ressarcimento sus

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1 RESSARCIMENTO AO SUS: uma proposta de delimitação da fonte e do fundamento da obrigação constante do art. 32 da Lei nº 9.656/98. Dalton Robert Tibúrcio Procurador Federal RESUMO: O presente trabalho analisa a premissa sustentada por CARLOS MÁRIO DA SILVA VELLOSO de identificação do ressarcimento ao SUS do art. 32 da Lei nº 9.656/98 com uma pretensão de ressarcimento por enriquecimento sem causa, fundada no art. 884 do Código Civil. A partir da distinção entre a fonte e o fundamento da obrigação, propõe- se a compreensão do instituto como uma obrigação ex lege ressarcitória, porém não confundível com o ressarcimento por enriquecimento sem causa. PALAVRAS-CHAVE: RESSARCIMENTO SUS. NATUREZA. DISTINÇÃO. FONTE. FUNDAMENTO. ABSTRACT: This study examines the premise supported by CARLOS MARIO DA SILVA VELLOSO about identification of SUS reimbursement from art. 32 of Law nº 9656/98, claiming for compensation for unjust enrichment, based on art. 884 of the Civil Code. Based on the distinction between the source and fundament of obligation, it is proposed to understand the institute as a legal obligation of reimbursement, but not confused with the compensation for unjust enrichment. KEYWORDS: SUS REIMBURSEMENT. NATURE. DISTINCTION. SOURCE. FUNDAMENT. SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Distinção entre fonte e fundamento da obrigação. 3. A teoria das externalidades e a incidência do princípio democrático e da solidariedade. 4. A função regulatória e o ressarcimento ao SUS. 5. Da não fungibilidade entre o ressarcimento legal ao SUS e a pretensão de ressarcimento por enriquecimento sem causa do art. 884 do Código Civil. 6. Da necessária imbricação entre o direito público e o privado para a classificação da obrigação. 7. Conclusões. 8. Referências. 1. Introdução. A Lei nº 9.656/98, instrumento de regulação da atividade de saúde suplementar, instituiu, em seu art. 32, a obrigação das operadoras de Planos de Saúde de ressarcimento dos serviços de atendimento à saúde, previstos nos contratos, prestados a seus consumidores e respectivos dependentes, em instituições públicas ou privadas, conveniadas ou contratadas, integrantes do Sistema Único de Saúde - SUS. Desde sua instituição, o ressarcimento ao SUS é objeto de controvérsia doutrinária quanto à sua natureza jurídica. A discussão, de forma geral, situa-se entre enquadrar o instituto como

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Page 1: Ressarcimento SUS

1

RESSARCIMENTO AO SUS: uma proposta de delimitação da fonte e do

fundamento da obrigação constante do art. 32 da Lei nº 9.656/98.

Dalton Robert Tibúrcio

Procurador Federal

RESUMO: O presente trabalho analisa a premissa sustentada por CARLOS MÁRIO DA

SILVA VELLOSO de identificação do ressarcimento ao SUS do art. 32 da Lei nº 9.656/98

com uma pretensão de ressarcimento por enriquecimento sem causa, fundada no art. 884

do Código Civil. A partir da distinção entre a fonte e o fundamento da obrigação, propõe-

se a compreensão do instituto como uma obrigação ex lege ressarcitória, porém não

confundível com o ressarcimento por enriquecimento sem causa.

PALAVRAS-CHAVE: RESSARCIMENTO SUS. NATUREZA. DISTINÇÃO. FONTE.

FUNDAMENTO.

ABSTRACT: This study examines the premise supported by CARLOS MARIO DA

SILVA VELLOSO about identification of SUS reimbursement from art. 32 of Law nº

9656/98, claiming for compensation for unjust enrichment, based on art. 884 of the Civil

Code. Based on the distinction between the source and fundament of obligation, it is

proposed to understand the institute as a legal obligation of reimbursement, but not

confused with the compensation for unjust enrichment.

KEYWORDS: SUS REIMBURSEMENT. NATURE. DISTINCTION. SOURCE.

FUNDAMENT.

SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Distinção entre fonte e

fundamento da obrigação. 3. A teoria das

externalidades e a incidência do princípio

democrático e da solidariedade. 4. A função

regulatória e o ressarcimento ao SUS. 5. Da não

fungibilidade entre o ressarcimento legal ao SUS e a

pretensão de ressarcimento por enriquecimento sem

causa do art. 884 do Código Civil. 6. Da necessária

imbricação entre o direito público e o privado para a

classificação da obrigação. 7. Conclusões. 8.

Referências.

1. Introdução.

A Lei nº 9.656/98, instrumento de regulação da atividade de saúde suplementar,

instituiu, em seu art. 32, a obrigação das operadoras de Planos de Saúde de ressarcimento

dos serviços de atendimento à saúde, previstos nos contratos, prestados a seus

consumidores e respectivos dependentes, em instituições públicas ou privadas,

conveniadas ou contratadas, integrantes do Sistema Único de Saúde - SUS. Desde sua

instituição, o ressarcimento ao SUS é objeto de controvérsia doutrinária quanto à sua

natureza jurídica. A discussão, de forma geral, situa-se entre enquadrar o instituto como

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2

uma obrigação tributária ou uma obrigação civil. A jurisprudência1 tem rejeitado a tese da

natureza tributária da obrigação, com respaldo na manifestação do Supremo Tribunal

Federal, em juízo de medida cautelar, proferido nos autos da ADI-MC nº 1.9312. Nota-se

uma maior acolhida do entendimento de que se tratar de uma obrigação ressarcitória,

baseada na vedação ao enriquecimento sem causa.

Em consulta formulada por entidades representantes de operadoras de plano de

saúde, o advogado e ex-ministro do Supremo Tribunal Federal Carlos Mário da Silva

Velloso exarou Parecer sustentando a tese de que o ressarcimento ao SUS tem caráter

indenizatório, constituindo reparação pelo enriquecimento sem causa decorrente do ganho

que obtém a operadora quando seus segurados procuram atendimento médico nas

instituições integrantes ao SUS. Como consequência desse enquadramento, Velloso propõe

a aplicação do prazo prescricional de três anos, previsto no art. 206, § 3º, IV do Código

Civil contado desde o atendimento do segurado do plano de saúde pelo SUS, bem como

sustenta que o valor do ressarcimento deve coincidir com o valor gasto com o atendimento

do segurado, equivalendo ao montante pago pelo SUS às entidades que o integram,

devidamente atualizado.

As conclusões de Velloso têm por fundamento a noção de que o ressarcimento ao

SUS decorre diretamente do art. 884 do Código Civil, que disciplina a restituição por

enriquecimento sem causa. É o que se percebe das seguintes passagens do citado Parecer:

7.15. Ora, o ressarcimento do art. 32 da Lei nº 9.656/98 não resulta de

uma relação de direito público nem se enquadra nesse ramo do direito.

7.16. De fato, a doutrina costuma distinguir o direito público do privado

ao fundamento de que o primeiro “é destinado a disciplinar os interesses

1 Como se pode verificar do enunciado nº 51 da súmula de uniformização de jurisprudência do Tribunal

Regional Federal da 2ª Região: “O art. 32, da Lei nº 9.656/98, que trata do ressarcimento ao Sistema Único

de Saúde (SUS), é constitucional.”

2 Sobre o tema, assim se manifestou o ministro Maurício Corrêa, no julgamento da cautelar, acompanhado

pelos demais ministros do STF:

“44. Outra questão tida como contrária e ofensiva ao princípio da proporcionalidade seria o ressarcimento

ao Poder Público, de que trata o caput do art. 32 da lei, dos serviços de atendimento que a rede hospitalar

de saúde pública prestar ao contratado do plano. Frise-se que esses serviços só atingem os atendimentos

previstos em contrato e que forem prestados aos respectivos consumidores e seus dependentes por

instituições públicas ou privadas, conveniadas ou contratadas, integrantes do SUS, como está

explicitamente disciplinado no § 1º do artigo 32, na versão atual, verbis: „O ressarcimento a que se refere

o caput será efetuado pelas operadoras à entidade prestadora de serviços, quando esta possuir

personalidade jurídica própria, e ao Sistema Único de Saúde – SUS, mediante tabela de procedimento a

ser aprovada pelo CONSU.

