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RETRATOS DE BENFEITORES DO ASILO DE ORFÃS SÃO BENEDITO EM
PELOTAS - RS (1901 – 1951): REFLEXÕES SOBRE A IMAGEM E HISTÓRIA
Josué Eicholz
Mestrando em História – PPGH – UFPel
E-mail: [email protected]
RESUMO: O presente trabalho aborda aspectos relacionados a retratos encomendados em homenagem a
alguns associados benfeitores da instituição Asilo de Órfãs São Benedito, localizado na cidade de Pelotas.
O recorte temporal para este trabalho contempla a primeira metade do século XX, ressaltando as
características imagéticas de tais pinturas e suas possíveis motivações. Ainda, pretende-se identificar
quem eram estes personagens e como atuavam na trama social da cidade e se eram pertencentes a algum
grupo considerado como elite local ou regional.
PALAVRAS - CHAVES: Pelotas; caridade; elite; retratos.
Este trabalho propõe-se a analisar alguns aspectos relacionados a retratos de
benfeitores do Asilo de Órfãs São Benedito, localizado na cidade de Pelotas, para que
tal escopo possa ser atingido, optou-se por analisar alguns retratos de indivíduos que
foram homenageados pela instituição, estes retratos adornam as paredes do salão de
honra do atual Instituto São Benedito. A partir de tais imagens, buscará se traçar o perfil
dos sujeitos que nas pinturas são retratados, além de saber quem eram e como atuavam
no cenário social pelotense das primeiras décadas do século XX.
O presente trabalho será dividido em três capítulos, sendo que no primeiro o
objetivo é dissertar sobre a cidade de Pelotas no contexto do Pós-Abolição, tendo em
vista o recorte temporal (as primeiras décadas do século XX, observando que a
instituição analisada é fundada em 1901) e o recorte espacial (Asilo de Órfãs São
Benedito, localizado em Pelotas), atentando para as desigualdades sociais e econômicas
entre a população branca e negra. No segundo capítulo o escopo é abordar a instituição
Asilo São Benedito, contemplando sua trajetória, seus idealizadores, seus objetivos. Por
último, o objetivo é deter-se na análise imagética dos retratos de alguns sócios
benfeitores, pois conforme Meneses: “Vivemos a imagem em nosso cotidiano, em
várias dimensões, usos e funções” (MENESES, 2003, p.29). Num segundo momento irá
se discutir acerca de quem eram esses sócios que foram homenageados com um retrato,
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tornando-se assim “imortais” no salão de honra do estabelecimento sob a forma de uma
imagem e porque estes foram agraciados com tal honraria.
A CIDADE DE PELOTAS NO CONTEXTO PÓS-ABOLIÇÃO
Falar sobre a cidade de Pelotas ao final do século XIX e durante as primeiras
décadas do século XX é essencial para compreender em qual situação econômica e
social se encontravam as pessoas negras residentes na cidade, além do mais é
importante para situar o leitor no que tange a necessidade de criação de um local que
abrigasse meninas órfãs.
A Pelotas da segunda metade do século XIX é conhecida e reconhecida pela
produção do charque, pelas charqueadas, pela pecuária e pela riqueza advinda dessas
atividades. O que não se pode é ocultar ou amenizar o fato de que esta riqueza conferida
aos grandes charqueadores foi a custas de muito suor e muito sofrimento dos escravos
negros, então, pode se afirmar que Pelotas fez sua fortuna através da mão de obra
escrava. Ou seja, nas terras da “Princesa do Sul” muito sangue dos cativos negros foi
derramado para que alguns membros da sociedade entrassem na elite local e regional e
ganhassem status e títulos de nobres como “barão”.
