ressaca tropicaldocomomo.org.br/wp-content/uploads/2016/01/174.pdf · 2017-12-09 · arquitetura e...
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Ressaca Tropical
Cristina Lino Gouvêa Arquiteta com graduação pela USJT e filiação à Fundarpe.PE
Jonathas de Andrade Souza
Artista com graduação em Comunicação pela UFPE
Endereço Rua Silveira Lobo, 150-A, Poço da Panela, Recife.PE, Cep 52061-030
Telefones
[81] 3267.5019 [81] 9672.7741
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Ressaca Tropical
Resumo: Em Ressaca Tropical [Instituto Cultural Banco Real, Recife, 2009], com Recife como ponto de partida Jonathas de Andrade constrói com a fricção de documentos, uma ficção de cidade: acervos de fotografia de origens e naturezas distintas são editados no espaço da galeria em relação às páginas de um diário anônimo de apontamentos da década de 70. Diante da exposição, o olhar precisa constantemente ajustar o foco entre escalas distintas sobrepostas, transitando entre a leitura do texto datilografado, fotografias aéreas, imagens de lugares, de arquiteturas e da vida cotidiana, cruzando o limite da intimidade. As imagens costuram um tempo qualquer, o mesmo do diário, nas diversas temporalidades que se sobrepõem em um Recife qualquer, uma cidade tropical qualquer. Cidade que confunde o construir e o destruir, e assim nunca esta pronta. Um retrato suspenso de cidade onde os diversos presentes estão sempre impregnados de passado, entretanto impreciso e frágil. A arquitetura e a cidade são tratadas como essa imensa concreção material em constante reconstrução sobre si mesma, em constante dialética com a vida que nela faz ninho, que enfrenta sua realidade e acontece [também] em suas brechas e buracos, em suas disponibilidades sejam elas construídas deliberadamente ou não. É neste cenário que age o desejo e sobre este cenário que a cidade se torna a casa do homem. É com este olhar que o trabalho volta-se para uma busca pelo sentimento de um modernismo tropical pós-utópico. A arquitetura moderna é objeto de investigação nas fotografias de autoria do artista que integram a constelação de imagens. Esta atenção específica anuncia uma discussão mais ampla do moderno - materialidade e projeto - visto já como elemento incorporado à cidade e seu emaranhado. A pós-utopia chega não sob a sombra do fracasso de um projeto de progresso, mas simplesmente como uma condição, com suas marcas, desdobramentos e possibilidades. A proposta deste texto é retomar um dos processos de interlocução que permearam a concepção de Ressaca Tropical – entre Jonathas de Andrade, artista, e Cristina Gouvêa, arquiteta – sistematizando as questões e referências que foram sendo trabalhadas de forma fluida ao longo do processo, à luz da exposição concretizada. Remexer um bastidor para apurar e ajustar os termos dos paralelos e tranversalidades que se configuraram. Procura-se apresentar Ressaca Tropical desde os pontos de contato que se estabelecem entre arte e arquitetura. Fazê-lo considerando que o trabalho não só trata da arquitetura e da cidade, mas que se constitui como metáfora sua. Investigar como, além de usar a cidade como elemento de representação de certos aspectos da condição humana e de uma condição brasileira periférica, o trabalho constrói-se ele mesmo a partir de uma lógica emprestada da cidade. Lógica que aparece em vários aspectos, dos quais o mais significativo está na incorporação da natureza sistêmica de um todo que, mais do que somatória de partes, é articulação de elementos autônomos, mas não independentes que se organizam em diversas categorias sobrepostas e intercambiadas, cujo arranjo espacial é ao mesmo tempo o dado último e a primeira camada de leitura. Palavras-chave: Recife, modernidade, pós-utopia Abstract: In Ressaca Tropical [Instituto Cultural Banco Real, Recife, 2009], with Recife as a starting point, Jonathas de Andrade builds a fiction of the city through the friction between documents: photo collections from different sources and natures are arranged in the gallery's walls in relation to the pages of an anonymous diary of short notes from the 70's. In the gallery, one’s eyes constantly need to adjust the focus between different overlapping scales, shifting between the typescript diary, aerial photographs, images of places, of architectures and of everyday life, crossing the borders of intimacy. The images sew an indefinite time, as in the diary, throughout the different temporalities overlapping in an indefinite Recife, an indefinite tropical city. This city confuses construction and destruction, so that it is never finished. A portrait of the city takes place where the present is always impregnated with past, a vague and fragile past. The architecture and the city are treated as a huge material concretion in constant self-rebuilding, in constant dialectic with the life nested in itself, facing the reality and existing [also] in the gaps and holes, whether they are deliberately built or not. This scene is where desire acts and where the city becomes the home of man. Under this sight, Ressaca Tropical goes through a search for a sense of post-utopian tropical modernism. Modern architecture is the object of research in the photographs taken by the artist, taking part on the
