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1 RETRATOS EM ALBUMINA: GIO BATTA SERAFINI, FRANCESCO MUSCANI, UMBERTO ZANELLA ANTHONY BEUX TESSARI Mestre em História Sul PUCRS Funcionário do IMHC da UCS [email protected] Apontamentos metodológicos Em seu estudo sobre álbuns de fotografias de famílias de imigrantes europeus chegados em São Paulo entre as décadas de 1890 e 1930, a historiadora Miriam Moreira Leite (2001) sugere que a pesquisa com imagens fotográficas deve vir acompanhada da contextualização do ambiente histórico daqueles que estão retratados nas imagens e também dos seus produtores. Leite (2001) afirma que é importante ter e deixar explícitos os recursos técnicos disponíveis ao fotógrafo (produtor) durante a execução do registro. Para a autora, essa é uma etapa indispensável, anterior à análise e interpretação das imagens, principalmente para “dar conta dos diferentes níveis de sentido das fotografias” (Leite, 2001, p. 16), que incluem aspectos formais e de conteúdo. O não conhecimento dos recursos técnicos disponíveis ao fotógrafo, na época de sua atuação, pode resultar em “vieses deformadores na leitura da imagem” ( LEITE, 2001, p. 38). Para Kossoy (2001), a mesma premissa de Leite é válida. O autor considera importante atentar que o registro fotográfico é determinado tanto pelo olhar carregado de intenções estéticas e ideológicas como pela tecnologia que o fotógrafo tem a sua disposição. É a tecnologia, ou melhor, a capacidade de explorá-la, que medeia o olhar do profissional e o assunto que ele enquadra para fixar no negativo. Kossoy (2001) também acredita que a bagagem cultural, a sensibilidade e a criatividade do fotógrafo imprimem papel decisivo no resultado final, a prova revelada. Por esse motivo, a propósito, em outra de suas pesquisas (KOSSOY, 2002) o autor se dedicou a situar a produção dos principais fotógrafos e estúdios fotográficos existentes no Brasil, desde o ano de 1833 até a primeira década do século XX, garimpando indícios que pudessem auxiliar a si e a outros pesquisadores de fontes visuais em busca do contexto dessa produção fotográfica no país.

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RETRATOS EM ALBUMINA: GIO BATTA SERAFINI, FRANCESCO

MUSCANI, UMBERTO ZANELLA

ANTHONY BEUX TESSARI Mestre em História Sul PUCRS

Funcionário do IMHC da UCS

[email protected]

Apontamentos metodológicos

Em seu estudo sobre álbuns de fotografias de famílias de imigrantes europeus

chegados em São Paulo entre as décadas de 1890 e 1930, a historiadora Miriam Moreira

Leite (2001) sugere que a pesquisa com imagens fotográficas deve vir acompanhada da

contextualização do ambiente histórico daqueles que estão retratados nas imagens e

também dos seus produtores. Leite (2001) afirma que é importante ter e deixar

explícitos os recursos técnicos disponíveis ao fotógrafo (produtor) durante a execução

do registro. Para a autora, essa é uma etapa indispensável, anterior à análise e

interpretação das imagens, principalmente para “dar conta dos diferentes níveis de

sentido das fotografias” (Leite, 2001, p. 16), que incluem aspectos formais e de

conteúdo. O não conhecimento dos recursos técnicos disponíveis ao fotógrafo, na época

de sua atuação, pode resultar em “vieses deformadores na leitura da imagem” (LEITE,

2001, p. 38).

Para Kossoy (2001), a mesma premissa de Leite é válida. O autor considera

importante atentar que o registro fotográfico é determinado tanto pelo olhar carregado

de intenções estéticas e ideológicas como pela tecnologia que o fotógrafo tem a sua

disposição. É a tecnologia, ou melhor, a capacidade de explorá-la, que medeia o olhar

do profissional e o assunto que ele enquadra para fixar no negativo. Kossoy (2001)

também acredita que a bagagem cultural, a sensibilidade e a criatividade do fotógrafo

imprimem papel decisivo no resultado final, a prova revelada. Por esse motivo, a

propósito, em outra de suas pesquisas (KOSSOY, 2002) o autor se dedicou a situar a

produção dos principais fotógrafos e estúdios fotográficos existentes no Brasil, desde o

ano de 1833 até a primeira década do século XX, garimpando indícios que pudessem

auxiliar a si e a outros pesquisadores de fontes visuais em busca do contexto dessa

produção fotográfica no país.