A respeito do nocivo trabalho empregado nas charqueadas em Pelotas, Gutierrez
comenta:
A população servil, junto com os seus senhores, habitava os terrenos
ribeirinhos e circulava pelo arroio Pelotas, pelo canal São Gonçalo e pela
laguna dos Patos, transportando a carne salgada. O espaço da produção
charqueadora pelotense foi um dos locais de consolidação do sistema
escravista do Rio Grande do Sul, ao mesmo tempo em que foi um lugar onde
se verificou a exploração violenta do trabalho cativo. O espaço fabril foi
descrito como um ambiente mórbido, insalubre, que chegava a alcançar o
macabro. Os vapores emanados das águas e detritos parados dissipavam
pelos ares os cheiros nauseabundos dos sangues putrefatos, dos excrementos
apodrecidos, das vísceras decompostas pelo forte calor do sol, nos dias de
safra. E as nuvens de fumaças, que saíam das fornalhas, exalavam o cheiro
das gorduras fervidas e dos ossos carbonizados. Os urros dos animais
abatidos e esfolados vivos e o som do ritmo do trabalho imposto pelos
feitores nos escravos terminavam por compor o tétrico meio ambiente da
produção charqueadora pelotense. (2001, p.222).
Nas instituições de caridade e filantropia de Pelotas, desde meados do século
XIX a elite do charque também era ativa. Havia certa hierarquia entre os associados, e
ter um retrato seu exposto no salão de honra dos estabelecimentos de caridade era um
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privilégio para poucos, pois estava condicionado a grandes atos generosos do indivíduo
para com as instituições. Ao falar da elite charqueadora de Pelotas, Jonas Vargas
contribui com as seguintes palavras: “E aqui está um traço marcante entre as elites da
época. Elas possuíam a capacidade de reconhecerem suas equivalentes em outras
sociedades, compreenderem os signos de distinção e as hierarquias de poder que as
cercavam”. (VARGAS, 2013, p.420).
A questão dos retratos a óleo começou a ser difundida em Pelotas nas últimas
décadas do século XIX, o hábito de contratar pintores europeus para retratar parentes e a
si mesmo se tornou recorrente entre os membros da elite pelotense e alguns desses
pintores ganharam fama na “Princesa do Sul” e também na vizinha cidade do Rio
Grande. Sobre a prática do retrato, verifica-se o seguinte anúncio num periódico local:
“O retrato é hoje uma necessidade por todos reconhecida. O filho não pode negar-se a
fazer retratar os seus pais, porque nada pode trazer-lhe a memória uma recordação mais
agradável do que a imagem daqueles a quem deve amor e gratidão”. (JORNAL DO
COMÉRCIO, 14/01/1875 apud VARGAS, 2013, p.430-431).
Vargas, ao analisar os charqueadores mais ricos de Pelotas, constatou que
algumas famílias como os Antunes Maciel, os Moreira, os Tavares, os Cunha e os
Simões Lopes atuavam também na promoção das artes e da educação em Pelotas.
Veremos no último capítulo desse trabalho, que Augusto Simões Lopes, filho do
Visconde da Graça, continuou com essa tradição da família, atuando na promoção da
educação e da caridade em Pelotas. Sobre essa prática dos charqueadores do século
XIX, Vargas disserta o seguinte:
Portanto, ocupando posições distintas nos espaços filantrópicos,
educacionais, artísticos e [...] políticos, esta elite da elite reforçava a sua
dominação social sobre os demais legitimando-se, por meio de uma relação
extremamente complexa, como os mais aptos a governarem a sua sociedade e
a representá-la em outros espaços de poder. (2013, p.435).
A Pelotas da segunda metade do século XIX era uma cidade de contrastes1 e
após a abolição da escravatura estes contrastes persistem, apesar do término da
1 Sobre o contraste que existia em Pelotas na década pré-abolição da escravatura, entre a elite do
charque e os escravos, ver Gutierrez (2010).
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escravidão no país. Para este trabalho optou-se por trabalhar com o período do pós-
abolição, sobre o qual, as contribuições de Loner são importantes:
A população afrodescendente de Pelotas foi trazida à região para trabalhar,
sob o regime da escravidão. Posteriormente à Abolição eles se radicaram
aqui, trabalhando em todo o tipo de serviço [...]. Em 1890, formavam cerca
de um terço da população urbana de Pelotas e sua grande concentração na
cidade tornou-os um dos principais grupos de trabalhadores do município.
Durante a maior parte do século XX, os negros sofreram muito com a
segregação e o preconceito racial, que terminaram condicionando suas
chances de ascensão social e de busca de emprego na cidade. (LONER, 2010,
p.182).