45. Não vejo atentado ao devido processo legal em disposição contratual que assegurou a cobertura

desses serviços, que, não atendidos pelas operadoras no momento de sua necessidade, foram prestados

pela rede do SUS e instituições conveniadas e, por isso, devem ser ressarcidos à Administração Pública,

mediante as condições preestabelecidas em resoluções internas da CÂMARA DE SAÚDE

COMPLEMENTAR. Observo que não há nada nos autos relativamente aos preços que serão fixados, se

atendem ou não as expectativas da requerente. Tudo gira em torno de hipóteses.

46. Também nenhuma consistência tem a argumentação de que a instituição dessa modalidade de

ressarcimento estaria a exigir lei complementar nos termos do artigo 195, § 4º da Constituição Federal.

Como resulta claro e expresso na norma, não impõe ela a criação de nenhum tributo, mas exige que o

agente do plano restitua à Administração Pública os gastos efetuados pelos consumidores com que lhe

cumpre executar.”

Page 3: Ressarcimento SUS

3

gerais da coletividade”, nele incluindo o direito constitucional, o

administrativo, o penal, entre outros, ao passo que o segundo “regula as

relações entre os homens, tendo em vista o interesse particular dos

indivíduos”, disciplinando, entre outras relações jurídicas, as obrigações

que se estabelecem entre os indivíduos, decorrentes de contrato, do delito

ou ainda provenientes da lei3.

7.17. Com efeito, o ressarcimento de que se cuida não tem origem em

contrato firmado sob o comando do direito administrativo nem constitui

exigência feita em razão do exercício do jus imperi estatal. Ao contrário,

decorre da lei, para o fim de evitar o enriquecimento sem causa, matéria

de direito privado, disciplinada pelo direito civil, como linhas atrás foi

exposto.

7.18. Certo é que não é possível atribuir natureza de direito público a uma

relação de caráter indenizatório com base na vedação ao enriquecimento

sem causa. Desnecessária seria até mesmo a criação do ressarcimento

pela Lei 9.656/98. Dessa indenização já cuida o Código Civil, com

propriedade e suficiência, ao estabelecer, no art. 884, que aquele que, sem

justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o

indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários.

7.19. Não altera esse entendimento – a natureza privada da

obrigatoriedade de ressarcimento – o fato de ser ele cobrado mediante

execução especial, quando não pago voluntariamente no prazo estipulado

em lei. A Lei nº 6.830/80, que dispõe sobre a cobrança judicial da dívida

ativa da Fazenda Pública aplica-se, como está dito em seu art. 2º, tanto à

dívida tributária – daí o apego à expressão “execução fiscal” – quanto à

não tributária, referida na Lei nº 4.320/64, que estatui normas gerais de

Direito Financeiro para a elaboração e controle orçamentários.

7.20. Desnecessário lembrar que não é a forma de cobrança que define a

natureza da dívida. No caso, o ressarcimento é de natureza privada e não

constitui receita da ANS. Apenas por questão de praticidade a ANS

assume sua cobrança, quando não pago voluntariamente, mas isso não

altera sua destinação: continuará sendo ressarcimento destinado à

entidade prestadora do serviço. Sendo o débito de natureza indenizatória,

a ele não se aplica, ainda que por analogia, a prescrição qüinqüenal

adotada pelo Superior Tribunal de Justiça para a dívida ativa do Poder

Público, quando originada de relação de direito público.

7.21. Inaplicável a prescrição qüinqüenal, a solução há de ser encontrada

no Código Civil, que contém disposição expressa para ações dessa

natureza. Com efeito, o art. 206, § 3º, inciso IV, dispõe que prescreve em

três anos a pretensão de ressarcimento de enriquecimento sem causa.

Maior clareza impossível.

7.22. Estabelecido, como premissa, que a natureza do ressarcimento do

art. 32 da Lei nº 9.656/98 constitui reparação para se evitar o

enriquecimento sem causa em que incorreria a operadora de plano de

saúde, em detrimento da unidade do SUS que prestasse o atendimento, a

conclusão é no sentido de que o prazo prescricional para sua cobrança

será de três anos.

[...]

B.1. Como se trata de indenização com base no art. 884 do Código Civil,

a fim de impedir o enriquecimento sem causa, não tem lugar o

entendimento do Superior Tribunal de Justiça, linhas atrás mencionado,

3 RODRIGUES, Silvio – ob cit. Pág. 7/8. (nota do original)

Page 4: Ressarcimento SUS

4

que manda aplicar às obrigações de direito público a prescrição

qüinqüenal prevista no Decreto nº 20.910/32. É que, vale enfatizar,

tratando-se de reparação prevista no art. 884 do Código Civil, sua

natureza é de direito privado, sujeitando-se ao prazo prescricional de três

anos. (Código Civil, art. 206, § 3º, IV).

[...]

H.1. Conforme está no art. 884 do Código Civil, a restituição ou

ressarcimento deve ser igual ao valor indevidamente auferido, atualizado

monetariamente. Assim, a lei não concede qualquer margem de

discricionariedade à Administração para fixar, a seu talante, o valor do

ressarcimento. Deve ser ele, por imposição legal, idêntico ao valor do

enriquecimento sem causa, ou seja, o valor pago pelo SUS às entidades

que o integram, devidamente atualizado.

Pretende-se no presente trabalho demonstrar que a premissa de identificação do

ressarcimento ao SUS com uma pretensão de ressarcimento por enriquecimento sem causa

não pode ser aceita, bem como refletir sobre a correta natureza jurídica do instituto. Para

tanto, utilizar-se-á como parâmetro de confronto as conclusões do já mencionado Parecer

de Carlos Velloso e buscar-se-á delimitar a fonte jurídica e os fundamentos jurídicos e

extrajurídicos da obrigação de ressarcimento ao SUS.

2. Distinção entre fonte e fundamento da obrigação.

Para melhor análise do tema proposto, impõe-se desfazer a confusão entre

fundamento e fonte da obrigação de ressarcimento ao SUS. O ressarcimento ao SUS é uma

obrigação cogente que decorre diretamente do art. 32, da Lei nº 9.656/98. É verdade que,

sob certo ponto de vista, toda obrigação tem como fonte remota a lei, posto que todas as

obrigações nascem da lei, pois que é esta a fonte primária dos direitos; mesmo no campo

contratual, não haveria a força jurígena da manifestação volitiva se não fosse o poder

obrigatório que a lei lhe reconhece4. No entanto, deve-se atentar para qual fato humano foi

eleito pela lei como suficiente para o surgimento da obrigação. As fontes das obrigações,

assim, devem ser entendidas como os atos ou fatos de onde elas se originam, ou, na lição

de Orlando Gomes:

“o fato jurídico ao qual a lei atribui o efeito de suscitá-lo”, [pois] “entre a

lei, esquema geral e abstrato, e a obrigação, relação jurídica singular

entre pessoas, medeia sempre um fato, ou se configura uma situação,

considerado idôneo pelo ordenamento jurídico para determinar o dever de

prestar (Obrigações, Rio de Janeiro, Forense, 1986, p. 31)”5.

O fato humano eleito pela lei como idôneo a fazer nascer a obrigação de

ressarcimento ao SUS é a prestação de serviços de atendimento à saúde em instituições

públicas ou privadas, conveniadas ou contratadas, integrantes do Sistema Único de Saúde-

SUS, prestados aos consumidores e respectivos dependentes das operadoras de planos

privados de assistência à saúde. Uma vez ocorrido este fato da vida, incide a previsão do

art. 32, da Lei nº 9.656/98, fazendo nascer a obrigação de ressarcimento ao SUS.

4 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, vol. II. 22ª ed. Rio de Janeiro: Editora

Forense, 2009. p. 36.

5 Aput BDINE JR., Hamid Charaf. In PELUSO, Cezar (coord). Código Civil Comentado: doutrina e

jurisprudência. 2ª ed. Barueri, SP: Manole, 2008. p. 178.

Page 5: Ressarcimento SUS

5

Identificado o fato humano que faz surgir a obrigação, deve-se esclarecer qual a

norma jurídica incide com força jurígena suficiente para o nascimento do dever de prestar.

Nesse aspecto, é equivocado supor que o ressarcimento ao SUS tem por fonte a vedação ao

enriquecimento sem causa previsto no art. 884, do Código Civil. Na verdade, a vedação ao

enriquecimento sem causa é um dos fundamentos da obrigação, mas não a sua fonte. A

vedação ao enriquecimento sem causa consiste no princípio que inspira e legitima a

obrigação estabelecida no art. 32, da Lei nº 9.656/98, assim como também o é o princípio

da solidariedade (CF, art. 3º, I), além de razões regulatórias de desestímulo a práticas

mercadológicas viciadas.

