ressarcimento sus
TRANSCRIPT
1
RESSARCIMENTO AO SUS: uma proposta de delimitação da fonte e do
fundamento da obrigação constante do art. 32 da Lei nº 9.656/98.
Dalton Robert Tibúrcio
Procurador Federal
RESUMO: O presente trabalho analisa a premissa sustentada por CARLOS MÁRIO DA
SILVA VELLOSO de identificação do ressarcimento ao SUS do art. 32 da Lei nº 9.656/98
com uma pretensão de ressarcimento por enriquecimento sem causa, fundada no art. 884
do Código Civil. A partir da distinção entre a fonte e o fundamento da obrigação, propõe-
se a compreensão do instituto como uma obrigação ex lege ressarcitória, porém não
confundível com o ressarcimento por enriquecimento sem causa.
PALAVRAS-CHAVE: RESSARCIMENTO SUS. NATUREZA. DISTINÇÃO. FONTE.
FUNDAMENTO.
ABSTRACT: This study examines the premise supported by CARLOS MARIO DA
SILVA VELLOSO about identification of SUS reimbursement from art. 32 of Law nº
9656/98, claiming for compensation for unjust enrichment, based on art. 884 of the Civil
Code. Based on the distinction between the source and fundament of obligation, it is
proposed to understand the institute as a legal obligation of reimbursement, but not
confused with the compensation for unjust enrichment.
KEYWORDS: SUS REIMBURSEMENT. NATURE. DISTINCTION. SOURCE.
FUNDAMENT.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Distinção entre fonte e
fundamento da obrigação. 3. A teoria das
externalidades e a incidência do princípio
democrático e da solidariedade. 4. A função
regulatória e o ressarcimento ao SUS. 5. Da não
fungibilidade entre o ressarcimento legal ao SUS e a
pretensão de ressarcimento por enriquecimento sem
causa do art. 884 do Código Civil. 6. Da necessária
imbricação entre o direito público e o privado para a
classificação da obrigação. 7. Conclusões. 8.
Referências.
1. Introdução.
A Lei nº 9.656/98, instrumento de regulação da atividade de saúde suplementar,
instituiu, em seu art. 32, a obrigação das operadoras de Planos de Saúde de ressarcimento
dos serviços de atendimento à saúde, previstos nos contratos, prestados a seus
consumidores e respectivos dependentes, em instituições públicas ou privadas,
conveniadas ou contratadas, integrantes do Sistema Único de Saúde - SUS. Desde sua
instituição, o ressarcimento ao SUS é objeto de controvérsia doutrinária quanto à sua
natureza jurídica. A discussão, de forma geral, situa-se entre enquadrar o instituto como
2
uma obrigação tributária ou uma obrigação civil. A jurisprudência1 tem rejeitado a tese da
natureza tributária da obrigação, com respaldo na manifestação do Supremo Tribunal
Federal, em juízo de medida cautelar, proferido nos autos da ADI-MC nº 1.9312. Nota-se
uma maior acolhida do entendimento de que se tratar de uma obrigação ressarcitória,
baseada na vedação ao enriquecimento sem causa.
Em consulta formulada por entidades representantes de operadoras de plano de
saúde, o advogado e ex-ministro do Supremo Tribunal Federal Carlos Mário da Silva
Velloso exarou Parecer sustentando a tese de que o ressarcimento ao SUS tem caráter
indenizatório, constituindo reparação pelo enriquecimento sem causa decorrente do ganho
que obtém a operadora quando seus segurados procuram atendimento médico nas
instituições integrantes ao SUS. Como consequência desse enquadramento, Velloso propõe
a aplicação do prazo prescricional de três anos, previsto no art. 206, § 3º, IV do Código
Civil contado desde o atendimento do segurado do plano de saúde pelo SUS, bem como
sustenta que o valor do ressarcimento deve coincidir com o valor gasto com o atendimento
do segurado, equivalendo ao montante pago pelo SUS às entidades que o integram,
devidamente atualizado.
As conclusões de Velloso têm por fundamento a noção de que o ressarcimento ao
SUS decorre diretamente do art. 884 do Código Civil, que disciplina a restituição por
enriquecimento sem causa. É o que se percebe das seguintes passagens do citado Parecer:
7.15. Ora, o ressarcimento do art. 32 da Lei nº 9.656/98 não resulta de
uma relação de direito público nem se enquadra nesse ramo do direito.
7.16. De fato, a doutrina costuma distinguir o direito público do privado
ao fundamento de que o primeiro “é destinado a disciplinar os interesses
1 Como se pode verificar do enunciado nº 51 da súmula de uniformização de jurisprudência do Tribunal
Regional Federal da 2ª Região: “O art. 32, da Lei nº 9.656/98, que trata do ressarcimento ao Sistema Único
de Saúde (SUS), é constitucional.”
2 Sobre o tema, assim se manifestou o ministro Maurício Corrêa, no julgamento da cautelar, acompanhado
pelos demais ministros do STF:
“44. Outra questão tida como contrária e ofensiva ao princípio da proporcionalidade seria o ressarcimento
ao Poder Público, de que trata o caput do art. 32 da lei, dos serviços de atendimento que a rede hospitalar
de saúde pública prestar ao contratado do plano. Frise-se que esses serviços só atingem os atendimentos
previstos em contrato e que forem prestados aos respectivos consumidores e seus dependentes por
instituições públicas ou privadas, conveniadas ou contratadas, integrantes do SUS, como está
explicitamente disciplinado no § 1º do artigo 32, na versão atual, verbis: „O ressarcimento a que se refere
o caput será efetuado pelas operadoras à entidade prestadora de serviços, quando esta possuir
personalidade jurídica própria, e ao Sistema Único de Saúde – SUS, mediante tabela de procedimento a
ser aprovada pelo CONSU.
45. Não vejo atentado ao devido processo legal em disposição contratual que assegurou a cobertura
desses serviços, que, não atendidos pelas operadoras no momento de sua necessidade, foram prestados
pela rede do SUS e instituições conveniadas e, por isso, devem ser ressarcidos à Administração Pública,
mediante as condições preestabelecidas em resoluções internas da CÂMARA DE SAÚDE
COMPLEMENTAR. Observo que não há nada nos autos relativamente aos preços que serão fixados, se
atendem ou não as expectativas da requerente. Tudo gira em torno de hipóteses.
46. Também nenhuma consistência tem a argumentação de que a instituição dessa modalidade de
ressarcimento estaria a exigir lei complementar nos termos do artigo 195, § 4º da Constituição Federal.
Como resulta claro e expresso na norma, não impõe ela a criação de nenhum tributo, mas exige que o
agente do plano restitua à Administração Pública os gastos efetuados pelos consumidores com que lhe
cumpre executar.”
3
gerais da coletividade”, nele incluindo o direito constitucional, o
administrativo, o penal, entre outros, ao passo que o segundo “regula as
relações entre os homens, tendo em vista o interesse particular dos
indivíduos”, disciplinando, entre outras relações jurídicas, as obrigações
que se estabelecem entre os indivíduos, decorrentes de contrato, do delito
ou ainda provenientes da lei3.
7.17. Com efeito, o ressarcimento de que se cuida não tem origem em
contrato firmado sob o comando do direito administrativo nem constitui
exigência feita em razão do exercício do jus imperi estatal. Ao contrário,
decorre da lei, para o fim de evitar o enriquecimento sem causa, matéria
de direito privado, disciplinada pelo direito civil, como linhas atrás foi
exposto.
7.18. Certo é que não é possível atribuir natureza de direito público a uma
relação de caráter indenizatório com base na vedação ao enriquecimento
sem causa. Desnecessária seria até mesmo a criação do ressarcimento
pela Lei 9.656/98. Dessa indenização já cuida o Código Civil, com
propriedade e suficiência, ao estabelecer, no art. 884, que aquele que, sem
justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o
indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários.
7.19. Não altera esse entendimento – a natureza privada da
obrigatoriedade de ressarcimento – o fato de ser ele cobrado mediante
execução especial, quando não pago voluntariamente no prazo estipulado
em lei. A Lei nº 6.830/80, que dispõe sobre a cobrança judicial da dívida
ativa da Fazenda Pública aplica-se, como está dito em seu art. 2º, tanto à
dívida tributária – daí o apego à expressão “execução fiscal” – quanto à
não tributária, referida na Lei nº 4.320/64, que estatui normas gerais de
Direito Financeiro para a elaboração e controle orçamentários.
