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RESPONSABILIDADE CIVIL DOS HOSPITAIS E CLÍNICAS Álvaro Henrique Teixeira de Almeida Juiz de Direito/TJRJ Mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade de Lisboa Panorama Atual da Responsabilidade Médico-Hospitalar De grande importância se apresenta o estudo da responsabilidade civil, objeto de constante preocupação dos juristas do mundo inteiro e, assim é, pois, indubitavelmente, “toda manifestação da atividade humana traz em si o problema da responsabilidade”. 1 E a importância de tal estudo se intensifica quando se tem em linha de conta a atividade médico-hospitalar, isto porque, como já restou assinalado, referida atividade tem por objeto a saúde, cuja aspiração em consegui-la ou mantê-la foi elevada juridicamente à condição de direito fundamental na segunda metade do século XX. 2 Não é por outro motivo que, num processo intitulado por JOSÉ MANUEL MARTÍN BERNAL 3 de “hermanamiento”, Medicina e Direito convergem para dar resposta a um dos mais instigantes problemas da atualidade, qual seja, de assegurar à pessoa a proteção de sua saúde. 1 José de Aguiar Dias, Da Responsabilidade Civil, p. 1. 2 Cf. Pascual Sala Sánchez, Discurso de Clausura, in la Responsabilidad de Los Médicos y Centro Hospitalares frente a los usuarios de la Sanidad Pública y Privada, p. 181. 3 Responsabilidad Médica y derechos de los Pacientes (Problemática Jurídica de la Relación Médico- Paciente), p.19 e segs.

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RESPONSABILIDADE CIVIL DOS HOSPITAIS E CLÍNICAS

Álvaro Henrique Teixeira de Almeida

Juiz de Direito/TJRJ

Mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade de Lisboa

Panorama Atual da Responsabilidade Médico-Hospitalar

De grande importância se apresenta o estudo da responsabilidade civil,

objeto de constante preocupação dos juristas do mundo inteiro e, assim é, pois,

indubitavelmente, “toda manifestação da atividade humana traz em si o problema da

responsabilidade”.1

E a importância de tal estudo se intensifica quando se tem em linha de conta

a atividade médico-hospitalar, isto porque, como já restou assinalado, referida atividade tem

por objeto a saúde, cuja aspiração em consegui-la ou mantê-la foi elevada juridicamente à

condição de direito fundamental na segunda metade do século XX.2

Não é por outro motivo que, num processo intitulado por JOSÉ MANUEL

MARTÍN BERNAL3 de “hermanamiento”, Medicina e Direito convergem para dar resposta a

um dos mais instigantes problemas da atualidade, qual seja, de assegurar à pessoa a proteção

de sua saúde.

1 José de Aguiar Dias, Da Responsabilidade Civil, p. 1. 2 Cf. Pascual Sala Sánchez, Discurso de Clausura, in la Responsabilidad de Los Médicos y Centro Hospitalares frente a los usuarios de la Sanidad Pública y Privada, p. 181. 3 Responsabilidad Médica y derechos de los Pacientes (Problemática Jurídica de la Relación Médico-Paciente), p.19 e segs.

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Neste cenário, destaca-se, por conseguinte, o Direito da Saúde que, na

precisa definição de SÉRVULO CORREIA, apresenta-se como “o sistema de normas

jurídicas que disciplinam as situações que tem a saúde por objeto imediato ou mediato e

regulam a organização e o funcionamento das instituições destinadas à promoção e defesa da

saúde”.4

É certo que ainda não se pode falar em autonomização científica do Direito

da Saúde, ou Direito Médico, como muitos preferem, até porque a saúde faz parte de uma

extensa lista de bens simultaneamente passíveis de disciplina tanto no quadro do Direito

Público, quanto no Privado, o que impede uma sistematização assente nessa clássica

bipartição do ordenamento jurídico5, mas que não exclui, em absoluto, a necessidade e a

importância de seu estudo, notadamente ante ao crescente número de ações de indenização

decorrentes da responsabilidade médica e hospitalar.

Com efeito, tais ações, que antes eram raras em nossa justiça, estão se

tornando cada vez mais freqüentes, havendo mesmo, no mundo ocidental, uma tendência para

o crescimento desta litigiosidade que, no dizer de JOSÉ CONDE6 se apresenta como

verdadeiro fenômeno social.

Muitas são as causas de tal fenômeno. SÉRGIO CAVALIERI FILHO, por

exemplo, aponta como causa desta litigiosidade a “má qualidade do ensino de um modo geral,

4 Introdução ao Direito da Saúde, in Direito da Saúde e Bioética, p. 41. Muitos autores preferem a denominação “Direito Médico” (v., por exemplo, Marilene Kostelnaki Baú, O contrato da existência médica e a responsabilidade civil, p. 5), denominação essa rejeitada por Sérvulo Correia por entender ser o Direito da Saúde, que se integra no Direito Privado, resultado de uma evolução decorrente da transição de um simples Direito Médico para um mais alargado Direito da Medicina. Esclarece-nos mencionado professor da Faculdade de Direito de Lisboa que o Direito Médico tinha como perspectiva nuclear a profissão médica. “O sistema normativo centrava-se no próprio médico e o doente surgia sobretudo na posição de objeto da atuação daquele e menos na de sujeito juridicamente ordenado em posição de paridade com o médico no âmbito de uma relação de prestação do serviço”. E mais adiante acrescenta : “A mudança conceitual na passagem do Direito Médico para o Direito da Medicina transforma os médicos em apenas um dos sujeitos típicos das situações reguladas, a par dos destinatárias dos seus serviços, cuja liberdade de aceitação do tratamento o legislador coloca acima do próprio fim de proteção da saúde”. 5 Cf. Sérvulo Correia, op. cit., p. 42 a 48. 6 La responsabilidad de la administracion y de los profissionales en la prática médica, in La Responsabilidad de los Médicos y Centros Hospitalares frente a los Usuarios de la Sanidad Pública y Privada, p. 14.

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e dos péssimos serviços prestados, principalmente pelos hospitais públicos”, bem como o

aumento da demanda na procura desses serviços e, também, “por ter hoje o cidadão uma

maior consciência dos seus direitos e encontrar mais facilidade de acesso à justiça”.7

JOSÉ CONDE, igualmente, lembrando que a busca de uma indenização,

ante o dano experimentado, apresenta-se como último valor de uma sociedade de consumo,

aponta, sem a pretensão de ser exaustivo, como causas da litigiosidade no âmbito do direito da

saúde, os progressos realizados pela medicina, o novo enfoque que é dado ao paciente quanto

ao relacionamento travado entre ele e o profissional da saúde, considerando a imperiosa

necessidade de seu consentimento para a realização do tratamento, bem como a própria

modificação da mentalidade da sociedade que, antes resignada, passou atualmente a ser mais

hedonista e reivindicativa, razão pela qual, com maior freqüência, busca obter uma

indenização em caso de dano à saúde decorrente da atividade médico-hospitalar.8

Vê-se, pois, o quão importante se apresenta o estudo do Direito da Saúde,

notadamente sob o prisma do direito privado, onde exsurge a problemática pertinente à

responsabilidade civil médica e hospitalar.