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Além de considerar o estágio tecnológico alcançado e a bagagem cultural do

fotógrafo como importantes para a determinação do seu olhar (o que pode ser resumido

em uma palavra: memória), André Rouillè (2009) chama também a atenção para o que

conceitua de “regimes de visibilidade”. Para o autor, os “regimes de visibilidade” regem

os modos de ver particulares de uma sociedade que produz e consome imagens visuais.

Principalmente no caso do fotógrafo, tais regimes exercem influência cabal no seu

modo de enxergar e agir na cena, dominando-lhe todos os sentidos, principalmente a

visão. Nas palavras de Rouillè (2009, p. 255, grifo meu):

Longe de ser infinitamente aberto, o olhar está restrito e guiado pelos

interesses presentes do fotógrafo, e pela amplitude de sua vida passada –

cultural, social, psíquica, intelectual, profissional, histórica, etc. Vida essa

que se sedimentou automatismos e proibições, recorrências e lacunas, e cuja

configuração é, ela mesma, dependente das maneiras de ver de uma época, de

seus regimes de visibilidade. Ora, esses regimes, que comandam os olhos do

fotógrafo, afetam também seu corpo inteiro e inspiram-lhe posições,

distâncias das coisas, posturas e uma dinâmica. A memória define um campo

de possíveis, nos limites do qual ela orienta aquilo que o fotógrafo vê, e como

ele o vê.

A noção de “regimes de visibilidade”, trazida de Rouillè (2009), aproxima-se

das ideias discutidas por Ulpiano de Meneses em dois importantes artigos para a

pesquisa na área que este autor define como “História Visual” (MENESES, 2003,

MENESES, 2005).

Para Meneses (2005), quando o interesse do historiador passa a ser a

visualidade, é preciso que o pesquisador identifique “as condições técnicas, sociais e

culturais de produção, circulação, consumo e ação dos recursos e produtos visuais”.

Trata-se, pois, de definir o “ambiente visual” (ou a “iconosfera”) de uma sociedade ou

de um grupo social: são as imagens disponíveis (especialmente as imagens de

referência, ou “imagens-guia”, emblemáticas para o grupo), os recursos técnicos

capazes de produzir essas imagens (como a fotografia, entendida como técnica), e,

finalmente, os sistemas de comunicação visual ou instituições visuais que fazem

circular essas imagens para o consumo (que podem ser a administração pública, uma

empresa, um jornal, uma revista, o comércio, o próprio estabelecimento do fotógrafo

etc.) (MENESES, 2005, p. 34). Em outro texto, Meneses (2003, p. 26) afirma que

definir esse ambiente visual é essencial para interpretar e compreender fontes históricas

como as fotografias, para que possam ser utilizadas pelo historiador em busca de “um

entendimento maior da sociedade, na sua transformação”.

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Desse modo, acompanhando essas quatro indicações metodológicas, propõe-se

mapear uma parte significativa da produção fotográfica no município de Caxias do Sul,

RS, na passagem do século XIX para o XX. Nesta oportunidade, é apresentada a

atuação de três ateliês fotográficos que estiveram estabelecidos na área urbana do

município, todos caracterizados pelo mesmo tipo de suporte que utilizavam: provas em

papel albuminado, para a produção de vistas e retratos. São eles os ateliês dos fotógrafos

Giovanni Battista Serafini, Francesco Muscani e Umberto Zanella. Com isso, pretende-

se estabelecer linhas gerais do “circuito social da fotografia” no município, seguindo os

exemplos de três trabalhos: o de Fabris (1998), de Lima (1998) e de Possamai (2006). O

“circuito social da fotografia” refere-se, segundo a síntese de uma das autoras, a

“caracterização da produção, circulação e consumo de imagens fotográficas em um

determinado ambiente visual” (LIMA, 1998, p. 59).

O estudo ora apresentado integra pesquisa desenvolvida em dissertação de

Mestrado em História (TESSARI, 2013).