Outra observação necessária, diz respeito às diferenças de oportunidades de
acesso ao trabalho na cidade de Pelotas entre os afrodescendentes e os imigrantes que
aqui decidiam fixar residência, sobre essa questão, Beatriz Loner escreve:
Era muito mais fácil, naquele momento de um capitalismo ainda incipiente,
um artesão branco ascender socialmente do que um negro. Um branco, se
imigrante, poderia ser beneficiado pela proteção de seus patrícios, com sorte
poderia fazer um bom casamento, ou poderia associar-se a outro com
dinheiro e abrir seu próprio negócio. A maior parte destas opções estava
vedada aos negros, independente de sua cultura ou inteligência (LONER,
1999, p. 240).
A cidade de Pelotas no final do século XIX e início do XX passava por vários
problemas de urbanização, emprego, inclusão social, moradia, saúde, educação, entre
outros, sendo a comunidade negra a mais atingida. O resultado era o aumento de
crianças negras abandonadas ou em situação de vulnerabilidade social. Quando, em
1901 surge em Pelotas uma instituição com a finalidade de abrigar e proteger a infância
desvalida, aceitando meninas negras.
HISTÓRICO DO ASILO DE ÓRFÃS SÃO BENEDITO
“A Caridade, rainha das virtudes, é sempre bela e comovedora:
mas reveste-se de particular encanto quando a contemplamos
ao lado de orfanzinhas, enxugando lhes as lágrimas, e ainda
mais, quando estas criancinhas pertencem à última camada
social” D. João Francisco Braga – Bispo do Paraná.
Antes de dissertar sobre o Asilo de Órfãs São Benedito, é importante situar o
leitor acerca da situação em que se encontrava a infância desvalida em Pelotas, sobre
essa questão Caldeira contribui dizendo o seguinte: “A primeira alternativa criada em
Pelotas para acolhimento da infância desvalida foi a implementação da Roda de
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Expostos no dia 1º de julho de 1849, na Santa Casa Misericórdia que amparava crianças
recém-nascidas”. (CALDEIRA, 2014, p.96). E seis anos após a criação da roda de
expostos é inaugurado o Asilo de Órfãs Nossa Senhora da Conceição.
No ano de 1901, é criado em Pelotas, o Asilo de Órfãs São Benedito, tendo
como escopo “amparar da miséria as meninas desvalidas deste Estado, sem distinção de
cor, órfãs ou não” (ESTATUTOS, 1902, p.1), além de dar “ás asiladas instrução e
educação, primária, moral e religiosa, cuidando, principalmente, de torná-las aptas nos
misteres próprios de boa mãe de família” (ESTATUTOS, 1902, p.2). Nos anais do
cinquentenário do Asilo de Órfãs São Benedito (1901-1951) encontra-se a referencia a
Luciana Lealdina de Araújo, como sendo a principal idealizadora do referido Asilo em
Pelotas, ressalta-se que Luciana era negra, e por ser negra e mulher no começo do
século XX, provavelmente vivenciou inúmeros preconceitos, porém isto não a impediu
de realizar uma obra de caridade, que conforme consta nos anais do cinquentenário foi
uma consagração a Deus, pois anteriormente a mesma estava gravemente doente, abaixo
a transcrição de uma parte dos anais do cinquentenário:
A formação desta obra de assistência social é muito expressiva. A mãe preta
– Luciana Lealdina de Araújo – gravemente enferma, suplicou, e Deus
concedeu-lhe a graça de viver, por mais alguns anos, para consagrá-los, como
fez à criação de um estabelecimento, onde fossem recolhidas órfãs e meninas
desvalidas, sem distinção de cor. Iniciou a sua cruzada, em Pelotas, com a
fundação deste Asilo [...] De imediato, Pelotas, confirmando a tradição de
filantropia de seus habitantes acolheu carinhosamente, a iniciativa da preta
Luciana. Em memorável reunião pública, a 6 de fevereiro de 1901, dava-se a
fundação do Asilo, e a 13 de maio do referido ano, a sua instalação, por entre
aplausos do povo pelotense. (ANAIS DO CINQUENTENÁRIO 1901-1951:
ASILO DE ÓRFÃS SÃO BENEDITO, p.05).