E neste contexto, quando da solução das controvérsias decorrentes da

relação paciente-médico e/ou paciente-hospital, deve o intérprete aplicador do Direito ficar

atento, não só à mudança da mentalidade da sociedade, como também à própria modificação

do pensar jurídico no que se refere à responsabilidade civil.

7 A Responsabilidade Médico-Hospitalar à Luz do Código do Consumidor, in Revista da Emerj, p. 87. 8 Op. cit., p. 14-15. Quanto à modificação da mentalidade da sociedade como causa da litigiosidade, assevera o autor espanhol que “en la primera mitad del siglo se puede decir que la regla general era la resignación ante los problemas de la vida, el sufrimiento o la muerte. Por contra, la mentalidad actual es menos resignada, más hedonista y reivindicativa, y busca obtener una indemnización en el caso de que se produzca una merma de la salud”.

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Não podem os juristas ignorar que, neste novo milênio, passa a

responsabilidade civil por uma verdadeira revolução9, posto que as concepções elaboradas no

século XIX já não mais atendem às necessidades sociais.

Como observa FERNANDO NORONHA, “a sociedade humana passa por

transformações nunca antes experimentadas, que progressivamente fazem anacrônico o

regime jurídico instituído em 1916”.10, e de todo, acrescento, não modificado pelo atual

Código Civil. Assim sendo, a responsabilidade civil ganha novos contornos e propósitos, tudo

com escopo de se adequar às reais e atuais necessidades do homem que, nas sociedades de

massa, “se vê sob a iminência do risco a todo momento, apenas por nela viver, seja pelo

consumo de bens, de produção alimentar e outros, quer por efeito das atividades e serviços

prestados em larga escala (produção industrial, energia, transportes, etc.), sem cogitar-se da

preservação dos direitos inerentes à sua condição existencial Física e Espiritual (ofensas ao

direito da personalidade)”.11

Frente a essa nova realidade a responsabilidade civil deixou de ter uma

função exclusivamente reparatória, ressarcitória ou indenizatória, em que pesa o fato de ser

ainda a função primacial, para também desempenhar outras importantes funções, como a

sancionatória e a preventiva.

O desembargador fluminense LUIZ ROLDÃO DE FREITAS GOMES, em

seus estudos a respeito das perspectivas na responsabilidade civil, esclarece: “não basta tão só

reparar, mas, para a segurança e tranqüilidade almejadas, importa mais prevenir. Sua função

vai-se deslocando, deste modo, da exclusiva função ressarcitória, em que o princípio da

9 Neste sentido, Fernando Noronha, Desenvolvimento Contemporâneo da Responsabilidade Civil, p. 40. Assegura o professor da Universidade Federal de Santa Catarina que nítidos são os contrastes com a responsabilidade civil que herdamos do século XIX. Além de marcar distinção com a observação de que a responsabilidade civil, hoje, está em marcha acelerada no sentido da responsabilidade objetiva, enquanto a responsabilidade civil novecentista era subjetiva, assinala ainda o renomado professor que, “enquanto a responsabilidade civil novecentista era individual, a contemporânea tende a ser coletiva, incidindo sobre grandes grupos, ou melhor, sobre as pessoas integrantes desses grupos, realizando assim uma socialização de riscos”. 10 Op. cit., p. 33. 11 Luiz Roldão de Freitas Gomes, Perspectivas na Responsabilidade Civil, in Nada Consta, Informativo do 1º Ofício do Registro da Distribuição de Capital do Rio de Janeiro, p. 3.

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equivalência, o mais das vezes predomina, para o de evitar o dano, atuando como verdadeiro

fator de precaução”.12

Esta atual função reparatória ganha extrema importância quando se observa

que ela tem por fim contribuir para coibir a prática de outros atos danosos, tanto pela pessoa

que o cometeu quanto por quaisquer outros.

E quando se fala numa função sancionatória, faz-se evidente aproximação

com a finalidade retributiva da responsabilidade penal. Este, aliás é o ensinamento de

FERNANDO NORONHA que, dissertando a respeito, assevera que “a maior ou menor

censurabilidade da conduta do responsável tem alguns reflexos na obrigação de reparar os

danos causados, aproximando muitas vezes a “indenização” de uma “pena privada”. Algumas

vezes faz acrescer o montante a ser pago, que reveste em benefício do ofendido, e outras

vezes fá-lo reduzir, representando agora um menor sacrifício para o lesante”.13

Sob estas novas perspectivas é que se apresenta, hodiernamente, a

responsabilidade civil, fato esse que não pode, em absoluto, ser ignorado pelos juristas que,

igualmente, devem estar atentos para esta evolução, posto que as soluções consagradas

tradicionalmente, estão sendo ultrapassadas por força de textos legais subseqüentes.

É o caso, por exemplo, entre nós, da Lei 8078, de 11 de setembro de 1990,

geralmente conhecida como Código de Defesa do Consumidor (CDC), posto que dispõe sob a

proteção do consumidor e dá outras providências.

De fato, referido diploma legal, que veio a lume para cumprir uma missão

constitucional, qual seja, a de promover a defesa do consumidor conforme expressamente

12 Op. cit., mesma página. 13 Op. cit., p. 41.

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estabelecido no art. 5º, XXXII da Constituição Federal14, promoveu uma verdadeira revolução

em nosso direito obrigacional, principalmente na área da responsabilidade civil.

Com efeito, como assegura SÉRGIO CAVALIERI FILHO, “não seria

exagerado dizer que depois do CDC podemos dividir a responsabilidade civil em duas

grandes áreas: a responsabilidade tradicional, aquela que estudamos na faculdade, fundada no

art. 159 do Código Civil (1916) e Leis Especiais, e a responsabilidade nas relações de

consumo, fundada no CDC. E mais, tendo esse Código estabelecido responsabilidade objetiva

para todos os acidentes de consumo, quer decorrentes do fato do produto, quer do fato do

serviço. A responsabilidade objetiva, antes circunscrita às hipóteses legais, depois do CDC

passou a ter um campo de incidências ainda maior que o da própria responsabilidade

subjetiva”.15

Outrossim, há que se considerar que, embora aparentemente setorial, o

CDC, em verdade, não o é, posto que aplicável em todos os ramos do direito, onde ocorrem

relações de consumo.

Como esclarece-nos o renomado Desembargador do Tribunal de Justiça do

Rio de Janeiro, antes citado, o que o CDC “realmente fez foi criar uma sobrestrutura jurídica

multidisciplinar”, o que implica dizer que o seu campo de incidência é extremamente

abrangente, pois “sem retirar as relações de consumo das áreas do direito onde normalmente

ocorrem, sem afastá-las do seu natural habitat, o CDC estendeu sobre todas a sua

disciplina”.16

Assim, se faz correto afirmar que o instituto e os contratos continuam sendo

regidos pelas normas que lhes são peculiares, sendo certo, no entanto, que, constatando-se a

14 Dispõe referido dispositivo constitucional: “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”. 15 A Responsabilidade Médico-Hospitalar à Luz do Código do Consumidor, in Revista de Direito do Tribunal da Justiça do Estado do Rio de Janeiro, p. 18. 16 Sérgio Cavalieri Filho, op. cit., p. 17.

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existência de uma relação jurídica de consumo, faz-se presente também, a regular tais

institutos e contratos, o Código de Defesa do Consumidor.

Com efeito, é através de uma análise quanto à existência ou não de uma

relação de consumo é que se concluirá pela incidência ou não do Código de Defesa do

Consumidor.