7.20. Desnecessário lembrar que não é a forma de cobrança que define a
natureza da dívida. No caso, o ressarcimento é de natureza privada e não
constitui receita da ANS. Apenas por questão de praticidade a ANS
assume sua cobrança, quando não pago voluntariamente, mas isso não
altera sua destinação: continuará sendo ressarcimento destinado à
entidade prestadora do serviço. Sendo o débito de natureza indenizatória,
a ele não se aplica, ainda que por analogia, a prescrição qüinqüenal
adotada pelo Superior Tribunal de Justiça para a dívida ativa do Poder
Público, quando originada de relação de direito público.
7.21. Inaplicável a prescrição qüinqüenal, a solução há de ser encontrada
no Código Civil, que contém disposição expressa para ações dessa
natureza. Com efeito, o art. 206, § 3º, inciso IV, dispõe que prescreve em
três anos a pretensão de ressarcimento de enriquecimento sem causa.
Maior clareza impossível.
7.22. Estabelecido, como premissa, que a natureza do ressarcimento do
art. 32 da Lei nº 9.656/98 constitui reparação para se evitar o
enriquecimento sem causa em que incorreria a operadora de plano de
saúde, em detrimento da unidade do SUS que prestasse o atendimento, a
conclusão é no sentido de que o prazo prescricional para sua cobrança
será de três anos.
[...]
B.1. Como se trata de indenização com base no art. 884 do Código Civil,
a fim de impedir o enriquecimento sem causa, não tem lugar o
entendimento do Superior Tribunal de Justiça, linhas atrás mencionado,
3 RODRIGUES, Silvio – ob cit. Pág. 7/8. (nota do original)
4
que manda aplicar às obrigações de direito público a prescrição
qüinqüenal prevista no Decreto nº 20.910/32. É que, vale enfatizar,
tratando-se de reparação prevista no art. 884 do Código Civil, sua
natureza é de direito privado, sujeitando-se ao prazo prescricional de três
anos. (Código Civil, art. 206, § 3º, IV).
[...]
H.1. Conforme está no art. 884 do Código Civil, a restituição ou
ressarcimento deve ser igual ao valor indevidamente auferido, atualizado
monetariamente. Assim, a lei não concede qualquer margem de
discricionariedade à Administração para fixar, a seu talante, o valor do
ressarcimento. Deve ser ele, por imposição legal, idêntico ao valor do
enriquecimento sem causa, ou seja, o valor pago pelo SUS às entidades
que o integram, devidamente atualizado.
Pretende-se no presente trabalho demonstrar que a premissa de identificação do
ressarcimento ao SUS com uma pretensão de ressarcimento por enriquecimento sem causa
não pode ser aceita, bem como refletir sobre a correta natureza jurídica do instituto. Para
tanto, utilizar-se-á como parâmetro de confronto as conclusões do já mencionado Parecer
de Carlos Velloso e buscar-se-á delimitar a fonte jurídica e os fundamentos jurídicos e
extrajurídicos da obrigação de ressarcimento ao SUS.
2. Distinção entre fonte e fundamento da obrigação.
Para melhor análise do tema proposto, impõe-se desfazer a confusão entre
fundamento e fonte da obrigação de ressarcimento ao SUS. O ressarcimento ao SUS é uma
obrigação cogente que decorre diretamente do art. 32, da Lei nº 9.656/98. É verdade que,
sob certo ponto de vista, toda obrigação tem como fonte remota a lei, posto que todas as
obrigações nascem da lei, pois que é esta a fonte primária dos direitos; mesmo no campo
contratual, não haveria a força jurígena da manifestação volitiva se não fosse o poder
obrigatório que a lei lhe reconhece4. No entanto, deve-se atentar para qual fato humano foi
eleito pela lei como suficiente para o surgimento da obrigação. As fontes das obrigações,
assim, devem ser entendidas como os atos ou fatos de onde elas se originam, ou, na lição
de Orlando Gomes:
“o fato jurídico ao qual a lei atribui o efeito de suscitá-lo”, [pois] “entre a
lei, esquema geral e abstrato, e a obrigação, relação jurídica singular
entre pessoas, medeia sempre um fato, ou se configura uma situação,
considerado idôneo pelo ordenamento jurídico para determinar o dever de
prestar (Obrigações, Rio de Janeiro, Forense, 1986, p. 31)”5.
O fato humano eleito pela lei como idôneo a fazer nascer a obrigação de
ressarcimento ao SUS é a prestação de serviços de atendimento à saúde em instituições
públicas ou privadas, conveniadas ou contratadas, integrantes do Sistema Único de Saúde-
SUS, prestados aos consumidores e respectivos dependentes das operadoras de planos
privados de assistência à saúde. Uma vez ocorrido este fato da vida, incide a previsão do
art. 32, da Lei nº 9.656/98, fazendo nascer a obrigação de ressarcimento ao SUS.
4 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, vol. II. 22ª ed. Rio de Janeiro: Editora
Forense, 2009. p. 36.
5 Aput BDINE JR., Hamid Charaf. In PELUSO, Cezar (coord). Código Civil Comentado: doutrina e
jurisprudência. 2ª ed. Barueri, SP: Manole, 2008. p. 178.
5
Identificado o fato humano que faz surgir a obrigação, deve-se esclarecer qual a
norma jurídica incide com força jurígena suficiente para o nascimento do dever de prestar.
Nesse aspecto, é equivocado supor que o ressarcimento ao SUS tem por fonte a vedação ao
enriquecimento sem causa previsto no art. 884, do Código Civil. Na verdade, a vedação ao
enriquecimento sem causa é um dos fundamentos da obrigação, mas não a sua fonte. A
vedação ao enriquecimento sem causa consiste no princípio que inspira e legitima a
obrigação estabelecida no art. 32, da Lei nº 9.656/98, assim como também o é o princípio
da solidariedade (CF, art. 3º, I), além de razões regulatórias de desestímulo a práticas
mercadológicas viciadas.
A confusão terminológica entre fonte e fundamento da obrigação se explica pela
própria polissemia do termo fonte, que em muitas ocasiões é indevidamente empregado
como sinônimo de fundamento. Essa perspectiva é bem demonstrada por Kelsen6:
Legislação e costume são freqüentemente designados como as duas
“fontes” do Direito, entendendo-se aqui por Direito apenas as normas
gerais do Direito estatal. Mas as normas jurídicas individuais pertencem
tanto ao Direito, são tanto parte integrante da ordem jurídica, como as
normas jurídicas gerais com base nas quais são produzidas. E, se
tomarmos em linha de conta o Direito internacional geral, então não
poderemos considerar como “fontes” deste Direito a legislação, mas
somente o costume e o tratado.
Fontes de Direito é uma expressão figurativa que tem mais do que uma
significação. Esta designação cabe não só aos métodos acima referidos
mas a todos os métodos de criação jurídica em geral, ou a toda norma
superior em relação à norma inferior cuja produção ela regula. Por isso,
pode por fonte de Direito entender-se também o fundamento de validade,
a norma fundamental. No entanto, efetivamente, só costuma designar-se
como “fonte” o fundamento de validade jurídico-positivo de uma norma
jurídica, quer dizer, a norma jurídica positiva do escalão superior que
regula a sua produção. Neste sentido, a Constituição é a fonte das
normas gerais produzidas por via legislativa ou consuetudinária; e uma
norma geral é a fonte da decisão judicial que a aplica e que é representada
por uma norma individual. Mas a decisão judicial também pode ser
considerada como fonte dos deveres ou direitos das partes litigantes por
ela estatuídos, ou da atribuição de competência ao órgão que tem de
executar esta decisão. Num sentido jurídico-positivo, fonte do Direito só
pode ser o Direito.
Mas a expressão é também empregada num sentido não jurídico quando
com ela designamos todas as representações que, de fato, influenciam a
função criadora e a função aplicadora do Direito, tais como,
especialmente, os princípios morais e políticos, as teorias jurídicas,
pareceres de especialistas e outros. Estas fontes devem, no entanto, ser
claramente distinguidas das fontes de Direito positivo. A distinção reside
em que estas são juridicamente vinculantes e aquelas o não são enquanto
uma norma jurídica positiva não delegue nelas como fonte de Direito, isto
é, as torne vinculantes. Neste caso, porém, elas assumem o caráter de
uma norma jurídica superior que determina a produção de uma norma
jurídica inferior. A equivocidade ou pluralidade de significações do
6 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 7ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 258/259.
