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LITERATURA EM LIBRAS: UM OLHAR PARA OS PARATEXTOS Juliana de Oliveira Pokorski UFRGS Janete Inês Müller UFRGS RESUMO Vinculado ao campo dos Estudos Culturais em Educação, por entender a cultura como campo de luta em torno de significação social; e aos Estudos Surdos, por conceber a cultura surda como espaço de contestação e de constituição de identidades e diferenças que determinam a vida de indivíduos e de populações, neste texto, objetiva-se investigar o papel da literatura em língua de sinais, tendo em vista os discursos que circulam em produções culturais dos alunos do Curso de Graduação em Letras-Libras. A partir de investigações realizadas no projeto de pesquisa Produção, Circulação e Consumo da Cultura Surda Brasileira, são analisados os paratextos de narrativas e de poemas produzidos pelos acadêmicos na disciplina de Literatura Surda. O corpus empírico deste trabalho é constituído de treze (13) artefatos culturais em vídeo, com a sinalização em Língua Brasileira de Sinais (Libras), de variados gêneros textuais (poesias, fábulas, piadas e contos). Na análise discursiva dos paratextos que integram essas produções literárias, destaca-se a importância da literatura em língua de sinais como meio de afirmação identitária e cultural; além disso, como recurso e difusão entre sujeitos ouvintes, possibilita reivindicar status para a Libras, na luta pelo reconhecimento linguístico e direito à acessibilidade. Através dos processos de tradução, é possível aos surdos acessarem e consumirem a literatura universal, predominantemente produzida em línguas orais. Para isso, há que se observar a qualidade técnica e linguística das produções, adaptações e traduções em Libras, pois contar histórias requer prática, interesse, habilidade e fluência na língua. Tornar a literatura em Libras atraente aos seus interlocutores influencia no consumo da produção e, consequentemente, na difusão da cultura surda e no empoderamento das comunidades surdas. Palavras-chave: Libras. Literatura surda. Estudos Culturais em Educação. Territórios e caminhos investigativos Traduzir experiências surdas através das várias gerações dos povos surdos, rememorando vitórias, dificuldades, desafios, práticas familiares, escolares e sociais, constitui-se em uma prática no campo da literatura, de modo que integrantes das comunidades surdas produzem e oportunizam a circulação e o consumo cultural. A cultura abarca “uma variedade de modos de ver a conduta humana e pode ser usada para uma gama de propósitos” (BARKER; GALASINSKI, 2001, p. 3). “Trata-se de uma rede de práticas e de representações implantadas (textos, imagens, conversas, códigos de comportamento e as estruturas narrativas que os organizam), que influencia cada aspecto da vida social” (FROW; MORRIS, 2006, p. 316). Assim, a cultura produz significados Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade EdUECE - Livro 3 02612

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LITERATURA EM LIBRAS: UM OLHAR PARA OS PARATEXTOS

Juliana de Oliveira Pokorski – UFRGS

Janete Inês Müller – UFRGS

RESUMO Vinculado ao campo dos Estudos Culturais em Educação, por entender a cultura como

campo de luta em torno de significação social; e aos Estudos Surdos, por conceber a

cultura surda como espaço de contestação e de constituição de identidades e diferenças

que determinam a vida de indivíduos e de populações, neste texto, objetiva-se investigar

o papel da literatura em língua de sinais, tendo em vista os discursos que circulam em

produções culturais dos alunos do Curso de Graduação em Letras-Libras. A partir de

investigações realizadas no projeto de pesquisa Produção, Circulação e Consumo da

Cultura Surda Brasileira, são analisados os paratextos de narrativas e de poemas

produzidos pelos acadêmicos na disciplina de Literatura Surda. O corpus empírico deste

trabalho é constituído de treze (13) artefatos culturais em vídeo, com a sinalização em

Língua Brasileira de Sinais (Libras), de variados gêneros textuais (poesias, fábulas, piadas

e contos). Na análise discursiva dos paratextos que integram essas produções literárias,

destaca-se a importância da literatura em língua de sinais como meio de afirmação

identitária e cultural; além disso, como recurso e difusão entre sujeitos ouvintes,

possibilita reivindicar status para a Libras, na luta pelo reconhecimento linguístico e

direito à acessibilidade. Através dos processos de tradução, é possível aos surdos

acessarem e consumirem a literatura universal, predominantemente produzida em línguas

orais. Para isso, há que se observar a qualidade técnica e linguística das produções,

adaptações e traduções em Libras, pois contar histórias requer prática, interesse,

habilidade e fluência na língua. Tornar a literatura em Libras atraente aos seus

interlocutores influencia no consumo da produção e, consequentemente, na difusão da

cultura surda e no empoderamento das comunidades surdas.