Albuminas – as primeiras imagens visuais

Os primeiros registros visuais – e também históricos (!) – do município de

Caxias do Sul são fotografias. Nem bem uma década de existência enquanto colônia

oficial, no período imperial brasileiro, uma série de sessenta e sete vistas fotográficas

foram produzidas para registrar a instalação dos primeiros imigrantes europeus

chegados à região. Essas imagens foram coligidas em um álbum, intitulado “Álbum

Recordação das Colônias Conde D’Eu, D. Isabel, Alfredo Chaves, Antonio Prado e

Caxias”, cinco das principais colônias oficiais criadas pelo governo brasileiro para

receber os imigrantes italianos no Rio Grande do Sul – colônias estas hoje

correspondentes, respectivamente, aos municípios de Garibaldi, Bento Gonçalves,

Veranópolis, Antônio Prado e Caxias do Sul.

Levando-se em consideração a construção de algumas edificações presentes nos

registros fotográficos do álbum, este foi produzido entre as décadas de 1880 e 1900. As

imagens constantes em seu interior retratam os bens naturais (a paisagem, árvores

araucárias e cachoeiras), o trabalho (abertura de estradas), a moradia (casarões de

madeira, inclusive o possível antigo barracão dos imigrantes), o comércio (farmácia e

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casas de negócio) e algumas celebrações religiosas das colônias (com fiéis que

aparecem em frente a uma igreja). Todas as fotografias desse álbum, sessenta e sete ao

todo, foram impressas em papel albuminado1, resultando em imagens com um tom

amarelado, possivelmente à época de produção com bom contraste e densidade –

atualmente, devido a degradação dos suportes, muitas imagens perderam definição.

Não se sabe a autoria exata para todos os registros constantes no “Álbum

Recordação das Colônias...”. Segundo o que se pôde observar a partir de cópias

existentes em acervos pessoais, e pelo período de atuação deste profissional na região,

algumas fotos do suporte foram produzidas pelo fotógrafo Giovanni Battista Serafini.

Giovanni Battista Serafini

Giovanni Battista Serafini nasceu em Treviso, no Vêneto, Itália, em 1869. Aos

23 anos (1892), instalou seu ateliê fotográfico na então Vila de Santa Teresa de Caxias

(nome primitivo de Caxias do Sul), na Rua Sinimbu, entre as Ruas Vila Bela (atual Rua

Dr. Montaury) e Visconde de Pelotas, bem próximo à praça Dante Alighieri, marco zero

da vila (SERAFINI, 1982).

O ateliê de Giovanni Battista Serafini permaneceu ativo na cidade até pelo

menos o ano de 1912, como é possível constatar a partir de uma fotografia produzida

por outro fotógrafo quase em frente ao seu estabelecimento (Foto 1). O ateliê ficava

anexo a uma casa comercial, a Loja Serafini, que era controlada pelo irmão de

Giovanni, também seu sócio. Conforme Luiz Chiaradia Serafini (1982), sobrinho de

Giovanni Battista, o estabelecimento do fotógrafo, junto à loja especializada em secos e

molhados do irmão, ficava aberto aos domingos, para aproveitar a vinda dos colonos

para a sede da vila. Após participarem da missa na igreja matriz e da feira na praça

Dante Alighieri, alguns visitavam os amistosos irmãos Serafini para provar la minéstra

(uma sopa, servida ao meio-dia) e, depois, para posar para um retrato.

1 Tipo de suporte fotográfico surgido entre as décadas de 1840 e 1850, inventado pelo francês Louis

Désiré Blanquard-Evrard (1802-1872). Tratava-se de um papel coberto com clara de ovo (albume) e

sensibilizado em uma solução de nitrato de prata. Os sais de prata permaneciam flutuantes na camada de

albume, não tendo contato com as fibras do papel – o resultado eram imagens com mais contraste e

definição de linhas. A impressão nesse papel se dava por contato direto com o negativo, em exposição ao

sol. Mesmo após surgirem outros tipos de papel fotográfico (como o papel de platina), o papel

albuminado continuou a ser utilizado até por volta da década de 1930, devido seu preço ser mais em

conta.

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Foto1 – MANCUSO, Domingos. Vista da Rua Sinimbu. À esquerda, Loja Serafini e ateliê de

“Photographia” de Giovanni Battista. 1912.

Fonte: Fototeca – AHMJSA, Caxias do Sul. Negativo de gelatina e prata em vidro, 13x18cm.