6
termo “fonte de Direito” fá-lo aparecer como juridicamente imprestável.
É aconselhável empregar, em lugar desta imagem que facilmente induz
em erro, uma expressão que inequivocamente designe o fenômeno
jurídico que se tem em vista. (grifos não são do original)
No nosso ordenamento jurídico positivo, a vedação ao enriquecimento sem causa,
seja enquanto princípio geral do Direito ou como emanação da norma do art. 884 do
Código Civil não é a fonte – no sentido de fundamento positivo de validade – da obrigação
das operadoras de ressarcimento ao SUS. A fonte – a norma jurídica positiva do escalão
superior que regula a produção de uma norma jurídica individual, seja a sentença ou o ato
administrativo, que reconheça a obrigação – do ressarcimento ao SUS é o art. 32 da Lei nº
9.656/98.
A vedação ao enriquecimento sem causa somente pode ser entendida como um dos
fundamentos dessa obrigação. Pode-se até admitir o uso, nesse contexto, do termo
fundamento como sinônimo de fonte, mas em sentido impróprio, externando a ideia de uma
representação que, de fato, influencia a função criadora e aplicadora do Direito. Nessa
acepção lingüística, a esse fundamento será atribuída a qualidade de fonte não jurídica ou
de fonte jurídica mediata7. Será uma fonte não jurídica se esse fundamento for entendido
como um princípio moral ou político, externo ao Direito. Porém, acaso se compreenda que
esse princípio foi acolhido pelo Direito positivo, assumirá o caráter de uma norma jurídica
superior que determina a produção de uma norma jurídica inferior. Em outros termos: o
princípio geral do Direito da vedação ao enriquecimento sem causa, acolhido
implicitamente pela ordem constitucional, será a norma jurídica superior que determina a
produção da norma jurídica inferior materializada no art. 32 da Lei nº 9.656/98.
Nesse sentido impróprio (ou mediato) de fonte jurídica, o princípio da vedação ao
enriquecimento sem causa pode ser compreendido como a base ou o critério de
justificação da norma constante do art. 32 da Lei nº 9.656/98, na expressão acolhida por
Larenz8 e exposta por Vale
9:
Karl Larenz desenvolve suas teses na obra “Direito Justo, Fundamentos
de Ética Jurídica” (Richtiges Recht, Grundzüge einer Rechtsethik). Em
linhas gerais, o conceito de princípios de Karl Larenz não difere muito do
pensamento de Esser. Segundo Larenz, desde a obra de Esser (Princípio e
7 A diferenciação aqui formulada entre fonte não jurídica e fonte jurídica mediata decorre da passagem
anteriormente transcrita da obra de Kelsen, que atribui aos princípios morais a qualidade de fontes não
jurídicas, uma vez que não seriam vinculantes “enquanto uma norma jurídica positiva não delegue nelas
como fonte de Direito, isto é, as torne vinculantes”. O aprofundamento desse tema conduz a indagações
jusfilosóficas mais elaboradas, tais como aquelas atinentes à distinção entre o positivismo jurídico exclusivo -
que nega qualquer possibilidade de a moral ser utilizada como critério de identificação do direito positivo - e
o positivismo jurídico inclusivo, que embora não abandone a tese da separação entre direito e moral, admite a
existência de sistemas jurídicos em que os imperativos morais desempenham um papel crucial na
identificação da validade e na interpretação das normas jurídicas. Sobre o assunto, confiram-se: DIMOULIS,
Dimitri. Positivismo jurídico: introdução a uma teoria do direito e defesa do pragmatismo jurídico-político.
São Paulo: Método, 2006. p. 134/147; VALE, André Rufino do. Estrutura das normas de direitos
fundamentais: repensando a distinção entre regras, princípios e valores. São Paulo: Editora Saraiva, 2009. p.
27/31.
8 Cf.: LARENZ, Karl. Derecho Justo: fundamentos de etica juridica. Madrid: Civitas, 2001. p. 34.
9 VALE, op. cit., p. 50/51.
7
norma na elaboração jurisprudencial do Direito Privado), considera-se a
existência de princípios que subjazem a uma determinada regulação
jurídica e que são aplicados pela jurisprudência, ainda que com
freqüência sejam desconhecidos ou estejam ocultos sob uma
fundamentação obscura.
Em comentário pertinente, Larenz também enfatiza que Esser foi o
primeiro autor a analisar com claridade a distinção entre princípio e
norma. Em sua concepção, o princípio não é por si mesmo uma norma,
mas a base ou o critério de justificação da norma.
Assim, seguindo o caminho trilhado por Esser, Larenz ressalta que “os
princípios não são regras acabadas”, mas sim os fundamentos iniciais
para a obtenção das regras. Em sua definição, os princípios constituem
“pensamentos diretores e causas de justificação de uma regulação jurídica
(possível ou efetivamente vigente)”.
Os princípios não são regras devido ao fato de “lhes faltar o caráter
formal de proposições jurídicas, representado pela conexão entre um
suporte fático e uma conseqüência jurídica”. Nesse sentido, os princípios
apenas indicam a direção que deve seguir o processo de regulação. Pode-
se dizer que são “um primeiro passo para a obtenção da regra”.
(destaques não são do original)
É verdade que a doutrina, a partir de Dworkin10
, tem assentado que os princípios,
assim como as regras, são espécies normativas. Dessa forma, um princípio jurídico pode
ser a razão suficiente para a decisão de um caso concreto. Isso ocorre porque nem sempre a
aplicação de um princípio está condicionada a uma prévia ponderação entre princípios
colidentes, uma vez que um princípio pode ser o próprio fundamento de um juízo concreto
de dever-ser, independente da consideração do peso relativo em face de outros princípios.
Isoladamente considerados, os princípios (e nesse aspecto se assemelham às regras)
dependerão apenas das possibilidades fáticas para sua concretização, perdendo importância
as possibilidades jurídicas (ponderação com outros princípios colidentes). Assim, um
princípio pode transmudar-se de mandamento de otimização para mandamento de
maximização11
. Quando isso se apresenta, o princípio adotado será a fonte imediata da
norma jurídica individual. No entanto, esse não é o caso presente, no qual entre o princípio
da vedação ao enriquecimento sem causa e a norma jurídica individual (a sentença ou o ato
administrativo que reconhece a obrigação de ressarcimento ao SUS) medeia outra norma
jurídica geral, qual seja: o art. 32 da Lei nº 9.656/98.
Na defesa da obrigação do ressarcimento ao SUS, a argumentação baseada no
princípio da vedação ao enriquecimento sem causa diz respeito ao fundamento de validade
do art. 32 da Lei nº 9.656/98, ou seja, à discussão sobre a constitucionalidade da norma.
Por isso, revela-se inadequado buscar auxílio, nesse ponto, no art. 884 do Código Civil, por
se tratar de norma da mesma hierarquia daquela constante do art. 32 da Lei nº 9.656/98. O
art. 884 do Código Civil não é o fundamento de validade do art. 32 da Lei nº 9.656/98,
nem tampouco a fonte imediata da obrigação de ressarcimento ao SUS.
A obrigação decorrente do art. 32 da Lei nº 9.656/98 pode ser entendida como a
concretização do princípio da vedação do enriquecimento sem causa e de outros princípios
de matriz constitucional, tais como o da solidariedade e do Estado Democrático, assim 10
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 35/46.
11 Cf. ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Malheiros Editores, 2008. p. 95 e 108.
8
como se revela um instrumento para o exercício da função regulatória do Estado sobre o
mercado de Saúde Suplementar. Os fundamentos da obrigação, portanto, são mais amplos
que a vedação ao enriquecimento sem causa e a sua fonte é o art. 32 da Lei nº 9.656/98.
3. A teoria das externalidades e a incidência do princípio democrático e da
solidariedade.
