direito ao meio ambiente,se fosse negociada hoje. A atual tendência do direito internacional moderno é que

6.Cf., sobre o assunto, SOARES, Guido Fernando Silva, Curso de direito internacional público, vol. 1. São Paulo:Atlas, 2002, respectivamente capítulos 15 e 16, pp. 335-437.

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as declarações sobre cada esfera de proteção também sejam cada vez mais amplas,cedendo espaço para que os vínculos entre as diversas categorias de direitos sedesenvolvam, como demonstrou o Relatório da Secretaria-Geral da Organizaçãodos Estados Americanos (OEA), Direitos Humanos e Meio Ambiente, de 4 de abrilde 2002, sobre o cumprimento da AG/Res. 1819 (XXXI-O/01), adotada na terceirasessão plenária da OEA, realizada em 5 de junho de 2001.7

O princípio segundo o qual toda pessoa tem direito a uma ordem social einternacional em que os direitos e liberdades estabelecidos na Declaração Universalpossam ser plenamente realizados, constante do art. 28 da Declaração de 1948,passa a ser integrado, também, pelo direito internacional do meio ambiente. Somentecom a garantia efetiva de um ambiente ecologicamente equilibrado é que os direitose liberdades estabelecidos na Declaração de 1948 podem ser plenamente realizados,não obstante o direito ao meio ambiente não ter sido incluído no texto da Declaração,à época de sua redação.

2. A proteção internacional dos direitos humanosO sistema internacional de proteção dos direitos humanos, foi arquitetado,

desde a criação da Organização das Nações Unidas, em 1945, em resposta àsbarbáries e às atrocidades cometidas pelos nazistas contra os judeus, no períododo Holocausto, fato este que marcou profundamente a comunidade mundial comoo mais abrupto e bestial dentre todos aqueles ligados a violações de direitos humanosdo mundo contemporâneo.8 Com a aprovação da Declaração Universal dos DireitosHumanos, em 1948, o Direito Internacional dos Direitos Humanos começa a darensejo à produção de inúmeros tratados internacionais destinados a proteger osdireitos fundamentais dos indivíduos. Trata-se de uma época considerada comoverdadeiro marco divisor do processo de internacionalização dos direitos humanos.Antes disso, a proteção dos direitos do homem estava mais ou menos restrita aalgumas poucas legislações internas dos países, como a inglesa de 1684, a americanade 1778 e a francesa de 1789. As questões humanitárias somente integravam aagenda internacional quando ocorria uma determinada guerra, mas logo semencionava o problema da indevida ingerência interna em um Estado soberano e adiscussão morria gradativamente. Assim é que temas como o respeito às minoriasdentro dos territórios nacionais e direitos de expressão política não erampraticamente abordados, a fim de não se ferir o até então incontestável e absolutoprincípio de soberania.

7.Cf. Doc. Conselho Permanente da OEA, Comissão de Assuntos Jurídicos e Políticos. Relatório da Secretaria-Geral sobre o Cumprimento da AG/Res. 1819 (XXXI-O/01), Direitos Humanos e Meio Ambiente, por Peter Quilter,Assessor do Secretário-Geral, Gabinete do Secretário-Geral. OEA/Ser.G, CP/CAJP-1898/02, 4 abril 2002, pp. 1-2.8.Cf., sobre o assunto, LAFER, Celso, A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento deHannah Arendt, São Paulo: Companhia das Letras, 2001, pp. 117-166; e RAWLS, John, O direito dos povos, Trad.Luís Carlos Borges, São Paulo: Martins Fontes, 2001, pp. 26-30.

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Surge, no âmbito da Organização das Nações Unidas, um sistema globalde proteção dos direitos humanos, tanto de caráter geral (a exemplo dos PactosInternacionais dos Direitos Civis e Políticos e dos Direitos Econômicos, Sociais eCulturais, ambos de 1966), como de caráter específico (v.g., as Convençõesinternacionais de combate à tortura, à discriminação racial, à discriminação contraas mulheres, à violação dos direitos das crianças etc.). Revolucionou-se, a partirdeste momento, o tratamento da questão relativa ao tema dos direitos humanos.Colocou-se o ser humano, de maneira inédita, num dos pilares até então reservadosaos Estados e às organizações internacionais, elevando-o à categoria de sujeito dedireito internacional público.

Paradoxalmente, o direito internacional, feito pelos Estados e para osEstados, começou a tratar da proteção internacional dos direitos humanos contrao próprio Estado, único responsável reconhecido juridicamente, querendo significaresse novo elemento uma mudança qualitativa para a sociedade internacional, umavez que o direito das gentes não mais se cingiria aos interesses nacionaisparticulares, passando a dizer respeito também aos direitos dos indivíduos nocontexto jurídico internacional.

Mas a estrutura normativa de proteção internacional dos direitos humanos,além dos instrumentos de proteção global, de que são exemplos, dentre outros, aDeclaração Universal dos Direitos Humanos, o Pacto Internacional dos DireitosCivis e Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais,e cujo código básico é a chamada International Bill of Human Rights, abrangetambém os instrumentos de proteção regional, aqueles pertencentes aos sistemaseuropeu, americano e africano (v.g., no sistema americano, merece destaque aConvenção Americana sobre Direitos Humanos, de 1969). Da mesma forma queocorre com o sistema de proteção global, aqui também se encontram instrumentosde alcance geral e instrumentos de alcance especial. Gerais são aqueles quealcançam todas as pessoas, a exemplo dos tratados acima citados; especiais, aocontrário, são os que visam apenas determinados sujeitos de direito, ou determinadacategoria de pessoas, a exemplo das convenções de proteção às crianças, aosidosos, aos grupos étnicos minoritários, às mulheres, aos refugiados, aos portadoresde deficiência etc.9

O Direito Internacional dos Direitos Humanos, como novo ramo do DireitoInternacional Público, emerge com princípios próprios, autonomia e especificidade.Suas normas passam a ter a característica da expansividade, decorrente da aberturatipológica de seus enunciados. Além do mais, esse novo direito rompe com a rígidadistinção existente entre Direito Público e Direito Privado, libertando-se dos seusclássicos paradigmas.

9.V., a respeito dos sistemas global e regionais de proteção dos direitos humanos, MAZZUOLI, Valerio de Oliveira,Curso de direito internacional público, cit., pp. 708-738; PIOVESAN, Flávia, Direitos humanos e o direitoconstitucional internacional, 4ª ed., São Paulo: Max Limonad, 2000, pp. 159-228; e WEIS, Carlos. Direitoshumanos contemporâneos. São Paulo: Malheiros Editores, 1999, pp. 66-108.

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Deste momento em diante, o mundo passou a presenciar uma verdadeiraproliferação de tratados internacionais protetivos dos direitos da pessoa humana,tanto nos seus aspectos civis e políticos, como naqueles ligados às áreas dodomínio econômico, social e cultural. Com o desenvolvimento progressivo doDireito Internacional dos Direitos Humanos, ênfase particular também foi dada, nocontexto das relações internacionais contemporâneas, à conclusão de inúmerostratados de proteção ao meio ambiente, em todas as suas vertentes e com todos osseus consectários.

A preocupação com o meio ambiente, em plano global, somente torna-sequestão de cunho internacional alguns anos depois de finda a Segunda GuerraMundial, tendo sido feita uma primeira menção ao meio ambiente no art. 12 doPacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966, ondeaparece o direito à saúde ao lado do direito a um nível de vida adequado. Nãoobstante ter sido indireta a referência feita ao meio ambiente, não se pode deixar dereconhecer a importância que teve a menção à saúde no texto do referido Pacto de1966, como querendo significar que o direito a uma vida digna também é coroláriode um meio ambiente sadio e equilibrado. Como destaca Cançado Trindade, a partirdesse momento “parecia aberto o caminho para o reconhecimento futuro do direitoa um meio-ambiente sadio”.10

3. O direito internacional do meio ambiente e os instrumentos internacionais deproteção

Após o período do pós-Guerra, como complemento aos direitosfundamentais do homem, começaram a aparecer, no cenário internacional, asprimeiras grandes normas de proteção internacional do meio ambiente, dando ensejoà formação desse novo ramo do direito, chamado Direito Internacional do MeioAmbiente.11 A partir de então, tanto os direitos relativos à pessoa humana como osatinentes ao meio ambiente passaram a ser prioridades inequívocas da agendainternacional moderna, como atestaram a Conferência das Nações Unidas sobreMeio Ambiente e Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro, em junho de 1992,

10.CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Direitos humanos e meio-ambiente: paralelo dos sistemas deproteção internacional, cit., p. 84.11.V., no direito brasileiro, a obra clássica de SOARES, Guido Fernando Silva, Direito internacional do meioambiente: emergência, obrigações e responsabilidades, São Paulo: Atlas, 2001, onde são abordados comprofundidade os temas centrais contemporâneos ligados à proteção internacional do meio ambiente. Cf., também,NASCIMENTO E SILVA, Geraldo Eulálio do, Direito ambiental internacional: meio ambiente, desenvolvimentosustentável e os desafios da nova ordem mundial, Rio de Janeiro: Thex, 1995, onde são abordados os fundamentosdo direito internacional, os impasses ambientais que marcaram a história recente e o sentido filosófico dos desafiosglobais, no tocante ao desenvolvimento, à degradação da qualidade de vida e ao avanço técnico-científico dasnações industrializadas. Em relação à bibliografia européia, ‘v. ROMANI, Carlos Fernandez de Casadevante, Laprotección del medio ambiente en derecho internacional, derecho comunitario europeo y derecho español,Vitoria-Gasteiz: Servicio Central de Publicaciones del Gobierno Vasco, 1991; MATHIEU, Jean-Luc, La protectioninternationale de l’environnement, Paris: Presses Universitaraires de France, 1991; BADIALI, Giorgio, La tutelainternazionale dell’ambiente, Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 1995; e KISS, Alexandre & SHELTON,Dinah, Traité de droit européen de l’environnement, Paris: Frison-Roche, 1995.

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e a Conferência Mundial das Nações Unidas sobre Direitos Humanos, realizada emViena, em junho de 1993.12

O Brasil é parte dos principais tratados internacionais sobre meio ambienteconcluídos sob os auspícios da Organização das Nações Unidas. Muito antes dapromulgação da Constituição de 1988, o Brasil já havia ratificado os mais importantestratados internacionais relativos ao direito internacional do meio ambiente, o queveio intensificar-se posteriormente à entrada em vigor do atual texto constitucional.

Dentre todos os instrumentos internacionais em matéria de meio ambienteratificados pelo Brasil, merecem destaque algumas convenções internacionaisrecentes, dentre as quais podem ser citadas: a) a Convenção-Quadro das NaçõesUnidas sobre Mudança do Clima, adotada pelas Nações Unidas, em Nova York, em09.05.1992, aprovada no Brasil pelo Decreto Legislativo nº 1, de 03.02.1994, epromulgada pelo Decreto nº 2.652, de 01.07.1998; b) o Protocolo de Quioto àConvenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, adotado emQuioto, Japão, em 14.12.1997, por ocasião da Terceira Conferência das Partes daConvenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, tendo sidoaprovado no Brasil pelo Decreto Legislativo nº 144, de 20.06.2002, e ratificado em23.08.2002 e; c) a Convenção sobre Diversidade Biológica, adotada na cidade doRio de Janeiro, em 05.06.1992, aprovada no Brasil pelo Decreto Legislativo nº 2, de03.02.1994, e promulgada pelo Decreto nº 2.519, de 16.03.1998,13 tendo entrado emvigor internacional em 29 de dezembro de 1993.

Estes instrumentos internacionais, assim como todos os outros tratadosinternacionais solenes sobre quaisquer matérias celebrados pelo Brasil, antes deserem integrados ao nosso direito interno, têm de passar pelos trâmites própriosdo direito internacional e do direito constitucional brasileiro, no que tange àprocessualística de sua celebração, para somente depois adquirirem eficácia jurídicae executoriedade internas. Tais fases, pelas quais têm de passar os tratados solenesaté a sua conclusão, podem ser basicamente divididas em quatro momentosdistintos, abstraídos da conjugação das regras próprias do Direito dos Tratadoscom as da Constituição de 1988, quais sejam:

a) negociações preliminares (as quais normalmente ocorrem, tratando-sede meio ambiente, numa conferência internacional especialmente destinada paraesta finalidade);

b) assinatura ou adoção pelo Executivo (nos termos da Constituição de1988, como expresso no seu art. 84, VIII, esta competência é privativa, podendohaver delegação do Presidente da República a um plenipotenciário seu, sendonormalmente feita ao Ministro das Relações Exteriores ou aos chefes de missão

12.Cf. CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Direitos humanos e meio-ambiente: paralelo dos sistemas deproteção internacional, cit., pp. 23-38; e LINDGREN ALVES, José Augusto, Os direitos humanos como temaglobal, São Paulo: Editora Perspectiva/Fundação Alexandre de Gusmão, 1994, pp. 23-35.13.Os textos integrais desses tratados, acompanhados de notas sobre sua celebração e entrada em vigor no Brasil,são encontrados em MAZZUOLI, Valerio de Oliveira (org.), Coletânea de direito internacional, São Paulo: EditoraRevista dos Tribunais, 2003, pp. 582-632.

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diplomática);c) aprovação parlamentar (referendum) por parte de cada Estado

interessado em se tornar parte no tratado (entre nós, a matéria vem disciplinadapelo art. 49, I, da Constituição, que diz competir exclusivamente ao CongressoNacional “resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionaisque acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional”14); e,

d) ratificação ou adesão do texto convencional, concluída com a troca dosinstrumentos que a consubstanciam.15

No Brasil, após a sua ratificação, o tratado, ainda, é promulgado por decretodo Presidente da República, e publicado no Diário Oficial da União. São etapascomplementares adotadas pelo Estado brasileiro para que os tratados possam teraplicabilidade e executoriedade internas. Trata-se de uma prática que vem sendoseguida desde o primeiro tratado celebrado no Brasil, na época do Império.

Os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos, assim comoos de proteção do meio ambiente, como veremos, dispensam da sistemática de suaincorporação esta fase suplementar, por terem aplicação imediata a partir de suasrespectivas ratificações, nos termos do art. 5º, § 1º da Constituição de 1988.

Os instrumentos internacionais de proteção ao meio ambiente, pelas regrasda nossa Constituição (art. 5º, §§ 2º e 3º), têm uma forma própria de incorporaçãono ordenamento jurídico brasileiro, pelo fato de eles fazerem parte do rol doschamados tratados internacionais de proteção dos direitos humanos lato sensu,em relação aos quais a Constituição atribui uma forma própria de incorporação euma hierarquia diferenciada dos demais tratados (considerados comuns outradicionais) ratificados pelo Brasil.

Como destaca Guido Fernando Silva Soares, as normas de proteçãointernacional do meio ambiente “têm sido consideradas como um complementoaos direitos do homem, em particular o direito à vida e à saúde humana”, sendobastante expressiva “a parte da doutrina com semelhante posicionamento,especialmente daqueles autores que se têm destacado como grandesambientalistas”.16

Tal posicionamento é reafirmado pelos grandes textos de direitointernacional do meio ambiente, onde se encontram várias referências ao direito àvida e à saúde. Como exemplo, pode ser citada a Declaração do Rio de Janeirosobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, de 1992, que faz referência à “vidasaudável” no seu Princípio 1.

14.Sobre as discussões acerca da correta interpretação desse dispositivo, v. a excepcional obra de CACHAPUZ DEMEDEIROS, Antônio Paulo, O poder de celebrar tratados, Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1995,pp. 382-397.15.Para um estudo detalhado das fases de celebração de tratados no Brasil, v. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira,Tratados internacionais: com comentários à Convenção de Viena de 1969, 2ª ed. São Paulo: Juarez de Oliveira,2004.16.SOARES, Guido Fernando Silva. A proteção internacional do meio ambiente. Barueri-SP: Manole, 2003, p.173.

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4. O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como um direito humanofundamental

A percepção de que questões ligadas à proteção do meio ambiente não selimitam à poluição advinda da industrialização,17 mas abrangem um universo muitomais amplo e complexo, que envolve todo o planeta e podem colocar em risco asaúde mundial, foi decisiva para a inserção do tema “meio ambiente” na esfera deproteção do Direito Internacional dos Direitos Humanos.18

A proteção do meio ambiente não é matéria reservada ao domínio exclusivoda legislação doméstica dos Estados, mas dever de toda a sociedade internacional.A proteção ambiental, abrangendo a preservação da natureza em todos os seusaspectos relativos à vida humana, tem por finalidade tutelar o meio ambiente emdecorrência do direito à sadia qualidade de vida, em todos os seus desdobramentos,sendo considerado uma das vertentes dos direitos fundamentais da pessoahumana.19

O direito fundamental ao meio ambiente foi reconhecido, no planointernacional, pela Declaração sobre o Meio Ambiente Humano,20 adotada pelaConferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, em Estocolmo,de 5 a 16 de junho de 1972, cujos 26 princípios têm a mesma relevância para osEstados que teve a Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada em Paris,em 10 de dezembro de 1948, pela Resolução 217 da Assembléia Geral da ONU,servindo de paradigma e referencial ético para toda a sociedade internacional, noque tange à proteção internacional do meio ambiente como um direito humanofundamental de todos.21

A Declaração de Estocolmo de 1972, como leciona José Afonso da Silva,“abriu caminho para que as Constituições supervenientes reconhecessem o meioambiente ecologicamente equilibrado como um direito humano fundamental entreos direitos sociais do Homem, com sua característica de direitos a serem realizadose direitos a não serem perturbados”.22 Por ter materializado os ideais comuns dasociedade internacional no que toca à proteção internacional do meio ambiente, a

17.Cf., a propósito, RANGEL, Vicente Marotta, “Poluição e seus reflexos internacionais: questões preliminares”,in Problemas Brasileiros, 11(123), São Paulo, 1973, pp. 22-35; BALLENEGGER, Jacques, La pollution en droitinternational: la responsabilité pour les dommages causés par la pollution transfrontière. Genève: LibrairieDalloz, 1975; e também MARINHO, Ilmar Penna, “Preservação do meio ambiente e combate à poluição”, in Boletimda Sociedade Brasileira de Direito Internacional, anos XXXIX a XLI, 1968/1989, nºs 69/71, pp. 143-163.18.Cf. CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. “The contribution of international human rights law toenvironmental protection, with special reference to global environmental change”, in Environmental change andinternational law: new challenges and dimensions, Toquio: United Nations University Press, 1992, pp. 244-312.19.Cf. SILVA, José Afonso da. Direito ambiental constitucional, 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 58.20.Texto em CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto, Direitos humanos e meio-ambiente: paralelo dos sistemasde proteção internacional, cit., pp. 247-256.21.Cf. SOARES, Guido Fernando Silva. “Direitos humanos e meio ambiente”, in O cinqüentenário da DeclaraçãoUniversal dos Direitos do Homem. Alberto do Amaral Júnior e Cláudia Perrone-Moisés (orgs.). São Paulo:Edusp, 1999, p. 131; SOARES, Guido Fernando Silva. Direito internacional do meio ambiente: emergência,obrigações e responsabilidades, cit., p. 55; e SILVA, José Afonso da. Direito ambiental constitucional, 3ª ed.,cit., pp. 58-59.22.SILVA, José Afonso da. Direito ambiental constitucional, 3ª ed., cit., p. 67.

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Declaração de Estocolmo de 1972 abriu espaço para que esses temas, antes afetosao domínio exclusivo e absoluto dos Estados, pudessem passar a ser tratadosdentro de uma perspectiva global, notadamente ligada à proteção internacionaldos direitos humanos.

Antes da Conferência de Estocolmo, o meio ambiente era tratado, em planomundial, como algo dissociado da humanidade. A Declaração de Estocolmo de1972 conseguiu, portanto, modificar o foco do pensamento ambiental do planeta,mesmo não se revestindo da qualidade de tratado internacional, enquadrando-se, ao lado das várias outras declarações memoráveis das Nações Unidas – de quesão exemplos a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 (no campodos direitos humanos) e a Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente eDesenvolvimento de 1992 (na esfera da proteção internacional do meio ambiente)– no âmbito daquilo que se convencionou chamar de soft law ou droit doux (direitoflexível), governado por um conjunto de sanções distintas das previstas nas normastradicionais, em contraponto ao conhecido sistema do hard law ou droit dur(direito rígido). Apesar de não se ter ainda, na doutrina internacionalista, umaconceituação adequada de soft law, pode-se afirmar que na sua moderna acepçãoela compreende todas aquelas normas que visam regulamentar futuroscomportamentos dos Estados, sem deterem o status de “norma jurídica”, e queimpõem além de sanções de conteúdo moral, também outras que podem serconsideradas como extrajurídicas, em caso de descumprimento ou inobservânciade seus postulados.23

A asserção do direito ao meio ambiente ao status de direito humanofundamental decorre do Princípio 1 da Declaração de Estocolmo de 1972, segundoo qual:

“O homem tem o direito fundamental à liberdade, igualdade e adequadascondições de vida, num meio ambiente cuja qualidade permita uma vida dedignidade e bem estar, e tem a solene responsabilidade de proteger emelhorar o meio ambiente, para a presente e as futuras gerações. A talrespeito, as políticas de promover e perpetuar o apartheid, a segregaçãoracial, a discriminação, a opressão colonial e suas outras formas, e adominação estrangeira, ficam condenadas e devem ser eliminadas”.

Uma vitória importante dos países menos desenvolvidos consistiu noreconhecimento da soberania dos Estados na exploração dos seus próprios recursose no estabelecimento de seus mecanismos de proteção ambiental. Nos termos doPrincípio 21 da Declaração, “os Estados têm, de acordo com a Carta das NaçõesUnidas e os princípios do direito internacional, o direito soberano de explorar seuspróprios recursos, conforme suas próprias políticas relativas ao meio ambiente, e a

23.Sobre a soft law e a dificuldade de sua conceituação, v. SOARES, Guido Fernando Silva, A proteção internacionaldo meio ambiente, cit., pp. 91-94.

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responsabilidade de assegurar que tais atividades exercidas dentre de suajurisdição, não causem danos ao meio ambiente de outros Estados ou a áreas forados limites da jurisdição nacional”.24 Ficou aqui consagrado o princípio costumeirosegundo o qual a propriedade deve ser utilizada de tal forma a não prejudicarterceiros (sic utere tuo ut alienum non laedas), sendo certo que sua violaçãoacarreta a responsabilidade civil do Estado violador.

O impacto da Declaração de Estocolmo para os anos que se seguiram àConferência se fez sentir principalmente no que tange à impressionante avalanchede tratados internacionais concluídos nos últimos tempos (tanto multilaterais, comobilaterais e regionais) relativos à proteção internacional do meio ambiente latosensu, sendo praticamente impossível determinar com exatidão o número precisodesses instrumentos internacionais atualmente.25

A inter-relação da proteção ambiental com o efetivo gozo dos direitoshumanos foi reconhecida pela Organização dos Estados Americanos, por meio doRelatório decorrente da AG/Res. 1819 (XXXI-O/01), Direitos Humanos e MeioAmbiente (OEA/Ser.G, CP/CAJP-1898/02), de 4 abril de 2002. Nos termos do citadoRelatório: “O Princípio 1 da Declaração de Estocolmo, de 1972, pode ser a maisantiga declaração direta que vincula direitos humanos e proteção ambiental, aoafirmar o direito fundamental à liberdade, à igualdade e a condições de vidaadequadas, num meio ambiente de qualidade tal que permita uma vida de dignidadee bem-estar. A Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano,de 1972, declarou que ‘o meio ambiente humano, o natural e o artificial, são essenciaispara o bem-estar do homem e para o gozo dos direitos humanos fundamentais,inclusive o direito à própria vida’. Desde então um considerável número deinstrumentos de direitos humanos, regionais, globais e nacionais, reconhecem dealgum modo o direito a um meio ambiente que seja sadio. Também há um crescentecorpo de jurisprudência no contexto dos direitos humanos, que reconhece o flageloda degradação ambiental, na medida em que afeta o gozo dos direitos estabelecidos.Institucionalmente, as Nações Unidas levaram essa questão mais longe que outrasorganizações, quando, em meados da década de 90, criaram o cargo de RelatorEspecial de Direitos Humanos e Meio Ambiente, cujo trabalho e cujos documentosestabelecem diretamente a vinculação”.26

Ainda no ano de 1972, é firmada a Convenção Relativa à Proteção doPatrimônio Mundial, Cultural e Natural (promulgada no Brasil pelo Decreto nº 80.978,de 12.12.1977). A Convenção, nos termos do seu art. 1º, considera como patrimôniocultural as obras monumentais de arquitetura, escultura ou pintura, os elementosou estruturas de natureza arqueológica, os conjuntos arquitetônicos ou

24.Cf., a propósito, PRIEUR, Michel, “Protection of the environment”, in BEDJAOUI, Mohammed (org.),International law: achievements and prospects, London: Martinus Nijhoff Publischers, 1991, pp. 1017-1018.25.Cf. SOARES, Guido Fernando Silva. Direito internacional do meio ambiente: emergência, obrigações eresponsabilidades. São Paulo: Atlas, 2001, p. 56.26.Doc. Conselho Permanente da OEA, Comissão de Assuntos Jurídicos e Políticos. Relatório da Secretaria-Geralsobre o Cumprimento da AG/Res. 1819 (XXXI-O/01), Direitos Humanos e Meio Ambiente, cit., p. 2.

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paisagísticos de valor universal excepcional, e os lugares notáveis. Por patrimônionatural, nos termos do seu art. 2º, entendem-se os monumentos naturais de valoruniversal do ponto de vista estético ou científico, as áreas que constituam o habitatde espécies animais ou vegetais ameaçadas ou que tenham valor excepcional doponto de vista da ciência ou da conservação, e os lugares notáveis, cuja conservaçãoé necessária para a preservação da beleza natural. Ainda segundo a mesmaConvenção, os Estados-partes comprometem-se a identificar, proteger, conservare legar às futuras gerações o patrimônio cultural e natural, apresentando ao “Comitêdo Patrimônio Mundial” (art. 8º, §§ 1º a 3º), um rol dos bens situados em seuterritório que possam ser incluídos na lista de bens protegidos como “PatrimônioMundial”.27

A Convenção sobre a Diversidade Biológica, de 5 junho de 1992, por suavez, garante às presentes e futuras gerações a preservação da biosfera, visando aharmonia ambiental do planeta. Efetivamente, como destaca Fábio KonderComparato, “a grande injustiça nessa matéria reside no fato de que, embora osgrandes poluidores no mundo sejam os países desenvolvidos, são as naçõesproletárias que sofrem mais intensamente os efeitos da degradação do meioambiente” (…). Tais fatos demonstram, sobejamente, a íntima ligação entredesenvolvimento e política do meio ambiente, e justificam a necessidade de se pôrem prática, no mundo inteiro, uma política de desenvolvimento sustentável. É essaa boa globalização pela qual somos convidados a lutar, em todos os países”.28

No preâmbulo da referida Convenção, se lê que “os Estados sãoresponsáveis pela conservação de sua diversidade biológica e pela utilizaçãosustentável de seus recursos biológicos”, ficando enfatizada, também, “aimportância e a necessidade de promover a cooperação internacional, regional emundial entre os Estados e as organizações intergovernamentais e o setor não-governamental para a conservação da diversidade biológica e a utilizaçãosustentável de seus componentes”. Portanto, a Convenção de 1992 coloca a questãoda biodiversidade dentro do enfoque do desenvolvimento sustentado de toda ahumanidade.

Talvez aqui resida o ponto-chave das controvérsias envolvendo os direitoshumanos e o direito ao desenvolvimento.29 Daí a sugestão de Guido FernandoSilva Soares, no sentido de que “o conceito que poderá evitar um confronto cruelentre direitos humanos e direito ao desenvolvimento seja o de desenvolvimentosustentável”. Mas este mesmo internacionalista alerta para o fato de que dar-se aodesenvolvimento uma dimensão de respeito ao meio ambiente poderá, talvez,amenizar os conflitos, mas não extirpá-los. Segundo Guido Soares, o abandono “de

27.V. COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos, 3ª ed. rev. e ampl. São Paulo:Saraiva, 2003, pp. 379-390.28.COMPARATO, Fábio Konder. Idem, pp. 422-423.29.A esse respeito, cabe uma análise proveitosa em CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto, “Meio ambientee desenvolvimento: formulação e implementação do direito ao desenvolvimento como um direito humano”, inBoletim da Sociedade Brasileira de Direito Internacional, ano XLV, jul./nov./1992, nºs 81/83, pp. 49-76.

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uma postura ancorada numa antropologia unilateral, centrada com egoísmo navida humana, em benefício de uma postura baseada em uma antropologia solidária,na qual haja um irrestrito respeito a quaisquer outras formas de vida, além dahumana, parece-nos ser mais conseqüência de uma postura ética do que resultantede normas jurídicas existentes, e, portanto, dependerá da boa vontade dos Estadose das pessoas”.30

Os problemas atinentes à inter-relacionariedade da proteção internacionaldos direitos humanos com o direito internacional do meio ambiente, entretanto,ainda carecem de maior convergência doutrinária. Como demonstrado pelo Relatórioda OEA decorrente da citada AG/Res. 1819, os autores que “escreveram sobre amatéria geralmente coincidem em que o dano ao meio ambiente de fato afeta osdireitos humanos das pessoas”, estando a diferença “na forma de tratar o problema”.Nesse sentido, ainda segundo o Relatório, “é possível falar de duas escolas: umaesposa as soluções ‘substantivas’, a outra, as soluções ‘processuais’. As soluçõessubstantivas abrangeriam essencialmente a nova legislação que conscientementejunta os dois assuntos de maneira declaratória. Os recursos processuais se voltampara as dimensões práticas do problema, como a criação ou o fortalecimento dosdireitos de acesso à informação e à participação, de maneira que gruposmarginalizados (que são com freqüência desproporcionalmente afetados pelosdanos ambientais) possam procurar reparação nos mecanismos existentes”.31

Mas não é somente no plano internacional que o direito ao meio ambientetornou-se um direito humano fundamental, reconhecido e protegido juridicamentepor declarações e tratados internacionais específicos.

No plano do direito interno brasileiro, o direito ao meio ambienteecologicamente equilibrado vem insculpido no art. 225, caput, da Constituição de1988, que assim dispõe:

“Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem deuso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-seao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo paraas presentes e futuras gerações” [grifo nosso].

Este dispositivo do texto constitucional consagra também o princípiosegundo o qual o meio ambiente é um direito humano fundamental, na medida emque visa proteger o direito à vida com todos os seus desdobramentos, incluindo asadia qualidade de seu gozo. Trata-se de um direito fundamental no sentido deque, sem ele, a pessoa humana não se realiza plenamente, ou seja, não consegue

30.SOARES, Guido Fernando Silva. A proteção internacional do meio ambiente, cit., pp. 175-176.31.Cf. Doc. Conselho Permanente da OEA, Comissão de Assuntos Jurídicos e Políticos. Relatório da Secretaria-Geral sobre o Cumprimento da AG/Res. 1819 (XXXI-O/01), Direitos Humanos e Meio Ambiente, cit., p. 2. Paraa discussão do assunto, v. ANDERSON, Michael R., “Human rights approaches to environmental protection: anoverview”, in BOYLE, Alan E. & ANDERSON, Michael R. (edits.), Human Rights Approaches to EnvironmentalProtection (1996), pp. 3-10.

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desfrutá-lo sadiamente, para se utilizar a terminologia empregada pela letra daConstituição.

No sentido empregado pelo art. 225, caput, do texto constitucional, odireito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é um prius lógico do direito àvida, sem o qual esta não se desenvolve sadiamente em nenhum dos seusdesdobramentos. É dizer, o bem jurídico vida depende, para a sua integralidade,entre outros fatores, da proteção do meio ambiente com todos os seus consectários,sendo dever do Poder Público e da coletividade defendê-lo e preservá-lo para apresente e para as futuras gerações.

Dentro desta perspectiva, o direito a um meio ambiente sadio e equilibradoconfigura-se uma extensão ou corolário lógico do direito à vida, sem o qual nenhumser humano pode vindicar a proteção dos seus direitos fundamentais violados.

A vida tutelada pela Constituição, portanto, transcende os estreitos limitesde sua simples atuação física, abrangendo também o direito à sadia qualidade devida em todas as suas vertentes e formas. Sendo a vida um direito universalmentereconhecido como um direito humano básico ou fundamental, o seu gozo é condiçãosine qua non para o gozo de todos os demais direitos humanos, aqui incluso odireito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.32

No plano infraconstitucional da legislação brasileira, a Lei n.° 6.938, de 31de agosto de 1981, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente,apresenta o seguinte conceito de meio ambiente, a saber:

“Art. 3.° […].I – meio ambiente: o conjunto de condições, leis, influências e interaçõesde ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida emtodas as suas formas” [grifo nosso].

Esta norma jurídica, considerada um marco na proteção jurídica do meioambiente no Brasil, editada à égide da Constituição de 1967, sob a Emenda n.° 1, de1969, foi recepcionada pela Constituição de 1988 como que num tipo de reforço aoentendimento segundo o qual a vida tutelada pela norma constitucional tem umsentido amplo, abrangendo tanto a vida da pessoa humana, como todos os seusdesdobramentos, a exemplo do meio ambiente ecologicamente equilibrado, essencialà sadia qualidade de seu gozo e fruição.

Aqueles importantes tratados internacionais de proteção ao meio ambiente,aos quais já nos referimos (Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudançado Clima e Convenção sobre Diversidade Biológica, ambas concluídas em 1992,bem como todos os demais tratados sobre matéria ambiental já ratificados ou aserem ratificados pelo Brasil), também visam expressamente proteger a “vida emtodas as suas formas”. Tais instrumentos internacionais, portanto, integram e

32.Cf. CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Direitos humanos e meio-ambiente: paralelo dos sistemas deproteção internacional, cit., p. 71.

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complementam a regra de proteção ao meio ambiente insculpida no art. 225, caput,da Constituição de 1988, incorporando-se ao direito interno brasileiro com umstatus diferenciado das demais normas internacionais tradicionais (v. tópico nº 7,infra).

Os tratados internacionais em matéria de meio ambiente, tiveram suaimportância reconhecida pelo Princípio 24 da Declaração de Estocolmo de 1972,segundo o qual “a cooperação através de convênios multilaterais ou bilaterais, oude outros meios apropriados, é essencial para efetivamente controlar, prevenir,reduzir e eliminar os efeitos desfavoráveis ao meio ambiente, resultantes deatividades conduzidas em todas as esferas, levando-se em conta a soberania einteresses de todos os Estados”.

5. O direito ao meio ambiente sadio no sistema interamericano de direitos humanosO direito a um meio ambiente sadio é assegurado, no sistema interamericano

de direitos humanos, pelo art. 11 do Protocolo Adicional à Convenção Americanasobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais(conhecido por Protocolo de San Salvador), de 17 de novembro de 1988, nestestermos:

“Art. 11. Direito a um meio ambiente sadio.1. Toda pessoa tem direito a viver em meio ambiente sadio e a contar comos serviços públicos básicos.2. Os Estados-Partes promoverão a proteção, preservação e melhoramentodo meio ambiente”.33

No sistema interamericano, além da regra supra sobre o direito a um “meioambiente sadio”, como denominado pelo Protocolo de San Salvador, a jurisprudênciatambém tem dado a sua contribuição, no que diz respeito ao assunto. Seguindo oexposto no citado Relatório da OEA (Ser.G, CP/CAJP-1898/02), sobre DireitosHumanos e Meio Ambiente, são dois os casos que se destacam, envolvendo ajurisprudência do sistema interamericano:

1) Resolução nº 12/85, Caso nº 7615 (Brasil), 5 de março de 1985, constantedo Relatório Anual da CIDH 1984-85, OEA/Ser.L/V/II.66, doc. 10 rev. 1, 1 outubro,1985, 24, 31 (Caso Yanomami), envolvendo a construção de uma estrada que passavapelo território Yanomami, que se descobriu ter trazido doenças etc., para osintegrantes dessa tribo. Constatou-se, neste caso, várias violações à DeclaraçãoAmericana dos Direitos e Deveres do Homem, no que diz respeito ao direito à vida,à liberdade e à segurança pessoal e ao direito à preservação da saúde e do bem-estar;

2) Comunidade indígena Awas Tingni Mayagna (Sumo) contra a Nicarágua,tendo sido o caso encaminhado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos

33.Texto em MAZZUOLI, Valerio de Oliveira (org.), Coletânea de direito internacional, cit., p. 536.

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à Corte Interamericana, alegando-se que o fracasso da demarcação e reconhecimentodo território, face à perspectiva do desmatamento sancionado pelo governo nessasterras, constituía uma violação da Convenção Americana, tendo a Corte decidido,em agosto de 2001, que o Estado violara os arts. 21 e 25 da Convenção Americana(direito à propriedade privada e proteção judicial, respectivamente), ordenandoque o mesmo demarcasse as terras dos Awas Tingni.34

Também são citadas, no mesmo documento, outras referências selecionadasno sistema interamericano de direitos humanos sobre a interseção de direitoshumanos e meio ambiente, quais sejam: a) Relatório da OEA 2000 sobre a Guatemala,Capítulos III & XI, OEA/Ser.L/V/II.111 Doc. 21, rev. 6, abril 2001, Original: inglês/espanhol; b) Relatório da OEA 2000 sobre o Paraguai, Capítulos V & IX OEA/Ser.L/V/II.110 Doc. 529, março 2001; c) Relatório da OEA 1999 sobre o Peru, Capítulo VIOEA/Ser.L/V/II.106 Doc. 59 rev. 2, junho 2000; d) Capítulo V, “Acompanhamentodas recomendações formuladas pela Comissão Interamericana de Direitos Humanosem seus relatórios sobre a situação dos direitos humanos nos Estados membros”,Seção l (Equador), parágrafos 109, 118; in Relatório Anual da ComissãoInteramericana de Direitos Humanos, de 1998; e) Relatório sobre a situação dosdireitos humanos no Equador, Capítulo IX, Questões de direitos humanos deespecial relevância para os habitantes indígenas do país, Relatório de Países daOEA, documento OEA/Ser.L/V/II.96 (1997); f) Comissão Interamericana de DireitosHumanos, Relatório Anual (1997), OEA/Ser.L/V/II.98, p. 46; g) Relatório sobre asituação dos direitos humanos no Brasil, Capítulo VI, Relatório de Países da OEA(1996); h) Relatório da OEA sobre a Colômbia, 1992, Capítulo XI, OEA/Ser.L/V/II.84Doc. 39 rev. 14, outubro de 1993; i) Comissão Interamericana de Direitos Humanos,Relatório Anual 1979-1980, OEA documento OEA/Ser.L/V/II.50 Doc. 13 rev. 1 (CIDH1980); j) Comissão Interamericana de Direitos Humanos, resolução sobre povosindígenas (1972), pp. 90-91, documento OEA/Ser.P., AG/doc.305/73.35

6. A inter-relação dos direitos humanos com o meio ambiente em outrosinstrumentos internacionais

A Professora Dinah Shelton, da Universidade de Notre Dame, noDocumento de Antecedentes nºs 1 e 2, intitulado Questões ambientais e direitoshumanos nos tratados multilaterais adotados entre 1991 e 2001, preparado parao Seminário Conjunto de Peritos em Direitos Humanos e Meio Ambiente (PNUMA-ACDH), realizado em Genebra, em janeiro de 2002, expõe com propriedade algunsinstrumentos internacionais que trazem explicitamente regras de inter-relação dos

34.V. Doc. Conselho Permanente da OEA, Comissão de Assuntos Jurídicos e Políticos. Relatório da Secretaria-Geral sobre o Cumprimento da AG/Res. 1819 (XXXI-O/01), Direitos Humanos e Meio Ambiente, cit., p. 3. Nostermos do mesmo Relatório: “Por outro lado, uma leitura razoável é que a Corte Européia de Direitos Humanossequer se aproximou do sistema interamericano no reconhecimento dessa vinculação. Mas mesmo aquele organismodecidiu que o dano ambiental (por exemplo, a poluição sonora) pode violar o artigo 1 do Protocolo 1 da ComissãoEuropéia, se o dano resultar numa desvalorização da propriedade. Além disso, pode violar o artigo 8(1) se causardanos ao domicílio, à vida privada e familiar” (Idem, ibidem).35.Cf. Doc. Conselho Permanente da OEA. Idem, pp. 3-4.

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direitos humanos com a proteção internacional do meio ambiente. A relação aseguir foi extraída, com alguma pouca variação, do citado Relatório da OEA (Ser.G,CP/CAJP-1898/02) sobre direitos humanos e meio ambiente.

Vejamos, pois, os núcleos de inter-relação entre direitos humanos e meioambiente em textos internacionais:

1) O Princípio 1 da Declaração de Estocolmo estabeleceu os fundamentosda vinculação entre direitos humanos e proteção do meio ambiente, ao declararque: “O homem tem o direito fundamental à liberdade, igualdade e adequadascondições de vida, num meio ambiente cuja qualidade permita uma vida de dignidadee bem estar…”. Também anunciou a responsabilidade de cada pessoa de protegere melhorar o meio ambiente para a geração atual e as gerações futuras.36

2) O Princípio 10 da Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente eDesenvolvimento, de 1992, estabelece que: “A participação pública no processodecisório ambiental deve ser promovida e o acesso à informação facilitado”. Vincula-se, aqui, o assunto em termos processuais, mediante o direito do indivíduo àinformação relacionada com o meio ambiente que esteja em mãos das autoridadespúblicas.37

3) A Convenção sobre Acesso à Informação, Participação Pública eAcesso à Justiça nas Questões Ambientais (Aarhus, 25 de junho de 1998), assinadapor 35 Estados e a Comunidade Européia, adota um enfoque amplo, apoiando-seem textos anteriores, especialmente no Princípio 1 da Declaração de Estocolmo.Seu Preâmbulo declara que “toda pessoa tem o direito de viver num meio ambienteadequado a sua saúde e bem-estar e o dever, tanto individualmente quanto emassociação com outros, de proteger e melhorar o meio ambiente em benefício dageração atual e das gerações futuras”.

4) A Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança (NovaYork, 20 de novembro de 1989) faz referência aos aspectos da proteção ambientalrelacionados com o direito da criança à saúde. O seu art. 24 dispõe, entre outrascoisas, que: “1. Os Estados-partes reconhecem o direito da criança de gozar domelhor padrão possível de saúde e dos serviços destinados ao tratamento dasdoenças e à recuperação da saúde. Os Estados-partes envidarão esforços nosentido de assegurar que nenhuma criança se veja privada de seu direito de usufruir

36.Ver também United Nations (UN), Res. 45/94, que reafirma essa linguagem vinte anos mais tarde.37.Na pagina 5, nota nº 4, do Relatório da OEA, lê-se: “A mesma lógica se aplica à Convenção-Quadro das NaçõesUnidas sobre Mudança Climática (4 de junho de 1992), ao Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança àConvenção sobre Diversidade Biológica (Montreal, 29 de janeiro de 2000), artigo 23, ao artigo 10.1, da Convençãosobre Poluentes Orgânicos Persistentes (Estocolmo, 22 de maio de 2001), à Convenção de Espoo sobre Avaliaçãodo Impacto Ambiental num Contexto Transfronteiriço, adotada em 25 de fevereiro de 1991, no decorrer dospreparativos para a Conferência do Rio, à Convenção sobre Responsabilidade Civil por Danos Resultantes deAtividades Perigosas ao Meio Ambiente (Lugano, 26 de junho de 1993), Capítulo III, compreendendo os artigos13 a 16, ao Convênio Norte-Americano sobre Cooperação Ambiental (Washington, D.C., 13 de setembro de1993), artigo 2.1, a, 14. Também conhecido como acordo complementar ao NAFTA, o tratado inclui acordosinstitucionais para participação pública e é o primeiro acordo ambiental a estabelecer um procedimento paraapresentação de queixas de indivíduos e organizações quanto a deixar o Estado de fazer valer sua legislaçãoambiental, inclusive a que decorra de obrigações internacionais”.

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desses serviços sanitários. (…) 2. Os Estados-partes garantirão a plena aplicaçãodesse direito e, em especial, adotarão as medidas apropriadas com vistas a: (…) c)combater as doenças e a desnutrição, dentro do contexto dos cuidados básicos desaúde mediante, inter alia, a aplicação de tecnologia disponível e o fornecimentode alimentos nutritivos e de água potável, tendo em vista os perigos e riscos dapoluição ambiental”.38

5) A Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos (Banjul, 26 dejunho de 1991) inclui várias disposições relacionadas com o direito ao meio ambientesadio. O art. 24, por exemplo, declara que: “Todos os povos têm direito a um meioambiente geral satisfatório, propício ao seu desenvolvimento”.

6) O art. 27 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Européiadispõe que: “Todas as políticas da União devem integrar um elevado nível deproteção do ambiente e a melhoria da sua qualidade, e assegurá-los de acordo como princípio do desenvolvimento sustentável”.

7) O art. 111 do Tratado para o Estabelecimento da Comunidade daÁfrica Oriental, por fim, estabelece que “um meio ambiente limpo e sadio éprecondição para o desenvolvimento sustentável”.39

Este breve paralelo entre os instrumentos internacionais contemporâneoscitados bem demonstra o impulso à inter-relação dos direitos humanos com aproteção internacional do meio ambiente, no atual contexto das relaçõesinternacionais.

Dentre todos estes instrumentos internacionais, aqueles que se revestemda qualidade de tratados têm uma forma própria de ingresso e aplicabilidade noordenamento jurídico brasileiro, nos termos da regra do § 2º do art. 5º, da nossaConstituição. É importante, então, que nós verifiquemos as regras constitucionaisbrasileiras de incorporação dos tratados internacionais de proteção dos direitoshumanos, onde indubitavelmente se incluem (como já explicamos) as normasinternacionais de proteção do meio ambiente.

7. A Constituição brasileira de 1988 e os tratados internacionais de direitoshumanos

A Constituição brasileira de 1988, alcunhada de “cidadã”, foi o marcofundamental para o processo da institucionalização dos direitos humanos no Brasil.Erigindo a dignidade da pessoa humana a princípio fundamental, pelo qual aRepública Federativa do Brasil deve se reger no cenário internacional, instituiu aCarta brasileira um novo valor que confere suporte axiológico a todo o nossosistema jurídico e que deve ser sempre levado em conta quando se trata de interpretar

38.Texto em MAZZUOLI, Valerio de Oliveira (org.), Coletânea de direito internacional, cit., p. 510.39.Doc. Conselho Permanente da OEA, Comissão de Assuntos Jurídicos e Políticos. Relatório da Secretaria-Geralsobre o Cumprimento da AG/Res. 1819 (XXXI-O/01), Direitos Humanos e Meio Ambiente, cit., Seção 5, baseadano Documento de Antecedentes da Professora Dinah Shelton, da Universidade de Notre Dame, nº 1 e 2, Questõesambientais e direitos humanos nos tratados multilaterais adotados entre 1991 e 2001, preparado para o SeminárioConjunto de Peritos em Direitos Humanos e Meio Ambiente PNUMA-ACDH, realizado em Genebra, em janeirode 2002.