Palavras-chave: Libras. Literatura surda. Estudos Culturais em Educação.

Territórios e caminhos investigativos

Traduzir experiências surdas através das várias gerações dos povos surdos,

rememorando vitórias, dificuldades, desafios, práticas familiares, escolares e sociais,

constitui-se em uma prática no campo da literatura, de modo que integrantes das

comunidades surdas produzem e oportunizam a circulação e o consumo cultural. A

cultura abarca “uma variedade de modos de ver a conduta humana e pode ser usada para

uma gama de propósitos” (BARKER; GALASINSKI, 2001, p. 3). “Trata-se de uma rede

de práticas e de representações implantadas (textos, imagens, conversas, códigos de

comportamento e as estruturas narrativas que os organizam), que influencia cada aspecto

da vida social” (FROW; MORRIS, 2006, p. 316). Assim, a cultura produz significados

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em textos que nos interpelam e são intercambiados entre os membros de uma sociedade

ou grupo, organizando e regulando a conduta de uns em relação aos outros.

E é nessa esfera cultural que se dá a luta pela significação social. A cultura, nessa

perspectiva, tem sido discutida no campo dos Estudos Culturais, que podem ser

entendidos como um conjunto de formações instáveis e descentradas, de

problematizações e de reflexões situadas na confluência de vários campos já

estabelecidos, de modo que rompem com certas lógicas cristalizadas e hibridizam

concepções consagradas. Não sendo capturados pelas cartografias consagradas que têm

ordenado a produção do pensamento humano, na articulação dos Estudos Culturais ao

campo da Educação, são discutidas temáticas relacionadas a gênero e sexualidade;

nacionalidade; raça e etnia; cultura popular, local e global; discurso e textualidade; grupos

minoritários, entre outras.

Na discussão sobre grupos minoritários, os Estudos Surdos aproximam-se dos

Estudos Culturais em Educação, porque problematizam justamente as representações

hegemônicas, dominantes e ouvintistas sobre a surdez e a identidade dos surdos. Como

um território de investigação educacional e de proposições políticas, em que as

identidades, as línguas, os projetos educacionais, a história, a arte, as comunidades e a

cultura surda são focalizados e entendidos a partir do reconhecimento político da

diferença surda, os Estudos Surdos possibilitam o tensionamento de discursos sobre a

surdez e o mundo dos surdos. Desse modo, há o deslocamento do olhar sobre os surdos e

surdez: de uma visão clínica, de falta e de deficiência, para o viés da diferença cultural,

isto é, os surdos são vistos como indivíduos que vivenciam uma experiência visual, o que

possibilita outros modos de se comunicar e de se relacionar com o mundo.

Assim, o ‘ser surdo’ é aqui entendido como “um sujeito possuidor de uma língua,

de uma cultura e de identidades múltiplas, um sujeito social e politicamente construído,

diferente” (MORAIS; LUNARDI-LAZZARIN, 2009, p. 25). Falar de surdo é também

pensá-lo como sujeito plural, multifacetado, cuja experiência de ser, de estar no mundo,

que é coletiva no encontro com outros surdos, é sentida de maneiras singulares. Ainda,

‘ser surdo’ implica pensar em uma das possíveis posições que um sujeito pode ocupar e,

por isso, não a única. De forma geral, “os surdos, entendidos como povo ou grupo que

se nomeia como tal, estão inscritos na ordem do acontecimento cultural, ou seja, na ordem

da luta permanente do tornar-se, do vir a ser, frente a outro(s) grupo(s)” (LOPES; VEIGA-

NETO, 2010, p. 127-128).