A dificuldade de compreensão da natureza do ressarcimento ao SUS como uma
obrigação ex lege ressarcitória (compensatória), que não se confunde com uma pretensão
de ressarcimento por enriquecimento sem causa, decorre, ainda, de uma ausência de
sistematização dos demais fundamentos econômicos e jurídicos da obrigação. Não obstante
a jurisprudência12
compreender o instituto a partir da concretização do princípio da
vedação ao enriquecimento sem causa, melhor seria entendê-lo como um mecanismo legal
de reinternalização de externalidades (benefícios recebidos por agentes econômicos pelos
quais não efetuaram prévio pagamento) nos custos das operadoras, como forma de corrigir
uma falha do mercado decorrente do caráter suplementar da atividade privada de
atendimento à saúde, em um contexto de universalização e gratuidade da saúde pública. A
saúde pública é um direito social universal e gratuito, sendo que a prestação desse serviço
público aos usuários de planos de saúde representa um ganho (uma não despesa) para as
operadoras, que deixaram de desembolsar com a prestação do serviço ao usuário. O custo
desse atendimento, no entanto, é suportado por toda a coletividade. Como forma de evitar
o subsídio indireto de uma atividade privada, bem como em decorrência do princípio da
solidariedade, o custo desse serviço público de saúde deve ser reinternalizado pela
operadora, por meio do ressarcimento ao SUS.
O conceito de externalidades é atualmente objeto de amplo debate no direito
ambiental, por aplicação do princípio do usuário pagador, segundo o qual aquele que
utiliza mais os recursos ambientais escassos, em detrimento dos demais, deve arcar com o
correlativo ônus pelo seu uso intensivo. No direito ambiental tem merecido maior relevo a
noção de externalidades negativas13
, enquanto custos sociais da conduta individual,
conforme expõe Silva Filho14
:
12
Cf.: AC 436004; AMS 41289; AC 381668; todos do TRF da 2ª Região.
13 Vianna Lopes indica como causa da produção de externalidades negativas a interdependência das relações
sociais, própria da modernidade: “Por externalidades negativas são designadas as conseqüências nocivas de
atividades geradas nas relações sociais modernas e descarregadas sobre as pessoas alheias a elas. Assim,
como por exemplo, a inflação é uma externalidade negativa no campo econômico; a poluição é uma
externalidade negativa no campo ambiental... Afinal, se as relações sociais modernas envolvem sujeitos
livres para contraí-las, eles tendem a deslocar o ônus produzido no relacionamento para fora do mesmo,
atingindo pessoas alheias, ao invés de assumi-lo. Como não há submissão entre interdependentes, não é
razoável que algum ou todos os sujeitos da relação social arquem com suas conseqüências negativas,
preferindo exteriorizá-las.” (LOPES, Júlio Aurélio Vianna. A invasão do direito: a expansão jurídica sobre o
Estado, o mercado e a moral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005. p. 19.). Prossegue o citado autor
sustentando que as características da interdependência das relações sociais se modificaram na
contemporaneidade, fazendo surgir as internalidades negativas às próprias relações sociais, cujos ônus são
cada vez mais imprevisíveis e simultâneos aos benefícios produzidos (LOPES, op. cit., p. 21).
14 SILVA FILHO, Carlos da Costa e. O princípio do poluidor-pagador: da eficiência econômica à realização
da justiça. In: MOTA, Maurício (coord.). Fundamentos Teóricos do Direito Ambiental. Rio de janeiro:
Elsevier Editora, 2008.
9
Percebe-se assim, que o mercado, ao se deparar com recursos naturais,
cujo acesso é livre e cujo uso ou consumo é não-rival, falha, eis que os
referidos bens ou não têm preço, ou seu preço não traduz um reflexo fiel
do seu valor (e, por conseguinte, do seu custo), gerando distorções no seu
uso e consumo, tudo contribuindo para o que Garrett Hardin, em 1968,
chamou de “tragédia dos bens comuns” 15
, mediante uma postura
individualista que leva cada um a procurar maximizar seu interesse à
custa do outro (free rider) 16
. Conclui-se, do mesmo modo, que embora,
por definição, a economia seja a ciência da eleição do atendimento às
necessidades perante recursos escassos, a escassez não pode ser entendida
em um sentido absoluto, mas apenas de modo relativo, dentro do
mercado17
. Com razão, portanto, Cristiane Derani, ao afirmar que “a
economia não surge com a escassez, porém a escassez é um pressuposto
para a economia de mercado. Além do mais, não é toda a escassez que
integra a dinâmica de preços do mercado, mas aquela escassez que pode
ser controlada e produzida” 18
.
Enfim, as falhas do mercado concernentes aos bens ambientais geram
aquilo que se convencionou chamar de externalidades negativas, espécie
do gênero externalidade, conceituado por Victor Carvalho Pinto, como
“situações em que a atividade de uma unidade econômica prejudica ou
beneficia outras unidades” 19
, de forma que “terceiros ganham sem pagar
por seus benefícios marginais ou perdem sem serem compensados por
suportarem o malefício adicional” 20
.
Maria Alexandra de Sousa Aragão também indica o caminho para a
compreensão do que sejam as externalidades, ao afirmar que:
“a denominação efeitos externos ao mercado é compreensível,
porque se trata de transferência de bens ou prestação de serviços
fora dos mecanismos do mercado. São transferências por meios
não económicos na medida em que não lhes corresponde qualquer
fluxo contrário de dinheiro. Sendo transferências „a preço zero‟, o
preço final dos produtos não as reflecte, e por isso não pesam nas
decisões de produção ou consumo, apesar de representarem
15
HARDIN, Garret. The Tragedy of Commons. Science, vol. 162, 1968, p. 1243-1248. Disponível em:
<http://www.garretthardinsociety.org/articles/art_tragedy_of_the_commons.html>. Acesso em: 02 set. 2007. (nota
do original)
16 “A falta de mercado cria um preço ou custo zero e, por conseqüência, permite o uso excessivo ou abusivo
dos recursos ambientais pelos chamados free riders (caronas) – expressão muito utilizada pelos economistas
para designar os agentes econômicos que não pagam pela utilização dos bens livres. É como se o mercado
pudesse ser comparado a uma barreira de pedágio, que deve cobrar um determinado valor dos usuários que
trafegam pela rodovia. Os free riders seriam aqueles que se valem de um atalho ou desvio para elidir a
cobrança do pedágio, o que os coloca em posição mais vantajosa em relação aos demais motoristas”
(CARNEIRO, Ricardo Direito Ambiental. Uma Abordagem Econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p.
69). (nota do original)
17 No exemplo antes exposto, do consumo excessivo da fauna ictiológica, o fato da diminuição do número de
exemplares de uma dada espécie de peixes (a sua escassez em termos absolutos) não provoca um aumento do
preço do respectivo pescado, mas sim um incremento exponencial de sua captura. (nota do original)
18 DERANI, Cristiane. Direito Ambiental Econômico. 2. ed. São Paulo: Max Limonad, 2001, p. 117. (nota do
original)
19 PINTO, Victor Carvalho. Direito Urbanístico. Plano Diretor e Direito de Propriedade. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2005, p. 53-54. (nota do original)
20 MOTTA, Ronaldo Seroa da. Economia Ambiental. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006, p. 182. (nota do
original)
10
verdadeiros custos ou benefícios sociais decorrentes da utilização
privada dos recursos comuns” 21
.
Em outras palavras, o que a jurista lusitana já deixa entrever é que na
produção e circulação de riquezas existem benefícios recebidos por
agentes econômicos pelos quais não efetuaram prévio pagamento, assim
como custos não apropriados pelos responsáveis, e que são sustentados
por aqueles que não se beneficiam do resultado do processo produtivo.
Em suma, efeitos externos ao mercado, ou externalidades, positivas, na
primeira hipótese aqui proposta; e negativas, no segundo exemplo.
O conceito acima apresentado de externalidade parece adequado ao objeto do
ressarcimento ao SUS: situações em que a atividade de uma unidade econômica prejudica
ou beneficia outras unidades de forma que terceiros ganham sem pagar por seus benefícios
marginais (externalidades positivas) ou perdem sem serem compensados por suportarem o
malefício adicional (externalidades negativas). A falha de mercado decorre do fato de que
o Estado, ao prestar a saúde pública, atua como uma unidade econômica (em sentido
impróprio, considerando-se o “mercado de saúde”), cuja atividade beneficia as outras
unidades econômicas (as operadoras de planos de saúde privados).