constellation of images. This specific attention announces a broader discussion of the modern – as materiality and as project - seen as something already incorporated into the city and its entanglement. The post-utopia comes not under the shadow of a project to progress’s failure, but simply as a condition, with its brands, developments and opportunities. The purpose of this text is to resume one of the dialogue processes that permeated the design of Ressaca Tropical - between Jonathas de Andrade, artist, and Cristina Gouvêa, architect - systematizing the questions and references that were taken in a fluid approach during the procedure, under the light of the work achieved. It is to rummage a frame to determine and adjust the terms of the parallels which have taken place. It seeks to bring up Ressaca Tropical from the points of contact that it establishes between art and architecture. To do so considering that the work not only deals with the architecture and the city, but it is made as its own metaphor. To investigate how, besides using the city as a representation of certain aspects of the human condition and of a Brazilian peripheral condition, the work itself is built from a logic borrowed from the city. Logic which appears in many aspects, of which the most significant is the incorporation of the systemic nature of a whole that, more than a sum of parts, is the articulation of autonomous but not independent elements, which are organized into overlapped and exchanged categories, whose spatial arrangement is at the same time the last result and the first layer for reading. Keywords: Recife, modernity, post-utopia
Ressaca Tropical
Ressaca Tropical [IMG.01] é o trabalho que dá título à exposição individual de Jonathas de
Andrade, que, com curadoria de Kiki Mazzuchelli, ocupou a Galeria Marcantonio Vilaça no período
de janeiro a março de 2009. 1
Este texto apresenta a obra de um ponto de vista específico: o dos paralelos e transversalidades
entre o trabalho, a arquitetura e a cidade. Faz-se ainda um segundo ajuste de foco sobre a forma
particular com que o universo do movimento moderno permeia e é abordado ao longo do trabalho.
Recife é o ponto de partida tomado pelo artista para construir com a fricção de documentos uma
ficção de cidade. Ao longo das páginas de um diário de apontamentos escrito por um personagem
anônimo na década de 70, são editados quatro acervos de fotografia com origens e naturezas
distintas. São imagens selecionadas no arquivo histórico da Fundação Joaquim Nabuco; na
coleção do fotógrafo Alcir Lacerda, que registrou com olhar atento e poético a cidade de Recife
em transformação no século passado; e na vastidão dos álbuns pessoais de certo personagem
anônimo e singular. Somam-se ainda pequenos achados no acervo familiar do artista e as suas
próprias fotografias que atentam especialmente para espaços do universo moderno e para a
invasão do espaço construído por uma natureza vigorosa.
[IMG.01] Ressaca Tropical no Instituto Cultural Banco Real. Fonte: acervo do artista.
1 A exposição integra a edição de 2008 do projeto Contemporâneos Pernambucanos do Instituto Cultural Banco Real.
O diário vai para as paredes de exposição em páginas soltas datilografadas com tipografia que
remonta a um tempo passado e dispostas em linha, formando um horizonte à altura dos olhos. O
tamanho das letras exige aproximação do corpo para leitura. O papel quase todo em branco,
depositário da intimidade anônima e da idéia do tempo transcorrido, assenta silencioso sobre a
parede. Espécie de geratriz, é a primeira camada de organização de um sistema, sem ser
necessariamente sua primeira camada de leitura. Recife, dia tal de tal ano, é o cabeçalho que se
repete 149 vezes. Sobre a regularidade geométrica das folhas o texto oscila entre anotações
diligentes de entrevistas de emprego e exames; apontamentos que cruzam pessoas, lugares,
encontros e sexo; silêncios diante de atalhos para uma memória não compartilhada nem com o
papel; e uns poucos momentos de texto mais corrente, com inquietações e reflexões pontuais.