A confusão terminológica entre fonte e fundamento da obrigação se explica pela

própria polissemia do termo fonte, que em muitas ocasiões é indevidamente empregado

como sinônimo de fundamento. Essa perspectiva é bem demonstrada por Kelsen6:

Legislação e costume são freqüentemente designados como as duas

“fontes” do Direito, entendendo-se aqui por Direito apenas as normas

gerais do Direito estatal. Mas as normas jurídicas individuais pertencem

tanto ao Direito, são tanto parte integrante da ordem jurídica, como as

normas jurídicas gerais com base nas quais são produzidas. E, se

tomarmos em linha de conta o Direito internacional geral, então não

poderemos considerar como “fontes” deste Direito a legislação, mas

somente o costume e o tratado.

Fontes de Direito é uma expressão figurativa que tem mais do que uma

significação. Esta designação cabe não só aos métodos acima referidos

mas a todos os métodos de criação jurídica em geral, ou a toda norma

superior em relação à norma inferior cuja produção ela regula. Por isso,

pode por fonte de Direito entender-se também o fundamento de validade,

a norma fundamental. No entanto, efetivamente, só costuma designar-se

como “fonte” o fundamento de validade jurídico-positivo de uma norma

jurídica, quer dizer, a norma jurídica positiva do escalão superior que

regula a sua produção. Neste sentido, a Constituição é a fonte das

normas gerais produzidas por via legislativa ou consuetudinária; e uma

norma geral é a fonte da decisão judicial que a aplica e que é representada

por uma norma individual. Mas a decisão judicial também pode ser

considerada como fonte dos deveres ou direitos das partes litigantes por

ela estatuídos, ou da atribuição de competência ao órgão que tem de

executar esta decisão. Num sentido jurídico-positivo, fonte do Direito só

pode ser o Direito.

Mas a expressão é também empregada num sentido não jurídico quando

com ela designamos todas as representações que, de fato, influenciam a

função criadora e a função aplicadora do Direito, tais como,

especialmente, os princípios morais e políticos, as teorias jurídicas,

pareceres de especialistas e outros. Estas fontes devem, no entanto, ser

claramente distinguidas das fontes de Direito positivo. A distinção reside

em que estas são juridicamente vinculantes e aquelas o não são enquanto

uma norma jurídica positiva não delegue nelas como fonte de Direito, isto

é, as torne vinculantes. Neste caso, porém, elas assumem o caráter de

uma norma jurídica superior que determina a produção de uma norma

jurídica inferior. A equivocidade ou pluralidade de significações do

6 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 7ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 258/259.

Page 6: Ressarcimento SUS

6

termo “fonte de Direito” fá-lo aparecer como juridicamente imprestável.

É aconselhável empregar, em lugar desta imagem que facilmente induz

em erro, uma expressão que inequivocamente designe o fenômeno

jurídico que se tem em vista. (grifos não são do original)

No nosso ordenamento jurídico positivo, a vedação ao enriquecimento sem causa,

seja enquanto princípio geral do Direito ou como emanação da norma do art. 884 do

Código Civil não é a fonte – no sentido de fundamento positivo de validade – da obrigação

das operadoras de ressarcimento ao SUS. A fonte – a norma jurídica positiva do escalão

superior que regula a produção de uma norma jurídica individual, seja a sentença ou o ato

administrativo, que reconheça a obrigação – do ressarcimento ao SUS é o art. 32 da Lei nº

9.656/98.

A vedação ao enriquecimento sem causa somente pode ser entendida como um dos

fundamentos dessa obrigação. Pode-se até admitir o uso, nesse contexto, do termo

fundamento como sinônimo de fonte, mas em sentido impróprio, externando a ideia de uma

representação que, de fato, influencia a função criadora e aplicadora do Direito. Nessa

acepção lingüística, a esse fundamento será atribuída a qualidade de fonte não jurídica ou

de fonte jurídica mediata7. Será uma fonte não jurídica se esse fundamento for entendido

como um princípio moral ou político, externo ao Direito. Porém, acaso se compreenda que

esse princípio foi acolhido pelo Direito positivo, assumirá o caráter de uma norma jurídica

superior que determina a produção de uma norma jurídica inferior. Em outros termos: o

princípio geral do Direito da vedação ao enriquecimento sem causa, acolhido

implicitamente pela ordem constitucional, será a norma jurídica superior que determina a

produção da norma jurídica inferior materializada no art. 32 da Lei nº 9.656/98.

Nesse sentido impróprio (ou mediato) de fonte jurídica, o princípio da vedação ao

enriquecimento sem causa pode ser compreendido como a base ou o critério de

justificação da norma constante do art. 32 da Lei nº 9.656/98, na expressão acolhida por

Larenz8 e exposta por Vale

9:

Karl Larenz desenvolve suas teses na obra “Direito Justo, Fundamentos

de Ética Jurídica” (Richtiges Recht, Grundzüge einer Rechtsethik). Em

linhas gerais, o conceito de princípios de Karl Larenz não difere muito do

pensamento de Esser. Segundo Larenz, desde a obra de Esser (Princípio e

7 A diferenciação aqui formulada entre fonte não jurídica e fonte jurídica mediata decorre da passagem

anteriormente transcrita da obra de Kelsen, que atribui aos princípios morais a qualidade de fontes não

jurídicas, uma vez que não seriam vinculantes “enquanto uma norma jurídica positiva não delegue nelas

como fonte de Direito, isto é, as torne vinculantes”. O aprofundamento desse tema conduz a indagações

jusfilosóficas mais elaboradas, tais como aquelas atinentes à distinção entre o positivismo jurídico exclusivo -

que nega qualquer possibilidade de a moral ser utilizada como critério de identificação do direito positivo - e

o positivismo jurídico inclusivo, que embora não abandone a tese da separação entre direito e moral, admite a

existência de sistemas jurídicos em que os imperativos morais desempenham um papel crucial na

identificação da validade e na interpretação das normas jurídicas. Sobre o assunto, confiram-se: DIMOULIS,

Dimitri. Positivismo jurídico: introdução a uma teoria do direito e defesa do pragmatismo jurídico-político.

São Paulo: Método, 2006. p. 134/147; VALE, André Rufino do. Estrutura das normas de direitos

fundamentais: repensando a distinção entre regras, princípios e valores. São Paulo: Editora Saraiva, 2009. p.

27/31.

8 Cf.: LARENZ, Karl. Derecho Justo: fundamentos de etica juridica. Madrid: Civitas, 2001. p. 34.

9 VALE, op. cit., p. 50/51.

Page 7: Ressarcimento SUS

7

norma na elaboração jurisprudencial do Direito Privado), considera-se a

existência de princípios que subjazem a uma determinada regulação

jurídica e que são aplicados pela jurisprudência, ainda que com

freqüência sejam desconhecidos ou estejam ocultos sob uma

fundamentação obscura.

Em comentário pertinente, Larenz também enfatiza que Esser foi o

primeiro autor a analisar com claridade a distinção entre princípio e

norma. Em sua concepção, o princípio não é por si mesmo uma norma,

mas a base ou o critério de justificação da norma.

Assim, seguindo o caminho trilhado por Esser, Larenz ressalta que “os

princípios não são regras acabadas”, mas sim os fundamentos iniciais

para a obtenção das regras. Em sua definição, os princípios constituem

“pensamentos diretores e causas de justificação de uma regulação jurídica

(possível ou efetivamente vigente)”.

Os princípios não são regras devido ao fato de “lhes faltar o caráter

formal de proposições jurídicas, representado pela conexão entre um

suporte fático e uma conseqüência jurídica”. Nesse sentido, os princípios

apenas indicam a direção que deve seguir o processo de regulação. Pode-

se dizer que são “um primeiro passo para a obtenção da regra”.

(destaques não são do original)

É verdade que a doutrina, a partir de Dworkin10

, tem assentado que os princípios,

assim como as regras, são espécies normativas. Dessa forma, um princípio jurídico pode

ser a razão suficiente para a decisão de um caso concreto. Isso ocorre porque nem sempre a

aplicação de um princípio está condicionada a uma prévia ponderação entre princípios

colidentes, uma vez que um princípio pode ser o próprio fundamento de um juízo concreto

de dever-ser, independente da consideração do peso relativo em face de outros princípios.