A rigor, essa situação não é suficientemente resolvida pelo princípio da vedação ao
enriquecimento sem causa. Isso porque não se pode dizer que sempre o ganho obtido pelo
terceiro (que deixou de arcar com os custos do serviço de saúde prestado pelo sistema
público ao beneficiário de seu plano de saúde) tenha se dado sem justa causa22
. Inúmeras
situações poderiam ser alegadas pelas operadoras para sustentar que elas não contribuíram
de qualquer forma para que o atendimento ao usuário tenha ocorrido pelo sistema público
de saúde. Ainda que não se exija a existência de um ilícito para a possibilidade de
configuração do enriquecimento sem causa, situar a obrigação em questão exclusivamente
no âmbito desse instituto jurídico pode suscitar dúvidas quanto ao próprio critério de
imputação da responsabilidade. Igualmente, qual seria o critério quantitativo para se
estabelecer a partir de quantos atendimentos no sistema público a operadora passou a
receber a mensalidade do plano de saúde sem uma justa causa? A falta de justa causa para
a apropriação da externalidade pelo agente econômico pressupõe a existência de uma lei
impondo a obrigação de reinternalização do custo na atividade empresarial.
Não é estranho à economia de mercado que um agente econômico seja beneficiado
por um fato externo à sua atividade. Empresas podem se beneficiar de uma atividade
econômica de outras empresas ou mesmo da prestação de um serviço público. As teorias
econômicas debatem se essas externalidades devem ser solucionadas pelo próprio mercado
ou pela atuação interventiva do Estado23
. De toda forma, tentar resolver essas questões a
21
ARAGÃO, Maria Alexandra de Sousa. O Princípio do Poluidor-Pagador. Pedra Angular da Política
Comunitária do Ambiente. Coimbra: Coimbra Editora, 1997, Stvdia Ivridica, 23, p. 33. (nota do original)
22 Em defesa da ausência de justa causa no enriquecimento da operadora: REIS, Otávia Miriam Lima
Santiago. Ressarcimento ao SUS: fundamento jurídico da cobrança. Monografia apresentada ao
Departamento de Direito da Universidade de Viçosa. Disponível em:
<http://www.ans.gov.br/images/stories/Materiais_para_pesquisa/Materiais_por_assunto/monografia_ressarci
mento_ao_sus.pdf>).
23 As divergências quanto ao comando - se tarefa do Estado ou do mercado - do processo de internalização
ensejou a contraposição entre as teorias econômicas de Arthur Cecil Pigou, defensor da tese da “intervenção
estatal para a correção das falhas de mercado, fosse mediante a instituição de subvenções, subsídios ou
incentivos, no caso das externalidades positivas (por ele chamadas de economias externas), fosse por meio da
11
partir do princípio da vedação ao enriquecimento sem causa resultará na transformação de
fatos econômicos em demandas jurídicas, acentuando o já elevado quadro de judicialização
das relações sociais24
. O ponto nodal, no entanto, é saber quais tipos de externalidades não
são aceitas pela sociedade, sendo o Poder Legislativo o fórum adequado para o debate,
como decorrência do princípio democrático. Lorenzetti25
expõe com clareza esse dilema
contemporâneo, que já se reflete no direito ambiental:
A noção de externalidade negativa ou custo social da conduta individual
tem sido um suporte fundamental para o ambientalismo.
Este aspecto, habitualmente ignorado, foi incorporado nas análises
econômicas e no direito, e serviu para sinalizar muitas situações em que
há conseqüências do agir individual que outros arcam. Historicamente, o
direito se baseou no pressuposto da neutralidade a respeito deste tipo de
ação, como uma forma de subsidiar os indivíduos e as empresas que
atuam no mercado. Nas origens do capitalismo, a empresa estava
nascendo e merecia um subsídio para fortalecer o seu crescimento, razão
pela qual a regulação se concentrou somente nos problemas individuais
ou internos.
Como conseqüência deste princípio, as empresas cujas atividades
contaminam não levam em consideração estes custos, pois são
transferidos a outras pessoas ou à comunidade em seu conjunto,
recebendo apenas o benefício por sua atividade. Ao externalizar estes
custos, não têm incentivos para reduzir o nível de poluição que causam
com a produção de bens e serviços rentáveis. A partir do ponto de vista
estritamente econômico, a externalidade leva a uma superprodução que
excede o que se produziria realmente se a empresa levasse em conta os
custos reais. A chave para alcançar um nível ótimo consiste em induzir os
maximizadores do benefício privado para restringir sua produção ao
máximo nível para que seja o melhor do ponto de vista social e não só do
ponto de vista privado. Isto se alcança mediante políticas públicas que
obriguem a empresa a funcionar ao longo da curva de custo marginal
social e não ao longo da curva de custo marginal privado, o que implica
que a “externalidade” seja “internalizada”.
cobrança de uma prestação financeira ao agente econômico que se beneficiava das externalidades negativas
(deseconomias externas)” e Ronald Coase, que “sustentava a tese da atribuição de direitos de propriedade aos
bens coletivos, para que os respectivos titulares, mediante negociação direta, sem qualquer interferência
estatal, buscassem mediante acordo a internalização eficiente dos efeitos externos de suas atividades” (cf.:
SILVA FILHO, op. cit.)
24 O debate se insere, portanto, na importante temática da judicialização da política, na qual se contrapõem,
de um lado, uma doutrina que demanda uma aumentada “responsabilidade dos integrantes do Poder
Judiciário na concretização e no cumprimento das normas constitucionais, inclusive as que possuem uma alta
carga valorativa e ideológica” e, de outro, uma teoria constitucional restrita ao âmbito da neutralidade
política, que propugna apenas pela “judicialização da política dos direitos fundamentais, aí incluídos os
direitos sociais, já que os mesmos são requisitos para a conformação de um contexto democrático” (cf.:
SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. O dilema constitucional contemporâneo entre o neoconstitucionalismo
econômico e o constitucionalismo democrático. In: Constitucionalismo democrático e governo das razões.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 38/39). Uma visão mais densa é fornecida por Vianna Lopes, segundo
o qual a judicialização da política não é um conceito errôneo, mas insuficiente, uma vez que se verifica na
contemporaneidade a própria substituição da política pelo direito, na regulação dos interesses difusos
(LOPES, op. cit., p. 65/66).
25 LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria geral do direito ambiental. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2010. p. 34/35.
12
A grande mudança se produz quando se “internalizam” esses custos
porque a sociedade já não quer suportá-los. Isso se vê claramente nas
indenizações por danos ambientais que devem pagar as empresas, mas
também nas exigências de transformação dos mecanismos de produção de
bens, obrigando-as a incorporar novas tecnologias “limpas”, com cujo
custo devem arcar.
Constrói-se assim um novo modelo de relação entre a empresa e a
sociedade em relação às externalidades, altamente complexo e
conflituoso. (destaques não são do original)
O debate em jogo envolve e contrapõe a sociedade e os agentes econômicos privados
e diz respeito à obrigação de reinternalização nos custos da empresa do benefício por ela
auferido e que foi arcado por toda a coletividade. Conforme anota a doutrina26
, o
reconhecimento de que todos os direitos possuem custos quase sempre elevados, sendo
arcados por escassos recursos captados na coletividade de indivíduos singularmente
considerados, e de que os recursos públicos são insuficientes para a promoção de todos os
ideais sociais – impondo o sacrifício de alguns deles -, implica também o reconhecimento
de que os direitos devem ser exercitados com responsabilidade.
A obrigação veiculada no art. 32 da Lei nº 9.656/98, nesse contexto, manifesta uma
decisão da sociedade de não tolerar a externalidade representada pelo benefício obtido
pelas operadoras em decorrência do atendimento a um consumidor do plano de saúde pela
rede pública de saúde27
. Essa decisão, manifestação do princípio democrático, encontra
respaldo no princípio da solidariedade, que demanda uma responsabilidade de todos pelo
financiamento dos serviços de saúde pública. O princípio da solidariedade não se restringe
à legitimação da competência tributária residual, uma vez que a Constituição prevê o
custeio do sistema único de saúde por outras fontes, além dos recursos do orçamento da
seguridade social, conforme prevê em seu art. 198, § 1º28
. Sobre a incidência do principio
da solidariedade como fundamento do ressarcimento ao SUS, confira-se o seguinte trecho
do AgRg no REsp 866.393/RJ, julgado pelo Superior Tribunal de Justiça:
[...]13. Mesmo assim, não causa arrepio o fato de procurar o Poder
Público recobrar investimento do setor privado, pelo princípio que
veda o enriquecimento sem causa, em combinação com o princípio da
solidariedade, pois todos são chamados à sua parcela de contribuição
para a manutenção da saúde das pessoas.