Trazida para uma posição ambígua entre o documento e a literatura, a narrativa fragmentada do
diário, organiza no espaço a constelação de imagens. [IMG.02]
[IMG.02] Detalhe de Ressaca Tropical no Instituto Cultural Banco Real. Fonte: Acervo do artista.
Uma vez constituída esta constelação, a fotografia entra borrando as fronteiras entre várias de
suas facetas: o documento, o registro, o produto estético e artístico. Tamanhos e molduras
distintas hierarquizam as imagens sem catalogá-las. As aglutinações, ancoradas no pulso do
diário, formam subsistemas que ressignificam texto e imagens. Certa fluidez permite supor a
instabilidade desse arranjo, a despeito da factualidade de sua materialização nessa configuração.
A mescla de acervos editada por Jonathas sobrepõe fotografias tiradas ao longo de todo o século
XX, especialmente a partir da década de 60. Vão de imagens de sobrevôo que olham para o
retrato estático da cidade em dado momento [que entretanto não se define e com isso denuncia o
eterno construir e destruir, o caráter constantemente transitório da cidade, em antítese com a
natureza permanente dos corpos que constituem sua cena fixa] a imagens de intimidade em que
se chega a perder a apreensão do espaço e o que importa é o clima, o sabor de uma ocasião.
Mesmo as imagens produzidas recentemente pelo artista para a exposição, trazem o tempo como
dimensão expandida - seja na atmosfera que certa forma sua de fotografar imprime às imagens,
seja no olhar atento à arquitetura moderna situada no tempo a partir do presente, e à passagem
do tempo sobre a materialidade do espaço construído, não com o viés da melancolia da ruína,
mas com a idéia de transcurso do tempo e da presença indelével do passado, definida nos termos
de Lina Bo Bardi, como presente histórico.2
Ressaca da utopia
Confrontada com o ideário moderno racionalizador e generalizante e com o projeto de progresso a
que ele se associa no contexto brasileiro, a abordagem de Jonathas sobre a arquitetura e a cidade
pode, num primeiro momento, parecer distante do pensamento moderno, limitando-se a constatar
o fracasso da utopia. Entretanto, embora os procedimentos e a forma de compreender arquitetura
e cidade estejam em Ressaca Tropical mais vinculadas a uma forma de pensamento posterior,
especialmente a partir do contextualismo que toma corpo no último quartel do século XX,3 nem
tudo é ruptura, há, ao contrário, um olhar atento às continuidades, ainda que recolocadas as
questões.
Em primeiro lugar uma continuidade factual: a presença material dos edifícios que atravessa o
tempo e é por ele atravessada. Jonathas sobrepõe às imagens de arquivo de edifícios modernos,
isolados ou inseridos em imagens urbanas, uma pesquisa sua em que a fotografia experimenta o
diálogo com a luz, as texturas, os percursos, os diálogos entre interior e exterior e entre natural e
construído que esses edifícios proporcionam. Experimenta ainda o reconhecimento e catalogação
de um repertório formal e de elementos construtivos da arquitetura moderna, incorporada não só a
edifícios ícones, como a uma arquitetura de fundo que se espalha pela cidade. Este olhar
incorpora nas fotografias o tempo que elas já têm no mundo, dá a ver que ele passou e como as
2 “... o ‘respeito histórico’ pelos monumentos é um Passado que deve ser rigorosamente conservado. Mas Sempre. Passado. Existe porém outro tipo de passado que pode ser conservado mas deve viver ainda em forma de ‘Presente Histórico’, acompanhando o presente real da vida de todos os dias.” Em: FERRAZ, Marcelo [org.]. Lina Bo Bardi. São Paulo : Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, Imprensa Oficial, 2008. P. 276. 3 Por exemplo, com o entendimento de Aldo Rossi sobre a cidade construída a partir de fatos urbanos historicizados. ROSSI, Aldo, A Arquitetura da Cidade. São Paulo : Martins Fontes, 2001. Coleção A 20.