Jeane Caldeira, que em sua dissertação pesquisou sobre o Asilo São Benedito,
nos fornece mais informações sobre Luciana de Araújo:
A iniciativa de fundar um asilo para meninas sem distinção de cor partiu de
Luciana Lealdina de Araújo. “Mãe Preta”, como era conhecida
carinhosamente, filha de escrava, nasceu em Porto Alegre no dia 13 de junho
de 1870 e mudou-se para Pelotas no ano de 1900. Era uma mulher dotada de
bondade e extrema determinação, com vontade de praticar o bem e fazer
caridade junto aos mais necessitados, principalmente às crianças
abandonadas [...] vítima da tuberculose quando jovem, Luciana ficou muito
doente e foi desenganada pelos médicos. Pela gravidade da situação em que
se encontrava, ela fez uma promessa ao santo de devoção, o São Benedito:
caso ficasse curada ajudaria a construir uma casa para abrigar meninas
pobres. (2014, p.113-114).
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A instituição Asilo de Órfãs São Benedito, possuía quatro modalidades de
sócios: contribuintes, protetores, benfeitores e beneméritos. Essas modalidades
possuíam como fronteiras a questão financeira, ou seja, conforme o valor da doação o
sócio se enquadrava em uma das modalidades.
O Asilo teve sua primeira sede no endereço nº 7 da antiga Praça da Matriz, atual
José Bonifácio, após passou a ocupar o prédio localizado na Praça Júlio de Castilhos,
esquina da antiga Rua General Vitorino, hoje Padre Anchieta, após sua sede social foi
transferida para o prédio da esquina, à Rua Felix da Cunha com a Praça José Bonifácio,
local em que a instituição encontra-se até hoje, sob a denominação de Instituto São
Benedito.
Inicialmente, a responsabilidade pelo cuidar das crianças estava a cargo de
Luciana Lealdina de Araújo e de suas amigas, como Maria Bárbara de Cerqueira. No
ano de 1912 as irmãs do Imaculado Coração de Maria assumem a direção interna do
Asilo, conforme a notícia contida na Revista Pelotas Memória:
A diretoria deliberou entregar a direção interna os encargos dos serviços
assistenciais da Obra a Congregação de Puríssimo, hoje Imaculado Coração
de Maria, atendendo ao pedido de exoneração da Sra. Arminda Machado de
Oliveira por motivos de enfermidade. A posse das Irmãs deu-se no dia 25 de
setembro de 1912. (MAGALHÃES, 1997, p.03).
Ao longo dos 50 anos iniciais de atividade do Asilo de Órfãs São Benedito, 10
presidentes estiveram à frente da instituição, dois deles possuem retratos no salão de
honra (José Veríssimo Alves e Firmo da Silva Braga). Abaixo, tabela com a relação dos
Presidentes do Asilo São Benedito e o respectivo período em que estiveram à frente da
diretoria.
Tabela 1: Relação dos primeiros presidentes do Asilo de Órfãs São Benedito.
Presidente Período
José da Silva Santos 1901-1903
Carlos Antônio Palma 1904-1910
José Maria de Carvalho e Silva 1911
José Veríssimo Alves 1912-1913
Firmo da Silva Braga 1914
Francisco Carlos de Araújo Brusque 1915-1916
Luiz Mello Guimarães 1917-1921
Francisco Behrensdorf 1922-1934
Antônio Jesuíno dos Santos Júnior 1934-1942
Domingos de Souza Moreira 1942-1952
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Tabela com a relação dos primeiros 10 presidentes do Asilo de órfãs São Benedito (1901-1952). Fonte:
MAGALHÃES, Nelson Nobre. Pelotas Memória, 1997.
Pertencer a um quadro diretivo, ser considerado “benfeitor” e “benemérito” de
uma instituição de caridade e filantropia ressaltava as características de bom cidadão e
igualmente preocupado com as demandas sociais da cidade, nesse sentido a detenção de
cargos diretivos expandia a rede de contatos em âmbito local e em muitas vezes até
regional, consequentemente aumentando o status social desses indivíduos. Nas
primeiras décadas do século XX, muitos imigrantes já haviam se estabelecido em
Pelotas e alguns desses haviam prosperado economicamente, e alguns, em menor
número vinham com algumas condições financeiras favoráveis do Velho Mundo. Aos
poucos se tornava mais frequente vermos nos cargos diretivos ou nos colaborativos
sobrenomes de origem francesa, alemã, etc. Essas famílias aos poucos foram adentrando
na elite, ou melhor, configurando uma nova elite, uma elite cujos proveitos já não eram
mais oriundos do charque, mas sim da indústria, do comércio, da construção civil e de
outras atividades econômicas.