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quaisquer das normas constantes do ordenamento jurídico pátrio.Nessa esteira, a Carta de 1988, seguindo a tendência do constitucionalismo

contemporâneo de se igualar hierarquicamente os tratados de proteção dos direitoshumanos às normas constitucionais, deu um grande passo rumo a abertura dosistema jurídico brasileiro ao sistema internacional de proteção de direitos, quando,no § 2º do seu art. 5º, deixou estatuído que:

“Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outrosdecorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratadosinternacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”[grifo nosso].

A inovação, em relação às Constituições brasileiras anteriores, diz respeitoà referência aos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasilseja parte. Nas Constituições anteriores, em dispositivos semelhantes, não constavaa referência aos “tratados internacionais” como consta na atual Constituição. Talmodificação, referente a estes instrumentos internacionais, além de ampliar osmecanismos de proteção da dignidade da pessoa humana, veio também reforçar eengrandecer o princípio da prevalência dos direitos humanos, consagrado pelaCarta de 1988 como um dos princípios pelo qual a República Federativa do Brasildeve se reger em suas relações internacionais (CF, art. 4º, II). E isto fez com que semodificasse sensivelmente, no Brasil, a interpretação relativa às relações do direitointernacional com o direito interno, no que toca à proteção dos direitosfundamentais, coletivos e sociais. Basta pensar que a inserção dos Estados em umsistema supraestatal de proteção de direitos, com seus organismos de controleinternacional, fortalece a tendência constitucional em limitar o Estado e seu poder,em prol da proteção e salvaguarda dos direitos humanos universalmentereconhecidos.

O processo de internacionalização dos direitos humanos, assim, tevefundamental importância para a abertura democrática do Estado brasileiro, quepassou a afinar-se com os novos ditames da nova ordem mundial a partir de entãoestabelecida. Essa abertura, por sua vez, contribuiu enormemente para a inserçãoautomática dos tratados internacionais de direitos humanos na ordem jurídicabrasileira e para a redefinição da cidadania no âmbito do direito brasileiro.

O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, que também integrao contexto dos direitos humanos fundamentais, é um direito que se encontraexpresso na Constituição. Nos termos do já citado art. 225, caput, da Constituição:“Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de usocomum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Públicoe à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futurasgerações”. Assim sendo, na medida em que, nos termos do art. 5,º § 2º daConstituição, os direitos e garantias nela expressos (“expressos nesta Constituição”)não excluem outros decorrentes “dos tratados internacionais em que a República

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Federativa do Brasil seja parte”, a conclusão que se chega é que os tratadosinternacionais de proteção ao meio ambiente detêm um status diferenciado dentrodo nosso sistema jurídico, integrando-se ao ordenamento brasileiro com hierarquiade “normas constitucionais”.40 Tal constatação independe do que dispõe o art. 5º,§ 3º da Carta Magna de 1988, introduzido no texto constitucional pela Emenda nº45/2004, que aparentemente atribui hierarquia constitucional aos tratados de direitoshumanos quando estes forem aprovados pelo quorum qualificado de três quintosdos votos de cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos de votação.41

O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, expresso no art.225, caput, da Constituição, portanto, pode ser complementado por outrosprovenientes de tratados internacionais de proteção ao meio ambiente. Se os direitose garantias expressos no texto constitucional “não excluem” outros provenientesdos tratados internacionais em que o Brasil seja parte, é porque, na medida em quetais instrumentos passam a assegurar certos direitos e garantias, a Constituição“os inclui” no seu catálogo de direitos protegidos, ampliando, assim, o seu “blocode constitucionalidade”.42

Gozando tais instrumentos internacionais de hierarquia constitucional,e ingressando, consequentemente, no chamado “bloco de constitucionalidade”,ou seja, no catálogo dos direitos e garantias fundamentais protegidos, fica também

40.Para um estudo detalhado da incorporação dos tratados internacionais de direitos humanos no ordenamentojurídico brasileiro, v. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira, Direitos humanos, Constituição e os tratadosinternacionais: estudo analítico da situação e aplicação do tratado na ordem jurídica brasileira, cit., pp. 233-252. Pelo status constitucional dos tratados internacionais de direitos humanos, v. também: CANÇADOTRINDADE, Antônio Augusto, “A interação entre o direito internacional e o direito interno na proteção dosdireitos humanos”, in A incorporação das normas internacionais de proteção dos direitos humanos no direitobrasileiro, 2ª ed., San José, Costa Rica.Brasília: IIDH (et all.), 1996, pp. 210 e ss; PIOVESAN, Flávia, Direitoshumanos e o direito constitucional internacional, cit., pp. 73-94, e Temas de direitos humanos, São Paulo: MaxLimonad, 1998, pp. 34-38; SILVA, José Afonso da, Poder constituinte e poder popular: estudos sobre aConstituição, São Paulo: Malheiros, 2000, pp. 195-196.41.Para o entendimento do assunto, v. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira, “O novo § 3º do art. 5º da Constituição esua eficácia”, in Revista Forense, vol. 378, ano 101, Rio de Janeiro, mar./abr./2005, pp. 89-109, também publicadona Revista da AJURIS, ano XXXII, n.º 98, Porto Alegre, jun./2005, pp. 303-331.42.Esta também é a opinião do Prof. Celso Lafer, manifestada em substancioso parecer proferido no Habeas Corpusnº 82.424-RS, do Supremo Tribunal Federal, cujo caso ligava-se à prática do crime de racismo (que é imprescritívelnos termos do art. 5º, inc. XLII, da Constituição), cometido por sujeito propagador de idéias nazistas e anti-semitaspor meio de livros publicados por editora de sua propriedade. Ao tratar da integração da Convenção para a Eliminaçãode Todas as Formas de Discriminação Racial, de 1965, no ordenamento jurídico brasileiro, o Prof. Lafer, citando anossa doutrina, assim leciona: “O § 2º do art. 5º da Constituição de 1988 determina, em matéria de direitos egarantias, a recepção, pelo Direito brasileiro, do que estipulam os Tratados Internacionais em que a RepúblicaFederativa do Brasil é parte. No caso da Convenção de 1965, sua vigência e aplicação em nosso país antecede aConstituição de 1988 e o seu regime é inteiramente compatível com o texto constitucional e a sua correspondentelegislação infra-constitucional. Neste sentido, pode se dizer que a Convenção de 1965 integra o ‘bloco deconstitucionalidade’ à maneira do que observa Valerio de Oliveira Mazzuoli invocando Bidart Campos. Estaintegração da Convenção de 1965 ao ‘bloco de constitucionalidade’ não é problemática, pois não suscita nem oproblema das antinomias nem a discussão sobre a mudança da Constituição, de forma distinta da prevista para asemendas constitucionais, temas com os quais se preocuparam os Ministros Moreira Alves e Gilmar Mendes etambém, no campo doutrinário, o Prof. Manoel Gonçalves Ferreira Filho”. (LAFER, Celso. Parecer. “Art 5º, XLII daConstituição – Art. 20 da Lei 7.716/89, com a redação dada pela Lei 8.081/90, que define os crimes resultantes depreconceito de raça e cor – Interpretação do alcance e conteúdo do crime de prática do racismo”, de 24 de março de2003, pp. 94-95, in STF – Habeas Corpus nº 82.424-RS, indeferido por maioria, rel. orig. Min. Moreira Alves, rel.para acórdão Min. Maurício Corrêa, julg. em 17.09.2003).

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impedida, por parte do Supremo Tribunal Federal, qualquer declaração deinconstitucionalidade no que diz respeito aos direitos e garantias contidos nessestratados.43 Portanto, na medida em que tais tratados detêm o status de “normasconstitucionais”, dá-se por desprezado qualquer argumento que possa sustentaro seu não-cumprimento ou a sua não-aplicação.

A hierarquia constitucional dos tratados de proteção dos direitos humanos,não serve apenas de complemento à parte dogmática da Constituição, implicando,ainda, no exercício necessário de todo o poder público – aí incluso o judiciário –,em respeitar e garantir a plena vigência desses instrumentos. Disto decorre que aviolação de tais tratados constitui não só em responsabilidade internacional doEstado, mas também na violação da própria Constituição que os erigiu à categoriade normas constitucionais.

Aqueles que resistem a esta solução – tanto no Brasil, como em outrospaíses que elegeram os tratados de proteção dos direitos humanos como normasprevalentes – apelam, na maioria das vezes, para a tão antiga doutrina da soberaniaestatal absoluta – que a seus juízos ficaria desvirtuada ou prejudicada –, bem comopara a supremacia da Constituição. Não falta, também, a invocação ao poderconstituinte, sob a infundada alegação de que, admitir que os tratados internacionaisde proteção dos direitos humanos têm status de norma constitucional (ousupraconstitucional se levarmos em conta a tendência mundial de proteção dedireitos), seria o mesmo que anular de vez a participação dos órgãos do poderconstituído no processo de formação das leis.

Tais argumentos, nas palavras de German J. Bidart Campos, traduzem “umaescassíssima capacidade de absorção das tendências que, aos fins de nosso século,exibem o direito internacional e o direito constitucional comparado”. Ademais,ainda segundo Bidart Campos, não revisar os conceitos e os modelos tradicionaisdo poder constituinte e da supremacia constitucional a fim de introduzir-lhes osreajustes que o ritmo histórico do tempo e as circunstâncias mundiais reclamam,significa “paralisar a doutrina constitucional com congelamentos que eqüivalem aatraso”.44

43.O art. 102, III, b, da Constituição brasileira de 1988, confere ao Supremo Tribunal Federal a competência para“julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisãorecorrida: b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal”. De acordo com o nosso entendimento, estedispositivo não pode ser aplicado no caso dos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos, ondetambém se enquadram os tratados internacionais de proteção do meio ambiente, posto que não se declara ainconstitucionalidade de direitos e garantias fundamentais. Tais direitos e garantias fundamentais são cláusulaspétreas no direito brasileiro, não podendo ser abolidos nem mesmo pela via de Emenda à Constituição. As cláusulaspétreas impõem limites materialmente explícitos de reforma constitucional. Essas limitações materiais explícitasconstantes do § 4º do art. 60 da Constituição impedem, na via de emenda constitucional, qualquer proposta tendentea abolir: (I) a forma federativa do Estado; (II) o voto direto, secreto, universal e periódico; (III) a separação dosPoderes; e (IV) os direitos e garantias individuais. Observe-se que, neste último caso, a respectiva cláusula pétreasó alcança os direitos e garantias individuais e não os coletivos.44.BIDART CAMPOS, German J. El derecho de la Constitucion y su fuerza normativa. Buenos Aires: EdiarSociedad Anónima Editora, 1995, pp. 455-456.

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No que diz respeito aos tratados internacionais de proteção do meioambiente, existe ainda outro forte argumento a justificar o seu caráter especial e otratamento jurídico privilegiado que lhes foi atribuído pelo texto constitucionalbrasileiro, que é a consideração de ser o meio ambiente um direito de naturezadifusa, que transcende os limites territoriais da soberania dos Estados e ultrapassaas suas fronteiras físicas.45 Tal faz com que a proteção do meio ambiente passe aser matéria afeta também à proteção do direito internacional e objeto próprio de suaregulamentação, o que se pode notar pelo o advento dos inúmeros tratadosinternacionais concluídos, nos últimos anos, para essa específica finalidade.Ademais, o processo de internacionalização da proteção do meio ambiente, quetem acompanhado a internacionalização dos direitos humanos no plano global,fortalece e intensifica a tese da erosão do chamado domínio reservado dos Estados,segundo a qual o tratamento que o Estado confere aos seus nacionais e ao seumeio ambiente é matéria afeta à sua jurisdição exclusiva.46

Matérias das mais relevantes para o meio ambiente, cuja proteção seencontra assegurada por tratados internacionais, como as questões sempre atuaisatinentes à mudança do clima e à diversidade biológica,47 portanto, passam a integraro direito brasileiro com índole e nível constitucionais, ampliando e fortalecendo orol dos direitos fundamentais do homem constitucionalmente protegidos pelo textoconstitucional brasileiro.

Como se já não bastasse o status constitucional atribuído pela Carta de1988 aos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos, é ainda de seressaltar que tais tratados, por disposição também expressa da Constituição, passama incorporar-se automaticamente em nosso ordenamento, a partir de suasrespectivas ratificações. É a conclusão que se extrai do mandamento do § 1º do art.5º da nossa Carta Magna, segundo o qual: “As normas definidoras dos direitos egarantias fundamentais têm aplicação imediata”.

Frise-se que o § 1º do art. 5º da Constituição de 1988, dá aplicação imediataa todos os direitos e garantias fundamentais, sejam estes expressos no texto daConstituição ou provenientes de tratados, vinculando-se todo o judiciário nacionala esta aplicação, e obrigando, por conseguinte, também o legislador, aí incluído olegislador constitucional. É dizer, seu âmbito material de aplicação transcende ocatálogo dos direitos individuais e coletivos insculpidos nos arts. 5º a 17 da Carta

45.Veja-se, por exemplo, a questão da poluição e dos vários desastres atômicos já sofridos pelo planeta nos últimosanos, que chegam a afetar regiões inteiras do globo terrestre, desconhecendo fronteiras e limites físicos. Veja-se,ainda, a situação das espécies animais e vegetais em perigo de extinção, a situação dos rios transfronteiriços e doslagos internacionais, bem como a questão da camada de ozônio, responsável pela filtragem dos raios solaresprejudiciais ao homem. Cf., nesse sentido, SOARES, Guido Fernando Silva, Curso de direito internacional público,vol. 1., cit., pp. 407-408.46.Cf., a respeito, CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto, Direitos humanos e meio-ambiente: paralelo dossistemas de proteção internacional, cit., pp. 39-51.47.Sobre tais assuntos v. MELLO, Celso D. de Albuquerque, Curso de direito internacional público, 2º vol., cit.,pp. 1290-1293; SOARES, Guido Fernando Silva, Direito internacional do meio ambiente…, cit., pp. 70-93 e127-129; e CLABOT, Dino Bellorio, Tratado de derecho ambiental, Buenos Aires: Ad-Hoc, 1997, pp. 500-503.

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da República, para abranger ainda outros direitos e garantias expressos na mesmaConstituição (mas fora do catálogo), bem como aqueles decorrentes do regime edos princípios por ela adotados e dos tratados internacionais em que a RepúblicaFederativa do Brasil seja parte, tudo, consoante a regra do § 2º do art. 5º, daConstituição.

É justamente este último caso (aplicação imediata dos tratadosinternacionais de direitos humanos) que interessa particularmente a este estudo.Ora, se as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicaçãoimediata, os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos, uma vezratificados, por também conterem normas que dispõem sobre direitos e garantiasfundamentais, terão, dentro do contexto constitucional brasileiro, idêntica aplicaçãoimediata. Da mesma forma que são imediatamente aplicáveis aquelas normasexpressas nos arts. 5º a 17 da Constituição da República, o são, de igual maneira, asnormas contidas nos tratados internacionais de direitos humanos de que o Brasilseja parte.

Atribuindo-lhes a Constituição a natureza de “normas constitucionais”,passam os tratados internacionais de proteção do meio ambiente, pelo mandamentodo citado § 1º do seu art. 5º, a ter aplicabilidade imediata, dispensando-se, destaforma, a edição de decreto de execução para que irradiem seus efeitos tanto noplano interno como no plano internacional. Já nos casos de tratados internacionaisque não versem sobre direitos humanos, este decreto, materializando-osinternamente, faz-se necessário. Em outras palavras, com relação aos tratadosinternacionais de proteção dos direitos humanos, foi adotado no Brasil o chamadomonismo internacionalista kelseniano, dispensando-se da sistemática daincorporação, o decreto executivo presidencial para seu efetivo cumprimento noordenamento pátrio, de forma que a ratificação do tratado por um Estado, com odepósito dos seus instrumentos no órgão depositário ou no organismo internacionalresponsável, importa na incorporação automática de suas normas à respectivalegislação interna.

É ainda de se ressaltar que todos os direitos inseridos nos referidostratados, incorporando-se imediatamente no ordenamento interno brasileiro (CF,art. 5º, § 1º), por serem normas também definidoras dos direitos e garantiasfundamentais, passam a ser cláusulas pétreas do texto constitucional, não podendoser suprimidos nem mesmo por emenda à Constituição (CF, art. 60, § 1º, IV). É o quese extrai do resultado da interpretação dos §§ 1º e 2º, do art. 5º da Lei Fundamental,em cotejo com o art. 60, § 4º, IV, da mesma Carta.

Enfim, aceitar o ingresso dos tratados internacionais de proteção dosdireitos humanos (aqui inclusos os tratados em matéria ambiental) com hierarquiade norma constitucional significa, ao contrário do que pensam os autores adeptosda velha doutrina da soberania estatal absoluta, deixar a Constituição mais intensae com melhor aptidão para operar com o direito internacional público, em geral, ecom o direito internacional do meio ambiente, em especial.

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8. ConclusõesO direito internacional do meio ambiente, assim como a proteção

internacional da pessoa humana, é uma conquista da humanidade, notadamenteadvinda do pós-Segunda Guerra Mundial, momento em que a sociedadeinternacional começou a esboçar a estrutura normativa do sistema internacional deproteção dos direitos do homem. Deste momento em diante, o mundo passou apresenciar uma verdadeira proliferação de tratados internacionais protetivos dosdireitos da pessoa humana, tanto nos seus aspectos civis e políticos, como naquelesligados às áreas do domínio econômico, social e cultural.

A inserção do tema “meio ambiente” na esfera de proteção dos direitoshumanos decorreu da percepção de que questões ligadas à proteção do meioambiente não se limitam à poluição advinda da industrialização, mas abrangem umuniverso muito mais complexo, que envolve todo o planeta e podem colocar emrisco a saúde mundial.

A Declaração de Estocolmo, de 1972, deve ser compreendida em paralelocom a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948. A conjugação deambos os textos demonstra o caráter de direito humano fundamental do meioambiente ecologicamente equilibrado, ainda mais se cotejado com a disposição doart. 225, caput, da Constituição brasileira de 1988, que impõe ao Poder Público e àcoletividade o dever de defender e preservar o meio ambiente, que é bem de usocomum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, para as presentes e futurasgerações.

De outra banda, pode-se pensar na resolução das controvérsiasenvolvendo os direitos humanos e o direito ao desenvolvimento com a utilizaçãoadequada (o que envolve bom senso e razoabilidade, por parte dos Estados e daspessoas) do conceito de desenvolvimento sustentável, que poderá amenizarsobremaneira os conflitos daí decorrentes. O ponto de partida, para isto, é deixar delado uma postura baseada numa antropologia unilateral, focada de modo egoístana vida humana, em benefício de uma postura fundada em uma antropologiasolidária, onde possam ser respeitadas outras formas de vida, além da humana.

O direito a um meio ambiente sadio e ecologicamente equilibrado é umaextensão e um corolário lógico do direito à vida, sem o qual nenhum ser humanopode vindicar a proteção dos seus direitos fundamentais violados. O conceito de“vida humana” deve transcender os estreitos limites de sua atuação física, paratambém abranger direito à sadia qualidade de vida em todas as suas vertentes eformas.

No sistema interamericano de direitos humanos assegura-se o direito a ummeio ambiente sadio, no art. 11 do Protocolo Adicional à Convenção Americanasobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais(Protocolo de San Salvador), de 17 de novembro de 1988, bem como najurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, ainda que aqui seesteja dando tão-somente os primeiros passos rumo a uma futura e mais amplaintegração de ambos esses temas. No sistema global, a inter-relação dos direitos

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humanos com a proteção internacional do meio ambiente se faz sentir em váriasdeclarações e tratados internacionais de direitos humanos que consagram regrasprotetivas do meio ambiente, e vice-versa. Ainda que muita coisa tenha de ser feita,já se pode vislumbrar as primeiras manifestações contemporâneas rumo a umaconjunção efetiva de ambos os sistemas de proteção.

O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (que é um direitoexpresso no texto constitucional, constante do art. 225, caput), quando interpretadoà luz do art. 5º, § 2º, da Constituição, deve ser entendido no sentido de que nele seincluem todas as normas de proteção ao meio ambiente provenientes dos tratadosinternacionais ambientais ratificados pelo Brasil. Tais tratados, assim como todosos outros instrumentos de proteção de direitos humanos ratificados pelo Brasil(tratados internacionais sobre direitos civis e políticos e sobre direitos econômicos,sociais e culturais), passam a deter o status de normas constitucionais,incorporando-se automaticamente no ordenamento jurídico brasileiro. Além disso,tais tratados passam a ser fonte do sistema constitucional de proteção de direitos,por ingressarem na ordem jurídica brasileira com índole e nível constitucionais.

A Constituição de 1988 está perfeitamente apta a operar com o direitointernacional, bastando que os operadores do direito percebam o grande passodado pelo legislador constituinte no que tange à incorporação dos tratados deproteção dos direitos humanos no ordenamento jurídico brasileiro. O mesmo sediga em relação à proteção internacional do meio ambiente e a seus instrumentosjurídicos de proteção.

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CONCEPTO, FUNDAMENTO Y PROTECCIÓNDE LOS DERECHOS HUMANOS EN EL ESTADO

DEMOCRATICO Y SOCIAL DE DERECHO*

Rafael Enrique Aguilera PORTALES* **

Estamos viviendo en unos tiempos en que a diario pueden hacer suaparición modalidades inauditas de coacción, de esclavitud, deexterminio –modalidades que a veces se dirigen contra determinadosestratos de la población y que otras se extienden sobre vastos territorios.

Ernst Jünger, La emboscadura

Sumário: 1. Introducción 2. Sobre el Concepto y Fundamento de los derechoshumanos 3.Hacia una cultura política y jurídica de los Derechos humanos 4. ElEstado democrático y social de Derecho como referente de los derechosfundamentales.

Resumo: O artigo objetiva discutir, a partir de uma perspectiva crítica, o conceito efundamento dos direitos humanos, e como ocorre sua proteção no EstadoDemocrático e Social de Direito.

Abstract: The article discusses, from a critical perspective, the concept and rationaleof human rights and their protection as occurs in the Social and Democratic Stateof Law.

Palavras-chave: direitos humanos; fundamento; conceito; proteção.

Key-words: human rights; reasons; concept; protection.

1. Introducción.Los derechos humanos urgen y precisan de mayor clarificación y

dilucidación conceptual y fundacional dentro del irreversible proceso de

* Profesor de Filosofía del Derecho y Derecho Político de la Facultad de Derecho de la Universidad Autónoma deNuevo León (UANL), investigador del Instituto de Investigaciones Jurídicas, Doctor en Filosofía política yjurídica por la Universidad de Málaga (España), miembro del Sistema Nacional de Investigadores (CONACYT)Nivel I. Autor Convidado.** Este trabajo se desarrolla dentro del proyecto de investigación apoyado en la convocatoria de PAICYT 2007 dela Universidad Autónoma de Nuevo León titulado “La promoción de los derechos humanos para un ciudadaníademocrática en el Estado de Nuevo León”.

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globalización tecnológica, económica y política. Es indudable que los derechoshumanos son una de los grandes invenciones iusfilosóficas que ha producido lamodernidad jurídica y política y, sobre todo, nuestra cultura occidental, una culturamultisecular con una clara, decidida y fuerte vocación universalista. Los derechoshumanos representan un instrumento, un límite o umbral para evitar cualquier tipode atropello, vulneración o catástrofe que se produzca hacia la vida humana.

Actualmente, asistimos a un creciente y renovado interés por los estudiossobre Derechos Humanos, un marcado interés por parte de los juristas, politólogos,sociólogos hacia cuestiones y temas abordados tradicionalmente por la Filosofíadel Derecho, aunque también debemos señalar que una gran parte de juristasdesconfía abiertamente de las especulaciones filosófico-jurídicas por considerarlasirrelevantes para la práctica jurídica1. Sin duda, esta actitud responde a viejosparadigmas del pensamiento jurídico todavía vigentes, un ejemplo claro y evidentelo podemos observar cuando abordamos el problema del concepto y fundamentode los derechos humanos. Todavía existe una tendencia a dejar de lado en ladogmática jurídica, bajo la fuerte herencia e influencia del neopositivismo yneopragmatismo jurídico, los problemas relativos al concepto y fundamento de losderechos humanos por considerarlos problemas insustanciales e intrascendentespara la aplicación e interpretación del Derecho.

Evidentemente tratar el problema del concepto y fundamento de losderechos humanos y no tener en cuenta los graves problemas actuales que afectana los seres humanos como limpieza étnica, refugiados, desplazados, inmigración,discriminación de la mujer, pobreza, marginación no sólo es una contradicción sinoque puede conducirnos a una reflexión intelectual inútil y estéril2, por lo cual,requerimos de un reflexión crítica y rigurosa sobre los derechos humanosacompañada de una defensa radical y firme de los mismos. Considero que ambasestrategias son legítimas, urgentes y necesarias y, en absoluto, incompatibles sinoque además se encuentran estrechamente conectadas. Es tarea de la filosofía jurídicatratar de realizar una reconstrucción racional y crítica del concepto de los derechoshumanos, dilucidar y reflexionar sobre un concepto demasiado vago, impreciso einexacto. Una reflexión que indudablemente tiene consecuencias prácticas socialesy jurídicas fundamentales como es la ordenación y alcance de una sociedad justay desarrollada.

La experiencia horrenda y brutal del holocausto3 marca un punto deinflexión en nuestra propia historia y determina una nueva voluntad política

1 PEREZ LUÑO, A. E.: Teoría del Derecho. Una concepción de la experiencia jurídica, 19972 DE ASÍS ROIG Rafael, Escritos sobre Derechos humanos, Ara editores, Lima, 2005; PEREZ LUÑO, AntonioEnrique, Trayectorias contemporáneas de la Filosofía y la Teoría del Derecho, Lima, Palestra, 4° ed., 20053 GRAY, John, Perros de paja, Barcelona, Paidós, 2000, p. 215. Véase también GLOVER, Jonathan, Humanidade inhumanidad. Una historia moral del siglo XX, trad. Marco Aurelio Galmarini, Madrid, Cátedra, 2001. Cuandocontemplamos los nefastos acontecimientos de Auschwitz, los Gulags e Hiroschima podemos corroborar el pocoo nulo avance que hemos realizado en materia de derechos humanos en nuestro siglo pasado y actual. Estosacontecimientos nos deberían interpelar a realizar un mayor esfuerzo teórico y práctico de defensa, difusión ypropagación de los derechos humanos. POPPER, K.O., En busca de un mundo mejor, Barcelona, Paidós, 1994.

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occidental más decidida a favor de la prevención y difusión de los derechos humanos.De esta forma, la Declaración universal de la ONU en 1948 significa unreplanteamiento de los fundamentos de los derechos humanos y una puesta enmarcha de todo un programa de universalización efectiva.

Entre 1492 y 1990, hubo al menos 36 genocidios que se cobraron, cada unode ellos, entre decenas de miles y decenas de millones de vidas. Desde 1950, hahabido casi veinte genocidios; de ellos, al menos tres tuvieron más de un millón devíctimas (en Bangladesh, Camboya y Ruanda). Sólo las dos Guerras Mundiales(1914 y 1945) se cobraron 55 millones de vidas humanas.

En la actualidad, la pobreza priva a millones de personas de sus derechosfundamentales, derechos políticos, culturales y socio-económicos. Sin embargo,tenemos que abordar una concepción integral y amplia de desarrollo, que dependade una concepción de democracia, pues la prosperidad económica también estáligada al desarrollo y profundización de las libertades y derechos fundamentales.

Según el último Informe del Banco Interamericano de Desarrollo, AméricaLatina en su conjunto cerró el siglo XX como la zona más desigual de la tierra, conbastante más de un tercio de la población por debajo de los niveles de subsistenciausualmente estimados como mínimos y con casi una cuarta parte de sus habitantescarentes de educación. La región padece claramente de una grave situación dedesigualdad si la comparamos con otras regiones del mundo con niveles similaresde PBI. América Latina brinda desde hace tiempo el ejemplo por excelencia de unagran desigualdad unida a una gran pobreza y a una gran polarización.

2. Sobre el Concepto y Fundamento de los derechos humanos.En primer lugar, necesitamos esclarecer, profundizar, indagar sobre los

fundamentos filosóficos de los derechos humanos como categoría compleja denuestro proceso de modernidad jurídica. No eludo la dificultad que conlleva hablardel fundamento de los derechos humanos porque, por un lado, estamos hablandode un concepto que aglutina esferas y ámbitos distintos y, por otro lado, el conceptode derechos humanos adolece de una vaguedad congénita e inherente4.

Pero esta imprecisión o vaguedad semántica no constituye una dificultada mi modo de ver sino una característica esencial de la constitución misma de losderechos humanos. Según el profesor Luís Prieto Sanchís: “los derechosfundamentales, como categoría ética, cultural e histórica –es decir- prejurídica-, noconstituye una concepción cerrada y acabada que los ordenamientos positivostan sólo pueden acoger o rechazar en su totalidad, sino más bien un conceptoabierto a distintas concepciones y desarrollos”5. De aquí que precisemos abordarsu fundamento desde una pluralidad metodológica de corrientes iusfilosóficas6,

4 PRIETO SANCHÍS, Luis, “Derechos Fundamentales” en GARZÓN VALDÉS, Ernesto y LAPORTA, F. J. (comp.)El Derecho y la justicia, Consejo Superior de Investigaciones Científicas, Trotta, Madrid, 1996, pp. 501-504, p.501.5 PRIETO SANCHÍS, Luis, Idem, p.507.6 DÍAZ, Elías, Sociología y filosofía del derecho, Taurus, Madrid, 1999

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pues nos encontramos ante una realidad compleja que difícilmente se deja atraparen una definición simple y sencilla.

El problema del concepto de los derechos humanos no es una cuestiónbaladí, estéril o superflua sino que tiene una íntima relación con sus procesos degarantía, protección e interpretación de los mismos, por parte tanto del poderlegislativo como del poder judicial. Por consiguiente, el concepto y fundamento delos derechos humanos toma especial relevancia en su proceso de positivaciónlegislativa como su interpretación y aplicación judicial7. El problema del conceptoy fundamento de los derechos humanos adquiere vital importancia sobre todo enlo que concierne a la interpretación jurídica, pues los derechos humanos seconvierten en criterio hermenéutico fundamental8 de todo razonamiento judicial,es decir, los derechos humanos son el pilar básico a través del cual debe serinterpretado todo ordenamiento jurídico. Toda interpretación de una norma jurídicabásica tiene que atender y respetar los derechos fundamentales, pues éstos son labase y fundamento legítimo de toda legislación y lo que es más importante decualquier Estado democrático de derecho que se precie.

El punto de partida de la doctrina de Häberle es que el contenido de laConstitución es, en su mayor parte indeterminado y que, por consiguiente, laConstitución vive de la interpretación, es decir, de la hermenéutica. En este sentido,Häberle distingue entre interpretación e intérpretes “en sentido estricto” y “ensentido amplio”9. La interpretación en sentido estricto es una actividad conscientedirigida a la comprensión y aplicación de la norma. La interpretación en sentidoamplio comprende cualquier “actualización” de la Constitución (cualquier ejerciciode derecho constitucional, de una función constitucional...) La puesta en prácticade la Constitución es pues, interpretación de la Constitución en sentido amplio yen ella participan todos los ciudadanos, grupos sociales y órganos estatales. Todosellos son “fuerzas productivas interpretadoras”10 que proporcionan materialeshermenéuticos a los interpretes en sentido estricto. De este modo, podemos decirque la interpretación de la que vive la Constitución es una forma de participacióncívica y democrática.

7 DE ASÍS ROIG Rafael, Escritos sobre Derechos humanos, Ara editores, Lima, 20058 El uso de este término se debe en gran medida a la obra de H. G. Gadamer y su importante obra Truth and Meth,en la cual deja claro que la hermenéutica no es un método para conseguir la verdad. GADAMER H. G., Verdad ymétodo. Fundamentos de una hermenéutica filosófica. Salamanca, Sígueme, 1977. FERRARIS, Maurizio, Lahermenéutica, (trad. José Luis Bernal), Taurus, 1999, México. Véase para un estudio más acabado y riguroso deltema la obra de PEDRO SERNA, Filosofía del Derecho y paradigmas epistemológicos, México, Porrúa, 2006.9 Véase para un estudio más destallado y profundo sus obras HÂBERLE La Constitución como proceso público(offentlich) y Materiales para una teoría constitucional de la sociedad abierta. También puede consultarse laobra del profesor ESTÉVEZ ARAUJO, J. A., La constitución como proceso y la desobediencia civil, Madrid,Trotta, 1994 donde se realiza un estudio pormenorizado de las implicaciones y consecuencias constitucionalesdel Estado democrático de Derecho.10 HÄBERLE, Peter, Libertad, igualdad, fraternidad. 1789 como historia, actualidad y futuro del Estadoconstitucional.(prologo de Antonio López Pina), Trotta, Madrid, 1998;BRAGE CAMACHO, Joaquín, Estudiopreliminar a HÄBERLE, Peter, El federalismo y el regionalismo como forma estructural del EstadoConstitucional, México, UNAM, 2006; DÍAZ REVORIO, Francisco Javier, La Constitución Abierta y suinterpretación, Lima, Palestra, 2004.

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3. Hacia una cultura política y jurídica de los Derechos humanos.El profesor Peter Häberle constata le relación estrecha y directa entre el

desarrollo de los derechos fundamentales y procesos culturales11. Ambos procesosel normativo y cultural se estimulan recíprocamente entrando en sinergia einteracción constante. El deterioro del entorno cultural, las regresiones autoritarias,la ausencia de políticas culturales precisas y adecuadas, las deficienciasinstitucionales, las tensiones políticas no resueltas, las crisis económicas y socialesafectan directamente al desarrollo y crecimiento de los derechos fundamentales.Los derechos fundamentales tienen un fuerza expansiva a lo largo del tiempo ycuentan con una dinámica propia que les permite desdoblarse hacia nuevos espaciosy ensanchar su contenido. De este modo, el profesor alemán Häberle interpreta laConstitución no sólo como un entramado jurídico de reglas sino como condicióncultural de un pueblo. “No es la Constitución sólo un texto jurídico o un entramadode reglas normativas sino también expresión de una situación cultural dinámica,medio de autorepresentación cultural de un pueblo, espejo de su legado cultural yfundamento de sus esperanzas.”12

Por tanto, existe una interrelación entre concepto y fundamento de losderechos humanos13. Buscar el fundamento de los derechos humanos es tratar a suvez de indagar y averiguar un concepto posible de los mismos. Igualmente, tratarde definir conceptualmente los derechos humanos es al mimo tiempo ofrecer unfundamento posible de éstos. Asimismo, por “fundamentación” y “fundamento”vamos a emplearlo como sinónimo de “justificación”, por ello, fundamentar losderechos humanos equivale a: dar razones a favor de dicho figura socio-jurídicay, sobre todo, responder ante posibles objeciones y dudas que vayan surgiendo.

No obstante, conviene precisar que en ningún momento hablamos de unintento de fundamentación de los derechos humanos no nos referimos a los intentosiusnaturalistas teológicos demasiado arraigados en nuestra cultura occidental14,sino a posibles intentos doctrinales iusfilosóficos que puedan servir de soportepara una auténtica promoción, difusión y protección de los derechos humanos,puesto que detrás de éstos subyacen presupuestos éticos, epistemológicos yontológicos jurídicos en los que descansa su aceptación.

La cuestión del concepto y fundamento de los derechos humanos seencuentra, en gran parte, con el problema de que los derechos humanos pertenecena un orden axiológico confuso, movedizo y poco delimitado. La primera cuestiónque nos asalta y aparece cuando abordamos dicha problemática es que los derechoshumanos pertenecen a tres ámbitos distintos pero entrelazados: los ámbitos moral,

11 HÂBERLE, Peter, El Estado Constitucional, Universidad Nacional Autónoma de México, México, 2001.12 HÄBERLE, Peter, Libertad, igualdad, fraternidad. 1789 como historia, actualidad y futuro del Estadoconstitucional.(prologo de Antonio López Pina), Trotta, Madrid, 1998, p. 4613 DE ASÍS ROIG Rafael, Escritos sobre Derechos humanos, Ara editores, Lima, 200514 GARCÍA, Carmelo Los derechos humanos en la situación actual del mundo, Madrid, PPC, 1999, 27. Losderechos humanos por tanto se vertebran en una doble dimensión que aunque distintas no necesariamente estándivorciadas: jurídico-política y ético-cultural.

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jurídico o político. Esta mezcla o confusión de los tres niveles hace más problemáticoel intento de fundamentación y constituye uno de los grandes desafíos y retos dela Filosofía y Teoría del derecho contemporánea. De aquí, que cuando hablamos dederechos humanos estamos hablando de una triple dimensión compartida15. Estoconvierte a los derechos humanos en aspiraciones éticas, políticas y jurídicasineludibles, reales y tangibles. En este sentido, una fundamentación trialista de losderechos humanos16 atiende a la concepción tridimensionalidad del Derecho comofenómeno jurídico complejo, flexible y abierto.

El filósofo del Derecho brasileño Miguel Reale defiende una concepciónamplia de Derecho existe una triple realidad o dimensionalidad17, es decir, podemoscontemplar la fenómeno del Derecho desde una triple visión, como hecho social,como valor y como norma. Del mismo modo estableciendo un claro paralelismo osimilitud respecto a los derechos humanos podemos contemplar tres dimensionesclaras. Estos tres componentes, hecho social, valor y norma son tres perspectivasentrecruzadas desde donde la filosofía del derecho puede enfocar la realidadjurídica. De esta forma, hablamos del Derecho como hecho social, pero agregándolela dimensión normativo, pues existen hechos sociales que no son normativos, yademás, valioso, con lo que se puede afirmar que el derecho es portador de unosvalores, como los de justicia, igualdad, libertad (carácter axiológico del derecho). Yvincula íntimamente la fundamentación de los derechos con su desarrollo y prácticaen los tres escenarios: el jurídico, el moral y el económico-político.

Considero que el fundamento dualista de los derechos humanos desde lacomplementariedad del dualismo iuspositivista y iusnaturalista es insuficienteporque elude al dimensión e impacto social de los mismos. Así pues, podemosdistinguir varias corrientes iusfilosóficas significativas dentro del Derecho:normativismo, sociologismo e iusnaturalismo. Estos tres niveles del ámbito jurídicono constituyen géneros de discurso incomunicados e inconmensurables. Comodice el profesor ELÍAS DÍAZ: “No habría así ruptura ni escisión total entre, por unlado, los elementos metajurídicos (elementos sociológicos y ético-filosóficos) y,por otro, los elementos propiamente jurídico-normativos”18.

En este sentido, podemos hablar de que existen varios canales decomunicación o al menos de la vías de aproximación que, entre estos tres niveles,ciencia, sociología y filosofía del derecho pueden ir lenta y paulatinamente

15 RECASENS SICHES, LUIS: Filosofía del Derecho, Editorial Porrúa, México, 1965.16 REALE, Miguel, Teoría tridimensional del Derecho, Madrid, Tecnos, 1997, véase también REALE, Miguel(1976) Fundamentos del Derecho, Palma, Buenos Aires, REALE, Miguel. Filosofía Do Dereito. Edit. SaraviaSao Pablo, Brasil, 1972.17 Miguel Reale, profesor de la Universidad de Sâo Paulo, ha distinguido esta triple dimensión del derecho.Debemos observar que en oposición a una visión ecléctica que puede ver una absoluta dispersión temática en lafilosofía del derecho, existe una coincidencia entre los autores respecto a los problemas fundamentales. MiguelReale advierte que la contribución de RECASENS SICHES a la teoría tridimensional del derecho es relevante,tanto en el estudio de la concepción general del derecho como en la concreción del fenómeno jurídico-normativo,como producto cultural y, por tanto, histórico. REALE, Miguel, Teoría tridimensional del Derecho, Madrid,Tecnos, 1997,18 DÍAZ, Elías, Sociología y filosofía del derecho, Taurus, Madrid, 1999, p.62.

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construyéndose. Por tanto, se tratará de ir poniendo de manifiesto, como la cienciajurídica precisa de la orientación de la sociología y la filosofía del derecho: como lasociología jurídica puede dar un mayor realismo a la ciencia del derecho y comopuede preparar el camino de la filosofía del derecho, y cómo ésta última puedefundamentar ética y epistemológicamente a las otras dos ciencias. De esta forma,legalidad, legitimación social y legitimidad son tres vertientes fundamentales delos derechos fundamentales.

Todo intento de fundamento iuspositivista radical de los derechoshumanos va toparse con el problema de la legitimidad. “No hay normas neutrasdesde el punto de vista de los valores: todo sistema de legalidad es expresión de undeterminado sistema de legitimidad, de una determinada idea de la misma condiciónhumana”19. Los derechos humanos están íntimamente conectados con esta categoríade legitimidad.

4. El Estado democrático y social de Derecho como referente de los derechosfundamentales.

El Estado democrático de derecho es un proceso de conquista histórica delos derechos fundamentales expresado a través de reivindicaciones, luchas políticas,disidencias colectivas o de formas de resistencia al poder establecido. La historiaeuropea de los derechos fundamentales, por ejemplo, puede entenderse como unproceso de aprendizaje colectivo de este tipo, interrumpido por derrotas yconquistas. Desde esta perspectiva, afirma Habermas “El Estado democrático dederecho aparece en su conjunto no como una construcción acabada, sino comouna empresa accidentada, irritante, encaminada a establecer o conservar, renovaro ampliar un ordenamiento jurídico legítimo en circunstancias cambiantes”20

Desde esta visión, podemos establecer una clara correspondencia oparalelismo entre el desarrollo histórico de las distintas transformaciones del Estadocon la aparición progresiva de las distintas generaciones de derechosfundamentales. Al Estado liberal de derecho le corresponde la primera generaciónde derechos fundamentales que son los derechos civiles y políticos, derechosindividuales descubiertos en las Revoluciones liberales. El Estado social de derechoexpresa y encarna la conquista histórica de los derechos de segunda generación,los derechos económicos, sociales y culturales acaecidos durante la Revolucióninsdutrial. El Estado Constitucional, en cuanto Estado de derecho de la tercerageneración19, expresa la última fase de derechos mucho más novedosos y pluralesde nuestra sociedad contemporánea como son el derecho a la paz, el derecho

19 DÍAZ, Elías, Sociología y filosofía del derecho, Taurus, Madrid, 1999 p. 252. Elias Diaz habla de tres nivelesde legitimidad, legitimidad válida, eficaz y justa, pero en sentido estricto considero que debe hablarse de legalidad,legitimación y legitimidad. Estas otras disciplinas son auténticas ciencias que enriquecen y amplían nuestrainvestigación y de las que necesariamente debemos de partir en un trabajo de investigación, estas se refieren almundo jurídico, contribuyendo a una comprensión integral de éste. De aquí, que no caigamos en la clausura ymonacato cerrado de un exclusivismo formalista y tecnicista que empobrece innecesariamente lo que sobre elDerecho, en su sentido más pleno, debe y puede hoy decirse desde un holismo amplio, comprensivo y diferenciadorque atienda a una interpretación amplia y flexiblemente totalizadora del mundo jurídico.

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medioambiental, los derechos de los consumidores, el derecho a la calidad de vidao la libertad informática acaecidos durante la última revolución tecnológica o digital.Nos encontramos, por tanto, ante una nueva etapa evolutiva de desarrollo de losderechos humanos, de tercera generación que complementa las dos etapasanteriores de los derechos liberales individuales y derechos económicos, socialesy culturales.

“Una sociedad libre y democrática deberá mostrarse siempre sensible yabierta a la aparición de nuevas necesidades que fundamenten nuevos derechos.Mientras esos derechos no hayan sido reconocidos en el ordenamiento jurídiconacional y/o internacional, actuarán como categorías reivindicativas, preformativasy axiológicas”20

“El Estado de derecho no es sólo una cosa de juristas, única yexclusivamente una cuestión jurídica. En él, como siempre tendría que ser, el derechoy el Estado no son sino medios oportunos, puede que imprescindibles, para un finmás esencial: no se hizo el hombre para ellos, sino ellos para el hombre, para losseres humanos. A quienes el rigor más importa que aquél exista, funcione y sea realy gobernantes sino a los ciudadanos, a sus derechos, a sus libertades y necesidades;y muy especialmente les interesa a aquellos que pueden protegerse menos, o nada,por sus propios medios, empezando por los de carácter económico”21

Considero interesante esta idea constitucional de integración, apertura yflexibilidad de la Constitución pues sólo desde esta concepción podremos viviruna cultura auténtica, sólida y dinámica de los derechos fundamentales, en estesentido, frente a cierto formalismo y positivismo jurídico imperante todavía enmuchas centros académicos, tribunales y juzgados debemos ver la configuracióndel Estado constitucional de derecho como una tarea urgente, pendiente y porhacer.

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LIBERDADE DE EXPRESSÃO NA INTERNET:GLOBALIZAÇÃO E O DIREITO

INTERNACIONALGelson Amaro de SOUZA FILHO*

SUMÁRIO: 1. Introdução 2. Internet como fenômeno da globalização 3. DaComunicação Social e os direitos fundamentais associados 3.1. Proteçãoconstitucional da comunicação social 3.2. Liberdade de pensamento e manifestação3.3. Liberdade de convicções políticas, ideológicas e religiosas 3.4. Liberdade deexpressão e as possibilidades da internet 3.5. Soberania do Estado na imposição delimites 4. Situação jurídica de sites criminosos hospedados no exterior 5.Considerações finais 6. Referências bibliográficas

RESUMO: Este trabalho discute o rompimento dos limites territoriais através dainternet (como fenômeno da globalização), que permite à sites destinados ao publicobrasileiro serem hospedados no exterior, inclusive com conteúdos criminosos.Aborda também a situação jurídica destes sites, apontando a característica soberanado Estado brasileiro, a importância da liberdade de expressão e as novasproblemáticas do Direito que surgiram com rede mundial de computadores.

ABSTRACT: This article discuss the absence of territorial limits on the internet(as a phenomenon of globalization), which allows some sites focused to Brazilianusers to be hosted in foreigner countries, also with criminal contents. It also arguesthe legal situation of these sites, pointing the sovereign characteristic of the BrazilianState; the importance of the free speech and the new legal problems that haveappeared with the internet.

PALAVRAS-CHAVE: Liberdade de Expressão. Comunicação Social. Crimes deInternet. Direito Internacional.

KEY-WORDS: Free Speech Rights. Communication Technology. Internet Crimes.International Law.

1. INTRODUÇÃOA liberdade é um elemento fundamental do Estado Democrático de Direito,

incluindo a liberdade de expressão, de pensamento, de manifestação, assim como

* Jornalista graduado e discente do curso de Direito das Faculdades Integradas Antônio Eufrásio de Toledo dePresidente Prudente-SP, na qual é pesquisador do grupo de Iniciação Científica coordenado pelo Professor Ms.Sérgio Tibiriçá do Amaral. E-mail: [email protected]. Artigo submetido em 25/05/2008. Artigo aprovadoem 30/07/2008

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a liberdade de convicção política, ideológica e religiosa. Desta forma, não há comocogitar uma sociedade democrática sem a possibilidade dos indivíduos manifestaremsuas opiniões e pensamentos livremente.