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Nesse sentido, desde as últimas décadas, no Brasil, as comunidades surdas têm se

movimentado para marcar a diferença linguística e cultural, cujas discussões possibilitam

mudanças políticas. As comunidades surdas, organizadas em associações e representadas

pela FENEIS, além de regionalmente articuladas às escolas e universidades, têm

mostrado sua força, potencializando a militância e as conquistas surdas. Assim, a Língua

Brasileira de Sinais (Libras) foi reconhecida em nosso País através da Lei Federal 10.436,

de 24 de abril de 2002. Após, por meio do Decreto nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005,

que regulamenta a Lei nº 10.436, outras mudanças aconteceram; entre elas, a criação do

Curso de Graduação em Letras-Libras.

O Curso de Graduação em Letras-Libras, organizado pela Universidade Federal

de Santa Catarina (UFSC), na modalidade presencial e a distância, envolvendo

habilitações de Licenciatura e de Bacharelado, objetiva a formação de professores e de

instrutores de língua de sinais, além de intérpretes de Libras-Língua Portuguesa. Com

uma organização curricular que contempla a linguística da Libras, a escrita de sinais, a

história, a literatura e a didática na educação de surdos, no curso, os surdos podem acessar

a todas as informações de modo bilíngue, em português ou diretamente na língua de

sinais, inclusive podem também ser avaliados em Libras. Assim, o Curso de Letras-Libras

pode ser considerado um marco importante no histórico das lutas surdas, inclusive em um

cenário de ressignificação, de potencialização e de empoderamento dos movimentos e da

comunidade surda.

Nesse âmbito, através do projeto de pesquisa Produção, Circulação e Consumo da

Cultura Surda Brasileira, foi realizada a coleta de cento e oitenta e três (183) produções

culturais de alunos do Curso de Letras-Libras, as quais foram apresentadas na disciplina

de Literatura Surda. Com o propósito de organizar os materiais empíricos, sem com isso

objetivar categorizações, estes foram tabulados em planilha, instrumento este que

contempla informações como: título, sinopse, autoria, tipologia textual, tempo, suporte

de texto, público-alvo, recursos de produção, uso das línguas, entre outras observações.

Além disso, essas produções em vídeo estão sistematizados em um banco de dados do

projeto, possibilitando análises como esta e outras possíveis, em que se observam os

direitos autorias dos acadêmicos e o termo de autorização de uso dos materiais para

pesquisa.

Os acadêmicos desse Curso, de forma individual ou em grupos, construíram

narrativas e poemas registrados em suporte digital (vídeos), potencializando a cultura

surda através de artefatos que emergem de diferentes polos e regiões brasileiras:

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Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Universidade do Estado do Paraná

(UEPA), Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Instituto Federal de Educação

e Tecnologia de Goiás (IFET-GO), Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD),

Universidade de Brasília (UnB), Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP),

Universidade Federal do Paraná (UFPR), Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

e Instituto Federal do Rio Grande do Norte (IFRN).

Para este texto, entretanto, foram selecionados treze (13) vídeos com sinalização

em Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS), de variados gêneros textuais (poesias, fábulas,

piadas e contos). A construção desse corpus empírico é justificada com base nos seguintes

descritores: análise da qualidade técnica dos vídeos, de modo que não se comprometesse

o entendimento da produção; identificação de materiais com personagens surdos ou

marcas da cultura surda, tais como a língua de sinais e a experiência visual; e atenção às

produções que, para além dos textos literários, apresentam paratextos que discutem o ‘ser

surdo’.

Essas produções, entretanto, não se caracterizam como “um campo passivo de

mero registro ou de expressão de significados existentes” (HALL, 1997, p. 47). Esses

significados são construídos historicamente, principalmente por membros das

comunidades surdas, inseridos em um campo discursivo do nosso tempo. Experienciar o

universo ficcional, linguístico e cultural das histórias de vida, dos romances, das fábulas,

das lendas, dos contos, dos poemas, das piadas, das crônicas, das histórias em quadrinhos,

dos mitos, dos jogos de linguagem e de outras produções possibilita sentir, envolver-se e

exercitar o humor, o prazer estético, a tradução cultural, as lutas, as movimentações.