Segundo Caldeira (2014), nos primeiros anos, a diretoria do asilo era formada
por homens negros. Já a partir de 1914, os nomes de indivíduos brancos se mesclam aos
negros. E aos poucos os negros vão se distanciando dos cargos diretivos, sendo formada
uma diretoria predominantemente branca.
E assim, nas primeiras décadas do século XX, surge e se consolida na cidade de
Pelotas uma instituição com o fim de amparar a infância desvalida, de abrigar meninas
órfãs, sem distinção de cor. E aos poucos o asilo vai se inserindo no círculo da caridade
pelotense, sendo alvo de práticas caritativas por parte da sociedade, incluindo a elite
local.
O SALÃO DE HONRA DO ASILO DE ÓRFÃS SÃO BENEDITO: OS USOS E
POSSIBILIDADES DOS RETRATOS PARA A PESQUISA HISTÓRICA
Ao falar das imagens da História, Paulo Knauss (2006) faz colocações
importantes quanto aos usos e a importância das imagens ao longo da história humana,
ainda ressalta, que por vezes, nem o próprio historiador as valoriza como fonte de
pesquisa:
As imagens pertencem ao universo dos vestígios mais antigos da vida
humana que chegaram até nossos dias. O mundo da Pré-História é conhecido
pelas inscrições rupestres; o mundo da Antiguidade, pelas suas imagens
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inscritas em paredes ou em diferentes suportes como os vasos [...] para nos
restringimos às menções recorrentes do senso comum. Isso significa dizer
que, diante dos usos públicos da História, a imagem é um componente de
grande destaque, mesmo que nem sempre seja valorizada como fonte de
pesquisa pelos próprios profissionais da História. ( 2006, p.98).
Já o trabalho de Ulpiano Meneses (2003), intitulado: “Fontes visuais, cultura
visual, História visual. Balanço provisório, propostas cautelares”, trás importantes
considerações sobre História visual. Ao criticar o uso incorreto de um objeto de
conhecimento histórico a partir de um fato documental, mencionando como exemplo a
história oral, o autor faz as seguintes considerações: “Não se estudam fontes para
melhor conhece-las, identifica-las, analisá-las, interpretá-las e compreendê-las, mas elas
são identificadas, analisadas, interpretadas e compreendidas para que, daí, se consiga
um entendimento maior da sociedade, na sua transformação” (MENESES, 2003, p.26).
No decorrer deste capítulo, fontes escritas, como por exemplo, os anais do
cinquentenário do Asilo de Órfãs São Benedito se mesclam e se somam a outras fontes,
tais como as visuais (retratos). Esse somatório de fontes é que enriquece e possibilita a
resolução de questionamentos propostos pelo pesquisador. Sobre a importância do uso
de todo tipo de fonte, Meneses disserta o seguinte: “Para que a observação seja eficaz, é
indispensável usar-se todo e qualquer tipo de fonte (fontes materiais, escritas, orais,
hábitos corporais, etc., etc.).” (MENESES, 2003, p.26). Também, segundo o autor,
utilizar somente fontes visuais na pesquisa pode ocasionar numa “História
iconográfica”, de fôlego curto e de interesse, sobretudo documental.
Não são, pois documentos os objetos da pesquisa, mas instrumentos dela: o
objeto é sempre a sociedade. Por isso, não há como dispensar aqui, também,
a formulação de problemas históricos, para serem encaminhados e resolvidos
por intermédio de fontes visuais, associadas a quaisquer outras fontes
pertinentes. Assim, a expressão “História Visual” só teria algum sentido se se
tratasse não de uma História produzida a partir de documentos visuais, mas
de qualquer tipo de documento e objetivando examinar a dimensão visual da
sociedade. (MENESES, 2003, p.28).