Tal diploma legal não tratou de especificar os contratos que regulamenta,

competindo ao intérprete aplicador do Direito fazer uma prévia análise da relação contratual

com a qual se depara para saber se se encontra diante de uma relação jurídica de consumo,

para então fazer incidir as regras estatuídas pelo CDC.

Em assim sendo, em sede de responsabilidade civil, apresenta-se de suma

importância esta análise prévia, posto que o CDC, como visto, estatuiu como objetiva a

responsabilidade decorrente do acidente de consumo, seja pelo fato do produto, seja pelo fato

do serviço.

Afastando-se assim da tradicional regra da responsabilidade subjetiva,

tradicionalmente consagrada, alargou o CDC o campo de abrangência de responsabilidade

objetiva e, a tal fato, não pode o operador do Direito ficar desatento.

Desta forma, quando se fala em responsabilidade médico-hospitalar, tem-se

que atentar para essas novas perspectivas da responsabilidade civil, não se podendo ignorar,

em absoluto, o Código de Defesa do Consumidor, posto que, tendo em linha de conta a

relação existente entre o paciente e o médico e, notadamente, entre o paciente e o hospital,

claro está tratar-se de uma relação jurídica de consumo, como mais adiante se verá.17

17 V. considerações no item A Responsabilidade Civil do Hospital à Luz do CDC.

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Sob estas luzes, pois, é que se descortina o atual panorama da

responsabilidade médico-hospitalar. Sob estas modernas concepções, portanto, é que o tema

da responsabilidade civil hospitalar deve ser apreciado.

NATUREZA JURÍDICA DA RELAÇÃO PACIENTE-HOSPITAL

Prefacialmente impõe-se esclarecer que, a exemplo da relação médico-

paciente, a relação jurídica existente entre o hospital (ou clínicas e assemelhados) e o paciente

é também de natureza contratual.

Com efeito, ao se internar em um nosocômio estabelece-se, de imediato, entre

o paciente e o respectivo estabelecimento hospitalar, uma relação contratual pela qual o

hospital se obriga a uma prestação de serviços que não se resumem à prestação de serviços

médicos propriamente ditos, pois também presta serviços auxiliares e complementares deste,

como os serviços de enfermagem, fornecimento de medicamentos e instrumentos, instalações

adequadas para cirurgias e outros atos médicos, bem como se obriga a prestar serviços

decorrentes da hospedagem, com o fornecimento de alojamento e alimentação.18

Tem-se, pois, que afora as obrigações decorrentes da prestação de serviço

médico propriamente dito, obrigam-se os hospitais e clínicas, também, a prestar outros

serviços que decorrem do próprio internamento, como o de oferecer recursos que atendem ao

especial fim de tratamento, de assegurar a incolumidade do paciente, de promover a vigilância

e segurança, bem como assegurar o sigilo e prestar as devidas e necessárias informações.

INFECÇÃO HOSPITALAR

18 Cf. Pedro Arruda França, Contratos Atípicos – Legislação, Doutrina e Jurisprudência, p.157. De igual forma, Ruy Rosado de Aguiar Jr., Responsabilidade Civil do Médico. No mesmo sentido, Roberto Godoy, A Responsabilidade Civil no Atendimento Médico e Hospitalar, que acrescenta, afora os atos médicos e paramédicos, os atos de comércio praticados no âmbito hospitalar, ou seja, aquisição e venda de materiais e medicamentos.

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Dentre as inúmeras obrigações que decorrem do contrato hospitalar, que o

restrito âmbito deste estudo não nos permite aprofundar, e tendo em linha de conta a que visa

assegurar a incolumidade propriamente dita do paciente, torna-se relevante aqui abrirmos um

parênteses para destacarmos a tormentosa questão pertinente à infecção hospitalar.

Consoante ensinamento de MILCA SEVERINO PEREIRA e TOKICO

MURAKAWA MORYA, “emprega-se a expressão Infecção Hospitalar de forma genérica e

convencional, para designar infecções adquiridas, após a admissão do paciente no hospital e

que se manifesta durante a internação ou após a alta, se puder ser correlacionada com a

hospitalização”. E mais: “essa expressão não implica, necessariamente, que o microorganismo

responsável seja de origem hospitalar, mas identifica o hospital como o lugar onde se contraiu

a infecção”.19

É difícil identificar o modo exato de aquisição da infecção hospitalar. A

literatura médica aponta duas hipóteses: infecção endógena, que é a que decorre das próprias

condições pessoais do paciente ou, no dizer médico, “oriunda da própria microbiota do

paciente” e a infecção exógena, “oriunda de reservatórios e através de vetores como o próprio

paciente, equipe de saúde e artigos hospitalares”.20

Tem-se, pois, que, como observou FABRÍCIO ZAMPROGNA MATIELO, “a

infecção pode ter por origem a falta de cuidados fundamentais de higiene daqueles que

mantêm contato físico ou se aproximam do paciente (enfermeiros, médicos, etc.), na omissão

de providências assépticas no transcorrer de cirurgia, ou – e especialmente – em função da

ausência de assepsia e cautelas higiênicas do material e das dependências do

estabelecimento”.21 A infecção assim contraída, classificada como exógena, é perfeitamente

previsível e, por conseqüência, evitável.22

19 Infecção Hospitalar – Estrutura Básica de Vigilância e Controle, p. 5. 20 Milca Severino Pereira e Tokico Murakawa Morya, op. cit., p. 7. 21 Responsabilidade Civil do Médico, p. 150. 22 Milca Severino Pereira e Tokico Murakawa Morya esclareceu quanto à importância da distinção que se faz entre infecção endógena e a exógena, posto existir infecções hospitalares evitáveis e outras não. “As infecções não previsíveis são, em especial, causadas pela flora endógena, acometem, em geral, pacientes com mecanismo de defesa alterados, instalando-se não obstante a adoção de condutas e procedimentos adequados. Quanto às infecções hospitalares previsíveis, em geral, estão relacionadas ao uso de equipamentos e/ou procedimentos específicos, apresentando em sua origem,

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Há estudos no sentido de que cerca de 30% a 50% do total das infecções

hospitalares estão entre aquelas geradas por falhas nos cuidados dispensados ao paciente,

como aquelas consubstanciadas em imperícias nas técnicas cirúrgicas e ausência do hábito de

lavar as mãos.23 Nestes casos, pois, não restam dúvidas que exsurgem para o hospital o dever

de reparar os danos provocados em decorrência da lamentável falha de seus serviços.

E é patente esse dever de indenizar porque, embora inexista na literatura

médica hospital com “grau zero” de infecções 24, é possível, no entanto, reduzir-lhe a

incidência, não se apresentando a ocorrência de infecção hospitalar, portanto, como fato

imprevisível, nem tampouco pode ser equiparada às hipóteses de caso fortuito ou força maior.