Nessa esteira de pensamento, neste texto, objetiva-se investigar o papel da

literatura em língua de sinais, tendo em vista os discursos que circulam em paratextos das

produções literárias de alunos do Curso de Letras-Libras. Nesta investigação, busca-se

mostrar que, embora as produções culturais em geral ensinem alguma coisa aos leitores,

intencionalmente ou não, os paratextos elaborados buscam explicitar propósitos e

concepções dos autores, evidenciando que não se trata apenas do cumprimento de uma

tarefa da disciplina de Literatura Surda. Antes da análise discursiva desses materiais, na

próxima seção, importa discutir o que se entende por literatura surda, campo em se que

produzem os materiais aqui analisados.

Paratextos na Literatura Surda

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Desde a década de noventa (90), observa-se um crescimento significativo de

produções culturais surdas, o que está relacionado às pesquisas no campo da Linguística

e da Educação, bem como às lutas e aos movimentos surdos que tensionaram mudanças

políticas e sociais. Além disso, tendo em vista os processos de globalização e avanços

tecnológicos, os trabalhos virtuais crescem consideravelmente a partir do uso da internet.

Nesse sentido, cabe ressaltar que as produções culturais aqui analisadas, assim como

outras, circulam significativamente em ambientes virtuais e são consumidas por membros

de comunidades surdas, atravessando fronteiras culturais.

No reconhecimento e valorização da cultura surda, importa dar visibilidade a esses

trabalhos e observar também os discursos produzidos na comunidade surda acadêmica,

considerando o Curso de Letras-Libras como um espaço de potencial de cultura surda. A

cultura surda assemelha-se a algo que penetra na pele de quem participa das comunidades

surdas, que compartilha um conjunto de normas, valores e comportamentos; também

possibilita ao “sujeito surdo construir sua subjetividade, de forma a assegurar sua

sobrevivência e a ter seu status quo diante das múltiplas culturas, múltiplas identidades”

(PERLIN, 2004, p. 78). Busca-se, assim, o reconhecimento e a produção de outras

imagens e sentidos daqueles até então existentes ou determinados; a “cultura é

alimentada, criada, reproduzida, reforçada e, por vezes, subvertida, largamente, pelas

narrativas com protagonistas pontuais, em circunstâncias e lugares datados” (SILVEIRA,

2005, p. 199).

E, nesse processo, a literatura surda pode ser entendida como um artefato cultural,

um recurso para os surdos, uma possibilidade de reivindicação da diferença e de marcação

da identidade no espaço público. Utiliza-se a expressão ‘literatura surda’ para histórias e

textos poéticos que têm presentes a língua de sinais, a identidade e da cultura surda

(KARNOPP, 2006, p. 102). Para as crianças surdas, a literatura surda é um meio de

referência, de aproximação com a própria cultura, de aquisição de sua primeira língua, de

construção da sua identidade surda. Além disso, sua produção e circulação vêm se

expandindo também nas escolas, em razão da comprovação de sua importância quando

utilizada na educação de crianças e jovens surdos (ROSA; KLEIN, 2011).

Ao discutirem a literatura que circula de forma impressa em língua portuguesa,

Silveira, Bonin e Ripoll (2010) chamam atenção para a funcionalidade dos paratextos.

Estes são entendidos como conjuntos de fragmentos verbais que acompanham o texto

propriamente dito, isto é, unidades amplas, como prefácios, textos da capa, ou unidades

reduzidas, como título, assinatura, data, intertítulo, rubrica, comentários. Também

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constituem invólucro sedutor para a escolha e leitura de livros, apontando uma para

definição da própria obra e para a forma preferencial e ‘adequada’ de lê-la. Em geral,

antecipam descrições e percepções da obra, que, subjetivamente, conduzem os leitores.

Essas características, em geral, aplicam-se também às produções literárias que

circulam em Libras, em formato de vídeos. Nesse sentido, de modo recorrente, os

paratextos dos vídeos aqui analisados são utilizados em introduções ou em comentários

ao final das narrativas, nos quais, algumas vezes, os produtores argumentam sobre

escolhas feitas na elaboração da narrativa; em outras, são estabelecidas relações com

situações para além da história, ou seja, produzindo possíveis interpretações para os

textos, articulando-os com outros saberes, bem como direcionando o olhar sobre a

narrativa e sobre as condutas vinculadas às temáticas abordadas. Dado o seu caráter

persuasivo, pedagógico e direto em reforçar ideias e conceitos, os paratextos são

apresentados com clareza, inclusive quanto aos objetivos dos produtores das narrativas.