26
GALDINO, Flávio. O Custo dos Direitos. In: BARCELOS, Ana Paula de [et.al.]; TORRES, Ricardo Lobo
(org.). Legitimação dos Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 200.
27 Note-se que a Constituição, em seu art. 199, § 2º, é expressa em vedar a destinação de recursos públicos
para auxílios ou subvenções às instituições privadas com fins lucrativas que atuam no âmbito da saúde
suplementar.
28 Nesse aspecto, concorda-se com CARLOS VELLOSO, que ressalta a desnecessidade de lei complementar
para a veiculação do ressarcimento ao SUS, em decorrência da ausência de natureza tributária da obrigação,
nos seguintes termos de seu Parecer: “4.2. E o § 4º do mesmo artigo 195 dispôs que outras fontes poderiam
ser criadas para a manutenção e expansão da seguridade social, desde que observado o disposto no art. 154,
inciso I, que exige, entre outras condições, que essa criação se dê mediante lei complementar. Ocorre que o
art. 32 da Lei nº 9.656/98 não criou fonte de recurso para a manutenção ou expansão da seguridade social,
para o que seria indispensável lei complementar, mas instituiu uma forma de ressarcimento por gasto
efetuado pelo sistema público de saúde, que pode ser enquadrado entre as outras fontes de custeio do sistema
de saúde, conforme previsto no § 1º art. 198 da Constituição.”
13
14. Por outro lado, as operadoras de planos privados e seguros de
saúde não podem queixar-se de diminuição patrimonial, uma vez que,
não fosse o atendimento dado pelo SUS, estariam sujeitas a prestá-lo
por si mesmas, despendendo para tanto recursos seus.
15. O princípio da solidariedade fundamenta a regra contida no art.
32 da Lei n° 9.656/98 e, em última análise, se insere no contexto da
concretização do objetivo fundamental da República Federativa do
Brasil, a saber, a construção de uma sociedade mais justa, livre e
solidária (CF/88, art. 3°, inciso I). Conclui-se, portanto, pela
constitucionalidade, legalidade e legitimidade do ressarcimento ao
SUS instituído pela Lei n° 9.656/98. [...]
4. A função regulatória e o ressarcimento ao SUS.
Há, também, no art. 32 da Lei nº 9.656/98 o estabelecimento de um mecanismo de
regulação para corrigir práticas mercadológicas viciadas. A própria existência do
ressarcimento ao SUS representa um estímulo a boas práticas empresarias, na medida em
que induz o agente econômico a propiciar meios para reduzir a utilização do SUS pelos
seus beneficiários, uma vez que esse atendimento gera também um custo para a operadora.
Além disso, a função regulatória decorre da competência normativa geral atribuída pelo
caput do art. 32 da Lei nº 9.656/98 à ANS para definir as normas para o ressarcimento29
,
bem como da previsão constante do § 8º do mesmo artigo, segunda a qual o valor do
ressarcimento não poderá ser inferior ao praticado pelo SUS nem superior ao praticado
pelas operadoras. A lei, portanto, estabelece dois limites dentro dos quais caberá à Agência
Nacional de Saúde Suplementar fixar o valor da obrigação. Essa possibilidade de fixação
do valor do ressarcimento em montante superior aos praticados pelo SUS evita que as
operadoras prefiram pagar o ressarcimento ao SUS ao invés de corrigirem eventuais falhas
na prestação do serviço a seus usuários. Esse valor já se encontra limitado pela lei ao
montante praticado pelas operadoras, o que revela uma opção legislativa decorrente de um
juízo prévio de proporcionalidade da medida.
O tratamento legal quanto ao valor do ressarcimento ao SUS demonstra que além da
função de concretização do princípio da vedação ao enriquecimento sem causa e da
solidariedade, a obrigação legal instituída atua como mecanismo de regulação da atividade
econômica privada, sujeita à intervenção estatal. Por sua vez, a regulação estatal da
atividade privada de prestação de serviços de saúde, materializada pela Lei nº 9.656/98,
encontra fundamento de validade no art. 197 da Constituição.
5. Da não fungibilidade entre o ressarcimento legal ao SUS e a pretensão de
ressarcimento por enriquecimento sem causa do art. 884 do Código Civil.
Não é possível desconsiderar a existência do art. 32 da Lei nº 9.656/98 sob a
alegação de que já existe norma mais geral que trata do enriquecimento sem causa (o art.
884 do Código Civil). Entender como desnecessária a criação do ressarcimento ao SUS
pela Lei 9.656/98, uma vez que dessa indenização já cuida o Código Civil, revela uma
inadequada identificação da fonte da obrigação. Se não existisse o art. 32 da Lei nº 29
A existência de uma função regulatória decorrente do ressarcimento ao SUS é defendida por Melo da
Cunha, especificamente para sustentar a possibilidade de a ANS estabelecer, com base em seu poder
normativo, critério para o parcelamento do crédito. Cf.: CUNHA, Paulo César Melo da. Regulação jurídica
da saúde suplementar no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2003. p. 112.
14
9.656/98 seria necessário buscar a cobrança de valores pagos em atendimentos oferecidos
pelo SUS a beneficiários de planos de saúde com base no Código Civil, mediante o
ajuizamento de uma ação veiculando essa pretensão, na qual seria preciso demonstrar a
presença de todos os requisitos30
à configuração do enriquecimento sem causa. No entanto,
a existência do art. 32 da Lei nº 9.656/98 desonera o Poder Público de utilizar a norma
geral do Código Civil. A única exigência será a manifestação no mundo fático da hipótese
elegida pela Lei (art. 32 da Lei nº 9.656/98) para a existência da obrigação de ressarcir ao
SUS: a prestação de serviços de atendimento à saúde em instituições públicas ou privadas,
conveniadas ou contratadas, integrantes do Sistema Único de Saúde-SUS, aos
consumidores e respectivos dependentes das operadoras de planos privados de assistência à
saúde.
Afastada a premissa, também não se sustenta a conclusão pela aplicação do prazo
prescricional do ressarcimento ao SUS deve ser aquele previsto no art. 206, § 3º, IV do
Código Civil, que cuida da prescrição da pretensão de ressarcimento de enriquecimento
sem causa. A norma em questão está se reportando ao art. 884, conforme se pode concluir
por uma simples interpretação sistemática do Código. Ocorre que a aplicação dessa regra
do art. 206, § 3º, IV do Código Civil somente seria possível se fosse desconsiderada a força
jurígena autônoma do art. 32, da Lei nº 9.656/98, criadora da obrigação. E como já
demonstrado, o ressarcimento legal ao SUS não se confunde com uma pretensão de
ressarcimento por enriquecimento sem causa, inaplicável, portanto, o prazo do art. 206, §
3º, IV, do Código Civil31
.
Igualmente, a conclusão de que o valor do ressarcimento deve coincidir com o valor
gasto com o atendimento do segurado se baseia na equivocada noção de que a obrigação
tem a mesma natureza de uma pretensão de ressarcimento por enriquecimento sem causa
decorrente da aplicação do art. 884 do Código Civil. No entanto, conforme já amplamente
demonstrado, a obrigação legal de ressarcimento ao SUS transcende ao fundamento da
vedação ao enriquecimento sem causa. No particular aspecto da fixação do valor do
ressarcimento, o legislador instituiu, fixando prévios parâmetros, um mecanismo de
regulação da atividade privada de interesse público, nos termos em que dispõe o art. 197 da
Constituição.
6. Da necessária imbricação entre o direito público e o privado para a classificação da
obrigação.
30
Segundo a doutrina, o art. 884 do Código Civil exige os seguintes requisitos: o enriquecimento do
beneficiado sem justa causa; o empobrecimento do lesado; e a relação de imediatidade entre o
enriquecimento e o empobrecimento. Cf.: PEREIRA, op. cit., p. 276/277.