trouxe até aqui [IMG.03]. Com isso, uma vez na constelação de imagens que compõem o
trabalho, a arquitetura moderna entra como mais um layer da concreção material que forma a
cidade carregada de experiência com que lidamos diariamente - segunda natureza dada que
acolhe a vida que, por sua vez, nela vai se imprimindo.
[IMG.02] Alguns momentos do olhar de Jonathas com foco ajustado para a arquitetura.
Fonte: Acervo do artista
Retomando os paralelos com o movimento moderno, não está em seu escopo tratar das relações
entre o geral e o específico. A generalização entra como dado da nova sociedade industrial.
Entretanto, esta discussão se coloca no exercício de projeto moderno e vai sendo formalizada ao
longo do tempo.
A cidade que Ressaca Tropical levanta até certo ponto se define e situa, porém não se fixa.
Partindo de Recife, alcança o retrato de uma cidade tropical qualquer, periférica, terceiro-
mundista, incompleta.
Para o modernismo brasileiro, o reconhecimento dessa mesma condição periférica acontece como
premissa para um posicionamento que permite inverter o processo e se colocar a frente da
discussão mundial.4 Para além da adaptação de dogmas internacionais a condições locais, o
modernismo no Brasil toma feições específicas e pioneiras na medida em que incorpora os
conceitos da discussão arquitetônica internacional e posiciona-se diante dela com respostas
genuinamente brasileiras no âmbito da linguagem, da técnica e do contexto social, econômico e
histórico. É definido e apropriado um raciocínio moderno que aplicado a situações específicas
4 É elemento emblemático que atesta esta inversão a exposição Brazil Builds, realizada no Museu de Arte Moderna de Nova York em 1943.
encontra variadas soluções. A maneira como é trabalhada a consciência da posição periférica do
país diante dos princípios generalistas do Movimento Moderno é um dos elementos da
consistência e do pioneirismo dos desdobramentos desse movimento no país. Nesse sentido é de
importância primordial a atuação de Lúcio Costa nas frentes teórica, institucional e projetual.
Sob outra perspectiva, a posição em que Ressaca Tropical coloca a cidade, uma Recife que é
qualquer cidade, entretanto ainda uma grande cidade nordestina, periferia do Brasil, periferia do
mundo faz pensar na relação entre essa condição periférica e as formas que o modernismo
assume no Brasil. Em como essa especificidade desenha o seu aporte. O movimento moderno
encontra na disponibilidade que essa não-inserção, atraso e incompletude proporcionam, terreno
livre para aplicação de um pensamento que, na Europa de onde provém, enfrentava a resistência
tanto do academicismo tradicional, quanto da cristalização física das cidades sedimentada ao
longo de muito mais tempo. Crescimento latente, disponibilidade de espaço e tradição estética e
construtiva não cristalizada somam-se a um contexto político que viabiliza a forma peculiar de
desenvolvimento do movimento moderno no Brasil. Nas palavras de Guilherme Wisnik:
Identificada com a promessa de um projeto civilizatório moderno, voltado para a idéia de
construção nacional, a vanguarda arquitetônica encontrou no incipiente contexto urbano-
industrial que aqui se configurava, fomentada com a Revolução de 30, uma brecha utópica
que levava a enxergar no Estado o gente de uma nova racionalidade, apta a realizar as
virtualidades democráticas implícitas na produção em massa. Assim, se por um lado a
incômoda convivência com uma ditadura política de indisfarçável inclinação fascista baseou-
se nas já referidas afinidades utópicas, ela foi mantida, por outro, pelo fato de essa
intelectualidade associada, da qual os arquitetos faziam parte, considerar-se em certa
medida uma dissidência cultural com alguma autonomia de atuação.5
Os resultados desse alinhamento-dissidente entre Estado e vanguarda artística atingem seu ápice
e ponto de inflexão com a construção de Brasília. O golpe militar de 1964 é o baque que
emblematiza o final de um período que, com todas as suas contradições e descompassos,
significou para arquitetura fertilidade, frutificação e experimentação e para a sociedade em geral a
possibilidade de crença num projeto de futuro.