Os discursos dos paratextos proliferam-se, recrutam os sujeitos, legitimam

significados, constituem verdades, ainda mais contando a ‘aprovação’ de quem

experiência a surdez, de quem tem autoridade para, numa relação de saber-poder,

significar o ‘ser surdo’ e sua cultura. Cabe observar que os discursos não são aqui

entendidos apenas como “conjuntos de signos (elementos significantes que remetem a

conteúdos ou a representações), mas como práticas que formam sistematicamente os

objetos de que falam (FOUCAULT, 2005).

Diante das lentes investigativas aqui utilizadas, evidencia-se uma recorrência

discursiva nos materiais aqui analisados: o importante papel da sinalização em Libras,

seja na produção, na tradução ou na adaptação de produções culturais surdas, artefatos

esses que constituem a literatura surda.

Literatura em Libras: acesso à língua e à cultura

A análise das produções culturais dos alunos do Curso de Letras-Libras evidencia,

de modo geral, a demarcação de um espaço de resistência aos modos de narrar os surdos

a partir da falta e da deficiência; denunciam-se práticas excludentes, dando ênfase ao

papel da comunidade e da língua de sinais para a constituição do sujeito surdo como

culturalmente diferente. Além disso, valoriza-se o registro das produções culturais em

Libras, sobretudo como uma estratégia e possibilidade de empoderamento da cultura

surda, oportunizando aos surdos dizerem sobre si e sobre suas relações com os diferentes.

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Nesse sentido, a diferença surda é marcada perante a reivindicação de uma

mudança de status para a língua de sinais, sobretudo a partir de seus usos na literatura.

Os usos que se faz da língua de sinais produzem significados sobre ela. Assim, quando

ela é utilizada no ambiente escolar, mas não no ambiente familiar e possui pouca

visibilidade nas demais esferas sociais e nos veículos de informação, é possível que seja

atribuído a ela um status inferior. Ampliar os usos dessa língua na literatura pode, em

certa medida, modificar esse cenário. Percebe-se que, desse modo, as produções culturais

surdas são posicionadas como recurso (YÚDICE, 2006) para afirmação identitária e para

a luta por acessibilidade e reconhecimento linguístico.

Tal questão abre espaço para o direito de comunicação, expressão e informação

de um modo mais amplo, em espaços tais como na internet e a televisão, que, em geral,

priorizam, em nível nacional, o português como língua padrão. A língua de sinais é

representada, portanto, como a língua mais acessível para o sujeito surdo e eixo central

da constituição de sua identidade. Em vários paratextos analisados, percebe-se o papel da

literatura produzida ou traduzida para a língua de sinais não somente como uma

possibilidade, mas como um direito de afirmar-se linguisticamente diferente.

Também é possível observar uma exaltação da língua de sinais para além do valor

comunicativo, isto é, como um meio de produção e de registro cultural, assim

constituindo-se uma fonte profícua para a mudança de olhar sobre os sujeitos surdos. O

excerto a seguir corrobora essa afirmação, apresentando a literatura, neste caso traduzida

para a Libras, como um veículo de produção e de consumo cultural, principalmente de

significativa importância na educação de crianças, para que se identifiquem com a cultura

surda.

O grupo pesquisou a literatura surda, pensando em como trabalhar com as crianças, pois as crianças

precisam ter consciência de como funciona a vida em geral [...]. Também é importante essa tradução

para a Libras, para que se sintam surdos, na cultura surda. (Vídeo 18 - A barriga e os membros)

Os paratextos sinalizados em Libras evidenciam que há interesse de possibilitar a

outros o acesso à literatura diretamente em língua de sinais, o que não era possível há

poucas décadas, tanto pela falta de reconhecimento desta língua quanto pela ausência, ou

difícil acesso às tecnologias que possibilitassem esse registro. Esse movimento não

implica, no entanto, o abandono da literatura escrita, pois esta integra as narrativas através

de legendas, textos intercalados à sinalização e também ao referenciar-se a fonte original

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que deu base à tradução. Trata-se muito mais de uma questão de direito à educação

bilíngue, para que ambas línguas sejam entendidas como produtivas e acessíveis. Isso

possibilita à criança, como mencionado no excerto anterior, o conhecimento sobre o

funcionamento da vida em geral.