Isoladamente considerados, os princípios (e nesse aspecto se assemelham às regras)

dependerão apenas das possibilidades fáticas para sua concretização, perdendo importância

as possibilidades jurídicas (ponderação com outros princípios colidentes). Assim, um

princípio pode transmudar-se de mandamento de otimização para mandamento de

maximização11

. Quando isso se apresenta, o princípio adotado será a fonte imediata da

norma jurídica individual. No entanto, esse não é o caso presente, no qual entre o princípio

da vedação ao enriquecimento sem causa e a norma jurídica individual (a sentença ou o ato

administrativo que reconhece a obrigação de ressarcimento ao SUS) medeia outra norma

jurídica geral, qual seja: o art. 32 da Lei nº 9.656/98.

Na defesa da obrigação do ressarcimento ao SUS, a argumentação baseada no

princípio da vedação ao enriquecimento sem causa diz respeito ao fundamento de validade

do art. 32 da Lei nº 9.656/98, ou seja, à discussão sobre a constitucionalidade da norma.

Por isso, revela-se inadequado buscar auxílio, nesse ponto, no art. 884 do Código Civil, por

se tratar de norma da mesma hierarquia daquela constante do art. 32 da Lei nº 9.656/98. O

art. 884 do Código Civil não é o fundamento de validade do art. 32 da Lei nº 9.656/98,

nem tampouco a fonte imediata da obrigação de ressarcimento ao SUS.

A obrigação decorrente do art. 32 da Lei nº 9.656/98 pode ser entendida como a

concretização do princípio da vedação do enriquecimento sem causa e de outros princípios

de matriz constitucional, tais como o da solidariedade e do Estado Democrático, assim 10

DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 35/46.

11 Cf. ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Malheiros Editores, 2008. p. 95 e 108.

Page 8: Ressarcimento SUS

8

como se revela um instrumento para o exercício da função regulatória do Estado sobre o

mercado de Saúde Suplementar. Os fundamentos da obrigação, portanto, são mais amplos

que a vedação ao enriquecimento sem causa e a sua fonte é o art. 32 da Lei nº 9.656/98.

3. A teoria das externalidades e a incidência do princípio democrático e da

solidariedade.

A dificuldade de compreensão da natureza do ressarcimento ao SUS como uma

obrigação ex lege ressarcitória (compensatória), que não se confunde com uma pretensão

de ressarcimento por enriquecimento sem causa, decorre, ainda, de uma ausência de

sistematização dos demais fundamentos econômicos e jurídicos da obrigação. Não obstante

a jurisprudência12

compreender o instituto a partir da concretização do princípio da

vedação ao enriquecimento sem causa, melhor seria entendê-lo como um mecanismo legal

de reinternalização de externalidades (benefícios recebidos por agentes econômicos pelos

quais não efetuaram prévio pagamento) nos custos das operadoras, como forma de corrigir

uma falha do mercado decorrente do caráter suplementar da atividade privada de

atendimento à saúde, em um contexto de universalização e gratuidade da saúde pública. A

saúde pública é um direito social universal e gratuito, sendo que a prestação desse serviço

público aos usuários de planos de saúde representa um ganho (uma não despesa) para as

operadoras, que deixaram de desembolsar com a prestação do serviço ao usuário. O custo

desse atendimento, no entanto, é suportado por toda a coletividade. Como forma de evitar

o subsídio indireto de uma atividade privada, bem como em decorrência do princípio da

solidariedade, o custo desse serviço público de saúde deve ser reinternalizado pela

operadora, por meio do ressarcimento ao SUS.

O conceito de externalidades é atualmente objeto de amplo debate no direito

ambiental, por aplicação do princípio do usuário pagador, segundo o qual aquele que

utiliza mais os recursos ambientais escassos, em detrimento dos demais, deve arcar com o

correlativo ônus pelo seu uso intensivo. No direito ambiental tem merecido maior relevo a

noção de externalidades negativas13

, enquanto custos sociais da conduta individual,

conforme expõe Silva Filho14

:

12

Cf.: AC 436004; AMS 41289; AC 381668; todos do TRF da 2ª Região.

13 Vianna Lopes indica como causa da produção de externalidades negativas a interdependência das relações

sociais, própria da modernidade: “Por externalidades negativas são designadas as conseqüências nocivas de

atividades geradas nas relações sociais modernas e descarregadas sobre as pessoas alheias a elas. Assim,

como por exemplo, a inflação é uma externalidade negativa no campo econômico; a poluição é uma

externalidade negativa no campo ambiental... Afinal, se as relações sociais modernas envolvem sujeitos

livres para contraí-las, eles tendem a deslocar o ônus produzido no relacionamento para fora do mesmo,

atingindo pessoas alheias, ao invés de assumi-lo. Como não há submissão entre interdependentes, não é

razoável que algum ou todos os sujeitos da relação social arquem com suas conseqüências negativas,

preferindo exteriorizá-las.” (LOPES, Júlio Aurélio Vianna. A invasão do direito: a expansão jurídica sobre o

Estado, o mercado e a moral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005. p. 19.). Prossegue o citado autor

sustentando que as características da interdependência das relações sociais se modificaram na

contemporaneidade, fazendo surgir as internalidades negativas às próprias relações sociais, cujos ônus são

cada vez mais imprevisíveis e simultâneos aos benefícios produzidos (LOPES, op. cit., p. 21).

14 SILVA FILHO, Carlos da Costa e. O princípio do poluidor-pagador: da eficiência econômica à realização

da justiça. In: MOTA, Maurício (coord.). Fundamentos Teóricos do Direito Ambiental. Rio de janeiro:

Elsevier Editora, 2008.

Page 9: Ressarcimento SUS

9

Percebe-se assim, que o mercado, ao se deparar com recursos naturais,

cujo acesso é livre e cujo uso ou consumo é não-rival, falha, eis que os

referidos bens ou não têm preço, ou seu preço não traduz um reflexo fiel

do seu valor (e, por conseguinte, do seu custo), gerando distorções no seu

uso e consumo, tudo contribuindo para o que Garrett Hardin, em 1968,

chamou de “tragédia dos bens comuns” 15

, mediante uma postura

individualista que leva cada um a procurar maximizar seu interesse à

custa do outro (free rider) 16

. Conclui-se, do mesmo modo, que embora,

por definição, a economia seja a ciência da eleição do atendimento às

necessidades perante recursos escassos, a escassez não pode ser entendida

em um sentido absoluto, mas apenas de modo relativo, dentro do

mercado17

. Com razão, portanto, Cristiane Derani, ao afirmar que “a

economia não surge com a escassez, porém a escassez é um pressuposto

para a economia de mercado. Além do mais, não é toda a escassez que

integra a dinâmica de preços do mercado, mas aquela escassez que pode

ser controlada e produzida” 18

.

Enfim, as falhas do mercado concernentes aos bens ambientais geram

aquilo que se convencionou chamar de externalidades negativas, espécie

do gênero externalidade, conceituado por Victor Carvalho Pinto, como

“situações em que a atividade de uma unidade econômica prejudica ou

beneficia outras unidades” 19

, de forma que “terceiros ganham sem pagar

por seus benefícios marginais ou perdem sem serem compensados por

suportarem o malefício adicional” 20

.

Maria Alexandra de Sousa Aragão também indica o caminho para a

compreensão do que sejam as externalidades, ao afirmar que:

“a denominação efeitos externos ao mercado é compreensível,

porque se trata de transferência de bens ou prestação de serviços

fora dos mecanismos do mercado. São transferências por meios

não económicos na medida em que não lhes corresponde qualquer

fluxo contrário de dinheiro. Sendo transferências „a preço zero‟, o

preço final dos produtos não as reflecte, e por isso não pesam nas

decisões de produção ou consumo, apesar de representarem

15

HARDIN, Garret. The Tragedy of Commons. Science, vol. 162, 1968, p. 1243-1248. Disponível em:

<http://www.garretthardinsociety.org/articles/art_tragedy_of_the_commons.html>. Acesso em: 02 set. 2007. (nota

do original)

16 “A falta de mercado cria um preço ou custo zero e, por conseqüência, permite o uso excessivo ou abusivo

dos recursos ambientais pelos chamados free riders (caronas) – expressão muito utilizada pelos economistas

para designar os agentes econômicos que não pagam pela utilização dos bens livres. É como se o mercado

pudesse ser comparado a uma barreira de pedágio, que deve cobrar um determinado valor dos usuários que

trafegam pela rodovia. Os free riders seriam aqueles que se valem de um atalho ou desvio para elidir a

cobrança do pedágio, o que os coloca em posição mais vantajosa em relação aos demais motoristas”

(CARNEIRO, Ricardo Direito Ambiental. Uma Abordagem Econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p.