Em Ressaca Tropical as imagens que mais diretamente se relacionam com este processo são as
do edifício sede da SUDENE,6 projeto de Maurício Castro, 1970 [IMG.04]. Imensa construção na
periferia da cidade, próximo a Cidade Universitária, hoje esvaziada em sua maior parte. Um
projeto que poderia ter sido, mas não foi. Estancou antes de começar. O edifício está concluído,
mas não o projeto que o justifica e ampara. Este, o da modernização, fica suspenso, a espera.
5 WINSIK, Guilherme. Lucio Costa. São Paulo : Cosac & Naify, 2001. Série Espaços da Arte Brasileira. p. 8. 6 SUDENE – Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste. Parte do plano de desenvolvimento nacional de Juscelino Kubitschek.
Mas em toda a narrativa, texto e imagem, é presente a sensação de suspensão. O período
percorrido pelos diversos acervos é vasto. O caráter documental de parte deles vem endossar a
tese originada no sentimento. Fica uma fragilidade. É como se os mesmos lugares encerrassem
em si potencialidades de força equivalente e sentidos contrários. Em uma cidade que confunde o
construir e o destruir, na mesma medida em que num dado decurso de tempo tudo pode ficar
congelado, abandonado, tombado não pela preservação, mas pelo esquecimento; tudo pode ser
transformado, apagado e refeito segundo uma nova regra. As cicatrizes desse processo vão pela
cidade. Fazem com que, de certa forma, a despeito de todo o movimento interno, à distância, sua
imagem seja sempre a mesma: uma imensa concreção material sobreposta ao território, eterna
tentativa de controle sobre a natureza – inclusive a humana – que nunca se efetiva por completo.
[IMG.04] Edifício sede da SUDENE. Fonte: Acervo do artista.
Entram na construção desse discurso imagens de tragédias, como as enchentes tão presentes no
cotidiano e na história de Recife e a implosão dos espaços construídos com a explosão de forças
da natureza, que reavança intrusa e verde sobre o concreto. Força latente sempre a espreita.
Utopia na ressaca
Só um olhar amoroso e deformado consegue escolher os objetos e imaginar dentro da
cidade uma nova cidade.7
Adotando este tipo de olhar, Ressaca Tropical não vem confirmar ou discordar do fracasso do
projeto moderno de progresso, vem recolocar a questão. Constata sim os objetivos não
alcançados nos moldes em que foram formulados, o abismo entre projeto e realidade. Mas não
entende esta constatação como definição de fracasso. Falando sobre o núcleo de compras e a
rodoviária de Brasília em entrevista de 1984, Lúcio Costa dá a pista:
isto tudo é muito diferente do que eu tinha imaginado para esse centro urbano, como uma
coisa requintada, meio cosmopolita. Mas não é. Quem tomou conta dele foram esses
brasileiros verdadeiros que construíram a cidade e estão aí legitimamente. É o Brasil... E eu
fiquei orgulhoso disso, fiquei satisfeito. É isto. Eles estão com a razão, eu é que estava
errado. ... o sonho foi menor do que a realidade. 8
Não há aqui discussão sobre endossar ou não as prerrogativas e procedimentos modernos. Há
uma tentativa de entendimento expandido do tempo, de posicionamento e conexão diante da
própria história, especialmente a recente, tão facilmente e esquizofrenicamente ignorada por uma
cultura de homogeneização pasteurizada das referências. Há a consciência da presença
moderna, já como acervo, passível inclusive de apagamentos no movimento sucessivo de
construção e destruição da cidade sobre si mesma. O moderno entra aqui como dado presente e
incorporado – materialmente impresso na concreção da cidade e simbolicamente impresso no
corpo histórico da sociedade.