Contudo, a inviolabilidade prevista no art. 5º, X, da CF/88, traça os limitestanto para a liberdade de expressão quanto para o direito à informação, vedando osatos que ofendam a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas(direitos de personalidade). Assim, o direito à liberdade de expressão está sujeito alimites traçados pela Constituição Federal e também por outros dispositivos legais,podendo resultar em responsabilização civil e penal para aquele que deturpar eabusar deste direito, utilizando-o para fins ilícitos.

Portanto, antes de mais nada, é preciso diferenciar direitos de garantiasfundamentais. Os direitos, para Ruy Barbosa (BARBOSA, 1993), são disposiçõesmeramente declaratórias, que apenas estabelecem sua existência legal. Já asgarantias são as disposições assecuratórias que defendem esses direitos.

Há doutrinadores que tratam o assunto de forma diferente, como JoséJoaquim Gomes Canotilho, que considera as clássicas garantias como direitos(CANOTILHO, 2002). Entretanto, o mais importante para o estudo em questão ésaber que há direitos constitucionalmente assegurados, mas garanti-los nem sempreé tarefa fácil, principalmente quando se trata da internet, que não possuí fronteirasnem está limitada a uma única jurisdição. É possível limitar o acesso ao exemplo deCuba (o que seria antidemocrático), mas uma vez conectado um país passa a fazerparte inevitavelmente da globalização, seja em sentido econômico, através dapublicidade ou do comércio eletrônico, seja em sentido cultural, político e ideológico.

Diante deste panorama, há uma infinidade de conflitos envolvendo aliberdade de expressão na internet, tecnologia comunicacional que permite aqualquer pessoa publicar textos e imagens em espaços virtuais, seja em servidoresnacionais ou estrangeiros. Como não há fronteiras que limitem o acesso ainformação, não importa em que país o conteúdo está hospedado, pois, em geral,qualquer usuário pode acessá-lo. Desta forma, seria possível driblar a lei de umpaís que proíbe determinado conteúdo hospedando-o no exterior? Ou o crime écaracterizado pelo local onde o conteúdo foi produzido e não necessariamenteonde está hospedado? Em outra situação, seria lícito divulgar a intimidade de umapessoa pública para todo o mundo, mesmo em países em que tal pessoa não seja defato pública, pois nem é conhecida?

Todas essas questões são contemporâneas e entrelaçadas tanto com aglobalização como com o Direito Internacional. Abragem casos recentes e rotineirosde difamação através da internet, assim como casos de sites de cunho ideológicoque disseminam preconceitos raciais e sexuais, contrariando a Declaração Universaldos Direitos Humanos.

Por fim, este trabalho não pretende se concentrar apenas em casosparticulares, mas sim consolidar a idéia de que a internet, além de inovador meio decomunicação, é também um importante fenômeno jurídico a ser estudado.

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2. INTERNET COMO FENÔMENO DA GLOBALIZAÇÃOA internet é uma imensa rede de computadores interconectados através

de linhas telefônicas, satélites e outros sistemas de telecomunicações. Esta imensarede abrange diversas sub-redes que, em primeiro nível, são institucionais,administrando os acessos nacionais e regionais, e em segundo nível, são públicas,provendo acesso direto aos usuários, seja pago ou gratuito.

Seu surgimento data de 1969, quando os Estados Unidos lançou umprograma chamado “Grande Sociedade”, tendo como parte de suas propostas oprojeto de interconectar os municípios através da linha telefônica.

O termo internet foi criado a partir da expressão inglesa INTERaction orINTERconnection between computer NETworks1. Assim, conforme José BeneditoPinho (PINHO, 2003), a internet é a rede das redes, ou melhor, o conjunto de redesde computadores conectados em diversos países para compartilhar informações erecursos computacionais.

Em 1991 houve a suspensão pela NSF (National Science Fondation) daproibição ao uso comercial da rede, abrindo caminho para o comércio eletrônico.Desta forma, os empreendimentos “on-line” atraíram muitos investidoresrapidamente, dando início ao vasto império dos sites “.com” (PINHO, 2003).

No Brasil, a rede foi estabelecida em 1989 para uso científico, sob iniciativado MCT (Ministério da Ciência e Tecnologia) que desenvolveu a RNP (RedeNacional de Pesquisa). Mas somente em 1995 a internet foi aberta ao setor privado,visando a exploração comercial por parte dos primeiros provedores de acessodiscado. A RNP deixou então de ser um backbone2 restrito ao meio acadêmico parapermitir o acesso público à rede.

Neste ponto é preciso ressaltar o seu caráter democrático que a diferenciados outros meios de comunicação. Por exemplo, para que as emissoras de rádio etelevisão possam transmitir, é preciso uma concessão do governo (através deconcorrência pública) que estabelece o alcance e a freqüência, seja em âmbitomunicipal, estadual ou nacional. Além da concessão, são requeridos equipamentosadequados para garantir a boa qualidade das transmissões, como torres e satélites.

Com isso, fica evidente que é preciso poder político e econômico –proporcional ao alcance das transmissões – para criar uma emissora, seja de rádioou TV. Na internet, pelo contrário, qualquer pessoa pode montar sua emissora. Nãoé preciso obter uma concessão e o alcance é mundial.

Desta forma, além do âmbito comercial, a rede tornou-se um importantemeio com capacidade para difusão instantânea de informação, estabelecendo umnovo conceito de mídia, de característica “desmassificada”. Isto quer dizer que ainternet não é um meio controlado por poucas fontes, mas sim um sistema deinformação que permite a contribuição de todos: cada usuário é livre para desenvolver

1 Interação ou interconexão entre redes de computadores.2 Infra-estrutura que conecta todos os pontos de uma rede.

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seu próprio conteúdo.É exatamente neste aspecto que se encontram as problemáticas jurídicas a

serem abordadas neste artigo. A internet, como já foi discutido, é um democráticomeio de comunicação que permite a livre expressão de idéias, opiniões e ideologias,pois os usuários podem produzir e divulgar conteúdos de forma independente.Mas, considerando a enorme quantidade de informações que circulamincessantemente, seria ilusório afirmar que existe um controle efetivo do que estádisponível pela rede.

O fato se agrava quando nos defrontamos com sua característicainternacional, pois o que é crime em um país pode não o ser em outro, ou, o que éconsiderado grave em uma jurisdição pode ser banal ou socialmente aceitável emoutra.

Conforme Alexandre Daoun, “os benefícios da modernidade e celeridadealcançados com a rede mundial trazem, na mesma proporção, a prática de ilícitospenais que vêm confundindo não só as vítimas como também os responsáveis pelapersecução penal” (DAOUN, 2007).

A internet gera, portanto, uma dicotomia: por um lado, rompe as fronteirasnacionais em sintonia com a globalização, permitindo a plena convivência de ummosaico cultural, no qual os pontos positivos de cada cultura são valorizados eajudam a enriquecer o todo. Porém, em contrapartida, permite que estratégias sejamutilizadas para tentar driblar a lei hospedando conteúdo proibido em servidores noexterior, mesmo que apenas para dificultar a identificação dos autores.

Isto significa que, além de um desafio jurídico, a internet também trazquestões diplomáticas a serem estudadas pelo Direito Internacional. Não obstante,há o conflito entre liberdade de expressão e a soberania do Estado na manutençãoda ordem social, que será abordado a seguir.

3. DA COMUNICAÇÃO SOCIAL E OS DIREITOS FUNDAMENTAISASSOCIADOS3.1. Proteção constitucional da comunicação social

A Constituição Federal dedica capítulo exclusivo à proteção daComunicação Social, abrangendo os artigos 220 a 224, assim como o art. 5º, IX, queconsagra a liberdade de expressão da atividade intelectual, artística, científica e decomunicação, independente de censura ou licença.

Conforme o doutrinador constitucionalista Alexandre de Moraes, o que sepretende com esse capítulo especial é proteger “o meio pelo qual o direito individualconstitucionalmente garantido será difundido, por intermédio dos meios decomunicação de massa” (MORAES, 2007, p. 792).

Complementando, o autor afirma que “pode-se entender meio decomunicação como toda e qualquer forma de desenvolvimento de uma informação,seja através de sons, imagens, impressos, gestos, etc.” (MORAES, 2007, p. 792).

Esta definição, naturalmente, inclui a internet. Entretanto, a rede não éconsiderada por nossa legislação como Meio de Comunicação Social. Houve uma

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Proposta de Emenda Constitucional neste sentido, a PEC nº. 254/2004. Porém, aproposta foi arquivada em 2006 supostamente em virtude de uma dissidência dentroda indústria, como enfatiza Renato Bigliazzi:

Um resultado prático importante do texto seria submeter toda e qualquertecnologia às condições do artigo 222 da Constituição. Meios decomunicação como a Internet, a TV a cabo ou a televisão por assinaturavia satélite, cujas empresas hoje não precisam atender ao artigo 222,passariam a ter as mesmas limitações das empresas de radiodifusão.Eventualmente, o jogo político e a fragmentação de visões dentro da própriaindústria de radiodifusão levaram ao abandono da proposta de emenda àconstituição, que não passou pela Comissão de Constituição e Justiça doSenado Federal (BIGLIAZZI, 2007).

Não cabe a este trabalho debater minuciosamente a necessidade de seincluir a internet como Meio de Comunicação Social, mas é preciso deixar claro quea rede mundial de computadores tem o mesmo potencial informativo e formador deopinião da televisão e do rádio, assim como das revistas e jornais impressos, sendoimprovável, após tamanha popularização, negar sua importância para a sociedadecontemporânea. Além disso, identificá-la desta forma ajudaria, provavelmente, emsua regulamentação dentro do território nacional.

3.2. Liberdade de pensamento e manifestaçãoO art. 5º, IV, do texto constitucional reconhece a todos os cidadãos o

direito de livre pensamento (liberdade de opinião) e manifestação (liberdade deexpressão). Conforme Luiz Alberto David Araujo e Vidal Serrano Nunes Júnior:

[...] enquanto opinião diz respeito a um juízo conceitual, uma afirmação dopensamento, a expressão consiste na sublimação da forma das sensaçõeshumanas, ou seja, na situação em que o indivíduo manifesta seu sentimentoou sua criatividade, independente da formulação de convicções, juízos devalor e conceitos (ARAUJO; NUNES JÚNIOR, 2002, p. 103).

Já o direito de informação envolve o direito de transmitir, receber e procurarinformações. David Araujo e Vidal Serrano acreditam que:

[...] trata-se de um direito fundamental de primeira geração, cujapreocupação consiste em impedir que o Poder Público crie embaraços aolivre fluxo das informações. Assim, o indivíduo possui liberdade parainformar (ARAUJO; NUNES JÚNIOR, 2002, p. 104).

Desta forma, é garantida a todas as pessoas a liberdade de informar, opinare se expressar. O Art. XIX da Declaração Universal dos Direitos Humanos tambémprotege estes direitos:

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Art. XIX – Todo homem tem direito à liberdade de opinião e expressão;este direito inclui a liberdade de, sem interferências, ter opiniões e deprocurar, receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios eindependente de fronteiras.

O art. 220 da Constituição Federal estabelece que:

Art. 220 – A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e ainformação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquerrestrição, observado o disposto nesta Constituição.§ 1º – Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço àplena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo decomunicação social, observado o disposto no Art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.§ 2º – É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica eartística.[...]

O art. 5º, IV, da Constituição Federal, também estabelece que “é livre amanifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”. Isto significa que oautor deve ser identificado, mesmo que através de pseudônimo (como ocorre,eventualmente, na imprensa). Para José Afonso da Silva:

A liberdade de manifestação do pensamento tem seus ônus, tal como o deo manifestante identificar-se, assumir claramente a autoria do produto dopensamento manifestado, para, em sendo o caso, responder por eventuaisdanos a terceiros. Daí por que a Constituição veda o anonimato (SILVA,1995, p. 223).

Contudo, na internet é possível publicar informações sem qualqueridentificação. Há casos de sites racistas produzidos por brasileiros e hospedadosno portal argentino www.libreopinion.com, que foram retirados por pedido da Justiçabrasileira, mas seus autores nunca foram identificados. O caso será estudado maisadiante.

3.3. Liberdade de convicções políticas, ideológicas e religiosasA Constituição Federal assegura o livre exercício dos cultos religiosos. De

acordo com o art. 5º, VI, “é inviolável a liberdade de consciência de crença, sendoassegurado o livre exercício dos cultos religiosos”. Entretanto, segundo Alexandrede Moraes, isto ocorre somente:

“[...] enquanto [os cultos religiosos] não forem contrários à ordem,tranqüilidade e sossego público, bem como compatíveis com os bonscostumes. Dessa forma, a questão das pregações e curas religiosas devem

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ser analisadas de forma a não obstaculizar a liberdade religiosa garantidaconstitucionalmente, nem tampouco acobertar práticas ilícitas” (MORAES,2006, p. 217, original não grifado).

Complementando, Moraes afirma que:

[...] obviamente, assim como as demais liberdade públicas, também aliberdade religiosa não atinge grau absoluto, não sendo, pois, permitido aqualquer religião ou culto atos atentatórios à lei, sob pena deresponsabilização civil e criminal (MORAES, 2006, p. 217).

O mesmo ocorre com as liberdades políticas e ideológicas. Não se podeconceber, desta forma, ideologias racistas (como o nazismo e a xenofobia) e partidospolíticos que adotem tais ideologias. Além disso, o extremismo religioso não justificaapologias ao terrorismo.

3.4. Liberdade de expressão e as possibilidades da internetA liberdade de expressão consiste na faculdade de manifestar opiniões,

idéias e pensamentos por qualquer meio escolhido. É importante ressaltar que acomunicação social, concretizada pela exteriorização da liberdade de expressãoatravés dos veículos de comunicação, trata-se de uma das principais característicasda sociedade contemporânea. Desta forma, os órgãos de comunicação de massasão características intrínsecas à globalização, exercendo enorme influência nasociedade:

A liberdade de expressão constitui um dos fundamentos essenciais deuma sociedade democrática e compreende não somente as informaçõesconsideradas como inofensivas, indiferentes ou favoráveis, mas tambémas que possam causar transtornos, resistência, inquietar pessoas, pois aDemocracia somente existe baseada na consagração do pluralismo de idéiase pensamentos, da tolerância de opiniões e do espírito aberto ao diálogo(MORAES, 2006, p. 207, original não grifado).

Sendo a liberdade de expressão e manifestação do pensamento um direitofundamental de liberdade, portanto, um direito inalienável do indivíduo, é necessáriolevar em consideração que muitos foram os movimentos que lutaram para obtê-lo econquistá-lo. A História abrange diversos episódios em que o homem lutou pelaliberdade de imprensa, e isto prova sua importância para a sociedade. Desde aGrécia Antiga o homem já pretendia poder se expressar sem sofrer restrições,observando que a filosofia grega questionava a relação entre Estado, religião e oindividuo.

Como foi dito, a internet facilita, através de sua estrutura e tecnologia,informações anônimas. Mas este é apenas um dos muitos embaraços ao

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ordenamento jurídico propiciados pela rede. A Constituição Federal, no art. 5º, V,assegura o direito de resposta “proporcional ao agravo, além da indenização pelodano material, moral ou à imagem” (CF, art. 5º, V).

Conforme Clóvis de Barros Filho, docente da Escola Superior dePropaganda e Marketing (ESPM):

A prerrogativa de oferecer resposta a uma agressão veiculada pelos meiosde comunicação tem, para os doutrinadores, a mesma natureza jurídica dalegítima defesa. Assim, face a uma agressão injusta, pode o agredido reagir.Imediatamente e com meios proporcionais à agressão, garantidos pelalegislação de imprensa (BARROS FILHO, 2006, p. 62-63).

No entanto é presumível que, nestes casos, o desmentido publicado sejarelativamente ineficaz face aos efeitos já produzidos pela agressão, por várias causas:

Em primeiro lugar, nada garante que leitores, ouvintes e telespectadoresda agressão tenham algum contato com o desmentido. Ou ainda, umaaudiência rotativa e infiel pode ficar perplexa ante uma resposta indignadaa uma agressão cujo teor ignoram. Em ambos os casos remanesce a suspeita(BARROS FILHO, 2006, pág. 63).

Além disso,

[...] nada impede que agentes sociais não expostos à mídia veiculadora dainformação discutam, até freneticamente, sobre ela. Para que o desmentidofosse eficaz, seria necessário que percorresse o mesmo circuito de relaçõesinter-pessoais de que foi objeto a agressão. Hipótese absurda (BARROSFILHO, 2006, pág. 63).

Sobre o assunto, Vital Moreira conclui que:

[...] bem vistas as coisas, o direito de resposta não constitui um limite daliberdade de opinião e de crítica, antes estabelece um direito ao contraditóriopor parte da pessoa visada, permitindo desse modo o contraste de opiniões(MOREIRA apud ARAUJO; NUNES JÚNIOR, 2006, p. 107).

Contudo, é muito difícil obter o direito de resposta no ambiente virtual, noqual inúmeros servidores estão espalhados pelo mundo. Ademais, como medir osresultados do agravo em uma tecnologia que permite a rápida disseminação deinformações sem qualquer limite territorial?3. Deve-se levar em conta, ainda, que há

3 Grosseiramente, poderia se dizer que os limites territoriais da informação se dão pelo idioma, mas este conceito semostra errôneo quando confrontado pelo fato de que as imagens (sejam fotos ou vídeos) são, em geral, compreensíveisem qualquer língua. Além disso, a globalização obriga a cada dia que as pessoas saibam mais de um idioma.

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uma série de ferramentas como e-mails, fóruns e comunidades virtuais, que permitema qualquer usuário retransmitir informações rapidamente.

Desta forma, a jurisprudência evidencia que os tribunais têm negadopedidos de direito de resposta pela internet:

RECURSO. DIREITO DE RESPOSTA. MENSAGENS CONSTANTES DEPÁGINA DA INTERNET NÃO SE ENQUADRAM NO REGRAMENTODO ART. 58 DA LEI N° 9.504/97. PROVIMENTO NEGADO”. (TribunalRegional Eleitoral/RS, RDR N° 17002700, Rel. Juiz Isaac Alster, dj 11/09/2000).

Hugo Cesar Hoeschl afirma que:

No caso dos veículos de comunicação de massa, há cautelas e restriçõesestabelecidas nas esferas constitucional, legal e regulamentar,principalmente no tocante à proteção da infância e da juventude. Porémelas - as restrições e cautelas - não incidem sobre a internet, o que valedizer que nela pode ser veiculada qualquer coisa, independente de seuconteúdo [...] (HOESCHL, 2007).

Embora a rede mundial ainda permaneça sem regulamentação adequada, écerto que tal autor se excede ao afirmar que todo e qualquer conteúdo pode serpublicado através da internet. Um Estado Soberano, como é a República Federativado Brasil, tem como prerrogativa a imposição de limites para garantir a ordemsocial, como será abordado a seguir.

3.5. Soberania do Estado na imposição de limitesA liberdade de expressão é válida naquilo que não contrariar a Carta Magna,

a Constituição Federal de 1988, assim como os demais dispositivos do ordenamentojurídico brasileiro.

Para o já citado docente da ESPM, Clóvis de Barros Filho, “nossa CartaMagna contempla um único limite à informação: o direito à privacidade” (BARROSFILHO, 2006, pág. 61). Mas esta não é a visão de Alexandre de Moraes, que identifica,na Constituição Federal, uma série de limites à liberdade de expressão:

A proibição ao anonimato é ampla, abrangendo todos os meios decomunicação (cartas, matérias jornalísticas, informes publicitários,mensagens na internet, notícias radiofônicas ou televisivas, por exemplo).Vedam-se, portanto, mensagens apócrifas, injuriosas, difamatórias oucaluniosas. A finalidade constitucional é destinada a evitar manifestaçãode opiniões fúteis, infundadas, somente com o intuito de desrespeito àvida privada, à intimidade, à honra de outrem; ou ainda, com a intenção desubverter a ordem jurídica, o regime democrático e o bem-estar social(MORAES, 2006, p. 207, original não grifado).

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Portanto, o ordenamento jurídico brasileiro contempla também os delitoscontra a honra, intimidade, privacidade e imagem – também chamados de delitos deimprensa, o direito de resposta e o pedido de explicação. Contudo, Barros Filhoacredita que tais normas não garantem a real proteção do bem jurídico tutelado,pois são, “em grande medida, ineficazes” (Barros Filhos, 2006, pág. 62). Esteposicionamento se deve a teoria de que:

No que diz respeito aos delitos de calúnia, difamação e injúria,processualmente inscritos entre os de ação penal privada, dependem deuma improvável iniciativa do agredido para movimentar a máquinajurisdicional do Estado. O processo penal, nestes casos, ainda que alcanceresultado punitivo, não restituirá o status quo anterior. Pelo contrário.Serve como uma concha acústica para as acusações. Confere-lhes maiorpublicidade, acentuando o ônus social e psicológico do agredido (BARROSFILHO, 2006, p. 62, grifo do autor).

Entretanto, não cabe a este trabalho discutir a eficácia dos limites à liberdadede expressão, mas sim sua existência no ordenamento jurídico brasileiro. Destaforma, a manifestação do pensamento, a criação, a expressão, a informação e a livredivulgação dos fatos, consagrados constitucionalmente no inciso XIV do art. 5º daConstituição Federal, devem ser interpretados em conjunto com a inviolabilidade àhonra e à vida privada (CF, art. 5º, X), bem como com a proteção à imagem (CF, art.5º, XXVII, a), sob pena de responsabilização do agente divulgador por danosmateriais e morais (CF, art. 5º, V e X).

Alexandre de Moraes afirma que, apesar da vedação constitucional dacensura prévia, há a necessidade de compatibilizar a comunicação social com osdemais preceitos constitucionais, pois:

A censura prévia significa o controle, o exame, a necessidade de permissãoa que se submete, previamente e com caráter vinculativo, qualquer textoou programa que pretende ser exibido ao público em geral. O caráterpreventivo e vinculante é o traço marcante da censura prévia, sendo arestrição à livre manifestação de pensamento sua finalidade antidemocrática(MORAES, 2006, p. 224).

Explicando de uma outra forma, os doutrinadores David Araújo e VidalSerrano concluem que a existência de limites à liberdade de expressão não significanecessariamente que, “em homenagem a outros bens constitucionais, seja proibidaa manifestação de pensamento, [mas sim] disciplinada dentro de um contextoconstitucional” (ARAUJO; NUNES JÚNIOR, p. 425).

Em raciocínio semelhante, Freitas Nobre afirma que:

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A liberdade ilimitada, distanciada do interesse social e do bem comum nãoé conciliável no mundo contemporâneo, porque se o pensamento éinviolável e livre, a sua exteriorização deve ser limitada pelo interessecoletivo, condicionando seu exercício ao destino de patrimônio moral dasociedade, do Estado e dos próprios indivíduos (NOBRE, 1985, pág. 85).

Por fim, a liberdade de expressão possui limitações, pois pode causarprejuízos a um bem jurídico de outrem, como os direitos de personalidade (honra,intimidade, imagem, etc.). O direito de liberdade de expressão deve então conviverharmonicamente com tais direitos, ou seja, os direitos devem se auto limitar.

Desse modo, observa-se que para o exercício adequado do direito àliberdade de expressão, o emissor do pensamento não pode ultrapassar os limitesfixados em lei, mas isto não torna a censura admissível. O que deve ocorrer é autilização do bom senso, sendo que a manifestação deve ser socialmente aceitávele adequada ao ordenamento jurídico nacional. Não há, portanto, direito fundamentalabsoluto.

4. SITUAÇÃO JURÍDICA DE SITES CRIMINOSOS HOSPEDADOS NOEXTERIOR

Em 2003 ocorreu no Supremo Tribunal Federal o julgamento de SiegfriedEllwanger, acusado de escrever e comercializar obras de caráter racista e anti-semita4. A pena foi de dois anos de prisão, convertidos em prestação de serviçoscomunitários:

Foram nove meses de debate e polêmicas que dividiram os maioresespecialistas em direito civil do país. A discussão ficou centrada em trêspontos: o que é racismo, liberdade de expressão e manifestação dopensamento individual (MEDEIROS, 2007).

Apesar de toda a repercussão do caso, este é apenas um exemplo dasquestões contemporâneas que envolvem a liberdade de expressão e sua proteçãopelo ordenamento jurídico brasileiro. Neste caso específico, os livros foramimpressos e comercializados pela internet, o que facilitou a localização do autoratravés da conta a que eram destinados os pagamentos e o remetente do envio dosmateriais pelo correio:

Em 2005, a Conib (Confederação Israelita Brasileira) depositou o valor

4 As sessões do STF foram gravadas pela TV Justiça e são comercializadas em DVD. Siegfried Ellwanger foi condenadopela publicação dos livros O judeu internacional, Holocausto judeu ou alemão?, Nos bastidores da mentira doséculo, A História Secreta do Brasil, Os Conquistadores do Mundo - os verdadeiros criminosos de guerra eHitler, culpado ou inocente?.

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correspondente a um livro e o recebeu pelo correio, para comprovar aligação do site com Ellwanger. A entrega do livro foi usada como prova emum pedido feito pela entidade para a instauração de um novo inquéritocriminal contra o editor. Ele é apontado como um dos principaisdivulgadores brasileiros do discurso anti-semita (GERCHMANN;FUHRMANN; MARCOLIN, 2007).

Contudo, o mesmo não ocorre em conteúdos veiculados pela internetgratuitamente. Como já foi dito neste trabalho, a tecnologia e as características dainternet permitem, em muitos casos, o completo anonimato dos autores, queinclusive se aproveitam do caráter global da rede para hospedar conteúdos emsites estrangeiros, o que dificulta não somente a identificação, mas também aaplicação da lei brasileira para seus conteúdos.

Thiago Tavares Nunes de Oliveira, advogado e presidente da Safernet –ONG especializada em identificar e denunciar crimes de internet, em entrevista aRevista Ciência Criminal, reconhece que:

Mesmo com as leis brasileiras proibindo a divulgação dos ideaisneonazistas e outros grupos que pregam a violência e a discriminação, ainternet se tornou um meio de propagação dessa ideologia dentro de nossopaís. Em sites de relacionamento, há desde perfis e comunidades de gruposdesorganizados até a atuação de redes de neonazistas, algumas ligadas agrupos internacionais [que contam] com sites dentro de portais norte-americanos, usando a proteção daquele país para burlar as leis brasileiras(OLIVEIRA apud GERCHMANN; FUHRMANN; MARCOLIN, 2007).

Os sites que propagam ideologias racistas e xenófobas, segundo Oliveira,se beneficiam das leis mais brandas dos Estados Unidos para delitos de opinião,pois:

A primeira emenda da Constituição [norte-americana] garante a liberdadede expressão até nesse tipo de situação, desde que não haja prejuízosmateriais ou violência física. Prejuízos psicológicos e danos morais sãoresolvidos na esfera cível (OLIVEIRA apud GERCHMANN; FUHRMANN;MARCOLIN, 2007).

Complementando, Oliveira afirma que a demora e a burocracia nosprocedimentos de cooperação internacional também beneficiam os criminosos, jáque, após a denúncia de dois sites do gênero hospedados no exterior, “um deleschegou a ser retirado do ar quando estava em um provedor argentino, graças a umacordo de cooperação internacional. No entanto, voltou em um portal dos EstadosUnidos” (OLIVEIRA apud GERCHMANN; FUHRMANN; MARCOLIN, 2007).

No dia 16 de março de 2005, o servidor argentino Prima, responsável peloportal www.libreopinion.com – que hospeda sites preconceituosos de diversaspartes do mundo, tirou do ar seis sites neonazistas criados por brasileiros:

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No parecer do Ministério, esses grupos criaram os sites na Argentina coma intenção de escapar de eventuais processos criminais na Justiça brasileira.[...] Após o fechamento dos endereços virtuais, o MP pretende identificaros autores das páginas para responsabilizá-los pelo crime de racismo, compena de um a três anos de prisão (INFO ONLINE, 2005).

O Procurador Regional dos Direitos do Cidadão em São Paulo, SérgioGardenghi Suiama, declarou que “desrespeitar leis brasileiras em sites no exteriornão garante imunidade aos infratores” (SUIAMA apud MESQUITA, 2005). Seuargumento é de que o artigo 6º do Código Penal prevê que também é consideradolocal do crime “o lugar onde se produziu ou deveria produzir-se o resultado dodelito” (Art. 6º, CP).

O Art. 70 do Código de Processo Penal reforça que “a competência será,de regra, determinada pelo lugar em que se consumar a infração, ou, no caso detentativa, pelo lugar em que for praticado o último ato de execução” (Art. 70, CPP).O advogado Márcio Benjamin Costa Ribeiro, em artigo publicado no site JusNavigandi, afirma que “ainda que levássemos em consideração a frágil desculpade que o servidor [...] jaz fora dos limites da legislação nacional, restaria, com todafirmeza a questão de onde se produz ou deve se produzir o resultado” (RIBEIRO,2007).

Há também a questão da extraterritorialidade condicionada, pois, de acordocom o Art. 7º do Código Penal, há crimes cometidos no exterior que podem seratribuídos a brasileiros:

Art. 7º – Ficam sujeitos à lei brasileira, embora cometidos no estrangeiro:[...]II – os crimes:a) que, por tratado ou convenção, o Brasil se obrigou a reprimir;b) praticados por brasileiros;[...]

Entretanto, todos estes posicionamentos geram controvérsias entre osjuristas. Desta forma, mesmo que identificados, punir os autores deste tipo de siteainda será um desafio a parte para os profissionais do Direito.

Em recente matéria do Portal Terra, de 24 de abril de 2007, foi constatadoque muitos sites que fazem apologia ao racismo continuam ativos na internet:

Um dos portais é o Valhalla88. O nome faz referência a um castelo damitologia nórdica [...]. O site White Power São Paulo oferece materialsemelhante [...]. Além disso, tem uma loja virtual para vender camisetas,filmes, livros e outros itens com temática nazista (BARRETO, 2007).

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O art. 3º da Constituição Federal, IV, ao estabelecer como objetivofundamental da República Federativa do Brasil “promover o bem de todos, sempreconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas dediscriminação”, evidencia que nossa Carta Magna adota o principio da não-discriminação, sendo que isto é reforçado pela legislação infraconstitucional.

Ao exemplo da Lei nº. 7.716/89, que define os crimes resultantes depreconceitos de raça ou de cor, enquadrando perfeitamente esses sites. O § 1º doart. 20 deixa claro que o racismo não se limita a praticar, induzir ou incitar adiscriminação ou preconceito de raça, como é estabelecido no caput, mas também:

Art. 20 – [...]§ 1º – Fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas,ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ougamada, para fins de divulgação do nazismo.Pena – reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos e multa.

Em seguida, o § 2º do mesmo artigo estabelece que:

§ 2º – Se qualquer dos crimes previstos no caput é cometido por intermédiodos meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza.Pena – reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos e multa.

Portanto, não restam dúvidas de que estes sites são ilícitos e contrariam alegislação brasileira. Além disso, contrariam também a Declaração Universal dosDireitos Humanos, proclamada pela Assembléia Geral das Nações Unidas:

Art. 1º – Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos.São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aosoutros com espírito de fraternidade.[...]Art. 7º – Todos são iguais perante a lei e tem direito, sem qualquer distinção,a igual proteção da lei. Todos tem direito a igual proteção contra qualquerdiscriminação que viole a presente Declaração e contra qualquerincitamento a tal discriminação.[...]Art. 28 – Todo o homem tem direito a uma ordem social e internacional emque os direitos e liberdades estabelecidos na presente Declaração possamser plenamente realizados.

O Procurador da República Sérgio Suiama ressalta que a principal razãopela qual os sites criminosos hospedados nos Estados Unidos não estão sendobarrados pelas leis americanas é porque englobam conteúdos feitos a partir doBrasil e direcionados ao público brasileiro.

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Complementando, afirma que legislação brasileira sobre o assunto éparecida com a da Europa, não admitindo em hipótese alguma este tipo de conduta.Desta forma, “a legislação que está na contramão é a dos Estados Unidos e não anossa” (SUIAMA apud GERCHMANN; FUHRMANN; MARCOLIN, 2007).

5. CONSIDERAÇÕES FINAISA internet representa um grande avanço para a sociedade contemporânea,

disponibilizando informações de forma rápida e acessível em qualquer localidade.Além disso, contribui para a democratização da comunicação social, pois permiteque qualquer pessoa produza e distribua conteúdos diversos, ao contrário do queocorre nos meios tradicionais, como rádio, televisão, jornais e revistas.

Desta forma, a livre manifestação de idéias quebra mais dois importantesobstáculos5: a territorialidade e o controle de informações por parte dos veículosde comunicação de massa.

Contudo, a rede mundial de computadores também possibilita a prática deilícitos penais que, devido à transição para o ambiente virtual, torna dificultosa nãosó a punição dos infratores, mas também a própria definição do crime por parte denosso ordenamento jurídico. Adiciona-se a isso o fato de que a rede não possuilimites territoriais, o que leva alguns autores de sites criminosos a hospedá-los noexterior visando driblar as leis brasileiras.

Diante então destas novas problemáticas do Direito, que surgiram com arede mundial de computadores, seria necessário regulamentar a internet para coibire controlar os sites criminosos?

Em caso afirmativo, esta regulamentação deveria ser feita internamentepor cada país, permanecendo assim a burocrática morosidade da cooperaçãointernacional, ou seria mais interessante elaborar um tratado internacional pararegulamentar a rede e definir os crimes de internet?

Esta é uma questão para ser pensada e discutida, abrindo novos tópicospara o estudo do Direito.

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BARBOSA, Ruy. Comentários à Constituição Federal brasileira. São Paulo:Saraiva, 1993.

5 No passado foi preciso conquistar tanto o direito de informar quanto o de ser informado. Temos como exemplo acensura imposta durante o período do regime militar.

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O TERCEIRO SETOR E A ADMINISTRAÇÃOPÚBLICA EM PORTUGAL

Juliana Guimarães NOGUEIRA·

SUMÁRIO: Introdução; 1. Noções introdutórias sobre solidariedade, voluntariadoe cidadania; 2. O terceiro setor; 2.1. Conceito, localização estrutural e funçõessociais; 2.2. Sustentabilidade; 2.3. O Terceiro Setor na Europa; 2.4. O Terceiro Setorem Portugal; 2.4.1. As Pessoas Coletivas de Utilidade Pública; 2.4. O Terceiro Setorem Portugal; 2.4.1. As Pessoas Coletivas de Utilidade Pública; 2.4.1.1. InstituiçõesParticulares de Solidariedade Social; 2.4.1.2. Pessoas Coletivas de Utilidade PúblicaAdministrativa; 2.4.1.3. Pessoas Coletivas de Mera Utilidade Pública; 2.4.2.Indicadores do panorama atual; 3. Terceiro setor e a administração pública emPortugal; 3.1. Relação jurídica entre Terceiro Setor e Administração Pública; 3.2.Responsabilização; 3.3. Tutela e Controle; Conclusão; Referências; Referênciaseletrônicas.

RESUMO: O artigo pretende relatar a relação entre as organizações que compõemo terceiro setor e o Poder Público português. Considera a complexidade do fenômeno,apresentando amplo panorama do terceiro setor na Europa e em Portugal, trazendosubsídios de direito comparado de grande valia para os pesquisadores do tema.Finaliza abordando as relações específicas do terceiro setor com a administração,expondo inclusive as formas de tutela e controle.

ABSTRACT: This article aims to describe the relationship between theorganizations that comprise the third sector and the government Portuguese. Doesthe complexity of the phenomenon, showing broad overview of the third sector inEurope and Portugal, bringing benefits of comparative law of great value toresearchers of the topic. Concludes by addressing the specific relations of thethird sector with the administration, including exposing the ways of protection andcontrol.

PALAVRAS-CHAVE: terceiro setor; Poder Público; Portugal.

KEY-WORDS: third sector, the government, Portugal.

* Mestre em Direito pela Universidade de Coimbra. Artigo submetido em 05/09/2007. Artigo aprovado em 10/11/2007.

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INTRODUÇÃOO presente relatório busca traçar uma relação entre as organizações que

compõem o setor não lucrativo e o Poder Público português, ressaltando os pontosque merecem maior destaque na doutrina. Para tanto, foi necessário recorrer aoestudo, ainda que superficial, do fenômeno do Terceiro Setor, tema que vemdespertando a atenção da comunidade científica nos últimos anos, considerando aimportância económica e social que adquiriu após a falência do Estado-Social.

Em verdade, é de se reconhecer que o tema reveste muita complexidade eheterogeneidade, mas, considerando a sua atual importância na cooperação oucomplementação do Estado na persecução dos interesses públicos (seja pelaineficiência do Estado na satisfação dos interesses coletivos, seja como forma defazer valer os direitos de cidadania1), não é despropositada a tarefa de se avaliar ascaracterísticas e a dimensão que assume hodiernamente o Terceiro Setor.

Nesse diapasão, o presente trabalho é um modesto espaço em que sebusca explorar, não de forma exaustiva, as questões principais e mais relevantes narelação entre o campo privado não lucrativo e a esfera pública, nomeadamentequanto as suas maneiras de interação.

Para tanto, o primeiro capítulo tem o propósito de examinar a questão dasolidariedade, cidadania e voluntariado, elementos salutares na natureza e estruturado Terceiro Setor. Nesta oportunidade, planeia-se o valor da solidariedade atravésdo exercício da cidadania ativa e, por conseguinte, o voluntariado como instrumentode promoção de ambos conceitos.

A segunda parte do trabalho dedica-se ao estudo do Terceiro Setor,momento em que são analisados seus principais aspectos como conceito,localização estrutural, funções sociais e sustentabilidade. Nesta ocasião, tambémfoi objeto de exame a atuação desse segmento no espaço da União Européia e emPortugal, cuja análise mereceu tratamento mais detalhado. Logo, a ponderaçãosobre as pessoas coletivas de utilidade pública, como mecanismos deoperacionalização dos papéis do Terceiro Setor português, revela-se como umaoportunidade de aproximar a teoria da realidade aqui vivenciada no que tange aofuncionamento das organizações sociais sem fins lucrativos.

Por fim, o último capítulo volta-se ao objeto de principal discussão quenos diz respeito, ou seja, a relação entre Terceiro Setor e Administração Pública,analisada sob a ótica da responsabilidade e do controle. O exame dispensado nestecapítulo procura, ainda, definir a natureza jurídica da mencionada relação,averiguando de que maneira o segmento em apreço assume a busca pelo interessepúblico, bem como os efeitos dessa intervenção privada num ambiente de tutela

1 LAURINDO, Amanda Silva da Costa. O Papel do Terceiro Setor na efetivação dos Direitos Sociais no Brasil:1988 a 2006. Dissertação (Mestrado em Direito). Campos - RJ: Faculdade de Direito de Campos (FDC), 2006. 42p.

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governamental.Entretanto, é imperioso mencionar que a presente iniciativa não possui a

pretensão de esgotar a matéria ou propor nova doutrina, dada a sua amplitude,complexidade e heterogeneidade, características reconhecidas pela literaturaespecífica do tema. Destarte, a finalidade deste relatório foi a de lançar algumasconcepções preliminares que ainda carecem de uma análise mais completa eprofunda, motivo que suscita o interesse em dar continuidade ao estudo sobre oassunto.

1. NOÇÕES INTRODUTÓRIAS SOBRE SOLIDARIEDADE, VOLUNTARIADOE CIDADANIA

Para proceder ao estudo do fenômeno do Terceiro Setor, mister se fazpromover uma análise sobre as questões relacionadas à solidariedade, aovoluntariado e à cidadania. Entretanto, definir com exatidão tais elementos, bemcomo estabelecer uma relação precisa entre os mesmos, no quadro da modernidade,não é tarefa livre de alguns percalços.

A idéia de solidariedade, apesar de restar intimamente ligada ao ideal defraternidade da Revolução Francesa, é consideravelmente recente. Odesenvolvimento de seu valor remonta à mudança do século XIX para o séculoXX, ocasião em que teóricos franceses se preocuparam em construir uma soluçãopara a questão social então suportada pela sociedade2, bem como pela afirmaçãodos chamados direitos fundamentais de terceira geração, diante da necessidade deproteção dos interesses sociais face às desvantagens da globalização e docrescimento econômico, que derivam a exclusão social3.

A acepção de sua atual significação compreende a junção de algumasdimensões, a saber: solidariedade dos antigos e solidariedade dos modernos,solidariedade mutualista e solidariedade altruísta, solidariedade vertical esolidariedade horizontal.4

A solidariedade dos antigos5 encerra uma virtude indispensável na relaçãocom os outros, similar à benevolência, que supõe o dever de ajuda mútua quedecorre da existência de laços de interdependência entre os integrantes de umadeterminada coletividade. Esta concepção, que privilegia a simpatia, o afeto comum

2 NABAIS, José Casalta. Algumas considerações sobre a solidariedade e a cidadania. In: Boletim da Faculdadede Direito da Universidade de Coimbra. Vol. 15. Coimbra: FDUC, 1999. 147p.3 A exclusão social que abrange tradicionais e modernas formas de desigualdade social é um dos maiores paradoxosda atualidade, razão pela qual se conclui que, hoje, atravessa-se um momento de transição em que prevalece osentimento de reconstrução. JANUÁRIO, Susana Paula Carvalho. Organizações de Solidariedade Social radicadasna comunidade - A diversidade do Terceiro Sector em Portugal: estudo de casos. Dissertação (Mestrado emSociologia). Coimbra: Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, 2000. 11p.4 NABAIS. José Casalta. Op. Cit. 149-156p.5 A expressão se justifica, pois esse sentido de solidariedade é o que mais se aproxima das tradicionais noções deamizade grega, humanidade estóica, caridade cristã, a simpatia sustentada pela Escola escocesa e a fraternidaderevolucionária francesa. LUCAS, Javier de. La polémica sobre los deberes de solidaridad: el ejemplo de defensay su possible concreción en um servicio civil. In: Revista del Centro de Estúdios Constitucionales. Nº 19. Madrid:Centro de Estúdios Constitucionales, 1994. 10p.

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e a amizade, baseia-se na “cumplicidade do sofrimento”. Por seu turno, asolidariedade dos modernos possui um sentido mais acentuado, como princípiojurídico e político, na medida em que pressupõe uma definição de assumir comopróprio o interesse de terceiro (como contrapeso ao egoísmo) promovidoconjuntamente pelas comunidades política e social.

Noutro panorama, a solidariedade mutualista é aquela baseada naconstrução de um patrimônio comum de bens indispensáveis ao bomfuncionamento e desenvolvimento da sociedade, traço bem marcante do EstadoSocial. O progresso, lançando por terra tal entendimento, insuficiente às novasdemandas sociais, clamou por uma nova forma de solidariedade, a altruísta, em quea ajuda é um regalo gratuito por parte do indivíduo.

Finalmente, a compreensão da solidariedade vertical incorpora a idéia deque a solidariedade cabe tanto ao Estado Social quanto aos indivíduos no exercíciode um direito. Com efeito, na hipótese da sociedade não conseguir suprir suaspróprias necessidades, através da economia, do mercado e do exercício de suasliberdades e prerrogativas, caberá ao Estado realizar a prestação social, diretamenteou através de financiamento, como tarefa que lhe é constitucionalmente exigida.

Na solidariedade horizontal, consideram-se os deveres constitucionais doEstado em conjunto com os deveres de solidariedade da sociedade civil. Nestaconcepção, admite-se que a administração pública, assumindo sua incapacidade ea falência da estadualidade social, em algum momento, passou a reclamar pelaparticipação direta dos cidadãos na satisfação do interesse público, agora como oexercício de um dever social.6

Nessa espécie de solidariedade, manifesta-se o volutariado social,indivíduos e grupos sociais que não possuem interesse econômico na satisfaçãode seus próprios direitos sociais (o de exercício da solidariedade) como os dodestinatários de tais direitos (direito de solidariedade), aqueles que o Estado nãoconsegue suprir as necessidades. 7

Em outras palavras, tarefas que por muito tempo foram assumidas peloEstado Social, hoje, voltam gradualmente às mãos da sociedade civil. E este não é,senão, um fenômeno localizado, mas uma tendência mundial que coloca em destaquea questão da solidariedade social.

O voluntariado, então, é concebido como uma “realidade incontornável”,na forma de manifestação do movimento solidário que se fortaleceu com a crise doEstado Social, o qual passou às mãos do mercado as funções sociais rentáveis,

6 A convocação estatal, neste caso, não decorre da mera ausência de capacidade técnica, logística ou financeira, mastambém pela impossibilidade do Estado suprir o indivíduo, quando só este possui condições de oferecer o conforto,o calor humano, o sentimento de compaixão e o de humanidade. Isto porque, as necessidades modernas superam asimples prestação pecuniária quando há carência, outrossim, de sentimento. (NABAIS. José Casalta. Op. Cit. 154p).7 ISABEL FAUSTINO PEÇA acentua que a participação dos particulares na prestação social não é indicador defraqueza do Estado Social, mas de seu amadurecimento, na medida em que a colaboração entre sociedade eadministração pública reflete os valores de justiça e solidariedade. PEÇA, Isabel Faustino. O controlo do Estadosobre as Instituições Particulares de Solidariedade Social. Dissertação (Mestrado em Direito). Coimbra: Faculdadede Direito da Universidade de Coimbra, 2002. 5p.8 NABAIS, José Casalta. Op. Cit. 167p.

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entregando ao voluntariado as não rentáveis8.Entretanto, não se trata aqui de substituir a atuação estatal, senão de

cooperar, colaborar no desempenho de certas funções. Para tanto, o voluntariadoreúne alguns requisitos que lhe são bem característicos, de maneira a não permitirsua “estatização” ou inserí-lo na esfera pública da administração, quais sejam:gratuidade (ausência de interesse econômico na execução das atividades sociais);voluntariedade (atividade de livre escolha ou opção, afastada a possibilidade derecrutamento compulsório); e organização (trabalho baseado em quadrosorganizativos). 9

Imperioso considerar, outrossim, que o voluntariado detém um fundamentopróprio, que é o de proporcionar a participação dos cidadãos na esfera pública, deatuação do Estado. Assim, não se concebe a subordinação do movimento ao Estado,como ente legitimador das atividades por ele desempenhadas. Em verdade, deveráa estadualidade reservar-se ao dever de regulamentar, fiscalizar e controlar.

A razão reside no fato do voluntariado representar uma expressão doexercício da cidadania. Esta, cujo conceito remonta dois mil e quinhentos anos dehistória (desde Roma imperial), encontra-se intimamente ligada às mudanças nasestruturas sociais de modo que, modernamente, não pode mais se restringir à idéiade nacionalidade ou prática de direitos políticos, como o sufrágio. Atualmente, acidadania abrange um ambiente bem mais extenso e diversificado, na medida emque muitas outras atividades podem vir a caracterizá-la e, dentre elas, o exercício dasolidariedade.