69). (nota do original)

17 No exemplo antes exposto, do consumo excessivo da fauna ictiológica, o fato da diminuição do número de

exemplares de uma dada espécie de peixes (a sua escassez em termos absolutos) não provoca um aumento do

preço do respectivo pescado, mas sim um incremento exponencial de sua captura. (nota do original)

18 DERANI, Cristiane. Direito Ambiental Econômico. 2. ed. São Paulo: Max Limonad, 2001, p. 117. (nota do

original)

19 PINTO, Victor Carvalho. Direito Urbanístico. Plano Diretor e Direito de Propriedade. São Paulo: Editora

Revista dos Tribunais, 2005, p. 53-54. (nota do original)

20 MOTTA, Ronaldo Seroa da. Economia Ambiental. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006, p. 182. (nota do

original)

Page 10: Ressarcimento SUS

10

verdadeiros custos ou benefícios sociais decorrentes da utilização

privada dos recursos comuns” 21

.

Em outras palavras, o que a jurista lusitana já deixa entrever é que na

produção e circulação de riquezas existem benefícios recebidos por

agentes econômicos pelos quais não efetuaram prévio pagamento, assim

como custos não apropriados pelos responsáveis, e que são sustentados

por aqueles que não se beneficiam do resultado do processo produtivo.

Em suma, efeitos externos ao mercado, ou externalidades, positivas, na

primeira hipótese aqui proposta; e negativas, no segundo exemplo.

O conceito acima apresentado de externalidade parece adequado ao objeto do

ressarcimento ao SUS: situações em que a atividade de uma unidade econômica prejudica

ou beneficia outras unidades de forma que terceiros ganham sem pagar por seus benefícios

marginais (externalidades positivas) ou perdem sem serem compensados por suportarem o

malefício adicional (externalidades negativas). A falha de mercado decorre do fato de que

o Estado, ao prestar a saúde pública, atua como uma unidade econômica (em sentido

impróprio, considerando-se o “mercado de saúde”), cuja atividade beneficia as outras

unidades econômicas (as operadoras de planos de saúde privados).

A rigor, essa situação não é suficientemente resolvida pelo princípio da vedação ao

enriquecimento sem causa. Isso porque não se pode dizer que sempre o ganho obtido pelo

terceiro (que deixou de arcar com os custos do serviço de saúde prestado pelo sistema

público ao beneficiário de seu plano de saúde) tenha se dado sem justa causa22

. Inúmeras

situações poderiam ser alegadas pelas operadoras para sustentar que elas não contribuíram

de qualquer forma para que o atendimento ao usuário tenha ocorrido pelo sistema público

de saúde. Ainda que não se exija a existência de um ilícito para a possibilidade de

configuração do enriquecimento sem causa, situar a obrigação em questão exclusivamente

no âmbito desse instituto jurídico pode suscitar dúvidas quanto ao próprio critério de

imputação da responsabilidade. Igualmente, qual seria o critério quantitativo para se

estabelecer a partir de quantos atendimentos no sistema público a operadora passou a

receber a mensalidade do plano de saúde sem uma justa causa? A falta de justa causa para

a apropriação da externalidade pelo agente econômico pressupõe a existência de uma lei

impondo a obrigação de reinternalização do custo na atividade empresarial.

Não é estranho à economia de mercado que um agente econômico seja beneficiado

por um fato externo à sua atividade. Empresas podem se beneficiar de uma atividade

econômica de outras empresas ou mesmo da prestação de um serviço público. As teorias

econômicas debatem se essas externalidades devem ser solucionadas pelo próprio mercado

ou pela atuação interventiva do Estado23

. De toda forma, tentar resolver essas questões a

21

ARAGÃO, Maria Alexandra de Sousa. O Princípio do Poluidor-Pagador. Pedra Angular da Política

Comunitária do Ambiente. Coimbra: Coimbra Editora, 1997, Stvdia Ivridica, 23, p. 33. (nota do original)

22 Em defesa da ausência de justa causa no enriquecimento da operadora: REIS, Otávia Miriam Lima

Santiago. Ressarcimento ao SUS: fundamento jurídico da cobrança. Monografia apresentada ao

Departamento de Direito da Universidade de Viçosa. Disponível em:

<http://www.ans.gov.br/images/stories/Materiais_para_pesquisa/Materiais_por_assunto/monografia_ressarci

mento_ao_sus.pdf>).

23 As divergências quanto ao comando - se tarefa do Estado ou do mercado - do processo de internalização

ensejou a contraposição entre as teorias econômicas de Arthur Cecil Pigou, defensor da tese da “intervenção

estatal para a correção das falhas de mercado, fosse mediante a instituição de subvenções, subsídios ou

incentivos, no caso das externalidades positivas (por ele chamadas de economias externas), fosse por meio da

Page 11: Ressarcimento SUS

11

partir do princípio da vedação ao enriquecimento sem causa resultará na transformação de

fatos econômicos em demandas jurídicas, acentuando o já elevado quadro de judicialização

das relações sociais24

. O ponto nodal, no entanto, é saber quais tipos de externalidades não

são aceitas pela sociedade, sendo o Poder Legislativo o fórum adequado para o debate,

como decorrência do princípio democrático. Lorenzetti25

expõe com clareza esse dilema

contemporâneo, que já se reflete no direito ambiental:

A noção de externalidade negativa ou custo social da conduta individual

tem sido um suporte fundamental para o ambientalismo.

Este aspecto, habitualmente ignorado, foi incorporado nas análises

econômicas e no direito, e serviu para sinalizar muitas situações em que

há conseqüências do agir individual que outros arcam. Historicamente, o

direito se baseou no pressuposto da neutralidade a respeito deste tipo de

ação, como uma forma de subsidiar os indivíduos e as empresas que

atuam no mercado. Nas origens do capitalismo, a empresa estava

nascendo e merecia um subsídio para fortalecer o seu crescimento, razão

pela qual a regulação se concentrou somente nos problemas individuais

ou internos.

Como conseqüência deste princípio, as empresas cujas atividades

contaminam não levam em consideração estes custos, pois são

transferidos a outras pessoas ou à comunidade em seu conjunto,

recebendo apenas o benefício por sua atividade. Ao externalizar estes

custos, não têm incentivos para reduzir o nível de poluição que causam

com a produção de bens e serviços rentáveis. A partir do ponto de vista

estritamente econômico, a externalidade leva a uma superprodução que

excede o que se produziria realmente se a empresa levasse em conta os

custos reais. A chave para alcançar um nível ótimo consiste em induzir os

maximizadores do benefício privado para restringir sua produção ao

máximo nível para que seja o melhor do ponto de vista social e não só do

ponto de vista privado. Isto se alcança mediante políticas públicas que

obriguem a empresa a funcionar ao longo da curva de custo marginal

social e não ao longo da curva de custo marginal privado, o que implica

que a “externalidade” seja “internalizada”.

cobrança de uma prestação financeira ao agente econômico que se beneficiava das externalidades negativas

(deseconomias externas)” e Ronald Coase, que “sustentava a tese da atribuição de direitos de propriedade aos

bens coletivos, para que os respectivos titulares, mediante negociação direta, sem qualquer interferência

estatal, buscassem mediante acordo a internalização eficiente dos efeitos externos de suas atividades” (cf.:

SILVA FILHO, op. cit.)

24 O debate se insere, portanto, na importante temática da judicialização da política, na qual se contrapõem,

de um lado, uma doutrina que demanda uma aumentada “responsabilidade dos integrantes do Poder

Judiciário na concretização e no cumprimento das normas constitucionais, inclusive as que possuem uma alta

carga valorativa e ideológica” e, de outro, uma teoria constitucional restrita ao âmbito da neutralidade

política, que propugna apenas pela “judicialização da política dos direitos fundamentais, aí incluídos os

direitos sociais, já que os mesmos são requisitos para a conformação de um contexto democrático” (cf.:

SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. O dilema constitucional contemporâneo entre o neoconstitucionalismo

econômico e o constitucionalismo democrático. In: Constitucionalismo democrático e governo das razões.

Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 38/39). Uma visão mais densa é fornecida por Vianna Lopes, segundo

o qual a judicialização da política não é um conceito errôneo, mas insuficiente, uma vez que se verifica na

contemporaneidade a própria substituição da política pelo direito, na regulação dos interesses difusos

(LOPES, op. cit., p. 65/66).

25 LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria geral do direito ambiental. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,

2010. p. 34/35.

Page 12: Ressarcimento SUS

12

A grande mudança se produz quando se “internalizam” esses custos

porque a sociedade já não quer suportá-los. Isso se vê claramente nas

indenizações por danos ambientais que devem pagar as empresas, mas

também nas exigências de transformação dos mecanismos de produção de

bens, obrigando-as a incorporar novas tecnologias “limpas”, com cujo

custo devem arcar.