Existe uma cidade em que se vive e uma cidade construída que a acolhe e a hospeda.
Estão ligadas por uma relação obrigatória, e mesmo assim são realidades separadas. De
um lado o corpo da sociedade com suas atividades, os seus ritos, as suas agitações, os
seus conflitos; de outro uma gigantesca concreção material que cresce lentamente sobre si
própria e na qual a vida faz ninho, como molusco em sua casca. 9
A esta definição de Daniele Vitale, Jonathas acrescenta em Ressaca Tropical a escala do
indivíduo. A experiência íntima e única, entretanto inevitavelmente atrelada aos corpos de
natureza coletiva apontados por Vitale acima.
A cidade – resultado também dos nãos, nãos também do movimento moderno – é um tabuleiro de
disponibilidades construídas. Cabe ao indivíduo identificá-las e transitar por elas, encontrar as
brechas que muitas vezes estão justamente onde o projeto de controle não se efetivou, no que
7 VITALE, Daniele. Arquitetura e Cidade. Plano de curso para disciplina da pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Escola de Engenharia de São Carlos, Universidade de São Paulo, 2007. p. 1. 8 COSTA, Lúcio, Lúcio Costa : Registro de uma vivência. São Paulo : Empresa das Artes, 1995. p. 311. 9 VITALE, op.cit. p. 1.
ficou para trás, no descarte, nos circuitos subterrâneos que a realidade desenha sobre a
superfície abstrata e cartesiana do projeto.
Jonathas vai buscar no olhar sobre o moderno instrumentos para enfrentar a cidade real.
Procedimento semelhante ao reconhecimento da especificidade brasileira quando da incorporação
do modernismo descrito anteriormente, encontra no reconhecimento da ressaca do eterno projeto
de futuro inconcluso, o espaço para uma utopia do possível, se é que se pode dizer isso nesses
termos. Encontra no cruzamento de todos os elementos que agrupa neste trabalho, uma ressaca
que, ainda que através de uma voracidade destrutiva, abre brechas onde a vida encontra espaço
e explode. Não se trata da apologia à “gambiarra”, à precariedade, mas de reconhecer como diz o
Marco Polo de Calvino no fecho de suas Cidades Invisíveis que:
O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que está aqui, o inferno no qual
vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer.
A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o
ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada, exige atenção e aprendizagem
contínuas: tentar saber reconhecer quem e o quê, no meio do inferno, não é inferno, e
preservá-lo, e abrir espaço.10
A articulação entre o texto do diário e os diversos acervos de imagens sobrepostos, traz potência
para a leitura que interessa ao artista: a de ajuste do projeto modernista – e, no limite, de qualquer
projeto – à lógica e funcionamento do próprio espaço, de assentamento de um projeto que chega
impositor no primeiro momento, mais externo que negociador das idiossincrasias locais. A
presença do diário costura o trânsito íntimo entre as imagens e devolve potência de atrito entre
arquitetura e desejo. Seguem alguns trechos:
Recife 17.10.77_segunda-feira.
Encontrado dormindo dentro da Chevrolet pelo inspetor Elentino* - 03:45 horas da manhã.
Departamento médico da CELPE – sinusite.
Recife 19.10.77_quarta-feira.
Continuando apos a peça teatral fui a casa de Enéas, onde jantei e ouvimos musicas.
Depois fui para casa... passei no Hollyday para lanchar e encontrei três garotas numa
“bronca” das maiores. Maria Luisa, Dulcineide e uma outra amiga. Levei-as para casa e
finalmente terminei durmindo* com Maria Luisa... quando saí as 09:00 da manhã.
A tarde fui a CEP-penhores* Recife, depois fomos dar um passeio pelo Recife para lembrar
os velhos tempos... quando voltamos fomos ao cinema Ritz.
Recife 24.10.77_terça-feira
Conheci Marlene no Parque 13 de maio.