Knauss menciona que numa pesquisa, por exemplo: “a vida das elites pode
ganhar outros enfoques a partir de álbuns de fotos de família que podem ser
contrastados com diários íntimos” (KNAUSS, 2006, p.99). Menciono o exercício que se
procurou realizar neste trabalho, como sendo semelhante ao que diz Knauss, pois se
procurou contrastar e cruzar as imagens (retratos) de benfeitores do Asilo São Benedito
com fontes escritas e primárias, como por exemplo, documentos oficiais da instituição,
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a fim de traçar um perfil dos sujeitos homenageados, cujos retratos adornam as paredes
do salão de honra da referida casa asilar.
Outra sugestão realizada por Meneses refere-se ao fato de que o historiador que
trabalha com imagens, necessita observar o ciclo completo de sua produção, circulação
e consumo, nesse sentido cabe salientar que este trabalho não possui o escopo de
analisar o percurso dos retratos dos sócios benfeitores do Asilo de Órfãs São Benedito,
porém cabe observar e buscar “adequar” estas três variáveis de Meneses na referida
pesquisa. Então, é possível considerar que a produção corresponde ao pedido realizado
pela direção da instituição a um determinado artista, que na maioria dos casos, não foi
possível identificar, pedido este que é realizado como forma de homenagear um
determinado sujeito que durante sua vida fez uma grandiosa ação caridosa para com a
instituição, já a circulação corresponde ao ambiente em que os retratos estiveram e
foram alocados, tendo os retratos por mim analisados como destinação final as paredes
do salão de honra do Asilo de Órfãs São Benedito, e por fim o consumo destas obras se
dá pelos seus pares, demais indivíduos, na maioria dos casos pertencentes a algum
grupo considerado como elite local, que com o passar dos anos revezam-se na prática da
caridade, além é claro daqueles que vivenciam a realidade e a rotina da instituição e
demais pessoas, que em virtude da realização de algum evento naquele recinto, possam
ter contato com os retratos.
O recinto onde estão alocados os retratos das pessoas benfeitoras do Instituto
São Benedito denomina-se Salão de Honra, essa denominação altera-se dependendo do
estabelecimento, algumas instituições utilizam salão/galeria nobre, etc. Porém, a
finalidade de todos estes recintos é a mesma, representar através dos retratos a
imortalidade, guardar na expressão de um rosto as ações caritativas e contributivas dos
sujeitos para com as instituições, retratos que vão ficar expostos, servindo como uma
auto representação de si mesmo e como uma representação de status positivo perante
seus pares e perante a sociedade local.
Figura 1: salão de honra do Instituto São Benedito.
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Fonte: Foto do pesquisador. Ano: 2015. Salão de Honra do Instituto São Benedito.
Na figura acima, é possível visualizar a porta de entrada do salão de honra, que
fica a primeira entrada do lado esquerdo de quem adentra no prédio, bem como duas
paredes, nas quais estão alocados quarenta quadros de pessoas ligadas ao Asilo São
Benedito, com predominância de pessoas do gênero masculino, porém há alguns
quadros de mulheres.
A professora Larissa Patron Chaves (2014) ao analisar os retratos de caridade
nas instituições de Beneficência menciona que:
A imagem advinda do “retrato” concedido aos associados foi uma das formas
de garantia de visibilidade social. O associado que realizava uma doação ou
préstimo efetivo passava a gozar das melhores considerações frente à
diretoria e comunidade local, quando também acendia, muitas vezes, a
membro diretivo, ganhando um lugar no salão de honra através da imagem.
Uma pintura representaria o seu retrato oficial, a sua chance de imortalidade
no saguão do edifício-sede, um requisito importante para a sua autoafirmação
perante a sociedade local. ( 2014, p.07).
No caso das imagens analisadas neste trabalho, percebe-se que alguns dos
homenageados com um retrato, eram membros da diretoria, inclusive alguns dos
indivíduos fizeram parte da primeira diretoria do Asilo São Benedito, outros eram
grandes benfeitores, e em virtude de suas práticas caritativas para com a instituição
recebiam como retribuição um “retrato” de si no salão de honra, ficando a sua imagem
para a posteridade. Conforme se verifica nos estatuto de 1911, para ter um quadro
deveriam ser atendidos alguns critérios: “só aos sócios Grandes Benfeitores é concedida
a regalia especial de fazerem parte da galeria de retratos desta associação, sendo,
entretanto, respeitadas as já concedidas neste sentido, pelas diretórias e assembleias
gerais transatas” (ESTATUTO, 1911, p. 05).