Constrói-se assim um novo modelo de relação entre a empresa e a

sociedade em relação às externalidades, altamente complexo e

conflituoso. (destaques não são do original)

O debate em jogo envolve e contrapõe a sociedade e os agentes econômicos privados

e diz respeito à obrigação de reinternalização nos custos da empresa do benefício por ela

auferido e que foi arcado por toda a coletividade. Conforme anota a doutrina26

, o

reconhecimento de que todos os direitos possuem custos quase sempre elevados, sendo

arcados por escassos recursos captados na coletividade de indivíduos singularmente

considerados, e de que os recursos públicos são insuficientes para a promoção de todos os

ideais sociais – impondo o sacrifício de alguns deles -, implica também o reconhecimento

de que os direitos devem ser exercitados com responsabilidade.

A obrigação veiculada no art. 32 da Lei nº 9.656/98, nesse contexto, manifesta uma

decisão da sociedade de não tolerar a externalidade representada pelo benefício obtido

pelas operadoras em decorrência do atendimento a um consumidor do plano de saúde pela

rede pública de saúde27

. Essa decisão, manifestação do princípio democrático, encontra

respaldo no princípio da solidariedade, que demanda uma responsabilidade de todos pelo

financiamento dos serviços de saúde pública. O princípio da solidariedade não se restringe

à legitimação da competência tributária residual, uma vez que a Constituição prevê o

custeio do sistema único de saúde por outras fontes, além dos recursos do orçamento da

seguridade social, conforme prevê em seu art. 198, § 1º28

. Sobre a incidência do principio

da solidariedade como fundamento do ressarcimento ao SUS, confira-se o seguinte trecho

do AgRg no REsp 866.393/RJ, julgado pelo Superior Tribunal de Justiça:

[...]13. Mesmo assim, não causa arrepio o fato de procurar o Poder

Público recobrar investimento do setor privado, pelo princípio que

veda o enriquecimento sem causa, em combinação com o princípio da

solidariedade, pois todos são chamados à sua parcela de contribuição

para a manutenção da saúde das pessoas.

26

GALDINO, Flávio. O Custo dos Direitos. In: BARCELOS, Ana Paula de [et.al.]; TORRES, Ricardo Lobo

(org.). Legitimação dos Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 200.

27 Note-se que a Constituição, em seu art. 199, § 2º, é expressa em vedar a destinação de recursos públicos

para auxílios ou subvenções às instituições privadas com fins lucrativas que atuam no âmbito da saúde

suplementar.

28 Nesse aspecto, concorda-se com CARLOS VELLOSO, que ressalta a desnecessidade de lei complementar

para a veiculação do ressarcimento ao SUS, em decorrência da ausência de natureza tributária da obrigação,

nos seguintes termos de seu Parecer: “4.2. E o § 4º do mesmo artigo 195 dispôs que outras fontes poderiam

ser criadas para a manutenção e expansão da seguridade social, desde que observado o disposto no art. 154,

inciso I, que exige, entre outras condições, que essa criação se dê mediante lei complementar. Ocorre que o

art. 32 da Lei nº 9.656/98 não criou fonte de recurso para a manutenção ou expansão da seguridade social,

para o que seria indispensável lei complementar, mas instituiu uma forma de ressarcimento por gasto

efetuado pelo sistema público de saúde, que pode ser enquadrado entre as outras fontes de custeio do sistema

de saúde, conforme previsto no § 1º art. 198 da Constituição.”

Page 13: Ressarcimento SUS

13

14. Por outro lado, as operadoras de planos privados e seguros de

saúde não podem queixar-se de diminuição patrimonial, uma vez que,

não fosse o atendimento dado pelo SUS, estariam sujeitas a prestá-lo

por si mesmas, despendendo para tanto recursos seus.

15. O princípio da solidariedade fundamenta a regra contida no art.

32 da Lei n° 9.656/98 e, em última análise, se insere no contexto da

concretização do objetivo fundamental da República Federativa do

Brasil, a saber, a construção de uma sociedade mais justa, livre e

solidária (CF/88, art. 3°, inciso I). Conclui-se, portanto, pela

constitucionalidade, legalidade e legitimidade do ressarcimento ao

SUS instituído pela Lei n° 9.656/98. [...]

4. A função regulatória e o ressarcimento ao SUS.

Há, também, no art. 32 da Lei nº 9.656/98 o estabelecimento de um mecanismo de

regulação para corrigir práticas mercadológicas viciadas. A própria existência do

ressarcimento ao SUS representa um estímulo a boas práticas empresarias, na medida em

que induz o agente econômico a propiciar meios para reduzir a utilização do SUS pelos

seus beneficiários, uma vez que esse atendimento gera também um custo para a operadora.

Além disso, a função regulatória decorre da competência normativa geral atribuída pelo

caput do art. 32 da Lei nº 9.656/98 à ANS para definir as normas para o ressarcimento29

,

bem como da previsão constante do § 8º do mesmo artigo, segunda a qual o valor do

ressarcimento não poderá ser inferior ao praticado pelo SUS nem superior ao praticado

pelas operadoras. A lei, portanto, estabelece dois limites dentro dos quais caberá à Agência

Nacional de Saúde Suplementar fixar o valor da obrigação. Essa possibilidade de fixação

do valor do ressarcimento em montante superior aos praticados pelo SUS evita que as

operadoras prefiram pagar o ressarcimento ao SUS ao invés de corrigirem eventuais falhas

na prestação do serviço a seus usuários. Esse valor já se encontra limitado pela lei ao

montante praticado pelas operadoras, o que revela uma opção legislativa decorrente de um

juízo prévio de proporcionalidade da medida.

O tratamento legal quanto ao valor do ressarcimento ao SUS demonstra que além da

função de concretização do princípio da vedação ao enriquecimento sem causa e da

solidariedade, a obrigação legal instituída atua como mecanismo de regulação da atividade

econômica privada, sujeita à intervenção estatal. Por sua vez, a regulação estatal da

atividade privada de prestação de serviços de saúde, materializada pela Lei nº 9.656/98,

encontra fundamento de validade no art. 197 da Constituição.

5. Da não fungibilidade entre o ressarcimento legal ao SUS e a pretensão de

ressarcimento por enriquecimento sem causa do art. 884 do Código Civil.

Não é possível desconsiderar a existência do art. 32 da Lei nº 9.656/98 sob a

alegação de que já existe norma mais geral que trata do enriquecimento sem causa (o art.

884 do Código Civil). Entender como desnecessária a criação do ressarcimento ao SUS

pela Lei 9.656/98, uma vez que dessa indenização já cuida o Código Civil, revela uma

inadequada identificação da fonte da obrigação. Se não existisse o art. 32 da Lei nº 29

A existência de uma função regulatória decorrente do ressarcimento ao SUS é defendida por Melo da

Cunha, especificamente para sustentar a possibilidade de a ANS estabelecer, com base em seu poder

normativo, critério para o parcelamento do crédito. Cf.: CUNHA, Paulo César Melo da. Regulação jurídica

da saúde suplementar no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2003. p. 112.

Page 14: Ressarcimento SUS

14

9.656/98 seria necessário buscar a cobrança de valores pagos em atendimentos oferecidos

pelo SUS a beneficiários de planos de saúde com base no Código Civil, mediante o

ajuizamento de uma ação veiculando essa pretensão, na qual seria preciso demonstrar a

presença de todos os requisitos30

à configuração do enriquecimento sem causa. No entanto,

a existência do art. 32 da Lei nº 9.656/98 desonera o Poder Público de utilizar a norma

geral do Código Civil. A única exigência será a manifestação no mundo fático da hipótese

elegida pela Lei (art. 32 da Lei nº 9.656/98) para a existência da obrigação de ressarcir ao

SUS: a prestação de serviços de atendimento à saúde em instituições públicas ou privadas,

conveniadas ou contratadas, integrantes do Sistema Único de Saúde-SUS, aos

consumidores e respectivos dependentes das operadoras de planos privados de assistência à

saúde.

Afastada a premissa, também não se sustenta a conclusão pela aplicação do prazo

prescricional do ressarcimento ao SUS deve ser aquele previsto no art. 206, § 3º, IV do

Código Civil, que cuida da prescrição da pretensão de ressarcimento de enriquecimento

sem causa. A norma em questão está se reportando ao art. 884, conforme se pode concluir

por uma simples interpretação sistemática do Código. Ocorre que a aplicação dessa regra

do art. 206, § 3º, IV do Código Civil somente seria possível se fosse desconsiderada a força

jurígena autônoma do art. 32, da Lei nº 9.656/98, criadora da obrigação. E como já

demonstrado, o ressarcimento legal ao SUS não se confunde com uma pretensão de

ressarcimento por enriquecimento sem causa, inaplicável, portanto, o prazo do art. 206, §

3º, IV, do Código Civil31

.