10 CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. São Paulo : Companhia das Letras, 1990.
Recife 02.10.77_Domingo
Encontrei com Fernando no Costa Brava, tomei um pudim, depois ele deu-me uma carona
até o Pina. Fui ao Expressinho onde encontrei Sonia. Dançamos depois fomos no Chapéu
de Couro logo após fomos para um quarto no Pina. Chegamos a fazer amor por duas vezes.
No texto do diário, sexo e desejo transformam a cidade numa máquina para o encontro, seu
adensamento em fricção sempre ao alcance da mão, suas frestas em brechas de intimidade. Nas
imagens, a natureza permeia e invade a construção humana, ora lhe devolvendo certa poesia e
amenidade, ora lhe tomando de volta à força o controle e a supremacia aparentemente perdidos e
ainda, em certos momentos, ocupando sorrateiramente o espaço esquecido, disponível.
[IMG.05] Fotografias de acervos pessoais. Fonte: Acervo do artista.
Os silêncios, de segredo ou de esquecimento do texto encontram também paralelo na imagem de
cidade que a partir dele se constrói. Se em alguns momentos as disponibilidades reconhecidas
são invadidas e preenchidas materialmente com voracidade, em outros, o espaço disponível fica
impregnado somente do aparente vazio, da memória, do segredo e das possibilidades, que o
tomam inteiro e o preenchem.
[IMG.05] Fotografias de Jonathas de Andrade. Fonte: Acervo do artista.
A cidade é a casa do homem
Observamos para breve a concretização do fenômeno: ‘A cidade é toda ela a casa do
homem’. 11
Esta é uma fala de Flávio de Carvalho em palestra na Rádio Cultura proferida em São Paulo,
1938. Através do discurso da eficiência – tanto no que concerne ao modo de produção
mecanizado, quanto à nova forma de habitar a ele atrelada – constrói a idéia de que o homem
moderno se lança em direção à cidade a ponto de ela tornar-se sua casa. Um raciocínio lógico
apurado, vai encadeando fatos e interpretação de forma que parece que o único destino possível
para o mundo é um salto evolutivo que o ideário moderno reconhece, ampara e viabiliza. Os
argumentos são apresentados ao mesmo tempo com uma clareza analítica impressionante [a
ponto de vislumbrar a premência da globalização e de apontar que a queda de fronteiras tem
muito menos a ver com questões políticas do que com “as grandes e sempre crescentes
velocidades alcançadas pelo homem e do conforto cada vez maior de que se reveste o
transporte”] e uma crença que, à luz dos fatos e do tempo já transcorrido, pode-se pensar ingênua
no ideal modernista. O homem se lançaria sem medo em direção à cidade por conta da
fragmentação do processo produtivo, que retira da casa o status de unidade básica de produção;
por conta de a própria cidade não ter outra alternativa que não se tornar uma máquina mais
eficiente e portanto, mais capaz de receber os seus habitantes e de potencializar as suas ações e
finalmente porque com todas as condições favoráveis, estaria prestes a eclodir uma nova noção
de sociedade e de coletividade, amparada pela melhoria geral das condições de vida e pela
libertação, através da máquina, do trabalho repetitivo e anestesiante, bem como de todas as
outras formas alienantes de controle. O projeto moderno de progresso e desenvolvimento é visto
como uma fatalidade, um processo natural, para o qual cabe à arquitetura encontrar o novo
desenho apropriado.
A nova arquitetura, a chamada arquitetura moderna ou contemporânea, já se apresenta
como uma previsão: ela é nua e lisa, despida de todo o preconceito ancestral; os berloques
que ornamentavam o espírito sanguinolento do homem até pouco tempo ainda selvagem se
encontram ausentes. Ela quase não tem pudor e não tem medo, pois as suas aberturas são
grandes e acolhedoras e as suas paredes, freqüentemente transparentes. 12
Setenta anos depois, ciente de que o passo evolutivo do homem no século XX, não alcançou
tamanha extensão, de que estamos mais próximos do selvagem do que pensávamos, o homem
de Ressaca Tropical está em casa na cidade. Não porque ela tenha atingido “uma compreensão
maior da idéia de coletividade”, ou porque forneça “coletivamente maior conforto e luxo”, mas
porque é nela que encontra as brechas para a libertação, ainda que não completa e constante,
11 CARVALHO, Flávio de. A casa do homem do século XX. Palestra realizada na Rádio Cultura, São Paulo, em 27 de janeiro de 1938. Em: XAVIER, Alberto [org.]. Depoimento de uma geração – arquitetura moderna brasileira. São Paulo : Cosac & Naify, 2003. p. 53. 12 Idem, p. 55.
dos mesmos mecanismos de controle e anestesia, via conexão com o desejo e com a experiência.