O apelido do fotógrafo era Gio Batta, conforme consta no verso de algumas de

suas fotografias. Por meio de outras, o estúdio também era conhecido por “Photographia

Americana”. Como lembra o sobrinho do fotógrafo (SERAFINI, 1982), que chegou a

auxiliá-lo desde cedo a carregar os materiais de fotografia, o ateliê de Gio Batta era “um

ambiente formidável”: a construção possuía “telhado de vidro” (claraboia) para um

melhor aproveitamento da luz natural, e o cenário era adornado com folhagens vivas e

dois painéis, um neutro (branco), e outro com uma grande paisagem, que teria sido

pintada pelo próprio fotógrafo. O mesmo sobrinho também recorda que Serafini

praticava a técnica do retoque diretamente nas chapas de vidro e produzia fotopinturas,

servindo-se de tinta óleo.

Em um informe comercial publicado através do jornal O Caxiense, de 15 de

janeiro de 1898, o estúdio do fotógrafo anunciava (Figura 1):

Figura 1 – Photographia – anúncio dos irmãos Serafini. 1898.

Fonte: O Caxiense (jornal). 15 jan. 1898. Acervo: Hemeroteca – AHMJSA, Caxias do Sul.

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Além de retratos tirados por todos os “systemas modernos”, confeccionados nos

formatos carte-de-visite e carte-cabinet2, Giovanni Battista Serafini também produziu

algumas vistas fotográficas. É de autoria deste fotógrafo uma preciosa imagem da

travessia de imigrantes sobre o rio Caí, datada da década de 1890 (Foto 2).

Foto 2 – SERAFINI, Giovanni Battista. Travessia do rio Caí. Ca. 1892.

Fonte: Fototeca – AHMJSA, Caxias do Sul. Prova albuminada em papel, 28x37cm.

O rio Caí era utilizado como rota fluvial pelos imigrantes que se dirigiam às

colônias Caxias, Conde D’Eu, Dona Isabel e Alfredo Chaves. Na bem equilibrada

composição da foto feita por Gio Batta, percebe-se uma balsa utilizada para a travessia

de cavalos, figuras humanas em um pequeno barco e, já em terra, uma tropa de gado

vacum que puxa carretas e carroças que seguem caminho adentrando uma estrada

cercada pela mata fechada. A partir daí, tinha início uma marcha em direção a Serra,

que chegava durar até três dias, devido à precariedade das estradas. Essa longa jornada,

pela qual provavelmente deve ter passado o fotógrafo ao chegar como imigrante à

região, foi escolhida para ser eternizada por Gio Batta nessa rica imagem visual.

Como se depreende dos suportes fotográficos das imagens de Gio Batta, o

fotógrafo utilizava a técnica da albumina e possuía uma câmera de médio formato. Os

materiais fotográficos eram comprados em Porto Alegre, trazidos em uma viagem de

vapor até São Sebastião do Caí e, depois, no lombo de mulas até a então vila de Caxias

(SERAFINI, 1982).

2 O carte-cabinet é um formato fotográfico que apresentava uma imagem com tamanho de 9,5x14cm

colada em um cartão um pouco maior, 11x16,5cm. Era utilizado principalmente para fotografia de retrato.

Sobre o formato carte-de-visite, será apresentado na sequência do texto.

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Giovanni Battista Serafini faleceu em 1954, na capital Porto Alegre, município

no qual fixou residência após encerrar as atividades de seu estabelecimento fotográfico

em Caxias do Sul.

Francesco Muscani

Afora o “Álbum Recordação das Colônias...”, outros registros visuais que

contam a história mais primitiva da fotografia em Caxias do Sul são os cartes-de-visite

trazidos pelos primeiros imigrantes e também aqueles produzidos na própria região da

Serra gaúcha.

O formato carte-de-visite consiste em uma imagem de tamanho 6x9cm aderida à

superfície de um cartão rígido um pouco maior. Logo após o seu surgimento, na França,

em meados da década de 1850, o carte-de-visite se tornou uma verdadeira “febre do

mundo moderno”, tendo se espalhado por diversos lugares do mundo (AMAR, 2001).