Deste modo, a cidadania é modernamente adjetivada como“responsavelmente solidária” na medida em que não basta apenas o controle daatividade estatal por parte dos cidadãos, senão sua plena participação na vidapública, assumindo encargos, responsabilidades e deveres que dela derivam, eque não podem ser concebidos somente como tarefa da Administração Pública. Édizer que, hodiernamente, não mais subsiste a idéia passiva da cidadania, em quese tudo se espera do Estado, na sua concepção paternalista, mas sim aquela queconta com mecanismos de iniciativa e participação. 10

2. O TERCEIRO SETOR2.1. Conceito, localização estrutural e funções sociais

Quase a unanimidade da doutrina define o marco inicial para odesenvolvimento do Terceiro Setor a crise do Estado-Social, a partir da década de70, na sua incapacidade para realizar as promessas que assumira11. Com a derradeiraofensa ao sistema paternalista do Estado-Providência, o Consenso de Washington12,a administração pública se abriu às novas propostas de reinvenção, dentre as

9 Tais requisitos se encontram presentes na Lei de Enquadramento Jurídico do Voluntariado (Lei n.º 71/98, de 3 deNovembro, regulamentada pelo Decreto-lei n.º 389/99, de 30 de Setembro) bem como na Carta Européia doVoluntariado.10 LUCAS, Javier de. Op. Cit. 13p.

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quais, a mais interessante e promissora, é a do Terceiro Setor. 13

Tratando-se de uma possível solução ao Estado-Social, sem inserir-se naproposta de privatização (orgânica) neo-liberal, o Terceiro Setor surge como uminstrumento de congregação da vontade coletiva, como espaço para o exercício dasolidariedade social, que reabilita valores da participação e o da responsabilidade.Além disso, propicia a redução pela procura sobre o Estado.

Termo de origem norte-americana (Third Sector), que designa a colaboraçãosolidária da iniciativa privada com a administração pública, o Terceiro Setor é,portanto, uma forma institucionalizada de relacionamento da sociedade civil com oPoder Público. Complementa a idéia de falência do primeiro setor, o Estado Social,e do egocentrismo peculiar ao segundo setor, o mercado, que apenas se interessapela produção de bens e serviços mediante contra-prestação pecuniária.

Em verdade, não existe consenso quanto ao conceito e contextualizaçãodo Terceiro Setor, e as tentativas de demarcação de seu espaço se resumem nomero reconhecimento das fronteiras que o delimitam: o Estado e o Mercado111. E agrande dificuldade em se defini-lo com precisão leva alguns a negarem a existênciadeste em relação aos demais setores, notadamente quanto à afirmação de suaunidade. 15

Entrementes, a União Européia, através do Enterprise Directorade General(órgão que trata dos assuntos afetos ao Terceiro Setor em sede comunitária) tende-se a denominá-lo como “Economia Social”, nela incluindo as associações,mutualidades, cooperativas e as fundações. Apesar de alguns discensos quanto àaceitação das fundações na estrutura do Terceiro Setor (como em França e Bélgica),

11 Afastando a possibilidade de esgotar o tema, ou adentrar no cerne da discussão sobre o Welfare State, é convenienteassinalar que se trata de uma experiência implementada a partir da década de 20, em substituição ao laissez-faire,laissez-passer do clássico Estado Liberal. Pode ser definido como “um conjunto de serviços e benefícios sociaisde alcance universal promovidos pelo Estado com a finalidade de garantir uma certa ‘harmonia´ entre oavanço das forças de mercado e uma relativa estabilidade social, suprindo a sociedade de benefícios sociaisque significam segurança aos indivíduos para manterem um mínimo de base material e níveis de padrão devida, que possam enfrentar os efeitos deletérios de uma estrutura de produção capitalista desenvolvida eexcludente“ (GOMES, Fábio Guedes. Conflito Social e Welfare State: Estado e desenvolvimento social noBrasil. In: Revista de Administração Pública. Nº 40, vol. 2. Rio de Janeiro: FGV/EBAPE, 2006. 202p).12 Termo criado pelo economista John Williamson em 1990 traduz as recomendações neo-liberais do FMI e do BancoMundial, inspiradas nas instituições financeiras da cidade de Washington, ao desenvolvimento econômico dospaíses emergentes. Dentre as “sugestões”, a redução dos gastos públicos ganha especial relevo.13 SILVA LOPES, Alexandra Cristina Ramos da. O Terceiro Sector nos sistemas de bem-estar. Uma perspectivacomparativa das ONG´s ligadas ao complexo VIH/SIDA. Dissertação (Mestrado em Sociologia). Coimbra:Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, 2000. 19-22p.14 JEREZ, Ariel; REVILLA, Marisa. El Terecer Sector: una revisión introductoria a un concepto polémico. In:JEREZ, Ariel (coord). Trabajo voluntario o participación? Elementos para uma sociologia del Tercer Sector.Madrid: Tecnos, 1997. 28p.15 FRANCO, Raquel Campos. Controvérsia em torno de uma definição para o terceiro setor: a definição estrutural-operacional da Johns Hopkins vs. a noção de economia global. In: Anais do VIII Congresso Luso-Afro-Brasileirode Ciências Sociais sobre A Questão Social no Novo Milênio. Coimbra: CES, Faculdade de Economia daUniversidade de Coimbra, 16-18 de setembro de 2004. 5-6p.16 Ibidem. 6p.

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esta é a constituição normalmente aceita pelos demais países integrantes. 16

Economia Social seria, portanto, “um espaço de atividade económica, ouseja, como sistema de produção material de bens e serviços, intermédio entre oEstado, o Mercado e a economia familiar e doméstica, que se caracterizaprecisamente por combinar e partilhar recursos destas outras esferas de atividade,e reunir características específicas”17.

Entretanto, respeitadas as digressões doutrinárias a respeito danomenclatura mais adequada18, “Terceiro Setor” tem sido o termo melhor aceito e ocomumente utilizado pela doutrina para caracterizar as organizações sociais que,apesar de privadas, não visam lucratividade e, malgrado perseguirem objetivossociais, não são públicas.

Nesse diapasão, reconhecendo que seu conceito ainda está sobconstrução, e por tratar de questões abrangentes e difusas, sua atual significaçãoconcretiza-se mediante critério de eliminação, como aquilo que o Terceiro Setor nãoconsiste, através de uma dupla negação: não é Estado nem mercado; não é governonem lucro19. Logo, as tentativas de explicar seu conteúdo sempre ponderam que omesmo consiste num conjunto de iniciativas sociais que não fazem parte do aparelhoestatal, apesar de explorar atividade pública (porque é uma iniciativa da própriasociedade) e, por outro lado, não possuem natureza mercantil haja vista que seuobjetivo maior é o benefício social (e não o de angariar lucros). Com efeito, oTerceiro Setor “está localizado estruturalmente num enclave entre o Estado, oMercado e a esfera informal da comunidade, assumindo-se por isso como espaço,por excelência, de confronto e reconciliação de lógicas diferentes”.20

Diante do exposto, a localização estrutural do Terceiro Setor não pode serconcebida como uma realidade monolítica que deva ser analisada em apartado, aorevés, deve ser feita num universo de ligação íntima entre o Estado e o Mercado, osquais lhe são indissociáveis.

No tocante as características, o Terceiro Setor assinala-se comoorganizações formalmente constituídas, autônomas (privadas), independentes (emrelação ao Estado), não lucrativas, voluntárias, e que deverão buscar o bem-estar(produzindo os chamados “bens relacionais”21).22

Quanto a finalidade, pode-se afirmar que o objetivo principal do Terceiro

17 QUINTÃO, Carlota. Terceiro Sector – elementos para referenciação teórica e conceptual. In: Anais do VCongresso Português de Sociologia sobre Sociedades Contemporâneas: reflexividade e Ação. Braga: Universidadedo Minho, 12-15 de maio de 2004. 7p.18 O fenômeno, além de ser conhecido por Economia Social, também é sinônimo de Terceiro Sistema, setor nãolucrativo, setor de utilidade pública, setor das organizações não governamentais ou setor das organizações nãolucrativas ou voluntárias.19 JEREZ, Ariel; REVILLA, Marisa. Op. Cit. 29p.20 SILVA LOPES, Alexandra Cristina Ramos. Op. Cit. 40p.21 Distinguindo-se dos bens públicos e coletivos (que não levam em conta a vocação altruísta da sociedade),consiste numa forma solidária do privado social. Isto significa dizer que os bens relacionais são aqueles cujaorigem e gestão está vinculada a seu caráter social e comunitário. (JEREZ, Ariel; REVILLA, Marisa. Op. Cit. 34p.)22 JANUÁRIO, Susana Paula Carvalho. Op. Cit. 55p.

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Setor seja, portanto, o de satisfação das necessidades sociais, de maneira altruístae baseada nos princípios da solidariedade, caridade e entreajuda23. Por outro lado,o papel por ele desempenhado no seio da sociedade é outro aspecto que tambémnão pode ser definido com exatidão, uma vez que além de variar conforme o pontode vista adotado, operacionaliza-se num campo inconstante, dinâmico e mutável.Entretanto, é razoavelmente pacífico que a filantropia social exerce função de agenteinovador (na medida em que cria soluções inovadoras aos problemas coletivos),de prestação de serviços complementares (abrangendo setores não envolvidospelo Estado), de defesa dos interesses comuns, de preservação dos valores sociais(participação, pluralismo e democracia) e de mediação entre mercado e Estado. 24

Logo, respeitadas as variantes, aufere-se que o Terceiro Setor desempenhaimportantes funções sob os pontos de vista econômico, laboral, de luta contra aexclusão social e de desenvolvimento local, senão vejamos: aproveitando osespaços desprezados pelos setores público e privado, pela sua especificidade oubaixo grau de retorno financeiro, o Terceiro Setor apreendeu uma fração do mercadona qual passou a produzir bens e serviços dos mais variados segmentos (saúde,meio ambiente, lazer, cultura, educação, esporte e capacitação); apresentando-secomo um setor empregador, além do fato de muitas de suas entidades se dedicaremà formação técnica e inserção profissional, mostra-se como um mecanismo decombate ao desemprego num planeta em que 1,2 milhões de pessoas se encontramem situação de sub ou desemprego25; surgindo como reação à “questão social” eaos problemas como a pobreza e a exclusão social, voltou-se a propor novas formasde satisfação das necessidades coletivas e sugerir modernos projetos econômicose sociais alternativos à economia de mercado, afirmando seu potencial de inovaçãona colaboração pela construção de um modelo social europeu; e, uma vez que suasações convergem para esse sentido, acabam por contribuir para o desenvolvimentolocal.26

Finalmente, no tocante a classificação, a composição do Terceiro Setorabrange organizações que podem ser distribuídas em cinco grupos: formastradicionais de ajuda mútua (constituídas pelas instituições religiosas, de caridade,cooperativas, mutualidades e as redes comunitárias locais); movimentos sociais

23 QUELHAS, Ana Paula. O terceiro setor na encruzilhada do sistema financeiro: o caso das caixas de créditoagrícola mútuo e das caixas económicas em Portugal. In: Boletim de Ciências Econômicas da Universidade deCoimbra. Vol. 48. Coimbra: FDUC, 2005. 202p.24 JANUÁRIO, Susana Paula Carvalho. Op. Cit. 56p.25 Apesar do Terceiro Setor possuir a prerrogativa de contar com a mão-de-obra voluntária, não exclui a possibilidadede captação de mão-de-obra remunerada. Atualmente, estima-se que o Terceiro Setor oferece cerca de 9 milhões deempregos na Europa, segundo pesquisa realizada pela Comissão Européia (QUINTÃO, Carlota. Op. Cit. 12p). Eos Estados Unidos, país que reúne cerca de 1,2 milhões de organizações filantrópicas, têm 10% de sua mão-de-obraativa empregada remuneradamente nesse setor. Em outras palavras, isso significa afirmar que caso o Terceiro Setornorte-americano fosse concebido como uma economia, seria considerada a sétima maior do mundo (PIVA, HorácioLafer. Papel do Terceiro Setor e da Empresa Privada na Reforma do Estado. In: Anais do Seminário InternacionalSociedade e a Reforma do Estado. São Paulo: Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, 26-18 de Marçode 1998. 5p).26 QUINTÃO, Carlota. Op. Cit. 12p.

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(de reivindicação de bens e direitos, como o sindicalismo, o feminismo e oecologismo); associativismo civil (ligas de vizinhos, de esporte, cultural e de lazer);e fundações e centros de investigação (instituições de caráter filantrópico vinculadasao âmbito empresarial).27

2.2. SustentabilidadeO termo sustentabilidade, apesar de reunir diversos significados, deve se

voltar, aqui, como a “capacidade de captar recursos – financeiros, materiais ehumanos – de maneira suficiente e continuada, e utilizá-los com competência, demaneira a perpetuar a organização e permiti-la alcançar seus objetivos”.28

Apesar do Terceiro Setor consistir em organizações privadas de naturezavoluntária e sem fins lucrativos, é natural que necessite de recursos financeirospara dar andamento às atividades para as quais se volta, as quais possuem os seuscustos fixos. Assim, a questão do financiamento é um tema que vem ganhandoespaço entre a doutrina especializada, não somente pela identificação de suasfontes, mas principalmente pelos efeitos que se operam na independência e naresponsabilidade de tais organizações.29

Relativamente ao tema da sustentabilidade, forçoso reconhecer que asinstituições do Terceiro Setor atravessam uma crise (à exceção das fundações edas organizações de maiores dimensões), mediante a imprevisibilidade e a ausênciada segurança quanto a continuação dos recursos. E, sobre este aspecto, já existeum consenso quanto à necessidade de se fortalecer financeiramente o TerceiroSetor que, hoje, pode contar com o suporte econômico de várias instituiçõesinternacionais como o Banco Mundial, o Banco Interamericano de Desenvolvimento,a própria União Européia, o PNUD, a Unicef e a Unesco.30

Com a finalidade de tentar equalizar os problemas relativos àsustentabilidade, citados anteriormente, a literatura passou a sugerir uma alternativaque gira em torno da necessidade de desenvolver o auto-financiamento do TerceiroSetor 31, numa projeção de médio e longo prazo, capaz de afastar a extremadependência às fontes de financiamento externas, mediante a “alocação de recursoshumanos, financeiros e materiais que devem ser multiplicados através de seugerenciamento adequado” 32 ou, no mínimo, um por financiamento misto (público/

27 JEREZ, Ariel; REVILLA, Marisa. Op. Cit. 30-31p.28 FALCONER, Andreas Pablo. A promessa do Terceiro Setor: Um Estudo sobre a Construção do Papel dasOrganizações Sem Fins Lucrativos e do seu Campo de Gestão. Disponível na Internet através do endereçoeletrônico http://www.lasociedadcivil.org/uploads/ciberteca/andres_falconer.pdf. Acesso em 1º de Abril de 2007.29 SILVA LOPES, Alexandra Cristina Ramos. Op. Cit. 62p.30 TERCEIRO SETOR. Cadernos do Fórum São Paulo Século XXI. São Paulo: Assembléia Legislativa do Estadode São Paulo, 1999. 34p.31 NUNES, Francisco; RETO, Luís; CARNEIRO, Miguel. O terceiro sector em Portugal: delimitação,caracterização e potencialidades. Lisboa: Instituto António Sérgio do Sector Cooperativo, 2001. 111p.32 THEODÓSIO, Armindo dos Santos de Sousa. Pensar pelo avesso o Terceiro Setor: Mitos, dilemas e perspectivasda ação social organizada nas políticas sociais. In: Lusotopie. Les ONG en Lusophonie. - Terrains et débats.Nº 1, Ano 2002. Bordeaux, France: Éditions Karthala, 2002. 256p.

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privado/próprio).Atualmente, o Terceiro Setor pode contar com o patrocínio do público em

geral (doações), do Estado, de outras corporações e fundações privadas além dosproveitos próprios (sistema de cotas entre seus membros e prestação de serviçosa preços solidários)33. Nessa oportunidade, entretanto, interessa analisar as maneirascom que o governo pode fomentar o Terceiro Setor, através das subvenções, asquais são conceituadas como “forma de ajuda prestada a um sujeito econômicoconcedida pelo Estado ou por entidades públicas”34.

Nesse sentido, as subvenções estatais se operam através de duas maneiras:pela transferência direta de valores, através de convênios, contratos e doações; epela transferência indireta, através das modalidades de renúncia fiscal, como asisenções de impostos (a estadualidade isenta a entidade quanto ao pagamento detributos) e os incentivos fiscais (deslocamento do crédito fiscal, em que ocontribuinte paga o equivalente ao tributo através de doação à uma entidade).35

Em Portugal, as Instituições Particulares de Solidariedade Social (queserão objeto de particular análise), por exemplo, possuem isenção de imposto derendimento, de selo e custas judiciais, contribuições prediais, imposto sobre avenda e circulação de veículos e automóveis, de capitais, sobre a indústria agrícola,de compensação e de contribuição industrial, além de, em determinados casos,possuir o direito à restituição de IVA. Nesse cenário, calcula-se que em 2006 ogoverno português tenha empregado cerca de 8,6 milhões de euros apenas nasIPSS açoreanas.36

Para ilustrar a importância que os fundos provenientes do governoapresentam para o funcionamento da estrutura do Terceiro Setor, vale ressaltar queem países como a Irlanda e Bélgica mais de 65% da receita de suas instituiçõesfilantrópicas é proveniente do Estado. Nos Estados Unidos e em França, ofinanciamento público supera 50% do total gasto no Terceiro Setor em atividadessem fins lucrativos37. Na Holanda e na Alemanha esse índice gira em torno de 42%.38

Dados auferidos em pesquisas ainda concluem que na Inglaterra, Itália,Hungria e Japão as doações caritativas estão longe de representar a fonte principalde fomento à Economia Social, que “são as taxas e os encargos sobre serviços, querepresentam 47% da renda do Terceiro Setor nesses países. A segunda maisimportante fonte de apoio é o governo, que entra com 43%. As doações departiculares, de indivíduos, fundações e empresas, ao contrário, não passam de10%”.39

33 Ibidem. 64p.34 PEÇA, Isabel Faustino. Op. Cit. 87p.35 VIOLIN, Tarso Cabral. As parcerias entre a administração pública e o terceiro setor: os contratos de gestãoe os termos de parcerias firmados pelas organizações sociais da sociedade civil de interesse público. In: RaízesJurídicas. Vol. 1, nº 1. Curitiba: UNICEMP, 2005. 182p.36 Cnf. dados disponíveis no portal eletrônico http://www.azores.gov.pt.37 TERCEIRO SETOR. Cadernos do Fórum São Paulo Século XXI. Op. Cit. 7p.38 FERREIRA, Sílvia Maria Dias. O papel das organizações do terceiro setor na reforma das políticas deproteção social: uma abordagem técnico-história. Dissertação (Mestrado em Sociologia). Coimbra: Faculdadede Economia da Universidade de Coimbra, 2000. 102p.39 Ibidem. 7p.

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2.3. O Terceiro Setor na EuropaA análise do comportamento do Terceiro Setor em âmbito europeu permite

classifica-lo em três grupos distintos, de acordo com a dimensão que se assenhoraem alguns países, senão vejamos: 40

Num primeiro conjunto, encontram-se os países onde o Terceiro Setor jáse encontra edificado, embora ainda necessite de um reconhecimento mais profundoquanto a sua unidade. É o caso, por exemplo, da Bélgica, França e Espanha, ondeas políticas específicas, as estruturas de ligação interna do setor, e o seureconhecimento científico são mais desenvolvidos. Num segundo agrupamento,engloba-se os países em que a Economia Social está em emergência e que, emborasejam identificadas diversas iniciativas, não há uma concepção clara e concreta norespeitante a uniformidade do sistema, como ocorre em Portugal, Suécia, ReinoUnido, Itália, Irlanda, Grécia, Finlândia, Dinamarca e Luxemburgo. Em última seleção,agrupam-se os países que sustentam um Terceiro Setor fragmentado, porque suaspolíticas sociais se baseiam num paradigma antiquado ou porque suas cooperativasou mutualidades sofreram transformações que as assemelharam às empresascapitalistas do mercado privado. Nessa situação encontram-se a Alemanha, Áustriae a Holanda.

Num panorama geral, sob o ponto de vista de absorção de mão-de-obra,calcula-se que as organizações do Terceiro Setor na Comunidade Européia empregamquase 9 milhões de pessoas, o que equivale a 7,9% de todo o corpo assalariadoeuropeu. Baseado nesses números, em 1997, o Parlamento Europeu propôs umprojeto piloto – “Terceiro Setor e Emprego” – com o objetivo de estudar, explorar epromover o potencial desse sistema em matéria empregatícia. Suas conclusões,apuradas no ano de 2000, foram animadoras: o Terceiro Setor, além de exercer umimpacto positivo relativamente a questão do emprego, oferece mecanismos aodesenvolvimento de novos bens e serviços como resposta às necessidadespendentes; favorece a inclusão social; ajuda na reconciliação de objetivoseconômicos e sociais; e, por fim, reforça o potencial de desenvolvimento local.138

Reconhecendo que o tema já vinha ganhando repercussão, em 1989, aUnião Européia criou uma organização destinada a aprofundar o conhecimentoquanto a algumas entidades que compõem o Terceiro Setor, notadamente ascooperativas, sociedades mútuas, fundações e associações. A Social EconomyUnit, vinculada ao Enterprise and Industry Directorate-General volta-se,principalmente, ao estudo do desenvolvimento desse sistema em âmbitocomunitário.42

40 A classificação ora adotada baseia-se no trabalho, já citado, de CARLOTA QUINTÃO.41 UNIÃO EUROPÉIA. Les nouveaux acteurs de l’emploi - Synthèse de l’action pilote “Troisième système etemploi”- Vers une meilleure connaissance de l’emploi au niveau local. Disponível na Internet através do endereçoeletrônico http://ec.europa.eu/employment_social/publications/2002/ke4502555_es.pdf. Acesso em 1º de Abrilde 2007.42 Conforme dados disponíveis no portal da União Européia na Internet, especificamente através do endereçoeletrônico http://ec.europa.eu/enterprise/entrepreneurship/coop/index.htm. Acesso em 1º de Abril de 2007.

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2.4. O Terceiro Setor em Portugal2.4.1. As Pessoas Coletivas de Utilidade Pública

A referência histórica às origens do Terceiro Setor português remonta àsatividades cristãs desenvolvidas no início na nacionalidade, com a criação dealbergues, albergarias, hospícios, hospitais, confrarias, irmandades, enfermarias eorfanatos. Ainda produtos da cultura religiosa foram as famosas obras caritativaspatrocinadas pela Rainha Santa Isabel (1271-1336).

Ao longo da história portuguesa se reconheceu a existência deorganizações cujas finalidades se assemelhavam as do Terceiro Setor. No séculoXIII haviam as Confrarias (entidades de entreajuda de natureza mutualista como osCompromissos Marítimos e a Companhia das Naus)43 e as Casas de Misericórdia(então conhecidas no claustro da Sé de Lisboa pelo nome de Rocamador), que sevoltavam às atividades de assistência social44. Com passar dos anos, a evoluçãodas políticas sociais interferiu sobremaneira no protagonismo não somente dessasinstituições, mas de todo o corpo de organizações filantrópicas, quanto as tarefasàs quais se propunham. E, hoje, como resultado da crise do Estado-Providência(acentuada na década de 80) e da crescente pressão em se atender às políticas deintegração e liberalização económica da União Européia, Portugal passou a sustentaruma característica de promiscuidade entre o Estado, família, Igreja e organizaçõesde caridade, ou seja, um ambiente misto de atores e instituições públicas e privadasno respeitante à satisfação das necessidades sociais.45

Com efeito, a Constituição da República Portuguesa de 1976, após a RevisãoConstitucional de 1997, faz referência expressa ao setor de solidariedade social semfins lucrativos como parte integrante da organização econômica nacional (art. 82º,inciso 4, “d”). Segundo modelo vigente, integram o Terceiro Setor português, alémdas Instituições Particulares de Solidariedade Social, todas as demais organizaçãonão lucrativas que se voltam à perseguição dos interesses públicos e “que naseconomias contemporâneas detêm uma importância considerável, quer nosserviços prestados (assistência social, saúde, educação, tratamento datoxicodependência, apoio a idosos, etc), quer no volume de emprego que ocupam,quer nos meios financeiros que movimentam”46.

Sob o olhar do Direito Administrativo português, as organizações do

43 COSTA LEAL. Economia Social e Mutualismo. In: Actas do Seminário “Economia Social: contributos pararepensar o papel das organizações mutualistas“. Lisboa: Montepio Geral, 18 de Fevereiro de 2006. Disponívelna Internet, através do endereço eletrônico http://www.letras.up.pt/isociologia/uploads/files/Working11.pdf.Acesso em 1º de Abril de 2007.44 PEÇA, Isabel Faustino. Op. Cit. 8p.45 FERREIRA, Sílvia Maria Dias. Op. Cit. 66p.46CANOTILHO, Joaquim José Gomes; MOREIRA, Vital. Constituição da República Portuguesa Anotada. 4ª ed.Arts. 1º ao 107º. Vol. 1. Coimbra: Almedina, 2007. 989p.

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Terceiro Setor são denominadas Pessoas Coletivas de Utilidade Pública, quecomportam três espécies distintas, a saber47: instituições particulares desolidariedade social, pessoas coletivas de utilidade pública administrativa e aspessoas coletivas de mera utilidade pública.

2.4.1.1. Instituições Particulares de Solidariedade SocialEmbora o Terceiro Setor português compreenda instituições que se voltam

a fins diversificados (cultura, lazer, desporto, saúde, educação, trabalho e meioambiente), sua atuação ganha mais espaço na área da assistência social em que “aexistência de uma forte sociedade-providência, compensando as insuficiênciasda proteção social pública e gerando articulações específicas entre a proteçãosocial fornecida pelo Estado e a proteção social fornecida pela sociedade”48

adjetiva o sistema assistencial português.A prestação da assistência social portuguesa, realizada em âmbito particular,

é patrocinada pelas Instituições Particulares de Solidariedade Social, disciplinadaspelo Decreto-Lei n.º 119/83, de 25 de Fevereiro49, o qual as define como organizações“sem finalidade lucrativa, por iniciativa de particulares, com o propósito de darexpressão organizada ao dever moral de solidariedade e de justiça entre osindivíduos e desde que não sejam administradas pelo Estado ou por um corpoautárquico”50. Suas vastas atribuições estão exemplificadamente previstas naquelalegislação, incluindo o apoio às crianças e jovens; à família; à integração social ecomunitária; a proteção dos cidadãos na velhice e invalidez e em todas as situaçõesde ausência ou diminuição de meios de subsistência ou de capacidade para otrabalho; promoção e proteção da saúde; educação e formação profissional doscidadãos e resolução dos problemas habitacionais das populações. 51

Considerando a importância das atividades para as quais se voltam, asIPSS mereceram expressa citação constitucional através do art. 63º, inciso 5 daConstituição da República Portuguesa que, assim, assegura o direito à suaconstituição e o dever do Estado em apoiar sua atividade e funcionamento. Insertas

47 Nessa divisão não se encontram elencadas as Sociedades de Interesse Coletivo, uma vez que consistem emempresas privadas com finalidade lucrativa, característica que não se coaduna com as do Terceiro Setor.48 AMARAL, Diogo Freitas do. Curso de Direito Administrativo. 3ª ed. Vol. I. Coimbra: Almedina, 2006. 725p.49 Nessa oportunidade, não nos dedicaremos a questão da eventual inconstitucionalidade formal e material doEstatuto das IPSS, que é suscitada por FERNANDO LICÍNIO LOPES MARTINS em sua dissertação de mestradojunto à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (MARTINS, Fernando Licínio Lopes. As InstituiçõesParticulares de Solidariedade Social. Dissertação (Mestrado em Direito). Coimbra, Faculdade de Direito daUniversidade de Coimbra, 2000. 122-124p).50 PORTUGAL. Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade Social. Decreto-Lei n.º 119/83, de 25 deFevereiro. Inteiro teor disponível na Internet através do portal http://www.portaldocidadao.pt. Acesso em 1º deAbril de 2007.51 É imperioso mencionar, nesta oportunidade, a grande celeuma doutrinária que se originou com o advento doEstatuto das Instituições Particulares de Solidariedade Social. Para uma parte minoritária da doutrina, a criaçãodas IPSS fez desaparecer a figura das pessoas coletivas de utilidade pública e administrativa (conforme entendimentoesposado, por exemplo, por JORGE MIRANDA). Entretanto, esta pesquisa filia-se à corrente oposta, a qual acreditaque as IPSS consumiu boa parte das instituições integrantes da categoria “pessoas coletivas de utilidade públicae administrativa”, entretanto, não exauriu a classe (entendimento adotado por CANOTILHO e FREITAS DOAMARAL).

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nessa classificação estão as associações de solidariedade social, as associaçõesde voluntários da ação social, as associações de socorro mútuo, as fundações desolidariedade social, as irmandades de misericórdia (com exceção da Santa Casa deMisericórdia de Lisboa que estatuto excluiu expressamente e é considerada pessoacoletiva de utilidade pública administrativa), as cooperativas de solidariedade sociale as casas do povo.

As associações de solidariedade social, maioritariamente constituídas após1974 como produto dos movimentos sociais revolucionários ou como resposta àatuação deficitária estatal, são a forma organizativa que prepondera nas IPSS. Amatéria que lhes é relativa encontra-se prevista nos arts. 52º ao 67º do Decreto-Lein.º 119/83, onde estão estabelecidas as regras quanto aos seus fins, constituição eextinção, estatuto, direitos e deveres de seus associados, gerência, assembléiageral e direito de ação.

As associações de voluntários da ação social são aquelas constituídaspor indivíduos os quais se propõem a colaborar, por responsabilidade própria, napersecução dos objetivos das IPSS, e encontram sua disciplina impressa nos arts.72º ao 75 do Estatuto das Instituições de Solidariedade Social.

As associações de socorro mútuo, também conhecidas como mutualidades,são organizações de caráter voluntário, surgidas principalmente na segunda metadedo século XIX, época em seu objetivo imediato era o auxílio funeral e de luto(motivo pelo qual muitas delas ainda hoje sustentam, em sua denominação social,expressões como “Associação Fúnebre e Familiar” e “Lutuosa”)52. Atualmente,operam cerca de 90 associações mutualistas em território português e seu objetivo,agora, voltou-se à proteção previdencial complementar. Além do marco legal dasIPSS, as mutualidades possuem uma regulamentação própria, prevista no Decreto-Lei n.º 72/90, de 3 de Março, que as define como “instituições particulares desolidariedade social com um número ilimitado de associados, capitalindeterminado e duração indefinida que, essencialmente através da quotizaçãodos seus associados, praticam, no interesse destes e de suas famílias, fins deauxilio recíproco”53. Atuando na seara da previdência social, as associações desocorro mútuo portuguesas estão sob a tutela da Direção-Geral dos Regimes deSegurança Social (órgão administrativo que as fiscaliza, orienta e apoia), sendoestimado que existam beneficiem aproximadamente 1 milhão de utentes.54

No tocante as fundações de solidariedade social, ao lado das associações,constituem uma das formas institucionais de perseguição dos objetivos desolidariedade social, constantes do Estatuto das IPSS (arts. 77º ao 86º) em que seressalta o elemento patrimonial vinculado à vontade do fundador.55

As irmandades de misericórdia são associações constituídas segundo o

52 QUELHAS, Ana Paula. Op. Cit. 206p.53 PORTUGAL. Código das Associações Mutualistas. Decreto-Lei n.º 72/90, de 3 de Março. Inteiro teor disponívelna Internet através do portal http://www.uniaomutualidadesportuguesas.pt/. Acesso em 1º de Abril de 2007.54 NUNES, Francisco; RETO, Luís; CARNEIRO, Miguel. O terceiro sector em Portugal: delimitação,caracterização e potencialidades. Lisboa: Instituto António Sérgio do Sector Cooperativo, 2001. 89p.55 MARTINS, Fernando Licínio Lopes. Op. Cit. 140p.

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Direito Canónico, ou seja, além do Estatuto das Instituições Particulares deSolidariedade Social (que reconhece sua dupla finalidade: satisfazer as carênciassociais e cultuar o catolicismo) tais organizações também se sujeitam às disposiçõesda Concordata celebrada em 7 de Maio de 1940 entre a Santa Sé e a RepúblicaPortuguesa153. Com efeito, tais entidades não se constituem segundo as leis civis(senão através de procedimentos de competência do bispo da diocese ou daConferência Episcopal) e sofrem fiscalização limitada pelo Estado154. As atividadesdas misericórdias derivam do dever de “caridade” católica e correspondem a 39%do filantropismo social português.58

As cooperativas de solidariedade social e as casas do povo foramrecentemente equiparadas às IPSS, através da edição da Lei nº101/97, de 13 deSetembro e do Decreto-Lei nº171/98, de 25 de Junho, respectivamente. As primeirassão regulamentadas pelo Decreto-Lei n.º 7/98, de 15 de Janeiro e a criação dacategoria remonta aos anos de 1975 e 1980 como resultado da insatisfação de paisao tratamento que as formas organizativas solidárias então dispensavam aosportadores de deficiência. Já as segundas, as Casas do Povo, devem sua criação aoEstado Novo que as instituiu em todas as freguesias com a finalidade de prestarprevidência, socorro, educação e cultura às populações rurais.59

2.4.1.2. Pessoas Coletivas de Utilidade Pública AdministrativaAs Pessoas Coletivas de Utilidade Pública Administrativa são aquelas

que, não se configurando nos requisitos caracterizadores das Instituições deSolidariedade Social (notadamente quanto às atividades que exercem), perseguemalgumas das finalidades previstas no art. 416º do Código Administrativo, sujeitando-se à tutela e controle da Administração Pública. Nas palavras de FREITAS DOAMARAL, “continuam a dever ser qualificadas como pessoas coletivas deutilidade pública administrativa todas aquelas que já eram à face do art. 416º doCA e não passaram a instituições particulares de solidariedade social, nos termosdo DL nº 119/83, de 25 de Fevereiro”60. Resta pacífico na legislação, jurisprudênciae doutrina que as PCUPA são pessoas jurídicas de direito privado, espéciesautónomas do género pessoas coletivas de utilidade pública.61

Incluem-se nessa categoria, portanto, as “associações humanitárias” ouquaisquer outras que visem a proteção de vidas humanas e bens, sem perseguiremfins lucrativos. Exemplo dessa categoria são as Associações de Bombeiros

56 O referido documento, que reconhece a personalidade jurídica da Igreja Católica no Estado Português, confere-lhe, ainda, o livre exercício de sua autoridade e de seu corolário poder de ordem e jurisdição, bem como um regimejurídico diferenciado das demais religiões. Dessa maneira, apesar de mantida a separação entre Estado e Igreja, estaé livre para criar associações e organizações, as quais terão sua personalidade jurídica reconhecida pelo PoderPúblico (CAETANO, Marcello. Manual de Direito Administrativo. 10ª ed. Vol. I. Coimbra: Almedina, 1980.410p).57 FERREIRA, Sílvia Maria Dias. Op. Cit. 89p.58 Ibidem.59 Ibidem.60 AMARAL, Diogo Freitas do. Op. Cit. 722p.61 GONÇALVES, Pedro. Entidades privadas com poderes administrativos. Coimbra: Almedina, 2005. 517p.

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Voluntários que, em Portugal, representam 90% do corpo de bombeiros nacional econta com o voluntariado em 67% de seu efetivo62.

No respeitante às pessoas coletivas de utilidade pública administrativa,PEDRO GONÇALVES acentua que a declaração de utilidade pública não éautomática e, tampouco pode ser fruto de uma dedução pelo intérprete legal. Eladecorre de um procedimento administrativo previsto no Decreto-Lei nº264/2002, de25 de Novembro, em que as câmaras municipais emitem seu parecer a respeito. Paratanto, é necessário que a organização preencha todos os requisitos insculpidos noart. 416º do Código Administrativo, não bastando a simples coincidência entre asfinalidades da instituição e as da Administração Pública, senão os objetivosespecíficos que a lei previu para atribuir o estatuto de utilidade públicaadministrativa. Ainda no tocante ao reconhecimento da utilidade pública de taisorganizações, é imperioso mencionar que o mesmo não acarreta a publicização dasatividades as quais se dedicam, ou seja, a Administração Pública apenas aproveitao potencial dos particulares quando personificam o espírito voluntário e altruísta,mas não tornam públicas as tarefas por eles desempenhadas.63

2.4.1.3. Pessoas Coletivas de Mera Utilidade PúblicaAs pessoas coletivas de mera utilidade pública são aquelas que, por

exclusão, não se constituem instituições particulares de solidariedade social nempessoas coletivas de utilidade pública administrativa, considerando os fins queperseguem. Elas buscam o interesse geral, outros que não sejam os previstos parao seu reconhecimento como IPSS ou PCUPA, e encontram-se disciplinadas peloDecreto-Lei nº 460/77, de 7 de Novembro. FREITAS DO AMARAL releva que asPCMUT possuem algumas regalias e isenções ao lado de deveres e limitações.Entretanto, é mínima a intervenção do poder Público nessas instituições,dispensando-lhes da tutela e o controle público. 64

Em verdade, a ingerência da Administração Pública nas PCMUT é oestritamente necessário para a consecução dos tais “interesses gerais” que visam,motivo pelo qual o controle estatal aqui é denominado de tutela imprópria ou quasetutela. E, considerando que os fins realizados pelas organizações em comento nãocobrem as áreas reservadas às IPSS e nem às pessoas coletivas de utilidade públicaadministrativa, pode-se dizer que o interesse geral que perseguem volta-se aoâmbito cultural e desportivo, por exemplo.65

2.4.2. Indicadores do panorama atualAtualmente, Portugal se encontra num nível intermediário de

desenvolvimento do Terceiro Setor, considerando os critérios de ligações internasentre suas organizações, visibilidade na mídia e na comunidade científica e o

62 NUNES, Francisco; RETO, Luís; CARNEIRO, Miguel. 92p.63 GONÇALVES, Pedro. Op. Cit. 518-522p.64 AMARAL, Diogo Freitas do. Op. Cit. 737p.65 PEÇA, Isabel Faustino. Op. Cit. 26-27p.66 QUINTÃO, Carlota. Op. Cit. 13p.

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reconhecimento pelo Poder Público.66

Conforme dados auferidos em pesquisas, restou comprovado que oTerceiro Setor português é uma força econômica significativa, em que suas despesasrepresentam 4,2% do PIB, envolvendo cerca de 250.000 trabalhadores, dentre osquais 70% em regime remuneratório. Quanto a sua sustentabilidade, evidenciou-seque 48% de seus fundos provém de receitas próprias, seguido de 40% definanciamento público e apenas 12% de filantropismo.67

E, num estudo realizado pela Câmara Municipal do Porto, sobre ovoluntariado na cidade, “comparativamente com outros países europeus, oenvolvimento associativo em Portugal (53%) é semelhante ao de Espanha (48%),é superior ao dos países de Leste (20%) seleccionados para o estudo (Moldáviae Roménia) e inferior a todos os outros, especialmente ao dos países nórdicos eda Holanda (taxas a rondar os 90%), que neste estudo comprovam a sua járeconhecida cultura cívica e participativa”.68

3. TERCEIRO SETOR E A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA EM PORTUGALO maior interesse no estudo do Terceiro Setor após a desestruturação das

características paternalistas do Estado-Social recai sobre a devolução à sociedadecivil das funções de provisão de bem-estar e a consequente redução da procurasobre os serviços estatais (procura a qual foi provocada mais pelo espírito que oEstado-Providência cultivou na sociedade que pela crise econômica ou aumentodas necessidades sociais propriamente ditas). Isto porque a Economia Social, apartir dos anos 70, passou a se comportar como um elemento de reformulação doelo entre sociedade e Estado, portanto, “é a social-democracia da `Terceira Via´que procura criar uma `sociedade de pessoas que assumem riscos´, ondenecessariamente devem coexistir a regulação e a desregulação”.69

Com efeito, na relação que se estabelece entre Terceiro Setor e Estado,torna-se imperiosa a análise de temas como o controle e responsabilidade, tarefa aqual nos propomos a seguir, não sem antes nos aprofundarmos na natureza jurídicadesta relação.

3.1. Relação jurídica entre Terceiro Setor e Administração PúblicaA relação entre Terceiro Setor e Estado é uma das questões mais discutidas

no estudo do tema. Isto porque, recordando-se da afirmação de que o fortalecimentoda Economia Social ocorreu num período de crítica ao Estado, questionar a ligaçãoentre os dois segmentos é um exercício que alça algumas polêmicas. A preocupaçãoinicial era a de que o envolvimento estatal nas ações do Terceiro Setor poderia

67 FRANCO, Raquel Campos; SOKOLOWSKI, S. Wojciech; HAIREL, Eileen M. H; SALAMON, Lester M. OSetor não lucrativo português numa perspectiva comparada. Porto: Projeto CNP em Portugal, UniversidadeCatólica Portuguesa, 2005. 10p.68 ROCHA, Eugénio; MACHADO, Idalina; ROCHA, Sérgio. Voluntariado na Cidade do Porto: resultados doinquérito às instituições do terceiro setor. Porto: Câmara Municipal do Porto, 2006. 12p.69 SILVA LOPES, Alexandra Cristina Ramos da. Op. Cit. 30p.

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motivar: perda da independência das organizações sociais não lucrativas, quepoderiam passar a atuar segundo as prioridades do Governo; distorção das missõesdo Terceiro Setor, uma vez que, com o financiamento estatal, tais organizaçõespoderiam perder a liberdade na gestão dos recursos; e a criação de uma indesejávelburocratização e profissionalização de tais instituições.70

A evolução científica da matéria em apreço abrandou os mitos até entãosustentados para evitar a aproximação do setor não lucrativo ao Estado (uma vezque os fenômenos anteriormente narrados poderiam ocorrer tanto em decorrênciado financiamento público, como do privado, através de grandes grupos financeiros),uma vez que o relacionamento entre o primeiro e o terceiro setores vinha se tornandouma realidade incontornável.

Considerando que as organizações que compõem o Terceiro Setor selocalizam estruturalmente numa região mista entre direito público e privado, namedida em que se constituem instituições privadas e, por perseguirem interessespúblicos, aproximam-se da esfera governamental, o regime jurídico à elas aplicadotem por base, portanto, normas tanto de direito público como as de direito privado.

Assumindo funções coincidentes com algumas das atribuições do PoderPúblico, as organizações do Terceiro Setor, num modelo de Estado regulatório,passaram a se submeter à fiscalização e à tutela pública, através das quais o Governopode acompanhar a prestação dos serviços de interesse geral, realizada porparticulares, averiguando se os mesmos estão sendo efetivamente perseguidos.Em contrapartida, tais organizações recebem o reconhecimento, a valorização e oapoio técnico, logístico e financeiro do Estado.

Asseguradas as prerrogativas de controle e fiscalização do Estado sobrea atuação das instituições do Terceiro Setor, observando que as atividades sociaispor elas desempenhadas não se arrogam na qualidade do monopólio estatal, édizer, comportam o exercício tanto por entidades de direito público como as dedireito privado (o que FREITAS DO AMARAL designa por coexistênciacolaborante entre atividades públicas e privadas), a relação que se estabeleceentre o Terceiro Setor e o Poder Público é, por conseguinte, a de cooperação.71

Não deixa de ser uma espécie de parceria público privada (na suaconcepção informal), na medida em que aponta para a idéia de um trabalho emconjunto. Entretanto, não pode ser concebida como uma parceria público privadana sua acepção contratual, uma vez que esta pressupõe a “partilha de riscos”, quenão é assumida pelas organizações do Terceiro Setor, o que leva a crer que há,portanto, uma relação de mera contribuição. 72

Nesse sentido, as pessoas coletivas de utilidade pública, como entidadesprivadas, ainda que desempenhem funções de natureza pública, não chegam aintegrar o corpo estatal, senão apenas auxiliam a Administração Pública. Em outras

70 FERREIRA, Maria Sílvia Dias. Op. Cit. 76p.71 AMARAL, Diogo Freitas do. Op. Cit. 717p.72 GONÇALVES, Pedro. Op. Cit. 329p.

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palavras “considera-as a todas como entidades privadas que cooperam com aadministração, e não como elementos integrantes desta”.73 Em síntese, portanto,ainda que colaborem com a Administração Pública para a consecução dedeterminados interesses coletivos e, consequentemente, sujeitando-se ao controlee à fiscalização por parte do Estado, as instituições do setor não lucrativo aindapreservam certa liberdade e autonomia, decorrentes do regime jurídico de direitoprivado.

3.2. ResponsabilizaçãoNo estudo sobre questão afeta ao tema em epígrafe, JAVIER DE LUCAS

chama a atenção para a assertiva de que “no hay solidariedad sinresponsabilidad”74. Significa dizer que nessa relação altruísta que vincula asociedade, seus membros e o Estado, a exigência da responsabilidade deve existir,seja ela sob aspecto social, moral ou jurídico. A responsabilização é uma figura que,assim, existe tanto na esfera privada como no âmbito público, ainda que assumadimensões distintas.

E um dos fatores que caracterizam as organizações do Terceiro Setor é amultiplicidade da responsabilização (concebida, aqui, sob uma significação ampla),isto é, o dever de responsabilidade sobre diferentes coisas e perante sujeitosdiversos 75. Com efeito, as instituições do setor não lucrativo responsabilizam-sepelo serviço que é prestado e pela fidelidade aos ideais que defendem perante osutentes, a sociedade em geral e, finalmente, junto ao Estado.

No que concerne aqui discutir, a responsabilidade perante o Estado poderásurgir através do instrumento contratual (como pode ocorrer no caso das IPSS)76.Significa dizer que a responsabilidade das organizações do Terceiro Setor naexecução de tarefas que visem a satisfação do interesse público se baseia nascondições contratuais previstas no pacto celebrado entre a particularidade e oente público (pacto cuja propriedade da nomenclatura – contrato ou convênio –não receberá tratamento aprofundado neste trabalho, dada suas limitações77).Ressalta-se, aqui, a importância da contratação para a instituição das modalidadescom que os particulares podem cooperar ou colaborar na gestão dos serviços ouna execução de tarefas públicas78. Nessa esteira de raciocínio, no que concerne àsrelações entre Estado e Terceiro Setor “o contrato tem surgido como instrumentoprivilegiado de responsabilização das organizações perante o governo”79

Desta feita, é a figura do ajuste formal que estabelecerá e normalizará a

73 Ibidem. 747p.74 LUCAS, Javier de. Op. Cit. 13p.75 FERREIRA, Sílvia Maria Dias. Op. Cit. 79p.76 A disposição é expressa no art. 4º, inciso 2, do Decreto-Lei n.º 119/83, de 25 de Fevereiro, que assim dispõe: “2- O contributo das instituições e o apoio que às mesmas é prestado pelo Estado concretizam-se em formas decooperação a estabelecer mediante acordos“.77 Sobre o tópico, vide MARTINS, Fernando Licínio Lopes. Op. Cit. 294-297p.78 GONÇALVES, Pedro. Op. Cit. 330p.79 FERREIRA, Sílvia Maria Dias. Op. Cit. 82p.