Ante a previsibilidade da ocorrência da infecção hospitalar, posto ser de

sabença a impossibilidade de se erradicar o micróbio do organismo do próprio paciente, dos

outros doentes, do médico, do pessoal hospitalar, obriga-se o hospital a minimizar as

condições para o aparecimento das infecções.25

Todo nosocômio há de ter, pois, uma Comissão de Controle de Infecção

Hospitalar e deverá desenvolver ações com vistas à redução máxima possível da incidência e

da gravidade das infecções hospitalares. A Portaria n.º 930, de 04/09/1992, do Ministério de

Saúde, regula o assunto, por conter normas para o controle das infecções, sendo sua

observância obrigatória por parte dos estabelecimentos hospitalares.

algum evento possivelmente alterável. Logo atribuim-se a falhas humanas, sendo, freqüentemente, causados por microorganismos adquiridos no hospital”. (op. cit., p. 7). 23 Cf. Milca Severino Pereira e Tokico Murakawa Morya, op. cit., p. 7-8. Baseados em estudos de Reybronk e Stere e Mullison, apontam os autores “a lavagem ou degermação das mãos dos profissionais, como medida mais importante na prevenção das infecções exógenas e de surtos. As mãos contaminadas do pessoal do hospital constituem a principal via de transmissão de infecção nas unidades de tratamento intensivo, serviço de nutrição, ambulatórios, laboratórios clínicos e nas enfermarias de doenças infecciosas”. 24 Conforme esclarece-nos Irany Novah Moraes (Erro Médico e a Lei), “as taxas de infecção hospitalar apresentadas na literatura variam de 1,8 (um vírgula oito) a 43,1% (quarenta e três vírgula um por cento) em hospitais americanos, ingleses e canadenses. Uma das maiores estatísticas sobre o assunto foi a apresentada por Altemcier, estudando a ferida operatória em 1.118 hospitais, ou seja, um quarto de todos os hospitais americanos na ocasião e registrou 7,4% (sete vírgula quatro por cento), em média. Entre nós, no Rio de Janeiro, os valores estão entre 1,4 a 10,3, com média 9,9% (nove vírgula nove por cento).

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Adverte FABRÍCIO MARTIELO que “sempre que o nosocômio desatender

a obrigação de fazer funcionar essa comissão, automaticamente estará chamando para si, de

modo praticamente inarredável, a responsabilidade por toda e qualquer infecção que vier a ser

gerada em suas dependências, haja visto a patente negligência com que se houve ao

inobservar regra que poderia prevenir acontecimentos de tal natureza”.26

Ademais, como fornecedores de serviços que são, responsável será o

hospital que não constituir aludida comissão, porque, em casos tais, serão os seus serviços

classificados como impróprios, a teor do que dispõe o § 2º do art. 20 da Lei 8078/90.27

Por outro lado, o simples fato de o hospital manter aludida Comissão de

Controle, não o exime da responsabilidade, embora deva ser levado em consideração pelo

julgador28, posto que, por estar a ocorrência de infecção hospitalar estritamente ligada à

atividade do próprio nosocômio, sua responsabilidade só pode ser excluída quando a causa da

moléstia possa ser atribuída a evento específico e determinado.29 Assim, não se apresenta

responsável o hospital se a infecção foi adquirida em fase anterior ao ingresso do paciente,

ainda que a mesma venha se desenvolver quando já internado.

25 Cf. Irany Novah Moraes, op. cit., p. 282. 26 Op. cit., p. 151-152. 27 CDC – artigo 20, § 2º: São impróprios os serviços que se mostram inadequados para os fins que razoavelmente deles se esperam, bem como aqueles que não atendam às normas regulamentares de prestabilidade. 28 Entende Irany Novah Moraes (op. cit., p. 283) que, existindo no estabelecimento hospitalar a Comissão de Controle de Infecção Hospitalar e tendo em linha de conta “que o risco de se adquirir infecção hospitalar é um risco razoavelmente esperado em quaisquer procedimentos que envolvem cirurgias, sondas vesicais, cateteres venosos e cânulas, além de outras enumeradas pelos tratados a respeito do assunto e, que, tendo o hospital tomado as providências exigidas por lei, para um controle de infecção hospitalar (já que não existe a possibilidade de eliminá-la), não haverá dano indenizável”. Já Jerônimo Romanello Neto (Responsabilidade Civil dos Médicos), que se filia à corrente daqueles que entendem ser objetiva a responsabilidade do hospital, posiciona-se no sentido de que a existência da Comissão ou Serviço de Controle de Infecção Hospitalar deve ser levada em consideração para efeito de redução do montante de indenização. 29 Neste sentido já se posicionou o S.T.J., quanto do julgamento do Recurso Especial de n.º 116372/MG, datado de 11/11/1997, em que foi relator o Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, in Juiz, Jurisprudência Informatizada Saraiva, CD-ROM, n.º 18.

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Constatando-se ser a infecção exclusivamente endógena30 ou restando

comprovado que o próprio paciente, através de conduta inadequada, deu causa a moléstia,

afasta-se a obrigação do hospital de indenizar.

Os tribunais pátrios vêm reiteradamente reconhecendo a responsabilidade

civil hospitalar em casos de infecção hospitalar, divergindo os posicionamentos

jurisprudenciais, no entanto, quanto ao fundamento de tal responsabilidade.

Muitos são os julgados que fiéis aos ditames do Código Civil, asseveram ser

presumida a culpa do hospital, por tratar-se de responsabilidade contratual, bastando ao

autor, por conseguinte, a prova do descumprimento do ajuste, competindo ao nosocômio o

ônus de provar que agiu com a cautela e diligência requeridas pela situação, ou seja, sem ter

como imputar-lhe a responsabilidade porque não agiu com culpa.

A título de ilustração, transcreve-se, por todas, ementa do acórdão unânime

da Segunda Câmara Civil do T.J.R.J., do qual foi relator o Desembargador LUIZ ODILON

BANDEIRA:

“Ordinária de responsabilidade civil. Infecção

hospitalar. Dever de ressarcir. É contratual a relação entre o paciente e

o hospital, em que ele se internou, para se submeter a uma intervenção

cirúrgica. Evidenciado pela prova pericial, que dito paciente sofreu

infecção hospitalar, durante o período de sua internação, malferida

restou a avença celebrada, pois dentre os deveres do nosocômio, está o

de não agravar os males, de que sofre o paciente, com a falta de

cuidados e assepsia de suas instalações e equipamentos,

principalmente durante o período pós-operatório. Cuidando-se de

30 A literatura médica nos esclarece quanto à possibilidade de infecção exógena ser seguida de infecção endógena (Milca Severino Pereira e Tokico Murakawa Morya, op. cit., p.7). Nestes casos,

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responsabilidade contratual, presumida é a culpa desse nosocômio,

bastando ao autor a prova do descumprimento do ajuste, com a

inversão do ônus da prova (...)”.31

Paulatinamente, no entanto, vem a jurisprudência submetendo a

responsabilidade hospitalar aos ditames do Código de Defesa do Consumidor, o que leva à

conclusão de ser objetiva a responsabilidade dos hospitais e, conseqüentemente, prescindível

de qualquer análise quanto à culpa atribuída ao estabelecimento, seja ela real ou presumida,

exsurgindo, assim, o dever de indenizar, tão-somente ante a prova concreta da existência do

defeito do serviço do evento danoso e do nexo causal a vincular este à conduta (comissiva ou

omissiva) do nosocômio.

Trazemos, a título de exemplificação, também do T.J.R.J., julgado do VII

Grupo de Câmaras Cíveis que, em caso de infecção hospitalar, reconheceu ser objetiva a

responsabilidade do nosocômio:

“Responsabilidade objetiva. Relação de consumo.