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Figura 2: José Veríssimo Alves. 4º Presidente do Asilo de Órfãs São Benedito.
Fonte: Foto do Pesquisador. Ano: 2015. Salão de Honra do Instituto São Benedito.
Na imagem acima se verifica a existência da assinatura do artista, que no caso
identifica-se como: “H. Farjat” e abaixo do nome, está à localidade e a data “Rio
Grande 7-3-1918”, esta identificação está escrita na cor branca. Para o presente
trabalho, não foi despendida maior atenção na investigação do artista em questão, tendo
em vista que isto demandaria maior tempo, sendo este texto o resultado de uma
investigação de menor fôlego. Nas demais imagens, que compõem o salão de honra não
há assinatura do artista, mas isso não anula o tratamento artístico conferido aos retratos.
Pois, ambas as obras possuem características de postura e expressão facial semelhante.
O retrato de José Veríssimo Alves ilustra uma pessoa séria, com vestes que indicam
uma boa posição social e ou cultural.
José Veríssimo Alves, jornalista, fez parte da primeira diretoria do Asilo São
Benedito, tendo ocupado o cargo de tesoureiro, também foi o 4º presidente da
instituição, no período de 1912 a 1913. Além de ter sido um dos primeiros sócios a
serem proclamados benfeitores, conforme consta nos anais do cinquentenário:
Em 1902, em reconhecimento a serviços prestados ao nascente instituto,
foram proclamados sócios benfeitores Luciana Lealdina de Araújo e sua
grande cooperadora, Maria Bárbara de Sequeira, Ataliba Borges Ribeiro da
Costa, xarqueador, José Veríssimo Alves, jornalista; Júlio Teixeira,
comerciante; Dr. Domingos Alves Requião, médico, e o Dr. Albino da Silva
Fagundes, médico homeopata, ainda vivo. (ANAIS DO
CINQUENTENÁRIO 1901-1951: ASILO DE ÓRFÃS SÃO BENEDITO,
p.05).
Pode se inferir que José Veríssimo Alves foi um homem influente na cidade de
Pelotas no começo do século XX, e também por ser jornalista, suas ideias e
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posicionamentos alcançavam um determinado número de pessoas. Possivelmente, Alves
tenha sido jornalista do Jornal A Alvorada, porém não encontrei até o prezado momento
nenhuma fonte primária que comprove isso e consultando o artigo de Fernanda Oliveira
da Silva (2011), intitulado “Associativismo negro em Pelotas no Pós-Abolição:
Membros dos clubes sociais negros, articulistas do A Alvorada e militantes da Frente
Negra Pelotense (1933-1937)” também não há menção ao seu nome. Porém é apenas
uma hipótese, que talvez no decorrer das pesquisas vá se confirmar.
Outro personagem da sociedade pelotense de grande expressão econômica e
política nas primeiras décadas do século XX, era Augusto Simões Lopes. Por si só o seu
sobrenome já remonta status social e prestígio, remetendo-nos a uma das famílias mais
tradicionais da elite pelotense desde a época de ouro do charque. Filho mais moço de
João Simões Lopes Filho, o Visconde da Graça, importante charqueador pelotense, que
segundo os dados levantados por Vargas (2013) na tabela: Composição do patrimônio
dos charqueadores com fortunas acima de 50 mil libras, onde foram verificadas
variáveis como imóveis rurais, imóveis urbanos, escravos, dívidas ativas e dinheiro,
pode se concluir que o Visconde da Graça estava entre os cinco mais ricos
charqueadores de Pelotas em determinado período.