Conforme Corbin (2001, p. 425), em 1862, no estúdio do seu criador, o

fotógrafo André-Adolphe-Eugène Disdéri, uma média de 2,4 mil cartes-de-visite eram

vendidos por dia, atestando o seu sucesso enquanto produto destinado a perenizar a

existência em forma de imagem de maneira relativamente barata. Devido ao tamanho

diminuto do formato (que ocupava de ¼ até ⅛ das chapas fotográficas), o preço da

fotografia teve uma diminuição considerável em comparação com outros suportes e

formatos até então comercializados, contribuindo para o acesso das classes médias ao

retrato fotográfico de estúdio. A existência de alguns desses formatos fotográficos entre

as famílias de imigrantes no Brasil serve, inclusive, de reforço à afirmação de que

alguns dos estrangeiros não eram miseráveis ao terem emigrado da Europa, como se

costumou generalizar: embora o seu preço fosse módico, um retrato fotográfico em

carte-de-visite não era um bem de consumo de primeira necessidade; assim, possuir

alguns significava poder dar-se a um luxo.

O formato carte-de-visite foi comercializado pelo fotógrafo Francesco Muscani.

Muscani foi também um dos primeiros fotógrafos da região de colonização italiana no

Rio Grande do Sul. Como consta nos registros de impostos da Intendência Municipal

referentes ao exercício de 1892-1893, seu estúdio estava localizado na rua Grande (atual

Av. Júlio de Castilhos). Anos mais tarde, entre 1894-1899, transferiu-se para a rua

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Lafayette (depois rua Pinheiro Machado) (LIVRO, 1893, LIVRO, 1899). No seu ateliê,

o fotógrafo produzia retratos, sem deixar de registrar vistas gerais da vila que crescia

com a chegada de novos colonos.

Ao menos uma das imagens de Muscani chegou a ter circulação na capital da

província, Porto Alegre. Como consta no “Catalogo da Exposição Estadual do Rio

Grande do Sul em 1901” (CATALOGO, [1901], p. 368), o pavilhão do município de

Caxias na feira estava expondo “1 quadro com a photographia geral da villa de

Caxias”, obra do fotógrafo “Francesco Moscani [sic]”. Na mesma ocasião, a

Intendência Municipal expunha “3 quadros com as photographias das aulas e diversas

vistas de Caxias” (CATALOGO, [1901], p. 368), sem autoria reconhecida.

Através de dois retratos produzidos por Francesco Muscani é possível ter uma

ideia das escolhas estéticas que o profissional estava condicionado a fazer de acordo

com as limitações técnicas e tecnológicas do período de sua atuação, quando a baixa

sensibilidade do material fotográfico obrigava ao fotógrafo fazer tomadas com longa

exposição. Em uma prova albuminada que retrata a família Arpini (Foto 3), de

imigrantes italianos, percebem-se três integrantes sentados em cadeiras e um bebê no

colo do pai, que lhe prende os pequenos braços – provavelmente inquietos diante da

situação. Outros quatro membros da família estão escorados em uma parede, que

também serve de fundo neutro à cena.

Foto 3 – MUSCANI, Francesco. Retrato da família Arpini. Déc. 1890.

Fonte: Fototeca – AHMJSA, Caxias do Sul. Prova albuminada em papel, 13x18cm.

Já em outro retrato, um carte-de-visite do casal Domingos e Amélia (Foto 4),

uma mesa de centro serve de amparo à mulher enquanto o homem domina a oscilação

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natural do seu corpo com o auxílio de um guarda-chuva (talvez cenográfico, então

muito comum em ateliês fotográficos).

Foto 4 – MUSCANI, Francesco. Retrato do casal Domingos e Amélia. Déc. 1890.

Fonte: Fototeca – AHMJSA, Caxias do Sul. Prova albuminada em papel, 6x9,5cm.

À pose hirta e ao semblante austero de todos os retratados de ambas as

fotografias soma-se, ainda, a posição do fotógrafo, que, afastado, capta todos de corpo

inteiro, exprimindo o distanciamento e o respeito que se exige de não-membros da

família em uma ocasião tão solene como a de uma fotografia (geralmente a única

encomendada em décadas).