Infecção hospitalar que acarretou à paciente perda do útero. Evidência

do nexo causal e comprovação da ocorrência de danos morais, tendo

em vista a idade da vítima e as conseqüências prejudiciais e

constrangimento moral, imposto à autora. Aplicabilidade do art. 14 da

Lei 8078/90. Embargos infringentes rejeitados”.32

Com efeito, sendo indubitavelmente o contrato hospitalar um contrato de

natureza consumerista, posto que o hospital figura como prestador de serviços e o paciente

como destinatário final destes mesmos serviços, tem-se que a respectiva relação subordina-se

aos ditames do Código de Defesa do Consumidor, que atribui aos prestadores de serviços

entendem que não há como afastar a responsabilidade do hospital porque a infecção endógena só se manifesta em razão de, primeiro, ter contraído o paciente uma infecção exógena. 31 T.J.R.J. – 2ª Câmara Cível – Apelação Cível 240/1997, j. 18/03/1997, relator Desembargador Luiz Odilon Bandeira, in CD EMERJ/1999.

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responsabilidade de natureza objetiva, ou seja, independentemente de culpa, pelos danos

decorrentes da má prestação de tais serviços.

Passemos, pois, objetivando a conclusão deste estudo, a apreciar a

responsabilidade civil hospitalar à luz do Código de Defesa do Consumidor.

RESPONSABILIDADE CIVIL HOSPITALAR À LUZ DO CDC.

Antes de adentrarmos especificamente no estudo da responsabilidade civil

hospitalar à luz do Código de Defesa do Consumidor, parece-nos importante tecer algumas

considerações a respeito do diploma legal em referência.

De pronto, há que se ressaltar a missão constitucional do CDC. Como se

observa do próprio enunciado do seu art. 1º 33, a promulgação do código se deve a

mandamento constitucional expresso.

A preocupação do legislador constituinte se justifica porque o homem do

século XX e XXI vive em função de um modelo de associativismo, qual seja, a sociedade de

consumo, fenômeno jurídico esse totalmente desconhecido no século XIX e em boa parte do

começo do século XX.34

Tal sociedade, caracterizada por um número crescente de produtos e

serviços, pelo domínio do crédito e do marketing, assim como pelas dificuldades de acesso à

32 T.J.R.J. – Acórdão, por maioria, dos Embargos Infringentes na Apelação Cível 176/1988, j. 18/11/1998, relator JDS Desembargador Sidney Hartung, in CD EMERJ/1999. 33 Art. 1º: O presente Código estabelece normas de proteção a defesa do consumidor, de ordem pública e interesse social, nos termos dos arts. 5º, inciso XXXII, 170, inciso V, da Constituição Federal e art. 48 de suas Disposições Transitórias. 34 Cf. Ada Pellegrini Grinover e Antônio Hermam de Vasconcellos e Benjamim, Código Brasileiro de Defesa do Consumidor Comentado pelos Autores do Anteprojeto, p. 06.

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justiça, deixaram os consumidores em posição de tamanha vulnerabilidade que exige do

legislador constituinte uma tomada de posição a favor dos mesmos, ordenando expressamente

a elaboração de um diploma legal protetivo. E assim efetivamente se procedeu porque dentro

deste novo modelo de “sociedade de consumo”, por nós hoje vivenciado, a posição do

consumidor piorou em vez de melhorar. Como observam ADA PELLEGRINI GRINOVER e

ANTÔNIO HERMAM DE VASCONCELLOS E BENJAMIM, “se antes fornecedor e

consumidor encontravam-se em situação de relativo equilíbrio de poder de barganha (até

porque não se conheciam), agora é o fornecedor (fabricante, produtor, construtor, importador

ou comerciante) que, inegavelmente, assume a posição de força na relação de consumo e que,

por isso mesmo, “dita as regras”.35

Foi a vulnerabilidade de consumidor, portanto, que norteou a elaboração do

CDC, embasando a nova disciplina jurídica que tem por escopo a sua proteção. “Toda e

qualquer legislação de proteção ao consumidor tem, portanto, a mesma ratio, vale dizer, re-

equilibrar a relação de consumo, seja reforçando, quando possível, a posição do consumidor,

seja proibindo ou limitando certas práticas de mercado”.36

Não é por outro motivo, pois, que as normas instituídas pelo CDC são de

ordem pública e interesse social, como determinado pelo seu art. 1º, o que equivale dizer que

são inderrogáveis por vontade dos interessados em determinada relação de consumo,

justamente para se assegurar o almejado re-equilíbrio desta relação.

A natureza cogente de tais normas deflui, em verdade, de toda uma evolução

do pensar jurídico em sede de direito obrigacional. O princípio da obrigatoriedade,

consagrado em todo seu esplendor pelo Código Francês, foi mitigado pelos juristas por não se

prestar à realidade fática social contemporânea, posto que, em nome de uma suposta

segurança jurídica, a aplicabilidade de tal princípio em toda a sua inteireza, na verdade, estava

provocando uma série de injustiças no trato das relações de consumo, ante a notória

fragilidade dos consumidores em tal relação. Não foi por outro motivo, pois, que se

35 Ibid., na mesma página. 36 Ada Pellegrini Grinover e Antônio Hermem de Vasconcellos e Benjamim . Op. cit., p. 7.

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convenceram os juristas quanto à necessidade da intervenção estatal nas relações dessa

espécie.

Em sede de direito do consumidor, não há como negar, pois, a existência de

um intervencionismo estatal no controle do relacionamento consumidor-fornecedor,

preferindo o nosso ordenamento jurídico em tutelar o consumidor de modo sistemático,

optando por um “código”, ao contrário de outros ordenamentos que preferem efetivar a

proteção do consumidor através de leis esparsas.37

Registra-se, por oportuno, que as particularidades de tal código são

tamanhas que não seria exagero dizer que tal legislação, em verdade, provocou uma

verdadeira revolução em sede de direito privado, na medida em que criou novos institutos,

com a possibilidade da modificação do contrato pelo juiz38 e, no que se refere à questão

pertinente à responsabilidade civil, adotou a teoria do risco, por estatuir responsabilidade

objetiva nas relações consumeristas.

Não é por acaso que muitos atribuem ao CDC o caráter de um verdadeiro

microssistema jurídico, ou seja, “ao lado de princípios que lhe são próprios, no âmbito da

37 Ada Pellegrini Grinover e Antônio Hermen de Vasconcellos e Benjamim esclarece-nos que, “nenhum país do mundo protege seus consumidores apenas com o modelo privado. Todos, de uma forma ou de outra, possuim leis que, em menor ou maior grau, traduzem-se em um regramento pelo estado daquilo que, conforme preconizado pelos economistas liberais, deveria permanecer na esfera exclusiva de decisão dos sujeitos envolvidos”. E acrescentam: “O modelo do intervencionismo estatal pode-se manifestar de duas formas principais. De um lado, há o exemplo, ainda majoritário, daqueles países que regram o mercado de consumo através de leis esparsas, específicas para cada uma das atividades econômicas diretamente relacionadas com o consumidor (publicidade, crédito, responsabilidade civil pelo acidente de consumo, garantias, etc.). De outra parte, existem aqueles ordenamentos que preferem tutelar o consumidor de modo sistemático, optando por um “código”, como conjunto de normas gerais, em detrimento de leis esparsas. Este modelo, pregado pelos maiores juristas da matéria e em vias de se tornar realidade na França, Bélgica e Holanda, foi o adotado no Brasil, que surge como o pioneiro da codificação do Direito do Consumidor em toda o mundo”. Op. cit., p. 8. 38 Art. 6º: São direitos básicos do consumidor: (...) V – a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas. A possibilidade da interveniência estatal para modificação de cláusulas contratuais vinha sendo reconhecida pela jurisprudência brasileira, em razão dos princípios informativos da teoria da imprevisão, posto inexistir, como já tivemos oportunidade de observar, disposição expressa no Código Civil de 1916 a permitir a modificação ou a resolução dos contratos por força da alteração das circunstâncias. Foi o CDC o primeiro diploma legal a expressamente prever tal responsabilidade, qualificando-a como direito básico do consumidor. (Apontamento sobre a teoria da imprevisão, p. 78).