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relação entre as instituições do Terceiro Setor e a Administração Pública, sendoatravés dele que as mesmas ganham o status de colaboradoras ou auxiliares estatais.Permite-se afirmar, portanto, que é “através do instrumento contratual que seconcretiza a disciplina relativa às formas de colaboração, de apoio financeiro ede sujeição das organizações a um controle especial”.80

Cumpre esclarecer que esta modalidade de ajuste é concebida pela doutrinacomo uma espécie de contracting out81, em que a estadualidade transfere àsorganizações do setor não lucrativo a gestão de uma atividade ou prestação de umserviço de cunho social, provendo as despesas, suportando os custos e mantendoa responsabilidade sobre o desenvolvimento da atividade realizada pelo particular.82

Ademais, na existência de um contrato firmado perante a AdministraçãoPública, as instituições da Economia Social não se responsabilizam pela efetivasatisfação do interesse público, pois a titularidade do mesmo pertence ao Estado,muito embora aquelas tenham por objetivo persegui-lo. Ou seja, nesta hipótese,não poderão ser responsabilizadas pelo dever de prestar determinado serviço denatureza pública, haja vista que este não lhes é exigível, pois continua pertencendoà Administração Pública. Elas operam, assim, dentro de um espaço de cooperação83

com o ente público.Neste caso, a Administração Pública apenas confia a gestão e a prestação

do serviço (que pode ou não ser acompanhada da delegação de poderes públicos),mas mantém sobre seu domínio a titularidade do mesmo, ou seja, “ o Estado delegaa gestão do serviço e financia os custos da mesma, mas a sua titularidade – atitularidade do serviço – mantém-se intocável”. Esta constitui, inclusive, uma dascaracterísticas basilares do contracting out.84

Ora, qual seria, portanto, a dimensão da responsabilidade sustentada pelasorganizações do Terceiro Setor perante o Estado, sendo seguro que sobre aquelasnão recai sobre o dever de prestação do serviço, o qual continua nas mãos daAdministração Pública?

A responsabilidade, aqui, assume um outro sentido: daquilo que pode serexigido. Significa dizer que a responsabilidade das organizações do Terceiro Setor,

80 MARTINS, Fernando Licínio Lopes. Op. Cit. 285p.81 Trata-se de um “sistema de contrato – contracting out, adotado principalmente nos Estados Unidos, tem porobjetivo criar provedores privados de bens e serviços públicos, promover a transferência do locus de produção,sem alterar a esfera funcional de ação do governo, no sentido de manter também o caráter público dos bens eserviços em questão“ (DWECK, Ruth Helena. O Movimento de Privatização dos Anos Oitenta: Reais Motivos.In: Nova Economia. Vol. 10, nº 2. Belo Horizonte: Departamento de Ciências Econômicas da Universidade Federalde Minas Gerais, 2000. 165-166p).82 Ibidem. 287p.83 FERNANDO LICÍNIO LOPES MARTINS acentua a importante diferença entre colaboração e cooperação, tãosalutar para a questão da identificação de responsabilidades. Enquanto no primeiro caso a finalidade do colaboradoré a obtenção de lucro mediante a satisfação de um interesse público da qual é contratualmente encarregado, nosegundo caso, para o cooperador, a realização dos interesses coletivos é a sua própria razão de existência (MARTINS,Fernando Licínio Lopes. Op. Cit. 286p).84 Ibidem. 288p.

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para com a Administração Pública, na relação de cooperação que estabelecem é ode dever cumprir as determinações que lhe são impostas bem como as diretrizesque são traçadas na legislação, que se materializam na satisfação das exigênciasestatais ou através da sujeição ao seu controle. 85

Há casos, inclusive, em que as instituições do setor não lucrativo poderãoassumir responsabilidades quanto aos meios e aos resultados de determinadosserviços. Nessa hipótese, dependerá da forma com que estiver previstocontratualmente86, sendo admissível tal possibilidade sem interferir no campo daliberdade e autonomia dessas organizações e sem, tampouco, deslocar a titularidadeda atividade desenvolvida.

3.3. Tutela e ControleNo novo paradigma que a Administração Pública passou a se orientar,

quando à ela não caiba, privatisticamente, o dever de buscar o interesse público,caberá então o dever de garanti-lo. A garantia da busca pelo interesse públicodecorre, portanto, da montagem de um sistema de controle e fiscalização, que éprecedido pelo estabelecimento de um quadro regulatório em que o Estado fixa asbalizas de atuação dos particulares.

A tutela e o controle estatal decorrem, assim, da chamada “vinculação departiculares pelo direito administrativo”, que se traduz na assunção de deveres doparticular para com a Administração Pública, decorrente de norma ou de ato dedireito público.87

No que concerne às IPSS, as formas de submissão dos particulares àsnormas de direito público são previstas tanto na legislação como no contrato quevenha estabelecer com o Poder Público. Da letra da lei, pode-se auferir que as IPSSsão consideradas “donas de obras públicas” na medida em que o art. 23º do Decreto-Lei n.º 119/83, de 25 de Fevereiro, prevê que “a empreitada de obras de construçãoou grande reparação, bem como a alienação e o arrendamento de imóveispertencentes às instituições, deverá ser feita em concurso ou hasta pública,conforme for mais conveniente”. Neste aspecto, trata-se de conferir um tratamentode direito público à sujeitos dotados de personalidade de direito privado no quetange à contratação, o que PEDRO GONÇALVES acredita tratar de definir as IPSScomo “organismos de direito público” porque nesses casos, em especial, praticamatos equiparados aos atos administrativos. 88

Ainda considerando o que dispõe o Estatuto das Instituições Particularesde Solidariedade Social, existem alguns atos que necessitam da autorização públicapara serem praticados, como é o caso, por exemplo: aquisição de bens imóveis a

85 Decreto-Lei n.º 119/83, de 25 de Fevereiro. “Artigo 39.º (Acordos de cooperação) Sem prejuízo do dispostonesta secção, ficam ainda as instituições obrigadas ao cumprimento das cláusulas dos acordos de cooperaçãoque vierem a celebrar com o Estado“.86 MARTINS, Fernando Licínio Lopes. Op. Cit. 307p.87 GONÇALVES, Pedro. Op.Cit. 304p.88 Ibidem. 252p.

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título oneroso; alienação de imóveis a qualquer título; e a realização de empréstimos.Da mesma forma, a legislação também prevê os atos que carecem do visto publicopara serem válidos, é o que ocorre com os orçamentos e as contas das instituiçõesque são aprovados pelos corpos gerentes nos termos estatutários.

E para garantir que todas as exigências sejam atentamente observadaspelas IPSS, seu marco legal estabelece as formas de fiscalização pública, ao permitirque os serviços competentes ordenem a realização de inquéritos sindicâncias einspecções às instituições e seus estabelecimentos. E, sobre o tema, o SupremoTribunal Administrativo teve a oportunidade de se manifestar, ocasião em que,esposando entendimento consoante o que dispõe a legislação, assim compreendeu:

“…estão imperativamente sujeitas as instituições de solidariedadesocial, por força do DL 119/83, de 25.2, designadamente, a tutela sobreelas exercida pelo Estado (arts. 32.º e 34.º), a imposição de que asempreitadas de obras de construção ou grande restauro seja feita emconcurso público (art.º 23.º), a necessidade do visto dos serviçoscompetentes em relação aos orçamentos e contas destas instituições (art.º33.º) e a fiscalização a que estão sujeitas, podendo os serviços competentesordenar a realização de inquéritos, sindicâncias e inspecções àsinstituições e seus estabelecimentos (art.º 34.º), permite concluir que,para o efeito do disposto no nº 2 do art.º 3.º do DL 59/99, a gestão dasinstituições privadas da solidariedade social está sujeita ao controlodo Estado”.89

A tutela e o controle do Estado sobre as Instituições Particulares deSolidariedade Social ainda se revela no processo de constituição e extinção dessasorganizações, em que a Administração Pública exerce uma fiscalização sobre alegalidade dos atos. No caso das associações, o Poder Público desempenha duplocontrole: o primeiro, de natureza notarial, no momento da constituição (prévio); e osegundo, num momento intermediário entre a lavratura da escritura pública e oregistro. Nesses casos, verificada alguma ilegalidade, o registro será recusado.90

No que concerne a constituição das fundações, conforme preceitua o art.158º, inciso 2, e art. 188º do Código Civil91, vale ressaltar que se trata de um direitolimitado e condicionado por um ato discricionário da Administração Pública, a qual

89 SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO. Processo nº 025/05, documento nº SAC20061219025, Rel.Angelina Domingues, 19 de Dezembro de 2006. Inteiro teor disponível na Internet através do portal http://www.stadministrativo.pt/. Acesso em 1º de Abril de 2007.90 MARTINS, Fernando Licínio Lopes. Op. Cit. 128p.91 “Art. 158º - 2. As fundações adquirem personalidade jurídica pelo reconhecimento, o qual é individual e dacompetência da autoridade administrativa. (…) Art. 188º 1. Não será reconhecida a fundação cujo fim não forconsiderado de interesse social pela entidade competente. 2. Será igualmente negado o reconhecimento, quandoos bens afectados à fundação se mostrem insuficientes para a prossecução do fim visado e não haja fundadasexpectativas de suprimento da insuficiência.“ (PORTUGAL. Código Civil. Inteiro teor disponível na Internet,através do endereço eletrônico http://www.confap.pt/docs/codcivil.PDF. Acesso em 1º de Abril de 2007).

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avalia a utilidade social e a adequação dos objetivos propostos, bem como asuficiência da dotação patrimonial.

Entretanto, em que pese a possibilidade de ingerência do Poder Públicoem alguns aspectos de atuação das organizações do Terceiro Setor, aquelas nãopossuem o condão de retirar a liberdade e autonomia que lhe são atribuídas portambém se sujeitarem ao regime de direito privado. O Estado, nesta situação, apenasexerce seu poder regulamentar e de controle naquilo que lhe diz respeito imediatoou naquilo que lhe interessa diretamente, que é a persecução do interesse coletivo.Questões desconexas com esse objetivo não são, portanto, passíveis de fiscalizaçãopública.

CONCLUSÃODurante todo o estudo realizado, pelo menos uma conclusão incontroversa

foi observada, qual seja, a da patente insuficiência do Estado em atender todas asnecessidades coletivas, necessitando, para tanto, da colaboração dos particulares.Nesse diapasão, o Terceiro Setor encontrou um espaço aberto para o seudesenvolvimento ao ponto da própria Administração Pública reconhecer o valorde seus préstimos.

Por conseguinte, as organizações do Terceiro Setor aparecem, aos olhosda sociedade, como uma alternativa à ineficiência do Estado e à ganância domercado, motivo pelo qual passaram a ser concebidas como um instrumento derenovação, de reinvenção da atividade de prestação dos serviços públicos, antesuas típicas características de não visarem o lucro e constituírem-se a partir dainiciativa popular.

Entretanto, utópico seria acreditar que o movimento do Terceiro Setor ésuficiente para equacionar todos os problemas aos quais se propõe, pois “se essefor o caso, o terceiro sector converte-se rapidamente na ̀ solução´ de um problemairresolúvel e o mito do terceiro sector terá o mesmo destino que teve anteriormenteo mito do Estado e, antes deste, o mito do mercado”.92 Há de se reconhecer queesta não é, e tampouco pode ser, a única solução para a crise do Estado e anecessidade de reformas institucionais promovida pela globalização, pelodesenvolvimento tecnológico, e pela crescente exclusão social.

Trata-se apenas de uma proposta cuja experimentação tem sido exitosa emmuitos aspectos, mas que ainda carece de uma leitura cuidadosa e aprofundada,notadamente quanto a sua relação com a Administração Pública. Sobre o assunto,a doutrina reconhece que as organizações do Terceiro Setor atuam comocoadjuvantes na persecução dos interesses públicos, significando afirmar que nãosubstituem o Estado e, tampouco, passaram a deter a responsabilidade (leia-se,titularidade) do serviço público.

A responsabilidade assumida pelas instituições do setor lucrativo baseia-

92 SANTOS, Boaventura de Souza. A reinvenção solidária e participativa do Estado. In: Anais do SeminárioInternacional Sociedade e a Reforma do Estado. São Paulo: Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, 26-18 de Março de 1998. 9p.

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se em valores, em confiança. Ou seja, assumindo a prestação privada de serviçospúblicos, tais organizações passaram a se sujeitar a um certo controle e tutelaestatal, segundo modelo garantístico de Estado. Com efeito, a sua responsabilidaderecai na necessidade de se adequar às regras de direito público, que agora passarama lhe disciplinar ao lado das normas de direito privado e, em alguns casos, àsexigências constantes dos contratos firmados com a Administração. Importaconcordar com a assertiva de SILVIA MARIA DIAS FERREIRA, segundo a qual“os mecanismos de responsabilização das IPSS perante o Estado são prosseguidospelas várias áreas de tutela, que são o registro, o apoio técnico e a fiscalizaçãoe encontram-se grandemente concentrados nos acordos de cooperação, por viado ênfase na natureza contratual entre o Estado e as instituições na área daação social”. 93

Portanto, os instrumentos contratuais ajustados com a estadualidade, aolado da lei, serão a fonte da responsabilidade a ser suportada pelas instituições daeconomia social frente ao Estado, através da previsão de algumas metas, exigênciase deveres. Contudo, tal responsabilidade recai apenas no aspecto que interessadiretamente ao Poder Público, preservando a liberdade e a autonomia dessasorganizações na gestão das demais questões afetas à sua atividade, comoprerrogativas que lhe são atribuídas pelo regime de direito privado que se sujeitam,por excelência.

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93 FERREIRA, Sílvia Maria Dias. Op. Cit. 337-338p.

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DIREITO À EDUCAÇÃO: A EDUCAÇÃO COMODIREITO FUNDAMENTAL NA CONSTITUIÇÃO

FEDERAL DE 1988Adriano ARANÃO*

SUMÁRIO: Introdução. 1 A educação. 2 O direito natural e humano à educação. 3O direito fundamental à educação. Considerações finais.

RESUMO: O presente artigo tem por objeto o estudo do direito social fundamentalà educação, notadamente sob seu viés material, transformador e concretizador doEstado Democrático de Direito. Trata do papel que a educação desenvolve na vidado indivíduo e da sociedade e de que como a sua negação, explícita, ou o que émuito pior, velada serve como poderoso instrumento de perpetuação da ideologiada classe dominante. Paradoxalmente, pretende demonstrar que é a educaçãopoderoso instrumento de libertação dos oprimidos e marginalizados, funcionandocomo a mola propulsora para a formação do homem e de uma sociedade maisigualitária e humana. Analisa a educação como direito natural e humano, alocando-a entre os de segunda geração e, ao mesmo tempo, como pressuposto para aconcretização dos demais direitos fundamentais. Apresenta os contornosconstitucionais e legais do direito à educação, sob os prismas formal material. Aofinal, novamente realça o caráter transformador da educação, destacando-a comoinstrumento de concretização da dignidade humana e da cidadania plena.

ABSTRACT: The present article hás as objective the study of the basic socialright to education, mainly under is material, side that is transformer of DemocraticState of Right. It deals with the role that education develops in life of the individualando f the society and that is negation, what it is worse because it serves aspowerful instrumet of perpetuation of the ideology of the ruling class. Paradoxicalally,it intends to demonstrate that instrumet of release of the oppressed ones is thepowerful education of those who are keeping out of society, functioning asthepropeller spring for the formation of man ando f one more society. It analyzes theeducation as natural and human right placing it among second generation rightand at the same time as estimated for the concretion of the basic rights. It presentsthe legal contours of the right to the education, under the formal and materialprisms. At the end, it enchances the transforming character of education detachingit as instrumento of concretion of human dignity ando f full citizenship.

* Aluno do Programa de Mestrado da Faculdade de Direito do Norte Pioneiro (FUNDINOPI), em Jacarezinho/PR.Professor de Direito Penal das Faculdades Integradas de Ourinhos (FIO). Oficial da Polícia Militar do Estado deSão Paulo. Artigo submetido em 18/03/2008. Artigo aprovado em 23/07/2008

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PALAVRAS CHAVES: Educação; Constituição Federal; Direito fundamental;Dignidade humana; Cidadania.

KEY-WORKS: Education; Federal constitution; Fundamental Law; Human dignity;Citizenship.

INTRODUÇÃO

Ao iniciar o estudo do direito à educação, notadamente sob o seu viéssubstancial, necessário se faz refletir acerca do papel que a educação desempenhana vida do indivíduo e da sociedade.

Na busca incessante do lucro, a política neoliberal e globalizada subvalorizao humano. O indivíduo não é mais visto como sujeito de direitos, mas como meroobjeto posto a serviço do poder econômico. Opera-se verdadeira desumanização1

do mundo. Abandonam-se os “condenados da terra”2, os excluídos, à sua própriae malfadada sorte.

Fábio Konder Comparato3, confrontando as atrocidades perpetradasdurante Gulag soviético e o Lager nazista com as vivenciadas hodiernamente,acentua que, na atualidade, “[...] a transformação das pessoas em coisas realizou-se de modo menos espetacular, mas não menos trágico, com o desenvolvimento dosistema capitalista de produção.”

A negação explícita ou, o que é muito pior, velada do direito à educação éum dos mais poderosos instrumentos utilizados pela classe dominante na busca daperpetuação da sua ideologia de mercado, fulminando qualquer possibilidade detransformação da realidade.

Sob este aspecto, Pedro Demo4 enfatiza que

[...] um dos traços mais marcantes desta mazela histórica está na ‘políticado pobre para o pobre’, visível na escola pública básica para os carentes,enquanto os ricos têm escola particular, na prática a única que permiteatingir universidades públicas gratuitas; visível na creche comunitáriapara a periferia, que convive com recursos humanos e financeiros desegunda categoria, chamados ironicamente de ‘alternativos’, enquantono centro há ofertas mais sólidas.

1 DE OLIVEIRA, Edna Castro. In: FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à práticaeducativa. 35. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2007, p.11.2 FREIRE, Paulo. op. cit. p.14.3 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 4.ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p.23-24.4 DEMO, Pedro. Cidadania Menor, Petrópolis: Vozes, 1992, p. 22.

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Tal panorama é incompatível com o Estado Democrático de Direito, postoque aí a dignidade da pessoa humana assume papel central na sua concretização.Fábio Konder Comparato5 lembra que

[...] a concepção kantiana da dignidade da pessoa como um fim em si levaà condenação de muitas outras práticas de aviltamento da pessoa àcondição de coisa, além da clássica escravidão, tais como o engano deoutrem mediante falsas promessas, ou atentados cometidos contra os bensalheios.

O princípio da dignidade humana pressupõe também a igualdade entre oshomens, que, por isso, merecem isonômico respeito à sua condição e iguaisoportunidades de realizar a sua felicidade. O Estado não é um fim em si mesmo, masinstrumento à disposição da realização da humanidade de cada indivíduo que ointegra.

Em países periféricos e de modernidade tardia como o Brasil, caracterizadopela enorme desigualdade econômica e social, ganha especial relevo a função doEstado de proporcionar aos menos favorecidos as oportunidades de realização dohumano. Neste mister, a educação apresenta destacada importância.

Assim é que a educação construtora do verdadeiro Estado Democráticode Direito, instituído6 e constituído7 pela Constituição Federal de 1988, devealicerçar-se na “ética universal do ser humano”8, concretizando a dignidade humanae viabilizando o exercício da cidadania plena.

Democracia pressupõe conhecimento e, como acentua Norberto Bobbio9,é “o poder em público”. Destarte,

O poder autocrático dificulta o conhecimento da sociedade; o poderdemocrático, ao contrário, enquanto exercido pelo conjunto dos indivíduosaos quais uma das principais regras do regime democrático atribui o direitode participar direta ou indiretamente da tomada de decisões coletivas, oexige. O cidadão deve ‘saber’, ou pelo menos deve ser colocado emcondição de saber. Ainda que com uma certa ênfase, atribuiu-se à ciênciapolítica, no momento do seu nascimento, em um momento de entusiasmoiluminista, que hoje em parte se apagou, até mesmo a tarefa da ‘educaçãopara a cidadania’.

5 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 4.ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p.23.6 CF/88, preâmbulo.7 CF/88, art. 1º, caput.8 FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 35. ed. São Paulo: Paz e Terra,2007, p.15.9 BOBBIO, Norberto. Teoria Geral da Política: a filosofia política e as lições dos clássicos. Organizado porMichelangelo Bovero. Tradução de Daniela Beccaccia Versiani. 13.ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007, p. 392 -393.

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Pedro Demo ressalta que a classe hegemônica “[...] não teme o pobre quetem fome, porque, como regra, basta enganá-lo com cestas básicas e outrascantilenas da solidariedade. O sistema teme o pobre que saber pensar; porque vaiatrás de seus direitos.”10

É portanto sob este enfoque, o da educação material, transformadora econstrutora do Estado Democrático de Direito, realizadora da dignidade humana eda cidadania plena, que se analisará o direito fundamental à educação.

1 A EDUCAÇÃOEtimologicamente, a palavra educação origina-se dos termos latinos

educare e educere. O educare compreende “[...] um processo de desenvolvimentoda capacidade física, intelectual e moral do ser humano em geral, visando suamelhor integração individual e moral.”11 De outro lado, o educere representa oprocesso em que o “[...] mais importante é a capacidade interior do educando, cujodesenvolvimento somente será decisivo se houver um dinamismo interno.”12

Esta aparente contradição etimológica acerca do conteúdo da educaçãorevela a não menos aparente dicotomia entre nativismo e empirismo. Para osnativistas o ser humano possui possibilidades inatas e a função do educador éapenas a de facilitar a sua exteriorização. Já o empirismo apregoa que o conhecimentoé fruto dos estímulos e experiências aos quais o homem é submetido.

A este respeito, Jean Piaget13 ressalta o caráter híbrido da educação eacentua a importância da atuação tanto dos

[...] fatores de hereditariedade e de adaptação biológicas, dos quaisdepende a evolução do sistema nervoso e dos mecanismos psíquicoselementares, e dos fatores de transmissão ou de interação sociais, queintervêm desde o berço e desempenham um papel de progressivaimportância, durante todo o crescimento, na constituição doscomportamentos e da vida mental.

Hirmínia Diniz14 destaca que

O mecanismo básico do cérebro se dá por meio de impulsos nervosos, quepassam de um neurônio a outro, por pontes chamadas sinapses. [...] Desse

10 DEMO, Pedro. Educação e Conhecimento: relação necessária, insuficiente e controversa. 2. ed. Petrópolis:Vozes, 2001, p. 21.11 MUNIZ, Regina Maria Fonseca. O direito à educação. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 7.12 MUNIZ, Regina Maria Fonseca. op.cit. p. 8.13 PIAGET, Jean. Apud DINIZ, Hírminia Dorigan de Matos. O direito fundamental à educação infantil e o controlejurisdicional de políticas públicas. 184 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Pós-Graduação emDireito da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba, 2007, p. 20.14 DINIZ, Hírminia Dorigan de Matos. op.cit. p. 41.15 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 4.ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 30.

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modo, essa situação compreendida pela estimulação e conseqüenteresposta é responsável pela criação de ‘janelas de oportunidades’, ouseja, cada experiência, vivida em cada período do desenvolvimento dacriança, realiza conexões entre as células nervosas que cria as condiçõesfavoráveis para o surgimento de determinadas capacidades observadasnos adultos.

Fábio Konder Comparato15 também acentua que

A descoberta da estrutura do DNA (ácido desoxirribonucléico) por Watsone Crick, em 1953, revelou que cada um de nós carrega um patrimônio genéticopróprio e, salvo no caso de gêmeos homozigóticos, um patrimônio genéticoúnico. Sucede que a esse primeiro molde da personalidade individual deveainda ser acrescida, como fator de diferenciação, a influência conjugadado meio orgânico, do meio social e do próprio indivíduo sobre si próprio.

E arremata enfatizando que

A biologia contemporânea veio, aliás, demonstrar que a modelação docomplexo cerebral do homem produz-se sobretudo após o nascimento erepresenta um produto do meio social.

O homem é, na verdade, um misto de potencialidades e fragilidades, aserem, paradoxalmente, contidas, preservadas e desenvolvidas. Edgar Morin16

entende que “[...] a animalidade e a humanidade constituem, juntas, nossa condiçãohumana” e enfatiza que a hominização do ser humano se opera pela educação,sendo que o “[...] homem é, portanto, um ser plenamente biológico, mas, se nãodispusesse plenamente da cultura, seria um primata do mais baixo nível.”

O indivíduo é produto da interação entre indivíduos e “[...] as interaçõesentre indivíduos produzem a sociedade, que testemunha o surgimento da cultura,e que retroage sobre os indivíduos pela cultura”17.

Diante desta indissociável relação indivíduo/sociedade, Edgar Morin18

afirma que

Não se pode tornar o indivíduo absoluto e fazer dele o fim supremo dessecircuito; tampouco se pode fazê-lo com a sociedade ou a espécie. No nívelantropológico, a sociedade vive para o indivíduo, o qual vive para asociedade; a sociedade e o indivíduo vivem para a espécie, que vive para

16 MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. Tradução de Catarina Eleonora F. da Silvae Jeanne Sawaya. 9.ed. São Paulo: Cortez Editora, 2004, p.50-51.17 Id. Ibid. p.54-55.18 Ibid. p. 54.

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o indivíduo e para a sociedade. Cada um desses termos é ao mesmo tempomeio e fim: é a cultura e a sociedade que garantem a realização dos indivíduose são as interações entre indivíduos que permitem a perpetuação da culturae a auto-organização da sociedade. [...] todo desenvolvimentoverdadeiramente humano significa o desenvolvimento conjunto dasautonomias individuais, das participações comunitárias e do sentimentode pertencer à espécie humana.

Notadamente sob o império do Estado Democrático de Direito, em querecebe especial relevo o princípio da dignidade humana e a cidadania plena, aeducação se apresenta como poderoso instrumento de transformação e inclusãosocial e, conseqüentemente, como pressuposto para o exercício dos demais direitosfundamentais que, por seu turno, constituem verdadeiras “[...] garantia e instrumentodo princípio democrático da autodeterminação do povo por intermédio de cadaindivíduo.”19

O homem é uma criatura finita e inacabada, mas, ao mesmo tempo, inventivoe progressivo20. E é através das lentes da educação que se torna capaz de refletircriticamente e de entender a si mesmo, ao próximo e ao mundo, tornando-se sujeitoconsciente do seu ser e estar no mundo, integrando-se ao grupo social do qual fazparte.

Otifried Höffe21 reconhece a importância da educação na formação doindivíduo e da sociedade e assevera que o homem “[...] sem prejuízos dos seusmúltiplos limites e barreiras – é capaz de um agir que vem do conhecimento e davontade e que, neste sentido, é livre”. Em seguida, acentua o papel da educação naestabilização das instituições sociais, servindo como um “corretivo” dos instintoshumanos.

Paulo Mekserras22, referindo-se aos pensamentos e críticas de Karl Marx àsociedade capitalista, entende que a classe dominante procura, através da educaçãoescolar, impor à classe trabalhadora os seus valores e idéias, apresentando-oscomo a única visão correta da sociedade. E, em seguida, arremata que para Marx,

A educação é de classe e, nesse sentido, a escolaridade para a classetrabalhadora tem dois objetivos: preparar a consciência do indivíduo paraperceber apenas a visão de mundo da classe empresarial como correta,isto é, transmissão de ideologia; preparar o indivíduo para o trabalho,fazendo com que aprenda o necessário e suficiente para lidar com seus

19 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado,2007, p. 72.20 OLIVEIRA, Admardo Serafim de. Apud GOMES. Sérgio Alves. O princípio constitucional da dignidade dapessoa humana e o direito fundamental à educação. Revista de Direito Constitucional e Internacional. São Paulo.n. 51: Revista dos Tribunais, 2005, p. 60.21 HÖFFE, Otfried. Filosofia Política: fundamentação de uma filosofia crítica do Direito e do Estado. Tradução deErnildo Stein. Petrópolis: Vozes, 1991, p. 280.22 MESKSERRAS, Paulo. Sociologia da educação. 12. ed. São Paulo: Loyola, 2005, p.66-67.

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instrumentos de trabalho, disciplinando e treinando o corpo/mente dojovem da classe trabalhadora para que possa desempenhar adequadamentesuas tarefas no trabalho.

No mesmo sentido, Paulo Freire assevera que “[...] o discurso daglobalização que fala da ética esconde, porém, que a sua é a ética do mercado e nãoa ética universal do ser humano, pela qual devemos lutar bravamente se optamos,na verdade, por um mundo de gente.”

Evidentemente não deve ser este o escopo da educação. Não deve visarapenas transmitir conhecimento ao indivíduo, mas também prepará-lo para oinclusivo convívio social. Sob este aspecto, Muniz213 acentua que não se trataapenas do preparo técnico, mas também da transmissão de valores morais, pois “Aeducação engloba a instrução, mas é muito mais ampla. Sua finalidade é tornar oshomens mais íntegros, a fim de que possam usar da técnica que receberam comsabedoria, aplicando-a disciplinadamente”. Assim a concebeu o constituinte de1988 ao determinar que deve visar ao “pleno desenvolvimento da pessoa, seupreparo para a cidadania e sua qualificação para o trabalho.”24

Se de um lado, como propõe Karl Marx, a educação escolar é utilizadacomo ardiloso instrumento de perpetuação da ideologia da classe dominante,paradoxalmente também é capaz de atuar como o mais poderoso instrumento delibertação dos oprimidos e marginalizados. Entretanto, Pedro Demo25 lembra que“[...] no confronto da desigualdade social, somente pode haver mudança importantee sobretudo radical, a partir dos desiguais; ninguém faz a emancipação do outro,por que seria estratégia de desmobilização.”

Destarte, é de se reconhecer que “[...] a educação é a mola propulsora paraa formação do homem e, ipso facto, de uma sociedade mais igualitária e humana.”26

É a educação o instrumento adequado para a compreensão das diferenças própriasda natureza humana e para a superação das desigualdades, discriminações emarginalizações de todas as ordens.

2 O DIREITO NATURAL E HUMANO À EDUCAÇÃOA gênese da educação confunde-se com o surgimento da própria

sociedade, pois é através da sua racionalidade – e consequentemente da educação- que o homem reconhece a necessidade e importância de viabilizar e estabilizar oconvívio social, renunciando a parcela de suas liberdades naturais.

Aristóteles entende que a natureza de polis é formada por duas séries de

23 MUNIZ, Regina Maria Fonseca. O direito à educação. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 9.24 CF/88, art. 205. A educação, direito de todos e deve do Estado e da família, será promovida e incentivada com acolaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadaniae sua qualificação para o trabalho.25 DEMO, Pedro. Cidadania Menor, Petrópolis: Vozes, 1992, p. 19.26 MUNIZ, Regina Maria Fonseca. O direito à educação. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 14.

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argumentos, a saber: 1) o homem possui impulsos sociais naturais, tais como osoutros animais; 2) o dom da linguagem e da razão humana, o logos.

Entretanto, a par da natureza de cooperação, o homem também tem suanatureza de conflito - o natural estado de guerra hobbesiano - e se, de um lado,tende à formação da polis, de outro tenciona a sua desarticulação. É o que Kantintitula de “insociável sociabilidade” humana.

Höffe27 acentua que tais impulsos são cumulativos, mas que o homem, nabusca da sua felicidade, é capaz “[...] de situar-se numa relação com suas condiçõesde vida (externa e interna) e graças a esta relação, consigo mesmo e de reflexão,capaz de perceber, denominar e compreender as condições. [...] Em suma, o homempode agir assim ou assado e deixar se conduzir por considerações naquilo que eleefetivamente faz ou deixa de fazer.”

Nesse sentido, a educação atua como verdadeiro corretivo dos instintoshumanos, servindo como instrumento de sobrevivência e de estabilização do gruposocial. De outro lado, é também através dela que o homem recebe e transmiteconhecimentos, possibilitando, a um só tempo, a satisfação das necessidades jáexistentes e a busca de outros e novos horizontes, viabilizando destarte uma vidabem sucedida como um todo, para além do momentaneamente agradável.

Aristóteles entende que se “[...] a finalidade da cidade é fazer com quetodos alcancem a virtude, ela [educação] deverá ser o meio adequado para conseguirtal objetivo, desenvolvendo harmônica e hierarquicamente todas as faculdadesespirituais, intelectuais e físicas do cidadão.”28 A educação apresenta-se, nopensamento aristotélico, como verdadeiro direito natural, ínsito à própria condiçãohumana.

Também Rousseau reconhece a educação como um direito natural aoasseverar que “Nascemos fracos, precisamos de força; nascemos carentes de tudo,precisamos de assistência; nascemos estúpidos, precisamos de juízo. Tudo o quenão temos ao nascer e de que precisamos quando grandes nos é dado pelaeducação.”

No evolver da história, o direito à educação foi sendo reconhecido edisciplinado em diversos tratados internacionais, sedimentando-se como direitohumano.

Neste ponto, é importante destacar que a expressão direitos humanos éreservada para os direitos que, no curso do reconhecimento dos direitos doshomens, foram sendo declarados em documentos internacionais. De outro lado,

27 HÖFFE, Otfried. Filosofia Política: fundamentação de uma filosofia crítica do Direito e do Estado. Tradução deErnildo Stein. Petrópolis: Vozes, 1991. p. 276.28 apud MUNIZ, Regina Maria Fonseca. O direito à educação. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 22.

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direitos fundamentais são aqueles direitos humanos reconhecidos e positivadosno direito constitucional de determinado país.29

Dentre os vários documentos que reconheceram o direito humano àeducação, destaca-se a Declaração Universal dos Direitos do Homem queestabelece, em seu artigo XXVI30 Art. XXVI. 1. Toda pessoa tem direito à instrução.A instrução será gratuita, pelo menos nos graus elementares e fundamentais. Ainstrução elementar será obrigatória. A instrução técnico-profissional será acessívela todos, bem como a instrução superior, esta baseada no mérito. , que todapessoa tem direito à instrução que, pelo menos nos graus elementares efundamentais, será gratuita e obrigatória.

A Convenção sobre os Direitos da Criança também reconhece a educaçãocomo direito humano e acentua, no seu art. 28, que o Estado deve assegurarprogressivamente o exercício desse direito na base da igualdade de oportunidades,tendo, entre outros, o objetivo de promover o desenvolvimento da personalidadeda criança, dos seus dons e aptidões mentais e físicos na medida das suaspotencialidades e de prepará-la para assumir as responsabilidades da vida numasociedade livre, num espírito de compreensão, paz, tolerância, igualdade entre ossexos e de amizade entre todos os povos, grupos étnicos, nacionais e religiosos ecom pessoas de origem indígena.31 Art. 28. 1. Os Estados Partes reconhecem odireito da criança à educação e tendo, nomeadamente, em vista assegurarprogressivamente o exercício desse direito na base da igualdade de oportunidades:

a) Tornam o ensino primário obrigatório e gratuito para todos;

b) Encorajam a organização de diferentes sistemas de ensino secundário,

29 BREGA FILHO, Vladimir. Direitos Fundamentais na Constituição de 1988: conteúdo jurídico de expressões.São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002, p. 73.2. A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento dapersonalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais. Ainstrução promoverá a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e grupos raciais ou religiosos,e coadjuvará as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz. 3. Os pais têm prioridade de direitona escolha do gênero de instrução que será ministrada a seus filhos.3. Os Estados Partes promovem e encorajam acooperação internacional no domínio da educação, nomeadamente de forma a contribuir para a eliminação daignorância e do analfabetismo no mundo e a facilitar o acesso aos conhecimentos científicos e técnicos e aosmodernos métodos de ensino. A este respeito atender-se-á de forma particular às necessidades dos países emdesenvolvimento. Art.29. 1. Os Estados Partes acordam em que a educação da criança deve destinar-se a : a)Promover o desenvolvimento da personalidade da criança, dos seus dons e aptidões mentais e físicos na medidadas suas potencialidades; b) Inculcar na criança o respeito pelos direitos do homem e liberdades fundamentais epelos princípios consagrados na Carta das Nações Unidas; c) Inculcar na criança o respeito pelos pais, pela suaidentidade cultural, língua e valores, pelos valores nacionais do país em que vive, do país de origem e pelascivilizações diferentes da sua; d) Preparar a criança para assumir as responsabilidades da vida numa sociedadelivre, num espírito de compreensão, paz, tolerância, igualdade entre os sexos e de amizade entre todos os povos,grupos étnicos, nacionais e religiosos e com pessoas de origem indígena; e) Promover o respeito da criança pelomeio ambiente. 2. Nenhuma disposição deste artigo ou do artigo 28.º pode ser interpretada de forma a ofender aliberdade dos indivíduos ou das pessoas colectivas de criar e dirigir estabelecimentos de ensino, desde que sejamrespeitados os princípios enunciados no n.º 1 do presente artigo e que a educação ministrada nesses estabelecimentosseja conforme às regras mínimas prescritas pelo Estado.30 Apud CARVALHO, José Murilo. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 7. ed. Rio de Janeiro: CivilizaçãoBrasileira, 2005, p. 11.31 RE 466255 / SP – São Paulo. Relator Min. Celso de Mello.

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geral e profissional, tornam estes públicos e acessíveis a todas as crianças e tomammedidas adequadas, tais como a introdução da gratuitidade do ensino e a oferta deauxílio financeiro em caso de necessidade;

c) Tornam o ensino superior acessível a todos, em função das capacidadesde cada um, por todos os meios adequados;

d) Tornam a informação e a orientação escolar e profissional públicas eacessíveis a todas as crianças;

e) Tomam medidas para encorajar a frequência escolar regular e a reduçãodas taxas de abandono escolar.

2. Os Estados Partes tomam as medidas adequadas para velar por que adisciplina escolar seja assegurada de forma compatível com a dignidade humanada criança e nos termos da presente Convenção.

Na clássica divisão geracional dos direitos humanos, o direito à educaçãofigura entre os de segunda geração, os chamados direitos sociais. Entretanto, T.A.Marshall32 lembra que a educação, apesar de ser um direito de segunda geração, épré-requisito para a obtenção e expansão de todos outros direitos e afirma que

Foi ela que permitiu às pessoas tomarem conhecimento de seus direitos ese organizarem para lutar por eles. A ausência de uma população educadatem sido sempre um dos principais obstáculos à construção da cidadaniacivil e política.

O Ministro do STF Celso de Mello33 também reconhece o direito à educaçãoentre os direitos humanos de segunda geração e o vislumbra

[...] como um dos direitos sociais mais expressivos, subsumindo-se à noçãodos direitos de segurança geração (RTJ 164/158-161), cujo adimplementoimpõe, ao Poder Público, a satisfação de um dever de prestação positiva,consistente num ‘facere’, pois o Estado dele só se desincumbirá criandocondições objetivas que propiciem, aos titulares desse mesmo direito, oacesso pleno ao sistema educacional.

Têm-se, portanto, que o direito à educação, apesar de alinhar-se entre os

32 CARVALHO, José Murilo. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 7. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,2005, p. 9 e 10.33 CF/88, art. 6º. São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdênciasocial, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.

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direitos humanos de segunda-geração, constitui pressuposto para a concretizaçãodos demais direitos humanos. Nesse sentido, José Murilo de Carvalho34 lembraque pode até haver direitos civis sem direitos políticos; contudo, os direitos políticosnão subsistem materialmente sem que os direitos civis estejam garantidos. Ficamesvaziados de conteúdo. O direito ao voto, por exemplo, não refletirá a liberdadenecessária para o seu exercício.

3 O DIREITO FUNDAMENTAL À EDUCAÇÃOO direito à educação encontra-se previsto como direito social no art. 6º da

Constituição Federal de 198835. Já nos artigos 205 ao 214 da Magna Carga, olegislador apresentou os contornos constitucionais do direito à educação.

Possui o direito à educação íntima relação com a concretização do princípioda dignidade humana, eleito fundamento do Estado Democrático de Direitobrasileiro36.

A realização da dignidade da pessoa humana exige o asseguramento,jurídico e material, do mínimo existencial a todos os indivíduos. Segundo RicardoLobo Torres, o mínimo existencial é composto por três ordens de direitos: 1) statusnegativus libertatis; 2) status positivus libertatis; e 3) status positivus socialis.

O status negativus libertatis compreende as liberdades públicas. O statuspositivus libertatis engloba a “[...] entrega de prestações de serviço público paraa defesa dos direitos fundamentais, constituindo direito público subjetivo docidadão”37. O status positivus socialis, por seu turno, está afeto “às prestaçõesestatais entregues para a proteção dos direitos econômicos e sociais e para aseguridade social.”38

Nesse contexto, é irrefutável que os direitos sociais, dentre os quais sealinha o direito à educação, apresentam-se como verdadeiros direitos fundamentaisdestinados a assegurar o exercício dos demais direitos e a concretizar o sistema deliberdades, através da “[...] eliminação de privações de liberdade que limitam asescolhas e oportunidades das pessoas de exercer preponderantemente sua condiçãode agente”, gerando a “capacidade”39 necessária para o efetivo exercício dasliberdades públicas.

34 CF/88, art. 1º . A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios edo Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I – a soberania; II –a cidadania; III – a dignidade da pessoa humana; IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V – opluralismo político. Parágrafo único: Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitosou diretamente, nos termos desta Constituição.35 TORRES, Ricardo Lobo. Apud SCAFF, Fernando Facury. Reserva do possível, mínimo existencial e direitoshumanos. Revista de Interesse Público. São Paulo. n. 32. p. 214.36 Id. Ibid. p. 215.37 SEN, Amartha. Apud SCAFF, Fernando Facury. Reserva do possível, mínimo existencial e direitos humanos.Revista de Interesse Público. São Paulo. n. 32. p. 218.38 ALEXY, Robert. Apud SCAFF, Fernando Facury. Reserva do possível, mínimo existencial e direitos humanos.Revista de Interesse Público. São Paulo. n. 32. p. 218.39 SCAFF, Fernando Facury. Reserva do possível, mínimo existencial e direitos humanos. Revista de InteressePúblico. São Paulo. n. 32, p. 219.40 BREGA FILHO, Vladimir. Direitos fundamentais na Constituição de 1988: conteúdo jurídico de expressões.São Paulo; Juarez de Oliveira, 2002, p. 66-67.

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Roberto Alexy40 entende que a liberdade jurídica só encontra sentido naliberdade fática ou real, ou seja, de nada adianta estabelecer um direito se não sãoasseguradas as condições materiais para o seu exercício. Portanto, o verdadeiroEstado Democrático de Direito deve garantir, a todos quantos não as tenham por simesmos, as condições materiais imprescindíveis para a efetivação dos direitosconstitucional e legalmente assegurados, notadamente em países periféricos e demodernidade tardia. Deve propiciar a todos o mínimo existencial. “Sem isso, osdireitos fundamentais serão letra morta, pois se configurarão em liberdades jurídicas,sem possibilidade fática de exercício por grande parte da sociedade.”41

Todavia, não são todos os dispositivos constitucionais que versam sobrea educação que integram o núcleo de fundamentalidade deste direito. VladimirBrega Filho42 afirma que os “[...] os direitos fundamentais seriam os interessesjurídicos previstos na Constituição que o Estado deve respeitar e proporcionar atodas as pessoas. É o mínimo necessário para a existência da vida humana”, incluindoaí os direitos “[...] individuais, políticos, sociais e de solidariedade.”

Neste ponto, Sarlet43 entende que apenas os artigos 205 ao 208 compõema “[...] essência do direito fundamental à educação, compartilhando, portanto, asua fundamentalidade material e formal.”

O direito fundamental à educação deve ser analisado sob seu aspectoformal, ou seja, como direito constitucionalmente garantido e, especialmente, doponto de vista material, caracterizado pela consecução dos seus fins para aconcretização do Estado Democrático de Direito, instituído e constituído pelaConstituição Federal de 1988.

Como já delineado acima, não são todos os dispositivos constitucionaissobre a educação que constituem o núcleo de fundamentalidade deste direito.Somente os artigos 205 à 208 o integram.

O art. 205 estabelece que a educação é direito de todos e dever do Estadoe da família, devendo ser promovida e incentivada com a colaboração da sociedade,proporcionando o “pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercícioda cidadania e sua qualificação para o trabalho.” Trata-se de norma constitucionalde eficácia limitada e, por isso, insuficiente, por si só, para o reconhecimento de umdireito subjetivo44.

Norma constitucional de eficácia limitada é, na tradicional classificaçãoapresentada por José Afonso da Silva45, aquela que “[...] não produz, com a simplesentrada em vigor, todos os seus efeitos essenciais, porque o legislador constituinte,

41 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado,2007, p. 354.42 SARLET, Ingo Wolfgang. op. cit. P. 355.43 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 82-83.44 CF/88, art. 5º.45 ECA, art. 53. A criança e o adolescente têm direito à educação, visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa,preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho, [...].

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por qualquer motivo, não estabeleceu, sobre a matéria, uma normatividade paraisso bastante, deixando essa tarefa ao legislador ordinário ou a outro órgão doEstado.”

Enfatizando o caráter universal do direito à educação, o art. 205 da MagnaCarta o atribui a “todos”, ou seja, homens e mulheres, adultos e crianças, brancose negros, sem qualquer preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade ou qualqueroutra forma de discriminação, posto que todos são iguais perante a lei46.

Entre outras, a lei nº 8.069/1990 (ECA) assegura, em seu art. 5347, o direitoà educação da criança e do adolescente. A lei nº 11.741/2003 (Estatuto do idoso),em seu art. 2048, também o garante ao idoso.

De outro lado, cabe ao Estado e à família, com a colaboração da sociedade,o dever de prestá-lo. A presença da família e da sociedade no pólo passivo dodireito à educação demonstra que a educação não deve ser confundida com a merainstrução técnica, mas que deve também englobar tudo quanto necessário para acompleta formação ética do indivíduo.

Paulo Freire49 entende que

[...] transformar a experiência educativa em puro treinamento técnico éamesquinhar o que há de fundamentalmente humano no exercício educativo:o seu caráter formador. Se se respeita a natureza do ser humano, o ensinodos conteúdos não pode dar-se alheio à formação moral do educado.Educar é substantivamente formar.

O art. 206 elenca os princípios que devem nortear o direito à educação,destacando a igualdade de condições para o acesso – corolário do princípio geralda isonomia50, o pluralismo de idéias e concepções pedagógicas, a coexistência deinstituições públicas e privadas, a gratuidade do ensino público, a valorização dosprofissionais do ensino, a gestão democrática do ensino público e a garantia depadrão de qualidade.

O art. 207 estabelece a autonomia universitária na seara didático-científica,administrativa, financeira e patrimonial.

Por fim, o art. 208 consubstancia as regras para o cumprimento do devereducacional do Estado. Estabelece a gratuidade e obrigatoriedade do ensinofundamental, inclusive para aqueles que não o tiveram na idade apropriada - aosadultos; a progressiva universalização do ensino médio gratuito; o atendimentoespecializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de

46 Estatuto do idoso, art. 20. O idoso têm direito à educação, cultura, esporte, lazer, diversões, espetáculos, produtose serviços que respeitem sua peculiar condição de idade.47 FREIRE, Paulo. Pedagogia da automomia: saberes necessários à prática educativa. 35. ed. São Paulo: Paz eTerra, 2007, p. 33.48 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado,2007, p. 356.49 CF/88, art. 3º.50 CF/88, art. 1º, III.

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ensino; o atendimento em creche e pré-escola para as crianças de zero a seis anos;acesso aos níveis mais elevados do ensino, segundo o mérito de cada um; aobrigatoriedade de oferta de ensino noturno regular; e, a garantia de acesso aoensino fundamental através de programas suplementares de material didático-escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde.