Nessa perspectiva de intercâmbio linguístico e cultural, no material analisado, é

evidenciada a importância de se possibilitar aos ouvintes o acesso à língua de sinais, de

modo a partilhar e socializar o seu uso. Na tentativa de se desmistificar a concepção de

que a Libras seria de uso restrito na comunidade surda, em um processo de intercâmbio

linguístico e cultural, as produções em vídeo aqui analisadas buscam tornar a língua de

sinais atrativa para os ouvintes, difundindo ainda mais o seu uso. A partir disso, vinculado

aos processos de tradução para a língua de sinais, as possibilidades de acesso dos surdos

a textos em Libras, e não somente de literatura, são ampliadas. Nessa direção, as línguas

orais e de sinais são acessíveis para surdos e ouvintes, reduzindo-se barreiras na

comunicação ou no acesso à informação e à cultura.

Outro ponto de reflexão está relacionado aos significados atribuídos às diferentes

produções literárias em língua de sinais (produções, adaptações e traduções). No caso das

produções e adaptações de narrativas e poemas, que envolvem um processo de recriação,

há uma preocupação de não somente a língua de sinais estar presente nesses textos.

Entretanto, deseja-se que o surdo possa ser identificado e se identificar com essas

produções culturais. Afinal, à medida que os sujeitos se fazem presentes na literatura,

também se tornam mais visíveis na sociedade.

Em se tratando de traduções de textos para a Libras, percebe-se, nos paratextos, o

destaque para o resgate de conhecimentos que circulam culturalmente, além do prazer

literário em primeira língua. Nos discursos, principalmente apresentados após as

narrativas e poemas, afirma-se que a escolha de traduzir uma fábula ou um conto bíblico

para a língua de sinais objetiva que os surdos tenham acesso a ‘toda’ a literatura. Embora

a totalidade literária seja um ideal utópico, há o desejo de que outras pessoas produzam

traduções, já que os materiais que têm circulado atualmente são restritos.

No excerto a seguir apresentado, além da importância atribuída para a visualidade

da Libras e da comunicação entre ouvintes e surdos, fica evidente que a tradução

possibilita acessar e consumir a literatura universal, predominantemente produzida em

línguas orais. Também aponta-se para a qualidade da história escolhida, O corvo e a

raposa, que é engraçada e divertida, como se observa:

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Nós escolhemos a história pois a adoramos por ser engraçada, clara. É importante contar para crianças

surdas e ouvintes, para que conheçam a visualidade da Libras e aprendam a se comunicar com os surdos.

Traduzir a literatura é importante para que os surdos possam acessar a toda literatura infantil e adulta.

(Vídeo 19 – O corvo e a raposa)

Um último ponto discutido pelos paratextos é relativo à qualidade técnica e

linguística das traduções. Assim como acontece nas traduções em geral - e o mesmo

acontece com a tradução para as línguas de sinais –, a apropriação temática e linguística

do tradutor, em ambas as línguas em que trabalha, faz diferença no resultado final. O

paratexto a seguir apresentado chama atenção para o valor de uma história que circula em

língua de sinais, mas atenta para a necessidade de se utilizarem variados recursos da

Libras, de modo a torná-la mais envolvente, mais atrativa, sobretudo com o uso de

classificadores, expressões corporais e faciais, o uso dos espaços etc. Nesse exemplo,

percebe-se que os integrantes do grupo, ao localizarem uma história sinalizada em DVD

e anexa a um livro impresso, buscam melhores estratégias para a realização de sua

tradução.

[...] Nós vimos o livro e achamos muito legal que houvesse Libras, para divulgar essa língua . Mas nós

achamos muito estranho que o livro era legal, os desenhos perfeitos, mas o DVD era ‘mais ou menos’.

Havia a língua de sinais, mas a sinalização da mulher era ‘mais ou menos’, estranha. Isso é porque a

mulher que conta a história é ouvinte, faltou expressão facial, classificadores, expressão corporal. Por

que não foi uma pessoa surda sinalizar? Os surdos têm mais contato com a língua de sinais, por que não

um surdo? Também pegamos a história dos três porquinhos no Youtube e era visualmente perfeita, o

plano de fundo também era perfeito. É complicado divulgar pelo Brasil um livro como esse com defeitos;

é preciso ter cuidado, melhorar. Parabéns pela divulgação, mas é preciso estimular a Libras mais perfeita.