Esse tipo de relação entre fotógrafo e retratados, visto nesses dois retratos de

Muscani, parecem ser comuns especialmente entre moradores de zonas rurais,

integrando, portanto, um “regime de visibilidade” característico da época e também

desses grupos sociais. Pois Bourdieu (2003) identificou em fotografias de camponeses

de uma região interiorana do sudoeste da França esse mesmo tipo de padrão estético de

distanciamento. O autor afirma que esse padrão está relacionado a um “sistema

simbólico”, o qual “define para el hombre del campo las conductas, las normas y las

formas convenientes en la relación con otros” (BOURDIEU, 2003, p. 142).

Não foi possível determinar a data de encerramento das atividades do fotógrafo

Francesco Muscani em Caxias do Sul, muito menos a data de seu falecimento.

Umberto Zanella

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Um terceiro fotógrafo, pertencente ao grupo daqueles que iniciaram no ofício no

município de Caxias do Sul, foi Umberto Zanella. Natural de Roma (Itália), Zanella

nasceu no ano de 1878. O contato com a técnica da fotografia se deu ainda no país

peninsular, quando jovem, local onde também adquiriu um diploma de químico.

(CAPERGIANI, 1984).

Ao emigrar para o Brasil, o jovem fotógrafo passou por várias cidades antes de

se estabelecer em Caxias. Em dezembro de 1904, comunicava à Intendência Municipal

deste município que, a partir de 1º de janeiro do ano seguinte, abriria um estúdio de

“Photographia, na Rua Julio de Castilhos, número 63”.

Nessa época, o valor coletado de imposto das “casas de tirar retratos por

qualquer systema, provisórias ou permanentes” era de 25$000 para aquelas

estabelecidas nos limites da vila (RELATÓRIO, 1906, p. 24). Já no exercício seguinte,

1906-1907, o valor foi aumentado para 30$000 (RELATÓRIO, 1907, p. 18), indício de

que as casas desse gênero estavam surgindo e crescendo economicamente no município.

O estúdio de Zanella permaneceu ativo na cidade até pelo menos o ano de 1922,

data de uma fotografia produzida pelo fotógrafo durante uma manifestação política de

moradores locais em frente ao Centro Republicano Caxiense (Foto 5).

Foto 5 – ZANELLA, Umberto. Manifestação em frente ao Centro Republicano Caxiense. 1922.

Fonte: Fototeca – AHMJSA, Caxias do Sul. Prova em papel, 18x24cm.

A partir dessa fotografia da manifestação, constata-se um avanço tecnológico

importante. O tempo de exposição necessário para a tomada da foto já não era tão

moroso quanto ao enfrentado pelos antecessores Giovanni Battista Serafini e Francesco

Muscani, possibilitando ao fotógrafo, agora, congelar o tremor de duas bandeiras

11

fixadas no balcão do casarão que abrigava a sede política dos republicanos locais.

Certamente, esse era um avanço tecnológico proporcionado pela comercialização de

novos materiais com maior sensibilidade à luz.

Por volta do mesmo ano dessa foto, Zanella mudou-se para a cidade de Flores da

Cunha, onde deu continuidade à atividade de fotógrafo e, inclusive, tornou-se dono de

um cinema (CAPERGIANI, 1984).

Segundo uma das filhas do fotógrafo (CAPERGIANI, 1984), Umberto Zanella

era o responsável pelos preparados químicos para sensibilizar as chapas fotográficas e

também revelá-las em seu estúdio, devido os conhecimentos aprendidos quando jovem

na Itália. As câmeras que utilizava eram estrangeiras, provenientes da Alemanha, local

de onde também partiam outros materiais e instrumentos utilizados para a produção das

fotos.

Apesar de estar estabelecido na vila, Zanella também atuava como fotógrafo

itinerante, atendendo às famílias dos colonos que raramente interrompiam o trabalho em

suas propriedades para deslocar-se até a sede. Já aqueles que visitavam o estúdio,

tinham sempre à disposição dois tipos de cenário: um neutro e outro com uma pintura

de paisagem (CAPERGIANI, 1984).

Entre os clientes de Zanella, esteve o industrialista Abramo Eberle, que

encomendou com o fotógrafo os primeiros registros visuais do seu estabelecimento

fabril, posando juntamente com os empregados da sua Ourivesaria e Funilaria Central.

Nesses retratos, produzidos em albumina, nota-se o uso do retoque, tendo sido o

sobrado onde funcionava a oficina de trabalho destacado do restante da cena (Foto 6).