31 Não se pretende discutir no presente trabalho o específico tema do prazo prescricional do ressarcimento ao
SUS. No entanto, convém destacar que talvez não se mostre relevante para esse debate a classificação da
obrigação como de natureza privada, aspecto abordado no próximo item. Isso porque a jurisprudência do
Superior Tribunal de Justiça (cf.: AgRg no REsp 1073796/RJ) tem aplicado o prazo prescricional do Decreto
20.910/32, em detrimento do prazo especial previsto no Código Civil, para ações de responsabilidade civil
movidas conta a Fazenda Pública. Dessa forma, por aplicação do princípio isonômico, as pretensões
indenizatórias da Fazenda Pública contra os particulares, mesmo fundadas em direito civil, também serão
regidas pela prescrição quinquenal, afastando-se os prazos menores fixados no Código Civil, tal como o
prazo do art. 206, § 3º, IV. A questão, no entanto, não se encontra pacificada, havendo posicionamento do
próprio STJ no sentido de se aplicar o art. 206, § 3º, V, do Código Civil de 2002, em detrimento do art. 1º do
Decreto n. 20.910/32, em relação às pretensões de reparação civil contra os entes públicos sempre que assim
determinarem a regra de transição ou a data da ocorrência do fato danoso (cf.: EDcl no REsp 1145494/PR).
15
Por outro lado, a classificação do ressarcimento legal ao SUS, conforme proposta por
Carlos Velloso, como uma relação de direito privado decorre do argumento de que a
obrigação “não tem origem em contrato firmado sob o comando do direito administrativo
nem constitui exigência feita em razão do exercício do jus imperi estatal” e que a
obrigação “decorre da lei, para o fim de evitar o enriquecimento sem causa, matéria de
direito privado, disciplinada pelo direito civil”.
A doutrina tem ressaltado que não se sustenta no atual estágio do Estado
contemporâneo a nítida e rígida distinção, típica do século XIX, entre direito público e
direito privado, conforme bem demonstra Medauar32
:
O tema sobre a esfera pública e a esfera privada apresenta-se, em grande parte,
vinculada à idéia de separação entre o Estado e a sociedade. No interior do
sistema jurídico, refletiu-se na divisão entre direito público e direito privado.
No século XIX a necessidade de consolidação do poder estatal na função de
garantir a ordem, a segurança e o exercício dos direitos dos indivíduos, aliada à
observância da autonomia da atuação privada, levou à distinção entre “o poder
soberano e sua esfera e o poder dos indivíduos nas suas relações”33
. Para Celso
Lafer, “no exame desta dicotomia, que tem uma função heurística indiscutível
na epistemologia jurídica, importa mencionar que existem duas acepções
básicas a partir das quais se estruturam as relações de oposição entre os dois
termos: na primeira, público é o que afeta todos ou a maioria, sendo portanto, o
comum, que se contrapõe ao privado, visto como o que afeta a um ou a poucos;
na segunda, público é o que é acessível a todos, em contraposição ao privado,
encarado como aquilo que é reservado e pessoal”34
.
Com a dinâmica intervencionista o Estado passou a atuar em esferas antes tidas
como reservadas à autonomia privada, em especial no setor econômico e social,
do que resultou o processo denominado de publicização do privado; o que afeta
a poucos passou a ser de interesse comum; a política interferiu na economia; por
outro lado, grandes organizações, associações e grupos privados passaram a
exercer pressão sobre o Estado, a colaborar na gestão de atividades de interesse
geral, a solucionar problemas mediante acordos e negociações, gerando a
chamada privatização do público. “Com isso, a distinção entre a esfera pública
e privada perde sensivelmente em nitidez”35
, o que traz conseqüências de relevo
em muitos institutos jurídicos delineados no século XIX, quando a idéia de
separação predominava. Menciona-se também, no tema: flexibilização das
relações público-privado;36
enfraquecimento da separação entre setor público e
setor privado;37
intercâmbio e conexão entre público e privado;38
“a atenção se
32
MEDAUAR, Odete. O direito administrativo em evolução. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2003. p. 115/116.
33 Tércio Sampaio Ferraz Júnior. Introdução ao estudo..., cit., p. 130. (nota do original)
34 A ruptura totalitária e a reconstrução dos direitos humanos. Um diálogo com Hannah Arendt. São Paulo:
1998. p. 243. (nota do original)
35 Sampaio Ferraz Júnior. Introdução ao estudo..., cit., p. 131. (nota do original)
36 Gaudin. Gouverner par contrat. Paris, 1999. p. 10. (nota do original)
37 Cassese. Il cittadino e l‟Amministrazione Pubblico. Riv. Trim. Dir. Pub., vol. 4, p. 1.020, 1998. (nota do
original)
38 Erminio Ferrari. Lo Stato sussidiario. Diritto Pubblico, vol. 1, p. 115, 2002. (nota do original)
16
desloca dos critérios de diferenciação entre público e privado para os critérios
de coexistência e de imbricação entre ambos”39
.
O art. 32 da Lei nº 9.656/98 veicula uma obrigação ressarcitória, mas que não se
equivale a uma relação exclusivamente privada indenizatória. Trata-se de uma obrigação
com uma inegável dimensão social (a responsabilidade das operadoras frente aos custos de
manutenção do serviço público de saúde, cuja prestação representou um benefício
econômico para suas atividades empresariais), além de atuar como um mecanismo de
intervenção do Estado na regulação da atividade privada de saúde suplementar. A vedação
ao enriquecimento sem causa, conforme amplamente demonstrado anteriormente, é apenas
um dos fundamentos da obrigação. Ainda assim, melhor seria compreender que ao invés de
enriquecimento sem causa, a obrigação veicula uma decisão da sociedade de não tolerar
uma específica externalidade, determinado a reinternalização nos custos da empresa do
benefício auferido e arcado por toda a coletividade. Por essas razões, a obrigação do art. 32
da Lei nº 9.656/98 possui um caráter público, ainda que não se negue eventual fundamento
típico de direito civil. Conforme destacado na citação doutrinária acima, melhor do que
buscar critérios de distinção entre o público e o privado, deve-se atentar para a necessária
imbricação entre essas duas esferas.
Por outro lado, há uma incorreção no entendimento de que o ressarcimento se destina
à entidade prestadora do serviço, sendo que a cobrança pela ANS se dá apenas por uma
questão de praticidade. O caput o art. 32 da Lei nº 9.656/98 explicita que serão ressarcidos
pelas operadoras os serviços de atendimento à saúde, previstos nos respectivos contratos
prestados aos seus consumidores e respectivos dependentes, em instituições públicas e
privadas, conveniadas ou contratadas, integrante do Sistema Único de Saúde-SUS. E o
parágrafo primeiro do mencionado art. 32 aduz que o ressarcimento será efetuado à
entidade prestadora de serviço, quando esta possuir personalidade jurídica própria, e ao
SUS. A leitura isolada e literal desse dispositivo pode levar à falsa compreensão de que o
valor do ressarcimento destina-se a beneficiar o prestador do serviço (seja público ou
privado). Ocorre que esse serviço já pode ter sido pago pelo SUS ao prestador antes do
processamento do ressarcimento. Quando isso ocorre, o valor do ressarcimento deve se
destinar ao SUS e não ao prestador, pois o contrário resultaria em um pagamento em
duplicidade em favor do prestador de serviço.
A ANS editou a Resolução Normativa nº 185/2008, modificada pela Resolução
Normativa nº 217/2010, que estabelece as normas do procedimento do ressarcimento ao
SUS, prevendo que a identificação da ocorrência da obrigação de ressarcir ao SUS ocorre
por meio da constatação de atendimento no SUS a beneficiário, sendo que essa
identificação se realizada mediante cruzamento de bancos de dados relativos aos
atendimentos realizados pelo SUS com as informações cadastrais das operadoras,
constantes do banco de dados da ANS40
. O repasse dos valores recolhidos é regulado pelo
art. 51 da RN 185, que teve sua redação modificada pela RN nº 217/2010, prevendo que
39
Luzia Torchia. La scienza Del diritto amministrativo. Riv. Trim. Dir. Pub., vol. 4, p. 1.122, 1998. (nota do
original)
40 Consoante dispõe o caput do art. 20 da Lei nº 9.656, “as operadoras de produtos de que tratam o inciso I e
o § 1o do art. 1
o desta Lei são obrigadas a fornecer, periodicamente, à ANS todas as informações e estatísticas
relativas às suas atividades, incluídas as de natureza cadastral, especialmente aquelas que permitam a
identificação dos consumidores e de seus dependentes, incluindo seus nomes, inscrições no Cadastro de
Pessoas Físicas dos titulares e Municípios onde residem, para fins do disposto no art. 32.”