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chamada ciência consumerista, o Código Brasileiro do Consumidor relaciona-se com outros

ramos do Direito, ao mesmo tempo em que atualize e dá nova roupagem a antigos institutos

jurídicos”.39

Mais acertadamente, SÉRGIO CAVALIERI FILHO sustenta que, em

verdade, o que o Código do Consumidor fez foi criar uma subestrutura jurídica

multidisciplinar, eis que cuida de questões que se acham inseridas no Direito Constitucional,

Civil, Penal, Processos Civil e Penal, Administrativo. “Usando de uma figura de linguagem”,

explica-nos o renomado desembargador ora citado, “poderíamos dizer que o Código do

Consumidor fez um corte horizontal em toda a superfície da ordem jurídica existente,

levantou o seu tampão, vamos assim dizer, e espargiu a sua disciplina por todas as áreas do

direito onde ocorrem relações de consumo, colorindo-as com as suas tintas. Os institutos e

contratos conservam as suas características básicas, continuam regidos pelas normas e

princípios que lhe são peculiares, mas, sempre que gerarem relações de consumo, ficam

também sujeitas à disciplina do Código do Consumidor. Dessa forma, embora o Código do

Consumidor não discipline nenhum contrato especificamente, aplica-se na realidade a todos

os contratos que gerem relações de consumo”.40 É o caso, indubitavelmente, do contrato

hospitalar. Como já tivemos oportunidade de demonstrar, decorre o contrato hospitalar de

uma relação de consumo, não havendo exagero algum, portanto, em qualificá-lo, como

contrato de consumo e, por conseqüência, sujeita às regras de proteção dos consumidores

estabelecidas pelo CDC.

Em assim sendo, o regime de responsabilização do hospital é aquele

previsto pelo Código de Defesa do Consumidor. Não há mais que se buscar no Código Civil

fundamentos para tal responsabilização, posto que o fundamento da responsabilidade civil do

fornecedor (no caso o hospital), como se vem afirmando, deixa de ser exclusivamente a

relação contratual para também se materializar em função da existência de um outro tipo de

vínculo, qual seja, a relação jurídica de consumo.

39 Ada Pellegrini Grinover e Antônio Hermem de Vasconcellos e Benjamim . Op. cit., p. 7. 40 Sérgio Cavalieri Filho, A responsabilidade médico-hospitalar à luz do Código do Consumidor, in Revista Forense, p. 134.

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Não se quer dizer com isso que o estudo do contrato hospitalar se apresente

indiferente para o regime de responsabilização do nosocômio, pois inegável é a existência de

uma relação contratual entre o hospital e o paciente, como já demonstrado.

O que se tem que ter em linha de conta, no entanto, para a correta aferição

da responsabilidade do hospital, é que o contrato no qual se funda a relação hospital-paciente

ganha novos contornos com a qualificação de “contrato de consumo” até porque as próprias

partes se apresentam sob novas denominações, posto que, em verdade, se apresentam como

fornecedor de serviços e consumidor; e nesta relação, fornecedor-consumidor, a

responsabilidade é objetiva, uma vez que o Código do Consumidor, em seu art. 14,

estabeleceu responsabilidade sem culpa para todos os casos de acidentes de consumo

provocados pelo fornecimento de serviços com defeito.

Vê-se, assim, que para a aferição do regime da responsabilidade civil

hospitalar, há de prevalecer a relação jurídica de consumo decorrente do respectivo contrato.

Neste passo, se de aludida relação advir um acidente de consumo por força de serviços

prestados pelo hospital com defeito, exsurgirá para o mesmo o dever de reparar o dano.

Assim, sejam os serviços que se consubstanciam no ato médico, sejam os que decorrem

exclusivamente do internamento, se prestados com defeito, responsabiliza-se o hospital pelos

danos decorrentes.

Têm-se, pois, que, utilizando-se do linguajar do código, responsabiliza-se o

hospital pelo fato do serviço, que é “a causa objetiva do dano ocasionado ao consumidor em

função de defeito na prestação de serviço, isto é, a repercussão do defeito do serviço,

causadora de danos na esfera de interesse juridicamente protegido do consumidor”41, ou,

como prefere SÉRGIO CAVALIERI FILHO, “é o acontecimento externo, ocorrido no mundo

físico, que causa danos materiais ou morais ao consumidor, mas decorrentes de um defeito do

serviço”.42 Do exposto, conclui-se que da mesma forma que se põe para os produtos (art.

41 Arruda Alvim , Código do Consumidor Comentado, p. 47. 42 Op. cit., p. 135.

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12)43, o defeito é o elemento que determina a responsabilidade civil do prestador de serviço,

ao causar um acidente de consumo. E o serviço é defeituoso, diz o § 1º do art. 14 do CDC,

“quando não fornece a segurança que o consumidor dela pode esperar, levando-se em

consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais o modo de seu fornecimento, o

resultado e os riscos que razoavelmente dele se esperam e a época em que foi fornecido”.44

Deflui do dispositivo legal em causa que o item mais importante é a

segurança do consumidor. De fato, os serviços colocados no mercado devem cumprir, além de

sua função econômica específica, um objetivo de segurança. O desvio de tal objetivo

caracteriza o vício de qualidade por insegurança.45

É importante registrar que no âmbito do fornecimento de serviços, a

inexistência de vícios de qualidade por insegurança se apresenta como valor primordial no

mercado de consumo e é tida como direito básico do consumidor (art. 6º, I).46 Em assim

sendo, todo aquele que se propõe a fornecer serviços possui o dever de fornecê-los com

segurança, pois a lei exige do fornecedor a garantia dos serviços por ele prestados, de modo

que, se os serviços estiverem enodoados com vício de qualidade por insegurança, responde

civilmente o respectivo fornecedor pelo fato de ter lançado no mercado um serviço com

defeito e que tenha ocasionado dano a alguém.