Na legislação infraconstitucional o direito à educação é reiteradamenteinvocado e garantido, pelo menos no plano formal. Dentre outras, cite-se a lei nº8.078/1990 (CDC) que estabelece, em seu art. 6º, II, ser direito do consumidor a“educação e divulgação sobre o consumo adequado dos produtos e serviços,asseguradas a liberdade de escolha e a igualdade nas contratações”; e a lei nº9.503/1997 (CTB) que, em seu art. 74, estatui que “a educação para o trânsito édireito de todos e constitui dever prioritário para os componentes do SistemaNacional de Trânsito” e, em seu art. 76, que a educação para o trânsito deverá serpromovida da pré-escola ao ensino superior, devendo inclusive integrar o currículodas “escolas de formação para o magistério e treinamento de professores emultiplicadores”.

Se, do ponto de vista formal, o direito à educação está amplamenteassegurado pela Constituição e pela legislação ordinária, a questão que se põe é sea mesma situação é verificada no plano material.

Sob o viés material, a Constituição Federal determina, em seu art. 205, quea educação deve garantir o “[...] pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparopara o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.”

Além destes objetivos específicos ditados pelo art. 205 da Lei Maior, aeducação também deve instrumentar a satisfação dos objetivos fundamentais51 daRepública Federativa do Brasil, ou seja, a construção de uma sociedade livre, justae solidária, que garanta o desenvolvimento nacional, erradique a pobreza e amarginalização, reduza as desigualdades sociais e regionais e promova o bem detodos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formasde discriminação.

Ainda no plano constitucional, a educação deve servir à realização dadignidade da pessoa humana52, elemento central, coordenador e integrador detodo o ordenamento jurídico brasileiro. Vladimir Brega Filho53 acentua que o princípioda dignidade humana, eleito fundamento do Estado Democrático de Direitobrasileiro, “[...] deve informar a interpretação de todos os dispositivosconstitucionais.” Vida humana digna é ter o alimento necessário para o seu sustentoe de sua família, é ter liberdade, vestuário, moradia, segurança, saúde, educação,trabalho etc. É ver os seus direitos respeitados, é participar da riqueza nacional, é

51 BREGA FILHO, Vladimir. Direitos fundamentais na Constituição de 1988: conteúdo jurídico de expressões.São Paulo; Juarez de Oliveira, 2002, p. 66-67.52 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística: banco de dados. Disponível em:< www.ibge.gov.br.> Acesso em:18 Out.07.53 TAKAHASHI, Fábio. SP tem somente 2 ‘escolas top’ no Enem. Folha de São Paulo, São Paulo, p. C4, 8 defevereiro de 2007.

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a inserção do indivíduo na sociedade. É ter possibilidade real de escolher.A lei nº 9.394/1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação

nacional, preconiza, em seu art. 2º, que a educação tem por finalidade o plenodesenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e suaqualificação para o trabalho. Especificamente no art. 27, I, determina que, no currículoda educação básica, haja difusão de valores fundamentais aos direitos e deveresdos cidadãos.

Verifica-se que a educação, no Estado Democrático de Direito, devepropiciar dignidade humana e cidadania plena, estando a serviço da realização doindivíduo.

O homem só é verdadeiramente livre se for capaz de conhecer e conceberprojeto próprio. De nada adianta a liberdade jurídica se não há liberdade material.

As polêmicas discussões acerca da reserva do possível, que inegavelmenteconstitui importante tema, deixam à margem a relevante problemática da qualidadedo ensino e sua capacidade de nivelar as oportunidades e de transformar a realidade.

Tome-se como exemplo o programa de progressão continuada, que instituiua aprovação automática no ensino fundamental e que é difundido com efusividadepelo Governo, notadamente por ter reduzido de 43,9%, em 1996, para 25,7%, em2006, a defasagem na correlação idade/série54. Não há questionamentos acerca donível de aprendizagem e compreensão crítica do discente, fator que efetivamenterepresenta o caráter transformador da educação.

Enquanto isto, os dados do Enem 2007 revelam que dentre as 50 melhoresescolas de ensino médio do Brasil apenas sete são da rede pública e, ainda assim,são escolas técnicas e que exigem “vestibulinho” para ingresso.55

Ainda na seara dos gastos públicos com educação, é de se ressaltar queos valores despendidos com aquisições de computadores para as escolas da redepública não tem produzido os efeitos esperados em razão da não capacitação dosdocentes para o trabalho pedagógico com o equipamento. Camila Antunes56, emcomentário de pesquisa que analisou as notas dos estudantes nas três últimasedições do Saeb, prova aplicada pelo Ministério da Educação e Cultura para aferira qualidade do ensino básico, acentua que “[...] os estudantes que usam ocomputador na escolas estão seis meses atrasados nas matérias em relação aosque não têm acesso ao equipamento”. A resposta para esta questão talvez estejanas palavras de uma jovem estudante de 11 anos: “Vou poder brincar no site daBarbie e jogar games na escola.”

De outro lado, os dados do censo 2002/2003 do Instituto Brasileiro deGeografia e Estatística57 revelam que aqueles que têm 11 ou mais anos de estudosapresentam renda mensal média 500% maior do que aqueles que possuem apenas

54 ANTUNES, Camila. Desconectados. Sem supervisão, computadores nas escolhas brasileiras mais distraem doque ensinam. Veja. São Paulo. n. 2020. p. 102.55 Disponível em: ‹http://www.ibge.gov.br›. Acesso em: 11 Out. 2007.56 Disponível em: ‹http://www.mj.gov.br/depen›. Acesso em: 11. Out. 2007.57 FREIRE, Paulo. Pedagogia da automonia: saberes necessários à prática educativa. 35. ed. São Paulo: Paz eTerra, 2007, p. 76.

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1 ano de estudo.Enquanto isto, dados do Departamento Penitenciário Nacional58 revelam

que 69,27% dos condenados inclusos no Sistema Penitenciário possuem no máximoo ensino fundamental incompleto e que os detentores de diploma de curso superiorrepresentam apenas 0,44% do total.

Verifica-se assim que, como já acentuado por T.A. Marshall, o direito àeducação é pressuposto para a realização dos demais direitos fundamentais.

O futuro não é determinado. Não se pode aceitar, como quer a ideologia daclasse dominante, que as condições de miserabilidade em que vivem milhares debrasileiros e brasileiras são inexoráveis. O amanhã é uma possibilidade e não umarealidade59. E esta possibilidade pode ser diferente, pode ser melhor através daeducação.

Paulo Freire60 acentua que a

[...] educação é uma forma de intervenção no mundo. Intervenção quealém do conhecimento dos conteúdos bem ou mal ensinados e/ouapreendidos implica tanto o esforço de reprodução da ideologia dominantequanto o seu desmascaramento. Dialética e contraditória, não poderia sera educação só uma ou só a outra dessas coisas. Nem apenas reprodutoranem apenas desmascaradora da ideologia dominante.

A educação não pode ser uma “[...] prática imobilizadora e ocultadora deverdades”61, deve ser crítica e propiciar o conhecer integral. Não pode apenasformar mão-de-obra qualificada para o atendimento das necessidades das grandesempresas do capitalismo neoglobalizado, mas formar trabalhadores conscientes daimportância do seu labor para a concretização da dignidade humana, a sua e a dooutro. A educação não deve ser instrumento de diferenciação, mas de aproximaçãoe de respeito às diferenças. Enfim, a educação apresenta-se um dos mais eficazesmeios de realização da dignidade humana e da cidadania plena.

CONSIDERAÇÕES FINAISComo visto, o direito fundamental social à educação constitui pré-requisito

para a concretização dos demais direitos fundamentais, posto que sem ela tornam-se vazios de conteúdo.

No plano formal, o direito à educação encontra cediça previsãoconstitucional e infraconstitucional. Apesar de importantes, discussões acerca dafundamentalidade do direito à educação já parecem superadas. Como acentuaNorberto Bobbio, está chegada a hora de cessar as discussões acerca das gerações

58 FREIRE, Paulo. Pedagogia da automonia: saberes necessários à prática educativa. 35. ed. São Paulo: Paz eTerra, 2007, p. 98.59 id. ibid. p. 99.

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de direitos e de iniciar as suas concretizações.Nesse sentido, no plano material a educação ainda está longe de produzir

os seus fins constitucionais, quais sejam o de realizar o pleno desenvolvimento dapessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho,propiciando a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, que garanta odesenvolvimento nacional, erradique a pobreza e a marginalização, reduza asdesigualdades sociais e regionais e promova o bem de todos, sem preconceitos deorigem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Enfim, arealização da dignidade humana e da cidadania plena.

É chegada a hora de todos os cidadãos brasileiros exigirem dosgovernantes não só a universalização da prestação educacional, mas especialmenteque esta efetivamente se revista da qualidade necessária para a produção dos seusefeitos transformadores e concretizadores do Estado Democrático de Direito.

O mero cumprimento dos percentuais constitucionais a serem despendidosna educação, sem que haja efetiva aferição da qualidade do ensinado e doapreendido, pode encobrir ardilosa e velada estratégia de dominação. E a educaçãonão deve servir de instrumento para a perpetuação da ideologia da classe dominante,não deve estar a serviço da política de mercado, mas sim ter na realização dadignidade humana o seu escopo.

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O TRATAMENTO CONSTITUCIONAL DASQUESTÕES INDÍGENAS E O DIREITO DE

PROPRIEDADE: ASPECTOS CRÍTICOS

Márcia Cristina Altvater VILAS BOAS·

Cláudia Maria Felix De Vico ARANTES··

SUMÁRIO: I. Tratamento conferido aos índios no início de nossa organizaçãopolítica. II. Evolução dos direitos indígenas nas Constituições. III. Constituição de1988 – Breves Comentários ao art. 231. IV. Direito de propriedade diante da proteçãoassegurada aos índios na Constituição Federal. V. Conclusão; Bibliografia

RESUMO: O presente trabalho tem por objeto fazer uma análise da evolução dosdireitos dos índios e o tratamento constitucional dado ao longo de nossaorganização política e, em contrapartida, uma análise desses direitos em face dodireito de propriedade adquirido antes da Constituição de 1988. Isto porque asConstituições anteriores reservaram apenas um artigo, no sentido de garantir aossilvícolas a posse por eles habitada. Já a Constituição de 1988 consagrou umcapítulo inteiro aos índios, ampliando em muito os seus direitos e gerando comisso, repercussões e discussões intermináveis no meio jurídico, afetando, por certooutros interesses jurídicos também tutelados pelo Estado.

ABSTRACT: This paper aims at analyzing the development of indigenous rightsand constitutional treatment given throughout our organization and policy,however, an analysis of those rights in the face of property acquired before the1988 Constitution. This is because the previous constitutions reserved only onearticle, to ensure the forestry possession they inhabited. Already the 1988Constitution devoted an entire chapter to the Indians, extending far their rightsand creating with it, effects and endless discussions on the legal, affecting, bysome other legal interests also protected by the state.

PALAVRAS-CHAVE: questão indígena; direito de propriedade; direitoconstitucional.

KEY-WORDS: indigenous question; right to property; constitutional law.* Advogada. Graduada em Direito pela Faculdade Estadual de Direito do Norte Pioneiro. Advocacia Especializadaem Direito Agrário.** Especialista em Direito Processual Civil, possui graduação em Direito pela Universidade Estadual do Paraná- Faculdade de Direito de Jacarezinho (UENP - FUNDINOPI -1996) - . Atualmente é Diretora Jurídico-Institucionalda Faculdade do Norte Pioneiro, Conselheira - Ordem dos Advogados do Brasil/PR - Subseção de Santo Antônioda Platina-PR, Advogada da Faculdade do Norte Pioneiro e Coordenadora do Curso de Direito da Faculdade doNorte Pioneiro. Artigo submetido em 11/09/2008. Artigo aprovado em 12/12/2008.

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I - TRATAMENTO CONFERIDO AOS ÍNDIOS NO INÍCIO DE NOSSAORGANIZAÇÃO POLÍTICA:

Do que se tem notícia, o direito dos índios aos territórios que ocupavamfoi reconhecido no Alvará Régio de 1° de abril de 1680, confirmado por uma Lei de6 de Junho de 1775, a qual previa: “observância do Breve de Benedicto XIV, de 20de Dezembro de 1741, assim como várias leis do Reino, sobre a liberdade daspessoas e bens e comércio dos índios do Pará e Maranhão.” 1

É de se observar, no entanto, que este dispositivo não teve nenhumaeficácia no sentido prático; porém, mesmo assim, é considerado como o ponto departida para o direito indígena brasileiro, ainda que tivesse validade apenas para osíndios do Pará e Maranhão.

Mais tarde, através de Alvará Régio, de 1755, a regra anteriormente editadase aplicaria a todo território brasileiro.

Com a chegada da Família Real portuguesa ao Brasil em 1808, D. João VI,tornou referido Alvará em letra morta e instituiu o princípio da “guerra justa”, peloqual se poderia escravizar os índios em conflito com os colonos.

Também deve ser anotado que a legislação indigenista do século XIX,sobretudo até 1845, era flutuante.

O Decreto n° 426, de 24.07.1845 (conhecido como Regulamento dasMissões) regulamentou as missões de catequese e civilização dos índios e, assim,procurou-se estabelecer as diretrizes sérias, mais administrativas do que políticas,para o governo dos índios aldeados. Por ele, prolongava-se o sistema de aldeamentose explicitamente o entende como uma transição para a assimilação completa dosíndios.2 A partir daí fixou-se a dicotomia: índios colonizados e hordas selvagens,terminologia esta que apareceria explícita na Lei de Terras, n° 601, de 18/09/1850 eno seu respectivo regulamento, Decreto n° 1318, de 30/01/1854. O índio colonizadoseria o índio aldeado, já atingido pela catequese e próximo dos civilizados, enquantoas hordas selvagens seriam os índios ainda arredios à catequese e à civilização,que viviam nômades, errantes a vagar pelo território nacional, para os quais deveriamser constituídas reservas a partir de terras devolutas.

Portanto, essa era toda a legislação relativa aos índios no Império: oRegulamento das Missões (Decreto nº. 426), a Lei de Terras, nº. 601, e o decreto quea regulamentava, o Decreto nº. 1318.1 - PAULA, José Maria de, “Terras dos Índios” (Boletim n° 1, Ministério da Agricultura, Serviço de Proteção aosÍndios, l944), p. 69 e 70.2 - CUNHA, Manuela Carneiro da (org). “Legislação Indigenista no Século XIX: Uma Compilação” (1808-1889),São Paulo: Ed. USP, p. 9 a 11.

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II – EVOLUÇÃO DOS DIREITOS INDÍGENAS NAS CONSTITUIÇÕES.A Constituição brasileira de 1824, simplesmente omitiu qualquer norma

com respeito aos índios.

A primeira Constituição republicana, de 24/02/1891 também ignorou o índio,não lhe reconhecendo qualquer direito. Em seu art. 64, consta apenas a previsão depassar a posse e domínio das terras devolutas provenientes do Império, aosrespectivos Estados Federados. Vejamos:

Art. 64 Pertencem aos Estados as minas e terras devolutas situadas nosseus respectivos territórios, cabendo à União somente a porção deterritório que for indispensável para a defesa das fronteiras, fortificações,construções militares e estradas, de ferro federais.Parágrafo único. Os parques nacionais, que não forem necessários paraserviço da União, passarão ao domínio dos Estados, em cujo territórioestiverem situados.

As normas que havia até então, eram aquelas que constavam na “Lei deTerras” e no seu Regulamento (Decreto nº 1.318, de 30.01.1854, arts. 72 a 75).

A Constituição Federal de 1934 não chegou a trazer alteração substancial,conforme se vê:

Art. 20 São do domínio da União:I - os bens que a esta pertencem, nos termos das leis atualmente em vigor;II - os lagos e quaisquer correntes em terrenos do seu domínio, ou quebanhem mais de um Estado, sirvam de limites com outros países ou seestendam a território estrangeiro;III - as ilhas fluviais e lacustres nas zonas fronteiriças.

Art. 21 São do domínio dos Estados:I - os bens da propriedade destes pela legislação atualmente em vigor,com as restrições do artigo antecedente;II - as margens dos rios e lagos navegáveis destinados ao uso público, sepor algum título não forem do domínio federal, municipal ou particular.

Relativamente às terras ocupadas pelos indígenas, em seu art. 129, limitou-se a garantir aos silvícolas a posse das terras por eles ocupadas:

Art. 129 Será respeitada a posse de terra de silvícolas que nela se achempermanentemente localizados, sendo-lhes, no entanto, vedado aliená-las.

Vale observar, neste passo, o fato de os silvícolas, já naquela época, terem

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a posse das terras que nelas estavam permanentemente localizados;

A Constituição de 1937 apenas fez transcrever no art. 154 o mesmo teorcontido no art. 129 da Carta de 1934, anteriormente transcrito, dispondo que:

Art. 36 São do domínio federal:a - os bens que pertencerem à União, nos termos das leis atualmente emvigor;b - os lagos e quaisquer correntes em terrenos do seu domínio ou quebanhem mais de um Estado, sirvam de limites com outros países ou seestendam a territórios estrangeiros;c - as ilhas fluviais e lacustres nas zonas fronteiriças.

Art. 37 São do domínio dos Estados:a - os bens de propriedade destes, nos termos da legislação em vigor,com as restrições do artigo antecedente;b - as margens dos rios e lagos navegáveis, destinadas ao uso público, sepor algum título não forem do domínio federal, municipal ou particular.

Pouco antes da entrada em vigor da Carta de 1946, foi editado o Decreto-Lei nº 9.760/46. Então, por força de emenda constitucional, em face do regime deexceção vivido, acabou sendo alijado do cenário político pela Carta de 1946, issono que veio a emprestar novo tratamento aos bens públicos de domínio da União.

Sob a vigência da Constituição Federal de 1946, dispôs-se:

Art. 34 Incluem-se entre os bens da União:I - os lagos e quaisquer correntes de água em terrenos do seu domínio ouque banhem mais de um Estado, sirvam de limite com outros países ou seestendam a território estrangeiro, e bem assim as ilhas fluviais e lacustresnas zonas limítrofes com outros países;II - a porção de terras devolutas indispensável à defesa das fronteiras, àsfortificações, construções militares e estradas de ferro.

Art. 35 Incluem-se entre os bens do Estado os lagos e rios em terrenos doseu domínio e os que têm nascente e foz no território estadual.

Ainda, no art. 216, reproduziu-se o texto da Carta de 1934, apenassubstituindo a expressão “vedado aliená-las “ por “com a condição de não atransferirem”.

Nota-se que, até aqui, nada se dispôs, expressamente, sobre as terrasocupadas pelos indígenas.

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A Constituição Federal de 1967 mostrou-se mais explícita, relativamenteaos bens da União e, então, foi incluído preceito quanto às terras ocupadas pelossilvícolas. De qualquer forma, mais uma vez considerou-se a ocupação, em si:

Art. 4º Incluem-se entre os bens da União:I - a porção de terras devolutas indispensável à segurança e aodesenvolvimento nacionais;II - os lagos e quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio,ou que banhem mais de um Estado, constituem limite com outros paísesou se estendam a território estrangeiro; as ilhas oceânicas, assim comoas ilhas fluviais e lacustres nas zonas limítrofes com outros países;III - a plataforma continental;IV - as terras ocupadas pelos silvícolas;V - os que atualmente lhe pertencem; eVI - o mar territorial.

Através do contido no art. 186, restou garantida a posse permanente dasterras em que habitavam os silvícolas, reconhecendo-lhes o direito ao usufrutoexclusivo dos recursos naturais.

Já o preceito contido n artigo 5°, revelou incluirem-se entre os bens dosEstados e Territórios “os lagos em terrenos de seu domínio, bem como os rios queneles têm nascente e foz, as ilhas fluviais e lacustres e as terras devolutas nãocompreendidas no artigo anterior”.

A Emenda Constitucional n° l, de 1969, não introduziu modificação naregência da matéria, contemplando, tal como a Carta anterior, as terras ocupadaspelos silvícolas como sendo da União - artigos 4° e 5º.

Temos, então, a Constituição promulgada em 05.10.88, a qual, em contrastecom as Cartas anteriores que reservaram apenas um artigo para tratar dos direitosdos índios, consagrou-lhes capítulo todo, o Capítulo VIII, com os arts. 231 e 232.

Vale anotar, também, que entre a Constituição de 1969 e de 1988, foisancionado em dezembro de 1973, a Lei n. 6.001, o Estatuto do Índio.

III - CONSTITUIÇÃO DE 1988 – BREVES COMENTÁRIOS AO ART. 231.Antes de analisarmos os dispositivos inseridos no Capítulo VIII da CF/88,

vale a pena transcrever os comentários do jurista Ives Gandra Martins, ao discorrersobre o art. 231, na obra Comentários à Constituição do Brasil:

O Capítulo VIII do Título VIII oferta dez por cento do território nacional,

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aproximadamente, a duzentos e cinqüenta mil brasileiros, deixando osoutros noventa por cento para os demais cento e sessenta e cinco milhõesde cidadãos e residentes no País.O art. 231 reconhece aos índios o direito de manter suas organizaçõessociais, costumes, línguas, crenças e tradições, além dos direitos origináriossobre as terras que tradicionalmente ocupam.Os indianistas lutam para que os índios continuem sendo primitivos, peçasde museu, devendo ser preservados em seu atraso civilizacional, paragáudio dos povos civilizados, que poderão dizer que no passado pré-histórico os homens viviam como índios brasileiros.Por outro lado, as organizações internacionais – e a matéria já tem sidodenunciada – procuram tratar o território como indígena, mais do quebrasileiro, razão pela qual, em eventual internacionalização da Amazôniapara imposição da política externa, os verdadeiros titulares da terra seriamos indígenas e não os brasileiros.Dissociando os índios do povo brasileiro e suas terras do Estado brasileiro,tais organizações pretendem tomar o problema indígena do Brasil umproblema de preservação dos costumes primitivos, que é dever dahumanidade, tornando mais fácil, à evidência, a exploração de dez porcento do território nacional, reservando aos duzentos e cinqüenta milremanescentes da população indígena – propugnando por acordosconvenientes a tais grupos mais do que interesses do País.É impressionante o loby que os indianistas brasileiros – e principalmenteos estrangeiros – fizeram para que o Capítulo VIII do Título VIII fosseplasmado na Constituição, não havendo nada de semelhante feito a favordos negros ou mestiços, que constituem quase metade da populaçãobrasileira e que têm tratamento de fato e em nível constitucional de muitomenor consideração do que duzentos e cinqüenta mil índios brasileiros,detentores de dez por cento do território nacional.O dispositivo ainda faz menção a que caberá à União demarcar as terrasindígenas (10% do território nacional) e nela preservá-los, protegendo efazendo respeitar seus costumes primitivos, de preferência desestimulando-os de se civilizarem, como as outras raças que compõem o perfil éticobrasileiro, como é o caso da raça negra 3

De fato, é impressionante a amplitude das garantias conferidas aos índiosna CF/88.

Dispõe o art. 231, que:

3 BASTOS, Celso Ribeiro – MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil, 8 vol., EditoraSaraiva, 1998, p. 1045/1047

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Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes,línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras quetradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger efazer respeitar todos os seus bens.§ 1º. São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eleshabitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividadesprodutivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientaisnecessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física ecultural, segundo seus usos, costumes e tradições.§ 2º. As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se asua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezasdo solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.§ 3º. O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciaisenergéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terrasindígenas só podem ser efetivados com autorização do CongressoNacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes asseguradaparticipação nos resultados da lavra, na forma da lei.§ 4º. As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis,e os direitos sobre elas, imprescritíveis.§ 5º. É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, adreferendum do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemiaque ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania doPaís, após deliberação do Congresso Nacional, garantindo, em qualquerhipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco.§ 6º. São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos quetenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que serefere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dosrios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse públicoda União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando anulidade e a extinção direito à indenização ou a ações contra a União,salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação deboa fé.

A finalidade do dispositivo em foco é disciplinar a proteção das terrasindígenas. Então, ao que se vê, o legislador constituinte reconhece, num primeiroplano, os direitos originários dos índios sobre as terras por eles ocupadastradicionalmente e, num segundo momento, passa a definir o conceito de terrastradicionalmente ocupadas pelos índios.

E é exatamente este o ponto principal do presente estudo, ou seja, OSPRESSUPOSTOS PARA RECONHECIMENTO DAS TERRAS INDÍGENAS.

Ora, ainda que reste evidente a ampliação dos direitos indígenas na

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Constituição em vigor, é de suma importância ressaltar que à vista do contido noreferido dispositivo legal, é pressuposto para o reconhecimento da posse aosíndios, a permanência na área, tradicionalmente.

Como bem assevera Ives Gandra Martins:

Todas as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios lhes pertenceme a mais ninguém, desde que os índios lá estejam em caráter permanente.À evidência, como os índios primitivos não saíram de seus lugares denascimento, por não terem descoberto nenhum dos meios de transporte,e ainda vivem – é desses índios que o constituinte fala – no seu estadoprimitivo, todas as terras por eles habitadas hoje lhes servem de habitaçãopermanente. 4

O que restou assegurado, portanto, foi a permanência dos índios nasterras já ocupadas por eles, não podendo ser admitidas hipóteses de devolução deterras que já há tempos foram supostamente retiradas dos indígenas e que hoje seencontram na titularidade de particulares.

A propósito, o TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL da 3ª Região, já decidiuque não se pode confundir “extintos aldeamentos indígenas” com “terrastradicionalmente ocupadas por índios” 5:

O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, no Mandado de Segurança nº 21.575/MS, cujo relator foi o Ministro Marco Aurélio de Mello, entendeu que:

A atual Carta não assegura aos indígenas o retorno às terras que outroraocuparam, seja qual for a situação jurídica atual e o tempo transcorrido

4 BASTOS, Celso Ribeiro – MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil, 8 vol., EditoraSaraiva, 1998, p. 1048/10495 RT 175/151 -Terras tradicionalmente ocupadas pelos índios e patrimônio da União: TRF – Usucapião. Antigoaldeamento de índios. CF/88. À luz da vigente CF, só integram o patrimônio da União as terras tradicionalmenteocupadas pelos índios ou que, para eles, estejam demarcadas (CF, art. 20, XV; art. 231, § 1º e § 4º, e art. 67 do ADCT).Os extintos aldeamentos indígenas, nos quais estão implantados bairros e até cidades, pelos que na posse dosparticulares, já não podem ser considerados bens dominiais da União. Nesses casos, eventual ação da União serianão só paradoxal, como ocasionaria verdadeira convulsão social, em desrespeito aos princípios constitucionaisque buscam a proteção do indivíduo ou àqueles que norteiam a atuação do poder Público Federal (CF, arts. 193 ess., 21, XX; e 23, IX). Anteriormente ao CC, os bens patrimoniais da União, dos Estados e dos Municípios eramdeclarados alienáveis e, no tocante ao usucapião, equiparados aos particulares. No tocante aos extintos aldeamentos,o Estado não mais poderá demarcar essas terras, vez que só demarcará as terras tradicionalmente ocupadas pelosíndios (art. 67 do ADCT). Milita a favor do particular a presunção de que está na posse da terra, por si ou seusantecessores, desde data anterior à edição do CC., quando, neste século, historicamente, não houve relato dapresença de índios no local.257 RT 609/211: “Sucedem-se as demandas e inumeráveis vezes áreas tidas como livres,que não se constituíram em território indígena e, assim, cedidas, regular e juridicamente, à propriedade de particular,ex abrupto aparecem, em relatórios, documentos, perícias, como ‘habitat’ imemorial dos índios, como se nissopudessem transformar-se da noite para o dia” (Acórdão do Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal, nojulgamento do Mandado de Segurança no 20.548-2-DF).

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desde que as deixaram. O reconhecimento de direitos contido no art.231 está ligado, no particular, às “terras que tradicionalmente ocupam”(presente), sendo que houve nítida preocupação em definir o sentido daexpressão (...). Constata-se que toda a definição parte do pressupostode as terras virem sendo habitadas pelos silvícolas, valendo notar que,coerentemente, o parágrafo 5º do citado artigo veda a remoção dosgrupos indígenas de suas terras.

Constata-se, pois, que v. Aresto definiu a questão quando se manifestouno sentido de que o reconhecimento de direitos previstos no texto constitucional(art. 231) só alcança as terras que índios ocupam ou que por eles são habitadaspresentemente. 6

No julgamento do Recurso Extraordinário nº 219.983-3, o Ministro NelsonJobim, manifestou seu entendimento da seguinte forma: “Há um dado fáticonecessário: estarem os índios na posse da área”.

O ministro Carlos Velloso, por sua vez, na mesma oportunidade e ao proferirseu voto, trouxe as seguintes ponderações:

A disposição inscrita no inciso XI, do artigo 20, da Constituição Federal– terras tradicionalmente ocupadas pelos índios – requer ocupaçãoatual (...)”. A interpretação sumulada pelo Supremo Tribunal Federal, portanto,solucionou definitivamente o problema: terras tradicionalmenteocupadas pelos índios requer ocupação atual.O voto do ministro Nelson Jobim, que serviu, em grande parte, paraformular a Súmula 650, deita luzes aclaradoras sobre a matéria. Por

6 “Na linha de conservação de um ‘Museu Primitivo e Vivo do Índio’ com dez por cento do território nacional,continua o constituinte a entender que as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se à sua possepermanente, cabendo-lhe o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes. Nãocuida do subsolo, pois este é de exploração da União quanto a seus recursos minerais, e sua exploração só pode serautorizada ou concedida.O discurso, embora tautológico, cria indubitável privilégio em relação a todos os demaiscento e sessenta e poucos milhões de brasileiros.O próprio argumento de que a terra lhes pertencia antes da descobertae de que garantir-lhes agora a posse em torno de dez por cento do que tinham no passado não é senão reconhecerque foram expropriados em noventa por cento é pouco convincente.A população, hoje, é residual. Os índioscivilizados agem nas suas próprias atividades, quase sempre longe das terras de seus antepassados. Aqueles índiosque permanecem nas terras, principalmente na Floresta Amazônica, são os índios da civilização pré-histórica,proibidos de evoluir para se tornarem peças vivas de um mundo selvagem, para gáudio ecologistas e antropólogos.Oconstituinte faz menção à posse permanente, não podendo ter a propriedade atingida aqueles proprietários dessasterras antes da Constituição de 88. Por outro lado, o usufruto de todas as riquezas do solo é exclusivamente daspopulações de índios primitivos, devendo-se entender que as propriedades antes exploradas por brasileiros nãopré-históricos, com títulos de propriedade ou posse, estão preservadas.” (Comentários à Constituição Brasileira,8º vol. Ed. Saraiva, 1998, p. 1051/1053) Por garantia de defesa deve-se entender não só a observância do ritoadequado, como a cientificação do processo ao interessado, a oportunidade para contestar a acusação, produzirprova de seu direito, acompanhar os atos da instrução e utilizar-se dos recursos cabíveis.”

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isso, merece paciente e reflexiva transcrição:“Sr.Presidente, gostaria de fazer uma observação em relação ao voto doeminente Relator, lembrando que tive oportunidade de me envolverenormemente nessa controvérsia sobre terra indígena quando Ministroda Justiça, e essa tese da propriedade indígena, das terras imemoriais,começa numa conferência de João Mendes de Almeida sobre oindigenato. Ele cria, então, a figura do indigenato baseado no AlvaráRégio de 1680, que se referia aos ocupantes primários e originários dasterras. O problema é que as terras só passaram a ser de propriedade daUnião com a Constituição de 67. Antes, a Constituição de 34, que foi aprimeira a constitucionalizar a questão indígena, meramente mandourespeitar a posse das áreas ocupadas pelos indígenas, mas não definiu apropriedade. Tanto isso é verdade que todas as legislações posteriores a34, até mesmo legislações posteriores a 1891, a um decreto do PresidenteWashington Luís, estabelecem a necessidade do Serviço de Proteção aosÍndios, que veio a ser substituído depois pela FUNAI, de negociar comos Estados.Há até um extraordinário parecer do Professor Néri da Silveira, quandoConsultor Jurídico do Estado do Rio Grande do Sul, sobre uma questãoque surgiu naquele Estado envolvendo o Governador Walter Jobim, em1946, sobre o Toldo Nonoai, em que S. Exa examina longamente oproblema. Somente em 1967, o regime militar estabeleceu que as terras ocupadaspelos índios eram de propriedade da União. Até então, a regulamentaçãodas terras ocupadas pelos índios era obra dos Estados, e isso eraatribuição do Ministério da Agricultura, que negociava com os Estadosa forma de legitimar a posse. Em 1988, começou a aparecer esta expressão, rejeitada amplamente naAssembleia Constituinte e repetida pelo ministro Moreira Alves, achamada “posse imemorial”. Esse conceito nada tinha a ver com ojurídico, mas com o antropológico, e os grupos indigenistas pretendiamcom isso retomar o conceito de posse imemorial para recuperar oindigenato de João Mendes, na famosa Conferência de 1912. Por isso,quando se definiu as terras indígenas, no texto do artigo 231 daConstituição Federal, houve uma longa discussão - e aqui quero contarcom a memória do eminente ministro Maurício Corrêa -, num trabalhoimenso do senador Severo Gomes, que esclarece perfeitamente a questãoda definição das terras indígenas.A terra indígena no Brasil, por força da definição do parágrafo 1º doartigo 231, se compõe de quatro elementos distintos. O primeiro deles:‘Art. 231 ......................................................................

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§ 1o - São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eleshabitadas em caráter permanente, ...”Há um dado fático necessário: estarem os índios na posse da área. É umdado efetivo em que se leva em conta o conceito objetivo de haver aposse. É preciso deixar claro, também, que a palavra ‘tradicionalmente’não é a posse imemorial, é a forma de possuir; não é a posse no sentidoda comunidade branca, mas, sim, da comunidade indígena. Quer dizer, oconceito de posse é o conceito tradicional indígena, mas há um requisitofático e histórico da atualidade dessa posse, possuída de formatradicional. Agora, a terra indígena não é só a área possuída de formatradicional pelos índios. Há um segundo elemento relevante:‘... as utilizadas para suas atividades produtivas, ...’Aqui, além do elemento objetivo de estar a aldeia localizada emdeterminado ponto, há necessidade de verificar-se a forma pela qualessa comunidade indígena sobrevive. O terceiro elemento que compõe esse conceito de terra indígena:‘... as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessáriosa seu bem-estar ...’ E, por último:‘... e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seususos, costumes e tradições.’ A partir da composição desses quatro elementos surgem, então, os dadosobjetivos e históricos para a demarcação da terra indígena. Historicamente, no início do descobrimento - é evidente que todo oterritório nacional estava sob a posse indígena -, por força do direito deconquista, esse patrimônio todo passou às mãos da Coroa Portuguesa edepois evoluiu,chegando-se ao ponto, até mesmo, na Lei de Terras de1850, Lei 610 - que V. Exa. conhece -, de estabelecer como terrasdevolutas, que pertenciam à Coroa. Com a Constituição de 1891, asterras devolutas todas passaram para os Estados, e as terras ocupadaspelos índios eram tratadas como tal. Depois foram desocupadas, algumasforam usucapidas, enfim, no processo de ocupação do território nacional,que foi mais agravado na década de 40, pela política estabelecida peloPresidente Getúlio Vargas da ocupação do oeste brasileiro. Então, Sr. Presidente, creio importantes os fundamentos do voto doministro Marco Aurélio para repor, no seu devido lugar, a questão dessas

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terras indígenas e acabar com essa pretensão.

Destarte, a definição dos direitos assegurados aos índios pelo contido noart. 231 da CF, ganha força quando encontramos a determinação de ser vedado queeles sejam removidos das terras que ocupam.

Aliás, os pressupostos “habitam” e “ocupam” trazidos na Lei nº 5.371/67e no Decreto nº 4.545/2003 não só caracterizam a “posse atual”, como corroboramcom a definição de terra indígena trazida no art. 231 da CF e pelo SUPREMOTRIBUNAL FEDERAL, como vimos anteriormente.

Concluindo este raciocínio, temos uma situação incontroversa, ou seja: asterras indígenas, consideradas bens da União, são públicas e devem estar sendoocupadas e habitadas por índios ao longo do tempo e até o presente, restando, emalguns casos, serem demarcadas.

O que tem ocorrido é que as interpretações, muitas vezes equivocadas, emtorno do art. 231 do CF, têm gerado enormes conflitos acerca de áreas que já não seencontram na posse dos índios.

O bom senso, como sempre, deverá prevalecer, na aplicação do citadodispositivo legal, valendo mais uma vez, as lições do renomado IVES GANDRAMARTINS. 7

Vale aqui anotar, por ser de muita propriedade, o voto lançado pelo entãoMinistro Cordeiro Guerra, nos autos do Mandado de Segurança n.º 20.235, de 04de junho de 1980, embora sob a vigência da Constituição anterior, já que o art. 198daquela Carta já gerava polêmicas:

O SR. MINISTRO CORDEIRO GUERRA: - Srs., Presidente, estou de acordocom o eminente Relator, mas desejo explicitar a minha apreensão, emface do art. 198, §§ 1.º e 2.º, da Constituição Federal. Creio que essesartigos ainda nos darão muito trabalho, porque, a serem interpretadosna sua literalidade, teriam estabelecido o confisco da propriedadeprivada neste País, nas zonas rurais, bastando que a autoridadeadministrativa dissesse que as terras foram, algum dia, ocupadas porsilvícolas.

Ora, nós somos um país de imigração, um país continental, em que ohomem civilizado abre caminho para a criação do seu império. Isto sefez sempre, através da História, à custa do aborígene, não só no Brasil,

7 In Comentários à Constituição do Brasil, 8º vol. Saraiva, 1998, p. 1063/1064

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como na América do Norte, na Austrália, na África, na Sibéria, emqualquer parte do mundo. O que está dito no artigo 198, é mais ou menos o que está dito no artigo1º do primeiro decreto bolchevique: ‘fica abolida a propriedade privada.Revogam-se as disposições em contrário’.Isto entra em choque, evidentemente, com o artigo 153, parágrafo 22, daConstituição Federal, que assegura a propriedade privada. O CódigoCivil assegura a posse. De modo que toda essa legislação terá de serinterpretada com muito cuidado. Diz-se no parágrafo 1º do artigo 198: ‘Ficam declaradas a nulidade e a extinção dos efeitos jurídicos dequalquer natureza que tenham por objeto o domínio, a posse ou aocupação de terras habitadas pelos silvícolas.’ No meu entender, isso só pode se aplicado nos casos em que as terrassejam efetivamente habitadas pelos silvícolas, pois, de outro modo, nóspoderíamos até confiscar todas as terras de Copacabana, ouJacarepaguá, porque foram ocupadas pelos tamoios. Diz ainda o caputdo artigo 198: ‘As terras habitadas pelos silvícolas são inalienáveis nos termos que alei federal determinar, a eles cabendo a posse permanente e ficandoreconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo das riquezas naturais ede todas as utilidades nelas existentes.’ Pressupõe efetivamente a ocupação das terras pelos silvícolas. De modoque, na espécie – há evidentemente, vários problemas bem ressaltadospelo eminente relator – entendo que o possuidor legitimado por títulosrecebidos do Estado, em priscas eras, não pode ser espoliado do fruto deseu trabalho sem indenização. Quando a civilização invade o território indígena e se estabelece pelaforma, nesses casos, se há de aplicar os parágrafos 1º e 2º do artigo 198,mas não no caso do colonizador, de desbravador do país. Deixo, assim,isto bem claro, como avant premiére do meu pensamento, porque não medeixo levar por um sentimentalismo mal orientado, que pode conduzir aatrofia do País ou à inquietação rural, com resultados imprevisíveis.

Ainda, à luz da vigente Carta Magna, só integram o patrimônio da Uniãoas terras tradicionalmente ocupadas pelos índios ou que, para eles, estejamdemarcadas (CF, art. 20, XI; artigo 231, parágrafos 1º e 4º). Neste passo, tambémdeve ser considerado, por oportuno, o contido no art. 67, dos ATOS DAS

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DISPOSIÇÕES CONSTITUCIONAIS TRANSITÓRIAS – ADCT: “A Uniãoconcluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir dapromulgação da Constituição”.

Desta feita, e para não perder o foco da matéria abordada, vale anotar duassituações: a primeira, é que as terras indígenas são definidas na Constituição e noEstatuto do Índio como bens da União, ocupados ou habitados pelos índios; asegunda, é que a ausência do domínio da União e a ausência da ocupação ouhabitação indígena desclassificam as terras como indígenas.

Exemplificando, se numa determinada área, ainda que existam indícios deuma habitação indígena temporária, em passado longínquo, levando a titulaçãodesta área por particulares, evidente a ausência da proteção constitucional, ante anecessidade da presença dos pressupostos básicos inseridos no art. 231, CF. 8

Comentários do Prof. Hilário Rosa, Antropólogo, Mestre em Ciência Humanas eSociais: “Portanto, segundo o que estabelece a Constituição Federal, na leituraque lhe faz a doutrina e o Supremo Tribunal Federal, a qualificação de terras comoindígenas, pressupõe, terras tradicionalmente ocupadas pelos índios e por eleshabitadas em caráter permanente, contemporaneamente à promulgação da vigenteConstituição Federal.

Reafirmando o pensamento de Carlos Maximiliano, o jurista Carlos MedeirosSilva ressalva que

‘dar efeito retroativo à proteção possessória, em favor dos silvícolas, nãoteria sentido prático, nem razoável, porque isto importaria, sem limite no tempo, nadevolução de todo o território nacional aos seus primitivos habitantes.

’ (Parecer, em RDA 122/384-385).

Desse modo, silvícolas que tenham habitado, mas que deixaram de habitar,bem como silvícolas que passem a habitar durante certo tempo uma área, estão forada proteção constitucional, que se estende apenas aos naturais, em caráterpermanente: que tenham habitado e que continuem a habitar de maneira ininterruptauma região.“

8 Conforme entendimento extraído da obra “Direitos Fundamentais e Cidadania” – Zulmar Fachin, 2008, pág. 253:“Diante desse novo contexto, percebe-se que não há mais espaço para os juristas ‘senhores de si’; há sim, umincômodo geral, principalmente no sentido de que é preciso construir um novo diálogo com outras disciplinas,pois, na realidade, temos uma série de eventos, regulamentos, políticas, costumes, crenças, sentimentos, símbolos,procedimentos e conceitos agrupados. Isso demanda o emprego de uma retórica na construção de uma argumentaçãocoerente embasada na transdisciplinariedade sinalizando para a prática de ações que levem ao encontro de soluçõesadequadas a essa realidade que se impõe. Na lição de Perelman (2005, p. 248), trata-se de aplicar uma regra de justiçaformal ‘segundo o qual os seres de uma mesmo categoria essencial devem ser tratados no mesmo modo’.”

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IV - DIREITO DE PROPRIEDADE DIANTE DA PROTEÇÃO ASSEGURADA AOSÍNDIOS NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL.

De tudo que se expôs até agora, vemos que a Constituição Federal/88 fazmenção à posse permanente dos índios, o que não poderia gerar margens a dúvidas.Assim, os proprietários de terras, com títulos legitimados antes da Carta Magna/88, não poderiam ter suas propriedades atingidas.

No entanto, o que se tem visto são inúmeras ações intentadas na Justiça,seja no sentido de se buscar a garantia dos princípios da ampla defesa e do devidoprocesso legal nos procedimentos administrativos instaurados pela FUNAI9

MEIRELLES, Hely Lopes, Direito Administrativo Brasileiro, Malheiros Editores,28ª ed., 2003, pág. 658: “PRINCÍPIOS DO PROCESSO ADMINISTRATIVO

– O processo administrativo, nos Estados de Direito, está sujeito a cincoprincípios de observância constante, a saber: o da legalidade objetiva, o daoficialidade, o do informalismo, o da verdade material e o da GARANTIA DEDEFESA.

GARANTIA DE DEFESA– O princípio da garantia de defesa, entre nós, está assegurado no inciso

LV, do art. 5º da atual Constituição, juntamente com a obrigatoriedade docontraditório, como decorrência do devido processo legal (Const. Rep., art. 5º,LIV), que tem origem no “due process of law” do direito anglo-norte-americano.

, seja até para proteger a posse de particulares ante o esbulho praticadopor silvícolas. As ações intentadas são plenamente justificáveis, pois se alguémjulga ser titular de direitos, efetiva ou potencialmente lesados por procedimentosde identificação de delimitação e demarcação de terras supostamente indígenas, sópode socorrer ao Judiciário para que haja a devida apreciação desses direitos.

Há quem defenda que as decisões judiciais proferidas no sentido de analisaros direitos indígenas em consonância com o disposto acerca do direito depropriedade, são de caráter conservador e não se amoldam às novas diretrizestraçadas pela atual Constituição, em especial, ao previsto no § 6º do art. 231: “Sãonulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objetoa ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou aexploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes,

9 Conforme já comentamos anteriormente, trazendo entendimento de Ives Gandra Martins: “O constituinte fazmenção à posse permanente, não podendo ter a propriedade atingida aqueles proprietários dessas terras antes daConstituição de 88. Por outro lado, o usufruto de todas as riquezas do solo é exclusivamente das populações deíndios primitivos, devendo-se entender que as propriedades antes exploradas por brasileiros não pré-históricos,com títulos de propriedade ou posse, estão preservadas.” (Comentários à Constituição Brasileira, 8º vol. Ed.Saraiva, 1998, p. 1051/1053)”

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ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser leicomplementar, não gerando a nulidade e a extinção direito à indenização ou aações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas daocupação de boa fé.”

Não se trata, porém, de ser conservador ou sentimentalista. Aliás, talvezseja por isso que Ives Gandra Martins tenha feita duras críticas ao contido nocitado § 6º do art. 231:

Não há direito adquirido contra a Constituição, O artigo mencionado éde confisco doentio. Tudo o que o direito regula até 5 de outubro de1988, garantindo relações obrigacionais e as restrições jurídicasutilizadas, cai por terra, com o confisco do governo de toda a propriedade,posse e direitos antes detidos por terceiros não índios. Não cuida odispositivo da propriedade.O Constituinte declara que são nulos, com conseguinte exteriorização,todos os atos jurídicos vinculados à ocupação, domínio ou posse dasterras a que se refere este artigo. À evidência, os atos a que se refere eraatos jurídicos e acabados, de outra forma não precisaria o constituintese referir a eles, pois sua nulidade seria imediata. 10

É importante ressaltar que não defendemos, aqui, qualquer posiçãoextremista. No entanto, urge a defesa de práticas de ações no sentido de se encontrarsoluções adequadas11 e, no que for possível, pacíficas, atentando-se para os direitosdos índios expressos na CF, mas, por outro lado, também resguardando-se o direitode propriedade conquistado legitimamente, sob pena de privilegiar-se em demasiao direito de uns em detrimento de outros 12, levando-se em conta a necessidade dese buscar o equilíbrio entre justiça e segurança jurídica, como sendo um dosvalores essenciais do direito 13.

O SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, já assentou que: “Se por um ladoa Constituição Federal confere proteção às terras tradicionalmente ocupadas pelosíndios (art. 231), por outro, também confere proteção ao direito de propriedade (art.5º, inc. XXII)”.14

Por esse raciocínio, há que se ter em mente que o direito de propriedade,

10 CAMBI, Eduardo. Jurisdição no Processo Civil, Juruá Editora, 2002, p. 11311 Medida Cautelar nº 6.480 BA – Rel. Min. José Delgado.12 In Comentários à Constituição do Brasil, Editora Atlas, São Paulo, 2003, p. 265: “Toda pessoa, física ou jurídica,tem direito à propriedade, podendo o ordenamento jurídico estabelecer suas modalidades de aquisição, perda, usoe limites. O direito de propriedade, constitucionalmente consagrado, garante que dela ninguém poderá ser privadoarbitrariamente, pois somente a necessidade ou utilidade pública ou o ineresse social permitirão a desapropriação.”13 In “Instituições de Direito Civil”, v.4., p.116.14 In “Sistema de Registro de Imóveis” – Ed, saraiva, 1992, pág. 40·

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também como garantia constitucional, deve servir de amparo para que ninguémseja privado arbitrariamente da posse de seus bens, conforme bem observado porAlexandre de Moraes.15

Caio Mario da Silva Pereira, assevera o seguinte: “(...) aquele que figurano registro como titular do direito assim deve ser tratado, enquanto não secancelar ou anular, uma vez que o registro é ato casual e exprime sua força nadependência do negócio jurídico subjacente”. 16

Maria Helena Diniz, por seu turno, nos subsidia dizendo que: “O registrocolabora na defesa dos interesses daquele em cujo nome o direito real estáassentado, revertendo o ônus da prova.” 17

V - CONCLUSÃO:Para concluir, comungamos do entendimento no sentido de que o art. 231

da CF/88 não foi criado para gerar conflitos em torno de terras, entre índios e nãoíndios, mas para garantir às comunidades indígenas o direito às terras quetradicionalmente ocupam em caráter permanente. Por certo, o § 6º da referida normatambém não foi criado para dar margem à expulsão de agricultores e proprietáriosde terras legitimamente adquiridas de acordo com as normas vigentes à época dasrespectivas aquisições, ou mesmo para simplesmente entregar aos índios terraspor eles não habitadas até a entrada em vigor da CF/88. Os avanços constitucionaissão bem-vindos, mas para garantir situações fáticas já existentes e não para albergarou criar situações novas, em detrimento de outros direitos já tutelados.

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A AÇÃO PREVISTA NA LEI DE IMPROBIDADEADMINISTRATIVA – COMPETÊNCIA,

LEGITIMIDADE, INTERESSE DE AGIR EOUTROS ASPECTOS POLÊMICOS.

Arthur Mendes LOBO·

SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Breve evolução histórica do controle da improbidadeadministrativa. 3. Da dificuldade de se conceituar o ato de improbidade e a tipificaçãotrazida pela lei 8.429/92. 4. Da natureza jurídica da ação de improbidade. 5. Aspectosrelevantes do procedimento previsto na lei de improbidade administrativa. 6.Classificação da ação de improbidade administrativa. 7. Da Competência. – 7.1. Dapolêmica (in)competência da Justiça do Trabalho. – 7.2. Da inexistência de foroprivilegiado por prerrogativa de função. 8. Da Legitimidade. – 8.1. MinistérioPúblico. – 8.2. Pessoa Jurídica Interessada. – 8.3. Pessoa Jurídica Prejudicada. 9. Épossível cumular a ação de improbidade com ação popular? 10. Dos efeitos daapelação. 11. Do interesse de agir quanto ao pedido de perda da função pública. 12.Da Prescrição. 13. Da vedação à transação. 14. Referências bibliográficas.

RESUMO: O presente trabalho tem por escopo analisar alguns aspectos da açãoprevista na lei de improbidade administrativa. Buscamos, inicialmente, enfocar asua natureza de ação civil coletiva, demonstrando a dinâmica do procedimentoprevisto na Lei 8.429/92. Na seqüência, abordamos alguns pontos polêmicos dacompetência, primeiramente em virtude da Emenda Constitucional nº 45/2005, emais adiante pela inconstitucionalidade da Lei nº 10.628/2002 que trata do foro porprerrogativa de função. Sobre a legitimidade ativa ad causam, tratamos de analisara hipótese de estendê-la aos demais co-legitimados previstos no art. 5º da Lei7.347/85. Refletimos, ainda, quanto à viabilidade de se cumular a ação popular coma ação de improbidade administrativa, chamando a atenção para o Projeto de Lei nº6.997/2006. Finalmente, discorremos sobre a inaplicabilidade do art. 269, inciso III,do Código de Processo Civil, nessa modalidade de ação civil coletiva.

ABSTRACT: The present work aims in analyze some aspects of the expectedaction in the law of administrative dishonesty. First of all, it was tried to put infocus its collective civil action, showing the expected legal action dynamics in theLaw 8.429/92. Furthermore, it was studied some polemic points of the competence,in the first place because of the Constitutional Amendment number 45/2005, andafter that, the unconstitutionality of the Law number 10.628/2002, which treats of

* Mestrando em Direito pela UNAERP/SP. Especialista em Direito Ambiental pela UGF/RJ. Ex-ProfessorSubstituto da PUC/MG. Advogado. Artigo submetido em 15/06/2008. Artigo aprovado em 25/08/2008.

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the forum by function prerogative. About the active legitimacy ad causam, it wasanalyzed the hypothesis of extending it to all co-legitimated left expected in theparagraph 5 of the Law 7.347/85. It was also thought about the practicability ofheaping the popular action with the administrative dishonesty action, callingattention to the Project of Law number 6.997/2006. Finally, it was discoursed aboutthe inapplicability of the paragraph 269, cutting III, of the Code of Civil Procedure,in this collective civil action modality.

PALAVRAS-CHAVE: improbidade administrativa; ação civil coletiva; competência;legitimidade ativa; interesse de agir; prerrogativa de foro; apelação; transação.

KEY-WORDS: administrative dishonesty; collective civil action; competence; activelegitimacy; interest in acting; forum prerogative; appeal; transaction.

1. INTRODUÇÃOA palavra improbidade advém do grego improbitate, que significa

desonesto.A imoralidade e desonestidade dos homens públicos é preocupação antiga.Para os filósofos romanos da antiguidade, a moral é a disciplina filosófica

que investiga os meios e ocasiões de satisfazer e fortificar as inclinações com quea natureza dotou o ser humano, procurando estabelecer um conjunto de deveresque a natureza impõe ao homem, seja com respeito a si próprio, seja com relaçãoaos outros homens. Segundo eles, o bem da cidade depende das qualidades moraisdo governante, que deveria servir de modelo de conduta para o povo, inspirandohábitos virtuosos em toda sociedade. Daí a preocupação do governante, que deveriaser educado para adquirir, além das virtudes comuns a todo homem de bem(sabedoria ou prudência, justiça, coragem e temperança), as virtudes próprias aoexercício de sua função (honradez ou disposição para manter os compromissosassumidos em qualquer circunstância, sendo leal até mesmo com seus inimigos,excluindo-se a fraude ou a simulação; magnanimidade ou grandeza e força deânimo para se dedicar ao bem comum; liberalidade ou disposição para colocar suariqueza a serviço do povo)1.

No diálogo Leis, Platão defende que a finalidade da lei é tornar os cidadãostão bons quanto for possível. Cabe então ao legislador, organizador da cidade emodelador de almas, produzir um sistema legal capaz de criar e de manter o caráterexcelente dos cidadãos, para que pratiquem boas ações, convenientes para o bemda cidade. Por meio das leis, seria possível instaurar uma espécie de espírito coletivoque levasse a determinada disposição de caráter dos cidadãos própria ao convíviosocial2.

1 BARROS, Alberto Ribeiro G. de. Ética e Política. Revista Discutindo Filosofia. Ano 1. nº 1. Escala Editorial. SãoPaulo, 2006. p. 24.2 BARROS, Alberto Ribeiro G. de. Op. Cit. p. 21.

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Também Aristóteles defendeu que a conduta individual só poderá ser boase orientada pelas leis da cidade, que só serão boas quando produzidas por bonslegisladores3.

Nos últimos tempos, um dos institutos do Direito Administrativo maisestudados tem sido o da Improbidade Administrativa4. No presente trabalho, nosateremos à ação prevista na lei de improbidade. Pretende-se refletir sobre acompetência, legitimidade, interesse de agir e outros aspectos polêmicos, bemcomo apontar alguns avanços e retrocessos da Lei nº 8.429 de 02 de junho de 1992.

2. BREVE EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO CONTROLE DA IMPROBIDADEADMINISTRATIVA.

A repressão à improbidade administrativa dos homens públicos surgiu noano de 149 a.C, no direito romano, com a lex de repetundis, que tratava doressarcimento ao erário em caso de desvio de tributo.5

No Brasil, o instituto foi tratado com os contornos semelhantes ao queexiste hoje a partir da Constituição Federal de 1934, estabeleceu que “qualquercidadão é parte legítima para pleitear a declaração de nulidade ou anulação dosatos lesivos do patrimônio da União, dos Estados e dos Municípios” (art. 113).

A Constituição de 1937 nada dispôs sobre o assunto.6 Ao passo que aConstituição de 1946 revigorou e ampliou a previsão constante do diploma de1934, alcançando também as entidades autárquicas e as sociedades de economiamista. Também na Carta de 1946, se previu que a lei deveria dispor sobre o “seqüestroe o perdimento de bens, no caso de enriquecimento ilícito, por influência ou abusode cargo ou função pública, ou de emprego em entidade autárquica” (art. 141,parágrafo 3º).

A regulamentação legal veio com a Lei nº 1.079/50, vigente até hoje, quedispõe sobre crimes de responsabilidade, cominando penas de suspensão dedireitos políticos, perda de bens e perda da função pública.7

Com a vigência da Lei nº 4.717 de 29 de junho de 1965, denominada Lei daAção Popular, o ordenamento jurídico solidificou um importante instrumento dedefesa do patrimônio público à disposição do cidadão, ganhando disciplina nalegislação infraconstitucional.

3 Ibidem. p. 23.4 GOMES JUNIOR, Luiz Manoel. Ação Popular – Aspectos Polêmicos. 2ª ed. Forense. Rio de Janeiro, 2004. p. 103.5 OSÓRIO, Fábio Medina. Improbidade Administrativa. Observações sobre a Lei 8.429/92. 2ªed. Porto Alegre:Síntese, 1998, p.57.6 No plano infraconstitucional, o primeiro combate específico à improbidade administrativa foi proveniente doDecreto-Lei Federal nº 3.240 de 08.05.1941, que previa o seqüestro e a perda dos bens de autores de crimes queresultaram prejuízo para a Fazenda Pública, desde que resultasse locupletamento ilícito e, subsidiariamente, areparação civil do dano e a incorporação ao patrimônio público de bens de aquisição ilegítima de pessoa queexercesse ou tivesse exercido função pública. (In: MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional Administrativo.1ªed. São Paulo: Atlas, 2002. p. 320).7 Em seguida, a Lei nº 3.164/1957, chamada Lei Pitombo-Godói, e a Lei nº 3.502/1958, conhecida como Lei BilacPinto, estabeleceram o perdimento de bens nas hipóteses de enriquecimento ilícito do agente público por influênciaou abuso de cargo ou função, atribuindo-se, nesse último caso, legitimidade ad causam ao Ministério Público,podendo ser postulado o ressarcimento ao erário na modalidade perdas e danos. (In: OSÓRIO, Fábio Medina.Improbidade Administrativa. Op. Cit. p. 59-60).

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A Constituição de 1967 manteve a ação popular, ampliando a idéia delesividade para “outras entidades tidas como públicas”. E previu que a lei deveriadispor sobre “perdimento de bens, abarcando os danos causados ao erário, e oscasos de enriquecimento ilícito no exercício do cargo, função ou emprego naadministração pública direta ou indireta” (art. 153, § 11).

Hodiernamente, a Constituição de 1988, em seu art. 5º, LXXIII, estabelecea legitimidade do cidadão intentar ação popular para anular ato lesivo ao patrimôniopúblico ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa8, aomeio ambiente, ao patrimônio histórico e cultural9.

A atual Carta Política estabeleceu, em seu art. 37, caput, os princípios dalegalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e da eficiência10, pilares daAdministração Pública, e no § 4º do mesmo artigo, ampliou sua proteção, dispondoque:

“§ 4º Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dosdireitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e oressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da açãopenal cabível”.

Na seqüência, o Código de Defesa do Consumidor, Lei 8.078 de 11 desetembro de 1990, alterou a Lei nº 7.347 de 24 de julho de 1985. Pela nova redação,a ação civil pública pode ser utilizada para defender “quaisquer interesses difusosou coletivos” (art. 1º, IV). Assim, a lesão moral e patrimonial provocada por ato deimprobidade administrativa passou a ser tutelada também por essa modalidade deação coletiva.

Pela abrangência desse dispositivo, a ação civil pública passou a ser umimportante instrumento no combate à improbidade administrativa, disponível aosco-legitimados elencados no art. 5º da Lei nº 7.347/85, a saber: Ministério Público,União, Estados-Membros, Distrito Federal, Municípios, autarquias, fundações,empresas públicas, sociedades de economia mista ou por associação civil quepreencha os requisitos legais.

Consoante precedentes do Supremo Tribunal Federal a ação civil públicase presta à reparação dos danos causados ao erário.11

8 Bem lembra Luiz Manoel Gomes Júnior: “Se a Carta Política erigiu a Moralidade Administrativa como causaautônoma justificadora da utilização da Ação Popular, sendo a Improbidade Administrativa espécie de imoralidade,ainda que acentuada, não há dúvida de que é possível a invocação de regra legal específica em tal espécie dedemanda. Por sinal, em recente decisão o Excelso Pretório admitiu (...) o ajuizamento da Ação Popular apenas emrazão da violação do Princípio da Moralidade Administrativa. STF - RE 170.768-2-SP, rel. Min. Ilmar Galvão, j.26.03.1998.” (In: Ação Popular – Aspectos Polêmicos. Forense. Rio de Janeiro. 2004. p. 104).9 É importante notar que a ação popular recebeu da atual Constituição novas modalidades até então não previstaspela Lei 4.717/65, por esta razão, os mecanismos infraconstitucionais merecem ser revistos e aperfeiçoados pelolegislador, para melhor viabilizar a tutela desses novos direitos.10 Princípio inserido pela Emenda Constitucional nº 19 de 04.06.1998.11 Quanto ao cabimento de ação civil pública visando à proteção do patrimônio público, confira os seguintesprecedentes do STF: AI -497618 ED, Relator Ministro Carlos Velloso; RE 208.790/SP, Relator Ministro IlmarGalvão; RE 248.202/MG e RE 234.439/MA, Relator Ministro Moreira Alves; AI 383.919-AgR/MG, MinistroSepúlveda Pertence; AI 491.081-AgR/SP, Relator Ministro Carlos Velloso.

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Contudo, a despeito de se poder combater a improbidade tanto pela açãopopular, quanto pela ação civil pública, as condutas consideradas ilícitas não tinhamuma tipificação ampla e objetiva de modo a exteriorizar uma presunção absoluta deato de improbidade. Desse modo, uma vez praticado um ato supostamente contrárioà probidade, o réu poderia discutir no curso da ação se a conduta por ele praticadaseria ou não contrária à moralidade, o que daria ao juiz ampla margem dediscricionariedade12.

Em 02 de junho de 1992, a Lei nº 8.429 a repressão da improbidadeadministrativa ganhou tratamento específico. Houve inovações em muitos pontosda matéria.

A lei nova enumerou as condutas contrárias à probidade (arts. 9º, 10 e 11)e estabeleceu, ainda, as sanções13 aplicáveis aos agentes públicos14 e aos terceirosque concorreram para o ato15 (art. 12), bem como viabilizou a reparação do danosofrido pela Fazenda Pública (art. 18). Ademais, versou sobre procedimentoadministrativo (arts. 14 a 16 e 22), tipificou o crime de denunciação caluniosa paraa espécie (art. 19) e dispôs sobre a ação civil (arts. 16, 17, 20, 21 e 23), essa últimaobjeto desse estudo.

Recentemente, a Lei nº 8.429/92 sofreu duas importantes alterações, umapela Lei nº 9.366 de 16 de dezembro de 1996, que alterou o §3º do art. 17, determinandoque quando a ação for intentada pelo Ministério Público a pessoa jurídica lesadadeve ser citada, podendo integrar a lide na qualidade de assistente do autor ou do

12 Entendemos que, com a tipificação das condutas ímprobas na Lei nº 8.429/92, a caracterização do ato de improbidadefoi melhor disciplinada. Ao réu cabe provar se fato existiu ou não existiu, e não ficar discutindo se o fato típico seriaou não ato de improbidade. Defendemos a subsunção do fato à norma para evitar interpretações destoantes e ilegais.Contudo, parece-nos necessário para evitar abusos e distorções na aplicação dessa lei que seja aplicado o princípioda insignificância, bem como o segredo de Justiça, permanecendo em sigilo o nome do réu até o recebimento dadefesa prévia. Isso porque não se mostra razoável permitir que um agente público tenha sua honra e imagem maculadaspor um processo judicial em que se discute, por exemplo, a apropriação indevida de um clips de papel adquiridocom dinheiro público.13 As sanções estão previstas no art. 12 da Lei 8.429/92 são aplicáveis isolada ou cumulativamente, sem prejuízoda condenação criminal. A escolha e gradação da penalidade obedecerá critérios de proporcionalidade e razoabilidade,podendo oscilar conforme a dimensão da lesão e o proveito do agente ímprobo. Como assinala Rogério PonziSeligman: “O princípio constitucional da proporcionalidade na conformação e no sancionamento aos atos deimprobidade administrativa previstos na Lei 8.429/92”,[...] “a proporcionalidade é fundamental à garantia dodireito individual da justa aplicação da lei (devido processo legal substantivo) e à própria eficácia da Lei deImprobidade Administrativa, evitando banalizar instrumento de tamanha importância por meio de sua utilizaçãomecânica e indiscriminada” (Revista de Direito Administrativo 238/253, Renovar, ou-dez. 2004). No mesmo sentido:RT 844/244.14 Há grande polêmica quanto à aplicabilidade das sanções também aos agente políticos. Isto é, muito se discutese os que exercem mandatos eletivos e funções públicas de comando dos Poderes constituídos, v.g., Presidente daRepública, Deputados, Senadores, Prefeitos, Juízes, Desembargadores, dentre outros, respondem a ação previstana Lei 8.429/92. Entendendo que sim: MORAES, Alexandre de. Improbidade administrativa e a questão do princípiodo juiz natural como garantia constitucional, RT 822/51. Em sentido contrário está decidindo o Supremo TribunalFederal, na Reclamação 2138-6/190 DF, Relator Ministro Nelson Jobim. Embora essa Reclamação verse sobrecompetência, cuida também da ilegitimidade passiva dos agentes políticos para responderem ação prevista na Lei8.429/92, entendendo que caberia aplicação somente da ação prevista na Lei 1.079/50, que trata dos crimes deresponsabilidade. Embora o Acórdão ainda não tenha sido publicado, sabe-se que atualmente o julgamento jápossui seis (06) votos que acompanham o entendimento do Relator, pelo provimento da aludida Reclamação.15 Incorre nas mesmas sanções cominadas, figurando como co-réu na ação civil, aquele que, não sendo agente público,participa, auxilia, orienta o agente ímprobo ou se beneficia diretamente do ilícito previsto na lei de improbidade.

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réu, à semelhança do que ocorre na ação popular. E a segunda e mais significativapela Medida Provisória nº 2.225 de 04 de setembro de 2001, que alterou os §§5º a12º, do mesmo art. 17, para disciplinar o rito daquela ação, como se verá adiante.

Contudo, não sabemos ao certo qual foi verdadeiro intuito do legislador.Teria ele pretendido aprimorar ou limitar o controle jurisdicional dos atos deimprobidade administrativa? Houve regresso ou anacronismo para o exercício dacidadania?

No decorrer desse estudo, veremos que a lei nova trouxe avanços, mastambém alguns retrocessos, razão pela qual sua interpretação não pode destoar dasistemática das ações coletivas, sob pena de se prejudicar Direitos Fundamentais.

3. DA DIFICULDADE DE SE CONCEITUAR O ATO DE IMPROBIDADE E ATIPIFICAÇÃO TRAZIDA PELA LEI 8.429/92

Lembra-nos Gregório Assagra de Almeida que há uma “(...) sensíveldificuldade doutrinária em fixar a limitação do conceito de improbidade, sustentandoque, genericamente, comete improbidade o agente público ou o particular queinfringe a moralidade administrativa. Ciente dessa dificuldade, o legislador pátrio,sabiamente, optou por estabelecer de forma não exaustiva o rol dos atosadministrativos que deverão ser considerados atos de improbidadeadministrativa”16.

Ensina-nos Luiz Manoel Gomes Júnior que “a improbidade administrativaestaria presente quando por parte do administrador, ou mesmo terceiros que serelacionem com a Administração, violem o dever de agir segundo um conceitoamplo de Moralidade Administrativa”.17

A Lei de Improbidade Administrativa enumerou as condutas contrárias àprobidade. No art. 9º, os atos de improbidade administrativa que importamenriquecimento ilícito. No art. 10, os atos de improbidade administrativa que causamprejuízo ao erário. E o art. 11, os atos de improbidade administrativa que atentamcontra os princípios da administração pública.

Tais hipóteses são, portanto, meramente exemplificativas. Entretanto, umavez praticada qualquer delas, haverá presunção absoluta de que ocorreu um ato deimprobidade. Em outras palavras, não se admitirá prova de que a conduta tipificadaseria lícita e, portanto, impunível. Para se escusar da condenação, o réu terá quedemonstrar a inexistência do fato típico ou da autoria. Essa nova sistemática interfereno ônus probatório, facilitando a subsunção do fato à norma, e também evitará quesejam proferidas decisões contraditórias em casos semelhantes.

Entendemos por ato de improbidade administrativa aquele que contraria amoralidade da Administração Pública, princípio basilar protegido pela ConstituiçãoFederal de 1988, em seu art. 37, caput. O ordenamento jurídico deve tutelar a boaimagem da administração e a zelar pelo seu patrimônio.

16 ALMEIDA, Gregório Assagra de. Direito Processual Coletivo Brasileiro. Saraiva. São Paulo, 2003. p. 451.17 GOMES JUNIOR, Luiz Manoel. Ação Popular.Op. Cit. p. 103.

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Sobre o assunto, vale conferir o parecer de José Miguel Garcia Medina:“(...) consoante entendimento hoje pacificado pela doutrina e pela jurisprudênciaque cuidam do tema, para que se esteja diante de um ato de improbidadeadministrativa exige-se a conjugação de três elementos fundamentais: 1º) ailegalidade; 2º) a imoralidade; 3º) a desonestidade. Tais elementos, como se disse,devem estar presentes simultaneamente”.18

Entendemos que a desonestidade, como elemento da improbidade, deveser entendida em seu sentido amplo. Equivale afirmar, a desonestidade se caracterizaquando o agente sabe ou devia saber da ilicitude de sua ação ou omissão. Issoporque existem atos de improbidade administrativa provenientes de negligência,imprudência ou imperícia. Portanto, é necessário que o agente público, ou oequiparado, atue com “dolo” ou “culpa”.19

Nesse diapasão, o ato de improbidade também se caracteriza quando,embora o agente não tenha intenção de lesar, deixa de observar o dever de cuidadocom a res publica, inclusive quando se mostra desidioso com a boa imagem daadministração pública.20

Porém, é necessário frisar que a culpa do agente para caracterizar ato deimprobidade há de ser lesiva e grave, consoante critérios de razoabilidade. Deve-seanalisar, à luz do caso concreto, se o réu tinha o dever de evitar o dano e lhe erapossível fazê-lo, pois como já decidiu o Superior Tribunal de Justiça, “não havendoenriquecimento ilícito e nem prejuízo ao erário municipal, mas inabilidade doadministrador, não cabem as punições previstas na Lei nº 8.429/92. (...) A lei alcançao administrador desonesto, não o inábil”.21

Parece-nos acertado o recente aresto do Tribunal de Justiça de São Paulo,segundo o qual “a ausência de má-fé não interfere na caracterização da improbidade

18 MEDINA, José Miguel Garcia. Ação Civil Pública – Improbidade Administrativa – Possibilidade de Indeferimentoda Petição Inicial ante a Ausência de Ato de Improbidade – Inteligência do art. 17, §§ 8º e 11, da Lei 8.429/1992,c/c art. 295 do CPC. RT 815/123. p. 128.19 Para Maria Sylvia Zanella Di Pietro: “O enquadramento na lei de improbidade exige culpa ou dolo por parte dosujeito ativo. Mesmo quando algum ato ilegal seja praticado, é preciso verificar se houve culpa ou dolo, se houveum mínimo de má-fé que revele realmente a presença de um comportamento desonesto. A quantidade de leis, decretos,medidas provisórias, regulamentos, portarias torna praticamente impossível a aplicação do velho princípio de quetodos conhecem a lei. Além disso, algumas normas admitem diferentes interpretações e são aplicadas por servidorespúblicos estranhos à área jurídica. Por isso mesmo, a aplicação da lei de improbidade exige bom-senso, pesquisada intenção do agente, sob pena de sobrecarregar-se inutilmente o Judiciário com questões irrelevantes, que podemser adequadamente resolvidas na própria esfera administrativa”. (Direito Administrativo, 13ªed.Atlas. São Paulo,2001. p. 675/676). Marcelo Figueiredo assevera “Nessa direção, não nos parece crível punir o agente público, ouequiparado, quando o ato acoimado de improbidade é, na verdade, fruto de inabilidade, de gestão imperfeita, ausenteo elemento de ‘desonestidade’ ou de improbidade propriamente dita”. (Probidade Administrativa, 4ªed. Malheiros.São Paulo, 2000. p. 24).20 Cite-se como exemplo, quando agente público “agir negligentemente na arrecadação de tributo ou renda, bemcomo no que diz respeito à conservação do patrimônio público” (inciso X, do art. 10, da Lei nº 8.429/92. Ou, ainda,quando o agente público “deixar de prestar contas quando esteja obrigado a fazê-lo” (art. 11, inciso VI). Em taishipóteses, se fosse exigida a prova do dolo, seria difícil senão impossível demonstrar a intenção do agente e, porconseguinte, o ato de improbidade. A prevalecer esse raciocínio, restaria esvaziado o próprio sentido da lei, queé perseguir a conduta que atenta contra um princípio da administração pública. Portanto, a culpa do agente público,per si, já caracteriza o ilícito.21 STJ – REsp. 213.994-MG, 1999/00411561-2, j. 17.08.1999, rel. Min. Garcia Vieira, DJU 27.09.1999).

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administrativa, mas é levada em consideração na dosimetria da penalidadeimposta”.22 Complementamos nosso raciocínio com o precedente do Tribunal deJustiça de Minas Gerais, segundo o qual “Para a ação de improbidade administrativaé preciso que fiquem bem delineados os seus elementos que, em suma, seriam odano ao patrimônio público e a denominação da atitude do agente administrativoqualificada pela desonestidade, não bastando a configuração da ineficiênciaadministrativa, necessária a comprovação do elemento subjetivo (dolo ou culpa) ecomprovação do dano”.23

4. DA NATUREZA JURÍDICA DA AÇÃO DE IMPROBIDADE.Muito se discutiu no início se a ação prevista na Lei nº 8.429/92 seria uma

ação civil ou penal. A resposta leva o intérprete a conseqüências processuaisdistintas, principalmente no que tange à fixação da competência.

Arnoldo Wald e Rodrigo Garcia da Fonseca24 entendem que embora aação prevista na lei de improbidade administrativa seja formalmente civil, tem elarepercussões quase-penais, haja vista a gravidade das sanções aplicáveis ao réu.

De fato, reconhecemos que as sanções previstas na lei de improbidadeadministrativa podem ser tão severas quanto algumas sanções penais25, eis que oagente poderá ser compelido a, isolada ou cumulativamente: i) deixar o cargo; ii)ver suspensos seus direitos políticos; iii) pagar multa civil por acréscimo patrimonialindevido do agente; iv) pagar multa civil por dano causado ao erário; v) pagarmulta civil por ato contrario à moralidade, a ser aplicada sobre o valor daremuneração percebida pelo agente; vi) ressarcir o dano causado; vii) ficar impedidode contratar com o Poder Público; viii) ficar impedido de receber benefícios ouincentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédiode pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de dez, cinco ou trêsanos, conforme o caso.

Justificam os mencionados autores que “tais características fazem da açãode improbidade administrativa uma ação civil de forte conteúdo penal, e cominegáveis aspectos políticos. Este caráter claramente punitivo da ação deimprobidade administrativa traz sérios questionamentos quanto à competênciapara o seu julgamento em determinadas situações. (...) Não se pode admitir numainterpretação sistemática e teleológica da ordem jurídica, que autoridades comprerrogativa de foro penal possam ser julgadas por juízes de primeira instância, emações de improbidade que discutam justamente atos com repercussões penais, ecujos desfechos podem dar com a perda do cargo público e dos direitos políticos”26.

22 TJSP – Ap. c/ Rev 318.822-5/3-00 – 1ª Câm. de Direito Público – j. 23.08.2005 – v.u. – rel. Des. FranklinNogueira. RT 844/244.23 TJMG – Ap 1.001204910508-8/001 – 3ª Câm. – Rel. Des. Maciel Pereira – j. 03.03.2005 RT 836/278.24 WALD, Arnoldo e FONSECA, Rodrigo Garcia da. Ação de Improbidade Administrativa. Disponível em: <http://www.camara.rj.gov.br/setores/proc/revistaproc/revproc2002/arti_arnold_rodrigo.pdf>. Acesso em 26/04/2006.25 Principalmente se as compararmos com algumas penas restritivas de direitos, previstas no art. 43 do CódigoPenal.26 WALD, Arnoldo e FONSECA, Rodrigo Garcia da. Op. Cit. p. 01-02.

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Diverge desse entendimento Fábio Konder Comparato, segundo o qual:

Se, por conseguinte, a própria Constituição distingue e separa a açãocondenatória do responsável por atos de improbidade administrativa àssanções por ela expressas, da ação penal cabível, é, obviamente, porqueaquela demanda não tem natureza penal.27

Verificamos que a parte final do art. 37, § 4º, da Constituição da República,realmente distingue a ação de improbidade da ação penal, já que ressalva apossibilidade desta última ser proposta indepedentemente da primeira, a qual passaa ter um nítido caráter extra-penal. Senão vejamos:

§4º Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dosdireitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bense o ressarcimento ao erário, na forma e na gradação previstas em lei, semprejuízo da ação penal cabível.Entendemos, portanto, que assiste razão à segunda opinião, visto que a

tão só gravidade das sanções previstas na Lei nº 8.429/92 não basta para que se lheatribua a natureza criminal.

Também parece equivocado, por afronta às regras de hermenêutica jurídica,afirmar que todo ato de improbidade é crime de responsabilidade, para que somenteos agentes políticos viessem a se sujeitar ao foro privilegiado, aplicando-se-lhes alei mais antiga, de julgamento político, desconsiderando a competência cível trazidapela nova lei.

Na lição de Luiz Manoel Gomes Júnior, “a Lei Federal 8.429/92 fixa váriasespécies de penalidades de natureza civil, ainda que o mesmo ato também possaoriginar uma punição de natureza penal, no caso de violação a tal preceito”.28

Parece-nos mais acertado, destarte, afirmar que a ação de improbidade éuma ação civil, cujo objeto de direito material vem a ser um misto de responsabilidadecivil e administrativa29, ficando a responsabilidade criminal reservada à ação penal.

5. ASPECTOS RELEVANTES DO PROCEDIMENTO PREVISTO NA LEI DEIMPROBIDADE ADMINISTRATIVA

Dispõe o art. 17, da Lei 8.429/92, que “a ação principal, seguirá o rito

27 COMPARATO, Fábio Konder. Ação de Improbidade: Lei 8429/92 – Competência ao juízo de 1.º grau, in Boletimdos Procuradores da República, n.º 9, jan/99. p.8.28 GOMES JUNIOR, Luiz Manoel. Ação Popular, Op. Cit, p. 104.29 Muito embora o art. 12 da Lei nº 8.429/92 tenha feito ressalvas quanto às sanções civis, penais e administrativas, issonão significa que tenha criado um terceiro gênero de responsabilização. Eventual condenação na ação de improbidadehaverá de ser civil e ou administrativa, ficando a responsabilidade criminal reservada à ação penal cabível. Dispõe ocaput do mencionado art. 12: “Independentemente das sanções penais, civis e administrativas, previstas na legislaçãoespecífica, está o responsável pelo ato de improbidade sujeito às seguintes cominações:” Não teria sentido, pois,interpretar que as cominações pelo ato de improbidade deixaram de ter caráter civil, penal e ou administrativo. Seria maisclaro o dispositivo, se o legislador tivesse dito “independentemente das demais sanções previstas na legislaçãoespecífica”. Parece-nos que esta é a interpretação mais correta de modo a evitar distorções.

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ordinário, podendo ser proposta pelo Ministério Público ou pela pessoa jurídicainteressada, dentro de (30) trinta dias da efetivação da medida cautelar”. 30

Dentre as inovações, podemos citar a Medida Provisória 2.225-45/01, quealterou a Lei 8.429/92, conferindo ao rito da ação de improbidade uma fase semelhanteao processo penal nos crimes contra a administração pública, em que o réu éouvido previamente, antes de ser recebida a denúncia. Pela nova sistemática doart. 17, antes de ser citado, o réu da ação de improbidade receberá uma notificaçãopara se manifestar nos autos, no prazo de 15 (quinze) dias, podendo juntar osdocumentos que entender pertinentes (§7º). Após essa manifestação, será feito umjuízo de admissibilidade da ação, podendo o julgador rejeitar a inicial antes mesmoda citação (§8º).

Questão polêmica, quanto a esse juízo de admissibilidade refere-se àhipótese em que o réu não tem documentos pré-constituídos para provar suainocência e assim ver rejeitada a inicial. Nesse caso específico, entendemos que oréu, uma vez notificado, poderá produzir prova testemunhal em audiência prévia dejustificação, a acontecer antes mesmo da sua citação, com o escopo de se apurar aexistência ou inexistência de indícios fáticos que respaldem o prosseguimento daação. Entendemos assim porque, não raras vezes, a ação de improbidade é manejadacom o fim único de denegrir a imagem de concorrente político em campanha eleitoral,baseada em meras suposições e especulações, sem indícios de autoria ou mesmodo dano em si. Assim, a cautela de se fazer uma audiência prévia de justificação semostra salutar, principalmente porque, do contrário, se admitiria o processamentodo feito em situações temerárias, o que poderia causar danos nefastos à imagem doacusado frente à opinião pública, sem falar nos prejuízos irreversíveis à sua carreira.

A decisão que rejeita a inicial desafia apelação. E a decisão que aceita oprocessamento da ação de improbidade é atacável por agravo de instrumento(§10). Uma vez aceito o processamento pelo juiz, aí sim, “será o réu citado31 paraapresentar contestação”.32

30 O caput do art. 17 da Lei 8.429/92 pressupõe que a ação de improbidade administrativa será precedida porcautelar incidental de “seqüestro”, prevista no art. 16 da mesma lei, muito embora a interposição dessa medida nãoseja obrigatória, nem preparatória, nem incidentalmente. Daí a razão de se referir à “ação principal”, com claraintenção de distingui-la da referida ação cautelar. Importa ressaltar que embora o legislador tenha referido à açãocautelar de seqüestro, nada obsta que se requeira o “arresto” ou outra medida mais adequada aos interesses doautor, bem como que ele possa se valer do pedido de tutela antecipatória. Na lição de Hugo Nigro Mazzilli, “Cabemações civis públicas ou coletivas: a) principais (condenatórias, reparatórias ou indenizatórias); b) cautelares(preparatórias ou incidentes); c) cautelares satisfativas, que não dependem de outra ação dita principal; d) deliquidação de sentença e execução; e) quaisquer outras, como as de preceito cominatório, declaratórias econstitutivas. Não só para a defesa metaindividual do consumidor, como para a de qualquer outro interesse difuso,coletivo ou individual homogêneo, admitem-se todas as espécies de ações, com qualquer rito ou pedido”. (In: ADefesa dos interesses difusos em juízo. 7ªed. Saraiva. São Paulo, 1995. p. 63). Também vale conferir a reformaprocessual trazida pela Lei 10.444/2002, que estabeleceu a fungibilidade das tutelas de urgência.31 Seguem o rito ordinário a citação e respectivos prazos.32 Ao nosso ver, o mais correto seria o § 9º, do art. 17, dispor que “o réu será citado para apresentar resposta” e nãoapenas contestação, já que ele poderá também opor exceção de incompetência, suspeição ou impedimento e atémesmo, em raríssimas hipóteses, a reconvenção quando o autor for pessoa jurídica co-legitimada.

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Nota-se, ainda, que por força do art. 17, §6º, a petição inicial deve serinstruída, com indícios da existência do ato de improbidade ou com razõesfundamentadas da impossibilidade de apresentação de qualquer dessas provas.Do contrário, poderá ser caracterizada má-fé do autor, com as condenações previstasnos arts. 16 a 18 do Código de Processo Civil.

No procedimento, não poderá haver, sob nenhuma hipótese, transação, eo produto da condenação deve ser destinado à pessoa jurídica prejudicada. Essesdois últimos pontos serão melhor abordados mais adiante (itens 8.3 e 13).

6. CLASSIFICAÇÃO DA AÇÃO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVADiante das peculiaridades da ação prevista na lei de improbidade

administrativa, ganhou relevo a discussão sobre a sua classificação. Seria ela umaação civil pública ou uma ação específica?

Segundo Arnoldo Wald e Rodrigo Garcia da Fonseca, “tem sido uma práticacomum, tanto do Ministério Público quanto do Poder Judiciário, o tratamento destaação de improbidade administrativa meramente como uma nova modalidade deação civil pública, freqüentemente chamando-a de ‘ação civil pública de improbidadeadministrativa’. Trata-se, a nosso ver, de prática de pouca técnica jurídica, pois aação de improbidade administrativa tem natureza, contornos e regramento próprios,não se confundindo com aqueles específicos das ações civis públicas em geral. Ofato de a ação ser civil (em oposição a uma ação penal), ou ser pública, numlinguajar leigo (no sentido de proteger o patrimônio público, ou da legitimidade doMinistério Público para propô-la), não faz da ação de improbidade administrativauma ação civil pública no senso jurídico do termo. A importância do assunto fez olegislador editar normas específicas, e é dentro deste regramento especial que otema deve ser tratado, de forma a serem devidamente garantidos e preservados osinteresses maiores de uma sociedade justa, democrática e moralmente sadia”33.

Pondera Marcelo Figueiredo: “algumas questões processuais afloram, asaber: Qual o objeto da ação? A imposição de todas as penas do art. 12? Qual aeventual ligação entre a ação de improbidade e outras como, v. g. a ação popular ea ação civil pública? O objeto da presente ação é múltiplo. Visa à reparação dodano, à decretação da perda dos bens havidos ilicitamente, bem com à aplicaçãodas penas descritas na lei. As penas podem e devem ser aplicadas isolada oucumulativamente, tudo a depender do caso concreto e da ampla investigação dodano causado, da responsabilidade do agente (teoria da culpa). Enfim, que não semostra obrigatória a aplicação das cominações em bloco. É preciso ter em menteque existem vários instrumentos legais para proteção do patrimônio público. Assim,o objeto da ação de improbidade é mais amplo do que o da ação civil pública (art. 3ºda Lei 7.347/85 – ‘a ação poderá ter por objeto a condenação em dinheiro ou ocumprimento de obrigação de fazer ou não fazer’). Também na ação popular a

33 WALD, Arnoldo e FONSECA, Rodrigo Garcia da. Ação de Improbidade Administrativa. Disponível em: <http://www.camara.rj.gov.br/setores/proc/revistaproc/revproc2002/arti_arnold_rodrigo.pdf>. Acesso em 26/04/2006.

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sentença de procedência julgará a invalidade do ato, condenará em perdas e danosos responsáveis e beneficiários do ato (art. 11 da Lei 4.717/65). Mais amplo seapresenta o objeto da ação de improbidade. Diante do ato de improbidade, oslegitimados devem propor a presente ação e não outras, ainda que em defesa dopatrimônio público. De outra parte, nada impede a propositura daquelas ações(ação civil, ação popular) a título subsidiário (art. 17, § 2º da lei). Cremos, ainda, quenão se mostra viável naquelas ações (popular ou civil pública) veicular pedido deressarcimento do dano por ato de improbidade que cause dano ao erário público(art. 10), diante da previsão específica da presente lei, que contempla e inaugurauma nova ação, a ‘ação civil de reparação de dano’ causado pela improbidade.Deveras, se essa ação tem por objeto bem mais amplo que aquelas, inclusive compenalidades mais graves, seria um contra-senso poder-se ‘optar’ por escolher essaou aquela via em detrimento da própria punição que se pretende garantir. Isto dito,estar-se-ia obstaculizando de uma forma reflexa e impedindo o Poder Judiciário desoberanamente atender aos pedidos das sanções aplicáveis, como que dispondoda ação pelos legitimados.”34

Entre os que defendem ser ela uma ação civil pública encontramos MarinoPazzaglini Filho, Márcio Fernando Elias Rosa e Waldo Fazzio Júnior: “Ação civilpública, no caso da improbidade administrativa, é ação civil de interesse públicoimediato, ou seja, é a utilização do processo civil como um instrumento para aproteção de um bem, cuja preservação interessa a toda coletividade”.35

Rodolfo Camargo Mancuso argumenta: “ainda sob a rubrica do interessepara agir, cabe alertar que por vezes o valor jurídico a ser tutelado na ação civilpública é o ‘erário’, ou seja, o aspecto pecuniário do ‘patrimônio público’, sejaporque o inc. IV do art. 1º da Lei 7.347/85 dá abertura para ‘qualquer outro interessedifuso ou coletivo’, seja porque a Lei 8.429/92 (sobre atos de improbidadeadministrativa e enriquecimento ilícito) aparece vocacionada à preservação dessebem, e seu art. 17 legitima o Ministério Público e a pessoa jurídica interessada àpropositura da ação”.36

Somos do entendimento de que, uma vez ocorrido ato de improbidadeadministrativa, caberá ao Ministério Público ou à pessoa jurídica interessada intentaração civil de reparação de danos causados por improbidade, a que chamamos açãode improbidade administrativa, tendo como pedido a declaração da nulidade doato ímprobo e a condenação do réu nas sanções expressamente previstas na lei.Poderá o autor, contudo, cumular a ação de improbidade com ação civil pública,caso pretenda a condenação do réu em outras obrigações, como por exemplo, defazer ou deixar de fazer, hipótese em que o rito será o ordinário37.

34 FIGUEIREDO, Marcelo. Probidade Administrativa, Comentários à Lei 8.429/92 e Legislação Complementar. 4ed. Malheiros. São Paulo, 2000. p. 91.35 PAZZAGLINI FILHO, Marino; ELIAS ROSA, Marcio Fernando; e FAZZIO JUNIOR, Waldo. Improbidadeadministrativa, Aspectos Jurídicos da Defesa do Patrimônio Público. Atlas. São Paulo, 1997. p. 197.36 Rodolfo de Camargo Mancuso, Ação civil pública em defesa do meio ambiente, do patrimônio cultural e dosconsumidores, São Paulo, RT, 2002, p. 59.37 No mesmo sentido: STJ – REsp 434661 – MS – Rel. Min. Eliana Calmon – DJU 25.08.2003 – p. 280.

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Sobre o tema, vale conferir o seguinte aresto do Superior Tribunal deJustiça:

ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL. IMPROBIDADEADMINISTRATIVA. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. 1) A probidade administrativaé consectário da moralidade administrativa, anseio popular e, a fortiori,difuso. 2) A característica da ação civil pública está, exatamente, no seuobjeto difuso, que viabiliza multifária legitimação, dentre outras, a doMinistério Público como o mais adequado órgão de tutela, intermediárioentre o Estado e o cidadão.3) A Lei de Improbidade Administrativa, emessência, não é Lei de ritos senão substancial, ao enumerar condutascontra legem, sua exegese e sanções correspondentes. 4) Considerandoo cânone de que a todo direito corresponde uma ação que o assegura, élícito que o interesse difuso à probidade administrativa seja veiculado pormeio de ação civil pública máxime porque a conduta do Prefeito interessaà toda a comunidade local mercê de a eficácia erga omnes da decisãoaproveitar aos demais munícipes, poupando-lhes de novéis demandas. 5)As conseqüências da ação civil pública quanto ao provimento jurisdicionalnão inibe a eficácia da sentença que pode obedecer à classificação quináriaou trinaria das sentenças. 6) A fortiori, a ação civil pública pode gerarcomando condenatório, declaratório, constitutivo, autoexecutável oumandamental. 7) Axiologicamente, é a causa petendi que caracteriza aação difusa e não o pedido formulado, muito embora o objeto imediatodaquele também influa na categorização da demanda. 8) A Lei deImprobidade Administrativa, juntamente com a Lei da Ação Civil Pública,da Ação Popular, do Mandado de Segurança Coletivo, do Código de Defesado Consumidor e do Estatuto da Criança e do Adolescente e do Idoso,compõem um microssistema de tutela dos interesses transindividuais esob esse enfoque interdisciplinar, interpenetram-se e subsidiam-se. 9) Adoutrina do tema referenda o entendimento de que ‘A ação civil pública éo instrumento processual adequado conferido ao Ministério Público parao exercício do controle popular sobre os atos dos poderes públicos,exigindo tanto a reparação do dano causado ao patrimônio por ato deimprobidade quanto à aplicação das sanções do art. 37, § 4º, da ConstituiçãoFederal, previstas ao agente público, em decorrência de sua condutairregular. (...) Torna-se, pois, indiscutível a adequação dos pedidos deaplicação das sanções previstas para ato de improbidade à ação civilpública, que se constitui nada mais do que uma mera denominação deações coletivas, às quais por igual tendem à defesa de interesses meta-individuais. Assim, não se pode negar que a Ação Civil Pública se trata davia processual adequada para a proteção do patrimônio público, dosprincípios constitucionais da administração pública e para a repressão deatos de improbidade administrativa, ou simplesmente atos lesivos, ilegais

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ou imorais, conforme expressa previsão do art. 12 da Lei 8.429/92 (de acordocom o art. 37, §4º, da Constituição Federal e art. 3º da Lei 7.347/85)’(Alexandre de Moraes in ‘Direito Constitucional’, 9ª ed., p. 333-334). 10)Recurso Especial desprovido.38

Ao nosso ver, portanto, como a ação de improbidade administrativa visatutelar o interesse público primário, entendido esse como interessemetaindividual de caráter difuso, para a proteção de um númeroindeterminado de cidadãos no sentido de impedir lesão ao patrimôniopúblico e bem assim de preservar a moralidade da administração pública,entendemos ser ela uma verdadeira modalidade de ação civil pública queintegra o microssistema de direito processual civil coletivo, aplicando-se-lhe, subsidiariamente a Lei nº 7.347/85 e as normas processuais do Códigode Defesa do Consumidor, bem como todos princípios que regem as açõescoletivas.

7. DA COMPETÊNCIA.Interessa-nos saber qual o foro competente para ajuizar a ação civil de

improbidade administrativa. Diante do silêncio da Lei nº 8.429/92, quais as regra decompetência devemos aplicar? O comando do art. 94 do Código de Processo Civil(domicílio do réu) ou do art. 2º da Lei 7.347/85 (local do dano)?