A cidade é nua, mas não é lisa, é rugosa, drapeada. Quase não tem pudor e não tem medo, está
sempre exposta, esfolada e voraz. Quanto às aberturas, mais do que transparente, é porosa.
A cidade é criação essencialmente humana, tradução e reflexo de sua natureza. A cidade é, toda
ela, a casa do homem. O sucesso do projeto moderno levaria o homem de encontro à cidade. A
ressaca desse mesmo projeto encontra na cidade o lugar do homem.
Ítalo Calvino afirma que em Cidades Invisíveis sente ter conseguido tratar a cidade de forma que
ela “deixa de ser um conceito geográfico para se tornar o símbolo complexo e inesgotável da
existência humana.” 13 Um dos procedimentos adotados pelo autor nesse sentido, é a construção
do texto de forma análoga a como ele entende a construção da cidade. Em Ressaca Tropical
observa-se também esse caráter metafórico entre a obra e a cidade, na medida em que o trabalho
se materializa segundo certa lógica emprestada da cidade sobre a qual se debruça. São
componentes dessa lógica diversos aspectos, tais como:
A constituição de um todo único a partir de diversos elementos e camadas com uma natureza
sistêmica, onde importa tanto a somatória de elementos, quanto o disposição que os organiza.
Onde se sobrepõem diversas temporalidades, diversas escalas e circuitos. Onde o arranjo
espacial é ao mesmo tempo o dado último e a primeira camada de leitura.
A construção de uma materialidade segundo certas regras entretanto nunca redutíveis a uma
equação, onde sempre há espaço, brechas, silêncios, descontinuidades.
Com essa lógica análoga à da cidade, Ressaca Tropical reconstrói Recife no espaço da galeira,
mantendo inclusive a capacidade própria das cidades reais de serem a um tempo uma cidade,
única e específica, e cidade, termo genérico que permeia todas sem ser exatamente nenhuma
delas.
Constitui-se uma cartografia da cidade. Não uma planificação como nos mapas usuais. Mas um
mapa em profusão, que, como os tapetes que Marco Polo descreve para Kubai Klan, não
representa a cidade, a contém.
13 Contracapa da última edição publicada pela Companhia das Letras, 1990.
Referências Bibliográficas
AMORIM, Luiz. Obituário arquitetônico: Pernambuco modernista. Recife, 2007. CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. São Paulo : Companhia das Letras, 1990. COSTA, Lúcio, Lúcio Costa : Registro de uma vivência. São Paulo : Empresa das Artes, 1995. FERRAZ, Marcelo [org.]. Lina Bo Bardi. São Paulo : Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, Imprensa Oficial, 2008. ICBR. Ressaca Tropical. Recife : Instituto Cultural Banco Real, 2009. Catálogo da exposição Ressaca Tropical, projeto Pernambucanos Contemporâneos. Curadoria Kiki Mazzuchelli. Galeria Marcantonio Vilaça, Instituto Cultural Banco Real, Recife, 25 de janeiro a 1 de março de 2009. ROSSI, Aldo, A Arquitetura da Cidade. São Paulo : Martins Fontes, 2001. Coleção A 20. VITALE, Daniele. Arquitetura e Cidade. Plano de curso para disciplina da pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Escola de Engenharia de São Carlos, Universidade de São Paulo, 2007. WINSIK, Guilherme. Lucio Costa. São Paulo : Cosac & Naify, 2001. Série Espaços da Arte Brasileira. XAVIER, Alberto [org.]. Depoimento de uma geração – arquitetura moderna brasileira. São Paulo : Cosac & Naify, 2003.