É por isto que se diz que o CDC adotou a teoria do risco do

empreendimento. Por força de tal teoria “todo aquele que se disponha a exercer alguma

43 Art. 12 (CDC): O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, representação ao condicionamento de seus produtos, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização de riscos. 44 Observa Zelmo Denari que o dispositivo enfocado é mera adaptação da norma que conceitua o “produto defeituoso”, previsto no art. 6º da Diretiva 374/85 da CEE (Código Brasileiro de Defesa do Consumidor Comentado pelos Autores do Anteprojeto, p. 171). Acrescenta, ainda, Antônio Hermam de Vasconcellos e Benjamim, ser “matéria dificílima esta dos acidentes de consumo decorrentes de serviços. Tanto assim que o legislador comunitário, ao preparar a Diretiva n.º 85/374, preferiu limitá-la aos produtos de consumo” (Comentários ao Código de Proteção do Consumidor, p. 78). 45 Cf. Antônio Hermem de Vaconcellos e Benjamim, Op. cit., p. 45. 46 Art. 6º, I (CDC): São direitos básicos do consumidor: I – a proteção da vida, saúde e segurança contra os riscos provocados por práticas no fornecimento de produtos e serviços considerados perigosos ou nocivos.

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atividade no mercado de consumo tem o dever de responder pelos eventuais vícios ou defeitos

dos bens e serviços fornecidos, independentemente de culpa. Este dever é imanente o dever de

obediência às normas técnicas e de segurança, bem como aos critérios de lealdade, quer

perante os bens e serviços ofertados, quer perante os destinatários destas ofertas. A

responsabilidade decorre do simples fato de dispor-se alguém a realizar atividade de produzir,

estocar, distribuir e comercializar produtos ou executar determinados serviços. O fornecedor

passa a ser o garante dos produtos e serviços que oferece no mercado de consumo,

respondendo pela qualidade e segurança dos mesmos”.47

Mas é importante ter em mente que, de uma maneira geral, não há produto

ou serviço totalmente seguro. A segurança exigida pela lei leva em consideração a idéia de

risco, ou seja, reconhece que todo produto ou serviço, por mais seguro ou inofensivo que seja,

traz sempre uma ponta de insegurança para o consumidor. O CDC não tem por pretensão,

pois, reduzir todos os riscos associados a produtos ou serviços a um patamar zero; o que se

pretende é tão-somente assegurar que os riscos mantenham-se nos limites do razoável. Assim,

o direito só atua ou, em outras palavras, só há que se falar em responsabilidade quando a

insegurança ultrapassar o patamar da normalidade e da previsibilidade do risco,

consubstanciando-se em verdadeiro defeito.48

Se há um risco no serviço a ser prestado, existente por força de sua própria

natureza e se o consumidor estiver apto a prever tal risco, ou seja, se este risco não o

surpreende, a periculosidade de tal serviço é qualificada como inerente ao mesmo, não

havendo, por conseguinte, de se cogitar, em responsabilidade, caso advenha algum dano por

conta deste risco, posto que normal e previsível. Assim, se um serviço apresenta um risco que

lhe é inerente, normal e previsível, em consonância com a expectativa legítima do

consumidor, não responde o respectivo fornecedor por não ser defeituoso o tal serviço.

47 Sérgio Cavalieri Filho, Programa de Responsabilidade Civil, p. 366. 48 Cf. Antônio Hermen de Vasconcellos e Benjamin, op. cit., p. 45-47.

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Considerando, a periculosidade inerente a um dado serviço, os danos dele

decorrentes não dão ensejo ao dever de indenização. Cabe ao fornecedor, em situações tais,

tão-somente “informar ao consumidor a respeito desses riscos inevitáveis, podendo por eles

responder, caso não se desincumba desse dever, hipótese em que poderá resultar configurado

o defeito de comercialização por informação deficiente quanto à periculosidade do produto ou

serviço, ou quanto ao modo de utilizá-lo”.49

Por outro lado, como leciona SÉRGIO CAVALIERI FILHO, “fala-se em

risco adquirido quando produtos e serviços tornam-se perigosos em decorrência de um

defeito. São bens e serviços que, sem o defeito, não seriam perigosos; não apresentam riscos

superiores àqueles legitimamente esperados pelo consumidor. Imprevisibilidade e

anormalidade são as características do risco adquirido”.50

Conclui-se, pois, que as noções de risco inerente e risco adquirido são de

extrema importância para o regime de responsabilização dos hospitais, posto que, como

assevera ANTÔNIO HERMEN DE VASCONCELLOS E BENJAMIN, com a autoridade de

ter sido um dos autores do anteprojeto que resultou no CDC, “em matéria de proteção da

saúde e segurança dos consumidores vige a noção geral da expectativa legítima. Isto é, a

idéia de que os produtos e serviços colocados no mercado devem atender as expectativas de

segurança que deles legitimamente se espera. As expectativas são legítimas quando,

confrontadas com estágio técnico e as condições econômicas da época, mostram-se plausíveis,

justificadas e reais. É basicamente o desvio deste parâmetro que transforma periculosidade de

um produto ou serviço em periculosidade adquirida”.51

De fato, a atividade hospitalar encerra uma periculosidade inerente. Dos

serviços hospitalares decorre, indubitavelmente, um risco inerente pelo qual o nosocômio não

pode se responsabilizar, posto tratar-se de um risco normal e previsível. A responsabilidade

49 Sérgio Cavalieri Filho, A Responsabilidade Médico-hospitalar à Luz do Código do Consumidor, in Revista Forense, p. 137. 50 Ibid., na mesma página. 51 Op. cit., p. 48.

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civil do hospital só se faz presente frente ao risco adquirido, aquele imprevisível e anormal, o

que equivale dizer, quando houver defeito no serviço.

Neste passo, não há o porquê de se afastar do regime de responsabilização

estatuído pelo CDC o serviço hospitalar, mesmo sendo aquele que se consubstancia no ato

médico propriamente dito, posto que se levar em consideração, até porque assim a lei exige,

os riscos inerentes a tais serviços, ou seja, os riscos normais e previsíveis que não decorrem

de nenhum defeito, médico e hospital só podem ser responsabilizados pelos riscos adquiridos,

isto é, pelo defeito do serviço.

Não há assim, a menor incompatibilidade entre a responsabilidade dos

estabelecimentos hospitalares e a responsabilidade objetiva estabelecida no CDC, mesmo

quando estiver em causa o próprio ato médico, se tal serviço for efetivamente prestado pelo

nosocômio, pois o hospital só responderá quando o evento decorrer de defeito do serviço, ou

seja, quando do serviço prestado restar caracterizado o risco adquirido.

Ademais, não podemos nos olvidar que mesmo na responsabilidade objetiva

é indispensável o nexo de causalidade entre a conduta e o resultado. Para se falar em

responsabilidade do hospital há que se apontar o defeito no serviço. Inexistindo o defeito não

há que se imputar a responsabilidade, ainda que haja dano, por ser este, em caso tais,

decorrente do risco inerente às atividades hospitalares. Aliás, é a própria lei que elenca a

inexistência do defeito como excludente da responsabilidade, ao lado da culpa do consumidor

ou de terceiro.52

Assim, exime-se o hospital do dever de indenizar se provar que o evento

não decorreu de defeito do serviço, mas sim por força do risco inerente à sua própria

atividade.

52 Art. 14, § 3º (CDC): O fornecedor de serviço só não será responsabilizado quando provar: I – que, tendo prestado o serviço, o defeito inexiste; II – a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.