Igualmente, a conclusão de que o valor do ressarcimento deve coincidir com o valor

gasto com o atendimento do segurado se baseia na equivocada noção de que a obrigação

tem a mesma natureza de uma pretensão de ressarcimento por enriquecimento sem causa

decorrente da aplicação do art. 884 do Código Civil. No entanto, conforme já amplamente

demonstrado, a obrigação legal de ressarcimento ao SUS transcende ao fundamento da

vedação ao enriquecimento sem causa. No particular aspecto da fixação do valor do

ressarcimento, o legislador instituiu, fixando prévios parâmetros, um mecanismo de

regulação da atividade privada de interesse público, nos termos em que dispõe o art. 197 da

Constituição.

6. Da necessária imbricação entre o direito público e o privado para a classificação da

obrigação.

30

Segundo a doutrina, o art. 884 do Código Civil exige os seguintes requisitos: o enriquecimento do

beneficiado sem justa causa; o empobrecimento do lesado; e a relação de imediatidade entre o

enriquecimento e o empobrecimento. Cf.: PEREIRA, op. cit., p. 276/277.

31 Não se pretende discutir no presente trabalho o específico tema do prazo prescricional do ressarcimento ao

SUS. No entanto, convém destacar que talvez não se mostre relevante para esse debate a classificação da

obrigação como de natureza privada, aspecto abordado no próximo item. Isso porque a jurisprudência do

Superior Tribunal de Justiça (cf.: AgRg no REsp 1073796/RJ) tem aplicado o prazo prescricional do Decreto

20.910/32, em detrimento do prazo especial previsto no Código Civil, para ações de responsabilidade civil

movidas conta a Fazenda Pública. Dessa forma, por aplicação do princípio isonômico, as pretensões

indenizatórias da Fazenda Pública contra os particulares, mesmo fundadas em direito civil, também serão

regidas pela prescrição quinquenal, afastando-se os prazos menores fixados no Código Civil, tal como o

prazo do art. 206, § 3º, IV. A questão, no entanto, não se encontra pacificada, havendo posicionamento do

próprio STJ no sentido de se aplicar o art. 206, § 3º, V, do Código Civil de 2002, em detrimento do art. 1º do

Decreto n. 20.910/32, em relação às pretensões de reparação civil contra os entes públicos sempre que assim

determinarem a regra de transição ou a data da ocorrência do fato danoso (cf.: EDcl no REsp 1145494/PR).

Page 15: Ressarcimento SUS

15

Por outro lado, a classificação do ressarcimento legal ao SUS, conforme proposta por

Carlos Velloso, como uma relação de direito privado decorre do argumento de que a

obrigação “não tem origem em contrato firmado sob o comando do direito administrativo

nem constitui exigência feita em razão do exercício do jus imperi estatal” e que a

obrigação “decorre da lei, para o fim de evitar o enriquecimento sem causa, matéria de

direito privado, disciplinada pelo direito civil”.

A doutrina tem ressaltado que não se sustenta no atual estágio do Estado

contemporâneo a nítida e rígida distinção, típica do século XIX, entre direito público e

direito privado, conforme bem demonstra Medauar32

:

O tema sobre a esfera pública e a esfera privada apresenta-se, em grande parte,

vinculada à idéia de separação entre o Estado e a sociedade. No interior do

sistema jurídico, refletiu-se na divisão entre direito público e direito privado.

No século XIX a necessidade de consolidação do poder estatal na função de

garantir a ordem, a segurança e o exercício dos direitos dos indivíduos, aliada à

observância da autonomia da atuação privada, levou à distinção entre “o poder

soberano e sua esfera e o poder dos indivíduos nas suas relações”33

. Para Celso

Lafer, “no exame desta dicotomia, que tem uma função heurística indiscutível

na epistemologia jurídica, importa mencionar que existem duas acepções

básicas a partir das quais se estruturam as relações de oposição entre os dois

termos: na primeira, público é o que afeta todos ou a maioria, sendo portanto, o

comum, que se contrapõe ao privado, visto como o que afeta a um ou a poucos;

na segunda, público é o que é acessível a todos, em contraposição ao privado,

encarado como aquilo que é reservado e pessoal”34

.

Com a dinâmica intervencionista o Estado passou a atuar em esferas antes tidas

como reservadas à autonomia privada, em especial no setor econômico e social,

do que resultou o processo denominado de publicização do privado; o que afeta

a poucos passou a ser de interesse comum; a política interferiu na economia; por

outro lado, grandes organizações, associações e grupos privados passaram a

exercer pressão sobre o Estado, a colaborar na gestão de atividades de interesse

geral, a solucionar problemas mediante acordos e negociações, gerando a

chamada privatização do público. “Com isso, a distinção entre a esfera pública

e privada perde sensivelmente em nitidez”35

, o que traz conseqüências de relevo

em muitos institutos jurídicos delineados no século XIX, quando a idéia de

separação predominava. Menciona-se também, no tema: flexibilização das

relações público-privado;36

enfraquecimento da separação entre setor público e

setor privado;37

intercâmbio e conexão entre público e privado;38

“a atenção se

32

MEDAUAR, Odete. O direito administrativo em evolução. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos

Tribunais, 2003. p. 115/116.

33 Tércio Sampaio Ferraz Júnior. Introdução ao estudo..., cit., p. 130. (nota do original)

34 A ruptura totalitária e a reconstrução dos direitos humanos. Um diálogo com Hannah Arendt. São Paulo:

1998. p. 243. (nota do original)

35 Sampaio Ferraz Júnior. Introdução ao estudo..., cit., p. 131. (nota do original)

36 Gaudin. Gouverner par contrat. Paris, 1999. p. 10. (nota do original)

37 Cassese. Il cittadino e l‟Amministrazione Pubblico. Riv. Trim. Dir. Pub., vol. 4, p. 1.020, 1998. (nota do

original)

38 Erminio Ferrari. Lo Stato sussidiario. Diritto Pubblico, vol. 1, p. 115, 2002. (nota do original)

Page 16: Ressarcimento SUS

16

desloca dos critérios de diferenciação entre público e privado para os critérios

de coexistência e de imbricação entre ambos”39

.

O art. 32 da Lei nº 9.656/98 veicula uma obrigação ressarcitória, mas que não se

equivale a uma relação exclusivamente privada indenizatória. Trata-se de uma obrigação

com uma inegável dimensão social (a responsabilidade das operadoras frente aos custos de

manutenção do serviço público de saúde, cuja prestação representou um benefício

econômico para suas atividades empresariais), além de atuar como um mecanismo de

intervenção do Estado na regulação da atividade privada de saúde suplementar. A vedação

ao enriquecimento sem causa, conforme amplamente demonstrado anteriormente, é apenas

um dos fundamentos da obrigação. Ainda assim, melhor seria compreender que ao invés de

enriquecimento sem causa, a obrigação veicula uma decisão da sociedade de não tolerar

uma específica externalidade, determinado a reinternalização nos custos da empresa do

benefício auferido e arcado por toda a coletividade. Por essas razões, a obrigação do art. 32

da Lei nº 9.656/98 possui um caráter público, ainda que não se negue eventual fundamento

típico de direito civil. Conforme destacado na citação doutrinária acima, melhor do que

buscar critérios de distinção entre o público e o privado, deve-se atentar para a necessária

imbricação entre essas duas esferas.

Por outro lado, há uma incorreção no entendimento de que o ressarcimento se destina

à entidade prestadora do serviço, sendo que a cobrança pela ANS se dá apenas por uma

questão de praticidade. O caput o art. 32 da Lei nº 9.656/98 explicita que serão ressarcidos

pelas operadoras os serviços de atendimento à saúde, previstos nos respectivos contratos

prestados aos seus consumidores e respectivos dependentes, em instituições públicas e

privadas, conveniadas ou contratadas, integrante do Sistema Único de Saúde-SUS. E o

parágrafo primeiro do mencionado art. 32 aduz que o ressarcimento será efetuado à

entidade prestadora de serviço, quando esta possuir personalidade jurídica própria, e ao

SUS. A leitura isolada e literal desse dispositivo pode levar à falsa compreensão de que o

valor do ressarcimento destina-se a beneficiar o prestador do serviço (seja público ou

privado). Ocorre que esse serviço já pode ter sido pago pelo SUS ao prestador antes do

processamento do ressarcimento. Quando isso ocorre, o valor do ressarcimento deve se

destinar ao SUS e não ao prestador, pois o contrário resultaria em um pagamento em

duplicidade em favor do prestador de serviço.