Foto 6 – ZANELLA, Umberto. Fotografia dos operários da Fábrica Eberle, quando foram iniciados os

trabalhos em metalurgia. Vê-se, ao centro, Abramo Eberle. 1906.

Fonte: Fototeca – AHMJSA, Caxias do Sul. Prova em papel albuminado, 13x18cm.

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Equilíbrio e organização marcam a expressividade dessa imagem, indício do

primor técnico buscado pelo fotógrafo.3

O trabalho de retoque das chapas fotográficas recebia o auxílio da esposa de

Zanella, a Sra. Maria Rosa Scrinsani. O auxílio da esposa no estúdio devia-se ao fato de

que Umberto Zanella dividia a atividade de fotógrafo com a de padeiro, ofício que

herdou do pai, Vitório (CAPERGIANI, 1984).

O fotógrafo Umberto Zanella faleceu em 1957, então residente no município de

São Leopoldo.

Considerações finais – produção, circulação, consumo

O mapeamento, mesmo que em linhas gerais, desses três ateliês fotográficos de

Caxias do Sul, na passagem do século XIX para o XX, nos possibilita fazer algumas

observações acerca da produção, circulação e consumo da fotografia no município

naquele momento histórico.

Em primeiro lugar, a busca em conhecer a tecnologia disponível aos fotógrafos

locais constitui-se em um procedimento metodológico importante para a pesquisa

histórica, capaz de auxiliar na análise de imagens visuais produzidas por esses três

estabelecimentos – o que foi realizado em pesquisa de Mestrado (TESSARI, 2013).

Melhor dizendo, conhecer o estágio técnico em que se encontravam a partir da

tecnologia da qual dispunham pode bem servir à compreensão de muitas das escolhas

estéticas dos profissionais.

Também é de se destacar, com relação a produção, a importação de produtos e

materiais fotográficos de outros países que alguns dos fotógrafos realizavam. Ainda que

nos faltem provas concretas, é certo que também importavam – ou trouxeram consigo –

revistas, livros ou manuais de fotografia do seu país de origem, o que significa a

importação de modelos de outros regimes visuais – fica aqui sem resposta se os mesmos

foram simplesmente copiados ou então reinventados.

Quanto à circulação, retoma-se a experiência do fotógrafo Francesco Muscani

sublinhando sua participação em um evento estadual. Embora não se saiba com exatidão

3 Mais informações sobre a Foto 6 podem ser obtidas em TESSARI, 2013, p. 153-154.

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quais foram as imagens que o fotógrafo – e o(s) outro(s) autor(es) das demais fotos

expostas no pavilhão de Caxias – exibiu durante a Exposição Estadual de 1901, tem-se,

ao menos, um indício do desejo de mostrar a área urbana do município e a instrução

pública, dois símbolos de modernidade para os locais. Além disso, tem-se, aqui, um

exemplo do que no início deste texto foi referido acerca das instituições responsáveis

por promover a circulação das imagens em um ambiente visual: nesse caso, a

administração pública e o próprio estúdio do fotógrafo estiveram encarregados em

mostrar a imagem moderna e civilizada de Caxias aos olhares de todo o Estado.

Com relação ao consumo, pudemos observar que os estabelecimentos estavam

localizados na região central da vila – a partir de 1910, elevada à categoria de cidade –,

beneficiando-se da clientela mais potencial para consumir seus serviços: a burguesia

comercial e industrial, então em gênese. Além disso, a região central era também aquela

que concentrava outras lojas comerciais, visitadas não apenas pela população citadina,

mas também por aquela oriunda da zona rural, que vinha à sede, por exemplo, para

participar de celebrações religiosas.

Para terminar, é também interessante observar a prática da itinerância por esses

três fotógrafos, mais tarde abandonada pelos profissionais que os sucederam (sobretudo,

a partir da década de 1940). A itinerância indica a existência, naquele momento, de

consumidores interessados pelo produto moderno que era a fotografia.

Referências bibliográficas

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KOSSOY, Boris. Dicionário histórico-fotográfico brasileiro: fotógrafos e ofício da

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LIVRO de Lançamento de Contribuintes dos Impostos de Industria e Profissões, Caxias

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Dissertação (Mestrado em História) – FFCH, PUCRS.