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Pelo fio do exposto, parece-nos mais acertado o entendimento daqueles que

defendem ser objetiva a responsabilidade médica empresarial,53 (clínicas), até porque “a

responsabilidade sem culpa, conquanto de natureza excepcional, se impõe nas relações de

consumo como único meio efetivo de se viabilizar na prática o direito do consumidor (aquele

que não tem como repassar seus prejuízos) ser indenizado quando lesado pela persuasão

oculta ou pelos sutis comportamentos de mercado lesivos ao interesse geral”.54

Paulatinamente, a jurisprudência de nossos tribunais vai aceitando que uma

das grandes inovações do Código de Defesa do Consumidor foi a alteração do sistema

tradicional de responsabilidade civil baseado na culpa, reconhecendo, conseqüentemente, ser

objetiva a responsabilidade civil hospitalar.

Como, por exemplo, já decidiu o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de

Janeiro:

“Responsabilidade civil. Hospital. Ressarcimento de

dano moral. Paciente com insuficiência renal grave. Hemodiálise.

Contaminação por vírus da hepatite B. Nexo de causalidade

demonstrado. A responsabilidade hospitalar, diferentemente da do

médico, encerra obrigação de resultado no sentido de assegurar a

incolumidade do paciente em tudo que seja capaz de lhe produzir

dano. A contaminação ou infecção em serviço de hemodiálise

caracteriza-se como falha do serviço e leva à indenização,

independentemente de culpa. Aplicação, na hipótese, do art. 14

“caput” do Código de Defesa do Consumidor. O ressarcimento do

dano moral realiza-se pelo sistema de compensação, insuscetível de

Pacífico é o entendimento que, embora não elencadas no texto legal, o caso fortuito e da força maior atuam como excludentes da responsabilidade do prestador de serviços. 53 Assim nos referimos aos serviços médicos prestados pelos hospitais, clínicas, casas de saúde, laboratório de exame, banco de sangue, etc.. 54 Luiz Amaral, O Código do Consumidor, Revista de Informação Legislativa, 27(106): 157, abr/jun. 1990, apud Antônio Hermen de Vasconcellos e Benjamin, Op. cit., p. 58.

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avaliação pericial. Agravo desprovido. Provimento parcial da apelação

apenas para reduzir o valor da condenação”.55

E mais:

“Hospital. Prestação de serviços. Indenização.

Reparação de danos. Simples traumatismo no dedo de um menor que,

não obstante o atendimento médico recebido, acaba se transformando

em infecção grave a ponto de ser necessária a amputação cirúrgica do

membro. Falha de serviço caracterizada. Verba devida pelo

estabelecimento hospitalar, pois, nos termos do art. 14 da Lei

8.078/90, responde objetivamente, independentemente de culpa, pelos

danos causados aos consumidores. Como prestadores de serviços que

são, os estabelecimentos hospitalares respondem objetivamente pela

reparação de danos causados aos consumidores. Essa responsabilidade

tem por fato gerador o defeito do serviço, conforme expressamente

previsto no art. 14 do CDC, que última instância, criou para o

fornecedor um dever de segurança e idoneidade em relação aos

serviços que presta aos consumidores. Simples traumatismo no dedo

de um menor que, não obstante o atendimento médico recebido, acaba

se transformando em infecção grave a ponto de se fazer necessária a

amputação cirúrgica da terceira falange, caracteriza falha do serviço

eleva a indenização, independentemente de culpa”.56

A Sexta Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo,

também já abraçou igual entendimento, pois assim já decidiu:

“Considerando que o hospital se enquadra na

categoria de fornecedor de serviço, devem ser consideradas, para o

55 T.J.R.J. – 5ª Câmara Civil – Apelação Civil 1994.001.6200, j. 22/11/1994, relator Desembargador Marcus Faver, in ementário 04/1995, n.º 21- www.tjrj.gov.br. 56 T.J.R.J. – 2ª Câmara Civil – Apelação Civil 11.323/98 j. 15/02/1998, relator Desembargador Sérgio Cavalieri Filho, DORJ 10/06/1999- www.jurinforma.com.br.

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fim de definição de sua responsabilidade objetiva pelo fato do serviço,

as diretrizes traçadas pelo Código de Defesa do Consumidor, a saber:

de um lado, a aptidão ou idoneidade do produto ou serviço geram a

responsabilidade pelo chamado vício, caso em que o fornecedor só

arca com as conseqüências jurídicas do fornecimento de um produto

ou de um serviço imperfeito; de outro lado, a falta de segurança do

produto ou serviço acarreta, por sua vez, a responsabilidade do

fornecedor pelo fato do produto/serviço (acidente de consumo),

especificamente no que diz respeito aos danos produzidos, caso em

que a imperfeição dos serviços recebe o nome de defeito. Tratando-se

de defeito, a responsabilidade do fornecedor do serviço é objetiva, só

sendo afastada se e quando demonstrar (e a prova fica a seu cargo) que

tendo prestado o serviço, o defeito inexistiu, ou, então, que foi do

consumidor ou de terceiro a culpa exclusiva pelo defeito (art. 14 § 3º

CDC)”.57

CONCLUSÃO

Deve-se ter em conta que o estabelecimento hospitalar na qualidade de

instrumento terapêutico, assim como conhecemos nos dias de hoje, data do final do século

XVIII, período em que se formou a consciência da realidade hospitalar moderna, deixando de

ser uma simples figura arquitetônica, uma instituição não de assistência mas de segregação e

exclusão social, um verdadeiro lugar para morrer.

A medicina e os hospitais, neste verdadeiro período das trevas,

permaneceram independentes e distantes.

Fica então o questionamento, como o hospital evoluiu para ser medicalizado

e como a medicina tornou-se hospitalar ?

57 T.J.S.P. – 6ª Câmara Civil – Apelação Civil 70286-4/6, j. 29/04/1999, relator Desembargador Antônio Carlos Marcato - www.jurinforma.com.br.

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A primeira transformação deu-se através de uma ação positiva do

estabelecimento hospitalar, com a tentativa de aniquilarem-se os efeitos negativos existentes,

procurando purificá-lo de seus efeitos nocivos.

A segunda transformação ocorreu com a aplicação da política disciplinar

cujo objetivo era exercer um controle sobre o desenvolvimento de uma ação e não sobre seu

resultado. Com a introdução da disciplina no interior dos hospitais criou-se a possibilidade de

sua medicalização. O hospital passou a ser administrado por médicos e transformou-se em

instrumento de cura.

Por fim, foram criados sistemas de registros permanentes e técnicas de

identificação dos pacientes e de suas morbidades; nasceu assim o prontuário em sua forma

original.

Após séculos de árduas batalhas para firmar-se uma postura hospitalar

condizente com a noção de responsabilidade por nossos atos, a exemplo de Kant e Engelhardt,

fica a certeza de que se deve melhorar o ensino nas faculdades e universidades relacionadas à

área de saúde e aprimorar o conhecimento dos profissionais para que não haja falha na

prestação dos serviços prestados nos estabelecimentos hospitalares.

Com a conscientização dos prestadores de serviços médico-hospitalares de

que devem agir com acuidade e prevenir ao invés de indenizar, concluo o presente estudo com

esperança na valoração da vida e maior humanização e preocupação com os serviços

prestados pelas instituições hospitalares, no sentido de evitarem-se demandas judiciais,

promovendo uma prestação de serviço adequada e condizente com os valores humanísticos

que devem permanecer intrínsecos em seu atuar, evitando desta forma caminhar com a espada

de Dâmocles sobre suas cabeças.

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BIBLIOGRAFIA

________________________________________________________

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