A ANS editou a Resolução Normativa nº 185/2008, modificada pela Resolução

Normativa nº 217/2010, que estabelece as normas do procedimento do ressarcimento ao

SUS, prevendo que a identificação da ocorrência da obrigação de ressarcir ao SUS ocorre

por meio da constatação de atendimento no SUS a beneficiário, sendo que essa

identificação se realizada mediante cruzamento de bancos de dados relativos aos

atendimentos realizados pelo SUS com as informações cadastrais das operadoras,

constantes do banco de dados da ANS40

. O repasse dos valores recolhidos é regulado pelo

art. 51 da RN 185, que teve sua redação modificada pela RN nº 217/2010, prevendo que

39

Luzia Torchia. La scienza Del diritto amministrativo. Riv. Trim. Dir. Pub., vol. 4, p. 1.122, 1998. (nota do

original)

40 Consoante dispõe o caput do art. 20 da Lei nº 9.656, “as operadoras de produtos de que tratam o inciso I e

o § 1o do art. 1

o desta Lei são obrigadas a fornecer, periodicamente, à ANS todas as informações e estatísticas

relativas às suas atividades, incluídas as de natureza cadastral, especialmente aquelas que permitam a

identificação dos consumidores e de seus dependentes, incluindo seus nomes, inscrições no Cadastro de

Pessoas Físicas dos titulares e Municípios onde residem, para fins do disposto no art. 32.”

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17

“os valores recolhidos pelas OPS a título de ressarcimento ao SUS serão partilhados pela

ANS conforme ato em conjunto com o Ministério da Saúde”. Atualmente, encontra-se em

fase de discussão entre a ANS, o Ministério da Saúde e o Fundo Nacional de Saúde a

elaboração de Portaria conjunta para disciplinar os procedimentos de repasse dos valores

do ressarcimento ao SUS. De qualquer forma, já se constata que não há o pagamento da

operadora diretamente aos prestadores de serviço, uma vez que caberá ao gestor do SUS a

prévia verificação da situação específica para saber se já houve o repasse de verbas

públicas do SUS, evitando o pagamento em duplicidade.

Constata-se, assim, que não se sustenta a afirmativa de que o ressarcimento é de

natureza privada, não constituindo receita da ANS, uma vez que a sua destinação seria para

a prestadora do serviço. De fato, a ANS atua apenas como um instrumento para a cobrança

do ressarcimento, mas esses recursos destinam-se a recompor o Sistema Único de Saúde e

não propriamente ao prestador privado. Além disso, o próprio art. 32, § 6º, da Lei nº

9.656/98 estabelece que o produto da arrecadação dos juros e da multa de mora será

revertido ao Fundo Nacional de Saúde.

7. Conclusão.

Das reflexões desenvolvidas no presente trabalho, verificou-se que: (i) a correta

delimitação do ressarcimento ao SUS impõe refletir sobre a distinção entre a fonte (o fato

humano que faz surgir a obrigação em conjugação com a norma jurídica positiva do

escalão superior que regula a produção de uma norma jurídica individual que reconheça a

obrigação) e o fundamento (as fontes jurídicas mediatas, que inspiram e dão fundamento

de validade ao art. 32 da Lei nº 9.656/98) da obrigação; (ii) a vedação ao enriquecimento

sem causa não é a fonte jurídica imediata do ressarcimento ao SUS, só podendo ser

entendida como um dos fundamentos da obrigação; (iii) a fonte jurídica imediata do

ressarcimento ao SUS é o art. 32 da Lei nº 9.656/98; (iv) o ressarcimento ao SUS é melhor

compreendido a partir da teoria das externalidades, manifestando uma decisão da

sociedade de não tolerar a externalidade representada pelo benefício obtido pelas

operadoras em decorrência do atendimento a um consumidor do plano de saúde pela rede

pública de saúde; (v) o fundamento (ou a fonte jurídica mediata) da obrigação, a partir da

teoria das externalidades, encontra-se no princípio democrático, no princípio da

solidariedade e na função regulatória sobre as atividades de saúde suplementar.

Diante dessas reflexões, pode-se concluir que: (i) o ressarcimento legal ao SUS,

instituído pelo art. 32 da Lei nº 9.656/98, constitui obrigação ex lege ressarcitória, que não

se confunde com uma pretensão de ressarcimento de enriquecimento sem causa fundada no

art. 884 do Código Civil, sendo inaplicável o prazo prescricional previsto no art. 206, § 3º,

do Código Civil; (ii) o valor do ressarcimento legal ao SUS é fixado na forma do art. 32, §

8º, da Lei nº 9.656/98, não podendo ser inferior aos valores praticados pelo SUS nem

superior aos valores praticados pelas operadoras, de maneira que o valor do ressarcimento

não precisa ser igual ao montante pago pelo SUS às entidades que o integram.

Por fim, deve-se destacar que a ausência de perfeito enquadramento da obrigação nas

categorias da responsabilidade civil não induz a inconstitucionalidade do art. 32 da Lei nº

9.656/9841

. A obrigação legal de ressarcimento ao SUS possui fundamento constitucional

41

Em importante julgado, em uma situação análoga, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI

3378/DF, analisando o instituto da compensação ambiental veiculado pelo art. 36 da Lei nº 9.985/2000,

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tanto no princípio da solidariedade (art. 3º, inciso I e III; e arts. 194, 195, 198, § 1º e 203,

todos da Constituição), como no princípio do Estado Democrático de Direito (art. 1º da

Constituição) e na função regulatória do Estado sobre a atividade privada de saúde

suplementar (art. 197 da Constituição). Em síntese, conforme trecho do já citado

precedente do Superior Tribunal de Justiça (AgRg no REsp 866393/RJ): “não se pode

perder de vista que a lei pode criar novos institutos, desde que não seja afrontada a

Constituição. Não é necessário, sempre, enquadrá-los em categorias jurídicas já

existentes”.

8. REFERÊNCIAS.

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2008.

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Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2003.

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pragmatismo jurídico-político. São Paulo: Método, 2006.

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LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria geral do direito ambiental. São Paulo: Editora

Revista dos Tribunais, 2010.

MEDAUAR, Odete. O direito administrativo em evolução. São Paulo: Editora Revista

dos Tribunais, 2003.

afirmou a constitucionalidade da instituição, por Lei, de uma obrigação compensatória, muito embora esse

instituto não possa se enquadrar nas tradicionais categorias da responsabilidade civil. Em especial, o dever de

compensação ambiental existe mesmo diante de uma atividade lícita e – nisso o mais inovador em relação ao

sistema tradicional da responsabilidade civil – essa obrigação persiste mesmo sem a prévia ocorrência e

valoração dos danos ambientais, uma vez que tal compensação não representa estritamente uma reparação

pelos danos causados. Cf.: MOTA, Maurício. Função socioambiental da propriedade: a compensação

ambiental decorrente do princípio do usuário pagador na nova interpretação do Supremo Tribunal Federal.

In: MOTA, Maurício (coord.). Função Social do Direito Ambiental. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009. p. 3/68.

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19

MOTA, Maurício. Função socioambiental da propriedade: a compensação ambiental

decorrente do princípio do usuário pagador na nova interpretação do Supremo Tribunal

Federal. In: MOTA, Maurício (coord.). Função Social do Direito Ambiental. Rio de

Janeiro: Elsevier, 2009.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, vol. II. Rio de Janeiro:

Editora Forense, 2009.

REIS, Otávia Miriam Lima Santiago. Ressarcimento ao SUS: fundamento jurídico da

cobrança. Monografia apresentada ao Departamento de Direito da Universidade de Viçosa.

Disponível em:

http://www.ans.gov.br/images/stories/Materiais_para_pesquisa/Materiais_por_assunto/mo

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econômica à realização da justiça. In: MOTA, Maurício (coord.). Fundamentos Teóricos

do Direito Ambiental. Rio de janeiro: Elsevier Editora, 2008.

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neoconstitucionalismo econômico e o constitucionalismo democrático. In:

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VALE, André Rufino do. Estrutura das normas de direitos fundamentais: repensando a

distinção entre regras, princípios e valores. São Paulo: Editora Saraiva, 2009.