17
“os valores recolhidos pelas OPS a título de ressarcimento ao SUS serão partilhados pela
ANS conforme ato em conjunto com o Ministério da Saúde”. Atualmente, encontra-se em
fase de discussão entre a ANS, o Ministério da Saúde e o Fundo Nacional de Saúde a
elaboração de Portaria conjunta para disciplinar os procedimentos de repasse dos valores
do ressarcimento ao SUS. De qualquer forma, já se constata que não há o pagamento da
operadora diretamente aos prestadores de serviço, uma vez que caberá ao gestor do SUS a
prévia verificação da situação específica para saber se já houve o repasse de verbas
públicas do SUS, evitando o pagamento em duplicidade.
Constata-se, assim, que não se sustenta a afirmativa de que o ressarcimento é de
natureza privada, não constituindo receita da ANS, uma vez que a sua destinação seria para
a prestadora do serviço. De fato, a ANS atua apenas como um instrumento para a cobrança
do ressarcimento, mas esses recursos destinam-se a recompor o Sistema Único de Saúde e
não propriamente ao prestador privado. Além disso, o próprio art. 32, § 6º, da Lei nº
9.656/98 estabelece que o produto da arrecadação dos juros e da multa de mora será
revertido ao Fundo Nacional de Saúde.
7. Conclusão.
Das reflexões desenvolvidas no presente trabalho, verificou-se que: (i) a correta
delimitação do ressarcimento ao SUS impõe refletir sobre a distinção entre a fonte (o fato
humano que faz surgir a obrigação em conjugação com a norma jurídica positiva do
escalão superior que regula a produção de uma norma jurídica individual que reconheça a
obrigação) e o fundamento (as fontes jurídicas mediatas, que inspiram e dão fundamento
de validade ao art. 32 da Lei nº 9.656/98) da obrigação; (ii) a vedação ao enriquecimento
sem causa não é a fonte jurídica imediata do ressarcimento ao SUS, só podendo ser
entendida como um dos fundamentos da obrigação; (iii) a fonte jurídica imediata do
ressarcimento ao SUS é o art. 32 da Lei nº 9.656/98; (iv) o ressarcimento ao SUS é melhor
compreendido a partir da teoria das externalidades, manifestando uma decisão da
sociedade de não tolerar a externalidade representada pelo benefício obtido pelas
operadoras em decorrência do atendimento a um consumidor do plano de saúde pela rede
pública de saúde; (v) o fundamento (ou a fonte jurídica mediata) da obrigação, a partir da
teoria das externalidades, encontra-se no princípio democrático, no princípio da
solidariedade e na função regulatória sobre as atividades de saúde suplementar.
Diante dessas reflexões, pode-se concluir que: (i) o ressarcimento legal ao SUS,
instituído pelo art. 32 da Lei nº 9.656/98, constitui obrigação ex lege ressarcitória, que não
se confunde com uma pretensão de ressarcimento de enriquecimento sem causa fundada no
art. 884 do Código Civil, sendo inaplicável o prazo prescricional previsto no art. 206, § 3º,
do Código Civil; (ii) o valor do ressarcimento legal ao SUS é fixado na forma do art. 32, §
8º, da Lei nº 9.656/98, não podendo ser inferior aos valores praticados pelo SUS nem
superior aos valores praticados pelas operadoras, de maneira que o valor do ressarcimento
não precisa ser igual ao montante pago pelo SUS às entidades que o integram.
Por fim, deve-se destacar que a ausência de perfeito enquadramento da obrigação nas
categorias da responsabilidade civil não induz a inconstitucionalidade do art. 32 da Lei nº
9.656/9841
. A obrigação legal de ressarcimento ao SUS possui fundamento constitucional
41
Em importante julgado, em uma situação análoga, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI
3378/DF, analisando o instituto da compensação ambiental veiculado pelo art. 36 da Lei nº 9.985/2000,
18
tanto no princípio da solidariedade (art. 3º, inciso I e III; e arts. 194, 195, 198, § 1º e 203,
todos da Constituição), como no princípio do Estado Democrático de Direito (art. 1º da
Constituição) e na função regulatória do Estado sobre a atividade privada de saúde
suplementar (art. 197 da Constituição). Em síntese, conforme trecho do já citado
precedente do Superior Tribunal de Justiça (AgRg no REsp 866393/RJ): “não se pode
perder de vista que a lei pode criar novos institutos, desde que não seja afrontada a
Constituição. Não é necessário, sempre, enquadrá-los em categorias jurídicas já
existentes”.
8. REFERÊNCIAS.
ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Malheiros Editores,
2008.
BDINE JR., Hamid Charaf. In: PELUSO, Cezar (coord). Código Civil Comentado:
doutrina e jurisprudência. Barueri, SP: Manole, 2008.
CUNHA, Paulo César Melo da. Regulação jurídica da saúde suplementar no Brasil.
Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2003.
DIMOULIS, Dimitri. Positivismo jurídico: introdução a uma teoria do direito e defesa do
pragmatismo jurídico-político. São Paulo: Método, 2006.
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
GALDINO, Flávio. O custo dos direitos. In: BARCELOS, Ana Paula de [et.al.]; TORRES,
Ricardo Lobo (org.). Legitimação dos Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
LARENZ, Karl. Derecho Justo: fundamentos de etica juridica. Madrid: Civitas, 2001.
LOPES, Júlio Aurélio Vianna. A invasão do direito: a expansão jurídica sobre o Estado, o
mercado e a moral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005.
LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria geral do direito ambiental. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2010.
MEDAUAR, Odete. O direito administrativo em evolução. São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, 2003.
afirmou a constitucionalidade da instituição, por Lei, de uma obrigação compensatória, muito embora esse
instituto não possa se enquadrar nas tradicionais categorias da responsabilidade civil. Em especial, o dever de
compensação ambiental existe mesmo diante de uma atividade lícita e – nisso o mais inovador em relação ao
sistema tradicional da responsabilidade civil – essa obrigação persiste mesmo sem a prévia ocorrência e
valoração dos danos ambientais, uma vez que tal compensação não representa estritamente uma reparação
pelos danos causados. Cf.: MOTA, Maurício. Função socioambiental da propriedade: a compensação
ambiental decorrente do princípio do usuário pagador na nova interpretação do Supremo Tribunal Federal.
In: MOTA, Maurício (coord.). Função Social do Direito Ambiental. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009. p. 3/68.
19
MOTA, Maurício. Função socioambiental da propriedade: a compensação ambiental
decorrente do princípio do usuário pagador na nova interpretação do Supremo Tribunal
Federal. In: MOTA, Maurício (coord.). Função Social do Direito Ambiental. Rio de
Janeiro: Elsevier, 2009.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, vol. II. Rio de Janeiro:
Editora Forense, 2009.
REIS, Otávia Miriam Lima Santiago. Ressarcimento ao SUS: fundamento jurídico da
cobrança. Monografia apresentada ao Departamento de Direito da Universidade de Viçosa.
Disponível em:
http://www.ans.gov.br/images/stories/Materiais_para_pesquisa/Materiais_por_assunto/mo
nografia_ressarcimento_ao_sus.pdf.
SILVA FILHO, Carlos da Costa e. O princípio do poluidor-pagador: da eficiência
econômica à realização da justiça. In: MOTA, Maurício (coord.). Fundamentos Teóricos
do Direito Ambiental. Rio de janeiro: Elsevier Editora, 2008.
SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. O dilema constitucional contemporâneo entre o
neoconstitucionalismo econômico e o constitucionalismo democrático. In:
Constitucionalismo democrático e governo das razões. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2011.
VALE, André Rufino do. Estrutura das normas de direitos fundamentais: repensando a
distinção entre regras, princípios e valores. São Paulo: Editora Saraiva, 2009.