Por se tratar de ação coletiva, como visto no tópico anterior, a competênciahá ser a do local do dano, consoante a Lei de Ação Civil Pública, art. 2º, in verbis:“As ações prevista nesta Lei serão propostas no foro do local onde ocorrer o dano,cujo juízo terá competência funcional para processar e julgar a causa”.

Mas resta indagar, em que lugar o dano se concretiza? Onde o ato deimprobidade se consuma (teoria da atividade) ou na sede da pessoa jurídica lesada(teoria do resultado)?

A ação de improbidade tem por escopo velar pelo prestígio daadministração da coisa pública, não estando diretamente relacionada à lesãoexperimentada pelo particular ou pela coisa pertencente ao patrimônio público.Desse modo, o dano que deve determinar a fixação do foro é aquele que se produziucomo lesão aos princípios e interesses da Administração Pública, a recair sobre asede do ente público lesado pelo ato de improbidade39.

Para ilustrar, cita-se o seguinte exemplo: um agente público estadual lotadoem cidade do interior exige propina de um particular para fazer ato de ofício. Nessahipótese, ocorreram dois danos distintos. Houve prejuízo ao particular extorquidoe também à imagem da Administração Pública. Como a fixação da competência sedá pelo segundo evento, tem-se que o foro competente será o da capital do Estado-

38 STJ – RESP 510150 – MA – 1ª Turma – Rel. Min. Luiz Fux – DJU 29.03.2004 – p. 00173.39 Asseveram Marino Pazzaglini Filho, Marcio Fernando Elias Rosa e Waldo Fazzio Junior que: “O dano se efetiva,quase que invariavelmente, na sede do Município, ou na sede administrativa do Estado ou da União”. (In:Improbidade administrativa, Aspectos Jurídicos da Defesa do Patrimônio Público. Atlas. São Paulo, 1997. p.200).No mesmo sentido: TJPR – AI 172.489-2. rel. Des. Luiz Cezar de Oliveira. j. 01.11.2005.

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Membro, e não da comarca interiorana.E se o ato de improbidade for praticado conjuntamente por dois agentes

públicos, um municipal e outro federal, vindo a lesar, concomitantemente, a Uniãoe o Município? Nesse caso, como há interesse da União, será competente a justiçafederal, por força do art. 109, I, da Constituição Federal40.

E se o local do dano não for sede da Justiça Federal?Marino Pazzaglini Filho, Marcio Fernando Elias Rosa e Waldo Fazzio Junior,

trazem o seguinte exemplo: “Se determinado ato de improbidade for praticado contrapatrimônio de empresa pública cujo capital foi integralizado pela União, serácompetente para processar e julgar a ação civil pública o juízo da comarca em sesituar a sede da empresa, independentemente de nela existir ou não vara da JustiçaFederal. Eventual recurso, porém será a ela endereçado ao TRF”.41

Permissa venia, entendemos que essa não é a melhor solução. Se o últimoexemplo supracitado cuidasse de dano à sociedade de economia mista, acompetência seria da Justiça Estadual, com recurso para o Tribunal de Justiça, nãopara o TRF.42

Contudo, como tratou de empresa pública da União, a competência haveráde ser da Justiça Federal, devendo a ação de improbidade ser intentada perante aSeção Judiciária Federal que tenha jurisdição sobre o local da sede daquela pessoajurídica43.

Segundo entendimento do Supremo Tribunal Federal: “É inadmissível aexclusão da competência da Justiça Federal para julgamento das ações civis públicasintentadas pela União ou contra ela (...), pois o afastamento da jurisdição federalsomente pode dar-se por meio de referência expressa à Justiça Estadual, como aque fez o constituinte na primeira parte do art. 109, § 3º, da Constituição Federal, emrelação às causas de natureza previdenciária”44

7.1 DA POLÊMICA (IN)COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHOA Emenda Constitucional nº 45 de 08.12.2004, deu nova redação ao art. 114

da Carta Política. Interessa-nos, no presente estudo, os incisos I e VI, in verbis:“Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar:I – as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de

direito público externo e da administração pública direta ou indireta da União, dos

40 Nesse exemplo, se a ação de improbidade for intentada pela União, incide a regra do art. 109, §1º, da ConstituiçãoFederal, pela qual a causa será aforada na seção judiciária onde tiver domicílio a outra parte, no caso o réu. Porém,se a ação for ajuizada pelo Ministério Público, prevalecerá o foro do local do dano, incidindo a regra do §2º do art.9º da Magna Carta, porque a ação terá no pólo passivo a União, por força do art. 17, §3º da Lei nº 8.429/92, quemanda aplicar o §3º, do art. 6º, da Lei da Ação Popular.41 PAZZAGLINI FILHO, Marino; ELIAS ROSA, Marcio Fernando; e FAZZIO JUNIOR, Waldo. Improbidadeadministrativa, Aspectos Jurídicos da Defesa do Patrimônio Público. Atlas. São Paulo, 1997. p. 201.42 Súmula 508 do STF: “Compete à Justiça Estadual, em ambas instâncias, processar e julgar as causas em que forparte o Banco do Brasil S/A”.43 Não se aplica, in casu, a regra do § 3º do art. 109 da Constituição Federal, porque ela se destina às demandasprevidenciárias.44 STF – RE 228.955-9 RS – Tribunal Pleno – j. 10.02.2000 – rel. Min. Ilmar Galvão – DJU 24.03.2000.

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Estados, do Distrito Federal e dos Municípios; (...)VI – as ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes

da relação de trabalho; (...)”Sabe-se que a relação de trabalho é gênero da espécie relação de emprego.

Na primeira, abarcam-se toda e qualquer prestação de serviços por pessoa física,inclusive sujeitos a regime estatutário.

Como se constata, a grande maioria, senão todos, os atos de improbidadederivam de relação de trabalho havida entre o agente público e a entidade lesada.Portanto, caso o intérprete considere a literalidade do texto, inevitavelmente teráde reconhecer a competência da Justiça do Trabalho para julgar as ações civis deimprobidade administrativa45.

Dissemos literalidade do texto constitucional porque, recentemente, oSupremo Tribunal Federal, na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3395,intentada pela Associação dos Juízes Federais-AJUFE, houve por bem restringir ainterpretação do inciso I, do art. 114, inserido pela Emenda nº 45/2004, entendendoque tal dispositivo diz respeito à relação de emprego e não à relação de trabalho.

Transcrevemos um extrato do voto do Relator Ministro Cezar Peluzo:

Não há que se entender que a justiça trabalhista, a partir do textopromulgado, possa analisar questões relativas aos servidores públicos.Essas demandas vinculadas a questões funcionais a eles pertinentes,regidos que são pela Lei 8.112/90 e pelo direito administrativo, são diversasdos contratos de trabalho regidos pela CLT. Leio Gilmar Mendes, há‘Oportunidade para interpretação conforme à Constituição (...) sempre quedeterminada disposição legal oferece diferentes possibilidades deinterpretação, sendo algumas delas incompatíveis com a própriaConstituição. Um importante argumento que confere validade àinterpretação conforme à Constituição é o princípio da unidade da ordemjurídica.’ (Jurisdição Constitucional, São Paulo, Saraiva, 1998, págs. 222/223). É o caso. A alegação é fortemente plausível. Há risco. Poderá, comoafirma a inicial, estabelecerem-se conflitos entre a Justiça Federal e a JustiçaTrabalhista, quanto à competência desta ou daquela. Em face dos princípiosda proporcionalidade e da razoabilidade e ausência de prejuízo, concedo aliminar, com efeito ex tunc. Dou interpretação conforme ao inciso I do art.14 da CF, na redação da EC 45/2004. Suspendo, ad referendum, toda equalquer interpretação dada ao inciso I do art. 114 da CF, na redação dadapela EC 45/2004, que inclua, na competência da Justiça do Trabalho, a‘apreciação de causas que sejam instauradas entre o Poder Público e seus

45 O Supremo Tribunal Federal já decidiu, em demanda de sociedade empresária contra prestador de serviços semvínculo celetista, que “Compete à Justiça do Trabalho o julgamento de ação de indenização, por danos materiaise morais, fundada em fato decorrente da relação de trabalho, nada importando que o dissídio venha a ser resolvidocom base nas normas de Direito Civil. (STF – 1ª Turma. RE 238.737-SP, rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJU05.02.1999, p. 47).

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servidores, a ele vinculados por típica relação estatutária ou de caráterjurídico-administrativo’46.

Sendo assim, como a ação de improbidade administrativa tem caráterjurídico-administrativo, quer seja em razão da natureza das sanções aplicáveis aoréu, quer seja pela reparação de dano ao erário, só nos resta concluir que ela nãopoderá ser apreciada pela Justiça do Trabalho, mas sim pela Justiça Comum Estadualou Federal47.

7.2 DA INEXISTÊNCIA DE FORO PRIVILEGIADO POR PRERROGATIVA DEFUNÇÃO

Como vimos no item relativo à natureza jurídica da ação de improbidade,por se tratar de ação de natureza civil, não se lhe aplicam as regras sobre prerrogativade foro do processo penal.

O Superior Tribunal de Justiça assim decidiu: “Conquanto caiba ao STJprocessar e julgar, nos crimes comuns e nos de responsabilidade, os membros dosTribunais Regionais do Trabalho (Constituição, art. 105, I, “a”), não lhe compete,porém, explicitamente, processá-los e julgá-los por atos de improbidadeadministrativa. Implicitamente sequer admite-se tal competência, porquanto, aqui,trata-se de ação civil, em virtude de investigação de natureza civil. Competência,portanto, de juiz de 1º grau”.48

Insatisfeito com o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, olegislador aprovou a Lei nº 10.628 de 24 de dezembro de 2002, a qual recebeuseveras críticas da opinião pública, que considerou a lei como um verdadeiropresente de natal à impunidade.

Essa lei alterou o art. 84 do Código de Processo Penal, acrescentando-lhedois parágrafos, in verbis:

Art. 84. A competência pela prerrogativa de função é do Supremo TribunalFederal, do Superior Tribunal de Justiça, dos Tribunais Regionais Federaise Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, relativamente àspessoas que devam responder perante eles por crimes comuns e deresponsabilidade.

46 Decisão liminar do Ministro Nelson Jobim, na publicada em 01/02/2005, referendada pelo Pleno do STF em05.04.2006, por maioria, na ADI nº 3395.47 Contudo, o Tribunal de Justiça do Paraná, já na vigência da supracitada liminar do STF, declinou da competênciapara o Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região, ao apreciar apelação em Mandado de Segurança tendo comoobjeto ato de presidente de autarquia municipal determinando abertura de processo administrativo disciplinarcontra empregado celetista por ato de improbidade. Vejamos a ementa desse Acórdão: “Em se tratando deprocedimento cabível para julgamento do recurso, têm imediata incidência as prescrições supervenientes da leinova. Este princípio rege também a questão da competência: se a lei nova, no caso a Emenda Constitucional nº 45,atribui a outro órgão o julgamento, o preceito abrange o recurso já interposto, mas ainda não julgado pelo órgãoque deixou de ser competente”. (TJPR - Ap. Cível nº 171.433-6. Rel. Des. Munir Karam. j. 16.08.2005).48 Decisão da Corte Especial, tomada por voto de desempate. RCL 591/SP - Rel. Min. Nilson Naves - DJ 15/05/2000. RSTJ 137/17.

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§1º A competência especial por prerrogativa de função, relativa a atosadministrativos do agente, prevalece ainda que o inquérito ou a açãojudicial sejam iniciados após a cessação do exercício da função pública.§2º A ação de improbidade administrativa, de que trata a Lei 8.429/92 seráproposta perante o tribunal competente para processar e julgarcriminalmente o funcionário ou autoridade na hipótese de prerrogativa deforo em razão do exercício de função pública, observado o disposto no§1º.

Dessa forma, o legislador infraconstitucional, sem negar a natureza civilda ação de improbidade administrativa, determinou que esta ação obedecesse àsregras de competência do processo penal.

No entanto, o Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidadeda mencionada Lei nº 10.628/2002, razão pela qual prevalece a competência do juizde primeiro grau, afastado o benefício do foro privilegiado49.

A declaração da inconstitucionalidade da Lei 10.628/2002 nos pareceacertada. Não cabe interpretação extensiva, nem analogia na fixação de competência.Principalmente porque é ela matéria constitucional50. Sendo assim, na ação civil deimprobidade administrativa, a decisão de um juiz de primeiro grau pode,perfeitamente, afastar da função, v.g., um Ministro de Estado.51.

Ademais, procede a ponderação de Waldo Fazzio Júnior: “Qual é oproblema de um Juiz de 1º grau julgar a ação civil impetrada contra qualquer executivomunicipal por atos de improbidade? Se condenado em primeira instância, o prefeitopoderá recorrer ao Tribunal de Justiça, cumprindo-se a garantia processual doduplo grau de jurisdição”.52

8. DA LEGITIMIDADEComo visto anteriormente, são co-legitimados para intentar a ação de

improbidade administrativa e a ação cautelar que lhe for acessória, o MinistérioPúblico e a pessoa jurídica interessada, consoante dispõe o caput do art. 17 da Leinº 8.429/92.

49 STF – ADI 2797-2, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, por maioria, j. 15.09.2005.50 Como já reconheceu o Pretório Excelso, “a competência originária do STF, por configurar matéria sujeita a regimede direito estrito, revela-se cabível, unicamente, nas hipóteses indicadas em ‘numerus clausus’, no art. 102, I, daCF. Nesse rol taxativo, não se inclui a previsão constitucional pertinente ao julgamento de ações civis públicas,ainda que ajuizadas contra o Presidente da República, Ministros de Estado e outras autoridades que, em sede penal,dispõem de prerrogativa de foro perante a Suprema Corte”. (STF – despacho do Min. Celso de Mello na Petição nº1.926-DF – Medida Liminar, DJU 02.03.2000 e inf. STF 181 de 13.03.2000, p.03).51 Consoante o parágrafo único do art. 20 da Lei 8.429/92 “A autoridade judicial ou administrativa competentepoderá determinar o afastamento do agente público do exercício do cargo, emprego ou função, sem prejuízo daremuneração, quando a medida se fizer necessária à instrução processual”. Sobre a competência do juiz de primeirograu: TJPR Ap. 106817-1 – 1ª Câm. – j. 06.08.2002 – rel. Des. Ulysses Lopes; TJSP Ag. In 170.098-5, 9ª Câm. deDireito Público, rel. Des. Gonzaga Franceschini; TJSP Ap. Cív 133461-5, 6ª Câm. de Direito Público, rel. Des.Christiano Kuntz. TJSP ac 4394, 6ª Câm. Cív., rel. Des. Noronha.52 FAZZIO JUNIOR, Waldo. Improbidade administrativa e crimes de prefeitos: de acordo com a Lei deResponsabilidade Fiscal. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2001 - p. 34.

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8.1. MINISTÉRIO PÚBLICOA legitimidade ativa do Ministério Público para defender o patrimônio

Público e a moralidade administrativa têm base constitucional, no art. 129, III, daCarta Política. Como atribuição, revela-se mais que uma faculdade, senão umverdadeiro dever. Ademais, tem o Parquet a seu favor o inquérito policial e oprocedimento administrativo, como valiosos instrumentos para coleta de provas,mormente em razão do poder de requisitar documentos que lhe é inerente53.

Deve também ficar claro que a representação da autoridade administrativanão é condição de procedibilidade para que o Ministério Público proponha a açãocautelar preparatória, nem para que intente a ação principal54.

Segundo a lição de Hugo Nigro Mazzilli, “O Ministério Público nãosucumbe, não paga custas, nem honorários. Na ação civil pública ou coletivaproposta pelo Ministério Público na defesa de interesses gerais da coletividade,quem arca com eventuais despesas, no caso de improcedência do pedido, será opróprio Estado”.55

É importante ressalvar que, havendo má-fé do Ministério Público, deveráele arcar com custas processuais e honorários de advogado.56

Ainda sobre a atuação do Parquet, dispõe o §4º, do art. 17 da Lei nº 8.429/92 que “O Ministério Público, se não intervier no processo como parte, atuará,obrigatoriamente, como fiscal da lei, sob pena de nulidade”. Nessa hipótese,pronunciou o Supremo Tribunal Federal que “O inconformismo contra decisãojudicial na via do recurso há de ser reservado pelo Órgão, atuando como fiscal dalei, a situações concretas em que surja, de início, ilegalidade”57.

53 Dispõe a Lei nº 8.625/93, Lei Orgânica Nacional do Ministério Público, em seu art. 26 que: “No exercício desuas funções, o Ministério Público poderá: I - instaurar inquéritos civis e outras medidas e procedimentosadministrativos pertinentes e, para instruí-los: a) expedir notificações para colher depoimento ou esclarecimentose, em caso de não comparecimento injustificado, requisitar condução coercitiva, inclusive pela Polícia Civil ouMilitar, ressalvadas as prerrogativas previstas em lei; b) requisitar informações, exames periciais e documentos deautoridades federais, estaduais e municipais, bem como dos órgãos e entidades da administração direta, indireta oufundacional, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios; c) promoverinspeções e diligências investigatórias junto às autoridades, órgãos e entidades a que se refere a alínea anterior;II - requisitar informações e documentos a entidades privadas, para instruir procedimentos ou processo em queoficie; (...)”54 PAZZAGLINI FILHO, Marino; ELIAS ROSA, Marcio Fernando; e FAZZIO JUNIOR, Waldo. Improbidadeadministrativa, Aspectos Jurídicos da Defesa do Patrimônio Público. Atlas. São Paulo, 1997. p. 186.55 MAZZILLI, Hugo Nigro. A Defesa dos interesses difusos em juízo. 7ªed. Saraiva. São Paulo, 1995. p. 490. Nomesmo sentido JTJ 159/189; JTJ 118/304; e RT 820/240.56 O Superior Tribunal de Justiça entendeu que “Na linha de precedentes da Corte, em ação civil pública não cabea imposição do ônus da sucumbência ao Ministério Público, salvo comprovada má-fé” (REsp 258128/MG, Rel.Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, 3ª T., julgado em 08.05.2001, DJ 18.06.2001 p. 150). No mesmo sentido:REsp 403599/PR, Rel. Ministra Eliana Calmon, 2ª T., julgado em 03.04.2003, DJ 12.05.2003 p. 274; AgRg noREsp 204951/SP, Rel. Ministro Gilson Dipp, 5ª T., julgado em 30.06.1999, DJ 16.08.1999 p. 101; REsp 183089/SP, Rel. Ministro Humberto Gomes de Barros, 1ª T., julgado em 20.05.1999, DJ 01.07.1999 p. 128.57 STF – RO em MS 24.293-4/DF – 1ª T. j. 04.10.2005 – v. u. – rel. Min. Marco Aurélio – DJU 28.10.2005. RT 845/170.

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8.2. PESSOA JURÍDICA INTERESSADANota-se que legislador tentou restringir o rol de co-legitimados58 com o

claro intuito de obstar a atuação das associações civis e outras entidades previstasno art. 5º da Lei da Ação Civil Pública, para assim dificultar o combate à improbidadeadministrativa.

Porém, não resta dúvida, conforme vimos, que de lege ferenda, todos osco-legitimados do art. 5º da Lei nº 7.347/85 podem intentar ação civil pública paradefender a moralidade e o patrimônio público, eis que são esses interesses difusos,nos termos do inciso IV, do art. 1º da mesma norma. Porém, por não constarem doart. 17 da Lei de Improbidade Administrativa, os demais entes coletivos estariamimpedidos de pleitear, v.g., a condenação do réu nas sanções nela previstas.

Parece-nos que a restrição à legitimidade se mostra contrária aomicrossistema das ações coletivas, cujo escopo maior é oportunizar o amplo debatedos interesses difusos e coletivos perante o Judiciário e, ainda, viabilizar a cidadania,o pluralismo e o direito de petição, consagrados como direitos fundamentais doEstado Democrático de Direito.

Nesse pormenor, são valiosas as lições de Hugo Filardi: “O conceito dedemocracia indissociável de processo como garantia fundamental dosjurisdicionados, vislumbrado por Piero Calamandrei e Nicolò Troker, deve seraplicado de forma irrestrita por todos os atuantes da relação processual, sob penade se incorrer em grave inconstitucionalidade. Os juízes, na sua inerente função degerenciadores processuais, guardam a obrigação de garantir que todos osjurisdicionados interessados tenham plena capacidade de exporem suas opiniõesjurídicas. Dentro deste conceito de livre acesso e contribuição das pessoas naentrega da tutela jurisdicional, o magistrado assume papel ativo, perseguindo assima efetividade de seus provimentos. O zelo pela eficiência da tutela judicial devepautar a atuação dos magistrados, que terão que conduzir os processos com sensohumanitário e buscando a igualdade entre os interessados no desfecho da demanda(...) Não podemos mais conceber que o processo ainda conserve resquícios deautoritarismo, já que estamos sob a égide do Estado Democrático de Direito e ademocracia participativa deve quebrar as amarras do conservadorismo no empregoda relação processual. Dado o dinamismo das atividades humanas, o processo temobrigatoriamente que acompanhar as relações de direito material, não mais sendotriangular e sim um conjunto de relações jurídicas complexas. Somente com umdiálogo humano e propenso à compreensão dos fatos postos em Juízo, atingiremoso ideal de processo justo, estando disponibilizados eficazmente todos osinstrumentos para que a tutela jurisdicional seja efetiva e se traduza em credibilidadejunto aos jurisdicionados”.59

58 Na opinião de Marino Pazzaglini Filho, Marcio Fernando Elias Rosa e Waldo Fazzio Junior, “A pessoa jurídicainteressada é, materialmente, a paciente imediata do ato de improbidade, e portanto interessada na reparação de seusefeitos (tem até legitimação para propor a ação)”. (In: Improbidade administrativa, Aspectos Jurídicos da Defesa doPatrimônio Público. Atlas. São Paulo, 1997. p.197).59 FILARDI, Hugo. Democracia e Processo. Breves Reflexões sobre a Influência do Estado Democrático de Direitona Prestação da Tutela Jurisdicional. p. 85 e 87. RT 836/83, junho de 2005.

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Vale repetir que, pela leitura do art. 17, caput, da Lei nº 8.429/92, a ação“será proposta pelo Ministério Público ou pela pessoa jurídica interessada”.

Com efeito, a pessoa jurídica interessada não se resume à pessoa jurídicaprejudicada. Note-se que quando a lei quer se referir à pessoa jurídica prejudicada,ela o faz expressamente, como no art. 18, in verbis:

Art. 18. A sentença que julgar procedente ação civil de reparação de danoou decretar a perda dos bens havidos ilicitamente determinará o pagamentoou a reversão dos bens, conforme o caso, em favor da pessoa jurídicaprejudicada pelo ilícito.

É possível que uma pessoa jurídica tenha um interesse, sem que tenhasido diretamente lesada pelo ato de improbidade. E como a improbidadeadministrativa traduz um interesse metaindividual, difuso por excelência, não hácomo afastar o interesse de todos as pessoas jurídicas previstas no art. 5º da Lei nº7.347/85.

Nesse contexto, guiamo-nos pela pertinente visão de Hugo Filardi:

Através da tutela coletiva, os magistrados puderam ampliar o alcance deefetividade das normas jurídicas de acordo com os ditames da democraciaprocessual, muito embora tal iniciativa seja ainda incipiente, pois estesainda muito arraigados a formalismos desnecessários e relações jurídicasestáticas, não inserem estas ‘grandes demandas’ no seio do debate popular.É chegada a hora de transmudar a engessada concepção de relaçãoprocessual para uma visão cada vez mais caleidoscópica das demandasposta em Juízo. Por estar constitucionalmente assegurado, o direito deação deve ser facilitado, sob pena de contribuirmos para que as normas dedireito material estejam em um plano inalcançável para os jurisdicionados,permitindo que ilegalidades seja perpetradas e que o Poder Judiciário sejavisto como um órgão distante dos conflitos humanos. O direito de açãodeve ser humanizado para contemplar os anseios da população. O realdestinatário da tutela jurisdicional deve ser tratado com respeito e justiça,tornando o processo um método igualitário de debate e aplicação concretada vontade legal.60

Com a mesma acuidade, Carlos Roberto Siqueira Castro nos ensina que:“O concurso da sociedade civil é condição primária para concretização das regrase princípios da Constituição. Sem a aderência da cidadania ativa e das instituiçõesemanadas pelo corpo social em torno do ideário constitucionalista, frustram-se porinteiro as iniciativas, tanto públicas quanto privadas, de fazer valer a vontade da

60 FILARDI, Hugo. Op. Cit. p. 87.

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Constituição. Em suma, sem a força do povo, a Carta Política democrática, que hojepreside o sistema normativo brasileiro, ficará relegada ao plano estéril das intençõesretóricas e sem aptidão para exercer o papel civilizatório e transformador dacomunidade nacional”.61

Considerando todos esses fundamentos, ousamos defender que alegitimidade ativa da ação civil de improbidade administrativa contemplou, sim, asseguintes pessoas jurídicas: União, Estados, Distrito Federal, Municípios,autarquias, empresas públicas, fundações, sociedades de economia mista ou, ainda,por associações civis62 que incluam dentre suas finalidades institucionais a proteçãoda probidade administrativa, ainda que essas pessoas jurídicas não tenham sidodiretamente prejudicadas pelo ato de improbidade.63

Essa extensiva legitimação encontra respaldo também em já mencionadoprecedete do Superior Tribunal de Justiça, vale repetir: “A Lei de ImprobidadeAdministrativa, juntamente com a Lei da Ação Civil Pública, da Ação Popular, doMandado de Segurança Coletivo, do Código de Defesa do Consumidor e do Estatutoda Criança e do Adolescente e do Idoso, compõem um microssistema de tutela dosinteresses transindividuais e sob esse enfoque interdisciplinar, interpenetram-se esubsidiam-se. (...)Torna-se, pois, indiscutível a adequação dos pedidos de aplicaçãodas sanções previstas para ato de improbidade à ação civil pública, que se constituinada mais do que uma mera denominação de ações coletivas, às quais por igualtendem à defesa de interesses meta-individuais. Assim, não se pode negar que aAção Civil Pública se trata da via processual adequada para a proteção dopatrimônio público, dos princípios constitucionais da administração pública epara a repressão de atos de improbidade administrativa, ou simplesmente atos

61 CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. A Constituição Aberta e os Direitos Fundamentais. Forense. Rio de Janeiro,2003. p. 356.62 Constituídas há pelo menos 01 (um) ano. Sendo que o requisito da pré-constituição poderá ser dispensado pelojuiz, quando haja manifesto interesse social evidenciado pela dimensão ou característica do dano, ou pela relevânciado bem jurídico a ser protegido (art. 5º, inciso I e §4º da Lei 7.347).63 Encontramos o seguinte precedente no Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão: “A Associação dos PequenosProdutores Rurais do Povoado de Jatobá/MA ajuizou Ação Civil Pública por Ato de Improbidade Administrativacontra o prefeito, o assessor e tesoureiro, tesoureira adjunta, presidente da comissão de licitação e contadordo Município de Buritirana/MA. O Juiz da Comarca de Amarante/MA, onde inicialmente tramitou a referidaação, extinguiu o processo, sem exame de mérito, entendendo ilegítima a parte autora para propositura daquelademanda. O Tribunal de Justiça do Maranhão deu provimento à apelação interposta pela Associação dosProdutores Rurais, anulando a sentença recorrida e determinando que os autos retornassem à comarca deorigem para regular prosseguimento do feito. Os autos baixaram ao Cartório para regular processamento,ocasião em que o Juiz da causa, à luz da Lei nº 10.628/02, que estabeleceu foro por prerrogativa de função nasações de improbidade administrativa, declarou a incompetência absoluta daquele Juízo e determinou a remessados autos ao Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão, onde o Processo foi autuado sob o número 0052862003.O Ministério Público argüiu, então, a incompetência daquele Tribunal e, incidentalmente, ainconstitucionalidade da Lei nº 10628/02 (fls.429/434, apenso III). Em sessão pública realizada em 27/10/2004, o Tribunal de Justiça do Maranhão, por maioria, rejeitou o incidente de inconstitucionalidade e, nomérito, por unanimidade, recebeu a inicial e deferiu a liminar pleiteada para decretar o afastamento provisóriodo Prefeito Municipal de Buritirana Antônio Lopes de Sousa e dos demais demandados, e ainda quebra dosigilos bancários e fiscais dos mesmos e a indisponibilidade de seus bens (fls. 574/575, apenso III).”. (Extraídodo relatório da Suspensão de Liminar e de Sentença, em trâmite no Superior Tribunal de Justiça, autos nº 44 - MA2004/0163849-8, Rel. Min. Edson Vidigal, DJ 23.11.2004).

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lesivos, ilegais ou imorais, conforme expressa previsão do art. 12 da Lei 8.429/92(de acordo com o art. 37, § 4º, da Constituição Federal e art. 3º da Lei n.º 7.347/85)”.64

Adotamos, portanto, a posição de Hugo Filardi: “Pugnamos por umaavaliação ampla das condições da ação e dos pressupostos processuais, a fim dedar solidez ao irrestrito acesso ao judiciário. Neste sentido, e em especial, no queconcerne à legitimação, protestamos por sua desformalização facilitando a tutelacoletiva. (...) Afinal, democracia representativa e participativa não se excluem, aocontrário são interdependentes na construção do Estado Democrático de Direito”.65

Para evitar abusos e máculas à imagem do agente público acusado deimprobidade administrativa, sugerimos que o juiz, ao receber a inicial, determine,por cautela, o segredo de justiça, mandando notificar pessoalmente o réu, nostermos do § 6º, do art. 17. Decorrido o prazo de quinze (15) dias para defesa prévia,se o juiz receber a inicial e der seguimento à ação, insubsistente fica o sigiloprocessual, seguindo-se a citação com regular publicidade do nome das partes.Contudo, se o juiz extinguir o processo sem julgamento do mérito, sugerimos queseja mantido o segredo de justiça.

8.3. PESSOA JURÍDICA PREJUDICADACaso a ação seja proposta por outro co-legitimado que não a pessoa jurídica

prejudicada, esta deverá ser citada para integrar a lide na qualidade, inicialmentena qualidade de ré, sendo que posteriormente poderá, caso assim deseje, atuarcomo assistente litisconsorcial do autor. É o que dispõe o §3º do art. 17 da Lei8.429/92, que manda aplicar o comando do art. 6º, §3º, da Lei 4.717/65, Lei da AçãoPopular66.

Segundo Luiz Manoel Gomes Júnior, justifica-se “a existência delitisconsórcio necessário passivo, nos casos de demandas impugnando atosímprobos”67. Esclarece o ilustre professor que o litisconsórcio será passivo pelomenos inicialmente, pois é admitida à pessoa jurídica prejudicada a retratação quantoao seu interesse na sentença, podendo a mesma passar do pólo passivo para opólo ativo.

64 STJ – RESP 510150 – MA – 1ª Turma – Rel. Min. Luiz Fux – DJU 29.03.2004 – p. 00173.65 FILARDI, Hugo. Democracia e Processo. Breves Reflexões sobre a Influência do Estado Democrático de Direitona Prestação da Tutela Jurisdicional. p. 88 e 89. RT 836/83.66 A 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça assim julgou: “filio-me à corrente que defende a tese daretratabilidade da posição da pessoa jurídica na ação popular, quando esta, tendo atuado no feito no pólopassivo, se convence da ilegalidade e lesividade do ato de seu preposto, lembrando, inclusive, que o ente podepromover a execução da sentença condenatória”. (STJ – AgRg no REsp. nº 439.854/MS. Rel. Min. Eliana Calmon.DJ 18.08.2003. p. 194). No mesmo sentido, julgou o Tribunal de Justiça de São Paulo, invocando os ensinamentosdo Juiz e Professor Alexander dos Santos, segundo o qual “a pessoa jurídica, mesmo que já tenha contestado aação popular, pode validamente mudar do pólo passivo para o pólo ativo da relação processual, se assim ditaro interesse público, a juízo do respectivo representante legal ou dirigente” (TJSP – Ag. Instrumento nº 444.245.5/4-00, da Comarca de Barretos, Rel. Des. Borelli Thomaz. 05.04.2006.67 GOMES JÚNIOR, Luiz Manoel. Curso de Direito Processual Civil Coletivo. Forense. Rio de Janeiro, 2005. p.142.

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Ainda especificamente quanto à pessoa jurídica prejudicada, estabelece oart. 17, §2º, da Lei de Improbidade que ela “promoverá, quando for o caso as açõesnecessárias à complementação do ressarcimento do patrimônio público”. Isto é,sendo a ação julgada procedente, poderá executar a sentença, que como veremosadiante, não sofre, via de regra, efeito suspensivo em caso de apelação. Pode,também, a pessoa jurídica prejudicada intentar outra ação de improbidadeadministrativa, com pedido de complementação de verbas indenizatórias, hipóteseem que haverá conexão com a ação de improbidade anteriormente ajuizada, nostermos dos arts. 103 e 105 do Código de Processo Civil68.

9. É POSSÍVEL CUMULAR A AÇÃO DE IMPROBIDADE COM AÇÃOPOPULAR?

Segundo a súmula 365 do Supremo Tribunal Federal, “Pessoa Jurídica nãotem legitimidade para propor ação popular”. E como o cidadão carece de legitimidadepara propor a ação de improbidade administrativa não é cabível a cumulação dessasações.

Vale ressalvar que, na hipótese de autores distintos intentarem ação populare ação de improbidade administrativa em razão do mesmo fato (causa de pedir), épossível que ambas ações sejam reunidas para julgamento simultâneo, por conexão,segundo a regra do art. 105 do Código de Processo Civil.

Curioso notar, entretanto, que tramita no Congresso Nacional o Projeto deLei nº 6.997/2006, de autoria da Comissão de Legislação Participativa, para alterar oart. 17, caput, da Lei nº 8.429/92, inserindo o cidadão como novo co-legitimado.Caso seja aprovada a aludida proposta, será possível a cumulação de ação popularcom a ação civil de improbidade administrativa.

10. DOS EFEITOS DA APELAÇÃOOutra questão interessante refere-se ao efeito suspensivo da apelação

contra sentença que julga a ação de improbidade tem efeito suspensivo.Como a ação segue o rito ordinário, se poderia pensar que, via de regra, a

apelação tem efeito suspensivo independentemente de haver requerimento doapelante nesse sentido, por força do artigo 520 do Código de Processo Civil.

Contudo, por se tratar de modalidade de ação coletiva, não parece ser essaa conclusão mais abalizada e adequada àquele microssistema.

A questão é esclarecida por Marino Pazzaglini Filho, Márcio FernandoElias Rosa e Waldo Fazzio Júnior, para os quais a apelação não tem efeito suspensivo,contudo ele pode ser atribuído pelo juiz para evitar dano irreparável à parte, nostermos do art. 14 da Lei nº 7.347/85. “Assim dispondo o legislador ampliou a tutelado interesse protegido”69.

68 “Art. 103. Reputam-se conexas duas ou mais ações, quando lhes for comum o objeto ou a causa de pedir”. “Art.105. Havendo conexão ou continência, o juiz de ofício ou a requerimento de qualquer das partes, pode ordenar areunião de ações propostas em separado, a fim de que sejam decididas simultaneamente”.69 PAZZAGLINI FILHO, Marino; ELIAS ROSA, Marcio Fernando; e FAZZIO JUNIOR, Waldo. Improbidadeadministrativa, Aspectos Jurídicos da Defesa do Patrimônio Público. Atlas. São Paulo, 1997. p. 206.

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Na lição de Cândido Rangel Dinamarco “espera-se que os juízes,conscientes dos grandes poderes de que são investidos, empreguem-nosefetivamente e, sem imprudências, mas também sem timidez, valham-se deles parao cumprimento de sua missão de oferecer tutela jurisdicional efetiva a quem tiver odireito a um fazer alheio ou a uma abstenção”.70

Haveria, portanto, retrocesso ao combate à improbidade se a sentençanão pudesse ser executada provisoriamente, tendo que aguardar o trânsito emjulgado da ação, ou pelo menos, a decisão de segundo grau, para só então concretizarseu dispositivo.

Assim, entendemos que o juiz pode antecipar a tutela na própria sentença,valendo-se do disposto no art. 273, II, do Código de Processo Civil, que autorizamedidas contra o abuso do direito de defesa, para evitar a suspensividade daapelação desprovida de substrato lógico, que poderia ser utilizada como medidameramente procrastinatória da execução.

Bastante pertinente é o seguinte entendimento da Terceira Câmara de DireitoPrivado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo: “(...) quanto maior for aeficácia da execução em termos de satisfatividade das relações obrigacionaispendentes, mais enfraquecido fica o movimento pela impunidade ouirresponsabilidade e que fez surgir a síndrome da obrigação não cumprida. (...) Otempo de percurso de uma apelação, em situação convencional, asfixia o usuárioda jurisdição, especialmente para aquele que tem a razão sonorizada por umasentença bem fundamentada (...) Quando este tempo alimenta-se por um recursotipicamente abusivo, a nocividade da espera revolta. O art. 521 do CPC deve serinterpretado com rigor em situações convencionais ou no exercício regular dasprerrogativas processuais e não quando o uso do direito de defesa ou uma certaexcepcionalidade escancaram a necessidade de uma providência sensata. (...) Nadaobsta que o Juízo de Primeiro Grau examine a concorrência do fumus boni iuris e dopericulum in mora e, de pronto, salve o instrumento da letargia danosa”71.

Na hipótese de não ser recebida a apelação no efeito suspensivo, a partevencedora poderá executar provisoriamente a sentença. Tal regra é prevista no art.475-O, do CPC, que autoriza a execução provisória por conta e risco do exeqüente,que se obriga, se a decisão for reformada, a reparar os danos que o executado tenhasofrido.

Contudo, cumpre observar que os atos de levantamento de dinheiro ealienação judicial de bens, na execução provisória, ficam condicionados à prestaçãode caução a ser prestada pelo exeqüente em valor arbitrado pelo juiz, de modo agarantir a reversibilidade dos danos sofridos pelo executado caso ele consigaprover seu recurso no juízo ad quem.

70 DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do Processo Civil Moderno. Vol II. São Paulo: Revista dosTribunais, 2000. p. 1.162.71 TJSP – 3ª Câmara de Direito Privado. Agravo de Instrumento nº 194.421-4/8. Rel. Des. Enio Santarelli Zuliani.J. 24.04.2001.

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Ressalte-se que, conforme autoriza o art. 475-O, § 2º, do CPC, a cauçãopode ser dispensada quando o crédito tem natureza alimentar ou é decorrente deato ilícito, no qual se incluiu a responsabilização por ato de improbidadeadministrativa, se o valor executado não ultrapassar a 60 (sessenta) vezes o saláriomínimo (inciso I). A outra hipótese de dispensa de caução dar-se-á quando houverpendência de julgamento de recurso de Agravo de Instrumento junto ao SupremoTribunal Federal ou ao Superior Tribunal de Justiça (art. 544), salvo quando dadispensa possa manifestamente resultar risco de grave dano, de difícil ou incertareparação (inciso II).

Por óbvio, caso o Tribunal reformule ou anule a sentença, a execuçãoprovisória eventualmente em curso ficará sem efeito, sendo as partes restituídas àscondições anteriores à decisão.

11. DA PRESCRIÇÃOQuanto à prescrição, o art. 23 da Lei nº 8.429/92 assim dispõe: “As ações

destinadas a levar a efeito as sanções previstas nesta lei podem ser propostas: I –até cinco anos após o término do exercício de mandato, de cargo em comissão oude função de confiança; II – dentro do prazo prescricional previsto em lei específicapara faltas disciplinares puníveis com demissão a bem do serviço público, noscasos de exercício de cargo efetivo ou emprego”.

Percebe-se que a prescrição prevista no mencionado artigo diz respeitoapenas às sanções, sendo certo que “o ressarcimento integral do dano não temnatureza de sanção, mas sim de indenização completa”72.

Nos termos do art. 37, §5º, da Carta Política, é imprescritível a ação deimprobidade administrativa no que tange ao pedido de reparação dos danoscausados à administração pública73. Isto porque a Constituição ressalvaexpressamente as ações de ressarcimento de danos, quando autoriza que a lei tratede prazos prescricionais para os ilícitos, praticados por agente, servidor ou não,que causem prejuízos ao erário.

A lei não estabeleceu o prazo decadencial para responsabilizar a pessoaque concorreu ou induziu o agente público à prática do ato de improbidadeadministrativa74. Justamente porque a ação de improbidade administrativa que viseà indenização pelas perdas e danos sofridos pelo Patrimônio Público jamais seriamfulminadas pela prescrição.

12. DA VEDAÇÃO À TRANSAÇÃODispõe o § 1º do art. 17, in verbis: “É vedada a transação, acordo ou

conciliação nas ações de que trata o caput”.

72 PAZZAGLINI FILHO, Marino; ELIAS ROSA, Marcio Fernando; e FAZZIO JUNIOR, Waldo. Improbidadeadministrativa, Aspectos Jurídicos da Defesa do Patrimônio Público. São Paulo: Atlas, 1997. p.151.73 No mesmo sentido: STJ – REsp. 700.970/RS, Rel. Min. Castro Meira, 2ª T., DJ 20.02.2006 p. 295.74 É a figura do terceiro equiparado a agente público pelo art. 3º da Lei nº 8.429/92.

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Na opinião de Luiz Manoel Gomes Junior, embora seja razoável oentendimento de que caberia acordo quanto à forma de ressarcir, ou seja, oacolhimento de um pedido de parcelamento, “a intenção do legislador bem como aprópria finalidade da norma proibitiva é bem clara: vedada qualquer espécie deacordo quando a hipótese sub judice estiver abarcada pela Lei de ImprobidadeAdministrativa”.75

Inaplicável, a priori, a regra do art. 269, inciso III, do Código de ProcessoCivil, nessa modalidade de ação civil coletiva, segundo a qual o processo seráextinto com julgamento de mérito quando as partes transigirem.

Porém, ressalvamos que, embora não seja possível uma transaçãoconcernente às sanções, é valido o ajuste inter partes quanto ao modo de restituiçãodo patrimônio público. Não seria razoável impedir, por exemplo, que o réu parcelasseem três (03) prestações mensais o montante devido ou que ele promovesse umadação de imóvel em pagamento do débito. Seria invocar demasiado formalismo, oqual inviabilizaria uma rápida solução da lide e até mesmo prejudicaria o interessepúblico que é recompor quanto antes o patrimônio desviado. Assim, frise-se, senão resultar em novo prejuízo ao erário, a vedação à transação deixa seu caráterabsoluto se respaldada na razoabilidade.

13. CONCLUSÃOComo visto, a Lei 8.429/92, chamada Lei de Improbidade Administrativa,

introduziu mudanças profundas no direito pátrio. As modificações ocorreram noordenamento jurídico material e processual, excluindo-se sistemáticasultrapassadas que somente favoreciam a impunidade do administrador ímprobo.Com efeito, a mencionada lei atualizou instrumentos antigos e implantou outrosnovos, em razão de uma necessidade premente de se tutelar o interessemetaindividual por excelência, qual seja a proteção do patrimônio e da moralidadepública, já que a corrupção prejudica diretamente toda a população, pois o desviode verbas públicas está intimamente ligado ao índice de desenvolvimento humano.Contudo, fez-se aqui um esforço no sentido de repensar alguns conceitos trazidospelo legislador, dando-lhes uma interpretação à luz do Microssistema das AçõesColetivas, para assim conferir maior efetividade e razoabilidade aos provimentosjurisdicionais atinentes ao tema. Longe de pretender examinar exaustivamente osproblemas trazidos, o objetivo precípuo desse breve estudo foi estimular o debateacadêmico, arejando discussões travadas no plano nacional, para o fortalecimentoda cidadania.

75 GOMES JÚNIOR, Luiz Manoel. Curso de Direito Processual Civil Coletivo. Forense. Rio de Janeiro, 2005.p.164.

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DISSERTAÇÕES DEFENDIDAS

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PRODUÇÃO CIENTÍFICA:DISSERTAÇÕES 2008

(Julho/Dezembro)

AREA DE CONCENTRAÇÃOTEORIAS DA JUSTIÇA: JUSTIÇA E EXCLUSÃO

LINHAS DE PESQUISAFUNÇÃO POLÍTICA DO DIREITO

ESTADO E RESPONSABILIDADE: QUESTÕES CRÍTICAS

Os princípios da tutela com ênfase para a efetividade do acesso à justiçaLinha de Pesquisa: Função Política do DireitoDanieli Cristina MarconData: 19/09/2008Banca:Dr. Clayton Maranhão - OrientadorDr. Gilberto GiacoiaDra. Eliana Franco Neme

O poder do judiciário na efetivação do direito fundamental à educaçãoLinha de Pesquisa: Função Política do DireitoFabiana Polican CienaData: 19/09/2008Banca:Dr. Miguel Kfouri Neto - OrientadorDr. Mauricio Gonçalves SalibaDra. Eliana Franco Neme

O desenvolvimento sustentável como direito fundamental no ordenamento jurídicoLinha de Pesquisa: Função Política do DireitoMarcos Ângelo GrimoneData: 19/09/2008Banca:Dr. Reinéro Antônio Lérias - OrientadorDr. Paulo Henrique de Souza FreitasDra. Eliana Franco Neme

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Inclusão social de pessoa com deficiência no mercado de trabalhoLinha de Pesquisa: Função Política do DireitoAlexandre França CoelhoData: 11/10/2008Banca:Dr. Valter Foleto Santin - OrientadorDr. Gelson Amaro de SouzaDr. Jairo José Gênova

Proteção internacional dos direitos humanos na realidade América Latina: reflexãofilosófica sob a perspectiva da ética da libertaçãoLinha de Pesquisa: Função Política do DireitoMércia Miranda VasconcellosData: 17/10/2008Banca:Dr. Celso Luiz Ludwig - OrientadorDr. Gilberto GiacoiaDr. Antonio Carlos Wolkmer

O direito penal do inimigo sob a ótica do devido processo penalLinha de Pesquisa: Função Política do DireitoVinicius Gonçalves RodriguesData: 31/10/2008Banca:Dr. Vladimir Brega Filho - OrientadorDr. Hildegard Taggesell GiostriDr. Zulmar Fachin

A responsabilidade do Estado no direito à saúdeLinha de Pesquisa: Estado e Responsabilidade: Questões CríticasFabiano Maranhão Rodrigues GomesData: 31/10/2008Banca:Dr. Clayton Maranhão - OrientadorDr. Gelson Amaro de SouzaDr. Francisco Emilio Baleotti

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As ações afirmativas e o princípio da igualdade na Constituição Federal Brasileirade 1988Linha de Pesquisa: Função Política do DireitoJosé Roald ContrucciData: 31/10/2008Banca:Dr. Hildegard Taggesell Giostri - OrientadoraDr. Vladimir Brega FilhoDr. Zulmar Fachin

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O Conselho Editorial recomenda que os trabalhos que lhe foremencaminhados sejam preferencialmente inéditos ou apresentados em eventoscientíficos, como seminários, congressos, encontros, simpósios. Preferencialmenteserão publicados artigos, resenhas de obras recentes (publicadas nos dois últimosanos), e resumos de dissertações e teses. Os autores cedem os direitos autoraisdos artigos publicados para o Programa de Mestrado da Faculdade Estadual deDireito do Norte Pioneiro.

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Observar as normas da ABNT (NBR-6023).

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