Podiam usar outra estratégia como um grupo de teatro, utilizar materiais, como a casa dos porquinhos,

palha, madeira, tijolos, enfim, usar a criatividade. (Vídeo 36 – Os três porquinhos)

O paratexto ainda aponta para o surdo como um sujeito que sinaliza de ‘modo

mais perfeito’ em Libras, como aquele que melhor saberia utilizá-la em detrimento aos

ouvintes. De fato, os surdos utilizam a língua de sinais com muito mais frequência e,

assim, adquirem uma fluência melhor se comparados a alguns ouvintes que aprendem e

utilizam a língua apenas em cursos de idiomas e possuem pouco contato com a

comunidade surda. Essa não é, portanto, uma regra, pois há ouvintes – e acrescentam-se

aqui os tradutores e intérpretes de Libras – que têm participação em cursos de formação,

convivem diariamente com familiares, cônjuges, amigos e colegas de trabalho surdos; e,

desse modo, sinalizam muito bem.

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Além disso, a arte de contar histórias ultrapassa o saber linguístico, é uma

habilidade a ser desenvolvida. Ao se contar uma história em português, por exemplo, é

necessário ter conhecimento do texto e da língua utilizada, bem como é preciso saber

utilizar diferentes entonações de voz e outras estratégias para captar a atenção e o

interesse dos interlocutores. E, de modo semelhante, dá-se o processo em língua de sinais,

ou seja, contar histórias é uma questão que envolve prática, interesse, habilidade e

fluência na Libras.

Amarrações finais

Neste estudo, buscou-se discutir o papel da Libras nas produções culturais surdas,

principalmente os discursos que circulam em paratextos de narrativas e poemas que

compõem a literatura surda, aqui entendida como recurso de difusão da língua de sinais

e da cultura surda. Percebe-se que, através da literatura, reivindica-se o acesso ao

conhecimento e às informações difundidas geralmente através da escrita. A partir dos

paratextos, ao se apresentar a língua de sinais como bela e produtiva e, dessa forma,

desejável para além da comunidade surda, intenta-se para a equalização do status de

línguas em contato (português e Libras), bem como discute-se a potencialidade de uma

educação bilíngue para surdos e ouvintes.

Nesse movimento, cabe destacar o importante advento das tecnologias, que

possibilitaram o registro e a difusão de imagens e de textos sinalizados, proporcionando

segurança e empoderamento às comunidades surdas, além de favorecer o atravessamento

de fronteiras linguístico-culturais em diferentes espaços e tempos. Em consonância a isso,

cabe ainda salientar a importância dos movimentos impulsionados pela Lei de Libras, a

qual, de certo modo, é aplicada atualmente nas Universidades, em alguns eventos e

espaços sociais, seja pela presença mais significativa de intérpretes, seja pela imersão dos

surdos diferentes instâncias do mercado de trabalho e ambientes de escolarização.

Tal movimentação também potencializa a literatura surda, que, nas últimas duas

décadas, ampliou consideravelmente o número de produções sobre a temática surda, com

a autoria surda, ou com a presença da língua de sinais. Tendo a literatura como um artefato

a ser consumido culturalmente, cabe torná-la atraente aos seus interlocutores, tal como

acontece na literatura escrita, em que, para além do texto escrito, cada vez mais se investe

nas imagens, na qualidade gráfica, entre outros recursos. Assim acontece – ou a menos

poderia –, no campo da literatura em Libras, considerando-se a qualidade da sinalização,

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das técnicas e dos recursos utilizados, o que interfere consideravelmente no consumo da

produção.

Esta investigação não pretendeu abranger a totalidade do corpus empírico

analisado, muito menos contemplar as diversas e complexas discussões que têm se dado

no campo dos Estudos Culturais em Educação, principalmente ao se discutir a literatura

surda como um artefato cultural, que produz sujeitos surdos culturalmente diferentes e,

portanto, olhados sob ‘lentes’ dos Estudos Surdos. Talvez tenha se encaminhado muito

mais pela intenção de plantar sementes, esperando que o leitor, ao refletir, faça elas

germinarem e florirem em outras produções.

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