Augusto Simões Lopes nasceu em Pelotas no dia 15 de julho de 1880 e faleceu
no Rio de Janeiro no dia 15 de outubro de 1941, se destacou no cenário político local,
regional e até nacional, formou-se em direito, tendo sido suplente de juiz federal, porém
foi na política que se destacou, filiado ao Partido Republicano Rio-Grandense, esteve à
frente da administração de Pelotas entre os anos de 1924-1928, após foi deputado
federal (1933-1935) e senador (1935-1937). Adepto do futebol presidiu o Grêmio
Esportivo Brasil, quando este se sagrou campeão do primeiro campeonato gaúcho de
futebol. Ainda, segundo Fernando Osório (1997), Augusto Simões Lopes foi redator do
jornal Correio Mercantil e presidente do Asilo de Mendigos. Portanto, para satisfazer
um dos escopos dessa pesquisa, pode se dizer que Augusto Simões Lopes era
pertencente à elite pelotense, seja no âmbito econômico, ou no político.
Todavia, a sua ligação com o Asilo de Órfãs São Benedito não pôde ser
elucidada por completo para este trabalho. Portanto, não se sabe ao certo, quais motivos
levaram Simões Lopes a ter um retrato seu no salão de honra do Asilo. O que no
mínimo, pode se supor é que este por ser atuante no círculo pelotense da caridade ou por
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ter sido prefeito de Pelotas, tenha contribuído de alguma forma com o Asilo São
Benedito. Sabe-se que, Augusto Simões Lopes foi um grande incentivador da educação,
talvez esteja aí o elo entre ele e o Asilo São Benedito, já que entre os objetivos da
instituição estava proporcionar educação às meninas assistidas.
Figura 3: Augusto Simões Lopes. Advogado e político pelotense.
Fonte: Foto do pesquisador. Ano: 2015. Salão de Honra do Instituto São Benedito.
Os benfeitores do Asilo de Órfãs São Benedito, em sua grande maioria eram
indivíduos com prestígio em determinados nichos da sociedade pelotense e eram ativos
nas pautas sociais e políticas do período. Pode se dizer que pertenciam à elite, se
considerarmos que pertencer à elite, não necessariamente é estar entre os sujeitos mais
ricos da cidade, considerando as diversas formas de elite: intelectual, política e
econômica, apenas para citar algumas.
Pode-se dizer que os retratos de sujeitos benfeitores funcionariam como um
espelho para os seus pares, ou seja, não somente o sujeito retratado, mas sua família,
assim como os demais membros da elite ou as demais pessoas imbuídas de boas
condutas morais e cristãs se enxergariam representadas naqueles retratos. Também,
como já foi mencionado aqui, ter um retrato seu no salão de honra de uma instituição
significa de certa forma ficar imortalizado através de uma imagem. Sendo assim, uma
das formas de retribuição das instituições pela caridade praticada, é a encomenda do
retrato do grande benfeitor e sua posterior alocação nas paredes do salão de honra.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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Este trabalho é resultado de uma pesquisa ainda incipiente, porém algumas
considerações podem ser feitas. A cidade de Pelotas na segunda metade do século XIX
possuía uma forte e pulsante elite do charque, estes charqueadores enriqueceram e
produziram a modernização urbana de Pelotas, também contribuíram no campo da
saúde, da educação e das artes, porém este enriquecimento foi fruto do seu tempo e
infelizmente baseado na mão de obra escrava. Após a abolição da escravidão no país em
1888, não havia empregos disponíveis para toda essa parcela significativa da população
pelotense, e nem programas habitacionais ou assistência social, com isso muitos
afrodescendentes ficaram a margem da sociedade, sem emprego, muitas vezes sem
residências e sem alimentação, e por vezes muitas crianças ficavam órfãs. Através de
alguns membros da sociedade pelotense que possuíam melhores condições econômicas,
políticas, sociais e culturais e da irmandade de São Benedito, com o apoio de pessoas
caridosas e com a força de vontade de Luciana Lealdina de Araújo, surge em Pelotas, o
Asilo de Órfãs São Benedito com o escopo de receber e instruir meninas órfãs e sem
distinção de cor.
Dito isso, procurou se verificar e analisar através de alguns retratos, quem eram
esses indivíduos que contribuíram para com o Asilo. É perfeitamente possível concluir
que os retratos eram concedidos a pessoas que praticavam grandes ações em prol do
Asilo São Benedito, conforme se verifica nos estatutos do referido estabelecimento.
Estes retratos eram alocados nas paredes do salão de honra e eram uma representação do
sujeito caritativo, sendo em todos os casos analisados, retratados de forma frontal, bem
vestidos, com a expressão facial séria.
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